Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
LUCIA HELENA PENA PEREIRA
BIOEXPRESSÃO:
A CAMINHO DE UMA EDUCAÇÃO LÚDICA
PARA A FORMAÇÃO DE EDUCADORES
SALVADOR - BAHIA
2005
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
LUCIA HELENA PENA PEREIRA
BIOEXPRESSÃO:
A CAMINHO DE UMA EDUCAÇÃO LÚDICA
PARA A FORMAÇÃO DE EDUCADORES
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação, Faculdade de
Educação, Universidade Federal da
Bahia, como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor.
Linha de pesquisa: Filosofia, Linguagem
e Práxis Pedagógica.
Sob orientação de: Prof. Dr. Cipriano
Carlos Luckesi.
SALVADOR - BAHIA
2005
ads:
______________________________________________________________
Pereira, Lucia Helena Pena
Bioexpressão: a caminho de uma educação lúdica para a formação de educadores./
Lucia Helena Pena Pereira. Salvador: [s.n.], 2005.
403 p.
Orientador: Professor Cipriano Carlos Luckesi.
Tese de Doutorado Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. Programa de
Pós-Graduação em Educação.
1. Bioexpressão educação lúdica formação de educadores. 2. Integralidade do
ser humano. 3. Auto-expressão. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação.
II. Luckesi, Cipriano Carlos.
CDU: 371.12
CDD: 379.92
_________________________________________________________________________
iv
A meus pais, que me deram o presente da vida,
e que, certamente, gostariam de presenciar, nesta dimensão,
este momento de crescimento pessoal e profissional.
Aos meus educandos, que embarcam comigo
na desafiante e rica viagem da aprendizagem,
me mostrando possibilidades de caminhada
em que se unem razão e coração.
v
AGRADECIMENTOS
Estas páginas são importantes, pois me permitem registrar o reconhecimento e a
gratidão àqueles que compartilharam comigo a construção desta tese, que me absorveu quase
por completo durante quatro anos. Momentos alegres e angustiantes, de descoberta e de
assombro, mas sempre singulares e significativos.
A Cipriano Carlos Luckesi, meu orientador, com quem muito aprendi e cresci, por
me acompanhar nesta desafiante caminhada, acolhendo, dando sustentação, ajudando-me a
superar dúvidas e ansiedades, indicando possibilidades de ação.
A meu marido, Hélcio Bittencourt Pereira, e meus filhos, Marcus Vinicius Pereira e
Felipe César Pereira, pelo respeito a minhas buscas, apoio e estímulo, mesmo tendo que abrir
mão de minha presença e atenção por tão longos períodos.
A Dulciene Anjos de Andrade e Silva e Telma Nadja Silveira Lélis, amigas-irmãs
com que Salvador me presenteou, pela grandeza do encontro e das trocas, pelo afeto, colo,
ouvidos atentos e colaboração em todos os momentos.
A Tereza Caribé, Claudinéia Moreira, Regina Maria Brasil e Maurício Tatar,
profissionais dedicados e queridos, pela escuta amorosa e orientações sábias, que me
ajudaram a cuidar do corpo e dos sentimentos, da mente e da alma nos momentos de
turbulência.
Aos participantes da pesquisa, companheiros de jornada, sem os quais esta pesquisa
não teria tanta vida e força.
Aos Professores do Programa de Pós-Graduação em Educação, em especial, a
Bernadete de Souza Porto, com quem aprendi a ousar mais um pouco; a Dante Augusto
Galeffi, com quem vivenciei, na prática, que do caos se cria uma nova ordem, e que me
estimulou a acreditar e investir nos meus sonhos; a Miguel Bordas que, desde o início,
acolheu minha proposta de pesquisa, nela acreditando.
vi
A Ana Maria Cambruzzi e Ruy Cezar do Espírito Santo pelo acolhimento e
disponibilidade para as trocas, e pela contribuição preciosa nos momentos finais da redação e
organização desta pesquisa.
Aos colegas do doutoramento, em especial a Antenor Gomes, César Leiro, Elizeu de
Souza, Ercília de Paula, Henriette Ferreira, Lícia Beltrão e Natália Furtado, pelas discussões,
sugestões, trocas, leitura cuidadosa do projeto e pelo acolhimento à carioca que chegou a
Salvador pela primeira vez.
Aos muitos amigos que comigo partilharam os momentos bons e os difíceis,
estimulando meus passos e dando suporte diante dos tropeços e dificuldades, alguns desde a
fase de seleção para o doutoramento, em especial (mas sem desconsiderar nenhum deles),
Ana Maria, Ângela Hallak, Delahyr Pereira, Écio Portes, Elaine Rizzuti, Graça Borges,
Heleny Hallak, Jilvânia Lima dos Santos, Márcia Moysés, Maria José Braga, Maria José
Cassiano, Marilena Zanzoni, Murilo Cruz Leal, Samuel Kurcbart, Tereza de Carvalho, Vera
Lúcia Pereira e Wanderley Oliveira.
Aos companheiros do GEPEL pelas trocas e acolhimento amoroso ao longo destes
quatro anos, especialmente, a Joanna Angélica, Juciara Moreno, Maribel Barreto, Rosemary
Ramos e Washington Carlos Oliveira.
A Marly Chagas, musicoterapeuta, psicóloga e amiga querida, que me mostrou os
primeiros passos deste caminho sem volta para o autoconhecimento, o sensível e o corporal
há vinte anos atrás, me abrindo portas para uma vida mais viva e mais feliz.
Aos funcionários do Programa de Pós Graduação em Educação da UFBA e da
FACED pela disponibilidade e cooperação em minha vida de estudante e de pesquisadora.
À UFSJ e à CAPES que tornaram possível o desejo de investir nesta pesquisa.
À Luz Maior que orienta meus passos e me fortalece sempre.
vii
Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
Mário Quintana
viii
RESUMO
Tendo em vista o contexto atual de incertezas e de mudanças contínuas e aceleradas,
da enxurrada cotidiana de informações e de novos conhecimentos, muitas vezes,
contraditórios e paradoxais, se torna necessário desenvolver a capacidade de viver uma vida
mais saudável no sentido de desenvolver em nós, condições de flexibilização, autonomia,
senso crítico, auto-expressão e sensibilidade. É fundamental compreender melhor a nós
mesmos e aprender a assumir a responsabilidade pelo nosso processo de crescimento e
aprendizagem.
Ampliar a consciência de nós favorece vivenciar, com um pouco mais de
tranqüilidade, os estados de tensão tão comuns na prática pedagógica e no nosso dia-a-dia,
tornando-nos mais equilibrados, porque o conhecimento de nós nos traz maior segurança
para aceitar a insegurança natural e inerente à vida; mais flexibilidade para a escuta de
nossos educandos e do outro, para a aceitação de novas idéias e possibilidades.
A Bioexpressão, objeto de estudo desta tese de Doutorado, é uma tentativa de
compreender como as limitações da posse de si mesmo e da expressividade que cada um de
nós carrega consigo, produzem um estado de insegurança, que dificulta a vida e o exercício
profissional satisfatório para si mesmo e na relação com o outro. Acreditando que, assim
como a racionalidade, o corpo, a emoção, a ludicidade, o imaginário e a espiritualidade são
importantes para a integralidade do ser humano, esta pesquisa busca averiguar como a
Bioexpressão pode levar ao futuro educador, ou mesmo, ao educador graduado,
possibilidades de se conhecer mais, de se expressar em sua singularidade, de investir em um
permanente processo de autoformação e de se relacionar melhor consigo mesmo e com o
outro para que possa atuar com mais abertura em sua prática profissional.
A Bioexpressão tem por base a teoria de Wilhelm Reich e a de alguns de seus
continuadores: Alexander Lowen, David Boadella e Stanley Keleman; e os estudos sobre
ludicidade. As atividades lúdicas são, nesta pesquisa, pensadas como um recurso para
construção e compreensão de si, estímulo à autonomia e à expressão pessoal. As teorias aqui
consideradas são significativas para os estudos na área da Educação na medida em que
apontam possibilidades de um novo olhar para a prática de sala de aula e as relações que nela
se estabelecem.
Palavras-chave: Bioexpressão; formação do educador; ludicidade; integralidade do ser
humano; auto-expressão.
ix
RÉSUMÉ
Etant donné le contexte actuel des incertitudes et des changements permanent et
accéléré, de la grande quantité quotidienne d’informations e des nouvelles connaissances,
plusiers fois contradictoires et paradoxales, il est nécessaire de développer la capacité de
mener une vie plus salutaire pour developper chez nous, des conditions de flexibilisation,
d’autonomie, de sens critique, d’auto-expression et de sensibilité. Il est fondamental de
mieux comprendre à nous même et d’apprendre à assoumer la responsabilité à cause de notre
procès de croissance et d’apprentissage.
Agrandir nos consciences nous favorise d’éprouver, avec un peu plus de tranquilité,
les états de tension si commmuns dans la pratique pèdagogique et dans notre quotidien, ce
que nous rend plus équilibrés, parce que le fait de nous connaître nous rend plus rassuré pour
accepter l’insécurité naturelle inhérent à la vie, plus de maléabilité pour écouter nos élèves et
l’autre, pour accepter des nouvelles idées e des possibilités.
La Bioexpressão, objet d’étude de cette thèse de Doctorat, c’est un essaie de
comprendre comment les limitations de la possession de soi-même et de la signification que
chacun de nous emporte, produisent un état d’insécurité, qui rend la vie difficile et l’exercice
professionnel suffisant pour soi même et dans le rapport avec autrui. En croyant que, ainsi
comme la rationalité, le corps, l’émotion, le ludique, l’imaginaire et la spiritualité sont
importantes pour l’intégralité de l’être humain, cette recherche veut verifier comment la
Bioexpression peut mener au future enseignant ou même, à des enseignants gradués, des
possibilités de mieux se connaître, de s’exprimer d’une façon singulière, d’investir dans un
permanent proccès d’autoformation et de se rapporter mieux avec soi meme et avec l’autre
pour qu’il puisse agir mieux dans sa profession.
La Bioexpressão a comme base la théorie de Wilhelm Reich et celle de quelques de
ses disciples: Alexander Lowen, Stanley Keleman et David Boadella; et les études sur la
ludicité. Les activités ludiques sont, dans cette recherche, pensés comme une idée pour la
construction et comprehension de soi, motivation à l’autonomie et à l’expression personelle.
Les théories ici considerées sont importantes pour les études de l’Educacion une fois qu’elles
montrent des possibilités d’un noveau regard pour la pratique de la sale de classe et les
rapports qui s’y établissent.
Mots-clé: Bioexpressão; formation de l’enseignant; ludicité; intégralité de l’être humain;
auto-expression.
x
ABSTRACT
At the current context of uncertainties and fast continuous changes where we have a
daily information and new kind of knowledge that many times are contradictory and
paradoxical, becomes necessary the capacity of living a more healthful life in the sense that
we have to reach flexibility conditions, autonomy, critical sense, self-expression and
sensitivity. It is basic that we have to better understand ourselves and to learn how to assume
the responsibility for our process of growth and learning.
Our conscience extension of favor us to live deeply, so with a little more than
tranquility, the ordinary pedagogical and our day-by-day practical tension states. This
becomes us more balanced because our knowledge brings a greater security to accept the
natural unreliability that is inherent for the life; more flexibility for listening our students and
others, for the acceptance of new ideas and possibilities.
The Bioexpressão, research’s subject of this dissertation, is an attempt to understand
how the our ownership limitations and the expression capacity that each one of us brings
with ourselves builds an unreliability state that makes hard the life and our satisfactory
professional work and the personal relationship. Believing that the body, the emotion, the
ludicity, the imaginary and the spirituality are important for the human integrity such as the
rationality, this research searches aims to inquire how the Bioexpressão can lead the future
educator, as well, the undergraduated educators to achieve possibilities to know more
himself, to express himself in his singularity mode, to invest in a permanent self formation
process, and to relate better with himself and with the other, so he can act with more freedom
in his professional work.
The Bioexpressão is based in Wilhelm Reich's theory and in a few of his followers:
Alexander Lowen, David Boadella and Stanley Keleman; is based also in studies about
ludicity. The playful activities are, in this research, thought as a construction resource and
self understanding, as autonomy stimulation and as a personal expression. The theories
considered here are significant for the studies in the area of the Education because they show
new possibilities to look with respect of a classroom practical and at the established relations
in it.
Keywords: Bioexpressão; teachers formation; ludicity; integrity of the human being; self-
expression
xi
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
PARTE I
FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA BIOEXPRESSÃO: TECENDO RELAÇÕES
E CRIANDO POSSIBILIDADES
CORPO E PSIQUE: DA DISSOCIAÇÃO À UNIFICAÇÃO
1. A questão corpo-psique no âmbito da investigação científica: a compreensão
sobre a unicidade
2. Autores fundantes para a Bioexpressão
2.1. Wilhelm Reich e seus estudos sobre as interações mente-corpo
A) Wilhelm Reich e a trajetória de sua investigação
B) Expansão e contração: a pulsação da vida
C) O corpo e a linguagem expressiva da vida
2.2. Lowen e a Bioenergética
A) Continuidade e reconstrução
B) As estruturas de caráter
a) estrutura esquizóide
b) estrutura oral
c) estrutura psicopata
d) estrutura masoquista
e) estrutura rígida
C) Graciosidade, auto-expressão e espiritualidade: o movimento da vida
2.3. Stanley Keleman e a Psicologia Formativa
A) Stanley Keleman
B) A constituição psíquico-emocional do ser humano
C) A morfologia anatômico-emocional
a) estrutura rígida
b) estrutura densa
1
18
19
20
24
24
24
32
35
38
38
42
45
46
47
48
49
50
56
56
57
61
62
64
xii
c) estrutura inchada
d) estrutura em colapso
2.4. David Boadella e a Biossíntese
A) David Boadella e as bases da Biossíntese
B) Camadas embrionárias e métodos terapêuticos
C) Espírito e corpo / Essência e energia
3. Pulsação, carga e fluxo
3.1. Pulsação
3.2. Carga
3.3. Fluxo
4. Algumas considerações
LUDICIDADE E AUTO-EXPRESSÃO
1. Mas afinal, o que é ludicidade? Primeiras considerações
2. Ludicidade, mobilização das couraças e auto-expressão
2.1. Camadas da estrutura biopsíquica
2.1. Anéis ou segmentos de tensão
a) segmento ocular
b) segmento oral
c) segmento do pescoço ou cervical
d) segmento torácico
e) segmento diafragmático
f) segmento abdominal
g) segmento pélvico
2.2. As atividades lúdicas como recurso flexibilizador das couraças de caráter
2.2.1. O encouraçamento e a contenção da expressão
2.2.2. E as atividades lúdicas, como se colocam neste contexto?
3. Ludicidade, autoconhecimento e o cuidar de si
3.1. Vida que pulsa: expansão e contração
3.1. Retomando o modelo de psique de Reich
3.2. A visão de David Boadella do modelo de psique reicheano
3.3. Ainda sobre o cuidar
4. A ludicidade na sala de aula: dificuldades e possibilidades
65
66
69
69
71
76
79
79
80
82
83
88
88
95
95
99
102
102
102
103
105
106
108
109
110
114
117
118
120
121
127
128
xiii
4.1. As relações em sala de aula: tecendo elos entre a educação e a
psicossomática
4.1.1. Interferências: os desencontros na relação educador-educando
4.1.2. Envolvimento e distanciamento: distorções do padrão de
ressonância
4.2. Intelecto, inteligência e intuição: algumas questões a considerar
4.3. Apesar das dificuldades, algumas possibilidades vislumbradas
A FORMAÇÃO DO EDUCADOR E A BIOEXPRESSÃO
1. A formação do educador
2. Como nosso educador tem sido formado
3. Bioexpressão: uma proposta para a autoformação e a formação do educador
3.1. Informação, comunicação e expressão
3.2. Centramento, grounding e auto-expressão
3.2.1. Centramento
3.2.2. Grounding
3.2.3. Expressão pessoal
3.3. Recursos e possibilidades
3.3.1. Visualização criativa
3.3.2. Ritmo, sons e música
3.3.3. Dança e movimentos expressivos
3.4. Retomando a organização das atividades
3.5. Algumas características desejáveis ao educador e alguns senões
PARTE II
INTERAÇÕES ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA DA BIOEXPRESSÃO E
LUDICIDADE: A PESQUISA EMPÍRICO-REFLEXIVA
OS PASSOS DA PESQUISA EMPÍRICA
1. Formação do grupo de pesquisa primeiras dificuldades
2. Composição do grupo
3. Realização do curso
4. Acompanhamentos
131
132
136
138
141
148
148
154
158
160
162
163
165
167
169
170
172
174
176
177
182
183
184
187
187
189
xiv
4.1. Uma nova proposta e velhas dificuldades
4.2. Os acompanhamentos nas escolas: novas dificuldades, frustrações e
alegrias
CARACTERIZAÇÃO INICIAL DO GRUPO DE PARTICIPANTES DA
PESQUISA
1. Quem é o educador
2. Quanto à atuação como profissionais da educação
3. Relação razão-emoção na sala de aula
4. Crenças sobre o corpo na prática pedagógica
5. Relação educador-educando
6. O entendimento de ludicidade
7. Atividades lúdicas em sala de aula
8. Atenção ao relacionamento dentro da sala de aula
9. Espaço para expressão na sala de aula
INTERVENÇÃO FORMATIVA: O CURSO DE EXTENSÃO E SEUS
DESDOBRAMENTOS
1. Bioexpressão: algumas considerações sobre a metodologia desenvolvida
2. Condutas observadas durante o Curso de Extensão
2.1. Os impactos do primeiro momento: dificuldades e surpresas
2.2.
Medos e coragens: o amadurecimento gradativo do grupo e de seus
componentes
2.3. Percepções diferenciadas e desacertos vividos: desafios e aprendizagem
2.4. A percepção através do movimento corporal de nossa postura diante
da
vida e de novas possibilidades
2.5. Teoria: uma sustentação necessária para novos vôos
2.6. Dificuldades e descobertas
2.7. Olhar, ouvir e e
xpressar: aprofundando o contato. Maior percepção de si
e do outro
3. Avaliação do Curso de Extensão pelos participantes da pesquisa
3.1. Observei algumas mudanças em mim quanto a ...
3.2. Fazer o curso significou...
189
191
196
199
201
206
211
213
217
220
222
225
229
230
231
231
237
244
253
257
258
261
267
267
269
xv
3.3. Gostei de...
3.4. Não gostei de...
3.5. Penso que foi importante...
3.6. Quanto aos estudos teóricos...
3.7. Em relação às vivências considero...
3.8. Se pudesse mudaria...
3.9. Outras observações e comentários
4. Prolongamento das atividades: novas possibilidades e mudanças
4.1. Recomeçando...
4.2. Antigas dificuldades e um novo impulso
4.3. Uma propost
a e respostas criativas: superando mais algumas
dificuldades
4.4. Mais uma vez a possibilidade de vivenciar a experiência...
4.5. Reprodução ou criação?
4.6. Driblando os entraves institucionais e promovendo mudanças
ATUAÇÃO DOS PARTICIPANTES DA PESQUISA APÓS A INTERVENÇÃO
FORMATIVA: COMPARTILHANDO VÔOS, TENTATIVAS E
TRANSFORMAÇÕES NA SALA DE AULA
1. Primeiras possibilidades
2. Acompanhando a transformação da prática pedagógica
3. Atividades desenvolvidas
CARACTERIZAÇÃO FINAL DO GRUPO DE PARTICIPANTES DA
PESQUISA
1. Quem é o educador após o contato com a Bioexpressão
2. Mudanças consideradas mais significativas
3. O Curso de Bioexpressão: as expectativas e o fazer
4. Relação razão-emoção na sala de aula
5. As crenças sobre o corpo na prática pedagógica
6. Relação educador-educando
7. A compreensão de ludicidade
8. Atividades lúdicas na sala de aula
271
272
273
275
276
277
278
283
283
286
289
294
297
299
303
305
306
315
317
319
326
330
334
338
343
348
352
xvi
9. Atenção ao relacionamento dentro da sala de aula
10. Significados especiais e acréscimos
CONSIDERAÇÕES FINAIS... POR ENQUANTO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
357
360
372
380
1
INTRODUÇÃO
Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só.
Sonho que se sonha junto é realidade.
Raul Seixas
Escrever esta tese de Doutorado exigiu um longo e desafiante percurso. Foi fruto
não apenas dos quatro anos de pesquisa, aprendizagem, confrontos e trocas no Programa
de Pós-Graduação em Educação da UFBA e das experiências riquíssimas que vivenciei na
cidade de Salvador. Passei por experiências, dentro e fora da Universidade, que fizeram
com que revisse crenças, padrões, sentimentos, relações, enfim, que fizeram com que me
colocasse frente a frente comigo mesma, me exigiram um processo de desestruturação e re-
estruturação. Muito mais que uma experiência acadêmica, foi uma rica experiência de vida.
O ser humano que iniciou o Doutorado em 2001 não é o mesmo que apresenta à
comunidade acadêmica a sua tese. Não sou mais a mesma educadora que deixou sua
Universidade em outro Estado, que precisou abrir mão do convívio com a família e com os
amigos, da segurança do conhecido, de padrões incorporados e de conceitos organizados
(assim eu os imaginava). A mudança foi perceptível e inegável. Creio que daqui sai uma
educadora melhor, porque essa educadora se tornou uma pessoa mais humana, mais
flexível, com uma visão muito mais ampla da vida, da construção do conhecimento, das
relações sociais e interpessoais. Fácil? Nem um pouco. Mas sou grata até às dificuldades
pelas quais passei e com as quais também aprendi muito.
Entretanto, até chegar a Salvador, um percurso não menos instigante e significativo
teve que ser trilhado, um caminho de buscas, desafios, questionamentos, erros e acertos.
Acho que vale a pena contar um pouco dessa minha história para que seu trajeto possa ser
compreendido.
Era uma vez uma educadora que vivia, há muitos anos, às voltas com a dor, não só
a dor física de intensas contraturas musculares que a paralisavam quase completamente e
que, aos trinta e três anos, a deixavam completamente dependente de medicações
fortíssimas para dor e de tratamento fisioterápico. Mas as piores eram as dores
emocionais, entre elas, a de perder a possibilidade de ação. Quando menos esperava se
via imobilizada... E não chegavam avisos antecipados e nem a imobilidade escolhia um
2
momento melhor para aparecer... Ao contrário, diria até que era muito inconveniente (se é
que existe um momento conveniente para isso). E assim não dava pra ser feliz para
sempre...
Por que conto isso aqui? Primeiro para mostrar que situações que parecem não ter
solução são mutáveis e acabam por se tornar uma história a ser contada. Segundo para
que o leitor saiba que não falarei somente de teorias que li em livros, mas que vivenciei em
mim mesma e em minha prática pedagógica. A busca de compreender as relações corpo-
mente teve como objetivo inicial cuidar de mim mesma. Mas todo o sofrimento e
aprendizagem serviram também para que buscasse levar para minha profissão, a de
educadora, conhecimentos que pudessem contribuir para que outras pessoas tivessem
opções de se conhecerem um pouco mais e de investirem na possibilidade de serem mais
flexíveis e mais felizes.
O primeiro passo para uma mudança na prática pedagógica foi trabalhar com
música, com sons, com histórias infantis e com movimentos, abrindo espaço para a emoção
e o prazer. Isso se deu, quando pude perceber que uma melhor qualidade de vida se
relaciona a podermos nos expressar com maior espontaneidade. Fui gostando cada vez
mais disso. Meus educandos adolescentes também. A vivência de sala de aula propiciou
experiências que, a cada dia, me conduziam a refletir sobre o que deveria levar para esse
espaço privilegiado, ou que pelo menos deveria ser, de aprendizagem. Sempre me
incomodou o fato de que o conhecimento, tendo por base uma visão positivista de
objetividade e racionalidade, se colocasse desvinculado da vida.
O segundo passo foi o Mestrado, realizado de 1989 a 1992, na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro UERJ, quando pesquisei a música, a literatura infantil e o
movimento como possibilidades de levar para a sala de aula, junto com a alegria e a arte,
um pensar mais crítico e mais flexível, e estabelecer relações mais estreitas entre
educandos e educadores. Meu olhar se voltava, então, para as séries iniciais do ensino
fundamental devido a minha experiência de professora de língua portuguesa e pedagoga,
atuando, também, em sala de leitura, e dando acompanhamento a professores de pré-
escolar a quarta-série em escolas do município do Rio de Janeiro. Para minha surpresa, na
época, os educadores e profissionais de áreas afins, participantes da pesquisa que
desenvolvi, se mobilizaram não só para uma transformação de suas práticas, do ponto de
vista metodológico, mas sinalizaram que mudanças mais profundas estavam ocorrendo em
si mesmos na vivência das atividades propostas, nos momentos de trocas e reflexões.
3
Terminado o Mestrado, passando a atuar em cursos de formação de professores, na
UERJ, vi-me diante de um novo desafio: o de levar essas experiências para a sala de aula
de terceiro grau. Trabalhando com futuros educadores e com aqueles que já se
encontravam na prática da sala de aula, foi possível uma troca de conhecimentos e
experiências que me estimularam a dar continuidade à proposta iniciada com a dissertação
de Mestrado, não abrindo mão da música, da literatura infantil e do movimento. Ver
muitos de meus educandos, de licenciaturas diferentes, adequando as atividades que
desenvolvíamos juntos a suas salas de aula, com uma compreensão mais ampla das razões
pelas quais valia a pena realizá-las, me mostrava, com muita clareza que havia um motivo
forte para lutar contra as dificuldades e a descrença de alguns que se petrificavam na
acomodação e no desânimo. Podíamos discutir questões fundamentais para o processo
ensino-aprendizagem e sobre elas refletir, buscando formas de atuação. Os meus
educandos foram os meus melhores parâmetros eles me sinalizavam claramente o
caminho. Aprendi, principalmente, que quem não se arrisca, não se aventura, perde a
chance de criar e recriar. E, nesse processo, foi se configurando um novo conhecimento,
que eu sentia necessidade de aprofundar e entender melhor.
A partir de 1996, pouco mais de três anos após o término do Mestrado, deixei a
UERJ e passei a lecionar na Universidade Federal de São João del-Rei UFSJ
1
. A
possibilidade de me dedicar inteiramente ao Ensino Superior, envolvendo-me com ensino,
pesquisa e extensão, foi o que precisava para que esse saber, que ia se constituindo e que
denominei de Bioexpansão
2
, hoje Bioexpressão, começasse a tomar mais forma.
Vivenciando as tensões e ansiedades que acompanhavam os futuros educadores,
temerosos de assumir as dificuldades próprias da prática educativa, que se manifestavam,
especialmente nas aulas de Didática, Prática de Ensino e Estágio Supervisionado, senti a
necessidade de utilizar novos recursos que permitissem trabalhar tais dificuldades, que se
exacerbam pela carga das tensões do mundo moderno que são levadas para a sala de aula e
1
Em 1996, apesar de ser uma instituição federal e seus professores serem regidos pelo mesmo sistema
jurídico das demais Universidades Federais, a UFSJ ainda não havia se tornado Universidade, o que ocorreu
em 2002. Tinha então o nome de Fundação de Ensino Superior de São João del-Rei FUNREI.
2
A Bioexpansão é um modo de compreender o ser humano, como veremos mais à frente, e passou a ser
oferecida desde o primeiro semestre de 1997, ministrada por mim como disciplina optativa na então
Fundação de Ensino Superior de São João del-Rei FUNREI e como atividade regular no Programa
FUNREI com a Terceira Idade nessa Instituição. Foi tema de pesquisa que contou com o auxílio de uma
bolsista de iniciação científica PIBIC/CNPq sobre minha orientação, de setembro de 1998 a agosto de
1999. Com o aprofundamento dos estudos, no Doutorado, passei a denominá-la Bioexpressão, uma vez que
melhor expressa o sentido de minha proposta e das teorias utilizadas como será explicado mais adiante.
4
pela ausência de um espaço para que as emoções possam ser mais consideradas, para que a
voz dos educadores em formação seja ouvida, que haja maior interação grupal e para que a
criatividade e a ludicidade possam se expressar mais livremente. Assim, passei a utilizar
vivências
3
da Bioexpressão, atividades que possibilitam maior percepção de si, do próprio
corpo, da expressão pessoal e do outro, abrindo espaço para que essas questões fossem
mais consideradas.
Trabalhar corporal e ludicamente as dificuldades encontradas na prática
pedagógica, como a insegurança, as dificuldades de relação com os companheiros de turma
e com os estudantes durante os estágios, as ansiedades, medos e conflitos que se
manifestam durante as aulas de Didática e expressá-las, não só verbalmente, mas, também,
através do movimento, foi significativo segundo o depoimento dos futuros educadores.
Nesses depoimentos, observaram que se sentiam mais confiantes ao entrar em maior
contato com suas próprias dificuldades e perceber que não eram dificuldades só suas, mas
do grupo, podendo discuti-las, receber contribuições para minimizá-las e compartilhar
dúvidas e descobertas. Além de contribuir para o crescimento individual, essas
experiências contribuíram, também, para uma melhor relação do grupo e para a relação
educador-educando, me sinalizando que este era um caminho possível.
Os trechos de depoimentos que se seguem exemplificam a repercussão das
atividades:
Eu me julgava muito tímido, não conseguia falar em outras aulas, e aqui participo,
digo o que penso, ouço o que os colegas pensam e descubro pensamentos que nem
imaginava (MPC, Psicologia);
Levo daqui o mais importante: lições de vida, de respeito, de compromisso, de
ética (LG, Ciências);
Penso que você foi corajosa em nos levar a viver o afeto e a ser coerente todo o
tempo. Foi uma experiência libertadora (HGM, Pedagogia);
Liguei pra casa de meus pais em outra cidade pra dizer que os amava e que estava
certa da minha escolha profissional, pela hora até os assustei (LDV, Ciências);
3
As vivências de Bioexpressão são possibilidades de viver atividades que se integram ao momento presente,
ensejando entrega e integração do grupo.
5
Crescimento é a palavra que define bem o que estou levando desta disciplina;
também a alegria de ver uma turma que, depois de anos, se entrosou (AFR,
Psicologia).
Phillipe Perrenoud afirma que os educadores, mesmo os mais experientes, vivem
com maior ou menor intensidade muitos dilemas e contradições, vivem, constantemente,
um “estado de equilíbrio instável”. O importante, porém, é ter consciência de sua existência
e aprender a conviver com eles “esses dilemas, a experiência e a formação não são
ultrapassados de uma só vez. Entretanto, percebê-los ajuda a viver com a complexidade
4
(1996, p. 58).
É difícil definir até que ponto agimos ou pensamos considerando nossas
peculiaridades e até onde vão as forças que nos induzem por caminhos diferenciados
daquilo que realmente sentimos ou desejamos. As dificuldades são muitas e bastante
complexas na prática pedagógica, tanto para educadores quanto para educandos. Como
observa Henry Giroux, para que significados sejam produzidos, são necessários também
investimentos emocionais e produção de prazer. “A produção de significados e a produção
de prazer são mutuamente constitutivas de quem são os alunos, da opinião que eles têm de
si mesmos e de como eles constroem uma versão particular de seu futuro” (1999, p. 214).
Edgar Morin nos fala da importância de aprender a conhecer. Internamente, a
aprendizagem passa pelo auto-exame, auto-análise e autocrítica. “O aprendizado da auto-
observação faz parte do aprendizado da lucidez. A aptidão reflexiva do espírito humano,
que o torna capaz de considerar a si mesmo, ao se desdobrar (...), deveria ser encorajada e
estimulada em todos” (2001, p. 53). É importante considerar que essa “aprendizagem da
compreensão e da lucidez”, como frisa Morin, além de nunca terminar, deve sempre se
reiniciar, o que significa assumir a responsabilidade pelo nosso processo de crescimento, a
responsabilidade por nós mesmos.
Tendo em vista os aspectos apontados por esses teóricos e o contexto atual de
incertezas e de mudanças contínuas e aceleradas, de uma enxurrada cotidiana de
informações e de novos conhecimentos, muitas vezes, contraditórios e paradoxais, mais
que nunca se torna necessário desenvolver a capacidade de viver uma vida mais saudável
no sentido de estimular condições de flexibilização, autonomia, senso crítico, expressão e
sensibilidade. É fundamental compreender melhor a nós mesmos e aprender a assumir a
4
Tradução pessoal.
6
responsabilidade pelo nosso processo de crescimento e aprendizagem, o que é a proposta
da Bioexpressão.
Conhecer melhor a nós mesmos, perceber-nos com maior clareza, ter consciência de
emoções que se manifestam e das quais nem sempre nos damos conta nos ajudam a,
gradativamente, nos apropriarmos um pouco mais de nós. Apesar de todas as pressões que
sofremos, à medida que tomamos consciência de nossa singularidade, nos tornamos mais
capazes de fazer escolhas e tomar decisões. E é através da forma mais madura e consciente
com que vamos dando respostas às situações que a vida nos apresenta, que traçamos nossa
identidade e nos situamos no movimento da vida.
Ampliar a autoconsciência favorece vivenciar, com um pouco mais de
tranqüilidade, os estados de tensão tão comuns na prática pedagógica e no nosso dia-a-dia,
tornando-nos mais equilibrados, porque o conhecimento de nós traz maior segurança para
aceitarmos a insegurança natural e inerente à vida; mais flexibilidade para a escuta de
nossos educandos e do outro, para a aceitação de novas idéias e possibilidades.
A Bioexpressão é uma tentativa de compreender como as limitações da posse de si
mesmo e da expressividade que cada um carrega consigo produzem esse estado de
insegurança, que dificulta a vida e um exercício profissional satisfatório para si mesmo e na
relação com o outro. Esse é o objeto de investigação configurado neste projeto.
1. O problema e uma possibilidade vislumbrada
Nosso corpo é uma das formas de nos comunicarmos com o mundo, através dele
percebemos e transmitimos significados. Nele se marcam nossas crenças, nossas
ansiedades, nossas esperanças, nossas etapas de mudança e de construção. Também se
mostram as marcas da cultura na qual estamos sendo formados, da sociedade em que
vivemos com suas múltiplas e contraditórias influências. Entretanto, nossa educação
escolar está centrada basicamente em uma visão formalista, no uso de uma racionalidade
conceitual/instrumental, na ausência de um espaço para a expressão autêntica do ser
humano, que inclui suas percepções, emoções, sentimentos e imaginário. A ação de repetir
se sobrepõe a de expressar, conceitos já estabelecidos como verdades absolutas se
sobrepõem a dialogar.
7
A pessoa constrói sua singularidade através do exercício consciente da construção
de si mesmo, da construção de uma vida que faz sentido, do exercício do interagir com o
mundo que a cerca. Uma educação que privilegia a transmissão de conhecimentos e em
que não há quase nenhum espaço para a expressão pessoal, ainda tão presente na nossa
sociedade, inviabiliza a participação efetiva do educando, afastando-o da responsabilidade
que deve assumir pelo processo de construção do seu conhecimento.
Segundo estudos de embriologia (Stanley Keleman, 1985/1992 e David Boadella,
1985/1992)
5
, questão que aprofundaremos no primeiro capítulo, o corpo se forma através
de três camadas. A camada externa, o ectoderma, constituindo a pele e o sistema nervoso,
responde pelos processos de comunicação. A camada intermediária, o mesoderma, contém
a estrutura muscular de sustentação músculos, ossos, cartilagens e tendões, propicia
suporte e movimento. A camada interna, o endoderma, constitui os órgãos e vísceras,
fornecendo nutrição e energia básica. A essas camadas ectoderma, mesoderma e
endoderma, estão associados, respectivamente, o pensamento, o movimento e o
sentimento.
Para que o fluxo de energia vital possa se manifestar de forma mais equilibrada,
todas as funções devem ser estimuladas. Não se trata, portanto, de privilegiar uma dessas
instâncias em detrimento de outras, mas de considerar o conjunto, o que significa trabalhar
o ser humano em sua totalidade. Ora, na medida em que nossa tradição educacional tende a
privilegiar o pensamento, a racionalidade, ocorre uma distorção, pois, se desvaloriza o
movimento e o sentimento.
Minha experiência nos cursos de formação de professores tem me permitido refletir
sobre a herança que recebemos da tradição iluminista de educação, principalmente, sobre a
lacuna que se mostra diante da complexidade do ser humano em sua multiplicidade de
percepções e de expressões. Tem me permitido, também, observar o quanto nossos futuros
educadores estão despreparados para olhar dificuldades de relacionamentos, para a
aceitação do diferente, para saber ouvir e intervir, para ser tolerante, mas também como há
qualidades que são capazes de expressar quando lhes damos oportunidades de fazê-lo,
como o cuidado com o outro, o respeito pela diversidade de pensamento, a generosidade da
5
Nas citações com duas datas, a primeira refere-se à publicação original e a segunda, à edição utilizada. Este
procedimento será usado em relação às obras de Wilhelm Reich, Alexander Lowen, Stanley Keleman e
David Boadella. Isto facilita o acompanhamento do processo evolutivo das teorias em que me apoio, uma vez
que Reich iniciou suas pesquisas no início do século passado e estas foram sendo desdobradas pelos seus
continuadores, que investem em seus estudos até o presente momento.
8
escuta, as experiências adquiridas, aspectos que, na maioria das vezes, não são valorizados
e estimulados. Como educadora e como educanda no doutoramento, vivenciei e observei a
multiplicidade de emoções e sentimentos que circulam na sala de aula, expressões da
corporeidade, que, supostamente, estão fora do mundo acadêmico, mas que o permeiam
todo o tempo: afetos, medos, ansiedades, frustrações, orgulhos, carências, vaidades,
mágoas, carinho, gratidão...
O que me impulsionou a investir nesta pesquisa é acreditar que fazer ciência, ou
seja, ter a possibilidade de investigar campos ainda não desvelados, é de alguma forma
contribuir para a construção de uma educação mais humana, mais lúdica, mais viva. É
importante percebermos que há momentos em que devemos nos defrontar com um
processo de mudança, o qual exige abrirmos mão da segurança das respostas existentes;
que nem sempre podemos ter respostas objetivas; que é necessário buscar novas soluções,
outras explicações para problemas que são detectados.
Foi pensando no quanto o corpo é ainda desconhecido e desconsiderado na
educação e sentindo necessidade de aprofundar estudos nessa área que trouxe, para o
Doutorado, a Bioexpressão como meu objeto de estudo. Acreditando que, assim como a
racionalidade, o corpo, a emoção, a ludicidade, o imaginário são importantes para a
integridade do ser humano, esta pesquisa busca averiguar como a Bioexpressão pode levar
ao futuro educador, ou mesmo, a educadores graduados, possibilidades de se conhecer
mais, de se expressar em sua singularidade, de investir em um permanente processo de
autoformação e de se relacionar melhor consigo mesmo e com o outro para que possam
atuar com mais abertura em sua prática profissional.
Wilhelm Reich diz que nosso corpo é nossa história de vida congelada. A
Bioexpressão toma essa afirmação como pano de fundo. Se no corpo há uma história de
vida congelada, que impede a posse de si mesmo e a expressividade, há que se
compreender como isso se dá e como é possível atuar para que o “descongelamento” do
corpo e, conseqüentemente, dos processos psíquicos se dê, de tal forma que cada um de
nós, educadores e educandos, conscientemente, compreenda um pouco mais a si mesmo e
possa se expressar com maior espontaneidade.
9
2. Objetivos da pesquisa
Nesta pesquisa, investiguei possíveis efeitos das atividades bioexpressivas na
formação de educadores, tendo como hipótese básica que essas atividades ajudariam a
liberar os bloqueios de expressividade dos educadores, e que passariam a servir-lhes de
instrumento em sua própria prática docente.
Tendo em vista a idéia de que o conhecimento é algo que se constrói, que se
redefine e se amplia à medida que são colocadas questões, investigadas e elaboradas outras
questões, minha intenção de realizar esta pesquisa surgiu do desejo de continuar a buscar
caminhos, respostas e levantar novas indagações no desenvolvimento da integração corpo-
mente na prática pedagógica. As atividades foram significativas, anteriormente ao
desenvolvimento desta tese, não por si mesmas, mas pelo compromisso que eu, como
orientadora dessas atividades, assumi com os grupos e, também, por um saber teórico,
mesmo que ainda muito frágil, que lhes dava sustentação. A Bioexpressão surgiu da prática,
da experiência em sala de aula, das necessidades e lacunas percebidas. A pesquisa de
campo no Doutorado teve como objetivo desenvolver essa prática com um novo
conhecimento e com um novo olhar, mais crítico e mais sensível, em uma situação
diferenciada, em um novo espaço, em contato com outra cultura.
Configurar e aprofundar teoricamente e na prática essa proposta e acompanhar sua
repercussão na prática dos educadores que se propuseram a utilizá-la, foi a possibilidade de
lhe dar suporte teórico-prático consistente, buscar sua validação acadêmica e maior
fundamentação para seu desenvolvimento.
Esta pesquisa teve como objetivos:
Configurar o campo teórico que alicerça a Bioexpressão;
Caracterizar a Bioexpressão em suas especificidades como uma possibilidade de
atuação pedagógica;
Investigar a compreensão do educador de si mesmo e de sua prática pedagógica, no
momento inicial da pesquisa de campo, a partir de seu processo regular de atuação;
10
Acompanhar e analisar o processo do educador durante a vivência de experiências
intencionalmente dirigidas de Bioexpressão, e transformações ocorridas após estas
experiências;
Configurar as contribuições da Bioexpressão para a formação inicial ou continuada de
educadores.
3. O educador e sua prática: justificativa da investigação proposta
Duas questões são, a meu ver, fundamentais ao se considerar a prática docente
6
. A
primeira é a necessidade de levar em conta a subjetividade do professor para que se possa
compreender a natureza do ensino, uma vez que sua prática é perpassada pela sua
experiência de vida, pela sua afetividade, por sua corporeidade, por suas crenças e valores.
A segunda é a de que a prática do professor não se limita à aplicação de saberes produzidos
por outros. Em sua prática, saberes são produzidos, mobilizados e transformados.
Existe uma tendência, que se fundamenta dentro das universidades, a acreditar que
teorias podem ser produzidas sem práticas, saberes podem ser construídos sem
interferência da subjetividade dos participantes do processo e que se adquirem
conhecimentos sem ações (Tardif, 2000). Ter consciência dessa ilusão é fundamental para
nós que estamos envolvidos com a formação de educadores, para que estimulemos nossos
educandos, futuros educadores, a terem maior consciência de que o conhecimento
exclusivamente conceitual não se faz significativo. Ele se torna coerente e significativo
através da apropriação que dele fazemos na ação, nas relações tecidas, assim como nas
apreensões que ocorrem. Caso contrário, o conhecimento permanece guardado em um
“arquivo morto”, que, eventualmente, poderá se utilizado em situações esparsas e
fragmentadas da vida.
As disciplinas escolares, como as conhecemos tradicionalmente, apresentam uma
visão fragmentada de um conhecimento “especializado”. Em nosso contexto educacional,
na maioria das vezes, as disciplinas se desenvolvem através de aulas expositivas em que o
6
Sobre estas questões, ver TARDIF, Maurice. Os professores enquanto sujeitos do conhecimento:
subjetividade, prática e saberes do magistério. In: CANDAU, Vera Maria (org.). Didática, currículo e
saberes escolares. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p. 112-128.
11
educando não tem voz, em que a expressão própria não é valorizada ou incentivada. Nem o
que ele pensa e, muito menos, o que ele sente são considerados. Seu corpo, suas emoções,
sentimentos, descobertas, deslumbramentos ou angústias não têm lugar na vida escolar para
se mostrarem.
Os aspectos corporais característicos de cada sociedade constituem-se no que José
Carlos Rodrigues (1983) denominou “conteúdos denotativos”, entretanto, como observa o
autor, os mais importantes são os “conteúdos conotativos”, pois, estes guardam os
princípios que estruturam a visão de mundo de uma sociedade, e a forma como os homens
percebem seus corpos e os corpos alheios. O mais significativo, portanto, não é o
conhecimento de que os corpos se expressam de forma diversificada em culturas
diferentes, mas compreender os símbolos culturais que se expressam através desses corpos,
a linguagem que expressam.
Teóricos de áreas e tendências teóricas diferenciadas vêm se dedicando a estudar o
corpo e suas relações. Michel Foucault (1988), analisando a caminhada histórica do
controle corporal, fala-nos de uma relação de docilidade/utilidade, imposta pelo controle
do corpo, e da formação de uma anatomia política que também é uma mecânica de poder
que se manifesta em várias instituições, inclusive na escola. Wilhelm Reich (1942/1995)
estuda as influências sociopolíticas sobre a estrutura corporal, analisando a formação das
couraças musculares em decorrência da contenção de emoções gerando resistências que se
registram em alguma parte do corpo e impossibilitando a expressão própria. Jocimar
Daolio (1995); Maria Augusta Gonçalves (1994) e José Carlos Rodrigues (1983) se detêm
em analisar as interferências culturais na formação da personalidade do indivíduo, seja de
forma consciente ou não, através das suas instituições e de padrões estabelecidos. Todos
esses estudos mostram o aprisionamento de nossos corpos e o conseqüente aprisionamento
da auto-expressão.
Cada sociedade privilegia ou negligencia formas de utilização do corpo ou
movimentos corporais específicos ao longo de seu processo histórico. “E assim os corpos
vão se diferenciando uns dos outros, em conseqüência dos símbolos e valores que nele são
colocados pela sociedade, em cada momento histórico específico” (Daolio, 1995, p. 94).
Nízia Villaça e Fred Góes (1998) confirmam essa compreensão, afirmando que cada
sociedade valoriza determinadas regras e rituais, formas próprias de gerir o corpo. Isso faz
com que o corpo organize outras significações que não as da linguagem verbal, entretanto,
mesmo essa outra linguagem é contida, vigiada, escamoteada. Mesmo em momentos que
12
marcam ritos fortes da vida como a morte e a doença, a emoção e a expressão corporal têm
seu campo delimitado, para que não haja manifestações excessivas. No cotidiano, o lugar
do corpo é o do silêncio e da discrição, silêncio e contenção que também são expressivos,
expressam repressão.
Com o processo de desenvolvimento das sociedades, das mais primitivas até a
sociedade moderna, vai ocorrendo um gradual distanciamento da participação do corpo no
processo de comunicação. A civilização ocidental, tendo por base uma visão dualista do
homem, em seu processo de desenvolvimento, “caracteriza-se por uma valorização
progressiva do pensamento racional em detrimento do sentimento e do universal em
detrimento do particular” (Gonçalves, 1994, p. 16).
A sociedade e a cultura ditam normas em relação ao corpo com as quais
o indivíduo tenderá à custa de castigos e recompensas a se conformar, até o ponto
de estes padrões de comportamento se lhe apresentarem como tão naturais quanto
o desenvolvimento dos seres vivos, a sucessão das estações ou o movimento do
nascer e do pôr do sol (Rodrigues, 1983, p. 45).
Segundo o autor, não é apenas por temer penalidades que as normas de conduta são
seguidas. São obedecidas, pois, atendem a anseios dos indivíduos que não existem sem a
sociedade. “Nesse sentido, a sociedade é um bem e suas regras apresentam-se como
desejáveis. É a transformação do obrigatório em desejável, cuja efetivação é a função de
muitos ritos e mitos realizar” (Rodrigues, 1983, p. 34).
Entretanto, mesmo apresentando-se a nós com esse caráter de “naturalidade”,
“universalidade” e de “ser desejável”, constata-se que o corpo humano como sistema
biológico sofre as influências de vários intervenientes sociais e culturais (Daolio, 1995;
Reich, 1942/1995; Rodrigues, 1983). Dentre estes intervenientes, considero importante
destacar a ação da educação.
O homem, por meio do processo de civilização e de valorização da racionalidade,
vai perdendo a comunicação empática de seu corpo com o mundo, diminuindo sua
capacidade de percepção sensorial e aumentando o controle de suas emoções. A
manifestação de sentimentos, gradualmente, vai-se transformando em expressões e gestos
formalizados. O modo de produção capitalista, que privilegia o trabalho intelectual e
13
desvaloriza o trabalho manual, gera um corpo que tende a desconsiderar a subjetividade,
surgido da dissociação entre a força criativa e a força corporal. Com a expansão do
Capitalismo, também as classes mais altas vivenciam a perda de contato com o próprio
corpo. Adotam um comportamento que as possa distinguir das classes mais baixas,
afastando-se, assim, de tudo que significa trabalho corporal. Assumem normas sociais que
se expressam nas regras de boas maneiras, na forma de se vestirem e se alimentarem, nos
hábitos sexuais e nas posturas corporais. Manifesta-se assim o processo de
descorporalização (Gonçalves, 1994).
Como observei, em minha dissertação de Mestrado, quando o intelecto se torna o
único centro das atenções, há prejuízo para o desenvolvimento do ser. É necessário,
especialmente, que se entenda a importância da atitude corporal no processo de construção
da ordem social e nos processos de libertação, autonomia, vontade e consciência do
indivíduo (Pereira, 1992). Manter o controle corporal é estimular a conservação, o status
quo; trabalhar a corporeidade abre espaço para a transformação.
Os seres humanos, embora constituídos através das inter-relações sociais, num
dado tempo e espaço, e tendo seus comportamentos determinados, possuem uma certa
autonomia para atuar no meio social. Através da forma peculiar do indivíduo relacionar-se
com sua realidade social, vai-se constituindo a sua subjetividade. Segundo Marisa Eizirik,
a subjetividade é a relação consigo, que se estabelece através de uma série de
procedimentos que são propostos e prescritos aos indivíduos, em todas as civilizações, para
fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de um certo número de fins”
(1997, p. 42). Esse processo inclui todo o movimento de lutas e confrontos, de destruição e
recriação que é vivido pelo ser humano em seu trajeto de construção pessoal.
Com a valorização da racionalidade em detrimento da corporeidade, do sensível,
do lúdico e da emoção, estarão os futuros professores em condições de exercerem seu
ofício de educadores com uma visão transformadora?
Peter Woods (1999), sintetizando idéias de alguns estudiosos sobre essas questões,
observa que o componente emocional do ensino, além de ser importante em si mesmo, é
igualmente significativo para a cognição. Afirma que a excelência do ensino requer arte, o
que significa que o educador seja capaz de aproveitar oportunidades que surjam. Implica
que objetivos e intenções sejam flexíveis, em contraste com a uniformidade e rigidez do
planejamento racional.
14
Minha prática com os cursos de licenciatura e de pedagogia me trouxe o desafio de
levar para a sala de aula uma proposta que me auxiliasse a repensar essa prática e conviver
com sua complexidade. Como observa Selma Garrido Pimenta (1997), o pensar didático
não é a ação educativa, e sim uma reflexão sobre a ação. E essa reflexão só será
significativa para a ação se tiver a prática como ponto de partida e a ela retornar.
Não devemos desconsiderar conhecimentos já sistematizados ao longo da história
da humanidade. Existe uma tradição que nos permite rever e ampliar conhecimentos. É na
tensão que se cria entre o instituído e o instituinte que surgem novas possibilidades. Como
observa Dante Galeffi, “é justamente diante de uma oposição dialética que se pode produzir
algum efeito novo”, sua proposta pedagógica aponta para um “dizer sim à vida”, o que
implica não a vida em seu sentido apenas biológico, mas em seu sentido mais amplo (2001,
p. 243-245). Vejo este dizer sim à vida como uma forma de oxigenar o já existente e lhe
trazer uma nova vitalidade.
A necessidade de que a educação estimule a busca de soluções criativas em um
momento de muitas dúvidas e poucas certezas é enfatizada por Maria Eugênia Castanho
(2000), observando que se pode constatar que nossas faculdades, de modo geral, são
pouco ou nada criativas. Isso só agrava o quadro da exclusão social e da desigualdade. É
significativo que, na universidade, se estimule o educando a desenvolver a autonomia
intelectual, a postura ética e o compromisso com os destinos da sociedade.
A expressão autêntica do indivíduo se caracteriza pela espontaneidade que se
manifesta por uma motilidade corporal
7
. Quando isto acontece, a organização do
pensamento ocorre de uma forma mais natural, com maior fluidez. Se não nos sentimos à
vontade ou se expressamos idéias que desejamos que sejam aceitas por quem nos ouve ou
lê, temendo a sua não aceitação, acabamos por perder a espontaneidade. Acabamos por
expressar, não a verdadeira individualidade, a verdadeira forma de ser, mas um pensamento
ou uma forma de agir que julgamos ser o esperado ou o desejado.
De que adianta oferecer apenas teorias, se com elas não podemos tornar a vida mais
significativa? Como educadores, poderemos sugerir caminhos, mas caberá a cada um
trilhá-los, apoiando-se nas próprias pernas. E os caminhos nunca são os mesmos, até
7
Motilidade corporal é o fluxo interno, diferente do movimento, que se manifesta externamente; “é a
vitalidade do padrão pulsátil, a força e a intensidade das pulsações dos órgãos que dão energia e identidade
pessoal” (Keleman,1985/1992, p. 42).
15
porque cada olhar percebe paisagens diferentes. Assim considerando, cabe-nos acolher e
estimular nossos educandos, especialmente os futuros educadores, para que possam
manifestar sua forma de ser, sua singularidade.
Aprender a se conhecer e a “andar com as próprias pernas” significa adquirir mais
autonomia, senso crítico, criatividade e equilíbrio, e principalmente, quando as pernas
fraquejarem, saber buscar recursos para se reequilibrar e continuar a caminhada. Mais
“centrado” em si, o ser humano poderá mais efetivamente assumir-se como sujeito
8
e como
ser social. E esse processo passa pelo autoconhecimento, que, por sua vez, passa por sua
corporeidade.
A prática da Bioexpressão tem por objetivo oferecer ao educando a possibilidade de
ter força suficientemente organizada para poder expressar-se a partir de seus sentimentos,
de seus desejos, do âmago de seu ser. Não é recusar nem negar tudo, mas expressar o
necessário.
As dificuldades do cotidiano, que deixam suas marcas nos corpos, revelando-se em
gestos, posturas e movimentos, refletindo-se sobre a forma de ser, de atuar no dia-a-dia e
se comunicar, interferem no processo intelectual e emocional, podendo gerar formas de
controle. Tendo em vista as experiências vivenciadas por mim e estudos como os dos
autores citados que sugerem possibilidades de o indivíduo compreender-se em sua
subjetividade e de expressar-se em sua singularidade através de sua totalidade corpo-
mente, se colocam duas questões: Como, então, não considerar os corpos de nossos
educandos? Como não considerar os corpos dos educadores?
8
Há discussões quanto ao conceito e utilização da palavra sujeito uma vez que guarda conotações diferentes.
Tanto pode significar aquele que se dobra à vontade do outro, que está escravizado, que se sujeita, que é
obediente; como também aquele que é capaz de tomar decisões, de propor idéias. Neste texto, quando me
refiro a sujeito, refiro-me à segunda acepção, sem perder de vista que o sujeito e o coletivo social são
inseparáveis. Sobre esta questão vale ler Morin, Edgar. A cabeça bem-feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2001, p. 117-128. Como observa Morin, é necessário que trabalhemos com uma concepção complexa do
sujeito. Um pequeno trecho pode contribuir para a visão de sujeito que considero neste texto: Morin observa
que os indivíduos têm mentes que não são apenas objetivas e que todos fazemos parte de um tecido
intersubjetivo. Mas, “ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que, potencialmente, todo sujeito é não apenas
ator, mas autor, capaz de cognição/escolha/decisão. A sociedade não está entregue somente, sequer
principalmente, a determinismos materiais; ela é um mecanismo de confronto/cooperação entre indivíduos
sujeitos, entre os ‘nós’ e os ‘Eu’” (p. 127-128). Julgo que a educação pode contribuir para que esse potencial
se efetive.
16
4. Opções e passos da caminhada
Embora a pesquisa proposta tenha, como fundamento principal, teorias em que
predomina uma visão interdisciplinar, a partir da psicossomática, da biologia e da
neurobiologia, que considero significativa para o processo educacional, julgo pertinente
considerar outras visões que complementam e/ou ratificam as idéias que pretendo analisar.
Há áreas de conhecimento que vêm trabalhando as questões ligadas ao corpo que não
podem ser desconsideradas. Afinal não podemos deixar de levar em conta, como já disse
anteriormente, que o ser humano é um indivíduo com características e necessidades
próprias, mas é, também, um ser social que sofre influências da cultura em que se insere.
Considerar estudos de diferentes áreas é importante para que possamos ter uma noção mais
clara, mais consistente da necessidade de trazer as questões que me propus a averiguar em
minha pesquisa de Doutorado. Quanto mais me aprofundo nos estudos referentes à
corporeidade, mais sou capaz de perceber como sabemos pouco e de maneira fragmentada
a esse respeito e o quanto é importante aprofundar estudos nessa direção.
Outro ponto que quero salientar é que, embora as discussões de gênero estejam
levando muitos autores e autoras a escolher pela colocação do masculino e do feminino em
seus textos (ele/ela; educadores/educadoras; criativos/criativas,...), não priorizando a forma
masculina, utilizada gramaticalmente quando se incluem ambos os sexos, acabei por optar
pela forma gramatical, que considero trazer maior leveza ao texto e com a qual me sinto
mais à vontade.
*****
A pesquisa foi estruturada em duas partes. A Primeira Parte, Fundamentos teóricos
da Bioexpressão: tecendo relações e criando possibilidades, se constitui de três capítulos
que apresentam a fundamentação teórica desta pesquisa. O primeiro capítulo, Corpo e
psique - da dissociação à unificação, apresenta as teorias que dão sustentação ao trabalho
desenvolvido. No segundo capítulo, Ludicidade e auto-expressão, defino a visão de
ludicidade utilizada nesta pesquisa, alguns estudos que lhe dão corpo, traço relações com
as teorias apresentadas no capítulo anterior, considerando-a como elo fundamental de
transferência das teorias psicossomáticas para a prática pedagógica. Também analiso
possibilidades e dificuldades de sua utilização na formação de educadores. O terceiro
17
capítulo, A formação do educador e a Bioexpressão, volta-se para o caráter da
Bioexpressão como didática viva e integral, e seu significado para a formação do educador.
Na Segunda Parte, Interações entre a teoria e a prática da Bioexpressão e
Ludicidade: a pesquisa empírico-reflexiva, é apresentada a descritiva do trabalho de
campo, contendo quatro capítulos. O primeiro capítulo, Os passos da pesquisa empírica,
define o caminho percorrido para a realização da pesquisa de campo. No segundo capítulo,
Caracterização inicial do grupo de participantes da pesquisa, é apresentada a análise dos
dados que configuram a visão dos participantes quanto a aspectos significativos da prática
pedagógica e de sua relação com seu fazer. No terceiro capítulo, Intervenção formativa: o
Curso de Extensão e seus desdobramentos, os dados recolhidos ao longo do Curso de
Extensão e em seu prolongamento são analisados através de blocos temáticos; o quarto
capítulo, Atuação dos participantes da pesquisa após a intervenção formativa:
compartilhando vôos, tentativas e transformações na sala de aula, apresenta os
acompanhamentos aos educadores em suas salas de aula. O último capítulo,
Caracterização final do grupo de participantes da pesquisa, traz a análise dos dados da
entrevista final, que complementando todo o processo ocorrido, apresenta a nova visão e
atuação dos educadores após o período de intervenção. Arrematando o texto, apresento as
Considerações finais... por enquanto.
18
PARTE I
FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA BIOEXPRESSÃO:
TECENDO RELAÇÕES E CRIANDO POSSIBILIDADES
Carybé, sem título, 1997
Mural em concreto
Museu de Arte Moderna da Bahia Salvador
Foto da pesquisadora
19
CAPÍTULO I
CORPO E PSIQUE
9
DA DISSOCIAÇÃO À UNIFICAÇÃO
Meu corpo, não meu agente,
meu envelope selado,
meu revólver de assustar,
tornou-se meu carcereiro,
me sabe mais que me sei.
Carlos Drummond de Andrade
O objetivo deste capítulo é abordar a questão da unicidade corpo-psique como
fundamento da Bioexpressão. A Bioexpressão é uma área de conhecimento que investiga e
pratica um modo de ser a partir da posição de que corpo e psique formam uma unidade, o
que implica que o corpo expressa os afetos da psique e a psique expressa a fluidez ou a
rigidez do corpo. Corpo e psique são faces do ser humano na sua totalidade.
Configurar o campo teórico que alicerça a Bioexpressão é o primeiro passo desta
pesquisa como foi enunciado nos objetivos. Sua sustentação teórica principal está nos
estudos de Wilhelm Reich e de três de seus continuadores: Alexander Lowen, Stanley
Keleman e David Boadella, que, no início do século vinte e um, ainda se dedicam ao
trabalho de conhecer mais o ser humano, evoluir em seus estudos e produzir novos textos.
Reich iniciou a formulação de sua primeira teoria no início do século passado, na década de
vinte, e não é difícil avaliar quantos muros encontrou em seu caminho, quantas resistências
e oposições dificultaram seu percurso, uma vez que ainda encontramos uma visão
dissociada do ser humano nas ciências naturais e humanas.
Antes de apresentar, neste capítulo, a visão desses autores da relação corpo e psique,
como suporte teórico de minha investigação, julgo significativo fazer algumas
considerações sobre a pesquisa científica como prática instituída ao longo desse tempo de
quase um século que se passou desde que Reich iniciou suas investigações, e sobre algumas
pesquisas nesse campo da relação corpo-mente que se constituem em possibilidades de
enriquecimento dos estudos que esta pesquisa pretende aprofundar.
9
Do grego psyché, alma, espírito, mente. A psique abrange pensamentos, sentimentos e comportamentos,
conscientes e inconscientes.
20
1. A questão corpo-psique no âmbito da investigação científica: a
compreensão sobre a unicidade
Estudos e pesquisas recentes apontam para uma visão integrada do ser humano
considerado em sua totalidade corpo e psique, entretanto, ainda se encontram muitas
resistências para a aceitação dessa realidade, inclusive na área da pesquisa educacional.
Não é difícil entendê-las; há uma história que nos mostra essa trilha seguida pela ciência
moderna. Até meados do século XX, sob influência do método positivista, era considerado
científico o conhecimento que se produzia apoiado na experimentação, mensuração e
controle rigoroso dos dados, tanto nas ciências naturais quanto nas ciências humanas. A
idéia de cientificidade se atrelava à pesquisa experimental e quantitativa, cuja objetividade
seria garantida pelos instrumentos e técnicas de mensuração e pela neutralidade do próprio
pesquisador frente à investigação da realidade. O método “científico”, calcado na visão
empírico-indutiva, era o único e definitivo recurso de conhecimento da realidade. Na esfera
da ciência, poderíamos encontrar a solução para todos os problemas, quer os de natureza
física, quer os de natureza social. A visão dicotômica corpo-mente emergia do seio mesmo
dessa visão.
Não podemos esquecer a influência de Descartes, que está na base da metodologia
científica moderna, para a visão dessa dualidade. A crença na certeza e infalibilidade do
conhecimento científico se encontra na base da filosofia cartesiana e na visão de mundo que
daí se desenvolve. O cogito cartesiano privilegiava a mente em relação à matéria,
considerando essas duas instâncias como partes separadas e fundamentalmente diferentes.
Observa Fritjof Capra (1988): “Descartes baseou toda sua concepção da natureza nessa
divisão fundamental entre dois domínios separados e independentes: o da mente, ou res
cogitans, a ‘coisa pensante’, e o da matéria, ou res extensa, a ‘coisa extensa’” (p. 55). Nessa
concepção, a alma, que se relaciona à capacidade de pensar res cogitans, está
completamente dissociada da res extensa, o mundo material, a carne.
O controle dos dados pela ciência, que buscava eliminar incertezas, dúvidas,
imprecisões, era e continua sendo uma forma de poder, uma forma de dominar e controlar
o mundo. Mas a ciência hoje se depara com o incerto, o indeterminado, o complexo. A
infalibilidade e unicidade da ciência se transformaram em um mito, embora quebrar os
21
padrões instituídos e ser original exijam fôlego, coragem, significando enfrentar críticas e
nadar contra a corrente.
O físico Fritjof Capra (1988) observa que o começo do século XX presenciou uma
grande transformação da ciência. Da concepção mecanicista de Descartes e Newton
passou-se para uma visão sistêmica. Tal mudança não foi facilmente aceita pelos cientistas
da época. A exploração do mundo atômico e subatômico os fez entrar em contato com uma
nova e desafiante realidade.
A teoria da relatividade e a teoria quântica trouxeram uma nova compreensão da
estrutura da matéria e de que massa é energia condensada. Trouxeram, também, a
necessidade de um novo olhar. Uma nova leitura de mundo se fez imprescindível, assim
como uma mudança nos posicionamentos diante do mundo que se mostra e da própria vida.
Como sinaliza Maria Cândida Moraes
10
, começa a emergir a consciência da
interdependência e inter-relação entre todos os fenômenos físicos, biológicos, psicológicos,
culturais, sociais, assim como naturalmente, os educacionais. Do ponto de vista individual,
essa visão de totalidade implica “um novo diálogo criativo entre a ‘mente’ e o ‘corpo’,
entre o interior e o exterior, sujeito e objeto, hemisfério cerebral direito e esquerdo,
consciente e inconsciente, indivíduo e seu contexto, ser humano e natureza” (1997, p. 85).
Pesquisadores e estudiosos de áreas diferenciadas, nas últimas décadas, se unem na
confirmação de que corpo e mente constituem uma totalidade, contrariando a visão
dualista, dentre os quais, António Damásio e Humberto Maturana.
As pesquisas de Damásio (1996; 2000), que trazem um novo olhar sobre a relação
corpo-mente, lançam novos desafios para a compreensão da formação do indivíduo e para
pesquisas no campo da educação. Ao questionar a dicotomia corpo-mente, fruto da visão
cartesiana e da primazia da racionalidade, o pesquisador lança a desafiante hipótese, que
desenvolve em suas pesquisas de neurobiologia, da dependência existente entre a emoção e
a razão. Segundo o neurologista, “o corpo contribui para o cérebro com mais do que a
manutenção da vida e com mais do que os efeitos modulatórios. Contribui com um
conteúdo essencial para o funcionamento da mente normal” (1996, p. 257). O autor
10
Maria Cândida Moraes em seu livro O paradigma educacional emergente propõe a construção de novos
paradigmas educacionais a partir de uma análise das transformações na ciência, trazidas pelas descobertas da
física e mecânica quânticas. Julgo importante citar seu trabalho, embora não seja minha intenção aprofundar
as questões trazidas pela autora neste momento.
22
defende a tese de que a ausência da emoção e sentimentos pode afetar a racionalidade,
pois,
os níveis inferiores do edifício neural da razão são os mesmos que regulam o
processamento das emoções e dos sentimentos (...) Esses níveis inferiores
mantêm relações diretas e mútuas com o corpo propriamente dito, integrando-o
desse modo na cadeia de operações que permite os mais altos vôos em termos da
razão e da criatividade (Damásio, 1996, p. 233).
Em O mistério da consciência, afirma que “as emoções são parte dos mecanismos
biorreguladores com os quais nascemos equipados, visando à sobrevivência” (Damásio,
2000, p. 77). Observa que, embora se considere como emoções aquelas chamadas emoções
primárias ou universais (alegria, tristeza, raiva, medo,...), há outros tantos comportamentos
que se incluem no rol das emoções, sendo consideradas emoções secundárias ou sociais
(ciúme, culpa, embaraço e orgulho entre outras). Há, ainda, as denominadas pelo
pesquisador de emoções de fundo, como bem-estar ou mal estar, calma ou tensão. Também
se incluem sob o rótulo “emoção” os impulsos e motivações e os estados de dor ou prazer.
Esclarece que discutir o papel biológico das emoções é significativo para os estudos da
consciência. As emoções exercem um papel biológico indispensável, pois, fazem com que
os organismos, automaticamente, tenham comportamentos necessários à sobrevivência. Por
exemplo: o medo produz um comportamento que permite, em situações de risco, a
autopreservação. A biorregulação sempre ocorre. Entretanto, quando há consciência da
existência das emoções, ainda, um outro nível de regulação se apresenta:
A consciência permite que os sentimentos sejam conhecidos e, assim, promove
internamente o impacto da emoção, permite que ela, por intermédio do
sentimento, permeie o processo de pensamento. Por fim, a consciência torna
possível que qualquer objeto seja conhecido o ‘objeto’ emoção e qualquer
outro objeto e, com isso, aumenta a capacidade do organismo para reagir de
maneira adaptativa, atento às necessidades do organismo em questão. A emoção
está vinculada à sobrevivência de um organismo, e o mesmo se aplica à
consciência (Damásio, 2000, p. 80).
23
Uma série de experimentos recentes sobre o aprendizado, segundo Damásio, vem
fornecendo dados que corroboram o papel do corpo para a existência da emoção. Segundo
essas pesquisas, tem-se considerado, também, a importância da emoção no processo de
aprender, uma vez que, através da emoção, se intensifica a evocação de fatos novos durante
a aprendizagem. Afirma o pesquisador que os processos mentais se relacionam com o
corpo: “todos esses processos emoção, sentimento e consciência dependem de
representações do organismo. Sua essência comum é o corpo” (Damásio, 2000, p. 359).
Humberto Maturana, que denomina o conjunto de suas idéias de Biologia do
Conhecimento, analisa a visão parcial que se tem do homem caracterizado como um ser
racional. Segundo o biólogo, “a presença fundamental do emocionar em tudo o que
fazemos, e que nos conecta com nossa história biológica de mamíferos e primatas, não é
uma limitação de nossa humanidade, mas, ao contrário, é nossa condição de possibilidade
enquanto seres humanos” (1997, p. 278). Nossa cultura, devido à supervalorização da razão
como uma forma de nos distinguir dos outros animais, desvaloriza as emoções. No entanto,
frisa o autor, as emoções não restringem a razão:
as emoções são dinâmicas corporais que especificam os domínios de ação em que
nos movemos. Uma mudança emocional implica uma mudança de domínio de
ação. Nada nos ocorre, nada fazemos que não esteja definido como uma ação de
um certo tipo por uma emoção que a torna possível (Maturana, 2001, p. 92).
Para ele, dizer que o humano é caracterizado pela razão significa um “antolho”, ou
seja, significa a aceitação de conceitos e afirmações sem refletir sobre elas: “não vemos o
entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que constitui nosso viver humano e não
nos damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional” (Maturana,
2001, p. 15).
Damásio e Maturana, por percursos diferentes, constatam que, sem as emoções e os
sentimentos, a racionalidade pode ser obstruída. O corpo dá condições para que emoções e
sentimentos existam. Também estabelecem relações indissociáveis entre o biológico e o
social ou cultural. Corpo, emoções e linguagem se entrelaçam na ação e nas interações.
Assim sendo, a Bioexpressão, como área de conhecimentos, se assenta sobre essa
compreensão de que corpo e psique são uma totalidade corpo-psique, tomando esses
24
elementos como manifestações da mesma realidade: o ser humano. E, por isso, é assumido
que atuar na psique do ser humano implica reverberações no seu corpo, e atuar no corpo
implica reverberações na psique, ou seja, atuar no corpo ou na psique significa atuar no ser
humano como um todo. A expressividade do ser humano dá-se através dessa totalidade.
A seguir, dentro dessa perspectiva mais recente da pesquisa científica sobre o ser
humano, serão expostas sínteses da compreensão dos autores que dão fundamentos a esta
investigação. Mostrando como eles compreendem a totalidade do ser humano como corpo-
psique. A seqüência de autores considera Wilhelm Reich como fundante desse
entendimento, seguido por seus discípulos e/ou desdobradores de seu pensamento:
Alexander Lowen, Stanley Keleman e David Boadella.
2. Autores fundantes para a Bioexpressão
2.1. Wilhelm Reich e seus estudos sobre as interações mente-corpo
Para facilitar a exposição da teoria reicheana, assim como a de seus continuadores,
cada uma delas será dividida em três itens (A, B e C), enfatizando os aspectos mais
significativos de estudos complexos e amplos para a compreensão dos fundamentos da
Bioexpressão.
A) Reich e a trajetória de sua investigação
Na área da psicologia e da psiquiatria, as pesquisas e a prática clínica de Wilhelm
Reich abriram caminhos que vêm sendo percorridos por novos teóricos que foram
enriquecendo, ampliando e aprofundando os fundamentos básicos por ele estabelecidos,
entre os quais a concepção primeira de que soma
11
e psique são partes indissociáveis.
Reich foi um dos primeiros a sistematizar a relação entre o corpo e o psiquismo na
sociedade científica ocidental. Psiquiatra austríaco, discípulo de Freud, iniciou suas
11
Do grego soma, corpo. Expressão material do organismo em oposição às funções psíquicas.
25
atividades terapêuticas com a teoria psicanalítica, em que se fundamenta boa parte de seu
trabalho. Mas enveredou por outros caminhos a partir de sua experiência clínica.
Reich postulou a unidade funcional entre o psíquico e o somático, concluindo que a
mesma energia alimenta estes dois aspectos, gerando a relação e a mútua influência entre
atitudes corporais e atitudes psíquicas. Psique e corpo são faces de uma totalidade. O ser
humano é, ao mesmo tempo, corpo e psique; dialeticamente, a psique determina o corpo e
o corpo determina a psique. O caminho percorrido para chegar a essa concepção foi longo,
cuidadoso e difícil devido às muitas pressões sofridas por parte da comunidade
psicanalítica e de outros segmentos da sociedade. É necessário acompanhar esse processo
de pensamento e pesquisa de Reich que se foi modificando, à medida que novas
compreensões iam sendo alcançadas, para entender suas formulações teóricas.
Reich descreve em A função do orgasmo, de forma bastante detalhada, o caminhar
de seus estudos e de sua prática clínica que o fizeram tomar um caminho diferenciado da
psicanálise. Freud havia proposto uma classificação das neuroses. Denominava “neuroses
atuais” as enfermidades geradas pelas perturbações presentes da vida sexual.
Considerando-se essa visão, a neurose de angústia e a neurastenia não eram tomadas como
enfermidades psíquicas, mas manifestações diretas de uma repressão da sexualidade. Freud
não estabelecia qualquer relação entre a neurose de angústia e o sistema vegetativo.
Considerava que existiam “substâncias químicas” de “natureza sexual” que não estavam
sendo “metabolizadas” de forma adequada pelo organismo, provocando alterações como
palpitações, suor e crises de angústia. Apontava a abstinência sexual ou o coitus
interruptus como causadores da neurose da angústia. Os “abusos sexuais”, ou seja, uma
sexualidade desregrada, como o excesso da masturbação, causavam a neurastenia, que se
manifestava através de sintomas como dores de cabeça, irritabilidade, perturbações da
memória, falta de concentração, entre outros. Freud afirmava que os sintomas descritos não
indicavam a presença de quaisquer conteúdos psíquicos. Estes se revelavam nas
psiconeuroses
12
, especialmente na histeria e na neurose compulsiva. As psiconeuroses
deveriam ser tratadas psicanaliticamente, ao passo que as neuroses atuais poderiam ser
curadas com a supressão de suas causas como a abstinência ou o excesso de masturbação.
Frisa Reich:
12
Neuroses de causa psíquica, cujos sintomas são considerados expressão simbólica de conflitos infantis.
26
A despeito dessa dicotomia, [Freud] admitia uma relação entre os dois grupos.
Tinha a opinião de que toda psiconeurose se desenvolvia em torno de “um cerne
neurótico atual”. Foi essa expressão brilhante que constituiu o ponto de partida
das minhas investigações da angústia estásica
13
. Freud nunca mais publicou
nada a esse respeito
14
(1942/1995, p. 84).
Mas Reich retomou a observação de seu mestre, debruçando-se sobre essa questão.
Em sua prática clínica psicanalítica, como observa, Reich presenciou inúmeros sintomas
somáticos, mas não podia negar que, nos sintomas da neurose atual, havia uma
superestrutura psíquica. Não era comum encontrar-se um caso de neurose atual pura. A
distinção não tinha a clareza que Freud presumira. Tornou-se evidente para ele “que as
psiconeuroses tinham um cerne neurótico atual (estase
15
) e que as neuroses estásicas
16
tinham uma superestrutura psiconeurótica”, não vendo por que distinguir as duas. (Reich,
1942/1995, p. 85). A partir dessas reflexões, Reich se depara com a questão básica para a
formulação de sua teoria: qual a fonte de energia para os sintomas da psiconeurose?
Com a continuidade de suas observações, Reich foi percebendo, com maior clareza,
que níveis mais altos de excitação sexual evocam idéias sexuais mais intensas e vívidas. A
excitação energiza a idéia. A emoção tem origem nos instintos, o que significa se
relacionar ao campo somático. Uma idéia, por outro lado, é não-física, e sim puramente
psíquica. Isso o fez investigar que relação poderia haver entre uma idéia “não-física” e a
excitação “física”, chegando à conclusão que a neurose estásica é uma perturbação física
causada pela excitação sexual não satisfeita convenientemente por razões morais ou
sociais. Pôde observar que, se não houvesse alguma forma de inibição psíquica, a excitação
sexual teria uma descarga satisfatória. Entretanto, se a inibição faz com que a energia se
acumule, esta intensifica a inibição e reativa idéias associadas a conflitos infantis,
produzindo sintomas neuróticos. Se isto acontece, as experiências infantis são reativadas e
entram em conflito com a organização psíquica do adulto, tendo que ser mantidas sob
13
Angústia causada pela estase (contenção) de energia sexual no centro do organismo quando a descarga
orgástica periférica torna-se inibida.
14
Grifos pessoais.
15
A estase é “uma inibição da expansão vegetativa e um bloqueio da atividade e motilidade dos órgãos
vegetativos centrais. A descarga da excitação é bloqueada: a energia biológica fica presa” (Reich, 1942/1995,
p. 288).
16
Reich denominava neurose estásica os distúrbios somáticos que são o resultado imediato da estase de
energia sexual, tendo como núcleo a angústia estásica.
27
controle através da repressão. É desta forma que uma psiconeurose crônica, com seus
conteúdos sexuais infantis, se desenvolve de uma inibição sexual causada no presente.
Reich chegou, em síntese, à conclusão que uma inibição sexual atual reativa as
psiconeuroses e o seu conteúdo sexual infantil. Estas conclusões o levaram, cada vez mais,
apesar das críticas e pressões, a trilhar o caminho que o levaria a formular a teoria do
orgasmo e o conceito de potência orgástica. De 1922 a 1926, a teoria do orgasmo foi
formulada e comprovada passo a passo. Reich constata que o processo vital e o processo
sexual são um único processo, estando a energia vegetativa e sexual ativa em tudo que vive.
A potência orgástica caracterizaria a possibilidade de liberar totalmente a excitação
sexual. Como a define Reich (1942/1995, p. 94): “é a capacidade de abandonar-se, livre
de quaisquer inibições, ao fluxo de energia biológica; a capacidade de descarregar
completamente a excitação sexual reprimida por meio de involuntárias e agradáveis
convulsões do corpo”. Pôde constatar que nenhum neurótico é potente orgasticamente, o
que difere da potência ejaculativa e eretiva, e que a grande maioria de homens e mulheres
são neuróticos. Reich considerava que o papel da impotência orgástica na economia
sexual
17
era semelhante ao complexo de Édipo na psicanálise. Constata que há uma
antítese fundamental entre a sexualidade, processo somático, e a angústia, que tem
natureza psíquica. O conflito psíquico e a estase da excitação somática alimentam-se
mutuamente. O conflito psíquico central está relacionado a conteúdos sexuais infantis
presentes em toda neurose, enquanto a estase da excitação sexual é o fator simultâneo, que
embora não contribua para o conteúdo da neurose, lhe fornece energia. Desta forma, a
questão de Reich quanto à fonte de energia das neuroses obtém resposta: tem origem na
diferença entre o acúmulo e a descarga da energia sexual.
Não podemos perder de vista que ser orgasticamente potente significa, em última
análise, ser capaz de se entregar ao prazer sem reservas, não se mantendo atado a padrões,
preconceitos e falsos moralismos que são incutidos na criança desde a mais tenra idade.
Significa saúde emocional. A configuração do ser humano como um ser destinado à
neurose devido à sua formação sociocultural foi uma contribuição muito rica de Reich, mas
17
Economia sexual: Conceito que se refere ao modo de regulação da energia biológica ou, o que é
praticamente o mesmo, da economia da energia sexual do indivíduo. Economia sexual é o modo como o
indivíduo lida com a sua energia biológica que quantidade reserva e que quantidade descarrega
orgasticamente. Os fatores que influenciam este modo de regulação são de natureza sociológica, psicológica
e biológica. A ciência da economia sexual abrange o conjunto de conhecimentos adquiridos através do estudo
desses fatores. Esse conceito caracteriza o trabalho de Reich desde a época em que refutou a filosofia cultural
de Freud até a descoberta do orgone, a partir do qual preferiu o termo “orgonomia”, ciência da Energia Vital.
28
também uma das razões que o afastaram do movimento psicanalítico. Reich (1933/1998)
aponta as limitações da psicologia, uma vez que há aspectos que se colocam no campo da
sociologia e da biologia, enfatizando problemas que estão profundamente relacionados à
forma como ocorre a educação. Em a Psicologia de massa do Fascismo e, também, em A
função do orgasmo, Reich analisa as repressões sociais que fatalmente conduzem à
neurose.
Paralelamente à sua prática clínica, sua atuação e atenção se voltam, também, para a
área social e pedagógica, devido à sua preocupação com o bem-estar do indivíduo na
sociedade e a prevenção das neuroses. Não havia dúvidas para Reich de que os instintos
naturais são fenômenos biológicos, não podendo ser abolidos ou fundamentalmente
modificados. Matar a fome e satisfazer os desejos sexuais são necessidades básicas, mas a
sociedade moderna dificulta a primeira satisfação e frustra a segunda. Acreditava que as
doenças do indivíduo e da sociedade eram causadas pela sexualidade destorcida e
reprimida. Sua visão de sexualidade ia muito além da forma como era considerada, e ainda
o é, muitas vezes. Constatou que não havia correspondência entre a sexualidade e a
felicidade devido a distorções doentias do que considerava como amor natural, necessidade
profunda do homem: “Quando falo em sexo, não me refiro ao ato sexual animal, mas à
posse inspirada pelo amor genuíno” (Reich, 1942/1995, p. 165). O papel fundamental da
sexualidade se mostra no amor e no trabalho, que devem ser fontes de prazer e auto-
realização.
Uma de suas contribuições fundamentais para a compreensão do ser humano foi a
descoberta de que as experiências emocionais dão origem a determinados padrões
musculares que bloqueiam o fluxo da bioenergia
18
. Reich empreendeu um longo percurso
e, a cada etapa vencida, ia se fortalecendo sua crença de que às couraças de caráter
19
correspondiam couraças musculares
20
; o que implica que psique e corpo são aspectos de
um todo. O ser humano é, ao mesmo tempo, corpo e psique; dialeticamente, a psique
determina o corpo e o corpo determina a psique.
18
Essa questão será trabalhada em maior profundidade ao longo deste trabalho.
19
Couraças de caráter: conjunto de atitudes caracteriais típicas que o indivíduo desenvolve como um
bloqueio contra seus impulsos emocionais, resultando em rigidez corporal e perda de contato emocional.
20
Couraças musculares: espasmos musculares crônicos que o indivíduo desenvolve como um bloqueio
contra a irrupção de emoções e sensações, particularmente angústia, raiva e excitação sexual.
29
As couraças musculares ou de caráter são defesas criadas pelo ego, parte do
indivíduo com a qual administra sua relação com o mundo. O caráter, para Reich, não é
algo inato, mas sim uma estrutura resultante de situações vividas, de um processo de
construção histórica. Como define, “o mundo total da experiência passada incorpora-se ao
presente sob a forma de atitudes de caráter. O caráter de uma pessoa é a soma total
funcional de todas as experiências passadas” (1942/1995, p. 129). É com ele que vivemos
nosso cotidiano, que somos e que nos relacionamos. O caráter é, portanto, o modo como
nos comportamos, é o que orienta nossos atos, nosso jeito de nos comunicarmos com o
mundo que nos cerca, nossa maneira de ver a nós mesmos e o outro.
Com a restrição das expressões espontâneas, em conseqüência da necessidade do
indivíduo se adaptar ao seu meio sociocultural, ocorre a estase de energia resultante dessa
contenção, ou seja, a estagnação dessa energia, que se concentrará em pontos determinados,
deixando outros sem energia suficiente, provocando alterações. Essas alterações tanto
ocorrem pela falta de energia em determinada parte do corpo quanto pelo excesso de
energia de forma bloqueada (estase), sem movimento, sem fluidez, também, em alguma
parte do corpo. A persistência de um conflito ou de conflitos semelhantes entre as próprias
necessidades e o mundo externo percebido como ameaçador faz com que o ego torne-se
rígido para se proteger. É nesse processo que se forma o caráter neurótico, ou seja, um
modo de reação crônico, que funciona de forma automática. A couraça dá à personalidade
condições para se proteger, aparando e enfraquecendo tanto os golpes do mundo externo
quanto os clamores das necessidades internas. Mas se, por um lado, essa proteção diminui a
dor, o desprazer, por outro, diminui a capacidade da pessoa de sentir prazer, de viver com
maior plenitude as emoções agradáveis, pois, restringe sua motilidade agressiva e libidinal,
seu fluxo de bioenergia.
Referindo-se à teoria de Reich, Lowen, em Medo da Vida, define caráter como “um
conjunto de respostas fixas, boas ou más, que são independentes de processos mentais
conscientes”. Assim sendo, o caráter não pode ser modificado por meio de ação consciente,
uma vez que está fora de nosso controle. “Em geral, não temos nem consciência de nosso
caráter, pois ele se tornou nossa ‘segunda natureza’” (1980/1989, p. 57). E prossegue mais
adiante:
Reich definiu o caráter como um processo de formação da couraça ao nível do
ego, que tinha por função protegê-lo contra perigos internos e externos. Os
30
perigos internos seriam os impulsos inaceitáveis; os externos, as ameaças de
punição dos pais e de outras figuras de autoridade, por tais impulsos.
Posteriormente, Reich ampliou o conceito de couraça de caráter para o domínio
somático. Neste, a couraça se expressa em tensões musculares crônicas, que são
o mecanismo físico por meio do qual os impulsos perigosos são suprimidos. Esse
encouraçamento muscular é o lado somático da estrutura de caráter que, no ego,
encontra sua contrapartida psíquica. Uma vez que psique e soma são os dois
lados da mesma moeda, o que acontece num domínio também se passa no outro.
Ou podemos dizer que a couraça muscular é funcionalmente idêntica ao caráter
psíquico (Idem, Ibidem, p. 59-60).
A percepção das couraças musculares levou Reich a uma inovação na técnica
psicoterapêutica, agindo sobre a neurose a partir do corpo, levando seus pacientes a
entrarem em contato com tensões e espasmos de seus corpos por meio da respiração
profunda e da manipulação direta desses pontos. O afrouxamento dessas couraças fazia,
muitas vezes, com que lembranças e emoções reprimidas viessem à tona. Também podiam
liberar correntes de energia no corpo do paciente que, na maioria das vezes, nunca haviam
sido sentidas. Essas correntes foram consideradas por Reich oriundas do sistema nervoso
vegetativo ou autônomo e, por isso, foram denominadas correntes vegetativas. Logo Reich
percebeu que surgiam quando os espasmos e tensões eram afrouxados, permitindo ao
paciente respirar mais profundamente e relaxar, trazendo, também, um sentimento de bem-
estar.
Com base nessas descobertas, Reich reelaborou sua técnica terapêutica. A análise
do caráter, que vinha desenvolvendo, logo passaria por transformações. O Dr. Ola Raknes,
contemporâneo de Reich, observa segundo transcrição de Gerda Boyesen:
[Reich] logo descobriu que era como se o caráter consistisse de camadas
intercambiáveis ou como se houvesse uma fortaleza com várias linhas de defesa,
uma atrás da outra. O trabalho sobre as tensões libertaria, eventualmente, as
energias emocionais reprimidas, que também se manifestavam nas “correntes
vegetativas” (...). Quando a nova técnica terapêutica atingiu esse estágio, Reich a
chamou “Vegetoterapia Caracteroanalítica ou, simplesmente, Vegetoterapia”
(1997, p. 46-47).
31
O desenvolvimento da análise do caráter situa-se entre 1926 e 1934 até transformar-
se em Vegetoterapia
21
em 1935, que inclui em um só conceito a atuação nos campos físico
e psíquico. A ênfase do tratamento passa, então, do caráter para o corpo. A energia
orgônica cósmica só foi descoberta em 1939, entretanto, mesmo antes dessa descoberta,
Reich afirmava que o objetivo da análise do caráter era liberar a “energia psíquica” (forma
como a denominava) da couraça do caráter e da couraça muscular. A partir daí, o conceito
de Orgonoterapia
22
envolve todas as técnicas médicas e pedagógicas que consideram a
energia biológica, o orgone
23
.
Reich pôde detectar que a energia orgone cósmica atua no organismo vivo como
energia biológica específica, governando todo o organismo. Pode ser percebida tanto nos
movimentos puramente biofísicos dos órgãos quanto nas expressões emocionais, que se
tornaram foco da biofísica orgônica. O orgone é a energia necessária a todos os processos
físicos, mentais e emocionais.
Essa variedade de conceitos mostra um processo de investigação permanente vivido
por Reich em sua curiosidade inquieta e espírito de busca. Prevendo que pudesse haver
dificuldades na compreensão do porquê de tantas mudanças, o próprio Reich, apresenta sua
justificativa em capítulo acrescentado à terceira edição de Análise do Caráter
24
:
Não foi um desejo fútil de sensacionalismo que deu origem a tantos conceitos
variados numa só disciplina das ciências naturais. Foi na verdade a aplicação
consistente do conceito científico natural de energia aos processos da vida
psíquica que exigiu, em várias fases de desenvolvimento, a criação de novos
conceitos para novas técnicas (1933/1998, p. 329).
21
Vegetoterapia: com a descoberta da couraça muscular, o processo terapêutico de análise do caráter
modificou-se para libertar as energias vegetativas reprimidas, o que veio restabelecer a capacidade de
motilidade biofísica do paciente. A combinação da análise do caráter com a Vegetoterapia é conhecida como
Vegetoterapia analítica do caráter ou Vegetoterapia caracteroanalítica.
22
Orgonoterapia: denominação dada por Reich ao seu trabalho terapêutico a partir da descoberta da energia
orgônica ou orgone.
23
Orgone: energia cósmica primordial que está presente em tudo e pode ser observada visualmente,
termicamente, eletroscopicamente e por meio de contadores Geiger-Mueller. No organismo vivo, se
manifesta como
bioenergia, energia vital.
24
Na terceira edição de Análise do Caráter, ocorrida em 1949, foram acrescentados dois capítulos, que
mostram com clareza as mudanças na caminhada teórica de Reich: A peste emocional, publicado pela
primeira vez em 1945, e A linguagem expressiva da vida, não publicado anteriormente.
32
Essa pequena visão do caminhar de Reich nos permite compreender melhor sua
trajetória e os aspectos mais significativos de sua teoria para esta pesquisa: a unicidade
corpo-psique e a pulsação da vida em nós.
B) Expansão e contração: a pulsação da vida
Pesquisas em laboratório paralelamente ao trabalho clínico, fizeram Reich observar
de forma bastante objetiva o funcionamento da energia no organismo. Constata que a
emoção é basicamente um movimento plasmático, levando em conta o sentido literal da
palavra emoção “movimento para fora” ou “expansão”. Estímulos agradáveis provocam
uma “emoção” do protoplasma, do centro para a periferia, enquanto os desagradáveis
provocam uma “emoção” ou, mais exatamente, uma “remoção” do protoplasma da
periferia para o centro do organismo. Essas duas direções fundamentais da corrente
plasmática expansão e retração são um alicerce da teoria biofísica orgônica e essenciais
para a compreensão da teoria reicheana e as de seus seguidores. Elas correspondem aos
dois afetos básicos do aparelho psíquico prazer e angústia.
Em termos de sua função, o movimento físico do plasma e a sensação que lhe
corresponde são, como descobrimos por experiência no oscilógrafo,
completamente idênticos. Não podem ser separados; na verdade, são
inconcebíveis um sem o outro. Porém, como sabemos, não são apenas
funcionalmente idênticos como também, e ao mesmo tempo, antitéticos: uma
excitação biofísica do plasma transmite uma sensação e uma sensação expressa-
se num movimento do plasma
25
(Reich, 1933/1998, p. 330-331).
As funções biológicas fundamentais de contração e de expansão foram observadas
tanto no psíquico quanto no somático. Essas duas funções básicas se relacionam com o
funcionamento do sistema nervoso vegetativo ou autônomo. Esse sistema regula processos
corporais básicos como respiração, pulsação cardíaca, circulação, digestão, entre outras.
Sua ação foge ao controle voluntário, daí ser “autônomo”. Possui uma subdivisão: o
sistema nervoso simpático e o parassimpático, que funcionam de forma antitética:
25
Grifos pessoais.
33
O sistema nervoso parassimpático opera na direção da expansão “para fora do
eu, em direção ao mundo”, do prazer e da alegria; ao contrário, o sistema
nervoso simpático opera na direção da contração “para longe do mundo, para
dentro do eu”, da tristeza, do desprazer. O processo vital consiste em uma
contínua alternância entre expansão e contração. (...) No mais alto nível psíquico,
a expansão biológica é experimentada como prazer; a contração é experimentada
como desprazer. No campo dos fenômenos instintivos, a expansão funciona como
uma excitação sexual, e a contração funciona como angústia. Em um nível
fisiológico mais profundo, a expansão corresponde ao funcionamento
parassimpático e a contração ao funcionamento simpático (Reich, 1942/1995, p.
245-246).
O sistema simpático, que mantém conexão com as glândulas supra-renais,
mobiliza o corpo para enfrentar emergências, para “lutar” ou “fugir”. Diante de situações
que se mostrem ameaçadoras para a pessoa, quer pela possibilidade da dor ou do perigo, o
simpático é ativado. Os sentidos entram em estado de alerta, as pupilas se dilatam, o
coração bombeia mais sangue, a pressão sanguínea aumenta, assim como o consumo de
oxigênio. O sangue é levado para o interior do corpo para oxigenar mais intensamente os
órgãos vitais e a musculatura.
O sistema parassimpático tem uma ação oposta, sua identificação com as sensações
de prazer é evidente. O corpo se expande e a pele é irrigada pelo fluxo sangüíneo,
tornando-se mais aquecida, a ação cardíaca se torna mais lenta e relaxada, a respiração
mais calma e profunda, os olhos, mais brilhantes.
Essas experiências trazem para Reich a confirmação da unicidade psicofísica,
ratificam o “conceito unitário do organismo”. Sejam as emoções reativadas tendo como
ponto de partida o psiquismo ou o corpo, são produzidas excitações e movimentos
plasmáticos. O que se move é a energia orgone ou bioenergia, contida nos fluidos do
corpo. “Assim, a mobilização das emoções e correntes plasmáticas no organismo é
idêntica à mobilização da energia orgone”. Frisa Reich que, na orgonoterapia, o trabalho
se concentra no “núcleo biológico do organismo”, não se limitando à esfera da psicologia,
mas adentrando a da fisiologia dos nervos e músculos “já não trabalhamos apenas com
conflitos individuais e com encouraçamentos específicos, mas com o próprio organismo
vivo” (1933/1998, p. 331).
34
Com suas pesquisas, se inicia um longo caminho de terapias bioenergéticas, de
estudos e experiências que fundamentam uma nova visão do ser humano, unindo instâncias
até então vistas como formas isoladas - a corporal, a emocional, a mental e a social. Reich
detectou que o psíquico e o somático são dois processos paralelos que atuam
reciprocamente um sobre o outro. Pôde constatar que “a estrutura psíquica é ao mesmo
tempo uma estrutura biofísica que representa um estado específico indicativo da interação
das forças vegetativas de uma pessoa” (Reich, 1942/1995, p. 255). Frisa Reich:
Todo impulso psíquico é funcionalmente equivalente a uma excitação somática
definida. A idéia de que as funções do mecanismo psíquico funcionam apenas
por si mesmas e influenciam o mecanismo somático, que também funciona por si
mesmo, não está de acordo com fatos reais (1942/1995, p. 290).
A excitação psíquica e a excitação somática são funcionalmente equivalentes; a
fixação de uma excitação psíquica tem origem em um estado específico de inervação
vegetativa e a alteração do estado vegetativo modifica o funcionamento do órgão. Assim, o
“significado psíquico do sintoma orgânico” corresponde à atitude somática na qual o
“significado psíquico” se expressa. O ódio psíquico, como exemplifica Reich, expressa-se
em uma atitude vegetativa definida de ódio. São inseparáveis e equivalentes. O estado
vegetativo que se fixa repercute sobre o estado psíquico, que com a percepção de um
perigo atua como uma inervação simpaticotônica, ou seja, com a ativação do sistema
simpático, que intensifica a angústia. Com a intensificação da angústia, cria-se um
encouraçamento que nada mais é que a fixação da energia vegetativa na couraça muscular.
A possibilidade de descarga dessa energia é comprometida devido a esse encouraçamento,
intensificando-se a tensão (Reich, 1942/1995, p. 290).
Assim, Reich não tem dúvidas de que “bioenergeticamente, a psique e o soma
funcionam condicionando-se mutuamente e ao mesmo tempo formando um sistema
unitário
26
” (Idem, Ibidem, p. 291). A psique, na sua função emocional, é completamente
dependente das funções de expansão e contração do sistema nervoso autônomo.
26
Grifos pessoais.
35
C) O corpo e a linguagem expressiva da vida
O ser humano é um sujeito, sede de suas complexas interações constitutivas, cujo
corpo é o arcabouço, o recurso de sua manifestação. Afinal, nele, dão-se todas as nossas
vivências de sensações, movimentos, sentimentos e pensamentos. Ele é o nosso meio de
estar e se expressar no mundo.
Reich considera que as palavras não são capazes de expressar plenamente o
funcionamento do organismo vivo uma vez que este está além de todas as idéias e
conceitos verbais. Seu funcionamento é anterior à existência de uma linguagem e
representações verbais. Afirma ele:
O organismo vivo se expressa em movimentos; por isso falamos de movimentos
expressivos. O movimento expressivo é uma característica inerente ao
protoplasma. Distingue o organismo vivo de todos os sistemas não-vivos. (...) No
sentido literal, “emoção” significa “mover para fora”, ao mesmo tempo, é um
“movimento expressivo”. Assim, o movimento do protoplasma expressa uma
emoção, e a emoção ou a expressão de um organismo está incorporada no
movimento (Reich, 1933/1998, p. 332).
Mas, como destaca Reich, a emoção pode se expressar através da imobilidade ou
rigidez. Pode parecer estranho, mas se retomarmos o conceito da identidade funcional
corpo-psique, veremos que nos protegemos das emoções através das couraças musculares,
que restringem nossa expressividade. Assim a ausência de mobilidade ou de fluidez é uma
forma pela qual o organismo se expressa, expressão de emoções que as palavras não são
capazes de manifestar. A vida se expressa através de nosso corpo, através de um maior ou
menor fluxo de energia, através do brilho dos olhos ou da sua opacidade, do calor da pele
ou da ausência de vitalidade na mão que se estende, no prazer da convivência ou na fuga
pra dentro de si mesmo. Diz Reich:
Apesar da linguagem refletir o estado emocional plasmático de maneira imediata,
ela não é capaz de alcançar esse estado em si. A razão disso é que o início do
funcionamento da vida é muito
mais profundo
do que a linguagem
e está
além
dela. Ademais, o organismo vivo tem seus próprios modos de expressar o
36
movimento, os quais simplesmente não podem ser colocados em palavras
(1933/1998, p. 333).
Reich aponta ainda para estados emocionais provocados pela música que não se
traduzem por palavras, mas que se manifestam em um movimento interno que traz a
sensação de arrebatamento, de êxtase. Outras situações também podem produzir essa
manifestação como um belo pôr-do-sol ou a visão de uma obra de arte. Na verdade, isso
vem corroborar a perspectiva reicheana de que “o sentimento profundo é idêntico a ter
contato com o organismo vivo para além das limitações da linguagem”. É a confirmação
do que postula a biofísica orgônica: “o organismo vivo tem uma linguagem expressiva
própria, antes de, para além de, e independente de toda linguagem verbal” (Idem, p. 333).
A linguagem humana, além de sua função social de comunicação, também funciona
como defesa ou como recurso de ocultamento. Isso pode ocorrer de forma consciente, o
que pode ser observado facilmente na verborragia de políticos, nos discursos educacionais,
em nas mais variadas situações do cotidiano. Mas a linguagem verbal pode funcionar como
defesa inconsciente para que a linguagem expressiva do núcleo biológico não seja
acessada. Ou seja, funciona como uma forma de evitar o contato consigo mesmo.
A orgonoterapia trouxe essa compreensão e uma nova forma de levar o paciente a
se expressar biologicamente, de levá-lo a uma profundidade interna da qual ele foge
constantemente, embora de forma inconsciente. O silêncio e a observação do corpo do
paciente trazem informações ao terapeuta que a linguagem seria incapaz de transmitir. O
saber racional, muitas vezes, não nos dá condições de fazer qualquer alteração emocional.
Entretanto, quando o terapeuta entra em contato com a expressão total de um organismo
possibilita que se crie uma sintonia entre seu corpo e o de seu paciente, e que possa emergir
a compreensão. Compreensão tem aqui “o sentido literal de saber que a emoção está sendo
expressa nela” (1933/1998, p. 335). Stanley Keleman, anos depois, utilizaria a expressão
“ressonância somática” para definir a relação entre duas pessoas que se estabelece a nível
biológico e David Boadella iria proclamar como elemento mais importante, no processo de
transformação interna de bloqueios, a receptividade viva de outro ser humano.
Para Reich, o caráter pode ser genital ou neurótico. O primeiro caracteriza o ideal
na perspectiva reicheana um comportamento auto-regulado e produtivo, a capacidade de
resolver conflitos de uma forma não neurótica. O caráter neurótico indica uma estrutura de
37
caráter marcada pela cronificação, pela rigidez, por mecanismos repetitivos de ação e
proteção automáticos, que inibem as possibilidades de mobilidade do indivíduo, portanto,
inibem uma expressão mais espontânea. As vicissitudes da vida produzem o caráter, que
vai expressar-se através do ego. O ego só existe enquanto o sujeito age, selecionando e
controlando sua forma de ação, mesmo que de forma inconsciente. É este sujeito que é
mais fluido ou mais estático, congelado. O congelamento é expresso pelo caráter neurótico;
a fluidez pelo caráter genital. “Falamos de um ‘caráter genital’ quando as reações
emocionais não são regidas por um automatismo rígido, quando a pessoa é capaz de reagir
de uma maneira biológica a uma situação particular” (Reich, 1933/1998, p. 336).
Quando não se tem a possibilidade de ser autêntico, de agir com espontaneidade,
isso se registra no corpo através de tensões musculares, ou seja, do encouraçamento.
Naturalmente, nem sempre, podemos ou devemos, expressar tudo que sentimos ou
pensamos, mas esta é uma situação diferente daquela em que o indivíduo perde a
capacidade de fazê-lo e de percebê-lo. O organismo encouraçado não é capaz de se liberar
de suas próprias couraças, nem de expressar suas emoções biológicas básicas.
Como frisa Reich em O assassinato de Cristo, em que analisa o distanciamento do
homem de si mesmo, do contato com seu centro energético, se privando das próprias fontes
de vida, “não há nada mais destrutivo do que a Vida anulada e contrariada por esperanças
frustradas” (1953/1991, p. 9). Anular a vida é, em última análise, não permitir que ela se
expresse com toda sua intensidade.
Estar vivo não significa apenas ter o coração batendo, respirar e se locomover.
Muito mais que isso, estar vivo se marca pela possibilidade de estar presente no mundo, de
se inserir em seu movimento, de sentir, de se expressar, não se estagnando em
determinados padrões ou idéias paralisantes. Corporalmente isso se manifesta através de
mobilidade, de respiração ritmada e profunda e do fluxo da energia corporal. Reich nos
trouxe esta compreensão.
Como a busca da Bioexpressão é possibilitar ao educador se conhecer um pouco
mais e contribuir para que, nele, a vida se expresse através de pensamentos, sentimentos e
movimentos, ou seja, que o educador possa adquirir maior fluidez, a teoria reicheana pode
dar suporte para a compreensão de como a expressividade é constringida pelas couraças
musculares e que a liberação ou mobilização de algumas dessas couraças pode tornar a
38
expressão mais viva, mais livre e mais espontânea, o que implica estar mais centrado, em
maior contato consigo mesmo, com maiores condições de interagir com pessoas e
situações de forma mais flexível e, por isso mesmo, mais saudável.
2.2. Lowen e a Bioenergética
A) Continuidade e reconstrução
A proposição da unicidade corpo-psiquismo de Wilhelm Reich é a base da
formulação da Bioenergética por Alexander Lowen e John Pierrakos, mas, especialmente,
pelo primeiro. Embora tenha avançado e enriquecido alguns aspectos em sua prática
clínica e em seus estudos, a teoria reicheana manteve-se como o eixo de seu trabalho. Em
O corpo em depressão, afirma que “a mente e o corpo não são entidades separadas, mas
dois aspectos do indivíduo. O relacionamento entre eles é expresso no conceito da
identidade psicossomática e sua antítese” (p. 201), ou seja, reafirma um conceito
fundamental de Wilhelm Reich. Afirma que as idéias contidas no livro derivam do
pensamento, observações e experiências de Reich. E acrescenta:
Vista como uma força física ou energia, a libido
27
não pode ser limitada à
sexualidade. Deve ser concebida como uma energia vital em geral (...). Ela é
disponível para todas as necessidades do organismo: libidinais ou agressivas,
motoras ou sensoriais. Tanto o caminho como a saída determinam a natureza do
impulso e o sentimento. Quando flui para cima em direção do terminal da cabeça
do organismo geralmente leva a ações cuja função é aumentar a carga energética
do organismo. (...) Quando o fluxo é para baixo leva a atividades de descarga
entre as quais o sexo é o melhor exemplo (Lowen, 1972/1983, p. 201-202).
Alexander Lowen foi discípulo de Reich de 1940 a 1952 e seu analisando de 1942 a
1945. Segundo narra em seu livro Bioenergética, ficara bastante impressionado com a
perspicácia de seu professor, percebendo que Reich introduzira uma nova forma de pensar
27
Anteriormente, na mesma obra, Lowen afirma que Freud definira libido como “a força pela qual o instinto
sexual se expressa”, mas que este rejeitara a eqüidade entre libido e energia vital considerada de forma mais
ampla, proposta feita por Jung. Reich, no entanto, a retoma, assim como Lowen.
