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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO
MARIA DE LOURDES FERIOTTI
UNIVERSIDADE, FORMAÇÃO DE PROFESSORES E
MOVIMENTOS SOCIAIS:
A COLCHA DE RETALHOS COMO METÁFORA DAS
RELAÇÕES INTERDISCIPLINARES E
TRANSDISCIPLINARES
CAMPINAS
2007
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1
MARIA DE LOURDES FERIOTTI
UNIVERSIDADE, FORMAÇÃO DE PROFESSORES E
MOVIMENTOS SOCIAIS:
A COLCHA DE RETALHOS COMO METÁFORA DAS
RELAÇÕES INTERDISCIPLINARES E
TRANSDISCIPLINARES
PUC-CAMPINAS
2007
Dissertação apresentada como exigência para obtenção
do Título de Mestre em Educação junto ao Programa de
Pós-Graduação em Educação na área de Ensino
Superior do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da
Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
Orientadora: Profa. Dra. Dulce Maria Pompeo de Camargo.
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3
Dedico este trabalho
à Roseana Garcia e Marina, esposa e filha de
Toninho, cujo sonho interrompido vem inspirando
tantos outros sonhos.
Dedico também
a todos os cidadãos campineiros que
compartilharam e compartilham esses sonhos,
tecendo a paz.
4
AGRADECIMENTOS
Inicialmente, sou grata por ter tantos agradecimentos a fazer...
À minha mãe, Flaudia, que com a sabedoria de quem enfrenta heróica e anonimamente o
cotidiano, presenteou-me com sua resiliência e com as técnicas da costura.
Ao meu pai, Ismael, in memorian, que me marcou com os valores do trabalho, da
honestidade e da justiça.
Ao meu marido, Valdemir, cuja criatividade e aguda visão política estão “tecidas junto”
neste trabalho, pela incansável companhia nesta e noutras trajetórias.
Aos meus filhos, Arthur e Augusto, grandes professores da minha existência, que, apesar
dos justos protestos, enfrentaram todas as adversidades de uma mãe mestranda.
À Profª. Dulce, orientadora e amiga querida, que me estimulou à conclusão desta etapa
da vida profissional, me forneceu instrumentos preciosos para esta pesquisa e,
principalmente, me confiou toda a liberdade para o desenvolvimento deste trabalho.
Aos professores do Programa de Mestrado em Educação da PUC-Campinas que
contribuíram não apenas para com esta pesquisa, mas também para o aprimoramento de
minha prática pedagógica.
Aos colegas do Programa de Mestrado, por nossas reflexões conjuntas e, sobretudo, por
nossas trocas afetivas, nossas angústias e vitórias.
Aos professores que concederam as entrevistas, pela disponibilidade e pela motivação
com que participaram desta pesquisa, mas, principalmente, pela inestimável riqueza de
suas contribuições.
À Fátima Matos, amiga e lutadora incansável, pela disponibilidade para a transcrição das
entrevistas, realização da minha entrevista e pelos generosos incentivos à minha vida
profissional e pessoal.
À Ione Perazzo, amiga e companheira de “muitas falas” e ao Pedro Pablo Arias Capdet,
pelas traduções necessárias.
À Liana M. N. Tannus, amiga e “assessora familiar para assuntos ortopédicos” e ao
Nelson Barbosa Rodrigues pela assessoria, agora, na formatação do texto.
À Maria Luísa G. Simões pelo companheirismo e ajuda em momentos importantes.
Ao Fernando Pina, amigo e engenheiro reconhecido, pela ajuda nos caminhos da Física.
À Paula, ajudante dos afazeres domésticos, que me permitiu a aventura desta pesquisa,
assumindo atentamente o cuidado de minha casa e de minha família.
À Elisabete M.M. de Pádua, grande amiga e filósofa, companheira de trabalho, de muitas
reflexões e muitas criações, que me apresentou à Complexidade e que está sempre
disponível para alimentar e instrumentalizar meus estudos, dando as balizas para
transitar prazerosamente pelos caminhos da Ciência.
À Cláudia Cristina Pulchinelli, amiga querida, ex-aluna e parceira de trabalho que, com
impecável sensibilidade, competência, criatividade, ética e generosidade tem sido minha
grande “cuidadora” e companheira incansável deste e de outros projetos profissionais.
5
A todos os integrantes do G.E.I.T.O. (Grupo de Estudo Interdisciplinar em Terapia
Ocupacional), espaço de encontros, de prazer, de criatividade e produção de
conhecimento. Muito deste trabalho foi fecundado e alimentado por esse grupo de
estudos.
A todos os meus alunos, de todos os tempos e lugares, pois cada um ao seu modo vem
me ensinando, me desafiando, enfim, me ajudando a construir, mais que minha prática
profissional, minha própria humanidade.
Aos meus colegas, professores da Faculdade de Terapia Ocupacional da PUC-
Campinas, por nossa longa história de resistência, de construção coletiva de um trabalho
democrático, criativo e pela riqueza da nossa produção cotidiana de conhecimento que,
infelizmente, nem sempre é registrado.
À PUC-Campinas e à Mantenedora da Sociedade Campineira de Educação e Instrução
pela concessão da bolsa de capacitação docente.
A todos os amigos e familiares que contribuíram, mesmo que indiretamente, para a
realização deste trabalho e que souberam compreender minhas inúmeras ausências nos
encontros de lazer ou datas comemorativas.
À Carla Aparecida Siqueira, terapeuta ocupacional, cuja vivacidade e sensibilidade
alimentam sua incansável esperança, pela cumplicidade na construção do movimento
“Tecendo a Paz”. Sem a sua presença, talvez não existisse esta colcha para ser
costurada e tampouco analisada.
À Martha Nery Garcia, atriz, terapeuta ocupacional e ex-aluna que, através de sua
impetuosa criatividade, cevou o movimento necessário à construção desta grande colcha.
À equipe do CAPS-Integração, pela germinação do “Tecendo a Paz” e pela fecundidade
de nossas trocas.
A todos os CAPS e Serviços de Saúde Mental que enfrentam a difícil tarefa de
reconstrução da cidadania daquelas pessoas historicamente excluídas da vida social.
A todos os trabalhadores da Saúde que constituíram o movimento “Tecendo a Paz”,
marcando sua posição diante da violência que vem adoecendo gravemente nossa
população.
A todos os usuários da saúde que fecundaram e deram continuidade à costura da grande
colcha.
Às diversas entidades de classe, sindicatos, associações e organizações sociais que
participaram do “Tecendo a Paz”, contribuindo das mais diversas maneiras à realização
desse evento.
A todos os cidadãos campineiros que participaram deste movimento e que continuam, até
hoje, tecendo a paz.
Ao projeto político e ao sonho de Toninho, para com quem a cidade de Campinas terá
para sempre um débito impagável, sua própria vida.
E, finalmente, a todos os grandes pensadores de todos os tempos que nos ajudam a
compreender os mistérios de nossas experiências humanas.
6
Para mim “colcha de retalhos” faz-me voltar à infância.
Nem convergência, nem divergência. Puro afeto.
Das nonnas sentadas nas portas, agulha e linha nas mãos.
Os retalhos se unindo como se tivessem vida própria.
Cada um procurando seus pares ou ímpares.
Pois todos tinham um ponto de ligação.
Enquanto as nonnas conversavam a colcha se fazia pronta.
Penso sempre nisso quando penso em educação.
Da força do afeto e do bom senso.
(fragmentos de uma carta)
Maricélia Saragiotto
educadora
7
RESUMO
FERIOTTI, Maria de Lourdes. Universidade, Formação de Professores e
Movimentos Sociais: a colcha de retalhos como metáfora das relações
interdisciplinares e transdisciplinares. Dissertação de Mestrado em Educação.
PUC-Campinas. Campinas, 2007.
286p. Orientadora: Profa. Dra. Dulce Maria
Pompeo de Camargo.
O momento histórico atual tem se caracterizado pela busca de novos paradigmas que
atendam à crescente complexidade das demandas humanas e sociais, com vistas à
superação da fragmentação do pensamento e das ações sociais. Diante da transição
paradigmática, a Educação e a produção do conhecimento também sofrem
transformações, exigindo de seus atores não apenas mudanças metodológicas e
institucionais, mas ainda mudanças culturais e cognitivas, que possam embasar novas
formas de abordar a realidade e construir relações sociais.
Revelando simbolicamente
uma possível reestruturação do pensamento numa construção cultural e histórica,
utilizamos a colcha de retalhos” confeccionada no movimento social “Tecendo a Paz
como objeto de estudo. O termo colcha de retalhos tem sido usado como metáfora do
simples ajuntamento de partes desconexas, sem unidade. No entanto, uma colcha de
retalhos é um tecido construído a partir de outros tecidos, de modo a constituir uma
unidade com sentido próprio. Quando nos referimos à colcha de retalhos ressaltando o
aspecto da desconexão entre as partes, não estaríamos revelando a cultura da
impossibilidade de construção da unidade a partir da diversidade? Tendo como referência
teórica e metodológica o pensamento complexo desenvolvido por Edgar Morin e
utilizando-se de pesquisa bibliográfica, documental e pesquisa de campo, este trabalho
objetiva identificar e refletir sobre as contribuições do Movimento “Tecendo a Paz” para a
formação dos professores do Curso de Terapia Ocupacional da PUC-Campinas e
transformação de sua prática pedagógica, mais especificamente, na construção da
prática interdisciplinar e transdisciplinar e, consequentemente, na vivência com a
diversidade.
Termos de indexação: formação de professores, universidade, prática pedagógica
emancipatória,
interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, diversidade, movimentos
sociais.
8
ABSTRACT
FERIOTTI, Maria de Lourdes. University, Teachers´ Training and Social Movements:
the patchwork quilt as metaphor of the interdisciplinary and transdisciplinary
relations. Master´s Degree dissertation in Education. PUC-Campinas. Campinas,
2007. 286p. Advisor: Prof. Dr. Dulce Maria Pompeo de Camargo.
The current historical moment has characterized itself for searching of new paradigms that
attend to the increasing complexity of social and human beings demands, with aims to
overcoming the thought and social actions fragmentation. Ahead of the paradigmatical
transition, education and production of knowledge also suffer transformations, demanding
from its actors not only methodological and institutional changes, but still cultural and
cognitive changes, which can base new ways of approaching reality and building social
relations. Revealing symbolically a possible reorganization of thought in a cultural and
historical construction, we will utilize the patchwork quilt manufactured in the social
movement "Weaving the Peace" as study object. The term patchwork quilt has been used
as metaphor of the simple reunion of disconnected parts, without unity. However, a
patchwork quilt is a textile made from other textiles, in order to compose a unity with own
meaning. When we refer to the patchwork quilt standing out the aspect of the
disconnection between the parts, wouldn´t we be disclosing the culture of the impossibility
of construction of the unit from the diversity? Having as a theoretical and methodological
reference the complex thought developed by Edgar Morin and using bibliographical and
documentary research and field research, this work objectifies to identify and to reflect on
the contributions of the "Weaving the Peace" Movement to the teachers´ training of the
Course of Occupational Therapy of PUC-Campinas and the transformation of its
pedagogical practice, more specifically, in the construction to the interdisciplinary and
transdisciplinary practice and, consequently, in the experience with the diversity.
Index terms: teachers´ training, university, pedagogical practice, interdisciplinarity,
transdisciplinarity, diversity, social movements.
9
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Manhã do dia 10 de outubro de 2001 no paço municipal............................... 51
Figura 2 – No início do dia, algumas pequenas colchas para serem unidas................... 52
Figura 3 – E muitos retalhos trazidos aleatoriamente...................................................... 52
Figura 4 – Descobrindo possibilidades............................................................................ 53
Figura 5 – E unindo retalhos............................................................................................ 53
Figura 6 – O trabalho coletivo na união das diferenças................................................... 54
Figura 7 – Diferentes retalhos, diferentes expressões..................................................... 55
Figura 8 – Homens e mulheres na mesma atividade....................................................... 56
Figura 9 – Diferentes gerações em comunicação............................................................ 56
Figura 10 – A colcha cresce ao longo do dia....................................................................57
Figura 11 – E ganha a característica forma retangular.................................................... 57
Figura 12 – O resultado merece ser comemorado.......................................................... 58
Figura 13 – Ao final do dia, a colcha é levantada cobrindo as pessoas........................... 58
Figura 14 – Que a carregam em passeata....................................................................... 59
Figura 15 – Pelas ruas da cidade..................................................................................... 59
Figura 16 – A colcha de retalhos é estendida no Largo do Rosário, integrando-se
ao movimento “Campinas Contra a Violência”.................................................................. 60
Figura 17 – A colcha na marquise da prefeitura.............................................................. 61
Figura 18 – De colcha... a bandô de retalhos................................................................... 62
Figura 19 – A colcha de retalhos como símbolo (1): Ato no Anhangabaú em São
Paulo – SP, no dia internacional da AIDS ..................................................................... 131
Figura 20 – A colcha de retalhos como símbolo (2): Romaria dos Mártires da
Caminhada, em Ribeirão Cascalheira - MT ................................................................... 132
Figura 21 – A colcha de retalhos como símbolo (3): Romaria dos Mártires da
Caminhada, em Ribeirão Cascalheira - MT .................................................................. 132
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................
11
CAPÍTULO I
DA PALAVRA À AÇÃO, DA TEORIA À PRÁTICA... TECENDO..........................
23
1. O contexto do movimento: .................................................................................... 23
1.1. A cidade de Campinas ................................................................................ 23
1.2. O prefeito Antônio da Costa Santos, o Toninho ........................................... 26
1.3. Os Centros de Atenção Psicossocial ........................................................... 29
1.4. A Faculdade de Terapia Ocupacional da PUC-Campinas ............................33
2. O movimento social “Tecendo a Paz” ..................................................................... 41
3. Movimentos Sociais e Educação ........................................................................... 63
CAPÍTULO II
DA EXPERIÊNCIA À REFLEXÃO, DA PRÁTICA À TEORIA... ESTUDANDO......
69
1. Universidade, formação de professores e transição de paradigmas ....................... 69
2. Desenvolvendo conceitos:
2.1. Diversidade .................................................................................................. 79
2.2. Interdisciplinaridade e transdisciplinaridade ................................................ 91
3. Colcha de retalhos: uma metáfora para a vivência com a diversidade? .................111
CAPÍTULO III
NA INTERAÇÃO TEORIA-PRÁTICA... VIVENDO .............................................
134
1. Metodologia da pesquisa ....................................................................................... 134
2. Análise das entrevistas: múltiplos retalhos de uma colcha..................................... 140
2.1. Perfil dos professores entrevistados
.......................................................
141
2.2. Concepções sobre educação, universidade e prática pedagógica.............. 152
2.3. Contribuição dos movimentos sociais para a formação de professores...... 157
2.4. A simbologia da colcha de retalhos ............................................................. 161
2.5. Organização e gestão do movimento .......................................................... 167
2.6. A contribuição do movimento para a formação dos professores e para a
prática pedagógica....................................................................................... 179
CONSIDERAÇÕES FINAIS
........................................................................................ 190
REFERÊNCIAS ..................................................................................................
196
ANEXOS ...........................................................................................................
203
ANEXO I: Declaração Brasileira do Pensamento Complexo ............................... 205
ANEXO II: Folheto para divulgação do “Tecendo a Paz” (1) ................................ 207
ANEXO III: Folheto para divulgação do “Tecendo a Paz” (2) .............................. 209
ANEXO IV: Folheto para divulgação do “Tecendo a Paz” (3) ............................... 211
ANEXO V: Roteiro de entrevista ........................................................................... 213
ANEXO VI: Entrevista 1 – E.1 ................................................................................ 215
ANEXO VII: Entrevista 2 – E.2 ............................................................................... 228
ANEXO VIII:Entrevista 3 – E.3 ............................................................................... 240
ANEXO IX: Entrevista 4 – E.4 ............................................................................... 251
ANEXO X: Entrevista 5 – E.5 ................................................................................ 264
ANEXO XI: Entrevista 6 – E.6 ............................................................................... 277
11
INTRODUÇÃO
12
O presente trabalho é fruto de uma experiência prática que pelo vulto que
tomou e pela influência em minha formação pessoal e profissional, acabou se
tornando objeto de reflexão e estudo que, de modo sistematizado, veio constituir-
se em projeto de pesquisa e, agora, nesta dissertação de mestrado.
Acreditando que racionalidade e afetividade não podem ser separadas, o
presente estudo aborda uma experiência que foi vivida com muito afeto e muita
paixão. A força desta experiência pessoal e a subjetividade nela contida exigem
que esta introdução seja escrita na primeira pessoa do singular. Não apenas para
marcar o ponto de vista de onde se faz essa pesquisa, mas também para
explicitar minha participação como pesquisadora e objeto de pesquisa, ao mesmo
tempo.
O objeto de estudo deste trabalho é o processo coletivo de construção da
colcha de retalhos do movimento social Tecendo a Paz, que foi confeccionada em
Campinas SP, em 10 de outubro de 2001, em decorrência do assassinato de
seu prefeito Antônio da Costa Santos o Toninho, em 10 de setembro de 2001.
Essa colcha foi costurada manualmente em praça pública, durante um dia, a partir
de retalhos trazidos aleatoriamente, das mais diversas cores, tamanhos e
texturas, atingindo ao final do dia um tamanho de aproximadamente 250 m².
Iniciada espontaneamente em ateliês de Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS) da rede municipal de saúde mental de Campinas, por usuários e
trabalhadores, esta colcha integrou docentes e alunos da Faculdade de Terapia
Ocupacional da PUC-Campinas, unindo universidade, serviços de saúde e
sociedade civil, expandindo-se, como movimento social, para toda a população
campineira.
Como terapeuta ocupacional, docente da Faculdade de Terapia
Ocupacional da PUC-Campinas e supervisora clínico-institucional de equipes
multiprofissionais de serviços de saúde mental, tive a oportunidade de transitar
pelos diferentes espaços da educação e da saúde, o que me possibilitou a
participação na gestação desse movimento, com mais duas pessoas: a então
coordenadora de um dos CAPS da região noroeste de Campinas e uma aluna do
curso de Terapia Ocupacional da PUC-Campinas.
13
Um dos motivos que me levou à organização e participação desse
movimento foi uma simples, mas angustiada pergunta de algumas alunas, diante
dos sentimentos de tristeza, impotência, revolta e perplexidade que marcaram o
funeral de Toninho, no mesmo dia 11 de setembro de 2001 em que as torres
gêmeas do World Trade Center eram destruídas: - E agora, professora?! Você
sempre diz que temos a responsabilidade de construir e transformar a sociedade,
participando como cidadãos ativos... e agora?!
Constrangida e chamada em minha responsabilidade de educadora,
apenas consegui responder que, naquele momento, meus sentimentos de
impotência, indignação, medo e perplexidade eram exatamente iguais aos delas.
Também não sabia o que fazer. Mas essa pergunta me tomou de tal forma que
tive de fazer algo. Não conseguindo me desfazer dos sensos de responsabilidade,
ética e coerência que busco manter em minha prática profissional, percebi-me, de
repente, movida por forças criativas inexplicáveis que acabaram por concretizar
minha participação na construção desse movimento social.
O processo de organização do movimento, de costura coletiva da colcha e
seu resultado final foram ricos de possibilidades de análises e aprendizados. Esta
experiência proporcionou momentos de compreensões e transformações
profundas que não se limitam à racionalidade, pois tratam de vivências plenas de
significado real e simlico, vivências que, por si só, são transformadoras.
Aquela colcha, provavelmente por seu grande potencial simbólico, a
hoje me revela coisas, me ensina, me modifica, me esperança. Sei que isso
não aconteceu somente a mim e é exatamente isso que motivou esta pesquisa: o
caráter pedagógico daquele movimento.
Além do processo de auto-organização que caracterizou o movimento, o
exercício implícito à costura daquela colcha proporcionou a vivência de novas
relações sociais e grupais, assim como a construção de símbolos que podem se
transformar em novos códigos culturais.
A colcha de retalhos do movimento Tecendo a Paz trazia consigo a
simbologia da integração dos diferentes segmentos sociais. Na construção do
processo, outros tantos significados lhe foram sendo atribuídos, e aqui a
14
apresentamos como metáfora para a vivência com a diversidade, um exercício
para as relações interdisciplinares e transdisciplinares. Ou seja, através da
costura das diferenças é possível construir a unidade na diversidade e
estabelecer novas relações entre o eu e o outro, o uno e o múltiplo, o local e o
global, a parte e o todo.
As metáforas relativas à vivência com a diversidade e à auto-organização
em muito se aproximavam das minhas reflexões sobre a prática da
interdisciplinaridade, expressando, embora de modo trágico, muitas possibilidades
de estruturação do poder nas relações pessoais e institucionais.
Em minha prática profissional, tanto na área da saúde quanto da
educação, tenho me preocupado com as questões da interdisciplinaridade, da
transdisciplinaridade, das dinâmicas institucionais e, particularmente, com as
formas de estruturação do poder nas mais diversas relações.
O movimento “Tecendo a Paz” possibilita o desenvolvimento de pesquisas
e análises a partir de diferentes perspectivas, com diferentes recortes e
associações. Este trabalho, vinculado ao Programa de Mestrado em Educação da
PUC-Campinas, sob a linha de pesquisa “Universidade, Docência e Formação de
Professores” e integrante do grupo de pesquisa “Laboratório de Ensino,
Sociedade e Cultura LESC”, busca desenvolver essa análise sob a perspectiva
da educação e da cultura, mais especificamente, no âmbito da formação docente
e da prática pedagógica.
Considerando que o movimento “Tecendo a Paz” ocupou um espaço
significativo no cotidiano acadêmico da Faculdade de Terapia Ocupacional da
PUC-Campinas, o campo desta pesquisa foi limitado aos professores deste curso
que participaram do movimento, dentre os quais se inclui a pesquisadora.
No início deste trabalho, havia a expectativa de ampliação do universo da
pesquisa para os alunos que participaram do movimento e também para alguns
dos trabalhadores dos serviços de saúde mental que participaram da sua
organização. No entanto, por limites de ordem temporal, espacial, metodológica,
ética e institucional, a pesquisa limitou-se ao universo apresentado. Esta escolha
não desconsidera a contribuição de uma pesquisa ampliada para a investigação
15
de outros sujeitos. Ao contrário, reconhecendo a contribuição de novos olhares e
da ampliação do universo de pesquisa para a análise deste movimento, valorizo a
continuidade deste estudo, que poderá ser realizado em outra oportunidade, em
outro trabalho, por mim ou por outros pesquisadores.
Alguns sujeitos e algumas instituições que participaram do movimento
“Tecendo a Paz”, embora tenham suas contribuições reconhecidas, não serão
citados nominalmente, uma vez que não foram submetidos aos procedimentos
éticos necessários ao desenvolvimento da pesquisa e divulgação dos dados. E,
para com esses sujeitos, trabalhadores da saúde, usuários de serviços de saúde,
demais professores e alunos, entidades de classe, organizações sociais, escolas,
enfim, cidadãos campineiros que participaram desse movimento, registro aqui
minha gratidão e minha cumplicidade.
Para analisar a Educação hoje em nosso país, é necessário refletir sobre
as questões políticas, estruturais, institucionais, enfim, macro-sociais que a
envolvem, mas também é necessário identificar possibilidades de transformação
cultural e subjetiva que acabam por definir as relações micro-sociais, como as
relações interpessoais e institucionais, que constituem o cotidiano da prática
pedagógica. Concebendo o indivíduo e a sociedade como elementos dinâmicos e
indissolúveis de uma constituição orgânica, esta pesquisa pretende contribuir para
uma reflexão acerca dos instrumentos, técnicas e recursos que podemos utilizar
para alimentar transformações culturais e subjetivas em alunos e professores,
rumo a uma sociedade mais justa e pacífica.
A análise da colcha de retalhos, enquanto metáfora da vivência com a
diversidade, tem como objetivo o desenvolvimento de um símbolo que facilite o
acesso, tanto reflexivo quanto experimental, à metodologia das relações inter e
transdisciplinares e às formas de estruturação do poder que, por estarem
relacionadas a mudanças paradigmáticas, pressupõem uma nova construção
cultural.
Em nossa cultura, o termo colcha de retalhos tem sido usado,
frequentemente, como metáfora do simples ajuntamento ou somatória de partes
desconexas, sem sentido e sem unidade. No entanto, uma colcha de retalhos é
16
um tecido construído de vários outros tecidos, de modo a constituir uma unidade
com sentido próprio. Desta constatação surgiram questões que ocupam lugar
central nesta pesquisa.
Quando nos referimos à colcha de retalhos ressaltando apenas o aspecto
da desconexão entre as partes, não estaríamos construindo a idéia de que a
construção da unidade somente poderia ocorrer por meio da homogeneidade, da
padronização? Mesmo que de modo inconsciente, essa idéia não traria em seu
bojo a discriminação das diferenças e a impossibilidade de construir uma unidade
por meio da convivência com a diversidade? A colcha de retalhos como metáfora
da desconexão, da desordem e da ausência de sentido não estaria revelando os
limites históricos de nossa cultura para a vivência com a diversidade e para a
assimilação dos novos paradigmas?
Considerando que, do ponto de vista histórico, a cultura da diversidade
tem-se manifestado como um imperativo diante do processo de globalização e de
construção dos novos paradigmas, esta reflexão objetiva contribuir para o
desenvolvimento dos estudos sobre o tema, rumo a uma educação inovadora e
emancipatória.
Nesta pesquisa, de natureza qualitativa e descritiva, foram utilizados
como instrumentos de investigação: pesquisa bibliográfica e documental, estudo
de caso e entrevistas semi-estruturadas.
O trabalho está dividido em três capítulos:
O capítulo I Da palavra à ação, da teoria à prática... tecendo”, descreve e
analisa o movimento social “Tecendo a Paz” e alguns dos elementos importantes
de seu contexto, a saber: a cidade de Campinas, onde ocorreu o movimento; o
prefeito Antônio da Costa Santos, cujo assassinato motivou o movimento; os
Centros de Atenção Psicossocial, onde teve início a costura da colcha que se
tornou símbolo do movimento; o Curso de Terapia Ocupacional da PUC-
Campinas, uma vez que parte de seus professores e alunos integraram o
movimento desde sua organização e onde foi desenvolvida esta pesquisa de
campo. Apresenta ainda uma análise sobre possíveis relações entre educação e
17
movimentos sociais e sobre a contribuição destes para a formação de
professores.
O capítulo II “Da experiência à reflexão, da prática à teoria... estudando”
levanta e articula diferentes referenciais teóricos que auxiliam na compreensão e
análise do fenômeno em estudo, além de definir conceitos básicos utilizados
nesta reflexão. Este capítulo caracteriza-se por uma diversidade de referenciais
teóricos, cujas citações, embora extensivas, tornam-se imprescindíveis para dar
sustentação ao pensamento desenvolvido. São tratados temas e conceitos
relativos à educação, universidade, formação de professores, paradigmas,
diversidade, interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, complexidade, e ainda
outros temas e conceitos decorrentes da abordagem daqueles.
O capítulo III “Na interação teoria-prática... vivendo, apresenta a análise
dos dados das entrevistas e as condutas gerais da pesquisa de campo. As
entrevistas realizadas com os professores, devidamente aprovadas pelos
procedimentos éticos e institucionais, embora sejam restritas do ponto de vista
quantitativo, fornecem dados relevantes para esta análise e têm ainda um caráter
documental, como registro histórico do movimento. Pela riqueza constituída em
cada entrevista, elas serão apresentadas na íntegra, em anexo, para que, além
das análises aqui realizadas, o leitor possa identificar novos aspectos e construir
sua própria análise.
Como referencial teórico do presente estudo, a complexidade,
desenvolvida por Edgar Morin, ocupa lugar de destaque, não apenas por
possibilitar uma abordagem multifocal, contextual e transdisciplinar da realidade,
mas também por estudar minuciosamente os mecanismos de exclusão social,
propondo uma metodologia de vida, de ciência e de educação que, de fato, venha
a permitir a vivência com a diversidade. Uma verdadeira reforma do pensamento
que permite religar, articular e fazer dialogar a ciência, a filosofia, a arte, a política
e a experiência cotidiana. Um pensamento marcado por uma extrema visão ética,
18
que atribui à ciência um importante papel social diante da “agonia planetária”
1
que
caracteriza este momento histórico.
A complexidade não é usada apenas como referencial teórico para
nossas análises, mas também define o método do processo de pesquisa e
estruturação do pensamento.
Evidenciando o caráter multidimensional e dinâmico da realidade e
opondo-se às abordagens reducionistas e estáticas para análise dessa realidade,
a complexidade se propõe ao desafio de acessar, articular e organizar as
informações sobre a realidade de modo a perceber e conceber o contexto, o
global (a relação todo/partes), o multidimensional e o complexo. (MORIN, 2001, p.
35).
Buscando apreender o mundo em sua multidimensionalidade e
considerando que, para tanto, o é suficiente decompor um problema em partes
simples e fundamentais, Morin nos fala da necessidade de substituir a noção de
“fundamento” pela idéia de “multirreferencialidade”. No entanto, ao refletir sobre a
crise dos fundamentos, ele pondera:
De toda maneira, saber que o conhecimento não possui um fundamento
não é ter adquirido um primeiro conhecimento fundamental? Isso não
nos incitaria a trocar a metáfora arquitetônica, em que a palavra
fundamento toma um sentido indispensável, por uma metáfora musical
de construção em movimento que transformaria no seu próprio
movimento os elementos que a formam? (MORIN, 1999, p. 23-24 – grifo
do autor).
A essa metáfora da música, podemos ousar a agregação da metáfora da
colcha de retalhos?
Quando se faz uma colcha com princípios e finalidades definidos, mas
sem uma definição prévia do produto final, os retalhos vão se unindo e seguindo
1
“agonia planetária” é um termo utilizado na Declaração Brasileira do Pensamento Complexo (ANEXO I), baseado em
Morin, referente ao processo de globalização que, em sua longa trajetória histórica que culminou na crise planetária do
século XX, colocou toda a humanidade diante dos mesmos problemas de vida e de morte, todos partilhando de um destino
comum. A Declaração Brasileira do Pensamento Complexo é um documento elaborado no primeiro laboratório brasileiro
para o pensamento complexo, realizado na PUC - São Paulo, em maio-junho/1998, coordenado pelo Núcleo de Estudos da
Complexidade – COMPLEXUS (PUC-SP) e Grupo de Estudos da Complexidade GRECOM (UFRN). Disponível em
<
http://www.ufrn.br/grecom/DBPC.htm> Acesso em 14 dez. 2007.
19
sua própria lógica, como se tivessem vida própria. Por semelhança, por
complementariedade ou por contradição, os diferentes retalhos encontram seus
pontos de ligação. A colcha se faz no processo. Por vezes alguns retalhos se
repetem, aparecem com novos recortes, em novos lugares, em novos contextos,
não seguem uma ordem ou seqüência pré-estabelecida, mas devem estar bem
conectados e, ao final, espera-se uma certa harmonia.
No entanto, essa harmonia não pressupõe uma estética homogênea e
previamente definida. Ao contrário, essa harmonia pode constituir-se da própria
diversidade dos retalhos, cujos resultados podem ser imprevisíveis.
Cada retalho é retirado de um tecido maior e, ao integrar-se à colcha,
mantêm suas características originais, mas passa por novos recortes, faz novas
associações, experimenta diferentes lugares. Embora exista uma finalidade, um
sentido e uma linha mestra que costure a colcha, os retalhos não precisam
obedecer necessariamente a um movimento linear, progressivo e seqüencial. E,
embora os retalhos estejam conectados, aparentemente, apenas pelos limites de
suas fronteiras, é certo que todos eles mantêm, entre si, as conexões e as
relações múltiplas que lhes são dadas pela própria colcha. Cada retalho se
conecta aos demais, de modo a garantir uma unidade à colcha, enquanto ela
permanecer nessa conformação.
Ao final, cada colcha terá sua forma, sua estética e sua identidade.
Mesmo que se utilizem retalhos iguais, vindos das mesmas peças originais dos
tecidos, mesmo assim, se poderão constituir colchas diferentes. E cada colcha,
mesmo depois de pronta, poderá suscitar novas lembranças e novas
associações, pois cada retalho e cada conexão poderão receber olhares e
sentidos que nem mesmo foram percebidos durante a construção da colcha. E, ao
olharmos para uma colcha, sabemos que ela é apenas uma de tantas outras
colchas. Algumas nos agradam muito, outras nos agradam pouco, outras ainda
nos desagradam. E cada colcha será apenas uma colcha, não podemos esperar
que cada colcha contenha a totalidade dos retalhos. Os retalhos são infinitos,
assim como o infinitas as possibilidades de recortá-los e costurá-los. A cada
colcha feita, sobram muitos retalhos, sempre.
20
Assim foi o processo de construção deste trabalho. Um trabalho que,
partindo de uma idéia, de uma experiência, de um desejo e de uma necessidade
e conectando-se a novas idéias, novas ações, novos instrumentos e novas
relações, se auto-produziu.
O texto inicial tinha uma continuidade e uma conformação que pareciam
não poder ser interrompidas ou cortadas. As idéias não surgiam em progressão
linear, mas os diferentes autores estudados iam se conectando, como se um
chamasse o outro. Também iam se conectando aos fatos históricos, às
lembranças, às reflexões e às sínteses, em movimentos de ida e volta, em
movimentos imprevisíveis, mas surpreendentemente esclarecedores. A tarefa de
estabelecer uma ordem progressiva ao texto, de separá-lo em capítulos e de
definir categorias de análise parecia impossível e inviável. Aos poucos comecei a
procurar formas para permitir pausas e respirações ao grande texto, para
organizar a escrita e a leitura, estabelecer divisões e criar uma certa ordem sem,
no entanto, descaracterizar a metodologia. Os retalhos foram alinhavados,
realinhavados e após experimentarem mudanças e revisões, foram costurados.
Os capítulos foram organizados de modo a assumir o lugar de novos retalhos que
deveriam manter as conexões entre si e com a unidade do texto.
No entanto, todas essas conexões não estão organizadas de modo a
estabelecer relações precisamente lineares, causais e deterministas nas suas
análises. Cada capítulo, cada um dos autores e das referências teóricas
utilizadas, cada argumentação, enfim, cada retalho, está conectado a todos os
outros, embora nem sempre essas conexões estejam tão visíveis ou claramente
delimitadas.
Busquei estabelecer algumas relações locais, pontuais e até lineares ou
causais, porém, pela própria metodologia, essas análises não expressam a
totalidade deste trabalho. A visibilidade dessa totalidade, ou melhor, dessa
unidade, deverá ser fruto de um movimento dinâmico de leitura, de um exercício
de interação entre os diferentes referenciais teóricos, as entrevistas, as
argumentações e as metáforas. Cada um deles completa ou se liga aos demais,
de diferentes formas.
21
Assim, como numa colcha de retalhos, é possível que se encontrem
retalhos parecidos, espalhados pela colcha, em diferentes lugares, com novos
recortes, novas associações. Retalhos retirados de um mesmo tecido, ou fruto de
recortes de um mesmo retalho, mas que se conectam, em outros lugares, com
outros retalhos. Obviamente, cada “retalho” aqui colocado também não expressa
a totalidade do pensamento dos diferentes autores estudados, mas é possível
resgatar o tecido de onde foram retirados para aprofundar o conhecimento de
suas origens.
Ainda sobraram muitos retalhos. Não foi possível, nesta colcha, costurar
todos os retalhos que durante o processo vieram à mão. E havia muitos retalhos
interessantes. Mas não sobraram apenas retalhos que estavam à mão... Também
sobraram outros, um pouco mais distantes, e outros ainda longe mesmo da
visibilidade. Mas chegou o tempo de arrematar a colcha, e assim o que
apresentamos aqui é apenas uma colcha, dentre tantas outras, que foi possível
costurar neste momento e neste tempo. Uma colcha que é costurada e analisada
a partir de um lugar e de um ponto de vista, dentre outros tantos possíveis.
Considerando os limites históricos da produção do conhecimento, espero
que este trabalho possa suscitar novas reflexões, novas associações e novos
sentidos, a partir de outros olhares que podem não ter sido percebidos durante a
realização desta pesquisa, de modo esta colcha possa aquecer novas reflexões e
despertar o desejo de costurar novas colchas.
Devo confessar minha expectativa para que o leitor possa concluir, ao
final da leitura, que este trabalho é uma verdadeira colcha de retalhos!
22
CAPÍTULO I
23
DA PALAVRA À AÇÃO, DA TEORIA À PRÁTICA... TECENDO
Sem dúvida, a substância do existir é a prática, enquanto que o
conhecimento tende naturalmente para a teoria. se é algo mediante
um contínuo processo de agir, só se é algo mediante a ação. É o que
testemunham todos os entes que se revelam à experiência humana.
Mesmo quando se está diante de um objeto puramente material, a sua
“essência”, enquanto conjunto de características mais ou menos fixas,
tem sentido enquanto capacidade de uma forma de atividade. Ao
contrário do que pensavam os metafísicos clássicos, não é o agir que
decorre do ser, mas é o modo de ser que decorre do agir. É a ação
que delineia, circunscreve e determina a essência dos homens. É na e
pela prática que as coisas humanas efetivamente acontecem, que a
história se faz. (SEVERINO, 1995, p. 161 – grifos do autor)
1. O contexto do movimento “Tecendo a Paz
1.1. A cidade de Campinas
2
:
Campinas é uma cidade do interior paulista, localizada 90 Km a noroeste
da cidade de o Paulo. Com uma área territorial de 801 Km² e com
aproximadamente um milhão de habitantes, hoje é sede da Região Metropolitana
de Campinas integrada por 19 cidades, totalizando, aproximadamente 2,3 milhões
de habitantes.
Sua origem está ligada à abertura de caminhos de tropeiros para o sertão
de Goiás e Mato Grosso. Inicialmente formada como um vilarejo dependente de
Jundiaí foi emancipada e fundada oficialmente em 14 de julho de 1774.
A economia regional inicial era marcada pela monocultura canavieira e
indústria açucareira, que foi sendo substituída gradativamente pela monocultura
cafeeira. A sociedade tinha fortes características conservadoras e patriarcais, o
uso da mão-de-obra escrava foi expressivo e, com relação a outras regiões do
país, sua substituição pela mão-de-obra dos imigrantes europeus foi tardia.
2
Dados disponíveis em: <www.nossosaopaulo.com.br> e <www.campinas.sp.gov.br>. Acesso em 31 jan.
2007.
24
Ao final do século XIX, com grande acúmulo de capital na cidade, tem
início o desenvolvimento do setor terciário (comércio e finanças) e o processo de
industrialização.