39
os problemas do ser humano. Com a continuidade dos estudos pôde entender que o fator
econômico, que se refere à regulação da energia biológica ou energia sexual do indivíduo,
se relaciona às forças que predispõem o indivíduo ao desenvolvimento de sintomas
neuróticos. Diz ele:
Percebi que o fator econômico era uma chave importante para a compreensão da
personalidade, pois está ligado à forma do indivíduo conduzir sua energia sexual
ou sua energia de um modo geral. Quanta energia possui uma pessoa, e que
parcela é utilizada na atividade sexual? A economia de energia ou economia
sexual de um indivíduo diz respeito ao equilíbrio mantido entre a carga e a
descarga de energia ou entre a excitação sexual e sua respectiva liberação.
Apenas quando essa economia ou equilíbrio é perturbado é que se desenvolve o
sintoma de conversão histérica. A couraça muscular ou as tensões musculares
crônicas servem para manter a economia em equilíbrio, retendo a energia que não
pode ser descarregada (Lowen, 1975/1982, p. 14).
Apesar da lógica encontrada na teoria de Reich, quando se aproximou dos estudos
reicheanos, Lowen permaneceu bastante cético em relação à “aparente” supervalorização
dada ao sexo nos problemas emocionais. Como poderia ser o sexo a chave dos problemas?
Entretanto, seu ceticismo acabou por desaparecer através do aprofundamento dos estudos e
da própria terapia, através da qual, pôde sentir, em seu próprio corpo, os resultados da
proposta. Segundo Lowen, essa convicção, baseada em experiências pessoais, se
manifestou em muitos psiquiatras que trabalharam com Reich, apesar da não aceitação da
maioria dos psicanalistas e das difamações de que seu mestre era vítima.
De 1945 a 1953, Lowen trabalhou como terapeuta reicheano e deu continuidade aos
estudos, incluindo o curso de Medicina, de 1947 a 1951. Em 1952, terminado o internato
em hospitais, entrou em contato com algumas alterações nas propostas de Reich e de seus
seguidores. O termo vegetoterapia caracteroanalítica dera lugar ao termo terapia orgônica,
o que diminuíra a ênfase na análise do caráter, sendo privilegiada a aplicação da energia
orgônica através do acumulador. Um dos aspectos que fascinaram Lowen fora exatamente
a relação funcional do caráter com a atitude corporal, tanto que ampliou os estudos nessa
direção, mostrando como os tipos caracterológicos se estruturam corporalmente. “A
identidade funcional do caráter psíquico com a estrutura corporal ou atitude muscular é a
chave da compreensão da personalidade, já que nos permite ler o caráter a partir do corpo e
40
explicar uma atitude corporal por meio de seus representantes psíquicos e vice-versa”
(Lowen, 1975/1982, p. 120).
A época do retorno de Lowen da Inglaterra, onde cursara Medicina, para os Estados
Unidos foi também a época em que algumas experiências de Reich foram mal sucedidas no
seu laboratório em Maine, em que pesquisava a interação da energia orgônica com a
radioatividade. Isto havia gerado problemas de saúde a Reich e seus colaboradores, e o
laboratório tivera que ser fechado por algum tempo, gerando um clima de desânimo.
Lowen, entretanto, mantinha o entusiasmo dos primeiros anos que fora estimulado,
como narra
28
, pela formação médica e pela experiência obtida no período em que trabalhou
como interno em hospitais, se tornando mais convicto da validade das idéias adquiridas
com Reich. Ao mesmo tempo, não se identificara com a nova proposta e seus seguidores,
julgando haver uma “devoção quase fanática” para com Reich e seu trabalho. Considerou
que tal atitude sufocaria qualquer trabalho criativo ou original. Foi a partir daí que resolveu
assumir uma posição independente, embora sua obra, bastante extensa, demonstre a
influência que o seu mestre exerceu e o respeito e gratidão que sempre lhe devotou.
Em 1953, associou-se ao Dr. John Pierrakos, também psiquiatra e discípulo de
Reich. Ambos, embora começassem a trilhar um novo caminho, ainda se consideravam
terapeutas reicheanos. Em 1956, o Instituto de Análises Bioenergéticas constituiu-se como
uma instituição sem fins lucrativos que tinha por objetivos buscar uma compreensão mais
profunda dos problemas humanos e ensinar conceitos básicos do trabalho corporal a outros
terapeutas. No ano seguinte, 1957, Reich faleceu na prisão, para onde fora levado sob
acusação de desacato à autoridade, após um período bastante doloroso de luta por seus
ideais
29
.
Lowen, com a ajuda de Pierrakos, trabalhou seu próprio corpo, desenvolvendo
posições e exercícios básicos que, ainda hoje, são usados pelos terapeutas bioenergéticos e
outros terapeutas que seguem uma linha corporal devido a sua eficácia e à rapidez com que
28
Maiores detalhes sobre a evolução da proposta bioenergética, ver LOWEN, Alexander. Bioenergética. São
Paulo: Summus, 1982.
29
Uma narrativa detalhada e sensível da vida e obra de Wilhelm Reich pode ser encontrada em BOADELLA,
David. Nos caminhos de Reich, São Paulo: Summus, 1973/1985. Nesta obra, podemos ter uma visão
profunda de quanto aqueles que inovam, quebram padrões e ameaçam instituições e egos, como foi o caso
desse cientista incansável, enfrentam dificuldades, críticas e, muitas vezes, calúnias e zombarias.
41
os efeitos podem ser observados. Reich não utilizava exercícios específicos, apenas
observava a forma corporal, trabalhava a respiração profunda e utilizava a pressão com
suas mãos sobre pontos onde se concentrava maior tensão no corpo do cliente com o
objetivo de permitir-lhe sentir o bloqueio e, também, facilitar sua liberação. Essas técnicas
foram preservadas e ampliadas por Lowen.
Uma contribuição significativa de Lowen foi a introdução do conceito de
grounding
30
, o que significa estar em maior contato com seu corpo, com sua própria
estrutura, sustentar-se nas próprias pernas, enraizando-se na realidade. “Grounding, ou
seja, fazer com que o paciente tenha contato com a realidade, com o solo onde pisa, com
seu corpo e sua sexualidade, tornou-se uma das pedras fundamentais da bioenergética”
(Lowen, 1975/1982, p. 35). Também inovou com a criação de exercícios que desenvolvem
a atividade vibratória involuntária, que auxiliam a diminuir a tensão e a rigidez. Afirma
que quando o corpo adquire maior vitalidade, o ego diminui seu controle sobre os
sentimentos que podem surgir mais facilmente e ser integrados à personalidade. O paciente
já não permanece deitado no divã, mas trabalha de pé. Pode também fazer uso do banco
bioenergético (stool)
31
, com o objetivo de propiciar uma respiração mais plena e profunda,
função das mais importantes para o equilíbrio energético como já o frisara Reich em sua
prática.
Embora não minimizando a importância da sexualidade, esta passou por algumas
alterações conceituais em relação ao trabalho reicheano. Lowen considerou que a vida
moderna não oferece condições para a manutenção da potência orgástica buscada por
Reich, embora continuasse a considerá-la significativa para a saúde emocional. Entretanto,
julgava que a terapia teria resultados satisfatórios quando a pessoa fosse capaz de assumir a
responsabilidade pelo seu bem-estar e crescimento ininterrupto. O objetivo da
bioenergética é fazer com que o indivíduo se reencontre com seu corpo e com sua
vitalidade. Lowen confirmou a proposição reicheana de que qualquer atividade corporal
interna ou externa requer e utiliza energias movimentos peristálticos dos intestinos, os
batimentos cardíacos, a digestão, falar, trabalhar ou fazer sexo. Mas sua ênfase na
30
A esse conceito voltaremos mais adiante, de forma mais detalhada, uma vez que é um dos exercícios
fundamentais para a Bioexpressão. Por hora, é significativo que se perceba a contribuição de Lowen para o
desenvolvimento do trabalho corporal e as diferenças fundamentais em relação à teoria reicheana.
31
Banco com cerca de 60 cm de altura, com a área superior acolchoada, em que o paciente apóia a região
dorsal, mantendo-se apoiado também nos pés. A finalidade de seu uso é estimular a respiração mais profunda
e relaxada.
42
possibilidade de expressão plena seja sexual ou não, de alguma forma, manifestaria o que
Reich denominou de potência orgástica.
Essa ênfase dada ao corpo inclui a sexualidade, que é uma de suas funções
básicas. Mas inclui também as mais elementares funções de respiração,
movimento, sentimento e auto-expressão. O indivíduo que não respira
corretamente reduz a vida de seu corpo. Se não se movimenta livremente, limita a
vida de seu corpo. Se não se sente inteiramente, estreita a vida de seu corpo e, se
sua auto-expressão é reduzida, o indivíduo terá a vida de seu corpo restringida
(Lowen, 1975/982, p. 38).
Lowen, assim como Reich, considera que a natureza primária do ser humano é
voltada para a vida, entretanto, se fechar para ela é uma forma de proteção. A dissociação
entre o corpo e a mente e os transtornos daí decorrentes vão se cristalizando no contato com
os padrões culturais que vivenciamos. Poder assumir a responsabilidade por si mesmo e
auto-expressar-se, o que não simples, é a busca que cabe ao ser humano empreender.
B) As estruturas de caráter
Freud e Reich haviam feito algumas observações quanto às estruturas de caráter.
Freud considerara tipos de personalidade a partir de características relacionadas aos
aspectos psíquicos. Reich ampliou a visão trazida por Freud, relacionando-as ao corpo.
Reich, não chegou, entretanto, a detalhar a estrutura corporal dos tipos caracterológicos. A
grande contribuição de Lowen, neste sentido, foi ampliar e sistematizar o conceito de
caráter de Reich. Ele tomou toda a caracterologia de Reich, estudou-a mais profundamente,
descrevendo os tipos caracterológicos, ampliando-a com o acréscimo do tipo esquizóide e
do psicopata, analisando a etiologia de cada estrutura, ou seja, sua origem; analisando seus
aspectos físicos, fatores históricos, comportamentos e relações psicológicas, oferecendo
uma forma de compreender as expressões do ser humano
32
. Propôs, ainda, técnicas
específicas para se trabalhar com os diversos tipos de caráter.
32
Esses estudos se encontram descritos de forma mais sintética em LOWEN, Alexander. Bioenergética. São
Paulo: Summus, 1975/1982. Pode-se encontrar também a análise mais minuciosa de como os diversos tipos
43
Todos nós vamos criando defesas para enfrentar as dificuldades e frustrações que
surgem. Os pais ou seus substitutos são considerados pela criança a fonte primeira de
prazer e ela os procura para preencher suas necessidades de alimentação, contato e
estimulação sensorial. Entretanto, as privações emocionais e as frustrações são comuns em
nossa cultura, em que o crescimento é acompanhado de punições e ameaças. O que seria
fonte de prazer se associa à dor. Observa Lowen: “a promessa de prazer evoca um impulso
para fora do organismo em direção a sua fonte, enquanto a ameaça da dor força o
organismo a sufocar este impulso, criando um estado de ansiedade” (1975/1982, p. 118).
Quanto mais cedo houver surgido a ansiedade na vida de uma pessoa, mais
profundamente as defesas serão estruturadas. Da mesma forma, a intensidade da dor tem
uma relação direta com a determinação da posição defensiva. “Esta seqüência: busca do
prazer ___ privação, frustração ou punição___ ansiedade e, depois, ___ defesa, é um
esquema geral para explicar todos os problemas da personalidade” (Idem, p. 119). Assim,
mais cedo ou mais tarde, as defesas vão sendo ativadas para diminuir a ansiedade, mas,
como já fora salientado por Reich, a intensidade da vida e a vitalidade do corpo também
diminuem.
Lowen esclarece:
Segundo a bioenergética, os diversos tipos de defesa são reunidos sob o título de
“estrutura de caráter”. Caráter é definido como um padrão fixo de
comportamento, como o modo típico de uma pessoa conduzir sua busca pelo
prazer. O caráter estrutura-se a nível corporal na forma de tensões musculares em
geral inconscientes, e crônicas, as quais bloqueiam ou limitam os impulsos em
seu trajeto até o objeto ou fonte. O caráter é também uma atitude psíquica que se
escora num sistema de negações, de racionalizações e de projeções, voltada ainda
para a concretização de um ego ideal que confirme seu valor (1975/1982, p. 119-
120).
A imagem que criamos do mundo, da realidade nem sempre corresponde ao real.
Ela está impregnada por valores e mensagens que recebemos durante nossa infância, da
de caráter se tornam estruturados no corpo, através da interação da pessoa com sua situação familiar em
LOWEN, Alexander. O corpo em terapia. São Paulo: Summus, 1958/1977.
44
nossa família mais do que de nossa vida adulta e social. Podemos ter aprendido e
introjetado que pedir ajuda é sinal de fraqueza, que chorar é prova de covardia, e não nos
permitir aceitar os fracassos como naturais e lutar desesperadamente para obter o sucesso a
qualquer custo, abrindo mão de nossas necessidades básicas.
Para que se compreenda a formação do caráter, é fundamental não perder de vista o
processo dialético ativo que envolve ego e corpo. O corpo é moldado através do controle
exercido pelo ego sobre a musculatura voluntária. Por exemplo, se chorar provoca em
nossos pais reações violentas durante a infância, podemos suprimir o choro contraindo a
garganta, prendendo a respiração e enrijecendo a barriga. Inicialmente, essa contenção é
voluntária para nos livrarmos de mais conflitos e dores. Entretanto, como observa Lowen,
a contração consciente e voluntária demanda um investimento de energia que não
pode ser mantido por tempo indeterminado. Se é necessário inibir os sentimentos
indefinidamente, dado que exprimi-los é algo inaceitável pelo mundo da criança,
o ego abandona o controle da situação sobre o ato proibido e retira a energia do
impulso. A retenção do impulso passa a ser inconsciente e os músculos devem
permanecer contraídos pela falta de energia necessária a sua expansão e
descontração. A energia liberada por esse mecanismo pode, a seguir, ser
investida em outros atos que sejam aceitáveis e é este processo que dá
nascimento à imagem do ego (1975/1982, p. 125-126).
Como resultado dessa rendição, dois aspectos devem ser observados. O primeiro é
que a parte da musculatura que teve a energia suprimida entra em contração crônica ou
espasticidade, impossibilitando que o sentimento inibido se expresse. Isso permite que a
pessoa não tenha consciência desse desejo inibido, embora o impulso não desapareça,
apenas se oculta de forma a não incomodar a consciência. Chegamos a considerar como
nossa a idéia de que chorar é inconveniente. O segundo aspecto é que as tensões
musculares crônicas que se criaram impedem uma respiração plena, diminuindo o nível de
energia do organismo. A compreensão desse mecanismo é importante para que se possa
compreender a formação das defesas de caráter e o quanto as contrações que se cronificam
interferem na nossa relação com nosso mundo e na possibilidade de nos expressarmos.
45
Lowen classificou as estruturas de caráter em cinco tipos básicos: esquizóide, oral,
psicopata, masoquista e rígido. Cada um deles apresenta um padrão próprio de defesas
tanto a nível psicológico quanto muscular que o diferencia dos demais. Será traçado um
pequeno esboço de cada tipo para que se percebam as relações que se estabelecem entre a
situação vivida e a formação do caráter
33
. Na verdade, os tipos de caráter apresentam uma
grande complexidade que não é minha intenção aprofundar. Por outro lado, é importante
frisar, como observa Lowen, que “esta classificação não abrange pessoas, mas sim
posições de defesa. Admitimos que ninguém é um tipo puro e que qualquer elemento
dentro de nossa cultura combina, em graus variados dentro de sua personalidade, algumas
ou todas as posições defensivas” (1975/1982, p. 132).
a) estrutura esquizóide
Evidencia-se um processo de rejeição e hostilidade no início da vida da pessoa, o
que gerou medo e insegurança. A conduta não-emocional e o retraimento assim como as
crises de raiva são aspectos típicos. Considerando-se essa história de vida e os sentimentos
gerados na criança de terror e fúria assassina, todos os sentimentos foram reprimidos como
forma de autodefesa. Assim, “a criança não tem outra alternativa senão dissociar-se da
realidade (intensa vida de fantasia) e de seu corpo (inteligência abstrata) a fim de
sobreviver” (1975/1982, p. 136).
A pessoa esquizóide tem um senso diminuído de si mesma, seu ego se mostra
enfraquecido, assim como o contato com seu corpo e seus sentimentos. Sua energia se
distancia da periferia corporal, ou seja, longe dos pontos de conexão com o mundo: rosto,
mãos, genitais e pés. A energia fica bloqueada no centro do corpo. Pode-se dizer que se
cria uma estrutura muito compartimentada. Ele funciona muito na cabeça, por isso,
costuma ser criativo. Mas tem dificuldade de expressar isso. É uma pessoa muito ausente
energeticamente, pois, a energia fica concentrada no interior, dificultando os
relacionamentos.
Observa Lowen que “a defesa consiste em um padrão de tensões musculares que
mantém a personalidade unida, através de um impedimento sobre as estruturas periféricas
33
Foi utilizado para esta análise, além da obra de Lowen, o material didático do Ano Básico (1º Ano) do
Curso de Formação em Terapia de Integração Psicocorporal com duração de três anos, de autoria da
psicóloga Telma Nadja da Silveira Lélis, que também ministra o curso.
46
para que não se encham de sangue ou de energia. (...) A defesa, então, é o problema”
(1975/1982, p. 133).
Fisicamente, de modo geral, o corpo é estreito e contraído. A maior tensão se
localiza na base craniana, nos ombros, na pélvis e no diafragma. A contratura
diafragmática é tão severa, que tende a criar uma cisão do corpo em duas partes, que
apresentam uma dissociação marcante com freqüência.
Como a pessoa esquizóide não se identifica com o próprio corpo, falta-lhe um senso
mais adequado de si mesma, o que provoca dificuldade de conexão e integração consigo
mesma e com o outro. Os relacionamentos íntimos e afetuosos são, de modo geral,
evitados, até pela falta de energia nas estruturas periféricas de contato. O esquizóide sente
as pressões externas de forma mais intensa devido a um limite precário em torno do ego,
forçando a pessoa a se abrigar em suas autodefesas.
b) estrutura oral
Essa estrutura marca a ausência de uma figura maternal acolhedora por alguma
razão. Podem ter ocorrido experiências frustrantes no início da vida, na busca de contato,
apoio e acolhimento com pais ou irmãos que não foram obtidos, gerando amargura como
uma marca da personalidade. Episódios de depressão no final da infância e início da
adolescência são característicos.
O caráter oral mantém traços típicos da primeira infância que denotam fragilidade,
como a tendência de depender do outro, agressividade escassa, necessidade interna de ser
cuidado e carregado. Pode ocorrer de se manifestar, nessa estrutura, uma aparente
independência exagerada que, no entanto, em situações de tensão, não se sustenta.
Enquanto a experiência básica do caráter esquizóide é a rejeição, a do oral é a carência
afetiva.
O oral tem pouca carga, porque tem pouco tônus muscular. A energia se distribui,
mas com pouca excitação, fraca. Tem tendência para a depressão, até pela falta da
capacidade de reter a energia. A falta de energia é mais evidente na parte inferior do corpo,
tendo o nível de excitação sexual reduzido. Os meios de contato com o meio ambiente
apresentam uma carga energética menor do que a necessária.
47
O corpo tende a ser esguio, embora não necessariamente magro. A falta de
desenvolvimento se evidencia mais nos braços e pernas, estas como se nem pudessem
sustentar o corpo convenientemente. A rigidez dos joelhos é uma tentativa de dar apoio a
essa sustentação frágil. A respiração é superficial devido ao baixo nível de energia no
corpo, mas, em contrapartida, o baixo nível de energia não permite que a respiração se
aprofunde.
c) estrutura psicopata
A estrutura psicopata é bastante complexa. Procurei evidenciar, devido a meu
objetivo neste trabalho, apenas os pontos mais significativos.
“O mais importante dos fatores etiológicos desta condição é a presença de um pai
sexualmente sedutor. A sedução é encoberta e realizada para satisfazer às necessidades
narcisistas do mesmo, tendo por objetivo vincular a criança ao pai (ou mãe) sedutor(a)”
(Lowen, 1975/1982, p. 142). Quem seduz é sempre alguém que rejeita a criança, no
sentido de que não lhe satisfaz as necessidades de apoio e contato físico. Essa falta de
preenchimento das necessidades básicas da criança é o elemento causador do traço oral
presente nesta estrutura de caráter.
Esse relacionamento com base na sedução cria um triângulo, em que a criança
desafia o genitor do mesmo sexo, estabelecendo-se uma barreira para a identificação com
este e, ao mesmo tempo, aumentando a identificação com o genitor sedutor. Esta estrutura
apresenta, ainda, um traço masoquista, resultante da submissão ao pai ou mãe sedutor(a).
A pessoa de caráter psicopata nega seus sentimentos, diferentemente do esquizóide
que se dissocia deles. Diz Lowen:
Na personalidade psicopática, ou ego, ou mente, volta-se contra o corpo e seus
sentimentos, principalmente os de natureza sexual. Este é o motivo pelo qual o
termo “psicopatologia” veio a se constituir. A função normal do ego é dar apoio
às tentativas do corpo de encontrar prazer e não de subvertê-las a favor da
imagem do ego. Em todos os caracteres psicopáticos, há um grande acúmulo de
energia na própria imagem. Um outro aspecto é sua motivação de poder e a
necessidade de dominar e controlar (Idem, p. 138).
48
A estrutura psicopata apresenta mais energia na parte de cima do corpo e menos
embaixo. A estrutura apresenta uma visão de pirâmide invertida, falta-lhe base. Na cabeça,
se concentra uma quantidade de energia acima do normal devido à “existência de uma
hiperexcitação da capacidade mental: daí resulta uma contínua atenção aos meios de
conseguir controlar e dominar as situações”. O olhar é atento e desconfiado, mas se
fecham para as relações com o outro. “A necessidade de controle dirige-se também contra
si mesmo. A cabeça fica muito erguida (não é possível perder a cabeça) mas, por sua vez,
mantém o corpo rijo nos limites do se controle” (Lowen, 1975/1982, p. 139-140).
Muita tensão na nuca, energia muito concentrada na cabeça e no peito, diafragma
contraído, causando dificuldade de expirar e, naturalmente, uma respiração superficial,
assim como a dificuldade da descida da energia para a parte inferior do corpo. Fica muito
no ego, “cheio de si”, daí as dificuldades de aceitar perdas e insucessos. Vive muito na
imagem (ego), não entrando em contato consigo mesmo (self).
d) estrutura masoquista
Essa estrutura é resultante de uma família em que houve amor e aceitação, mas,
também, uma repressão rigorosa. A mãe sacrifica-se e é dominadora, enquanto o pai é
passivo e submisso. A criança acaba por ser sufocada e levada a se sentir culpada por
quaisquer tentativas de se libertar dessa superproteção e de assumir suas atitudes se não
condisserem com as expectativas maternas. As tentativas de reação como as birras foram
todas oprimidas e acabaram por ser reprimidas pela criança. A criança vê-se sem saída.
A pessoa com essa estrutura de caráter sofre de fato, uma vez que se sente
incapacitada para mudar a situação. Sofre, se queixa e permanece submisso. A tendência
predominante dessa estrutura é a submissão.
Como afirma Lowen, embora a pessoa de caráter masoquista se mostre submissa
externamente, internamente ocorre o contrário:
No nível emocional mais profundo, a pessoa acolhe sentimentos intensos de
despeito, de negatividade, de hostilidade e superioridade. Contudo estes
sentimentos estão fortemente aquém dos ataques de medo, que explodiria num
violento comportamento social. O medo de explodir é contraposto a um padrão
muscular de contenção. Músculos densos e poderosos restringem qualquer
49
asserção direta de si, permitindo somente as queixas, os lamentos (1975/1982,
p.143).
A estrutura masoquista apresenta um alto nível energético, porque recebeu mais do
que lhe seria necessário. Mas não consegue se expressar, é muito contido. Tem uma
estrutura corporal forte, densa, mas pouca carga na periferia, devido a sua dificuldade de
expressão. Os impulsos ascendentes e descendentes são comprimidos no pescoço e na
cintura, gerando uma forte contenção interna e trazendo muita ansiedade. A falta de
movimento da energia comprime a estrutura corporal, o corpo típico deste caráter é curto e
grosso, o pescoço é atarracado e a cintura é mais curta e mais grossa também.
A agressividade e a auto-afirmação são bastante reduzidas, em seu lugar se
expressam os lamentos. A estagnação da energia traz um sentimento de estar aprisionado,
perdendo-se a capacidade do movimento livre e expressivo.
e) estrutura rígida
A história familiar dessa estrutura não gerou situações de traumas severos que
desencadeassem defesas mais complexas. O trauma, neste caso, se refere a uma frustração
ocorrida na busca de uma satisfação erótica, frustração esta relacionada à proibição da
masturbação na infância ou ao pai do sexo oposto. Para a criança, a reprovação de suas
buscas de prazer erótico e sexual é uma traição ao seu anseio de amor.
A pessoa rígida tem boa carga energética, mas apresenta rigidez em todo o corpo.
Podem-se observar vários graus de rigidez, apresentando-se uma personalidade ativa e
vibrante quando a contenção é moderada. O corpo mostra-se proporcional e harmonizado
entre suas partes. É um tipo que tem o ego rigidamente fortalecido, o que dificulta o
contato com seus aspectos mais sensíveis. Apresenta uma cisão entre sexualidade e afeto.
As pessoas com esta estrutura caracterológica costumam ser competitivos,
ambiciosos, agressivos e ligados aos prazeres materiais. Ser passivo é percebido como
vulnerabilidade e teme que a submissão acarrete a perda de sua liberdade.
Lowen esclarece que a denominação “caráter rígido” descreve, na bioenergética, o
que é comum a várias personalidades que receberam denominações diferenciadas,
50
incluindo os tipos fálicos, narcisistas (masculinos) e o tipo vitoriano da mulher histérica,
descrito por Reich.
Julgo significativo pontuar a importância, que não costuma ser considerada, da
influência das distorções da conduta familiar legitimadas em nossa cultura e a dificuldade
de lidar com os inúmeros bloqueios que cada um de nós possui e dos quais, geralmente,
não temos qualquer consciência. Ter conhecimento da existência desses padrões é
importante para entender as dificuldades com que nos deparamos no processo
educacional, e para compreender as resistências com que nos confrontamos nas tentativas
de quebrar modelos estabelecidos, assim como ter maior clareza da necessidade de se
buscar possibilidades de lidar com essas dificuldades.
C) Graciosidade, auto-expressão e espiritualidade: o movimento da vida
O trabalho de Lowen se apóia em três focos que são constantemente retomados em
sua vasta obra: a autopercepção, o entrar em contato com as próprias emoções e sensações;
a auto-expressão, a possibilidade de desenvolver a capacidade de expressar sentimentos
através de palavras e movimentos; e a integração desses dois aspectos, possibilitando uma
maior posse de si.
Lowen, em seu livro Prazer, uma abordagem criativa da vida, analisa a
significância de sentir, pois, o que uma pessoa sente de fato é o seu corpo. Se o corpo não
reage ao ambiente, nada será sentido. A autopercepção, uma função do sentir, permite que
saibamos quem somos e como o que vem de fora nos toca. Através da autopercepção
entramos em contato conosco. O autor analisa a necessidade do ego se ancorar no corpo,
de sermos capazes de nos ver da forma como nos sentimos. Segundo ele,
sem essa correspondência há uma perturbação no nosso sentido de identidade.
Ficamos confusos sobre quem somos. A mente consciente é tentada a se
identificar com a imagem e a rejeitar a realidade do corpo. Essa dissociação entre
ego e corpo acarreta uma vida irreal. A pessoa torna-se obcecada por sua
imagem, preocupada com sua posição e entregue à luta pelo poder para aumentar
51
seu status. O prazer e a criatividade desaparecem no fundo de sua vida (Lowen,
1970/1984, p. 104).
Como Reich, Lowen considera a interferência da sociedade na formação do caráter.
A busca desenfreada de poder, a necessidade de se moldar aos padrões sociais, o desejo de
adquirir status são formas de afastar o ser humano de si mesmo e das relações mais
autênticas.
Em Medo da Vida, Lowen questiona se o destino do homem moderno é ser
neurótico e viver o conflito interno que trava consigo mesmo, quando a mente, a
racionalidade luta para manter o controle e o domínio sobre os sentimentos, as emoções, a
sensibilidade. Compreender a formação das neuroses e os conflitos internos que
vivenciamos significa, como Reich já apontara, observar em que contexto e sob que
condições se dá a formação do ser humano. Significa também compreender que corpo e
psique são afetados na mesma medida e que não se pode ter uma visão mecanicista da
vida:
nenhum organismo vivo é uma máquina. Suas atividades básicas não se
desenvolvem mecanicamente sendo, sim, expressões do seu ser. Uma pessoa se
expressa em suas ações e movimentos e, quando sua auto-expressão é livre e
apropriada à realidade da sua situação, experimentará uma sensação de
satisfação e prazer produzida pela descarga da energia
34
(Lowen, 1975/1982, p.
43).
Lowen (1975/1982) aponta para a dissociação mente-corpo que se manifesta no
processo educacional, na dissociação da educação “mental” em contraste com a educação
física. Embora, possamos ver hoje um movimento crescente e significativo por parte de
alguns professores de educação física, como já apontava Lowen em 1975, ainda estamos
longe de um trabalho que una de fato essas instâncias. Tal dissociação gera dificuldades de
aprendizagem, pois, a experiência se impregnará de mais ou menos vida, dependendo da
maior ou menor vivacidade do corpo. “Quando fatores do mundo externo afetam o corpo, o
indivíduo tem condição de senti-los, mas o que sente é o efeito deles em seu corpo” (p. 54).
Assim, podemos dizer que aquilo que é sentido é in-corpo-rado. Lowen, afirma: “o
34
Grifos pessoais.
52
conhecimento se torna compreensão quando aliado ao sentimento. Apenas uma profunda
compreensão, aliada a um forte sentimento, é capaz de modificar padrões estruturados de
comportamento” (Idem, p. 54).
Segundo Lowen, “a compreensão difunde-se pelos tecidos do corpo, o qual sente e
responde com inteligência ao meio ambiente natural” (1980/1989, p. 243). Acrescenta que
essas impressões sensoriais têm um significado que é apreendido pelas mentes através da
história evolutiva de sua espécie. Sob esta visão, entrar em contato com nosso corpo, com
nossas percepções, nos ajuda a nos conhecer um pouco mais. O que nos estimula, o que
nos causa medo, o que nos traz bem-estar, quais são nossos limites e nossas possibilidades.
O conhecimento “envolve a aquisição consciente de informações, o uso da
linguagem e de outros símbolos. A compreensão se relaciona a processos sensíveis do
corpo, o conhecimento diz respeito aos processos de pensamento, da mente” (Idem, p.
246). Podemos exemplificar dizendo que o bebê compreende o que é mamar. Mais tarde,
ele poderá adquirir o conhecimento do processo hormonal que gera o leite, de sua
importância para a saúde do bebê, por exemplo. Diz Lowen:
O conhecimento é função do ego, que, à medida em que se desenvolve, acabará
por adotar uma posição objetiva e superior em relação ao corpo. Seria muito bom
se nosso conhecimento aumentasse na proporção em que nossa compreensão se
aprofundasse, mas infelizmente isso só acontece de raro em raro. Em geral, o que
pensamos que conhecemos contradiz nossa compreensão e, no conflito entre
ambas as informações, nossa tendência é confiarmos maciçamente no
conhecimento, negando nossa compreensão (1989, p. 244).
Um exemplo disso, como afirma o autor, é que compreendemos a importância da
paz interior, do prazer para nossa integridade, mas não conhecemos assim, pois, para obter
poder, tão valorizado em nosso mundo, sacrificamos tudo isso. Para obter dinheiro e
sucesso, símbolos do poder, abrimos mão do que nos é essencial.
A síntese entre o conflito que se estabelece entre o conhecimento e a compreensão
seria a sabedoria que é, segundo Lowen,
53
a percepção de que o conhecimento não fundamentado em compreensão é
destituído de significado, pois não tem vinculação com a totalidade. Por outro
lado, a compreensão sem conhecimento é impotente, pois falta-lhe a informação
factual necessária ao controle de uma situação ou para efetivarmos uma mudança.
(...) Sabedoria é perceber que a vida é uma viagem, cujo significado se encontra
no próprio percurso e não em seu ponto de chegada (1980/1989, p. 246).
Lowen, em seu livro Alegria, chama a atenção para a tendência em nossa cultura
para a dissociação mente e corpo, o que gera muitas ilusões, defesas do ego contra a
realidade. A saúde emocional exige que não nos deixemos envolver pelas ilusões, que
embora possam nos poupar da dor de uma realidade que nos amedronta, nos tornam
prisioneiros da irrealidade e não permitem que nos apossemos de nós mesmos. “Saúde
emocional é a capacidade de aceitar a realidade e de não fugir dela”, mas para isso temos
que estar ancorados em nosso corpo. “Nossa realidade básica é o nosso corpo. Nosso self
não é uma imagem em nosso cérebro, mas um organismo real, vivo, pulsante. Para nos
conhecermos temos que sentir nosso corpo. A perda da sensibilidade em qualquer parte do
corpo é a perda de parte do self” (Lowen, 1995/1997, p. 29).
Outro aspecto significativo encontrado em Lowen, tendo em vista a relação corpo-
psique é a espiritualidade. Lowen pontua que não é necessário apelar para o misticismo
para que se compreenda a verdadeira natureza da espiritualidade do corpo, essa
compreensão pode partir de uma perspectiva energética. Ele define espírito, em seu livro
Bioenergética, como “a força vital do organismo manifestada na auto-expressão do
indivíduo” (1975/1982, p. 57).
“A espiritualidade de alguém não é apenas uma função de sua mente, mas de todo
seu corpo. O sentimento de espiritualidade como qualquer outro sentimento, é um
fenômeno corporal. A idéia da espiritualidade é um fenômeno mental” (Lowen,
1972/1983, p. 209). A fé para ele é a própria expressão da força vital em cada um, que
também se expressa a nível corporal, diferentemente das crenças, um fenômeno mental,
relacionadas a padrões adquiridos ao longo da formação por cada pessoa em um
determinado contexto.
Não há como negar o corpo em nome do espírito; a idéia de que o corpo é um mero
objeto habitado pelo espírito como força viva que o usa para seus próprios fins é
inconcebível para Lowen. Em A espiritualidade do corpo, aprofunda sua forma de
54
compreender a manifestação do espírito, deixando claro que não atrela essa compreensão a
uma visão dogmática:
Nós temos sentimentos, coisa que a máquina não tem; nós nos movemos
espontaneamente, o que nenhuma máquina é capaz de fazer; e estamos
profundamente ligados aos outros organismos e à natureza. Nossa espiritualidade
deriva desse senso de união com uma força ou ordem superior. Pouco importa o
nome que damos a ela, ou se a deixamos sem nome... (1990/1991, p. 15).
Um conceito importante que Lowen nos traz é o da graciosidade, que mantém uma
relação estreita com a capacidade de auto-expressão e a espiritualidade. Em Prazer, ele a
define como a manifestação física da associação do excitamento e o fluxo de sentimentos
com o prazer. “A graça é a beleza dos movimentos e complementa a beleza das formas
num organismo saudável” (1970/1984, p. 135). A pessoa dotada de graciosidade é aberta,
calorosa e comunicativa, porque seus sentimentos podem fluir uma vez que não
desenvolveu defesas neuróticas contra a vida. “Possui mais energia e, portanto mais
sentimento. Comunica, sem esforço, prazer aos outros, pois cada movimento de seu corpo
é uma fonte de prazer para si mesma e para os demais” (Idem, p.136).
Lowen considera que a atividade vibratória natural do corpo, que dá sustentação
aos movimentos pulsantes e rítmicos involuntários como a respiração, circulação e
movimentos peristálticos dos intestinos, é manifestação do espírito vivo:
Quando o espírito de uma pessoa é fraco, o sentimento é fraco. Espíritos fortes
refletem-se em sentimentos fortes. É o espírito em nós que nos mobiliza para
amar, chorar, dançar e cantar. (...) O espírito de uma pessoa manifesta-se em sua
vivacidade, no brilho de seus olhos, na ressonância de sua voz e na desenvoltura
e graciosidade de seus movimentos. Essas qualidades estão relacionadas com um
alto nível de energia no corpo, e dele decorrem (1995/1997, p. 231).
A sexualidade não se dissocia da espiritualidade se o corpo se apresenta integrado.
A sexualidade humana é expressão da espiritualidade enquanto ato de amor, e a
espiritualidade “tem um sabor telúrico”. Se há integração do fluxo energético não se
apresentará uma pessoa espiritual em oposição a uma sexual. Ela não será espiritual no
55
domingo de manhã e sexual à noite. Não se trata de uma pessoa cuja mente mantenha
domínio sobre o corpo, nem de um corpo que não tenha mente. Há um fluxo energético
vertical que se integra, que cria uma relação de continuidade e não de ruptura.
Lowen afirma, ainda, que a sensação de continuidade se dá também em um fluxo
horizontal, que nos permite manter a conexão energética e metabólica com todas as coisas
vivas da Terra. “Sentir essa sensação de estar ligado e agir de acordo com isso é a marca
do homem de fé, um homem que tem ‘fé na vida’. A fé de alguém é tão forte quanto sua
vida porque é uma expressão da força vital dentro da pessoa” (1980/1989, p. 220). A fé é
a expressão de sua vitalidade intrínseca como ser humano, assim como sua vitalidade é
uma medida de sua fé na vida. Ambas dependem da operação de processos biológicos
dentro do organismo” (Idem, p. 140).
É a fé, na ordem dos processos da vida, o que vai possibilitar que a pessoa se
entregue e se integre a suas atividades do dia-a-dia, que veja significado na vida, naquilo
que realiza. E as pessoas dotadas de fé se distinguem por uma qualidade que pode ser
facilmente reconhecida: a graciosidade. A pessoa que tem esse atributo “é graciosa em suas
maneiras porque não está presa a seu ego ou a seu intelecto, sua posição ou seu poder. É
um todo com seu corpo e, através de seu corpo, com toda a vida e o universo. Seu espírito
é luminoso e brilha com a chama da vida que há dentro dele” (Lowen, 1980/1989, p. 220).
A vitalidade energética e a espiritualidade presentes em um corpo por onde a
energia pode fluir com maior liberdade darão ao ser humano a capacidade de se unir ao
cosmos e de amar, o que significa se unir aos outros seres humanos e integrar-se em si
mesmo.
As contribuições de Lowen para a Bioexpressão são bastante significativas: a
formulação das estruturas de caráter, que aprisionam, de diversas formas, a
expressividade; a criação dos exercícios bioenergéticos que liberam os bloqueios e
possibilitam a expressividade a partir do grounding, ou seja, a partir do contato com as
realidades básicas de sua existência contato com a terra (possibilidade de estar
ancorado), com o corpo (consciência sensório-perceptiva), com seu psiquismo (senso de si,
de sua história de vida), com sua sexualidade (relação com o prazer, com sua energia
vital); a graciosidade como qualidade do movimento de autodesenvolvimento. Na medida
56
em que as estruturas de caráter se flexibilizam, a expressividade pode se manifestar de
forma mais plena.
2.3. Stanley Keleman e a Psicologia Formativa
A) Stanley Keleman
Embora o trabalho de Stanley Keleman tenha uma herança reicheana, adquirida
através de Alexander Lowen e John Pierrakos, apresenta mudanças e acréscimos
significativos em sua formulação. Traça o desenvolvimento evolutivo do ser humano desde
sua formação intra-uterina e do nascimento até a maturidade, acompanhando as alterações
morfológicas que acontecem simultaneamente às vivências emocionais, a vida vivida se
registrando no corpo. O trecho abaixo pode sintetizar este pensamento:
A anatomia humana é um processo cinético e emocional dinâmico. A anatomia
dá uma identidade, uma forma reconhecível específica e um funcionamento que
tem como base essa forma. O estudo da forma humana revela sua história
genética e emocional. A forma reflete a natureza dos desafios individuais e como
eles afetam o organismo humano (Keleman, 1985/1992, p. 71).
As suas formulações teóricas receberam o nome genérico de Psicologia Formativa,
exatamente tendo em vista que seus estudos traçam uma compreensão de como cada ser
humano, em sua trajetória de existência, constrói sua forma como resultante de um
processo anatômico-emocional, o que implica um processo integrado de corpo e psique. A
psique se desenvolve e ganha sua forma ao mesmo tempo que o corpo; da mesma maneira,
o corpo se desenvolve e ganha sua forma simultaneamente ao desenvolvimento psíquico.
David Boadella (1997)
35
considera que a compreensão do funcionamento corporal
que Keleman apresenta é multidisciplinar devido a inúmeras experiências que foi
35
Este texto não apresenta duas datas uma vez que se encontra em uma compilação onde não consta a data
original dos textos apresentados. Outros textos não terão as duas indicações pelo mesmo motivo, uma vez
57
agregando a seus estudos. Em 1957, torna-se membro do Instituto de Análise
Bioenergética de Alexander Lowen, ali atuando como trainer até 1970. Vai aliando
conhecimentos adquiridos com Alfred Adler, Gerda Boyesen e Mathias Alexander, que
também desenvolviam abordagens corporais, e com Nina Bull sobre a teoria da emoção,
entre outros. Aprofunda a compreensão da tipologia caracterológica, expande o conceito de
couraça de caráter, indo além do conceito de potência orgástica, formulado por Reich,
como objetivo da psicoterapia corporal. Mas seu interesse não se limita aos aspectos da
psicossomática. Envolve-se com uma vertente da psicologia orientada para o
fenomenológico, o existencial, o mitológico e o espiritual. O Centro de Estudos
Energéticos, em Berkeley, dirigido por Keleman desde 1972, é um pólo de
desenvolvimento de estudos, trabalho clínico e atividades interdisciplinares.
B) A constituição psíquico-emocional do ser humano
O ser humano, para Keleman, é um ser que se forma, que se constitui anatômico-
emocionalmente. Regina Favre, na apresentação do livro de Keleman intitulado Anatomia
Emocional, faz um pequeno histórico do autor que mostra a constante busca de novos
conhecimentos e uma visão aberta para o novo. Observa que “sua psicologia formativa e
metodologia somático-emocional repousa solidamente em bases anatômicas e fisiológicas,
bem como em uma compreensão psicológica e mitológica. Seu trabalho poderia ser
chamado de filosofia clínica” (Keleman, 1985/1992, p. 10). Nessa obra, o autor apresenta
as articulações entre o somático e o emocional através do estudo minucioso das formas e
de suas funções. Apóia-se em estudos da embriologia, que são extremamente importantes
para a compreensão das relações entre o agir, o pensar e o sentir, ponto fundamental para
esta pesquisa. Sintetiza o autor em sua introdução:
A vida produz formas. Essas formas são parte do processo de organização que dá
corpo às emoções, pensamentos e experiências, fornecendo-lhes uma estrutura.
Essa estrutura, por sua vez, ordena os eventos da existência. As formas
evidenciam o processo de uma história protoplasmática que caminha para uma
forma pessoal humana concepção, desenvolvimento embriológico e estruturas
que utilizei alguns artigos dos volumes 1 e 2 de Energia e Caráter. As indicações completas estão nas
referências bibliográficas.
58
da infância, adolescência e vida adulta. Moléculas, células, organismos, grupos e
colônias são as formas iniciais do movimento da vida. Mais tarde, a forma da
pessoa será moldada pelas experiências externas e internas de nascimento,
crescimento, diferenciação, relacionamentos, acasalamento, reprodução, trabalho,
resolução de problemas e morte. Ao longo de todo esse processo, a forma é
impressa pelos desafios e tensões da existência. A forma humana é marcada pelo
amor e pelas decepções (Keleman, 1985/1992, p. 11).
Keleman considera o corpo como um processo vivo que se auto-organiza e se
autoconstrói com base em padrões pulsáteis existentes no corpo (motilidade) e nas relações
do corpo com o mundo exterior (mobilidade). O organismo está em contínuo movimento
de expansão e contração inerentes à pulsação. Segundo os estudos de embriologia
desenvolvidos por Keleman (1985/1992), o projeto do corpo é a construção de espaços e
estruturas que mantenham a pulsação, possibilitando atividades especializadas. O corpo se
forma através de três camadas. A camada interna, o endoderma, que constitui os órgãos e
vísceras, fornece nutrição e energia básica. Aí se desenvolvem a digestão, a assimilação e a
respiração. A camada intermediária, o mesoderma, constituinte da estrutura muscular de
sustentação e locomoção músculos, ossos, cartilagens, tendões e vasos sangüíneos,
propicia suporte e movimento. A camada externa, o ectoderma, que constitui a pele, o
sistema nervoso e os órgãos dos sentidos, responde pelos processos de comunicação. Esta
camada mantém contato com o meio ambiente, permitindo informação, proteção e o
estabelecimento de limites entre o mundo externo e o interno. A essas camadas
ectoderma, mesoderma e endoderma, estão associados, respectivamente, o pensamento, o
movimento e o sentimento. Keleman identifica mais um elemento constitutivo do ser
humano, que, diferentemente das camadas anteriores, não é visível. É o fluxo dos
hormônios. Nele, fluidos complexos estimulam ou mantêm comportamentos específicos,
assim como sofrem as interferências dos processos existenciais de cada um de nós.
Existem diferentes graus de pulsação e flexibilidade nas diversas camadas para o
atendimento às variadas experiências corporais e às respostas exigidas pelas situações
externas:
A estrutura humana como tubos e bolsas, camadas e compartimentos, paredes e
espaços, cria um bombeamento: a bomba dos músculos e ossos, a bomba das
vísceras internas e a bomba neuro-hormonal. O bombeamento gera a pressão que
59
organiza os espaços do corpo para manter sua integridade estrutural. Essa pressão
também reflete um espaço interno e gera sentimentos que reconhecemos como
nossos (Keleman, 1985/1992, p. 42).
Os músculos são responsáveis pelo processo geral da vida orgânica, na medida em
que, sendo os responsáveis pelo movimento, dão sustentação à postura, executam as ações
e trazem informações sobre auto-identidade e limites, nos capacitando para papéis sociais e
gestos. Estando ligados a todas as camadas do cérebro e da medula espinhal, do ponto de
vista conceitual, seria possível considerar que o cérebro e os músculos constituem um
único órgão. Vistos dessa maneira, os músculos são como nervos grossos. “O vínculo entre
músculos e cérebro é o responsável pelo desenvolvimento pessoal e social. É parte de um
continuum a serviço da necessidade orgânica de sobrevivência e ação social e individual”.
Os músculos se manifestam diante de experiências que nos afetam. Prontamente, acelera-se
o movimento cardíaco e a musculatura se retesa diante de algo que nos amedronte, por
exemplo. Eles permitem que se estabeleça o contato imediato com a realidade:
“externamente, pela ação do esqueleto, e internamente, pelo aumento ou redução do
batimento cardíaco e da atividade do sistema digestivo” (Keleman, 1985/1992, p. 49).
Todos os músculos se ligam aos ossos e os movimentam. Estes proporcionam
apoio, firmeza e, também, proteção aos órgãos e processos vitais. Constituem bombas
vivas, interligando-se pelas articulações.
A expansão e a contração criam mudanças espaciais nesses espaços. Esse
bombeamento ajuda na circulação dos fluidos espinhais e outros tecidos,
formando um continuum de tecidos com muitos níveis de pressão, de
movimentos rápidos e lentos. A bomba óssea carrega peso, controla velocidade e
dá origem a sensações de compressão e coesão interna (Idem, p. 54).
A circulação sanguínea e a respiração são funções essenciais para o funcionamento
equilibrado do corpo-psique. O coração e sua artéria principal, a aorta, bombeiam fluidos
energizados para todo o organismo. A relação entre o ritmo cardíaco e a respiração é íntima
uma vez que a aorta atravessa o diafragma, acompanhada pelo esôfago e pelo nervo
pneumogástrico. Assim, o coração e a parte superior do diafragma mantêm uma relação
direta. A respiração é uma forma de pulsação - inspirar e expirar, expansão e contração.
60
Seu ritmo varia de acordo com as exigências da vida, revelando uma atividade somática e
emocional.
Respirar, segundo Keleman, é re-espiritualizar e vivificar. Em outro texto, o autor
frisa que falar em espiritualidade significa considerar a “progressão biológica energética do
animal específico homem”. Nosso processo de evolução e crescimento se dá na medida em
que vamos nos ancorando, nos tornando mais fincados na realidade de nossa verticalidade
(Keleman, 1997, p. 100). Respirar profundamente é aumentar nossa vitalidade e nossa
consciência corporal, nos tornar mais aptos para uma vida mais plena. Uma respiração
profunda pode trazer maior equilíbrio interno, por outro lado, uma respiração incompleta,
superficial pode dar origem a sentimentos de medo, impotência, inadequação. Afirma
Keleman:
O corpo inteiro é um tubo que pulsa em ondas de expansão e contração na
respiração. Se este tubo não for flexível, com um amplo espectro de motilidade
36
,
ficamos limitados tanto em termos de ações que podemos perseguir quanto dos
sentimentos que permitimos que emerjam. A riqueza de nosso pensamento e de
nossa imaginação é afetada. Se os músculos não recebem sangue ou oxigênio
suficiente, nossa ação torna-se limitada. Se o cérebro sofre falta de oxigenação,
tornamo-nos apáticos, insensíveis, desatentos. Se, por outro lado, o cérebro
recebe oxigênio em demasia, como nos estados de ansiedade, somos impelidos a
agir. Portanto, a pulsação tubária e a respiração são mais do que atos anatômicos.
São estados de espírito (Keleman, 1985/1992, p. 57).
O cérebro, a medula espinhal e os nervos formam um conjunto que se estende para
os músculos e órgãos, criando uma relação estreita entre os músculos e o cérebro. O
sistema nervoso se divide em duas partes: o sistema nervoso central e o sistema nervoso
autônomo. O sistema nervoso central se situa no córtex, parte anterior do cérebro, onde se
dá a discriminação sensorial e muscular. É a área de controle voluntário, onde são
aprendidas as associações, as ações discriminatórias e o planejamento. O sistema nervoso
autônomo, como foi visto anteriormente, não se encontra sob controle da vontade. Tem sua
sede na parte lateral da medula espinhal e ponte medular, também denominado tronco
36
Motilidade, definida por Keleman, “é a expansão e contração, alongamento e encolhimento, distensão e
recolhimento. É um fluxo interno diferente do movimento” (1985/1992, p. 34).
61
espinhal, regulando as vísceras e as funções básicas da vida através dos sistemas simpático
e parassimpático. Complementa Keleman:
A rede do sistema nervoso inclui as estruturas do tecido conjuntivo dérmico, com
todos os seus receptores sensoriais especiais e os músculos estriados externos,
com sua função cinestésica de manter um vínculo com o espaço e o ambiente
externo. Portanto, o exterior neural inclui não apenas a pele e os vasos
sanguíneos, mas também os músculos voluntários. O sistema nervoso e o cérebro
interligam interior e exterior (Idem, p. 64).
O sistema nervoso é o responsável por regular as contrações de músculos e órgãos,
e a distribuição dos hormônios, que, por sua vez, regulam atividades metabólicas. São,
como os denomina Keleman, “anatomia líquida”.
C) A morfologia anatômico-emocional
Keleman analisa como a forma humana se organiza, o quanto as interferências do
meio em que vivemos vão produzindo padrões não só físicos, mas emocionais. Orgulho,
repressão, vergonha, rejeição ou aceitação vão dando forma a essa anatomia que não é,
portanto, apenas uma configuração bioquímica, mas uma morfologia emocional. É
importante percebermos que a forma corporal é a marca de nossa história e qual seu
significado para que tenhamos podido viver essa história. “O corpo tem um projeto. Os
vários tubos e camadas, bolsas e diafragmas agem conjuntamente para dar um sentimento
de unidade ao self (Keleman, 1985/1992, p. 72).
Keleman nos fala de uma sabedoria profunda do processo anatômico. Os
sentimentos gerados pelos processos formativo e organizativo constituem a base dos
programas cerebrais, da consciência, assim como do nosso modo de pensar e sentir,
facilitando ou dificultando a conformação da vida. Compreender a forma de uma pessoa é
compreender que há uma organização de formas herdadas, mas também de formas
adquiridas através de experiências pessoais. Compreender a forma significa compreender
as agressões que o indivíduo sofreu, que formas se organizaram a partir daí e os padrões
que cada forma encerra.
62
Tendo por base suas observações clínicas, Keleman criou uma tipologia observável
dos seres humanos que nos possibilita observar as “agressões à forma”, como ele denomina
os processos constitutivos anatômico-emocionais do ser humano. Sua tipologia inclui o
corpo e a psique ao mesmo tempo. Os tipos são construídos a partir de como a constituição
da forma anátomo-emocional do ser humano se expressa física e psicologicamente mais ou
menos carregada de energia. Ele divide os seres humanos em over-bound
(sobrecarregados) e under-bound (subcarregados) energeticamente, ou seja, há um exagero
na natureza da expansão ou da contração, deixando de existir o movimento contínuo e
natural de expandir e contrair.
O ser humano pode lidar de duas formas com agressões contínuas ou que se
acumulam. Pode resistir ou ceder, “enrijecer” ou “desmoronar”. Um over-bound é aquele
que, ao resistir, se enrijece ou se retesa. O organismo torna-se mais sólido, aumenta a
forma, se fixa na expansão. Um under-bound é aquele que se torna mais “liquefeito”,
apresenta menos forma, menos estrutura e limites, se fixa na contração. No primeiro caso,
“o resultado é motilidade, permeabilidade e vulnerabilidade reduzidas. A excitação se
deprime, as pulsações e a peristalse hibernam”. No segundo caso, “a motilidade e a
permeabilidade aumentam, mas carecem de intensidade. A excitação extravasa. A pulsação
torna-se arrítmica e segue em meandros. Há falta de foco e contenção” (Keleman,
1985/1992, p. 90).
Os seres humanos over-bound foram classificados por ele em denso e rígido e os
under-bound em colapsado e inchado. Será traçada uma pequena definição de cada
estrutura para que se possa compreender melhor a estruturação das formas.
a) estrutura rígida
A rigidez é uma estratégia de sobrevivência que se cria a partir da necessidade que
a criança tem de se fixar em determinados comportamentos, como não expressar sua raiva
e/ou não chorar. Mantém-se em estado de alerta para se defender de seus próprios impulsos
e para afastar os outros ou algo que ameace seu controle. O ataque e a raiva podem ter sido
aprendidos como forma de resolver conflitos. Não lhes faltou o suporte emocional básico
da família. Geralmente, foram desafiadas em um período posterior ao período pré-egóico.
63
O rígido endurece, se empertiga, se retesa e se alonga nas posturas emocionais de
orgulho e desafio. A pessoa rígida desempenha, domina e controla pela
assertividade. Ela pensa com cautela. É rejeitadora. (...) Ela faz com que os
outros pareçam pequenos fazendo-se maior. (...) Esse estado serve para lidar com
sentimentos que vêm de dentro, sentimento de solidão, fraqueza ou necessidade,
contra os quais o rígido se endurece ou retesa. Para isso, ele age contra suas
vísceras, segurando-as ou fazendo-as explodir. (...)
A família rígida exige que a criança controle suas pulsações. A criança
resiste, engajando-se em posturas de poder, hiperatividade, resistência e
voluntarismo. A postura ereta torna-se muito dura. Falta flexibilidade ao rígido e
ele permanece em uma trilha estreita de respostas (Keleman, 1985/1992, p. 118).
Keleman compara a estrutura rígida a um tubo de pasta de dente apertado de baixo
para cima. Essa imagem é interessante para a visualização dessa estrutura. A bolsa da
cabeça intumesce e a do tórax se eleva. O diafragma é puxado para cima, o que dificulta a
expiração mais ampla. Assim, tanto a inspiração quanto a expiração se alteram. Os
músculos abdominais retesados pressionam o diafragma para cima como também os
órgãos internos, inflando o peito e a cabeça. Essa postura pode ser percebida com
facilidade nos militares: peito para fora e barriga para dentro. O rígido enclausura sua
excitação em uma bolsa isolada, separando-a do resto do organismo, o que provoca uma
pulsação irregular, superficial e circunscrita. “Seu corpo parece maior do que é, num
exagero da postura ereta, que visa impressionar ou amedrontar os outros. Uma pessoa
como essa parece explosiva” (Idem, p.120).
Apesar da aparência de força, a estrutura é frágil. A dureza e inflexibilidade da
pessoa rígida exigem dos músculos o trabalho de sustentação e, por isso mesmo, têm medo
permitir que relaxem. Falta-lhe a noção de suporte interno. “A estrutura está congelada na
hiperexpansão, puxada para trás e para cima” (Idem, p.122). Falta-lhe equilíbrio, falta-lhe
contato com sua base.
64
b) estrutura densa
A estrutura densa, como a estrutura rígida, apresenta estágios iniciais de susto
37
com retesamento e enrijecimento do organismo. Entretanto, o tipo denso, diferentemente
do rígido que se expande excessivamente para manter o outro distante, se contrai em
excesso para atingir o mesmo objetivo, se protegendo do outro. Nos dois casos, as
situações geradoras da necessidade de defesa contra o medo e o abandono através do
enrijecimento se dão nos primeiros estágios da infância.
A estrutura densa é criada devido à invasão de que o indivíduo é vítima. “No início,
essa estrutura recebe amor. Mais tarde, quando a independência começa a se desenvolver,
ela é tratada com vergonha e humilhação. O resultado é o recuo. A dinâmica da família
densa envolve incentivo seguido de reprovação” (Keleman, 1985/1992, p. 130).
A estrutura densa é compactada e puxada para dentro, ocasionando a compressão
da postura ereta, a eliminação da capacidade de se alongar, e a pressão dos espaços
internos. Keleman a compara com um tubo de pasta de dente ainda não aberto que é
apertado em cima e embaixo. “Isso é causado pela fusão das bolsas do peito e do abdômen
e pela compressão no pescoço e em torno do ânus. A parede do corpo é tensa, espessada,
encurtada. O tubo todo faz pressão para dentro, de tal modo que o pescoço e a cintura
desaparecem” (Idem, p. 132). Essa estrutura é marcada pela teimosia e pelo desafio. A
pulsação e a peristalse são restritas, os músculos do pescoço e do peito apresentam uma
profunda contração. A inspiração é difícil e a expiração, forçada e artificial. A pressão
interna é intensa e seus sentimentos se mantêm contidos:
O tipo denso afasta, projetando-se no outro. Ele se faz menor encolhendo,
contendo, refreando, não agindo. Parece impotente. Seus sentimentos baseiam-se
em agüentar ou empurrar para baixo. A pessoa densa fica presa no dilema entre
resistir à dependência ou precaver-se da independência total. (...) Para serem
agressivas e assertivas as pessoas densas têm de se espremer ou explodir. Elas
têm problemas para se dar. Sua inclinação é no sentido de retrair-se (Idem, p.
130).
37
O mecanismo do reflexo de susto, como explica Keleman, “tem por objetivo lidar com emergências e
pequenos períodos de alarme. Nos detemos, paramos, nos firmamos, contraímos os músculos, prendemos a
respiração, investigamos e respondendo, esperando o perigo passar ou agindo. Se a ameaça é grave ou se
recusa a desaparecer, o padrão de susto se aprofunda” (Keleman, 1985/1992, p. 76).
65
c) estrutura inchada
A pessoa inchada preocupa-se em ser aquilo que os outros desejam que seja, busca
se dar, tentando ser preenchida pelo outro. Falta-lhe maturidade uma vez que é uma criança
adulta. Essa estrutura é resultante de famílias superprotetoras, manipuladoras, sedutoras,
que não permitem que a criança enfrente desafios, dificuldades, fazendo tudo por ela e
privando-a de sua auto-sustentação. Em contrapartida, os pais exigem que a criança atenda
a suas expectativas, a seus desejos. A criança, por seu lado, busca se libertar dessa
opressão, mas sem ser abandonada, sem perder o amor da família. “Essa estrutura não
consegue se mover livremente porque o ataque que experienciou ocorreu muito cedo, ou
porque seus últimos movimentos em direção à independência foram boicotados”
(Keleman, 1985/1992, p. 140).
A forma da estrutura inchada é semelhante a uma pêra, ela “se enche como um
balão preste a explodir. As forças expansivas pressionam para fora. As paredes afinam. Há
uma força descendente e para fora, à medida que a pressão se acumula de dentro para fora”
(Idem, p. 142). Os músculos afinam; as áreas do peito, cabeça, pescoço e pelve se
estreitam. As costelas inferiores, o abdômen e o diafragma empurram para baixo e para
fora, inflando o abdômen. A coluna lombar e pélvica empurram para frente. A bolsa
abdominal se expande excessivamente, o que pode ser comparado à expansão do peito da
estrutura rígida. Entretanto, a expansão abdominal não tem como base a expansão
muscular, e sim dos líquidos e ar. A integridade das bolsas e diafragmas é alterada e os
contornos corporais naturais se perdem. Devido a essa expansão para a superfície, a
excitação é colocada fora de si, projetando-se para a superfície, ou sendo amortecida. A
excitação tem a finalidade de atrair o outro ou invadi-lo.
A peristalse é bastante reduzida, assim como os fluxos de excitação e a motilidade
dos órgãos, entretanto, o tubo interno tem motilidade exagerada. “A estrutura inchada
contrai sua cabeça para se manter no chão, para não estar fora de controle ou para não se
deixar inundar pelas sensações do self ou da realidade” (Keleman, 1985/1992, p. 147).
Se afastando de seu self, vive mais no outro do que em si mesmo. É invasivo,
manipulador, busca assumir o controle, faz com que os outros precisem dele quando, na
verdade, é quem precisa do outro. Vive mais no outro do que em si mesmo.
66
d) estrutura em colapso
A pessoa em colapso não tem comprometimento com a realidade externa ou com o
outro. A inação é sua maneira de agredir; sexualmente é passiva e exige um estímulo
exagerado. Em situações de estresse, sua tendência é recuar e se isolar. Na verdade, não faz
qualquer esforço para dar nem para receber; aceita o que lhe dão. Essa estrutura é oriunda
de uma família que não sabe se dar, assim, sendo privada de nutrição emocional. À
estrutura tubária falta sustentação, o que pode ser causado por uma carência dietética,
pobreza ou distúrbios genéticos. A estrutura em colapso, como define Keleman,
cede, encolhe, chora. Lida com a raiva, medo, necessidades ou fraqueza,
cedendo. Esse tipo pede mais estrutura. Precisa de uma espinha dorsal. Por lhe
faltar um continente, depende dos outros para obter um, em troca de sua lealdade.
(...) A postura característica é “não vale a pena” e, no entanto, anseia ser salva.
Sua excitação é baixa, mas tem um profundo fogo interno. Concentrou seus lagos
de excitação bem no fundo, num lugar privado (Keleman, 1985/1992, p. 150).
É alguém que não se mostra, “gravita para a periferia”, deseja privacidade e apoio,
evita as exigências, mas, se não houver desencorajamento, é capaz de ir ao encalço de uma
meta com uma “firmeza lânguida”, mas com persistência e determinação.De modo geral, é
gentil, perceptiva, solidária e não age de forma agressiva.
Essa estrutura tem a musculara enfraquecida, parecendo que lhe falta sustentação.
A inspiração exige um grande esforço uma vez que há um achatamento do diafragma e um
afundamento do tórax na expiração. O tubo digestivo sofre uma falência de força, entra em
colapso.
Na estrutura em colapso, a parede muscular, a medula espinhal e os tubos
internos são frágeis. O núcleo interno carece de estrutura e desaba mais sobre si
mesmo do que para fora. Essa estrutura é incapaz de firmar ou de enrijecer.
Quando os tubos não têm suporte, entram em colapso. A pulsação se extingue, à
medida que o organismo recua para um nível inferior de funcionamento. Essa
estrutura mostra fraqueza e medo. (...)
Todas as bolsas em colapso vergam e entram em protrusão descendente. É
como se todos os espaços internos caíssem para dentro. Quando as bolsas entram
67
em colapso, há pouco fluxo e refluxo. (...) Decorrem daí sentimentos de vazio,
desespero, sujeição e submissão (Keleman, 1985/1992, p. 156).
A peristalse é enfraquecida e a onda de excitação se comprime. Os músculos do
pescoço se comprimem para dar sustentação à cabeça, pois os da parede do peito se
fragilizam, o que provoca o seu afundamento. Os ombros vergam como se sustentassem
um grande peso. O organismo não tem as condições necessárias para seu preenchimento.
A compreensão da forma somática não é simples. Existem formas predominantes,
mas não apenas uma dessas formas definidas anteriormente. Cada pessoa apresenta
respostas diferenciadas e próprias às agressões e desafios que vão surgindo ao longo da
vida. Alguns indivíduos podem apresentar com uma predominância rígida, densa, inchada
ou colapsada. Outros apresentam combinações dessas estruturas em diferentes camadas ou
bolsas, ou podem apresentar uma cisão entre a parte superior do corpo e a parte inferior.
Também podem ocorrer formas compensatórias. Keleman esclarece: “uma cabeça
superexcitada pode ser uma compensação para uma pelve subexcitada. Vísceras rígidas
podem compensar músculos fracos. Assim, os indivíduos podem não se encaixar
claramente em uma das quatro categorias, mas suas camadas e bolsas sim” (Keleman,
1985/1992, p. 164).
Keleman pontua que um bom tônus muscular e um maior equilíbrio emocional têm
como base a pulsação regular do organismo, sua capacidade de expansão e contração, ou
dizendo de outra maneira, têm por base um fluxo contínuo da bioenergia, pois, como
sinaliza Reich, o indivíduo saudável é o que não tem estase de energia, embora essa seja a
visão do ideal, naturalmente. Keleman enfatiza, ainda, que não se devem criar conceitos
com base no que seria “normal” ou “ideal”. A estrutura ideal para seres humanos não
existe; a preocupação deve recair sobre o como usar a si mesmo para “funcionar”. As
respostas que cada um dá ao mundo criam sua forma emocional particular, e cada
indivíduo responde de acordo com sua herança emocional genética, com sua forma própria
de interagir com as “demandas” sociais e se auto-organizar.
A forma somática expressa aquilo que vivenciamos, nossas satisfações e nossos
desapontamentos. Nossos sentimentos se baseiam em nossa capacidade para
68
sustentar, organizar e expressar excitação. Quando as correntes pulsáteis se
amortecem, se imobilizam, são superestimuladas ou concentradas, o mesmo
acontece com a expressão do sentimento (Keleman, 1985/1992, p. 117).
Keleman considera, como Reich e Lowen, que a vida do ser humano se constrói no
social, nas inter-relações, que, no corpo, se registram todas as experiências por que
passamos, a vida que vivemos. Afirma que costumava dizer “nós somos os nossos
corpos”, mas que agora opta por dizer “nós somos os nossos somas”. Soma, como
pontua, não significa apenas o corpo com a conotação comum que a ele se dá:
Sermos nossos somas significa reconhecermos que todos somos corpos sociais.
Significa que a vida somos nós; a vida se expressa como estrutura e constrói a si
mesma. Isso significa uma mudança para uma nova subjetividade, uma avaliação
da vida. O mundo não está lá fora somente, mas é o aqui e agora de todos os
nossos corpos. A vida é a capacidade de estender a vida. Nossas experiências
pessoais determinam nossa felicidade. Os ideais não podem fazer isso. (...) Soma
é o ser pensante, soma é o ser-e-estar, juntamente com todos os somas
38
(Keleman, 1997, p. 100-101).
Um aspecto em Keleman que se afina com as discussões da ciência hoje e que
aponta para a necessidade de o ser humano rever conceitos e padrões é a idéia da
descontinuidade e da impermanência. A partir do estudo dos processos organísmicos,
constata que a segurança e a estabilidade são ilusões:
Tudo na natureza aponta para o fato de que não há segurança; tudo na natureza
aponta para a descontinuidade, não para a continuidade e a permanência. O
organismo humano é descontínuo; está pulsando o tempo todo como uma
expressão dos seus processos energéticos. As ondas peristálticas estão fluindo
continuamente nos sistemas vascular e alimentar. O organismo está sempre nesse
estado, senão estaria morto (Idem, p. 101-102).
38
Grifos pessoais.
69
O desejo de estabilidade nos faz negar os padrões mutáveis da existência. Nós os
negamos mantendo um papel assumido que nunca muda, confundindo rigidez com
estabilidade, ou através do excesso de controle que nos inibe o crescimento por meio da
resistência e do medo. É importante que se abra mão da busca da continuidade,
substituindo-a pela função natural do contato. Como o define Keleman,
contato é o processo de emergência dos ritmos pulsatórios, não os nossos papéis
e atitudes habituais. Crescer/vir-a-ser é a capacidade de
compreender
organicamente (no sentido de abranger) em vez de segurar rigidamente (no
sentido de agarrar), permitir-se emergir e imprimir nossas expressões no mundo e
sermos marcados pela sua expressão (1997, p. 102).
Em síntese, o nosso corpo assim como a nossa forma expressam nossa história de
vida. Essa forma não é definitiva: como ela foi constituída anatômico-emocionalmente, ela
pode ser modificada, na busca de uma vida mais saudável. Nossas formas podem ser
reconstruídas por inumeráveis vezes, não necessariamente são definitivas. O importante é
descobrir se seguiremos confirmando e engessando a forma que constituímos até agora ou
se vamos transformá-la através de experiências mais saudáveis.
Keleman contribui para a Bioexpressão com a visão formativa do ser humano.
Compreender que vamos criando formas a partir de nossa história de vida, formas que não
são apenas anatômicas, mas, também, emocionais, e que elas não estão “finalizadas” nos
traz um novo olhar sobre nossa responsabilidade e nossas possibilidades no processo de
(re)estruturação de uma vida mais pulsante, mais viva.
2.4. David Boadella e a Biossíntese
A) David Boadella e as bases da Biossíntese
O nome Biossíntese foi usado, inicialmente, por Francis Mott para descrever o
processo integrativo da maturação do bebê dentro do útero em seus estudos sobre o
desenvolvimento embriológico. Este psicoterapeuta inglês, com base em estudos
70
aprofundados da vida intra-uterina, desenvolveu o método denominado Psicologia
Configuracional. De 1973 em diante, Boadella, como ele próprio narra em seu livro
Correntes da Vida, desenvolveu alguns aspectos do trabalho de Mott, de Frank Lake, outro
psicoterapeuta inglês que também fora influenciado por Mott e do embriólogo alemão Otto
Hartmann, integrando-os à tradição reicheana, especialmente a recebida de Ola Raknes, Od
Havrevold e Paul Ritter, que trabalharam com Reich no desenvolvimento de suas
pesquisas, dando continuidade a seu trabalho.
David Boadella (1985/1992), que considera Reich o pai de todas as terapias atuais
que trabalham com a vida emocional do corpo, iniciou seu trabalho a partir da abordagem
bioenergética reicheana por volta de 1950. Para ele, bioenergética descreve todos os
processos vitais do corpo. Após vinte e cinco anos atuando nesse campo, optou por
denominar de Biossíntese sua abordagem terapêutica, fruto de numerosas contribuições
teóricas
39
. Boadella observa que, embora haja muitas diferenças entre os métodos de
trabalho, a formulação de Keleman sobre o princípio formativo foi uma influência
primordial no desenvolvimento da Biossíntese.
O conceito fundamental da Biossíntese, que tem o significado de “integração da
vida”, tem em sua base a compreensão de que existem, no ser humano, “três correntes
energéticas fundamentais, ou ‘fluxos vitais’, fluindo no corpo e ligadas às camadas
germinativas celulares (ectoderma, endoderma e mesoderma) do óvulo fecundado, a partir
do qual se formam os diversos sistemas orgânicos” (Boadella, 1985/1992, p. 10). A
energia se expressa fluindo através dos músculos, manifestando-se em movimentos;
através do sistema neurossensorial, manifestando-se em pensamentos e imagens; através
dos órgãos do tronco, onde se manifesta o fluxo da vida emocional. Essas três correntes
estariam plenamente integradas se variadas formas de estresse antes do nascimento, na
vida intra-uterina, durante a infância e ao longo da vida, que todos nós vivemos, não
quebrassem esta integração. Com isso, o autor compreende, como os autores anteriores,
que nosso corpo expressa nossa história existencial congelada, onde estão presentes nossas
buscas de equilíbrio e nossos desequilíbrios. Nosso corpo revela nossa fluidez e nossos
bloqueios, construídos ao longo da nossa existência.
39
Para maiores detalhes sobre a evolução da Biossíntese, ler BOADELLA, David. Psicoterapia somática:
suas raízes e tradições. In: KIGNEL, Rubens (org.). Energia e caráter. São Paulo: Summus, vol. 2, 1997.
71
B) Camadas embrionárias e métodos terapêuticos
No processo de reintegração das camadas embrionárias, Boadella propõe que sejam
usados três métodos terapêuticos primários: centring desbloqueio da respiração e dos
centros da emoção; grounding retonificação dos músculos e integração postural; e facing
vinculação e organização da experiência através do contato visual e comunicação verbal.
Cada um deles está relacionado ao funcionamento mais equilibrado dos sistemas orgânicos
que derivam das camadas celulares endoderma, mesoderma e ectoderma
40
.
No centro do corpo, está o tubo gastrointestinal, nossas vísceras. Os pulmões,
embriologicamente, são formados a partir desse tubo. Os órgãos digestivos, o revestimento
do tubo intestinal e os tecidos dos pulmões metabolizam a energia necessária para a
manutenção da vida, podendo a respiração e o sentimento ser consideradas as mais íntimas
e centralizadas das atividades corporais. Observa Boadella que “o nível energético de uma
pessoa depende da mobilização eficiente da energia, e esse metabolismo é principalmente
influenciado pela emoção” (Boadella, 1985/1992, p. 23).
O equilíbrio emocional do organismo é responsabilidade das duas ramificações do
sistema nervoso vegetativo ou autônomo: os sistemas simpático e parassimpático
41
. O
primeiro está associado às sensações de raiva e medo decorrentes das situações de perigo.
O sistema simpático prepara o organismo para enfrentar emergências ou riscos, para
“lutar” ou “fugir”. O outro se associa ao relaxamento sadio e prazeroso ou um entregar-se
ao pesar e à tristeza, pois prepara o organismo para desistir da “luta” ou da “fuga”. Afirma
Boadella:
As duas metades do sistema nervoso enviam ramificações para todos os órgãos
internos do corpo que metabolizam energia. A contração e a expansão dos
pulmões durante a respiração e os movimentos peristálticos do intestino durante a
digestão são respostas aos sinais enviados pelos nervos vegetativos. Esse ritmo
de contração e expansão é um dos ritmos fundamentais da vida. Ele pode ser
40
A definição dessas camadas foi feita no tópico anterior que aborda o trabalho de Stanley Keleman. Alguns
acréscimos serão feitos, mas deve-se considerar que os estudos de embriologia foram fundamentais para as
duas teorias, sendo, portanto, os dados apresentados quanto a estes estudos comuns aos dois autores.
41
As definições básicas das funções desses sistemas encontram-se no item que aborda as teorias de Wilhelm
Reich.
72
encontrado nos organismos unicelulares primitivos, cuja evolução está muito
distante do desenvolvimento de um sistema nervoso central (1985/1992, p. 24).
O centring (centrar), o primeiro método terapêutico primário da Biossíntese, tem
por objetivo restabelecer o equilíbrio entre os dois ramos do sistema nervoso autônomo e o
ritmo do fluxo de energia metabólica, o que significa auxiliar a recuperação do equilíbrio
emocional e respiratório.
O grounding (firmar), segundo método terapêutico proposto por David Boadella,
está vinculado aos bloqueios predominantemente relacionados ao mesoderma, que
constitui nossos meios de movimento: esqueleto e músculos. O sistema cardiovascular e os
sistemas do esqueleto e dos músculos são os responsáveis pelo controle da pressão dos
fluidos corporais e da tensão e relaxamento dos músculos. Cabe ao coração bombear o
sangue por todo o corpo, dando-lhe carga energética que permita a ação. “Os músculos, ao
andar, correr e em quaisquer movimentos empreendidos pelo corpo, descarregam estas
ações, e a ação rítmica desses músculos age como uma ‘bomba das veias’ para ajudar o
retorno do sangue ao coração” (Boadella, 1997, p. 114). Tanto o coração quanto as
camadas musculares lisas são, assim como os outros órgãos internos, governados pelo
sistema nervoso vegetativo ou autônomo, diferentemente do sistema muscular esquelético:
O sistema muscular esquelético, por sua vez, apresenta três formas diferenciadas
de controle: cortical, subcortical e espinhal. O controle cortical é feito através das
principais vias nervosas voluntárias (o sistema piramidal). O controle subcortical
é feito através de um sistema nervoso especial, ligado aos gânglios de base, ao
mesencéfalo e ao cerebelo, o que se chama sistema extrapiramidal. Ele é
responsável pelo equilíbrio, pelo tônus muscular, e pela postura. A terceira forma
de controle reside nos reflexos (Boadella, 1985/1992, p. 24).
O grounding tem por objetivo estabelecer uma relação saudável entre os
movimentos voluntários, semivoluntários e involuntários, e recriar um tônus muscular mais
adequado. Duas situações indicam desequilíbrio do tônus muscular: a hipertonia, em que se
manifesta uma tensão excessiva da musculatura, ou a hipotonia, em que a musculatura
73
apresenta falta de tonicidade, excessiva frouxidão. Estar grounded (firmado) significa
manter um bom tônus muscular nas pernas, sem enrijecer em demasia ou desmoronar.
O ectoderma, por sua vez, forma o tubo mais externo, a pele, os órgãos sensoriais e
todo sistema nervoso centralizado no cérebro. É um sistema que reúne e coordena
informações sobre o mundo. O sistema nervoso governa dois tipos de percepção: a
percepção obtida no sistema muscular (propriocepção) e a percepção obtida nos cinco
órgãos dos sentidos (exterocepção), ou seja, as informações de dentro e de fora do corpo.
“Podemos encarar essa divisão como uma divisão do sistema sensorial. Ela reflete a
organização tripartida do corpo, onde os nervos trazem informações obtidas no endoderma,
no mesoderma e no ectoderma” (Boadella, 1985/1992, p. 25).
O terceiro método primário da Biossíntese é o facing (encarar). Ele se desenvolve
através do contato visual e vocal, e da integração entre sentimento, linguagem e percepção.
O facing está relacionado à qualidade do contato visual, pois, é uma forma de se manifestar
um contato mais profundo, de perceber as expressões emocionais manifestas, de acolhê-
las
42
.
Segundo Boadella, os olhos, ouvidos e tato obtêm as primeiras informações e, a
seguir, o olfato e o paladar. O pensamento mantém uma relação estreita com os três
primeiros canais sensoriais, uma vez que pensamos com padrões visuais, de fala ou de tato.
Desequilíbrios no ectoderma se manifestam como hipersensibilidade ou hiposensibilidade.
No primeiro caso, há um excesso de excitação, um acúmulo energético. Sons estridentes,
um toque no ombro ou um olhar duro são suficientes para causar estresse. Na situação
oposta, há pouca sensibilidade e excitação, muitas informações são bloqueadas: a pessoa
tem ouvidos, mas não ouve; tem olhos, mas não vê.
As três camadas embrionárias formam as três regiões primárias do corpo: cabeça,
espinha e abdômen. Na cabeça se concentram os principais órgãos ectodérmicos,
excetuando-se a pele. Nela estão o cérebro, os olhos, os ouvidos, o nariz, a língua. A
espinha, com suas extensões nos braços, pernas e cabeça, é o centro organizacional dos
principais músculos e da estrutura óssea, ou seja, da camada mesodérmica. Os órgãos
abdominais e os pulmões podem ser considerados o principal reservatório de energia do
endoderma.
42
Mais adiante, retomaremos os conceitos de grounding, centring e facing e a possibilidade de transportá-los
para o pedagógico.
74
A morfologia do corpo pode ser observada a partir da interligação das três regiões
que funcionam como reservatórios de energia cabeça, espinha e abdômen. As três
principais junções do corpo unem essas três regiões, criando pontes por onde a energia flui
nuca, garganta e diafragma, que podem facilitar ou obstruir o fluxo da energia. Esse
fluxo energético diminuído ou interrompido afetará as expressões naturais do pensamento
(ectoderma), sentimento (endoderma) e ação (mesoderma).
A cabeça se liga à espinha pela base do pescoço. Se o pescoço está tenso, contraído,
o fluxo da conexão entre o ectoderma e o mesoderma é interrompido ou comprometido.
Pensamento e ação se dissociam. Quando mais energia se concentra acima do anel de
tensão do pescoço, privilegia-se o pensamento; se a carga maior se concentra abaixo desse
anel, pode ocorrer uma hiperatividade sem um planejamento prévio das ações, ou seja, o
pensamento não ocorre em consonância com a ação. Pode ocorrer uma diminuição de
energia na cabeça em contraste com uma sobrecarga energética do corpo. Nos dois casos,
manifesta-se um desequilíbrio entre o pensamento e a ação. O excesso de energia contida
na cabeça pode ocasionar, em casos extremos, situações de inação, em que o indivíduo
gasta um tempo enorme planejando ações que não ocorrem. Em ambos os casos, o
relaxamento das tensões da área do pescoço permite que a energia flua. No primeiro caso,
quando a energia se concentra na cabeça, dores de cabeça geradas por tensões no pescoço
podem ser aliviadas e os movimentos expressivos podem fluir. No segundo, quando a
energia se concentra abaixo do pescoço, o relaxamento das tensões pode permitir que a
energia flua do corpo para o rosto, os olhos, o cérebro, permitindo uma maior reflexão e,
em decorrência, uma comunicação mais fluente, mais espontânea.
É na garganta que a região ectodérmica se une à região endodérmica, portanto,
onde a cabeça pensamento e o abdômen sentimento, se unem através da expressividade
da voz. “Se a voz é mecânica, a linguagem permanece explicativa. Explicação significa
nivelação. A fala fica desconectada do sentimento. Exploração significa fluência: a
linguagem exploratória integra o pensamento ao sentimento” (Boadella, 1985/1992, p. 64).
A terceira junção primária do corpo apresenta-se entre a espinha e o abdômen:
“entre o eixo mesodérmico da coluna vertebral e a energia endodérmica do tronco. A ponte
é o diafragma, que é a principal bomba respiratória do corpo”. Também regula a respiração
e massageia efetivamente os órgãos internos se estiver livre do aprisionamento provocado
pelas tensões. O diafragma está ligado à espinha, através da vértebra lombar superior.
Quando tenso, “age como uma corda atada à espinha e a mantém retesada, o que quebra a
75
integração entre respiração e movimento” (Idem, p. 65). O autor exemplifica com o
movimento saudável do bebê feliz pra quem chutar é respirar e respirar é chutar.
Também neste caso, podemos considerar dois padrões de ruptura. Em um, a pessoa
apresenta movimentos mecânicos, com pouca emoção e pouca mudança visível na
respiração; no outro, a pessoa apresenta uma respiração hiperativa, geralmente em um
estado de ansiedade, mas não expressa convenientemente em movimento a energia
mobilizada através dessa respiração. Ou seja, o sistema muscular se apresenta pouco ativo
em contraste com o seu ritmo respiratório.
Segundo Boadella (1985/1992), o diafragma se origina embriologicamente no
pescoço, daí tendo se expandido ao longo do desenvolvimento do feto. Pode, assim, ser
considerado a parte inferior do pescoço. Como existe uma conexão nervosa entre o
diafragma e o pescoço, passando o principal nervo frênico que vai para o diafragma pela
coluna vertebral através da quarta vértebra cervical do pescoço, o relaxamento do pescoço e
a mobilização dos tecidos dessa região, geralmente, causam o relaxamento diafragmático.
Boadella (1985/1992) afirma que a mente é o lado externo do corpo. Do ponto de
vista fisiológico isto se confirma pelo fato de que a atividade mental, o pensamento, é uma
função cortical, e o córtex é uma superfície externa uma vez que é formado a partir da
camada embrionária mais superficial, o ectoderma. Do ponto de vista psicológico, a
confirmação tem por base a afirmação de Freud, para quem o núcleo do ego se forma pela
percepção externa e pela consciência, a ele se referindo como um sistema superficial.
Entretanto, considera que o ego é mais do que isso, abrangendo fatores de percepção
interna. Assim, observa:
Parece que outro fator, além da influência do sistema da percepção, trabalha para
a formação do ego e sua diferenciação do id. Do corpo, e sobretudo de sua
superfície, partem percepções externas e internas. O ego é antes de tudo um ego
corporal; não é meramente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a
projeção de uma superfície (Freud, apud Boadella, 1985/1992, p. 138).
A afirmação de Freud é ratificada por Lowen que, tecendo comentários sobre ela,
observa que o ego, tanto física quanto somaticamente, é um fenômeno de superfície. “O
sistema de percepção consciente se encontra na superfície do córtex cerebral. Isso permite
76
que compreendamos a afirmação de Freud de que o ego é uma projeção de uma superfície
numa superfície” (Lowen, apud Boadella, 1985/1992, p. 139).
Boadella argumenta, ainda, que a veracidade de sua afirmação se mostra ainda pelo
fato de que a maior parte das informações contidas em nossa mente vem especialmente dos
olhos e dos ouvidos, receptores do mundo, e que falar é a principal forma de deixarmos
claro, portanto, de organizar, o que temos em nossa mente.
Assim, Boadella considera possível dizer que, se a mente é o lado externo do
corpo, “o corpo é o lado interior da mente. Cada estado de ego reflete uma atitude
corporal, cada expressão de caráter tem uma base psicológica” (Boadella, 1985/1992, p.
140). O corpo fala de coisas que as palavras não podem traduzir. Como mostram Boadella
e os demais autores estudados neste capítulo, muitas vezes, a fala nega ou tenta ocultar o
que o corpo diz. A estrutura corporal registra situações vividas das quais não temos sequer
consciência e as quais o ego procura, por defesa automatizada, encobrir através das
armadilhas do caráter.
A Biossíntese, como proposta terapêutica, busca integrar as camadas endodérmica,
mesodérmica e ectodérmica, através do reequilíbrio da respiração e do centramento das
emoções; do trabalho com o tônus muscular e o enraizamento; do desenvolvimento da
capacidade de trabalhar experiências vividas através da comunicação, percepção e
cognição. Isso constitui seu “fundamento externo”, como afirma Boadella. Há ainda um
“fundamento interno”, que dá sustentação ao externo e expressa a essência ou espírito de
cada pessoa.
C) Espírito e corpo Essência e energia
Boadella considera a existência de um núcleo orgânico que transcende a visão da
fisiologia, onde se encontra a essência do ser humano. Reich falara de cerne biológico ou
estrato mais profundo do ser humano. Keleman e Lowen se referem ao self. Todos eles, na
realidade, perceberam a existência de uma dimensão mais profunda do humano, onde
“habita”, se assim podemos dizer, o espírito, ou, dizendo de outra forma, acessando essa
camada mais interna, entramos em contato com nossa espiritualidade.
77
Observa Boadella: quando falamos em espiritualidade, “não estamos falando em
nenhum sentido místico ou desencarnado. Reich demonstrou como a maioria das religiões
organizadas fala do ideal do espírito, mas mata esse mesmo espírito sempre que brilha nos
olhos de uma criança” (1985/1992, p. 143). Reich se referira ao brilho que considerava
presente em todos os seres humanos, antes de serem obrigados a criar suas couraças como
defesa às exigências antinaturais da sociedade, brilho que expressa um organismo saudável
e auto-regulado, por onde a energia pode fluir livremente
43
.
Boadella acredita ser o espírito a qualidade de cura que é inerente ao ser humano e
que possibilita que nos integremos e manifestemos, na vida diária, qualidades latentes de
nossa essência. É podermos estar integrados ao que fazemos, às pessoas e à cultura com
que convivemos.
A possibilidade de uma transformação mais profunda ocorre quando nossa essência
é tocada, o que pode acontecer de diferentes formas; mas, seja qual for, sempre é
necessário que as couraças sejam flexibilizadas, ou seja, que os bloqueios que se
manifestam no psíquico e no somático simultaneamente, possam se alargar como nós
apertados que, pouco a pouco, se tornam mais frouxos. Boadella, a partir da percepção de
que a essência humana se mostra em uma estrutura mais interna do ser humano, constata
que “assim como a mente é o lado externo do corpo e o corpo é o lado interno da mente, o
corpo é o lado externo da alma e a alma é o lado interno do corpo
44
” (Boadella,
1985/1992, p. 145). Pode-se dizer que a essência é não-física, mas a energia que a alimenta
é física. A cura, que pode ser considerada como integração, pode ser vista como um
processo em que precisamos entrar em contato com nossas fontes de alimentação física,
emocional, mental e espiritual.
Lowen ratifica essa visão: “o que é chamado de vida espiritual é realmente a vida
interna do corpo, opondo-se ao mundo material, que é a vida externa do corpo”
(1980/1989, p. 212). Quando nossa energia se volta demasiadamente para as questões de
ordem externa, como na busca de poder e de ganhos materiais, nos afastamos de nós
mesmos. Por outro lado, se negamos nosso corpo, sufocando necessidades básicas físicas e
43
Reich, embora tenha criticado o misticismo das religiões organizadas durante toda sua vida, apresenta uma
terminologia cristã como metáfora para suas idéias advindas da sociologia, biologia, psiquiatria... Deus, por
exemplo, expressa as leis naturais do processo energético cósmico, do funcionamento da energia orgone.
Esses estudos são encontrados em REICH, Wilhelm. O assassinato de Cristo. São Paulo: Martins Fontes,
1953/1991. Também em REICH, Wilhem. O Éter, Deus e o Diabo. São Paulo: Martins Fontes, 1949/2003.
44
Grifos pessoais.
78
emocionais, também se cria uma cisão. Uma parte não pode ser negada em detrimento de
outra corpo e espírito são aspectos da personalidade que devem ser integrados.
Segundo Boadella (1997), a vida é um equilíbrio entre assimilação, transformação e
eliminação. Essa idéia ultrapassa o plano físico, se adequando a todas as outras instâncias
do ser humano: “precisamos metabolizar as nossas experiências para digeri-las, e beber o
suco a partir delas, enquanto eliminamos os resíduos emocionais e psíquicos que não são
mais úteis” (p. 125). O trabalho espiritual não se desenvolverá plenamente se não
considerarmos todos os aspectos do ser humano. A vida configura-se em polaridades que
não se opõem, mas se complementam: espírito e corpo, essência e energia, exterior e
interior. Ser uma totalidade é cuidar de si, do outro e do planeta.
Findando essa exposição sintética das compreensões de David Boadella, podemos
observar que, juntamente com os outros autores estudados, ele assume que o ser humano
tem uma história pregressa que de algum modo o constitui, mas que essa constituição
expressiva não é definitiva: ela pode ser modificada, recriada a cada instante, sendo
necessário, para isso, cuidados específicos consigo mesmo. Ou seja, a graciosidade e a
fluidez que podem ter sido suprimidas no decorrer da vida podem e devem ser recriadas,
possibilitando a cada um, um viver mais saudável e, pois, mais expressivo da vida.
Boadella traz uma contribuição significativa para a Bioexpressão. Como prática
terapêutica traz os três métodos básicos centring, grounding e facing, relacionados
respectivamente ao endoderma, mesoderma e ectoderma, as três camadas que respondem
pelo sentimento, movimento e pensamento. Estes três métodos serão retomados mais
adiante, uma vez que considero importante sua releitura com um olhar pedagógico, com a
intenção de integrar a expressão emocional, a ação e o pensamento, restaurando o fluxo
energético responsável pela expressividade da vida. Outro aspecto importante para a
Bioexpressão é a integração, buscada por Boadella, dos dois pólos que constituem a vida:
interior e exterior, essência e energia, espírito e corpo.
79
3. Pulsação, carga e fluxo
Sistematizando os pontos básicos obtidos através do estudo desses autores, na
perspectiva de estabelecer as bases teóricas da Bioexpressão, vamos configurar alguns
elementos que se depreendem facilmente da teoria desses autores e nos oferecem pilares
básicos para um trabalho educativo bioexpressivo.
Wilhelm Reich, Alexander Lowen, Stanley Keleman e David Boadella trabalham
com teorias bioenergéticas
45
e mantêm pontos significativos de conexão, entre os quais a
compreensão de que nosso corpo tem uma “sabedoria” própria que podemos perceber ao
constatar seu processo de auto-regulação, todo funcionamento que nele se processa de
forma involuntária, que prescinde de nossa ação ou intenção. Podemos contribuir para que
as funções corporais sejam exercidas de forma mais satisfatória? De alguma forma,
dificultamos o processo de auto-regulação do organismo, interferimos na expressão da
sabedoria do corpo, da natureza? O que permite que a vida se manifeste de fato em nós? O
que impede ou dificulta? Por que existem pessoas com uma força vital que nos
impressiona, ao passo que outras parecem se arrastar pela vida? O que podemos fazer por
nós? Como podemos trabalhar a auto-expressão? Estas são questões que este estudo
pretende averiguar na medida em que são extremamente significativas para o processo
educacional.
Quando trabalhamos com teorias da bioenergia, precisamos ter clareza de alguns
conceitos básicos para sua compreensão. A bioenergia, inerente à nossa condição humana,
exerce funções que mantêm a vida. São elas, pulsação, carga e fluxo. Mais do que permitir
a manutenção da vida, quando essas funções são exercidas de forma mais eficiente, mais
satisfatório será o estado bio-psico-espiritual do ser.
3.1. Pulsação
Tudo no universo funciona através dos processos de expansão e contração. Na
esfera dos seres vivos, esse fenômeno se realiza pela pulsação. A pulsação é o movimento
de expansão e contração de todas as formas de vida, que se inicia no nível celular. Todo o
45
As teorias bioenergéticas têm como um de seus fundamentos a existência da energia vital, denominada por
Reich de orgônio, que está presente em todos os processos corporais e mentais e se expande para além do
corpo físico, interagindo com o ambiente.
80
organismo é um conjunto pulsátil em diferentes intensidades e amplitudes, “é um
continuum de compressão e descompressão, que vai em direção ao mundo e volta para o
self. (...) Expansão e contração são as bombas essenciais da existência” (Keleman, 1992, p.
77).
Os movimentos internos manifestam a motilidade do corpo, que se distingue dos
movimentos voluntários. A motilidade é um fluxo interno, “é a vitalidade do padrão
pulsátil, a força e intensidade das pulsações dos órgãos que dão energia e identidade
pessoal. (...) Os sentimentos e as sensações, provenientes de nosso interior nos dizem: ‘Isso
sou eu’” (Keleman, 1992, p. 42). Nós somos tão mais vivos quanto maior vitalidade
tiverem nossos corpos. Movimentos mecânicos são vazios de vida. A motilidade, ou seja, o
componente involuntário, se faz presente no movimento expressivo. A pulsação produz
sentimentos de alegria, bem-estar, excitação e vitalidade.
3.2. Carga
Para que pulse, um ser humano necessita de possuir carga (força) em equilíbrio;
excesso ou carência de carga dificultam o movimento pulsatório que expressa a vida. A
carga corresponde à quantidade de energia que existe em um organismo, energia esta que é
necessária para a realização de todos os processos da vida movimentos, sentimentos e
pensamentos. Qualquer atividade que realizemos, como falar, trabalhar, escrever, jogar,
cantar, assim como todas as funções do organismo, como o batimento cardíaco, o processo
digestivo, os movimentos dos líquidos do corpo, requerem e utilizam energia.
As duas grandes fontes de energia do organismo advêm da respiração e da
combustão dos alimentos, que não prescinde do oxigênio, uma vez que este é indispensável
ao processo de transformação do alimento em energia a ser utilizada nas necessidades
vitais do organismo. Assim não é difícil perceber a importância da respiração para o
aumento do nível de energia.
O funcionamento efetivo do organismo mantém relação com o seu estado de
vitalidade ou excitabilidade, ou seja, um organismo com mais energia mantém maior nível
de excitação interna, maior capacidade de reagir, de se expressar. Pessoas com um nível
muito baixo de energia têm maior dificuldade de responder satisfatoriamente às exigências
do dia-a-dia, a lidar com as tensões e dificuldades. Isso pode ser observado facilmente em
uma pessoa que esteja convalescendo de uma forte gripe ou que se encontre abatida por
81
uma situação difícil pela qual está passando, casos em que o nível de energia cai
sensivelmente.
O conceito de carga de energia só pode ser compreendido mediante sua relação
com descarga energética. A existência do organismo vivo depende do equilíbrio entre
carga e descarga de energia. Afirma Lowen:
a energia se move para dentro de um organismo na forma de comida, ar ou
estímulo excitante. É descarregada na forma de movimento ou de outras
atividades corporais. Entrada e saída são sempre equilibradas se considerarmos o
crescimento como um aspecto da atividade corporal. Se a entrada de energia for
diminuída, a saída também se reduz. Mas também é verdade que se a saída de
energia for diminuída a entrada se reduzirá espontaneamente (1972/1983, p. 71).
De um modo geral, a quantidade de energia absorvida por uma pessoa se mantém
equilibrada em relação à quantidade de energia que ela pode descarregar em qualquer
atividade. Crianças em idade de crescimento, pessoas em convalescença ou com a
personalidade em desenvolvimento necessitam um maior influxo de energia do que uma
descarga, utilizando a energia extra nesses processos.
Nosso organismo exige energia para seu funcionamento, mas diferentemente de
uma máquina, suas funções básicas são expressões do seu ser e não expressões mecânicas.
A busca do prazer motiva a saída da energia, mas esta também se contrai para evitar a dor.
“Quando está faltando prazer, a motivação para a movimentação diminui
concomitantemente. A saída de energia declina e o nível de energia do organismo diminui”
(Lowen, 1972/1983, p. 71-72).
Como observa Lowen, “não estamos acostumados a pensar na personalidade em
termos de energia, mas a verdade é que ambas não podem existir isoladamente. A
quantidade de energia que um indivíduo possui e como ele a usa irá determinar e refletir
em sua personalidade” (1975/1982, p. 41). O processo da vida, do ponto de vista
bioenergético, pode ser visto como um processo contínuo de carregamentos excitatórios e
descarregamentos com o prazer. Se a capacidade de um organismo vivenciar prazer for
interrompida ou reduzida, os seus impulsos em direção ao exterior são limitados. Assim,
como descreve Lowen,
82
uma pessoa se expressa em suas ações e movimentos e, quando sua auto-
expressão é livre e apropriada à realidade da sua situação, experimentará uma
sensação de satisfação e prazer produzida pela descarga de energia. Esse prazer e
satisfação, por sua vez, estimulam o organismo a aumentar sua atividade
metabólica, que imediatamente se reflete em uma respiração mais profunda e
plena. No estado de satisfação, as atividades rítmicas e involuntárias da vida
funcionam no seu nível ótimo (Lowen, 1975/1982, p. 43).
3.3. Fluxo
O conceito de fluxo se refere ao processo de reações protoplasmáticas de contração
e expansão que se transmitem para todos os órgãos e músculos do corpo, através das duas
ramificações do sistema nervoso autônomo: o sistema simpático e o parassimpático.
Esses impulsos regulam o metabolismo energético do corpo e controlam as
funções básicas, tais como a circulação e o batimento cardíaco, os processos
digestivos, a respiração, a sexualidade e o orgasmo. Numa situação de boa saúde
ou de perfeito funcionamento, todos esses processos ocorrem de maneira ritmada
(Boadella, 1992, p. 16).
A bioenergia flui por todo o organismo através da corrente sanguínea e de outros
fluidos energéticos: a linfa, os fluidos intersticiais e os intracelulares. Quando há uma
baixa carga, o fluxo de energia se torna mais lento, a pulsação diminui e sentimos que há
uma depressão
46
geral do organismo. Ao contrário, quando há aumento da carga, o fluxo é
forte, aumentando a atividade metabólica e estimulando o interesse pela vida. Pode-se
considerar que
a vida emocional de um indivíduo depende da motilidade de seu corpo, que por
sua vez é uma função do fluxo de excitação através dele. Os distúrbios nesse
fluxo ocorrem em forma de bloqueios, que se manifestam em áreas onde a
motilidade do corpo é reduzida. (...) Os termos “bloqueio”, “insensibilidade” e
46
Considere-se aqui depressão no sentido de uma diminuição energética e não em seu sentido clínico.
83
“tensão muscular crônica” se referem ao mesmo fenômeno
47
(Lowen,
1975/1982, p. 47).
A força interna do organismo “é o fluxo constante de impulsos e sentimentos dos
centros vitais do corpo para a periferia. Na verdade, o que se movimenta no corpo é uma
carga energética”. É esta carga energética que ativa os tecidos e músculos, gerando
sensações e sentimentos. “Quando isso resulta em ação, chamamos de um impulso uma
pulsação vinda de dentro” (Lowen, 1972/1983, p. 59).
Boadella (1985/1992) compara o fluxo energético a um rio silencioso do qual,
geralmente, devido ao nosso envolvimento com as questões que nos afligem, não temos
consciência. São correntes de energia responsáveis por uma pele quente e pela tonicidade
saudável dos músculos e tecidos. São responsáveis, enfim, por uma vida mais viva.
Quando falamos do psíquico e do somático, de pensamento, de ação ou de
sentimento, falamos de campos energéticos, de fluxo de energia, de pulsação, de contração
e expansão. Falamos de vida. Vida que pode estar reprimida, contida, amortecida por
tensões crônicas; mas que poderá voltar a pulsar, a se manifestar em si e na relação com o
outro. Em nossa expressão espontânea vivemos a força da vida em nós, o que tem
significado para nós pulsa com maior intensidade. Entrar em contato com nossa pulsação
vital é entrar em contato com nossa humanidade.
4. Algumas considerações
Tenho ouvido algumas críticas no meio acadêmico quando se fala da importância
de olhar para si, para o próprio corpo, do autoconhecimento e de considerar a subjetividade
do indivíduo. Julgam que esse olhar para si mesmo significa não olhar para o social, para
as questões que afligem a humanidade como a fome, a miséria, a discriminação. No
entanto, como fica claro nas visões dos autores trazidos, nós nos constituímos nas relações
47
Grifos pessoais.
84
com o outro, com nossa cultura, com a sociedade em que vivemos. Reforçarmos nossos
egos na busca de nos adaptar às situações, na busca do poder e do ter, enquanto nosso self,
ou seja, nossa essência, vai sendo abafado, sem que sequer tenhamos consciência de que
não agimos de acordo com nosso verdadeiro modo de ser. Não estamos inteiros, mas
completamente fragmentados pensamento, sentimento e ação não se integram.
Nosso destino como seres humanos é a vivência com a espécie humana, com a
natureza, com o cosmos que vibra com a mesma energia que vibra em nós. Enquanto não
formos capazes de perceber a unidade em nós, será inviável a percepção de que o outro faz
parte de uma totalidade em que estamos incluídos. Ainda não conseguimos viver o humano
em sua plenitude em nós para podermos acolher o outro. Como compreender o outro, se
estamos distantes de compreender a nós mesmos? Acredito que se não mudarmos, nada
poderá mudar de fato. Não temos o poder de mudar ninguém, mas podemos produzir
mudanças em nós. Dizer a nossos educandos o que devem ou não fazer não terá qualquer
efeito, se não vivenciarem conosco algumas possibilidades de ação e transformação.
Também, de nada valerá o que lhes dissermos, se nosso discurso mostrar uma dissociação
entre o pensamento e o sentimento se manifestando na ação. Comprometimento com algo
começa com o compromisso que estabelecemos conosco.
Podemos desenvolver nossa humanidade para que venhamos a nos tornar mais
justos, mais honestos, mais cooperativos. Para que essa humanidade seja alcançada será
necessário ir liberando nossas couraças para que a energia possa fluir mais livremente e
para que possamos chegar mais perto de nossa essência. Isso significa equilibrar
pensamento, ação e sentimento.
Humberto Maturana (2001) aponta para uma educação em que a criança aprenda a
aceitar-se e a respeitar-se, pois esta é a forma de aprender a aceitar e respeitar os outros. E
isto implica conhecer a si mesma. Diz o autor:
Repito: sem aceitação e respeito por si mesmo não se pode aceitar e respeitar o
outro, e sem aceitar o outro como legítimo outro na convivência não há fenômeno
social. Além disso, uma criança que não se aceita e não se respeita não tem
espaço de reflexão, porque está em contínua negação de si mesma e na busca
ansiosa do que não é e nem pode ser (Maturana, 2001, p. 31).
85
Maturana (1997) observa que, se perguntássemos se faria diferença viver em um
determinado estado psíquico ou em outro, acreditar ou não em Deus, considerar-se ou não
dotado de espiritualidade, a resposta seria sim, uma vez que “a concretude de nossa
corporalidade e nosso viver cotidiano é diferente em cada caso, já que é modulada de
diferentes maneiras segundo o espaço psíquico ou espiritual em que vivamos” (p. 120). Por
mais que, algumas vezes, não desejemos ver, basta observar como se expressa e se move
uma pessoa para que possamos vislumbrar o espaço psíquico ou espiritual onde vive.
“Somos biologicamente o espaço psíquico e espiritual que vivemos, seja como membros de
uma cultura ou como resultado de nosso viver individual na reflexão que, inevitavelmente
nos transforma porque transforma nosso espaço relacional” (p. 121).
Damásio, diante do conceito corrente de que devemos dominar as emoções para
que estas não prejudiquem as tomadas de decisão e a racionalidade, afirma:
Conhecer a relevância das emoções nos processos de raciocínio não significa que
a razão seja menos importante do que as emoções, que deva ser relegada para
segundo plano ou deva ser menos cultivada. Pelo contrário, ao verificarmos a
função alargada das emoções, é possível realçar seus efeitos positivos e reduzir
seu potencial negativo (1996, p. 277).
Enfatiza que é natural que se deseje proteger o indivíduo em seus processos de
planejar e decidir da influência que as emoções “anormais” e a manipulação das emoções
podem exercer sobre a razão. Mas isso não deve significar diminuir o valor das emoções
normais. Conhecer as emoções, como argumenta Damásio, não nos torna menos
interessados ou aptos para a pesquisa empírica, ao contrário, pode nos deixar mais
conscientes “das armadilhas da observação científica”, e complementa:
Nada na minha formulação leva a que se aceitem as coisas tal como são ou estão.
Devo realçar esse aspecto, pois a referência às emoções cria com freqüência a
imagem de uma percepção voltada para a própria pessoa, de um certo desinteresse
pelo mundo em redor e de tolerância para as insuficiências de desempenho
intelectual. Na verdade, essa perspectiva é exatamente o oposto da minha. (1996,
p. 277).