A partir de 1930, Campinas começa a receber muitos imigrantes, atraídos
por um novo parque produtivo, composto por fábricas, agro-indústrias e
estabelecimentos diversos. Com esse desenvolvimento, começa a implantação de
grandes rodovias que cortam a cidade e que constituem, até os dias de hoje, uma
importante rede viária para a região. As décadas de 1970 e 1980 são marcadas
por novos fluxos migratórios que chegam a duplicar a população da cidade e
provocar uma grande expansão urbana.
Campinas é conhecida por sua atividade científica e tecnológica,
abrigando várias universidades e centros de pesquisa no município. Também é
considerada um dos mais importantes pólos industriais e econômicos do estado
de São Paulo e do país.
Os constantes fluxos migratórios e a rápida expansão da cidade, com
ausência de planejamento urbano e políticas sociais adequadas, contribuíram
para um crescimento desordenado da cidade, com o agravamento dos problemas
sociais e com um significativo aumento da população favelada, que teve um
incremento de 71% nos 6 últimos anos: 88.093 pessoas em 28 favelas em 1996,
para 150.664 em 83 favelas e 121 ocupações em 2002. (FERNANDES NETO et
al, 2003, p. 321-322)
A década de 1990 também foi marcada por um aumento significativo dos
índices de violência na cidade, como podemos verificar:
De 1996 a 2000, houve em Campinas um acréscimo no número
absoluto de homicídios de 38,7% (de 329 para 486 mortes) quando no
Estado de São Paulo foi de 16,7%. No ano de 2000 a mortalidade por
causas externas em Campinas ocupou o terceiro lugar no número de
mortes, correspondendo a 15,7% (829). (...) Entre as causas externas,
em Campinas no ano de 2000, 58,6% (486) das mortes referiam-se à
violência interpessoal. (FERNANDES NETO et al, 2003, p. 322)
Segundo estatísticas da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo,
o
número de homicídios dolosos em Campinas no ano de 2001 foi ainda superior ao
de 2000, passando para 542. Nos anos subseqüentes observa-se alguma
25
redução: em 2002 houve 453 homicídios dolosos; em 2003, 495; em 2004, 362 e
em 2005, 224.
3
O ano de 2001 foi, portanto, um ano marcado por um alto índice de
homicídios. A violência passara a ser assunto corrente no cotidiano dos
campineiros. Uma violência que vinha subjugando a população ao medo, à
insegurança, aos espaços fechados, à restrição do direito de ir e vir, aos mais
diversos processos de adoecimento físico e mental, à indignação, à revolta ou à
morte. A cidade vivia um clima tenso e estressante. Jornais da cidade começaram
a apresentar, nas primeiras páginas, a contabilidade diária dos números do crime
e da violência. Eram números que cresciam sempre e de forma assustadora.
Neste clima, a cidade recebeu, perplexa, indignada, impotente e revoltada, a
notícia da morte de seu prefeito, o Toninho, em setembro de 2001. Uma notícia
que apontava sua morte como o 414º homicídio em Campinas naquele ano, até
aquele momento. Um homicídio brutal: foi alvejado por quatro tiros, dentro de seu
carro, perto de sua casa, por volta das 22h30min horas.
O clima da violência em Campinas pode ser percebido pelo editorial do
jornal regional “Correio Popular”, de 11 de outubro de 2001, do qual
apresentamos alguns fragmentos:
Campinas vive um momento extraordinário e infelizmente trágico de
sua história. Acuada pela violência que vê crescer dia após dia, a
população sinais evidentes de que chegou ao limite da subordinação
aos poderes constituídos. (...) E Toninho, o homem-esperança, morreu
vitimado pela mesma ameaça que ronda qualquer um dos cidadãos. O
sentimento que brota no peito dos campineiros, agora, transformou-se
da perplexidade de primeira hora em um misto de revolta e de
indignação. O trágico fim do jovem prefeito foi a gota d’água de uma
revolta em ebulição e o campineiro de brio que fique indiferente à
monótona escalada do crime, justificada sempre pelas estatísticas dos
relatórios oficiais. Campinas se incomoda com o carimbo de número 414
que o Correio Popular publica diariamente sobre a foto de Toninho, para
lembrar que, se não se toma providência severa e urgente, a
contabilidade tende a continuar crescendo em ritmo insuportável.
3
Dados disponíveis em: <http://www.ssp.sp.gov.br/estatísticas>. Acesso em: 31 jan. 2007
26
As notícias da morte do prefeito Toninho na noite de 10 de setembro de
2001, foram seguidas, quase concomitantemente, pelo ataque às torres gêmeas
do World Trade Center, em New York, na manhã do dia 11 de setembro de 2001.
Aquele dia 11 de setembro ficará marcado para sempre na história do
mundo e na história da cidade. Pelo mundo, diante dos sentimentos de
perplexidade, intensificavam-se os movimentos a favor da paz. Em Campinas, o
dia foi marcado pelo luto e pelo funeral de seu prefeito, uma celebração triste e
emocionada, uma verdadeira e intensa manifestação popular.
1.2. O prefeito Antônio da Costa Santos – o Toninho.
Antônio da Costa Santos, o Toninho (1952 2001) era cidadão
campineiro, filho de imigrantes portugueses, arquiteto, pesquisador e professor.
Sempre se interessou pelo estudo da sua cidade.
Pertencendo ao Partido dos Trabalhadores, foi vice-prefeito de Campinas
na gestão 89-93, abandonando o cargo durante o mandato, depois de denunciar o
então prefeito por corrupção. (KOTSCHO, 2001)
Em 2001 retorna à prefeitura de Campinas, agora como prefeito, porém
sua gestão dura apenas oito meses, sendo interrompida pelo seu assassinato.
Kotscho (2001, p. C4) nos fala um pouco das características pessoais de
Toninho:
As duas obsessões da vida desse arquiteto e professor da PUC-
Campinas eram combater a corrupção e melhorar a vida na sua cidade
natal, principalmente a dos moradores das vilas da periferia que se
multiplicavam dos dois lados da via Anhanguera nos últimos anos. (...)
Com seu jeito de eterno garotão, que resistia a usar terno e gravata,
circulava com a mesma sem-cerimônia pelas favelas e pelos bares da
moda freqüentados pelos alunos das universidades. Nas filas da
multidão que passou diante do corpo do prefeito no saguão do Paço
Municipal, desde as 11h de ontem, tinha de tudo: das mulheres mais
elegantes da cidade a mendigos, operários e crianças da periferia.
27
Desde cedo se envolveu em movimentos populares e dedicou-se à
urbanização de favelas. Suas pesquisas, sua opção pela melhoria da cidade e
sua visão de arquiteto e urbanista comprometido com a história e com um projeto
social contrário à remodelação neoliberal da cidade, marcaram sua trajetória. Na
verdade, ele não tinha um projeto de carreira política, ele tinha um projeto para a
cidade de Campinas. Um projeto minuciosamente estudado e perseverantemente
sonhado.
Após sua morte, sua tese de doutorado foi transformada em livro e
publicada: Campinas, das origens ao futuro: compra e venda de terra e água e um
tombamento na primeira sesmaria da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição
das Campinas do Mato Grosso de Jundiaí (1732-1992). Antonio da Costa Santos.
– Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2002.
Nesse trabalho, uma longa pesquisa histórica, Toninho
contempla o passado e o futuro, resgata o memorial sobre a geopolítica
de ocupação e desenvolvimento do território campineiro, sendo uma
abordagem não usual da história da apropriação da terra, vinculando-a
com as questões de ordem política e econômica. É um trabalho rico e
complexo que se reveste de obrigatoriedade, se o intuito for o
conhecimento da questão fundiária que deu forma urbana ao município
de Campinas. (PORTO, 2006, p.1
)
O objeto de estudo de sua tese é a Casa Grande e tulha, uma antiga sede
de fazenda que, embora esteja hoje completamente inserida na cidade,
sobreviveu à expansão urbana de Campinas. Toninho adquiriu esse imóvel, no
final da década de 70, restaurou-o, conduziu-o ao tombamento, e nele passou a
morar. Essa atitude revela seu interesse pela preservação do patrimônio histórico,
uma de suas lutas pela cidade. Seu escritório, na tulha, mantém a relação entre o
passado, o presente e o futuro, preservando o que ele chamava de arqueologia
urbana, ou seja, a preservação do que havia de original, concomitante com o uso
dos recursos da modernidade para refazer o que necessitasse ser refeito. Assim
era possível unir a taipa ao vidro temperado e ao aço, e criar diferentes cores e
códigos para marcar a convivência entre o velho e o novo.
Na introdução do livro, Roseana Garcia, esposa de Toninho, nos fala que
28
dois fortes eixos conduziram sua vida profissional. Um, acadêmico, de
aprofundamento no estudo da habitação popular e da urbanização
brasileira. Outro, político, através do Partido dos Trabalhadores. (...)
Ambos os eixos o acadêmico e o político – compuseram-se, de
maneira singular, na sua pessoa. Conhecimento, poder político e uma
vida de combate à corrupção, esta combinação, acreditava Antonio, era
perfeita para a transformação política e social de Campinas. (SANTOS,
2002, p. 8)
Jorge Coli, na apresentação do mesmo livro, nos mostra características
pessoais e intelectuais de Toninho que, a nosso ver, revelam uma relação
intrínseca com o sentido do movimento Tecendo a Paz:
Antônio da Costa Santos era imbuído do que é preciso denominar com
uma noção um pouco fora de moda: Humanismo. Humanismo num
sentido muito elevado, no qual a dignidade humana compreende o
respeito pelo outro, dentro de complexidades, ou mesmo dentro de
contradições, que precisam ser levadas em conta. Ele detestava os
reducionismos teóricos porque estes desbastavam as infinitas
ramificações dos atos humanos. Por isso mesmo, buscava extrair, de
cada um, fosse quem fosse e de onde viesse, forças positivas que
pudessem agir, aos poucos, em transformações coletivas harmoniosas.
Sentia, de modo ao mesmo tempo racional e afetivo, o direito de ser do
outro. Desta forma, trata-se de um Humanismo que não somente se
opõe às interpretações teóricas esquemáticas, mas que se opõe
também às práticas das intolerâncias, das violências radicais, do
desrespeito pelo outro, apenas porque o outro pensa e age de modo
diverso. Por outro lado, este Humanismo, com visão de longo alcance,
garantia-lhe a perseverança nas convicções, a persuasão
argumentativa, a firmeza nas decisões.
(SANTOS, 2002, p. 16-17
grifos do autor)
Concluindo seu estudo, o próprio Toninho nos fala:
O que vimos, portanto, através de uma concepção dialética da história
da cidade, em todo o desenvolvimento deste trabalho teórico, foi a
demonstração de como o espaço construído, apropriado e consumido
representa o resultado concreto do embate de forças politicamente
contrapostas, todavia onipresentes, tendo como pano de fundo a disputa
da terra urbana. (...) Este embate político terá espaço numa cada vez
mais anunciada gestão democrática da cidade, por meio de um Estado
reformado na perspectiva de sua democratização, desprivatização e
capitalização. Nesse espaço de participação política, caberá ao
arquiteto desenhar, nesta grande e obsoleta cidade, maltratada pelo
esgotamento de sua gestão e pela erosão de sua modernização
atrasada, um projeto de urbanismo. Coube aos pioneiros do urbanismo
no Brasil mudar a cidade colonial e a cidade imperial na cidade
republicana do capitalismo retardatário. A nós, cabe o enfrentamento da
crise contemporânea da cidade, ante a condição histórica da nova
ordem internacional deste fim de século. (SANTOS, 2002, p. 384)
29
Durante sua campanha eleitoral em 2000, dois símbolos foram utilizados
por Toninho e são até hoje reconhecidos: uma pipa, que lhe foi presenteada por
um menino durante uma visita a uma comunidade, e uma bandeira de retalhos,
como metáfora da união dos diferentes segmentos da sociedade.
1.3. Os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS
Os CAPS Centros de Atenção Psicossocial são serviços de saúde
mental substitutivos aos hospitais psiquiátricos. Integram a rede de atenção extra-
hospitalar que vem sendo desenvolvida e incentivada pelas políticas nacionais de
saúde, tendo em vista uma profunda modificação da estrutura de atenção à saúde
mental, de modo a combater as estruturas tradicionais do modelo manicomial.
A rede de atenção à saúde mental, que se constitui como nova estratégia
de cuidado da saúde mental, é composta por vários equipamentos que, conforme
a portaria n. 224 de 29 de janeiro de 1992 do Ministério da Saúde, devem guiar-se
pelas seguintes diretrizes:
organização de serviços baseada nos princípios de universalidade,
hierarquização, regionalização e integralidade das ações;
diversidade de métodos e técnicas terapêuticas nos vários níveis de
complexidade assistencial;
garantia da continuidade da atenção nos vários níveis;
multiprofissionalidade na prestação de serviços;
ênfase na participação social desde a formulação das políticas de
saúde mental até o controle de sua execução;
definição dos órgãos gestores locais como responsáveis pela
complementação da presente portaria normativa e pelo controle e
avaliação dos serviços prestados. (BRASIL, 2004, p. 243)
São várias as modalidades de equipamentos que constituem essa rede
e cada cidade tem uma composição diferente na formação de sua própria rede.
Integram essas modalidades: atendimentos de saúde mental em unidades
básicas de saúde ou centros de saúde; ambulatórios de saúde mental,
emergência psiquiátrica em hospital-geral, leitos psiquiátricos em hospital-geral,
núcleos e centros de atenção psicossocial; centros de convivência; cooperativas
ou oficinas para geração de renda; moradias ou residências terapêuticas.
30
Os CAPS são serviços de saúde abertos e comunitários que se
caracterizam pelo atendimento de pessoas que sofrem com transtornos mentais
severos e persistentes, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo e não-
intensivo. São serviços que devem oferecer serviço ambulatorial diário, segundo a
lógica do território. Devem funcionar em áreas independentes de qualquer
estrutura hospitalar e têm como prioridade a preservação dos pacientes nos seus
espaços e relações comunitárias.
Existem várias modalidades de CAPS, que podem variar de acordo com a
clientela, com a capacidade de atendimento e com o número de habitantes dos
municípios, com a complexidade do serviço e horário de funcionamento: CAPS I
para cidades pequenas, com funcionamento das 8:00 às 18:00 horas, nos 5 dias
úteis da semana; CAPS IIpara cidades de porte médio, com funcionamento das
8:00 às 18:00 horas, em dois turnos, nos 5 dias úteis da semana, podendo
comportar um terceiro turno, até às 21:00 horas; CAPS III para cidades com
população acima de 200.000 habitantes, com atendimento diário e contínuo
durante 24 horas e com capacidade de acolhimento em leitos noturnos; CAPS ad
II destinado ao atendimento de pacientes com transtornos decorrentes do uso e
dependência de substâncias químicas; CAPS i II destinado a atendimentos de
crianças e adolescentes. (BRASIL, 2004, p. 125-136)
A assistência prestada nos CAPS pode incluir várias atividades:
atendimentos individuais e grupais (medicamentoso, psicoterápico, terapêutico
ocupacional, orientação, entre outros), atendimentos à família, visitas e
atendimentos domiciliares, oficinas terapêuticas, ateliês, atividades comunitárias e
assembléias (com técnicos, usuários, familiares e outros convidados). Os CAPS
devem ainda constituir-se como lugar de referência tanto para os usuários como
para a própria rede, visando a integração dos diferentes recursos da saúde e da
comunidade.
A ênfase dada à territorialidade e às atividades comunitárias nos CAPS é
uma característica que deve ser ressaltada. O modelo não manicomial de
assistência à saúde mental preconiza a compreensão da saúde do ponto de vista
da integralização, ou seja, não mais como o fenômeno da doença apenas, mas
sim como uma complexa relação entre os componentes biológicos, psicológicos e
31
sociais, decorrente de múltiplas interações na constituição da história individual e
social do sujeito. Assim sendo, manter ou resgatar os laços e as possibilidades da
vida comunitária, buscar constituir uma rede de suporte social e cuidar do sujeito
em sua história, sua cultura e sua vida cotidiana, passam a integrar as
preocupações dos profissionais da saúde mental. Dessa forma, a questão da
cidadania passa a ser compreendida também como uma questão de saúde.
A compreensão de território, aqui, não deve limitar-se apenas à área
geográfica. Além de sua dimensão geográfica, devemos considerar que ele é
constituído fundamentalmente pelas pessoas que nele habitam, com seus
conflitos, seus interesses, seus amigos, seus vizinhos, sua família, suas
instituições, seus cenários (igreja, cultos, escola, trabalho, boteco, etc.). (BRASIL,
2004a, p. 11)
Podemos perceber uma ampliação do conceito de saúde, para além da
idéia de doença, a partir da concepção apresentada por Ferrara: Saúde é um
contínuo agir do homem frente ao universo sico, mental e social em que vive,
sem regatear um esforço para modificar, transformar e recriar aquilo que deve
ser mudado.
(apud FRANCISCO, 2001, p. 65)
O caráter eminentemente interdisciplinar da Saúde, assim como a
necessidade da abordagem integral do homem em seu contexto, também podem
ser verificados na definição do próprio SUS -
Sistema Único de Saúde:
a saúde tem como fatores determinantes e condicionantes o meio físico
(condições geográficas, água, alimentação, habitação, etc.); o meio
sócio-econômico e cultural (ocupação, renda, etc.); fatores biológicos
(idade, sexo, herança genética, etc.) e a oportunidade de acesso aos
serviços que visem a promoção, proteção e recuperação da saúde”.
(BRASIL, 1990, p.8)
Os CAPS têm trabalhado, historicamente, para possibilitar a vida
comunitária àquelas pessoas que perderam seus vínculos comunitários
significativos ou que nem mesmo chegaram a desenvolvê-los. Este tipo de
atenção à saúde recebe, por vezes, o nome de “reabilitação”. As concepções de
reabilitação também sofreram transformações históricas durante o processo de
transformação da atenção em saúde mental, sendo hoje muito difundido o
conceito de “reabilitação psicossocial” desenvolvido por Saraceno (1999, p. 111-
32
122). Essas diferentes concepções guardam entre si uma grande diferença
ideológica. Enquanto a primeira visa a adaptação do homem às exigências
sociais, a segunda visa a participação ativa do sujeito em seu meio social como
construtor da história.
Segundo o autor, a Reabilitação, em seu conceito tradicional, é
compreendida como um conjunto de ações que visam aumentar as capacidades e
diminuir as deficiências, a partir do desenvolvimento de habilidades e da
adaptação às exigências ambientais, sociais, do trabalho e do mercado.
E, segundo o mesmo autor, a Reabilitação Psicossocial é compreendida
como
um conjunto de estratégias orientadas a aumentar as oportunidades de
troca de recursos e afetos, a partir dos quais se poderá criar uma rede
de negociações onde a ênfase é dada não à autonomia e adaptação do
paciente, mas sim a sua participação como agente de transformação de
seu ambiente, em busca de qualidade de vida e construção de
cidadania, mesmo diante da diversidade. (SARACENO,1999, p. 112)
A formação dessa rede de negociações e trocas é um processo complexo
e pressupõe a articulação constante entre possibilidades, necessidades e
desejos. Pressupõe a identificação das características locais ou o contexto dos
usuários e dos serviços; a autonomia dos sujeitos envolvidos no processo; a
modificação das estruturas de poder; a criação de novas possibilidades de
organização do trabalho; a efetivação dos direitos de cidadania e a substituição
da relação de controle e domínio por uma relação de escuta.
Os CAPS se pretendem, portanto, como construtores de um ambiente
social para a recuperação da cidadania e da democracia; um ambiente onde se
possa descobrir, criar e integrar possibilidades para o desenvolvimento de uma
vida social sem exclusões; um ambiente onde se possa acolher a “loucura” de
modo a resgatar os mais diversos sentidos da subjetividade humana.
Todas essas transformações da atenção à saúde mental são decorrentes
de um movimento chamado Reforma Psiquiátrica, que teve seu início na década
de 70, como uma luta dos trabalhadores da saúde mental contra as diferentes
formas de opressão impostas pelo modelo manicomial ou hospitalocêntrico de
assistência. Hoje, a Reforma Psiquiátrica se expressa também em novas
33
legislações nacionais, estaduais e municipais de saúde que vêm conquistando
significativas mudanças na área.
No entanto, essa Reforma pressupõe uma mudança radical não apenas
nas leis, nas estruturas e nos espaços de atenção, mas, principalmente, nas
concepções teórico - filosóficas que norteiam as ões de Saúde e,
conseqüentemente, seu instrumental técnico. Trata-se, portanto de um processo
de transformação das idéias, princípios e ões que ainda preservam muito da
tradição da Psiquiatria, caracterizada pela lógica da fragmentação do saber e do
tecnicismo.
As novas concepções de saúde mental estão diretamente vinculadas a
uma análise política da realidade, pois compreendem a saúde ou a doença como
construções histórico-sociais. Nesse sentido, podemos entender o quanto foi
importante a gestação e a construção do movimento social “Tecendo a Paz” a
partir de um CAPS, por seus usuários e trabalhadores.
1.4. A Faculdade de Terapia Ocupacional da PUC-Campinas
Antes de descrever a Faculdade de Terapia Ocupacional da PUC-
Campinas, faz-se necessário apresentar algumas características da Terapia
Ocupacional, tendo em vista algumas dúvidas ou mesmo distorções correntes
acerca desta profissão.
A Terapia Ocupacional é uma profissão da saúde, reconhecida no Brasil,
regulamentada por um Conselho Federal COFFITO e seus Conselhos
Regionais CREFITO. Tem suas organizações de classe, das quais podemos
destacar o sindicato SINFITO e a Associação Brasileira de Terapeutas
Ocupacionais – ABRATO, sendo esta última filiada à Associação Internacional de
Terapeutas Ocupacionais, a World Federation of Occupational Therapists
WFOT, além de várias associações regionais. No Brasil, a formação do terapeuta
ocupacional é universitária, tendo um currículo mínimo estabelecido pelo MEC de
3600 horas.
34
Baseando-se na definição de Terapia Ocupacional da WFOT de 1993, a
Associação de Terapia Ocupacional do Estado de São Paulo a apresenta como
uma profissão da saúde
que diz respeito a pessoas com diminuição, déficit ou incapacidade
física ou mental, temporária ou permanente. O terapeuta ocupacional
profissionalmente qualificado envolve o paciente em atividades
destinadas a promover o restabelecimento e o máximo uso de suas
funções com o propósito de ajudá-los a fazer frente às demandas de
seu ambiente de trabalho, social, doméstico e a participar da vida em
seu mais pleno sentido. (ATOESP, 2006)
Assim sendo, a Terapia Ocupacional atua na esfera da atividade
humana, de modo a identificar as diversas dificuldades do fazer humano e, ao
mesmo tempo, utilizar-se da potencialidade deste mesmo fazer como instrumento
de tratamento ou intervenção. Tendo como objeto de estudo a atividade ou a
ocupação ou o fazer humano, essa profissão carrega em si a necessidade de
uma abordagem interdisciplinar, tendo em vista a complexidade própria de seu
objeto de estudo.
A Terapia Ocupacional, enquanto profissão, nasceu nos EUA, por volta de
1917, em decorrência do significativo aumento das deficiências físicas e mentais
adquiridas pelos soldados durante a I Guerra e da necessidade de reabilitação
dessa mão-de-obra para reconstrução social do país no pós-guerra. Sua origem
se deve ainda à extensiva prática do uso do trabalho nos manicômios, com
finalidades terapêuticas, desde o final do século XVIII. Assim sendo, sua tradição
está vinculada aos trabalhos na área da Reabilitação, tanto física quanto mental.
No entanto, em seu processo de desenvolvimento e, acompanhando a evolução
da própria Saúde, seu campo de trabalho foi se expandido para as ações de
promoção de saúde, prevenção e tratamento. Expandiu-se também para outras
áreas de atuação, além da reabilitação física e da saúde mental, podendo
trabalhar atualmente em diferentes instituições, como hospitais gerais e
especializados, centros de saúde, ambulatórios, clínicas, centros de atenção
psicossocial, centros de reabilitação, centros de convivência, centros de saúde do
trabalhador, instituições geriátricas, escolas, empresas, presídios, programas
comunitários e demais organizações sociais.
35
Sua formação inicial recebeu uma grande influência da Medicina, o que
determinou um perfil profissional baseado principalmente nas ciências biológicas
até , aproximadamente, três décadas, após o que, a ampliação de seus
estudos para as ciências humanas passou a marcar o seu desenvolvimento.
Desde sua origem até a década de 70, a função social da Terapia
Ocupacional era marcada pela idéia da adaptação social, preocupando-se em
inserir ou reintegrar a pessoa ao seu meio sem, no entanto, discutir o processo
social de exclusão ou os sucessivos fracassos das tentativas de reintegração
social. No Brasil, ao final dos anos 70, momento em que muitos movimentos
sociais contribuíram para mudar as concepções tradicionais da saúde e de seus
modelos assistenciais, a Terapia Ocupacional passa a entender a prática
adaptadora como uma prática alienante e começa a desenvolver, então, uma
prática emancipadora, a partir da qual o conceito de cidadania ocupa lugar de
destaque. Partindo destes pressupostos, os terapeutas ocupacionais começam a
expandir suas ações para as diferentes lutas sociais, passando a participar da
construção do coletivo e do espaço público. (GALHEIGO, 1997, p. 47-50).
O início da Terapia Ocupacional no Brasil é marcado pela implantação do
Instituto de Reabilitação na Clínica de Ortopedia e Traumatologia no Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, pela
Organização das Nações Unidas (ONU), em 1956. Esse instituto promovia a
assistência e o ensino nos diferentes campos da reabilitação: fisioterapia, terapia
ocupacional, órteses e próteses. Os cursos de Fisioterapia e Terapia Ocupacional
se expandiram e ganharam estrutura de nível técnico. Em 1963 foi aprovado o
primeiro currículo de nível universitário na Associação Brasileira Beneficente de
Reabilitação (ABBR), no Rio de Janeiro, e, em 1969, as profissões de Terapia
Ocupacional e Fisioterapia passam a ser reconhecidas como de nível superior.
(DE CARLO e BARTALOTTI, 2001, p. 33-34).
Existiam pouquíssimos cursos de Terapia Ocupacional no Brasil até
meados dos anos 70, quando então começa uma significativa expansão destes
cursos por todo o país, principalmente na região sudeste.
36
O Curso de Terapia Ocupacional da Puc-Campinas foi criado em 1977 e,
em 1982, efetivou sua primeira reestruturação curricular.
4
Essa reestruturação
caracterizou-se por mudanças significativas na adequação do currículo ao novo
perfil decorrente dos novos paradigmas da profissão. Esse currículo, por sua
atualidade e consonância com as necessidades históricas da profissão, serviu de
base para o processo de reformulação do currículo mínimo do MEC em 1982. As
diretrizes dessa reestruturação curricular marcaram a identidade do Curso de
Terapia Ocupacional da PUC-Campinas, mesmo havendo passado, até o
momento, por mais duas reestruturações. Essas diretrizes são:
Maior equilíbrio entre as disciplinas básicas biológicas e humanas na
composição dos diversos aspectos da saúde, como também entre as
disciplinas clínicas e as disciplinas de Terapia Ocupacional aplicada.
Maior caracterização da formação profissional, principalmente no
aspecto da habilitação pessoal do aluno;
Maior ênfase no trabalho prático e na integração teoria-prática, com a
definição de duas vertentes básicas de formação: a habilitação técnica e
a habilitação inter e intrapessoal;
Ampliação da consciência ética do aluno;
Maior entrosamento entre os docentes do ciclo profissional e demais
professores, visando integração e conhecimento da Terapia
Ocupacional em seus objetivos e métodos, por todos os docentes do
Curso. (PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS,
2001, p. 3-4)
Nota-se assim a passagem do modelo biológico de saúde para uma
concepção integralizadora de saúde, onde as ciências humanas se equilibram
com as biológicas e a interdisciplinaridade começa a ser construída. Nota-se
também uma tendência à integração teórico-prática, à formação ética e à
formação pessoal do aluno, buscando uma abordagem não tecnicista.
As duas reestruturações curriculares que se seguiram, em 1992 e 2000,
geraram mudanças estruturais nos currículos, tendo em vista a necessidade de
adequação do curso às diferentes demandas de ordem institucional, social,
pedagógica e da própria profissão, porém, aqueles princípios se mantiveram,
definindo assim o perfil deste curso.
4
O Curso de Terapia Ocupacional da Puc-Campinas nasceu vinculado à Faculdade de Ciências
Médicas. Em 29 de novembro de 2001, a partir da 351ª Reunião do Conselho Universitário
CONSUN que definiu regulamentações para reestruturação da universidade, este curso passou
a constituir a Faculdade de Terapia Ocupacional, vinculada ao Centro de Ciências da Vida.
37
Reafirmando algumas daquelas posições, a Reestruturação Curricular de
2000 apresenta a seguinte fundamentação:
O Curso de Terapia Ocupacional da PUC-Campinas tem fundamentado
suas reflexões, sua prática e sua organização curricular sobre dois
conceitos básicos:
- a práxis, na perspectiva da integração teoria-prática e da construção
coletivo-cotidiana da história e do saber.
- a interdisciplinaridade, na perspectiva não apenas de integração das
diversas estruturas do conhecimento, mas principalmente de uma
transformação das estruturas e relações de poder, que venham permitir
uma nova atitude na abordagem poliocular da realidade e suas
contradições. (PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE
CAMPINAS, 2001, p.19 – grifos originais)
Com base neste último projeto de reestruturação curricular destacamos a
valorização dos seguintes aspectos:
produção do conhecimento em serviço, visando à articulação entre o
ensino, a extensão e a pesquisa;
incentivo à pesquisa desde o início da formação;
formação reflexiva, crítica e comprometida com a realidade social;
análise das instituições sociais e o exercício de busca de propostas
alternativas e inovadoras;
avaliação pautada em mecanismos de acompanhamento contínuo e
processual, com instrumental diversificado;
preparação psicológica do aluno para o desenvolvimento de uma postura
terapêutica efetiva nas diferentes situações de sofrimento humano;
tratamento particularizado do aluno, promovendo processos de auto-
conhecimento, do conhecimento de suas dificuldades e potencialidades,
assim como de sua história pessoal e social.
(PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE
CATÓLICA DE CAMPINAS, 2001, p.19-22)
É importante salientar que todas as reestruturações curriculares foram
construídas a partir de um intenso processo coletivo e democrático de reflexão e
de produção, por seus próprios docentes. Mesmo diante de limites institucionais,
o processo de construção democtica, pelo menos dentro das áreas de
competência e autonomia do próprio curso, era sempre garantido. Obviamente
existiam limites e, em cada uma das reestruturações, as condições institucionais
eram particulares e diversas. No entanto, os produtos destas reestruturações
38
foram frutos de muitas discussões, reflexões e negociações, às quais todos seus
professores se entregaram intensamente. Provavelmente isso lhes tenha
proporcionado a apropriação do projeto pedagógico do curso e, por isso, a
possibilidade de uma construção teórico-prática cotidiana em cada uma de suas
disciplinas e ações pedagógicas.
Este curso é composto por uma média de doze docentes responsáveis
pelas disciplinas específicas de Terapia Ocupacional e outros docentes
vinculados a outras faculdades da mesma instituição, responsáveis por disciplinas
ligadas às áreas de Medicina, Biologia, Sociologia, Filosofia, Psicologia e
Antropologia.
Embora o processo democrático da Faculdade de Terapia Ocupacional
tenha objetivado sistematicamente a integração dos docentes das outras áreas do
conhecimento, além das específicas, nem sempre o resultado atingiu condições
plenamente satisfatórias, tendo em vista as inúmeras questões que envolvem o
cotidiano das instituições acadêmicas e cuja análise não cabe neste trabalho.
Mesmo assim, muitas interações e cooperações criativas têm sido possíveis. No
entanto, elas o chegam a ser tão intensas quanto as relações cotidianas dos
docentes das disciplinas específicas, na sua maioria terapeutas ocupacionais, que
têm trabalhado com maior ênfase na construção do projeto pedagógico.
Outro aspecto que nos parece importante apresentar, tendo em vista os
objetivos desta pesquisa, refere-se às características das disciplinas práticas do
Curso de Terapia Ocupacional da PUC-Campinas, pois entendemos que estas
disciplinas facilitaram a participação de docentes e alunos no movimento
“Tecendo a Paz”.
As disciplinas práticas têm uma importância fundamental neste curso e
ocupam uma carga horária significativa. A valorização da Ação no processo
educacional não é exclusividade da Terapia Ocupacional. No entanto, neste caso,
ela deve tornar-se imprescindível, uma vez que toda a construção técnica e
teórica da profissão sustenta-se sobre a Ação Humana e, portanto, sobre a
integração teoria-prática ou sobre a aproximação entre o saber e o fazer.
(FERIOTTI e SÁ, 1997, p. 26)
39
Organizada atualmente em oito semestres, a estrutura curricular tem
diferentes modalidades de disciplinas práticas: práticas de laboratório e práticas
terapêuticas supervisionadas. As primeiras destinam-se a disciplinas de diferentes
áreas do conhecimento, específicas de terapia ocupacional ou não, que visam
estabelecer as correlações teórico-práticas dos conteúdos programáticos. As
segundas são divididas em outras três modalidades: práticas de campo
supervisionadas, laboratórios de vivência e supervisão coletiva.
Das práticas de laboratório, as disciplinas mais expressivas, tanto no que
se refere à carga horária, quanto à construção curricular, são as relacionadas às
“Atividades e Recursos Terapêuticos”. Essas disciplinas são oferecidas em seis
dos oito semestres letivos, do primeiro ao sexto semestres. São compostas por
duas aulas teóricas e duas aulas práticas semanais. Considerando que o objeto
de estudo da Terapia Ocupacional é a atividade humana, estas disciplinas visam
instrumentalizar o estudo teórico-prático das atividades em suas diferentes
possibilidades de compreensão, análise, avaliação, manejo e utilização
terapêutica. Nas práticas de laboratórios os alunos vivenciam as mais diversas
atividades: jogos e brincadeiras, atividades de auto-cuidado, atividades da vida
diária, marcenaria, pintura, modelagem, costura, teatro, enfim, atividades
artísticas e artesanais em geral. Embora exista uma programação previamente
proposta, ela não é gida. Ao contrário, as aulas práticas são dinâmicas, pois
trabalham a partir das produções dos alunos.
As práticas de campo supervisionadas proporcionam a experiência
diretamente junto às instituições de saúde ou instituições sociais e à clientela
envolvida. Ocorrem durante sete dos oito semestres do curso, desde o segundo
semestre, com aproximações graduais da clientela e das técnicas terapêuticas,
visando o desenvolvimento da autonomia do aluno. Em todas as instituições onde
se desenvolvem essas práticas, algumas vinculadas à própria universidade,
outras públicas ou filantrópicas, sempre um docente da faculdade que
acompanha o processo.
Os laboratórios de vivência caracterizam-se como um local de
experimentação de técnicas e de si mesmo em diferentes situações terapêuticas,
com minimização dos riscos implícitos à prática terapêutica, uma vez que não
40
existe a presença real do paciente nestes laboratórios.
(PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE
CATÓLICA DE CAMPINAS, 2001, p.68).
Para tanto são usadas, como estratégias
pedagógicas, simulações, jogos corporais, dinâmicas grupais, estudos de casos,
discussões e reflexões sobre os temas que são levantados a partir dos interesses
dos próprios alunos. Os objetivos e estratégias dessas disciplinas são
minuciosamente explicitados aos alunos, no entanto, não uma programação
rigidamente definida. Os alunos levantam seus interesses, que passam a
constituir a programação inicial, porém, essa programação é dinâmica e pode ser
alterada sempre que necessário ou desejado. Embora não haja uma programação
previamente definida, existe um eixo ligado ao perfil do profissional que se quer
formar. Esses laboratórios têm contribuído para o desenvolvimento do auto-
conhecimento dos alunos e compreensão das trocas intersubjetivas no processo
terapêutico, além de caracterizar-se como um fértil local de trocas entre os alunos
e entre os alunos e os professores. Ocorrem em quatro semestres do curso: do
terceiro ao sexto semestres.
A supervisão coletiva é oferecida nos dois últimos semestres do curso e
complementa as práticas terapêuticas supervisionadas. Busca reunir e promover
trocas entre o conhecimento das diversas experiências de planejamento
institucional, vividas pelo grupo de alunos, e análise das perspectivas para a
atuação do profissional no que diz respeito à educação continuada e pós-
formação.
(PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS, 2001, p. 71)
Acreditamos que o Projeto Pedagógico do Curso de Terapia Ocupacional
da Puc-Campinas e a organização das disciplinas práticas tenham favorecido o
desenvolvimento das atividades que levaram ao movimento “Tecendo a Paz”, seja
pelas relações com as instituições de saúde, seja pela possibilidade de fazer
atividades artesanais ou artísticas nas próprias aulas, seja por trabalhar com
programas flexíveis ou ainda, por ter como objetivos a crítica reflexiva, a formação
para a cidadania e a participação social.
As características que fundamentam o Projeto Pedagógico do Curso de
Terapia Ocupacional da PUC-Campinas também constituem o perfil profissional
do terapeuta ocupacional definido pela Comissão de Especialistas de Ensino de
41
Terapia Ocupacional. As Diretrizes Curriculares para os Cursos de Terapia
Ocupacional, apontam a importância da Educação para a Cidadania:
Os cursos de Terapia Ocupacional devem garantir ao aluno a vivência
crítica da realidade do país, possibilitando o conhecimento dos fatores
sociais, econômicos, culturais e políticos, fundamentais à cidadania e à
prática profissional. Devem incentivar a participação do aluno em
atividades de extensão que venham favorecer a população envolvida,
assim como possibilitar ao aluno o acesso ao conhecimento da
realidade e ao engajamento no seu processo de mudança. (PONTIFÍCIA
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS, 2001, p. 105)
A partir dessas reflexões, perguntamos: É possível separar saúde,
educação, sociedade e política? É possível separar ensino, extensão e pesquisa?
2. O movimento social “Tecendo a Paz”
5
O movimento “Tecendo a Paz” constituiu-se, basicamente, na organização
e na construção coletiva de uma grande colcha de retalhos.
A colcha de retalhos do movimento “Tecendo a Paz” foi confeccionada em
praça pública, a partir da junção de retalhos e de outras pequenas colchas, em
Campinas SP, no dia 10 de outubro de 2001, um mês após o assassinato de
seu prefeito Antônio da Costa Santos, o Toninho, em 10 de setembro de 2001,
seguido do ataque ao World Trade Center, em Nova York, no dia seguinte.