86
A observação de Damásio quanto ao prejuízo que as emoções desequilibradas
podem criar se manifestam na importância expressa por Lowen e Boadella em relação ao
grounding. Estar enraizado significa estar em contato com a realidade externa, “ter pés no
chão” e, também, estar em contato com sua realidade interna, seu corpo, seus sentimentos e
pensamentos. Se as emoções estiverem mais equilibradas, o raciocínio e as ações, enfim
todo o funcionamento orgânico, se tornam mais equilibrados. Se, por outro lado,
estivermos sem qualquer base, fora de nosso eixo, as emoções podem gerar perturbações e
não nos deixar ter consciência do que está sendo dito ou feito.
Reich, através de suas pesquisas, com a descoberta das biopatias
48
, constata que as
doenças não se formam somente através de uma desordem biológica. Damásio,
corroborando essa descoberta, aponta para a dificuldade que domina tanto a prática quanto
a investigação na área médica de aceitar que conflitos psicológicos se manifestem no
corpo, assim como o fato de que se ignore ou não se dê a devida atenção às conseqüências
psicológicas que as chamadas doenças reais produzem.
Essa questão apontada por Damásio dá apoio à idéia fundamental que desenvolve
em O Erro de Descartes:
a compreensão cabal da mente humana requer a adoção de uma perspectiva do
organismo; que não só a mente tem de passar de um cogitum não físico para o
domínio do tecido biológico, como deve também ser relacionada com todo
organismo que possui cérebro e corpo integrados e que se encontra plenamente
interativo com um meio ambiente físico e social.
No entanto, a mente verdadeiramente incorporada que concebo não
renuncia aos níveis mais refinados de funcionamento, aqueles que constituem sua
alma e seu espírito. Do meu ponto de vista, o que se passa é que a alma e o
espírito, em toda sua dignidade e dimensão humana, são os estados complexos e
únicos de um organismo. Talvez a coisa mais indispensável que possamos fazer
no nosso dia-a-dia, enquanto seres humanos, seja recordar a nós próprios e aos
outros a complexidade, fragilidade, finitude e singularidade que nos
caracterizam
49
(Damásio, 1996, p. 282-283).
48
Biopatia: distúrbio resultante da perturbação da pulsação biológica em todo o organismo. Abrange todos
os processos de doença que perturbam o aparelho autônomo da vida.
49
Grifos pessoais.
87
Damásio vem reafirmar que o espírito não é algo que esteja em um lugar distante
ou não localizável, sobre um pedestal, mas em nós mesmos, o que não implica diminuir
seu significado, mas sim reconhecer sua dignidade e sua importância, mas também sua
vulnerabilidade, o que não impede que continuemos a recorrer à sua orientação e
sabedoria.
Em síntese, importa para o ser humano a sua expressividade como uma totalidade,
que implica corpo e mente como um todo, sendo que um não tem que ser privilegiado
sobre o outro, na medida em que a mente reflete o corpo e o corpo reflete a mente.
Na medida em que a Bioexpressão busca compreender como as limitações que
temos para nos apropriarmos um pouco mais de nós mesmos impedem a nossa expressão
mais espontânea, os autores apresentados oferecem teorias que trazem essa compreensão e
apontam possibilidades de ação que podem contribuir para a formação do educador.
88
CAPÍTULO II
LUDICIDADE E AUTO-EXPRESSÃO
...sonhamos com uma escola que, sendo séria, jamais vire sisuda.
A seriedade não precisa ser pesada. Quanto mais leve é a seriedade,
mais eficaz e convincente ela é. Sonhamos com uma escola que,
porque séria, se dedique ao ensino de forma competente, mas que seja
uma escola geradora de alegria (...) a alegria de ensinar-aprender
deve acompanhar professores e alunos em suas buscas constantes.
Paulo Freire
No capítulo anterior, com base nas teorias abordadas, constatamos que, à medida
que as couraças que criamos ao longo da vida vão sendo liberadas ou flexibilizadas, a
expressividade natural do ser humano vai-se liberando também. A flexibilização das
couraças permite que a energia possa fluir mais livremente, aumentando nossa vitalidade e
trazendo possibilidades de nos aproximarmos mais de nossa essência, o que significa
equilibrar pensamento, ação e sentimento.
Como observei anteriormente, é uma busca da Bioexpressão compreender as
limitações que impedem nossa expressão espontânea, e oferecer possibilidades ao
educador para lidar com elas, contribuindo para sua formação e sua prática pedagógica.
Neste capítulo, apresento as atividades lúdicas como um recurso que traz possibilidades
para que esses objetivos sejam alcançados. Assim, se faz necessário definir ludicidade,
traçar as relações entre as teorias estudadas no primeiro capítulo e as atividades lúdicas, e
analisar possibilidades e dificuldades de sua utilização na formação de educadores.
1. Mas afinal, o que é ludicidade? Primeiras considerações
Existem muitas definições e algumas contradições quanto à forma de se conceber o
lúdico, o jogo e a brincadeira, inclusive em sua relação com a prática educativa e sua
89
finalidade didática. Não é uma tarefa simples conceituar ludicidade, o que comprovam
livros e artigos que trabalham a temática e as muitas discussões que se desenvolveram nos
encontros do GEPEL
50
, grupo do qual participo, e em cujas reuniões temos discutido e
vivenciado atividades lúdicas. Quero deixar claro, que minha intenção não é discutir ou
comparar conceituações, mas apresentar uma possibilidade de compreender com relativa
adequação a ludicidade e aprofundar seu âmbito de atuação.
Como considerar ludicidade, então?
Para traçar os contornos de como a considero, aproprio-me da conceituação de
alguns estudiosos desse tema, dentre os quais Cipriano Carlos Luckesi, meu orientador,
cujas idéias e propostas
51
atraíram minha atenção pela sua peculiaridade e pela afinidade
com minhas próprias percepções e propostas que eu buscava organizar e entender melhor.
Foi essa empatia que me impulsionou a deixar minha Universidade em São João del-Rei,
em Minas Gerais, e me mudar com livros, computador e bagagens, sem armas, para
Salvador, na Bahia.
Huizinga (1996) propõe a expressão homo ludens para ressaltar que o jogo é
considerado uma das necessidades básicas do ser humano. Entretanto, as exigências e
transformações das sociedades modernas vão, progressivamente, afastando os indivíduos
das atividades essencialmente lúdicas, criando formas de lazer estereotipadas, como as
oferecidas pela televisão, que os colocam em uma postura solitária, alienada e
inexpressiva. Essa forma de lazer passivo e massificado não possui o potencial de
mobilização e renovação que caracteriza as atividades lúdicas. Creio que na base disso
tudo está a visão material do trabalho e, conseqüentemente, da moral. O trabalho, no
capitalismo, é sério, por isso houve necessidade de criar uma moral séria, excluindo a
ludicidade devido ao fato de, aparentemente, esta ser destituída de seriedade. Expressões
do dia-a-dia expressam isso: “acabou a brincadeira”, “aqui não se brinca, trabalha-se”,
“isso não é brincadeira, é sério”, entre tantas outras que criam essa pseudo-
incompatibilidade entre trabalho e alegria, trabalho e ludicidade, como se a alegria e a
descontração se opusessem à seriedade e à responsabilidade.
50
GEPEL Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Ludicidade do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal da Bahia, sob coordenação da Profª Drª Bernadete de Souza Porto e do
Prof. Dr. Cipriano Carlos Luckesi.
51
Idéias expostas em LUCKESI, Cipriano Carlos (org.) Ludopedagogia Ensaios 1: Educação e Ludicidade.
Salvador: Gepel, 2000.
90
Na sociedade capitalista, o lazer, o tempo de não produção, é incompatível com seu
princípio de exploração e alienação. Como enfatiza Roberto Maurício da Silva, em sua tese
de Doutorado, a idéia do corpo lúdico se situa em outra dimensão ideológica, ou seja, da
negação da produtividade exploradora capitalista. Mas, como afirma o autor, essa
necessidade inerente ao homem, de alguma forma, se manifesta:
O corpo lúdico ou brincante carrega em sua superfície os sentidos da festa,
sentidos estes que o transformam em corpo transgressor, na verdade, o corpo da
ginga, da criação, da emoção, dos sentidos. Este corpo que se assemelha ao corpo
carnavalesco e festeiro, o qual pode sentir na pele o desgaste e o prazer,
contrapondo-se, desta maneira, às sensações, atitudes, posturas, reações e
expressões corporais do trabalho pesado (2000, p. 272).
Joseph Chilton Pearce (2002) analisa a necessidade do brincar para o
desenvolvimento infantil, considerando que a brincadeira está na base da inteligência
criativa. Entretanto, como qualquer forma de inteligência, ela precisa ser desenvolvida para
ter seu potencial atualizado. Considero que, embora a primeira infância, como aponta o
autor, seja a época ideal para que esse desenvolvimento ocorra de forma mais intensa, o
estímulo a esse desenvolvimento pode ocorrer em qualquer fase posterior, através de
atividades lúdicas apropriadas à etapa de vida do ser brincante. Silva, em sua tese, aponta
inúmeras possibilidades lúdicas criadas pelos corpos castigados desde a infância pelo
trabalho braçal nos engenhos de cana, quando alguma forma de estímulo é apresentada,
porque, afinal, como destacam Huizinga e outros estudiosos da área, brincar e jogar são
vitais para o ser humano.
O primeiro aspecto a destacar quanto às atividades lúdicas é que elas não se
restringem ao jogo e à brincadeira, mas incluem atividades que possibilitam momentos de
alegria, entrega e integração dos envolvidos. Segundo Luckesi (2000), são aquelas que
propiciam uma experiência de plenitude, em que nos envolvemos por inteiro, estando
flexíveis e saudáveis. “Uma educação lúdica tem na sua base uma compreensão de que o
ser humano é um ser em movimento permanentemente construtivo de si mesmo” (p. 20).
Pensar o ser humano desta forma implica compreendê-lo como um ser em mudança, que
possui o potencial de assenhorear-se de si e não como um ser impotente a ser modelado
pela escola e a quem será dito o que fazer.
91
Podemos compreender a plenitude nas atividades lúdicas como “experiências de
pico” segundo as define Ken Wilber (2002). Uma “experiência de pico” é um estado
alterado de consciência temporário que uma pessoa pode experimentar desperta, durante
um breve período, que será vivenciado e interpretado de formas diferenciadas dependendo
do estágio de seu desenvolvimento. Enquanto estamos praticando um ato lúdico, somos
plenos, entretanto essa plenitude é efêmera. Das “experiências de pico” poderemos chegar
a uma experiência plena mais duradoura através da continuidade das atividades lúdicas, ou
seja, através do exercício constante da ludicidade.
“Um estado alterado de consciência é um estado de consciência ‘não normal’ ou
‘não ordinário’, que inclui tudo, desde estados induzidos por drogas até experiências de
quase morte, e até estados meditativos” (Wilber, 2000, p. 28). As atividades lúdicas podem
conduzir a esse estado, na medida em que permitem o acesso a vivências que estão “para
além do ego”, embora também o incluam, porque necessitamos dele para nossa identidade.
Mas vamos para além, para uma região de conhecimento onde o controle cede lugar à
entrega. Só na entrega espaço sem uso das defesas psicológicas podemos acessar as
mais adequadas compreensões e decisões. Somente a repetição dessas “experiências de
pico” nos ensinará a permanecer mais tempo nesse estado, ou a entrar em contato com ele
com mais facilidade.
Observa Wilber que os estados alterados são significativos, “mas para que
contribuam para o desenvolvimento precisam tornar-se estruturas/características” (2000, p.
105). O desenvolvimento ocorre somente se houver realizações permanentes, ou seja,
quando incorporamos essa possibilidade de acesso, podendo os espaços temporários se
tornar permanentes. Assim, potenciais que só eram acessíveis em estados de consciência
alterados são, em medida crescente, convertidos em estruturas de consciência duradoura.
Ao analisarmos, logo adiante, as camadas da estrutura biopsíquica, isso se tornará mais
claro.
Aurélio Acosta aponta três aspectos do lúdico que considero significativos. O
primeiro é a impossibilidade de defini-lo, de precisar exatamente o que é, de ter como
possibilidade “apenas fazer aproximações sobre seu valor e funções”. O segundo se refere
à sua vivência, uma vez que “o lúdico seria fundamentalmente experienciável, vivido, e
depende de como cada indivíduo o experiencia para ser isso ou aquilo”. O terceiro se refere
ao “onde” se encontra o lúdico. Ele não existe previamente à experiência do sujeito. “Não
existem brinquedos ou atividades que ‘magicamente’ carreguem consigo uma ludicidade
92
embutida. Existem sim atitudes lúdicas, atitudes brincalhonas, fundamentalmente porque o
lúdico se dá acima de valores que são construídos por quem livremente adere às propostas”
(2000, p. 47-48).
Como observei em um texto para Coletânea do GEPEL,
as atividades ou os brinquedos não trazem em si um saber ou uma possibilidade
prontos. Eles encerram potencialidades que poderão ser ativadas ou não por quem
os vivencia. O sujeito brincante, a partir de suas especificidades, necessidades,
emergências lhes dará significados, criará elos de sentidos simbólicos que
poderão guardar particularidades que não se relacionam àquelas vivenciadas por
outro sujeito que compartilhe as mesmas atividades ou brinquedos (Pereira, 2002,
p. 14).
Em síntese, as experiências lúdicas não existem por si, existem como vida vivente,
enquanto experiência do ser senciente. Na atividade lúdica, o que importa não é somente o
produto da atividade, o que dela resulta, mas a própria ação, o momento vivido. Possibilita
a quem a vivencia, momentos de encontro consigo e com o outro, momentos de fantasia e
de realidade, de ressignificação e percepção, momentos de autoconhecimento e
conhecimento do outro, de cuidar de si e olhar para o outro, momentos de vida, de
expressividade.
Costumo utilizar uma atividade que exemplifica bem o que afirmei, que denomino
“Sacos muito malucos”. Divido a turma em grupos e a cada um entrego um saquinho com
objetos bem variados e que chegam a ser inusitados, como um pedaço de arame, a tampa de
um pote, um pedaço de esponja de aço, um cartão postal, um dente de alho, uma flanela de
limpeza, um palito de incenso, uma embalagem de qualquer produto, enfim, tantos objetos
quantos forem as pessoas que participam da atividade. Cada pessoa, já situada em um
grupo, coloca a mão dentro do saco e retira dele um dos objetos. Peço que cada grupo crie
uma história em conjunto, introduzindo, no “texto”, todos os objetos contidos no saquinho
que lhe coube. Os objetos tanto podem ser personificados, ou seja, cada um se torna um
personagem, quanto poderá haver a opção do grupo para que as pessoas que o compõem
sejam personagens que devem interagir com os objetos. Gosto muito de pedir que criem
sons não verbais em suas representações, que criem sua “sonoplastia”, além da própria fala.
Os resultados são sempre imprevisíveis e, de modo geral, muito criativos. Mas o que quero
93
pontuar aqui é a multiplicidade de significados que um mesmo objeto pode adquirir e como
estes objetos podem gerar percepções e permitir a expressão de questões que mobilizam os
componentes do grupo.
Houve um grupo, no qual havia três educadoras e dois educadores, em que uma
esponja de lavar louça desencadeou uma reflexão sobre o trabalho doméstico “escravo” da
mulher. Os outros objetos se tornaram “coadjuvantes”, a “atriz principal”, sem dúvida, foi a
esponja. Outra das situações que considerei muito marcantes foi a de um rapazinho de
oitava série, que tendo tirado do saco um pedaço de Bom Bril, se transformou no
“Cavaleiro Limpador”, dotado de super poderes para acabar com a corrupção dos políticos
brasileiros. A representação do grupo abriu um espaço de discussões muito ricas e pude
perceber que alguns adolescentes não sabiam de fatos que estavam sendo manchete de
jornais e mobilizando a atenção pública naquele momento.
Como observa Santin (1994), a atividade lúdica é uma ação vivida e sentida, não
definível por palavras, mas compreendida pela fruição. É povoada pela fantasia, pela
imaginação e pelos sonhos que “se constroem como labirinto de teias urdidas com
materiais simbólicos” (p. 29). Assim, ela não é encontrada nos prazeres estereotipados, no
que é dado pronto, pois, estes não possuem a marca da singularidade do sujeito que a
vivencia, que a preenche de significados. A atividade lúdica é
uma tessitura simbólica fecundada, gestada e gerada pela criatividade
simbolizadora da imaginação de cada um cuja ação se confunde com o brincar.
(...) Brincar é acima de tudo exercer o poder criativo do imaginário humano
construindo o universo real de quem brinca. Os mundos fantasiosos do brincar
revelam a fertilidade inesgotável de simbolizar o impulso lúdico que habita o
imaginário humano (Santin, 1994, p. 28-29).
As atividades lúdicas não são apenas momentos divertidos ou simples passatempos.
São muito mais que isso. São momentos de descoberta, de construção e compreensão de si;
estímulos à autonomia e à expressão pessoal, momentos de expansão em que as contrações
que se cronificaram começam a ceder, e a pulsação que marca a presença da vida viva vai
sendo retomada. “À medida que desestruturamos internamente nossa rigidez e permitimos
que nossa pulsação interna se torne novamente peristáltica, nos abrimos para o engajamento
94
com os outros. Isso melhora a auto-imagem e cria sentimentos bons com base na excitação”
(Keleman, 1985/1992, p. 172).
As atividades lúdicas, que têm na busca da alegria e do prazer sua grande fonte
alimentadora, se caracterizam como atividades não impostas, experienciadas
individualmente ou compartilhadas, tendo como finalidade a vivência do momento.
Possibilitam que a elas nos entreguemos, e, entretecendo símbolos, sonhos, desejos,
necessidades, dores e alegrias, nos integremos conosco e com o outro em uma troca tácita e
significativa. A possibilidade para que as emoções se manifestem é fundamental, pois, elas
não podem ser descartadas no processo de autoconhecimento e auto-expressão. As
atividades lúdicas são uma necessidade do ser humano, independente de sua faixa etária.
Através delas, é possível ter contato mais profundo consigo e com o outro.
O lazer ativo, como observa Negrine, “pressupõe uma implicação corporal,
entendido em um sentido amplo, independente da atividade que elegemos para nos recrear.
Tal implicação nos faz interagir: com os outros, com os objetos, enfim, com o mundo dos
demais” (2000, p. 22). O que o autor enfatiza é a “qualidade da relação” que poderá se
estabelecer por meio de diferentes formas lúdicas, a qual será mais significativa na medida
em houver maior interação.
O sentimento nos mobiliza para as decisões. Só nos envolvemos realmente quando
nos colocamos por inteiro naquilo que fazemos, portanto, decidir e concretizar exigem
mais do que pensamento, exigem sentimento e ação. E é esta possibilidade de ser e estar
inteiro que a atividade lúdica propicia. A possibilidade de compartilhar, de se entregar e de
se integrar, de fertilizar a expressão de pensamentos, sentimentos e movimentos.
A espontaneidade do indivíduo, sua auto-expressão e criatividade são bloqueadas
quando ocorre a contenção da bioenergia, isto é, da energia vital que circula em nosso
organismo através da corrente sanguínea e de outros fluidos energéticos como a linfa e os
fluidos intracelulares. Mas este fluxo energético pode ser restabelecido através da
mobilização da energia estagnada. Para que este processo seja entendido, trago algumas
questões básicas da teoria reicheana, que foram retomadas por seus continuadores, que nos
permitem a compreensão dos bloqueios e desbloqueios da energia, que constituem a base
para uma prática educativa lúdica e bioexpressiva.
95
2. Ludicidade, mobilização das couraças e auto-expressão
Para que possamos melhor compreender as possibilidades que as atividades lúdicas
proporcionam quanto à flexibilização do modo de ser do ser humano, precisamos retomar
alguns conceitos teóricos que Wilhelm Reich apresenta sobre a expressão corporal da
personalidade, trazendo um aspecto ainda não abordado, as camadas da estrutura psíquica,
e aprofundando um pouco mais a noção dos bloqueios de energia que se mantêm através
dos anéis de tensão. Vale observar que, neste tópico, incluem-se as contribuições dos
seguidores de Reich Alexander Lowen, Stanley Keleman e David Boadella, que, em suas
releituras, ampliam compreensões e aprofundam conceitos.
2.1. Camadas da estrutura biopsíquica
Reich distinguiu três camadas na expressão emocional das pessoas, ou seja, a
estrutura da psique: a primária, a secundária e a terciária, representadas no diagrama
abaixo.
A primeira camada, a mais profunda, se constitui por impulsos espontâneos para
expandir-se e manter contato. É a que guarda nossa forma mais autêntica de ser. Reich
(1933/1998) a denomina de cerne biológico. Seus continuadores, geralmente, a
denominam de self, forma que, preferencialmente, opto por utilizar, como será visto na
continuação do texto.
Camada
Primária
Camada
Secundária
Camada Terciária
96
A segunda camada está composta pelo inconsciente reprimido, onde estão os
impulsos proibidos, geralmente, confusos e destrutivos. A segunda camada se forma
devido à frustração e repressão desses sentimentos mais espontâneos, que, por serem
reprimidos, geram sentimentos destrutivos e raivosos. Nesta camada, se encontram os
encouraçamentos musculares que reprimem esses impulsos. A camada mais externa, a
terciária, se relaciona às defesas do caráter e ao verniz social conformista, bem-adaptado
aos padrões socioculturais. É a camada das máscaras (mecanismos de defesa do ego).
Observa Reich, no Prefácio à 3ª edição da Psicologia de Massas do Fascismo
52
: no
nível mais externo, o mais superficial da sua personalidade, “o homem médio é comedido,
atencioso, compassivo, responsável, consciencioso”. Se este nível mantivesse contato
autêntico com a camada mais profunda, não haveria razão para as tragédias sociais
humanas. Entretanto, o nível superficial das relações sociais não se encontra em contato
com o cerne biológico profundo do indivíduo, e “se apóia num segundo nível de caráter
intermediário, constituído por impulsos cruéis, sádicos, lascivos, sanguinários e invejosos”
(1933/1988, p. XVII). O segundo estrato, o intermediário, guarda, portanto, os impulsos e
fantasias considerados perigosos e irracionais, por isso foram e são reprimidos.
Reich considerava que se houvesse condições sociais favoráveis, o ser humano
seria “um animal racional essencialmente honesto, trabalhador, cooperativo, que ama e,
tendo motivos, odeia” (Idem, p. XVIII). Mas, quando caem as máscaras das boas maneiras,
o que surge não é a sociabilidade natural, mas os impulsos destrutivos da segunda camada,
pois, ali se encontram as exigências biológicas primárias reprimidas. A energia de vida
bloqueada, impedida de se manifestar, se converte em uma energia com características
destrutivas. Boadella (1973/1985, p. 92) observa que “Reich distinguia claramente os
impulsos primários como a criança os experienciava antes de se chocarem com os
controles repressivos, e os impulsos secundários como produtos deste choque”. Para Reich,
tudo que é autêntico o impulso revolucionário, a sexualidade, as expressões da arte e da
ciência provém da camada primária, do cerne biológico natural do homem.
Em A função do orgasmo e, especialmente, em A psicologia de massas do fascismo,
Reich analisa com bastante profundidade a influência negativa que a sociedade e a política
podem exercer sobre o indivíduo, o quanto podam sua expressão mais autêntica, mais
52
A terceira edição só foi publicada em 1942.
97
profunda, o quanto contribuem para que máscaras sejam criadas e impulsos naturais sejam
reprimidos ou deformados, para que o poder e o controle sejam mantidos. Diz o autor:
A era autoritária e patriarcal da história humana tentou manter sob controle os
impulsos anti-sociais por meio de proibições morais compulsivas. É dessa
maneira que o homem civilizado, se na verdade pode ser chamado civilizado,
desenvolveu uma estrutura psíquica que consiste em três estratos. Na superfície,
usa a máscara racional do autocontrole, da insincera polidez compulsiva e da
pseudo-sociabilidade. Essa máscara esconde o segundo estrato, o “inconsciente”
freudiano, no qual sadismo, avareza, sensualidade, inveja, perversões de toda
sorte, etc., são mantidos sob controle, não sendo, entretanto privados da mais
leve quantidade de energia. Esse segundo estrato é o produto artificial de uma
cultura negadora do sexo e, em geral, é sentido conscientemente como um
enorme vazio interior e como desolação (Reich, 1942/1985, p. 200).
Na profundidade, no cerne biológico, continuam a existir e agir a sociabilidade e a
sexualidade naturais, o prazer no trabalho e a capacidade para o amor. Entretanto, mantêm-
se inconscientes e são temidos, ressalta Reich, por estarem “em desacordo com todos os
aspectos da educação e do controle autoritários. Ao mesmo tempo, é a única esperança real
que o homem tem de dominar um dia a miséria social” (Reich, 1942/1995, p. 201).
Essa visão da camada primária tem sido contestada como um “encantamento
hipotético idealista do bom cerne do ser humano” como observa Loil Neidhoefer (1994, p.
24), que desenvolve seu trabalho terapêutico tendo por base a teoria reicheana. Como
observa o autor, não é difícil comprovar a existência das camadas intermediária e
superficial nas experiências cotidianas, diferentemente da camada mais profunda. Mas o
autor e outros estudiosos, como Lowen, Keleman e Boadella, concordam com a existência
de uma dimensão mais autêntica do ser humano que pode ser acessada.
Muitos de nós já vivenciamos essa percepção, especialmente, quando envolvidos
com o processo de autoconhecimento e de mergulho interno. Não é comum atingir-se uma
estabilidade nesse contato, algumas vezes, sequer é experienciado, mas quando o contato
se faz, mesmo que de forma efêmera, traz novas percepções e possibilidades de
transformação. Em outras palavras, ocorrem como estados de pico, segundo vimos
anteriormente. A essa questão fundamental, ainda retornaremos.
98
O Doutor Ola Raknes (apud Neidhoefer, 1994), discípulo de Reich, com base em
suas experiências clínicas, como outros autores, descreveu o contato com a camada interna.
Selecionei algumas qualidades (condições) que, possivelmente, já tenhamos vivenciado em
alguns momentos de nossa vida, que Raknes apresenta como resultantes desse contato:
Capacidade de concentração total, seja num trabalho, numa tarefa, numa
conversa (...). Capacidade de ter e sentir contato, tanto consigo mesmo como com
outras pessoas, com a natureza, com a arte e, por exemplo, com as ferramentas
que utilizamos no trabalho; além disso, habilidade de captar impressões, de ter a
coragem e o desejo de permitir que as coisas e os acontecimentos nos causem
impressões (p. 25).
Reich afirmava que os impulsos primários de cada um poderiam se manifestar de
forma espontânea se os impulsos destrutivos da camada secundária pudessem ser
libertados da repressão e dissolvidos. Ele observou isso quando trabalhou com a linguagem
expressiva fundamental do corpo em níveis profundos de relaxamento durante sua prática
clínica. Mas ter acesso a essa liberação não é fácil ou simples, tendo em vista o contexto
sociocultural em que vivemos. Lowen (1980/1989), discípulo de Reich e criador da
Bioenergética, pode nos ajudar nessa compreensão:
Nossos corpos são moldados por forças sociais, dentro da família, que modelam e
determinam nosso destino... que é o de termos que tentar agradar para receber
aprovação e amor. (...) Por que não desistimos do papel, não interrompemos o
jogo, deixamos cair o disfarce, arrancamos as máscaras? A resposta é que não
somos conscientes de que nossa aparência e nosso comportamento não são
inteiramente genuínos. A máscara ou disfarce tomou conta de nosso ser. O papel
passou a ser uma segunda natureza para nós, e nos esquecemos de como era
nossa natureza original. Tornamo-nos tão identificados com o papel e com o jogo
que não podemos conceber a possibilidade de sermos de outra maneira (p. 81-
82).
Para que nossa essência se manifeste, é necessário que mobilizemos a energia
aprisionada nas couraças que imobilizam o movimento expressivo da vida e originam uma
imagem de si que não corresponde à realidade do ser. Para que se entenda melhor esse
99
processo de contenção da bioenergia, é necessário que se compreenda como as couraças se
estruturam em anéis de tensão.
2.2. Anéis ou segmentos de tensão
Como vimos no capítulo anterior, o indivíduo saudável, ao qual Reich denominou
de caráter genital, expressa um fluxo de energia que se distribui por todo o corpo, que
poderá atender a qualquer demanda do organismo. Entretanto, as condições de vida geram
atitudes emocionais que bloqueiam o livre curso energético, impedindo que o potencial de
energia de que dispomos seja plenamente aproveitado. Essas obstruções ou distúrbios
energéticos se manifestam tanto a nível corporal quanto psíquico. A inibição da angústia,
da agressividade, do prazer ou de qualquer emoção forte se associa, de forma regular, a um
distúrbio da musculatura corporal, que se manifesta em um aumento do tônus espasmo,
ou em uma diminuição do tônus flacidez. Keleman, como vimos no capítulo anterior,
também aponta para essas duas formas com que o ser humano pode lidar com as agressões
contínuas: resistir ou ceder, “enrijecer” ou “desmoronar”, o que equivale a um aumento ou
diminuição do tônus muscular respectivamente.
Reich (1933/1998), na busca de compreender o que governaria os bloqueios
musculares, que pudera verificar que não seguiam o percurso de um músculo ou de um
nervo, mostrando que não se enquadravam nos processos anatômicos, descobriu que a
couraça muscular se apresenta disposta em segmentos que funcionam de maneira circular,
como um anel ou uma cinta. Esses segmentos, que têm uma estrutura horizontal, impedem
que a corrente ondulatória da energia denominada por ele de orgone, que flui em sentido
longitudinal ao redor da coluna vertebral, siga seu curso normal. A estagnação dessa
bioenergia gera os anéis de tensão, ou seja, as couraças que desempenham funções
cerceadoras na estrutura do indivíduo. Frisa Reich:
Os segmentos da couraça têm sempre uma estrutura horizontal nunca vertical ,
com exceção dos braços e das pernas, cujas couraças funcionam em conjunto
com os segmentos da couraça do tronco adjacentes, isto é, os braços com o
segmento que compreende os ombros, e as pernas com o segmento que
compreende a pelve. Queremos salientar essa peculiaridade, que se torna
inteligível num contexto biofísico definido (1933/1998, p. 342).
100
Cada segmento se relaciona a órgãos e grupos de músculos que têm contato
funcional entre si, no sentido da expressão emocional correspondente, pois, cada grupo de
músculos desses, é responsável, dinamicamente, pela expressão de um determinado
conjunto de emoções. Diz Reich:
Um segmento da couraça compreende aqueles órgãos e grupos de músculos que
têm contato funcional entre si e que podem induzir-se mutuamente a participar
no movimento expressivo emocional. Em termos biofísicos, um segmento termina
e outro começa quando deixa de afetar o outro em suas ações emocionais
(1933/1998, p. 342).
Reich pôde verificar que a dissolução das couraças parte do extremo superior do
corpo (segmento ocular) para a região pélvica (segmento pélvico). A eliminação dos anéis,
como observa, não se faz de maneira rígida e mecânica, uma vez que os anéis transversais
da couraça estão obstruindo a função plasmática total de um sistema vital integrado. “Mas o
afrouxamento de um segmento de couraça libera energia que, por sua vez, ajuda a mobilizar
anéis em níveis superiores e inferiores. Portanto, não é possível fazer uma descrição clara
de cada um dos processos envolvidos na dissolução da couraça muscular” (Reich,
1933/1998, p. 346). Embora algumas emoções estejam mais vinculadas a determinados
segmentos, estes se inter-relacionam e todos contribuem para o movimento expressivo do
ser humano.
A repressão de qualquer emoção, funcionalmente, corresponde à contenção de
energia e à tensão muscular. Assim, toda rigidez muscular contém a história e o significado
da sua origem, ela é o lado somático do processo de repressão e a base de sua preservação
contínua. Ela é o resultado de mecanismos de defesa para diminuir dores, repressões,
necessidades não atendidas, frustrações, ...
Os bloqueios ou couraças, impedindo o fluxo de energia, impedem também
relações mais maduras e racionais do indivíduo consigo mesmo, com o outro e com as
situações com que se depara. Observa Boadella:
101
Quando olhamos para a vida humana, podemos ver que praticamente toda pessoa
desajustada vive como se estivesse permanentemente em uma situação de
emergência. Sendo assim, os estados de tensão e hiperatividade do sistema
nervoso simpático que os mantêm se tornaram crônicos. Neste ponto verificamos
que os processos normais internos e auto-reguladores pararam de funcionar,
de modo que a ajuda ou estímulo externos se fazem necessários. Somente
dissolvendo os bloqueios que impedem o livre fluxo dos movimentos é que
podemos restaurar nas pessoas a capacidade de se relacionarem com seu
ambiente de uma maneira racional e saudável (1985/1992, p. 16-17).
Os segmentos, que tomaremos
isoladamente, a seguir, são em número de
sete:
ocular, oral, cervical, torácico,
diafragmático, abdominal elvico.
A figura
53
os apresenta na ordem em que foram enumerados anteriormente.
53
A figura foi retirada de KELEMAN, Stanley. Anatomia Emocional. São Paulo: Summus, 1992, p. 91.
102
Principais segmentos ou anéis da couraça
54
a) segmento ocular
Inclui os olhos, a testa e a região zigomática. A couraça pode se manifestar através
de testa e pálpebras rígidas, olhos inexpressivos, incapacidade de verter lágrimas,
expressão semelhante a uma máscara, abertura reduzida dos olhos.
Para um contato visual pleno, essa área precisa ser liberada das emoções que geram
o tensionamento, que podem incluir o pavor, a desconfiança e a raiva expressos no olhar e
o choro, que se prende especialmente na musculatura entre os olhos.
b) segmento oral
Compreende toda musculatura do queixo e da faringe, musculatura occipital,
incluindo os músculos em torno da boca, os lábios e os maxilares. As conseqüências do
bloqueio se mostram em dentes cerrados, queixo contraído, maxilares tensos.
Como observa Boadella, a criança ou o adulto saudável possuem músculos capazes
de expressar toda uma gama de emoções de acordo com o que a ocasião requeira. Esta
pessoa é versátil e agradável” (1985/1992, p. 19). Contrariamente, a pessoa que sofre
grandes tensões tem uma restrição expressiva, uma vez que se limitou a um conjunto de
emoções adquirido para lidar com o estresse.
c) segmento do pescoço ou cervical
Inclui os músculos profundos do pescoço, nuca, a língua e a laringe.
Essencialmente, a musculatura da língua liga-se ao sistema ósseo cervical. A couraça se
estabelece para segurar a raiva ou o choro. Como conseqüência, manifesta-se o reflexo de
obstrução (contração do reflexo de vomitar), dificuldade de chorar, de expressar sons, de
gritar, de vomitar, de expressar emoções (aquele que “engole tudo” ou “vomita tudo”).
54
Foi utilizado para esta análise, além das obras citadas, o material didático do Ano Básico (1º Ano) do
Curso de Formação em Terapia de Integração Psicocorporal com duração de três anos, de autoria da
psicóloga Telma Nadja da Silveira Lélis, que também ministra vários módulos do curso.
103
As principais emoções que se mantêm presas na área da garganta são as que se
expressariam através dos soluços ou dos gritos. As manifestações ruidosas que nossa
sociedade tende a suprimir. “Mas o que mais pode uma criança fazer em situações
intoleráveis de estresse? Ela só pode aprender a engolir a raiva e engasgar-se com a dor”
(Boadella, 1985/1992, p. 20).
O pescoço e, também, a cintura, segundo o autor, são as duas maiores áreas de
contração na estrutura corporal. O pescoço pode ser visto como uma ponte que liga a
cabeça ao resto do corpo. É uma área onde as tensões facilmente se manifestam. Essas
tensões impedem que sintamos a conexão entre a cabeça e o corpo. “Muitas pessoas
sentem-se identificadas com sua cabeça e separadas de seus corpos. (...) A sensação de
identificação de uma pessoa está diretamente ligada a sua capacidade de se conscientizar
daquilo que seu corpo sente” (Idem, p. 19).
Como foi visto no primeiro capítulo, a tensão dessa área dificulta a conexão entre o
ectoderma e o mesoderma, comprometendo a associação do pensamento e da ação.
Também é na garganta que o ectoderma e o endoderma se unem através da expressividade
da voz, conectando pensamento e sentimento.
Observa, ainda, Boadella que raiva presa no pescoço está relacionada às tensões nos
músculos dos ombros, incluindo uma grande área das costas. Ali se concentra uma grande
quantidade de ira “morta” que nos leva a ter costas rígidas e ombros tensos e pode também
diminuir a sensibilidade dos braços devido à diminuição da circulação.
d) segmento torácico
Compreende os músculos intercostais, os músculos longos do tórax (peitorais), os
músculos dos ombros (deltóides), grupo muscular sobre e entre as omoplatas, braços e
mãos. Segundo Reich, as atitudes de ensimesmamento, reserva e autocontrole são as
principais manifestações dessa couraça, que se mostram, também, pela elevação da
estrutura óssea, ombros puxados para trás, pela pouca mobilidade do tórax, por uma
respiração superficial e uma “atitude crônica de inspirar”. Este aprisionamento da
inspiração é uma forma automática e inconsciente, como as demais, de reprimir qualquer
tipo de emoção.
104
Os movimentos expressivos dos braços e das mãos são prejudicados pelo
encouraçamento deste anel. Reich observa que, em termos da biofísica orgônica, esses
membros são extensões do segmento torácico. Isso se reflete na dificuldade de demonstrar
afeto, de abraçar, tocar, acolher, ir em busca de algo, enfim, em expressar sentimentos,
tanto os mais acolhedores como os mais agressivos. Diz ele:
No artista, que manifesta livremente seus desejos, a emoção do peito estende-se
diretamente às emoções e aos movimentos expressivos, totalmente sincronizados
dos braços e das mãos. Isso é válido tanto para o virtuose do violino, ou do piano,
como para o pintor. Na dança, os movimentos expressivos essenciais derivam do
organismo como um todo (Reich, 1933/1998, p. 347).
Na pessoa saudável, o tronco apresenta uma pulsação suave, num movimento
ondular, durante a respiração. Observando crianças e animais saudáveis, podemos observar
que a respiração provoca a mobilidade do peito e do abdômen. Entretanto, a criança
aprende muito cedo a controlar a respiração para reprimir um sentimento. “Esse controle
serve para subjugar os processos corporais aos propósitos da mente, que dessa forma tenta
evitar os conflitos que a livre expressão dos sentimentos poderia causar em lares
repressores” (Boadella, 1985/1992, p. 20-21). O autor observa, ainda, que as pessoas
neuróticas, ou seja, que apresentam encouraçamentos, têm distúrbios respiratórios que se
manifestam de formas extremas e opostas: peito estufado e abdômen contraído, ou peito
fechado. Ambas as formas apontam para uma respiração deficiente em que a plenitude
respiratória não ocorre.
Boadella como Reich apontam para a postura militar da barriga para dentro e o
peito para fora que gera uma postura antinatural e que é, muitas vezes, valorizada pela
educação. Reich observa que essa postura está associada em círculos culturais europeus,
entre outros, a uma atitude de “nobreza”, “altivez”, “distinção”, “grandeza” e “controle”. E
acrescenta que “no mundo inteiro, o militarismo faz uso da expressão incorporada na
couraça do peito, do pescoço e da cabeça para realçar uma ‘dignidade inacessível’. É claro
que estas atitudes se baseiam na couraça, e não o contrário” (1933/1998, p. 347).
Reich considera que a couraça torácica é parte fundamental do encouraçamento em
sua totalidade. “Historicamente, ela pode ser remontada aos momentos de mudança mais
105
decisivos e mais conflituosos da vida da criança, muito provavelmente numa época
bastante anterior ao desenvolvimento da couraça pélvica” (1933/1998, p. 349).
e) segmento diafragmático
Inclui diafragma, plexo solar, estômago, fígado e pâncreas e músculos que se
estendem ao longo das vértebras torácicas inferiores. O plexo solar, um conjunto de
gânglios e filetes nervosos, ligado ao setor simpático do sistema nervoso autônomo, é um
importante centro nervoso.
São características desse bloqueio a respiração superficial e distúrbios respiratórios,
diminuição do movimento pulsatório da energia e impotência orgástica (bloqueio do
reflexo do orgasmo). Segundo Reich, a manifestação mais evidente da quinta couraça é a
lordose da coluna vertebral.
A contenção do diafragma e a inibição de uma respiração mais profunda é uma das
formas mais significativas e que se expressam desde a infância de suprimir sensações de
prazer e de angústia no abdômen. Assim, quando existe o encouraçamento dessa área, a
expiração espontânea é difícil. Na verdade, o organismo se defende contra as sensações de
prazer ou de angústia reprimidas que, inevitavelmente, ocorrem pelo movimento do
diafragma. Observa Reich: “o organismo vivo não pensa nem delibera de maneira racional.
Não faz ou deixa de fazer coisas ‘a fim de...’. O organismo vivo age de acordo com as
emoções plasmáticas primárias, cuja função é satisfazer as tensões e necessidades
biológicas” (1933/1998, p. 351). Essa linguagem não se traduz diretamente para a
linguagem verbal da consciência, o que dificulta, como analisa, traduzir em palavras,
particularmente, os movimentos expressivos contidos pelos dois últimos anéis. Keleman
ratifica esse pensamento:
O metabolismo interno é uma forma de pensamento. A forma de pensamento
precede as palavras; é um processo transmitido por tradição genética. Uma única
célula, de certo modo, é um cérebro. Ela pulsa, expande e retrai, e reflete sobre a
natureza da resistência que encontra no exterior e sobre os tipos de pressão que
tem que gerar em seu interior. A regulagem da pressão pela célula estabelece os
limites de sua expansão e contração, o modo como ela constrói o mundo interno
para se opor ao mundo externo. Assim, a célula pensa sobre sua própria forma e
106
sobre o mundo: com muita ou pouca pressão (...) Isso é pensamento
organísmico
55
(1985/1992, p. 42-43).
Em suas pesquisas, Reich comprovou que a respiração profunda e consciente
afrouxa a couraça torácica e provoca a expansão do diafragma, mas até que o bloqueio do
diafragma tenha sido eliminado, não ocorre a pulsação diafragmática espontânea. Para
que a couraça diafragmática ceda e se retome a pulsação espontânea do diafragma é
necessário que se produza o movimento expressivo da couraça. Diz ele: “Esta é mais uma
confirmação do fato de que meios mecânicos não servem para reativar funções emocionais
biológicas. Só pelo movimento expressivo biológico podemos afrouxar o anel da couraça”
(Reich, 1933/1998, p. 350).
Como mencionei anteriormente, Boadella afirma ser a cintura, assim como o
pescoço, uma das áreas de maior contração da estrutura do corpo. Ela se liga a tensões no
baixo abdômen, na parte mais estreita das costas e nos músculos da região pélvica. O
diafragma estabelece a ponte entre a espinha e o abdômen, ou seja, entre o mesoderma e o
endoderma, entre ação e sentimento.
f) segmento abdominal
Inclui os músculos abdominais longos e os músculos das costas. São características
desse bloqueio os espasmos dos músculos abdominais, laterais e lombares. Reich observa
que “não há uma só pessoa neurótica que não apresente uma ‘tensão no abdômen’”
(1942/1995, p. 259).
A divisão do corpo ao meio, impede a junção da sexualidade (pelve) com o amor
(coração) devido ao medo de se entregar, gera dificuldade de sentir e expressar as emoções,
pela inibição do movimento de expansão. Como afirma Lowen (1972/1983), “o sentimento
é a vida interior, a expressão é a vida exterior” (p. 214), o que significa que uma vida mais
plena exige uma vida interna rica em sentimentos e a liberdade para poder expressá-los. A
vida humana pulsa entre dois pólos, um localizado na cabeça, parte superior do corpo, e o
outro, na parte de baixo, nas extremidades inferiores, o que inclui a pelve, pernas e pés.
Lowen compara o movimento ascendente da energia a um fluxo em direção ao céu,
55
Grifos pessoais.
107
enquanto o descendente é comparado a uma escavação na terra, ao enraizamento, ao estar
grounded. Observa Lowen:
Se pudermos conceber o corpo como sendo dividido em sua metade por um anel
de tensão na área do diafragma, os dois pólos tornam-se campos opostos em vez
de terminais de uma mesma pulsação que se move em ambas as direções,
simultaneamente, ou como pontos finais do balanço de pêndulo que se move entre
eles (p. 215).
Lowen assinala que a tensão diafragmática em conexão com a perda de sensação no
ventre, causada pela couraça abdominal, ocasiona a perda da conexão com o Hara, causada
pela restrição da respiração abdominal profunda. Karlfried Dürckheim
56
explica que,
embora seja traduzido literalmente por barriga e se refira ao baixo-ventre físico, o Hara
“‘existe’ no sentido físico exclusivamente do ponto de vista do ego que separa o corpo da
alma! Na verdade, o Hara é o homem todo, na sua união com as forças renovadoras,
nutritivas, libertadoras e transformadoras da vida original” (1991, p. 187).
Lowen confirma essa visão de totalidade, assinalando que a perda da percepção de
unidade é efeito da alienação ou dissociação das duas metades do corpo, o que gera um
desequilíbrio energético que se manifesta no campo físico, mental e emocional.
As duas direções opostas do fluxo tornam-se duas forças antagônicas. A
sexualidade será vivenciada como um perigo à espiritualidade, assim como a
espiritualidade será vista como uma negação do prazer sexual. Seguindo o
mesmo raciocínio, todos os outros pares de funções antíteses são vistas como
estando em conflito e não em harmonia [consciência/inconsciência, ego/corpo,
...] (1972/1983, p. 215-216).
Boadella (1997) analisando a tripla organização dos compartimentos básicos do
corpo (crânio, tórax e abdômen), com base nos estudos embriológicos de Otto Hartmann,
observa que o abdômen, que se situa entre dois anéis fundamentais de encouraçamento, o
56
Karlfried Dürckheim, catedrático de Psicologia e Filosofia da Universidade de Kiel, na Alemanha,
dedicou-se ao estudo do Hara, criando elos entre a cultura oriental e ocidental. É autor do livro Hara o
centro vital do homem.
108
diafragmático e o abdominal, é uma das áreas mais vulneráveis do corpo, um centro mais
aberto para o mundo. Sem proteção óssea como o crânio, é coberto apenas por tiras de
músculos que lhe permitem o movimento de expansão e contração mais facilmente.
Paradoxalmente, as funções do crânio e do abdômen, são configuradas inversamente:
O crânio contém o cérebro e os principais órgãos sensíveis, cuja função é trazer
informação sobre o mundo em liberdade: o crânio centrípeto possui receptores
sensórios centrífugos. O abdômen, por outro lado, que é mais exposto e mais
aberto, contém os principais órgãos para o metabolismo da energia do corpo. A
barriga centrífuga possui órgãos de coleta e armazenamento de energia
centrípetos. A respiração está relacionada tanto ao metabolismo quanto a estados
de consciência. A inspiração e a expiração estão conectadas aos ritmos do
despertar e do sono, e estes refletem por sua vez a polaridade básica entre a
prontidão necessária às funções sensoriais da consciência e dos processos
metabólicos inconscientes que continuam mesmo depois do sono. De modo
similar, dos dois sistemas circulatórios circulação do corpo e circulação
pulmonar , um está ligado ao sistema metabólico por meio do fígado enquanto o
outro está relacionado às funções de oxigenação e consciência por meio dos
pulmões (p. 117-118).
Boadella (1985/1992) observa que a função primária do Hara está relacionada à
carga ou emoção, correspondendo à energia disponível para a realização vital. Esse centro
energético mantém relação íntima com o umbigo e com a sensação de contato, que se dá
pela conexão com o cordão umbilical. Durante a infância, é onde se centra o bem-estar que
é sustentado pelas experiências agradáveis de ser alimentado no seio. A partir da
adolescência até a idade adulta, se relaciona ao centro sexual.
g) segmento pélvico
Inclui os músculos da pelve, região lombar e glútea, ânus, genitais internos e
externos, pernas e pés. São características desse bloqueio a bacia (pelve) inexpressiva,
problemas sexuais e ginecológicos, dificuldade de se entregar ao prazer (ter direito de ter
prazer), dificuldade de ser assertivo ou passivo.
109
Tensões nas pernas, principal suporte do corpo, provocam dificuldade de contato da
pessoa com o chão, gerando falta de firmeza. A expressão “perder o chão”, que tanto
utilizamos, não é apenas uma metáfora, uma vez que quando nos falta energia de base, o
contato com a realidade é prejudicado e nos falta a sustentação necessária, nos faltam as
pernas.
Alexander Lowen, ao criar a Bioenergética, criou o conceito de grounding, que
significa entrar em contato com o chão, com a terra, ou seja, adquirir base, firmeza. Esse
conceito, ou talvez melhor dizendo, essa “atitude”, se tornou ponto importante também na
teoria de Stanley Keleman e de David Boadella, como o é, também, para a Bioexpressão.
A isso retornaremos mais adiante.
****
É importante frisar aqui que a recuperação das lembranças da infância que geraram
os bloqueios não é essencial, mas sim liberar a emoção aprisionada nas tensões que
bloqueiam a livre expressão (Boadella, 1985/1992). Isto porque não é objetivo da
Bioexpressão trabalhar com conteúdos regressivos, mas sim aumentar o fluxo de energia, o
que ocorre quando as emoções podem se expressar com a flexibilização dos bloqueios. É
evidente que, liberando o bloqueio dos fluxos de energia, memórias passadas poderão vir à
tona, porém, esse não é, volto a frisar, o objetivo da Bioexpressão. Se essas memórias
aflorarem, deverão ser acolhidas, mas não necessariamente estimuladas. Como enfatizam
os autores com que trabalho, a história factual de cada um não necessita obrigatoriamente
ser retomada para que o fluxo da energia se faça.
2.3. As atividades lúdicas como recurso flexibilizador das couraças de caráter
Os teóricos da área da psicossomática em que me apóio, Wilhelm Reich, Alexander
Lowen, Stanley Keleman e David Boadella, não abordam a ludicidade, mas trazem
conceitos importantes dos quais me aproprio para tecer elos que permitem a compreensão
das atividades lúdicas como um recurso para que a expressividade do ser humano possa ser
estimulada através da flexibilização dos bloqueios da bioenergia. O que esses
110
pesquisadores fazem é mostrar que os bloqueios da energia são criados em função de nossa
história de vida, fixando-se em nosso corpo, mas que é possível haver uma restauração do
fluxo natural da bioenergia, o que, por sua vez, flexibiliza nossa personalidade.
Nesta tese, desejo aprofundar a compreensão de como as atividades lúdicas podem
ser um recurso de desencouraçamento da personalidade e, conseqüentemente, um recurso
que pode criar condições de expressividade.
É importante ressaltar que as atividades lúdicas, nesta tese, são consideradas do
ponto de vista de uma vivência interna de quem a experiencia. Isso não significa que
outros autores, que trabalhem um viés diferenciado, não sejam considerados e que venham
a complementar o entendimento do que a ludicidade pode propiciar ao processo
pedagógico e ao processo de formação do ser humano, que não podem ser desvinculados
de outras relações com o coletivo históricas, sociológicas, antropológicas e filosóficas
entre outras. Meu foco se dirige para o sujeito que vive a experiência lúdica, e para os
efeitos que nele se manifestam a partir dessa vivência, assim como para algumas relações
que se estabelecem entre ele e os outros sujeitos que compartilham um momento lúdico.
Para que possamos entender melhor o processo que pode ser vivenciado com as
atividades lúdicas, retomemos, primeiramente, alguns conceitos da embriologia de que
Keleman e Boadella se utilizam conforme foi analisado no capítulo anterior, que são
elementos constitutivos do ser humano e que têm papéis significativos seja no processo dos
bloqueios ou nos processos de desbloqueios do fluxo de energia no ser humano.
2.3.1. O encouraçamento e a contenção da expressão
Na sua formação embriológica, o ser humano é constituído por três camadas:
endoderma, mesoderma e ectoderma. Passada a fase embrionária, essas camadas
germinativas dão origem aos órgãos que nos constituem como seres humanos: o
endoderma dá origem às vísceras, que se relacionam ao sentimento; a camada central, o
mesoderma, irá se transformar nos músculos e ossos, nos vasos sanguíneos e no coração,
permitindo a sustentação e o movimento; a camada mais externa, o ectoderma, forma os
tecidos nervosos e a pele, que respondem pelo pensamento e pela comunicação.
111
Estas três camadas deveriam interagir de forma equilibrada, sem a predominância
de uma sobre a outra, mas não é isso que geralmente acontece, o que resulta em
desequilíbrios entre as nossas experiências de sentir, agir e pensar.
Como foi analisado no item antecedente, os anéis das couraças inviabilizam o fluxo
natural da bioenergia, que se concentra em alguns pontos, enquanto outros se apresentam
com menos energia. Boadella aponta, como foi ressaltado, as contenções que se criam
entre os grandes reservatórios de energia, não permitindo que a energia possa fluir entre
eles, ou seja, entre a cabeça e o tronco (ectoderma e mesoderma), a cabeça e o abdômen
(ectoderma e endoderma) e entre o tronco e o abdômen (mesoderma e endoderma), o que
significa dissociar, respectivamente, pensamento e ação, pensamento e sentimento, e ação
e sentimento. Quando isso ocorre, podem ser identificados três tipos de pessoas:
pessoas-cabeça, com uma redução do sentimento e da atividade; pessoas-corpo,
com uma superconcentração na sexualidade ou atividade compulsiva; pessoas
que são supertrabalhadas emocionalmente, que se prendem em ondas de fixação
passional ou protestos que não as gratificam num nível profundo. Essas são
pessoas que têm um coração agitado, inquieto (Boadella, 1985/1992, p. 148).
Tendo em vista o desequilíbrio que se cria entre as camadas embrionárias
constitutivas do ser humano, observa Luckesi:
Para entrar no contato mais profundo consigo mesmo, o ser humano tem
necessidade de estar em contato com o visceral, com o sentimento, que,
posteriormente, é compreendido e elaborado no pensamento e atuado ou
realizado pelo movimento. Estabelecer e/ou restaurar o equilíbrio entre os órgãos
originários das camadas germinativas do ser humano significa, também, restaurar
o equilíbrio entre o sentir, o pensar e o agir; mas o contrário também tem sua
verdade: a experiência de restaurar o equilíbrio entre o sentir, o pensar e o agir,
através da transformação de crenças, também pode atuar na reequilibração das
camadas biológicas constitutivas do ser humano (2002, p. 47-48).
112
Essa falta de conexão, que se cria com o encouraçamento, gera desequilíbrios na
expressão do ser humano, quer seja de sentimentos, de idéias ou de movimentos. Falta a
ele a graciosidade de que nos fala Lowen, que resulta de um fluxo energético do corpo.
Músculos cronicamente tensos tornam o corpo rígido e destroem sua
graciosidade ao bloquearem o fluxo de excitação. A presença de músculos
contraídos em qualquer parte do corpo exerce um efeito restritivo sobre a
respiração porque esta, para ser plena, exige que as ondas respiratórias
atravessem todo o corpo. Ao limitar a plenitude e a profundidade da respiração, a
tensão muscular crônica também reduz o nível de energia do indivíduo, o que
diminui a vivacidade do corpo como um todo (Lowen, 1990/1991, p. 90).
Não podemos nos esquecer que não é tão simples modificar estruturas corporais
que são criadas para que possamos nos adequar às estruturas sociais, ser aceitos e assumir
os padrões considerados desejáveis. Como observa Maria Augusta Gonçalves, em seu livro
Sentir, pensar, agir Corporeidade e Educação, que aborda essa questão sob um viés
sociopolítico e filosófico, “as pessoas orientam suas ações não em função de uma realidade
objetiva, mas em função da sua percepção da situação, dos significados subjetivos e
intersubjetivos atribuídos às coisas mundanas, no desenrolar de sua história pessoal e
social”; e sinaliza que cabe aos professores de Educação Física (e eu complementaria,
dizendo que aos de outras áreas também) levar seus alunos “a vivenciar autênticas
experiências corporais, em que o aluno forme seus próprios significados de movimento,
quer dizer, que ele envolva seus movimentos com sua subjetividade, que eles se tornem
seus e brotem de sua interioridade” (1997, p. 77).
Keleman, assim como Reich, Lowen e Boadella, tem clareza quanto às influências
da educação para que os bloqueios ocorram. Diz ele:
Uma contração crônica é uma tentativa de estar no mundo de um jeito que seja,
considerado socialmente adequado, primeiro pelos pais e mais tarde pelos
educadores. A própria sala de aula é uma tentativa de fixar o agora e impedir que
os sentimentos venham à tona para evitar o crescimento (1997, p. 99).
113
Lowen, em sua obras, analisa os conflitos que o ego e o corpo travam na busca que
todos nós empreendemos de nos adaptarmos aos padrões sociais, na busca de poder, de
controle, de aceitação. Somos levados a entrar no ritmo desenfreado que a sociedade
capitalista nos impõe, esquecendo que nosso corpo tem seu próprio ritmo, suas próprias
necessidades. Muitas vezes, chegamos a adoecer para que nosso corpo tenha suas
necessidades atendidas. Observa o autor:
Sempre que somos compelidos a algo, nós perdemos a nossa graciosidade e o
nosso corpo transforma-se numa máquina. (...) O homem é a única criatura que
exerce tamanha pressão sobre si mesmo que chega a perder o contato com Deus,
com a vida, com a natureza (1990/1991, p. 76).
Lowen observa que o conflito entre o ego e o corpo “causa uma ruptura entre o
pensamento e o sentimento, entre o arbítrio e o desejo, entre a contenção e a
espontaneidade, ...” (Idem, p. 82). No organismo saudável, ou seja, mais liberto de
couraças e, por isso mesmo, com maior vitalidade, dá-se um maior equilíbrio entre o
refreamento e a excitação. Assim, a pessoa pode expressar mais livremente seus impulsos e
sentimentos, conservando, porém, o autodomínio para fazê-lo de forma apropriada.
Gonçalves considera que o ser humano convive com limites de toda ordem, desde
as biológicas até as de ordem social, política e econômica. Os condicionamentos e
limitações com que se defronta são decorrência de sua condição de ser-no-mundo. Mas se
existem cerceamentos, também existem aberturas:
o homem como ser corpóreo e espiritual possui a possibilidade inerente de
transcendência. Na trama de condicionamentos que cerceiam a ação humana, há
no homem sempre um mínimo de subjetividade, um mínimo de consciência para
lhe permitir ver além dos limites, examinar criticamente as circunstâncias e
orientar sua ação de forma racional (1997, p. 89).
Ter consciência de que nossa capacidade de expressão sofre restrições e entender o
que as causa é um passo importante para sua modificação, mesmo que não seja tão simples
por serem já antigas e arraigadas. E por isso mesmo, quanto mais cedo nossos educandos
114
puderem desenvolver uma expressão mais espontânea, mais facilmente poderão
desenvolver sua capacidade de usar a própria voz.
2.3.2. E as atividades lúdicas, como se colocam nesse contexto?
Assim como a sala de aula, entre outros ambientes vitais e sociais, pode ser um
espaço que dá maior consistência ao encouraçamento, ela pode ser também um local rico
para o não-encouraçamento ou reequilíbrio do fluxo energético no ser humano. Uma das
possibilidades de promover esse reequilíbrio é a utilização das atividades lúdicas na prática
pedagógica escolar, como veremos a seguir.
O primeiro ponto a destacar é que a experiência lúdica atua sobre a energia, logo
mobiliza soma e psique, se constituindo em uma experiência integradora. Observa Luckesi
(2000) que nosso ego, tendo em vista nossa história de vida e as agressões sofridas, se
manifesta com constrições e defesas, portanto, é “controlador”. As atividades lúdicas
propiciam que vivenciemos um estado de consciência que nos liberta do controle do ego, o
que permite a expressão da criatividade, ou seja, uma expressão mais original, mais
própria, sem julgamentos prévios, sem os limites rígidos do perfeccionismo. Na verdade,
elas atuam sobre a energia aprisionada, que mais equilibradas ou flexibilizadas, abrem
como que brechas para que o cerne biológico ou self seja contatado e proporcione a
sensação de plenitude. Esse contato se faz, na maioria das vezes, de forma efêmera, como
“estados de pico”, mas mesmo sendo fugaz, nos permite novas percepções, um maior
conhecimento de nós mesmos e possibilidades de mudança.
Luckesi afirma que a vivência de momentos de plenitude implica o contato com as
forças criativas e restauradoras do equilíbrio que existem na profundidade de nosso ser. E
complementa:
a vivência dessas experiências, vagarosamente, possibilita a restauração das
pontes entre as partes do corpo, assim como o equilíbrio entre os elementos
psíquico-corporais do nosso ser. Na atividade lúdica, o ser humano, criança,
adolescente ou adulto, não pensa, não age, nem sente. Ele vivencia, ao mesmo
tempo, sentir, pensar e agir (2002, p. 48).
115
Quando verbalizamos ou nos movimentamos de forma espontânea, entramos em
contato com o pulsar de nossa energia, integramos corpo e psique. As atividades lúdicas
permitem a manifestação, em qualquer idade, daquilo que as brincadeiras infantis
permitem à criança manifestar: a ação do impulso criativo, a espontaneidade do ser
humano, a alegria de estar inteiro naquele momento, enfim, a expressividade. O lúdico
para o adulto ou o adolescente não significa brincar como a criança, e sim estar imerso em
sua atividade, vivenciá-la com entrega. É estar pulsando. Como observa Lowen, “quando
estamos identificados com uma atividade, fluímos livre e espontaneamente. O prazer é esse
fluxo de sentimentos” (1970/1984, p. 23).
Eva Reich (1998) afirma que medo e raiva contidos endurecem o organismo,
contrariamente ao amor e à alegria que o suavizam. Nossos sentimentos provocam uma
mobilização em nosso corpo:
Um sentimento não é uma idéia ou uma imaginação é um acontecimento
energético no corpo. Existe algo que flui dentro de nós. Quando estamos felizes,
nos esticamos, nos expandimos para o mundo. Quando temos medo, nos
retraímos para dentro de nós mesmos. Nesse movimento, o que flui de lá para cá
é nossa energia vital (p. 29).
As atividades lúdicas, por serem liberadoras de bloqueios psicológicos e corporais,
podem fazer aflorar experiências de dores e de traumas que estavam presos nas couraças
musculares, nas experiências congeladas do passado. Por isso, por vezes, parece
contraditório que uma atividade lúdica desperte uma dor; todavia, isso é possível, devido a
sua característica de ser liberadora e expressiva. Na medida em que entramos em contato
conosco e com nossas experiências de vida, as dores, as opressões, as dificuldades podem
ser desveladas. Entretanto, esse desvelamento nos propicia olhar aspectos de nosso lado
sombrio, reelaborá-los e compartilhá-los, trazendo possibilidades de lidar com eles de
modo mais saudável, restabelecendo o fluxo da vida que estava tolhido naquele ponto.
Isso pode ser melhor compreendido através de uma experiência que vivenciei e que
descrevi em um texto recente. Ela ocorreu em uma escola municipal de uma favela da zona
portuária do Rio de Janeiro, onde dava aulas de Língua Portuguesa para turmas de quinta a
oitava série. A proposta era que escolhessem um tema que se relacionasse a suas
116
experiências de vida. Deixava que a forma de expressão fosse escolhida por cada grupo.
Poderiam usar diálogos, apenas gestos, unir palavras e movimentos, e também utilizar
outras formas visuais de expressão. O importante era que interagissem, criando uma lógica
interna do grupo.
Enquanto discutiam a estrutura do “texto”, poderia parecer a alguém que entrasse
na sala, naquele momento, que havia uma grande “bagunça”, mas, ao observador
mais atento, ficava evidente o envolvimento dos participantes e o desejo de cada
um de expressar sua própria voz (mesmo que através do movimento). Naquele
momento, estavam entrando em contato com sonhos, dores, alegrias, frustrações,
conquistas e perdas. Estavam lidando com discriminações sofridas, com a
opressão com que conviviam, com a desqualificação, com o desamor e a falta de
horizontes. Mas, por outro lado, estavam criando outros espaços, transgredindo
normas sem qualquer sentido para eles, se dando o direito de que suas vozes
fossem ouvidas, que seus impulsos de buscar a vida se manifestassem, que o
desejo de serem sujeitos se fortalecesse. Nas apresentações, não eram atores
representando um texto ensaiado. Eram sujeitos expressando seu repúdio e crítica
à vida vivida e/ou o desejo da vida sonhada, mas não como algo que se colocava
no plano da fantasia, mas no plano do possível, daquilo que se quer conquistar.
Nas discussões que se seguiam à atividade, eles queriam falar de como entrar em
contato com o sombrio de suas existências através da voz, dos gestos, das
emoções, se fazendo ouvir, se mostrando, tinha sido bom. O choro, às vezes,
surgia, mas o brilho do olhar também estava presente. Não era só uma
representação, era se pensar como sujeito da própria existência, adquirir força
para a busca da autonomia. Era se reconhecer como um ser pensante, capaz de
sentir e agir. Talvez o que mais tenha me marcado nessas experiências, seja o
respeito que demonstravam pelos colegas, o clima de profunda solidariedade que
se instalava nesses momentos (Pereira, 2002, p. 16).
As atividades lúdicas permitem que o indivíduo vivencie sua inteireza e sua
autonomia em um tempo-espaço próprio, particular. Esse momento de encontro consigo
mesmo gera possibilidades de maior consciência e conhecimento de si. Mas nem sempre
esse momento de encontro se caracteriza pela alegria com a carga significativa que
geralmente lhe atribuímos, e sim pela sensação de bem-estar de contactarmos nosso self, de
estarmos realmente conosco. Entender e vivenciar essa experiência exige a entrega, o que
se torna inviável no fazer mecânico, no fazer por fazer.
117
A utilização das atividades lúdicas não tem por objetivo trabalhar com o passado,
mas sim mobilizar as tensões e, conseqüentemente, as emoções aprisionadas que
dificultam a expressão espontânea do ser humano, aumentando sua vitalidade. A atividade
lúdica traz o sujeito para o momento presente, desvinculando-se do passado e sem projetar-
se no futuro, dando-lhe a possibilidade de experimentar-se inteiro no aqui-agora, a
vivenciar a plenitude da experiência, a libertar o ego que deseja controlar tudo presente,
passado, futuro. Uma proposta educativa lúdica, propiciando o encontro do sujeito consigo
mesmo, pode permitir a descoberta de limites e possibilidades. O processo, naturalmente,
tem ritmos e resultados diferenciados, dependendo da forma como cada um seja tocado
pelas atividades, das situações vivenciadas ao longo da sua vida, mas as possibilidades de
crescimento e reorganização interna existem. Vivenciar um presente mais pulsante, com
maior fluxo de energia vital é cuidar do futuro, prevenindo a formação de novas couraças,
e, também, mobilizar e transformar qualidades do passado, o que aponta para o aspecto
curativo da ludicidade.
Como observei em minha dissertação de Mestrado, “entrar em contato com nossa
sensibilidade, expressá-la corporalmente, liberta-nos de padrões arraigados e castradores,
tomar consciência do poder expressivo de nosso corpo, abre infinitas perspectivas para um
trabalho mais criativo, crítico, humano e prazeroso” (Pereira, 1992, p. 141).
3. Ludicidade, autoconhecimento e o cuidar de si
Conhecer-se significa entrar em contato consigo mesmo com o propósito de
promover maior fortalecimento interno para melhor enfrentamento da realidade, o que
implica, evidentemente, as relações consigo mesmo e com o outro. É importante que haja a
percepção e a consciência sobre o ser humano em si mesmo e na sua interação com as
complexas relações sociais. O ser humano é um sujeito, sede de suas complexas interações
constitutivas, cujo corpo é o arcabouço, o recurso de sua manifestação. Afinal, nele, dão-se
todas as nossas vivências de sensações, movimentos, sentimentos e pensamentos. Ele é o
nosso meio de estar e se expressar no mundo.
Hugo Assman afirma que “enquanto organismo vivo somos também um sistema
perceptivo e cognitivo”. A partir do que nos vem “de fora”, se dá a nossa construção ativa
da imagem do real. O mundo se forma, se cria somente a partir da leitura que dele fazemos,
118
“corporalizada no sistema auto-organizativo que somos”. Dessa forma, não se pode pensar
a educação, a política ou a espiritualidade (e nem o si mesmo, complementaria eu) sem que
se tenha como referência a corporeidade. “Enfim, nenhum ideal se concebe como ideal,
nenhum ideal se encaminha e nenhum ideal se cumpre a não ser enquanto ligado à
mediação da Corporeidade dos seres deste mundo” (1995, p. 90-91).
A nossa capacidade expressiva, que a Bioexpressão busca ampliar, exige, antes de
tudo, uma percepção adequada de nós mesmos através de nosso corpo, tanto física quanto
energeticamente falando, o que implica o exercício da autopercepção; isto significa
perceber as próprias emoções, a própria postura, as próprias limitações, os pontos onde se
concentra tensão ou fluidez. Se não somos capazes de nos perceber e de nos apropriarmos
um pouco de nós mesmos, teremos maior dificuldade em nos colocarmos no mundo com a
força de nossa expressividade.
Agressões e choques, situações vividas e sentidas, estresse e distresse vão se
imprimindo em cada célula, criando uma imagem somática, emocional, psicológica. Mas o
padrão celular pode ser modificado como mostra Stanley Keleman (1985/1992;
1975/1996), e uma das formas de possibilitar essa transformação é a prática das atividades
lúdicas que considero, em última análise, como um cuidar-se. Cuidar de si, neste sentido,
significa dar possibilidades de que às contrações (tensões, sustos, dificuldades,...) se sigam
expansões (relaxamento, acolhimento, situações prazerosas, apoio,...). E a ludicidade
oferece possibilidades para esse processo de expansão, de maior conhecimento de si, de
restauração de um estado de inteireza, de maior centramento, de estar bem.
Para que esse processo seja bem compreendido, vamos retomar o funcionamento
do sistema neurovegetativo em seu movimento antitético de expansão e contração, o
modelo de psique de Reich e analisar a leitura de Boadella deste modelo, tecendo algumas
relações cabíveis.
3.1. Vida que pulsa: expansão e contração
Como vimos no primeiro capítulo, Reich definiu o conceito de identidade
funcional, o que significa que as couraças musculares correspondem às couraças de caráter
em sua função. Corpo e psique são como que as duas faces de uma mesma moeda;
119
dialeticamente a psique determina o corpo e este a determina. As funções biológicas
básicas de contração e expansão puderam ser observadas tanto no psíquico quanto no
somático, se relacionando ao funcionamento antitético do sistema simpático e do sistema
parassimpático, subdivisões do sistema nervoso vegetativo ou autônomo. O sistema
simpático responde ao desprazer, à contração, à necessidade de proteção. O sistema
parassimpático, ao contrário, atua na direção do prazer, da descontração, expandindo-se
para fora do eu. E é o fluxo contínuo de contração e expansão que gera vitalidade e bem-
estar.
A emoção “movimento para fora” é uma expressão fundamental de todas as
formas de vida, reafirma Boadella (1985/1992), retomando os estudos reicheanos. A
resposta de expansão e contração a estímulos é encontrada mesmo em animais unicelulares,
o que também se manifesta em animais superiores, na ida na direção de um prazer
antecipado ou na fuga da dor em situações desagradáveis. Quando os seres humanos, assim
como os animais, são ameaçados ou vivem uma situação de emergência, cria-se um estado
de tensão e uma mobilização do corpo através do sistema nervoso que apresenta duas
reações esperadas de “luta” ou “fuga”. Passada a ameaça ou sendo a situação resolvida, o
corpo retoma seu ritmo normal. Assim o distúrbio se manifesta de forma aguda e
temporária.
Entretanto, nem sempre essa auto-regulação ocorre. Tensões permanentes,
situações ameaçadoras concretas ou assim percebidas pela pessoa geram uma
hiperatividade do sistema simpático, que deixa de se manifestar apenas pelo tempo
necessário, e se cronificam. É como se houvesse uma constante situação de emergência,
que não permite que ocorra o relaxamento. Verifica-se, nesse caso, que os processos
internos mantenedores dessa regulação não estão respondendo convenientemente e que se
faz necessária alguma forma de estímulo externo.
Os bloqueios de energia, que se apresentam em forma de anéis, como vimos no
item anterior, têm como função limitar o movimento, a respiração e o sentimento como a
única possibilidade disponível de agir contra a dor ou o desprazer. Tanto pode ocorrer a
hiperatividade do sistema simpático em que se corporifica a contração, o estresse, o
impulso de luta ou fuga; como a hiperatividade do sistema parassimpático, corporificando-
se a entrega, o relaxamento, o ultrapassar das defesas. Ambas as cronificações, a rigidez
excessiva ou a lassidão, são distorções que desequilibram o continuum de expansão e
contração, o fluxo da bioenergia. A relação mais racional e saudável com o ambiente em
120
que se vive se dará com a flexibilização dos bloqueios, que impedem o livre fluxo da
energia e, conseqüentemente, dos movimentos e da expressividade.
As atividades lúdicas trazem as duas possibilidades: a de ação e repouso na alegria,
na entrega, no bem-estar: ação, tensão e relaxamento. Vivenciar atividades lúdicas é
estimular nosso fluxo de energia vital, o que traz bem-estar; é estimular a pulsação, o que
significa mais vida, contribuindo para o equilíbrio das funções antitéticas do sistema
vegetativo; enfim, é uma forma de cuidar de nós mesmos.
3.2. Retomando o modelo de psique de Reich
Se considerarmos o modelo de psique que nos ofereceu Reich, o que foi abordado
no item dois deste capítulo, observamos que a entrega que nos propiciam as atividades
lúdicas possibilita que as defesas do ego (vergonha, desajeitamento, perfeccionismo,
rigidez,...), contidas na camada mais externa sejam ultrapassadas e que emoções contidas
na segunda camada venham à tona. Quando nos envolvemos nessas atividades,
temporariamente, nos libertamos do controle do ego e nos permitimos agir sem que nosso
censor interno fique nos criticando: “Que coisa ridícula!”, “que bobagem!”, “que perda
de tempo!”, ... Não estamos preocupados, se de fato existe a entrega, em julgar atos,
emoções, sensações ou movimentos, nossos ou do outro, mas simplesmente os vivemos.
Esse ultrapassar da primeira camada, a das máscaras, e o afloramento de emoções
contidas na segunda camada favorecem o acesso ao cerne biológico, o centro mais
verdadeiro de nós mesmos, onde encontramos soluções criativas, respostas, repouso,
alegria e bem-estar.
É importante relembrar que, nas atividades lúdicas, vivenciamos experiências de
pico e que, apesar de todo bem-estar, alegria e descontração do momento, o contato que
vivenciamos pode ser “apagado” se não for repetido, se não houver um exercício constante
que nos abra as portas para contatos mais freqüentes e duradouros. As brechas abertas para
o acesso ao cerne biológico ou self podem se fechar novamente no encouraçamento.
Quanto maiores os bloqueios ou couraças, maior a dificuldade de se conseguir esse acesso
e maior a facilidade de fechamento a essa possibilidade, pois, mais armado e rígido se
encontra o ego. Os exercícios de meditação ou de relaxamento profundo são bons
121
exemplos disso. No início, é difícil silenciar nossa mente tagarela, conseguir que o corpo
relaxe e que as emoções se aquietem. Aos poucos, com a constância das práticas, vamos
entrando em contato com nosso eu mais profundo com maior facilidade e mantendo o
estado de entrega por tempo mais prolongado.
Isso nos aponta, mais uma vez, a importância das atividades lúdicas na educação
desde a infância, e a continuidade dessas atividades ao longo da vida, flexibilizando as
defesas e evitando a formação de couraças, que tanto geram constrições do fluxo
energético quanto impõem obstáculos para o desenvolvimento mais pleno de
potencialidades.
3.3. A visão de David Boadella do modelo de psique reicheano
Em conferência proferida no II Encontro Baiano de Biossíntese
57
, Cipriano
Luckesi, apresentando a visão de David Boadella do modelo de psique de Wilhelm Reich,
observa que as camadas secundária e terciária são o espaço da energia, enquanto a
primária, a mais profunda é o espaço da essência, do âmago. Temos a possibilidade de
atuar nas duas camadas mais externas, reordenando o fluxo de energia que está bloqueado.
No espaço da essência não há ação, há contato. Para podermos estabelecer contato com a
fonte da expressividade que é nossa essência, é necessário que trabalhemos na
reorganização da energia. Se criamos esses contatos, estamos criando contatos de cura,
porque são contatos com a força da vida interior, que trazem conforto, bem-estar e
preenchimento.
Os bloqueios, como foi visto, atuam no nível da energia, onde o ser se desenvolve e
se constrói. Quando a energia está desorganizada, nós não estabelecemos contato com a
essência, entretanto, existem várias possibilidades de organizá-la, entre as quais estão a
meditação, o relaxamento e as atividades lúdicas.
Observa, ainda, Luckesi que a educação pode não trazer solução para problemas,
mas pode nos dar condições de administrar melhor nossas relações com o mundo. Evoluir,
57
Luckesi, Cipriano Carlos. Por uma proposta de educação integral a partir da Biossíntese. III Encontro
Baiano de Biossíntese. Biossíntese e Contemporaneidade. Clínica e Educação. Salvador, dias 9 e 10 de agosto
de 2002.
122
crescer, aprender a conviver com as dificuldades podem ser consideradas manifestações
curativas. Afinal, a vida integrada não é dada pronta, ela é resultado do desenvolvimento,
que ocorre através do processo permanente de construção e reconstrução da experiência.
A partir do modelo de psique de Reich, David Boadella apresenta uma visão dos
campos de experiência da vida humana que são trabalhados terapeuticamente pela
Biossíntese, e mostrados no diagrama abaixo. Tais campos são indissociáveis, uma vez que
“o ser humano é compreendido como um ser multidimensional e os diferentes níveis de
impressão e expressão são entendidos como campos de experiência na vida (físico, vital,
emocional, mental, espiritual)
58
” (Boadella, 1988, p. 4).
Considero significativo abordar essa visão de Boadella
59
, por entendê-la como uma
possibilidade de pensar a educação, proposta que foi apresentada por Cipriano Luckesi no
II Congresso Internacional de Biossíntese
60
e também na primeira publicação do GEPEL
(Luckesi, 2000). Convém frisar que as distinções apresentadas nas várias camadas têm uma
finalidade didática, uma vez que corpo, emoção e pensamento atuam de forma integrada e
inseparável.
58
Tradução pessoal.
59
Estes conceitos e o diagrama foram criados por David Boadella e apresentados no 7º Congresso Europeu
de Psicoterapia, em Roma, no ano de 1997. Foram publicados no Common Ground and Different Approaches
in Psychotherapy. Editado por Esther Frankel, Escola de Biossíntese, Rio de Janeiro, 1998. O diagrama aqui
apresentado, com as traduções para o Português, foi retirado do trabalho de Cipriano Luckesi citado abaixo.
60
LUCKESI, Cipriano. Biossíntese, Educação e Prevenção das Neuroses Futuras perspectivas para o
século XXI. II Congresso Internacional de Biossíntese. Perspectivas da Terapia Psicossomática para o
Próximo Século. 11 a 14 de outubro de 2000. Salvador, Bahia, Brasil.
123
O diagrama possibilita diferentes leituras. A primeira possibilidade é a leitura das
camadas circulares.
A primeira camada, a mais externa, representa nossos mecanismos de defesa, as
máscaras que vamos criando e os bloqueios que se congelam em nossa musculatura assim
como na psique. Aí se manifestam as couraças de caráter, os bloqueios corporais e as
“contrações espirituais”. A segunda camada guarda as qualidades mais verdadeiras, o que
está mais próximo do que verdadeiramente somos, e que podem se manter ocultas,
inconscientes. Porém, à proporção que os mecanismos de defesa do ego são flexibilizados,
essas qualidades mais autênticas podem emergir. A terceira camada, a essência, representa
nossas qualidades mais profundas.
124
É importante deixar claro que quando falamos em “qualidades”, não nos referimos à
conotação que normalmente damos à palavra, que se coloca como o oposto a defeitos.
“Qualidades” são atributos, características qualitativas das camadas da psique do ser
humano. Amor, ódio, coragem, medo e raiva são qualidades que podem estar manifestas ou
não para nós, mesmo presentes na nossa psique, ocultas na segunda camada.
A segunda leitura pode ser feita pelas áreas horizontais que também são três. A
primeira se relaciona ao corpo e é composta pelos campos 1 e 2; a segunda se refere à
personalidade, às inter-relações e às expressões emocionais, é composta pelos campos 3 e
4; a terceira área, a superior, se relaciona às experiências simbólicas, onde se encontram o
simbólico, o imaginário, as crenças, composta pelos campos 5 e 6.
A terceira leitura pode ser feita verticalmente. Essa leitura nos permite diferenciar
os segmentos da relação interpessoal à esquerda, ou seja, as relações que estabelecemos
com o mundo externo, com as pessoas; e da relação intrapessoal à direita, isto é, as
interações que estabelecemos com nós mesmos. Em ambas as relações se manifestam as
ligações com o corpo, com a vivência emocional e com o imaginário. Assim como cada
uma das relações afeta a outra, envolvem, ainda, o self transpessoal.
Qualquer leitura que façamos, estaremos incluindo os campos diferenciados que
compõem as estruturas lidas. Vamos analisá-los separadamente.
Na primeira camada, a mais externa, estão os aspectos mais facilmente observáveis
referentes ao corporal, ao emocional e ao imaginário (mental). Os dois primeiros campos, 1
e 2, representam as experiências corporais. O primeiro se relaciona à carga energética
manifesta na estrutura corporal e na sua massa muscular. Como vimos no primeiro
capítulo, Keleman observa duas formas com que o indivíduo pode lidar com as agressões
contínuas: enrijecer ou desmoronar, o que corresponde a uma estrutura over-bound
(sobrecarregada) ou under-bound (subcarregada) energeticamente, isto é, há um aumento
na natureza da expansão ou da contração, deixando de existir o movimento contínuo e
natural de expandir e contrair. O segundo campo se refere à respiração que pode se
apresentar excessivamente controlada, o que geralmente se caracteriza pela contenção da
inspiração e a dificuldade de expirar, pois, inibir uma respiração mais profunda é uma das
formas mais eficazes de suprimir as emoções; ou pode também se manifestar
desordenadamente, de forma caótica. Os campos seguintes, o 3 e o 4, representam a
estrutura da personalidade, das emoções. O terceiro aponta os padrões de relacionamentos
125
que podem se apresentar como de invasão ou de privação, enquanto o quarto apresenta os
padrões emocionais, que também apresentam oposição, repressão ou explosão. O quinto e
sexto campos mostram os níveis de experiência mental. O campo 5 apresenta a linguagem
confusa e defensiva, o que indica uma expressão desconectada e descentrada. O campo 6
apresenta o imaginário restritivo, ou seja, crenças, idéias e símbolos se apresentam de
forma deturpada, fechada ou destorcida.
A segunda camada, a intermediária, se apresenta mais organizada, mais saudável,
mais próxima de nossa essência. Aponta para o caminhar do processo energético
organizativo, podendo ser observado o caminho rumo ao equilíbrio de cada uma das três
relações: corpo, emoção e pensamento. Os dois primeiros campos representam, como na
primeira camada, as experiências corporais. O campo 1 representa impulsos naturais de
movimento e o 2, uma respiração mais equilibrada, o ritmo centrado da respiração. Os
campos seguintes, o 3 e o 4, representam a personalidade. O campo 3, superadas as
oposições de invasão ou privação nos relacionamentos, apontam para o contato e o
diálogo. O campo 4 também aponta para a superação da repressão e da explosão, com a
possibilidade da clareza emocional. Os últimos campos, 5 e 6, que se referem ao
pensamento, sinalizam, respectivamente, a linguagem conectada e o imaginário criativo, o
que significa a superação do pensamento restritivo e da expressão confusa.
A terceira camada, a mais profunda, representa nossa essência, o self. Quando
acessamos esta camada, “nós contactamos o nível de experiência da energia sutil”, onde
nosso self pessoal se integra ao self transpessoal
61
(Boadella, 1998, p. 6).
Não é minha intenção aprofundar os estudos sobre o processo terapêutico da
Biossíntese, e sim, a partir do gráfico apresentado, pensar possibilidades de trabalhar os
diversos campos através das atividades lúdicas na prática escolar. Como vimos
anteriormente, quando atuamos no nível das couraças musculares e de caráter, estamos
trabalhando com a energia vital, equilibrando-a e abrindo brechas para acessar a camada
mais profunda: nossa essência (self ou cerne biológico). Assim como a Biossíntese tem
como objetivo terapêutico “iniciar desbloqueando as constrições corporais, reorganizar a
personalidade e clarear crenças errôneas de cada um de nós, conseqüentemente,
possibilitando a cada ser humano o ingresso na segunda camada do nosso ser”, as
atividades lúdicas possibilitam que os vários campos sejam trabalhados na área da
61
Tradução pessoal.
126
educação (Luckesi, 2000, p. 30). Este é um dos objetivos da Bioexpressão, como veremos
mais detalhadamente adiante.
Tomando por base Luckesi (2000), vejamos como as práticas educativas podem
trabalhar os diversos campos apresentados por Boadella:
Os campos 1 e 2, relacionados à expressão corporal, são trabalhados a partir das
atividades motoras voltadas para o movimento pessoal expressivo e das atividades de
enraizamento (grounding), assim como de respiração consciente, que expandem o fluxo
energético e abrem canais para a circulação energética, contribuindo para que sentimentos
contidos na musculatura (couraças) sejam flexibilizados e que tensões musculares sejam
percebidas.
Os campos 3 e 4, relacionados aos sentimentos e emoções, são trabalhados a partir
de situações e vivências em que se possibilite a inter-relação e a ressonância, ou seja, em
que se exercite o dar e receber, o acolhimento, a colocação de limites, o dizer sim e não, o
estabelecimento do diálogo, da troca, da busca de soluções ou a construção coletiva. Da
mesma forma, vivenciar momentos de contato com os próprios sentimentos e emoções de
forma que possam ser percebidos e expressados. Enfim, possibilitar situações em que
sejam exercitadas as relações com o outro, assim como o contato consigo e o
conhecimento de si mesmo.
Os campos 5 e 6, referentes ao mental, ao imaginário, ao simbólico, são trabalhados
respectivamente pelo exercício da expressão mais espontânea e natural, gerando uma
linguagem conectada; e em que se exercitam as possibilidades de outras visões, o exercício
do ouvir, o que traz a chance de acolher e analisar outras idéias, na medida do possível,
propiciando um imaginário mais criativo.
Como vimos anteriormente, as atividades lúdicas oferecem possibilidades de
acessar nosso self, o centro do diagrama, o que permite que entremos em contato com as
qualidades fundamentais do nosso ser. Entrar em contato com nossa essência é um
processo curativo, é despertar para a capacidade de ser, criar, sonhar, realizar, acessando
outras dimensões.
Luckesi, considerando a possibilidade de, na prática educativa, cuidarmos dos seis
campos da vida humana apresentados por Boadella, observa que a educação pode se tornar
“uma grande oportunidade de ‘prevenção das neuroses futuras’, na medida em que cada
criança, cada adolescente, cada adulto, poderá melhor organizar sua experiência corporal,
127
sua vida emocional, assim como seu mundo do imaginário, das crenças e dos símbolos, que
dão direção à vida” (2000, p. 32).
3.4. Ainda sobre o cuidar
Leonardo Boff, em seu livro Saber cuidar, traz a questão que vem sendo abordada
por analistas e pensadores contemporâneos, de um difuso mal-estar da civilização.
Considera que este sintoma doloroso se mostra como decorrência do descaso, do abandono
e do descuido que se manifestam nas mais diversas áreas da sociedade. O descuido e o
descaso se mostram em relação às crianças escravizadas pelo trabalho, aos pobres e
marginalizados de toda sorte, aos desempregados e aposentados sem condição de
sobrevivência, à coisa pública envolvida pela corrupção, jogos de poder e interesses
corporativos; se mostram na destruição da Terra, do equilíbrio ecológico, no grau de
violência que prolifera nas relações interpessoais e institucionais. O descuido e o descaso
se mostram também no menosprezo à solidariedade, aos ideais de liberdade e de dignidade
para todos os seres humanos, às raízes culturais daqueles que são marginalizados social ou
intelectualmente. Afirma, ainda, o autor que
há descuido e descaso pela dimensão espiritual do ser humano, pelo esprit de
finesse
(espírito de gentileza) que cultiva a lógica do coração e do enternecimento
por tudo que vive e existe. Não há cuidado pela inteligência emocional, pelo
imaginário e pelos anjos e demônios que o habitam. Todo tipo de violência e de
excesso é mostrado pelos meios de comunicação com ausência de qualquer pudor
ou escrúpulo. (...) Há um abandono da reverência, indispensável para cuidar da
vida e de sua fragilidade (Boff, 1999, p. 19).
O cuidado, como enfatiza Leonardo Boff, é o que se opõe ao descuido e ao descaso.
Cuidar não é apenas um ato, mas uma atitude. Não se trata de apenas dedicar um momento
de atenção, de zelo ou desvelo. “Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de
responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro”. Mais que isso, o cuidado há que
se mostrar em tudo, pois, “nas palavras de Martin Heidegger: ‘o cuidado significa um
128
fenômeno ontológico-existencial básico’. Traduzindo: um fenômeno que é a base
possibilitadora da existência humana enquanto humana” (Idem, p. 33-34).
É o cuidado que humaniza, que faz com que surja o ser humano com toda sua
complexidade, sensibilidade e solidariedade. O cuidado, essência da vida humana, precisa
ser continuamente alimentado. “As ressonâncias do cuidado são sua manifestação concreta
nas várias vertebrações da existência e, ao mesmo tempo, seu alimento indispensável”.
Mas, como vemos, a falta do cuidado se manifesta em toda parte. “Suas ressonâncias
negativas se mostram pela má qualidade de vida, pela penalização da maioria empobrecida
da humanidade, pela degradação ecológica e pela exaltação exacerbada da violência”. O
caminho da cura não se encontra fora do ser humano. “O ethos
62
está no próprio ser
humano, entendido em sua plenitude que inclui o infinito. Ele precisa voltar-se sobre si
mesmo e redescobrir sua essência que se encontra no cuidado” (Boff, 1999, p. 190-191).
Acredito que uma educação voltada para a integração dos vários aspectos do ser
humano corporal, emocional, mental e espiritual, traga possibilidades a cada educando (e
a cada educador) de se conhecer um pouco mais, de se relacionar melhor consigo mesmo e
com o outro, o que implica lidar melhor com as próprias dificuldades e com as do outro,
possibilidades de se expressar de forma mais espontânea e criativa. Essas aquisições são
formas de cuidar de si, de auto-investimento e são, ainda, formas de se respeitar e respeitar
o outro, de se perceber como pessoa que é singular, mas que não se desvincula do coletivo,
do social, do cultural, o que pressupõe cuidar dessas relações indissociáveis.
4. A ludicidade na sala de aula: dificuldades e possibilidades
Uma prática educativa lúdica abre espaços para que a vida pulse na sala de aula e
em cada um de seus participantes, educadores e educandos, que estes se integrem e
encontrem novas maneiras de viver a educação. Mas, apesar das possibilidades que traz,
62
Ethos conjunto de princípios que regem, transculturalmente, o comportamento humano para que seja
realmente humano no sentido de ser consciente, livre e responsável; o ethos constrói pessoal e socialmente o
habitat humano.
129
nem sempre é tão fácil que os educadores assumam a ludicidade em suas salas de aula.
Que razões há para isso?
Uma aula com características lúdicas não precisa ter jogos ou brinquedos, embora,
certamente, será bom tê-los também. O que traz ludicidade para a sala de aula é muito mais
uma “atitude” lúdica do educador e dos educandos. Assumir essa postura implica
sensibilidade, envolvimento, uma mudança interna e não apenas externa, implica não
somente uma mudança cognitiva, mas, principalmente, uma mudança afetiva. A ludicidade
exige uma predisposição interna, o que não se adquire apenas com a aquisição de
conceitos, embora estes sejam muito importantes. Uma fundamentação teórica consistente
dá o suporte necessário ao professor para o entendimento dos porquês de seu trabalho.
Trata-se de formar novas atitudes, daí a necessidade de que os professores estejam
envolvidos com o processo de formação de seus educandos. Isso não é tão simples, pois,
implica romper com um modelo, com um padrão já instituído, já internalizado.
A escola tradicional, centrada na transmissão de conteúdos, não comporta um
modelo lúdico. Por isso é tão freqüente ouvirmos falas que apóiam e enaltecem a
importância do lúdico estar presente na sala de aula, e queixas dos futuros educadores,
como também daqueles que já se encontram exercendo o magistério, de que se fala da
importância da ludicidade, se discutem conceitos de ludicidade, mas não se vivenciam
atividades lúdicas. Fala-se, mas não se faz. De fato, não é tão simples uma transformação
radical pelas próprias experiências que o professor tem ao longo de sua formação
acadêmica.
Como observa Tânia Fortuna, em uma sala de aula ludicamente inspirada,
convive-se com a aleatoriedade, com o imponderável; o professor renuncia à
centralização, à onisciência e ao controle onipotente e reconhece a importância de
que o aluno tenha uma postura ativa nas situações de ensino, sendo sujeito de sua
aprendizagem; a espontaneidade e a criatividade são constantemente estimuladas
(2001, p. 116).
Podemos observar que essas atitudes, de um modo geral, não são de fato
estimuladas na formação do educador. Ao contrário, o novo assusta, evitam-se as situações
130
em que o controle não seja mantido, as ousadias são temidas. Mas a ousadia, apesar do
medo, é imprescindível como acena Regina Leite Garcia:
A sala de aula, quando vencemos o medo de errar e aprendemos que sem
erro não nasce o novo, pode efetivamente ser um espaço/tempo de ricas
aprendizagens em que todos ensinam e aprendem e, mais que tudo, onde se criam
novos conhecimentos.
Assim somos convidadas e convidados à flexibilidade e à coragem de
sair das grandes estradas retas, claras, já mapeadas antes de serem construídas,
para entrarmos por atalhos labirínticos onde não se pode ver antecipadamente
onde nos levam... (2000, p.118).
Considero como lúdicas as atividades que propiciem a vivência plena do aqui-
agora, integrando a ação, o pensamento e o sentimento. Tais atividades podem ser uma
brincadeira, um jogo ou qualquer outra atividade que possibilite instaurar um estado de
inteireza: uma dinâmica de integração grupal ou de sensibilização, um trabalho de recorte e
colagem, uma das muitas expressões dos jogos dramáticos, exercícios de relaxamento e
respiração, uma ciranda, movimentos expressivos, atividades rítmicas, entre outras. Mais
importante, porém, do que o tipo de atividade é a forma como é orientada e como é
experienciada, e o porquê de estar sendo realizada. Ela deve permitir que cada um possa se
expressar livre e solidariamente, que as couraças, bloqueios que se estabelecem, possam
ser mobilizadas e que haja um maior fluxo de energia.
Carmem Bahia afirma que “o lúdico sensibiliza, conscientiza e predispõe os
envolvidos a uma participação mais efetiva nas etapas do trabalho pedagógico” (2000, p.
115). Há que se ter o cuidado, entretanto, de não fazer dele um simples meio de alcançar
objetivos pedagógicos determinados. O primeiro fim a ser atingido é a própria vivência da
experiência lúdica e o fluxo de energia que daí decorre.
Kishimoto (1994) aponta a presença das funções lúdica e educativa nos jogos e
brincadeiras em sala de aula. Na primeira dessas funções, se contempla a diversão, o
prazer, o envolvimento intenso de quem brinca com a atividade; na segunda, valoriza-se o
espaço da aprendizagem e de apreensão do mundo. Ambas as funções estão sempre
presentes, embora se apresentem em graus diferentes, podendo haver a predominância de
uma função sobre a outra, entretanto, como a própria Kishimoto (1996) observa, os
131
brinquedos deveriam criar momentos lúdicos de livre exploração, prevalecendo a incerteza
do ato e não a busca exclusiva de resultados. Se os mesmos objetos servem como auxiliar
da ação docente, e somente se buscam resultados quanto ao desenvolvimento de
habilidades e à aprendizagem de conceitos ou noções, a função lúdica se perde, e o
brinquedo torna-se apenas material pedagógico.
As questões teóricas trazidas anteriormente sinalizam que a psicossomática e a
neurobiologia são áreas de conhecimento que podem contribuir para que pensemos a
prática educativa e para a compreensão do porquê das atividades lúdicas nesse contexto.
Além dos aspectos já abordados, há outros que considero significativos quando nos
reportamos mais especificamente às relações de sala de aula. É o que veremos a seguir
4.1. As relações em sala de aula: tecendo elos entre a educação e a
psicossomática
Em nossas relações, podem ocorrer, o que geralmente acontece, distorções no
contato e nos vínculos que estabelecemos, dificultando ou até bloqueando a interação com
o outro. David Boadella (1982/1983) analisa os padrões que se estabelecem nas relações
entre duas pessoas, que podem ser de ressonância ou de interferência. Se o contato for
saudável, sem medos ou desconfianças, estabelecendo-se um vínculo, tem-se um padrão de
ressonância. Os padrões de interferência se referem a distorções ou bloqueios nesse
vínculo, ou a pseudovínculos.
Muito das interferências que ocorrem nas relações têm como origem o vínculo
inicial que estabelecemos com as pessoas mais significativas para nós na infância,
geralmente nossos pais ou pessoas que ocuparam seu lugar. As distorções refletem padrões
antigos que se registraram e que são projetados no novo relacionamento, causando
distorções. Ou seja, as experiências por que passamos na infância ficam registradas em nós
de forma tão intensa, mesmo que inconscientemente, que essas primeiras percepções
podem ser projetadas em relações que se criam bem mais tarde, pela vida afora.
Na relação educador/educando, não raramente, se manifestam interferências, assim
como na relação terapeuta/cliente e em situações em que pessoas trabalham juntas para
solucionar um problema ou fazer trocas, enfim, nas atividades grupais. As distorções de
132
contato podem partir do cliente/educando ou do terapeuta/educador. No primeiro caso,
ocorre a chamada transferência, no segundo, ocorre a contratransferência. Podem ser
positivas ou negativas, dependendo da qualidade do que é projetado no outro, tendo como
origem a ligação inicial estabelecida com nossos pais ou outras pessoas importantes para
nós.
Ter conhecimento disso é importante para que possamos lidar com as dificuldades
daí decorrentes com mais tranqüilidade e consciência de que as relações humanas exigem
cuidados e atenção. Também é significativo considerarmos a ação que as atividades lúdicas
podem exercer para facilitar as relações entre educador e educando e entre os componentes
do grupo. Assim, primeiramente, traçarei algumas relações entre a prática terapêutica e a
prática escolar, tomando por base os estudos de David Boadella (1982/1983; 1985/1992)
para, em seguida, apontar possibilidades de trabalhar essas relações através das atividades
lúdicas.
4.1.1. Interferências: os desencontros na relação educador-educando
Boadella (1982/1983) aprofunda a análise da relação terapeuta/cliente, tomando por
base as três camadas da estrutura psíquica proposta por Reich, que julgo pertinente
considerar, trazendo alguns aspectos para a relação educador/educando. Como não é minha
intenção aprofundar as questões de transferência e contratransferência observadas na
situação terapêutica, me limitarei a considerar aqui os aspectos mais abrangentes, as
interferências que podem mais facilmente ser observadas na prática escolar, e que acredito
poderem ser minimizadas através das atividades lúdicas.
Primeiramente, vale relembrar que a camada mais externa é a das máscaras, das
defesas do caráter; a do meio é a que guarda os impulsos reprimidos, que guarda, portanto,
sentimentos “não aceitáveis”, confusão, tensão, ansiedade, enfim, nosso lado sombrio; e a
camada mais profunda é aquela que expressa a essência, o self, o cerne biológico, onde se
encontra nosso lado mais autêntico, nossas necessidades básicas. Como vimos
anteriormente, muitas dessas necessidades do ser humano são abafadas durante a infância
e, inicialmente, há uma revolta do indivíduo contra isso, que faz tentativas de satisfazê-las.
Mas se a repressão é muito forte, algum tipo de formação de caráter se fixa nas outras duas
camadas.
133
Boadella sugere que, para que ocorra o padrão de ressonância, a essência precisa
ser acessada. Para ele, em termos transferenciais, a camada mais externa e a camada
intermediária estão implicadas na transferência; é necessário que a transferência seja
transposta, ou seja, que as interferências sejam superadas, para que se estabeleça a
verdadeira relação e ocorra o padrão de ressonância. Afirma: “isso faz muito sentido para
mim. É só pegar o modelo de Reich das Três Camadas e aplicá-lo à relação: temos duas
pessoas em vez de uma” (Boadella, 1982/1883, p. 88-89). Para o autor, pode-se, a partir
daí, considerar com que camada cada uma das duas pessoas está se relacionando.
Como observa Sandra Celano, as relações que estabelecemos com as pessoas
podem ocorrer através de aspectos de nosso lado sombrio ou de nossas máscaras, de nossas
defesas. Podemos mesmo acreditar que somos alguns desses aspectos, que fazem parte de
nós, criar identificação com eles. Entretanto, “à medida que nossa Essência se revela e se
expande, nos desidentificamos dessas qualidades e passamos a nos identificar com as
qualidades essenciais latentes dentro de nós” (2000, p. 51).
Na relação educador/educando, podemos considerar alguns aspectos significativos
a partir dessas relações. Se o núcleo essencial do educando se relaciona com a máscara do
educador, não será possível o estabelecimento de uma relação de confiança, pois, este não
está aberto a uma relação mais verdadeira, uma vez que se encontra protegido por seu
encouraçamento. Se a relação se estabelecer com os recursos da segunda camada, poderão
ocorrer problemas, visto que o educando estará lidando com sentimentos reprimidos, raivas
e medos do educador.
Por outro lado, se o núcleo essencial do educador (camada central) encontrar
apenas a máscara do educando, nenhuma mudança profunda ocorrerá neste, que estará
preso a suas couraças e fechado para um contato mais profundo, para novas possibilidades.
Se não puder ir além da segunda camada, poderá se sentir completamente fatigado,
esvaziado de energia ao fim do dia, levando-se em conta que entrará em contato com
demandas de seu educando que não pode atender, conflitos que fogem a sua possibilidade
de ação.
Quando o contato se dá de máscara para máscara, ou seja, quando a ligação se
estabelece com os recursos das camadas mais externas, a relação se estabelece em um nível
superficial, sem espontaneidade e convencional.
134
Pode ainda ocorrer uma relação estabelecida com os recursos das camadas
secundárias. Nesse caso, temos uma relação marcada pelo conflito, pelas dificuldades, em
que predomina a interferência dos aspectos destrutivos, da agressividade, da desconfiança
de ambas as partes.
Em Correntes da vida, Boadella enfatiza que, para a auto-organização do ser
humano, há necessidade de condições apropriadas. Para que a criança tenha um
desenvolvimento saudável, ela necessita da presença dos pais, de seus cuidados e atenção.
Para qualquer ser humano em situações diferenciadas, para que ocorra a transformação de
padrões de sentimentos e expressões bloqueados, nada é mais importante que o
acolhimento de outro ser humano: “a receptividade viva do outro ser humano”, como
lembra o autor.
Reich chamou de identificação vegetativa a possibilidade de perceber no próprio
corpo os padrões de expressão bloqueados em seus clientes; Keleman e Boadella usaram a
expressão ressonância somática para definir a relação biológica que se estabelece entre
duas pessoas. Todos enfatizaram a importância de que se estabelecesse esse vínculo para
que ocorresse o processo curativo. “A ressonância somática das mãos, da voz e da presença
do terapeuta é o campo organizacional no qual ocorre o processo formativo de reintegração
do corpo, da mente e do espírito” (Boadella, 1985/1992, p. 11).
As visões de Reich, Keleman e Boadella, embora apresentem um foco terapêutico,
expressam também uma compreensão energética que se aplica às variadas formas de
relação que construímos ao longo da vida, entre as quais, as relações que estabelecemos
com nossos educandos. Acredito que quando interagimos com nossos educandos dentro de
um padrão de ressonância, ou seja, quando estabelecemos uma relação de self a self, muitas
resistências são vencidas, criando-se maior abertura para novas idéias, novas visões, novas
percepções. Como afirma Paulo Freire, “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si
mesmo, os homens educam-se entre si, mediados pelo mundo” (1987, p. 52). É a abertura
para a transformação, para a aprendizagem, para o desvelamento do mundo e o
comprometimento com isso que propiciam a aprendizagem. A ressonância cria espaço
favorável a essa abertura e comprometimento.
Uma prática lúdica pressupõe, como vimos, uma humanização nas relações, a
presença da ressonância. Só podemos estar presentes de fato quando nos colocamos
inteiros naquilo que fazemos. O educador que se disponha a desenvolver uma prática
135
lúdica tem que se dispor a vivenciar a ludicidade, acreditar no trabalho que realiza e se
abrir para essa aprendizagem. Não é possível viver o momento, se estamos preocupados
com o que devemos fazer ao terminar a aula, com as contas que devemos pagar antes que o
banco feche, se nos preocupamos em saber o resultado do jogo de futebol, ou se contamos
os minutos para voltar para casa.
Criar um padrão de ressonância significa estar presente, vivenciar o aqui-agora, o
que se passa a nossa volta, sentir o ambiente, a energia que flui na troca com o outro.
Significa estabelecer uma relação de self para self, deixando cair a máscara da autoridade,
que se confunde com o autoritarismo, da pseudo-segurança, de dono da verdade. Temos
muitos medos, entre eles o de perder o controle das situações, da sala de aula, de termos
nosso saber colocado em xeque, de deixar que nossas fraquezas se mostrem, enfim, de que
nossa humanidade seja desvelada. Esquecemos, muitas vezes, que a verdadeira autoridade
é conquistada e não imposta. Ela é conquistada pelo respeito que temos por nossos
educandos e que estes têm por nós, pelo comprometimento que assumimos com nosso
trabalho. Falar de sentimentos, de amor, de solidariedade soa como pieguice para muitos.
Vivenciá-los destrói esse mito. E as atividades lúdicas são recursos que nos dão
possibilidades de superar muitas das barreiras que construímos a nosso redor, como formas
de nos proteger e evitar o sofrimento. Entretanto, quanto mais barricadas erguemos por
medo de tornar nossa relação mais humana e mais vulnerável, mais dificuldades criamos
para que a expressão criativa se manifeste, assim como maiores possibilidades de criar
interferências que dificultam a dinâmica das atividades didático-pedagógicas.