Essa colcha foi costurada manualmente, unindo retalhos aleatórios, das
mais diversas cores, tamanhos e texturas, e unindo também outras colchas que
eram confeccionadas durante o processo de organização e divulgação do
movimento, por diversos grupos que se reuniam em torno dessa finalidade.
Iniciada espontaneamente nos ateliês de Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS) da região noroeste
6
de Campinas, por usuários e trabalhadores, e
5
Parte dessa experiência foi relatada e analisada em capítulo de livro: FERIOTTI, Maria de Lourdes. Colcha
de retalhos: costurando diferenças e tecendo cidadania. In PÁDUA, Elisabete Matallo M. de; MAGALHÃES,
Lílian Vieira. (orgs). Casos, Memórias e Vivências em Terapia Ocupacional. Campinas, SP: Papirus, 2005,
p. 33-45.
6
A região noroeste de Campinas é a mesma onde se localiza o campus II da PUC-Campinas, onde se
encontram as faculdades ligadas à área da saúde, dentre elas, a de Terapia Ocupacional.
42
integrando docentes e alunos da Faculdade de Terapia Ocupacional da PUC-
Campinas, a construção dessa colcha ganhou muitos outros integrantes, uniu
universidade, serviços de saúde e sociedade, reuniu ensino, pesquisa e extensão,
saiu das salas de aula e dos espaços terapêuticos e dirigiu-se à praça pública,
ganhando o espaço maior da sociedade civil.
Na verdade, o “Tecendo a Paz” não nasceu como movimento social. Sua
origem não foi marcada por uma atitude reivindicatória. Ele nasceu como uma
atividade grupal desenvolvida nos ateliês de serviços de saúde mental,
provavelmente como expressão e concretização de sentimentos próprios daquele
momento e como uma homenagem a Toninho. Uma atividade que resgatava um
dos símbolos da campanha eleitoral do prefeito morto: a bandeira de retalhos,
como proposta de integração dos diferentes segmentos sociais. No entanto, a
força e a expressividade dessa atividade acabaram revelando sua potencialidade
coletiva, de modo que ela expandiu-se para além daqueles ateliês, integrando
outros serviços de saúde e também professores e alunos da universidade. Nesse
processo, sua potencialidade para transformar-se em movimento social foi
plenamente revelada. E assim, essa atividade abriu-se como um convite à
população, recebeu nome de movimento social, carregou consigo a reivindicação
pela paz e pela justiça e ganhou o espaço público da cidade. Não foi o movimento
social que criou seu símbolo, ao contrário, a força de um símbolo é que criou este
movimento social.
Embora nascido no interior de uma instituição de saúde e desenvolvido
também no interior de uma instituição acadêmica, é necessário pontuar que esse
movimento não tinha características institucionais. A participação nas diferentes
etapas do movimento “Tecendo a Paz” era espontânea e partia da iniciativa
pessoal, individual, de seus integrantes. Era um movimento de trabalhadores e
usuários da saúde, de professores, de alunos, de cidadãos, mas não era um
movimento das instituições de saúde ou da universidade, embora devamos
reconhecer que as instituições que o abrigaram continham as condições
necessárias para que ele acontecesse.
O movimento “Tecendo a Paz” foi levado ao público em 17 de setembro de
2001, no sétimo dia da morte de Toninho, integrando um ato popular de
43
profissionais da saúde, como um convite à população para dar continuidade à
colcha iniciada, marcando-se um encontro no Paço Municipal no dia 10 de
outubro de 2001, como homenagem e celebração do primeiro mês de sua morte.
Este ato ocorreu antes da missa de sétimo dia que foi realizada na Catedral
Metropolitana, para onde os seus integrantes se dirigiram em passeata. A missa,
além de uma celebração religiosa, foi também uma grande manifestação popular.
A igreja e a praça estavam repletas de pessoas que manifestavam sua tristeza e
também seu protesto.
Durante a passeata realizada pelos profissionais da saúde e durante a
saída da missa eram distribuídos os folhetos-convite para a costura da colcha.
Esses folhetos foram elaborados e impressos, voluntariamente, por servidores
municipais da saúde. (ANEXO II) O convite à participação do movimento era uma
poesia, elaborada por uma das organizadoras do movimento.
TECENDO A PAZ
Vamos juntar nossos pedaços,
Nossa dor e nossas esperanças.
Vamos tecer, com nossas próprias mãos,
Uma grande colcha de retalhos.
Uma colcha que, como resultado de nossa união,
Possa nos proteger, nos acolher, nos aquecer...
CHEGA DE VIOLÊNCIA!!
CONTRA A IMPUNIDADE!!
Por justiça,
Por Campinas,
Pela paz no mundo...
Traga seu retalho e vamos costurar
Juntos esta colcha !
DIA 10/10/2001
LOCAL: PAÇO MUNICIPAL
DAS 09:00 ÀS 17:00 HORAS
PARA TECER A COLCHA
17:00 HORAS: PASSEATA
O movimento começou a ser reconhecido, foi ganhando importância e
adesão de outros serviços de saúde, instituições, representações sociais e
cidadãos comuns e se transformou em uma grande atividade coletiva em praça
pública, provavelmente por representar e catalisar um sentimento, uma
expressão, um desejo da coletividade.
44
Caracterizava-se como movimento popular, espontâneo, apartidário, sem
liderança central, que se construiu num processo de auto-organização, na
formação de uma rede. A idéia era formar uma grande rede de pessoas que se
unissem e trabalhassem pela paz, de modo que cada pessoa ou segmento social
que aderisse ao movimento se transformasse num multiplicador, divulgando a
idéia e formando grupos que se organizassem em torno da colcha de retalhos.
O movimento não contou com nenhuma divulgação institucional durante
seu período de organização de aproximadamente três semanas. Os meios
formais de comunicação, a imprensa escrita ou falada, somente registraram e
divulgaram o movimento quando ele passou a ser um fato consumado: o dia da
costura da grande colcha. E nesse dia, inclusive, sua divulgação foi muito
significativa. Mas durante sua organização, o movimento foi divulgado apenas
entre as pessoas, nos seus mais diversos encontros, através de contatos verbais,
via internet ou em jornais de entidades de classe ou representações sociais
constituindo, portanto, um movimento em rede.
Provavelmente, o movimento não foi divulgado institucionalmente não
apenas por sua pouca visibilidade, mas também pelo fato de não ter nenhuma
liderança central que assumisse a sua responsabilidade. Talvez porque, em sua
gestação, era um movimento fluido, vulnerável, sem formas definidas, não tendo,
nem mesmo, a certeza de poder atingir sua meta. É provável, por tudo isso, que
não lhe tenha sido atribuída confiabilidade necessária para tal divulgação.
A ausência de uma liderança central foi uma opção, desde o início do
movimento. Três pessoas tomaram para si, inicialmente, a coordenação do
processo. Porém, essa coordenação nunca se pretendeu uma liderança central,
mas sim um veículo de promoção de múltiplas interações, um facilitador de uma
rede de relações. A própria coordenação nasceu espontaneamente, da prática, ou
seja, nasceu da necessidade e do desejo de dar visibilidade e levar à concretude,
uma potencialidade que pulsava e se impunha enquanto forma de expressão
humana.
Três pessoas, três mulheres, assumiram essa tarefa: a coordenadora de
um CAPS, uma professora do curso de Terapia Ocupacional e uma aluna desse
45
mesmo curso. Embora lhes tenha sido atribuído o lugar da organização ou da
coordenação do movimento, esse grupo preferia atribuir-se o papel de cuidadoras
da gestação do movimento. Uma gestação que precisava de muitos cuidados,
mas que seguia seu próprio caminho, dentro de suas próprias possibilidades.
Como o objetivo do movimento era a formação de uma rede e, embora sempre
houvesse o cuidado para com essa rede, não havia o controle sobre ela. Não era
possível, nem desejado, exercer esse controle. Não se podia ter visibilidade
daquela rede, não se sabia por onde e como o movimento caminhava. Não se
sabia, inclusive, se haveria pessoas no paço municipal em número suficiente para
tornar esse movimento socialmente significativo.
Com certeza, durante o processo de organização do movimento, também
surgiram muitas outras coordenações locais, em diferentes grupos, comunidades,
entidades, instituições, mas nem mesmo desse processo foi possível ter
visibilidade. Na verdade, aquele projeto, mais que um desejo, era uma aposta!
Aposta na autonomia e na capacidade de auto-organização do homem e dos
grupos sociais. Aposta num projeto de emancipação.
A comunicação e a informação, muito mais que o controle, pareciam ser as
necessidades básicas do movimento. Por isso foi elaborado pelas coordenadoras
um novo folheto que buscava explicar os motivos, as propostas e, principalmente,
os princípios do movimento “Tecendo a Paz”. (ANEXO III) A partir de fragmentos
desse folheto podemos identificar seus princípios básicos:
(...) É isso que lhe a característica de um movimento popular,
espontâneo, apartidário, sem liderança central. A idéia é formar uma
grande rede de pessoas que se unam e trabalhem pela Paz, de modo
que cada pessoa ou segmento social que aderir ao movimento se
transforme num multiplicador, divulgando a idéia e formando grupos que
se organizem em torno da colcha de retalhos. (...) O sentido deste
movimento é simples e engloba, simbolicamente, algumas idéias
básicas:
partir da palavra para a ação, tecendo...
formar uma grande rede que trabalhe por um objetivo comum: a paz.
valorizar o trabalho e a contribuição de cada um, permitindo que
todos encontrem um lugar na grande colcha: não importa o
tamanho, o formato ou a cor do retalho, mas importa que ele NÃO
contenha violência.
juntar os pedaços, costurar as diferenças, lidar com a diversidade e
tecer uma malha social sem buracos e exclusões.
unir forças, possibilidades e criatividade para a construção de um
mundo justo e melhor.
46
criar uma rede de proteção, solidariedade e acolhimento para esta
nossa dor coletiva.
prestar uma homenagem a Toninho.
Esse folheto foi distribuído através da internet ou reproduzido através de
cópias xerográficas pelos próprios interessados. Não havia nenhum financiamento
para o movimento, mas também quase não havia gastos. Os poucos gastos
gerados eram absorvidos, nem se sabe como ou quanto, por seus integrantes.
Durante todo o dia 10 de outubro de 2001, a colcha foi confeccionada e
costurada manualmente, ininterruptamente, em praça pública, com a participação
de usuários e trabalhadores de diversos CAPS e de outros serviços de saúde da
cidade, docentes e alunos de Terapia Ocupacional da Puc-Campinas e outros
tantos professores da universidade e de outras escolas, sindicatos,
representantes de diferentes entidades de classe e organizações sociais,
cidadãos comuns, enfim, centenas de pessoas que traziam, aleatoriamente,
retalhos ou colchas dos mais diversos tecidos, cores e tamanhos e que
contribuíam, cada um a seu modo, com o que fosse possível e necessário.
Nesse dia, a imprensa fez uma grande cobertura do evento nos
programas regionais de rádio e televisão, o que, provavelmente, contribuiu para
aumentar, ao longo do dia, o número de participantes.
Homens, mulheres, adultos e crianças, de diferentes etnias, classes
sociais, culturas, credos e partidos, cidadãos comuns trocando linhas e agulhas,
recortando e juntando retalhos, por vezes pintando e escrevendo mensagens na
colcha; alguns aprendendo a costurar, outros ensinando e descobrindo novas
formas de unir retalhos, tocando as mãos e trocando idéias, às vezes dando nós,
fazendo arremates, outras vezes desatando nós, desenroscando as linhas, todos
sentados ou ajoelhados no chão. Não havia nenhum conforto, mas, ao mesmo
tempo, não havia nenhuma reclamação. Algo muito intenso unia aquelas pessoas
naquela atividade, numa construção contínua e obstinada.
A solidariedade era percebida de várias maneiras durante a costura da
colcha. Percebia-se o cuidado com as poucas ferramentas e materiais de trabalho
disponíveis: agulhas, linhas e tesouras. Todos trocavam as ferramentas entre si,
uns auxiliavam outros no manuseio dos instrumentos e no aprendizado da
47
costura, buscavam-se combinações de retalhos, reforçavam-se costuras que
parecessem frágeis.
Retalhos ora definidos previamente, ora cortados e recortados,
modelados e remodelados, descobrindo ou criando seus lugares, a partir de
conexões possíveis ou necessárias, em busca de um sentido na construção da
colcha que ia crescendo num silencioso processo de auto-organização.
Ao final do dia, a colcha atingiu um tamanho aproximado de 250m²,
conquistando sua característica forma retangular. Foi carregada em passeata
pelas ruas da cidade, para integrar-se a outros movimentos que ocorriam na
cidade.
Os diferentes retalhos constituíram uma malha tão repleta de significados,
que a força expressiva e aglutinadora da colcha fez-lhe merecida a página dos
jornais da cidade e alguns minutos nas telas das TVs regionais.
Partindo da palavra para a ação, foi possível tecer uma grande rede de
proteção, um mbolo coletivo de solidariedade, acolhimento e “costura” das
diferenças. Uma metáfora para o trabalho coletivo e inclusivo, com respeito às
diferenças, em torno de um mesmo objetivo: o bem comum.
A continuidade desse movimento não aconteceu, embora fosse desejo de
muitos participantes. Não se sabe se a sua não continuidade diz respeito ao
tempo próprio daquele movimento ou se algum outro fator tenha determinado o
seu fim.
O fato é que, ao final do dia da costura da colcha, ela foi entregue à
prefeita que acabava de assumir o poder, em substituição ao Toninho. A entrega
da colcha à prefeita foi fruto de uma proposta que surgiu durante aquele dia de
trabalho e ela mesma, a prefeita, tomou para si a tarefa de torná-la publicamente
exposta, pendurada no prédio da prefeitura, cobrindo o Palácio dos Jequitibás, de
modo a substituir a grande faixa preta de luto por aquele trabalho colorido que
mostrava a potencialidade da ação coletiva. Esta proposta também contemplava o
desejo de usá-la como símbolo de paz, podendo-se transportá-la ou fazer
exposições pelos diversos cantos da cidade. Havia ainda uma expectativa,
48
provavelmente onipotente e motivada pela emoção daquele momento, de manter
encontros permanentes todo dia 10, para dar continuidade à costura da colcha,
ou, ao menos, para gerar encontros entre diversos grupos. De qualquer forma, a
entrega da colcha à prefeita tinha, naquele momento, o significado de entregar ao
poder público, legitimamente representado, a própria cidade com seu trabalho,
suas potencialidades, suas necessidades e sua disponibilidade para que, juntos,
dessem continuidade ao projeto do Toninho que fora bruscamente interrompido
7
.
Após ser entregue à prefeita, a colcha foi colocada no palco do Largo do
Rosário, onde ocorria um ato e um evento musical, para homenagear Toninho e
para o lançamento da campanha “Campinas Contra a Violência Essa Bandeira
Também é Sua”. Neste ato, a prefeita fez a sua chamada para a continuidade do
movimento:
A proposta é que essa colcha cubra o Palácio dos Jequitibás. Vamos
fazer com que todos os dias 10 do mês sirvam para a gente vir
confeccionar mais pedaços. Quero mostrar para o Brasil que estamos
tecendo a paz. (Jornal Correio Popular, Caderno Cidades, 11/10/2001,
p. 5)
A partir desse evento, percebemos que a colcha do movimento “Tecendo
a Paz”, tornou-se um símbolo, porém passou a ficar ligado a esta outra
campanha, que era organizada pela prefeitura e por outras instituições sociais, ou
ainda ao Partido dos Trabalhadores, como podemos perceber em várias notícias:
Será lançado hoje em Campinas o movimento Campinas contra a
violência, com o slogan, “Vamos precisar de todo mundo” (...) O símbolo
será uma colcha confeccionada com retalhos, que será costurada
durante todo o dia no Paço Municipal. (Jornal Correio Popular,
10/10/2001, p.1)
E também,
Mais de uma dezena de entidades representativas da sociedade de
Campinas, sabedoras de que “vamos precisar de todo mundo”,
conforme o slogan adotado, acabaram por referenciar um ponto
essencial, o imperativo da aglutinação. E, por meio da iniciativa da
Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), a
atividade Tecendo a Paz. (Jornal Correio Popular, editorial, 15/10/2001,
p.2)
Ou ainda,
7
Neste trabalho, não nos propomos a analisar os motivos pelos quais o movimento não teve continuidade,
nem mesmo as relações subseqüentes entre o poder público e a cidade, pois isso demandaria uma nova e
criteriosa pesquisa. No entanto, cabe-nos registrar o destino dessa colcha.
49
Bem mais tímido que o evento realizado sete dias após a morte do
prefeito Antônio da Costa Santos (PT), o ato Campinas contra a
violência reuniu ontem, no largo do Rosário, cerca de 2.500 pessoas, de
acordo com a Guarda Municipal. O primeiro ato reuniu 5.000 pessoas.
Durante todo o dia, militantes do PT teceram uma colcha de retalhos de
pano para simbolizar a união contra a violência. (Jornal Folha de São
Paulo, Caderno C, 11/10/2001, p.6)
Nessas notícias, a colcha ficou sempre ligada a alguma instituição ou
organização social formal, descaracterizando o movimento “Tecendo a Paz”
naquilo que lhe era essencial: um movimento popular espontâneo, apartidário,
sem liderança central. Algumas manifestações e correções foram encaminhadas
aos jornais, mas nem todas tiveram repercussão.
8
Houve ainda mais uma chamada para o movimento no dia 10 de
novembro de 2001, não somente para dar continuidade ao que estava proposto,
mas também porque a colcha precisava de um reforço em suas costuras para
poder ser pendurada, com todo seu peso, no prédio da prefeitura, o Palácio dos
Jequitibás (ANEXO IV). Algumas pessoas compareceram ao paço municipal
naquele dia, reforçaram a colcha, porém o número de participantes foi muito
reduzido.
A colcha ficou alojada na prefeitura, aguardando ser pendurada e exposta
na sua grandiosidade. Por motivos que desconhecemos, talvez de ordem técnica,
essa colcha não foi pendurada e exposta como era esperado. Ao contrário, muitos
dias depois, ela surgiu na marquise do saguão de entrada do paço municipal,
como um bandô de cortina, tímida, dobrada e amassada, escondendo seu
tamanho, suas cores, suas pinturas, sua criatividade, suas individualidades,
enfim, seus retalhos. Restou uma indagação: a colcha era pesada demais para
que se enfrentasse o desafio de pendurá-la estendida?
Mais um último encontro ocorreu no dia 10 de dezembro de 2001, no paço
municipal, para começar a costura de uma nova colcha, agora sob os “olhares”
daquela grande colcha pendurada acima de nossas cabeças, aprisionada e
amassada. Era geral o descontentamento pela forma como a colcha estava
8
Embora este trabalho não se proponha a pesquisar a questão neste momento, fica explícita a necessidade
de análise dos processos de institucionalização dos movimentos sociais.
50
colocada na marquise. Com um número ainda mais reduzido de pessoas, tentou-
se iniciar a costura de uma nova colcha, mas a atividade foi bruscamente
interrompida por um grande temporal que, com fortes ventos arrastava cadeiras,
tecidos, instrumentos e tudo mais que estava por ali. Uma cena marcou aquela
tarde: com o forte vento, a grande colcha se abria, com violentos movimentos
esvoaçantes, como se estivesse querendo libertar-se de suas amarras e mostrar
sua grandiosidade.
As coordenadoras entendiam que aquele movimento e sua organização
pertenciam a todos e, ao mesmo tempo, a ninguém. Por isso, desde o dia 10 de
outubro, quando a colcha foi entregue ao poder público, elas não pretendiam
intervir isoladamente em novas ações. Porém, naquele momento foi inevitável
uma intervenção: tentar resgatar a colcha da prefeitura.
Não foi fácil convencer a instituição de que a colcha deveria ser retirada da
marquise onde estava pendurada. Mas foi possível. Ela foi então retirada da
prefeitura e alojada no mesmo CAPS que produziu seu embrião. Mas era preciso
secar a grande colcha. Ela estava molhada e embolorada. Durante um fim de
semana ela ficou aberta naquela instituição de saúde mental, mas ela não poderia
continuar ali porque era muito grande, ocupava todo o espaço daquela casa e, na
segunda feira, os usuários retornariam às suas atividades.
Foi então deslocada, mais uma vez, para a casa de uma das
coordenadoras. Não era um lugar público, era uma casa particular, na verdade,
era ainda uma obra, uma futura casa, mas que tinha um porão grande e bem
ventilado. Foi ali que a colcha ficou guardada por quase dois anos. Nesse tempo
ela secou, não mais embolorou, ficou livre de possíveis poeiras e traças.
Havia algo a se fazer com a colcha. Ela não poderia permanecer ali para
sempre. Mas não se sabia exatamente o quê, como, onde e com quem fazê-lo.
Dois anos após a morte do prefeito, numa cerimônia em sua homenagem,
não mais em lugar público, mas na sua própria casa na antiga tulha essa
colcha foi solenemente entregue à Roseana Garcia, esposa do Toninho.
51
Ainda hoje se vê, eventualmente, essa colcha passar pela cidade. Algumas
vezes ela é carregada nos movimentos de protesto do grupo que integra a
organização não governamental (ONG) “Quem Matou Toninho?”
Figura 1 – Manhã do dia 10 de outubro de 2001 no Paço Municipal
Foto: Valdemir L. Rosa (arquivo pessoal)
52
Figura 2 – No início do dia, algumas pequenas colchas para serem unidas...
Figura 3 – E muitos retalhos trazidos aleatoriamente
Foto: Valdemir L. Rosa (arquivo pessoal
)
Foto: Valdemir L. Rosa (arquivo pessoal
)
53
Figura 4 – Descobrindo possibilidades...
Figura 5 – E unindo retalhos
Foto: Valdemir L. Rosa (arquivo pessoal
)
Foto: Valdemir L. Rosa (arquivo pessoal
)
54
Figura 6 – O trabalho coletivo na união das diferenças
Foto: Valdemir L. Rosa (arquivo pessoal
)
55
Figura 7 – Diferentes retalhos, diferentes expressões
Extraído de trabalho acadêmico da disciplina “Movimentos Sociais e Cidadania”, profª. Doraci A. Lopes, acadêmicos
GASPAR, T.L.; LABIGALINI, A.L.; LEITE, R.R.; NOGUEIRA, R.T.; SILVA, A. A. - Faculdade de Terapia Ocupacional. -PUC-
Campinas, 2001
56
Figura 8 – Homens e mulheres na mesma atividade
Figura 9 – Diferentes gerações em comunicação
Extraído de trabalho acadêmico da disciplina “Movimentos Sociais e Cidadania”, profª. Doraci A. Lopes, acadêmicos
GASPAR, T.L.; LABIGALINI, A.L.; LEITE, R.R.; NOGUEIRA, R.T.; SILVA, A.A. - Faculdade de Terapia Ocupacional -PUC-
Campinas, 2001.
Foto: Valdemir L. Rosa (arquivo pessoal)
57
Figura 10 – A colcha cresce ao longo do dia...
Figura 11 – E ganha o característico formato retangular
Foto: Valdemir L. Ro
sa (arquivo pessoal)
Foto: Valdemir L. Rosa (arquivo pessoal)
58
Figura 12 – O resultado merece ser comemorado
Figura 13 – Ao final do dia, a colcha é levantada, cobrindo as pessoas...
Foto: Valdemir L. Rosa (arquivo pessoal)
Foto: Valdemir L. Rosa (arquivo pessoal)
59
Figura 14 – ...Que a carregam em passeata...
Figura 15 - Pelas ruas da cidade
Foto: Valdemir L. Rosa (arquivo pessoal)
Foto: Valdemir L. Rosa (arquivo pessoal)
60
Foto: Carlos Bassan – Correio Popular, 11 de outubro de 2001, p.1
Figura 16 – A colcha de retalhos é estendida no Largo do Rosário,
integrando-se ao movimento “Campinas Contra a Violência”.
61
Figura 17 – A colcha na marquise da prefeitura
Foto: Valdemir L. Rosa (
arquivo pessoal)
62
Figura 18 – De colcha... a bandô de retalhos.
Foto: Valdemir L. Rosa (arquivo pessoal)
63
2. Movimentos sociais e Educação
Considerando necessário refletir sobre alguns conceitos que serão
tratados ao longo deste trabalho, analisamos possíveis relações entre
movimentos sociais, educação, cidadania e formação de professores, buscando
apoio em alguns autores que expressam nosso pensamento a respeito do tema.
Segundo Gohn (1994, p. 11-16) os movimentos sociais e a educação se
relacionam a partir de um elemento de união: a cidadania. Com base na autora,
apresentamos várias abordagens e concepções do termo cidadania
desenvolvidas ao longo da história e decorrentes dos processos de transformação
da sociedade.
No liberalismo, desde a Revolução Francesa, a cidadania estava ligada à
propriedade. Assim, a sociedade era divida em cidadãos-proprietários, os
burgueses, e não-cidadãos e não proprietários, a classe dos trabalhadores.
Ainda no século XVIII, ocorre uma mudança nessa concepção. Com o
desenvolvimento do racionalismo e, por conseguinte, com a valorização da
autonomia da razão, almejava-se um homem livre e consciente, um sujeito
histórico capaz de modificar a realidade. Assim, a cidadania passa a ser abordada
como uma questão educativa e as diferenças sociais passam a ser vistas como
diferenças de capacidade.
No século XIX, com a consolidação do capitalismo, a educação
passa a ser pensada como mecanismo de controle social, visando à ordem ou o
convívio social harmonioso, passando a ser utilizada para disciplinar as massas e
prepará-las para a divisão social do trabalho, de modo que o essencial não era
instruir, racionalizar o indivíduo, mas racionalizar a vida econômica, a produção, o
tempo das pessoas, o ritmo dos corpos, a disciplina das mentes. A cidadania
passa a ter, então, uma conotação moral, traduzida como o disciplinamento para
o convívio social harmônico.
No século XX, passa a ser enfatizada a questão dos direitos e
deveres dos indivíduos, porém, menos como direitos e mais como deveres. O
64
Estado passa a ser o interlocutor da sociedade, pois é ele quem passa a
regulamentar os direitos dos cidadãos e a restringi-los. A cidadania deixa de ser
uma conquista da sociedade civil e passa a ser competência do Estado. E a
compreensão de cidadania fica vinculada à idéia do cidadão civilizado que teria
superado os estágios iniciais de convivência grupal, da barbárie, para estágios
avançados, modernos, de convivência harmoniosa na sociedade urbanizada.
Buscando uma nova perspectiva, a autora aponta o conceito de
cidadania coletiva, elaborada a partir de grupos organizados da sociedade civil,
através de seus movimentos. Aqui, os movimentos sociais surgem como um novo
ator histórico enquanto agente de mobilização e pressão por mudanças sociais,
como conseqüência das diversas e grandes insatisfações e misérias geradas pelo
desenvolvimento explorador do capitalismo. Assim, o cidadão coletivo participa de
diferentes movimentos sociais, reivindicando interesses da coletividade de
diversas naturezas. Surgem movimentos ligados aos direitos humanos e sociais,
movimentos étnicos, ecológicos, ligados às questões de moradia, saúde,
educação e trabalho, movimentos de mulheres, de homossexuais, movimentos
pela paz, dentre outros.
A autora nos fala ainda da importância da educação para o
desenvolvimento da cidadania e, por suposto, da importância da participação da
Educação nos movimentos sociais, considerando a opção pela concepção da
cidadania coletiva.
A educação ocupa lugar central na acepção coletiva da cidadania. Isto
porque ela se constrói no processo de luta que é, em si próprio, um
movimento educativo. A cidadania não se constrói por decretos ou
intervenções externas, programas ou agentes pré-figurados. Ela se
constrói como processo interno, no interior da prática social em curso,
como fruto do acúmulo das experiências engendradas. (GOHN, 1994,
p.16)
E ainda, valorizando o caráter educativo do próprio movimento
social, a autora acrescenta:
Os movimentos sociais, das diferentes camadas sociais, com suas
demandas, organizações, práticas e estruturas, possuem um caráter
educativo, assimilável aos seus participantes e à sociedade mais ampla.
Os resultados deste processo traduzem-se em modos de construção da
cidadania político-social brasileira. (GOHN, 1994, p.111)
65
Queremos ressaltar, neste processo de aprendizagem, a potencialidade
de produção cultural dos movimentos sociais, pois além das experiências vividas
e das trocas interculturais que lhes são próprias, os movimentos sociais também
podem desenvolver símbolos que, por um lado, os identificam e, por outro lado,
promovem novas formas de compreensão da realidade, gerando assim uma
transformação de ordem cultural. Gohn enfatiza que nos movimentos sociais
aprende-se a criar códigos específicos para solidificar as mensagens e as
bandeiras de luta, tais como as músicas e os folhetins. (1994, p. 19)
E ainda, como nos mostra Bocayuva, os movimentos sociais
constituem um objeto que atravessa diversos campos de força e
espaços simbólicos de significação, e que dão suporte à trama da vida
social. (...) Os significados e os efeitos materiais de que eles são
portadores muitas vezes podem ser interpretados pelos seus resultados,
na instituição de novos patamares e relações sociais. (2000, p. 92)
Arroyo também enfatiza o caráter radicalmente pedagógico dos
movimentos sociais, considerando que a participação nesses movimentos pode
ser experimentada como vivências existenciais totalizantes e, portanto,
significativas.
... porque os movimentos sociais teriam essas virtualidades educativas
tão de raiz? Uma das suas características é seu envolvimento
totalizante. Quando em movimento, os sujeitos vivem em torno do que e
como estão sendo, consequentemente, todas as dimensões de sua
condição existencial entram em jogo. Frequentemente suas vidas são
postas à prova em situações de risco. Nos momentos de mobilização se
vivenciam situações limites. De um lado, como ponto de partida e
motivação as carências existenciais no limite e de outro lado coletivos
se articulam em processos de luta e reivindicação tensos, arriscando o
emprego, a segurança, a vida, a identidade...
(2003, p. 36 -
grifos do
autor)
Para conceber o caráter educativo dos movimentos sociais nestas
perspectivas, é necessário compreender a educação para além da transmissão
de conhecimentos ou do aprendizado de conteúdos programáticos específicos.
Também é necessário compreender o espaço de aprendizado para além da sala
de aula ou do interior das escolas. É ainda necessário superar técnicas e
instrumentos reducionistas e ousar o investimento em processos de
aprendizagem que permitam vivências complexas, mas que não garantem ao
66
professor nem o controle, nem a visibilidade das relações diretas de causa e
efeito desse mesmo processo.
Quanto à formação de professores, não nos referimos aqui aos processos
formais ou sistemáticos de capacitação. Referimo-nos ao processo de formação
contínua do professor, construído no seu cotidiano, na sua história individual e
coletiva, decorrente das múltiplas relações e interações, tanto de sua prática
pedagógica, quanto de sua participação em quaisquer outras atividades, como
nos mostra Bastos
A formação das professoras e dos professores se em um processo
contínuo de relações entre os diferentes espaços/tempos de formação,
que em verdade, constituem uma verdadeira rede de saberes e de
práticas. É possível dizer, portanto, que a formação dos profissionais de
educação concretiza-se ao longo de sua vida profissional, pelos
espaços por onde estes professores e professoras transitam. (2000, p.
18)
Ao considerar os vários espaços/tempos de formação dos
professores, o autor destaca o da ão política, atribuindo importância aos
movimentos sociais para essa formação.
Mas, para tal processo de formação, a concepção de produção do
conhecimento deve ser repensada. Este tipo de aprendizado não obedece à
concepção clássica do conhecimento enquanto uma construção linear, seriada ou
seqüencial. Para explicitar a concepção de produção de conhecimento que,
segundo o autor, possa dar conta da complexidade das relações entre vários
sujeitos na prática social cotidiana, ele nos apresenta a metáfora da rede.
A rede para entendermos o conhecimento em seu processo de
construção nos indica o entrelaçamento de suas vias na constituição
de nós, conexões e relações de reciprocidade, que impossibilitam
pensarmos nos saberes como elementos estanques,
compartimentalizados e isolados uns dos outros. Desta forma, em rede,
o conhecimento deve ser pensado na interação de seus muitos
caminhos no diálogo entre eles, na consolidação de espaços/tempos
de troca que se dão na relação direta ou indireta dos fios/saberes da
malha/vida. (BASTOS, 2000, p.25)
Oliveira e Alves, discutindo os limites do paradigma da racionalidade
moderna e enfatizando a necessidade da interação entre a teoria e a prática na
construção cotidiana e processual do conhecimento e do aprendizado, também
67
nos mostram a noção de rede ou tessitura do conhecimento como possibilidade
apontada pelos novos paradigmas da Ciência e da Educação.
A noção de tessitura do conhecimento em rede busca superar não
o paradigma da árvore do conhecimento como também a própria forma
como são entendidos os processos individuais e coletivos de
aprendizagem (...) Ao passo que a forma da árvore, própria do
pensamento moderno, pressupõe linearidade, sucessão e
sequenciamento obrigatório, do mais simples ao mais complexo, da
teoria para a prática, a noção de rede exige considerar a
horizontalidade das relações entre os diferentes conhecimentos. Além
disso, a árvore pressupõe a ação externa como elemento fundador da
“construção” de conhecimentos ao passo que a noção de tessitura do
conhecimento em rede pressupõe, ao contrário, que as informações às
quais são submetidos os sujeitos sociais passam a constituir
conhecimento para eles quando podem enredar-se a outros fios já
presentes nas redes de saberes de cada um, ganhando, nesse
processo, um sentido próprio...
(2006, p. 594 -
grifos das autoras)
As idéias de rede e tessitura estiveram sempre presentes no movimento
“Tecendo a Paz”, tanto em sua concepção e seu processo de organização quanto
na construção objetiva de seu símbolo: a colcha de retalhos.
O processo de auto-organização do movimento e a horizontalidade das
relações entre os participantes, expressa pelas insistentes manifestações das
coordenadoras em não constituir uma liderança central ou hierárquica, decorrem
exatamente das idéias de rede e tessitura que marcam a proposta e o símbolo
deste movimento social e que exigem, necessariamente, uma perspectiva de
reestruturação do poder tradicional e culturalmente instituído.
O aprendizado advindo dessa experiência mostrou-se o importante e
perene que acabou motivando o desenvolvimento desta pesquisa. Sabemos que
esse aprendizado tem uma extensão maior daquela que conseguiremos abordar
neste trabalho, pois esse movimento envolveu muitos e diversos tipos de
participações, não apenas no âmbito acadêmico ou das instituições de saúde,
mas também de toda a sociedade. No entanto, limitaremos a análise dessa
experiência ao aprendizado de professores que dela participaram e,
consequentemente, da contribuição do movimento para sua formação e
desenvolvimento da prática pedagógica.
68
CAPÍTULO II
69
DA EXPERIÊNCIA À REFLEXÃO, DA PRÁTICA À TEORIA... ESTUDANDO
[sobre a democracia] Tal constituição é muito capaz de ser a mais
bela das constituições. Tal como um manto de muitas cores, matizado
com toda a espécie de tonalidades, também ela, matizada com toda a
espécie de caracteres, apresentará o mais formoso aspecto. E talvez
que, embevecidas pela variedade do colorido, tal como as crianças e as
mulheres, muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais bela.
(PLATÃO, 1987, p. 387)
1. Universidade, formação de professores e transição de paradigmas
O momento histórico atual, caracterizado pela transição de paradigmas,
traz uma necessidade de transformação da Ciência e dos modos de produção do
conhecimento, diante da crescente complexidade das demandas humanas e
sociais, tentando superar a fragmentação do pensamento e das ações, a caminho
de uma abordagem integralizadora do homem e seu contexto.
Neste panorama, as concepções de educação, ensino e pesquisa
também sofrem transformações, abraçando os conceitos de interdisciplinaridade,
construção coletiva de conhecimento, cidadania, ampliação das redes de trocas e
relações sociais, provocando um forte impacto no processo de formação de
professores que necessitam transformar a si próprios para transformar suas
práticas pedagógicas, visando a atender as necessidades atuais.
No entanto, a transformação de professores e de suas práticas
pedagógicas não deve ser estudada de modo a não tecer relações entre a prática,
as instituições de ensino e a sociedade em geral, pois tal transformação é fruto de
um complexo processo histórico de construções culturais e institucionais. Da
mesma forma que não se pode separar conhecimento, cultura e sociedade,
também não se pode separar universidade, formação de professores e práticas
pedagógicas.
Segundo Cunha, não se trata apenas de uma nova didática, mas de uma
ruptura com as formas de entender o conhecimento e o mundo. A autora destaca
ainda que a transformação do ensino e da pesquisa será possível somente
70
quando for construído um novo paradigma de ensinar e aprender na sociedade e,
por conseguinte, na universidade. (1998, p.13)
Paradigma aqui pode ser definido como a totalidade de pensamentos,
percepções e valores que formam uma determinada visão de realidade, uma
visão que é a base dos modos como uma sociedade se organiza. (CAPRA, 1988,
p.17).
Para Morin, o conhecimento intelectual organiza-se em função de
paradigmas que selecionam, hierarquizam, rejeitam as idéias e as informações,
bem como em função de significações mitológicas e de projeções imaginárias.
Assim se opera a construção social da realidade. (2002, p. 25)
Uma transição paradigmática é marcada por períodos de crise e, embora
tenha sua origem na construção histórico-social, encontra nessa própria história
uma grande resistência às mudanças inerentes aos novos paradigmas, uma vez
que os hábitos e as tradições encontram-se arraigados na cultura e, por
conseguinte, nas diferentes formas de organização individual e social. Assim
sendo, as mudanças processam-se lentamente e são freqüentemente marcadas
por conflitos, resistências e sentimentos de desestabilização.
Dentre muitos autores que têm apontado a passagem do século XX para
o século XXI como um momento de construção de novos paradigmas, podemos
destacar Boaventura de Souza Santos. Buscando identificar os principais
aspectos que marcam a transição paradigmática no campo da ciência, de uma
abordagem racionalista, mecanicista, objetiva, estável e quantitativa da natureza,
para uma visão dinâmica, interativa, relativa, subjetiva e qualitativa, o autor nos
apresenta os conceitos de paradigma dominante e paradigma emergente,
ressaltando ainda que essa transição é decorrente da própria Ciência, em parte
por seus avanços e novas descobertas, em parte pela percepção de seus limites
para atender à crescente complexidade das demandas humanas. (SANTOS,
2005, p. 60-74)
Segundo o autor, o paradigma dominante, fundado sobre o positivismo e
marcado pela física Newtoniana, caracteriza-se pela exclusividade da
racionalidade científica como conhecimento confiável; pela matematização e
71
quantificação da natureza; pelo rigor e precisão dos meios de medição; por uma
crença na neutralidade e objetividade do cientista que faz a medição; por uma
visão de natureza estável, passiva, inerte, mecânica e eterna, sobre a qual o
homem tem domínio e controle; pelo determinismo mecanicista e pela
causalidade; por leis genéricas e estáveis; pela idéia de ordem e linearidade
progressiva, pela concepção de tempo e espaço como absolutos.