Mais adiante, na apresentação da análise dos dados da pesquisa de campo, essas
questões serão aprofundadas e acredito que será mais fácil a compreensão desses conceitos
aplicados à prática. Os mais de trinta anos de experiência no magistério e de contato com
colegas de profissão têm me mostrado que nossos educandos são capazes, independente do
método utilizado, de distinguir e valorizar os professores que estabelecem o padrão de
ressonância. É inegável, a meu ver, que o corpo do educador fala e ouve o que vibra
energeticamente na sala de aula, assim como os corpos dos educandos.
136
4.1.2. Envolvimento e distanciamento: distorções no padrão de ressonância
Boadella (1982/1983) aponta os dois extremos de distorções no padrão de
ressonância que podem nos ajudar a entender melhor as relações interpessoais. Esses
extremos são o superenvolvimento e o superdistanciamento. Os extremos apresentados
pelo autor se referem ao processo terapêutico, mas vamos considerar aqui as relações de
sala de aula, observando que poderiam ser aplicadas também a outras formas de relação.
O superdistanciamento, tomado no campo da educação, se refere ao afastamento
que o educador estabelece entre si e seus educandos, temendo que seja criado
envolvimento. A ênfase é colocada na manutenção da distância, na manutenção do
“profissionalismo”. Lembro-me de um professor de Didática, quando fiz a licenciatura do
curso de Letras, que nos dizia sempre: “não sorriam muito e nem se aproximem muito, ou
perderão o controle da turma”. Como professora, ouvi muitos estudantes da Pedagogia, que
já haviam feito Curso Normal, me perguntarem: “Você sorri e brinca assim com os alunos
do ensino médio ou fundamental? Sempre nos disseram para entrarmos sérios em sala de
aula para manter a disciplina”. O mito da sisudez passou, desde então, a ser um dos pontos
discutidos em sala de aula, entre tantos outros mitos que se espalham pelas aulas de
Didática.
Boadella observa que Reich enfrentou pressões e preconceitos por quebrar o padrão
de distanciamento criado pela tradição psicanalítica, o que também se mostra na tradição
médica. Não era esperado que aqueles que trabalhavam com a mente e as emoções
tocassem o corpo de seus clientes como Reich fazia. Isso interferia na manutenção do
distanciamento. Entretanto, comenta Boadella, esse tabu quanto ao toque, que está
implícito nesta postura superdistanciada, superclínica e superprofissional, “na verdade,
interfere na confiança. Ninguém vai abrir seu coração para uma orelha sentada ali atrás
como se fosse um gravador” (1982/1983, p. 87). Também na área educacional, essa
postura de “profissionalismo” e distanciamento extremados desumaniza a relação,
tornando-se um empecilho para uma educação lúdica.
O superenvolvimento não é, da mesma forma, uma relação saudável, uma vez que
os espaços de cada um não são preservados e acaba por haver um desgaste físico,
emocional e energético maior. O educador acaba por sentir-se sugado, solicitado em
excesso. Cria-se uma dependência do educando em relação ao educador que não é saudável
137
para nenhum dos dois uma vez que para o educador ocorre um desgaste maior e o
educando, por sua vez, cria uma dependência que interfere em seu processo de
crescimento, em seu processo de assumir a responsabilidade por sua aprendizagem e
autodesenvolvimento.
Não podemos assumir como nossos todos os problemas com que nos defrontamos,
trazidos por nossos educandos. Podemos acolher, orientar, sugerir, mas não somos
onipotentes e, se nos envolvemos demasiadamente, perdemos a própria capacidade de
discernir e de ajudar. Manter-se centrado e consciente dos próprios limites e dificuldades é
fundamental. Se absorvermos e carregarmos para casa todos os problemas que se agitam na
sala de aula e além dela, estaremos dilapidando o equilíbrio necessário para viver
saudavelmente as nossas relações. Estar grounded (enraizados) nesses casos é
imprescindível.
Acolher não significa absorver os problemas, dificuldades e desequilíbrios do outro,
e sim compreender, apoiar, estimular, orientar na medida do possível.
Cipriano Luckesi (2000) estabelece uma relação entre o terapeuta e o educador
tomando por base a configuração da relação ideal do terapeuta com o cliente no trabalho
com a Biossíntese, criada por Boadella, e três estilos de interação entre educador e
educando estabelecidos por Paulo Freire: invasão, privação e diálogo. Considero
pertinente apresentar a relação estabelecida por Luckesi, propondo alguns exemplos.
O terapeuta/educador invasor não respeita os limites do cliente/educando e acaba
por desestimulá-lo a confiar em seu próprio processo de desenvolvimento. Isso se mostra
no professor que despeja teorias, conteúdos e idéias ditas como definitivas, que oferece
interpretações prontas ou que se considera o “dono da verdade”. A privação ocorre quando
o cliente/educando deixa de ser acolhido e de receber a sustentação necessária para seu
crescimento. Isso pode ser identificado naquele educador que reage com desinteresse a uma
nova idéia ou sugestão trazida pelo aluno, que não dá respostas às atividades desenvolvidas
por ele, enfim, que o priva de seu retorno e de qualquer forma de acolhimento. Um
professor para o qual “qualquer coisa serve”.
O diálogo é a forma saudável de relação: nem invadir, nem privar, mas partilhar. O
diálogo representa uma dança fluida entre dois. Podendo ser verbal ou não verbal, o diálogo
permite uma interação dinâmica entre o cliente/educando e o terapeuta/educador, é uma
maneira de estabelecer contato, “ressonância”. Assim, o educador aberto ao diálogo é
138
aquele que se faz presente, que ouve, que compartilha, que aponta possibilidades, que
estimula.
A relação educador-educando pode se beneficiar com as atividades lúdicas que,
como vimos, propiciam que barreiras sejam superadas e o contato consigo mesmo e com o
outro aconteçam. Se considerarmos as relações de educadores com educandos ainda na
infância, ao invés de superar bloqueios já estabelecidos, a atuação se dará no sentido da
prevenção de neuroses futuras.
4.2. Intelecto, inteligência e intuição: algumas questões a considerar
Antonio Damásio (1996; 2000) e Humberto Maturana (1997; 2001), como visto no
primeiro capítulo, enfatizam a necessidade das emoções para o funcionamento normal da
mente. Afirmam, ainda, que as emoções têm no corpo as condições para sua existência.
Corroborando esse pensamento, Daniel Goleman, psicólogo e pesquisador,
desenvolve estudos sobre a inteligência emocional, apontando as dificuldades e transtornos
que a desconsideração às emoções pode provocar à aprendizagem, às relações humanas e
ao equilíbrio social. Uma ampla pesquisa feita com pais e educadores denuncia, segundo
ele, uma tendência da atual geração infantil, em diferentes países, de estar mais sujeita a
perturbações emocionais. Levando-se em conta que o analfabetismo emocional tem se
mostrado como uma deficiência alarmante, o autor acredita que, se há um remédio para tal
dificuldade, este consiste na preparação dos jovens para a vida, em cuidar de sua educação
emocional. Uma solução viável, observa ele, é uma educação escolar que considere o
educando como um todo, ou seja, que mente e coração estejam juntos na sala de aula.
Goleman pondera que, em um mundo de tanta conturbação e violência, é necessário
que se procure seguir a lógica da prevenção, “oferecendo[-se] às nossas crianças aptidões
para enfrentar a vida que aumentarão suas oportunidades de evitar todos esses problemas”
(1995, p. 270). Não acredito que seja fácil ou simples “evitar todos esses problemas”, afinal
tanta conturbação e violência que vemos se manifestar em diferentes níveis físico, mental,
emocional, social, político, econômico, ... exige, no mínimo, tempo, comprometimento e
investimentos. Mas acredito que os impactos desses efeitos podem efetivamente ser
minimizados e soluções viáveis para que lidemos com eles possam ser encontradas.
139
Segundo Goleman, temos, na verdade, duas mentes uma que raciocina e outra que
sente, as quais interagem na construção de nossa vida mental, unindo seus modos de
conhecer a fim de que nos orientemos em nossa relação com o mundo; os sentimentos são
essenciais para o pensamento, da mesma forma que o pensamento o é para os sentimentos.
Joseph Pearce (2002), assim como Goleman (1995), apresenta uma distinção entre
intelecto e inteligência. Diz Pearce: “A inteligência, presente em todas as formas de vida,
luta pelo bem-estar e pela continuidade; o intelecto, uma característica humana, luta pelo
novo e pelas possibilidades” (p. 18). O intelecto é o que nos impulsiona para resolver
problemas e analisar possibilidades, nos preparando para novos patamares da existência.
Ele se relaciona ao cérebro, podendo ser comparado ao lado “masculino” da mente
analítico, lógico, linear, com tendência para a ciência, a tecnologia, o novo. A inteligência
se relaciona ao coração, é o lado “feminino” da mente que apresenta abertura para a
intuição e o mistério da vida, para a busca do equilíbrio, de atitudes comedidas, para a
sabedoria e a plenitude. Goleman observa que são as emoções que nos orientam em
situações de impasse ou importantes demais para que fiquem a cargo exclusivamente do
intelecto: situações de perigo, de grandes perdas; em momentos em que temos que nos
manter inteiros apesar dos percalços, em decisões afetivas significativas como escolher um
companheiro ou formar uma família.
Inteligência e intelecto são formas distintas de manifestação que se complementam e
não podem se separar uma vez que “a descoberta criativa, como a vida criativa, surge da
união entre a paixão intelectual e a insondável matriz da inteligência” (Pearce, 2002, p. 18).
Na falta do intelecto, haveria estagnação e a evolução não ocorreria; por outro lado, se não
houvesse a inteligência, acabaríamos por nos perder no caos e na destruição da própria
espécie.
Pearce e Goleman nos oferecem uma visão da complementaridade fundamental do
sensível e do racional. Cada um de nós, seres humanos, personaliza e pode desenvolver os
dois aspectos, o que é desejável. Entretanto, mostram-se como potencialidades que podem
ser mais ou menos desenvolvidas. Os autores acentuam que não podemos desenvolver o
intelecto em detrimento da inteligência, como já vimos fazendo há várias gerações. Se
assim for, enfatiza Pearce, a complementaridade fundamental entre eles desaparece, e
ganham espaço as lutas mesquinhas das posições do ego pessoais, sociais e por fim
globais. “O agonizante corpo social que hoje vemos é o exterior visível de uma guerra civil
interior comparável. (...) O colapso das relações entre homens e mulheres, hoje comum
140
entre nós, é uma anomalia biológica que simboliza a divisão entre mente e coração surgida
em cada um de nós” (Pearce, 2002, p. 19).
Pearce afirma que a intuição é uma inteligência que vai um pouco além, permitindo-
nos perceber além do que os cinco sentidos nos facultam. A partir da observação de
algumas culturas que privilegiam a intuição, considera que a intuição inata poderia ser
cultivada e até chegar a tornar-se uma estrutura de conhecimento poderosa se uma
sociedade decidisse que isso seria importante e significativo. Entretanto, a valorização
excessiva do intelecto, da racionalização impede que abramos espaço para que essa
potencialidade seja atualizada.
O termo intuição vem do latim intuere e significa saber de forma espontânea, ou
seja, é algo que surge naturalmente, de dentro para fora, não captável pelos cinco sentidos.
Para Fayga Ostrower (1987), a intuição está presente em todos os processos criativos. É um
tipo de conhecimento instintivo, que se manifesta no que percebemos, interpretamos,
apreendemos ou compreendemos.
Segundo Moraes (1997), “os processos de criação ocorrem no âmbito da intuição,
integrando toda experiência individual e, nela, também a racional, à medida que esses
processos são expressos. Pela intuição são geradas novas idéias” (p. 164). A autora enfatiza
que um dos problemas da educação atual é a valorização excessiva dos processos racionais
e a não atenção dada aos procedimentos intuitivos, artísticos e criativos. Mais sério ainda, é
o fato de a educação inibir ou castrar esses processos fazendo com que os aprendizes na
infância (e eu acrescentaria que em todas as faixas etárias) se sintam sem jeito ou sem
aptidão para trabalhar criativamente em sala de aula, sem condições de desenvolver essas
habilidades. Continua a autora:
Os criativos e os inovadores são aqueles que dão saltos, que ajudam a dar os
arrancos, que perturbam a tranqüilidade e a sonolência dos que vivem no chamado
status quo. São os insurgentes que mergulham no caos para criar uma nova forma,
para criar algo novo, uma nova consciência que conduz a um mundo novo. São
eles que alargam as fronteiras da consciência humana, que incomodam ao divergir
do conforto da realidade que oprime, ao divergir da mesmice, ao pretender inovar
(Moraes, 1997, p. 165).
141
Acentua ainda, que é desejável, no momento que vivenciamos, que se busque
remover impedimentos e restrições ao desenvolvimento da intuição e da criatividade, ao
aparecimento dos insights, dando margem a que o novo, o diferente, o original tenham
condições de iniciar uma nova sinergia capaz de criar o que ainda não existe. Cultivar a
intuição e a criatividade é possibilitar que surja uma nova geração com capacidade para
sonhar, sentir, inovar e imaginar mais, assim como com maior sensibilidade para os
problemas que afligem os seres humanos, propiciando a busca e a possibilidade de
encontrar soluções competentes, “que ofereçam níveis superiores de crescimento
qualitativo e que levem a humanidade a dar um grande salto para a frente” (Moraes, 1997,
p. 167).
Considerar essas questões nos ajudam a ter uma visão mais ampla da necessidade de
construir uma visão e uma prática educacional que integrem inteligência e intelecto,
racionalidade e sensibilidade, soma e psique, enfim, que considerem o ser humano em sua
totalidade, possibilitando-lhe o desenvolvimento de suas potencialidades.
4.3. Apesar das dificuldades, algumas possibilidades vislumbradas
Depois de refletir algum tempo sobre como começaria este tópico, que fecha este
capítulo, cheguei à conclusão de que Carlos Drummond de Andrade, com seu poema O
homem: as viagens, poderia, através de suas imagens, me ajudar a fazê-lo:
O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
142
civiliza a Lua
humaniza a Lua.
Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte - ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro - diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto - é isto?
idem
idem
idem.
O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.
Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para te ver?
Não vê que ele inventa
143
roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado.
Restam outros sistemas fora
do solar a colonizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas
entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.
A riqueza da linguagem poética de Drummond expressa, de forma singela, sensível,
mas contundente, a necessidade de que o ser humano explore o seu ainda tão inexplorado
espaço interior e descubra as alegrias da verdadeira convivência. A necessidade de
descobrir a nós mesmos, de nos conhecer um pouco mais; de conhecer nossas
potencialidades, nossas fragilidades, nossas dores e nossas alegrias, nossos medos e nossas
coragens; e aprender a conviver com eles, com nós mesmos e com o outro.
A tecnologia e a ciência caminham a passos largos, cada vez o homem de mune de
maior poder, mas isso não basta. Se desejamos um mundo melhor e mais humano, é
necessária uma educação que se volte para a formação integral da pessoa, e isso requer
144
que, além do desenvolvimento do intelecto, estejamos voltados para o desenvolvimento da
criatividade, da intuição, da sensibilidade, da corporeidade, da inteligência, das relações
humanas, o que pode ser facilitado e estimulado a partir de uma educação lúdica.
Dificuldades existem e são muitas. Nossas escolas, em sua maioria, estão presas a
um modelo iluminista, onde continuamos a ser moldados para nos adequarmos às
estruturas sociais, de modo a sermos aceitos, assumindo padrões esperados, considerados
desejáveis; atropelamos nossas necessidades essenciais na busca de nos adaptarmos ao
ritmo desenfreado que a sociedade capitalista nos impõe; convivemos com os mais
variados limites, dos biológicos e emocionais aos econômicos, políticos e sociais;
aprendemos a calar nossas emoções, a tolher nossa expressão. Mas ao longo das páginas já
escritas desta tese, também pudemos entrar em contato com novos conhecimentos, novas
teorias, novas idéias que nos alertam quanto à necessidade de repensar a educação, que nos
mostram que possibilidades também existem, e que a vida nos chama para lançar sobre ela
um novo olhar.
As pessoas encouraçadas criam uma barreira entre elas e a vida, tanto aquela que se
aprisiona em nós, quanto a vida que pulsa a nossa volta. Tornam-se menos sensíveis aos
apelos mais profundos de sua própria natureza, de seus corpos, de seus sentimentos; menos
flexíveis ao contato com o novo, o diferente e com o outro. A convivência torna-se mais
superficial, assim como o envolvimento com as questões e problemas do seu entorno. O ser
humano para manter contato com sua essência precisa cuidar de si e estar mais vivo,
flexibilizando seu encouraçamento; precisa se expressar, manifestar sua singularidade.
Como enfatizam os autores que abordam as questões energéticas, cujas teorias
fundamentam a Bioexpressão Wilhelm Reich, Alexander Lowen, Stanley Keleman e
David Boadella, a vida realmente viva pulsa através da energia que flui em nós. É essa
maior fluidez da energia vital que traz a graciosidade de que nos fala Lowen, intimamente
ligada ao seu conceito de espírito, considerado como a força vital que se manifesta na auto-
expressão.
Segundo Boff (2001), que tem uma visão que se aproxima bastante da de Lowen,
Keleman e Boadella, e da qual compartilho, espiritualidade é o que produz uma mudança
em nosso interior, não uma mudança superficial, mas aquela que transforma nossa
estrutura de base. Poderíamos dizer que são as mudanças que tocam a nossa essência, o
nosso self. Boff considera que tais mudanças “são verdadeiras transformações alquímicas,
capazes de dar novo sentido à vida ou de abrir novos campos de experiência e
145
profundidade rumo ao próprio coração e ao mistério de todas as coisas” (2001, p. 17-18). A
espiritualidade não está, necessariamente, vinculada a qualquer crença religiosa, mas sim
vinculada a uma dimensão mais profunda do ser humano, que nos induz a viver com maior
plenitude e solidariedade, em maior conexão com a humanidade, com o Cosmos do qual
somos parte.
Educar vai muito além da mera transmissão de conteúdos, significa contribuir para
o crescimento do educando, para sua formação, melhora da sua qualidade de vida, para sua
autonutrição, o que significa contribuir para a sua felicidade; é, sobretudo, um ato
amoroso. Boadella (1985/1992), citando Russel & Russel, afirma que amar é propiciar ao
outro o conhecimento de si mesmo. E considero que conhecer a si mesmo é o primeiro
passo para adquirir recursos para lidar com as próprias dificuldades. Olhar mais para si e
cuidar-se, no sentido aqui proposto, o que pode ser viabilizado com as atividades lúdicas,
significa abrir-se para o outro também, e entrar em contato com possibilidades de ação.
A transformação das práticas pedagógicas, assim como quaisquer transformações
mais profundas, passam por um processo de mudança interna da pessoa, do educador, de
transformação de padrões criados, de crenças, de consciência do mundo em que vivemos,
com seus conflitos, desigualdades, injustiças, mas também potencialidades. Qualquer
mudança só é possível se começar em nós. Não temos o poder de mudar o que está fora,
mas podemos, a partir da transformação de nós mesmos, estimular outras transformações.
Fanny Abramovich frisa a importância de o educador cuidar de si mesmo e
transcreve um trecho de Janusz Korczak que, embora se refira àquele que atua com
crianças, é pertinente para qualquer educador:
Seja você mesmo. Procure seu próprio caminho. Aprenda a se conhecer antes de
pretender conhecer as crianças. Observe os limites de suas próprias capacidades,
antes de fixar aquelas dos direitos e deveres da criança. Antes de todos os que
você poderia compreender, instruir, está você. E é por você mesmo que é
preciso começar (Korczak, apud Abramovich, 1985, p. 21).
Falar da necessidade de mudança na prática pedagógica, apontar falhas e
dificuldades não é difícil. Os problemas são muitos e bastante complexos, o que podemos
146
constatar facilmente quando envolvidos com essa prática. Investir nessa mudança não é tão
simples, seria ingênuo assim pensar. Mas é possível.
A cada semestre ou ano letivo, nós, educadores, convivemos com turmas diferentes.
Uma turma nunca é igual a outra, cada uma apresenta suas particularidades, características,
dificuldades, facilidades. E não é fácil para nós, especialmente pela formação que tivemos,
coordenar um grupo que se constitua como tal, considerando-se como grupo não apenas
um aglomerado de pessoas, mas um conjunto de pessoas que se une em torno de objetivos
comuns, de pessoas que se assumem como participantes deste grupo, que crescem, que se
desenvolvem. O que significa, segundo Madalena Freire (2001), que cada participante
“exercitou sua fala, sua opinião, seu silêncio, defendendo seus pontos de vista. Portanto,
descobrindo que mesmo tendo um objetivo mútuo, cada participante é diferente. Tem sua
identidade” (p. 59). Em suma, que cada componente do grupo pode exercitar sua auto-
expressão, o que é objetivo da Bioexpressão.
Como observa Madalena Freire, vida de grupo, em sua exigência de forma própria
e original, causa desânimo, “porque em muitas situações nos confrontamos com o caos:
acúmulo de temas, processos de adaptação, hipóteses heterogêneas, ... Caos criador que
nos demanda nova re-estruturação-organização”. Quando o educando não recebe tudo
mastigadinho, precisa lidar com suas próprias frustrações e ansiedades, com seu rebuliço
interior até poder construir “no seu silêncio-fala interna” a sua sistematização e trazê-la de
volta ao grupo. Causa muita frustração quando o educando tem que romper com sua
acomodação quieta, que espera “as ordens” do educador, que, quando não vêm, o faz
descobrir que ele é o único que pode construir e conquistar seu espaço. Causa medo,
porque o educando percebe que é o “dono” do seu saber ou não-saber, portanto,
responsável por sua busca do conhecimento e da construção de sua competência. Um
conjunto de pessoas que se constitui como grupo, é aquele
que pergunta
que duvida
que diz não sei
onde: errar é aprender,
que ri, que briga,
que teve medos, limites, fraquezas, que tem coragem,
(...)
que corre riscos para conhecer o outro e a si mesmo.
147
que corre riscos NEGANDO A OMISSÃO autoritária e aprende a assumir o que
pensa, o que diz, o que faz.
que busca a disciplina intelectual
educando a imaginação, o sonho, no dia-a-dia, junto com os outros,
a paixão de conhecer, aprender, ensinar e educar.
Entretanto, apesar de muito trabalho, dá, também, muito prazer, “porque eu não
construo nada sozinho, tropeço a cada instante com os limites do outro e os meus próprios,
na construção da vida, do conhecimento, da nossa história” (Freire, 2001, p. 66-68).
Não é fácil deixar de lado nossa necessidade de manter tudo sob controle, nosso
desejo de homogeneizar, de evitar os inevitáveis conflitos; não é fácil aceitar que não
somos os donos da verdade, que cometemos erros, que não sabemos tudo que gostaríamos
de saber; não é simples aceitar as discordâncias, deixar de acreditar na existência da aula
“pré-moldada perfeita”, aceitar que poderemos ser amados, mas também odiados, que
correremos riscos, que teremos que conviver com o medo, a ousadia, o inesperado e a
insegurança. Mas conviver com um “grupo”, sem dúvida, é uma experiência muito rica.
Penso que o caminho dessa aprendizagem, como o caminho do autocrescimento, do
autoconhecimento, que depois de iniciado, não tem volta e, também, não tem fim, nos
trazem ganhos internos, aprendizagem constante e uma visão bem mais ampla do que
significa ser educador.
A Bioexpressão surgiu da minha necessidade de entender melhor a mim mesma e
meus educandos, de propiciar que conhecessem um pouco mais a si próprios e o outro, que
se constituíssem como um grupo que constrói conhecimento e constrói a si mesmo na troca,
no confronto, no acolhimento, no afeto, na auto-expressão. As atividades lúdicas foram
recursos fundamentais. A fundamentação teórica da Bioexpressão e suas relações com a
ludicidade foram apresentadas nos dois primeiros capítulos. É hora de vermos, no próximo
capítulo, a sua relação mais estreita com a formação dos educadores.
148
CAPÍTULO III
A FORMAÇÃO DO EDUCADOR E A BIOEXPRESSÃO
...no mundo humano, o desenvolvimento da inteligência
é inseparável do mundo da afetividade,
isto é, da curiosidade , da paixão, que, por sua vez,
são a mola da pesquisa filosófica ou científica.
Edgar Morin
Uma vez estabelecidos os fundamentos da Bioexpressão e suas relações com as
atividades lúdicas, será introduzida a questão da formação dos professores, minha
preocupação na tese em sua totalidade, como foi anunciado na Introdução. Neste capítulo,
proponho a Bioexpressão como um novo caminho para a prática pedagógica da formação
do educador, não como a solução aos problemas existentes, mas como uma possibilidade
viável, o que se mostra na Segunda Parte, que apresenta a pesquisa de campo. Antes,
porém, veremos o que significa formar o educador e analisar a forma como este educador
vem sendo formado.
1. A formação do educador
O educador não nasce educador. Também não é o diploma recebido após a
graduação e a licenciatura que lhe dá essa condição. Ele se “forma educador” ao longo de
um processo que extrapola a Universidade, onde, entretanto, deveria viver experiências
significativas para seu fazer. A forma, como observa Stanley Keleman, se dá ao longo da
vida, vai-se constituindo por uma formação ativa. Tudo na vida se forma através do
“movimento”, da “organização da experiência” e da “construção da forma”. Nada é dado
pronto. “É a vitalidade do padrão pulsátil, a força e a intensidade das pulsações dos órgãos
que dão energia e identidade pessoal (...). Os sentimentos e as sensações, provenientes de
nosso interior nos dizem ‘Isso sou eu’” (1985/1992, p. 42).
149
Nosso envolvimento no processo formativo é fundamental. Observa Keleman em
outra de suas obras que “formar-se, crescer, requer compromisso emocional. Requer uma
expressividade em contínua maturação, um estilo de vida que insista na agradabilidade do
viver em vez do poder” (1975/1996, p. 87). Este estar vivo no seu fazer é, a meu ver, uma
das características fundamentais do educador.
O conceito de formação do educador não pode ser considerado de forma simplista.
Como analisa Carlos Marcelo García, é um fenômeno complexo que implica aspectos
diversificados, sobre o qual ainda não existem suficientes conceituações e teorias mais
relevantes para sua análise. Mas alguns pontos podem ser enfatizados:
em primeiro lugar, a formação, como realidade conceptual, não se identifica nem
se dilui dentro de outros conceitos que também se usam tais como educação,
ensino, treino, etc. Em segundo lugar, o conceito formação inclui uma dimensão
pessoal de desenvolvimento humano global que é preciso ter em conta face a
outras concepções eminentemente técnicas. Em terceiro lugar, o conceito de
formação tem a ver com a capacidade de formação, assim como com a vontade
de formação. Quer dizer, é o indivíduo, a pessoa, o responsável último pela
activação e desenvolvimento de processos formativos. Isto não quer dizer (...)
que a formação seja necessariamente autônoma. É através da interformação que
os sujeitos neste caso os professores podem encontrar contextos de
aprendizagem que favoreçam a procura de metas de aperfeiçoamento pessoal e
profissional
63
(1999, p. 21-22).
A formação continuada é indispensável ao educador, e foi através do contato com
novas teorias como as de António Damásio, Fritjof Capra, Humberto Maturana, Wilhelm
Reich e seus continuadores, e novas experiências, que, muitas vezes, me trouxeram susto,
medo e a inquietação que promove novas buscas, que fui aprendendo que não há certezas,
verdades “fechadas”, que não há um único caminho para a construção do conhecimento e
para uma prática comprometida; que nunca estamos “prontos”, nossa formação não pode
ser considerada “acabada” em um dado momento, porque a aprendizagem não cessa.
Como diz Regina Leite Garcia, sendo a verdade um espaço de luta, estamos sempre sendo
convocados a entrar em contato com novas teorias e rever as já existentes:
63
Grifos pessoais.
150
[somos puxados] para a incerteza, a variação, a dúvida, o múltiplo, num mundo
em que o pensamento hegemônico nos quer fazer crer na imutabilidade do uno
na ilusão da completude, numa racionalidade que, não sabendo lidar com outras
racionalidades, as denomina irracionalidades. Tanta onipotência inevitavelmente
criaria a idéia de um mundo objetivo e auto-suficiente onde está posto um sujeito
capaz da objetividade que tenta pôr embaixo do tapete sua própria subjetividade
(2000, p. 116).
Paulo Freire, cujo pensamento se apresenta profundamente marcado pelo aspecto
político e o comprometimento com a educação das classes populares, vai mais além, nos
convidando, mais que isso, nos instigando a lançar um olhar sobre questões fundamentais
do ser humano como a ética, a estética, a solidariedade, a afetividade, a corporeificação das
palavras pelo exemplo e a consciência do inacabamento. Freire considera que o
inacabamento ou inconclusão do ser humano é próprio da experiência de vida, pois onde
há vida há também inacabamento, o que, porém, é consciente, somente, para homens e
mulheres. Esta consciência da incompletude permite que se invente a existência que
implica, necessariamente como afirma o autor,
a linguagem, a cultura, a comunicação em níveis mais profundos e complexos do
que o que ocorria no domínio da vida, a “espiritualização” do mundo, a
possibilidade de embelezar como de enfear o mundo e tudo isso inscreveria
mulheres e homens como seres éticos. Capazes de intervir no mundo, de
comparar, de ajuizar, de decidir, de romper, de escolher, capazes de grandes
ações, de dignificantes testemunhos, mas capazes também de impensáveis
exemplos de baixeza e de indignidade. Só os seres que se tornaram éticos podem
romper com a ética (2004, p. 51-52).
Cabe, principalmente a nós, que formamos futuros professores, ter consciência da
nossa responsabilidade e buscar possibilidades de realmente contribuirmos para que se
tornem de fato educadores, o que exige mais do que, geralmente, temos recebido em nosso
processo acadêmico.
151
Como afirma Ruy César do Espírito Santo, quando o educador conduz seu
educando à recuperação “da visão integrada da vida, que inclui o micro e o macrocosmo,
está convidando seu discípulo para a observância do sentido, da beleza e da harmonia do
universo” (1988, p. 45). Enfatiza o educador que, antes de qualquer coisa, a
interdisciplinaridade implica que o educador se coloque diante do saber maior. “É a visão
unitária da vida que permitirá que sua disciplina seja o pretexto para ‘ligar’ a classe àquele
saber maior”. Entretanto, pondera o educador, “para ensejar ao educando o nascer de tal
postura é que entendo indispensável a iniciação ao autoconhecimento, com a conseqüente
reconstrução do conhecimento emocional, onde o belo está inserido” (1988, p. 45).
Em outra de suas obras, Espírito Santo afirma que “a primeira conseqüência do
autoconhecimento é a percepção do mistério de todos nós”, mistério este que está presente
em uma das máximas de Sócrates: “o sábio é aquele que sabe que nada sabe”. Ao
conscientizar-se de que a aprendizagem é interminável, “o educador se tornará o eterno
aprendiz”, em busca permanente do saber. “O educador que passa a se ver como eterno
aprendiz estabelecerá novas relações na sala de aula, despertando os educandos para a
busca de um aprendizado comum, no sentido que somos todos aprendizes”. Assumirá,
desta forma, uma postura de humildade que, segundo o autor, “está na raiz da chamada
interdisciplinaridade: o educador perceber que sua especialidade é, na verdade, uma ponte
entre a sala de aula e o saber maior a ser perseguido” (2002, p. 137).
Esta é a busca da Bioexpressão: possibilitar aos futuros educadores ou àqueles que
já se encontram no exercício do magistério, maior conhecimento de si, a integração
pensamento, sentimento e ação, a percepção de que somos parte de um todo indivisível, e a
aquisição de recursos que contribuam para minimizar dificuldades e para estimular a
expressão de sua singularidade, podendo se manifestar em qualquer disciplina em que se
abra mão da mera transmissão de seus conteúdos.
Assim, quando considero a formação de educadores, não me refiro a treinamento,
aquisição de saberes relacionados a diferentes disciplinas, ou à aquisição de técnicas para
ensinar. Concordo com Carlos Marcelo García que defende o princípio de que “os sujeitos
adultos devem contribuir para o processo de sua própria formação a partir das
representações e competências que já possuem”, definindo formação como “a capacidade
de transformar em experiência significativa os acontecimentos que geralmente ocorrem no
152
cotidiano, tendo como horizonte um projecto pessoal e colectivo” (Ranjard e Honoré apud
García, 1999, p. 20).
É significativo retomar o conceito de filosofia estabelecido por Dante Augusto
Galeffi, a que atribui a função de formar a pessoa livre, de ajudar o ser humano a se tornar
livre através da vida que constrói para si. Diz o educador:
Com a palavra filosofia afirmamos uma pedagogia da construção da pessoa livre;
uma pedagogia, entretanto, que antes de ser um sistema pré-determinado e fixo,
é uma abertura para a ação formante do nosso próprio ser-no-mundo-com. (...) É
no fazer filosofia que se dá o acontecimento da formação para a atitude de
liberdade consciente e participativa; é por meio deste fazer que nos colocamos a
caminho do autoconhecimento e nos constituímos pessoas livres conscientes,
responsáveis, participantes
64
(2001, p. 36).
Galeffi considera que a pedagogia como teoria da ação de educar é
fundamentalmente uma atividade filosófica que nos convida ao diálogo, à reflexão e ao
conhecimento de nosso ser no mundo. Tal forma de compreensão pressupõe uma atitude
dialética, que se nutre da “tensão existente entre uma realidade formada e uma
possibilidade formante” (2001, p. 243), ou seja, da contradição entre o instituído e o
instituinte. A proposta me toca por se constituir em terreno fértil para a criação, pois, é
nessa tensão dialética que se insere o processo reflexivo e inovador.
Educar se origina do latim educare, que se relaciona a educere, verbo composto
pelo prefixo ex (fora) e ducere (conduzir, levar). Literalmente, significa “conduzir para
fora”, isto é, preparar o ser humano para o mundo, para ser capaz de enfrentar os desafios e
viver no convívio com os outros seres humanos. Considerando esta acepção de educar,
educadores são aqueles que estimulam seus educandos a assumirem a responsabilidade por
si mesmos no mundo, o que não será alcançado através da mera transmissão de
informações.
Considero que educar não pode ser pensado apenas em termos de intelecto, mas,
especialmente, em termos de sensibilidade. Corroborando este pensamento, Espírito Santo
(1998) observa que é inacreditável como se verifica, em grau crescente, a eliminação do
64
Grifos pessoais.
153
trabalho com a sensibilidade ou o estímulo à reflexão mais profunda dos estudantes.
Pondera, ainda, que a filosofia não foi eliminada dos currículos casualmente. Afinal, não é
a filosofia que nos faz buscar conhecer a nós mesmos, a refletir sobre o estar no mundo?
Cada um de nós é único, cada cultura é única, e a ludicidade é a dinâmica da
singularidade, da auto-organização. Considero que a ludicidade assim como a arte, sempre
presentes na Bioexpressão, são recursos valiosos para facilitar o autoconhecimento e a
expressão pessoal. A ludicidade e a arte “dão voz, olhos e ouvidos” a quem as vivencia, daí
sua importância na formação do educador. Se ele é escutado e visto, vivencia a importância
de escutar seu educando, de vê-lo de fato, de considerá-lo como um ser humano em
formação; vivencia o significado de brincar, de construir, de criar a sua prática pedagógica;
vivencia a aprendizagem do cuidar, do afeto, da sensibilidade, da espiritualidade.
Fanny Abramovich faz uma afirmação que merece ser considerada: “nunca é
demais fazer a diferenciação entre professor (mero repetidor de informações) e educador (o
que suscita, mobiliza, cutuca, questiona, faz o aluno concluir sozinho...)”. A escola
repetitiva, que se distancia da vida, professores que mantém o que Paulo Freire denomina
educação bancária, “que só acreditam na informação teórica, que só trabalham com
abstrações, exatamente para não serem questionados, colocados contra a parede” não
formam pessoas. Esta escola, para manter sua estrutura inabalável, exige “cada vez mais
novas teses, novos mestrados, novos doutorados, tornando eterna a condição de aluno e
mantendo o saber sempre longínquo...” e estabelece “uma relação entre diploma/bom
emprego/bom salário totalmente mentirosa”. Os verdadeiros educadores, “que estão
compromissados com a escola da vida, pulsante, dinâmica, em permanente mutação, estes
acreditam é na experiência vivida e refeita a cada novo ato pedagógico... E provam isso, na
sua própria trajetória de se fazer e do se fazer como educadores...
65
(1985, p. 129).
Washington Carlos Oliveira enfatiza que, habitualmente, a educação vem sendo
utilizada para “formar pessoas”, não no sentido aqui utilizado, mas para colocá-las em
“formas”, dar-lhes a forma desejada, o que significa “adequá-las e enquadrá-las no
chamado processo civilizatório, buscando subordiná-las ao poder predominante de
determinado ambiente cultural. A homogeneização, geralmente, tem sido uma meta
educacional sintonizada com uma (suposta) identidade dominante, ou com um acomodado
bem-estar coletivo” (2002, p. 83).
65
Grifos pessoais.
154
O que proponho, no entanto, com a Bioexpressão é a saída da homogeneização, a
integração corpo, emoção, mente e espírito que dêem condições a cada educador de viver
sua singularidade e conviver com mais segurança e equilíbrio, tornando-se capaz de lidar
com as dificuldades inerentes à vida de todos nós. As atividades lúdicas, recurso
fundamental da Bioexpressão, funcionam, segundo Cipriano Luckesi, como “um caminho
tanto para o inconsciente quanto para a construção da identidade e da individualidade
saudáveis dos adultos” (2002, p. 38). A atividade lúdica, propiciando a vivência plena ao
ser humano, “implica o contato com e a posse das fontes restauradoras do equilíbrio”. A
ação lúdica, de imediato, “conduz para o contato com o sentimento, que se situa,
fisiologicamente, nos remanescentes do endoderma em nosso corpo, o local do contato
com as sensações e sentimentos mais profundos de cada um de nós, que por sua vez, abre
as portas do ectoderma e do mesoderma, garantindo o pensar e o agir” (p. 48-49).
Este encontro do ser humano consigo mesmo, gerando a flexibilização das
couraças, propiciando que se manifeste sua espontaneidade e auto-expressão, conduz o
educador à sua integralidade, trazendo-lhe nova energia, coragem de romper padrões
estabelecidos e consciência de sua responsabilidade consigo mesmo e com seus educandos.
2. Como nosso educador tem sido formado?
Embora venham surgindo estudos e propostas pedagógicos que apontam para a
necessidade urgente de mudança e de revisão das práticas pedagógicas, inclusive no que
diz respeito à formação de professores, como as já citadas nesta tese, ainda vigora nas
escolas a visão iluminista e conceitual, condizentes com a visão positivista que domina a
ciência desde o século XIX. A atuação do professor não se separa de sua visão de
educação. Como observa Maria Cândida Moraes, “uma ciência do passado produz uma
escola morta, dissociada da realidade, do mundo e da vida. Uma educação sem vida produz
seres incompetentes, incapazes de pensar, construir, reconstruir conhecimento e realizar
descobertas científicas” (1999, p. 18).
No início do primeiro capítulo, chamei a atenção para as novas teorias que apontam
para a necessidade de um novo olhar, de uma nova visão de mundo, não mais fragmentada,
uma vez que se constata que não podemos prescindir de uma visão mais ampla, global,
155
integrada. Se desejamos formar educadores autônomos, solidários, criativos, críticos,
sensíveis não poderemos manter a forma como se mostra a educação vigente. Poderia um
professor, formado sob a égide iluminista-conceitual, levar a termo uma educação
integral? Certamente, a resposta é não. Esse professor continuará repetindo o modelo
conhecido, o modelo no qual se formou. Priorizaria a razão, a transmissão de conteúdos
dissociados de um método apropriado, o magister dixit
66
, ou seja, a palavra soberana do
professor imposta a seus aprendizes.
Não podemos deixar de considerar que a didática e as metodologias de ensino são
áreas de conhecimento em estreita relação com a formação do educador, uma vez que a
prática pedagógica é o núcleo do trabalho docente. Estarão estas áreas efetivamente
contribuindo para a formação do educador com uma visão integral de educação?
Não podemos deixar de assinalar que os profissionais da didática e das
metodologias têm produzido propostas novas, pesquisas consistentes e um esforço no
sentido de aprofundar esses estudos como se verifica nos trabalhos apresentados nos
Encontros Nacionais de Didática e Prática de Ensino ENDIPES, que ocorrem a cada dois
anos, há mais de duas décadas, que têm sido um espaço privilegiado de diálogo e
socialização de reflexões, experiências e pesquisas desenvolvidas. Mas o que se verifica na
prática pedagógica é que a didática ainda se mantém com uma visão conceitual, tendo
como preocupação a transmissão de técnicas de ensino, e as metodologias se mantém
atadas a conteúdos de uma disciplina específica, apesar das tentativas de se abrirem novas
frentes para esses campos de conhecimento como mostram as pesquisas de Lea Anastasiou
(2004) e Selma Garrido Pimenta (2003), entre outras.
Em pesquisas recentes de doutorado e pós-doutorado, Anastasiou constatou que
ainda predomina, na formação dos profissionais da educação, a metodologia clássica
tradicional, jesuítica, aquela centrada na aula expositiva que, tendo sido a experiência
vivenciada quando aluno, o agora professor a mantém “muitas vezes como a única forma
de ‘dar aulas’: cristaliza-se um modelo metodológico que tem sido predominante nestes
últimos 500 anos no Brasil” (2004, p. 61). Predomina, assim, o modelo do aluno obediente
e passivo como o desejável, a visão de ciência como imutável, e conteúdos transmitidos
como verdades inquestionáveis e determinadas.
66
Magister dixit: expressão latina que significa o mestre disse.
156
As pesquisas trazidas por Anastasiou sinalizam que há um modelo internalizado
que vai se construindo ao longo da vida escolar do futuro professor. As experiências por
que passa o levam a construir “um imaginário acerca da docência, do fazer e do como
fazer, num conjunto de representações sobre a ação de um professor em sala de aula, como
se aí iniciasse e terminasse sua “tarefa profissional” (Idem, p. 59).
Certamente não será este aluno que poderá se transformar no educador que
necessitamos. Maria Cândida Moraes confirma esta asserção ao enfatizar que precisamos
de uma pedagogia que respeite a multidimensionalidade do real, que envolva um
pensamento mais complexo, “que já não pode ser linear, reducionista e fragmentado (...) É
um pensamento que busca a totalidade, as interações, a integração para o encontro de
soluções para os problemas e os desafios apresentados em nosso dia-a-dia” (1999, p. 27).
Precisamos de uma educação voltada para a formação integral do ser humano, que
leve em conta seus pensamentos, seu corpo, seus sentimentos e sua espiritualidade, que o
capacite a viver numa sociedade pluralista em constante processo de mudança. Isso requer,
como observa Moraes, além do desenvolvimento “das dimensões cognitiva e instrumental,
o trabalho, também, da intuição, da criatividade, da responsabilidade social, juntamente
com os componentes éticos, afetivos, físicos e espirituais”. Assim, a educação, como
propõe o relatório da UNESCO
67
, “deverá oferecer instrumentos e condições que ajudem o
aluno a aprender a aprender, aprender a pensar, a conviver e a amar
68
. Uma educação
que o ajude a formular hipóteses, construir caminhos, tomar decisões, tanto no plano
individual quanto no coletivo” (1999, p. 211).
Ensinar e aprender são aspectos fundamentais da ação docente que não se
dissociam. Não há ensino se não há aprendizagem. Na verdade, o educador cria condições
para que a aprendizagem ocorra, pois, sozinho, será incapaz de gerar o processo de
construção de conhecimento de seu educando. Inúmeras vezes, em reuniões pedagógicas,
ouvi de professores falas semelhantes a esta: “Fiz a minha parte, ensinei. Se o aluno não
aprendeu, o problema é dele”.
Paulo Freire enfatiza que, “nas condições de verdadeira aprendizagem os
educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do
67
DELORS, Jaques. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão
Internacional sobre Educação para o Século XXI. 5 ed. São Paulo: Cortez; Brasília: MEC: UNESCO, 2001.
68
Grifos pessoais.
157
saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo”. Se não houver um
saber apreendido na sua razão de ser, ou seja, apreendido pelos educandos, não poderemos
falar de um saber ensinado. Essas condições, de que nos fala Freire, “implicam ou exigem
a presença de educadores e educandos criadores, instigadores, inquietos, rigorosamente
curiosos, humildes e persistentes” (2004, p. 26).
José Contreras Domingo considera que ensinar é mostrar aos educandos aquilo que
nós, como educadores, queremos ser, e que inevitavelmente se mostrará em nosso fazer e
em nosso envolvimento com ele: questionamentos, interesse, provocações que os façam
pensar, mas também, nossas contradições e dificuldades. É mostrar-lhes, ainda, os
educandos que são: às vezes despreocupados, sem quererem arriscar nada de si, outras
vezes sinceros e apaixonados, honestos consigo e com os compromissos que querem
assumir; e que também se desorientam com propostas que não admitem respostas
convencionais. Devemos estimulá-los a abrir espaços em seus pensamentos que lhes
tragam outras possibilidades para pensar o que ainda não foi pensado: “a possibilidade de
um pensamento próprio encarnado, que quer bater asas e voar”. A busca, a reflexão, a
ousadia vivem no educador, se estendendo ao educando. “Algo que busco para mim
(encontrar o caminho do que desejo ser como educador, inspirando-me para meu ofício em
textos, experiências e saberes que mostrem esse caminho, esse trajeto entre o que se é e o
que se quer ser), isso é o que quero também para meus estudantes
69
” (2003, p. 15-16).
Educar, como afirma Domingo (2003), significa dar autorização para que nossos
educandos pensem por si mesmos, por confiarem em nós, educadores, nos concedendo a
autoridade que propõe um caminho, o que difere radicalmente de autoritarismo, por ser um
caminho que faz com que se dirijam para si mesmos, o que evita que escorreguemos para
uma forma de doutrinação ou adestramento. A educação consiste em cuidar da relação para
que se criem sentidos, sentidos que permaneçam vivos com a passagem do tempo, e que
façam nossos educandos se sentirem, também, vivos.
Cipriano Luckesi (2003) propõe uma Pedagogia Construtiva que se fundamenta em
uma concepção existencial, fenomenológica e dinâmica do ser humano, compreendendo-o
a partir da observação de seu permanente movimento, desenvolvimento e construção.
Dessa forma, “é possível observar o que o ser humano, a cada momento, é,
simultaneamente, ele mesmo e ‘outro’. É ele, na medida em que preserva sua identidade,
69
Tradução pessoal.
158
mas é ‘outro’ na medida em que se modifica permanentemente, constituindo-se a si mesmo
no espaço e no tempo”. Essa compreensão teórica que embasa a Pedagogia Construtiva
implica projetos de ação pedagógica e práticas que compreendem e visam este ser em
movimento, construindo-se a si mesmo. Afirma, ainda, Luckesi:
As atividades pedagógicas serão, verdadeiramente, atividades que possibilitarão
a cada educando o seu próprio exercício de autoconstrução. Se é pela ação-
reflexão-ação, que o ser humano faz a si mesmo, a pedagogia deverá ter presente
esse processo, a fim de que possa propor e realizar uma prática pedagógica que
seja compatível com essa concepção (2003, p. 54-55).
Enquanto nos mantivermos aprisionados ao modelo chamado tradicional, que vem
se perpetuando ao longo dos séculos, não haverá espaço para uma verdadeira mudança
pedagógica. A visão do que é educar e de quem são os educandos que temos em nossas
salas de aula irá determinar uma nova postura do educador em relação a todo processo
pedagógico: traçar seus objetivos, selecionar os recursos e estratégias de ação, avaliar.
O que me leva a fazer uma nova proposição é constatar que a formação acadêmica
se mantém ainda, via de regra, no limite de uma formação iluminista-conceitual,
privilegiando apenas uma faceta do ser humano a razão instrumental. Como discutimos
no início do Capítulo I, ela é importante, mas, se tomada dissociadamente das outras
dimensões a emocional, a corporal e a espiritual, gera limitações ao desenvolvimento do
ser humano. Essa formação integral do educador é a proposta da Bioexpressão.
3. Bioexpressão: uma proposta pedagógica para a autoformação e a
formação do educador
A prática pedagógica escolar, tradicionalmente, tem trabalhado com teorias das
diversas áreas do conhecimento humano que, em princípio, já estão elaboradas e são
transmitidas através da linguagem informativa como já foi enfatizado. Exercita-se, assim, a
recepção intelectual e racional. Não há, via de regra, participação no processo de
construção teórica nem participação pessoal ou emocional nesse processo, o que vai
159
aumentando as dificuldades que já trazemos de nossa própria história de vida, que na
maioria das vezes, tolhe a nossa expressividade, limitando nossas possibilidades de estar
no mundo e de nos relacionarmos com situações e pessoas de forma mais saudável.
A Bioexpressão é uma alternativa para a formação do educador que busca responder
aos desafios da pós-modernidade, valorizando a integralidade do ser humano corpo,
emoção, mente e espírito respeitando a singularidade de cada um.
Quando temos a possibilidade de vivenciar experiências na sala de aula, ao invés de
permanecermos passivos, apenas recebendo novas informações, ativamos nosso potencial
reflexivo e criativo, nossa capacidade de criar relações teoria-prática, estimulamos nossa
sensibilidade, nosso poder de interagir, e, muitas vezes, somos desafiados a lidar com
algumas de nossas dificuldades como a de entrar em contato com o novo, de nos
“expormos”, de chegar mais perto de nossos companheiros, de emitirmos opiniões.
A Bioexpressão não é uma “disciplina” com conteúdos a serem aprendidos, mas,
especialmente, um conjunto de possibilidades de expandir as condições de vida e de
expressá-la, levando ao futuro educador, ou mesmo, a educadores graduados,
possibilidades de se conhecerem mais, de se expressarem em sua singularidade, de
investirem em um permanente processo de autoformação e de se relacionarem melhor
consigo mesmos e com seus educandos para que possam atuar com mais abertura em sua
prática profissional, o que é compatível com qualquer campo de conhecimento. Entretanto,
tendo em vista suas características e sua relação direta com a prática pedagógica, núcleo da
formação do educador, se mostra como um saber significativo para a Didática, as
Metodologias de Ensino e os Estágios Supervisionados, uma didática viva e integral, uma
vez que, contrariamente a uma visão fragmentada e dissociada da vida, traz a visão
integrativa do ser humano: corpo-mente-emoção-espiritualidade.
A Bioexpressão, no cuidado de estar atenta às possibilidades de cada um na sua
singularidade, oferece aos educadores um modo de atuar junto aos educandos, lhes
permitindo operar com a comunicação (aquilo que aprendem da herança sociocultural
acumulada) e com a expressividade (o que emerge do seu ser e se manifesta ao mundo; a
sua expressão constituída através da espontaneidade, sua criatividade). Essa manifestação,
como analisamos nos capítulos anteriores, exige centramento, posse de si mesmo,
segurança, confiança, que, por sua vez exige, integração de corpo, emoção, mente e
espírito. A Bioexpressão se apresenta como uma alternativa para responder a esse anseio
160
que se faz presente em nossa vida de estabelecer uma relação dialógica e expressiva em
nossas salas de aula.
3.1. Informação, comunicação, expressão
Quando analisamos os processos de interação que ocorrem na sala de aula, o que
também pode acontecer em outros espaços, nos deparamos com algumas questões que
precisam ser esclarecidas, dentre as quais, estabelecer as diferenças entre informar,
comunicar e expressar.
Ao consultarmos dicionários, em alguns deles, como no Aurélio
70
, encontraremos
em informar o sentido comunicar. Entretanto, informar, ou seja, passar informações,
quando nos remetemos à prática pedagógica, tem um significado diferenciado de
comunicar. Paulo Freire, em seu livro Comunicação ou Extensão?, se detém em analisar os
significados de extensão e comunicação a partir de suas várias dimensões semânticas. Uma
ação extensionista, semelhante ao ato de informar, independente do setor em que aconteça,
envolve uma simples transmissão de algo, envolve “ações que, transformando o homem
em quase ‘coisa’, o negam como um ser de transformação do mundo”, negando, ainda, “a
formação e a constituição de conhecimentos autênticos” e “a ação e a reflexão verdadeira
àqueles que são objetos de tais ações” (1992, p. 22). Por outro lado, a comunicação implica
uma reciprocidade entre sujeitos, não havendo rupturas. Enquanto no primeiro caso, ocorre
um monólogo, no segundo, há uma relação dialógica. Assim, “na comunicação não há
sujeitos passivos. Os sujeitos co-intencionados ao objeto de seu pensar se comunicam seu
conteúdo. (...) Isto é, a expressão verbal de um dos sujeitos tem que ser percebida dentro de
um quadro significativo comum ao outro sujeito” (Idem, p. 67).
Voltamos assim à relação íntima entre ensinar e aprender. “A educação é
comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um
encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados” (Freire,
1992, p. 69).
70
Novo Aurélio Século XXI Dicionário Eletrônico Versão 3.0. Nova Fronteira.
161
Caminhando um pouco mais, tomemos o sentido de expressar a que nos referimos
nesta tese e que a Bioexpressão busca estimular. A expressão vai além da comunicação,
uma vez que se relaciona à linguagem expressiva da vida.
O organismo vivo se expressa através de movimentos, daí falarmos de movimentos
expressivos. Como observa Reich (1933/1998), “no sentido literal, ‘emoção’ significa
mover para fora; ao mesmo tempo é um ‘movimento expressivo’”. Mas também existe a
expressão provocada pela rigidez, pela imobilidade. Por isso podemos afirmar que tanto a
contração quanto a expansão são expressivos. “A linguagem deriva claramente da
percepção de movimentos internos e de sensações dos órgãos, e as palavras que descrevem
estados emocionais refletem diretamente o movimento expressivo correspondente ao
organismo vivo” (p. 332). Mas nem sempre a linguagem verbal pode expressar essas
emoções, pois podem estar além dela, mas o organismo vivo a expressa de alguma forma,
mesmo que não possa fazê-lo através de palavras. Aí se mostra a importância de atividades
que propiciem formas diferenciadas de expressão não verbal, o que é propiciado pelas
atividades lúdicas e pelas artes, enfim, pelas atividades bioexpressivas.
As vivências mobilizadoras da expressão são geradas pelo movimento espontâneo.
O ego encouraçado reprime os sentimentos e controla nossos atos e comportamentos. “A
mente e o corpo devem estar integrados em qualquer expressão de sentimento para que
represente uma afirmação do self” (Lowen, 1995/1997, p. 60). Assim, a liberdade para
poder se expressar é imprescindível, liberdade que alcançamos ao entrarmos em contato
com nós mesmos e afrouxarmos os nós dos controles egóicos. Como enfatiza Lowen, não é
apenas nos libertarmos das restrições externas, embora isso seja necessário. Mas nos
libertarmos, particularmente, das repressões internas. “Essas repressões decorrem do medo
e são representadas por tensões musculares crônicas que inibem a espontaneidade,
restringem a respiração e bloqueiam a auto-expressão. Somos literalmente aprisionados por
essas repressões” (Idem, p. 238).
A auto-expressão implica a possibilidade de expressar a vida em nós, implica o
contato com nosso self, o conhecimento de nós mesmos. A expressão, assim considerada,
não se liga necessariamente à fala e, quando esta se manifesta, se mantém em conexão com
o sentimento. O silêncio e a quietude também são formas de expressão, muitas vezes
necessários para que haja a absorção do que vivenciamos, para que entremos em contato
com o sagrado em nós. Quem vive um momento de introspecção criativa ou meditativa não
vivencia um bloqueio de sua energia. O prazer, a alegria e a expressividade podem se
162
manifestar tanto na extroversão quanto na introversão. O que reduz a expressividade é
exatamente a redução do fluxo de nossa energia, nosso encouraçamento.
É importante que entendamos que a auto-expressão, que considero fundamental
para o desenvolvimento do ser humano em seus aspectos corporal, mental, emocional e
espiritual, exige a flexibilização dos bloqueios que criamos ao longo de nossa existência,
que, como vimos analisando nesta tese, se dá quando temos a possibilidade de nos
livrarmos dos controles do ego e fazermos contato com nosso self. Automatismos não
permitem que este contato se faça; para que ele ocorra temos que estar presentes em nosso
fazer, vivendo o aqui-agora. É uma experiência que se inicia sutilmente, que vai nos
permitindo viver o sensível em nós, livres do medo de cair na pieguice ou de “parecermos
tolos”, que se inicia no interior do próprio educador, que “iluminado” por esta emoção
vivenciada, terá condições de conduzir seus educandos pelos labirintos da autodescoberta,
levando-os a sentir a vida pulsando em si, expansão e contração, laços se criando,
confiança se estabelecendo, prazer de estar aprendendo, criando, vivendo e convivendo.
3.2. Centramento, grounding e auto-expressão
As atividades bioexpressivas têm como base o princípio reicheano de unidade e
antítese do funcionamento psicossomático. Trabalhamos o aspecto corporal de forma mais
evidente, mas o objetivo é trabalhar o ser humano como uma totalidade. Na visão de
Wilhelm Reich, sempre que se trabalha o corpo, trabalham-se as emoções e o pensamento.
Três elementos estão na base de qualquer vivência da Bioexpressão, estando
sempre presentes: o centramento, o grounding e a expressão própria, que subsidiam a
formação integral do ser humano. São centros de sustentação do ser humano integral por
lhe permitirem centrar-se em si mesmo e no seu modo de ser, comunicar-se e sustentar-se
com mente, corpo, emoção e espírito.
Como foi abordado no primeiro capítulo, David Boadella considera a existência de
três métodos terapêuticos primários, então descritos: centring, grounding e facing, cada um
dos quais se relaciona ao funcionamento dos sistemas orgânicos originados das camadas
celulares primárias na organização embriológica do feto: endoderma, mesoderma e
ectoderma, que se ligam respectivamente ao sentimento, movimento e pensamento. Como
163
observa o autor, “um estresse excessivo antes, durante e depois do nascimento rompe a
integração e a cooperação existente entre as três camadas celulares. A terapia pode ser
definida como uma tentativa de restaurar essa integração” (1985/1992, p. 23).
Retomo essa questão com o intuito de traçar as relações entre os métodos
terapêuticos apresentados por Boadella e a sua utilização trazida para o pedagógico pela
Bioexpressão, utilizando, como recursos fundamentais, as atividades lúdicas. As atividades
lúdicas, como analisamos no capítulo anterior, possibilitam que a energia possa fluir,
integrando os reservatórios de energia que correspondem aos grupos de órgãos e partes do
corpo formados a partir das camadas germinativas, ou seja, trazem a possibilidade de
integrar sentimento, movimento e pensamento. As desconexões entre esses reservatórios de
energia podem ser observadas, por exemplo, na ação dissociada do sentimento ou do
pensamento, no sentimento desconectado da percepção ou do movimento. Tomemos cada
um desses elementos separadamente.
3.2.1. Centramento
O centring (centrar), que optei por denominar centramento, é utilizado pela
Bioexpressão com o objetivo de facilitar o restabelecimento do ritmo do fluxo de energia
metabólica e do equilíbrio entre as duas partes do sistema nervoso vegetativo sistema
simpático e parassimpático. Ou seja, tem por objetivo estimular uma respiração
harmoniosa e favorecer o equilíbrio emocional. Relembrando, o endoderma, camada mais
interna, dá origem aos tecidos que metabolizam a energia: o revestimento do tubo
intestinal, todos os órgãos digestivos e os tecidos dos pulmões. Como afirma Boadella
(1985/1992), estar centrado (centring) significa estar ligado ao ritmo respiratório. A
respiração relaxada cria um senso de concentração. Também não podemos esquecer que,
ao reequilibrarmos a respiração, estamos reequilibrando a energia emocional. O diafragma,
como vimos anteriormente, é a ponte entre os reservatórios de energia endodérmica
(tronco) e de energia mesodérmica (coluna vertebral), assim, a respiração profunda,
mobilizando o diafragma e estimulando o fluxo da energia, permite que sentimento e
movimento se equilibrem. Boadella considera ainda que “o centro emocional de uma
pessoa é sentido no coração, e o centro energético no hara. Se o diafragma está relaxado,
esses dois centros estão em conexão; se o diafragma está tenso, a ligação é rompida”
164
(Idem, p. 76). Boadella os considera, respectivamente, o “centro do amor” e o “centro do
poder”. Ora, quando estes dois centros energéticos estão conectados, o amor e o poder se
unem, ou seja, a possibilidade de dar forma a algo, o suporte para a ação, se conecta à
amorosidade.
A respiração, fonte de energia, é muito limitada na maioria de nós, o que tem sua
origem na infância, quando a respiração é reprimida para controlar as emoções. Respirar
profundamente traz as emoções à tona. Afirma Alexander Lowen que “a mobilidade de
todo o corpo é reduzida quando a respiração se torna limitada. É por isso que prender a
respiração é o método mais eficiente para eliminar as sensações” (1970/1984, p. 31).
Através da respiração profunda há aumento da carga energética, o que significa,
literalmente, que o corpo ganha mais vida.
Como frisa Reich (1942/1995), o oxigênio fornece a energia que move o
organismo, logo, quando a respiração é inadequada, o nível de vitalidade do organismo tem
uma queda sensível. Lowen, ratificando essa afirmação, observa que “estar cheio de vida é
respirar profundamente, mover-se livremente e sentir com intensidade” (1970/1984, p. 31).
Dennis Lewis em seu livro O tao da respiração natural, analisa as inúmeras
possibilidades que a respiração consciente e profunda pode nos proporcionar, entre elas,
promover um processo de autoconhecimento e autotransformação a partir do exercício de
ouvir o corpo. Como admite o autor, não é fácil aprender a “ouvir” o permanente fluxo de
informações que o corpo nos envia, mas é possível se exercitarmos o direcionamento de
nossa atenção à realidade do momento presente, e não aos sonhos e à imaginação. “A
autopercepção permite, a cada um, uma relação mais autêntica consigo mesmo e com suas
reais necessidades, já que revela à pessoa como ela reage às circunstâncias internas e
externas de sua própria vida” (1999, p. 51-52).
Podemos trabalhar a respiração simplesmente pedindo que cada um fique atento a
ela, sem nada fazer, sem nada forçar, simplesmente respirando, mas também podemos
utilizar atividades orientadas. O importante é que todos os exercícios respiratórios devem
ser feitos de forma relaxada e consciente, dando uma pausa entre a inspiração e a
expiração, respeitando o próprio tempo. Essa pausa permite melhor absorção da energia
que se encontra no ar. É importante estar consciente também de que a respiração é uma
forma eficaz de relaxar e energizar-se, e que deve receber nossa atenção em qualquer
atividade.
165
Inspirar e, ao expirar, emitir sons tem um grande efeito de liberar tensões.
Trabalhar, por exemplo, com a emissão das vogais, A, E, I, O, U tem um efeito
equilibrador, na medida em que cada som vibra em áreas diferenciadas do corpo. Cada som
é emitido de uma vez. Inspira-se e vai-se soltando o ar até que se esgote, emitindo o som
A. Sucessivamente, vão-se emitindo os outros sons. Este exercício aumenta a capacidade
respiratória, alivia as tensões internas e cada som atua sobre uma área do corpo,
estimulando-a A- coração (emoções); E- garganta (expressão); I- cabeça (pensamento);
O- estômago (equilíbrio); U- baixo-ventre (base).
Respirar, visualizando uma fonte de energia sol, mar, árvores, ..., pode ajudar a
concentração e intensificar os efeitos. A visualização, como comprovam estudos recentes,
é muito valiosa nos processos de autotransformação, no relaxamento e na energização.
Disso falaremos mais adiante.
3.2.2. Grounding
71
A camada intermediária, o mesoderma, dá origem ao sistema muscular, ossos,
vasos sangüíneos e coração, responsável pelos movimentos. A esse sistema orgânico se
relaciona o grounding (firmar), utilizado como método terapêutico para o restabelecimento
de um tônus muscular apropriado. Vimos anteriormente que o tônus muscular pode estar
em desequilíbrio de duas formas: pode ocorrer uma hipertonia, em que se manifesta um
excesso de tensão, de enrijecimento; ou uma hipotonia, em que ocorre uma deficiência do
tônus muscular, uma frouxidão. Segundo Boadella, “estar bem ‘firmado’ é apresentar um
tônus muscular apropriado às mais diversas situações” (1985/1992, p. 25). Ou seja, o ideal
seria manter firmeza sem tensão, e relaxamento sem lassidão.
Estar grounded, na definição de Alexander Lowen (1970/1984), é ter “os pés no
chão”, ou seja, estar em contato com seu corpo, contrariamente a “estar nas nuvens”. Em
nossa linguagem cotidiana, o sentimento de que nos falta grounding (base) se expressa de
muitas formas: “perdi o pé da situação”, “perdi o chão”, “foi como se o chão se abrisse”,
71
A expressão grounding será mantida uma vez que é a forma utilizada desde sua criação por Alexander
Lowen e que, geralmente, é mantida nas traduções.
166
ando com a cabeça na lua” ou, como a conhecida canção: “ando meio desligado, eu nem
sinto meus pés no chão
72
”. Ou seja, denotam a perda de contato com a realidade.
Como especifica Telma Nadja Lélis (2003), estar grounded é estar em contato com
as realidades básicas de sua existência: contato com a terra, o que significa ser capaz de se
manter de pé, ancorado em suas pernas e pés; contato com o corpo, ou seja, ter a percepção
de si, sentir seu corpo e seu funcionamento energético; contato com seu psiquismo, o que
significa ter senso de si; saber o quanto cada um de nós pode saber de si mesmo, de seus
processos, de sua história de vida e de como agimos; contato com a sexualidade, que é a
possibilidade de manter contato com o prazer (genital ou não). É a possibilidade de
perceber o quanto nossa energia vital está ou não livre, fluida, presente no corpo.
Para que as pessoas não se deixem submergir em meio às emoções intensas que
podem aflorar, o grounding é trabalhado nos processos terapêuticos como observa Lowen.
“Isso reduz a carga no corpo do mesmo modo que o fio terra em um circuito elétrico
previne um curto-circuito”. Entretanto, frisa que dar esse embasamento é um procedimento
habitual quando se trabalha com o corpo (1995/1997, p. 104).
O grounding é um dos grandes eixos da Bioexpressão, desenvolvido através de
atividades diversificadas, porque, como observa Lowen, o grounding “leva a pessoa a
entrar em contato com suas pernas por aumentar o sentimento nelas, o que depois
proporciona maior segurança e apoio para todos os exercícios de auto-expressão” (Idem, p.
104).
As atividades de base (grounding) trabalham a auto-confiança, aumentam o senso
de segurança, descarregam tensões, trazendo-nos para o aqui-agora. Isso permite que os
participantes das atividades se sintam seguros e acolhidos por si mesmos para expressarem
o que, muitas vezes, está reprimido em seus corpos. Enfim, são exercícios que os ajudam a
manterem contato com sua firmeza, sua força, trazendo a sensação de que estão enraizados,
evitando que percam “o pé da situação”.
Dois exemplos de atividades que podem ser utilizadas sem dificuldade:
a) Ao som de músicas em que predomine a percussão ou sons bem ritmados e
marcados, andar pela sala sentindo bem os seus pés descalços apoiados no chão,
imaginando que se entra em contato com a força da terra. Manter o corpo relaxado, a
72
Ando meio desligado de autoria de Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias.
167
coluna ereta, o olhar para frente, trabalhando a possibilidade de caminhar pela vida com
objetivos definidos. Manter os passos firmes, mas sem enrijecer o corpo. Ao andar,
procurar ocupar todo o espaço, não andando em círculos, o que pode sugerir a repetição, a
manutenção do estado de coisas, como um “cachorro que corre atrás do rabo”. A boca deve
estar solta, sem a compressão dos lábios, permitindo o relaxamento do maxilar onde se
concentra grande carga de tensão. Como nos outros exercícios, deve-se manter a
consciência do movimento e da respiração.
b) Trabalhar a força das pernas, sentindo o peso do corpo apoiando-se nelas. Ir
abrindo as pernas aos poucos, deixando que os joelhos se flexionem, sentindo mais e mais
o peso do corpo como se uma força o puxasse para baixo. A música que se presta para esta
atividade é como a descrita anteriormente.
Ao final desses exercícios, deve-se sempre deixar que o corpo relaxe e se
movimente livremente ao som de uma música mais suave que estimule o movimento,
soltando as partes ainda tensas, integrando-as, sempre se mantendo atento para não prender
a respiração ou contrair a musculatura.
3.2.3. Expressão pessoal
A camada externa, o ectoderma, forma todo o sistema nervoso, centralizado no
cérebro e nos órgãos dos sentidos, incluindo a pele. Através desse sistema, reunimos e
coordenamos informações sobre o mundo e estabelecemos comunicação. Tanto são
administradas pelo sistema nervoso as percepções obtidas pelo sistema muscular
(propriocepção), quanto as percepções obtidas pelos cinco órgãos dos sentidos
(exterocepção). O “facing (encarar), terceiro método terapêutico-educativo considerado
por Boadella, se dá através do contato visual e vocal, e da integração entre sentimento,
linguagem e percepção.
Na Bioexpressão, a relação com o facing se manifesta nas vivências que criam a
possibilidade da pessoa expressar-se com maior autenticidade, seja através do contato
visual ou da comunicação verbal.
David Boadella nos fala da importância do “olhar”, ou seja, de ser capaz de ver de
fato, de perceber cada pessoa como um ser humano diferenciado. Acredito que esta
168
receptividade do olhar é fundamental para permitir que a auto-expressão se manifeste.
Permitir que o contato visual se estabeleça cria uma nova possibilidade de relação. Diz o
autor:
Encarar (facing) está relacionado com o reconhecimento, com a maneira como
vemos as pessoas, com as qualidades de luz que se desenvolvem quando as
pessoas realmente se olham e com os sinais de iluminação que surgem
subitamente nesses contatos. A compreensão desenvolve-se a partir da
observação. Se uma pessoa permite que seu eu interior seja visto por outra, ela
começa então a se reconhecer e pode olhar para dentro, não no sentido de uma
introspecção estéril, mas no sentido de aprender a se amar e a se aceitar.
Portanto um olhar claro entre pessoas estimula um ser mais profundo
73
(1985/1992, p. 105).
Boadella aponta ainda que o eu interior pode se revelar, também, através da
expressão e da comunicação na linguagem. Entretanto, há que se considerar que a
comunicação mais profunda exige que haja contato consigo mesmo e que a fala seja
expressiva, isto é, que esteja articulada com o sentimento.
A voz é um recurso significativo de expressão, como frisam Reich (1933/1998) e
Boadella, que ressalta este trecho:
A voz expressa ou bloqueia os movimentos vibratórios provenientes do centro do
organismo. O que faz uma pessoa mover-se é sua atitude interior. Os movimentos
pulsatórios da vida, expressos no campo energético, combinam-se com os
movimentos físicos do corpo num funcionamento unificado. (...) Pode-se dizer
que a habilidade de expressar todo um conjunto de sentimentos vocalmente,
assim como verbalmente, é uma medida de saúde. Na vida, vocalizar os
sentimentos, falar é um direito inato do homem. Engolir os sentimentos e calar-se
significa reprimir e comprimir a alma (Pierrakos apud Boadella, 1985/1992, p.
113).
Boadella observa que a sonorização da experiência vivida e a sensibilização a suas
reverberações vão muito além de um diálogo em seu sentido convencional, são uma
73
Grifos pessoais.
169
maneira de olhar significados que são trazidos. “Sonorizar (sound) a própria verdade dessa
forma, através de um encontro verdadeiro com outra pessoa, é uma necessidade essencial
para alguém que está querendo se ‘firmar’ em sua própria vida e em seu espaço corporal”.
Esses encontros verdadeiros são momentos em que ocorre uma relação de self a self, em
que há ressonância, como vimos no capítulo anterior. E complementa o autor: “quando isso
acontece, nasce um tipo de inteligência orgânica que não tem nada a ver com a razão ou
com a manipulação de conceitos; a pessoa e suas experiências não estão mais separadas”
(1985/1992, p. 113).
Quando educador e educando estabelecem essa relação de confiança e acolhimento,
a expressão pessoal tem espaço para se mostrar; há, também, a possibilidade de que o
educando, futuro educador, faça um contato profundo consigo mesmo, com sua força, com
sua verdade, enfim, com seu self. Esses momentos possibilitam que a inteligência e o
intelecto se unam, e que haja a “permissão” interna para que a intuição se manifeste. Como
dizem meus educandos, esse é o momento das “sacadas”, ou seja, um momento em que
ocorre uma expansão da consciência, o que possibilita os insights.
Não há atividades específicas para essa forma de expressão como há para o
centramento ou o grounding. Ela é resultado de uma série de atividades e vivências que
vão progressivamente criando um clima de confiança, respeito, permissão.
Os trabalhos de integração grupal são fundamentais para criar um espaço de
confiança, de permissão interna para que cada um se expresse, onde tanto as semelhanças
quanto as diferenças possam se mostrar. É muito importante que o grupo seja facilitador
desse processo, caso contrário ele não ocorrerá.
3.3. Recursos e possibilidades
Como vimos no item anterior, três elementos estão na base da Bioexpressão
centramento, grounding e auto-expressão. As atividades são desenvolvidas, como mostram
os exemplos dados, de forma que os participantes possam, gradativamente, entrar em
contato com esses elementos. Dependendo da forma como são organizadas e orientadas as
atividades, pode-se privilegiar um deles ou todos eles.
170
Alguns recursos oferecem possibilidades variadas, sendo muito utilizados na
Bioexpressão: a visualização; ritmo, sons e música; e a dança. Tendo em vista seu
potencial de promover vivências lúdico-expressivas, que conduzem o ser humano a sua
formação integral, esses recursos merecem ser analisados separadamente.
3.3.1. Visualização criativa
A visualização criativa que é definida por Patrick Fanning como “a criação
consciente e intencional de impressões mentais tendo em vista a transformação individual”
(1993, p. 15). É um processo consciente criativo com que cada um trabalha de acordo com
sua própria finalidade, ativando todos os sentidos do corpo e não apenas as imagens
mentais, o que proporciona um processo voltado pra mudança e o auto-aperfeiçoamento.
As sensações podem ser tão nítidas que, como os participantes do grupo partilharam,
sentem aromas, percebem-se em contato com texturas variadas, com temperaturas
diferentes, ouvem sons, ... E, o que é muito significativo, entram em contato com sua
intuição, muitas vezes, encontrando respostas para dúvidas e vislumbrando possibilidades
de ação.
As emoções estão ligadas às imagens de forma íntima. Toda emoção pode se
manifestar por uma imagem. Um exemplo disto é nos perguntarmos, caso estejamos
alegres ou tristes, com que se parece esta alegria ou esta tristeza, e logo nos surgirá uma
imagem referente ao sentimento. O número de pesquisas na área médica quanto ao
processo de visualização consciente como auxiliar para a cura e o equilíbrio vem
aumentando, como aponta o psiquiatra Gerald Epstein, que afirma serem as imagens
mentais ou visualização um processo para entrarmos em contato com o nosso interior,
nossa realidade subjetiva interna, de criarmos novas experiências, novas formas de lidar
com as diferentes tensões e situações do dia-a-dia. Para o médico, “a chave para o processo
do trabalho com imagens encontra-se nas conexões entre emoções, sensações e imagens”
(Epstein, 1990, p. 35). Em outras palavras, temos possibilidades de acessar nosso self,
flexibilizando as couraças que impedem o fluxo da energia.
O autor observa que trabalhar com imagens está ligado de forma íntima com o
fluxo do processo de mudança, o que se relaciona, possivelmente, ao fato de as imagens e a
171
intuição estarem associadas ao hemisfério cerebral direito, enquanto a lógica e o raciocínio
verbal se associarem ao hemisfério esquerdo:
Dar asas à imaginação, a imagens sem causalidade, em vez do
pensamento verbal seqüencial, nos ajuda a aceitar o fluxo das coisas. Quando
recolocamos a imaginação em seu lugar, em pé de igualdade com o pensamento
lógico, nos abrimos para a mudança e a renovação, e nos damos a oportunidade
de apreciar a sucessão de momentos no presente, conforme vão se desenrolando.
Isso é exatamente o oposto da nossa experiência habitual, na qual, em
geral, focalizamos o passado ou o futuro. Quando fazemos isso, destacamos a
descontinuidade e não o fluxo. Nós nos ligamos a pontos fixos, aos quais
atrelamos um tipo de julgamento e significado prejudiciais (Epstein, 1990, p. 32).
Retomando a teoria reicheana, buscamos evitar a dor, o que é conseguido através
do aprisionamento das emoções nos bloqueios psicossomáticos. Quando nos entregamos a
uma atividade que nos permite a liberação dos bloqueios egóicos que nos mantêm presos
ao passado, não nos permitindo viver plenamente o presente, nem irmos em direção ao
futuro, nos libertamos momentaneamente de uma carga de significados que determinadas
situações passadas nos trazem, às quais estão associados pensamentos, lembranças,
sentimentos, projeções e atitudes; assim podemos vivenciar o fluxo de energia no momento
presente com o qual podemos interagir e que pode se reorganizar, nos propiciando novas
percepções, sentimentos e pensamentos.
É importante atentar, como aponta Fanning (1993), para o fato de que “a
visualização voltada para a mudança é uma técnica poderosa que atua em harmonia com
outros agentes de mudança na vida
74
. Ela amplia e realça tudo o que você faz, mas não
substitui nada” (p. 19). Ou seja, a visualização é um recurso a mais, o que não significa que
seja capaz de resolver todas as nossas dificuldades.
Costumo orientar a visualização de imagens que propiciem força, equilíbrio ou
serenidade, dependendo do que está sendo vivenciado envolver-se com cores, com fios
tecidos com a energia do sol, ver-se uma árvore com raízes fortes e seguras, sentir-se em
um lugar que traga prazer e aconchego. Em alguns casos sugiro a imagem, em outros, cada
74
Grifos pessoais.
172
um pode criar a imagem que lhe for mais agradável ou expressiva. A criatividade pode ser
usada livremente.
3.3.2. Ritmo, sons e música
Em minha dissertação de Mestrado, iniciei os estudos quanto às possibilidades de
trabalhar ritmo e sons na sala de aula. Encontrei, então, pesquisas que defendiam a relação
íntima existente entre o equilíbrio rítmico e o equilíbrio corporal, e a importância de
trabalhar o ritmo para estimular um maior fluxo de energia. Voltei a buscar esse apoio
teórico nesta pesquisa, uma vez que a expressão sonora e rítmica são recursos muito
utilizados nas atividades bioexpressivas, assim como a música, que se apresenta como
companheira constante nas vivências.
A vida pulsa em nós e pulsa no universo, como podemos sentir em nossa
respiração, nos batimentos cardíacos, nos processos biológicos; também há ritmo no
movimento das marés, nas fases da lua, no bater das asas dos pássaros, nos sons que vêm
da natureza. “Tudo se manifesta através do ritmo, a dança é ritmo e a linguagem tem ritmo
para ser expressão. Ritmo é a pulsação vital” (Fregtman apud Pereira, 1992, p. 86).
O ritmo é “o primeiro elemento musical com que entramos em contato e se
encontra completamente aliado às manifestações vitais mais primitivas”, pois, com ele nos
envolvemos desde a vida intra-uterina, observa Marly Chagas. E continua, enfatizando que
“a vivência do ritmo é realmente tão primitiva em nossas vidas que trabalhar com ele é
também vital” (1990, p. 586).
Sons e ritmo, musicais ou não, são recursos valiosos para o trabalho pedagógico ou
terapêutico, uma vez que produzem vibração, pulsação, fluxo de energia. Em outro texto,
Chagas observa que o canto oferece grandes possibilidades de criar as pontes de circulação
energética que reintegrem os sistemas orgânicos que derivam das camadas celulares
endoderma, mesoderma e ectoderma a que se refere David Boadella
75
:
O cantar implica mover, de uma só vez, a garganta, a nuca e o diafragma. A
experiência energética do cantar facilita a integração entre o fluxo da cabeça, dos
órgãos internos, do corpo e da coluna, braços e pernas. Cantar ajuda a juntar ação,
75
Esta questão foi tratada nos dois primeiros capítulos.
173
emoção e pensamento, facilitando o contato direto com as sensações físicas, com
os sentimentos e com a mais profunda sensação de ser o que se é (Chagas, 1997,
p. 23-24).
A música, facilitando maior concentração e entrega às vivências, intensifica a
expressividade do movimento. Renato Magalhães Pinto enfatiza que tanto o gesto quanto a
música se constituem de ritmo e são linguagens expressivas. “O gesto mecânico nada
significa. O seu valor reside no sentimento que o inspira. Assim, os ritmos do corpo só
adquirem valor se se mantiverem a serviço das impressões para as realizar
expressivamente, sendo a música fundamental auxiliar nesse sentido” (Dalcroze apud
Pinto, 1997, p. 31). Corroborando o significado do gesto expressivo, Lowen observa que as
tensões musculares só podem ser liberadas através de movimentos expressivos, não
mecânicos, e que o músculo relaxado está carregado de energia, de vida, de graça. “O
excitamento e o fluxo de sentimentos associados com prazer são manifestados fisicamente
como graça” (1970/1984, p. 135).
Estudiosos da música, entre os quais Carlos Fregtman (1988), Renato Pinto (1977)
e José Miguel Wisnik (1989), apontam para o fato de que a música pode ser usada como
meio de controle, uniformizando e disciplinando movimentos, o que historicamente se
mostra na educação. Mas é também um meio de desenvolver a sensibilidade, a criatividade
e possibilitar a vivência da ludicidade e do prazer. Ela pode induzir à acomodação ou à
rebeldia, à imitação ou à criação.
A música tem função primordial para a Bioexpressão: facilita a entrega aos
exercícios, estimula o movimento, a distensão muscular e o relaxamento. São escolhidas
com cuidado, sendo evitadas músicas muito conhecidas que já adquiriram alguma
conotação como um tema de novela, de um filme de sucesso ou que se relacionem a danças
coreografadas mostradas na televisão. A expressão própria, que a Bioexpressão busca
possibilitar e estimular, é bem diferente da imitação de modismos que geram parâmetros
massificadores e repetitivos, que estimulam a alienação e o conformismo. A música tem
por objetivo estimular a dança expressiva, os diálogos corporais, movimentos de mergulho
interno ou a manifestação da alegria; ajudar a desinibir, a brincar, a interagir, a criar. Deve
permitir, ainda, o tempo necessário para que os sentimentos aflorem e, a partir do
movimento interno, o movimento externo possa se manifestar.
174
Nas vivências de Bioexpressão, são exploradas as muitas manifestações sonoras
que o corpo oferece como as palmas, os sons vocais, a batida dos pés; são trabalhados
ritmos variados que se associam a sentimentos, a estados internos, a interpretações e
expressões pessoais. Exemplos disso se mostram na possibilidade de experienciar nossa
força e nossa suavidade com o estímulo sonoro/musical; trabalhar a base (grounding) com
sons tribais, cantos xamânicos ou danças africanas; entregar-se ao relaxamento com sons
da natureza.
Fregtman (1995) observa que a música promove a expansão da consciência,
possibilitando que cheguemos “mais além dos terrenos habituais do ego (eu) e das
limitações ordinárias do tempo e do espaço”. Como expressão e caminho transpessoal, a
música nos possibilita acessar “experiências de uma extensão da identidade que vão mais
além da personalidade e da individualidade”. Assim, quando a música nos leva a uma
viagem interior, gerando a expansão da consciência, “pode facilitar o crescimento e tomada
de contato com estados diferentes de atenção e lucidez que transcende os níveis
reconhecidos” (1995, p. 57).
3.3.3. Dança e movimentos expressivos
A dança é uma atividade que pode proporcionar momentos intensos de vivência
lúdica. Viver o prazer de deixar o corpo entregue aos movimentos nos proporciona uma
nova percepção de tempo e espaço. Naturalmente, a escolha da música cria condições para
que essa possibilidade ocorra. Embora a dança possa ser uma vivência individual, pode-se
também vivenciar uma relação dialogada e compartilhar as descobertas rítmicas que ela
propicia.
Renato Magalhães Pinto observa que “a unidade música-corpo revela-se,
fundamentalmente, na criação significativa da alegria de ser, o que destaca a importância
da vivência lúdica dessa relação. O lúdico é o único democrata autêntico que existe” (1997,
p. 92). Não há coações, não há pressões, não há exigência de uniformidade, não há
significados definidos. Há, especialmente, o prazer de deixar que os movimentos
expressem a vida.
175
A dança permite, segundo France Schott-Billmann, articular de forma harmoniosa
corpo e alma, coração e razão, consciente e inconsciente. Segundo a autora, a dança reúne
“a terra e o céu, as raízes e as asas, a animalidade e o misticismo” e permite “o vôo da
matéria para a sublimação, juntamente com o enraizamento da espiritualidade nas
profundezas do ser, lá onde se encontra seu núcleo rítmico
76
(s/d, p. 257). Para Schott-
Billman, “o ritmo é talvez o primeiro dos suportes simbólicos que ‘chama’ o corpo ao
movimento. Significante da força vital, ele é indissociável da vitalidade das danças
primitivas. Talvez desperte em cada ser um ritmo pulsional interno com o qual ele entra em
ressonância” (Idem, p. 238).
Talvez por essa ressonância de que nos fala a autora, as danças circulares,
inspiradas nas danças primitivas dos povos, nos falem tão profundamente, nos toquem de
forma tão intensa, levando-nos a um estado meditativo, que permite que nos centremos,
aumentando o fluxo de energia e a conexão grupal.
Descobri as danças circulares dançando. Faz muitos anos que tive a possibilidade
de dançá-las pela primeira vez, e desde que me apropriei desse conhecimento, passei a
utilizá-lo na Bioexpressão. Durante minha estada em Salvador, pude fazer um curso
77
, e
algumas oficinas de final de semana e aprender um pouco mais, além de vivenciar a alegria
e o encontro comigo mesma que as danças circulares nos proporcionam. Isso me fez
integrar de forma mais freqüente e “consistente” as danças a meu trabalho, utilizando não
só as já existentes, mas criando novos movimentos e utilizando novas melodias em função
da demanda do momento e da intuição.
As danças circulares não precisam ter movimentos complexos, ao contrário,
algumas são muito simples, e, na simplicidade, está seu maior poder. Trazem a
possibilidade de agregar os que dela participam e promover um estado meditativo ou de
profunda alegria. O círculo é símbolo da igualdade, da inclusão. Ninguém é mais
importante que ninguém, não há o primeiro ou o último, todos têm o seu lugar, e uma das
aprendizagens é manter essa circularidade, não se deixando excluir da roda, não excluindo
o outro, mantendo a sua forma. Todos se mantêm interconectados, pulsando num mesmo
ritmo.
76
Tradução pessoal.
77
Fortalecendo o poder pessoal Encontro de Danças Circulares sob orientação de Sirlene Barreto,
Salvador, outubro e novembro de 2003.
176
Em síntese, a dança, tenha movimentos orientados ou não, seja feita
individualmente, em duplas, em pequenos grupos ou em círculo, é uma atividade
expressiva que possibilita não só o contato consigo mesmo como também com o grupo,
auto-sustentação, equilíbrio, maior fluxo da energia vital e prazer. É, portanto, uma
atividade essencialmente lúdica.
3.4. Retomando a organização das atividades
Algumas observações ainda se fazem necessárias quanto à organização das
atividades para que o efeito integrador não se perca. A primeira é a atenção para a forma de
se organizar a sua seqüência, a observação do ritmo que se estabelece nessa seqüência, que
deve ser gradual, harmonioso, sem quebras bruscas ou mudanças repentinas. Por exemplo:
de uma atividade que exija introspecção, silêncio interno ou maior concentração não se
deve passar a uma atividade que exija movimento ou vivacidade. Há que se preparar a
ponte, aumentado gradualmente o ritmo dos exercícios. Da mesma forma, não é
conveniente sair de um trabalho que demande maior vitalidade para um relaxamento
profundo. Pode-se utilizar como forma de passagem a respiração, que diminui o ritmo dos
batimentos cardíacos e tranqüiliza, ou movimentos mais suaves que vão abrindo espaço
para o relaxamento.
Poderemos usar isoladamente, um exercício de respiração, um pequeno
relaxamento, uma atividade para “despertar” o grupo quando isso se fizer necessário.
Não existem regras fixas ou recursos materiais específicos, nem existe o sentido de
um componente do grupo fazer certo ou errado, de fazer “melhor que o outro”, portanto,
não há modelos ou competitividade. É uma expressão própria, não mecânica, de dentro
para fora, embora sejam seguidas algumas orientações de quem coordena o grupo. É
fundamental que sejam respeitados os limites de cada um, as dificuldades que possam
surgir. E essa orientação sempre é colocada vá até onde você seja capaz de ir sem
forçar nada, mas procure perceber onde está o impedimento”. Essa percepção permite a
cada um, gradualmente, um maior conhecimento de si.
O trabalho pode ser desenvolvido com grupos diferentes, de diferentes faixas
etárias, estando sempre presente o cuidado de adequar as vivências às demandas de cada
177
grupo com suas especificidades e às necessidades observadas, considerando-se se
trabalhamos com crianças, adolescentes ou adultos.
As atividades lúdicas, convém relembrar, possibilitam a integração dos
sentimentos, pensamentos e movimentos, são prazerosas, facilitam a organização interna,
estimulam a criatividade e a integração grupal, assim como uma melhor relação educador-
educando. Dessa forma, já têm um sentido em si mesmas, não sendo necessário que
trabalhem conteúdos programáticos. Mas também podem, muitas vezes, ajudar o educador
neste sentido.
Muitas atividades são criadas por mim no sentido de trabalhar dificuldades comuns
a quase todos nós. Exemplo disto é, através do movimento, expressar força e suavidade,
assertividade e flexibilidade, integrando em si estas qualidades, o que tem se mostrado, de
fato, uma dificuldade de muitos que participam das vivências. Esta criação pode surgir
quando ouço uma determinada música; posso ainda imaginar uma atividade que se faz
necessária e, a partir daí, buscar os recursos para viabilizá-la. E é importante observar que
dinâmicas de grupo, de sensibilização, danças circulares, enfim, novas atividades são
incorporadas à Bioexpressão caso se mostrem um recurso significativo que atenda às
demandas do grupo. Elas chegam a mim de várias maneiras: através de leituras, de cursos
feitos, de educandos que criam ou trazem possibilidades para a sala de aula. Creio que o
mais importante é nos mantermos abertos para a aceitação do novo e das possibilidades
que surjam.
3.5. Algumas características desejáveis ao educador e alguns senões
Há características do educador que são consideradas como o necessário para seu
fazer tomadas isoladamente (Clermont Gauthier apud Ana Lúcia Amaral, 2004). Embora
todos estes aspectos sejam significativos para o exercício do magistério, não são
suficientes por si só para que nos tornemos educadores. Tomemos cada uma destas idéias
separadamente, enfatizando sua importância em conjunto com as demais:
a) conhecer o conteúdo: ter domínio sobre os conteúdos trabalhados é
fundamental, creio que disso ninguém duvida, mas não é o bastante, uma vez que ensinar
178
implica outras habilidades, conhecimentos e atitudes. Como afirma Paulo Freire, tão
importante quanto o ensino de conteúdos é o nosso testemunho ético ao ensiná-los, nossa
decência ao fazê-lo, a preparação científica que se mostra sem arrogância e, sim, com
humildade. “Tão importante quanto o ensino dos conteúdos é a minha coerência na classe.
A coerência entre o que digo, o que escrevo e o que faço” (2004, p. 103). Essa coerência é
aspecto fundamental, a meu ver, para que tenhamos o respeito de nossos educandos.
b) ter talento: Anastasiou (2004) pontua que essa afirmação nos permite admitir o
“mito” de que o professor já nasce pronto para seu fazer ou não. Qualquer ofício para ser
bem realizado exige talento, entretanto, isto não é suficiente. O desempenho do educador,
como o de artistas e atletas, não pode prescindir de técnicas e saberes específicos que
foram sendo formalizados, ensinados e aprendidos ao longo do tempo.
c) ter bom senso: o que significa exatamente bom senso para cada um? Podemos
considerar que há um consenso quanto ao que seja o bom ou o mau senso? Estas seriam a
primeiras perguntas que caberiam ser feitas.
Entretanto, Paulo Freire traz algumas reflexões interessantes quando nos propõe
que ensinar exige bom senso, que se aproxima muito da idéia de sensibilidade, análise
crítica e percepção do entorno, e se mostra como algo a ser exercitado e conquistado.
Segundo Freire, o exercício do bom senso é feito de forma articulada com a curiosidade,
“quanto mais pomos em prática de forma metódica a nossa capacidade de indagar, de
comparar, de duvidar, de aferir, tanto mais eficazmente curiosos nos podemos tornar e
mais críticos se pode fazer o nosso bom senso” (2004, p. 62). Como exemplifica o autor,
na difícil tensão que se estabelece entre autoridade-liberdade, quase sempre confundimos
autoridade com autoritarismo, licenciosidade com liberdade. É o bom senso que nos
adverte de que exercer nossa autoridade de educador em sala de aula, ao tomar decisões,
orientar atividades, estabelecer tarefas, cobrar a produção individual e coletiva do grupo
não se constitui em autoritarismo, mas sim na autoridade que cumpre seu dever. É nosso
bom senso que nos adverte de que o comportamento de um estudante acabrunhado, quieto,
assustado, que se esconde de si mesmo exige nossa atenção. Faz-me ver, ainda, que o
problema não está em outros estudantes que manifestam inquietação, alvoroço e vitalidade.
O meu bom senso não é capaz de me dar respostas, mas indica com clareza que algo
179
precisa ser sabido. “Esta é a tarefa da ciência que, sem o bom senso do cientista, pode se
desviar e se perder. Não tenho dúvida do insucesso do cientista a quem falte a capacidade
de adivinhar, o sentido de desconfiança, a abertura à dúvida, a inquietação de quem não se
acha demasiado certo das certezas” (2004, p. 63).
De qualquer forma, cabe ainda questionar: Bom senso é suficiente para ensinar?
Não tenho dúvidas em dizer que não, mesmo considerando importante desenvolvê-lo.
d) seguir a sua intuição: no capítulo anterior, desenvolvi um tópico em que aponto
a importância do desenvolvimento da intuição. Fayga Ostrower observa que a intuição é
dos mais importantes modos cognitivos do homem”, que, contrariamente ao instinto, lhe
possibilita lidar com o novo e o inesperado. “Permite que, instantaneamente, [o ser
humano] visualize e internalize a ocorrência de fenômenos, julgue e compreenda algo a
seu respeito. Permite-lhe agir espontaneamente” (1977, p. 56).
Entretanto, valorizar a intuição não significa abrir mão do conhecimento e da
racionalidade. Os grandes insights não surgem do nada, existe um caminho prévio a ser
trilhado. Como a percepção, esclarece Ostrower, “a intuição é um processo dinâmico e
ativo, uma participação atuante no meio ambiente. É um sair-de-si e um captar, uma busca
de conteúdos significativos”. Assim, em todo ato intuitivo, pré-existem imagens
referenciais já presentes em nós, embora o que surja seja um novo conhecimento. “O
conhecimento intuitivo imediato repercute em nós como um re-conhecimento imediato. As
memórias de situações anteriores já vividas servem de referencial aos dados novos. Estes,
em novas integrações, por sua vez se transformam em conteúdos referenciais. Sempre nos
reencontramos e nos reconhecemos” (Ostrower, 1977, p. 66-67).
e) ter experiência: essa afirmação se baseia na crença de que é errando e acertando
que se aprende a ensinar. Como observa Amaral, não se pode negar que o saber adquirido
com a experiência tem um espaço importante em qualquer prática profissional, entretanto
não é representativa da totalidade do saber docente. “Este precisa ser alimentado, orientado
por um saber mais formal que possa informar as rotinas e permita novas soluções sem
tantas incertezas, até mesmo por uma questão de ética” (2004, p. 141). Há ainda que se
considerar que a mutabilidade constante da vida exige o estudo constante, a abertura para
as novas teorias que surgem, seja para acolhê-las ou, com bases concretas, negá-las.
180
f) ter cultura: Amaral enfatiza que esta cultura a que se refere Gauthier,
denominada por ele de “Grande Cultura”, possivelmente se refira ao “capital cultural”
bourdieuniano, próprio das elites, e que, mesmo que não possa deixar de ser reconhecida
como significativamente importante para a prática do educador, também não é suficiente.
Não podemos desconsiderar a multiplicidade de culturas e a questão da identidade
cultural, englobando a dimensão individual e a de classe dos educandos, que exige o
respeito do educador. Como observa Reinaldo Fleuri, “a educação não se reduz
simplesmente à transmissão e à assimilação disciplinar de informações especializadas.
Pois, o processo educativo consiste basicamente na criação e no desenvolvimento de
contextos educativos. Contextos em que as pessoas em relação ativam as interações entre
seus respectivos contextos culturais” (2000, p. 80).
Além das qualidades citadas acima, há ainda uma que considero primordial: a
experiência pessoal da integração corpo, emoção, mente e espírito. Se o educador não
houver vivenciado e incorporado em si esta integração, não será capaz de orientar seus
educandos neste sentido.
Creio que este conjunto de características deve ser estimulado, uma vez que são
aquisições importantes para o educador, não sendo, portanto, desconsiderados pela
Bioexpressão. Fecho este item com um poema de Cora Coralina, que com simplicidade e
sabedoria, nos mostra aspectos essenciais para a prática pedagógica e para a vida, que
deveriam estar sempre presentes nas salas de aula: sensibilidade, envolvimento,
compromisso, respeito, acolhimento, amor:
Não sei se a vida é curta ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos tem sentido,
se não tocarmos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
181
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.
E isso não é coisa de outro mundo,
é o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela não seja nem curta,
nem longa demais, mas que seja intensa,
verdadeira, pura... enquanto durar
Estabelecidos os elos entre a Bioexpressão, a ludicidade e a formação do educador,
assim como apresentadas as bases teóricas que lhe dão sustentação, passaremos à pesquisa
de campo. Este foi um momento importante deste estudo, uma vez que tive a oportunidade
de desenvolver e acompanhar a repercussão das atividades teórico-práticas da
Bioexpressão junto ao grupo de participantes da pesquisa, com uma nova configuração
resultante dos estudos empreendidos, e com um novo olhar mais atento, crítico e
sensível.
PARTE II
INTERAÇÕES ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA DA
BIOEXPRESSÃO E LUDICIDADE:
A PESQUISA EMPÍRICO-REFLEXIVA
183
CAPÍTULO I
OS PASSOS DA PESQUISA EMPÍRICA
Uma verdadeira viagem de descobrimento
não é encontrar novas terras, mas ter um olhar novo.
Marcel Proust
Configuradas as bases teóricas da Bioexpressão e estabelecidas as relações com a
ludicidade, a auto-expressão e a formação do educador, nesta parte, apresentarei os
resultados da pesquisa empírica, descrevendo seus passos, me atendo às observações
necessárias para que o leitor possa compreender o processo como um todo.
A pesquisa-ação foi o método considerado mais adequado para os estudos
desenvolvidos, uma vez que houve uma ação planejada com objetivo de minimizar
limitações profissionais, solucionar dificuldades existentes, ou ainda, no limite das
possibilidades, promover transformações pessoais dos educadores envolvidos. Como
considera Michel Thiollent, a pesquisa-ação não se constitui apenas pela ação ou
participação, mas deve produzir conhecimentos, permitir a aquisição de experiência,
contribuir para a reflexão ou avançar debates sobre as questões abordadas, que deverão ser
divulgadas posteriormente. Assinala ainda esse autor que, com a pesquisa-ação, os
pesquisadores desejam investigações em que “as pessoas implicadas tenham algo a ‘dizer’
e a ‘fazer’”, ou seja, que tenham um papel ativo nas diferentes etapas do processo
investigativo, o que é bem diferente “de simples levantamento de dados ou relatórios a
serem arquivados. Com a pesquisa-ação os pesquisadores pretendem desempenhar um
papel ativo na própria realidade dos fatos observados” (2002, p. 16). O cuidado com estes
aspectos esteve presente nesta pesquisa, em um trabalho conjunto da pesquisadora e dos
participantes
78
.
78
Convém sinalizar que a pesquisa desenvolvida pode ser considerada uma derivação do que, formalmente,
se considera uma pesquisa-ação, uma vez que a atuação não ocorreu em uma comunidade com situações
problemáticas específicas a serem solucionadas, e sim, como uma intervenção junto a um grupo de
profissionais na expectativa de gerar mudanças, solucionar dificuldades detectadas ou minimizá-las.
184
O período da coleta de dados para a pesquisa teve um ano e três meses de duração e
se desenvolveu na cidade de Salvador, na Bahia. Para esse processo, decidi por um grupo
de professores, tendo em vista observar como atividades de formação continuada, baseadas
na Bioexpressão, poderiam modificar seu modo de ser e prepará-los para atuar como
educadores com esse suporte teórico-prático.
A intervenção formativa junto aos educadores consistiu da participação em um
Curso de Extensão, realizado na Faculdade de Educação FACED, da Universidade
Federal da Bahia, realizado no período de 9 de março a 25 de maio de 2002. Os
participantes do curso foram selecionados tendo presentes os seguintes pré-requisitos: os
educadores deveriam estar em sala de aula, atuar de quinta a oitava série do ensino
fundamental ou ensino médio, e ter disponibilidade para participar da pesquisa.
1. Formação do grupo de pesquisa primeiras dificuldades
Após aprovação do Curso de Extensão pelo Departamento I da Faculdade de
Educação (FACED), com o título Bioexpressão uma proposta pedagógica, foi feita sua
divulgação e foi dado início às inscrições. Entretanto, a greve das universidades públicas,
em 2001, inviabilizou o processo, tendo sido canceladas as inscrições efetuadas. Esses
procedimentos se repetiram no início de 2002: apresentação do projeto, aprovação,
divulgação, inscrições.
As dificuldades quanto à seleção do grupo de participantes da pesquisa se
manifestou desde o período de inscrições. O número de interessados foi grande, mas não
atendia aos pré-requisitos. A primeira tentativa foi divulgar o curso na própria FACED
entre os estudantes das licenciaturas e da pedagogia. Muitos demonstravam interesse, mas
poucos davam aula de 5ª a 8ª série. De modo geral, trabalhavam com pré -escolar ou com o
primeiro segmento do Ensino Fundamental. Poucos que, ao mesmo tempo, manifestaram
interesse e preenchiam os pré-requisitos não tinham o horário disponível. Outros, pelo que
pude perceber, não desejavam trabalhar questões ligadas à corporeidade. A estratégia
seguinte foi divulgar nas escolas, através de cartazes, que pedi a colegas do Doutorado e do
Mestrado para encaminhar. Não houve retorno. Nesse aspecto, pesou meu
desconhecimento, entre outros fatores, das ideologias que estão presentes nessas escolas.
185
Chegara a Salvador, em início de 2001 e, envolvida com as disciplinas e atividades do
Doutorado, não tivera oportunidade de saber quais os caminhos mais apropriados para
esses procedimentos. Creio que isso interferiu bastante.
Através de telefonemas recebidos para informações, pude constatar questões de
ordem religiosa e disciplinar como variáveis intervenientes. Vários professores de um
colégio com orientação religiosa cancelaram as inscrições ao terem informações mais
precisas da proposta.
Muitos se inscreveram e marcaram a entrevista, alguns nem sequer apareceram,
outros fizeram-na, mas cancelaram a inscrição ou não vieram para o primeiro encontro.
Outros, apesar do folder com os pré-requisitos estar anexado à lista de inscrição,
compareciam à entrevista e pediam muito para participar mesmo não preenchendo os
requisitos solicitados. Houve casos de pessoas que tiveram dificuldade de entender o
porquê de não poderem se inscrever e se aborreceram comigo, apesar de todas as
explicações dadas com gentileza e tranqüilidade. Outros chegaram a remarcar, mais de
uma vez, a entrevista, telefonavam para minha casa ou entravam em contato por e-mail,
faziam perguntas e reafirmavam seu desejo de participar, mas não apareceram em nenhum
dos contatos agendados. As razões para essas atitudes podem ser muitas e variadas,
impossíveis de serem detectadas por esta pesquisa, que tem como foco outro objetivo. Mas
pode haver uma relação ao tipo de curso proposto, que tem como centro a formação
pessoal. Esta é somente uma hipótese de compreensão.
Casos curiosos e significativos aconteceram, como o de uma professora que se
enquadrava nas características dos participantes da pesquisa, mas que, depois de tudo
acertado, “percebeu” que o horário era inviável e pediu que trocasse o horário; ou como de
outra que demonstrou desejo de fazer o curso devido às grandes dificuldades de se
relacionar com sua corporeidade e a de seus educandos. Contou-me que gostaria muito de
poder se aproximar deles, deixar que chegassem mais perto, mas sentia como se uma
parede se interpusesse entre ela e qualquer outra pessoa. “A mão chegava a parar no ar
quando tentava tocá-los”. Propus-lhe que iniciasse o curso para conhecer a proposta e que
se sentisse à vontade para interrompê-lo, se o desejasse. Expliquei-lhe que o trabalho seria
gradativo, não haveria situações constrangedoras como as que ela havia descrito, e que
haveria liberdade para dizer “não” a uma atividade que a incomodasse, pois, um dos
objetivos da proposta era trabalhar com os próprios limites e os limites do outro. Falei-lhe
também do caráter lúdico das atividades. Sentiu-se animada com as explicações e
186
despediu-se, confirmando sua participação. Confesso que torci para que viesse, mas isso
não aconteceu. Na verdade, a sua rigidez e dificuldade em olhar para seu próprio corpo me
sinalizaram, durante a entrevista, que suas defesas não poderiam ser facilmente superadas.
Situações semelhantes, embora não tão radicais, se repetiram. Isso ratificou minha
compreensão de que somos mal preparados para nos relacionarmos com nosso próprio
corpo e deixarmos que se expresse. As falas também apontaram para um uso inadequado
das atividades corporais, que podem gerar uma verdadeira repugnância por qualquer
trabalho nessa direção, uma vez que são, muitas vezes, invasivas e inconvenientes, mexem
com emoções e bloqueios sem o devido cuidado, e até mesmo sem tempo e conhecimento
apropriados.
Nas entrevistas, utilizei o gravador com a permissão dos entrevistados. Nelas
expliquei o trabalho, seus objetivos, o compromisso com a pesquisa, a garantia de que não
constariam dados que identificassem os participantes da pesquisa, e utilizei um roteiro que
me permitisse ter acesso à visão dos entrevistados quanto à relação educador-educando, ao
conceito de ludicidade, a visão do corpo em sala de aula, de sua filosofia educacional e de
sua prática de um modo geral.