O paradigma emergente, construído lentamente a partir das revoluções
científicas que marcaram o início do século XX, vem recebendo influência de
grandes cientistas da Física, da Química e da Biologia. Tem seu marco em
Einstein que trouxe os conceitos de relatividade e simultaneidade, transformando
as concepções de tempo e espaço. Dentre outros, recebe de Heisenberg e Bohr
as idéias de leis probabilísticas, do princípio da incerteza, da subjetividade e da
não neutralidade do cientista sobre o objeto pesquisado, uma vez que, através
das pesquisas da mecânica quântica, percebe-se que quando o observador mede
um objeto, necessariamente interfere nele; com Ilya Prigogine, através da teoria
das estruturas dissipativas, da ordem através das flutuações e das noções de
sistemas abertos, desenvolvem-se as idéias de imprevisibilidade, instabilidade e
mecanismos não lineares de organização: lógica da auto-organização, da
espontaneidade, da desordem, da criatividade e do acidente; Erich Jantsch
desenvolve o paradigma da auto-organização; David Bohn desenvolve a teoria da
“ordem implicada”; Fritjof Capra busca o reencontro da Física contemporânea
com o misticismo oriental.
Utilizando-se dos conceitos de paradigma emergente e paradigma
dominante desenvolvidos por Santos e visando analisar a formação do professor
universitário diante da transição de paradigmas, Cunha (1998, p. 9-31) analisa o
desenvolvimento da prática pedagógica e da construção do conhecimento nestas
duas concepções. Com base nesse estudo, elaboramos um quadro comparativo,
com o objetivo de identificar as principais diferenças entre elas e suas implicações
na prática docente, diante do ensino tradicional e da nova proposta. (QUADRO 1)
72
QUADRO 1
PARADIGMA DOMINANTE PARADIGMA EMERGENTE
Concepção positivista: observação objetiva,
neutra, mensurável, constante; verdades
universais e atemporais; construção linear
do pensamento
Concepção baseada nos conceitos da
Astrofísica de Einstein e Mecânica Quântica
de Heisemberg e Bohr como:
relatividade,
simultaneidade, não neutralidade,
pensamento dinâmico movido por forças
contraditórias
Separação das ciências naturais e humanas,
reconhecimento do estatuto científico para
as ciências naturais
Integração entre ciências naturais e humanas
com mútuas influências na estruturação
destas ciências
Conhecimento pronto, acabado, universal,
atemporal
Conhecimento contextualizado, processual,
provisório, relativo, dinâmico, construído
historicamente, a partir das necessidades
humanas e sociais
Reprodução do conhecimento, ênfase na
memorização e na precisão
Construção do conhecimento a partir do
desenvolvimento de análise, capacidade de
compor e recompor dados, informações,
argumentos e idéias
A síntese do professor é passada aos
alunos
A síntese é produto das análises feitas pelos
alunos
Negação e punição do erro no processo de
aprendizagem, busca de certezas
O erro, as vidas e as incertezas são
compreendidas como parte do processo de
aprendizagem e construção do conhecimento
O professor ou pesquisador é neutro,
imparcial; a relação professor-aluno é
objetiva
A história do professor, seu contexto, sua
subjetividade e sua condição existencial é o
ponto de partida da sua prática pedagógica; a
relação professor-aluno é intersubjetiva
O professor é a fonte da informação e deve
ter todas as respostas prontas, sem
demonstrar dúvidas ou insegurança
A prática social e as perspectivas do futuro
são fontes de conhecimento, sobre as quais
os professores e alunos devem debruçar-se
para desenvolver habilidades sócio-
intelectuais para compreender criticamente a
realidade
Escola como “normatizadora” de
comportamentos sociais, manutenção do
autoritarismo na relação professor-aluno,
com ênfase na disciplina e na obediência
Escola como espaço de construção de
cidadania e desenvolvimento de pensamento
crítico; compreensão do aluno como produtor
de história e novas relações sociais
Estrutura curricular baseada na disciplina,
conhecimento baseado na especialidade
Estrutura curricular interdisciplinar, produção
do conhecimento através da relação entre as
diferentes disciplinas que giram em torno de
um projeto social e acadêmico
As disciplinas caracterizam-se como
“espaços de poder e propriedade”, com
fronteiras rígidas que definem as matérias e
os conteúdos; defesa das corporações
profissionais
Redistribuição do poder e fronteiras flexíveis
na indicação de conteúdos; reestruturação do
poder nas relações sociais, acadêmicas e
profissionais
Ênfase nas partes Ênfase na relação partes-todo e todo-partes
Ênfase na informação e no conteúdo Ênfase na formação e no desenvolvimento de
habilidades sócio-intelectuais
Pesquisa fora do alcance da graduação,
baseada em metodologias rígidas, de
acesso restrito aos “iniciados”; não admite a
dúvida; privilegia a teoria em detrimento da
prática; “elitização” da pesquisa e restrição
de acesso ao conhecimento produzido
Indissolubilidade entre ensino, pesquisa e
extensão; pesquisa é atitude de investigação
própria do sujeito cognoscente; aceitação da
dúvida como forma de construir
conhecimento; valorização da relação teórico-
prática; socialização da pesquisa enquanto
produto e produção de conhecimento;
valorização do cotidiano; busca de
aproximação entre ciência e senso-comum
73
Como podemos notar a prática docente diante do paradigma emergente,
não se depara apenas com uma mudança de técnicas e recursos pedagógicos,
mas, principalmente, com uma profunda transformação cultural que possibilite
uma nova forma de abordar a realidade, de estabelecer relações interpessoais e
de conceber a Ciência e a produção do conhecimento. Nesta transformação
cultural podemos identificar a necessidade de uma profunda reestruturação das
relações de poder, de modo a possibilitar, de fato, as interações e as trocas,
mesmo diante da diversidade.
Assim, as rupturas necessárias para dar continuidade ao processo de
transformação da Educação, seguindo as atuais tendências paradigmáticas,
devem ser compreendidas como uma complexa tarefa que implica profundas
mudanças culturais, não apenas cognitivas, mas também de hábitos e atitudes e
ainda de estruturas sociais e institucionais historicamente construídas, para
efetivar-se como uma práxis transformadora.
Se retomarmos a origem da universidade no Brasil, assim como as
mudanças que sofreu com a Reforma Universitária durante o período militar,
podemos perceber que a universidade hoje tão aclamada como instrumento de
transformação social, tendo em vista uma sociedade mais justa, efetivamente
democrática e participativa, está muito distante de seus objetivos iniciais.
Segundo Cunha (1980), a origem da universidade no Brasil, no início da
República, foi marcada pela idéia de que a universidade poderia dar bases à
preparação de uma elite competente e capaz de governar, não para
compreender e traduzir as aspirações populares, mas, antes de tudo, para
desenvolvê-las e incentivá-las. Esse pensamento, marcado pela posição liberal,
também era influenciado pelo pensamento positivista, que marcou
profundamente o ensino no Brasil, assim como sua organização social e política.
Como marcas do positivismo daquela época podemos destacar o atendimento às
demandas da burguesia, o combate ao poder da Igreja e o fortalecimento do
poder da Ciência, o combate aos levantes populares e a fundamentação das
posições republicanas. Assim, podemos concluir que a universidade surgiu no
Brasil, com o objetivo de prover as classes dominantes das necessidades que
74
pudessem alimentar e garantir a manutenção dessas mesmas classes na
posição dominante.
Demartini (2000) também aponta que, na sua origem, as escolas
brasileiras foram construídas como instrumentos do Estado, da Ciência e do
progresso, vinculadas à cultura burguesa-branca-européia, fundadas na lógica
colonial e na perspectiva de homogeneização da cultura nacional e, portanto, nos
mecanismos de exclusão. No entanto, ela observa que a diversidade cultural,
inerente à constituição histórico-social do Brasil, sempre se fez presente também
na história da educação brasileira. Diante disso, a autora critica os estudos que
analisam a interculturalidade sob uma ótica binária, ou seja, cultura dominante
versus cultura dominada, alertando para a necessidade de abordar essa questão
a partir de sua complexidade inerente.
Podemos concluir, pela constituição histórica do Brasil, que é inevitável a
existência de uma cultura dominante, mas também é inevitável a própria
diversidade cultural. No entanto, essas relações interculturais são permeadas
pelas relações de poder que lhe são inerentes. Embora o modelo dominante
busque a homogeneização, a realidade concreta resiste, ou não, de diferentes
formas a essas imposições. Podemos considerar, portanto, que a
interculturalidade o é uma proposta, mas uma condição humana e social.
Assim, a alise desta questão não deve centrar-se apenas nas diferenças
culturais mas, principalmente, nos mecanismos de poder e dominação de uma
cultura sobre a outra e nas relações geradas a partir desses mecanismos. Essa
análise é complexa e não deve seguir uma lógica binária.
Outro período que merece destaque na constituição da universidade no
Brasil é o período da Ditadura Militar, de 1964 a 1985, com a Reforma
Universitária. Segundo Germano (2000), a Reforma Universitária de 1968
objetivava a disseminação da concepção de mundo da classe dominante e a
formação de intelectuais a partir desse pensamento, a reprodução da força de
trabalho e o suporte social ao desenvolvimento capitalista, atribuindo à Educação
o caráter de controle político e ideológico comprometido com o processo de
produção capitalista e acumulação de capital, através da eliminação do exercício
da crítica social e política, do anticomunismo, do antiintelectualismo e do
75
terrorismo cultural. Como fruto dessa Reforma Universitária, pode-se apontar a
privatização do ensino, a separação entre ensino e pesquisa e a subordinação da
educação à produção, representada pela teoria do capital humano, como um
vínculo direto da Educação com o mercado de trabalho.
A partir desse processo histórico e de tais influências, podemos perceber
que a construção de uma prática docente efetivamente inovadora, diante do
momento de transição paradigmática que nos encontramos, torna-se uma tarefa
que envolve não apenas a estrutura educacional do país e a organização de
novas formas de ensinar, mas, mais que isso, uma radical transformação cultural
e cognitiva do próprio professor, em seu processo de auto-formação. Mesmo
porque, o modelo de universidade comprometida com a sustentação do capital, e
sua conseqüente adequação ao mercado, não está sedimentado no passado e
resgatado apenas como memória histórica. Ao contrário, este modelo encontra-se
em plena ascensão em nosso país.
Segundo Castanho (2000, p. 36), o modelo de universidade neoliberal-
globalista-plurimodal, constituído nos Estados Unidos, está em plena
emergência no Brasil, tendo sua origem delineada durante o regime militar e seu
fortalecimento na aprovação da nova LDB em dezembro de 1996, assim como
nas demais leis complementares, decretos, resoluções e portarias.
Segundo o autor, a universidade é neoliberal
porque se orienta não mais para as necessidades da nação, mas para
as exigências do mercado; porque se como um empreendimento
como tantos outros, sendo preferível que sua iniciativa seja privada, não
pública; porque sua administração deve atender antes aos requisitos da
eficiência geral do que aos reclamos da participação política; porque
não se mais como instituição que tem um compromisso para
melhorar a vida social, deixando questões como essa ao livre jogo das
forças de mercado; e, enfim, neoliberal porque passa a se definir como
um espaço onde o indivíduo busca instrumentos para o seu serviço.
A universidade também é globalista
porque é o mundo que importa, não mais a nação; porque é a cultura
global, não as particularidades diferenciais, que deve estar na pauta;
porque sua pesquisa não é voltada para o homem concreto que vive
nas cercanias, mas para a informação acessível na grande rede de
computadores interligada planetariamente.
76
E ainda, a universidade é plurimodal, uma vez que
seu figurino não é o de uma instituição pluridisciplinar onde se cultiva
o saber pela pesquisa, a formação pelo ensino e o serviço pela
extensão. Agora, a universidade passa a ser plurimodal, ou seja, como
Proteu, ela assume mil formas, tantas quantas as necessidades do
mercado e da integração dos mercados exigirem.
Diante da constatação de que convivemos, simultaneamente, com uma
estrutura educacional voltada à manutenção do status quo e uma proposta
inovadora que compreende a educação como instrumento de transformação
social, faz-se necessário, aos atuais educadores, navegar por entre as
contradições, mantendo acesas as lanternas da crítica e das buscas
epistemológicas, para possibilitar, de modo consciente, suas escolhas e suas
estratégias de ação.
Sobre estas contradições, encontramos no Relatório para a UNESCO da
Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, a seguinte
observação:
A educação enfrenta enormes desafios, e depara com uma contradição
quase impossível de resolver: por um lado, é acusada de estar na
origem de muitas exclusões sociais e de agravar o desmantelamento do
tecido social, mas por outro lado, é a ela que se faz apelo, quando se
pretende restabelecer algumas das “semelhanças essenciais à vida
coletiva”, de que fala o sociólogo francês Emile Durkheim.
(DELORS et
al, 2001, p.51-52)
Diante desta questão, esses autores nos apontam ainda a difícil tarefa de
respeitar a diversidade dos indivíduos e dos grupos humanos, mantendo,
contudo, o princípio de homogeneidade que implica a necessidade de observar
regras comuns. (DELORS et al, 2001, p.51)
Temos aqui colocado o problema da relação entre o individual e o
coletivo, o global e o local, o todo e as partes, o universal e o singular, a
diversidade e a homogeneidade. Não se trata de escolher apenas um dos lados
desses aparentes opostos, num movimento de pensamento binário. Trata-se de
enfrentar a interação mútua entre esses elementos distintos, mas igualmente
constitutivos de uma mesma realidade.
77
O desafio proposto nesse Relatório (DELORS et al, 2001) refere-se ao
desenvolvimento de uma Educação que vise a coesão social, evitando os fatores
de exclusão social, tendo em conta a diversidade de indivíduos e grupos sociais,
evitando os preconceitos étnicos e o totalitarismo e possibilitando as relações
globalizadas sem, no entanto, descaracterizar as relações locais.
Permeados pelos novos paradigmas, percebemos que os conceitos
inovadores de Educação trazem a idéia da construção de um sujeito consciente,
ativo, emancipado e integrado ao processo de construção histórica de seu
contexto sócio-cultural, contemplando o conceito de cidadania. Como reafirma
Morin:
a Educação deve contribuir para a autoformação da pessoa (ensinar a
assumir a condição humana, ensinar a viver) e ensinar como se tornar
cidadão. Um cidadão é definido, em uma democracia, por sua
solidariedade e responsabilidade em relação a sua pátria. O que supõe
nele o enraizamento de sua identidade nacional. (2001b, p. 65)
Buscando uma síntese diante desse panorama, a universidade que
buscamos compreender e construir, na transição paradigmática, pode
caracterizar-se como um espaço de aquisição e produção de conhecimentos
através da integração entre ensino, pesquisa e extensão; desenvolvimento da
prática reflexiva, da crítica social, da criatividade, da sensibilidade e da
potencialidade transformadora do espírito humano; construção de novas
possibilidades de vivência e convivência entre os homens; construção de relações
inter e transdisciplinares; religação dos saberes e integração entre a Ciência, a
Arte e a Filosofia; promoção de auto-conhecimento, de experiências
intersubjetivas, de trocas culturais e vivência com a diversidade; abertura à
sociedade civil, seus movimentos e necessidades e compromisso com a
construção de uma sociedade - local e global - justa, democrática e solidária.
Para enfrentar a construção dessas novas propostas de ensino, que
pressupõem profundas transformações culturais e novas leituras das relações
sociais e de poder, devemos levar em conta também as contradições que residem
nos próprios docentes, uma vez que eles participam e foram formados por essa
mesma matriz cultural e estrutura social. Assim sendo, carregam, em si mesmos,
as marcas, os conflitos, os desejos e os limites desta cultura em transformação.
78
A história da educação brasileira vem constituindo na cultura de seus
professores e alunos a expectativa, os valores e as ações da homogeneização e
da exclusão. Para transformar essa cultura, expressa nas estruturas de
pensamento e ação, é necessário que os professores busquem o conhecimento e
a análise de seu próprio processo de formação, abrindo-se para um minucioso e
corajoso processo de auto-avaliação.
Segundo Morin, mesmo havendo um certo determinismo cultural e uma
tendência à reprodução da cultura dominante, é sempre possível operar uma
transformação cultural e paradigmática, decorrente da própria diversidade
humana, seja de ordem intelectual, psicológica, afetiva ou social. Tal
transformação pode ocorrer se houver condições sociais que permitam o
encontro, a comunicação e o debate de idéias, informações, opiniões e teorias.
Assim, o intercâmbio das idéias produz o enfraquecimento dos dogmatismos e
intolerâncias, o que resulta no seu próprio crescimento. (2002a, p. 34)
Porém, como algumas idéias podem encontrar-se enraizadas a ponto de
determinar ões e sentimentos em níveis nem sempre conscientes, acreditamos
ainda que seja necessário superar a abordagem teórica desta questão e buscar
não apenas diferentes formas de discussão de idéias, mas também vivências
concretas e experiências práticas significativas, que possam gerar efeitos
transformadores nos campos da mente e do corpo, da razão e da emoção, das
idéias e dos símbolos, não somente através da linguagem lógica e científica, mas
ainda através da linguagem artística e metafórica. Ao operar essas experiências,
não devemos esquecer que nossa ação local e microestrutural está em constante
relação com a ação global, contextual e macroestrutural, podendo, ao mesmo
tempo, influenciar ou ser influenciada, gerar ou ser gerada, por ações tanto de
manutenção do status quo, quanto de sua transformação. É necessário manter o
diálogo, a atenção, a crítica, a dúvida, a auto-avaliação e a capacidade de lidar
com o erro, sempre.
Reafirmamos que, focar a atenção na formação do professor e em ações
locais, nesse momento, não implica desprezar ou minimizar a importância das
questões institucionais e sociais inerentes ao processo em análise, pois o trânsito
79
entre o local e o global, entre o individual e o coletivo é um exercício que
buscamos desenvolver neste trabalho. Como bem ilustra Morin
Uma reforma da Universidade suscita um paradoxo: não se pode reformar
a instituição (as estruturas universitárias) se anteriormente as mentes não
forem reformadas; mas não se podem reformar as mentes se a instituição
não for previamente reformada. Existe aqui uma impossibilidade lógica,
mas é desse tipo de impossibilidade que a vida se nutre. (2000, p.15)
Dentre muitas outras formas de abordar esta questão, neste trabalho
focamos, particularmente, a questão da interdisciplinaridade e da
transdisciplinaridade na formação docente e a possibilidade de realizar interações
criativas com a diversidade, entendendo esta como condição inerente à
verdadeira prática inter e transdisciplinar.
A interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade aqui colocadas não se
referem às organizações curriculares que propõem formas de integração,
interação ou aglutinação de diferentes disciplinas no currículo ou nos conteúdos
programáticos, mas sim, às questões epistemológicas, buscando compreendê-las
como metodologias de relações sociais e inter-pessoais, como formas de
compreensão da realidade, como produção de conhecimento, e, portanto, como
desenvolvimento de uma cultura que possa gerar não apenas símbolos e
representações, mas também ações e atitudes que na prática pedagógica sejam
condizentes com os novos paradigmas.