No momento de iniciar o curso, não havia ainda o número suficiente de
participantes que atendesse a necessidade da pesquisa. Em conversa com meu orientador,
estabelecêramos o mínimo de dez participantes. Havia dez inscrições confirmadas de
participantes que passaram pela entrevista. Havia também quatro educadores que aceitei no
grupo, embora não se colocassem como participantes da pesquisa. Eram pessoas que
desenvolviam atividades para as quais o curso seria significativo: uma jovem que
trabalhava com meninos de rua e três que desenvolviam pesquisa sobre ludicidade e
corporeidade. Mas não podia desenvolver um curso longo e trabalhoso com o número
exato de possíveis participantes da pesquisa. Havia a possibilidade de desistências até o
final das atividades.
Resolvi encontrar-me com o grupo, fazer uma vivência, explicar o problema e
cancelar o curso. Mas os participantes, após a experiência e melhor detalhamento da
atividade, se propuseram a “recrutar” outros participantes, pois, se motivaram a
desenvolver o trabalho e a buscar a possibilidade de sua realização. E foi o que fizeram. O
grupo, então, se formou com a chegada de novos professores que souberam do trabalho por
intermédio dos primeiros inscritos.
187
2. Composição do grupo
Fizeram parte da pesquisa dezesseis professores. O grupo era bastante heterogêneo
quanto à faixa etária (24 a 52 anos), tempo de magistério (2 a 25 anos), disciplinas
lecionadas (Língua Portuguesa, Matemática, História, Inglês, Artes e Educação Física),
classes nas quais atuavam (da quinta série do Ensino Fundamental à terceira do Ensino
Médio), localização das escolas e nível socioeconômico de sua clientela (centro, orla,
bairros mais “nobres”, periferia mais próxima e subúrbio de Salvador, além de uma
professora residente em uma cidade vizinha). Destes participantes, quatro eram do sexo
masculino. Apesar da heterogeneidade dos participantes da pesquisa, para o meu objetivo
de investigação a situação era satisfatória.
3. Realização do curso
O curso se desenvolveu em sessenta horas, seis horas semanais, de março a maio de
2002. A teoria e a prática se intercalaram. Curiosamente, ninguém desistiu durante sua
realização, embora as resistências tenham se manifestado em muitos momentos e de
formas variadas, tais como situações de conflito no grupo, o que exigiu que parássemos
para olhá-las de frente e discuti-las. Em todas as questões, o grupo era chamado a
participar. Afinal os conflitos existem em nossas salas de aula e os que ocorreram no grupo
foram uma boa oportunidade para observar isso e buscar estratégias para lidar com eles.
As observações eram anotadas por mim logo após as aulas para não deixar que
detalhes significativos se perdessem, embora registrasse dados mais expressivos no
decorrer do próprio encontro. Preferi não usar o gravador, pois considerei que criaria
bloqueios. Os relatos de experiência e os diários, que solicitei aos componentes do grupo
que fossem redigidos com regularidade, foram grandes aliados para a coleta de dados.
Os
relatos de experiência
visavam registrar o que foi vivido e sentido pelos
participantes da pesquisa durante as vivências desenvolvidas nas aulas do curso. Esses
relatos tinham dois objetivos: primeiro, perceber a repercussão que as atividades
188
produziam nos participantes para que eu pudesse fazer ajustes e organizar as práticas que
se sucederiam, que eram preparadas de acordo com o ritmo do grupo; segundo,
acompanhar o processo de cada um de uma forma mais objetiva. Através desses
depoimentos, podia ter clareza do que estava acontecendo com cada um pelo que era dito e
pela forma como isso era feito. Também podia comparar minha percepção com a deles
sobre aquilo que estava acontecendo em nossos contatos.
Pedi que expressassem, nos relatos de experiência, o que foi bom, o que não foi;
que sensações, percepções ou emoções uma atividade trazia, que relações se estabeleceram
e que consideravam significativas. Além disso, foi um meio de comunicação ao qual só eu
tinha acesso, o que foi significativo para aqueles que não queriam compartilhar algo com o
grupo, por não se sentirem à vontade; então, podiam expressá-lo nesse relato. Perguntas
puderam ser feitas e ser respondidas sem que o nome se tornasse público, evitando qualquer
tipo de constrangimento no grupo. Também puderam tirar dúvidas que não tinham
oportunidade de expressar por falta de tempo. As respostas que eu dava às questões
formuladas foram significativas também para o grupo, como foi manifestado por quase
todos os componentes, uma vez que complementava um assunto discutido, trazia uma
situação não pensada ainda e, muitas vezes, respondia, também, mesmo a quem não havia
feito a pergunta.
O diário tinha por finalidade o registro de situações do dia-a-dia dos educadores
que tivesse relação com a Bioexpressão, tanto em sala de aula quanto em outras situações.
Alguma coisa se modificou? Por exemplo: Está prestando maior atenção à respiração ou a
algum outro aspecto que tenhamos trabalhado? Alguma atividade foi incorporada, algum
exercício passou a ser feito com alguma freqüência, em um momento específico de maior
tensão? Seus limites estão sendo mais respeitados? Surgiu alguma nova percepção de si?
E na sala de aula, houve alguma mudança? Qual? Fiz questão de frisar que o importante
era que procurassem ser verdadeiros em seus depoimentos e considerações. Se nada
acontecesse, se nada fosse sentido, se não houvesse repercussões, que isso fosse dito. Esse
material deveria me ser entregue, mas sugeri que mantivessem uma cópia e que dessem
continuidade a esse diário mesmo após o término de nosso contato.
Esse diário foi importante para mim como pesquisadora, mas acredito que tenha
sido importante também como uma forma de cada um olhar mais para si, para sua prática,
para seu cotidiano. Esse “exercício” pôde trazer surpresas na medida em que, como os que
mantiveram a escrita de seus diários comentaram, entraram em maior contato consigo e
189
desligaram, um pouco pelo menos, o “piloto automático”. Infelizmente, apenas um terço
do grupo se dedicou a esse exercício, diferentemente dos relatos de experiência, que foram
entregues com regularidade por quase todos os componentes do grupo, até porque minha
“cobrança” era feita a cada encontro; afinal era um recurso fundamental para a coleta de
dados como disse anteriormente. A desculpa sempre era a falta de tempo, o que, não se
pode negar, é uma das dificuldades de quem atua no magistério. Mas pude constatar que a
entrega do material pedido era um sinal significativo do envolvimento dos participantes, e
a não entrega, mais uma forma de resistência.
Apesar da heterogeneidade do grupo, em um tempo menor do que eu poderia
esperar, pude observar a interação crescente dos seus componentes. As partilhas
mostravam um grau crescente da confiança e do prazer da interação.
Entretanto, as resistências mais evidentes também se manifestavam por parte de
alguns. Os atrasos, as desculpas para faltas e para a não entrega dos relatos foram se
tornando mais freqüentes. Precisei dar uma pausa, após mais ou menos umas vinte horas de
curso, para discutir essa questão.
Em qualquer momento em que surgiam obstáculos, minha intervenção como
orientadora e facilitadora das atividades foi fundamental para acolher dificuldades, explicá-
las e estimular a continuidade do processo, sem imposições ou juízos de valor. O
embasamento teórico trabalhado através de textos e de discussões foi fundamental para a
compreensão da proposta, para sua aceitação e para a clareza de que não havia aspectos
místicos, religiosos ou dogmáticos envolvidos, o que trouxe confiança e segurança ao
grupo.
4. Acompanhamentos
4.1. Uma nova proposta e velhas dificuldades
A proposta inicial era que nossos encontros em grupo terminassem com o fim do
curso, quando se iniciariam os acompanhamentos de cada um deles em suas atividades
como docentes nas escolas onde trabalhavam, mas, a pedido dos participantes,
190
continuamos a nos encontrar no segundo semestre, um sábado por mês durante quatro
horas. Acolhi o pedido de bom grado. Era uma oportunidade de aproveitar os vínculos
criados para fortalecimento do grupo e estímulo a uma mudança de postura em sala de
aula, o que não é simples; também, uma oportunidade de superar resistências aos
acompanhamentos que já começavam a se mostrar. Dois dos participantes, por razões que
serão consideradas um pouco adiante, não participaram desses encontros.
Logo no primeiro encontro, em que partilhamos o que estava acontecendo em suas
salas de aula, pude perceber que a dificuldade de gerar mudanças na prática pedagógica era
muito grande, especialmente para duas professoras que já têm muitos anos de magistério.
A idéia arraigada de que qualquer coisa tem que se ligar a um conteúdo programático não
se alterou em alguns participantes, por mais que tenhamos discutido muito essa questão.
As professoras que trabalhavam com Matemática, três em nosso grupo, foram as mais
resistentes quanto a esse aspecto.
O ser humano precisa adquirir, na escola, não apenas os conteúdos das várias
disciplinas, mas também conhecimentos que possam ser integrados a sua vida,
possibilitando-lhe o desenvolvimento de seus potenciais e a descoberta e ampliação de seu
próprio mundo tanto exterior quanto interno. Se assim não for, como enfatiza Paulo Freire
(1979), será alguém visto como uma “lata vazia” que é preenchida por “depósitos
técnicos”. A escola, com seu movimento lento para mudanças necessárias, produz, via de
regra, pessoas adaptadas, acomodadas à ordem vigente, seja em sua expressão micro ou
macro-social. E pessoas acomodadas perdem a expressão própria, o impulso
transformador.
Propus que criassem atividades para desenvolverem com o nosso próprio grupo e
que pudessem ser levadas para seus estudantes nessa nova fase de trabalho, o que foi feito
e considerado muito positivo por todos. Também me propus a dar suporte a quem
desejasse para encontrar possibilidades de ação didática lúdica, idéia que foi bem aceita na
teoria, mas na prática, só aconteceu com duas participantes.
As desculpas para não modificar a prática eram inúmeras: problemas com a
coordenação, turmas desinteressadas, falta de tempo, entre outras. Mas o que pesava
verdadeiramente eram as dificuldades de cada um para arriscar um caminho novo.
Ao longo desse segundo semestre, começara, mais regularmente, a acompanhar os
participantes em suas escolas. No final do primeiro semestre, quando o curso ainda não
191
havia terminado, acompanhara algumas aulas a convite de alguns deles. Em um
determinado momento, consegui perceber que minha ida às salas de aula significava, para
alguns participantes, haver a presença da “sua professora” que estava ali para “julgar”, o
que também trazia constrangimento na relação deles com seus estudantes. Por telefone,
conversei com alguns participantes que se encontravam mais disponíveis e sugeri que eu
fosse apresentada a seus estudantes como uma colega com quem estariam desenvolvendo
uma nova proposta pedagógica ou uma pesquisa. Isso trouxe outras possibilidades, na
medida em que amenizou, ou mesmo, eliminou a imagem de uma relação de poder criada
por eles.
A repercussão dessa sugestão foi antitética. Alguns se sentiram aliviados e
aceitaram a proposta; mas três participantes da pesquisa fizeram questão de dizer em suas
salas de aula que eram minhas educandas, e que elas continuavam estudando para melhorar
o padrão de suas aulas e continuar a aprendizagem, que não deve terminar nunca.
Esse prolongamento do curso no decorrer do segundo semestre foi fator importante
para que alguns conceitos fossem realmente incorporados e preconceitos fossem
superados. Aprender técnicas e utilizá-las não é tão difícil, mas gerar mudanças de
comportamento exige tempo, empenho e uma boa dose de ousadia.
4.2. Os acompanhamentos nas escolas: novas dificuldades, frustrações e
alegrias
Apesar do compromisso que os participantes da pesquisa assumiram comigo na
entrevista inicial para terem suas aulas observadas após o curso, e o cuidado que tive de só
aceitar no curso quem estivesse na prática da sala de aula, os percalços para cumprir essa
parte da pesquisa não foram poucos, alguns denotativos das resistências dos professores, e
outros imprevisíveis, um dos quais mostra de forma contundente a desconsideração das
escolas com as especialidades dos educadores, do que muitos se queixaram em nossas
partilhas.
Nessa situação, se colocam quatro educadores: Pedro, Clara, Carolina e Mariana
79
.
Pedro, professor de Artes, passou a trabalhar na coordenação da escola, porque era a
disciplina que poderia ser dispensada” segundo sua diretora, que demonstrou
79
Os nomes apresentados são fictícios para preservar a identidade dos participantes da pesquisa.
192
desconhecer a importância da arte-educação na formação do ser humano, além de estar
mais preocupada com os aspectos burocráticos do que com o pedagógico. Como ressalta
João Francisco Duarte Jr, a arte ainda é vista nas escolas como “uma distração entre
atividades ‘úteis’ das demais disciplinas”, como algo dispensável. O professor de arte é
considerado “pau para toda obra”, aquele que cede sua aula para outras necessidades da
escola, um “quebra-galhos”, aquele que decora a escola para festas (1983, p. 79). Na
verdade, a arte-educação pode ser um instrumento poderoso nas mãos de um educador
consciente: estimula a autonomia, a criatividade, a sensibilidade, a liberdade de expressão.
Como escreveu um de meus educandos de um curso de Pedagogia, há alguns anos atrás, “a
arte-educação nos estimula a nos expandirmos pra dentro de nós mesmos e na direção do
outro, estimula nosso ‘eu’ a ser menos centralizado e mais ‘nós’”.
Pedro passou a ministrar apenas aulas de Informática, conhecimento que também
possuía, pois, “disso a escola não poderia abrir mão”. Era uma oferta atraente para a
comunidade do subúrbio, onde se localizava a escola. Pedro foi um dos componentes do
grupo que se envolveu muito com a Bioexpressão; levava novas propostas para suas
turmas, contava ao grupo suas experiências; estava presente de fato em todos os
momentos, apesar das dificuldades que, como quase todos, vivenciou.
Clara, por falta de quem ficasse com uma turma de quarta série, assumiu o lugar,
devido a sua formação e experiência com as primeiras séries do Ensino Fundamental. Seu
lugar anterior pôde mais facilmente ser preenchido por colegas da instituição. Carolina e
Mariana se afastaram das respectivas escolas por razões pessoais, assumindo,
temporariamente, outras funções pedagógicas que não a sala de aula. Porém, tive
oportunidade de presenciar suas aulas, ainda no primeiro semestre, e observar que o que
estava sendo trabalhado por nós no Curso era transportado com as devidas adequações a
suas aulas. Como Pedro, essas três educadoras estavam bastante envolvidas com a
Bioexpressão e apresentaram mudanças pessoais acentuadas, o que será retomado na
análise dos dados.
Lidar com a resistência aos acompanhamentos não foi fácil para mim. O primeiro
sentimento foi uma profunda frustração, desânimo e a sensação de que havia falhado, que a
minha ação não tivera o resultado esperado. Mas, analisando os dados, relendo notas e
depoimentos, relembrando minhas observações e refletindo sobre as dificuldades de
mudança, concluí que o acontecido deveria ser descrito, os transtornos deveriam ser
colocados e, de forma alguma, ocultados; enfim, deveria ser verdadeira, não falseando ou
193
omitindo o acontecido, não só por questões éticas, mas para “denunciar” algumas lacunas
na formação do educador. Também pude concluir que o tempo de que dispus foi muito
pequeno para gerar transformações mais profundas. Uma coisa é propor técnicas, outra é
propor uma mudança de visão de si e da prática pedagógica, propor uma nova postura.
Excetuando os quatro participantes que saíram da sala de aula, fiquei com um grupo
de doze participantes para acompanhar. Destes, sete não me permitiram fazer o
acompanhamento, mas há que se considerar que houve formas diferentes de não se
disporem a isso. Angélica, Mateus e Lucas fugiram de mim. Não encontro um verbo mais
adequado para a forma como agiram. Não me deram a chance sequer de fazer a entrevista
final. Para Angélica, que mora em outra cidade, liguei várias vezes, combinei minha ida,
mas sempre havia um “imprevisto” na última hora; tentei conseguir a entrevista final pela
internet, mas as respostas às questões não me foram enviadas. Mateus e Lucas não
respondiam aos recados deixados no celular e os de colegas com quem tinham contato, que
frisavam lhes ter dito, como me contaram, que sua omissão prejudicaria meu trabalho. Não
tenho explicações empíricas para essas fugas. Posso dizer que elas existiram. Qualquer
explicação seria sem fundamentos, pois que esses dependeriam dos depoimentos desses
professores.
Isabela, Cláudia, Renata e Ana, também resistiram ao acompanhamento, mas
permaneceram no grupo até o final. Isabela e Cláudia mantiveram um diálogo franco e
falaram de suas dificuldades; Renata e Ana não se negaram abertamente, mas utilizaram
subterfúgios e desculpas variados.
Isabela fez sua primeira tentativa com uma turma de Ensino Médio. Cheguei a
conhecer a turma. Isabela e Eduarda trabalhavam na mesma escola. Os primeiros
comentários que fizeram dos acontecimentos da escola, localizada na periferia da cidade, e
do vandalismo que ocorria no horário noturno me pareceram exagerados, mas pude
constatar que os relatos não eram fictícios. Pude ver as carteiras e janelas quebradas,
quadros de giz arrebentados, grades de proteção onde havia materiais pedagógicos e ouvir
dos próprios estudantes as histórias já contadas pelas participantes da pesquisa. Isabela,
com muitos anos de magistério, desde o início do Curso, mostrou muita resistência ao
novo, pouca flexibilidade, mas também vontade de mudar. Entretanto, o medo de inovar e
perder o controle da turma a imobilizava. Sugeri atividades, pequenas mudanças
inicialmente. Acabou tomando coragem. Uma noite resolveu propor um exercício de
relaxamento no início da aula. Havia acabado de terminar a greve dos professores
194
estaduais, a maioria dos estudantes se encontrava revoltada com o tempo e as férias
perdidos. Um estudante, diante da proposta, de forma muito agressiva, questionou a perda
de tempo com bobagens. Melhor seria dar logo a aula. Isabela, ainda insegura, ficou
momentaneamente sem ação, o susto da atitude inesperada a fez desistir. Conversamos
muito sobre isso, me dispus a ajudá-la a pensar possibilidades de ação, mas ela sugeriu
que, ao se iniciar o semestre seguinte, tornaria a tentar com outra turma. E não teve
coragem de fazer uma nova tentativa naquele ano.
Cláudia foi um caso ímpar. Passou por uma transformação que não pode ser
desconsiderada e que detalharei na análise dos dados. Na entrevista final, me disse que
poderia ir assistir a suas aulas, mas que não estava mais desenvolvendo atividades lúdicas.
Contou-me que havia desenvolvido atividades logo depois do Curso e descreveu-as. Estas
agradaram muito seus estudantes e começaram a chegar aos ouvidos de outros professores,
que quiseram saber mais, e da coordenação. Assustada, se retraiu com medo de ser
repreendida. Ela me disse: “- Olha, pró, na sala de aula, não desenvolvo nada especial,
mas lá em casa e aqui dentro, [disse, tocando o peito] muita coisa mudou!”. Mas acredito,
como veremos mais adiante por seus relatos e entrevista final, que em sua prática também
houve mudanças, não tanto nas técnicas, mas na relação com seus educandos.
Renata e Ana têm muitos anos de magistério e se sentiram muito intimidadas, ao
que me pareceu, com a idéia de minha presença em suas salas. As mudanças ocorridas nas
duas foram perceptíveis ao longo do tempo de convivência, mas a minha ida a suas salas,
apesar das minhas tentativas de persuasão, não foram possíveis.
Mas recebi de alguns educadores, Cristina, Eduarda, Érica, Paula e Tiago,
acolhimento para observar e, também, participar das suas aulas. Carolina, Clara, Mariana e
Pedro, embora tenham deixado as turmas no segundo semestre, me ofereceram a
oportunidade de presenciar seu processo criativo e sensível se manifestando, antes de seu
afastamento.
Realmente, um dos meus grandes desafios foi chegar até as escolas, especialmente
quando as aulas eram à noite, em áreas distantes e totalmente desconhecidas para mim.
Minha ida a alguns locais contou com a ajuda dos participantes que se prontificaram a me
levar e trazer algumas vezes, pelo que sou profundamente grata.
O número de visitas variou, dependendo da necessidade e disponibilidade dos
educadores e, principalmente, da direção da escola. Três das diretoras das escolas, mesmo
195
solicitando um documento da Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Educação
da UFBA justificando minha ida, deixaram claro que minha presença criava
constrangimento aos estudantes, pois, eu era “um corpo estranho na rotina escolar”. Esta
postura de seus diretores, não posso negar, constrangia as educadoras que ali atuavam. Mas
excetuando-se estes três casos, as escolas não criaram dificuldades para minhas visitas.
Foi comum, em um mesmo dia, acompanhar mais de uma aula do mesmo educador
ou educadora em diferentes turmas; também, em uma mesma escola, poder observar mais
de um dos educadores de nosso grupo que lecionavam na mesma instituição.
196
CAPÍTULO II
CARACTERIZAÇÃO INICIAL DO GRUPO DE
PARTICIPANTES DA PESQUISA
Todo indivíduo, mesmo o mais restrito à mais banal das vidas,
constitui em si mesmo, um cosmo. Traz em si suas multiplicidades internas,
suas personalidades virtuais, uma infinidade de personagens quiméricos,
uma poliexistência no real e no imaginário, o sono e a vigília,
a obediência e a transgressão, o ostensivo e o secreto...
Hadj Garm apud Edgar Morin
A primeira fase da pesquisa foi constituída pela caracterização dos participantes,
antes da intervenção pelo Curso de Extensão e seu prolongamento, relatados
anteriormente. Essa caracterização foi feita a partir de uma entrevista com os participantes.
Grande parte das respostas das entrevistas iniciais estão marcadas pelo nervosismo
e pela preocupação dos participantes da pesquisa em darem uma resposta que “agradasse”
a mim, pesquisadora, daí se alongarem demasiadamente, se contradizerem e, muitas vezes,
até as falas acabarem perdendo um pouco o sentido, o que exigiu, algumas vezes, que eu
retomasse a pergunta ou a refizesse no sentido de facilitar seu entendimento, embora com o
cuidado de não interferir na resposta do entrevistado. Era como se sentissem sendo
julgados, o que chegou a ser verbalizado por dois educadores. Acredito que isso se deva,
principalmente, à carga de tensão que tem envolvido qualquer processo avaliativo na
experiência escolar, que, geralmente, tem sido externo e aversivo. Como considera
Cipriano Luckesi (2003, p. 31), diversamente dos exames, que “são classificatórios,
seletivos, excludentes”, a avaliação da aprendizagem deveria ser “amorosa, inclusiva,
dinâmica e construtiva”, o que não ocorre na grande maioria das vezes. Não é de estranhar,
portanto, que nesse momento, os participantes da pesquisa pudessem estar se sentindo
“examinados”. Embora eu tenha procurado desfazer essa imagem, a ansiedade e a
dificuldade de expressão estiveram presentes nas entrevistas.
Muitas idéias expressas na entrevista inicial foram, ao longo de nosso contato,
sendo reformuladas pelos próprios participantes da pesquisa, à medida que se sentiam mais
197
confiantes para expressarem seus sentimentos e mostrarem suas dificuldades e fraquezas.
Outras vezes, embora não refizessem as colocações, suas falas mostravam que a
insegurança mostrada no primeiro contato não era mais sentida. O que não é difícil
entender, pois, as máscaras são formas de proteção que criamos para preservar nossa
fragilidade.
Para o diagnóstico inicial, os participantes responderam perguntas relativas à visão
de si como educadores e do seu fazer, da relação razão/emoção e educador/educando na
sala de aula, crenças sobre o corpo na prática pedagógica, sua visão de ludicidade e a
utilização ou não de atividades lúdicas em sala de aula, sua disponibilidade para trabalhar
os relacionamentos e de abrir espaço para a auto-expressão de seus educandos.
Com a análise das entrevistas iniciais, podemos observar que os participantes da
pesquisa se definiram como educadores comprometidos com o seu fazer e em busca de
crescimento, tendo sido frisado por alguns que a formação universitária não lhes deu o
preparo necessário para o exercício do magistério. A maioria deles se depara com
dificuldades no cotidiano de suas salas de aula que se relacionam, principalmente, às
questões disciplinares e ao desinteresse de seus estudantes.
A emoção e a corporeidade, de modo geral, não são alvo da atenção dos
participantes da pesquisa, e aqueles que têm a percepção de que necessitam cuidar desses
aspectos, se vêem despreparados ou temerosos para investir em mudanças. Depreende-se,
através de seus depoimentos, que o corpo e a emoção estão pouco “presentes” nas salas de
aula, onde se privilegia o intelecto e a aquisição dos conteúdos programáticos. Talvez por
isso mesmo, a boa relação que os professores afirmaram manter com seus estudantes tenha
se mostrado, nesse contato inicial, como uma relação de “respeito” e de autoridade, ou uma
relação maternal/paternal. Dito de forma objetiva ou entrevisto nas pausas e entrelinhas,
muitas dificuldades se mostraram, assim como o desejo de minimizá-las.
A visão de ludicidade se apresentou bastante contaminada pela relação direta com o
ensino de conteúdos, mesmo que os entrevistados tenham manifestado o desejo de tornar
as aulas mais agradáveis, mais prazerosas. Como afirma José Luiz Falcão, “ao longo de
toda vida, o ser humano sente vontade de brincar e, às vezes, brinca. Ele é essencialmente
lúdico, mas, alienado à lógica racionalizante, perdeu o sentido desse brincar e da energia
primordial que conduz ao estado lúdico
80
” (2002, p. 94). Poucos entrevistados
80
Grifos pessoais.
198
vislumbraram possibilidades de interação, de crescimento pessoal, de elaboração das
emoções através da ludicidade. O desconhecimento das possibilidades que a ludicidade
propicia se confirmou com as afirmações dos entrevistados de que realizavam atividades
lúdicas irregular e esporadicamente. Segundo Bernadete de Souza Porto, os jogos
educativos podem, de fato, permitir o acesso ao conhecimento, desde que possibilitem que
a autonomia e a identidade se desenvolvam, “construindo formas e concepções de
educação para o crescimento, para a liberdade, para a cidadania, para a felicidade...”.
Assim, não se trata de considerar a ludicidade como “um adorno ou carona das atividades
artísticas. Nem como ensaio para o conhecimento e conteúdo escolar”. A atividade lúdica
vai além disso, é aquela “atividade plena de significado, do significado da vida de cada
brincante ou jogador” (2002, p. 7).
As relações educador-educandos e destes entre si são, na maioria dos casos, alvo da
preocupação dos entrevistados tendo em vista, mais um vez, a preocupação de que os
assuntos trabalhados sejam assimilados com mais facilidade por seus aprendizes. Aqueles
que compreendem essas relações como uma necessidade para a formação de seus
educandos se sentem sem capacidade para gerar as transformações desejadas, deixando
entrever sua frustração por isso.
Da mesma forma, quando perguntei se permitiam que seus estudantes se
expressassem, essa expressão é confundida, pela maioria dos entrevistados, com a
permissão que dão a seus aprendizes de fazerem perguntas quando surgem dúvidas quanto
ao assunto ensinado, e de mostrarem o que já sabem ou aprenderam quanto a isso.
Um aspecto que quero salientar, por ter se mostrado nas colocações de vários
entrevistados e em diferentes questões formuladas, é a isenção da própria responsabilidade
quanto a dificuldades existentes manifestadas pelos professores, que colocaram essa
responsabilidade em seus estudantes, na estrutura da escola ou na política educacional. É
inegável que nós, educadores, estamos longe de ter condições favoráveis ao nosso fazer,
mas não é isso que pretendo discutir, até porque isso seria temática para outra pesquisa. O
que desejo enfatizar é que o espaço de nossas salas de aula é um espaço em que podemos
criar possibilidades, apesar das circunstâncias que nos cercam. Como afirma Paulo Freire,
a prática educativa exige “uma crítica permanente aos desvios fáceis com que somos
tentados, às vezes ou quase sempre, a deixar as dificuldades que os caminhos verdadeiros
podem nos colocar” (2004, p. 33). Cabe a nós, como seres histórico-sociais, desenvolver
nossa capacidade de intervir, de escolher, de romper, de transformar.
199
Muitas das contradições que se mostraram na entrevista inicial foram se
confirmando ao longo do Curso de Extensão, o que denota, principalmente, as dúvidas e os
conflitos que os participantes da pesquisa vivenciam em sua prática de sala de aula e a
dificuldade de se expressarem como muitos desejariam.
A seguir, apresento analiticamente os depoimentos colhidos que deram base à
síntese acima. E, para tanto, vamos seguir passo a passo, os temas da entrevista.
1. Quem é o educador?
Quanto à compreensão de “quem é o educador”, a predominância entre os
entrevistados foi a de configurar a si próprios como educadores por oposição ao papel
exclusivo de professores, além de estarem atentos à necessidade de aperfeiçoamento. Isso
pode ser detectado nos depoimentos que se seguem:
Cristina: Sou professora por opção, eu escolhi. Eu não sei se é uma profissão, eu
tenho pra mim que ser professor é ser um artista. É como diz um compositor “é ser
artista, malabarista, trapezista” tudo isso em conjunto. Faço o que eu gosto muito
bem feito, com muita perfeição. E acima de tudo, como professora eu observo
muito a importância de ser professor, de ser educador. Eu não sou professora de
chegar na sala de aula e só dar o conteúdo.
Isabela: Sou uma professora que trabalho com seriedade, cumpro minhas
obrigações e sou comprometida com a educação.
Tiago: Um professor que tem gana de passar tudo aquilo que eu aprendi [fala em
tom pensativo, com voz pausada]. Eu fico feliz, contente, realizado, quando eu sei
que o aluno aprendeu. O meu reconhecimento é quando eu sei que os alunos
aprenderam.
Por outro lado, todos os entrevistados se definiram como pessoas em busca de
crescimento e de mudanças que tragam melhorias ao processo ensino-aprendizagem.
Sentem carências em sua formação, desejam aprofundar-se, ainda que isso nem sempre
200
seja possível, inclusive por questões financeiras. Colocações de que a formação do
educador deixa muito a desejar e de que existe a dificuldade financeira para se atualizarem
se mostraram em algumas falas.
Mateus: Estou convicto da formação para o magistério e atento para novas
mudanças. Como atuante, procuro encontrar possibilidades para projetar um meio
de ensino e aprendizado escolar de igual para igual, sempre pensando na classe
mais baixa socialmente. Como professor, continuo aprendendo, considerando-me
um protagonista da educação.
Paula: Depois dos quase cinco anos de trabalho, defino minha relação com o
magistério de hoje mais aberta do que no início da carreira. À medida que fui
gostando do que fazia, fui me esforçando para crescer como pessoa, como
professora, de ter a capacidade de compreender meus alunos e fazer alguma coisa
por eles.
Lucas: Eu sou um professor um pouco inquieto, sempre ... Sou inquieto, sou
curioso, estou buscando sempre melhorar. (...) Eu me defino assim, um professor
que busca esse engajamento, um professor que se preocupa com a questão social.
Cláudia: Eu me defino incomodada. Eu me sinto incomodada em repetir o ensino
que me foi oferecido. (...) Uma coisa que eu aprendi é que quando eu saio da
faculdade eu não sou professora, eu vou me tornando professora à medida que os
anos vão passando, e eu vou adquirindo experiência. Além da experiência, eu
preciso estar sempre estudando, sempre me aperfeiçoando. Eu estou sempre
procurando me aperfeiçoar, mas eu esbarro na questão econômica.
Ana: Formei em 1972. (...) Em 2000, comecei a fazer um curso de pós-graduação e
fui me atualizando mais. Então, hoje eu já posso me definir como uma professora
atuante, capacitada, em busca de aperfeiçoamento.
Eduarda: Antes de qualquer coisa, eu sou criativa. Alegre, espontânea.
Geralmente, os meninos têm muita vontade de assistir às minhas aulas.
201
Pedro: Eu me defino um professor razoável. Não tão bom, mas também não um
professor medíocre. Mas também não sou ótimo, não tão bom, mas razoável.
Angélica: Essa pergunta é bem difícil, porque me definir como professora é como
me definir como pessoa. Eu acho que a gente está em processo de construção
contínua. (...) Então, eu procuro aliar não só os conhecimentos mínimos
necessários para a conquista do saber e da igualdade, de disputa no mercado, mas
também procuro fazer com que eles percebam certas situações de vida.
Os participantes da pesquisa foram unânimes em se definirem como educadores
comprometidos com seu fazer, desejosos de se aperfeiçoar e crescer. Alguns fizeram
observações quanto à formação acadêmica, que não lhes dá condições básicas para o
exercício do magistério, o que só é alcançado no dia-a-dia da sala de aula. Entretanto, a
experiência por si só não nos capacita para educar, embora seja significativa.
2. Quanto à atuação como profissionais da educação
Quase todos demonstraram vontade de mudar alguma coisa, mas o que precisava
ser mudado nem sempre estava muito claro para eles, mas quase sempre tinha ligação com
a forma de se relacionarem com seus educandos, como exemplificam as falas seguintes.
Tanto Tiago quanto Eduarda reprimem as possibilidades de expressão emocional
em sala de aula. Tiago diz-se técnico:
Porque hoje eu sou mais técnico, mais rápido. Eu já sei qual é a dificuldade, eu
vou ali rápido. Eu só queria ter um pouquinho mais de pai. Não tenho aquele
tempo de “prô, ô, prô”.
E Eduarda culpa a disciplina que ensina a Matemática de ser responsável pela
ausência de afeto na sala de aula. Não é ela, mas a disciplina que impossibilita uma melhor
relação:
Essa questão emotiva, afetiva, amorosa. Porque eu acho que falta isso na minha
disciplina, porque a Matemática é muito fria, calculista, muito algebrista. Então
202
ela não se preocupa com o lado afetivo, com o lado emocional, com a expressão
em si da pessoa, ela não se preocupa com esses detalhes, isso eu gostaria de mudar
na minha sala de aula.
A preocupação com o que se trabalha em sala de aula, além dos conteúdos
específicos das diversas disciplinas também foi manifesta, assim como as dificuldades que
encontram com as questões de ordem disciplinar e nas relações com a equipe pedagógica,
o que exemplificam os depoimentos abaixo.
Lucas, professor de Educação Física, quer estar atento ao corpo e à mente:
E eu acho que a gente deveria trabalhar mais não só a questão do corpo em
movimento, mas a questão do aluno voltado para aquela formação no que se refere
ao senso analítico e crítico. Porque, muitas vezes, as pessoas têm uma opinião
sobre o professor de Educação Física como um mero professor de ginástica, um
professor que só trabalha o corpo, e esquece que a gente trabalha a mente do
aluno, e está voltado para formar o aluno. Diz-se que se educa através do
movimento, eu concordo com isso, mas não podemos esquecer a mente.
Angélica expressa seu desejo e sua dificuldade em ouvir os estudantes:
É, eu acho que tem algumas coisas sim que eu preciso mudar na minha prática
pedagógica. Mudar assim, aprender a dominar certas situações. Por exemplo, às
vezes eu tento fazer uma atividade em que me proponho a ouvir o aluno e a ver a
sua expressão. Mas é como eu lhe falei, a questão da indisciplina. Então,
estabelecer limites pra mim é muito tênue...
E seguem-se outros depoimentos que revelam o desejo e a necessidade de melhorar
o próprio desempenho:
Cláudia: Eu gostaria de trabalhar de uma forma diferente, não somente o quadro-
giz, mas trabalhar com o concreto, trabalhar com alguma coisa diferente. E como
eu posso fazer?
Cristina: Acho que preciso melhorar muita coisa. Já melhorei bastante, mas acho
que preciso me soltar muito mais. Ainda me sinto bastante aprisionada, daí minha
busca de alternativas e crescimento profissional, de melhor relacionamento. Tenho
203
vontade de mudar, mas sem saber como fazê-lo. Eu não gosto dessa coisa
metódica, de chegar na sala e encontrar os alunos sentadinhos em fileiras, não
suporto isso.
Ana: Eu me sinto um pouco antiga, e eu preciso mudar(...) Eu me sinto uma pessoa
autoritária, hoje eu já me percebo assim. Combato muito, procuro sempre estar me
policiando, mas de repente me pego no autoritarismo, e eu preciso mudar isso aí.
Dois depoimentos que se seguem exemplificam dificuldades expressas por vários
entrevistados de assumir a responsabilidade de promover mudanças em suas práticas,
colocando-a fora de si mesmos:
Pedro: Eu acredito que eu preciso sair mais da sala de aula com os alunos... eu
não tive muita ajuda da escola na qual trabalho esse ano, mas eu desenvolvi
projetos lá de sair mais, levá-los para exposições, museus de arte, onde eles
pudessem ter um contato visual maior com a arte. Mas a coordenação cria
problemas.
Renata: Tem coisas que a escola exige, ela exige o conteúdo, aí a gente fica muito
presa, e eu gostaria de mudar. Mas tem que ser uma mudança bem feita. É uma
questão da coordenação da escola, do conteúdo, além da resistência de colegas. É
uma coisa difícil.
Somente dois educadores não manifestaram vontade e/ou necessidade de promover
transformações em suas salas de aula. Segundo Isabela, nada precisaria ser mudado:
quando eu aprender algo novo e bem melhor do que já pratico. O desejo de fazer o Curso
de Extensão se deveu a querer se olhar como pessoa apenas. Para Mateus, a necessidade de
mudança não era dele, mas da estrutura da escola e das normas governamentais.
Paulo Freire em diálogo com Ira Shor (1987) discute os muitos entraves e o medo
que fazem parte do cotidiano do professor e a necessidade de ter coragem para vencer os
muitos obstáculos com que nos defrontamos na prática pedagógica. Pela nossa própria
204
formação, nós, educadores, não estamos preparados para usar o espaço da sala de aula
como um espaço possível de transgredir e transformar. A vontade de mudar e o medo ou
dificuldades de investir em processos de mudança se mostraram em muitas falas como nas
transcritas abaixo:
Érica: Tenho medo de experimentar as coisas que tenho vontade de fazer e ser
reprimida. A escola onde trabalhei um tempo era muito tradicional, as crianças
tinham que sentar em fileiras, não podiam gritar, era cheia de censura. E eu tinha
que me enquadrar naquele padrão, e tudo fora do estabelecido era coibido. O que
percebo é que não pode mais persistir essa prática, mas sinto medo de fazer
diferente.
Paula: Estou com dificuldade, porque eu não quero ser a tradicional, apesar de os
alunos em muitos momentos cobrarem isso. Engraçado que eles me cobram até
posturas de professora tradicional, como tirar ponto, botar pra fora da sala, fazer
exercício valendo ponto.
Quanto a mudanças, os entrevistados dizem necessitar adquirir mais conhecimento,
aprender novas técnicas, aprender a lidar com as próprias dificuldades. Estas foram as
razões que trouxeram os participantes da pesquisa ao curso Bioexpressão uma proposta
pedagógica. Os depoimentos revelam esses desejos:
Cláudia: Quero trabalhar diferente. Utilizar um novo método, diferente da mesmice
de sempre. E me enriquecer como profissional.
Mateus: Queria saber qual era a sua proposta (...), reforçar meu instrumental
didático-pedagógico(...), e interagir com professores de outras áreas.
Lucas: Então, eu quero aprender mais, eu acho que o homem enquanto tá vivo tem
mais é que aprender (...). A gente sabe que nunca se pode dizer “já aprendi
muito”, na verdade a gente não aprendeu nada, a gente tem sempre que ter a
inquietude de buscar aprender mais.
205
Pedro: Eu preciso muito disso, da expressão, como professor de Educação
Artística...
Tiago: Por que não levar isso para sala de aula? (...) O nosso país já está
desacreditado; a educação a gente vê que não está satisfazendo muito o brasileiro.
Então, se é uma ferramenta para se melhorar, então eu quero aprender a
Bioexpressão.
O desejo de Ana é simples e direto: Quero ser menos tradicional.
É interessante observar que, em alguns depoimentos, se mostra uma motivação
externa, enquanto outros revelam anseios de uma mudança interna, como os que se
seguem:
Eduarda: Bom, o nome “Bioexpressão” me chamou a atenção. Porque eu entendi
como alguma coisa relacionada à vida, e eu acho que está faltando isso nas
pessoas, prestarem um pouco de atenção a suas vidas, a sua forma de pensar, a
sua forma de sentir. Isso me chamou a atenção e acho que poderia me ajudar, já
que eu estou pretendendo mudar na minha sala de aula.
Érica: Meu interesse é porque me acho uma pessoa tímida, medrosa. Queria
relaxar mais. Me sentir mais solta, mais leve, foi essa impressão que tive do curso,
facilitar o trabalho em sala de aula, conduzir com maior leveza.
Para algumas educadoras, Carolina, Mariana, Paula e Renata, havia um desejo de
dar continuidade a uma experiência com o trabalho corporal que já haviam vivenciado
anteriormente, como mostram as falas abaixo:
Renata: Eu fiz Letras, e comecei um curso de Psicopedagogia, mas só fiz dois
módulos ainda, porque apareceu um outro de Psicomotricidade, esse eu concluí a
especialização. (...) Mas esse trajeto todo me ajuda muito em minhas aulas, por
isso me abre essa questão de eu querer trazer a questão do corpo como trabalho de
expressão em sala de aula, não ficar só no tradicional. (...) Tenho me trabalhado
muito, porque me acho uma pessoa muito presa, inclusive de sair desse passo que
206
eu estou, demoro muito para dar um passo. (...) Vivo na busca de coisas para que
eu me desenvolva, me expanda bem na área de educação com coisas novas.
Paula: O que me chamou atenção na realidade foi a esperança de retomar um
trabalho na área de educação que comecei com outro professor.
Cristina foi muito franca e me contou a razão mais forte de ter buscado o curso:
Eu pretendo fazer uma pós-graduação aqui. Então, no primeiro momento, quando
alguém falou sobre o curso e eu soube que era pela UFBA eu fiquei logo
interessada, eu pensei “pela UFBA eu quero, vou poder me expandir e dizer assim:
eu fiz o curso de Bioexpressão pela Universidade Federal da Bahia”, obviamente
com um professor eficiente, qualificado.
Em síntese, quanto à sua atuação, a maioria dos entrevistados mostrou o desejo de
lidar, de maneira mais tranqüila e equilibrada, com as dificuldades do dia-a-dia das suas
salas de aula, dentre as quais se colocam o relacionamento educador-educando, a
manutenção da disciplina, o desinteresse e agitação dos estudantes, as cobranças da direção
e/ou coordenação, entre outros. De modo geral, a responsabilidade pelos problemas
apresentados é colocada fora de si mesmos, sendo atribuída a outras instâncias.
3. Relação razão-emoção na sala de aula
O tema relação razão-emoção na sala de aula no correr da entrevista, trouxe
dificuldades para as respostas da maioria dos entrevistados, chegou mesmo a causar um
certo nível de ansiedade. Na realidade, a relação razão-emoção não estava muito clara para
a maioria dos entrevistados e se mostrou como uma dificuldade mesmo para alguns que já
vinham buscando unir as partes. As respostas eram confusas, e as intervenções que fiz, no
sentido de entender melhor suas opiniões a esse respeito, nem sempre ajudaram na clareza
dos depoimentos. De um modo geral, consideravam que tinham que se manter racionais,
não poderiam “misturar as coisas”, mas se contradiziam depois. Alguns chegaram a dizer
que era um grande problema para eles, porque a existência da emoção, dos sentimentos não
pode ser negada, mas como lidar com isso?
207
Érica fala da importância da emoção, porém, não assume para si a importância de
modificá-la, colocando a responsabilidade na escola:
Emoção tem que ter espaço. Ser humano não pode ser só razão. Mas as escolas
fazem muitas cobranças, fica difícil unir as coisas.
Paula segue o mesmo caminho:
A emoção é significativa, mas é muito difícil na nossa realidade educacional
conseguir um equilíbrio entre razão e emoção. A gente extrapola em uma coisa ou
em outra. Uma sala com 45 alunos dificulta o controle da disciplina, trabalhar
conteúdos, ... é uma prática que ainda não está nos alunos. (...) quando o professor
trabalha mais a emoção é chamado de bobo.
Também Eduarda atribui a supressão da emoção à escola, fora dela mesma. A
responsável é a disciplina que ensina:
As duas coisas se complementam, porque uma não pode viver sem a outra.
Matemática mesmo, ela prega muito pela razão. Ela não se preocupa com a
emoção, e essa é a minha grande dificuldade como em Matemática ser emotivo,
menos racional?
O tema é confuso para Tiago, que fica mobilizado e envolve-se na confusão do
sentimento:
Alunos da 8
a
. série e da 7
a
já são mocinhas e rapazes. Então, eu acredito que a
responsabilidade é muito maior, que você está preparando cidadãos. E aí a
emoção fala, tem que estar mais perto. É o que eu falei, o pai. Então, a gente sabe
quando está dando o melhor, quando está fazendo a coisa certa, como está agindo,
como cobrar deles. Então, tem muito a razão. Eu não sei como passar melhor isso
aqui, eu não estou passando legal... [pausa, procura organizar o pensamento], a
emoção, a forma de descobrir... (...) E a emoção, sintetizando, é de grande
importância, a emoção-razão: razão, conteúdo, tem que ser ensinado; os donos das
escolas, e os chefes cobram, os pais cobram do aluno, a sociedade cobra do todo,
quer um cidadão pronto, preparado. Então, está tudo aí, a emoção é inerente,
difícil não trabalhar com ela, com o sentimento.
208
Outros chegaram a considerar que a emoção é algo prejudicial para o contexto da
sala de aula. Mas por suas falas, ser racional significa ser mais equilibrado. Os
depoimentos abaixo exemplificam:
Lucas: Nós temos que separar as coisas. Não podemos botar a razão junto com a
emoção. Eu acho que, quando você fala razão, você fala sobre, digamos assim,
aquela coisa... [cala-se pensativo] A emoção é mais voltada para o impulso, e a
razão é mais voltada para o equilíbrio, você tem que ter a noção daquilo que você
está fazendo. Então, quando você mistura a razão com a emoção, eu acho que não
bate muito bem.
Mateus vai mais longe, teme a emoção:
Quanto à emoção, considero uma situação de risco. Agir com emoção pode ser
prejudicial para o todo, dependendo da situação. (...) Eles deveriam entrar como
temas transversais e serem uma discussão constante.
A proposta de Mateus de que emoção deveria ser trabalhada como tema transversal
me fez relembrar a tendência de trabalhar racionalmente o que deve ser vivenciado no
espaço da sala de aula, aliás o que só faz sentido se for vivido. Neste caso se encontram a
ludicidade, a afetividade, a ética, a cidadania, entre outros temas dos quais se fala, mas que
não são exercitados.
Mesmo quem tinha uma visão menos “conflituosa” dessa relação, tinha a clareza de
que lidar com isso na escola nem sempre é fácil. Renata afirma:
Com certeza é muito importante. A emoção ela representa muito, a gente vê nos
alunos o que influi no aprendizado deles. A gente percebe como o emocional... na
hora de uma leitura, como o aluno fica preso, sem querer ler, a gente vê que ele
está tenso, que ele tem medo da crítica do outro. Várias coisas assim. Em mim
predomina mais o racional, eu tenho que trabalhar para buscar essa parte da
emoção, tomar consciência da emoção.
Pedro opta pelo racional, mas a um toque meu, a entrevistadora, abre espaço para a
emoção:
209
Eu acredito que o que deve ser maior entre essa relação razão-emoção, é a razão.
Porque trabalhando com aluno, com criança, principalmente com esse pessoal
adolescente, a gente não pode se deixar levar muito pela emoção.
Ao acréscimo da pergunta Você acha que é importante levar em consideração a
questão da emoção do seu aluno? , ele respondeu:
Claro, porque, antes de mais nada, a gente está trabalhando com pessoa, com
gente, com o humano. E quando se fala em ser humano, em gente, em pessoa, não
se pode desprezar a emoção, essa parte da emoção. Mas tem que saber trabalhar
com isso.
Cláudia confunde vivenciar a experiência emocional com “brincar”:
Até por ser da área de matemática existe aquela visão do professor de Matemática
como sendo muito racional, muito seco. Mas eu pessoa não sou assim. Então, eu
brinco com os meus alunos antes, eu tento conquistar os meus alunos. (...) Aluno
pra mim é importante, aluno pra mim é como se fosse filho.
A fala de Cláudia, como a de Cristina, Isabela e Tiago, entre outras, trazem a visão
de que a afetividade está ligada a um sentimento maternal ou paternal dos educadores em
relação a seus educandos, o que, às vezes, lhes cria dificuldades para exigirem uma postura
mais responsável dos jovens, como se agir como mãe ou como pai implicasse uma postura
mais complacente. O depoimento de Cristina que se segue revela essa dicotomia entre
razão e emoção, ou a representação mental que são duas coisas diferentes:
São duas coisas distintas. Dentro da sala de aula eu sou uma professora muito
emotiva com os meninos, até em recitar uma poesia eu me tomo pela emoção, às
vezes até eu choro. Mas no momento de agir, eu ajo incessantemente, ou seja, o
professor tem que cobrar, infelizmente tem que cobrar notas, tem que cobrar
atividades. O que eu faço? Quando eu passo as atividades, época de testes ou de
prova, eu vou cobrar do meu aluno (...) eu sou uma pessoa, vou usar uma
expressão até bem vulgar, sou meio carrasco. Quando eu vou usar a razão, eu digo
“olha eu ensinei isso aqui, eu quero que vocês aprendam”.
210
Ao acréscimo da pergunta Você tem dificuldade de juntar as partes, é isso? Você
tem medo de ser mais emotiva e acabar atrapalhando a parte racional? , ela
respondeu:
É, eu tenho medo disso. Porque, às vezes, eu abraço os meus alunos, eu beijo, sou
muito maternal. Pergunto como foi o final de semana, como está a mãe. Isso não é
aluno de 5
a
. série não, eu trabalho com o ensino fundamental e médio, aluno de
segundo grau; eu pergunto como vai o pai, a mãe, os filhinhos; e alisando, aliso a
cabeça, às vezes, as meninas tem o cabelo comprido; aí o aluno acha que por isso
eu vou facilitar na sala de aula. Eu me pergunto “e agora, como vai ser?”
Ana, professora de Matemática, não teve dúvidas, privilegia a razão. Disse ela:
Essa pergunta é tão fácil de responder: eu trabalhava muito com a razão. De 2000
pra cá, depois que eu comecei o curso de pós-graduação, eu estou trabalhando a
emoção também. E agora neste curso [Bioexpressão], eu acho que eu não estou
querendo mudar isso (...). Eu não posso trabalhar mais a emoção que a razão em
sala de aula, pode até ser 50% de cada, mas nunca mais a emoção que a razão. Até
mesmo pela disciplina que eu trabalho, entendeu?
Os depoimentos referentes à relação razão/emoção, os receios e inseguranças que se
manifestaram, o medo da perda do controle (que a última fala deixa tão explícito) mostram
claramente que essa questão gera muitas dúvidas, ansiedade e confusões, e,
principalmente, ainda se encontra muito distante de ser considerada nos cursos de
formação de professores.
Como pondera António Damásio (1996), não se trata de priorizar a emoção, como
muitos temem, e perder o controle, e sim considerar os dois aspectos. As dicotomias
cognitivo/afetivo, bom/mau, certo/errado, desejável/indesejável estão entranhadas na
cultura escolar, o que traz grande angústia para os educadores mais conscientes e mais
sensíveis às demandas de suas salas de aula.
Unir razão e emoção na sala de aula é considerado problemático por uns;
impossível, devido a sua incompatibilidade, por outros; sem espaço na nossa estrutura
escolar por alguns. Vivenciar essa união é considerado por todos, no mínimo, difícil.
211
4. Crenças sobre o corpo na prática pedagógica
De um modo geral, esta questão não havia sido pensada anteriormente ou se
colocava como uma preocupação com a postura do educando e se era apropriada ou não
em relação ao seu comportamento em sala de aula.
Para Cláudia e Pedro, refletirem sobre o significado do corpo na prática pedagógica
era algo que eles nem haviam imaginado:
Cláudia: Olha, eu não tenho como opinar com relação ao corpo na sala de aula,
porque pra mim é uma coisa nova, eu ainda não ouvi falar sobre isso. Eu vou ser
sincera com você, eu nunca me preocupei com isso.
Pedro: Essa parte ficou um pouco mais complicada pra mim, porque eu não tenho
muito espaço, pelo menos pelo que tenho passado, trabalhado, não tenho muito
espaço para essa coisa de corpo. Porque é mais aquela relação de professor em
sala de aula deu o assunto, passou o conteúdo, os alunos sentadinhos receberam,
assistiram à aula, então eu não tenho percebido muita essa relação da expressão
corporal.
Cristina e Ana, também, não têm esse tema como algo presente:
Cristina: Sinceramente, eu não penso nada... nenhuma relação. Justamente por
causa das cobranças, a escola tem muita gente: direção, coordenação, que a gente
às vezes esquece as partes, eu só via na minha frente conteúdo.
Ana: Aí, realmente, eu nunca tinha pensado.
Érica ignorava essa questão. Só considerava o aspecto disciplinar:
Eu não tenho essa consciência de corpo, eu tenho sim, de comportamento do aluno
dentro da sala de aula, o levando a seguir regras também. Dizendo que ele pode se
expressar, da maneira que ele quiser, mas que ele tem ali, até aquele limite para
ele ir, falar e agir.
212
Como se vê, o tema da presença do corpo na prática pedagógica está muito distante
dos educadores. Nem mesmo se colocam essa questão. É o corpo que nos sustenta na vida,
mas nem se presta atenção a ele. Outras falas deixaram claro que o corpo deve ser
considerado, que o corpo se expressa, mas que é necessário que se tenha uma
aprendizagem ainda não obtida para entender essa linguagem. Os depoimentos a seguir
mostram isso:
Lucas: Então, eu acho que o corpo mostra muito, o corpo fala muito. A gente
precisa entender melhor essa questão da corporeidade, a questão da cultura do
corpo, do modo de expressar. Do modo da fala.
Angélica: Eu acho interessante que, às vezes, na sala de aula, a gente percebe,
você pergunta alguma coisa para o menino e ele responde com a cabeça baixa e
um tom de voz muito pra baixo e muito quieto, muito parado. Você percebe que ele
está tenso com o que você perguntou, que ele está com receio, com medo. Aí com
essa leitura você pode mexer com a autoconfiança, com a questão da desinibição
para que este menino venha a se expressar. Então, eu acho que o professor tem que
estar atento a isso sim, porque nem sempre o aluno que é totalmente quieto ou
parado é o ideal, ele pode estar passando por problemas, dificuldades. Mas é
difícil...
Eduarda: Ele tem movimento, mas é um movimento único, ele não se expressa como
corpo. Eu acho que o corpo deveria ser mais expressivo e menos mecânico, mais
livre.
Renata: Eu acho que deve e precisa ser trabalhado. Eu fico observando a
expressão de cada um, o movimento do corpo, o olhar, tudo isso já me dá algo de
conhecer aquela criança, aquele jovem, pela expressão. Preciso aprender mais.
Paula: Acho de fundamental importância, preciso aprender muito mais. Mas
valorizo muito a troca de olhar, um toque no ombro, o contato no corredor, passar
a mão na cabeça de meu aluno, abraçá-lo. Isso é natural em mim. Preciso
trabalhar mais ... percebo que preciso ensinar aos alunos de 7ª e 8ª séries a
213
entender isso sem maldade, a trabalharem seu lado mais sensível. Tenho essa
relação com o corpo na sala de aula.
Mateus: O corpo que está na sala de aula é uma expressão de tudo, (...) o corpo
grita, chora, canta, ri, faz acontecer. É o corpo que conduz o homem. Compreendê-
lo é um mistério indefinido.
As respostas dadas pelos entrevistados nos mostram que o corpo está “ausente” das
salas de aula. É como se não existisse ou fosse, como descreveu um de meus educandos há
alguns anos atrás, “um burrinho de carga que leva o cérebro”. A escola tem contido sua
expressividade. Aprisionado atrás de carteiras enfileiradas, domado, controlado, assegura,
pelo menos como se acredita, a “autoridade” do professor. As respostas mostram ainda que
a contenção corporal está presente também nos cursos de formação de professores, uma
vez que nenhum de nossos entrevistados foi preparado para lidar com os corpos de seus
estudantes, sequer para percepção de seu próprio corpo. Aqueles participantes da pesquisa
que deixaram entrever cuidado ou inquietação com a corporeidade de seus estudantes
haviam vivenciado experiências pessoais (como cursos ou terapias corporais) que lhes
havia despertado o interesse e a atenção para o corpo.
5. Relação educador-educando
Como se dão suas relações com seus educandos? Você tem alguma dificuldade?
Isto o/a incomoda? Gostaria de mudar?
Na entrevista inicial, houve uma quase unanimidade nas falas de que não havia
maiores dificuldades na relação entre os entrevistados e seus estudantes, embora, como
poderá ser observado em alguns depoimentos, confunde-se uma boa relação com
manutenção de disciplina, ou o conflito existente se mostra nas entrelinhas. Mas, ao longo
de nossas aulas no Curso de Extensão e na entrevista final, ficou mais evidente que as
dificuldades existiam e que o silêncio imposto aos estudantes era uma das maneiras de
evitar problemas maiores, e que, aos poucos, os participantes da pesquisa foram
estabelecendo uma outra forma de relação com seus educandos. Sobre esse tema, Pedro
diz:
214
No início, eu tinha um pouco de dificuldade, porque o quadro de profissionais da
minha escola, eu acredito, que com relação à idade o mais novo sou eu. Então, eu
tinha essa dificuldade pelo nível de idade. Os meus alunos alguns são adolescentes.
Não tão próximos de mim em relação à idade, mas quase. Tem pessoas até da
minha comunidade, então a gente se encontra na rua: “professor!”, “oi, tudo
bem?”. Então eu tinha uma determinada dificuldade com relação a isso, de manter
essa postura em sala de aula, por causa da questão da idade. Mas, isso foi só no
início, depois eu fui impondo respeito e hoje eu não tenho tanto problema com
relação a isso.
Cristina revela dificuldades na relação com os estudantes que ela considera
“pedantes”:
Não, nada me incomoda, não. Tudo perfeito. Só quando você encontra um aluno
pedante, geralmente na rede particular de ensino. São alunos que muitas vezes
pertencem a uma classe social mais elevada que a minha; são alunos que vão para
a escola de carro, que o pai vai levar e buscar, ou então tem um carro apropriado,
uma condução. E alguns alunos vão de ônibus, eu vou a pé, e aqueles se sentem
superiores ao professor. Também por ser negra. Infelizmente isso ocorre. “Por que
uma professora negra?” - não citam, mas a gente sente até nas relações “por
que uma negra vem pra cá me ensinar, domina o conteúdo, sabe até mais que eu,
quer mandar em mim?”. Então existe isso, o aluno não aceita. Mas com o tempo a
gente consegue sanar esse problema, até pela própria competência, mostrar que é
competente, em primeiro lugar é isso, a competência em primeiro lugar.
Ana revela suas dificuldades:
Eu consigo chegar perto, mas tem determinados alunos que eu ainda tenho
distanciamento. Mesmo durante o dia com adolescentes, ainda tem algum que eu
não consigo me aproximar muito. Mas essa aproximação ela se dá, graças a Deus
numa boa mesmo, numa aproximação saudável.
Isabela, como outras duas participantes, mostra-se maternal:
Trato-os muito bem, com respeito e carinho. Brinco muito com eles, chamo-os de
meus filhos e também sou muito bem aceita por eles.
215
Mateus e Lucas dizem ter uma relação sem maiores dificuldades:
Coloco-me o mais próximo possível, o mais aberto e transparente, sempre
apresentando-me como uma pessoa amiga , disposto a ensinar e aprender com
eles. Não tenho tido dificuldades neste sentido.
Não, graças a Deus. No início, eu tive uma certa dificuldade. Mas depois, quando
eu comecei a participar de cursos, de jornadas, de cursos de recreação, aí comecei
a ver essa questão da Educação, da Educação Física. Comecei a sair da linha
militar e partir mais para linha pedagógica, comecei a buscar o conhecimento,
aprendendo com os companheiros em cursos. Aí, comecei a ver que as coisas
começaram a mudar, e tinha essa facilidade, que, na verdade, eu trabalho desde
1976, né?
Mas algumas participantes falaram de suas ansiedades e dificuldades vividas na
relação pedagógica no dia-a-dia da sala de aula, e da vontade de mudar ou da necessidade
de aprender um pouco mais:
Érica: Quantas vezes eu percebo que quando eu saio da sala de aula, eu estou
tensa com meu corpo, sentindo dores que antes de entrar na sala eu não estava
sentindo. (...) Acho que tenho boas relações com eles, mas preciso me soltar mais.
Ainda me sinto muito aprisionada.
Angélica: Eu acho que eu tenho uma relação afetiva com eles, sim, mas isso não é
com todos. Porque eu percebo que existem alunos que parece haver uma barreira
entre mim e eles. Por mais que eu chegue perto e pergunte “e aí, como você
está?”; por mais que eu tente quebrar o gelo, algum distanciamento, eu não
consigo. Então, eu não sei se é porque não faço o estilo da pessoa, ou se a pessoa é
assim mesmo.
Carolina: No início foi muito difícil. (...) Hoje trabalho mais com dinâmica de
grupos, então é outro tipo de relação. Mas preciso de uma maior base didática.
216
Eduarda: A dificuldade que tenho com os meus alunos é a barreira que eu crio
entre mim e eles. Eu mesma criei essa barreira, apesar de eu tentar ser criativa,
alegre, brinco muito com eles, me aproximo ao máximo, mas não consigo, às vezes,
abraçar, beijar, essas coisas assim eu ainda preciso trabalhar. Às vezes, eu até
tento passar a mão pelo ombro deles, mas não consigo, não fica uma coisa natural.
Fica parecendo assim “ah, ela está fazendo isso só de gracinha”.
Renata: Tem momentos que eu sinto dificuldades com alguns, quando eu não
consigo perceber... Mas numa forma mais geral, a minha relação é aberta é no
sentido de dar abertura para eles dizerem o que está ruim ou o que não
aprenderam. Então eu dou sempre esta abertura e consigo, mas tem uns mais
resistentes, que às vezes tiram a gente do sério... Isso eu gostaria de mudar.
Paula: Essa relação já foi mais difícil. Os alunos hoje têm uma postura diferente do
que foi a minha, e compreender a atitude dos jovens hoje é importante. Saber lidar
com eles. O que passa na cabeça deles, o porquê de determinadas atitudes, me
incomoda porque acredito que há valores que precisam ser cuidados, pois são
alicerces. Coisas que faltam e que não são trabalhados na escola. Valores
essenciais para um relacionamento, o respeito,... Isso me choca e procuro, na
medida do possível, ajudá-los a entender que são coisas essenciais, não importa
em que idade seja. Administrar isso é difícil. Gera muito conflito.
A fala de Paula denota uma preocupação com o aspecto formativo dos seus
educandos, que, de modo geral, é pouco considerado, especialmente no segundo segmento
do ensino fundamental e no ensino médio, sem falar no ensino universitário. Acredito que
esta carência, que se agrava com uma preocupação quase compulsiva com os conteúdos, é
um dado que não podemos desconsiderar, uma vez que inviabiliza uma educação voltada
para a vida e uma relação mais humanizada. José Contreras Domingo expressa com muita
sensibilidade a percepção dessa “falta” que se manifesta no cotidiano da sala de aula: “Há
algo na intensidade do viver que é necessário para educar, mas que deve ser captado,
entendido e assimilado vitalmente”, algo que se aprende com a experiência, com a
vivência. “O melhor, só podemos aprendê-lo ao nos sentirmos atingidos por algo que nos
217
chega vivo e se mantém vivo em nós, afetando a forma como queremos encarar o viver”
81
(2003, p. 20). Essa apreensão não é alcançada apenas racionalmente, é uma apreensão de
“corpo inteiro”.
Sintetizando, embora muitos entrevistados tenham afirmado que mantinham uma
boa relação com seus estudantes, a ausência de dificuldades se “traduzia” como a
possibilidade de manter a disciplina, de “impor respeito” quer pelas atitudes, quer pela
competência. Outros viam a relação com seus aprendizes como uma relação
maternal/paternal que permitia que se tornassem mais próximos. Os demais entrevistados
expressaram que ainda enfrentavam dificuldades e que gostariam de superá-las ou
minimizá-las.
6. O entendimento de ludicidade
À pergunta O que você entende por ludicidade? a maioria tinha a compreensão
do lúdico relacionado aos jogos e brincadeiras e, conseqüentemente, a prazer e alegria.
Interessante atentar para a relação imediata que alguns participantes criaram entre a
ludicidade e a aprendizagem. Apenas Cláudia disse não saber o que era.
Para Carolina, Lucas, Cristina e Renata, a ludicidade se relaciona ao prazer que
pode ser vivido na sala de aula:
Carolina: A primeira palavra que me vem é prazer. Quando eu penso assim nos
trabalhos lúdicos, jogos lúdicos, dentro do próprio trabalho de grupo, das
dinâmicas de grupo, são os trabalhos onde a gente usa o referencial do prazer, da
expressão. O caminho mais suave, o caminho mais prazeroso, mais criativo da
gente fazer os trabalhos, eu vejo mais dessa forma assim.
Lucas: É tudo que você passa ou recebe de uma maneira não tão direcionada
através de atividades prazerosas, onde você busca o conhecimento através daquele
tipo de atividade.
81
Tradução pessoal.
218
Cristina: Pra mim é tudo que dá prazer. Desenvolvo com o objetivo de estimulá-los,
de chamar a atenção deles.
Renata: Pra mim o lúdico é aquilo que você faz com muito prazer... É a
brincadeira, no caso, como é que eu digo... Eu acho que é quando a gente faz a
coisa de uma maneira sem muita... Não é uma coisa de não ser séria, mas fazer
com alegria, com prazer. Embora a coisa sendo difícil, você faz de uma maneira
mais solta, prazerosa, isso aí deslancha, e fica a coisa do bom mesmo na gente.
A relação com o brincar para aprender se mostra nas definições apresentadas por
Angélica, Érica, Cristina e Mateus:
Angélica: Eu acho que o lúdico é brincar. O homem é um ser lúdico, que brinca, se
diverte, que se emociona, que trabalha com o subjetivo. Então, eu vejo a ludicidade
muito voltada para essa questão do brincar. E aí é que está o papel do professor
fazer com que o jogo que era só para ser o prazer pelo prazer se transforme num
jogo educativo, e que não seja só pelo prazer, mas que seja com uma finalidade
proposta.
Érica: O lúdico é importante para a criança e para o adolescente, e para os
adultos. Inicialmente, algumas brincadeiras, eles dizem isso é coisa de criança,
mas com o tempo eles vão gostando. Mas querem mostrar que não são mais
crianças.
Cristina: Na aprendizagem mesmo eu trabalho o lúdico, eu pego outros jogos, com
verbos, eles brincam, eles acham que estão brincando, não acham que estão
aprendendo. Tem uma aula prática, sabe uma coisa lúdica é o “Show do Milhão”
do programa do Sílvio Santos e eu pus outro nome que foi o “Show da
Inteligência”. Eu digo “lá tem o milhão para ganhar, aqui tem a inteligência”, aí
com isso eles estão estudando mais. Eles dizem “pró, vamos brincar?”, quer dizer
pra eles é uma brincadeira, pra mim não, eles estão aprendendo de maneira
lúdica.
219
Mateus: Aprender brincando diz perfeitamente o que é a ludicidade. Por sua vez
ludicidade vem do lúdico e lúdico são jogos e brincadeiras.
Paula e Pedro pensam a ludicidade como uma possibilidade de aprender de forma
descontraída:
Paula: Um forma diferente da tradicional para que eles fiquem mais soltos na
relação com o outro e com o conteúdo.
Pedro: Ludicidade...vem de lúdico, né? Olha, eu não tenho desenvolvido tanto o
lado lúdico dentro da sala, porque eu não tenho me preocupado tanto com essas
coisas de divertimento, de sair um pouco da minha característica para fazer uma
aula mais descontraída, sei lá... Então, a última vez que eu fiz uma coisa assim
parecida foi quando eu trabalhei a teoria das minhas aulas, que são basicamente
práticas, mas tem um pouco de teoria também, a única vez que eu cheguei a cair
um pouco aí no lúdico, foi quando eu pedi pra os meus alunos debaterem numa
espécie de dinâmica, aí ficou mais descontraído. Mas, eu não tenho trabalhado
tanto ludicamente em sala de aula.
Ana e Isabela vêem o lúdico como uma prática pedagógica que utiliza jogos:
Ana: O trabalho com jogos. Eu sempre li sobre ludicidade, mas sempre assim
referente a trabalho com jogos. (...) Mais voltado para o pedagógico sempre.
Isabela: São dinâmicas e jogos que ajudam na aprendizagem.
Eduarda e Mariana ampliaram um pouco mais o conceito de ludicidade, apontando
para a possibilidade de trabalhar sentimentos e de facilitar as relações interpessoais:
Eduarda: Brincar é viver, quando você se permite brincar, você se permite não só
estar sempre alegre, como estar triste em alguns momentos, porque a brincadeira
ela trabalha vários tipos de sentimentos. O que eu acho mais interessante no
brincar é a socialização, pra mim isso é fundamental a relação com o outro.
220
Mariana: A ludicidade permite que haja maior interação do grupo, que os alunos
se conheçam e que a relação com o professor fique mais próxima.
Como pode ser observado, a visão de ludicidade apresentada pelos entrevistados,
em sua grande maioria, ainda está bastante restrita, sempre associada ao trabalho com os
conteúdos a serem trabalhados, mesmo que a maneira de considerá-la apresente algumas
diferenciações. Apresenta-se, basicamente, como meio para atingir objetivos determinados.
Apenas duas educadoras apresentaram uma visão ampliada, vislumbrando possibilidades
que vão além da visão conteudista, privilegiando as relações da sala de aula.
7. Atividades lúdicas em sala de aula
Embora a maioria dos entrevistados tenha afirmado utilizar atividades lúdicas em
suas salas de aula, pude verificar ao longo de nossas trocas que não eram tantos os que as
realizavam de fato e, se o faziam, era esporadicamente. A finalidade, que foi apresentada
em quase todos os depoimentos, era a mesma: uma forma mais agradável de trabalhar
conteúdos.
Tiago: Eu uso o lúdico para que todos os alunos consigam captar, tenham o
entendimento daquele mesmo assunto de forma prazerosa. Nem que seja só um
“momentinho”, ou aquele que é mais difícil.
Lucas: O lúdico, além de você promover, provocar o prazer em cima da
brincadeira, você também adquire e passa o conhecimento, você dá e recebe.
Então, esse é o meu objetivo.
Observe-se, ainda, que algumas respostas dadas no item anterior apresentam
discrepâncias em relação às dadas neste tópico como a de Eduarda, que também mostra
uma dificuldade que suscita uma outra pergunta: de quem seria a dificuldade, de Eduarda
ou de seus estudantes?
221
Tenho dificuldade. Neste ano, eu comecei a trabalhar algumas questões que
envolvem a brincadeiras ligadas ao raciocínio lógico pra puxar um pouco da
Matemática. Mas eu tenho dificuldade, pela própria resistência que os alunos
colocam, porque eles acham que eles não vão à escola pra brincar, o que eles
querem é aprender a calcular, eles não acham que podem aprender a calcular
brincando. Então, às vezes, é muito difícil, eu tento algumas coisas, mas tem uma
certa distância.
Paula: Desenvolvo atividades lúdicas raramente, com o objetivo de desenvolver o
conteúdo que eu quero e uma forma diferente, com mais prazer de trabalhar aquele
conteúdo. (...) A minha relação com a ludicidade hoje é muito dividida, não
trabalho a ludicidade como uma brincadeira, ela tem uma função pedagógica.
Carolina: Desenvolvo como uma forma de aprendizagem, de passar o conteúdo.
Mateus: Sim, todo o tempo. (...) Dentro de um universo de possibilidades que
conduz o aprendizado, o lúdico é um instrumental de grande importância para nós
arte-educadores. O lúdico é para ser trabalhado em todas as idades. (...) Procuro
criar jogos e trazer jogos para dinamizar e tornar as aulas diferentes e agradáveis.
Algumas entrevistadas manifestaram uma visão mais ampliada do lúdico na sala de
aula:
Renata: Eu uso atividades lúdicas para que eles sintam prazer, para que eles
aprendam, tenham conhecimento dentro deles, para que eles possam levantar a
auto-estima, sentir-se valorizados, e se interessarem bastante pelo que estão
fazendo, descobrir o que eles foram fazer ali.
Érica: Sim, com dois objetivos: passar um conteúdo pra não ficar na lousa, no
apagador e giz, mas também para descontração, pra relaxamento, pra dar uma
abertura maior pro grupo se soltar.
Mariana: As atividades lúdicas fazem o grupo se integrar, se desligar do que está
do lado de fora, sentir prazer.
222
Em síntese, podemos afirmar que as atividades lúdicas, quando já estavam
presentes nas salas de aula dos entrevistados, aconteciam de forma irregular, tendo como
objetivo principal trabalhar os conteúdos próprios das diversas disciplinas. Cinco
entrevistados afirmaram que não desenvolviam atividades lúdicas em suas salas de aula.
Dos onze participantes da pesquisa que disseram desenvolvê-las, apenas três deles o
faziam para promover a descontração e a interação de seus estudantes e a vivência do aqui-
agora da sala de aula de forma prazerosa. Os demais, oito entrevistados, confirmando a
visão apresentada no item anterior, disseram que as desenvolviam para facilitar a
aprendizagem de conteúdos e/ou permitir que isso acontecesse de forma prazerosa.
8. Atenção ao relacionamento dentro da sala de aula
Quanto ao relacionamento dentro da sala de aula, com exceção de Ana, Não, não
me preocupo com isso de jeito nenhum , os demais educadores manifestaram a
preocupação de criar um ambiente mais interativo com vistas a um trabalho mais
produtivo, mas o como nem sempre estava claro para eles:
Tiago: Tenho essa preocupação. Porque se você tem uma equipe, ela absorve
melhor. Se você consegue reunir um grupo que procure pensar igual, tente se
ajudar ... o resultado, na verdade, vai ser melhor. Procuro manter uma relação
amigável.
Lucas: Tenho. Eu inclusive brinco com os meus alunos, eu sou um professor que
passo as atividades e no momento eu também me envolvo nessas atividades.
Porque, eu penso assim, se nós ficarmos naquela coisa de o aluno estar lá e o
professor estar aqui em cima, eu acho que você não vai conquistar, você não vai
conseguir passar tudo o que você quer. Acho que muitas das vezes a gente tem que
ser um pouco de criança também.
Mateus: Sim, sempre. O primeiro contato é o sorriso. Faço trabalhos de grupo,
usando a música como recurso, relaxamento, etc...
223
Paula: Procuro fazer e cada vez mais vou aumentando essa preocupação. Uso o
toque, a conversa, a tentativa de me desculpar se fiz algo com eles, isso se
estabelece através do diálogo.
Isabela: Tenho tentado nas poucas dinâmicas que realizo, mas nem sempre surte o
efeito desejado.
Pedro: No início eu tinha mesmo um pouco de dificuldade com relação a isso. Mas
como a área que eu trabalho de Educação Artística, de Artes, eu sou um professor
que eu não me prendo tanto a conteúdo, tanto a passar os assuntos para os meus
alunos. Eu procuro tirar dúvidas, eu procuro trabalhar com eles, eu procuro fazer
os trabalhos artísticos com eles, acompanhando para ver se eles entenderam, se
eles conseguiram assimilar o que eu estou passando. E se sabem mesmo definir as
técnicas dessas áreas de pintura, escultura, essa coisas que a gente trabalha.
Então, eu procuro me aproximar mais deles nesse sentido. De acompanhar os
trabalhos. Mas, no sentido de saber aonde devo ir, como eu já falei antes, essa
relação professor-aluno isso também eu não desenvolvi.
Mas a preocupação com a interação entre os educandos tinha por objetivo maior,
para alguns entrevistados, permitir que aprendessem a trabalhar em grupo, resolvendo
exercícios propostos como mostra o exemplo abaixo:
Cláudia: Eu trabalho em equipe, divido a turma em equipes, eu fico passeando pela
sala, de equipe em equipe, aí eles me fazem perguntas aí digo “você está
trabalhando em equipe, trabalhe com seu colega, interaja com seu colega, tem
cinco cabecinhas aí, veja o que cada um desses tem a acrescentar, e tal, e se não
conseguirem, me chamem”.
Algumas entrevistadas demonstraram sua preocupação pela falta de vínculos entre
seus estudantes por considerarem importante a afetividade nas relações da sala de aula para
que se crie um clima de participação, solidariedade e respeito:
224
Eduarda: Eu já tentei algumas vezes, mas existe uma grande dificuldade nisso,
porque eles se vêem como colegas apenas, eles não criam vínculos uns com os
outros. É interessante esse tipo de relação que eles mantém na sala de aula: eles
estão ali todos os dias, no mesmo ambiente, e não conseguem trocar nenhum ato de
amizade, de carinho, você percebe que eles estão ali por estar. Isso é complicado...
Renata: Eu converso com eles, acho que é por aí que eu vou conseguir que eles se
interessem, que eles vejam a necessidade deles crescerem. Essa aproximação, criar
um vínculo, procurar não estar distante dos outros.
Érica: Há uma resistência de fazerem trabalhos de grupo, não têm facilidade de
socialização, se negam. Mas procuro conversar, explicar o que ele pode ganhar e
receber no contato com o grupo e chegar mais perto deles também.
A maioria das respostas dos entrevistados mostra o seu desejo de que se crie uma
boa relação entre eles e os estudantes e dos estudantes entre si que possibilite melhora na
aprendizagem. Alguns propõem atividades que se dão basicamente através da cognição, o
que não estabelece os vínculos desejados, e outros demonstram vontade de realizar algo
que estabeleça elos na sala de aula, não sabendo, entretanto, como fazê-lo.
Em alguns depoimentos, como no de Érica e Renata, nota-se que os participantes da
pesquisa percebem a existência de dificuldades de relacionamento entre os estudantes e
procuram gerar transformações, mas não lhes oferecem possibilidades de vivenciá-las,
apenas falam sobre a questão, “orientam” uma mudança que precisaria ser experienciada
para ser assumida.
Mais uma vez, se evidencia o despreparo dos educadores para lidar com algumas
situações de seu cotidiano que lhes trazem tensão e ansiedade, que podem crescer ainda
mais quando estão comprometidos com o seu fazer e desejam contribuir para o
crescimento de seus educandos, se sentindo incapacitados para isso.
225
9. Espaço para expressão na sala de aula
Com exceção de Cristina, Eu não deixo não. Justamente por causa da cobrança
da escola , todos os entrevistados disseram proporcionar espaço para a expressão de seus
estudantes como exemplificam as falas que se seguem. Entretanto, não ficou muito claro
para mim, neste primeiro diálogo, o que significava de fato “deixar que se expressassem”,
só o tempo de convívio e trocas possibilitou que repensássemos o que é, de fato, dar espaço
para a expressão própria.
Carolina: Sempre levo a discussão muito para o grupo, porque eu uso muito
dinâmica de grupo.
Tiago: Deixo, se deixar eles até falam demais. E representar também e idéias
novas, às vezes eles até me surpreendem. “Professor, por que não fazemos isso
assim, assim, assim?” “É, até que é uma boa idéia”. Já vi tudo, capto aquela idéia,
e passo aquela idéia, “a idéia foi de não sei quem, vamos lá trabalhar, vamos
fazer...”
Lucas: Eu sempre procuro fazer ao término da aula, eu os chamo para sala e
questiono. O que acharam, se gostaram, o que pode ser modificado, o que pode ser
feito na próxima aula, sempre faço isso com eles.
Angélica: Deixo. Agora, eu não sei até que ponto o aluno está preparado para se
expressar, porque às vezes ele olha a gente como se a gente estivesse avaliando
tudo que eles falam, como se qualquer fala deles pudesse prejudicá-los. “Ah, se eu
falo alguma coisa que pode desagradá-la, isso pode reverter pra mim em
prejuízo”. (...) Tem uma menina que diz que gosta de aulas interativas, acho
engraçado quando ela fala isso. Aí quando eu digo que vou fazer aula que
geralmente é interativa, ela não participa muito. Eu falo para eles “então vamos
dizer se vocês não estão gostando muito da aula que é basicamente de conteúdo,
mas as aulas interativas às vezes têm a participação de todos, então vamos chegar
a um consenso”. E às vezes, o aluno não fala, aí eu fico me questionando “e
22
6
agora, por que alguns não falam?” Eu me acho tão aberta para ouvir as opiniões
deles, ...
Cláudia: Eu costumo falar “gente, pergunte tudo, mesmo que você ache que não
vale a pena perguntar, mas pergunte. Faça de conta que eu sou professora
exclusiva sua, esqueça que tem um monte de gente aqui. Se você for tímido, me
chame que eu vou até você, e se for mais tímido ainda, fora da nossa sala aqui
nesse momento, se você me encontrar nos corredores me pergunte”. Outra coisa
também, eu costumo tentar problematizar a coisa. Quando eu faço alguma
pergunta para eles, aí eles me respondem, ou alguém teve uma resposta diferente,
aí, eu mexo com a sala “vocês vão com fulano, ou vão com sicrano?”. Aí tento
fazer com que eles se mexam. “Vamos ver quem ganhou, senhoras e senhores”,
tento brincar de leilão. Ou então eles me dão uma resposta e eu dou outra, aí... “a
minha está certa?”. Eles ficam calados. “A minha está certa porque eu sou a
professora? Qual é a de vocês?”
Eduarda: Deixo, bastante. Inicialmente, eu nunca começo a aula, eles iniciam a
aula por mim. Eu sempre questiono para que eles se mostrem, mostrarem o que
eles sabem. E eu trabalho a minha aula a partir do conhecimento que eles já têm.
Então, eles sempre se expressam dessa forma. Agora, com relação à afetividade eu
tenho uma certa dificuldade, como eu já falei anteriormente, porque eles não se
permitem isso, então quando a gente tenta alguma coisa eles criam uma distância
muito grande: “ah, professora a senhora não tem o que fazer, a senhora acha que
a gente veio pra sala para brincar, a gente não precisa disso, eu não preciso fazer
amizade aqui na escola”, coisas desse tipo. Mas eu procuro fazer o máximo para
que todos tentem se expressar de alguma forma, seja através do olhar; às vezes,
quando eu vejo que tem alguém me olhando de uma forma diferente, eu vou até ele
e pergunto o que está acontecendo, se ele não está entendendo, se ele não gostou
de alguma coisa. Eu procuro interpretar muito o olhar, o se mexer, a forma como
eles se expressam de um modo geral eu procuro aproveitar.
Pedro: Acredito que sim. Pelo menos dentro do que eu peço, com relação aos
assuntos aos temas que eu passo, eu acredito que sim. Até porque é basicamente o
que eu peço, que eles se expressem. Não tanto pelo visual, mas pela desenvoltura
227
do trabalho, da arte em si, realmente eles têm que se expressar, tem que haver uma
expressão dentro do que eu passo, o trabalho que eu passo tem que haver uma
expressão.
Renata: Busco ouvir cada um. Dar condição a todos de ouvir mesmo. Abro, mesmo
fora do horário, para que eles me procurem, perguntem, questionem. Mesmo fora
do horário mesmo, eles me procuram e falam deles mesmos, do pai, da mãe. Então
eu procuro. Tem uns meio trancados mesmo, mas até o fim do ano eles já têm essa
abertura, e eu já consigo que eles se expressem. Eu estimulo. A questão agora
mesmo do início, que um não conhece o outro, a questão da leitura, da
interpretação, eles ficam receosos dos outros criticarem. Eu digo “Olha, todo
mundo vem aqui para errar, porque se ninguém precisasse errar...é errando que se
aprende”.
Ana: Eu deixo. Acho que não é esse espaço “tão espaçoso”, mas eu dou condição,
eu permito. (...) chegam a mim alunos, principalmente do noturno, pra conversar
comigo, pra pedir opinião, pra falar sobre a vida pessoal. Você vê que eu trabalho
tanto com abertura que eles chegam a falar deles. (...) [Isso acontece] geralmente
na sala de aula mesmo, espaço no final da aula, entre uma aula e outra, ou então
quando o pessoal está todo em atividade, todo mundo sossegado, aí se aproxima
um.
Paula: Quando preparo a aula, já procuro deixar espaço para a participação deles.
Busco ouvir o que eles não concordam e hoje com a consciência que tem muita
coisa a ser mudada.
Érica: Faço isso através de atividades do tipo: o que vocês pensam sobre isso, peço
um consenso do grupo sobre uma frase escrita no quadro.
Procuro deixar mais clara a questão: Mas e a expressão individual, você está atenta
a isso?
Érica: Não. Mas converso muito com minha mãe que é pedagoga. Mas ela acha
que eles não sabem o que pensam, o que falam. Mas eu penso diferente, porque eu
fui muito reprimida. Não quero passar a eles o que eu passei.
228
Isabela: Deixo, porém não muito, porque eles já são bastante “espaçosos”. Eu digo
pra eles que todos ali têm o poder de fala e que eu também estudei em colégio
público e não estou ali para pisar ninguém.
Mateus: Claro que sim. Todo o tempo. (...) Uso uma prática interessante: oferecer
aos alunos quinze minutos para apresentar uma experiência, qualquer coisa que
ele saiba fazer.
Analisando as respostas dos entrevistados, se evidencia que deixar que o educando
se expresse não tem o mesmo significado para todos. Expressar-se, para a maioria dos
participantes da pesquisa, equivale a emitir conceitos, fazer perguntas sobre o conteúdo
trabalhado, ou mesmo, tagarelar, ou seja, emitir informações ou falar simplesmente.
Diferentemente da linguagem informativa ou explicativa, a expressividade implica uma
conexão da fala ou do gesto com a emoção, tem a “marca” daquele que se expressa, exige
disponibilidade do educador para a escuta ou para o acolhimento, uma vez que a expressão
não se dá apenas através da verbalização.
David Boadella afirma que a integração do pensamento e do sentimento se dá por
meio da função expressiva da voz. “Se a voz é mecânica, a linguagem permanece
explicativa. Explicação significa nivelação. A fala fica desconectada do sentimento.
Exploração significa fluência: a linguagem exploratória integra pensamento e sentimento”
(1985/1992, p. 64).
Por outro lado, como observa Paulo Freire, o educador precisa estabelecer uma
sintonia com seu educando, pois “escutar é obviamente algo que vai além da possibilidade
auditiva de cada um, Escutar (...) significa a disponibilidade permanente por parte do
sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro”
(2004, p. 119).
229
CAPÍTULO III
INTERVENÇÃO FORMATIVA: O CURSO DE EXTENSÃO E
SEUS DESDOBRAMENTOS
Obviamente, a consciência e suas revelações permitem que
criemos uma vida melhor para nós mesmos e para os outros,
mas o preço que pagamos por essa vida melhor é alto.
Não é só o preço do risco, do perigo e da dor.
É o preço de conhecer o risco, o perigo e a dor. Pior ainda:
é o preço de conhecer o que é o prazer
e de conhecer quando ele está ausente ou é inacessível.
António Damásio
Como observei anteriormente, ao longo do desenvolvimento do Curso de Extensão,
tive como fonte de dados minhas observações sobre as condutas dos participantes da
pesquisa, que anotava regularmente durante ou logo após nossas aulas, que ocorriam duas
vezes por semana; os relatos de experiência, que me eram entregues pelos participantes
após cada aula; os diários dos participantes, que poucos mantiveram; e os depoimentos que
faziam nos momentos de partilha, que eu anotava e que passaram a ser gravados quando
todos já se sentiam à vontade com a presença do gravador. O objetivo era acompanhar o
processo dos participantes da pesquisa ao longo do Curso de Bioexpressão de múltiplas
formas.
O que pude observar é que, com o transcorrer do Curso, as atitudes dos
participantes foram ganhando nova forma. A abertura para o novo e para novas
possibilidades de conduta foi se manifestando. Os depoimentos e observações feitos e
relatados, a seguir, demonstram isso. Ou seja, oferecidas as condições, todos podemos
mudar. Antes desta análise organizada em blocos temáticos, algumas considerações sobre a
metodologia podem nos ajudar a acompanhar o processo do Curso de Bioexpressão.
230
1. Bioexpressão: algumas considerações sobre a metodologia desenvolvida
Antes de analisar os dados recolhidos ao longo do processo da pesquisa de campo,
apresentarei, neste item, alguns procedimentos do curso de Bioexpressão, oferecido aos
participantes da pesquisa, complementando os aspectos teóricos apresentados no terceiro
capítulo da primeira parte, necessários para a compreensão da metodologia proposta.
A cada aula, que tinha duração média de duas ou quatro horas, dependendo do dia
da semana, eram propostas aos participantes atividades variadas, mas alguns passos eram
seguidos. Geralmente iniciávamos sentados no chão em círculo, com a partilha daquilo que
repercutira após o último encontro. Este momento era também o tempo de cada um ir
chegando de fato ao espaço do grupo e de entrar em conexão consigo mesmo e com os
companheiros para que iniciássemos as atividades bioexpressivas ou a parte teórica, que
estava condensada em apostilas escritas por mim, e que continham, também, indicações
bibliográficas e sugestões de leitura. As apostilas iam sendo distribuídas à medida que os
temas iam sendo trabalhados.
Geralmente, a temática se estendia por dois ou três encontros e era alimentada pelas
questões suscitadas com a prática, pela leitura dos textos e pelas questões levantadas nos
relatos de experiência. A ordem e o tempo das atividades variavam também de acordo com
o movimento do grupo. Caso percebesse que cansaço ou agitação se manifestava, devido à
posição ou a outros fatores, sugeria outra atividade, retomando a teoria mais adiante. Na
maioria das vezes, as vivências precediam a teoria para facilitar a compreensão do que
estava sendo estudado. Quero frisar que as atividades que desenvolvíamos, mesmo as que
buscavam maior interiorização, eram propostas de atividades lúdicas, considerando-se tais
atividades, como foi analisado anteriormente, aquelas que possibilitam que cada um esteja
em contato consigo e com o grupo, vivendo o aqui-agora, integrando movimento,
pensamento e sentimento.
As aulas sempre se iniciavam com um trabalho de centramento, que permitisse a
cada um perceber o próprio corpo e chegar mais perto de si mesmo. Atividades que
soltassem e alongassem o corpo e permitissem sua consciência.
O passo seguinte era composto por atividades de aquecimento que propiciassem
mobilização da energia e flexibilização das resistências, entre as quais podem se enquadrar
231
os exercícios de grounding. Entre essas atividades estão as brincadeiras, os jogos e as
danças. São atividades que têm por objetivo trazer descontração e a interação do grupo. Na
fase inicial do Curso, estas atividades tomavam a maior parte do tempo, uma vez que
procurei acompanhar o ritmo do grupo, propondo vivências que possibilitassem, antes de
qualquer coisa, integrar os participantes e gerar um clima de confiança e bem-estar, para
que pudéssemos aprofundar as atividades e facilitar o processo expressivo.
2. Condutas observadas durante o Curso de Extensão
2.1. Os impactos do primeiro momento: dificuldades e surpresas
O curso teve início com o grupo ainda incompleto, como mencionei anteriormente.
Um aspecto a destacar foi a importância das entrevistas para a compreensão das ansiedades
do grupo e para a preparação das primeiras aulas. Foram desenvolvidas atividades de
apresentação dos participantes, de descontração e de integração grupal. As primeiras
atividades e partilhas no Curso revelam crenças e fantasias a respeito de uma formação
para a prática educativa que tenha como centro a expressividade a partir do corpo. As falas,
ao final do primeiro bloco de atividades, mostraram aspectos significativos.
Eduarda colocou ter constatado que tem tendência a rotular as coisas, a criar idéias
a partir das imagens que as pessoas lhe passam. Ao ver a divulgação do Curso e sua
temática, achou que a professora seria meio “bicho grilo”, “porra louca”, algo assim.
Quando fez a entrevista comigo e viu quem eu era, achou que não iria ser bom, que eu não
tinha jeito de quem pudesse fazer um bom trabalho corporal. Disse ter se surpreendido com
a atividade, e percebido que “rotular” é uma característica sua, que precisa ser modificada.
A fala de Eduarda traz duas questões importantes a serem consideradas: a primeira é o
hábito de criar rótulos, que é uma das dificuldades com que nos confrontamos nas escolas e
que gera, em muitos educadores, uma predisposição negativa em relação aos educandos
(um estudante fraco, uma turma difícil, um grupo que não tem mais jeito, entre outras); a
segunda é o fato de que propostas diferentes, vistas como “alternativas”, não são esperadas
de profissionais “sérios” ou recebem um “valor” diferenciado. Isso pode ser observado, por
232
exemplo, com a ludicidade, a música, a expressão corporal ou a dança, o que posso
constatar em minha própria vivência profissional.
A dificuldade de deixar que o corpo se expressasse, a vergonha e o desajeitamento
sentidos foram verbalizados e estavam presentes em muitos dos primeiros relatos de
experiência que me foram entregues. No início, no momento da apresentação, diante da
proposta “Como você se sente estando aqui?”, Eduarda, ratificando a colocação de
dificuldades de trabalhar seu corpo, falou de sua indecisão de ir ou não, da forte enxaqueca
que a tomou desde o dia anterior e que se manteve até chegar ao local do Curso. Chegou
mesmo, diante de seu abatimento, a ser aconselhada por seus familiares a não ir, mas
acabou se decidindo a enfrentar o que para ela era um grande desafio, como considerou na
entrevista. Passou todo o tempo das atividades se sentindo bem, mas na hora da partilha
com o grupo, voltou a sentir a dor e fez questão de enfrentar a dificuldade e contar sua
experiência e falar de sua ansiedade.
As dificuldades que surgem com este tipo de atividade estão associadas às couraças
que vamos criando; ter a possibilidade de se entregar a uma nova experiência ou se sentir
contido, mesmo que a vontade exista, vai depender de um maior ou menor enrijecimento
do organismo. Como sintetiza Romel Alves Costa, psiquiatra e estudioso de Reich, se há
predominância de uma educação autoritária, ocorre, inevitavelmente, uma inibição
funcional que ocasiona retenção e redução da carga vital energética, “levando a vida a uma
situação de resignação; ou então leva somente a uma situação de retenção da entrega, sem,
no entanto, ocorrer uma redução na produção de carga bioenergética, criando uma situação
de descargas emocionais inadequadas e insuficientes” (1990, p. 597). Isso se manifesta em
reações agressivas, descontroladas e que se manifestam muitas vezes em momentos
impróprios e de forma inconveniente. É o que dizemos ser “a gota d’água”.
Outros articipantes manifestaram sua ansiedade ou desconforto, como
exemplificam os depoimentos abaixo:
Cláudia: Houve um momento em que não me senti à vontade, senti-me um “peixe
fora d´água”. Tentei concentrar-me no objetivo da atividade que era deixar o
corpo falar e as restrições foram se esvaindo...
Isabela: Sempre fui “endurecida” quanto a movimentos corporais, isso me deixa
um tanto envergonhada.
233
Ana: Foi realmente estranho, pois nunca danço.
Outras falas significativas se referiram a como o corpo fala quando lhe permitimos,
como ele indica tensões, ansiedades, desejos. Durante uma das atividades em que pedi que,
de olhos fechados, procurassem perceber o que o corpo pedia e que procurassem atender
ao pedido, percebi que Mariana necessitava de colo, de carinho, e sugeri que se dessem
acolhimento e atenção se esta necessidade se expressasse, e pude observar como os seus
braços envolveram a si mesma e a expressão de aconchego se expressando em todo o
corpo. Essa moça, no momento de partilha, falou ao grupo de como se sentia “carente de
um colo” e como seu corpo o pedia e como foi bom poder atendê-lo. No relato de
experiência, também se manifestou quanto a isso:
Meio fragilizada, em função de questões pessoais nos últimos dias/meses, senti que
meu corpo pedia “colo”, acolhimento e assim lhe respondi. Foi uma experiência
muito forte, ao mesmo tempo em que sentia a dor do meu momento, sentia também
a segurança do “acalanto interno”. Me senti acolhida para me acolher.
A experiência de Mariana aponta três aspectos importantes: primeiro, a necessidade
do olhar atento de quem orienta as atividades; segundo, a possibilidade de cuidar de nós, e
encontrar em nós mesmos recursos para o acolhimento e a reconstrução; e terceiro, como
as atividades lúdicas podem trazer uma dor à tona, mas como podem também propiciar o
alívio dessa dor, o que torna o momento prazeroso.
Também foi expresso como a interação traz segurança para algumas pessoas. O
grupo que interage gera um espaço de permissão para que a expressividade aconteça, e
essa possibilidade de expressão traz um gostinho de liberdade. As falas seguintes revelam
isso:
Eduarda: Nos momentos em que pude me expressar, com toda minha dificuldade,
me senti em liberdade.
Renata: Foi muito acolhedor estar ali, estar só ou estar com o grupo, percebia a
interação que houve através dos exercícios e o valor para a convivência do dia-a-
dia.
234
Mateus: ... a primeira sensação ao deixar meu corpo ocupar o espaço foi a de
liberdade. (...) É como se cada pedaço dele [do corpo] tomasse a liberdade de
“falar” por si só.
Também expressaram como as dificuldades pessoais se manifestam na sala de aula
e como, apesar de saber sobre o corpo, as dificuldades não deixam de existir. Das dúvidas
sobre “ser ou não ser eu mesma”, ou seja, de expressar-se de forma mais autêntica, dos
conflitos gerados por essa indecisão e grande dificuldade em que se constitui. De terem
feito cursos sobre expressão corporal e atividades lúdicas voltadas para o educando e de
não terem conseguido levar as propostas em frente como desejariam, o que não é tão
simples, pois implica permissão interna e a flexibilização de bloqueios.
Uma fala foi muito marcada pela emoção e pela geração de empatia com o grupo.
Cristina definiu a manhã como “um momento único” pela possibilidade de poder parar e
entrar em contato consigo mesma. Falou de sua dificuldade de serenar o coração e a mente
e de como estava usando a bebida, nos últimos dias, como forma de “desligar” e relaxar.
Hoje não vou precisar beber”, acrescentou ela.
A exposição das dificuldades do grupo encorajou alguns companheiros a
expressarem seus medos e a criar um ambiente acolhedor. Pelas dificuldades que pude
perceber durante as entrevistas, o que me levou a preparar a aula com um cuidado todo
especial, surpreendi-me com a interação do grupo e sua entrega a todas as atividades
propostas, apesar das dificuldades, o que disse a eles ao final. Após esse comentário,
alguns participantes expressaram verbalmente e outros, através de gestos de aprovação, o
quanto foi importante minha postura como orientadora de acolhê-los e de deixar claro que
cada um deveria respeitar seus próprios limites e os dos colegas, que as dificuldades são
esperadas e naturais, de que não há o “certo” ou o “errado”. Por eu “ter permitido”, através
de minha postura, de minha forma de coordenar as atividades, que ficassem à vontade, sem
tantos constrangimentos, que se permitissem, enfim, participar efetivamente. Esse
acolhimento se manifestou na partilha e na maioria dos relatos de experiência, o que
exemplificam as falas abaixo:
Érica: Você nos deixou criar o movimento.
235
Clara: Ficamos à vontade para fazer do nosso modo.
Carolina: Senti-me acolhida e em segurança.
A postura acolhedora do educador é imprescindível para que a expressão se
manifeste e receios sejam superados. É importante que o educador possa estar presente,
aberto para a experiência e a aceitação; firme, mas acolhedor. Caso contrário, as
resistências aumentam e a energia não flui. A afirmação de Romel Costa confirma isso:
Diante de um educador basicamente autoritário, em função do temor ou castigo,
os impulsos libidinais acabam sendo predominantemente controlados,
reprimidos. Como as manifestações impulsivas são conseqüências de processos
vitais bioenergéticos, tais controles perturbarão a harmonia funcional do
organismo. Quanto mais se afasta de sua maneira natural primária de funcionar,
maiores também serão as predominâncias de reações emocionais perturbadas,
na maneira geral desse organismo se expressar (1990, p. 597).
Outro ponto “positivo”, considerado por alguns participantes, foi a minha colocação
inicial de que, naquele espaço, deveriam se considerar pessoas e “esquecer”,
temporariamente, que são profissionais da educação. Aquele momento era deles apenas,
que mais tarde traríamos os nossos educandos para nossa discussão. Era um momento de
se conhecerem um pouco mais e cuidarem de si. Com referência a isso, Pedro disse:
No momento em que houve a proposta de esquecer o que se passava fora daquele
espaço, vi que um pouco de liberdade tão almejada pode ser alcançado mesmo que
seja em breves momentos de concentração e relaxamento, onde podemos esquecer
um pouco os problemas e cuidar um pouco de nós mesmos, não numa atitude
egoísta, mas com um tom reflexivo, no que tange ao fato de que sempre achamos
tempo para nossas atividades e nem sempre olhamos para nossas carências
individuais, emocionais, e conseqüentemente, isso acaba se refletindo em nossa
vida profissional e talvez até no nosso desempenho no trabalho, pois o corpo é um
conjunto e cada parte tem uma função, embora uma trabalhe em consonância com
a outra.
236
Ainda houve um aspecto que não pode ser desconsiderado a mudança de
percepção do que nós iríamos fazer durante o Curso, que quase todos pontuaram. Apesar
de ter-lhes falado, nas entrevistas, sobre os objetivos do Curso, isso só pôde ser entendido
após a vivência de algumas experiências. As fantasias a respeito do que seria o Curso
foram semelhantes às que se seguem:
Paula: Achei que você ia nos mostrar como desenvolver atividades com nossos
alunos.
Lucas: Pensei em uma aula teórica com alguns exercícios.
Cristina: Foi uma surpresa pra mim um trabalho como esse. Esperava que você nos
desse técnicas lúdicas.
Estes três depoimentos expressam bem o teor das expectativas dos educadores de
um modo geral: uma aula de conteúdos e algumas sugestões de atividades. Uma teoria e
um receituário. Selma Garrido Pimenta observa que, quando se pergunta aos educadores o
que esperam da Didática, há uma unanimidade na resposta: técnicas de ensinar. Mas isso é
compreensível, porque “de uma forma ou de outra, aprenderam a ensinar com sua
experiência e com seus modelos de professores dos quais foram alunos” (2003, p. 52).
A ansiedade do grupo exigiu, por vezes, como aconteceu no primeiro encontro, um
tempo maior de troca. Neste caso, algumas atividades previstas não aconteciam, mas uma
atividade final de descontração e integração era sempre preservada.
Em síntese, desde o primeiro momento, os participantes revelaram suas crenças
prévias a respeito do que iríamos fazer no Curso, assim como seu despertar e seu abrir-se
para tentar o novo.
237
2.2. Medos e coragens: o amadurecimento gradativo do grupo e de seus
componentes
O processo do Curso foi permitindo, vagarosamente, que a expansão e a
expressividade viessem à tona. Os medos foram muitos e se manifestaram de formas
variadas. Mas, apesar dos temores, a confiança gradual que foi se estabelecendo entre os
participantes da pesquisa, que permitiram que receios fossem sendo expressos, elaborados
e superados à medida, também, que as couraças iam sendo flexibilizadas. Como observa
Costa, “o poder de se deixar tomar por inteiro por uma atividade qualquer, pela qual o
indivíduo esteja efetiva e afetivamente interessado, depende essencialmente, de como
desenvolveu os processos educacionais de inter-relação da criança com o meio que a
cercou e que a cerca” (1990, p. 595). Devido a isso, o grau de disponibilidade interna dos
participantes para as atividades foi variável, havendo exigência de um pouco mais de
tempo para uns do que para outros a fim de que se sentissem integrados efetivamente.
A minha observação forneceu dados importantes para a análise. Era evidente a
rigidez corporal nas vivências que realizávamos, especialmente nas primeiras aulas. Mãos
crispadas, cenho franzido, respiração superficial, olhos que não conseguiam se manter
fechados, ou sequer se fechar. Olhares desconfiados. Aos poucos, pude observar as tensões
irem cedendo, a respiração ir se aprofundando, os movimentos irem se tornando mais
suaves, mais espontâneos, mais livres, mais expressivos. Alguns se entregaram com mais
facilidade, outros precisaram de mais tempo para, de fato, se integrarem, havendo
alternância de conforto e desconforto, o que pode estar revelado nos depoimentos
seguintes:
Cláudia revelou: Se pudesse resumir em uma palavra a predominância das
sensações ocorridas no segundo encontro, certamente a palavra seria desconforto.
(...) Mas pior quando iniciou a dança da guerra [forma como chamou a dança da
força da qual falarei adiante]. Não acredito em nada disso e não vi significado
algum em participar do ritual. Talvez, inconscientemente, errei todos os passos (...)
Pela primeira vez desejei não estar ali. Cheguei em casa dizendo: detestei a aula
de hoje, detestei.
Mais à frente, com o desenvolvimento das atividades do Curso, ela observa:
238
...as atividades individuais e em grupo transcorreram naturalmente. Sentia-me à
vontade; tanto que inovei em alguns passos... Senti-me confortável e alegre.
Érica depôs: Estive muito alheia a tudo durante o encontro e fiquei oscilando entre
a vontade de ficar e de ir embora, me refugiar no meu canto e remoer minhas
idéias. Estou me sentindo como se estivesse suportando uma enorme carga.
Clara expressou: Pela primeira vez numa aula de Bioexpressão, não sentia vontade
de estar presente. Uma angústia pedia para meu corpo deitar-se e isolar-se. À
medida que o trabalho foi desenrolando-se, fui me conectando. (...) O trabalho de
base mais uma vez foi significativo, vou amadurecendo aos poucos o firmar base.
Sinalizei muitas vezes que ninguém muda da noite para o dia, o que pareceu
tranqüilizar alguns participantes. A tentativa de mudar, sem conseguir, traz ansiedade e
pode gerar o aumento da resistência. Reich (1933/1998) afirma que as resistências são
inconscientes e se manifestam como forma de defesa. Temos medo de sofrer novamente
aquilo do que precisamos nos defender, e lidar com isso é difícil. As vivências flexibilizam
essas defesas, e essa flexibilização permite que a energia em estase se movimente. Nosso
lado saudável poderá ir promovendo mudanças de forma lenta e gradual (auto-regulação).
Nossos educandos não precisam saber disso teoricamente, mas a permissão para “ser do
jeito que se é” é uma forma de lhes darmos grounding.
Estou consciente diz Clara de minhas mudanças. Porém esse processo é muito
íntimo, depende de persistência e força de vontade, e sua aceitação do jeito de
cada um ajuda muito. (...) Fico feliz, pois, percebo que há um progresso e o quanto
os trabalhos de base têm me ajudado nas situações do dia-a-dia.
Tenho observado algumas mudanças em meu comportamento diz Pedro que
têm me ajudado muito nas minhas relações interpessoais. Contudo sei que existe
muito que ainda precisa ser mudado, aliás sempre haverá o que mudar. Mas é
preciso permitir que essas mudanças aconteçam (...) É isso que venho tentando
fazer e tenho encontrado auxílio neste trabalho.
239
Paula revela: As atividades foram bastante significativas a partir do momento em
que comecei, mais uma vez, a dar-me conta dos entraves corporais e mentais que
tenho. Essa tomada de consciência, às vezes me assusta, mas sinto também que me
fazem um enorme bem. Vou, pouco a pouco, aprendendo a conviver com minhas
limitações, tentando respeitá-las, aceitando-as ou tentando transformá-las, quando
me é possível.
Érica acrescenta: Pude perceber com mais clareza que não sou a única pessoa no
mundo com dificuldades emocionais por ter sido reprimida e por me reprimir para
atender as necessidades de outras pessoas. Já faz algum tempo que me dei conta de
como me sentia infeliz e como essa infelicidade se alojava aos poucos em todas as
partes do meu corpo: hipertensão arterial, enxaqueca, insônia e outros sintomas,
que me obrigam a fazer um esforço enorme para minimizar as conseqüências na
sala de aula. (...) me sinto mais energizada durante a semana e já consegui dormir
sem ingerir o remédio que vinha tomando (...) Preciso voltar a ser quem eu era:
uma pessoa leve, solta, de bem com a vida.
Alexander Lowen, em seu livro Medo da vida, nos mostra de forma clara que um
dos aspectos do caráter neurótico é a incapacidade de auto-aceitação. A tentativa de
superar um problema através de sua negação acaba por garantir sua manutenção. “A
alternativa, o caminho saudável, encontra-se no entendimento que conduz à auto-aceitação,
à auto-expressividade, ao autodomínio” (1980/1989, p. 51). Assim, o primeiro passo para
que ocorra a transformação é se perceber e se aceitar, como ocorreu com Paula e o que
passou a ser expresso pelos educadores de um modo geral:
Eduarda: Estou permitindo me gostar, assim, do jeito que sou.
Mariana: Percebi que ando depressa sem necessidade, cuido muito pouco de mim.
É como se não quisesse parar e me olhar.
Ana: Estou muito travada, mas quero aprender a me soltar.
240
Participantes que já haviam tido experiências anteriores com trabalhos corporais
mal orientados, guardaram marcas negativas como ouvi nos relatos da pesquisa inicial e
em circunstâncias vividas no Curso, como a que exemplifico agora, em que partimos do
chão em estado de repouso para movimentos crescentes de expressão ao som do Bolero de
Ravel. Vale observar que, contactada a experiência negativa por um instante, é possível ir
em frente e vivenciar uma experiência nova. O depoimento de Tiago, após essa vivência,
demonstra isso:
Quando ouvi que era pra deitar, colocar as mãos no umbigo e respirar
pausadamente, pensei que seria uma regressão e isso me travou todo, pois eu tenho
horror a isso [ele na partilha contou-nos uma situação que vivenciou com um
grupo de trabalho corporal que fora muito traumática]. Mas quando ouvi a música
tive certeza que não era. Confesso que, há um bom tempo, eu não me sentia tão
bem quanto nesse exercício de relaxamento e expressão. A música de forma
crescente foi me dominando. No seu auge ela era tão vibrante e eu bailava somente
ao comando desta. Foi um momento agradabilíssimo. Eu não queria abrir os olhos
para não perder a sintonia. Se deixasse, eu não pararia tão cedo!
Ana, Angélica, Cláudia e Isabela me surpreenderam após alguns encontros.
Cheguei a pensar que não continuariam no grupo, tal a sua dificuldade de entrarem em
contacto com o corpo, de se aproximarem mais das pessoas, de participarem das
atividades, dos preconceitos que deixavam entrever em suas falas. Por elas, mantive um
trabalho de aproximação mais suave e mais lento por mais tempo, aprofundei o trabalho
com muita cautela para que pudessem se sentir mais à vontade com o grupo. Para isso,
muito contribuíram as atividades lúdicas que nos estimulam o envolvimento que permite
que nos desliguemos, por alguns momentos, dos controles de ego.
O centramento e o grounding eram enfatizados. Muitos exercícios de respiração
foram feitos, além de uma constante observação para que não a prendessem, pois há uma
forte tendência a fazê-lo em qualquer situação de tensão. Por outro lado, como enfatiza
Lowen, a respiração limitada gera dificuldade de concentração, intranqüilidade
irritabilidade e tensão. “A dificuldade de respirar profundamente está associada ao medo
de sentir. A respiração cria sensações. (...) [As pessoas] têm medo de sentir sua tristeza,
sua raiva e suas apreensões. Quando eram crianças seguravam a respiração para não
241
chorar, puxavam o ombro pra trás, tensionando o peito para conter a raiva, e apertavam a
garganta para evitar o grito” (1970/1984, p. 33-34). Esses mecanismos acabam por reduzir
a respiração e criar o anel diafragmático. É através do diafragma que se estabelece a ponte
entre a energia endodérmica (tronco) e a mesodérmica (coluna vertebral), entre sentimento
e movimento.
Aos poucos, as resistências iam sendo superadas. No primeiro exercício de
respiração abdominal, senti que Cláudia estava tensa e com a respiração forçada. Pedi que
relaxasse e não forçasse. Ela me respondeu que se não fosse assim que o ar não “iria” até o
abdômen. Pedi que respirasse com mais leveza e mais relaxadamente. Tinha muita
dificuldade. Mas à medida que o trabalho progredia, suas defesas se abrandavam e a
conexão consigo mesma foi acontecendo. Já respirava com maior profundidade. Segundo
Lowen (1970/1984), a contenção de qualquer sentimento resulta na inibição da respiração.
A incapacidade de uma respiração mais profunda é o grande obstáculo para a recuperação
da saúde emocional.
O caso de Cláudia foi marcante. Logo percebi que a religião trazia uma forte
interferência entre outras. Cantar e dançar não eram atividades permitidas, e o canto só era
aceito se estivesse conectado aos cultos religiosos. Como afirma Renato Magalhães Pinto,
preceitos religiosos, entre outras ordenações que nos são impostas, “constituem amplo e
complexo sistema destinado, sobretudo, ao controle da conduta humana” e podem reprimir
a expressão pessoal (1997, p. 80). Entretanto, aos poucos, bem lentamente, ela foi
descobrindo o prazer de soltar a voz, de se expressar através do movimento, e se deu a
permissão para entrega ao trabalho.
Nos últimos encontros, seus relatos eram completamente diferentes, tinham vida, e
foi emocionante observar-lhe os movimentos fluidos, leves, vividos de corpo e alma, os
olhos fechados, sem a preocupação peculiar de quantos minutos faltavam para terminar
nosso encontro daquela manhã. Não esperava vê-la deixar-se fluir com tanta entrega,
desligando-se de preconceitos e permitindo-se viver o momento como observei (e me
emocionei) ao final do curso.
Angélica também foi um caso que merece destaque. Sua rigidez era muito grande,
apesar de ser muito jovem e ter o corpo delgado. Tinha o peito muito fechado e os ombros
caídos. Isso provocava uma elevação em sua região cervical. Pedi-lhe que fizesse alguns
movimentos diariamente para soltar um pouco o pescoço e os ombros. Inicialmente, a
242
rotação do pescoço não pôde ser feita por ela. Nem a dos quadris. O corpo se mostrava
como um bloco único. O que soube de sua história de vida me ajudou a entender um pouco
disso família evangélica e muito rígida. O bom é que se propôs a mudar e estava
investindo nisso apesar de toda sua dificuldade e constrangimento frente ao grupo.
Procurei acolhê-la e conversar um pouco mais no sentido de diminuir sua ansiedade que já
se mostrara na entrevista inicial.
Cláudia e Angélica que me sinalizaram por sua falas e nos relatos de experiência
que ficavam ansiosas para que algumas atividades em dupla terminassem logo, sentiam-se
constrangidas. Com o passar do tempo, observaram que, como deixei claro, em resposta a
seus relatos, que poderiam “dançar” sozinhas ou com alguém, trocar ou não de par, enfim,
que o importante era fazer do momento algo prazeroso, se deram a permissão interna para
fazer o que quisessem, passaram a participar com mais entrega e não se mantinham mais
isoladas.
Cláudia, ao final, disse que sentia muito prazer em todas as atividades, inclusive
naquelas que geralmente lhe eram desagradáveis. Sentiu que tinha opção de escolha e pôde
se entregar ao trabalho sem receios. Até a massagem lhe foi agradável. Permitiu-se ser
tocada e tocar de forma natural, sentindo o quanto era prazeroso, o que, inicialmente, era
constrangedor. Como expôs, escolheu, propositalmente, em um dos encontros, um rapaz
para trabalhar com ela e, assim, atravessar seu preconceito em relação ao contato mais
próximo com alguém do sexo oposto. E se sentiu feliz por poder perceber que foi possível
e prazeroso.
Minhas orientações quanto a estarem atentos para perceberem seus limites e os do
outro nas danças de auto-expressão, para não se forçarem a parecer alegres, mas para se
permitirem criar movimentos próprios e prazerosos, ecoaram de forma muito positiva.
Sempre pontuei isso, mas houve necessidade de um tempo para que se permitissem fazer
um movimento diferenciado ou deixar carinhosamente o par se preferissem trocá-lo ou
ficar um pouco consigo mesmos. Talvez por termos trabalhado o texto sobre as camadas da
estrutura psíquica, pelo interesse despertado quanto às máscaras que usamos como defesa,
talvez pelo amadurecimento do grupo, talvez por tudo isso junto, a espontaneidade ia se
mostrando cada vez mais, o que foi observado por quase todos os participantes.
Eduarda: A dança foi vivida de forma mais natural.
243
Mariana: Respeitei meu desejo de ficar sozinha.
Pedro: Pude perceber que posso me dar um pouco mais do que tenho recebido de
mim mesmo, se eu simplesmente permitir isso.
Tiago: É uma aprendizagem necessária: interagir com pessoas diferentes, desligar-
se de um padrão certinho que a sociedade, família e até ocupação (emprego)
impõe. Se você age contra a forma que você é, você retarda as mudanças em você
mesmo.
A partilha de um dos participantes acerca das mudanças de par foi também muito
significativa: se permitiu trocar de par várias vezes, se “despedindo” sempre de maneira
carinhosa, mas sem medo de magoar alguém por querer trocar de par, o que, para ele, fora
difícil de outras vezes. Inicialmente, fazia isso somente se minha “voz de comando” pedia.
Dançou com outro rapaz e comentou achar legal poder fazê-lo sem preocupação de parecer
estranho, ainda que, assim mesmo, necessitasse de alguma justificativa para fazê-lo:
Tiago: Somos amigos, por que não poderíamos dançar juntos?
Eduarda disse que, pela primeira vez, conseguiu realmente entender o que eu tanto
repetia quanto a respeitar os próprios limites e os do outro. Foi muito bonita sua fala.
Dançando com um companheiro, sentiu-se incomodada ao ver uma colega dançando
sozinha e pensou em deixar seu par para “dar apoio” à outra. Mas lembrou-se que havia a
opção de dançar em trio, em quarteto, em grupo, como até ocorreu, e também a de ficar só.
E respeitou a opção da colega e se concentrou em sua própria dança. Ana que, cada vez
mais, parecia conseguir entrar em contato consigo mesma, observou na partilha: Não senti
necessidade de estar com outras pessoas, queria ficar sozinha.
Gradualmente, foi surgindo o desejo de contato físico mais próximo, do abraço
mais aconchegante, dos carinhos. Nada em relação ao contato mais próximo era “dirigido”.
Ele surgia naturalmente e podia ou não ser correspondido. Clara depôs:
No diálogo corporal, notei que Tiago, assim como eu, estava com desejo de
interiorização. Observei seus movimentos individuais, enquanto ia buscando os
meus, até que nos tocamos. Fizemos uma massagem recíproca com muito carinho.
244
Procurei tocá-lo no peito, nos ombros e nas mãos com intuito de fazê-lo sentir-se
melhor. Respeitar o estado do outro ficou perceptível pra mim nesta atividade.
Considero que o carinho e o afeto devem ser espontâneos, tenho algumas restrições
quanto a trabalhos corporais que induzem contatos mais profundos. Creio que o contato
físico deve ser aceito se há permissão interna para isso, embora ache que um abraço é
extremamente prazeroso, assim como um afago ou um toque. Mas só se forem espontâneos
e desejados, o que acabou acontecendo com todo o grupo ao longo do período de trabalho.
2.3. Percepções diferenciadas e desacertos vividos: desafios e aprendizagem
Os choques relacionados à religiosidade e percepção dos participantes do que é
espiritualidade ocorreu mais cedo do que eu esperava. Os comentários que se seguiram à
“dança da força”, que propus no segundo encontro, e que tem por objetivo trabalhar o
contato com a base, ou seja, dar grounding ao grupo, mostraram o quanto as percepções
são diferentes e o quanto é difícil para alguns (ou muitos) aceitar que a percepção do outro
seja diferente da sua. A colocação de Mateus de que a dança lhe proporcionou uma
vivência espiritual” causou um grande incômodo a Cláudia, que se sentiu desconfortável
com a falta de espaço para que os passos fossem dados e que não conseguia admitir
qualquer espiritualidade ali presente. Isso fez com que Tiago se manifestasse,
veementemente, brandindo a apostila em que eu citava a necessidade de olhar o novo antes
de negá-lo. O primeiro conflito se manifestava no grupo. Com minha intervenção, procurei
deixar claro que não existe uma forma “correta” de sentir. Cada um tem sua própria
percepção e esta é importante, é significativa para quem a vivencia. Uma variável que pôde
ser observada, neste atrito, foi a existência de uma visão religiosa mais ortodoxa, embora
ainda não dita. A postura de Cláudia parecia perguntar: como poderia ocorrer uma vivência
espiritual em uma situação dessas? Percebi que o incômodo aumentara quando comentei
que a música, que seduziu alguns componentes do grupo e despertou curiosidade, devido a
sua marcação forte, criada por instrumentos de percussão, era um canto místico do antigo
Egito e faz parte de um CD que reúne vários cantos do mesmo teor. As citações bíblicas
apresentadas no relato de experiência de Cláudia trouxeram mais um dado para minha
primeira observação.
245
Retomei essa situação conflituosa surgida no encontro seguinte, quando, após a
última atividade, nos sentamos para falar da experiência. Cláudia se manifestou, se
desculpando por ter observado que a atividade não tivera qualquer significado para ela.
Contou de sua tensão e incômodo por estar ali, de que já chegara aborrecida e que nada lhe
agradara. O problema era dela, não das propostas que eu fizera. Procurei mostrar que, de
qualquer forma, ela tinha e sempre teria a liberdade de se manifestar quanto ao que
sentisse. Uma atividade pode ser significativa para uns e não o ser para outros. A maneira
de sentir é própria de cada um, e aceitar essa diversidade de percepções é importante se
desejamos interagir com outras pessoas, especialmente, se orientamos um trabalho de
grupo. Como podemos estimular nossos educandos a se expressarem se não lhes damos
voz? Como podemos incentivá-los a se perceberem, se não aceitarmos suas percepções?
Este fato foi importante também para discutir uma questão que, comumente, se
manifesta com as práticas da Bioexpressão: a tendência dos participantes a tratar de
questões religiosas ou a pensar que há algo ligado a uma determinada religião em nossas
vivências; e, ainda, para definir o que é espiritualidade. Os preconceitos são inúmeros e o
simples fato de utilizar um ritmo africano ou o som de atabaques já é suficiente, algumas
vezes, para acharem que estou propondo um ritual religioso, o que atualmente já evito que
aconteça, explicando o uso dos sons tribais como excelentes propiciadores de grounding.
Na partilha, Clara expressou o valor simbólico que as atividades assumem para
cada um. Este aspecto foi importante para chamar a atenção do grupo mais uma vez para o
quanto as percepções são diferenciadas. E não há “certos” ou “errados”, cada um tem sua
leitura que se relaciona com a sua própria história de vida. Wilhelm Reich afirma que
nosso corpo é nossa história de vida congelada. Seus seguidores partem deste pressuposto.
Não há, pois, como não considerar a vida vivida por cada ser humano, que, como afirma
Stanley Keleman, dá forma a cada corpo. Nossas crenças, mesmo que, na maioria das
vezes, não nos demos conta disso, estão sempre atuando subliminarmente, o que exige um
investimento em longo prazo para transformá-las. As crenças religiosas, que a
Bioexpressão não tem por objetivo discutir, têm-se mostrado como uma variável
interveniente quase sempre presente, especialmente para os seguidores de confissões
religiosas que proíbem a dança e só admitem os cantos religiosos. Isso exige que, em
determinadas atividades, fique muito claro que há uma justificativa teórica. Com o passar
do tempo, as resistências e preconceitos vão sendo vencidos.
246
Voltando ao conflito quanto à percepção do que seja uma vivência espiritual (e essa
percepção esteve presente muitas vezes ao longo do Curso), tendo sido pontuado que os
sentimentos podem ser diferenciados em uma mesma vivência, falamos um pouco sobre o
que significa espiritualidade para os teóricos que dão base à Bioexpressão, que
apresentam, como vimos, pontos em comum. Stanley Keleman a define como um aumento
dos processos excitatórios do ser humano. “É o nosso experienciar vívido e é a vivacidade
daquilo que experienciamos”. Quanto maior for nosso fluxo de energia, maior será essa
sensação de plenitude que se instala. “Viver nossas correntes [o fluxo pulsatório],
participar na formação das nossas vidas é o grande mistério e a alegria da existência”
(1975/1996, p. 120). Essa vivência pode, sem dúvida, ser experienciada através das
atividades bioexpressivas e trazer o sentimento de transcendência que tantos partilharam.
A possibilidade de expansão da consciência nos permite o contato com uma
dimensão pouco vivenciada no nosso dia-a-dia. Como define Leonardo Boff,
espiritualidade pode ser considerada como viver de acordo com o espírito, que é uma
totalidade vital, “o nome para dizer a energia e a vitalidade de todas as manifestações
humanas”. Viver a espiritualidade é viver uma existência que se orienta na afirmação da
vida, de sua defesa e de sua promoção, vida tomada em sua integralidade, seja em sua
exterioridade em que se manifestam as relações com o outro, a sociedade e a natureza,
“seja em sua interioridade como diálogo com o eu profundo” (1990, p. 555-556). Observa
ainda o autor, que “as objetivações religiosas [que se expressam em doutrinas e dogmas]
podem significar um empecilho formidável, quando ao invés de expressarem a experiência
do sagrado, pretendem substituí-la” (Idem, p. 559).
Complementando, cabe trazer a observação de Ruy Cezar do Espírito Santo de que
a dificuldade do ser humano se situar no “agora” se relaciona com a fragmentação, com a
não percepção da sua totalidade. “Freqüentemente sequer ‘permanecemos’ no corpo físico,
que sofrerá pela ausência da respiração adequada, posturas inconvenientes e desconforto
não sentido”. Quando estamos presentes no que fazemos vivemos o aqui-agora. Caso
contrário, como afirma o educador, “aquele que se isola em suas elocubrações, emoções
não integradas ou mesmo num espiritualismo ‘desencarnado’ foge da realidade”, ou seja,
foge do “agora” (1998, p. 70). E foi este estar inteiro, presente no tempo-espaço de uma
vivência que possibilitou o que alguns educadores consideraram uma experiência
espiritual.
247
Situações conflituosas são dados importantes para nossa análise como um grande
conflito que surgiu no grupo, e se repetiu algumas vezes, nos trazendo grandes
dificuldades, mas, também, possibilidades valiosas de aprendizagem e crescimento. O
centro do conflito foi Joana, uma das participantes que não era componente do grupo da
pesquisa, mas que foi assídua e participante.
Havíamos iniciado o estudo de um texto. Joana chegou atrasada, tumultuando o
ambiente com sua agitação. Mas estava mais tensa que de hábito. Na primeira chance,
começou a falar de uma situação difícil que estava vivenciando e que não tinha qualquer
relação com o que estava sendo discutido. Como estava muito tensa, o grupo se dispôs a
escutá-la, mas, como de hábito, Joana alongou a história, introduzindo muitos detalhes e
adendos. Sinalizei a primeira vez, pedindo que fosse mais objetiva. Já havíamos falado
disso nos últimos encontros. Não adiantou muito, ao contrário, pois, ainda quis explicar
porque precisava falar. A impaciência já se manifestava na expressão do grupo e fui mais
objetiva e pedi-lhe que sintetizasse sua fala. Calou-se de imediato, mas na primeira pausa
entre as falas do grupo, manifestou seu desagrado com minha sinalização e com a postura
de descaso do grupo de forma bastante agressiva, colocando-as como algo hostil em
relação a ela, o que não ocorrera.
Respondi-lhe que era meu papel dar oportunidade a todos de falarem e que não a
proibira de falar, apenas pedira-lhe que fosse menos prolixa. Mostrei-lhe que, como
educadores, precisamos gerenciar o tempo de que dispomos, estimulando nossos
educandos menos falantes ou mais tímidos a se colocarem. Por outro lado, diante de tanta
tensão que ela sentia, era fundamental não perder a possibilidade da prática e o tempo já
estava prestes a acabar. E pedi ao grupo que respondesse por si mesmo, uma vez que ela o
acusara de agir com descaso. As colocações foram muito significativas. Deram
acolhimento a sua ansiedade, mas mostraram o quanto sua fala estava tomando o tempo e o
quanto costumava alongar questões que fogem às discussões do grupo. Reforçaram
também minha fala quanto à necessidade de abrir espaço para todos.
A prática foi mudada em função do incidente e priorizei atividades de liberação de
tensão, grounding e centramento. Eliminei o relaxamento deitado que havia planejado,
pois, não haveria tempo para uma atividade bem feita, devido inclusive ao nível de tensão
gerada que não poderia prescindir das fases a serem desenvolvidas. Após as atividades, o
grupo a acolheu em um abraço coletivo. Os relatos de experiência trouxeram a
comprovação do que havia observado quanto ao fortalecimento do grupo, ao aumento de
248
sua assertividade e a possibilidade de expressão de seus sentimentos. O depoimento de
Mariana que se segue demonstra a aprendizagem da experiência vivida:
A meu ver, este foi um momento singular do curso, pois houve habilidade
manifestada pela coordenadora em assegurar as condições que proporcionassem a
participação de todos os integrantes do grupo sem, contudo, deixar de acolher a
dificuldade da colega; o grupo se colocou com grande maturidade, apontando os
prejuízos desencadeados pela ação da colega numa atmosfera de grande
sinceridade e respeito. Para mim, em especial, este momento representou uma
grande conquista. Não me recordo de ter vivenciado antes uma situação na qual
conseguisse expor com tamanha clareza meu incômodo sem, contudo, em momento
algum, ter sido agressiva. E acho que me senti tão grata por ter tido esta
oportunidade, que, no momento seguinte “à lavagem da roupa suja”, quando nos
preparávamos para a outra etapa, senti necessidade de expressar à colega que,
embora tivéssemos tido que pontuar o que era incômodo para nós, estávamos ali
para acolhê-la.
Os depoimentos seguintes relatam como a situação foi importante e como o
educador necessita de habilidades para se confrontar com as situações cotidianas de
conflito:
Paula: (...) devido ao tempo, a coordenadora a interpelou, solicitando que fosse
breve nas declarações, o que desencadeou uma atitude bastante negativa desta
companheira com relação à orientadora. Daí que no momento que todos tentavam
acalmar os ânimos, fiquei pensando que, realmente, as coisas não acontecem por
acaso e que, muitas vezes, vivenciar determinadas situações nos propicia uma
reflexão mais madura.
Clara: É importante comentar sobre a riqueza dos debates e discussão da aula. Foi
merecedora de aplausos a condução do trabalho. Noto que é imprescindível o
“jogo de cintura” e o uso das palavras no momento devido. Adorei ter
compartilhado dessa experiência, haja vista a interação e o aconchego que o
grupo proporcionou. Naquele instante, entendemos que o tempo é controlador,
entretanto é também viável e pode se ajustar.
249
Pedro: (...) exigiu “jogo de cintura” do grupo que passou a ter uma outra postura.
(...) Acreditamos que tudo isso é válido e nos ajuda a criar vínculos e coesão do
grupo.
Na verdade, embora tenha sido desagradável para mim e para o grupo lidar com os
conflitos que surgiram, foi significativo para que pudéssemos refletir sobre situações de
sala de aula que têm um teor semelhante, assim como outras situações similares do
cotidiano. Não é incomum nos depararmos com educandos (e também com amigos ou
conhecidos) que desejam monopolizar as atenções, mesmo que de forma inconsciente, no
sentido de serem cuidados e acolhidos pelo outro, devido a uma grande carência afetiva. É
necessário que o educador esteja atento para que o espaço seja dado a todos e esteja
centrado para lidar com as inevitáveis dificuldades que o dia-a-dia da sala de aula nos traz.
Também importa ver que, em algumas circunstâncias, um necessita mais atenção que
outro. Isso é percebido na qualidade presente, na circunstância, na fala, nos sentimentos.
Quando dei voz ao grupo, coloquei em avaliação o que estava sendo feito, permiti
que percepções diferentes se manifestassem, que não fosse somente a voz da “autoridade”
a dizer o que deveria ser feito ou o que tinha acontecido. Essa atitude fortaleceu minha
postura e deixou claro que o incômodo não era só meu, mas de todo o grupo, e que minha
percepção não estava distorcida o grupo pôde dizer de seu incômodo e acolher a colega.
Mostrar falhas e aspectos que devem ser mudados pode ser feito com acolhimento. Dessa
forma o grupo vai-se constituindo como grupo e não apenas como um conjunto de pessoas
reunidas. Dar voz ao grupo significou torná-lo responsável pela manutenção de sua
integridade, de sua constituição e preservação.
Dar voz ao grupo não significa deixar de colocar limites. Estes são necessários para
a própria manutenção do grupo e para que todos tenham vez e voz. Os conflitos fazem
parte das inter-relações, lidar com eles é fundamental, e como vimos no segundo capítulo,
buscar o diálogo, atentando para as interferências é uma tarefa possível, embora não tão
simples. A autoridade do orientador se faz necessária para essa manutenção do grupo como
grupo de fato, o que difere de autoritarismo.
Falar não é necessariamente se expressar no sentido que aqui consideramos. A fala
pode mesmo ser uma forma de defesa, de ocultamento ou de manipulação. Reich enfatiza
250
que a palavra falada pode esconder a linguagem expressiva do núcleo biológico. Não é
difícil percebermos como isso se manifesta a nossa volta e o quanto a fala de Reich é
atualíssima: “inúmeros exemplos de discursos, publicações, debates políticos não têm a
função de chegar à raiz de importantes questões da vida e, sim, afogá-las na verborragia”
(1933/1998, p. 334). A auto-expressão se relaciona ao que Reich denomina “se expressar
biologicamente”, que apresenta uma profundidade da qual o ser humano foge
continuamente pela sua dificuldade de unir pensamento e sentimento. Essa fuga pode se
manifestar através da verborragia, da fala destituída de conexão com o self, vinda da
expressão da primeira camada, a das máscaras. A experiência vivida permitiu a muitos
participantes do grupo se expressarem de fato, falarem de seu incômodo sem agredirem a
colega. Alguns chegaram a expor como era difícil falar, mas que era necessário pelo bem
do grupo. Apesar da tensão que me causou o ocorrido, não posso deixar de reconhecer o
significado desse momento também como fruto do trabalho que o grupo vinha
desenvolvendo. O tão citado “jogo de cintura” vinha sendo muito trabalhado
corporalmente, através de vivências variadas que têm o mesmo objetivo: lidar com
mudanças, tornar-se mais flexível diante de situações novas (trabalhar com mudanças
rítmicas, com a busca da sintonia em grupo, com alternância de força e suavidade, manter a
firmeza da sustentação com flexibilidade corporal, entre outras atividades).
Outro momento significativo de aprendizagem ocorreu em um dos encontros em
que me deparei com um dos muitos problemas institucionais que surgiram ao longo do
Curso. Já me preparara para conversar com o grupo quanto a atrasos e faltas constantes de
alguns participantes e o prejuízo causado ao bom andamento das aulas, assim como para a
cobrança dos relatos de experiência que ainda não haviam sido trazidos. Neste mesmo dia,
ficamos sem espaço para trabalhar, já haviam ocupado a sala reservada para nós sem
qualquer comunicação. É importante salientar, que devido ao tipo de trabalho
desenvolvido, era necessária uma prévia arrumação e limpeza da sala. Depois de um sobe e
desce, consegui autorização para usar outro espaço. Quando estávamos no meio da
vivência inicial de centramento, necessária depois dos contratempos, a sala foi literalmente
invadida por um grupo que teria aula ali, sem qualquer cuidado em pedir licença ou
constrangimento por interromper uma atividade. Não posso deixar de observar que esta
postura de educandos do curso de Pedagogia, que não está restrita a esta Instituição
251
especificamente, aponta para o fato de que, na formação dos educadores, há que se
vivenciar a questão do respeito e da ética.
Não pude conter minha irritação e manifestei minha indignação diante de tantos
transtornos e descasos. Já quase no final de nossas duas horas de encontro, conseguimos
uma nova sala, quando pude expressar meu desagrado em relação ao incidente e aos
problemas internos do grupo. Achei muito interessantes as colocações quanto a se
surpreenderem com o fato de que eu também “perdia as estribeiras” e “ficava furiosa”,
como se eu não tivesse as mesmas dificuldades e reações que caracterizam todos nós, seres
humanos. Seguem-se alguns depoimentos em torno dessa situação:
Cláudia: Lucia Helena deixou transparecer uma certa irritação em lugar de sua
constante serenidade. Aquele parecia não ter sido um bom dia para ela (pelo
menos foi o que deixou transparecer). Além disso, a transferência novamente de
espaço parecia algo iminente. E, quando a ameaça finalmente concretizou-se, já
era visível que até mesmo Lucia Helena se descontrola. (Eureka! Ela é normal!)
Mateus: Foi bom abrir o jogo. Falar das dificuldades e dos incômodos.
Lucas: Consegui ver um outro lado seu e a senti mais próxima ainda.
Também a consciência de que precisam assumir a responsabilidade pelo grupo se
fez sentir. Assim se pronunciaram:
Carolina: Apesar de tudo, gostei muito da aula. Senti-me membro do grupo. Ao
final fiquei feliz por estarmos todos juntos neste trabalho.
Angélica: Senti-me envergonhada com seu desabafo, pois estava com os relatos
atrasados. Mas achei importante que você revelasse seus sentimentos e percepções
tanto para extravasar emoções e pensamentos, quanto para provocar mudanças
dos aspectos abordados.
252
Cristina: A abordagem feita foi importante, pois muitos chegam atrasados e
atrapalham. A partir de suas considerações, percebi minha responsabilidade
diante do grupo.
Essas falas foram importantes para eu pontuar que, mesmo quem se trabalha
regularmente, tem altos e baixos, e que expressar o desagrado é saudável, se for feito com
coerência; que quem apresenta uma nova proposta, vive dificuldades em sala de aula,
enfrentamentos e conflitos institucionais e/ou com colegas. Nesse sentido, a exposição das
situações que me incomodavam em relação ao grupo da pesquisa e à instituição se
mostraram significativas para transferirmos para situações de sala de aula. Também
discutimos o risco dos “manuais” de auto-ajuda que passam a idéia de que qualquer um
pode vencer a si mesmo com atividades e exercícios determinados como num passe de
mágica. Isso pode provocar uma sensação de incapacidade, de desânimo. A alegria de
Cláudia expressa no relato de experiência e oralmente, ao ver que senti muita raiva com a
invasão, me fez parar e pensar: “Que imagem ou mensagem eu estou passando?” Foi
também para mim um momento de avaliação.
A partir da questão da necessidade de expressar incômodos, discutimos a forma de
fazê-lo, sem a necessidade de ferir ou magoar, mas não deixando de expor o que se quer
dizer. Discutimos a importância de nos prepararmos para as situações mais difíceis através
do grounding e do centramento, de buscar, enfim, formas de ganhar força.
As relações entre as nossas dificuldades de auto-expressão e a educação que
recebemos foram sendo tecidas pelas várias falas. Alguns participantes manifestaram seu
temor de que o incidente criasse uma “desarmonia” no grupo e a surpresa de perceberem
que os limites são necessários:
Cristina: Não imaginei que a aula de hoje seria tão harmônica, pensei que seria
difícil por causa da aula passada.
Angélica: Foi uma aprendizagem. O grupo saiu fortalecido depois da discussão.
Impor limites é realmente importante. Hoje todos chegaram mais cedo também.
Lucas: A nossa relação parece ter ficado mais inteira, mais verdadeira.
253
Temos a tendência de “camuflar” o que não vai bem, como se falar dos problemas,
das dificuldades fosse algo ruim, como se fosse uma forma de expressar as fraquezas que
devem ficar ocultas. O que não é dito e que gera incômodo está presente, vibra no
ambiente, reforça a camada das máscaras e gera uma relação superficial ou falsa,
impossibilita a espontaneidade e a ressonância, a relação que se estabelece de self para self.
A fala de Carolina mostra bem isso:
...para se aprofundar os vínculos é preciso trabalhar os conflitos. Percebi que as
pessoas puderam compreender e acolher melhor essa questão que parecia ter
ficado difícil de entender para algumas pessoas na aula passada.
Outro momento que exigiu nosso respeito e acolhimento foi quando Mateus decidiu
sair. Conversamos e ele me falou de seu incômodo, pois tinha vontade de chorar em alguns
momentos e não queria fazê-lo. Chegamos a conversar sobre as dificuldades que os
homens enfrentam pela educação que os obriga a conter a emoção, as lágrimas, os
movimentos. A tão conhecida frase “Homem não chora!”, pelo que tenho observado com
meus educandos, vive ecoando em suas vidas, estejam conscientes ou não disso. Mas
deixei-o à vontade para decidir se deixaria ou não o Curso. Decidiu deixá-lo, comunicando
isso ao grupo, que, mesmo estimulando sua permanência, acolheu sua decisão. No entanto,
voltou na aula seguinte, sendo calorosamente acolhido por todos.
Mateus, como os outros três homens do grupo, foram mostrando corporalmente, em
suas falas e relatos uma mudança visível: a sensibilidade, a expressividade e o acolhimento
aos companheiros de ambos os sexos passaram a fluir com uma naturalidade inexistente no
início do trabalho. A relação entre os homens se tornou mais descontraída, foram se
permitindo expressar afeto, e o preconceito de abraçar outro homem foi sendo superado.
2.4. A percepção através do movimento corporal de nossa postura diante da
vida e de novas possibilidades
Como o caso citado anteriormente, o de trabalhar corporalmente a flexibilidade
diante de pessoas diferentes e situações do dia-a-dia, ou seja, “o jogo de cintura”, a
254
Bioexpressão procura oferecer vivências que facilitem a percepção de como nos colocamos
diante da vida.
Uma das atividades que permitem essa percepção é o diálogo corporal. Nesta
atividade, sem qualquer verbalização, deixamo-nos fluir em sintonia com um(a)
parceiro(a). As palmas das mãos podem estar unidas ou não. Peço que alterem o
movimento algumas vezes, possibilitando que ora um ora outro componente do par oriente
os movimentos. No início, pela dificuldade de manter o contato visual, é comum unirem as
palmas e manterem os olhos fechados. A idéia é que cada um possa experienciar a
possibilidade de orientar e de ser orientado, percebendo-se em cada situação. Ao mesmo
tempo, trabalhamos com os limites, pois, os movimentos devem poder ser acompanhados
pelo par, não se exigindo do outro o que não pode ser dado, e também, mostrando ao outro
até que ponto se pode ir sem desconforto. A vivência deste momento deve ser prazerosa,
não mecânica, mantendo-se a respiração e a sintonia com o par. Há uma tendência inicial
para movimentos quase acrobáticos sem conexão com o sentimento, o que vai se
modificando à medida que a ponte energética entre o mesoderma e o endoderma se
restabelece, como também maior contato visual quando os três reservatórios de energia se
integram.
Nas partilhas, os participantes podiam expor sua dificuldade de abrir mão do
controle ou, ao contrário, de guiar o movimento. Os três depoimentos selecionados
exemplificam isso:
Cristina: Foi interessante eu saber reconhecer o meu limite e o limite do outro. Foi
uma experiência nova.
Renata: Para mim foi difícil assumir o comando. Preferi me deixar levar.
Angélica: A atividade dos limites também me possibilitou constatar e refletir sobre
como me relacionei com a colega. Embora tenhamos alternado a posição de
movimentos, percebi que tal procedimento, aparentemente democrático, não o era,
uma vez que impus minha vontade, sem respeitar o querer da colega. Acho que esta
atitude revela o quanto podemos estar envolvidos com falsas percepções:
pensamos que somos democráticos, mas na verdade exercemos a tirania.
255
O depoimento de Angélica me lembrou a observação de Romel Costa. Segundo o
autor, o indivíduo é fundamentalmente a sua maneira emocional de funcionar, o que se
sobrepõe às idéias e ideologias que ele tem sobre si mesmo e a vida. E exemplifica: um
indivíduo basicamente fascista em sua identidade pode considerar-se basicamente
democrático. “Conseqüentemente, irá imaginar que fascistas são os que estão em
desacordo com ele. O autoritarismo passa então a ser vivido como sendo a verdade
democrática” (1990, p. 596).
Também a dança e a música são formas significativas de expressão, que podem se
aliar às vibrações vocais ou ao canto se enriquecendo em sua qualidade expressiva. Afirma
Renato Magalhães Pinto que “as vibrações rítmico-expressivas da música têm profundo
efeito sobre o ser e colaboram na descoberta dos ritmos do próprio corpo, nas relações com
o meio, com os objetos, e as ações coletivas” (1997, p. 85).
As várias formas de dança possibilitaram a percepção de si, da energia fluindo, da
possibilidade de superar limites. “Dançar significa expressar-se livremente, deixar as
emoções fluírem. É o contato consigo mesmo e, às vezes, com o outro, com seu ritmo e o
ritmo do outro. (...) é permitir-se ser lúdico” (Alves apud Pinto, 1997, p. 42).
Pedro ficou meio desorientado ao sentir pela primeira vez a energia fluindo com
mais intensidade, após uma seqüência que culminou com uma dança em que a energia
podia ser sentida circulando, ficou agitado e assustado. Orientei-o no sentido de fortalecer
sua base e permitir, respirando, que a energia fosse se equilibrando. Logo se sentia melhor.
Ele relatou:
Nesta aula, pude sentir, de uma forma intensa e única, algo que nunca havia
sentido antes. (...) Muitos já haviam falado em energia, em força ou coisas
similares e eu, apesar de respeitar as experiências dos colegas, não compreendia
muito pelo fato de nunca ter passado por nada parecido. (...) Ao final da vivência,
houve uma troca de abraços. Nesta troca, procurei passar um pouco daquela
energia que estava sentindo. Era uma energia tão grande a que circulava pelo meu
corpo, que eu abraçava cada pessoa com uma intensidade que me permitia passar
parte daquela energia para a outra pessoa. O mais difícil foi quando não tinha
mais ninguém para abraçar. Eu queria ficar ali abraçando todo mundo! E tem uma
256
coisa interessante: eu nunca tinha abraçado ninguém daquele jeito! Na maioria
das vezes, eu me deixava abraçar, não abraçava, nem sentia tanta satisfação com o
abraço. Continuei me sentindo muito “energizado” e com tanta força contida que
meu corpo estava inquieto e sentia formigamentos por todo o corpo. Estava tão
difícil controlar aquilo, que eu tive até dificuldade de ficar parado e sentar no
círculo. Até que a professora me ajudou com alguns procedimentos, que foram de
suma importância para que eu me sentisse mais leve, embora tenha continuado
meio eufórico. O mais interessante é que eu estava passando por tudo aquilo e não
conseguia acreditar no que estava acontecendo comigo.
O bem-estar sentido com as danças individuais ou grupais, que podem se aliar à
brincadeira para a descontração ou a vivências de centramento, de grounding, de
meditação ou de expressão, sempre é expresso:
Eduarda: Me senti muito bem com a dança da força, parece que consegui me livrar
de muita coisa e a cada pisar, o mal estar que sentia ia passando. Ao final me
sentia mais forte, as pernas bem firmes. Adorei esta atividade!
Clara: Me despertou prazer a dança com orientação para o toque em diferentes
partes do corpo com o grupo. O brincar ficou explícito juntamente ao estímulo
corporal. Achei interessante principalmente pelas inúmeras possibilidades de
utilização da brincadeira. Encerro com Goethe: “O direito de expressão é o
princípio e o fim de toda arte”.
Cláudia: Senti liberdade com a dança do esquizofrênico
82
. Isso teve um valor
especial em meio às muitas responsabilidades que tenho vivido.
Carolina: Durante a dança de saudação aos pontos cardeais tive a sensação de
estar fazendo uma meditação, o que mobilizou uma espécie de quietude interna.
82
A intenção desta dança é permitir que se criem movimentos incomuns, como se momentaneamente nos
afastássemos de qualquer vínculo com a realidade.
257
A dança nos faz entrar em contato com a pulsação, com o prazer, podendo nos
chamar à interiorização e à meditação, ou permitir que nos exteriorizemos em direção ao
outro; tem o poder de nos conectar com nossa força, com nossas raízes e com nossas asas.
A linguagem poética de France Schott-Billmann bem expressa o mistério e o poder da
dança:
Pode existir uma história de amor mais bonita que o segredo contado ao
dançarino pela dança? O ser humano não está nunca sozinho: o universo, os
outros, os antepassados, as palavras, os ‘deuses’, enfim, o Outro faz parte dele
porque eles aí ressoam. A dança é a encarnação se sua relação com o Outro,
onde os dois pares se chamam-respondem em uma pulsação infinita e, de seu
entrelaçamento rítmico, fazem nascer a energia vital
83
(s/d, p. 257).
2.5. Teoria: uma sustentação necessária para novos vôos
A importância da teoria foi citada muitas vezes, como ela tornava mais claro o
entendimento do porquê fazer determinados exercícios e o porquê das sensações
despertadas. Por outro lado, teoria e prática aliadas traziam a segurança de saber que
investir em mudanças tem um significado muito maior do que pode parecer à primeira
vista. O que estávamos vivenciando não era um passatempo, mas uma transformação em
busca de melhor qualidade de vida e de uma educação mais “saudável”, eram novas
possibilidades de compreensão.
Cristina: Foi muito proveitosa a parte teórica. Aprender o que é ludicidade me
deixou bastante alegre por saber que eu posso passar para meus alunos uma nova
aprendizagem. Me sinto mais segura com os dados teóricos que estamos
trabalhando.
Paula: A teoria e a prática aliadas me possibilitaram a melhora de minha
compreensão sobre a ludicidade em outra dimensão, por sinal bastante diferente
da que tinha em mente. (...) Toda essa discussão teórica me é de grande
importância, pois desta forma vou adquirindo compreensão e conhecimento do
83
Tradução pessoal.
258
verdadeiro significado de minha prática pedagógica, enquanto colaboradora da
formação de seres humanos.
Carolina: Em se tratando do corpo, acho que existe um tipo de comunicação não
verbal vivenciada pela experiência da plenitude da ludicidade que permite ao
aluno compreender, antes com o corpo, depois com o racional, o conteúdo
passado.
Renata: Foi muito importante estudar Reich. Também ficou claro para mim como e
porque o trabalho corporal nos faz perceber e sentir como está nosso corpo e que
através da alternância do contrair e relaxar é que chegamos ao equilíbrio.
Mariana: Quando estudamos os conceitos reicheanos, percebi que a compreensão
teve dois motivos: sua forma clara de explicar e as vivências anteriores à teoria.
Mesmo que não se compreenda muito “racionalmente”, se sabe no corpo do que
você está falando.
Se analisarmos os depoimentos dos participantes, podemos observar, como afirma
Maurice Tardif, que todo trabalho humano exige um saber e um saber fazer. As teorias, os
saberes ganham forma através dos educadores que as produzem e assumem, “não existe
um trabalho sem um trabalhador que saiba fazê-lo, ou seja, que saiba pensar, produzir e
reproduzir as condições concretas de seu trabalho” (2000, p. 121).
O saber só se concretiza na medida em que dele nos apropriamos e, para que isso
ocorra, ele precisa ser internalizado através da nossa própria experiência.
2.6. Dificuldades e descobertas
Dificuldades e descobertas não nos faltaram. Fazem parte da experiência de se
encontrar, de se conhecer, de olhar a vida com um novo olhar.
Em uma de nossas aulas, uma atividade nos possibilitou ampliar bastante a visão do
corpo, como ele é “usado e abusado”. Discutimos três temas: o corpo na moda, na mídia e
na escola. Formamos três grupos e cada um refletiu sobre um dos temas. Quando abrimos
259
espaço para a troca, questões significativas foram colocadas e muitas dificuldades puderam
se manifestar e serem compartilhadas: o corpo excluído, o corpo enquadrado, a dicotomia
entre cuidar de si, atender a suas próprias necessidades e gostos e o agir para ser aceito
pelos outros (processo geralmente inconsciente); o desconforto e malefício que nos
impomos para seguir a moda, a perda da individualidade, entre outros. Com a análise da
influência da mídia, discutimos, novamente, como anulamos nosso modo de ser, nos
projetando em imagens que nos são passadas como desejáveis e bem sucedidas. O corpo de
consumo dissociado de um corpo que pulsa não poderia ser desconsiderado, a interferência
na auto-estima e a grande pergunta: esse corpo é realmente valorizado ou é um corpo-
vitrine, um corpo-cabide? Como essas imagens de corpo excluem ou incluem as pessoas
em padrões “desejáveis” ou não?
Como observa Romel Costa, devido aos bloqueios que vamos criando, a atividade
espontânea que, em si mesma, é produtiva e prazerosa não pode se expressar,
predominando a passividade, a imitação. Na tentativa de nos adaptarmos a uma cultura
emocionalmente perturbada, a neurose, conseqüência do encouraçamento, “vai evoluindo e
mudando de forma, cada vez tornado a sociedade mais cruel, desumana e antinatural; perto
do caos” (1990, p. 601).
O grupo que discutiu o corpo na escola mostrou uma visão bastante limitada,
talvez, por ter o grupo se constituído de participantes com uma visão ainda restrita quanto
às questões corporais. A tônica foi a disciplina, a preocupação com a postura dos alunos,
que poderia trazer problemas para a coluna, além de não propiciar boas condições para a
aprendizagem. Embora, na entrevista inicial, esta tenha sido a tônica da imagem do corpo
na escola, alguma mudança já ocorrera, pois, essas falas mobilizaram muito os outros
participantes, que frisaram serem corpo e psique uma totalidade que já podiam perceber, e
apontaram para a falta dessa visão nas escolas. Essas discussões que se travavam e as
experiências vivenciadas iam ajudando o grupo a lançar um novo olhar sobre o corpo
“social” e o próprio corpo, podendo trazer para seu dia-a-dia o que Reich percebera há
mais de cinqüenta anos atrás.
Segundo Reich, o educador que pensa o ser humano em seu funcionamento
energético vê a criança (e também o adolescente) como um organismo vivo e considera
suas necessidades vitais. Se, ao contrário, tem um pensamento mecanicista, “compele a
criança a entrar num mundo estranho e chama isso de ‘adaptação’, se for liberal, ou
‘disciplina’, se for autoritário” (1949/2003, p. 61).
260
Essa discussão puxou outros fios a ela relacionados: a vontade de mudar, o medo de
ousar mudanças, as dificuldades de lidar com cobranças da coordenação ou direção, o não
ver saídas para essa situação. As falas me deram a deixa para que mostrasse que a mudança
implica um movimento interno, no qual estávamos investindo. Se interiorizamos essa
percepção e investimos nesse processo, o impulso para tal surge, assim como os
argumentos e a postura que vão possibilitar o processo. Como alguns colegas apontaram,
quando temos uma sustentação teórica, a prática ganha força. Mas isso não basta, porque
como enfatiza Reich, “a pessoa encouraçada não pode se expressar imediatamente porque
seus impulsos naturais estão distorcidos, fragmentados, inibidos e transformados na teia
emaranhada de sua estrutura de caráter” (Idem, p. 79). Assim, existe um tempo necessário
para que tal impulso possa se manifestar, um tempo para que consigamos mobilizar nossas
couraças.
As reflexões que foram sendo tecidas com as vivências e com as emoções e
percepções que brotaram foram possibilitando novos olhares, estimulando e encorajando
ações, como mostram os depoimentos abaixo:
Clara: ...como estamos envolvidos involuntariamente no que a mídia e a moda
ditam! Propiciou também, a tomada de consciência de que é indispensável como
educadores assumirmos uma postura que valorize e respeite o corpo.
Ana: É a primeira vez que participo de um trabalho como este. Com vinte e seis
anos na sala de aula, agora é que aprendi que o educador pode e deve interagir
com seus alunos, e que, independente da disciplina que leciona, pode com suas
práticas ajudar no autoconhecimento de seus alunos, no seu cotidiano.
Renata: Estava me sentindo muito cansada, com dor de cabeça, mal humorada.
Achei que mesmo assim devia fazer todos os exercícios para melhorar. Não é que
melhorei? Foi muito bom do princípio ao fim. Agora sei quanto é bom mexer com
as energias e renová-las.
Pedro: O que tenho praticado em nossas aulas, tem me permitido um contato maior
com meu interior e me feito desenvolver mais minha sensibilidade, além do contato
especial com emoções e sentimentos de vários tipos, que têm me proporcionado
261
uma facilidade muito maior para desenvolver minhas relações com a família, com
meus amigos e, principalmente com meus alunos. Tenho convivido e trabalhado
com alunos de várias faixas etárias e tenho observado que estou mesmo
aprendendo a olhá-los com mais carinho e respeito, e estou sendo mais tolerante,
não apenas como profissional, mas também como pessoa.
Tiago: Agora as coisas estão melhorando. As mudanças deixaram de ser de fora
para dentro e passaram a ser do interno para os externo, e isso me faz ganhar mais
confiança. (...) Bem, Lúcia, em resumo, o Tiago que começou as aulas já não é
mais o mesmo. Olha, mudou algo lá dentro e foi pra melhor! Nossa! Como isso tem
me feito bem!
2.7. Olhar, ouvir e expressar: aprofundando o contato maior percepção de si
e do outro
Nos primeiros encontros, algumas dificuldades se mostravam com muita clareza,
dificuldades que o próprio grupo foi percebendo: parar para ouvir o que o outro estava
dizendo, e uma “compulsão” de falar que expressam, além de uma forma de defesa,
condições variadas: tensão, falta de espaço fora do grupo de se expressar, ansiedade,
dificuldade de ouvir, e falta de conexão com o sentir.
No início, não falavam dos seus sentimentos ou das suas percepções, falavam
generalizando. Inconscientemente fugiam do “risco” de se assumir, de se interiorizar
criando vínculos. Pedia que as pessoas falassem o que sentiam e não o que pensavam a
respeito disso, estimulando o processo de contato, o que só com a flexibilização de
algumas couraças e com o fortalecimento dos vínculos do grupo pôde acontecer com
espontaneidade. Seguem-se alguns depoimentos que mostram isso:
Clara: Estou me policiando para ouvir realmente, e não ficar estruturando o que
vou dizer sobre o que está sendo discutido enquanto o outro fala.
Érica: Não quis omitir nenhuma opinião sobre o texto que discutimos. Não estou
com vontade de falar ultimamente. Só quero sentir os momentos, as emoções. Às
262
vezes, acho que as pessoas forçam a barra e fazem um discurso falso, porque se
sentem obrigadas a dizer alguma coisa.
Cláudia: Precisamos ouvir mais e falar menos.
Tiago: ...a cada aula uma descoberta, eu estou muito satisfeito com o que eu vivi
na última aula. Nós estamos num nível de observação tão grande que já dá pra
conhecer numa simples reação o que o colega quis dizer ou agir, isso tem me
ajudado na sala de aula a observar mais meus alunos no seu comportamento, ouvi-
los melhor, procurar entender o que quiseram dizer, isso me dá uma interação
melhor com eles.
A cada encontro nos sentíamos mais irmanados em um mesmo espaço e tempo
muito nosso, tão nosso, tão de cada um que a expressão do que era sentido, mesmo
envolvendo dizer o que era difícil de ser dito, passou a se manifestar. O que estava
“engasgado” foi sendo expelido, medos e dificuldades se mostraram, o que foi sentido
como falta foi pedido, assim como emoções mais intensas advindas do contato físico
puderam ser olhadas de frente e compartilhadas. Alguns se permitiram, apesar do receio de
o fazer, falar ao companheiro o que os tinha incomodado, expressar seu desconforto. E o
mais importante, a meu ver, foi a maneira como essas expressões, de um modo geral, se
manifestaram e se entrelaçaram com a permissão e a conexão interna para a própria fala,
com a escuta das respostas, com o suporte e o acolhimento do grupo. Os dois depoimentos
revelam esse processo:
Tiago: Sem dúvida, nós estamos nos relacionando melhor. Por estarmos sentindo
melhor os outros, reconhecemos com mais facilidade cada necessidade, fragilidade
e os limites um dos outros.
Cristina: Senti que meu par não estava presente ao trabalho em dupla, parecia
preocupado com a hora e outro compromisso. Precisava lhe dizer isso. Ficou um
vazio.
A fala eminentemente intelectualizada e compulsiva foi dando lugar a uma fala
mais integrada. O sentimento ia se mostrando, a fala indicava um estar presente, dizendo
263
coisas que estavam acontecendo naquele momento, deixando o sentimento se mostrar. Se o
discurso verbal se apresenta dissociado da emoção presente, evidencia-se uma
fragmentação do funcionamento biofísico-emocional do ser. Com as atividades de
centramento, grounding e expressão, cada vez mais a energia podia fluir, e sentimentos,
pensamentos e movimentos podiam se integrar.
Muitas dificuldades e descobertas surgiram durante as vivências, como a
dificuldade de olhar o outro, e a descoberta de que uma máscara pode “cair”, mesmo que
momentaneamente, e mostrar um “outro” ser que sob ela se esconde. Um caso,
particularmente, foi muito significativo. Mariana manifestou que sentira falta do olhar do
companheiro para se integrar mais à atividade que consistira em travar um diálogo através
do movimento corporal. Lucas, seu par, é um homem falante, que se movimenta muito, e
que, por isso e por sua condição de professor de Educação Física, “vende” a imagem de
que tem facilidade de se relacionar com seu corpo e com o corpo de seus educandos. Mas
eu já observara que seus movimentos e sua fala não estavam conectados com seus
sentimentos. Falar e brincar em meio às vivências era uma de suas defesas, e sempre me
aproximava e lhe pedia que silenciasse. Aliás, a experiência tem me mostrado que devo
ficar atenta a quem fala muito ou se movimenta de maneira muito exagerada. De quem
afirma que não tem dificuldades de trabalhar com o corpo e supervaloriza a relação afetiva.
Com a fala de Mariana, ele se sentiu mobilizado para falar de sua grande
dificuldade de se mostrar, de se conectar pelo olhar, de se permitir perceber o próprio
corpo, da dificuldade de acompanhar as atividades de ritmo, que trabalhamos muito. Falou
do corpo muito tolhido durante a infância, de como seu pai era rígido, de sua preparação
para ser padre, do tapa na boca que recebeu de seu pai por ter, inocentemente, cantado,
ainda criança, uma canção de candomblé, e concluiu: Preciso me reeducar, me permitir
sentir de fato, mas não sei como fazer isso.
Ficou visível o quanto foi difícil para ele, naquele momento, despir a máscara que
era sua grande proteção, mas o quanto foi importante ter-se dado permissão de se mostrar,
de se expor. Pareceu-me estar diante do menino amedrontado e desejoso de carinho. E ele
o recebeu, naquele momento, através dos olhares, e na saída, quando abraços o
envolveram.
Como afirma Boadella (1985/1992), o poder falar da experiência vivida (sounding)
e ser ouvido de forma acolhedora pelo grupo; de poder olhar e se deixar olhar (facing),
264
numa relação que se estabelece de self a self, possibilita-se a integração entre sentimento,
linguagem e percepção.
A fala de Lucas mobilizou Clara, que disse estar se dando conta de que fala demais
de si e cria problemas para si mesma por isso: “Preciso criar algumas máscaras”. A
discussão sobre as máscaras foi importante para as questões de Clara e para o grupo que se
mobilizara muito quando este aspecto teórico foi abordado, o que me levou a preparar um
texto que tratava, especificamente, das três camadas da estrutura psíquica de Reich. Na
verdade, nem tudo pode ser desvelado de qualquer forma ou em qualquer ambiente, o que
pode pôr em risco a integridade do organismo. Reich pontua, em suas obras, que a
rigidificação das defesas, a incapacidade de se libertar das máscaras é o que se mostra
como uma característica neurótica. Ter a possibilidade de dar respostas diferenciadas de
acordo com o momento é ser capaz de administrar a vida de forma adequada, o que não
pode ser considerado, na visão reicheana, como criar máscaras. É saudável a nossa
possibilidade de sermos agressivos em certos momentos, de expressarmos nossa raiva, de
mostrarmos nosso lado sensível, enfim, de sermos o que somos de maneira apropriada.
Cabe observar que se mostrar muito expansivo, muito comunicativo, pode, também,
ser uma máscara. Pode ser uma dificuldade de entrar em contato consigo mesmo, uma
forma de ocultar a dificuldade de olhar para si. A fala também é uma forma de escamotear
emoções e sentimentos como observa Reich (1933/1998).
Algumas percepções começaram a surgir:
Eduarda: Confesso que me toquei que dificilmente eu sorrio por felicidade.
Renata: Tenho ainda dificuldade em olhar o olhar do outro. Os olhos revelam os
nossos verdadeiros sentimentos, medos paixões ainda que não expressemos
verbalmente o que sentimos. Mas, ao olhar alguns companheiros, senti-me
confortável, o que não aconteceu com o olhar de outros.
Pedro: Realmente, um olhar pode revelar muito e isso torna difícil o olhar
espontâneo. Mas eu já senti o que é fazer conexão com olhar de uma companheira
em uma vivência; (...) e pude, através dele, obter segurança e tranqüilidade...
Tiago: Ficou bem claro que nem sempre o outro está aberto para um certo tipo de
contato com você, as pessoas vivem momentos diferentes do seu.
265
Com a passagem do tempo, os participantes iam manifestando a necessidade de
entrar em contato com a própria espiritualidade, não em seu aspecto religioso, mas com o
fluxo de energia que abria passagem para o contato com o self, que iam sentindo ser
“tocado” em determinadas vivências. Nesses momentos, se sentiam com equilíbrio e força,
com maior capacidade de se olharem e se verem, de poderem silenciar e ouvirem a si
mesmos e o outro, de viverem a vida e de encontrarem sustentação em si mesmos.
Momentos de encontro com o sagrado em nós e de comunhão com o outro.
Somos condicionados a repetir e a temer a expressão de nossas próprias idéias
através de uma educação centrada na transmissão de informações e na ausência de diálogo.
Herbert Read, arte-educador citado em minha dissertação de Mestrado, confirmando idéias
defendidas por Reich, afirma suspeitar que a repressão da imaginação e do sentimento da
criança, e a priorização do pensamento lógico e racional “que violentam aqueles princípios
de graça, ritmo e justa proporção, implícitas na ordem do universo”, é a causadora de toda
ou, pelo menos, da maior parte da miséria do mundo. Miséria esta que não se refere apenas
a seu aspecto material, mas à impossibilidade de aquisição de outros bens fundamentais
para o ser humano: a individualidade, a dignidade, a expressão própria, entre outros. A
singularidade é um aspecto natural do ser humano, observa Read, “e tentativas de eliminar
as diferenças individuais, seja por educação ou por coação, poderia frustrar o processo de
crescimento do ser humano” (Pereira, 1992, p. 50-51).
A ausência do diálogo, a imposição de idéias, as críticas desqualificadoras e a
desvalorização da manifestação criativa acabam por gerar ou solidificar bloqueios que
impedem nossa expressão pessoal, seja de pensamentos, sentimentos ou ações. Isso se
mostra não apenas na linguagem verbal, mas, também, na linguagem escrita.
As dificuldades que foram observadas, ao longo do Curso, na expressão dos corpos
dos participantes da pesquisa e em suas falas, e a gradual superação de dificuldades se
manifestaram também na escrita de seus relatos de experiência. Alguns dos primeiros
relatos recebidos apresentavam uma descrição objetiva do encontro, traziam informações,
ou seja, não atendiam aos seus objetivos. Assim, procurei reorientar a prática dos relatos,
mas fui percebendo, com maior clareza, que a forma escrita também trazia revelações. A
rigidez corporal, os encouraçamentos se mostravam nos relatos “impessoais”, “frios”,
“técnicos”, “assépticos”. E fui percebendo, pela primeira vez, embora já houvesse
266
utilizado relatos antes em sala de aula, talvez pela intenção e atenção que a pesquisa exige,
que à medida que os corpos e as emoções iam se soltando, que a entrega ao trabalho
acontecia, a expressão escrita também se modificava; emoções, percepções e sensações se
derramavam no papel. A fluidez que ia se mostrando nos corpos, a conexão entre
pensamento e sentimento que se mostrava nos depoimentos orais, também estavam
presentes na expressão escrita. Comparemos alguns casos:
Ana/ primeiro relato: Cheguei a uma sala do prédio da UFBA com a colega
Renata. Os participantes já estavam sentados no chão e nos receberam dando-nos
as boas vindas. (...) De início a professora orientou um exercício para os pés e
pernas, em seguida...
Ana/ nono relato: Os “bioexercícios” feitos ontem para mim foram terapêuticos e
sinto meu corpo super disposto, nada me dói. Jóia. Quando começamos senti
relaxamento, mas não estava muito à vontade, pro final senti perfeitamente a
sensação de equilíbrio do corpo-mente.
Cláudia/ primeiro relato: Ao chegar às 8:25h, encontrei Lucia Helena
acompanhada por três participantes do curso, conversando tranqüilamente. As
atividades tiveram início, à medida em que os participantes iam chegando... (...)
Terminamos com dez minutos de atraso...
Cláudia/ décimo quinto relato: ...tenho enfrentado todas elas [dificuldades] em
benefício próprio, pois as aulas funcionam como uma terapia para mim. (...)
Percebi-me solta nos movimentos, o que já não é novidade para mim, nem para os
demais. Eles têm até comentado sobre minha evolução! Sinto prazer nas
atividades.
Clara/ primeiro relato: O trabalho inicial propiciou uma rápida integração de
todos. As dinâmicas escolhidas envolvendo ritmo, a socialização, sobretudo, a
forma de explicar cada atividade encorajou a participação de todos.
267
Clara/ décimo relato: Senti dificuldades, não consegui uma entrega total. Meu
corpo pedia acolhimento. Quando pude me abraçar, senti muita vontade de ficar
somente nesta posição...
A expressão própria, seja verbal ou não verbal, exige que haja contato, que haja
inteireza. Só quando conseguimos unir pensamento, sentimento e ação ela pode se
manifestar com toda sua força, sensibilidade e autenticidade.
Para que, posteriormente, seja feita uma síntese dos resultados obtidos com o Curso
de Extensão, apresento a seguir, a análise das avaliações feitas pelos componentes do
grupo ao final de nossas atividades.
3. Avaliação do curso de extensão pelos participantes da pesquisa
Ao final das sessenta horas previstas do Curso de Extensão, propus que os
participantes fizessem uma avaliação que me permitisse obter a visão geral desta primeira
etapa, e obter dados que orientassem as atividades que se seguiriam, uma vez que
havíamos decidido dar continuidade aos nossos encontros no semestre seguinte. A
avaliação constava de algumas frases iniciadas, que deveriam ser completadas pelos
componentes do grupo, que estão reproduzidas mais adiante.
Apresentarei uma síntese de cada tópico apresentado, transcrevendo algumas falas
que sejam representativas do que me foi trazido pelos participantes da pesquisa. Todos eles
responderam a avaliação, com exceção de Angélica que se afastou logo após nosso último
dia de aula. Embora Mateus também tenha se afastado ao final do Curso, enviou-me a
avaliação por um colega.
3.1. Observei algumas mudanças em mim quanto a ...
Em todas as colocações dos participantes da pesquisa quanto às mudanças
observadas em si mesmos, está a percepção do próprio corpo, sentimentos e necessidades
que se manifestaram. Também expressaram mudanças quanto à forma de se relacionarem
268
com o outro, o que inclui a relação com seus educandos. As mudanças percebidas pelos
participantes da pesquisa se mostram nas falas abaixo:
Tiago: Observei mudanças em mim quanto à observação do corpo, o que ele
sinaliza, (...) e um pouco mais capacitado a entender meus alunos.
Carolina: ... ao posicionamento de cuidar mais do meu corpo no dia-a-dia; alguns
insights que tive sobre meu processo pessoal ...
Clara: ... à gradativa percepção dos meus desejos, reconhecimento do meu corpo
para a comunicação comigo mesma e com o outro e, principalmente, olhar as
pessoas e suas interações sem fazer julgamentos prévios.
Paula: ... à observação do comportamento do meu próprio corpo e do
comportamento de outras pessoas que comigo convivem, no trabalho ou no meio
familiar.
Mariana: ... à forma de me expressar, de dizer ao outro o que me incomoda sem
desrespeitá-lo. Também quanto à coerência de minhas ações em relação a meus
valores e sentimentos.
Ana: ... à tolerância para com meus alunos. (...) Também mudei em minha postura
para com eles, participando, no momento certo e dentro dos limites, das suas
brincadeiras, buscando uma boa integração do grupo.
Renata: ... à postura na relação com meus alunos em sala de aula. Pude observar e
compreender mais cada aluno pelos seus gestos, olhares, enfim, sua expressão
corporal.
Cláudia: ... à liberdade de expressão do corpo. De início, meu corpo era
completamente “travado”, mas, no desenvolvimento do curso, fiquei tão solta, que
me assustei com a transformação ocorrida.
269
Pedro: ... às relações interpessoais com os amigos, a família e, principalmente, com
meus alunos, além das mudanças relacionadas à percepção de mim mesmo (do
meu corpo e dos meus sentimentos).
As mudanças, como podemos observar, estão relacionadas, principalmente, às
transformações pessoais, que se manifestaram, também, nas relações interpessoais. Na
prática profissional, a mudança mais percebida pelos participantes da pesquisa, se mostrou
na relação com seus estudantes, com os quais estabeleceram um contato de maior
proximidade, tolerância e afetividade.
Stanley Keleman observa que, geralmente, as atitudes são consideradas um
conjunto mental, mas vão além disso, pois têm componentes musculares, emocionais e
mentais. “Se eu tiver atitudes rígidas, elas não definirão apenas o meu sistema rígido de
crenças: definirão também o sistema rígido de sentimentos e o sistema rígido de ações
pertencentes ao meu rígido conjunto corporal. Não é apenas meu pensamento que está
densamente contido. É o meu corpo todo que não pode se mover livremente, que não pode
sentir livremente” (1975/1996, p. 42). Assim, à medida que couraças musculares foram se
flexibilizando, algumas barreiras foram sendo superadas, permitindo que novas ações,
sentimentos e pensamentos se manifestassem.
3.2. Fazer o curso significou ...
Todos os participantes reforçaram em suas falas que haviam ocorrido mudanças em
relação a percepção de seus corpos e de seus sentimentos, assim como uma nova maneira
de convivência não apenas com seus educandos, amigos e familiares, mas, também,
consigo mesmos, como exemplificam os trechos abaixo:
Tiago: Fazer o curso significou melhorar minha atitude em relação ao aluno,
olhando-o de outra forma...
Eduarda: ... o renascimento de uma Eduarda que andava adormecida. Uma nova
relação comigo mesma.
270
Clara: ... sentir que sou e posso muito mais do que imaginava. Significou, também,
encontrar, na dinamicidade dos movimentos corporais, relações com as situações
do cotidiano.
Érica: ... o pontapé inicial para que eu promova as mudanças que preciso realizar
na minha vida.
Significou, ainda, uma nova visão da prática pedagógica e a aquisição de
conhecimentos para a vida profissional e pessoal, como mostram as falas que se seguem:
Paula: Fazer o curso significou maior crescimento enquanto pessoa (compreensão
e conhecimento), bem como a possibilidade de melhorar minha prática
pedagógica.
Lucas: ... um novo conhecimento para minhas aulas e para minha vida.
Carolina: ... a certeza de que é possível desenvolver esse tipo de trabalho, o que é
muito bom; ser mais afetiva com as pessoas; ...
Renata: ... uma abertura de conhecimentos sobre o corpo, o lúdico, o prazer, a
alegria...
Cláudia: ... me conhecer melhor, prestar atenção na linguagem do meu corpo,
respirar conscientemente. Significa, ainda, uma experiência nova e inovadora no
sentido pedagógico.
Pedro: ... uma experiência riquíssima para a pessoa e o profissional, pois,
proporcionou a visão do quanto é importante aprender o outro e respeitar sua
individualidade, independente dos estereótipos e dogmas impostos pela sociedade.
Mateus: ... uma nova expressão de Educação.
Fazer o Curso significou para os participantes da pesquisa, em síntese, lançar um
novo olhar sobre a sua relação consigo mesmos, com o outro, com a vida, com a sua
271
prática pedagógica, com a ludicidade e o prazer, o que só pôde acontecer devido à
participação efetiva de todos nós no processo desenvolvido. Como afirma Paulo Freire, na
situação educativa, educador e educandos precisam assumir “o papel de sujeitos
cognocentes, mediatizados pelo objeto cognoscível que buscam conhecer” (1992, p. 28).
3.3. Gostei de ...
A tônica das complementações a este item foi a possibilidade de vivenciar as
experiências que o Curso proporcionou e a aprendizagem conquistada. Um aspecto
mencionado por quase todos os participantes foi a “cumplicidade” que se estabeleceu no
grupo, a relação de respeito e confiança, e a possibilidade de falar das dificuldades
vivenciadas no dia-a-dia e a percepção de que elas são comuns em nossas vidas, o que
abranda o sentimento de solidão tão comum em meio ao processo de massificação com que
nos defrontamos atualmente. Algumas falas exemplificam isso:
Cláudia: Gostei de fazer parte do grupo, conhecer novas pessoas com diferentes
experiências de vida e aprender uma nova proposta de trabalho, utilizando-se do
corpo e não somente da fala.
Tiago: ... compartilhar algumas experiências que me fizeram sorrir e chorar. (...)
Compartilhá- las com os colegas foi de grande valia.
Mateus: ... saber que existem pessoas com dificuldades parecidas com as minhas...
Mariana: ... ter experimentado o diálogo silencioso com vários colegas e perceber
que, apesar das diferenças de cada um quanto a sua forma de ser e de se expor
frente ao outro, é possível a troca, a interação, a partilha, o respeito.
Renata: ... vivenciar as experiências durante o curso, do contato com os
companheiros, da integração e da aprendizagem que fiz.
272
Clara: ... (...) encontrar um grupo onde pude dar e receber carinho; ter a
possibilidade de expressar meus sentimentos, seja por palavras ou movimentos.
Carolina: ... sinceramente, de tudo.
Eduarda: ... me amar, fazer novos amigos, a nova proposta pedagógica, a seleção
musical, o cuidado da professora para com o grupo, o instrumento de avaliação,
enfim, tudo.
Érica: ... tudo. Tudo foi muito significativo para mim. As dinâmicas, as trocas de
experiências e, principalmente, os depoimentos nos quais pude verificar que
algumas dificuldades não são só minhas.
Dentre as muitas respostas quanto ao que os participantes haviam gostado, ficou em
evidência o significado do grupo, se sua importância para que se criasse um espaço de
partilhas, de crescimento, de confiança, de aprendizagem, de experimentação de novas
possibilidades. Como afirma Madalena Freire, na convivência e partilha do fazer, “deixam
de ser um amontoado de indivíduos para cada um assumir-se enquanto participante de um
grupo, com um objetivo mútuo”. Dessa forma, exercitam sua fala, sua opinião, seu
silêncio, e percebem-se com sua identidade e suas diferenças (1992, p. 59).
3.4. Não gostei de ...
Muitos participantes da pesquisa revelaram seu desejo de que o Curso fosse mais
longo e o incômodo quanto às muitas dificuldades institucionais que enfrentamos. Alguns
poucos manifestaram seu desagrado em relação a atitudes de colegas em situações de
conflito, e dois participantes não preencheram esse espaço.
Carolina: Não gostei de ter acabado, pelo menos com a freqüência que era...
Paula: ... da duração do curso. Poderia ser mais extenso.
273
Cláudia: ... ter faltado a algumas aulas do curso. Tive três oportunidades a menos
de me sentir bem.
Lucas: ... das mudanças de espaço, especialmente quando éramos pegos de
surpresa...
Mateus: ... de trocar de sala constantemente e da falta de cuidado da Instituição
com o curso.
Eduarda: ... de momentos em que a intolerância dos colegas se tornou maior que os
laços de amizade. Isso me incomodou muito.
Ana foi franca e objetiva em relação a seu desagrado: Não gostei de acordar aos
sábados no mesmo horário dos outros dias.
Neste item, ficou evidente o desejo de quase todos os participantes de que
continuássemos as atividades, o que, pôde ser atendido, embora com outra configuração.
3.5. Penso que foi importante ...
Alguns participantes destacaram a forma como o trabalho foi orientado e a minha
segurança ao fazê-lo para que os resultados pudessem ter sido positivos. Considero
importante observar que o domínio que adquirimos para desenvolver atividades lúdicas
não nasce da noite para o dia, é conquistado através do estudo, da transformação interna,
da prática, do empenho, de erros e acertos, e, sobretudo, através do cuidado amoroso com
aqueles que estão sob nossa orientação, o que fazia questão de pontuar sempre. As falas
abaixo exemplificam:
Paula: Penso que foi importante a firmeza com que a coordenadora do grupo,
sabiamente, conduziu os trabalhos.
274
Mariana: ... a forma acolhedora com que a orientadora conduzia o trabalho, o
carinho e o respeito que manifestava indistintamente a todos os participantes, e a
serenidade e lucidez com que agia face aos conflitos.
Tiago: ... a certeza que você tinha do trabalho que executou para a sustentação
energética do grupo.
Também expressaram a importância do Curso para aquisição de novos
conhecimentos, para a vivência das atividades, e a possibilidade de promoverem algumas
mudanças em suas vidas e em suas práticas pedagógicas, como os exemplos abaixo
mostram:
Cláudia: Penso que foi importante o conhecimento adquirido durante os encontros
e todas as atividades realizadas no decorrer do curso.
Pedro: ... (...) Significou muito para mim, haja vista que muita coisa em minha vida
mudou a partir desse curso.
Érica: ... para todos nós essa experiência incomum. Com certeza, o nosso olhar
sobre a prática pedagógica mudou, mesmo que ainda não consiga atuar sobre ela
modificando-a.
Mateus: ... tudo que aconteceu. Com certeza, terei resultados e acertos ao longo de
minha jornada.
Clara: ... colocar em prática minha base e consciência interior unidas à
flexibilidade necessária ao crescimento.
Eduarda: ... todo meu processo de evolução: a minha depressão, a rejeição ao
trabalho, depois a aceitação e a superação dos preconceitos.
A leitura das respostas dos educadores quanto ao que tinha sido importante para
eles no Curso, veio confirmar o que vinham expressando, em seus últimos depoimentos e
relatos, quanto à percepção de que estavam vivenciando um processo de crescimento e
275
apreendendo novos conhecimentos que estavam lhes trazendo novas possibilidades, assim
como estavam podendo observar que a postura de quem orienta a prática pedagógica, seu
cuidado e envolvimento com o seu fazer não passam despercebidos.
3.6. Quanto aos estudos teóricos ...
Essa questão já vinha sendo pontuada nos relatos de experiência e nos depoimentos,
mas, colocada como um tópico da avaliação, me trouxe uma visão melhor de como os
participantes interagiram com a teoria, indicou a necessidade de retomar alguns pontos que
suscitaram dúvidas e pensar sobre ajustes na dinâmica de estudo dos textos. Alguns
participantes frisaram o quanto foi significativo o contato com os estudos sobre ludicidade,
organizando os conceitos que traziam ao iniciarmos o Curso. Os exemplos transcritos
mostram as opiniões e indicações dadas:
Paula: Quanto aos estudos teóricos, os considero de suma importância,
fundamental mesmo, para a compreensão de tudo quanto realizamos em nossos
encontros.
Lucas: ... super importantes. Sem o conhecimento teórico, não haveria condições
de levar a prática para nossas aulas.
Clara: ... significativos, sobretudo, por estarem sempre sendo relacionados com a
vida, com o nosso sentir, o conviver.
Isabela: ... há muito a aproveitar. Conheci teorias novas que podem ser aplicadas
no nosso dia-a-dia.
Tiago: ... acho que não exploramos tudo que veio a nossas mãos, acredito que
existem pontos que precisam ser retomados...
Cláudia: ... foram necessários e eficientes. É sempre importante conhecer a origem
de novas teorias (...) Posso dizer que aprendi algo novo.
276
Pedro: ...gostaria de destacar os estudos sobre ludicidade, que me ajudaram a me
aprofundar mais esse assunto e, a partir daí, trabalhar melhor esse aspecto em
minha prática profissional.
Cristina: ... foram interessantes, especialmente a parte sobre ludicidade e as
couraças.
Mariana: ... penso que uma alternativa também viável seria trabalhar com
dinâmicas de leitura para trabalhar os textos teóricos básicos, por sinal altamente
didáticos e muito bem elaborados.
Os estudos teóricos, como observaram os participantes da pesquisa, se fizeram mais
significativos por estarem aliados à prática e por gerarem a possibilidade de que eles
refletissem sobre essa prática, e de refazê-la a partir dessa reflexão.
Ampliar a visão da ludicidade e das possibilidades que ela traz para a sala de aula
foi outro aspecto considerado importante pelos componentes do grupo.
3.7. Em relação às vivências, considero ...
Os participantes foram unânimes em considerar as vivências significativas e
fundamentais para que tivéssemos chegado aos resultados obtidos. Alguns apontaram para
as transformações que se tornavam visíveis à medida que as couraças iam se flexibilizando
e resistências iam sendo superadas. Selecionei alguns trechos que exemplificam isso:
Tiago: Em relação às vivências, considero que foram a espinha dorsal do curso,
sem elas não obteríamos nem 10% do êxito que tivemos. As vivências chegaram a
ser momentos mágicos, sempre bem recebidas pelos colegas.
Cláudia: ... complementares aos estudos teóricos sem, contudo, se sobrepor a eles.
As atividades práticas eram a demonstração visível do processo de transformação
e aprendizagem por que passamos.
277
Clara: ... foram os momentos de auge da Bioexpressão, tanto para descobertas
individuais como para o fortalecimento do grupo, o que se tornava mais visível a
cada atividade.
Mariana: ... que foram bem seqüenciadas de modo a respeitar a gradual integração
do grupo. O fundo musical parecia existir para as práticas...
Paula: ... considero-as indispensáveis enquanto atividades que despertam a
importância do corpo em nossas relações com a vida.
Mateus: ... momento grandioso (...) Esse curso sem a parte prática não funcionaria
com tanta culminância.
A ênfase dada às vivências para o Curso ter sido significativo assim como a
valorização dos estudos teóricos têm, a meu ver, uma mesma causa: ambos traziam para os
educadores situações da própria vida, questões que tocavam cada um deles, que os
envolviam, enfim, que faziam sentido para eles.
Fanny Abramovich transcreve um trecho de Ivan Illich em que o historiador aponta
o caráter uniformizador da educação escolar, afirmando que a escola prepara para a
alienação da vida e alimenta a necessidade de ser ensinado. “Aprendida esta lição, as
pessoas perdem o incentivo de crescer com independência; já não encontram atrativos nos
assuntos em discussão: fecham-se às surpresas da vida quando estas não são
predeterminadas por definição institucional”. Complementando, a educadora observa que
os valores da condição humana, entre os quais o amor e a vida, “não estão em pauta no
colégio” (1985, p. 134).
3.8. Se pudesse mudaria ...
O desejo de mudança expresso com mais freqüência pelos participantes da pesquisa
estava relacionado ao tempo do curso como mostram as falas de Clara e Cláudia:
278
Clara: Se pudesse mudaria a carga horária. Gostaria que a Bioexpressão fosse
permanente. Mas reconheço todo aprendizado nessas sessenta horas...
Cláudia: .... prolongaria a duração do curso...
Quatro participantes não apresentaram qualquer desejo de mudança. Isabela
manifestou o desejo de mudar sua maneira de encarar os problemas e complementa:
... quanto ao curso, não acredito que precise mudar. Imagine que este, eu consegui
chegar ao final, e um final feliz!
Os participantes da pesquisa abordaram, várias vezes, uma questão que não pode
ser desconsiderada: sessenta horas-aula é muito pouco tempo para uma proposta que não se
restringe apenas à aquisição de conhecimentos e de técnicas, mas que busca um processo
de mudança interna, um processo de autoformação. A essa questão retornaremos adiante.
3.9. Outras observações e comentários
Este item possibilitou que aspectos não privilegiados nos anteriores pudessem ser
expostos pelos participantes da pesquisa. Foi um espaço, principalmente, onde deixaram
que o coração falasse e, no qual, ficou evidente que haviam ocorrido transformações em
suas vidas pessoais, como os relatos de experiência e os depoimentos já vinham
sinalizando. Isso é exemplificado nas falas abaixo:
Clara: A Bioexpressão marcou um novo período da minha vida. O início do curso
também foi o começo de uma nova fase, uma fase de mudanças e reestruturações
de conceitos, atitudes e percepções. (...) Hoje, sinto-me mais segura para decisões.
Consigo perceber o calor do sol, o canto dos pássaros, a minha respiração e, ao
mesmo tempo, pensar em tudo que está envolvendo minha vida.(...) Com o término
do curso, dou continuidade, com outro olhar, a esse importante desafio que é a
vida.
279
Eduarda: Gostaria de dizer que seu trabalho não foi em vão, me considero outra
pessoa, às vezes caio, mas consigo levantar sozinha. Isso já foi um grande
avanço...
Mateus: Você, com esse trabalho, tem muito a contribuir para a felicidade de
tantos outros. Tenha forças para lutar contra uma política que esmaga a expressão
de seu povo e o direito de navegar sobre seus sonhos e liberdade.
Paula: Agradeço a oportunidade de despertar para a compreensão e conhecimento
de meu corpo, de minha emoções e sentimentos.
Renata: (...) Houve bastante interação da professora com o grupo, assim como
entre os participantes. Apesar do espaço físico não ser muito adequado,
conseguimos superar as dificuldades. Fiquei muito satisfeita com a Bioexpressão.
Sinto-me mais consciente da necessidade de integrar corpo, mente, sentimentos e
espírito para minha formação integral como ser humano e ... divino.
Alguns participantes sugeriram que o Curso passasse a fazer parte do currículo dos
cursos de formação de educadores, outros que fosse sempre oferecido, o que denota que a
proposta foi considerada significativa para sua atuação no magistério, como exemplificam
as palavras de Lucas:
Seria importante que pudéssemos ter sempre este Curso sendo oferecido, ou que
fizesse parte do currículo das licenciaturas.
A fala de Cláudia, que se viu diante de tantos desafios e dificuldades, foi muito
significativa para mim:
O Curso foi uma experiência inesquecível. Gostaria de sugerir que o mesmo fosse
incluído no currículo dos futuros profissionais em educação e que pudesse constar
como uma disciplina dos cursos da FACED. Só assim um maior número de pessoas
teria acesso a tão rica experiência de vida e de trabalho.
280
Com o término do curso, analisando os relatos de experiência e depoimentos
apresentados pelos participantes da pesquisa ao longo dos meses em que estivemos juntos,
as avaliações do Curso feitas por eles, e contando ainda com minhas próprias observações,
pude constatar que havia um processo de mudança acontecendo, e que transformações,
embora pequenas, já começavam a se manifestar na prática pedagógica, algumas das quais
eu já pudera presenciar. Cabe retomar algumas questões teóricas fundamentais antes de
fazer uma síntese dos resultados observados ao final do Curso de Extensão.
Stanley Keleman nos oferece a compreensão de que não estamos presos ao nosso
passado, uma vez que temos a perspectiva de recriar nossa forma de ser. “A forma é um
processo lentificado. Parte do nosso processo formativo é construir novas formas que
manifestem o sentimento de nosso viver” (1975/1996, p. ). Como Wilhelm Reich, Keleman
admite que a estrutura que uma pessoa mostra no presente, mesmo que possa parecer muito
negativa, em algum momento da vida, foi necessária para salvaguardar sua identidade, para
lhe permitir lidar com o que lhe foi ou pareceu ser ameaçador. Mas o que se mostrou útil,
no passado, pode ser, agora, gravemente restritivo e, se for mantido, trará uma forma de
morte, a morte de sua expressão vital. Entretanto, Keleman, que nos mostra a possibilidade
de criar a realidade, enfatiza, que “a porta nunca está fechada. A formação do caráter está
enraizada no mesmo processo em aberto que nos forma enquanto corpos” (Idem, p. 53).
Vale lembrar que Paulo Freire afirma que é “na inconclusão do ser, que se sabe
como tal, que se funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se
tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados” (2004, p. 58). Assim,
o que faz com que nós, adultos, nos tornemos educáveis não é a educação em si, mas a
nossa consciência da inconclusão.
Esta visão de que estamos sempre nos formando ao longo da vida traz um novo
impulso para os investimentos no processo contínuo de autoformação. E essa consciência
de que estamos sempre nos formando, sempre inconclusos podia ser observada nos
educadores após esse tempo em que estivemos juntos.
É importante, porém, que retomemos outra questão já considerada no segundo
capítulo. Como vimos, a plenitude vivenciada nas atividades lúdicas pode ser
compreendida como uma “experiência de pico”, ou seja, como um estado alterado de
consciência que nos permite transpor os controles do ego e nos entregarmos à vivência do
aqui-agora. Esse contato é, na maioria das vezes, efêmero, mas o importante é que permite
281
que entremos em contato com nosso self, criando possibilidades de transformação em
nossa vida. Observa Cipriano Luckesi:
as atividades lúdicas ordenam ou reordenam o campo de nossa energia e, por
isso, em momentos fugazes ou mais duradouros, nos permitem um contato com
nossa Essência, por menor que seja. Com o tempo e com repetidas experiências
plenas, para além do ego, vamos podendo manter um contato mais permanente
com nossa Essência, vamos sendo capazes de sustentar essa experiência (2002,
p. 50).
O que quero sublinhar é que somente a repetição desse contato com nosso self
(essência ou cerne biológico) nos traz a possibilidade de criar uma nova forma, de gerar
transformações, o que as atividades lúdicas podem facilitar. Segundo Ken Wilber (2000),
esses estados alterados de consciência precisam se tornar estruturas ou características para
que contribuam para o desenvolvimento do ser humano. Assim, uma oficina com algumas
horas de atividades lúdicas pode trazer grande bem-estar e alegria, diria mesmo, que pode
promover um encontro do indivíduo consigo mesmo, mas essa ação seria passageira, não
se poderia esperar um efeito profundo e duradouro.
As sessenta horas de Curso, nas quais vivenciávamos regularmente a ludicidade,
possibilitaram a cada um, em graus diferenciados, a flexibilização das couraças, a liberação
de energia contida nestes bloqueios, a (re)organização de seus campos energéticos e
momentos de contato com seu self.
Como observei anteriormente, não posso negar que, ao perceber as resistências de
alguns componentes do grupo quanto a minha ida a suas salas de aula, fui invadida por um
grande sentimento de frustração, mas pude serenar minha própria ansiedade, ao analisar
com cuidado o material de que dispunha e retomar minhas observações quanto às
mudanças visíveis nos participantes da pesquisa: a fluidez dos corpos em movimento, antes
rígidos e pouco expressivos; a respiração mais profunda em lugar da respiração superficial
e eminentemente torácica; a fala conectada com os sentimentos, em substituição à
verborragia quase compulsiva dos primeiros momentos; o silêncio se mostrando quando
antes havia palavras e risos que escamoteavam o constrangimento e a ansiedade; os olhos
fechados, o rosto sereno e a entrega nos momentos de relaxamento, o que era antes tão
difícil; a sustentação do olhar que chegou a lhes parecer impossível... Nem tudo podia ser
282
visto de forma tão clara por mim, mas os depoimentos, os relatos de experiência, os diários
e as avaliações me possibilitaram “ver” outros resultados, alguns dos quais minha
percepção também vislumbrava.
Naturalmente, nem todos os participantes da pesquisa manifestaram as mesmas
transformações, nem a mesma profundidade nas mudanças ocorridas. Essas transformações
repercutiram, especialmente, na vida e nas relações pessoais. Alguns aspectos, que foram
surgindo gradualmente, se mostraram, de alguma forma, presentes em todos, e nas diversas
situações de vida, incluindo, também, a sala de aula:
atenção à própria respiração, preocupação em olhar para si e se cuidar; expressão
verbal e corporal mais conectada com o sentimento; percepção do próprio corpo;
possibilidade de dizer ao outro o que trazia incômodo sem perder o equilíbrio;
possibilidade de olhar e ouvir o outro com uma atitude mais cuidadosa e
acolhedora; uma nova e mais ampla compreensão de ludicidade; nova compreensão
da relação educador-educando e de que um grupo pode se constituir espaço de
crescimento, confiança e cumplicidade.
Outras transformações, embora não tenham sido apontadas por todos, se
manifestaram em grande parte dos educadores que realizaram o Curso:
acolhimento às próprias dificuldades, o que é o primeiro passo para lidar com elas
e superá-las; conscientização da responsabilidade pessoal para a transformação da
prática pedagógica; percepção das múltiplas possibilidades que a ludicidade nos
proporcionam e sua utilização; prática de exercícios de respiração, relaxamento e
grounding, entre outros, com a finalidade de buscar equilíbrio e bem-estar,
especialmente, em momentos mais conturbados; respeito aos próprios limites e aos
do outro; superação de alguns preconceitos quanto à autoridade na relação
educador-educando; compreensão da amplitude e importância da postura do
educador para uma prática pedagógica que seja formativa e, não, apenas
“informativa”.
Ficou evidente para todos os participantes da pesquisa que os resultados obtidos
foram possíveis pelo comprometimento de todos nós, pelas vivências e teorias que se
283
complementaram, pelos limites dados, quando se fizeram necessários, com acolhimento e
respeito; enfim, ficou evidente que não há crescimento sem participação efetiva e afetiva,
sem envolvimento, sem auto-expressão, o que foi facilitado e estimulado pelas atividades
lúdicas.
4. Prolongamento das atividades: novas possibilidades e mudanças
O Curso de Extensão terminou, como previsto, no dia 27 de maio de 2002.
Conforme havíamos combinado, no segundo semestre, no dia 27 de julho, nos
reencontramos para dar continuidade às nossas atividades. Quase todos os participantes
estavam presentes. Angélica e Mateus, como disse anteriormente, foram os únicos que se
afastaram definitivamente do grupo sem qualquer justificativa.
Foram seis encontros com duração média de quatro horas, de julho a novembro,
mês em que realizamos dois encontros.
4.1. Recomeçando...
O primeiro encontro do segundo semestre foi marcado pela alegria e pela emoção
do reencontro, o que foi expresso por todos. Havia planejado uma vivência para esse
momento, mas tive o cuidado de deixar tempo suficiente para as partilhas, as
manifestações de carinho, a apresentação de uma proposta de trabalho e a organização
conjunta dos encontros seguintes.
Considero que o tempo de afastamento foi importante para que “metabolizassem”
as experiências vividas e percebessem o que tinha sido apreendido após o Curso. Todos os
participantes falaram de ganhos obtidos com ele, o que se evidenciava mais quanto às
transformações pessoais, embora também tenham sentido os seus reflexos na prática
pedagógica, como mostram os exemplos abaixo:
Clara: (...) A gente acaba dormindo e acordando sem pensar no que está
acontecendo, no que está sentindo. Acho que aqui foi um espaço de eu estar
fazendo isso, de estar percebendo o que eu tenho sentido, transformado. A
284
Bioexpressão trouxe mudanças significativas para mim enquanto pessoa (...)
Quando fiz a avaliação, percebi que falei muito mais da pessoa do que da
profissional. Mas acho que foi uma demanda do momento que estou vivendo,
momento de muitas transformações, (...) se não tivesse a Bioexpressão, teria sido
muito mais difícil passar pelas mudanças que passei, que têm sido muito válidas,
um processo de amadurecimento. Estou mais atenta a mim. Quanto às atividades
lúdicas em sala, fiz algumas, e foi interessante. (...) O diferente foi estarem
brincando, mas tendo consciência do corpo, de estarem se olhando. Que negócio
diferente!
Eduarda: ... tem uma coisa que acho impressionante. Eu não perco mais o
equilíbrio como antigamente. Essa questão de observar o aluno... Antigamente, eu
me colocava assim... eu brincava, mas ficava sempre na frente, não saía, não
circulava no espaço. Hoje em dia, faço isso. (...) Na minha vida familiar também
mudou muita coisa.
Carolina: (...) Esse curso foi a possibilidade de trabalhar comigo mesma, trouxe
oportunidade do trabalho de grupo. Esse período foi extremamente importante até
em relação a questões pessoais. O trabalho aqui me ajudou muito no sentido
pessoal, além do pedagógico.
Pedro: (...) O que a gente passou aqui, vivenciou não vai dar pra esquecer.
Consegui levar pra sala de aula, levar algumas coisas pra meus alunos. Trabalhei
com música, com o canto. Alguns alunos comentaram que gostaram muito. (...) Eu
não tinha idéia antes do curso de como poderia direcionar a ludicidade. O
problema foi ter sido afastado de sala de aula para a coordenação.
Lucas: Passei uma fase muito difícil ao longo do curso. Estar aqui me deu muita
força. Saía do hospital pra cá [sua esposa estivera internada]. Também aprendi
muita coisa. Me fortaleceu, mudou minha vida. Se existe uma família Scolari, acho
que existe uma família Lucia Helena. Enquanto estávamos distantes, ficava
esperando o momento de recomeçar.
285
Cláudia: O curso de Bioexpressão foi somente ganho, só que fui egoísta, eu não
passei isso pra meus alunos em sala de aula. Houve mudanças em relação a mim
mesma, passei a me observar melhor, se estava respirando ou não, em momentos
de crise ou de explosão, eu respirava, às vezes fazia ahhhhhhh. Minha filha já
falava: “Bioexpressão, né mamãe?” Você tem obrigação de expandir o curso para
um número maior de pessoas.
Ao meu olhar interrogativo, enquanto eu apontava o dedo em minha direção,
Cláudia refez sua colocação: Você e nós!
A opinião de Cláudia foi ratificada por Lucas: Acho que o grupo tem a
responsabilidade de levar adiante este trabalho.
A necessidade de que nossos encontros continuassem para que mudanças ainda
pequenas pudessem ganhar mais força, para que os participantes adquirissem coragem
ainda necessária se mostrou em vários depoimentos:
Tiago: (...) Algumas cascas já caíram, mas ainda estou em processo. Mas a forma
de olhar o aluno, de me preocupar com a mudança da sala, de propor que os
alunos se olhassem, respirassem, fazer alguma coisa diferente, já tem uma cara
diferente. Muita coisa mudou, até minha visão de educador melhorou, minha
responsabilidade com o aluno, a preocupação com o corpo de meu aluno, não só
com a mente. Hoje eu sou um professor diferente, eu consegui dar uma mudança
em mim. Espero que a gente consiga elaborar alguma coisa juntos, embora já
tenham ocorrido mudanças, quero mais. Quando estamos juntos, a gente tem mais
estímulo.
Isabela: Levar para sala de aula, realmente não levei não. Mas, na minha vida
pessoal, esses encontros que tivemos aqui me serviram muito, muito, muito, muito.
Têm me servido. Esse período que a gente parou foi uma pausa necessária pra
colocar as idéias em ordem, para pensar um pouquinho. Mas eu já estava
querendo voltar. (...) Pra minha vida pessoal serviu muito. Mas pra meu alunado
também serviu. (...) Alguma coisa mudou na forma de lidar com eles. Mas ainda
acho que falta muito. O grupo estar junto vai ser ótimo pra nos dar coragem.
286
Assumir uma nova postura em sala de aula exige, de fato, primeiramente, mudanças
em si mesmo. E essas já se manifestavam, não apenas nos depoimentos, mas na expressão
corporal, na conexão da fala com a emoção, no brilho do olhar.
4.2. Antigas dificuldades e um novo impulso
Aqueles participantes que sentiam dificuldade e/ou medo de inovar, mostraram uma
atitude muito defensiva inicialmente, mantendo a postura já evidenciada, anteriormente, de
colocar fora de si as dificuldades existentes, culpando a escola, a coordenação, a falta de
recursos materiais, a disciplina lecionada ou seus próprios estudantes. Entretanto, de
alguma forma, quer pelas palavras ou pela linguagem não verbal, já deixavam entrever o
desejo de transformação. Minha proposta de ajudá-los a pensar possibilidades de ação, de
acompanhá-los nas atividades, se desejassem, diminuiu a tensão e o medo que
demonstravam. A fala de Eduarda é um exemplo:
Percebi um aluno que desenha muito bem e pedi que fizesse um desenho que
precisava. Dois dias depois me trouxe vários desenhos para eu escolher. E foi
chegando cada vez mais pra frente. Nesse aspecto, quanto à relação, estou
sentindo muita diferença.(...) O meu problema com sala de aula é um trauma,
devido a quase ter sido crucificada por causa de inovar. Estou levando a
Bioexpressão para cursos de professores e está dando bom resultado. Sugeri a
pessoas que fizeram e deu resultado em sala de aula, mas eu não consigo fazer. (...)
Quando você se dispõe a ir à sala de aula e fazer comigo, fico mais tranqüila. Fico
morrendo de vontade de fazer... Isso pra mim é contraditório. Eu consigo fazer
com professores que coordeno, mas não com meus alunos...
Érica aponta a estrutura da escola como um problema, mas se dá conta que a maior
dificuldade está nela mesma. A percepção de sua própria dificuldade é um grande passo.
Diz ela:
Ainda não levei prática pra sala de aula por dois motivos. Primeiro, porque um
local onde trabalho tem uma estrutura muito rígida. O coordenador funciona como
fiscal de corredor e sala. Uma voz mais forte já vai verificar o que aconteceu. Mas
o motivo maior é que não me sinto ainda segura. Não é que não acredite, não estou
segura pra vencer essa barreira. Se estivesse segura de mim acho que conseguiria
287
contornar a situação. Se não acreditasse não estaria aqui hoje. (...) Acho que o
problema maior é a minha estrutura. Mas pra mim o curso foi muito mais
importante pra minha vida pessoal. Se não estou bem comigo, se não me conheço,
se não tenho consciência do que quero, do que gosto, do que posso ou não fazer,
logicamente, vai interferir na prática pedagógica. Estou tentando controlar minha
ansiedade, vencer minhas barreiras, e o curso foi e está sendo muito significativo
neste sentido, mas ainda tenho um caminho a percorrer.
Ana também fala de suas dificuldades, mas expressa sua necessidade de fazer
alguma coisa nova e de se exercitar mais. As mudanças já se tornavam visíveis pra ela:
Quando são dois tempos seguidos, estou sentindo necessidade de fazer algo. Eles
ficam muito cansados. Preciso demais aprender a trabalhar isso aí. Eu tentei fazer
uma atividade em sala de aula, mas é difícil. A gente tem que ter estrutura também.
Estrutura significa tanto saber fazer o trabalho como ter condições materiais para
fazer. Uma música adequada... Também sinto que a gente precisa de mais
exercício. Mas eu aprendi muito a tolerância durante o tempo em que estivemos
trabalhando no grupo. A ter uma outra postura diante das pessoas, até mesmo
diante dos alunos. A entender melhor o comportamento deles, a perceber o meu
modo de reagir diante do comportamento deles. Facilitou muito a relação com
eles. O olhar que a gente tem para com o aluno, a parar, respirar, analisar melhor
o que estava acontecendo... Me acrescentou muito.
Isabela revela suas dificuldades: Eu sinto o quanto isso está mexendo comigo, o
quanto me custa olhar certas coisas.
Cada vez mais aumentava minha convicção de que é necessário tempo e estímulo
para que mudanças possam ocorrer, e que elas precisam ser interiorizadas. Acreditar no
que fazemos e investir no processo de mudança é fundamental para que barreiras sejam
vencidas. Também é necessário considerar que os participantes da pesquisa precisaram
trabalhar seus corpos, para mobilizar as couraças e liberar energia aprisionada, entrando
em contato consigo mesmos. Como observei em minha dissertação de Mestrado, “o
educador não está preparado para trabalhar o corpo de seus alunos porque, na grande
maioria das vezes, não sabe lidar com o próprio corpo, com o seu poder de expressão”, e
não devemos esquecer que “só podemos assimilar realmente aquilo que vivenciamos, que
288
sentimos. Só podemos utilizar com segurança aquilo que compreendemos” (Pereira, 1992,
p. 153).
Alguns participantes falaram das experiências que estavam conseguindo
desenvolver e das dificuldades iniciais, incluindo a falta de material, como mostra o
depoimento de Lucas:
No início, a gente percebe que a direção e os colegas não aceitam aquele tipo de
trabalho. Mas aos poucos, vão percebendo que os meninos vão aceitando,
gostando, e vai havendo um movimento de mudança. Aí, já começam a te olhar de
outro jeito. No início, fecham a cara, olham de banda, depois começam a se abrir.
(...) Trabalhei muito com os exercícios de ritmo e coordenação motora... Com sons.
Não havia muitas possibilidades materiais. (...) E estou levando pra outros
espaços: para o grupo de preservação ambiental, para um grupo de adultos, ...
A fala de Lucas foi a deixa que eu esperava para enfatizar uma questão importante:
usar a criatividade e fazer o que seja possível com a estrutura que temos disponível,
criando possibilidades. Minimamente, temos o corpo e a voz. Precisamos ver o que é
possível fazer, tanto do ponto de vista material quanto interno. Quando digo interno, me
refiro ao que já é possível pra cada um desenvolver com certa tranqüilidade, de forma mais
confortável. Lucas sentiu que podia, com mais facilidade, desenvolver atividades de
coordenação motora, sons e ritmo; Carolina optou por dinâmicas de grupo; e Tiago viu, no
canto dramatizado, uma possibilidade lúdica. Na verdade, os três exemplos confirmam que
podemos desenvolver atividades lúdicas nos espaços e nas condições de que, geralmente,
dispomos. Carolina chegou a observar que, no início, ficou, durante o Curso de Extensão,
incomodada com as dificuldades de espaço que tivemos, mas isso, no fim das contas, não
interferiu tanto”.
Nesse primeiro momento de reencontro, procurei ouvir as ansiedades dos
educadores e dar respostas, na medida do possível, que se apresentassem como alternativas
de trabalho viável. Após, essa primeira etapa, orientei uma vivência voltada,
especialmente, para o centramento e o grounding, o que ajudou a diminuir o nível de
ansiedade e fortalecê-los, aumentando a autoconfiança.
289
Márcia Moysés (2003) ressalta que o medo é, verdadeiramente, um fator que
dificulta a prática pedagógica inovadora, pois, ao mesmo tempo em que é um fenômeno
psíquico, que envolve fantasias, lembranças e associações, se manifesta corporalmente,
alterando o metabolismo hormonal, a atividade motora e o sistema cardiovascular. O medo
impede os avanços, pois, paralisa. Assim, é uma verdadeira vitória cada passo que vai
sendo dado diante das dificuldades que surgem.
Ao final de nossa vivência, ao partilharmos a experiência, Mariana disse que estava
observando dificuldades serem ultrapassadas e que não tinha dúvidas de que existe uma
demanda muito grande de trabalhar a corporeidade, apesar das resistências. Ana, de
forma muito objetiva fez a pergunta que, acredito, pairava no ar: Como vou trabalhar
minha resistência?
Voltamos a conversar sobre a necessidade de “dar passos de acordo com o tamanho
das pernas”. Começar com pequenas ações, com atividades com as quais estejamos mais
familiarizados, sem esquecer de respirar mais e exercitar a base com regularidade.
A proposta para a segunda fase de nossos encontros, que eu trouxera para o grupo,
tinha como objetivo permitir que passassem pela experiência de organizar e orientar
atividades bioexpressivas que fossem pertinentes à sala de aula e, nas quais, fosse utilizado
material disponível nas escolas. Essas atividades possibilitariam aos participantes da
pesquisa se exercitarem em um espaço em que se sentiam seguros, podendo receber
orientações e sugestões. A coordenação da atividade poderia ser feita individualmente, em
dupla ou em pequenos grupos, de acordo com a opção de cada um. Sugeri que cada
atividade priorizasse um aspecto para melhor organização didática: base, percepção
corporal, relaxamento e respiração, interação grupal. Caberia a mim, além de fazer as
observações necessárias e coordenar a discussão sobre relações teórico-metodológicas
pertinentes, orientar uma vivência integradora ao final de cada encontro. No sábado
seguinte, já iniciamos as atividades com sua nova configuração.
4.3. Uma proposta e respostas criativas: superando mais algumas dificuldades
Os resultados da proposta foram bastante positivos pela riqueza e criatividade das
atividades trazidas, pelo envolvimento de todos os participantes, pelas partilhas e pelos
290
novos passos que iam sendo dados. Após cada atividade, havia o momento em que quem
coordenara o trabalho e nós, que o havíamos vivenciado, falávamos de nossas emoções,
percepções, dificuldades e prazer. A seguir, eu dava orientações de ordem prática, quanto
ao que poderia ser feito na falta de um espaço como o que dispúnhamos ou variações
possíveis da atividade trazida, por exemplo, enfatizando pontos significativos. Os
participantes também contribuíam com sugestões e observações. A entrega às atividades se
mostrou nos depoimentos:
Renata: Senti muita alegria, me senti leve, voltando à infância.
Lucas: Foi gostoso fazer as atividades. Esqueci que podia brincar assim...
Mariana: Embora orientando, eu morri de vontade de fazer, quando me vi, já
estava no meio do grupo.
Tiago: Senti liberdade de poder fazer o que tive vontade. Eu quis voar e no
imaginário, eu voei. Voltar à infância foi muito bom. A minha infância não foi
como a de hoje, cheia de obrigações. Eu brinquei muito. E isso me fez voltar à
infância. Isso mexeu muito comigo, me deu uma sensação muito prazerosa. Aquele
menino estava aqui. Na hora de voltar, de guardar todos os brinquedos me deu
uma certa tristeza. Não precisar falar foi muito bom, deixar só o corpo e a emoção
falarem.