2. Desenvolvendo conceitos
2.1. Diversidade
A diversidade representa a diferença ou o não reconhecimento do outro
como igual a “nós”, seja no campo das idéias, das crenças, dos costumes, das
etnias, das classes sociais, das linguagens, das profissões, das habilidades, das
características de personalidade, dos gêneros, enfim, de tudo aquilo que fizer
parte da constituição das relações humanas. A diversidade aqui é entendida como
condição necessária à prática interdisciplinar e transdisciplinar, uma vez que as
interações entre diferentes disciplinas, pressupõem o enfrentamento de diferentes
80
formas de descrever, analisar, explicar e intervir na realidade. Uma realidade que,
embora descrita de forma fragmentada pelas disciplinas, mantém sua unidade.
A busca de uma interação criativa, solidária e pacífica com a diversidade
não parece, no entanto, uma tarefa fácil e sem conflitos. Ao contrário, a
construção de interações criativas entre as diferenças, pressupõe sofrimento e
superação de conflitos. Não é o vel de sofrimento no enfrentamento desses
conflitos que define a qualidade da interação, mas sim a finalidade e a forma com
que se faz tal enfrentamento.
Se a finalidade for estabelecer a primazia de um dos lados em detrimento
de outro, de modo a eliminar o conflito por meio da força, da negação ou do
esvaziamento do “outro”, então a diversidade foi aniquilada, compreendida como
um mal a ser vencido e, por conseguinte, não houve interações criativas e
solidárias. Aqui, o as relações de poder que definem a vitória de um sobre o
outro, ou seja, qual das diversidades será entendida como “não diversidade”,
como “igual”, como valor universal. E, quando nos referimos às relações de poder,
não nos referimos apenas aos poderes politicamente constituídos e socialmente
reconhecidos, mas às mais diversas formas, e por vezes às formas sutis, de
opressão de um homem sobre outro homem.
Se a finalidade, ao contrário, for estabelecer trocas e interações criativas,
descobrir novas possibilidades de compreender e construir a realidade e contribuir
para a formação de uma sociedade solidária, justa e pacífica, então será
necessário entender o conflito como uma possibilidade de superar fronteiras e
descobrir novos territórios sem, no entanto, desejá-los colonizar. Para tanto, é
necessário reconhecer o outro como outro, não constituído segundo nossa
imagem e semelhança e, mesmo assim, reconhecer seu valor e sua
potencialidade nas relações de troca.
Shiva, física e pacifista indiana, considerando a colonização como um
processo de imposição de uma cultura sobre outras e analisando o processo de
colonização da Índia através da monocultura agrícola em detrimento da
biodiversidade, nos apresenta uma analogia do processo agrícola de monocultura
com o processo de construção social que, igualmente, a partir da lógica da
81
monocultura, busca a homogeneização cultural e assim, a extinção das
diversidades.
A intolerância da diversidade é a maior ameaça à paz de nossos
tempos; em contrapartida, o cultivo da diversidade é a maior
contribuição à paz (...) cultivar a diversidade implica perceber a
capacidade e o valor intrínseco do outro (...) implica abrir mão do
desejo de controle, um imperativo enraizado no medo daquilo que é
livre, um medo que gera a violência (2001, p. 145-146 - grifo da autora).
Hall, analisando o processo de globalização, também nos fala da
homogeneização cultural.
No interior do consumismo global, as diferenças e as distinções
culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma
espécie de ngua franca internacional ou de moeda global, em termos
das quais todas as tradições específicas e todas as diferentes
identidades podem ser traduzidas. Este fenômeno é conhecido como
homogeneização cultural. (2000, p.75 – grifos do autor)
Diante do processo de homogeneização cultural e, em resposta a ele, o
autor identifica uma tendência ao fechamento das identidades locais:
...ao lado da tendência em direção à homogeneização global,
também a fascinação com a diferença e com a mercantilização da etnia
e da alteridade. Há, juntamente com o impacto do global, um novo
interesse pelo local. A globalização (na forma da especialização flexível
e da estratégia de criação de “nichos” de mercado), na verdade, explora
a diferenciação local. Assim, ao invés de pensar no global como
substituindo o local seria mais acurado pensar numa nova articulação
entre o global e o local. (HALL, 2000, p. 77 – grifos do autor)
O autor nos leva a perceber que, na verdade, o próprio conceito de
identidade deve ser revisto. A identidade cultural é compreendida por Hall (2000,
p. 67-89), como sistemas de representação – escrita, pintura, desenho, foto,
simbolismo através da arte ou dos sistemas de comunicação que são moldados
e remodelados a partir das relações sociais constituídas no tempo e no espaço.
Assim sendo, a identidade é dinâmica e tem um caráter histórico, geográfico e
contextual.
Ainda segundo o autor, identidades locais, identidades globais e
identidades híbridas. Pensar em escolher ou valorizar uma destas identidades é
pretender um mundo e uma história sem relações e intercomunicações. Toda
comunicação implica troca, e essas trocas culturais podem gerar alterações nas
82
identidades. O global em detrimento do local ou vice-versa é que pode ser um
problema.
A interculturalidade dos meios de comunicação é uma condição histórica
irreversível. Não seria possível retroceder a estes movimentos de tempo e espaço
que aceleram as trocas culturais e almejar um planeta com sociedades isoladas,
fechadas em si mesmas. Por outro lado, isso não significa que, a partir dessas
trocas, poderíamos almejar uma homogeneização cultural planetária, mas refletir
sobre os fluxos culturais.
A idéia de identidade essencial, estável e fechada deve abrir espaço para
a idéia de identidades abertas, complexas e híbridas. Ao invés de abordamos a
identidade como estática, ela deve ser abordada dinâmica e dialeticamente, com
caráter histórico, geográfico e contextual, de modo a considerar as relações entre
as identidades locais, as identidades globais e as identidades híbridas. Não
devemos pensar no global em detrimento do local, nem no local em detrimento do
global. Resta-nos refletir, portanto, sobre as condições nas quais ocorrem estas
relações, sobre as finalidades e os mecanismos de poder implícitos a tais
relações.
Sob essa perspectiva, a cultura tem uma constituição histórica,
processual, dinâmica, complexa e contínua, onde, não de forma linear, mas
permeada por contradições e complementaridades, as múltiplas relações entre
homens, grupos, povos e nações determinam e são determinadas por outras
tantas múltiplas relações. Nessas relações os jogos de poder, os interesses, as
necessidades e as possibilidades constituem as tramas por onde se tece a
história, não apenas dos grandes fatos marcados como referências históricas,
mas também do cotidiano anônimo dos homens comuns.
Morin, ao definir cultura como o conjunto dos saberes, fazeres, regras,
normas, proibições, estratégias, crenças, idéias, valores, mitos, que se transmite
de geração em geração, se reproduz em cada indivíduo, controla a existência da
sociedade e mantém a complexidade psicológica e social (2001a, p. 56), também
apresenta o caráter dinâmico, interativo e processual de sua constituição
83
histórica, ressaltando a necessidade de visualizar a unidade e a diversidade da
cultura e das culturas:
Os que vêem a diversidade das culturas tendem a minimizar ou a
ocultar a unidade humana; os que vêem a unidade humana tendem a
considerar como secundária a diversidade das culturas. Ao contrário, é
apropriado conceber a unidade que assegure e favoreça a diversidade,
a diversidade que se inscreve na unidade. O duplo fenômeno da
unidade e da diversidade das culturas é crucial. A cultura mantém a
identidade humana naquilo que tem de específico; as culturas mantêm
as identidades sociais naquilo que têm de específico. As culturas são
aparentemente fechadas em si mesmas para salvaguardar sua
identidade singular. Mas, na realidade, são também abertas: integram
nelas não somente os saberes e técnicas, mas também idéias,
costumes, alimentos, indivíduos vindos de fora. (2001a, p. 57).
Sanchis (2001), buscando novas referências para o estudo da identidade
e da cultura e, analisando a crise dos paradigmas nos estudos antropológicos,
identifica na Antropologia Tradicional a tendência de usar a cultura ocidental
dominante, compreendida como estática e estável, como referência para a
pesquisa de outras culturas. Tal perspectiva não atende às atuais demandas do
mundo globalizado que exigem da Antropologia novas metodologias de
investigação científica e novas referências para sua própria identidade. Segundo
o autor, as diferenças têm sido tratadas, tradicionalmente, como desigualdades,
estabelecendo-se relações de dominação entre as culturas de referência e as
culturas marginais. Alterar a lógica dessas relações, buscando relações
interculturais, implica construir novos referenciais para esses estudos. Nesse
cenário, o problema central é compreender e construir novas relações entre o Eu
e o Outro, o uno e o múltiplo.
Martins também nos fala da necessidade de reconhecimento do Outro
para operar essas relações diante da diversidade e das dificuldades inerentes a
essas relações:
Refiro-me à alteridade e à particular visibilidade do Outro, daquele que
ainda não se confunde conosco nem é reconhecido pelos diferentes
grupos sociais como constitutivo do Nós. Refiro-me, também, à
liminaridade própria dessa situação, a um modo de viver no limite, na
fronteira, e às ambigüidades que dela decorrem.
(1997, p.12 grifos
do autor)
84
Este autor, ao descrever uma pesquisa realizada junto a populações
indígenas e trabalhadores rurais no norte do Brasil, para a qual realizou durante
décadas um trabalho solitário de observação e convivência muito próxima com
essas populações, define a zona de fronteira como uma zona de permanente
conflito, e defende que, exatamente por isso, esse é o melhor lugar para se
desenvolver pesquisas sociológicas e compreender as dificuldades e os conflitos
próprios do homem.
A fronteira é, na verdade, ponto limite de territórios que se redefinem
continuamente, disputados de diferentes modos por diferentes grupos
humanos (...) a fronteira de modo algum se reduz e se resume à
fronteira geográfica. Ela é fronteira de muitas e diferentes coisas:
fronteira da civilização (demarcada pela barbárie que nela se oculta),
fronteira espacial, fronteiras de culturas e visões de mundo, fronteiras de
etnias, fronteiras da História e da historicidade do homem. É, sobretudo,
fronteira do humano. Nesse sentido, a fronteira tem um caráter
litúrgico e sacrificial, porque nela o outro é degradado para, desse
modo, viabilizar a existência de quem o domina, subjuga e explora (...) É
nela que nos defrontamos mais claramente com as dificuldades
antropológicas do que é o fazer História, a história das ações que
superam necessidades sociais, transformam as relações sociais e desse
modo fundam e criam a humanidade do Homem. (MARTINS, 1997, p.
11-13 – grifos do autor).
O mesmo autor, ao identificar a fronteira como importante lugar de
pesquisa sociológica, nos adverte sobre os possíveis riscos dessa pesquisa:
... o pesquisador responsável deve mover-se no interior do conflito e da
conflitividade, realizar sua pesquisa como se estivesse num campo de
batalha, também por dentro e não por fora (...) Não apenas porque o
pesquisador deve realizar seu trabalho num cenário de guerra, com
mortos e feridos. Mas, também porque essa guerra põe em confronto,
igualmente mortal, visões de mundo e definições do Outro que
expressam uma rica e difícil diversidade de concepções do gênero
humano (...) A fronteira é, no fundo, exatamente o contrário do que
proclama o seu imaginário e o imaginário do poder que muito
freqüentemente se infiltra no pensamento acadêmico (...) Em face dos
confrontos radicais do humano e, sobretudo, em face da morte
constantemente presente, é impossível pesquisar e conhecer por meio
da hipocrisia convencional e pasteurizada das recomendações de
manual. (MARTINS, 1997, p. 16-17)
Martins (1997) nos coloca diante de importantes reflexões que, em nosso
entendimento, não devem ser utilizadas de modo pessimista ou derrotista, como
se nada mais houvesse a fazer senão admitir os limites para a transposição das
fronteiras, mas sim de modo a avaliar os limites históricos da humanidade,
tentando expandi-los diante das necessidades e do sofrimento dessa mesma
85
humanidade, sem, no entanto, perder de vista as grandes dificuldades, os riscos e
as incertezas próprias dessa busca.
Tendo em vista o compromisso com a responsabilidade do pesquisador
de que nos fala Martins e tentando não perder de vista a esperança, neste
trabalho procuramos localizar a vivência com a diversidade como uma
necessidade histórica a ser enfrentada, deixando explícito, desde já, que não nos
referimos a possíveis modismos que têm utilizado a diversidade como um
discurso pronto, vazio de significado e reproduzido pela sociedade de consumo,
nem que a reduzimos a uma romântica convivência pacífica, mas hipócrita, com o
que se tem chamado, de modo estereotipado, de diversidade, e nem que a
diversidade seja exclusividade de alguns tipos de indivíduos ou grupos sociais.
Sem negar que indivíduos e grupos sociais têm sido historicamente
vitimados e oprimidos, por serem considerados inferiores a uma dada referência
convencionada e atribuída por grupos hegemônicos que se autorizam à tarefa de
normatização social, queremos abordar a diversidade como uma condição
inerente ao ser humano. Assim sendo, os diferentes processos de exclusão não
ocorrem simplesmente pela existência da diversidade, mas pela necessidade de
impor algumas diversidades sobre outras. Isso somente é possível pelo uso do
poder, em todas as suas formas. E isso ocorre sempre que a finalidade das
relações humanas não é a própria humanidade, mas sim os interesses de um
grupo ou indivíduo em detrimento dos interesses de outros grupos ou indivíduos.
Estamos aqui diante de uma questão ética.
Ao mesmo tempo em que buscamos abordar a diversidade como
condição humana, também devemos cuidar para não cairmos em relativismos que
nos levariam à paralisação. Aqui se coloca novamente a questão da unidade e da
multiplicidade, do local e do global, do individual e do coletivo. Se pensarmos a
diversidade apenas do ponto de vista individual ou de pequenos grupos sociais,
provavelmente tenderíamos a análises reducionistas ou liberais, que não
expressam as intenções deste trabalho. O desafio colocado é, portanto, verificar
as possibilidades de convivência, respeito e interações criativas com a
diversidade de modo a garantir, ao mesmo tempo, o bem-estar e as liberdades
86
individuais e coletivas, assim como as condições naturais e culturais de vivência e
sobrevivência da humanidade.
Como nos adverte Carvalho
Para o relativismo, as culturas são unidades auto-suficientes, fechadas
e coerentes em si mesmas. Se essa condição pôde propiciar uma
prevenção contra invasões externas, nos dias atuais ela representa uma
defesa identitária regressiva, por vezes xenofóbica, que tenta se manter
a qualquer preço, apesar da ampliação das mestiçagens e hibridizações
interculturais. (2003a, p. 8)
E ainda,
Os relativistas encontram um álibi perfeito para escapar desse dilema
entre o próprio e o alheio, entre identidade e liberdade: optam por
permanecer caudatários da objetividade neutra, pseudo-isenta e, ao
mesmo tempo, autoritária da via etnográfica, malgrado as dificuldades
de pesquisa de campo a qualquer pesquisador. É bem verdade que se
empenham em construir e, de fato, o fazem um amplo espectro de
diferenças que se bastam a si mesmas, que se imitam e se rivalizam
mutuamente. Produzem diferenças de diferenças. O que não
conseguem é articulá-las a processos gerais de identificação e
universalização que, desde sempre, marcam a diáspora sapiental.
Obtêm sucesso na descrição dos outros, falham inexoravelmente na
interpretação da práxis e das práticas culturais em sua totalidade.
(2003a, p. 9-10)
Buscando transcender as dificuldades próprias dessas pesquisas
antropológicas, o autor aponta a complexidade desenvolvida por Edgar Morin
como uma proposta de abordagem transdisciplinar que, religando diferentes
saberes, visa integrar a unidade e a multiplicidade, o local e o global, o particular
e o universal, o indivíduo e a espécie humana, a natureza e a cultura:
Antirelativista sem deixar de reconhecer as alteridades, universalista
sem negar as diversidades, o pensamento complexo se empenha na
árdua tarefa de defender a incerteza racional, propugnar pela
biodegradabilidade das idéias, insistir no poder do diálogo, lutar pela
regeneração planetária, recalcar a barbárie da cultura. (CARVALHO,
2003a, p. 15)
Visando ampliar o diálogo intercultural e fornecer referências para
enfrentar o difícil trânsito pelas fronteiras da diversidade, Morin nos fala da
necessidade de desenvolver a ética da compreensão, atribuindo à palavra
compreensão o significado de abraçar junto: o texto e seu contexto, as partes e o
todo, o múltiplo e o uno. (2001a, p. 94)
87
Segundo o autor, dois tipos de compreensão: a compreensão
intelectual ou objetiva e a compreensão humana intersubjetiva. A primeira está
ligada à informação, à inteligibilidade, à explicação e ao conhecimento objetivo. A
segunda está ligada ao conhecimento intersubjetivo, conhecimento de sujeito a
sujeito, para o qual é necessário um processo de abertura, empatia, identificação,
projeção, generosidade. (MORIN, 2001a, p. 95)
Os principais obstáculos à compreensão o: a indiferença, o
egocentrismo, o etnocentrismo, o sociocentrismo e o espírito redutor. Os
primeiros levam à tendência de situar no centro da análise as suas próprias
referências, considerando secundário, insignificante ou hostil tudo que lhe parece
estranho ou distante. O espírito redutor e simplificador não reconhece a
complexidade própria do sujeito, podendo reduzi-lo a apenas um de seus
aspectos. (MORIN, 2001a, p. 95-99)
Felizmente o autor nos apresenta também os facilitadores para a
compreensão, embora devamos admitir a grande dificuldade para exercitar esses
facilitadores. Segundo o autor, são facilitadores para a compreensão: o “bem-
pensar”, a introspecção, a consciência da complexidade humana, a abertura
subjetiva em relação ao outro, a interiorização da tolerância e a cultura planetária.
(MORIN, 2001a, p. 100 – 104).
O “bem pensar” refere-se ao modo de pensar que permite apreender em
conjunto o texto e o contexto, o ser e seu meio ambiente, o local e o global, em
suma, o complexo (...) Permite-nos compreender igualmente as condições
objetivas e subjetivas.
A introspecção está relacionada à prática do auto-exame permanente,
pois, a compreensão de nossas fraquezas pode ser a via para a compreensão
das fraquezas do outro. A introspecção permite que nos descentremos em
relação a nós mesmos e, por conseguinte, que reconheçamos e julguemos nosso
egocentrismo. Permite que não assumamos a posição de juiz de todas as coisas.
A consciência da complexidade humana consiste em não reduzir o ser à
menor parte dele próprio, nem mesmo ao pior fragmento de seu passado,
88
podendo-se aprender, por exemplo, a compaixão do sofrimento dos humilhados e
a verdadeira compreensão.
A abertura subjetiva em relação ao outro consiste em buscar simpatizar e
compreender os que nos são estranhos ou antipáticos.
A cultura planetária é a mundialização das compreensões e pressupõe: a
comunicação entre as diferentes culturas, povos e nações; o reposicionamento da
cultura ocidental que vem sendo considerada referência e a abertura para outras
culturas e formas de conhecimento; a compreensão entre sociedades
democráticas abertas; a compreensão da cidadania terrestre, enfim, a difícil
interação entre o local e o global. Devemos observar que essa mundialização
deve estar ligada a uma ética, a uma finalidade a serviço da humanidade, pois,
segundo o autor, a única verdadeira mundialização que estaria a serviço do
gênero humano é a da compreensão, da