Paula: Achei legal a gente trabalhar com o desenho sem a preocupação de fazer
um desenho bonito, sempre estamos preocupados em fazer bem feito.
Uma das atividades orientada por Mariana e Clara tinha como proposta que cada
um se colocasse em uma máquina imaginária como se fosse uma de suas peças. A
orientação era simples: seríamos parte de uma engrenagem que deveria funcionar
integradamente, embora cada “peça” tivesse um movimento próprio. A possibilidade de
nos expressarmos livremente fez com que, aos poucos, nossos corpos fossem buscando
uma maneira confortável de agir e interagir. O que era inicialmente um movimento “duro”,
anguloso, mecânico, foi se flexibilizando, se harmonizando, se suavizando, se tornando
gracioso, como se a máquina fosse, espontaneamente, se “humanizando”. Como observa
291
Alexander Lowen (1975/1982), quando a energia flui e se intensifica através da
espontaneidade, os movimentos se tornam graciosos, ganham harmonia. O prazer, segundo
ele, implica movimentos corporais, especialmente internos, rítmicos, soltos e fluentes. O
prazer pode se definir como um movimento expansivo dentro do corpo, ao passo que o
desprazer gera retraimento, contenção ou retenção de energia. Também Stanley Keleman
chama a atenção para uma nova forma que se manifesta na entrega: “o quão vivos, o quão
profundamente responsivos e expressivos somos aparece na forma graciosa do nosso
corpo, que reflete a capacidade de nos conectarmos com sentimento, pensamento e ação”
(1975/1996, p. 25-26).
O prazer sentido foi expresso por todos os participantes como mostram os
depoimentos que se seguem:
Isabela: Foi muito prazeroso, acolhedor, a liberdade de fazer o desejado.
Tiago: Quando esquecemos que éramos adultos, tivemos as mesmas atitudes de
uma criança, nos permitimos sentir prazer sem questionar se era certo ou errado...
Pedro: Eu me senti um aluno, nem lembrei que era professor. Fiz do jeito que
quis...
O prazer, a alegria, a criatividade e a consciência do que estava sendo feito foram
pontos marcantes nas atividades coordenadas pelos diversos participantes da pesquisa. Mas
outras emoções se manifestaram como a ansiedade. Cristina comentou após orientar a sua
atividade:
Eu sinto cada vez mais que preciso relaxar meu corpo, que preciso encontrar
meios de trabalhar isso em sala de aula. Trabalhar outras formas de linguagem
que não a língua portuguesa.
E expressou seu nervosismo de ter coordenado uma atividade e o temor de minha
ida a sua sala de aula: Você me deixa nervosa. Quando você estiver lá, como vai
ser?
Ana também se manifestou: E a avaliação? Fiquei muito preocupada como será a
avaliação na sala.
292
Clara expressou-se, antes que eu pudesse argumentar:
A gente está construindo, a gente tem que tirar da cabeça que o que a gente faz
pela primeira vez vai sair perfeito. A gente precisa avaliar, mas essa avaliação tem
que ser em forma de acolher e, quando falo de acolhimento, me lembro do grupo e
do quanto Lúcia transmite total acolhimento só com o olhar. Nós nos colocamos
num lugar de estarmos sendo julgados. Temos que tomar consciência de que o que
estamos fazendo é significativo e que ainda não está pronto, e que o olhar do outro
não é de julgamento. É trocar idéias com pessoas que podem ser um interlocutor.
Que apontem os erros, mas que acolham. O que Lúcia faz é isso.
As observações de Cristina, Ana e Clara nos trazem, novamente, a necessidade de
reconsiderar a forma como as avaliações se processam, comumente, na escola, deixando
marcas em seus egressos. As marcas são tão fortes que, mesmo que eu tenha, inúmeras
vezes, frisado que não estaria em suas salas para julgar, mas para contribuir e observar a
repercussão do Curso, a “sombra” dessa idéia não se desfez para todos. A avaliação deve
ser um ato acolhedor, que estimule o crescimento, aponte falhas e indique o que pode ser
modificado, sem menosprezar ou ridicularizar o educando. É importante que a
consideremos sob um novo olhar, que não o da desqualificação e da exclusão.
Outro aspecto a destacar é que expressar os sentimentos, olhar de frente as próprias
dificuldades, como Cristina e outros participantes se permitiram fazer com a gradual
flexibilização das couraças, possibilita lidar com essas dificuldades e superá-las. Cristina e
Eduarda, que demonstravam uma resistência muito grande a minha ida a suas salas de aula,
se disponibilizaram para tal após terem verbalizado seus receios e vivenciado a experiência
de coordenar atividades em minha presença. Como acentua Lowen (1980/1989), a
mudança é possível, mas o primeiro passo é a auto-aceitação. Negar um problema ou uma
dificuldade acaba por gerar a sua internalização e manutenção.
Ana, Cláudia, Érica e Renata se uniram para orientar atividades de integração
grupal, em que privilegiaram a observação da expressão corporal, inclusive as expressões
faciais. Em uma das atividades, foram distribuídas fichas com a especificação de ações,
que deveriam ser representadas pelos colegas, individualmente, sem qualquer verbalização,
para serem adivinhadas pelo grupo. A atividade foi vivenciada com muita alegria e
293
envolvimento de todos. Após o término da atividade, novamente partilhamos a experiência,
possibilidades de realizá-la e analisamos seu significado para nossos educandos.
Foi enfatizada pelo grupo que coordenou as atividades a importância de aprender a
olhar os outros e ver de fato, o que está ficando pouco comum nos dias atuais. Muitas
vezes, pessoas convivem meses seguidos, como já observei em diferentes turmas, sem
saberem os nomes de seus colegas e sem se darem conta de que o outro, às vezes, não está
bem. Eduarda fez uma observação que não pode ser desconsiderada:
Às vezes, eles não conhecem o nome dos colegas, às vezes, nem dos professores, e
isso é importante. Dar um abraço, uma palavra de apoio quando isso se faz
necessário.
Paula partilhou sua experiência: Uma coisa estou notando, estou ficando mais
natural nas minhas aulas, mais alegre, compartilho com eles minha tristeza e
minha alegria e eles comigo. Antes, eu achava que tinha que estar sempre bem,
sempre com um astral alto, mas agora eu me dou o direito de ter minha
humanidade e não estar sempre ótima e de poder dizer isso pra eles. Esse
movimento surgiu depois do curso de Bioexpressão. Foi um processo de auto-
aceitação, o que não significa que não procure dar uma boa aula. Eu não faço as
práticas que a gente aprendeu aqui, mas estou usando outras práticas similares
que surgiram desse movimento aqui do Curso de Bioexpressão. Essa prática de me
ver e de me aceitar, assim como meus alunos, veio daqui.
É significativo nos darmos conta de que nos comunicamos com o silêncio, com
nossa expressão corporal. Se observarmos nosso educando, poderemos perceber se ele está
entendendo ou não, se deseja fazer uma pergunta, e nem sempre damos importância a isso.
Paula contou-nos que, no relato que passara a pedir a seus estudantes, um deles comentou
que a aula não tinha sido tão boa, porque ela, Paula, estava triste.
A partir dessa questão, conversamos sobre o medo que o professor tem de “se
mostrar” e, se “mostrando”, perder a autoridade, o que não é verdade. Atividades desse
tipo implicam, antes de qualquer coisa, que saibamos lidar com nossos próprios
sentimentos, ter clareza do que estamos sentindo. Cláudia e Eduarda relembraram o dia em
que demonstrei meu descontentamento com os problemas que estavam surgindo no grupo e
294
na instituição, e falei sobre isso com eles. Disseram ter ficado felizes ao me ver perder a
calma, porque perceberam que eu era como qualquer pessoa, e Mariana acrescentou:
Quando percebemos a fragilidade do outro, isso nos ajuda a aceitar as próprias
fragilidades. E depois disso, parece que o grupo ficou ainda mais unido.
Paula observou: Os professores, de um modo geral, têm medo de se aproximar de
seus alunos, como se a aproximação fosse proporcionar a perda do poder. Os
professores mais simples têm conseguido criar uma relação muito mais próxima
com seus alunos do que os mestres e doutores.
Outro ponto que foi analisado, em nossas partilhas, foi a importância de fazermos
regularmente exercícios de centramento e grounding, pois, se não estamos bem, de alguma
forma isso se manifesta em nossas salas de aula. Por exemplo, quando estamos muito
tensos, não é difícil perceber que nossos educandos se tornam mais agitados. Carolina,
Eduarda e Renata disseram ter passado a fazê-los antes das aulas e antes de situações mais
tensas, tendo obtido bons resultados.
4.4. Mais uma vez a possibilidade de vivenciar a experiência...
Stanley Keleman observa que nosso cérebro é treinado para controlar e disciplinar o
corpo e acreditamos que a aprendizagem se dá através da cognição. No entanto, nós
crescemos ampliando nossa motilidade, nossa pulsação, criando novos comportamentos,
sentimentos e respostas. Crescer não significa apenas saber, exige mais que agregar dados
e conceitos. “É nossa ênfase no conhecimento que nos leva a formar tantos corpos fora de
forma e deformados. Nosso foco no cérebro dá surgimento a belas cabeças, pensamentos
bem formados e corpos maltratados, com uma amplitude restrita de sentimentos”
(1975/1996, p. 87). Assim, se desejamos estimular o crescimento de nossos educandos, não
podemos nos ater a uma aprendizagem centrada no racional, no intelecto, mas possibilitar-
lhes o contato com o corpo, com os sentimentos e a espiritualidade .
A proposta da Bioexpressão, desenvolvida no Curso de Extensão, deu aos
participantes da pesquisa a possibilidade de vivenciarem os aspectos teóricos que foram
295
trazidos, a possibilidade de “sentirem na pele” os resultados das atividades lúdicas e uma
nova forma de percepção de si, de aprenderem um pouco mais sobre seus corpos e suas
vidas. Não menos significativo, a meu ver, foi a possibilidade de experimentarem, no
próprio grupo, a troca de lugar, coordenando as atividades. A orientação de qualquer
atividade tem suas peculiaridades e algumas dificuldades a serem ultrapassadas, como
qualquer experiência nova. Exige a organização das atividades, a observação atenta do que
acontece no espaço da vivência, o que implica perceber o que é estar nesse lugar, atentar
para a receptividade ou não dos participantes, a possibilidade de adequar, de flexibilizar,
por isso foi significativo ser desenvolvida em um local de acolhimento, de aprendizagem,
de não cobranças, de experimentação, onde podiam receber o retorno de sua atuação, apoio
e sugestões.
Algumas falas dos participantes exemplificam o significado dessa experiência:
Clara: Orientar a prática foi interessante para perceber a necessidade da
flexibilidade diante da forma como o grupo reagiu, pois nós não imaginamos que
vocês ainda estariam vivenciando o papel do animal escolhido anteriormente. [A
primeira atividade implicava a escolha de um animal, mas não a segunda. O grupo
estava tão mobilizado, que continuou brincando como se fosse o animal escolhido]
Outra questão foi ver vocês recriarem a brincadeira sem a expressão oral
[orientação dada pelas coordenadoras do trabalho] e perceber como o corpo pode
se expressar. Senti o prazer no ato lúdico, mas o desprazer ao terminar a
brincadeira.
Mariana: Senti falta de um fechamento, aliás meu corpo sentiu, e propus um novo
fechamento para a atividade. Isso não estava previsto. Foi ótimo tê-lo feito.
Tiago: No início, eu estava inseguro, mas agora não vou parar mais, pois, vi que
funcionou, mesmo que os rostos mudem, essas aulas vão continuar. Foi uma
experiência importante.
Renata: Foi muito legal ver todo mundo envolvido e curtindo! Me senti muito
animada.
296
Os vários depoimentos dos participantes da pesquisa expressaram a alegria de
terem criado, organizado e coordenado as atividades, e de verem que havia envolvimento e
entrega dos colegas; de acompanharem o movimento dos corpos, de dar suporte para quem
estava trabalhando, de finalizar a tarefa de forma apropriada. Também expressaram como
foi importante receberem o apoio dos colegas, que apontaram falhas e os pontos
importantes. Lucas, que conduziu uma atividade de respiração e relaxamento, comentou:
Eu relaxei também enquanto eu conduzia, fiz uma viagem gostosa.
Tiago, após passar pela vivência orientada por Lucas, observou: Você organiza
muita coisa com um relaxamento, a gente se encontra lá dentro com nossas
questões. Seu tom de voz, sua tranqüilidade ajudou muito. Dá pra fazer isso
sentado na sala de aula.
Isabela complementou: ... foi importante deixar um tempo de silêncio para nossas
próprias imagens.
Clara, salientando o prazer que sentira ao relaxar, tocou em um aspecto que
também me chamara a atenção:
Num grupo diversificado, é bom não demonstrar que se tem uma religião
específica para que as crenças não interfiram, pois pode haver seguidores de
religiões diferentes. Essa menção pode até atrapalhar a entrega ao momento.
Tiago deu seu depoimento: No início do Curso, fiquei observando as vivências pra
ver qual era a da Lúcia, se tivesse algo religioso, cairia fora. Quando vi que não
havia envolvimento religioso, me entreguei às atividades.
Isso mostra que, quando orientamos atividades, temos que estar abertos, sensíveis,
flexíveis, perceptivos para ver como elas estão sendo recebidas, percebidas, para podermos
fazer ajustes, dar novas orientações. No início, podemos fazer um roteiro e tê-lo como
sustentação para termos mais segurança, entretanto, à medida que vamos ganhando
confiança, podemos ir adaptando as atividades às situações, reorganizando-as ou
modificando-as. Ninguém nasce pronto, as coisas não ficam boas de uma hora para outra,
existe a necessidade de irmos construindo um lastro; há um espaço a ser percorrido até
chegarmos aonde desejamos.
297
4.5. Reprodução ou criação?
Nos cursos de formação de professores, como na educação escolar de modo geral,
também se verifica a ênfase na reprodução de conhecimentos e a falta de estímulo para o
desenvolvimento da autonomia e da criatividade, aumentando as dificuldades para aqueles
que atuam na sala de aula. Paulo Freire, em suas obras, sempre manifestou, com
veemência, a necessidade da redescoberta da autonomia criadora, admitindo que o
desenvolvimento individual é tão importante quanto o coletivo. No entanto, as instituições
educacionais não têm manifestado a preocupação em formar pensadores criadores e
originais; a educação “bancária”, em que os estudantes se tornam depositários de um saber
trazido pelo professor, estimula o conformismo e atitudes estereotipadas. Georges Snyders
observa que a escola tem voltado sua atenção para uma massa de conhecimentos inúteis,
superficiais e distantes da vida, exatamente para não falar do que é essencial: a alegria, a
espontaneidade, a criatividade, a autonomia, enfim, a vida (Pereira, 1992).
Essa dificuldade ficou evidenciada com depoimentos de alguns participantes da
pesquisa, que consideraram que deveriam “reproduzir” as atividades que foram
vivenciadas ao longo do Curso de Extensão, tendo dificuldades de estabelecer relações e
criar novas atividades. É importante observar que eu havia frisado, inúmeras vezes, que as
atividades que eram propostas aos participantes eram voltadas para a sua autoformação,
para que entrassem em contato consigo, podendo flexibilizar bloqueios e aumentar o fluxo
energético. Posteriormente, os elos com a sala de aula foram sendo criados, sempre sendo
salientado que as atividades deveriam ser adequadas a cada turma, levando-se em conta sua
faixa etária, as possibilidades existentes, as necessidades específicas, entre outros aspectos.
Dar continuidade a nossos encontros após o final do Curso, quando pude ouvir as
dificuldades que enfrentavam e lhes dar a possibilidade de criarem suas próprias atividades
a partir de suas experiências e potencialidades, respeitando os limites ainda existentes, foi
muito importante para que algumas dificuldades e dúvidas fossem superadas. A fala de
Paula foi elucidativa:
É importante que você frise que não é pra repetir. A gente teme o fato de você
querer ver a gente fazendo o que foi feito aqui, embora você nunca tenha dito isso.
298
Eu estou com um movimento que partiu daqui. Você vai observar o movimento que
surgiu pra cada um, não a reprodução.
Ana replicou: Mas na nossa cabeça é pra fazer o que você faz.
Pelo diálogo que se seguiu pude observar, felizmente, que apenas duas participantes
da pesquisa ainda mantinham essa percepção que já havia sido esclarecida, algumas vezes,
ao longo do primeiro semestre. Mas algumas dúvidas ainda persistiam, entre elas a de que
minha ida à sala de aula implicasse uma atividade especial como a fala de Paula mostra:
A realidade é que a gente fica preocupada com sua visita, porque a gente não está
fazendo atividades todos os dias. Na sua primeira visita, coincidiu de eu estar
desenvolvendo um trabalho de integração, mas de repente você aparece no dia de
uma aula minha que não tem nada a ver com aquilo.
Aos poucos, a compreensão de que pequenas mudanças de atitude podem ser muito
significativas e indício de que há uma transformação em processo foi acontecendo. O
depoimento de Tiago traz muito do de outros participantes, por isso optei por apresentá-lo
aqui, mesmo sendo um pouco longo:
Esses momentos aqui de experiência me trouxeram muita mudança. Só essa
semana comecei a desenvolver atividades em sala de aula, porém já vinha notando
algumas mudanças de comportamento, notando o corpo, percebendo quando os
alunos estão exaustos, se estão gostando da aula ou não, se estão com problemas,
toda essa leitura. A maior leitura que eu tive foi a de perceber as semanas
pedagógicas, em que são apresentadas atividades para mudar o professor, nunca
mudaram nada em mim, mas as aulas de Bioexpressão me trouxeram uma
mudança de verdade. Antes eu ouvia, mas não colocava em prática. Precisou eu
estar participando, mudar minha forma de ver os alunos, minha leitura das coisas.
Hoje eu consigo dizer pra meus alunos que não sei algo, deixei de estar no trono,
de manter poder absoluto, também sou um ser humano (...) Outras coisas
aconteceram, a gente começou a trabalhar os acontecimentos, e os alunos
começaram a dizer que estavam gostando das aulas. A mudança foi acontecendo
aos poucos, agora eu comecei a aplicar dinâmicas, aí melhorou mais ainda.
299
Cristina facilitou o trabalho pra mim, porque ela começou antes. [Cristina e Tiago
trabalham com as mesmas turmas] E minhas aulas não são iguais às dela, porque
cada pessoa é uma pessoa. Mesmo estando no mesmo caminho, cada um faz coisas
diferentes. (...) Eu estou fazendo respiração, relaxamento, tirando os sapatos.
Trabalhando a linguagem corporal e silenciando a linguagem verbal. Coisa difícil,
mas aos poucos eles foram se acostumando. Trabalhei com textos que trazem uma
mensagem e abri pra debate. Apareceu foi coisa. (...) Depois disso, coloquei uma
música suave e deixei que ficassem em contato com as coisas trabalhadas. Aos
poucos, fui descobrindo coisas que podia fazer...
Como Tiago, outros educadores permitiam que as mudanças internas fossem se
manifestando em suas práticas, me mostrando que há um tempo necessário para isso,
menor para uns e maior para outros, o que, certamente, está relacionado com a história de
vida de cada um.
4.6. Driblando os entraves institucionais e promovendo mudanças
Inicialmente, as dificuldades institucionais espaço físico, direção, coordenação,
grade curricular, entre outros eram sempre colocadas como intransponíveis, consideradas
por alguns participantes da pesquisa como a causa da impossibilidade de uma mudança em
suas práticas pedagógicas. Não se pode negar que as dificuldades existem, mas podemos
gerar transformações no espaço de nossas salas de aula dependendo de nossa visão de
mundo e de educação. Como afirma Paulo Freire, o conhecimento “requer sua ação
transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica invenção e
reinvenção”. O ser humano estabelece relações com o mundo através de suas ações que
deixam suas marcas. “Atuando, transforma: transformando, cria uma realidade que, por sua
vez, ‘envolvendo-o’, condiciona sua forma de atuar” (1992, p. 27-28).
À medida que os participantes da pesquisa foram vivenciando e criando atividades
lúdicas, compreendendo seu alcance, olhando seus medos, obtendo respostas e
vislumbrando possibilidades, dificuldades que pareciam intransponíveis puderam ser
revistas e mudanças se manifestaram, como mostram os exemplos abaixo:
300
Paula: a gente vem de uma história de que o professor tem a teoria na ponta da
língua. Faz cursos maravilhosos com um belo discurso. O problema é que quando
a gente faz cursos, a gente só aprende a teoria, os professores não fazem o que eles
dizem pra gente fazer. Mas depois de fazer aqui, me sinto mais segura pra fazer
algumas mudanças. (...) Já consigo até me desculpar quando tenho posturas
ríspidas sem necessidade. (...) É maravilhoso perceber a aproximação com nossos
alunos.
Érica: Comecei a fazer atividades no final do ano letivo, com os pais e a escola
pressionando, os alunos estressados, mas comecei a fazer exercícios de respiração.
Não olho para meus alunos como antes, também não me sinto a mesma pessoa em
sala de aula. Tenho um recurso muito grande que não tinha antes, isso porque não
conhecia antes, consigo passar muita coisa. Muitas coisas melhoraram. Eu me
abri.
Lucas: o se brinca mais assim, incomoda os adultos. Mas vale enfrentar as
dificuldades porque os alunos gostam. A direção da escola chegou a dizer que o
professor de Educação Física não faz parte do processo pedagógico quando tentei
mostrar isso para os colegas.
Clara: Parece que quando você brinca, você está atrapalhando a aula dos outros, e
isso acontece em todos os níveis. Há uma desvalorização do lúdico. Mas tenho
encontrado maneiras de levar novas atividades para minha sala.
Como vimos anteriormente, os estudos de Humberto Maturana e António Damásio
nos trazem a confirmação de que a racionalidade não se desenvolve sem a emoção, sem a
corporeidade. Não podemos nos esquecer, por outro lado que a disciplina corporal é uma
forma de controle. Michel Foucault (1988) analisa o controle corporal e a criação de uma
anatomia política ao longo do processo histórico como uma mecânica de poder. Quanto
mais dóceis os corpos, mais úteis se tornam. Wilhelm Reich também enfatiza que um dos
meios básicos para suprimir o impulso de vida, a expressividade natural é o ensino de uma
atitude rígida e não-natural que leva os organismos a funcionarem de forma automática,
havendo uma relação estreita entre a reprodução estrutural da ordem social e a atitude do
301
corpo. Assim, temos uma história de controle corporal e automatismo através da educação
que se perpetuará, se quem educa não se dispuser a transformá-la.
Os educadores, diante da proposta de orientar atividades, não trouxeram coisas
prontas e, sim, criaram atividades novas, mesmo que tenham tomado por base alguma
dinâmica já existente, o que lhes permitiu entrar em contato com o próprio potencial
criativo, abrindo mão da simples reprodução. Assim, a nova configuração que nossos
encontros adquiriu possibilitou que outros passos fossem dados e algumas resistências
fossem ultrapassadas. Isso confirma que processos de mudança exigem tempo e
investimento. Alguns padrões precisaram ser flexibilizados para que novas ações fossem
implementadas. Observa Paulo Freire que, “na formação permanente dos professores, o
momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a
prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso
teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se
confunda com a prática” (2004, p. 39).
À medida que os participantes da pesquisa adquiriam maior sustentação e equilíbrio
(grounding e centramento), a expressividade ia sendo liberada, assim como a coragem para
inovar apesar dos obstáculos. Com a percepção das próprias dificuldades e a possibilidade
de falar sobre elas, podiam ver que os maiores entraves para gerar transformações em suas
práticas pedagógicas não estavam do lado de fora, nos empecilhos institucionais, mas em si
mesmos, assumindo a responsabilidade de investir na mudança. Essa postura pode ser
melhor compreendida pela afirmação de Paulo Freire:
quanto mais me assumo como estou sendo e percebo a ou as razões de ser de
porque estou sendo assim, mais me torno capaz de mudar, de promover-me, no
caso, do estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica.
Não é possível a assunção que o sujeito faz de si numa certa forma de estar
sendo sem a disponibilidade para mudar (Idem, p. 39-40).
As resistências fazem parte de nosso caráter, sempre vão existir e se manifestar em
algum momento. Mas podemos aprender a flexibilizar essas defesas, a lidar com nossas
resistências, especialmente, se nos tornarmos conscientes de que elas existem. O tempo
302
necessário para a flexibilização das couraças não é o mesmo para todas as pessoas, umas
necessitam mais tempo que outras, dependendo da história de vida de cada uma.
Acredito, pelo que pude observar, tomando por base os conhecimentos teóricos que
embasam esta pesquisa, que alguns participantes teriam maiores possibilidades de
expressar seu potencial, se houvesse um tempo maior em que continuassem a desenvolver
atividades que propiciassem o contato consigo mesmos, flexibilizando seus bloqueios,
organizando sua energia, trazendo a possibilidade de acessar a camada mais profunda da
estrutura psíquica a sua essência (self). Tempo, também, para a apreensão do que
significa ser um educador, da sua responsabilidade junto a seus educandos, de que o
educador é um eterno aprendiz, em constante processo de formação e transformação.
Dar continuidade a nossos encontros foi fundamental, volto a enfatizar, para que os
participantes da pesquisa internalizassem novos conceitos e abrissem mão de alguns
preconceitos; para que vislumbrassem possibilidades de ação e se encorajassem a dar
novos passos. Foi fundamental, ainda, para que alguns participantes vencessem resistências
e temores, podendo me receber em suas salas de aula.
303
CAPÍTULO IV
ATUAÇÃO DOS PARTICIPANTES DA PESQUISA APÓS A
INTERVENÇÃO FORMATIVA: COMPARTILHANDO VÔOS,
TENTATIVAS E TRANSFORMAÇÕES NA SALA DE AULA
Houve um momento, ao final do Curso de Extensão, em que pensei que as
observações em sala de aula não aconteceriam. Os quatro educadores mais disponíveis, e
que já tivera a oportunidade de acompanhar a seu convite, ainda no primeiro semestre,
quando o Curso ainda estava acontecendo, me comunicaram que não estariam mais em sala
de aula pelas razões explicadas anteriormente. Os demais, com exceção de Paula, que se
disponibilizou para me receber a qualquer momento, resistiam à minha presença, com
inúmeras desculpas. Diante das atitudes de fuga e, até, de agressividade, meu primeiro
sentimento foi de fracasso. Mas, analisando o conjunto das situações, relembrando os
momentos vividos ao longo do Curso e dos encontros que a ele se seguiram, comecei a
perceber que alguma coisa mais profunda e importante estava acontecendo. As pessoas que
reagiam dessa forma eram as que tinham se mostrado mais encouraçadas, mais enrijecidas,
menos propensas a mudanças. As atividades que vivenciamos, o processo de maior contato
que cada um teve consigo mesmo, mostrou-lhes isso, gerando desconforto. Enquanto
estávamos trabalhando a base, flexibilizando as couraças, respirando e relaxando, a
essência de cada um pôde ser tocada e a alegria desse contato trouxe bem-estar, mais
energia, e a visão de que uma outra forma de conviver com a educação e com o outro era
possível. Retomada a rotina, mantida a forma padronizada de ação em sala de aula pelo
medo de mudar, minha presença significava, possivelmente, uma cobrança do próprio
professor a si mesmo do que não conseguira fazer, de não estar tendo “coragem” de mudar,
e isso era transferido para mim, que os tinha levado a tirar algumas máscaras como a da
segurança e da eficiência.
Através das atividades que eu orientara e dos estudos que desenvolvemos, foi
mostrado aos participantes da pesquisa que o corpo de nossos educandos é muito mais que
um “carregador” do cérebro, que deveria ser considerado e estimulado durante as aulas,
não devendo ficar como “massa” estática atrás das carteiras, numa postura “adequada” à
304
sala de aula. Isso, possivelmente, trouxe instabilidade e cobranças a si mesmos, o que
deixavam entrever em suas falas, em que, sempre, se mostravam desculpas para o não
fazer, para não transformar, como se eu os estivesse cobrando ou coagindo. Na verdade,
não era eu quem fazia cobranças ou os pressionava, eles próprios o faziam, o que mostra
que algo mudou internamente, estavam incomodados com o que não conseguiam ainda
fazer, e acredito que este é um grande passo para buscar recursos para mudar: a percepção
de que há algo que incomoda e que precisa ser transformado.
Enquanto os participantes da pesquisa, durante o Curso de Extensão, estavam
fazendo as atividades, mantendo-se em contato com o grupo, trabalhando sua energia,
harmonizando seu campo energético, havia um estímulo maior para a realização das
atividades em sala de aula, eles se tornavam mais ousados, mais capazes de expressar a
própria voz, o próprio desejo, o que foi se perdendo para alguns quando os encontros
terminaram. Com o prolongamento das atividades no segundo semestre, em que pudemos
compartilhar medos, dúvidas e dificuldades, algumas resistências foram superadas e tive a
possibilidade de presenciar as mudanças de que falavam em seus relatos e depoimentos.
Mateus e Lucas, como narrei anteriormente, se afastaram sem dar justificativas,
evitando qualquer comunicação, apesar de minhas tentativas e recados. Angélica nunca se
negou a me receber, chegou mesmo a marcar minha ida a sua cidade, vizinha de Salvador,
mas sempre havia um imprevisto. A atitude de Lucas, que continuara conosco ao longo do
segundo semestre, participando inclusive de nossa comemoração final, momento muito
especial para todos nós, me causou espanto, pois seu envolvimento com as atividades e o
grupo, assim como as mudanças em sua expressão corporal e verbal não podiam ser
negados. Quando estive em uma das escolas em que quatro dos participantes da pesquisa
lecionavam, em conversa com a diretora, soube que haviam sido observadas
transformações em sua prática, transformações que ele mesmo nos contara em seus
depoimentos.
Isabela, Claudia, Renata e Ana, mesmo estando conosco no segundo semestre,
também não deram a oportunidade de estar presente em suas aulas. Assim, dos dezesseis
participantes da pesquisa, pude ver a repercussão do trabalho nas aulas de nove
educadores.
305
1. Primeiras possibilidades
Ainda durante o Curso, visitei quatro participantes: Carolina, Clara, Mariana e
Pedro. As três educadoras, desde a entrevista inicial, demonstraram já estarem mais
familiarizadas com atividades lúdicas, embora ainda mantivessem uma visão de ludicidade
relacionada à aprendizagem de conteúdos, com exceção de Mariana que, desde o início,
apresentara uma preocupação com o aspecto formativo da ludicidade. Mas, como elas
mesmas disseram, uma nova maneira de se relacionarem com seus educandos, com os
conteúdos trabalhados e com elas mesmas estava surgindo.
Carolina, como pude observar, trabalhou com dinâmicas de integração, priorizando
a relação educador-educando e as relações dos educandos entre si. Para isso, usou música e
brincadeiras que exigiam trocas de pares. Passou, ainda, a avaliar seu próprio trabalho
através de relatos que passou a pedir a seus estudantes.
Clara investiu nos trabalhos de percepção corporal de seus educandos, o que ainda
não havia descoberto. A partir da percepção de seu próprio corpo e de “grandes
descobertas”, como afirmou, investiu muito nesse contato consigo mesma e quis levar a
possibilidade para sua sala de aula. E ousou muito neste aspecto. Propôs uma massagem
pra seus alunos da quinta série, que tinham uma interação muito boa. Eles gostaram e
pediram pra fazer de novo. Trabalhou com sons e com movimentos, adaptando as
atividades que desenvolvíamos no Curso de Extensão. Muito entusiasmada, comentou que
estava pensando em levar as atividades para seus colegas, porque estavam interessados
após seus comentários entusiasmados. E me disse: A contribuição maior da Bioexpressão
foi o autoconhecimento, que está engatinhando, mas que sei que é um processo e que eu
quero que siga adiante.
Mariana descobriu que, apesar de ter uma boa relação com seus educandos, ainda
sentia necessidade de estabelecer uma hierarquia, de manter uma certa distância. A partir
daí, investiu na aproximação, como contou. Na sala, pude sentir a relação afetiva e natural
em seu contato com seus educandos de ensino médio. O que mais a encantou e que buscou
levar a seus estudantes foram as atividades de percepção corporal. Segundo ela, nunca
306
havia se preocupado com isso, embora desenvolvesse atividades lúdicas em que usava o
movimento em sala de aula, havia algum tempo. Usou ritmos diferentes para instigar
movimentos diferenciados, respiração e relaxamento, sempre chamando a atenção para que
os jovens entrassem em contato com o que era sentido. A partir dessas atividades iniciais,
passou para a expressão de idéias, chegando à criação de um texto. O envolvimento da
turma foi total.
Pedro sempre se mostrou comprometido com as atividades e com as questões
teóricas ao longo do Curso. Logo na entrevista inicial, apesar de trabalhar com Artes,
deixou que se mostrassem as dificuldades de expressar sua sensibilidade, de manter uma
relação afetiva com seus educandos, a não consideração do corpo, não só do de seus
alunos, mas do seu próprio corpo, o desconhecimento das possibilidades das atividades
lúdicas. Entretanto, com o desenvolvimento do Curso, mudanças visíveis se mostravam em
sua expressão corporal, em seu contato com os companheiros do grupo, em seus relatos e
depoimentos, onde registrava seu espanto e alegria pela descoberta de si e do outro, por
poder manifestar sua sensibilidade, por estar estabelecendo uma nova forma de ver seus
educandos e se relacionar com eles, a partir do que sua prática passou a assumir novos
contornos.
Em sua sala de aula, procurou adequar atividades que desenvolvíamos, pequenos
passos, mas que foram muito significativos, considerando-se as dificuldades iniciais. Ao
final do semestre, como narrei anteriormente, deixou as aulas de Artes para assumir a
coordenação.
2. Acompanhando a transformação da prática pedagógica
Tive a alegria de acompanhar cinco educadores em suas salas de aula após o
término do Curso de Extensão. Alegria de ver que uma transformação interna estava se
processando, pois não eram apenas usadas “técnicas” novas, havia uma maneira nova de se
relacionarem com o espaço da sala de aula, consigo mesmos e com seus educandos. O que
mais chamava minha atenção era a “humanização” que se mostrava nas suas relações, o
que já haviam dito em depoimentos, nos diários e nos relatos de experiência. Também os
307
estudantes falaram disso, que eles eram ouvidos e se sentiam melhor na sala de aula.
Houve momentos em que nenhuma atividade diferente foi proposta, mas a relação de
respeito mútuo se evidenciava, mesmo quando os estudantes se distraíam ou conversavam
entre si, e a atenção para o que estava sendo ensinado era solicitada. Também se
evidenciava o desejo de participação dos educandos no que estava sendo trabalhado, e o
estímulo a este processo. A agitação, muitas vezes, presente indicava a participação no que
estava acontecendo na sala de aula.
Paulo Freire afirma que o caráter formador do espaço pedagógico é validado por
uma relação de respeito entre educadores e educandos, em que se manifesta seriedade,
justiça, humildade e generosidade. Nesse espaço, a liberdade discente e a autoridade
docente podem ser assumidas. “A autoridade coerentemente democrática, fundando-se na
certeza da importância, quer de si mesma, quer da liberdade dos educandos para a
construção de um clima de real disciplina, jamais minimiza a liberdade. (...) Jamais vê, na
rebeldia da liberdade, um sinal de deterioração da ordem”. A autoridade coerentemente
democrática do educador reconhece que não é na estagnação, no silêncio dos silenciados
que se encontra estímulo à criatividade, à curiosidade e à autonomia do educando e, sim,
“no alvoroço dos inquietos, na dúvida que instiga, na esperança que desperta” (2004, p.
93).
Paula, que leciona Inglês, sempre se manteve disponível, embora não conseguisse
ocultar um certo receio de minha ida a sua escola, situada na periferia de Salvador. Em
minha primeira visita, presenciei a alegria de seus educandos diante de sua proposta de
criarem jogos. Tinham a liberdade de escolher o que quisessem, utilizando material
reciclado ou sucata, e vocábulos em inglês. Deveriam, ainda, criar um manual com as
regras de seu jogo, o que foi um desafio bem aceito por eles. Havia dominó, jogos de
encaixe com palavras e figuras, jogos com dados, entre outros. Cada grupo optara por fazer
o que lhe parecia mais atraente. Circulei pela sala, conversei com os adolescentes da sexta
série, ouvi as regras do jogo de uns, joguei com outros. A integração da turma foi uma
conquista tendo em vista suas dificuldades quanto a isso.
Naturalmente o processo levou mais de uma aula. Podiam se movimentar pela sala,
trocar sugestões, trocar os jogos. Quem olhasse de fora poderia achar que era uma grande
308
desordem. No entanto, o envolvimento com a atividade era geral, e a criatividade era
espantosa, tendo em vista o material que utilizavam.
Paula me mostrou os diários de seus educandos, o que lhes pediu após a nossa
experiência no Curso de Extensão. Seus educandos narram o que sentiram em cada aula,
fazem perguntas e dão sugestões. Esses diários mostram um processo de flexibilização de
Paula, que deixa que possam se expressar livremente. É também uma forma de
estabelecerem diálogo, uma vez que ela responde ao que é colocado por seus educandos,
criando uma nova relação com eles. Eles têm, de fato, liberdade para mostrarem seus
sentimentos, como podemos ver nos trechos transcritos abaixo:
E1
84
: A aula hoje foi D+. Adorei aprender a fazer bolo de chocolate [Paula dera
uma receita de bolo em inglês].(...) Espero que não fique zangada comigo porque
falei dimais, me empolguei.
Paula: Claro que não!
E2: A professora foi muito ignorante comigo! Fiquei chateado...
Paula: Desculpe, não tenho o hábito de ser grosseira com ninguém. Talvez a turma
tenha me tirado do sério. Mas estou gostando do seu desempenho nesta unidade,
continue assim, tá?
E3: ...Queria trabalhar com música (...) Não entendi legal esse assunto sobre ’s.
Queria saber mais.
Paula: Na próxima unidade vamos trabalhar com música, ok?E vamos rever a
dúvida.
E4: ... foi muito importante o que a professora explicou sobre a greve e o salário.
Deu pra entender... Acho legal falar de coisas da vida como foi da greve.
E5: Achei manero trabalhar em grupo. A gente só costuma trabalhar sozinho...
Achei legal a votação pra ver se a gente ficava em fila ou em semicírculo. Venceu o
semicírculo.
84
Educando 1.
309
Conversando comigo, Paula explicou: Eles se negam a se aceitar. Nos diários, eles
falam das questões pessoais e eu posso responder o que não há tempo na sala de
aula.
Um aspecto que me chamou a atenção, foi o cuidado com que os cadernos estavam
decorados, tanto a capa quanto seu interior, o que, além de “personalizar” cada diário,
mostrava a relação afetiva que os educandos mantinham com ele. Outro aspecto foi a
proposta de Paula de discutir com suas turmas decisões a serem tomadas: como arrumar as
carteiras (cada turma optou por uma forma), como resolver os problemas de depredação e
sujeira das salas (problema delicado nessa escola da periferia), como dinamizar a
biblioteca, que estava suja e sem uso, com a ajuda de seus educandos.
Conversando com alguns de seus alunos, pude perceber o quanto gostam da
dinâmica que vem sendo implementada, que para eles foi “uma novidade neste ano”; “A
gente aprende até mais”; “É muito menos chato”; “A gente nem sente o tempo passar”;
Aí, é massa!
Mais adiante, Paula desenvolveu um trabalho com seus educandos que me pareceu
muito significativo tanto para eles quanto para ela mesma, que pôde vivenciar a riqueza
dos resultados obtidos e a alegria de contribuir para a sua formação. O conteúdo do período
eram os laços familiares. Paula resolveu aproveitar este conteúdo para que cada um de seus
educandos pudesse olhar para sua ascendência, para as figuras importantes de suas vidas.
Olhar a família da forma como está constituída, fazendo não só sua árvore genealógica,
mas também afetiva. Disse-me Paula:
À medida que vou fazendo, vou descobrindo o caminho e a importância do
trabalho. Eles precisam se afirmar como pessoas. (...) eles se sentem “nada”.
Então quando eu falo your mother, your father, pra eles não diz nada, porque não
se sentem parte da família, eles não se reconhecem ali. (...) Desde que comecei a
fazer o curso de Bioexpressão, eu comecei a me preocupar com o que eu estou
realmente fazendo na sala de aula. Até que ponto o Inglês é importante, e o que eu
posso associar ao conteúdo que seja realmente significativo. Quando comecei a
fazer é que me dei conta da importância disso. (...) Eles vão se aceitando.
310
Essas possibilidades que Paula tem dado a seus educandos de olharem para suas
dores e dificuldades, e delas falarem, possibilita aos jovens lidar melhor com seus
problemas, deixar que os nós emocionais se afrouxem. Alexander Lowen (1980/1989)
enfatiza que quanto mais negamos nossos sentimentos, quanto mais fugimos do que temos
dificuldade de ver, mais fortalecemos essa dificuldade.
A escola de Érica fica no subúrbio de Salvador. Seu grande medo era que não desse
certo. A partir das atividades desenvolvidas por nosso grupo, com minha observação de
que criassem possibilidades com recursos existentes na escola, tomou coragem. Como
recursos, utilizou o corpo e a voz. Já havia feito algumas atividades em sua sala durante a
realização de nosso curso, pequenos movimentos de mudança, que compartilhara conosco.
Dessa vez, ousou um pouco mais. Propôs a seus alunos da quinta série atividades com
movimentos que expressassem, em grupo, o que desejassem para os colegas adivinharem;
exercícios de respiração; relaxamento nas próprias carteiras; brincadeiras com sons. Pude
observar a alegria dos educandos por estarem desenvolvendo atividades diferentes.
Cristina também atua no subúrbio de Salvador e em uma escola de um bairro de
classe média. Ela resistiu muito, mas o medo de “meu julgamento” era o grande
empecilho. Já havia feito algumas atividades em sua sala durante o Curso, pequenos
movimentos de mudança, que contava muito entusiasmada.
Depois de muita resistência, Cristina marcou o primeiro dia para minha ida à escola
onde também lecionavam Lucas, Pedro e Tiago, no subúrbio de Salvador. Fez questão de
me apresentar como “sua professora” para mostrar a seus educandos que continuava a
estudar para se tornar uma educadora melhor, o que é necessário para qualquer profissão.
Tornou a explicar aos seus educandos, uma sexta série, que era importante fazerem
as atividades para soltarem o corpo, deixarem as tensões lá fora e aproveitarem melhor
aquele momento em sala de aula. Pude observar que já estavam habituados a esse tipo de
trabalho, ou seja, que Cristina já o fazia com uma certa regularidade, pois, a maioria da
turma se sentia à vontade. Não me coloquei na posição de quem observa, entrei no círculo
para trabalhar com eles. Alguns, entretanto, como seria de esperar, se sentiram um pouco
constrangidos com minha presença, mas aos poucos foram se habituando, especialmente
porque eu também estava participando. Cantamos, respiramos conscientemente, brincamos
311
com partes do corpo e, ao final, ela convidou cada um a expressar algo bom para o colega
do lado. Alguns se abraçaram, outros deram as mãos, os meninos usaram mais a
verbalização. Alguns ficaram meio sem graça. Falar de sentimentos não é fácil mesmo. A
menina que estava a meu lado se jogou em meus braços, e ficamos abraçadas até que
Cristina nos convidou a sentar em círculo no chão.
Ela falou um pouco do que representavam para ela aqueles momentos, como
chegara tensa da outra escola, onde tivera um aborrecimento, e da ansiedade de ter que
correr para chegar na hora para a aula de Língua Portuguesa, matéria que lecionava. Contei
pra eles que trabalhara muito tempo com educandos de quinta à oitava série e que achava
bom estar ali, vendo-os fazer aquele trabalho, e perguntei o que significava aquilo para
eles. Alguns se pronunciaram de imediato. Falaram que achavam legal, que também
esqueciam os aborrecimentos de casa por um tempo, que ficavam mais relaxados, o sono
depois do almoço diminuía e que gostavam de ter aula assim, sentados no chão, de vez em
quando. Uma das meninas se aproximou mais de mim, deitada de bruços, e fiquei
brincando com seu cabelo. Ela fechou os olhos e se “aninhou” em meu colo. Um dos
meninos, que estava mais arredio e que implicava com os outros todo o tempo, foi
questionado por alguns colegas no sentido de não atrapalhar.
Um aspecto que achei interessante e sobre o qual conversáramos muito nos
encontros do segundo semestre da Bioexpressão, é que não devemos obrigá-los a fazer o
que não querem, mas estimulá-los sempre a participar. Isso ficou muito evidente naqueles
momentos. Cristina não os forçou a nada, inclusive uma das meninas não participou, mas
não interferiu na atividade da turma.
Depois daquele tempo para trocas, Cristina pediu que abrissem os livros e começou
a aula. Despedi-me para acompanhar outro educador da mesma escola, que estava na sala
de cima. Uns dez minutos depois, voltei para devolver a caneta que levara sem perceber.
Lá estavam todos no chão, atentos às explicações. Foi uma cena muito boa de ser vista.
Cristina foi, aos poucos, ousando mais, e dividia com os colegas suas experiências
nas reuniões pedagógicas. Só faltava empunhar os textos que trabalháramos no Curso para
mostrar para a diretora, que parecia meio desconfiada, que sabia o que estava fazendo, que
a “brincadeira” era séria.
312
Saindo da aula de Cristina, fui até a sala de Pedro que tinha uma aula na sala dos
computadores com a quinta série. Como narrei anteriormente, Pedro fora afastado das
aulas de Artes, mas continuara com as de Informática. Perguntei-lhe se poderia assistir. Ele
disse que sim, mas que não faria nenhuma atividade naquele dia. Fiquei um tempo com ele
e seus educandos, e pude observar que mesmo em uma aula muito técnica, mantinha uma
relação próxima com seus educandos e que os atendia de forma afetuosa, se aproximando
amigavelmente, respondendo com atenção suas perguntas.
Tiago, em minha primeira visita, estava preparando os alunos para uma
apresentação de fim de ano. Ensaiava uma música em Inglês, matéria que lecionava. O que
me chamou atenção foi o cuidado com a expressão corporal de seus educandos. Parecia
que ouvia a mim mesma falando com nosso grupo ao vê-lo falando com os jovens, mas
não era uma mera repetição, ele estava entregue ao momento: “Respirem, sintam sua base,
relaxem bem para a voz poder sair, soltem bem os braços”. E parava a música, e orientava
os movimentos, ... Fiquei observando seu corpo. Que diferença do início de nosso trabalho,
quando seu corpo tinha pouca mobilidade. Olhando para ele ali, corpo bem solto,
expressivo, era inevitável lembrar de seu processo. Aos poucos, também seus alunos iam
deixando a música se expressar através do corpo todo. Tiago já havia falado de mim com
eles e parecia que minha presença não os incomodava. Quando alguém batia os olhos em
mim, eu lhe fazia um sinal de aprovação, estimulando a continuação do movimento. Não
era propriamente uma coreografia, mas sim a expressão do sentimento da música do qual o
educador falara inicialmente. O que se desejava é que pudessem sentir a música e
expressá-la com todo o corpo. Quando faltavam alguns minutos para terminar a aula, Tiago
pediu que, de pé, em círculo, deixassem o corpo bem solto, que colocassem a base,
dobrassem levemente os joelhos e fechassem os olhos, soltando o ar com um som.
Pareceu-me que também esse grupo da sétima série já estava familiarizado com essa forma
de atividade. Mais uma vez, o professor não obrigou ninguém a fazer, mas estimulando-os
a entrar no círculo, amigavelmente, conseguiu que todos se envolvessem na atividade.
Demo-nos as mãos e ficamos algum tempo sentindo-nos como um grupo que trabalhava
em conjunto. Tiago voltou a falar que a beleza da música se expressava, porque todos
estavam juntos, caso contrário isso não aconteceria. Agradeceu minha presença e sugeriu
que antes de sair me agradecessem pelo que tinha se modificado na sala de aula após o
Curso. Aproveitei para lhes dizer como gostei de estar ali com eles. Apenas um rapaz me
313
estendeu a mão e se manteve mais formal. Para minha surpresa, todos os outros me
abraçaram antes de sair. Alguns estavam meio sem jeito, mas quando sentiam que eu
acolhia seu abraço, se entregavam a ele. Outros me abraçavam de forma muito espontânea
e disseram que estava muito legal aquele “negócio” de mexer o corpo e respirar, era
“irado”.
Utilizar momentos de descontração na sala de aula, no início, meio ou fim,
dependendo da necessidade passou a ser uma característica das aulas de Tiago, não havia
um momento pré-determinado.
Enquanto estava na sala com Tiago, que tinha janelas para uma área de passagem,
os estudantes com quem já estivera passavam e me acenavam com a mão, sorrindo. Isso
também acontecia na hora do recreio, quando ficava conversando com os educadores.
Julgo interessante falar da diretora dessa escola. Quando cheguei à escola pela
primeira vez, fui apresentada à diretora. Recebeu-me muito bem, mas com uma certa
desconfiança. Quis saber o que eu estava trabalhando exatamente, quem era, o porquê do
meu trabalho, qual a minha formação, se já trabalhara com alunos do ensino fundamental.
Não é difícil imaginar sua preocupação tendo quatro de seus professores envolvidos com o
mesmo Curso, propondo transformações que a assustavam um pouco pelo que pude
perceber. Ainda mais que, sendo uma escola pequena e tendo uma turma de cada série,
todos os professores dão aula para as mesmas turmas. Por outro lado, isso foi
extremamente significativo a meu ver, na medida em que os educandos puderam vivenciar
atividades lúdicas e de percepção corporal em quatro disciplinas, o que seria desejável em
qualquer escola pelas possibilidades que se apresentariam a seus estudantes.
Na saída, fui me despedir dela e falei de quanto seus profissionais eram pessoas
envolvidas com a educação e com seus educandos, de sua vontade de crescer, de se
tornarem pessoas e educadores melhores. Ela sorriu e pareceu ter se sentido mais aliviada.
Eduarda me surpreendeu. Houve um dado momento em que achei que não chegaria
a acompanhá-la em sala de aula. Sua resistência era enorme. Desculpas, uma infinidade.
Mas, apesar disso, através de sua expressão corporal, de seu diário e de seus depoimentos,
percebia que havia um processo de transformação acontecendo. Procurei deixá-la à
314
vontade, não pressionar, postura que assumi com todos. Um dia, me disse: pode marcar sua
ida à escola quando quiser. Não pensei duas vezes, marquei para a primeira oportunidade.
Eduarda trabalha com alunos de ensino médio, com o terceiro ano, ensinando
Matemática. Todos têm mais de 18 anos. A escola está muito destruída pelos próprios
estudantes, há muito vandalismo e revolta especialmente contra a direção e alguns
professores que colocam uma grande distância entre eles e os estudantes. Isso já me havia
sido dito por Eduarda e Isabela, que lecionam na mesma escola, e por alguns estudantes
com quem conversei. A relação de Eduarda com seus educandos me pareceu saudável.
Eles a respeitam, gostam dela e a protegem nas “quebradeiras” que ocorrem quando falta
luz. Desde o início de nosso curso de Bioexpressão, Eduarda mantinha uma boa relação,
mas sua grande queixa, no início do trabalho era a dificuldade de se aproximar mais e
inovar. Sentia-se muito ameaçada quando alguém se aproximava mais. Tinha verdadeiro
horror a qualquer contato físico.
-la atuando foi surpreendente. Segura, espontânea, afetiva. Orientou as
atividades com tranqüilidade, e pelas referências que fazia a outros momentos, ficou claro
que o grupo já vinha desenvolvendo atividades de Bioexpressão há algum tempo. Uma
dificuldade que percebi foi a de lidar com os “engraçadinhos” e com as resistências da
turma, eles foram ganhando muito espaço e interferindo na atividade. Como me pedira
para levar uma música que utilizávamos em nossos encontros, pediu-me que orientasse
uma parte da atividade. Com jeito, fui puxando os resistentes para o grupo e pedindo que
se calassem para poderem respirar. Esse tipo de riso e fala que se manifestou é claramente
uma forma de lidar com a falta de jeito, com a dificuldade de se entregar ao trabalho, o
que, certamente, aumentou com minha presença. O rapaz que estava gerando maior quebra
no processo, que se distinguia completamente dos demais pela vestimenta, calça e camisa
social, cinto de couro e celular na cintura e que agia com um ar de superioridade, acabou
desistindo de perturbar e se sentou. Cabe uma ação nesse caso, uma conversa em
particular, no sentido de mostrar que não é obrigado a participar das atividades, mas que
não deve interferir na atividade do grupo.
Posteriormente às visitas, conversava com os educadores, pontuando os aspectos
positivos, sugerindo modificações ou dando orientações. Uma situação que acontecia com
certa freqüência era a necessidade de inverter a ordem das atividades. A primeira atividade
315
era de respiração e relaxamento e a seguinte de movimento. A inversão poderia ajudar
bastante que retomassem as atividades menos agitados, e que soltassem o corpo
inicialmente.
Em uma dessas trocas, Cristina observou que era importante mostrar para seus
educandos que o que fazia não era um simples passatempo, mas uma forma de trabalhar
outras coisas. Queria que a vissem como um ser humano que também está procurando
crescer. “Poder respirar no meio da aula não é bom só pra eles, pra mim também”. Essa
percepção de que as atividades estavam contribuindo para o bem-estar de educadores e
educandos foi observada por todos.
3. Atividades desenvolvidas
Cada educador propôs atividades que melhor se adequavam a suas turmas, às
necessidades de seus educandos, assim como aquelas que sentiam mais segurança de
orientar. Foi interessante observar o crescimento da segurança e do “conforto” que sentiam
com as atividades, com pequenos passos que iam dando gradativamente. Alguns pediam
sugestões ou trocavam idéias comigo quanto à realização de dinâmicas, outros me
surpreendiam com propostas que surgiram de nossas vivências por eles adaptadas.
Dentre as atividades que desenvolveram, além das já descritas, estavam o jogo
dramático, reflexões sobre situações concretas relacionadas à vida escolar ou familiar a
partir de letras de música ou de outros textos; relaxamentos orientados, mantendo-se os
educandos sentados nas próprias carteiras; trabalhos de recorte e colagem, e trabalhos com
sucata.
Uma forma interessante de relaxamento, autopercepção e estímulo energético foi a
automassagem, que Tiago havia sugerido em um de nossos encontros, especialmente, em
partes do corpo em que, segundo a medicina chinesa, estão pontos relacionados a todo o
corpo os pés e as orelhas; e nas mãos, onde também se encontram os vários meridianos
por onde circula a energia. Foi um aprendizado do toque e da sensibilidade.
316
As atividades de integração e apresentação, que desenvolvemos em nosso Curso,
também foram lembradas pelos educadores. Havíamos conversado muito sobre a
importância de sabermos os nomes de nossos educandos e de nossos colegas, e a
importância de dizer e ouvir o próprio nome de formas diferentes, podendo ser
acompanhadas de gestos, para “reforçar” a identidade.
Era comum comentarem sobre um dos dias em que faltou luz durante o Curso,
impossibilitando a prática que eu havia preparado, e acabamos desenvolvendo atividades
sem música ou com o canto, e o resultado foi excelente. Foi uma aprendizagem importante:
podemos sempre utilizar os recursos corporais e flexibilizar nossa prática se estivermos
abertos para novas possibilidades.
O mais importante não foi propriamente a atividade desenvolvida ou a sua
variedade, mas a consciência de que as mudanças estavam acontecendo dentro de si e
fora, na sala de aula; e os resultados lhes davam ânimo e “coragem” para continuarem.
Paulo Freire afirma que nós, educadores, precisamos agir com clareza em nossa prática, o
que pode nos tornar mais seguros em nosso próprio desempenho. Essa clareza de por que
fazer estava se manifestando nas ações dos educadores.
Diz ainda Freire, que a nossa capacidade de aprender, o que possibilita a de ensinar,
implica a apreensão da substantividade do objeto aprendido.
Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente, nos
tornamos capazes de apreender. Por isso somos os únicos em que aprender é
uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que
meramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir, reconstruir,
constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do
espírito (2004, p. 69).
As falhas e os riscos fazem parte de nosso ofício de educadores. O importante é não
desistir, ousar e acreditar que é possível mudar e que vale o investimento.
317
CAPÍTULO V
CARACTERIZAÇÃO FINAL DO GRUPO DE PARTICIPANTES
DA PESQUISA
É a partir deste saber fundamental: mudar é difícil, mas é possível,
que vamos programar nossa ação político-pedagógica,
não importa se o projeto com o qual nos comprometemos
é de alfabetização de adultos ou de criança, se da ação sanitária,
se de evangelização, se de formação de mão de obra técnica.
Paulo Freire
As entrevistas finais ocorreram entre novembro de 2002 e janeiro de 2003 devido a
algumas dificuldades de tempo dos participantes da pesquisa, envolvidos com atividades
docentes de final de semestre e com o período de festejos de final de ano, tempo em que,
também, me ausentei de Salvador. Essas entrevistas, diferentemente das iniciais,
transcorreram em um clima de descontração. A conexão entre o pensamento e o sentimento
foi outro aspecto observado. Não percebi, nesses momentos, a intenção de darem respostas
que me “agradassem” ou de ocultarem suas fragilidades e dificuldades, como ocorreu nas
primeiras entrevistas, quando ainda não havíamos estabelecido vínculos de confiança. Não
havia mais a necessidade de se “protegerem” atrás das “máscaras de bons profissionais”,
embora tenham, inegavelmente, crescido nesse aspecto. Conforme narrei anteriormente,
três participantes da pesquisa não me deram a possibilidade de entrevistá-los: Angélica,
Lucas e Mateus, sendo feitas treze entrevistas.
Como não poderia deixar de ser, houve níveis diferentes de envolvimento e
apreensão das atividades e estudos que desenvolvemos. Para alguns educadores, acredito
que se criou uma mudança interna capaz de continuar a gerar transformações em suas vidas
e em suas práticas pedagógicas, transformações que, de alguma forma, continuarão a
reverberar. É inegável que, naqueles momentos em que estivemos juntos, a sensibilidade
aflorava e havia um movimento interno acontecendo, a percepção de que era importante
mudar, o que não posso afirmar que tenha continuidade, pois só o tempo poderá dizer. A
318
nossa essência naqueles momentos foi tocada e, por isso, nos colocamos tão abertos para o
outro e para nós mesmos. Mas o que importa é que a cada vez que nosso self foi tocado,
nossa sensibilidade foi alimentada e entramos em contato com nossa essência, o que já faz
com que tenha sido válido. O prazer desse contato foi vivenciado. Eu não sei de que
maneira o processo continuará se refletindo, até onde irá reverberar, não há como prever.
Mas não tenho dúvidas de que alguns canais se abriram e que passos foram dados, cabendo
a cada um cuidar para que a caminhada prossiga e ficar atento para não retornar ao ponto
de partida, o que não acredito que vá acontecer com a maioria dos educadores, que já
conseguiram provar os frutos de sua plantação.
Considerando as entrevistas iniciais e finais, a trajetória de cada educador, seus
depoimentos e minhas observações, é inegável que transformações ocorreram. A percepção
dos participantes da pesquisa quanto ao que é ser um educador, a importância de investir
na autoformação e na formação dos educandos, a aquisição e vivência de novos
conhecimentos e conceitos como de ludicidade, relação razão-emoção na sala de aula,
corporeidade, relação entre educador e educandos e destes entre si, de autoridade em
oposição a autoritarismo, entre outros, atestam que passos significativos foram dados. A
análise das entrevistas finais corrobora minha afirmação como podemos ver a seguir.
As três primeiras perguntas apresentaram pequenas diferenças necessárias:
Entrevistas iniciais:
1. Como você se define como educador(a) ?
2. Você gostaria de mudar alguma coisa em sua prática pedagógica? Se afirmativa a
resposta, o que gostaria de mudar e como acredita que poderia fazê-lo?
3. Qual o seu interesse em fazer o Curso Bioexpressão: uma proposta pedagógica?
Entrevistas finais:
1. Como você se define como educador(a) depois desse ano de contato com a
Bioexpressão?
2. Você percebeu mudanças que considere mais significativas? Qual (is)?
319
3. Como foi para você ter feito o Curso Bioexpressão: uma proposta pedagógica? Atendeu
suas expectativas? Por quê?
As sete perguntas que se seguiam, permaneceram as mesmas, uma vez que a
intenção era verificar se houve mudanças ou não nas respostas. Acrescentei, ainda, duas
perguntas que tinham a intenção de verificar o que fora mais significativo para cada um
dos entrevistados e a possibilidade de dizerem algo que não tivesse tido espaço para ser
colocado nas perguntas anteriores.
1. Quem é o educador após o contato com a Bioexpressão
Embora houvesse predominado nas respostas dos participantes da pesquisa à
primeira entrevista a visão de si como “educadores” e não “simples” professores, puderam
perceber que ainda havia um caminho a ser percorrido. Observaram mudanças na sua visão
de educação, nas relações com seus educandos, na sua prática. Os exemplos abaixo nos
mostram isso:
Paula: Me vejo mais consciente ainda do que quando comecei a fazer o trabalho
com você. Foi um despertar maior, eu já tinha um movimento no sentido de
compreensão da relação do ser humano... E com as práticas que fizemos, com o
acompanhamento com você, eu tive a possibilidade de crescer mais ainda nesse
conhecimento. (...) Fui me abrindo mais pra algumas questões (...). Facilitou
minha capacidade de criação nas aulas; de aulas que envolvessem, não só a minha
disciplina, mas a relação com o ser humano. Quando eu planejo uma aula agora,
eu planejo além do conteúdo. Então, a minha definição é de abertura mesmo da
minha visão: do mundo, das pessoas, da educação. Um movimento de mudança da
visão de ser educador.
Érica: Eu cresci muito nesse período. (...) estou me sentindo mais capaz de
enfrentar os desafios, de refletir e saber que é uma questão de olhar com outros
320
olhos. Que dia após dia, refletindo sobre aquilo que eu estou fazendo, eu vou
continuar a crescer.
Tiago: Eu me defino como um professor humanizado e com nova consciência de
mim mesmo. (...) Eu me preocupava basicamente com a matéria, porque a
preocupação da escola é que se passe o conteúdo programático para o aluno (...).
Então, eu me preocupava que os alunos aprendessem e com a disciplina que a
escola exige, uma suposta disciplina e conteúdo. Agora não. Eu me interesso pelo
aluno, com o que está ocorrendo ao redor do aluno, fora da escola, dentro da
escola, a postura dele, a forma dele entender. (...) Antes, eu tinha o meu lugar, que
era a carteira do professor ali era o meu lugar, ali era a minha posição. Agora,
eu descobri que não só ali é o meu lugar; o meu lugar é em toda a sala, é no chão,
é conversando com os alunos, é entendendo, é discutindo. (...) Outrora, não era, na
sala, o professor era a lei. Mas hoje, é outra coisa, eu consegui enxergar novos
horizontes, algumas janelinhas foram se abrindo e eu consegui compreender mais
o aluno, que eu chamo de ser humano.
As falas de Paula, Érica e Tiago exemplificam um processo de “conscientização”
que foi sinalizado por vários participantes da pesquisa, que conseguiram lançar um novo
olhar sobre suas práticas pedagógicas. Ruy Cezar do Espírito Santo, observando que Paulo
Freire, incessantemente, frisa que educar é, antes de qualquer coisa, conscientizar,
acrescenta que “hoje haverá um avanço se introduzirmos a ‘autoconscientização’, que
significará a retomada do autoconhecimento, num novo momento da história”. Sócrates já
apontara que a sabedoria se inicia com o conhecimento de si, no entanto, a educação
escolar se encontra distante desse autoconhecimento. “Temos, isso sim, ‘cegos conduzindo
cegos’” (1998, p. 19).
O medo de investir nas mudanças também se mostrou, como se pode observar no
depoimento de Cláudia, que deixa entrever que há um processo em andamento:
[Grande pausa] Enquanto professora não mudou tanto como pessoa. Como
professora tive algumas experiências gratificantes, mas que foram experiências
que não dei continuidade por dificuldade minha. [Falou do medo de inovar, de que
a direção achasse que não estava trabalhando, que os colegas estranhassem, tanto
321
que nem comentou com ninguém o que fizera em sala de aula] Há um movimento
de aprofundar coisas que fui percebendo, mas que não sei como encaminhar ainda.
Medo e ousadia são companheiros dos educadores que buscam transformar suas
práticas e transformar a si mesmos como observam Paulo Freire e Ira Shor (1987). Com as
teorias psicossomáticas aqui analisadas, vemos que vencer os temores e ganhar coragem
para mudar padrões implica flexibilizar nossas couraças e tocar nossa essência, nosso self.
É um caminho a percorrer, caminho que Cláudia havia iniciado, e que poderá ter
continuidade, uma vez que algumas sementes já haviam começado a germinar e lhe
trouxeram um significativo movimento interno que pode ser observado ao longo da análise
dos dados.
Apesar de minhas inúmeras tentativas de estabelecer contato com Ana para a
entrevista final, não consegui marcar um encontro. Os seus horários, ela me dizia, estavam
completamente tomados, incluindo os finais de semana. Tendo em vista a experiência
anterior, as várias tentativas frustradas de estar com ela em sala de aula, perguntei se
poderia responder a entrevista se a enviasse por e-mail. Foi, assim, que consegui suas
respostas, sempre muito objetivas e curtas. Quanto à maneira de se ver como educadora
após o Curso respondeu:
Me vejo como uma professora com mais domínio do seu entorno, sua classe e seus
problemas.
Isabela, talvez, tenha sido a participante com maior resistência e mais impermeável
às transformações. Sua relação maternal com seus alunos e o cumprimento da “matéria a
ser dada” continuavam parecendo-lhe o suficiente para ser uma professora que trabalha
com seriedade, comprometida com a educação e cumpridora de suas obrigações como
afirmou na entrevista inicial. Teve dificuldade de se ater ao que lhe foi perguntado,
repetindo várias vezes as mesmas afirmações, que cortei para facilitar a leitura, mantendo
aspectos que mostram a incongruência de sua fala, especialmente, quando diz estar se
dando conta de que já fazia na sala de aula o que fazíamos no Curso, o que mostra que os
pontos mais significativos da Bioexpressão não foram apreendidos por ela:
322
Olha, alguma coisa modificou, não só eu como professora, mas no meu dia-a-dia
modificou. Agora, eu não observei muitas mudanças como professora, porque eu já
agia de uma determinada forma muito chegada a meus alunos. Eu dou carona, (...)
eu passo a mão pelo pescoço, eu puxo a orelha... (...) Eu já tenho assim um vínculo
afetivo muito grande com eles (...) Graças a Deus, eu não tenho problema nenhum
com os meus alunos. (...) Agora, mudou. Mudou assim, quer dizer, me ajudou, eu
não mudei muito, mas me fez ver que o que eu estava fazendo, eu estava quase
engrenando sem saber que eu estava engrenada. O que eu faço lá, eu já estava
fazendo um pouquinho parecido com o que acontece aqui, agora sem eu saber
que... Agora, eu não consegui levar o todo daqui, um todo, ou uma parte, um
pedaço, um pequeno, ou uma fatia daqui pra sala de aula. (...) Eu, outro dia,
estava conversando, “como é que eu vou chegar de uma hora pra outra e mudar
meu jeito?”. E esse final de ano está muito ruim, os meninos para assistirem a uma
aula é um duelo, é duelo pra você conseguir que os alunos fiquem na sala para
assistir às aulas. (...)
Mas eu não tenho conseguido praticar como precisava. Não que eu não queira
valorizar, de sorte alguma, mas as dificuldades do dia a dia... [segue-se a narrativa
de uma seqüência de problemas com horários, faltas e fugas dos estudantes]
Procuro voltar à questão inicial, mas antes pergunto sobre a temática que ela trouxe
para nossa entrevista, a do uso das atividades: Você gostaria de levar para a sala de aula
atividades lúdicas? Gostaria de alguma ajuda?
Não estou desmerecendo os meus alunos de sorte alguma, mas o ambiente que nós
temos lá não dá, fica muito difícil. (...) Porque eu estava falando, depois de greve,
depois de tanta coisa, agora, a gente chegar no final do ano os meninos receberem
isso pelos peitos eles vão dizer “essa professora está doida, enlouqueceu de uma
vez, o que isso tem a ver com Inglês, professora? Final do ano todo mundo
querendo sair daqui antes do Natal, a senhora vem pra cá mandar a gente respirar
e levantar braço!” Eu já estou ouvindo a resposta deles... [Segue-se uma longa
descrição de dificuldades com alguns estudantes].
Isabela comenta em seguida que Eduarda, que trabalha na mesma escola, a
estimulou a desenvolver algumas atividades que levara para sua turma e que tinham sido
323
muito bem recebidas pelos educandos, também adultos do ensino médio. Aproveitei para
sugerir possibilidades muito simples, orientando a forma de apresentá-las a seus
estudantes. Sugiro, também, que aceite a ajuda que Eduarda lhe oferecera. Ao que me
responde:
No dia em que eu a encontrei, ela disse que foi beleza e que todos os dias os
meninos querem música, mas aí eu não tive tempo, porque eu só encontro com
Eduarda à noite e, ainda assim, apesar de ser na mesma escola, fica difícil.
Não é difícil constatar que as resistências de Isabela são muitas e que qualquer
coisa será desculpa para não mudar sua prática. Em seu livro Professora sim, tia não,
Paulo Freire chama a atenção para o cuidado que os educadores devem ter para não
distorcer sua tarefa profissional, caindo na armadilha ideológica de afastá-los de sua
responsabilidade de formar seus educandos para que se tornem sujeitos e não objetos.
Aponta para a necessidade do ensinante ser também aprendiz, necessidade de ousar e de
dizer não à burocratização mental a que nós, educadores, somos expostos a cada dia.
Mudanças na nossa prática pedagógica ocorrem quando internalizamos uma visão
de educação diferenciada daquela que vê a escola como local de informação e não de
formação, como analisamos no terceiro capítulo, o que se inicia com o processo de auto-
formação do educador. Algumas educadoras apontaram para mudanças mais perceptíveis
em si mesmas do que na sua prática profissional, o que denota busca e investimento dessas
profissionais:
Carolina diz: Acho que as influências foram muito mais a nível pessoal. Mas
aproveitei a idéia de fazer um diário, os relatos de experiência (o que me ajudou,
inclusive, a organizar a nível pessoal o momento difícil que eu vivia) com as
minhas turmas para ter retorno dos meus alunos a partir das suas vivências, o que
eu não fazia antes. Foi uma aprendizagem de integração. Me animei até a fazer o
Mestrado pela possibilidade de ver um trabalho desses na academia.
Mariana aponta uma mudança pessoal que repercute em sua prática pedagógica:
Quando fiz a Bioexpressão, já tinha alguns conhecimentos de trabalho corporal e
experiência com ludicidade em sala de aula. É impressionante como a minha
324
percepção dos alunos se modificou depois da Bioexpressão, como eu consigo ler os
alunos através dos movimentos e das posturas com uma facilidade muito maior.
(...) E uma coisa que mudou, que ampliou muito foi a confiança de poder
trabalhar. [grande pausa em que parece buscar a maneira de explicar] Fiquei mais
desinibida pra trabalhar alguns aspectos. Antes, quando fazia as atividades
corporais com meus alunos, eu pedia que fizessem. Eu me inseri no grupo depois
da Bioexpressão, eu não fico mais como quem só observa, eu participo das
atividades. Isso tem duas vantagens. Uma foi até dito por uma aluna no relato de
experiência que passei a pedir, ela chamou atenção de como foi importante pra ela
eu estar participando. A outra foi pra mim, foi muito interessante perceber que
olhar de fora é muito diferente de estar no meio, na relação, no corpo a corpo,
vivendo aquela energia, no olho a olho, isso eu aprendi com você, porque você
estava ali fazendo com a gente, entrava na mesma sintonia, mesmo que pelas suas
falas a gente percebesse que você estava atenta ao que acontecia. Isso foi muito
importante, aprender a ficar do lado de dentro, junto com meus alunos. Isso me
trouxe muitos benefícios. Mesmo estando preocupada em verificar as reações dos
alunos, eu fazia isso ali no meio, eu ficava mais perto, ficou mais fácil chegar mais
perto.
Como Mariana, Pedro, antes muito formal, se aproximou de seus educandos:
Olha, eu acho que mudou bastante na relação com os meus alunos, eu me sinto
mais perto agora. (...) Porque eu tinha essa idéia que o professor tinha que estar
sempre ali com as rédeas na mão. (...) E as minhas aulas tinham a tendência de
ficar sérias por causa disso, eu tinha sempre essa preocupação de tentar manter a
ordem, aí não deixava que meus alunos se expressassem e interagissem comigo.
O sentir-se mais à vontade no próprio corpo e a capacidade de se autoperceber
aumentaram a segurança de Cristina e Clara, como mostram suas falas:
Cristina: Eu me defino como uma professora mais equilibrada, mais responsável e
mais preparada pra lidar com meus alunos. Apesar de todos os problemas, eu me
sinto mais inteira pra dar aula. Quando me sinto sobrecarregada, eu respiro, eu
me sinto e sinto meus alunos. (...) Com a Bioexpressão eu, realmente, me sinto
325
melhor, com mais recursos, me sinto mais confiante, a palavra correta é esta, mais
confiante.
Clara: Eu vejo que eu percebo o corpo de outra maneira, tanto o meu, quanto os
dos alunos. A forma de expressar, de andar, o falar. (...) Me definiria hoje como
uma professora mais sensível... Eu acho que eu sempre tive uma tendência de
enxergar o outro numa totalidade. Mas, eu acho que a Bioexpressão me fez
enxergar a necessidade que a gente tem de acreditar nos nossos desejos, na
capacidade que a gente tem. Por exemplo, quando eu estou trabalhando com uma
criança, que eu vejo que está cabisbaixa, me pergunto se ela não está conseguindo
olhar no olho, se a fala não sai; eu consigo perceber que ali existe uma auto-
estima que precisa ser valorizada, que precisa que eu faça com que ela pense em se
considerar como um ser único. Acho que hoje eu consigo enxergar isso mais
claramente, a partir da percepção de mim mesma.
Vários participantes da pesquisa, ao se definirem como profissionais, deixam
transparecer, em suas falas e em suas atitudes, que houve um caminhar na direção de se
tornarem realmente educadores, com alguns dos atributos que considero fundamentais:
comprometimento com seu fazer, respeito pelos educandos, olhar que vê, ouvidos capazes
de ouvir, sensibilidade e cuidado na relação com outro. Mostra-se um caminhar que Ruy
Cezar do Espírito Santo (2002, p. 104) traduz em poema, do qual extraí alguns versos:
Dar um passo...
Acreditar na força interior
Nas infinitas possibilidades do meu presente
Na descoberta de mim mesmo
Dar um passo...
Na direção do porvir
No sentido da história
Na busca da significação
Dar um passo...
É caminhar
Caminhar de mãos dadas
Caminhar solidário
326
2. Mudanças consideradas mais significativas
Todos os participantes da pesquisa afirmaram ter percebido em si mudanças
significativas. Puderam entrar em contato com dificuldades, inseguranças e medos,
aprisionados em seus corpos, que ainda não haviam conseguido olhar de frente. Podemos
observar isso nas falas abaixo. Mariana relembra sua trajetória e suas conquistas graduais:
Quando eu comecei a fazer o curso de Bioexpressão estava num momento delicado
na vida pessoal e conjugal, e percebi que tinha muita dificuldade de trilhar o
caminho do meio. Sempre me coloquei nos opostos. E isso foi muito mexido no
curso. (...) [Mariana fala da importância das vivências para a percepção de como
agia, de sua falta de flexibilidade] Foi aí que percebi minha dificuldade. E o que
percebi e que mudou muito minha interação com as pessoas, especialmente no
ambiente familiar, foi ficar atenta a minha rigidez e trazer esse exercício pras
situações cotidianas, ou seja, poder ter mais jogo de cintura, de pensar mais em
possibilidades para as situações que surgem. Essa flexibilização, que encontrei na
Bioexpressão, foi fator determinante com minha filha, pra que as coisas
melhorassem entre nós. Trabalhar corporalmente isso, me trouxe flexibilização na
vida diária. (...) Eu pude me aproximar muito de mim, me perceber muito, e não sei
se não tivesse sido a Bioexpressão se eu teria tido a generosidade que tive comigo,
de aceitar minhas limitações e dificuldades e ver estas questões com mais
acolhimento a mim mesma, porque sou muito dura comigo.
Clara se emociona ao falar do que significara o tempo de contato com a
Bioexpressão:
Eu tive a experiência de vivenciar as práticas da Bioexpressão junto com outras
experiências de estudo de ludicidade e educação, mas a Bioexpressão teve uma
questão especial que é a descoberta das minhas possibilidades enquanto ser
humano. Eu fico até emocionada. Assim, saber que eu podia caminhar era difícil
pra mim; me apropriar de algo que era meu era difícil. Houve situações que eu
tinha que tomar decisões, decisões sérias na minha vida e que eu acreditava que eu
327
não teria possibilidades de seguir adiante se eu tomasse tal decisão, ou se eu
tomasse aquela decisão eu não daria conta das conseqüências que viriam. [grande
pausa] As atividades chegavam até mim de uma forma muito sensível (...) Eu pude
amadurecer muito. Ah, eu pude me descobrir! O que eu procuro fazer é relaxar,
faço alguns movimentos, e danço sozinha, lembro que você disse que dança
sozinha em casa, eu aprendi a dançar comigo mesma. (...) Foi supersignificativo,
principalmente, pensando na minha vida pessoal, acho que foi o período mais
difícil da minha vida...
Eduarda depõe: Quando eu cheguei no curso, fui sem saber por que estava indo.
[narra uma série de atividades que desenvolvia sem envolvimento] E do curso pra
cá eu tenho percebido que isso mudou porque eu já tenho prazer em levar meu
filho pra escola, em ir cantando com ele. Já vejo prazer em ir pra escola trabalhar.
Até as pessoas da escola perceberam a diferença. (...) Eu estava ausente de tudo,
eu estava ausente até da minha própria vida. Eu percebi que isso melhorou
bastante, o relacionamento com meu marido, com a minha mãe, com as minhas
irmãs, eu já vejo coisas que eu não via, qualidades que eu não percebia, parece
que só percebia os defeitos, não percebia as qualidades. E assim, eu estou vivendo
mais tranqüila, eu estou vivendo mais feliz, sorrindo mais.(...) Eu passei a gostar
mais de mim, a me aceitar, porque eu mesma me desqualificava. Estou me
respeitando mais. Eu vejo o aumento de minha auto-estima nitidamente em todo o
processo do Curso. A minha fala ficou mais verdadeira. Eu falava muita coisa que
eu não sentia. (...) Eu disfarçava muito, isso eu sabia fazer bastante. Eu sorria
muito, isso pra mim era perceptivo, e eu sabia que todo mundo percebia que era
um sorriso falso.
A fala de Eduarda havia chamado minha atenção desde a entrevista inicial,
parecera-me que ela a utilizava para se esconder, assim como seu sorriso. Como acontecia
com outros participantes da pesquisa, sua fala se mostrava desconectada de seus
sentimentos. Apoiava e exemplificava, com freqüência, o que eu dizia, como que buscando
aprovação. Mas, ao longo do Curso e do prolongamento de nossos encontros, a conexão
gradativamente foi acontecendo, o tom de sua voz mudou, se tornou mais suave, assim
como sua expressão facial. Passou a escutar com mais atenção o que era dito, ou, talvez, eu
possa dizer que começou a escutar com mais coração. Na entrevista, ela conta:
328
Antigamente, eu falava muito alto. Eu tenho uma coisa assim de quando eu fico
nervosa eu começo a sorrir e a falar cada vez mais alto, eu estava falando tão alto,
tão alto que eu não estava nem conseguindo ouvir as outras pessoas. Minha mãe
até falou “você está falando tão alto!” Eu disse “ah, é por causa dos alunos”. Não
era, é que eu queria sempre estar falando, sempre de uma forma que calasse as
outras pessoas. Agora eu estou ouvindo a minha voz, porque eu nem escutava.
Érica fala da dificuldade e da vitória de ter podido olhar de frente o que a fazia se
sentir tão infeliz e sem energia para viver:
Eu estava me sentindo muito responsável pela felicidade dos outros. Eu descobri
que não pode ser assim; cada um é responsável pela sua própria felicidade. E eu
estava me sentindo muito infeliz com isso; porque eu estava sempre correndo atrás
de alguma coisa que alguém estava precisando, para satisfazer alguém. No fundo
eu estava ficando para trás. Foi a chance de aprender a olhar para mim, de me
cuidar.
Alguns educadores observaram que puderam perceber melhor seu próprio corpo, se
descobrir, detectar suas tensões e utilizar recursos para suavizá-las, o que lhes facilitava
não só lidar com as dificuldades da sala de aula, como com os obstáculos e desafios do dia-
a-dia, como mostram os depoimentos abaixo.
Cláudia: Eu percebi mudanças em mim mesma, principalmente. Percebo quando
estou mais tensa, com vontade de explodir e uso a respiração. Jogo fora a tensão
junto com o ar. Minha filha também. Percebo quando meu maxilar está ficando
travado e procuro soltá-lo.
Pedro: Antes de fazer esse trabalho eu não parava para observar minhas reações,
não tinha muito tempo para entrar em contato comigo... (...) E mesmo que eu
tivesse tempo, eu não tinha essa preocupação, não parava pra fazer isso. Com os
trabalhos, com as atividades que foram feitas, eu pude parar, em determinado
momento, e entrar em contato com meu interior. Pra mim foi uma mudança
significativa, porque eu pude observar muitas coisas que eu desconhecia em
relação até a minha própria pessoa, depois que eu fiz o curso eu descobri, estou
329
descobrindo. (...) Eu era muito fechado, a palavra certa é esta mesmo, eu era muito
fechado com relação a essas coisas.
Ana: Passei a ter maior observação quanto ao comportamento e necessidades dos
alunos e a ouvir mais atentamente, com interesse e sensibilidade o que eles têm a
me dizer.
Tiago: Eu não sou mais aquele professor. O professor que foi no início do ano
passado, não é mais esse professor de hoje. Eu mudei consideravelmente. (...) Eu
consegui enxergar tanta coisa que eu não conseguia enxergar, hoje eu consigo
enxergar a sala de aula. Isso é muito bom, porque eu tenho um retorno, os alunos
gostam, aprendem, sentem prazer com a aula.
Renata: Houve mudanças sim. Sou capaz de perceber as expressões de meus
educandos, de entendê-los melhor. Me senti mais à vontade e eles também
passaram a se chegar mais, a fazer perguntas, a participar. Também se
aproximaram mais uns dos outros. Senti-me mais segura em relação a minhas
turmas. Eles passaram a se referir a mim de forma mais carinhosa, elogiavam a
aula. Isso se intensificou depois do Curso. Não inovei muito, porque a escola
impede propostas, mas a relação com meus alunos melhorou bastante. Ainda não
consigo levar atividades pra sala de aula e me sinto ainda muito contida.
À proporção que a rigidez dos corpos dos educadores era flexibilizada, a sua
capacidade expressiva se ampliava, e as mudanças se tornavam mais visíveis. A atitude é
uma totalidade, como observa Stanley Keleman (1975/1996), apresenta componentes
musculares, emocionais e mentais. Quanto mais rígidos se mostram os corpos, mais rígido
se encontra o conjunto de crenças e valores, mais contidos se encontram pensamentos e
emoções. Em seus depoimentos e, especialmente, em suas atitudes, se mostrava que as
atividades, realizadas ao longo de quase um ano, foram gradualmente flexibilizando as
couraças musculares, permitindo que emoções contidas fossem sendo liberadas e se
expressassem; que a energia fluísse e trouxesse a intensificação da pulsação que se traduzia
em vitalidade, tomada de decisões e alegria.
330
3. O Curso de Bioexpressão: as expectativas e o fazer
Como foi para você fazer o Curso de Bioexpressão? Atendeu suas expectativas?
Por quê? Essa pergunta mostrou que quase todos os participantes da pesquisa tinham uma
expectativa que não se confirmou, especialmente por estar relacionada a uma pesquisa de
Doutorado: achavam que teriam aulas teóricas, “sérias” e algumas sugestões de atividades.
Mas, ao contrário de trazer frustração, o inesperado trouxe uma boa surpresa e ganhos
como exemplificam os depoimentos selecionados:
Carolina: Foi além de minhas expectativas. Eu tinha curiosidade, não sabia
exatamente o que era, fui na expectativa de ser um curso teórico que tivesse
algumas experiências práticas. A teoria vinha depois da experiência e isso foi
muito legal, foi melhor do que eu imaginava. A relação teoria-prática estava bem
entrosada.
Cristina: Eu pensei que seria um curso, que teria anotações, avaliações, pra mim
seria um curso normal, como outro qualquer. Não foi, foi além, melhor do que
imaginei.
Pedro: Olha, de início, eu não imaginava que seria como foi, porque, eu esperava
um curso mais teórico. (...) Eu fiquei surpreso, diria que superou minhas
expectativas e que trouxe muitos ganhos.
A expectativa dos participantes da pesquisa confirma que ainda é muito comum a
existência de aulas em que teoria e prática se encontram dissociadas, predominando a
informação. Foram unânimes em considerar que foi importante terem feito o Curso, porque
adquiriram uma nova visão da prática pedagógica e da ludicidade, a compreensão de que
vivenciar um conhecimento facilita sua apreensão. Também demonstram que adquiriram
uma nova percepção de si mesmos como mostram os depoimentos abaixo:
Clara: Eu ainda tinha uma percepção de que quem trabalha com o corpo, trabalha
com o lúdico, tem um estilo diferente, como a gente coloca no senso comum, uma
331
pessoa meio doida. (...) A possibilidade de trabalhar com o corpo foi surpresa
quando você dizia assim: “é preciso encontrar em você a ludicidade, pra que você
possa externar isso, se você quer trabalhar com isso, primeiro você precisa
sentir”. Eu não tinha me dado conta disso, mesmo lendo sobre ludicidade, sendo
apaixonada por esta temática, querendo trabalhar sempre com isso, eu ainda não
tinha tido esse saque que seria necessário pra trabalhar com isso que eu sentisse o
quanto isso é significativo pro ser. (...) É aquela questão da dicotomia entre a
teoria e a prática, isso na ludicidade fica muito explícito, se você fala e estuda, mas
se você não vivencia, não se efetiva o aprendizado. (...) Eu aprendi a perceber o
quanto é necessário a gente ter “jogo de cintura” na vida e na sala de aula.
Paula: Eu estou me sentindo mais solta pra brincar com eles, pra fazer um carinho,
pra chegar mais perto. [Paula conta várias experiências totalmente novas para ela]
Antes eu me enfezava, eu me enfezava a aula toda. (...) Eu tinha aprendido que
manter distância era a forma deles me respeitarem. A minha história de
aprendizado, de educação era que eu precisava me impor para conseguir o
respeito, o silêncio. (...) Eu já aceito minhas limitações melhor. E me dá um certo
conforto conseguir lidar com elas, de eu até modificá-las, quando eu aceito
melhor. E eu percebendo esse movimento meu mesmo, eu já aceito aquelas
dificuldadezinhas do meu filho, do meu marido com uma flexibilidade maior. E
esse movimento eu estou fazendo também com relação a meu aluno. Eu aprendi a
saborear a vida, entendeu? E pronto, eu estou descobrindo a minha relação
maravilhosa com os outros, com a ludicidade.
O depoimento de Paula, mais uma vez, nos mostra que a crença de que se manter
distante e evitar o envolvimento afetivo é a forma de preservar a autoridade e ser
respeitado. Mais uma vez, entretanto, se comprova que esta crença é um dos muitos mitos
que povoam o imaginário do professor que precisam ser modificados.
A repercussão do que vivenciamos ao longo do período em que convivemos e
desenvolvemos atividades bioexpressivas ainda se fazia sentir como afirmou a maioria dos
educadores. A forma como a experiência ecoava em cada um, entretanto, assumia
contornos diferenciados, como mostram os exemplos que se seguem:
332
Cláudia: Vi possibilidades novas. Foi bom ter feito o Curso. Valeu a pena, me
mostrou uma novidade, formas de trabalhar ludicidade em sala de aula.
Reconheço que poderia ter aproveitado mais. Não levei pra sala de aula o que eu
poderia ter mudado. [Falou sobre a mudança pessoal e as dificuldades de lidar
com a forma dos outros verem seu trabalho. Também do medo que seus educandos
achassem que estava brincando e do seu próprio medo de estar facilitando demais
as coisas para seus alunos, não permitindo que aprendessem tudo] Faltou
segurança, fiquei com medo da novidade, que achassem que estava brincando,
porque não tinha consistência teórica para aprofundar conteúdos, do que já fui
acusada. Mas questiono essa estrutura e a mim mesma.
Eduarda: Pra mim foi o resgate da minha liberdade, do meu sorriso. O resgate de
mim. (...) Eu integrei os defeitos e as qualidades para aprender a lidar com eles.
Pra mim foi muito bom. E ao mesmo tempo, eu me vejo, eu sou assim, eu tenho que
me aceitar assim. Eu já consigo perguntar “por que eu estou sentido isso?”,
porque eu acho isso importante também, não tinha essa consciência. Eu não
percebia o que eu estava sentido. (...) Outro dia magoei um aluno, depois eu fui lá
e pedi desculpas a ele. Eu achei isso o máximo, porque eu nunca tinha pedido
desculpas na minha vida. Eu percebia, mas não tinha esse hábito. [pausa] Eu
continuei fazendo um diário mesmo, foi até hábito do Curso de registrar as coisas
que eu estou sentindo e refletindo. Superou as minhas expectativas, foi mais até do
que eu pensava.
Ana: Serviu para aperfeiçoar o meu trabalho em sala de aula e na convivência
diária. Com certeza valeu. As experiências vividas durante o curso, deram-me
subsídios para refletir e resolver situações vividas em sala de aula, no dia-a-dia,
quanto a questões tipo afetividade, agressividade, estresse...
Mariana: Na verdade o curso não acabou, ele continua presente. Tem uma
repercussão na minha vida e na minha atuação profissional. Este espaço de
amizade, de poder falar, mostrar desagrado também. (...) Superou todas as minhas
expectativas.
333
Tiago: Pra mim superou as expectativas. Eu esperava que fosse uma coisa mais
quadrada, mas esse curso rompeu, abriu horizontes que eu não esperava. (...)
Surgiram questionamentos meus, não só como educador, mas como ser humano.
Érica: Pra mim, foi super, super importante. Sabe, quando você está, assim, se
sentindo perdida, você precisa de um caminho? De, pelo menos, ter quem lhe
oriente sobre que caminhos você poderá seguir? E o curso me deu isso. Lógico que
é um trabalho que deve ser feito em mim, mas não pode ser feito em dois, três,
quatro, cinco, seis meses. Mas houve o início, eu já sei que caminhos eu preciso
trilhar, eu já sei o que eu preciso fazer, e o que buscar mesmo. (...) Então, pra mim
foi mais significativo no pessoal, mas esse pessoal interferia, interfere na minha
vida profissional. Então, se é possível cuidar bem desse lado, do outro lado eu vou
conseguir também. O primeiro movimento foi fazer perguntas a mim mesma e
contestar algumas situações que estava vivendo.
Considero que questionar, abrir mão das certezas, saber ouvir, contestar idéias
apresentadas prontas, fechadas são fatores fundamentais para o processo de mudança, de
“pensar com a própria cabeça” e de crescimento. Dante Galeffi (2001) observa que saber
contestar é imprescindível para ser capaz de desenvolver o pensar próprio, entretanto, para
pensar precisamos ser capazes de ouvir. E acrescenta:
... contestar não significa opor-se simplesmente, e sim, em primeiro lugar, querer
saber dispor-se ao diálogo interrogante. Claro, todo educando aprende
através de educadores. Isto é indiscutível. O discutível é a pretensa soberania do
educador sobre o educando. E se o educador é sempre possuidor de um saber, a
sua função pedagógica é justamente a de poder promover no outro (educando) a
possibilidade do seu próprio e apropriado florescimento espiritual. Ser educador,
então significa: deixar nascer no outro sua própria possibilidade de ser fazer
acontecer o advento do outro livre e criador (p. 448).
Pelas respostas dadas a esta questão, ficou evidenciado que o Curso trouxe aos
educadores, a partir de um maior contato consigo mesmos, possibilidades de questionarem
não só sua prática pedagógica, mas também algumas de suas atitudes diante da vida, assim
como a vivência da integração teoria-prática através das atividades lúdicas.
334
4. Relação razão-emoção na sala de aula
Diferentemente do ocorrido na entrevista inicial, os educadores tinham mais clareza
da relação entre razão e emoção e uma nova experiência nesse sentido. A ansiedade que,
visivelmente, se manifestou na entrevista inicial, pela dificuldade de responder, já não se
mostrava nesse segundo momento. A percepção dessa relação não teria ocorrido se não
pudéssemos tê-la vivenciado, por mais que teorizássemos sobre essa questão. Como
enfatizam António Damásio e Humberto Maturana, em seus textos utilizados nesta
pesquisa, há uma falsa idéia de que a emoção é prejudicial, quando na verdade, ela é
essencial, embora devamos considerar que uma não deve ser privilegiada em detrimento da
outra. A fala de Mariana mostra que, na sua prática, ela pôde fazer esta constatação:
O que pude perceber neste curso é que, ao contrário do que se diz quanto à
emoção ser empecilho para o desenvolvimento do raciocínio, ser nefasto, ao
contrário, a emoção é uma mola propulsora da construção de todo conhecimento.
Pude perceber isso com essa experiência que narrei pra você de que quando eu
deixei que a emoção se tornasse muito mais presente nessas turmas, que eu mesma
pudesse expressar a minha emoção, eu senti que a relação dos meus alunos com o
conhecimento mudou, ficou muito mais inteira, mais significativa. Nasce uma
demanda interna do indivíduo.
Também Carolina frisou a importância de ter vivenciado essa integração razão-
emoção:
Acho que cada vez mais pra gente conseguir ter essa visão integrada de razão e
emoção, a gente precisa trabalhar com vivências pra que a gente possa ter a
experiência e não só a teoria. Achei que e estrutura da Bioexpressão foi a ideal
mesmo. É importante como professor proporcionar isso aos alunos.
Todos os participantes da pesquisa disseram ter ampliado sua visão quanto a esse
binômio como indicam os exemplos abaixo:
335
Renata: Fico mais ligada ao que estão sentindo, percebo mais as reações e tento
compreendê-las. Estou dando mais importância à parte emocional.
Clara: Com certeza, não tem como dissociar na aprendizagem o cognitivo da
afetividade, do lado subjetivo, do pensar em si próprio, de sentir o outro. Pra mim
essas questões estão muito ligadas.
Ana que, na primeira entrevista, dissera que, sem dúvida, deveria privilegiar a
razão, responde:
A relação razão-emoção corresponde à afetividade que se desenvolve dentro da
escola entre o professor e o aluno. Essa relação cria um clima de facilitação da
aprendizagem quando o aluno e, principalmente, o professor sabem lidar com
essas emoções.
Pedro, desta vez, responde com convicção:
Na vida em si, no cotidiano, dia a dia, eu acho que razão e emoção têm que andar
sempre juntas, uma do lado da outra. Eu acho que como professor, ou em outra
situação como pessoa, a gente não deve nunca agir só pela razão. (...) A gente está
trabalhando com pessoas, com seres humanos. E tem o lado da emoção, por mais
que a gente tente suprimir, está ali dentro, está do lado. (...) Se um aluno em casa,
ou em outras situações, estiver vivendo problemas, vai mudar totalmente a
situação dentro da sala de aula. Eu passei por uma situação que antes da
Bioexpressão teria sido muito difícil pra eu lidar: eu estava dando aula e, no meio
da aula, um dos meus alunos começou a chorar, desabou.
Pergunto a Pedro, se estava desenvolvendo alguma vivência:
Não, eu acho que foi porque ele não estava acostumado ainda à escola. Eu estava
começando a trabalhar com eles, eles estavam vindo do ensino fundamental e não
estavam acostumados com a figura masculina do professor. Eu parei minha aula,
fui conversar com ele, perguntar se ele estava sentindo alguma coisa. E as coisas
mudaram de rumo totalmente, mudou tudo. (...) Aí eu fui, tive que fazer um
carinho, aí a razão nessa hora, se fosse por ela, ou eu teria comunicado à
diretoria, à secretária, sei lá, a alguém que tivesse maior contato com ele, e talvez
não seria do mesmo jeito, não resolveria o problema. Porque lidar com a emoção
336
do outro é difícil, né? Talvez eu chamasse outra pessoa pra me ajudar, e “tirasse o
corpo fora”, utilizando uma expressão corriqueira, ao invés de tentar interagir
com ele, saber o que estava acontecendo com ele.
Uma aprendizagem importante com os estudos de Wilhelm Reich, com freqüência
vivenciada em minha prática, é que, muitas vezes, quem parece ser uma pessoa fria, que
não se incomoda com outras pessoas, não o é de fato; ela não sabe lidar com a emoção do
outro, emoção que a assusta. E, geralmente, essa pessoa não sabe lidar com a sua própria
emoção. Como poderia então um professor se aproximar para saber da dor ou da raiva de
um de seus estudantes se não consegue, sequer, olhar para as suas próprias emoções?
Algumas das participantes da pesquisa manifestaram, apesar de algumas
dificuldades terem sido superadas, o medo de deixarem a emoção se manifestar:
Isabela: Hoje, eu vejo como uma relação fundamental, mas eu ainda tenho medo,
de muita aproximação, mas mesmo assim eu já tenho percebido que esse medo já
diminuiu bastante. Porque assim, no início eu só achava que bastava só a mudança
no conteúdo, eu não me preocupava com o emocional, mas também não me
preocupava como meu emocional, então eu não poderia me preocupar com essa
relação em sala de aula.
Paula: Eu não estou olhando só a cabeça deles, nem a minha disciplina, nem o que
ele está aprendendo com a minha disciplina. Tanto é que eu desenvolvi com eles
esse projeto do diário, que é o meu diálogo com eles. Eu não consegui desenvolver
o trabalho corporal como eu queria, mas eu consegui desenvolver um outro
trabalho que pra mim valeu e que tem tido retornos maravilhosos; deles
escreverem, de eu dar respostas pra eles. Porque no momento em que eles
escrevem pra mim dizendo assim “olha, sua aula hoje estava muito chata, pró, eu
não gostei” ou “tal aula estava até legal, mas eu não estava bem naquele dia”,
então, na minha avaliação eu vou pensar esse aluno de forma diferente; eu vou
pensar nele no momento de avaliar. Então, eu fiz esse movimento a partir do curso
de Bioexpressão, quando você pediu para fazer o diário. (...) Eu percebo que eu
consigo ajudá-los mandando recados, isso é muito bom pra mim e pra eles. (...) Eu
não consigo dizer isso a ele na sala de aula, porque eu tenho também que
trabalhar outras coisas. Então, eu acho que o diário foi uma forma que eu criei de
337
ter o aluno perto de mim. E é uma forma também de estar avaliando meu trabalho,
me avaliando, repensando a minha prática. Está surtindo um efeito maravilhoso,
está me atendendo perfeitamente nessa inteireza que eu estou precisando, de ver
razão e emoção.
Tiago: Agora, eu vejo a razão e a emoção em um equilíbrio. Porque quando eu
trabalho, eu uso a emoção, ela é muito convidada no meu serviço, nos meus
trabalhos, nas minhas aulas, nos meus trabalhos de base, com o lúdico, tem muita
emoção. Mas, a razão está no coordenar, no saber dirigir cada coisa, saber por
que fazer. (...) Ou era racional ou era emocional só isso. Hoje, eu consigo manter
um equilíbrio.
As observações de Paula e Tiago nos ajudam a refletir sobre o conjunto de
atividades que se expressam no fazer docente em sua relação com a atitude do educador.
Essa nova visão do educando e da prática pedagógica, naturalmente, irá influenciar a forma
do educador traçar objetivos, selecionar estratégias de ação, avaliar. Não muda apenas o
que é feito, mas a forma de fazê-lo, que é antecedida pela mudança do próprio educador.
Os educadores puderam vivenciar durante o Curso e em suas salas de aula a
experiência de integrar sentimentos, pensamentos e ações, integração que permitiu se
aproximarem mais de si mesmos e de seus educandos. Como afirma Madalena Freire, “um
dos sintomas de estar vivo é a nossa capacidade de desejar e de nos apaixonar, amar e
odiar, destruir e construir”. Tanto o ato de ensinar quanto o de aprender são movidos pela
paixão e pelo desejo. Desejo e paixão também de vida, que permanentemente, se
apresentam como forças em luta dentro de nós, que precisam também ser educados. “É na
fala do educador, no ensinar (intervir, devolver, encaminhar), expressão do seu desejo,
casado com o desejo que foi lido, compreendido pelo educando, que ele tece seu ensinar”
(2001, p. 11-12).
Stanley Keleman afirma que quando tentamos formar conexões apenas com nosso
cérebro, inibimos nossa vida emocional, restringimos a expansão que re-forma o nosso self
e os nossos relacionamentos. “É assim que florescem os sistemas de crenças. Eles tentam
lhe falar a respeito dos sentimentos e experiências de outras pessoas, o modo como outras
pessoas formaram a elas mesmas”. Dessa forma, não somos encorajados a nossa própria
formação expansiva, mas a repetir um determinado padrão. Os sistemas, via de regra,
338
tentam suprimir os mistérios da vida e nos dizer o que são os mistérios e como devemos
lidar com eles. Mas isso não faz sentido, porque o mistério somos nós e é importante
acessar a fonte de nossa própria formação (Keleman, 1975/1996, p. 115-116).
5. As crenças sobre o corpo na prática pedagógica
Se compararmos as respostas às entrevistas iniciais com as dadas após quase um
ano de atividades, podemos perceber que houve um caminho percorrido e mudanças
consideráveis quanto a conceitos e atitudes. As crenças quanto ao corpo na sala de aula e
as atitudes corporais dos educadores sofreram uma mudança radical, o que não só foi dito,
mas observado por mim com muita alegria. O que para a maioria era uma questão ainda
não pensada passou a ser um aspecto importante para observação e contribuição na sala de
aula, como podemos verificar nas falas abaixo:
Cristina: O corpo é vida. E através do corpo, em sala de aula, falando
pedagogicamente, eu mostro a meus alunos que eles podem ter vida. É isso mesmo,
é vida, é estar bem, é estar alegre, feliz. Cuidar do corpo é me cuidar, uma questão
de amor, de vida, de sentimento, de emoção, de expressividade.
Tiago: Eu não tinha corpo. O professor não tinha corpo. Corpo?! Nem Pensar.
Meu corpo era sentado numa cadeira, ou em pé escrevendo numa posição. (...)
Porque quando você fala em emoção, não tem emoção sem o corpo, sem fazer a
viagem da cabeça, a viagem do coração. Hoje, eu diria que eu estou presente na
sala de aula, e meu corpo sente as emoções, brinca, levanta, senta, salta de trás da
carteira. Os corpos dos meus alunos também mudam de posição. Na educação,
lecionando, isso é uma coisa nova. Em sala de aula, eu era aquele que ia lá e
passava a matéria, isso que a escola queria. E não era isso, há uma coisa mais
além, é o que dá prazer de estudar, melhorar o raciocínio, o aprendizado ficar
mais gostoso, mais fluente, mais solto, quando você está lá com o corpo. Aí, a
matéria sai bem melhor, tudo flui bem melhor. Eu sei até que pra quem está do
lado de fora pode parecer uma bagunça, mas nós ali já nos entendemos
perfeitamente. E hoje, o meu corpo está mais presente, por conta da emoção estar
339
mais presente. [Tiago conta algumas experiências e rimos juntos de suas
“aventuras” e ousadias] O corpo, na sala de aula, resumindo, tornou-se um aliado.
É nele que eu percebo as emoções. (...) O corpo passou a ser um importante
integrante na sala de aula, que sinaliza muita coisa que antes eu não percebia. De
mim e do próprio aluno.
Tiago comenta que, para quem está do lado de fora, pode parecer que sua aula é
uma grande bagunça. Esta situação foi muitas vezes comentada, inclusive devido ao medo
que causava aos educadores as cobranças da coordenação ou direção quanto à “disciplina”
não observada, que os impediu, algumas vezes, de dar prosseguimento a ações que se
perderam nas tentativas frustradas. Os pedidos de seus educandos que repetissem a nova
proposta e o meu estímulo não foram suficientes para que superassem o temor da censura e
da crítica dos seus “superiores”. Eu mesma, inúmeras vezes, contei-lhes sobre
questionamentos que coordenadores me faziam e dos muitos comentários irônicos que ouvi
de colegas quanto à “desordem” que acontecia (acontece) em minhas aulas. Ter
consciência do que fazia e por que fazia sustentava minhas transgressões. O que pode ser
chamado de bagunça, desordem ou indisciplina por alguns, nada mais é que a inquietação
criativa e expressiva se manifestando, a construção do novo. Faço minhas as palavras de
Regina Leite Garcia:
Para nós educadores, mais que tudo, me parece importante aprendermos com
Prigogine que do caos pode surgir uma nova organização. Quantas vezes a
“zorra” de uma sala de aula, o “caos instalado” para professores mais formais,
não será apenas um rico momento de explosão de energias reprimidas, de
criatividade à procura de expressão, de desorganização que, se não abortada
pela professora, pode preceder uma nova organização
85
(2000, p. 118).
Essa coragem para ousar pode e deve ser estimulada em nós por nós mesmos,
considerando que nem sempre a primeira tentativa dá certo como conta Cláudia:
85
Grifos pessoais.
340
Teve um único dia em que tentei trabalhar com essa questão do corpo. Pedi aos
alunos que, para que pudessem relaxar um pouquinho, fizessem um exercício de
respiração. Foi no segundo ano do ensino médio. Um lá no meio da sala reclamou:
“Pro, logo no dia da prova a senhora vai fazer respiração!” Aí me podou. “Tá
bom, vamos começar a prova”. Daquele dia em diante, não tive mais coragem.
Não dar certo na primeira experiência, entretanto, não significa que não dará certo
na seguinte, e, felizmente, as tentativas frustradas de alguns educadores não os impediu de
investirem em novas experiências. E, na maioria das vezes, como analisamos
anteriormente, as dificuldades não estão fora, mas em nós mesmos. Renata e Érica não
negam as dificuldades que enfrentam, mas, passo a passo, foram conquistando um novo
espaço em suas salas de aula:
Renata: Estou mais perceptiva às mudanças de meu corpo. Quanto aos alunos,
reparo a maneira como se sentam, se estão mais tensos, o cansaço, o ritmo.... Fiz
algumas mudanças na arrumação da sala, algumas dinâmicas relacionadas ao
conteúdo, mas poucas. Eles me pediam mais. Estou procurando vencer minhas
limitações.
Érica: Agora, em relação ao meu corpo, eu ainda me sinto um pouco travada, eu
preciso me soltar um pouco mais. É um processo.
O que me parece muito significativo é o fato de que as crenças sobre o corpo
passaram por grandes mudanças e houve aprendizagem como mostram as falas abaixo:
Carolina: Eu acho fundamental. É importante considerar a relação corpo-mente,
sua unidade, e trabalhar nessa perspectiva: o aprendizado através do corpo, do
ser, do existir.
Paula: Eu vejo com mais clareza como estamos sendo perversos com nossos
alunos, e como foram com a gente, e continuam até sendo com a gente nas
universidades como alunos. É perverso pensar que o aluno pode ficar o tempo todo
sentado na sala de aula sem se mexer, naquelas cadeiras desconfortáveis (...)
341
Então, o corpo não está sendo pensado em nada; não só no planejamento nosso em
sala de aula, mas em todo o âmbito da escola o corpo não é pensado.
Pedro: Eu posso enxergar de uma forma diferente. Temos aquele hábito de estar na
sala de aula e os alunos estarem sentadinhos, sempre do mesmo modo e não se
mexerem, não têm aquela coisa de aproveitar o tempo pra se movimentar, pra
trabalhar o corpo. (...) Eu passei a enxergar o corpo de uma forma diferente
também, de lhe dar outras oportunidades.
Clara: Antes da “Bioexpressão”, engraçado, eu procurava que os meninos se
sentassem todos numa postura muito adequada, que isso ia favorecer a
compreensão deles, e acreditava nisso mesmo. Na minha prática agora, essa
relação com o corpo, o meu olhar para o corpo, para as expressões têm sido feitos
com mais sensibilidade, com outro olhar. (...) Primeiro, eu precisei olhar pra meu
próprio corpo, pras minhas somatizações. Agora, eu tenho trabalhado muito com a
expressão corporal, sejam jogos com mímicas, seja um jogo em que eu trabalhe um
livro qualquer de literatura que eles escolham e que eles dramatizem essa situação
só através da expressão corporal. Então, com isso eu percebo muito a relação do
outro com seu próprio corpo. Os meninos que não querem fazer aulas de educação
física fazem esse trabalho de dramatização e expressam fantasticamente o que o
livro diz, o que perceberam do livro através do movimento corporal. (...) Quero
estudar mais sobre isso.
Mariana: Eu fazia dinâmicas e brincadeiras com o corpo, mas não trabalhava com
atividades de percepção corporal. Isso mudou inteiramente: chamar a atenção dos
alunos para seu corpo, para como eles se colocam na sala de aula, para entrarem
em contato com eles mesmos. Tinha receio de voltar a atenção para o corpo, agora
não tenho mais esse receio, me sinto embasada pra isso. Como seu corpo reage?
Quais as sensações? Também passei a ter essa preocupação com meu próprio
corpo, a procurar me perceber, a ver o que acontece em mim. Antes eu não
percebia meu corpo, não o olhava. Isso mudou a partir da Bioexpressão.
342
Foi a aproximação de seus próprios corpos que permitiu a Clara e Mariana, como a
outros educadores, acolher os corpos de seus educandos, ficando menos temerosas de olhá-
los. Quando entramos em contato com nosso corpo, perdemos, gradativamente, esses
medos; vamos “metabolizando” nossas questões, nossas dificuldades; ficando mais
disponíveis para incentivar nossos educandos a vivenciarem este processo. Se este
encontro conosco não acontece, constringimos nosso self, nossas pulsações, nosso fluxo
energético, o que, como afirma Stanley Keleman, gera um sentido não-rítmico, um sentido
de imobilidade e permanência, que se apresenta a nós como seguro, concreto, estável.
Tentamos eliminar o inesperado, limitando nossa experiência. Mas esta aparente
estabilidade de uma vida aparentemente viva nada mais é que uma ilusão, que nos condena
a um viver restrito, limitado, insatisfatório:
Quando nosso corpo perde seu sentimento de si, perdemos nossa conexão com
nós mesmos e com os outros. E então procuramos algo em que acreditar. Se
nosso corpo não sente a sua capacidade de conexão, tentamos colocar Deus, a
vida, em algum lugar fora. Ou então, projetando o nosso próprio amortecimento,
dizemos que Deus está morto, que a vida na Terra está condenada (Keleman,
1975/1996, p. 115).
Ruy Cezar do Espírito Santo observa que ter desenvolvido um curso de expressão
corporal foi de grande importância para sua formação, enfatizando, a partir de sua própria
experiência, que esse tipo de atividade deveria estar presente nos cursos de pedagogia. O
educador constata que a alienação do próprio corpo é uma tônica nos cursos de formação
de professores, enfatizando: “entendo indispensável para o autoconhecimento essa
percepção do próprio corpo em sua dimensão plena. (...) Essa consciência do próprio
corpo, caso não exista no educador, jamais poderá ser desenvolvida no educando” (2003,
p. 45).
A linguagem não verbal, que se manifesta no olhar, na escuta atenta, na expressão
facial, entre outras formas expressivas, contribui significativamente nas relações
interpessoais, estimulando a expressão racional e, principalmente, afetiva. Como afirmei
em minha dissertação (1992, p. 141), “entrar em contato com nossa sensibilidade,
expressá-la corporalmente, liberta-nos de padrões arraigados e castradores; tomar
343
consciência do poder expressivo de nosso corpo abre infinitas perspectivas para um
trabalho mais criativo, crítico, humano e prazeroso”.
6. Relação educador-educando
O aspecto mais marcante nas respostas dos educadores, presente em quase todas as
entrevistas, foi o fato de terem observado uma relação mais humanizada com seus
educandos. Houve uma nova forma de percebê-los, uma aproximação entre eles, a
percepção de que a autoridade não necessita de uma posição de distanciamento. Mesmo
aqueles que consideravam manter uma relação satisfatória com seus estudantes, afirmaram
ter sentido diferenças na convivência da sala de aula, como podemos observar:
Carolina: O exemplo que você deu enquanto coordenadora do grupo pra mim
trouxe muita possibilidade de humanização da relação. Por mais que eu tenha
facilidade de me relacionar com meus alunos, eu ainda tinha o ranço de tentar
manter a neutralidade. Sinto que a experiência de Bioexpressão me ajudou muito a
me permitir uma outra visão de vínculo que eu já tinha, mas que, até então, não
experimentava tanto. Hoje eu já me sinto mais à vontade. Foi um modelo diferente
dos que eu já tinha tido. Isso me ajudou muito, me dei a permissão de estabelecer
um vínculo mais humanizado. Hoje sinto que mudei muito, me sinto muito mais
humana, muito mais perto dos meus alunos. Acho que isso se refere a um padrão
comum na sala de aula de “eu sou o bom, sou melhor que vocês”. Agora me sinto
mais próxima de fato.
Mariana: Eu sempre mantive uma boa relação com eles, muito próxima, mas agora
é mais forte, é mais acolhedora. Uma aluna comentou que está feliz de estar
comigo, que ela sente prazer porque eu consigo estabelecer uma relação de pessoa
pra pessoa. A parte humana ficou mais forte, ficou mais presente com meus alunos.
A profissional já estava ali, agora estava também a pessoa Mariana. (...) Eu já
considerava que tinha uma ótima interação, mas ainda me sentia com uma
necessidade de estabelecer uma hierarquização, de manter uma certa distância.
Estou desempenhando um papel, mas de forma humana. Esse foi um grande ganho.
344
Uma aluna me disse que achava que os professores deveriam fazer um curso
comigo. Isso me fez perceber que estou no caminho certo.
Pedro: Eu me preocupava muito em ser aquele professor mais sério, até pela
própria faixa etária dos meninos que não tinham uma idade tão distante da minha.
Aí, eu me preocupava muito em ser mais sério, em estar o tempo todo tentando
manter a ordem. (...) Agora eu tento ser mais flexível, tento entender mais, passar
mais pra situação deles, pra entender mais o que acontece, os conflitos, as
vivências deles, principalmente os adolescentes. (...) Estou conseguindo ver a
pessoa que está ali, não apenas o aluno.
Os depoimentos de Carolina, Mariana e Pedro mostram que aprendemos a criar
uma “hierarquia” em sala de aula com os exemplos que recebemos em nossa formação,
mesmo quando não desejamos criar esse distanciamento. Há o receio de que, ao nos
aproximarmos mais, percamos a autoridade. Entretanto a autoridade, como discutimos
anteriormente no Capítulo III, é uma conquista e não uma imposição. Paulo Freire afirma:
“somente nas práticas em que a autoridade e a liberdade se afirmam e se preservam
enquanto elas mesmas, portanto no respeito mútuo, é que se pode falar de práticas
disciplinadas como também em práticas favoráveis à vocação para o ser mais” (2004, p.
89).
Cuidar é outro aspecto fundamental nas relações que estabelecemos conosco e com
aqueles que nos cercam, o que passou a se manifestar nas falas dos educadores como
mostram os trechos abaixo:
Paula: A minha relação hoje melhorou bastante, e acho que precisa melhorar
muito mais. Eu me sinto, assim, em processo de crescimento. Melhorou
sensivelmente. Tanto é que eu faço esse movimento de pensar em meu aluno, como
ele está, o conforto que ele tem na sala de aula. Tem alunos muito grandes que
pegam carteiras muito pequenas para sentar; então, hoje, eu já olho isso e vejo que
aquilo vai interferir no momento em que a gente estiver trabalhando.
Pergunto-lhe se, antes, não percebia isso e ela responde:
345
Não, não percebia. Eu estou mais alerta. É como se eu tivesse limpado um pouco
os meus olhos pra perceber o movimento da sala. Minha visão ampliou em todos os
sentidos, mesmo de percepção do ambiente da escola. (...) O projeto da biblioteca,
efetivamente, eu lavei o chão com eles, eu antes não faria isso; nem passava pela
minha cabeça fazer isso. (...) Não existe mais o certo, não existe mais uma verdade,
são várias verdades. (...) Quando a gente olha o próprio modo de ser, nossas
falhas e qualidades, a gente começa a se relacionar melhor com o mundo. (...) A
gente já trava diálogo mesmo. Antes, eu queria dar o conteúdo logo e acabou.
Hoje, se pintar alguma coisa na sala a gente pára pra conversar.
Tiago: Mudou muito. Tenho um novo cuidado. Eu vou “um pouco mais além”
86
.
Consigo perceber o estado de espírito do aluno, que talvez tenha vindo com
problema de casa, que, às vezes, só queria se percebido, ser notado. (...)Hoje, eu
percebo isso, eu até toco um aluno, eu converso, fora da sala também, nos
intervalos, nos corredores, fora da escola, porque ele é um ser humano, eu, agora,
consigo, enxergar o aluno como corpo, alma e espírito. (...) Eu estou mais
acessível, por isso eu tenho mais atenção, eu tenho mais confiança. (...) Se eu estou
em um assunto da minha matéria, a gente acaba entrando em outros que eles
levantam. Mas, em resumo, o relacionamento hoje é melhor, pele a pele, conversa
a conversa, eu saí de trás da carteira. O curso me fez mudar minha forma de ver e
agir.
Érica: Eu acho que houve uma mudança. Eu fiquei mais aberta, um pouco mais,
mais cuidadosa. Eu não estava me dando conta disso, mas eu estava me
distanciando pelas minhas questões pessoais, eu só dava a aula e ficava por aí.
A relação saudável educador-educando implica o diálogo, contrariamente à invasão
ou à privação como analisamos no segundo capítulo da primeira parte. Como afirma
Espírito Santo, “educar não será nunca ‘passar aos alunos a sua verdade’ ou ‘os conteúdos
que você domina’. Educar é despertar a profundidade do saber de cada aluno” (2002, p.
43).
86
Este é o nome de uma vivência que fazíamos e da qual alguns participantes sempre lembravam. Através de
alongamentos do corpo, procurávamos perceber que um limite pode ser superado com suavidade, sem
agressões.
346
A fala de Ana deixa transparecer que a vivência talvez ainda não tenha acontecido,
mas que um passo foi dado, na medida em que ela já pensa no aspecto afetivo e na
possibilidade de mudança, o que se mostrava, na entrevista inicial, como uma dificuldade:
(...) Sempre muda. Hoje tenho a compreensão que a vida afetiva compõe o homem
e é um aspecto de fundamental importância na vida psíquica e social. Passo
sempre isso para os meus alunos com o objetivo de uma melhor interação na sala
de aula.
Outras educadoras enfatizaram muito o recebimento de afeto de seus educandos, o
que se mostrou como decorrência da aproximação. Embora considerassem que a relação
entre eles era muito boa, puderam perceber que ficou ainda melhor, como o afirmaram
Cristina, Renata e Eduarda, esta tendo conseguido vencer a barreira que ela mesma criava e
que a impedia de se aproximar mais, apesar de seu desejo:
Cristina: Mudou bastante. Eu já tinha uma relação muito boa com os meus alunos,
mas, agora, eu percebo que melhorou, vamos dizer assim 80%. Por quê? Eu
invento mais coisa, eu coloco mais coisa, me solto, me entrego, eles também estão
aderindo. (...) Antigamente tinha aquelas dinâmicas já surradas, hoje em dia
minhas dinâmicas são da Bioexpressão. Eu já levo o aparelho de som, já utilizo
música, eles já chegam pra me beijar e eu percebo que eles fazem isso porque eu
dou espaço através das práticas que nós fazemos em sala de aula.
Renata: Sempre houve uma boa relação, mas eles estão mais próximos agora. Me
contam questões pessoais, uma menina que estava chorando veio conversar
comigo, há mais abertura. (...) Aumentou o vínculo de confiança.
Eduarda: ... fiquei muito emocionada com o que eles disseram nas avaliações que
pedi. Eles não só me vêem como a professora de Matemática, mas também como
amiga deles; como uma pessoa que se preocupa em estar passando o conteúdo de
forma diferente, vendo o que antes eu não considerava. (...) Pra mim o curso, na
minha vida pessoal, me ajudou muito e, na minha vida profissional, eu estou me
sentindo mais segura. Até uma professora me disse isso: “ah, Eduarda, eu achava
347
que você era a dona da verdade, e hoje em dia, eu já estou vendo você de forma
diferente”. E eu tenho percebido isso mesmo, que antes eu tinha uma coisa da
arrogância, até no falar. E hoje em dia, eu estou ouvindo mais as pessoas,
incluindo meus alunos. Ainda tenho dificuldade com uma coisa, quando as pessoas
me criticam, ou quando criticam alguma coisa que eu estou falando.
Eduarda já havia comentado mais de uma vez que sentia dificuldade de receber
qualquer tipo de crítica. Neste momento, comenta que observara a importância da relação
do educador com seus educandos na hora de mostrar falhas para que estas não se repitam e
para a compreensão mais ampla do que está sendo trabalhado, assim como se desarmar
para ouvir o que o outro tem a dizer:
E uma das coisas que eu observei, por exemplo, no dia em que Pedro apresentou o
trabalho dele aqui no grupo. Houve um momento na partilha, que você procurou,
de uma forma assim mais suave possível, mostrar que aquela não era a melhor
maneira de orientar a atividade. (...) E eu consegui perceber aquilo que você
estava falando e anotei. E depois, eu até escrevi: puxa como é bom o professor
sinalizar o que não foi legal, porque, assim, eu tenho condições de ver isso. E com
a minha postura anterior eu não tinha essa possibilidade, eu não dava essa
possibilidade para as pessoas. (...) E eu já tenho percebido que eu tenho procurado
ouvir e tentar compreender, entender o que a pessoa está falando. Eu acho que isso
foi a partir do curso, porque antes disso eu não tinha essa postura não, não tinha
mesmo. E tinha dificuldades de apontar falhas e de ouvir.
Paulo Freire enfatiza a importância de saber escutar, o que não se aprende falando
aos nossos estudantes com uma postura de superioridade e distanciamento, de portadores
de uma verdade a ser transmitida. “É escutando que aprendemos a falar com eles. Somente
quem escuta paciente e criticamente o outro fala com ele, mesmo que, em certas condições,
precise falar a ele. O que jamais faz quem aprende a escutar para poder falar é falar
impositivamente” (2004, p. 113).
A crença do que havia uma boa relação entre os participantes da pesquisa e seus
estudantes, sinalizada na entrevista inicial, passou por uma grande transformação. O que
antes era considerada uma boa relação implicava, principalmente, o controle da disciplina e
a manutenção da autoridade. O aspecto que se evidenciou muito nesse processo de
348
transformação é o que os educadores chamaram de humanizar o relacionamento, de
perceberem que estavam em contato com pessoas, com suas emoções, dificuldades,
carências, conflitos e desejos. Estabeleceu-se diálogo, criaram-se vínculos que geraram
novas posturas em educadores e educandos, que passaram a imprimir marcas diferenciadas
em suas atividades.
7. A compreensão de ludicidade
As respostas dadas à pergunta O que você entende por ludicidade? feita na
entrevista inicial mostraram, principalmente, uma relação direta entre ludicidade e
aprendizagem, condicionadas ao ensino de conteúdos e ao desejo de tornar a aula mais
agradável. Embora essa visão tenha se mantido, houve uma ampliação considerável quanto
a este conceito para a maioria dos educadores, como mostram os depoimentos que se
seguem:
Paula: Agora mudou tudo. Quando eu parti da idéia do lúdico, eu não tinha a
percepção da dimensão do corpo no lúdico, da importância que ele tem. Também
do lúdico em outras atividades. Era só brincadeira mesmo. Por exemplo, um jogo
como eu fazia com eles. Eu pensava que aquilo era lúdico no sentido de ser uma
brincadeira para eles, mas não percebia que, naquele jogo, eles estavam
construindo, que estavam mexendo em outras coisas, mesmo para poder criar o
jogo. E hoje eu já tenho essa percepção. (...) Minha visão era muito limitada. E
hoje, ela é muito mais ampla. Eu fiz uma atividade, recentemente, que hoje eu já
classifico como lúdica, que foi trabalhar a árvore genealógica com a concepção do
lúdico que eu tenho hoje, com as leituras que eu fiz e dos movimentos que fizemos
no curso, eu hoje percebo. Eles fizeram a árvore genealógica e desenharam uma
árvore, muitos coloriram a árvore, e botaram frutos, fizeram ela bonita; outros a
fizeram muito seca. Percebi essa relação. Então, eu trabalhei com a língua inglesa,
mas trabalhei outro lado, a emoção deles, as dificuldades de olhar a família. Então
hoje, quando planejo uma aula, eu planejo além do Inglês. (...) Eles não vão
esquecer porque eu relacionei com a vida deles, e fiz essa construção com eles.
Então, eu não posso deixar essa “árvore”... Essa “árvore” eu fiz com a 5
a
. série,
349
justamente, porque foi o vocabulário que eu trabalhei. Mas ela pode perfeitamente
ser trabalhada com as outras séries. Então eu posso estender o projeto. Quando eu
penso hoje, eu penso nessas questões que eu não pensava nas minhas aulas, de
construção da sua identidade mesmo, de auto-aceitação...
Carolina: Ainda associo a prazer como lhe disse na primeira entrevista, mas não só
a prazer. Descobri que já trabalhava com ludicidade sem saber. Já trabalhava
preocupada em resgatar o mais interno, com o integral, de poder trabalhar a união
mente/corpo/espírito, só que agora eu vejo de uma forma muito mais ampliada. Me
ajuda a definir com uma palavrinha algo que eu sinto internamente, compreendido
de uma forma muito mais ampla. (...) Hoje, apesar da minha definição continuar
muito parecida, ampliaria um pouquinho mais. É como uma espiral, você vai
expandindo, ampliando, abarcando coisas maiores.
Mariana: Mudou, porque o fazer contato com o corpo passou a ser uma atividade
lúdica. E eu não via a ludicidade nisso. Eu usava jogos, brincadeiras e dinâmicas.
Mas não via ludicidade em atividades de propriocepção, de contato com o próprio
corpo.
Cláudia: O grande ganho foi ter entrado em contato com outra visão de ludicidade,
que não tem que ser, obrigatoriamente, um jogo ou uma brincadeira.
Eduarda: Mudou muito, porque antigamente eu achava que o lúdico estava
diretamente relacionado ao jogo ou ao brinquedo. Agora, eu já tenho visto que o
lúdico está mais relacionado ao prazer, com o crescimento do que com a própria
atividade em si. E eu não conseguia ver que através das atividades lúdicas a gente
podia deixar aflorar sentimentos.
Uma das participantes da pesquisa, Isabela, que sempre se mostrou mais refratária
às mudanças, responde objetivamente:
Não faz muito o meu estilo, não. Ludicidade, lúdico, o agradável, o belo, essas
coisas de música, de dançar,... Não tem muito a minha cara não. (...) Não captei
muito a mensagem não. Até outro dia, eu estava comentando com a minha irmã e
350
ela disse: “você, é um de um radicalismo que não deixa haver mudança”.
Paciência!
A resposta de Isabela facilita meu entendimento das dificuldades que teve para
propor algo novo, apesar de sua tentativa. Na verdade, ela não chegou a “captar a
mensagem” como ela mesma disse, as mudanças necessárias nela mesma não ocorreram
ainda. O lúdico não chegou a ser aceito internamente, mesmo que, de alguma forma,
tenham ocorrido mudanças. Mas ainda há necessidade de um tempo para que uma
transformação mais profunda aconteça, o que pode não chegar a acontecer, pois, vai
depender de seu próprio movimento. As mudanças exigem investimento pessoal e
aceitação.
Um processo semelhante ocorreu com Ana, embora tenha se colocado de forma
menos radical. Mudanças foram observadas por ela, pelo grupo e por mim, mas sua prática
pedagógica e suas respostas mostram que a racionalidade continua no comando, dando
pouco espaço para a emoção, que, muitas vezes, pôde se mostrar, se libertar durante as
experiências que vivenciamos ao longo do curso. Em resposta a essa pergunta diz de forma
concisa:
Ludicidade é uma forma de se aprender com arte, movimento. Qualquer disciplina
em educação torna-se prazerosa quando ensinada com ludicidade.
Em alguns casos, entrar em contato com a ludicidade propiciou uma reflexão mais
profunda dos educadores em relação a suas próprias vidas, o que considero ser o primeiro
passo para que tomemos uma nova atitude em sala de aula, para que possamos assumir
uma postura lúdica. Os depoimentos de Érica e Tiago são exemplos disso:
Érica: Ludicidade é algo que ainda não consigo definir, mas sentir. Eu fui
perdendo a leveza ao longo do tempo, eu fui ficando muito séria, muito sisuda. (...)
O Curso me ajudou a mudar, a buscar voltar ao que eu era antes. Eu era uma
pessoa leve, solta. Esse processo de amargura foi vindo paulatinamente e foi se
cristalizando, e de repente, eu não conseguia nem mais enxergar a pessoa que eu
era antes, não conseguia mais visualizar. Então, sorrir, pra mim, já não era mais
uma coisa natural, fácil, era aquele sorriso de obrigação, uma coisa mais formal,
351
de conveniência. Me sinto em processo. Com as vivências lúdicas, eu me
reencontrava.
Pergunto: Você tinha essa percepção tão clara de sua amargura?
Não. Foi durante o curso que me dei conta disso. Eu sinto saudade, entendeu? Eu
quero mudar.
A experiência de Érica é um exemplo rico de que as atividades lúdicas podem
trazer sentimentos outros que não apenas alegria, entretanto, se nos fazem entrar em
contato com nossas dores e dificuldades, nos trazem estímulo para buscar meios de superá-
las com o aumento da energia vital.
Tiago passou por uma grande mudança, o que foi confirmado por seus educandos.
Sua postura, seus depoimentos e sua resposta a essa questão mostrou que a ludicidade
ganhou um novo sentido para ele:
Primeiro, eu entendo que a ludicidade está dentro das pessoas. (...) ludicidade pra
mim é você trazer as suas coisas de infância, sua sensibilidade, as coisas que lhe
trouxeram prazer, porque agora você cresceu, você é adulto, você tem algumas
responsabilidades, e deixou coisas lá atrás. Ludicidade pra mim é trazer isso, é ser
mais espontâneo. É também uma forma pedagógica de você passar o conteúdo de
uma forma prazerosa. Todo conhecimento é passado, agora, de uma forma mais
solta, mais leve, mais brincando, mais sorrindo. (...) A Bioexpressão contribuiu
para que eu conseguisse o equilíbrio, porque eu tinha ludicidade em mim, só que
eu não a vivia em todas as áreas. Então, eu não trazia a ludicidade para o
adolescente, para o adulto. (...) Agora, depois do curso, eu aprendi a usar a
ludicidade com o adolescente, com o adulto, com o ancião. Saber como usar a
observação deles, as necessidades, as características de cada um. E o curso de
Bioexpressão trouxe isso, eu consigo viver a minha ludicidade.
Clara resolve falar com o coração, não se preocupando com uma “definição
formal”: Sabe como eu definiria ludicidade? Acho que ludicidade é você sentir a si
mesmo, independente do que você está sentindo no momento. É entrar em contato
consigo. Eu não sei se é uma definição, mas eu acredito que é um estado de
espírito, mas eu acho que é poder viver uma atividade estando completamente
352
envolvido. Então, pra mim, as exemplificações que a gente sempre tem de uma
vivência é assim a criança, o adulto e o adolescente, independente da faixa etária,
esteja vivendo uma atividade em que esteja inteiro, esteja realizando, sem estar
percebendo o olhar do outro, seja crítico ou favorável.
A fala tão espontânea de Clara define bem aquilo vivenciávamos em nossas
atividades lúdicas e que foi apreendido pela maioria dos educadores: estar entregue ao
momento, vivendo o aqui-agora, em contato com sua inteireza pensamento, sentimento e
ação, em contato com sua espiritualidade, independente de idade, livre do controle crítico
do ego. Ruy Cezar do Espírito Santo enfatiza que o sentido lúdico da vida e o prazer de
aprender e criar não devem se perder. Citando Mauriras-Bousquet, apresenta um trecho
que se mostra como um belo fecho para este item com um pequeno acréscimo: “Brincar
[desenvolver atividades lúdicas] significa não exigir da vida, por um momento, nada além
do que ela é, não lhe cobrar nenhuma finalidade que não seja ela própria” (2003, p. 92).
8. Atividades lúdicas em sala de aula
Você desenvolve atividades lúdicas em sala de aula? Como? Com que objetivo?
Como observei na análise das entrevistas iniciais, embora quase todos tenham
afirmado que sim, que desenvolviam atividades lúdicas, ao longo de nosso contato, dos
relatos de experiência, dos depoimentos e das primeiras observações em sala de aula, pude
constatar que poucos o faziam realmente e, quando o faziam, era ocasionalmente. Como
eles mesmos afirmaram, as atividades tinham como finalidade facilitar o ensino de um
determinado conteúdo ou relaxar o grupo de estudantes.
Embora as atividades lúdicas tenham continuado a ser usadas para facilitar a
aprendizagem de determinados assuntos, o que considero também positivo se não se
limitarem unicamente a essa função, passaram a ser um recurso de integração grupal, auto-
conhecimento, percepção corporal e desenvolvimento da expressão pessoal para alguns
educadores, como se verifica nos depoimentos abaixo:
Mariana: Agora, tenho usado cada vez mais pra estabelecer o contato do indivíduo
consigo próprio, com seu corpo e com o grupo.
353
Carolina: Faço sim, considerando a questão do vínculo, da humanização, a
estruturação do pedagógico. Vivencialmente falando, a partir do momento que eu
pude ter o suporte das práticas da Bioexpressão, passei a me sentir mais segura e
estar mais inteira na sala de aula. (...) Me senti mais à vontade pra incluir
determinadas práticas ou brincadeiras, que eu fazia antes, mas que eu não
priorizava tanto. (...) Existe um certo ranço da postura do professor que nos é
passada que eu sinto que está sendo mudado cada vez mais em mim. Eu gosto
muito de um contato mais próximo, mas eu sinto que estava muito contaminada por
esse ranço, e não conseguia chegar mais perto.
Paula: Desenvolvo atividades lúdicas com objetivo mesmo de proporcionar esse
crescimento não só para o estudante com que eu trabalho, mas pra mim mesma.
Hoje, houve uma mudança. Hoje, eu tenho consciência, quando você me pergunta,
do que é uma atividade lúdica, pelo conhecimento teórico que eu já tenho e pela
prática que eu vivenciei; sei que isso tem um efeito de proporcionar que a pessoa
se torne uma pessoa mais feliz. Porque quando você vai se aceitando, aceitando
seus problemas, que a gente não vai viver sem problema, a gente vai sendo mais
feliz, vai deixando de magoar os outros, vai deixando de querer que os outros
sejam perfeitos. Então, pra mim, hoje, isso é ser lúdico. Hoje, depois dessa
convivência com o grupo de Bioexpressão, de ter discutido tudo isso, o lúdico tem
outra dimensão pra mim.
Alguns educadores foram enfáticos quanto ao que adquiriram de possibilidades a
partir da própria experiência com as atividades lúdicas quer em sua prática, quer no Curso,
o que mostra que só a vivência, a experimentação permite que tenhamos a segurança
necessária para assumir uma nova postura:
Tiago: Realizo atividades lúdicas sim. O meu objetivo é trazer a meus alunos os
conteúdos que eu quero passar, proporcionar um ambiente agradável para haver
uma troca de conhecimento e crescimento. Primeiro que não é só o aluno que
aprende, eu aprendo também, porque eu estou, a todo o momento, passando por
um aprendizado. A cada vez que o aluno aprende, que ele tem uma dúvida, que
levanta um questionamento, já que ele tem essa abertura, que ele está num
35
4
ambiente propício, tem um professor que está perto dele, tem um professor que não
é mais só o professor, é uma pessoa, é Tiago. Com as atividades que realizo,
trabalhando o corpo, a respiração, a expressão pessoal, torna-se mais favorável o
ambiente para eu passar o conteúdo, passar minha experiência de vida, e pegar
toda a bagagem de experiência que eles trazem, que é meu aprendizado como ser
humano. (...) Cada aluno é uma história, são pessoas diferentes, tudo diferente. E
eu vou aprendendo e vou criando. Então, o que a ludicidade trouxe pra mim nesse
dia-a-dia? Mais aprendizado, eu estou mais maduro. (...) Então, em vários pontos,
em vários lugares eu encontrei como melhorar. E na sala de aula é isso, eu consigo
passar melhor o meu conteúdo, eu tenho o aluno mais perto de mim, eu tenho
alunos mais humanos; tenho mais facilidade em ouvir críticas. Nós ganhamos na
nossa expressão.
Érica: Se eu não tivesse participado desse Curso de Bioexpressão, hoje eu estaria
no mesmo estágio que eu estava quando cheguei aqui, ou bem pior. Provavelmente
bem pior, porque eu estava me enclausurando cada vez mais, me fechando cada
vez mais. E as pessoas que viviam ao meu redor estavam me sufocando cada vez
mais. Então, se eu não tivesse a oportunidade de parar para participar de
momentos como a gente teve no Curso, parar para refletir... [pausa] porque eu não
fazia isso: primeiro, porque eu tinha medo, e em função do meu medo eu não
criava espaço para que isso acontecesse. Todo o meu tempo era tomado por
atividades que não me deixassem parar pra pensar. Aí, o curso foi que me deu essa
oportunidade. A partir daí, devagarzinho, pude ir mudando algo na minha prática
profissional, mas antes, tive que olhar pra mim.
O depoimento de Érica traz dois aspectos que não podem deixar de ser acentuados:
primeiro, a responsabilidade pela própria vida que cada um de nós tem que assumir; o que
implica assumir o compromisso com as nossas opções, com as nossas escolhas, como a
profissão, por exemplo; segundo, a necessidade de saber cuidar. Talvez, uma das coisas
mais importantes que tenha sido apreendida por alguns educadores através das atividades
lúdicas tenha sido o fato de que cuidar é fundamental: cuidar de nós, cuidar de nossas
relações, de nosso espaço, de nosso tempo, permitindo que tenhamos possibilidades de ser
mais felizes e mais participantes do movimento da vida.
355
Como pudemos observar no item anterior, uma das participantes da pesquisa,
Isabela, não chegou a desenvolver qualquer atividade lúdica em sua sala. Assim justifica:
Não me sinto à vontade pra fazer isso. Mas eu gosto de brincar com eles: puxo o
cabelo, o boné, falo uma gracinha, digo que são meus filhos...
Com exceção de Isabela, que ainda não se sentia preparada para essa “viagem”, e
para quem “brincar” tem um sentido mais restrito e “individual”, todos os educadores, na
medida de suas possibilidades, deram passos para entrar no mundo ainda pouco explorado
da ludicidade. Considero que o importante é o movimento nessa direção, o impulso inicial.
O tempo necessário e a forma de irem desvelando as surpresas e alegrias desse percurso
são variados. E como “filosofou-poetando” Pablo Neruda, “o caminho se faz ao caminhar”.
Alguns depoimentos apontam diferentes trajetórias:
Cláudia: Procurei fazer com objetivo maior de diminuir a tensão e envolver o
grupo nas atividades da sala de aula. Cheguei a fazer bingos, jogos e avaliações
mais criativas. Isso foi feito depois do curso. Antes, nunca havia tido esse
movimento. Mas quando começou a chegar aos ouvidos da direção me intimidei.
Mas meus alunos gostaram e pediam mais.
Ana: Às vezes. Geralmente para relaxamento, para acalmá-los na volta do
laboratório de informática e retornarmos às atividades com Matemática.
Eduarda: Antigamente, eu acho que eu fazia espontaneamente, porque até o
próprio ato de você descontrair os alunos, de ter um momento que eles sorriem,
que eles brincam com você; você já está trabalhando a ludicidade de alguma
forma. Mas até então, eu não tinha nenhum objetivo específico, nem conhecimento.
Agora que eu estou começando a pensar: “o que eu posso estar trabalhando, por
que eu estou fazendo isto?”. Também pude perceber a importância do corpo na
sala de aula, vencer minhas dificuldades, e trabalhar com isso.
Pedro, que como narrei, deixara as aulas de Educação Artística, mostrou que uma
mudança se processara, mesmo atuando com Informática, o que observei em minha ida à
escola. Ele depõe:
356
Olha, eu tinha mais facilidade para trabalhar esse lado da ludicidade quando eu
dava aula de Educação Artística. Mas tem, no computador, arquivos recreativos,
aí, às vezes, eu procuro trabalhar esse lado com os meninos também. Não só
aquele lado técnico de jogar, mas também a expressão deles possibilitada por
determinado jogo, determinado arquivo recreativo. Eu nunca deixo de observar
esse lado também. Apesar de não estar fazendo, no momento, nenhum trabalho
específico dentro dessa área da ludicidade, não desprezo esse lado.
Clara assumiu uma quarta-série no segundo semestre, mas já iniciara um
movimento diferente, que, também, pude acompanhar. Ela diz:
Antes, eu pensava muito nos jogos competitivos, do ganhar e do perder. Hoje, eu
procuro transformar esses jogos competitivos em jogos cooperativos. Tentar
perceber até onde o outro vai pra se relacionar com alguém, ou pra se relacionar
com seus próprios sentimentos. Tenho tentado também fazer atividades corporais,
de você estar sentindo o seu corpo, usando uma música, uma dinâmica de
sensibilização.
Airton Negrine observa que “a atividade lúdica é indispensável à vida humana
quando situada como um ingrediente que oferece melhoria para a qualidade de vida”. Esta
qualidade de vida a que se refere o autor deve ser considerada a partir das percepções
subjetivas do sujeito lúdico, que tem como expressar aspectos interiores, afetos, emoções,
bem-estar. “Para expressar estes estados de consciência nem sempre a pessoa encontra
palavras adequadas que retratem exatamente o que sente, já que há sensações que se
produzem no corpo, que são impossíveis de serem descritas por palavras” (2001, p. 35).
Assim, as atividades lúdicas propiciam a abertura de novos canais para a expressividade da
subjetividade do ser, estimulando sua criatividade e ajudando-o a encontrar sua forma de se
colocar no mundo com suas singularidades.
Somente quando assumimos uma atitude lúdica, que por si só humaniza a relação,
integra sentimento, pensamento e ação, nos permitimos “brincar”, nos entregar mais, estar
mais presentes na atividade, fazer junto, viver o momento, compartilhar. Um professor
sisudo que utilize técnicas de ludicidade tiradas de um manual vai atuar de forma
completamente diferente daquele que é capaz de viver a ludicidade. Isso joga por terra o
357
mito de que a postura de seriedade do professor é indispensável para que adquira
“respeitabilidade” dos estudantes e bons resultados em sua prática.
9. Atenção ao relacionamento dentro da sala de aula
A nona pergunta tinha por finalidade averiguar como passaram a se estabelecer as
relações em sala de aula: você procura desenvolver atividades que aproximem seus
educandos deles mesmos e dos colegas? E de você? Como? Na entrevista inicial, com
exceção de Ana, todos os entrevistados responderam afirmativamente, mesmo não tendo
muita clareza do como. Na entrevista final, estabelecer possibilidades de conexão já se
mostrou como uma busca por parte de alguns educadores, como exemplificam os
depoimentos abaixo:
Carolina: O tempo todo. Através do trabalho de corpo, da ludicidade. A questão do
tempo aula é uma dificuldade, mas procuro vencer isso.
Clara: Eu utilizo muito as atividades lúdicas pra trabalhar a relação deles com os
outros. (...) Então, eu tento ao máximo observar as relações que eles estabelecem,
a troca que eles fazem com o outro, o que eles sentem quando alguém fala algo ou
quando eles falam alguma coisa. Aí, fico imaginando atividades que eles possam
externalizar isso, que eles possam trocar, que eles possam se relacionar de outra
forma.
Mariana: Sim, mesmo porque há necessidade de criar um clima de confiança. E na
relação entre nós foi havendo um movimento crescente de confiança.
Paula: Procuro sempre olhar pra isso. Hoje mesmo eu fiz uma aula em a idéia
surgiu na hora. [Paula narra minuciosamente a estratégia usada para permitir que
seus educandos, a partir da história do Patinho Feio, trabalhassem algumas
dificuldades de relacionamento entre eles e de baixa auto-estima] Estou podendo
criar possibilidades novas, isso é muito bom pra mim e pra eles. Estou feliz com
essa possibilidade de eu estar aberta e criar facilmente. (...) Hoje, eu tenho a visão
358
de que essas discussões são importantes. Não só, assim, em sala de aula, mas nessa
dimensão maior de conversar com minha filha sobre alguma coisa que a
incomoda. (...)
Alguns educadores, como Paula, passaram a utilizar a literatura infantil em suas
salas de aula como recurso lúdico para desencadear um processo de apreensão e
reelaboração do “mundo” de seus educandos. Como afirmei em minha dissertação de
Mestrado, “a fantasia não é uma fuga da realidade e, sim, uma forma de torná-la mais
perceptível, denunciando através de símbolos, questões sociais, políticas e existenciais”
(Pereira, 1992, p. 98). Os livros infantis com textos de qualidade possuem o código
lingüístico apropriado para a compreensão infantil, mas sua temática, as metáforas
apresentadas, a polissemia permitem leituras em vários níveis, sendo significativos para
crianças, adolescentes e adultos.
A entrevista de Eduarda foi a primeira a ser realizada e, pelas observações
posteriores em sala de aula, pude constatar que novos passos estavam sendo dados.
Eduarda, depois de toda resistência a minhas visitas, pediu ajuda e, após algumas sugestões
e orientações, encontrou em si mesma a ousadia para criar e transformar aulas de
Matemática em um espaço de racionalidade e emoção:
De umas semanas pra cá sim. Mas ainda está pouco para o que eu queria, agora
que eu estou conseguindo fazer. E assim, depois eu até queria que você me dissesse
algumas coisas que eu poderia estar trabalhando com eles. Porque eu ainda fico
muito preocupada com eles mesmos, porque eu já percebi que eles não são muito
ligados uns aos outros.
Mas nem todos os participantes da pesquisa conseguiram apreender o sentido exato
do que seria facilitar o contato do educando consigo mesmo, com os companheiros e com o
próprio educador, que exige, como observei anteriormente, um tempo interno que varia
muito de um para outro. Ana responde:
Como leciono Matemática, às vezes, dependendo do conteúdo, trabalhamos com
jogos.
359
Isabela depõe: Não. Não cheguei ainda nisso.
Cláudia vê a possibilidade de interação na solução de exercícios:
Dou atividades em grupo. Faço, mas faço poucas. Gosto de colocar em duplas
para interagirem. Trabalham fazendo exercícios.
Érica e Pedro, vencendo paulatinamente suas dificuldades, mostram que há um
processo interno acontecendo que, possivelmente, irá continuar se manifestando ao longo
do tempo:
Érica: Eu incorporei à minha prática, mas não existia antes, porque eu pensava
assim “nunca dá tempo, porque tenho que cumprir o programa”. Dando aula de
História, passei a formar círculos para discutir algumas questões e deixar que
falassem de seus sentimentos quanto ao que acontecia e que trocassem idéias com
os colegas. Ou falar sobre um problema familiar, algum movimento de que
estivessem participando; conversas informais mesmo, cada um tendo a
oportunidade de se colocar (...) O Curso me ajudou muito. (...) E eles foram se
envolvendo cada vez mais. A relação entre eles e comigo ficou bem melhor.
Pedro: É como eu disse, agora ficou um pouco mais difícil. Quando eu trabalhava
com Artes eu fazia trabalhos assim desse tipo, mas agora não está dando mais pra
fazer. Eu tenho que parar, sair um pouco da minha aula, e fazer um trabalho
separado do que eu estava fazendo. Mas pela própria experiência comigo mesmo,
senti como é importante. Até meados do curso, mais ou menos assim, eu ainda
estava lecionando Artes. Então, eu levei mesmo pra sala de aula as coisas que eu
estava vivenciando. Então a gente trocava as tarefas como interpretar o que o
outro estava fazendo no momento; tentar passar de um aluno para o outro o que o
outro pensava, o que o outro estava sentindo ali, para tentar fazer tipo um
intercâmbio de idéias, de sentimentos.
Cristina, que foi muito mobilizada pelo Curso, em determinados momentos
apresentava dificuldade de fazer a transferência adequada para os grupos de educandos
com quem trabalhava. A essa nona questão, ela me responde:
360
Faço. Com algumas atividades de toques, eu peço pra massagear a si mesmos ou o
colega. Independente de eu fazer com a turma toda, geralmente com as turmas da
noite, tem alunos que estão assim..., aí eu chego junto dele e massageio, e vou pra
cabeça, coloco os dedos dentro do cabelo. E eles se aproximam entre si eu vejo nos
corredores, e não é aquela coisa de namorico não.
Houve momentos, como nesta entrevista com Cristina, em que, depois de terminada
a resposta para não interferir e poder ouvir cuidadosamente o que estava sendo dito,
procurava eliminar algumas dúvidas e distorções que se mostravam. Em alguns
participantes da pesquisa, ainda pude perceber confusão quanto ao que seja “poder se
aproximar de si e do outro”. Como em nossas vivências trabalhamos o toque, o carinho, a
massagem, incluindo a auto-massagem, para alguns ficou a percepção de que esta seria a
forma “ideal” de aproximação. No entanto, como fiz questão de enfatizar, a aproximação
física não é a única possibilidade e, muitas vezes, não deve ser a primeira opção,
especialmente, se o orientador da vivência ainda não tem segurança para realizar esse
movimento.
Quando nossos educandos estão realizando uma atividade de recorte e colagem,
jogo dramático, movimentos expressivos, enfim, atividades lúdicas, eles estão entrando em
contato com eles e com seus colegas. Não precisamos “tocar” fisicamente para nos
aproximar; mais importante é sermos “tocados” pela atividade. O que não significa dizer,
de forma alguma, que o toque físico seja indesejável ou inconveniente. Nossa sensibilidade
e segurança poderão nos indicar os caminhos e os momentos apropriados.
10. Significados especiais e acréscimos
As perguntas seguintes, as duas últimas, tinham por finalidade averiguar o que fora
“especialmente” significativo para cada educador ao longo do Curso e dos encontros
posteriores, e abrir espaço para que fizessem algum acréscimo, caso desejassem: Dos
temas e questões com que trabalhamos, o que foi mais significativo para você? Há algo
que gostaria de acrescentar, sugerir ou observar? As respostas à primeira pergunta foram
muito variadas, cada educador relembrou mais de uma situação que deixou uma lembrança
positiva. As respostas à segunda, na maioria das vezes, enfatizavam pontos que já haviam
361
sido colocados anteriormente. Assim, optei por condensá-las em um único tópico,
ressaltando aquelas que se repetiram mais vezes e aquelas que tocam em pontos que julgo
conveniente destacar, exemplificando.
Quanto ao que foi mais significativo, a importância do estudo das couraças de
caráter e de uma nova visão de ludicidade para a formação do educador e para o
autodesenvolvimento obteve vários “votos”, como exemplificam os depoimentos que se
seguem:
Carolina: Pra mim o conceito de ludicidade foi novidade. Tinha uma visão muito
restrita. A gente fala disso tudo, mas é muito difícil a gente ir pra prática. E nós
fomos. Acho que, se tivéssemos mais tempo, seriam feitas outras conquistas
pessoais e profissionais.
Cristina: A que ficou mais marcada foi, por incrível que pareça, quando a gente
trabalhou a questão da sexualidade, as teorias que mostram que família e a Igreja
influenciam na nossa formação. A questão do ser humano ser bloqueado, ter
couraças, não fazer o que deseja por uma série de pressões que sofre, de
imposições. Foi isso aí que mais me marcou e me ajudou a repensar minhas
relações familiares, na comunidade. A gente não tem clareza de que está sendo tão
condicionado por determinadas coisas.
A “confissão” de Cláudia mostra que uma Igreja, como um sistema de dogmas
instituídos, pode criar condicionamentos que limitam a expressão da vida, como
denunciava Reich:
Tem uma coisa importante sobre o curso, é até uma confissão: no início, quando a
gente tinha que soltar o corpo ou dançar, e eu estava muito dura, era a questão da
religião. Eu sou evangélica e trabalhar o corpo era uma dureza. Mas com o tempo,
o corpo foi ficando mais solto e a cabeça também. Eu pude ver que fazer dessa
forma nenhum prejuízo me traz. Só traz benefícios. Mas durante todo o tempo, eu
estava atenta ao que poderia ou não fazer. Não conseguia me entregar, tinha
muitas couraças.
Paula traz algumas questões que não podemos desconsiderar:
362
Tudo foi significativo. Mas a questão da formação do professor, de preparar de
verdade o professor ... (...) Porque o professor precisa ter oportunidade de saber
sobre isso, ter a oportunidade de fazer um trabalho como esse; não é um trabalho
de seis meses, de um ano, não. Isso tem que fazer parte da formação dele como
você tantas vezes frisou. Se quiser que ele lide bem com o aluno em sala de aula,
ele precisa primeiro cuidar dele, lidar com suas couraças. Quer que o professor
atue bem desse jeito, sem dar a oportunidade dele se trabalhar? Sem ter
experiências lúdicas?
Tiago traz aspectos semelhantes: Primeiro, as couraças, as máscaras, que deram
pano pra manga. Liberar a força que tem dentro da gente que, às vezes,
desconhecemos, que está lá escondida. Aqueles círculos... [Tiago se referia ao
diagrama da estrutura psíquica de Reich, apresentada no Capítulo II da ParteI]
Aquilo foi muito significativo, eu coloquei em cheque o meu próprio
comportamento, a minha própria posição como professor, como educador, no dia-
a-dia. E uma coisa que me marcou, que foi quando tudo começou, foi quando você
contou a história da Margarida Friorenta
87
, foi quando eu percebi como eu estava
agindo com os meus alunos, o que eles precisavam ... O que eu poderia fazer para
ajudá-los, e eu nunca tinha feito, nunca tinha percebido. (...) O recurso que eles
queriam era simplesmente sentir o calor humano: “Tiago, eu estou aqui”. Então,
aquela história ali foi a primeira abertura. (...)
O depoimento de Tiago confirma, mais uma vez, a observação feita anteriormente
quanto ao poder da função poética da linguagem dos contos infantis de criar símbolos,
metáforas e abrir portas para a emoção e a sensibilização. Também fala da necessidade de
entendermos melhor a nós mesmos e ao outro, o que foi muito enfatizado através das
teorias de Reich e de seus continuadores.
Mariana, como alguns colegas, relembra vivências que realizamos, o quanto foram
significativas, mas deixa muito claro que o confronto com Joana e as inúmeras situações
difíceis que vivenciamos foram uma grande aprendizagem, a qual também foi considerada
por outros educadores:
87
A Margarida Friorenta de Fernanda Lopes de Almeida, um livro infantil, conta a história de uma
margarida que não parava de tremer por mais que fosse agasalhada, o que só aconteceu quando Ana Maria
percebeu que seu frio não era por falta de casaco ou abrigo e, sim, de afeto.
363
As vivências, o acolhimento seu e meu a mim mesma... “Um pouco mais além” me
dava tanta força... “Força e suavidade”... (...) “A dança das quatro direções” me
fez sentir como se fosse pedaço do grupo, era parte de algo, parte de um todo que
transcendia aquilo ali. Parecia que estava fora de mim e em mim. É um processo
de sintonia, de entrega. Trocas de pares com expressão de sentimentos ... parecia
que meu coração estava enorme. (...) Mas o que me chamou muita atenção foi algo
radiante de eu ter podido fazer, que é um ganho que não vou esquecer nunca na
minha vida, foi poder falar pra Joana tudo que eu achava com profundo respeito à
pessoa dela. Naquele dia, foi uma grande vitória pra mim. Nas situações de minha
vida, ou eu deixava de falar pra não ofender as pessoas ou falava de forma
agressiva, e naquele momento consegui falar com tranqüilidade, uma grande
dificuldade minha. Disse o que queria dizer e de forma respeitosa. Isso me
fortaleceu muito e deu mais sentido às dinâmicas que faço com meus alunos. Isso
mostra que a gente tem que trabalhar na gente o que trabalha com o outro. Depois
disso as coisas ficaram mais fáceis, eu já consigo, em sala de aula, me colocar
mais
88
.
Mariana cita a Dança das quatro direções como algo prazeroso. Essa fala me fez
lembrar das dificuldades que alguns participantes observaram ter tido em seus relatos de
experiência, o que indicava uma dificuldade do racional se diluir e deixar que o corpo
guiasse os movimentos. Essa dança xamã é uma forma de meditação. Os movimentos se
repetem em todas as direções, numa saudação aos quatro pontos cardeais. Um dos
objetivos é deixar que a mente se cale, propiciando uma expansão da consciência.
Entretanto, a dispersão e o medo de errar, outros aspectos a serem trabalhados, geram
tensão e dificultam a sintonia com a dança e o desligamento do controle do ego. Mas,
quando “perdemos o passo”, não atrapalhamos o grupo como se supõe, e o próprio grupo
nos leva de volta ao movimento, uma das características das danças que seleciono para a
Bioexpressão. Assim, essa é, também, uma forma de lidar com as nossas dificuldades, de
pôr em xeque a nossa onipotência.
Como já denunciam as falas de Tiago e Mariana, as emoções que puderam se
expressar e as relações estabelecidas tanto no grupo da pesquisa quanto na sala de aula dos
88
Os enfrentamentos vividos ao longo do trabalho foram privilegiados em tópicos anteriores, daí não retomar
essa questão tão significativa neste momento.
364
educadores foram aspectos que deixaram marcas significativas nos participantes da
pesquisa, como afirma Ana:
Queria observar a importância de estarmos sempre tendo uma oportunidade de
refletir sobre temas relacionados com a Bioexpressão, tipo a relação razão-
emoção em sala de aula, para estarmos sempre criando uma relação de afeto como
fonte da construção com os nossos alunos.
Eduarda retoma uma situação muito comentada nos relatos e relembrada mais de
uma vez, na entrevista final:
Uma coisa que foi importante foi o dia em que você ficou nervosa na sala, isso
também foi muito bom. Porque eu não conseguia dizer para os meus alunos que eu
estava zangada com eles, por exemplo, não conseguia dizer em casa que eu estava
zangada, porque eu achava que eu tinha que ser a perfeita, tinha que ser
“normal”, não tinha que extravasar.
Mostrar minha zanga com os problemas institucionais e os que se mostraram no
próprio grupo foi significativo para muitos uma vez que constataram que é saudável
expressar o que nos incomoda, e que podemos fazê-lo sem magoar ou agredir as pessoas.
Contrariamente ao que temeram, o grupo não foi abalado e, sim, fortalecido.
Mais da metade dos educadores, manifestando a importância do Curso para eles,
sugeriu que essa proposta tivesse continuidade, o que se mostra nos exemplos que se
seguem:
Paula: Eu quero dizer que, com a percepção da importância do trabalho que a
gente fez, eu hoje tenho um desejo. Que esse trabalho faça parte do currículo da
formação do professor. Ele tem que ter acesso a isso. (...) Desejo que o trabalho
continue, agradecer mesmo essa oportunidade. Fomos privilegiados por ter a
capacidade de despertar pra isso, de perceber tanta coisa. A tristeza é saber que
tanta gente trabalhando na área de educação está com os olhos com neblina,
precisando de ajuda. São pessoas pedindo socorro, não só os alunos, os
professores não sabem, efetivamente, o que fazer. O estudante está no mesmo
barco que o professor, precisando de socorro também.
365
Tiago: Eu queria que durasse um pouco mais. Manter contato com o grupo,
aqueles que estavam até o final dando suporte, que traziam suas experiências, suas
indagações e discordâncias. (...) Eu, particularmente, preciso dessa experiência,
desse contato com os colegas que estão na sala, partilhar o que está acontecendo.
Isso é bom. Isso é como uma bateria de recarga para o professor, ele não se sente
sozinho.
Érica: A sugestão que eu gostaria de dar você não vai poder colocar em prática
[risos]. Olha, eu acho que seria interessantíssimo que Bioexpressão fizesse parte
do currículo. A sugestão é que, antes que isso acontecesse, é que poderia ter uma
“Lúcia” aqui, proporcionando essas experiências pra outras pessoas. Porque eu
tenho certeza, tem muita gente aí precisando. Toda profissão tem seu lado
estressante, mas nós, professores, temos uma responsabilidade muito grande... Não
é que as outras profissões não tenham. Mas, o professor, ele está lidando com
muitas vidas, ele está formando pessoas...
Cristina: Eu sugiro que essa prática não acabe aqui na Federal, que você possa
orientar uma outra pessoa pra dar continuidade à Bioexpressão.
Um ponto que foi considerado como marcante por quase todos os participantes da
pesquisa foi a formação de um verdadeiro grupo, com suas dificuldades, confrontos, apoio,
escuta. Foi criado um espaço real de participação, confiança, partilha e aprendizagem.
Érica afirma que o grupo foi importante para que encetasse seu processo de mudança, e
diz:
Uma das coisas que marcou bastante pra mim, e influenciou muito esse meu
processo de introspecção foi, logo no início, o depoimento de uma colega, que
enfrenta problemas com a mãe, apesar de já ter sido casada, já ter uma filha, de
chegar a ponto de sofrer até agressão física por parte dessa mãe. Então, esse
depoimento foi marcante, eu não esqueci mais em nenhum momento, porque teve
muito a ver com os meus problemas; (...) essa questão da posse, de se achar no
direito de controlar porque é mãe. Isso me marcou demais, parece que acendeu
uma luzinha, eu vi o problema no outro, um problema que é meu também.
366
Mostrando-se de uma forma diferente, mas a origem do problema é a mesma. Eu
ganhei força pra lidar com isso.
Pedro também encontrou no grupo uma nova possibilidade de interação:
A questão do interagir com o outro, isso ficou bem marcante pra mim, porque eu
não tinha essa facilidade de interagir com as pessoas, eu interagia muito pouco;
até mesmo em casa, no relacionamento familiar, apesar de estar morando com as
pessoas, mas não tinha muito essa coisa de interagir. E nos trabalhos que a gente
fez aqui, eu pude exercitar isso (...) Mas a mudança partindo de mim melhorou
muito minhas relações em outros grupos, em minha própria área de trabalho, com
certeza mudou bastante. Consegui me expandir mais, ser mais afetivo.
Clara pondera que é hora de seguir sem o grupo, embora lamente e reconheça sua
importância:
Eu acreditei muito no grupo da Bioexpressão, acho que muita gente acreditou
muito no que fazíamos, de fato foi significativo pro nosso sentimento, pra nossa
prática, pra nossa relação com o outro como um todo. (...) Naquele momento em
que eu estava vivendo o grupo, eu não queria que ele acabasse nunca. Mas, foi
importante eu perceber que o grupo existiu, que as pessoas se relacionaram, seja
com garras ou com carinhos. E que eu fiz parte desse grupo, que eu fui importante
nesse grupo, que as pessoas foram importantes pra mim e não deixarão de ser, mas
que a gente tem que ir se afastando mesmo um do outro e assumindo a si mesma.
De fato, nos constituímos como um grupo, que, como frisa Madalena Freire, “se
constrói construindo o vínculo com autoridade e entre iguais, (...) na cumplicidade do riso,
da raiva, do choro, do medo, do ódio, da felicidade e do prazer” (2001, p. 65).
Nosso grupo não nasceu pronto, ele se construiu com as bagagens, dificuldades e
peculiaridades de seus componentes. Construiu-se tendo por base a confiança que também
precisou ser construída, alimentada, cuidada; tendo por base o respeito, o acolhimento, a
solidariedade, a colocação de limites. Novamente me aproprio das palavras de Madalena
Freire: “um grupo se constrói no espaço heterogêneo das diferenças entre cada
participante: da timidez de um, do afobamento do outro; da serenidade de um, da
367
explosão do outro; do pânico de um, da sensatez do outro; da mudez de um, da tagarelice
do outro...” (Idem, p. 65).
Como se mostrou em outros depoimentos, em momentos diversos, essa pergunta da
entrevista abriu espaço para a reafirmação de que o Curso contribuiu para que educadores
que viviam momentos difíceis pudessem adquirir grounding, sustentação, centramento e
apoio afetivo para vencer dificuldades, entrar em contato consigo mesmos e investir em
mudanças. E não podemos desconsiderar que a participação do grupo foi fundamental. As
falas de Cláudia e de Clara são exemplos disso:
Cláudia: O que me marcou bastante e não esqueço foi que estava passando um
período difícil, estava muito tensa, me sentindo muito pressionada e os exercícios
me deixavam mesmo relaxada, de bem com a vida. (...) Foi importante me ajudou
muito.
Clara: Acreditar em mim naquele momento tão difícil de minha vida. Como eu citei
no começo, alguns movimentos me fizeram perceber que eu podia fazer mais do
que eu acreditava. Imaginar e me confrontar com meu “ir mais além”. A
Bioexpressão me mostrou que eu posso ir mais além, cuidar de mim mesma...
Eduarda fala do grupo e retoma uma questão que acabou por gerar uma certa
polêmica em alguns de nossos encontros:
Eu acho que foi importante a relação que você criou com o grupo, essa ligação,
você poderia ter dado o curso como um outro qualquer. Mas pra mim ficou muito
claro que o grupo se fortaleceu como grupo e acho que a sua presença foi
fundamental, a sua didática, a sua metodologia, principalmente, o seu amor pelo
trabalho, o amor pelas pessoas envolvidas, não eram só “objetos” de pesquisa,
eram pessoas que estavam ali também construindo com você, e por mais que você
dissesse que não era uma terapia, estava sendo. “Não é grupo terapêutico!”, não
teve jeito, porque eu acho que acabou sendo grupo terapêutico sim.
Dois pontos relevantes se mostram na fala de Eduarda: o primeiro diz respeito à
forma como eu estava envolvida com o grupo. Não acredito que possamos realizar
qualquer tipo de atividade educativa se quem o coordena não estiver em ressonância com o
368
grupo, se não estiver comprometido com o seu fazer. Como enfatiza David Boadella
(1985/1992), nada é mais significativo que a presença viva de outro ser humano para que
mudanças de padrão e sentimentos possam acontecer. Paulo Freire também é enfático ao
afirmar que precisamos estar abertos “ao gosto de querer bem, às vezes, à coragem de
querer bem aos educandos e à própria prática educativa de que participo”. Isso significa
que a afetividade não nos assusta e nem tememos expressá-la. “Na verdade, preciso
descartar como falsa a separação radical entre seriedade docente e afetividade” (2004, p.
141).
O segundo diz respeito à consideração do teor terapêutico da Bioexpressão. O
grupo não era psicoterapêutico, como precisei enfatizar, muitas vezes, devido às demandas
e “confusões” que surgiram. Limites precisaram ser colocados, não pude permitir que
questões do passado, desvinculadas do momento vivido no grupo, fossem trazidas. As
atividades lúdicas e bioexpressivas não têm o objetivo de trabalhar com o passado, mas
sim flexibilizar os bloqueios do fluxo de energia. Mas com a flexibilização desses
bloqueios, memórias passadas podem surgir, uma vez que a emoção está ali contida. Neste
caso, elas são acolhidas, mas não necessariamente estimuladas. A seqüência das atividades
já prevê uma reorganização interna que traga bem-estar. Como observam os autores que
embasam o trabalho, retomar os fatos não é necessário para que a energia seja liberada.
Assim, temos que considerar que uma característica da ludicidade é ser curativa, uma vez
que ela reequilibra nossa energia e, nesse sentido, nós podemos considerá-la como
terapêutica. O importante é não confundi-la com uma sessão psicoterapêutica, porque
senão entraríamos em uma seara que não é a minha, e estalaríamos fugindo aos objetivos
do Curso. Uma coisa é acolher uma emoção que surge de uma vivência, outra coisa é
analisar problemas particulares que exigem um acompanhamento profissional
especializado.
O aspecto curativo das atividades desenvolvidas se relaciona ao equilíbrio
energético que as atividades lúdicas e bioexpressivas são capazes de produzir, uma vez que
como afirma Romel Costa (1990), a educação não é, primordialmente, um processo de
aprendizado técnico. Antes de qualquer coisa, consiste em um aprendizado de
possibilidades que permita ao indivíduo criar uma relação emocional mais saudável com o
meio, uma vez que a expressão emocional é a essência da expressão vital. Acrescenta o
autor que o corpo que ouve e se inter-relaciona “ouve” mais a linguagem emocional do
outro corpo que a linguagem verbal se o discurso não coincidir com a linguagem corporal,
369
emocional que a acompanha. Isso porque “a linguagem funcional corporal sempre expressa
a verdade funcional da vida” (p. 596).
Nas atividades que desenvolvemos, as repressões, os bloqueios puderam
gradualmente ser afrouxados e algumas dificuldades puderam ser olhadas e cuidadas. As
maneiras como as couraças atuam variam de acordo com os porquês de terem se formado,
mas, como diz Costa, a vida reprimida sempre se expressa. A fala de Eduarda mostra que
seu encouraçamento gerava muitas somatizações, que se tornaram mais intensas quando
passou a entrar em contato com seus bloqueios, que, à medida que foram se flexibilizando,
lhe permitiram liberar sua emoção:
Eu mudei muito do início do curso pra cá. (...) No início, foi difícil à beça. Eu
fiquei naquele processo de querer vomitar, ficava com dor de cabeça, enxaqueca,
sentia dores no pescoço. Mas dentro do curso, aconteceu alguma coisa que fez com
que isso fosse diminuindo. E eu já tenho percebido que eu não tenho mais ficado
doente como antigamente [narra uma série de somatizações que deixaram de
acontecer]. Algumas válvulas se abriram, alguma coisa estava muito presa, eu
estava muito trancada.
Érica fala da dificuldade e da vitória de ter podido olhar de frente o que a fazia se
sentir tão infeliz e sem energia para viver:
Eu comecei a olhar mais pra mim, porque alguma coisa não estava bem em mim, e
eu não estava querendo enxergar o que era, eu estava passando por cima disso
tudo. E, durante o período do curso, com aquelas reflexões, vivências, todo aquele
contato com o pessoal, eu fui olhando mais o que estava acontecendo comigo, o
que estava me incomodando tanto; por que eu estava me sentindo tão infeliz. E era
uma coisa que eu não queria enxergar, porque, na verdade, eu tinha medo. (...) Por
mais que eu fizesse, eu não ia conseguir resolver os problemas, além do mais, eu
estava ficando mais sufocada, mais infeliz, mais insatisfeita, mais amarga, mais
fechada, era falta de olhar mais pra mim mesma, uma falta de mais coragem...
Depois de uma pausa maior, perguntei-lhe: Tive a impressão que, gradualmente,
você foi ficando mais calada. Você percebeu isso?
370
Talvez o fato de eu falar mais, pra mim fosse uma máscara. Eu não queria
demonstrar o que eu estava sentindo, então eu falava pra ocultar a verdade. (...)
Eu me calei, mas era mais reflexão mesmo, era mais introspecção. Era ver como a
coisa estava acontecendo dentro de mim. Isso pra mim foi importante. (...) Estou
vendo as coisas com mais clareza. Eu estou me sentindo mais segura em relação
àquilo que eu quero, àquilo que eu devo fazer, àquilo que é possível fazer no
momento.
A verborragia, o riso nervoso, comentários sem propósito, como já vimos
anteriormente, podem ser formas de ocultar nossas dificuldades, nosso constrangimento ou
nossas próprias emoções. Parar para ouvir a si mesmo e o outro é indispensável para criar
contato com nosso self. Contato que Cristina conseguiu estabelecer e muito a ajudou em
seu processo de mudança:
Você se lembra do nosso primeiro encontro? Não se esquece né? [respondo que
não havia mesmo esquecido seu depoimento quanto a estar bebendo pra relaxar e
poder dormir, o que mobilizou muito o grupo] Eu estava ficando doente. É por isso
que quando várias pessoas disseram que o grupo era terapêutico, eu concordei,
por isso, porque eu achava uma terapia eu estar aqui com vocês, eu estar aqui
participando. E no dia em que eu não podia estar presente eu me sentia mal, eu me
sentia incomodada, era como se alguma coisa fosse arrancada de mim. E a mesma
sensação eu sinto hoje, a Bioexpressão não deveria acabar nunca.
Com o aumento da consciência de nós, de nosso próprio corpo, alcançamos uma
outra percepção do que nos rodeia e nos damos conta daquilo que, antes, não
conseguíamos ver, tanto sentimentos prazerosos quanto os que nos causam dor ou
desprazer, podendo buscar soluções. Como enfatiza Reich (1933/1998), as emoções
ocultas acabam se transformando em “falsidade crônica”, assim, é preferível entrar em
contato com elas, mesmo que não seja fácil olhá-las. Confirmando o pensamento
reicheano, Costa observa que a educação pode apoiar o desenvolvimento integral do ser
humano. “E a possibilidade disso acontecer de maneira adequada envolve diretamente a
estrutura emocional dos educadores envolvidos. (...) Uma sociedade neurótica continuará
produzindo indivíduos neuróticos através de suas instituições”. Para que se obtenha uma
transformação desse quadro, é necessário consciência da própria vida, de sua
371
complexidade. “A mudança compete a cada um de nós. A partir de nós mesmos. Antes de
mais nada, a auto-educação para a autonomia funcional e social é fundamental” (1990, p.
602).
Entrar em contato com nossa essência, com nosso self é encontrar uma nova
compreensão, um novo sentido para a vida, nova força para superar os desafios, acessar
novos níveis de consciência, é entrar em contato com a nossa dimensão espiritual.
372
CONSIDERAÇÕES FINAIS ... POR ENQUANTO
Sons, cores, aromas me envolvem...
Despertam os sentidos...
O corpo se expressa...
Silencio para ouvi-lo...
me diz da inquietude que se agita
das dúvidas que se debatem
das emoções aprisionadas...
Planto os pés no chão
enraizados na materialidade...
Respiro profunda e calmamente...
Pouco a pouco o ar se expande...
A energia percorre seus caminhos...
O tronco enraizado expande seus galhos...
Folhas se mostram, flores se abrem...
Terra e Céu se unem...
Dimensões desconhecidas se entremostram
- jogo de esconde-esconde -
O coração entrevê, intui, pressente...
A sábia voz interior decifra enigmas...
A luz ilumina sombras...
dissolve medos ocultos.
Sou una com o Universo
integrando fragmentos...
Em mim a vida vivente...
O Amor se derrama em ondas
fecunda, nutre, embeleza...
Me entrego ao momento...
Sou Presente
Este poema poderia se chamar Terra e Céu, Integrando fragmentos ou
Bioexpressão, uma vez que, metaforicamente, expressa o caminho percorrido quando nos
entregamos às atividades bioexpressivas ao longo de um período regular. Firmamos nossa
base, nos centramos, especialmente através da respiração, nos conectamos com nossa
essência e a expressão pode se manifestar. Esse processo, como analisamos ao longo desta
pesquisa, mostra-se significativo quando desejamos formar educadores autônomos,
comprometidos, com conhecimento de si e daqueles com quem atua para uma educação
lúdica que supere a mera transmissão de informações e seja, de fato, um processo formativo
do ser humano.
373
Minha intenção, ao desenvolver esta pesquisa, foi investigar os efeitos das
atividades de Bioexpressão para a formação de educadores do ponto de vista da integração
corpo-sentimentos-pensamentos. Minha hipótese era de que tais atividades proporcionariam
aos futuros educadores ou àqueles que já estivessem no exercício do magistério
possibilidades de flexibilizar bloqueios à sua expressividade. Tinha por hipótese, ainda, que
as atividades bioexpressivas poderiam se transformar em recursos para sua própria prática
em sala de aula. Essas hipóteses surgiram de minha experiência como professora de
Didática, Metodologia e Prática de Ensino, além de outras disciplinas como Arte-Educação
e Literatura Infantil, em que a Bioexpressão foi instrumento para que se criassem novas
possibilidades de atuação em minha prática pedagógica, tendo como recurso principal as
atividades lúdicas.
Assim sendo, nesta pesquisa, o campo teórico da Bioexpressão foi delineado e
construído; suas especificidades como uma possibilidade de atuação pedagógica foram
configuradas; e realizada a pesquisa-ação junto a educadores de quinta a oitava série do
Ensino Fundamental e de Ensino Médio.
Não podemos dissociar a singularidade da pessoa do educador, sua história de vida e
sua atuação profissional. São fios que tecem uma totalidade. Sua formação profissional, os
rituais acadêmicos vividos, suas transformações pessoais, a aquisição de novos saberes irão
enriquecendo a trama deste tecido que se constrói ao longo de sua vida. Como afirma
Elizeu Clementino de Souza, na formação do educador,
a “busca de si e de nós” vincula-se à dimensão de alteridade solidária a si e aos
outros. A busca de si expressa a aceitação da condição humana e da capacidade
construída de amor próprio, conseqüentemente, a partir da mediação, situa as
relações de confiança consigo próprio, com os outros e com o desenvolvimento
da capacidade de amor incondicional e de aceitação da existência, a qual
inscreve-se nas diferentes transformações da vida (2004, p. 202).
Antes de falar do processo dos educadores que comigo “navegaram” e se
aventuraram pelos “novos mares”, é preciso falar da Bioexpressão e de seu
amadurecimento, assim como de meu próprio amadurecimento e aprendizagem diante dos
imprevistos, pontos fundamentais para os resultados obtidos, uma vez que depende muito
de nós, educadores, que novas propostas possam ter resultados positivos.
374
A Bioexpressão passou por grandes transformações ao longo destes quatro anos de
Doutorado, que me proporcionaram muitos conhecimentos e experiências significativos,
não só profissionais, mas, sobretudo, pessoais. Primeiramente, trocou de nome, deixou de
se chamar Bioexpansão, sendo batizada de Bioexpressão, nome sugerido por um de seus
“padrinhos”, meu orientador, com plena aprovação, após algumas resistências iniciais, por
sua “mãe”. Ganhou mais forma, consistência, leveza, força, flexibilidade, enfim, mais
cores em seus múltiplos e variados matizes. Os estudos teóricos me trouxeram segurança
para encaminhá-la, para perceber suas potencialidades e fragilidades, para traçar seus
contornos, dosar expectativas, colocar os pés no chão, sem abrir mão dos sonhos, desejos,
projetos criativos e intuitivos. A pesquisa de campo me propiciou possibilidades férteis de
experienciar, de observar, de criar, de concretizar, experimentar possibilidades, fazer
trocas, aprender, construir, desconstruir e reconstruir, de integrar novos conhecimentos, de
lidar com desafios, de testar minha capacidade de ser flexível e estar aberta para o
inesperado. Enfim, uma grande e valiosa aprendizagem, que, naturalmente repercutiu no
desenvolvimento da proposta e nos participantes da pesquisa.
À medida que o tempo de contato com os educadores foi passando, e que as
respostas não chegavam da forma esperada por mim, foi necessário que eu avaliasse o que
estava ocorrendo e modificasse minha maneira de analisar o contexto, e reavaliasse
também a minha própria expectativa, propondo novas possibilidades como descrevi nos
capítulos anteriores. Resistências mostram alguma coisa, mostram que há um processo
acontecendo e “incomodando”. Fazer essa leitura também foi um exercício necessário para
mim. Também estava aprendendo muito com os retornos que recebia dos participantes da
pesquisa. Se estavam acontecendo mudanças em seus corpos, que se tornavam
gradualmente mais livres e expressivos como eu podia claramente observar; nas suas
relações afetuosas e espontâneas com o grupo; em suas salas de aula e fora dela, na forma
de verem e ouvirem seus educandos e familiares, algo estava se transformando. Eu precisei
relembrar que cada ser humano responde dentro da sua possibilidade e do seu tempo. Não
podia querer que as coisas acontecessem de acordo com meu desejo. Para mim também foi
um exercício de observação atenta, acolhimento, estímulo, paciência e respeito.
Aproprio-me das palavras de Ivani Fazenda: “escrever sobre a própria prática é um
ato de ousadia (...) É um momento em que você se desvela e vai adquirindo liberdade e
permitindo a outros que entendam um pouco do trabalho que você faz. Para mim, fazer
pesquisa é também isso” (1992, p. 134). Esta é a percepção que me acompanhou durante a
375
escrita e a prática desta pesquisa. Aos poucos, algo vivido na intimidade da sala de aula foi
se mostrando e se configurando com novos contornos.
Em relação aos educadores que participaram da pesquisa, como comprovam os
dados analisados nos capítulos anteriores, mudanças, indubitavelmente, ocorreram.
Algumas mais profundas, outras, aparentemente, mais superficiais. Mas, considerando-se
que os encouraçamentos eram diferenciados, uma vez que as histórias de vida são
singulares, não posso afirmar que “pequenas” mudanças tenham sido menos significativas.
O importante, a meu ver, analisando cuidadosamente o caminhar dos educadores
envolvidos na pesquisa, é que cada um foi tocado de alguma forma, especialmente em suas
vidas pessoais, e seu nível de consciência se ampliou. Isso significa que há um processo se
desenvolvendo, e somente o futuro poderá dizer o que ainda irá se manifestar.
Aprendi muito com os participantes da pesquisa, inclusive que, com a
Bioexpressão, também há um tempo de plantar e um de colher, que nem sempre vemos
logo o florescimento, embora a mutação da semente esteja acontecendo. Sementes foram
lançadas, algumas caíram em terra fértil e frutificaram com maior rapidez. Outras caíram
na superfície, germinaram, mas possivelmente, se não forem bem cuidadas, não terão vida
longa. E só o tempo poderá dizer de que maneira acontecerá com cada um, que repercussão
surgirá, que modificações poderão acontecer.
De qualquer forma, algo está sedimentado e acredito que não se perderá. Usando a
expressão de Paulo Freire (2004), diferentemente de estarem anestesiados, a maioria dos
educadores ganhou vitalidade para se confrontar com as opressões, as pressões
institucionais e fazerem da educação uma forma de ganhar autonomia e de sair da
acomodação.
Os educadores puderam se conscientizar que somos nossa historia de vida, o que
nos ajuda a compreender melhor a nós mesmos, a aceitar nossas limitações, a descobrir
potencialidades não desenvolvidas, a lidar melhor conosco e a investir em nosso processo
de construção e crescimento, pois, como afirma Stanley Keleman, “o homem é um
organismo em autoconstrução” (1985/1992, p. 16). Puderam tomar consciência, enfim, de
sua responsabilidade em seu processo de autoformação e formação de seus educandos.
Enquanto estávamos trabalhando regularmente, estávamos fortalecendo nossa base,
respirando, centrando, flexibilizando as couraças, entrando em contato com nosso self,
376
assumindo a força para superar dificuldades, para a expressão espontânea de movimentos,
sentimentos e pensamentos, dando “voz” às emoções reprimidas. Com a percepção do que
se manifestava no corpo, do que trazia angústia, do que necessitava ser transformado,
“expelido” e acolhido por si mesmo, cada um pôde se olhar de fato e buscar formas de
lidar com suas dificuldades e medos, assim como lidar com o prazer e a alegria, muitas
vezes, sem espaço anterior para se mostrarem. A entrega, a integração pensamento-
sentimento-ação propiciada pelas atividades lúdicas se mostravam nos movimentos
expressivos, na fala conectada com a emoção, na criatividade, na autonomia, no
conhecimento de si passo a passo conquistados.
A presença e o acolhimento do grupo foram fatores importantes. Ser passa pelo
processo das inter-relações. Nós nos constituímos nas relações com o meio, com as pessoas
que convivem conosco. O processo de maturidade se dá no contato com o outro, na
percepção das diferenças, na aceitação da multiplicidade de pensamentos, no acolhimento
das questões, na avaliação de seu próprio fazer, maturidade necessária ao educador.
Embora tenha pontuado esta questão, inúmeras vezes, anteriormente, é importante
retomá-la: transformações mais profundas na prática pedagógica implicam uma mudança
de atitude dos educadores, implica uma nova postura diante da vida, não apenas uma
mudança cognitiva com a aquisição de novos conhecimentos, mas também uma mudança
emocional, corporal e espiritual, uma aprendizagem da integração das várias dimensões do
ser humano, o que pôde ser vivenciado pelos educadores participantes da pesquisa. A
formação do educador exige muito mais que a aquisição de conteúdos e técnicas de ensino
desvinculados da realidade. A atuação do educador traduz sua visão de educação e de vida.
Um professor autoritário não tem condições de estimular a autonomia de seus estudantes,
assim como um professor rígido, contido, não terá condições de aceitar a criatividade
transgressora e os vôos de seus aprendizes. Não basta querer mudar, é necessário saber
como ir superando os bloqueios que a vida vivida exigiu como proteção como nos mostram
os estudos de Wilhelm Reich e seus continuadores.
A Bioexpressão, como uma disciplina de sessenta horas não resolveria as
dificuldades de fragmentação que se mostram hoje em nossas Universidades, como
também não as resolveriam disciplinas como Ludicidade, Ética, Estética, Arte-Educação,
entre outras, embora possam, nesse curto espaço de tempo, lançar suas sementes e produzir
frutos. Estes saberes, fundamentais para a formação do ser humano, e, portanto, do
educador, precisariam se integrar a outros saberes e ser vivenciados ao longo de todo
377
processo de formação. Como observei no terceiro capítulo da Primeira Parte, levando-se
em conta que o núcleo da formação de educadores é a prática pedagógica, a Didática, as
Metodologias e a Prática de Ensino seriam um espaço significativo para as atividades de
Bioexpressão, proporcionando a esses educadores a vivência de uma nova postura diante
do fazer pedagógico.
A experiência de conviver com o grupo de Bioexpressão ainda ecoa em mim,
corpo, pensamento e sentimento retêm a vibração do vivido. A posição de orientadora e de
pesquisadora, embora implique uma enorme responsabilidade, não me roubou a emoção da
partilha. Ali estava uma Lucia Helena bastante lúcida, iluminada por uma clareza que
advinha da razão, da experiência concreta de muitos anos de trabalho e estudo, mas,
também, por uma outra luz vinda de um espaço que transcendia a matéria e nela
reverberava. Uma Lucia Helena com uma percepção mais clara, mais aguçada que
provinha do corpo e da alma, que vivenciava uma experiência absolutamente lúdica
profunda, transcendente, unificadora e irradiante. Entretanto, nada seria possível sem os
componentes do grupo que, apesar de apresentarem bloqueios tão comuns a todos nós, e
ainda sem muita estrada percorrida no caminho da busca do autoconhecimento e da
percepção do próprio corpo e da ludicidade, se dispuseram a assumir um compromisso
consigo e com o próprio grupo, a enfrentar os desafios que a proposta implica e outros
tantos, como dedicar seis horas semanais ao trabalho, o que inclui uma manhã de sábado,
em que é tão bom dormir um pouco mais ou em que se resolvem as pendências da semana.
As atividades foram vivenciadas com muito prazer e entrega, e isso se deveu, entre
outros aspectos, à integração do grupo e sua disposição de participar e interagir, à
preocupação que tive na escolha de cada uma dessas atividades, à orientação cuidadosa que
fazia a cada momento, à acolhida das demandas do grupo que se expressavam verbalmente
ou através dos relatos que recebia. A minha atenção ao movimento que o grupo foi
fazendo, o meu olhar para dificuldades e ansiedades que emergiam e para situações criadas
que lhe eram ou não prazerosas foram indispensáveis para que o Curso de Extensão e sua
continuidade fossem significativos para o grupo. Sem a relação amorosa que estabeleço
com o trabalho e o compromisso que assumo com ele, a meu ver, muito pouco teria
acontecido. Isso corrobora a minha crença de que colocar o coração em nossas atividades
de sala de aula, sem menosprezar a base teórica que fundamenta a ação e o compromisso
que estabelecemos com os educandos, faz com que aquilo que estamos propondo seja
378
aceito e vivenciado com maior entrega por eles. O educando, seja qual for seu nível de
escolaridade, é sensível ao envolvimento do educador com suas aulas, e a ludicidade é um
recurso mobilizador por excelência.
Quando deixamos que nossa expressão seja vivificada com as emoções que
afloram, que o coração se alie ao intelecto, superando as barreiras que nos são impostas por
normas e regras imobilizadoras, pelas angústias advindas de cobranças sem sentido, ela
ganha força e alma e podemos nos expressar verdadeiramente, deixando mais vivo para
quem lê ou ouve aquilo que queremos transmitir.
O momento que vivemos exige maior flexibilidade, tanto pessoal quanto
profissional. Não basta nos munirmos de conhecimentos para enfrentar os desafios que a
vida nos impõe. Este momento exige que possamos buscar opções, que estejamos aptos a
lidar com o novo, com o inesperado, com as incertezas. É necessário estar em constante
trabalho de atualização, de crescimento, de busca, de atendimento a novas demandas, a
novas aprendizagens e possibilidades. Momento que requer mais que uma educação
basicamente centrada no uso de uma racionalidade conceitual/instrumental, que requer,
além das dimensões cognitiva e instrumental, o desenvolvimento do ser em sua
integralidade, considerando-se as dimensões afetiva, corporal e espiritual. Precisamos de
uma educação, como propõe o relatório da UNESCO, que ofereça possibilidades ao
educando de aprender a aprender, aprender a pensar, a conviver e a amar. Uma educação
que abra espaços para o desenvolvimento da autonomia, da responsabilidade pessoal e
coletiva, da criatividade, da intuição e do cuidado.
É um momento, enfim, em que precisamos possibilitar que a vida pulse em nós e se
expresse. E isto pôde ser vivenciado com as atividades bioexpressivas, contribuindo para a
prática pedagógica e também para a vida pessoal dos participantes da pesquisa, uma vez
que são parte de um todo.
A Bioexpressão trouxe a possibilidade, através das atividades lúdicas, com a visão
aqui apresentada, que vai além dos jogos e brincadeiras, incluindo uma gama de atividades
que propiciem a vivência plena do momento presente, de que os educadores entrassem em
contato consigo, organizando seu campo energético, flexibilizando as couraças e
aumentando o fluxo da energia vital, levando para suas salas de aula e para suas vidas uma
nova visão de mundo e de educação.
Possibilitar uma prática educativa bioexpressiva não é uma tarefa simples. Requer,
379
antes de qualquer coisa, que nós, educadores, assumamos o compromisso de “estar” em
nossa prática, nos propondo a olhar para nós mesmos e para nossos educandos, e a afinar a
escuta. Requer que nos disponhamos a crescer também.
Quando estamos em contato conosco, ou seja, quando estamos equilibrados,
centrados em nós, estamos nutridos em nosso ser. Isso nos possibilita maior segurança e,
conseqüentemente, uma expressão mais autêntica. As atividades lúdicas, como propiciam
experiências de plenitude, de (re)organização da bioenergia, nos oferecem oportunidades
de treinar essa nutrição do ser, o cuidado, e com isso estimular a expressividade.
O educador que se propõe a desenvolver uma prática bioexpressiva deve estar
preparado para o diálogo, para acolher e estimular seus educandos, e também estabelecer
limites para que todos tenham seus direitos garantidos; para estimular o respeito entre
todos os participantes do grupo e o respeito de cada um por si mesmo. É aquele que não
pretende que o educando pense como ele, mas que pense por si mesmo e aprenda a viver e
a conviver, pois, na convivência verdadeira com o outro, que vai muito além de estar junto
em um mesmo espaço, aprendemos muito sobre o ser humano e a vida. Educar, a meu ver,
é levar nosso educando a descobrir-se e descobrir possibilidades de viver a vida com mais
inteireza e de ser feliz. Fecho estas conclusões inconclusas, pois nada na vida é definitivo,
com as palavras de Rainer Maria Rilke
89
.
Temos que aceitar a nossa existência em toda sua plenitude possível: tudo,
inclusive o inaudito, deve ficar possível dentro dela. No fundo, só essa coragem nos é
exigida: a de sermos corajosos em face do estranho, do maravilhoso e do inexplicável que
se nos pode defrontar. (...) Se imaginarmos a existência de um indivíduo como um quarto
mais ou menos amplo, veremos que a maioria não conhece senão um canto de seu quarto,
um vão de janela, uma lista por onde passeiam o tempo todo, para assim possuir certa
segurança.
Que possamos olhar para toda extensão desse quarto, nos apropriar dele e ver o que
está além da janela.
89
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Tradução de Paulo Rónai. 11 ed. Porto Alegre: Globo.
1983, p. 66-67.
380
REFERÊNCIAS
ABRAMOVICH, Fanny. Quem educa quem? 10ed. São Paulo: Summus, 1985.
ACOSTA, Marco Aurélio de F. A ludicidade na terceira idade. In: SANTOS, Santa Marli
(org.). Brinquedoteca. A criança, o adulto e o lúdico. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 43-56.
ALBERTINI, Paulo. Reich: história das idéias e formulações para a educação. São Paulo:
Ágora, 1994.
AMARAL, Ana Lúcia. As eternas encruzilhadas: de como selecionar caminhos para a
formação do professor de ensino superior. In: ROMANOWSKY, Joana P.; MARTINS,
Pura Lúcia O.; JUNQUEIRA, Sérgio R. A. (orgs). Conhecimento local e conhecimento
universal: pesquisa, didática e ação docente. Curitiba: Champagnat, 2004, p. 139-150.
ANASTASIOU, Lea das Graças C. Didática e ação docente: aspectos metodológicos na
formação dos profissionais da educação. In: ROMANOWSKY, Joana P.; MARTINS, Pura
Lúcia O.; JUNQUEIRA, Sérgio R. A. (orgs). Conhecimento local e conhecimento
universal: pesquisa, didática e ação docente. Curitiba: Champagnat, 2004, p. 59-69.
______. Ensinar, aprender, apreender e processos de ensinagem. In: ANASTASIOU, Lea
das Graças C; ALVES, Leonir P. (orgs.). Processos de ensinagem na Universidade.
Pressupostos para as estratégias de trabalho em aula. Joinville, SC: UNIVILLE, 2003, p.
11-38.
ASSMAN, Hugo. Paradigmas educacionais e corporeidade. 3 ed. Piracicaba: UNIMEP,
1995.
BAHIA, Carmem de Britto. Auto-regulação humana, educação e ludicidade. In:
LUCKESI, Cipriano Carlos (org.). Ludopedagogia Ensaios 1: Educação e Ludicidade.
Salvador: Gepel, 2000. V.1, p. 103-117.
BOADELLA, David. Correntes da vida. Uma introdução à Biossíntese. Tradução de
Cláudia Soares Cruz. 2 ed. São Paulo: Summus, 1985/1992.
______. Common Ground and Different Approaches in Psychotherapy. Editado por Esther
Frankel, Escola de Biossíntese, Rio de Janeiro, 1988.
______. Morfologia dinâmica. In: KIGNEL, Rubens (org.). Energia e caráter. Tradução
de Maya Hantower. São Paulo: Summus, vol. 2, 1997. p. 113-131.
______. Nos caminhos de Reich. Tradução de Elisane Reis Barbosa Rebelo, Maria Silvia
Mourão, Ibanez de Carvalho Filho. São Paulo: Summus, 1973/1985.
______.Psicoterapia somática: suas raízes e tradições. Uma perspectiva pessoal. In:
KIGNEL, Rubens (org.). Energia e caráter. Tradução de Maya Hantower. São Paulo:
Summus, vol. 2, 1997. p. 13-42.
381
______. Soma, self e fonte. In: BOADELLA, David; BOYESEN, Gerda, LISS, Jerome.
Energia e caráter. Tradução de Maya Hantower. São Paulo: Summus, vol. 1, 1997. p. 112-
126.
______. Transferência, ressonância e interferência. In: Cadernos de Psicologia
Biodinâmica 3. Tradução de George Schlesinger et al. Publicado originalmente como
periódico sob o título: Journal of Biodynamic Psychology. 1982/1983. p. 85-107.
BOFF, Leonardo. Espiritualidade. Um caminho de transformação. Rio de Janeiro:
Sextante, 2001.
______. Espiritualidade e Sexualidade: uma perspectiva radical. In: Energia e Cura.
Revista de Cultura Vozes. Petrópolis: Vozes. Ano 84 (LXXXIV). Setembro/Outubro de
1990. Nº 5. p. 554-565.
______. Saber cuidar: Ética do humano Compaixão pela terra. 4 ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1999.
BOGDAN, Robert, BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em educação. Uma introdução
à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1991.
BOYESEN, Gerda. Experiências com o relaxamento dinâmico e a relação de sua
descoberta com a visão reicheana de bioenergia e vegetoterapia. In: BOADELLA, David;
BOYESEN, Gerda, LISS, Jerome. Energia e caráter. Tradução de Maya Hantower. São
Paulo: Summus, vol. 1, 1997. p. 43-62.
BRUHNS, Heloísa Turini. O corpo parceiro e o corpo adversário. Campinas: Papirus,
1993.
CANDAU, Vera Maria. Mesa 20 anos de Endipe. A didática hoje: uma agenda de trabalho.
In: CANDAU, Vera Maria (org.) Didática, currículo e saberes escolares. Rio de Janeiro:
DP&A, 2000, p. 149-160.
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. Tradução de Álvaro Cabral. 7 ed. São Paulo: Cultrix,
1988.
CASTANHO, Maria Eugênia L.M. A criatividade na sala de aula universitária. In: VEIGA,
Ilma P.A., CASTANHO, Maria Eugênia L.M. (orgs.). Pedagogia Universitária. A aula em
foco. Campinas: Papirus, 2000. p. 75-89.
CELANO, Sandra. Corpo e mente na educação: uma saída de emergência. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1999.
CHAGAS, Marly. Musicoterapia e psicoterapia corporal. In: Revista Brasileira de
Musicoterapia. Rio de Janeiro: União Brasileira das Associações de Musicoterapia. 1997.
Ano II. Nº 3. p.17-25.
______. Ritmo, som, vida. In: Energia e Cura. Revista de Cultura Vozes. Petrópolis:
Vozes. Ano 84 (LXXXIV). Setembro/Outubro de 1990. Nº 5. p. 585-592.
382
COSTA, Romel Alves. Perturbações da sexualidade e o processo terapêutico reichiano. In:
Energia e Cura. Revista de Cultura Vozes. Petrópolis: Vozes. Ano 84 (LXXXIV).
Setembro/Outubro de 1990. Nº 5. p. 593-604.
DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes. Emoção, razão e o cérebro humano.
Tradução de Dora Vicente e Georgina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
______. O mistério da consciência. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
DAOLIO, Jocimar. Da cultura do corpo. Campinas: Papirus, 1995.
DOMINGO, José Contreras. La didáctica y la autorización del profesorado. In: TIBALLI,
Elianda F. A.; CHAVES, Sandramara M. (orgs.). Concepções e práticas em formação de
professores. Diferentes olhares. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 11-31.
DUARTE JR, João-Francisco. Por que arte educação? Campinas: Papirus, 1983.
DÜRCKHEIM, Karlfried Graf. Hara. O centro vital do homem. Tradução de Betty Cruz
A. Heidemann e Zilda H. Schild. São Paulo: Pensamento, 1991.
EIZIRIK, Marisa F. Ética e cuidado de si: movimentos da subjetividade. Educação,
subjetividade e poder. Porto Alegre, n. 4, v. 4, jan./jun., p. 36-43, 1997.
EPSTEIN, Gerald. Imagens que curam. Tradução de Célia Szterenfeld. 9 ed. Rio de
Janeiro: Xenon, 1990.
ESPÍRITO SANTO, Ruy Cezar. Desafios na formação do educador. Retomando o ato de
educar. Campinas, SP: Papirus, 2002.
______. O renascimento do sagrado na educação. Campinas, SP: Papirus, 1998.
______. Pedagogia da Transgressão. Um caminho para o autoconhecimento. 6 ed.
Campinas, SP: Papirus, 2003.
FALCÃO, José Luiz C. Ludicidade, jogo, trabalho e formação humana: elementos para a
formulação das bases teóricas da “Ludocapoeira”. In: PORTO, Bernadete de Souza (org.).
Ludicidade: o que é mesmo isso? Salvador: Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Gepel, 2002, p. 92-127.
FANNING, Patrick. Visualizar para mudar. Tradução de Cláudia Gerpe Duarte. São
Paulo: Siciliano, 1993.
FAZENDA, Ivani; SOARES, Magda. Metodologias não convencionais em teses
acadêmicas. In: FAZENDA, Ivani (org.). Novos enfoques da pesquisa educacional. 2 ed.
São Paulo: Cortez, 1992, p. 119-135.
FLEURI, Reinaldo. Multiculturalismo e interculturalismo nos processos educacionais. In:
CANDAU, Vera Maria (org.). Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa. Rio de
Janeiro: DP&A, 2000. p. 67-81.
383
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M. Ponde
Vassalo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1988.
FORTUNA, Tânia Ramos. Formando professores na Universidade para brincar. In:
SANTOS, Santa Marli P.dos (org.). A ludicidade como ciência. Petrópolis: Vozes, 2001. p.
115-119.
FREGTMAN, Carlos D. Holomúsica. Um caminho de evolução transpessoal. Tradução de
Rolando Roque da Silva. São Paulo: Cultrix, 1995.
______. O tao da música. Tradução de Priscilla Barrak Ermel. São Paulo: Pensamento,
1988.
FREIRE, Madalena. O que é um grupo? In: GROSSI, Esther P. e BORDIN, Jussara (org.).
Paixão de aprender. 12 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 59-68.
FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação. São Paulo: Moraes, 1980.
______. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
______. Extensão ou Comunicação? Tradução de Rosisca Darcy de Oliveira. 10 ed. São
Paulo: Paz e Terra, 1992.
______. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 29 ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2004.
______. Pedagogia do oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
______. Professora sim, tia não: Cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho
D’água, 1993.
FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia. O cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1987.
GALEFFI, Dante Augusto. O ser sendo da filosofia: uma compreensão poemático-
pedagógica para o fazer-aprender filosofia. Salvador: EDUFBA, 2001.
GARCÍA, Carlos Marcelo. Formação de professores. Para uma mudança educativa.
Tradução de Isabel Monteiro. Porto, Portugal: Porto Editora; 1999.
GARCIA, Regina Leite. Da fronteira se pode alcançar um ângulo mais amplo... embora
nunca se veja tudo. In: CANDAU, Vera Maria (org.). Ensinar e aprender: sujeitos, saberes
e pesquisa. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p. 115-131.
GIROUX, Henry. Cruzando as fronteiras do discurso educacional. Novas políticas em
educação. Tradução de Magda França Lopes. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.
384
GOLEMAN, Daniel. Inteligência emocional. A teoria revolucionária que define o que é
ser inteligente. Tradução de Marcos Santarrita. 64 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, sem data.
Edição original: 1995.
GONÇALVES, Maria Augusta S. Sentir, pensar, agir: corporeidade e educação. Campinas:
Papirus, 1994.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens. Tradução de João Paulo Monteiro. São Paulo:
Perspectiva, 1996.
KELEMAN, Stanley. Anatomia emocional: a estrutura da experiência. Tradução de
Myrthes Suplicy Vieira. 3 ed. São Paulo: Summus, 1985/1992.
______. As raízes da consciência. In: KIGNEL, Rubens (org.). Energia e caráter.
Tradução de Maya Hantower. São Paulo: Summus, vol. 2, 1997. p. 98-111.
______. O corpo diz sua mente. Tradução de Maya Hantower. São Paulo: Summus,
1975/1996.
KISHIMOTO, Tizuko Morchida. O jogo e a educação infantil. In: KISHIMOTO, Tizuko
Morchida (org.). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo: Cortez, 1996. p.
13-43.
______. O jogo e a educação infantil. São Paulo: Pioneira, 1994.
KOFES, Suely. E sobre o corpo, não é o próprio corpo que fala? In: BRUHNS, Heloisa T.
(org.). Conversando sobre o corpo. 5 ed. Campinas: Papirus, 1994. p. 45-80.
LÉLIS, Telma Nadja Silveira. A Psicologia de Wilhelm Reich (1ª Parte). Apostila do
Módulo III do Curso de Formação em Terapia de Integração Psicocorporal. Salvador,
2003.
______. A Psicologia de Wilhelm Reich (2ª Parte). Apostila do Módulo IV do Curso de
Formação em Terapia de Integração Psicocorporal. Salvador, 2003.
______. Grupos de Movimento e Dinâmica de Grupos. Apostila do Módulo IX do Curso de
Formação em Terapia de Integração Psicocorporal. Salvador, 2003.
LEWIS, Dennis. O tao da respiração natural. Para a saúde, o bem-estar e o crescimento
interior. Tradução de Marta Rosas. São Paulo: Pensamento, 1999.
LOWEN, Alexander. Alegria. A entrega ao corpo e à vida. Tradução de Maria Sílvia
Mourão Netto. 2 ed. São Paulo: Summus, 1995/1997.
______. A espiritualidade do corpo. Bioenergética para a beleza e a harmonia. Tradução
de Paulo César Oliveira. São Paulo: Cultrix, 1990/1991.
______. Bioenergética. Tradução de Maria Sílvia Mourão Netto. São Paulo: Summus,
1975/1982.
385
______. Medo da vida. Tradução de Maria Sílvia Mourão Netto. São Paulo: Summus,
1980/1989.
______. O corpo em depressão. As bases biológicas da fé e da realidade. Tradução de
Ibanez de Carvalho Filho. 6 ed. São Paulo: Summus, 1972/1883.
______. O corpo em terapia. A abordagem bioenergética. Tradução de Maria Sílvia
Mourão Netto. 2 ed. São Paulo: Summus, 1958/1977.
______. Prazer. Uma abordagem criativa da vida. Tradução de Ibanez de Carvalho Filho.
6 ed. São Paulo: Summus, 1970/1984.
LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da aprendizagem na escola. Reelaborando
conceitos e recriando a prática. Salvador: Malabares Comunicação e Eventos. 2003.
______. Educação, ludicidade e prevenção das neuroses futuras: uma proposta pedagógica
a partir da Biossíntese. In: LUCKESI, Cipriano Carlos (org.) Ludopedagogia Ensaios 1:
Educação e Ludicidade. Salvador: Gepel, 2000. V.1, p. 9-41.
______. Ludicidade e atividades lúdicas: uma abordagem a partir da experiência interna.
In: PORTO, Bernadete de Souza (org.). Ludicidade: o que é mesmo isso? Salvador:
Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em
Educação, Gepel, 2002. p. 22-60.
______. Por uma proposta de educação integral a partir da Biossíntese. Palestra
apresentada no III Encontro Baiano de Biossíntese. Biossíntese e Contemporaneidade.
Clínica e Educação. Salvador, Bahia. Dias 9 e 10 de agosto de 2002.
MARTINS, Pura Lúcia O. A didática como expressão das contradições da prática:
princípios e metodologia. In: IX Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino
ENDIPE. Anais. Águas de Lindóia: Vozes, 1998. p. 267-284.
MATURANA, Humberto; Magro, C., Graciano M. e Vaz, N. (org.). A ontologia da
realidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997.
______. Emoções e linguagem na educação e na política. Tradução de José Fernando
Campos Fortes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente. Campinas: Papirus,
1997.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução
de Eloá Jacobina. 3 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
MOYZÉS, Márcia Helena Ferreira. Sensibilização e Conscientização Corporal do
Professor: Influência em seus saberes e suas práticas pedagógicas. 2003. 196 p.
Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Uberlândia, Faculdade de Educação,
Uberlândia.
386
NAKAMURA, Takashi. Respiração oriental: técnica e terapia. Tradução de Jamir Martins.
São Paulo: Pensamento, 1981.
NEGRINE, Airton. Ludicidade como Ciência. In: SANTOS, Santa Marli P. dos. (org.). A
ludicidade como ciência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 23-44
______. O lúdico no contexto da vida humana: da primeira infância à terceira idade. In:
Santos, Santa Marli P. dos (org.). Brinquedoteca: a criança, o adulto e o lúdico, Petrópolis:
Vozes, 2000. p. 15-24.
NEIDHOEFER, Loil. Trabalho corporal intuitivo. Uma abordagem reichiana. Tradução de
Jacqueline Bornhausen. São Paulo: Summus, 1994.
OLIVEIRA, Maria Rita N.S., ANDRÉ, Marli E.D.A. de. A prática do ensino de Didática
no Brasil: introduzindo a temática. In: ANDRÉ, M.E.D.A., OLIVEIRA, M.R.N.S. (org.).
Alternativas do ensino de Didática. Campinas: Papirus, 1997. p. 7-18.
OLIVEIRA, Washington Carlos. Percebendo a ludicidadania na educação. In: PORTO,
Bernadete de Souza (org.). Ludicidade: o que é mesmo isso? Salvador: Universidade
Federal da Bahia, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação,
Gepel, 2002, p. 61-91.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 7 ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
1987.
PACHECO, José Augusto. O pensamento e a ação do professor. Porto: Porto Editora,
1995.
PEARCE, Joseph Chilton. O fim da evolução. Reivindicando a nossa inteligência em todo
o seu potencial. Tradução de Marta Rosas. São Paulo: Cultrix, 2002.
PEREIRA, Lucia Helena P. Decodificação crítica e expressão criativa. Seriedade e alegria
no cotidiano da sala de aula. Rio de Janeiro: Faculdade de Educação da UERJ, 1992. 167 p.
(Dissertação, Mestrado em Tecnologia Educacional).
______. Ludicidade: algumas reflexões. In: PORTO, Bernadete de Souza (org.).
Ludicidade: o que é mesmo isso? Salvador: Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Gepel, 2002. p.12-21.
PERRENOUD, Phillipe. Enseigner. Agir dans l’urgence, décider dans l’incertitude.
Savoirs et compétences dans un métier complexe. Paris: ESF, 1996.
PIMENTA, Selma Garrido. A didática como mediação na construção da identidade do
professor uma experiência de ensino e pesquisa na licenciatura. In: ANDRÉ, M.E.D.A.,
OLIVEIRA, M.R.N.S. (org.). Alternativas do ensino de Didática. Campinas: Papirus, 1997.
p. 37-69.
______. Didática, Didáticas específicas e formação de professores: construindo saberes. In:
TIBALLI, Elianda F. A.; CHAVES, Sandramara M. (orgs.). Concepções e práticas em
formação de professores. Diferentes olhares. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 49-56.
387
PINTO, Renato Magalhães. Gestos musicalizados. Uma relação entre educação física e
música. Belo Horizonte: Inédita, 1997.
PORTO, Bernadete Souza. E o sol nascente é tão belo... In: PORTO, Bernadete de Souza
(org.). Ludicidade: o que é mesmo isso? Salvador: Universidade Federal da Bahia,
Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Gepel, 2002, p. 7-11.
REICH, Eva. Energia Vital pela Bioenergética Suave. Tradução de Claudia Abeling. São
Paulo: Summus, 1998.
REICH, Wilhelm. A função do orgasmo. Problemas econômico-sexuais da energia
biológica. Tradução de Maria da Glória Novak. 19 ed. São Paulo: Brasiliense, 1942/1995.
______. Análise do caráter. Tradução de Ricardo Amaral do Rego. 3 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1933/1998.
______. O assassinato de Cristo. Tradução de Carlos Ralph Lemos Viana. 4 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1953/1991.
______. O éter, deus e o diabo. Tradução de Maya Hantower. São Paulo: Martins Fontes,
1949/2003.
______. Psicologia de massas do Fascismo. Tradução de Maria da Graça M. Macedo. 2
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1933/1988.
RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. 3 ed. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983.
SANTIN, Silvino. Educação física: da opressão do rendimento à alegria do lúdico. Porto
Alegre: Edições EST/ESEF UFRGS, 1994.
SCHOTT-BILLMANN, France. Quand la danse guerit. Approche anthropologique de la
fonction thérapeutique de la danse. Paris: Chiron, La recherche em danse, s/d.
SILVA, Maurício Roberto da. O assalto à infância no mundo amargo da cana de açúcar.
Onde está o lazer/lúdico? O gato comeu? Campinas, SP, 2000. 352 p. Tese (Doutorado)
Universidade Estadual de Campinas UNICAMP.
SOUZA, Elizeu Clementino de. O conhecimento de si: narrativas do itinerário escolar e
formação de professores. Salvador, Bahia, 2004. 344 p. Tese (Doutorado) - Programa de
Pós-graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia
UFBA.
TARDIF, Maurice. Os professores enquanto sujeitos do conhecimento: subjetividade,
prática e saberes no magistério. In: CANDAU, Vera Maria (org.). Didática, currículo e
saberes escolares. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p. 112-128.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 11 ed. São Paulo: Cortez, 2002.
VILLAÇA, Nízia e GÓES, Fred. Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
388
WACHOWICZ, Lílian Ana. Apresentação. ROMANOWSKY, Joana P.; MARTINS, Pura
Lúcia O.; JUNQUEIRA, Sérgio R. A. (orgs.). Conhecimento local e conhecimento
universal: pesquisa, didática e ação docente. Curitiba: Champagnat, 2004, p. 7-10.
WILBER, Ken. Psicologia integral. Consciência, espírito, psicologia, terapia. Tradução de
Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2002.
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. Uma outra história das músicas. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
WOODS, Peter. Investigar a arte de ensinar. Porto: Porto Editora, 1999.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo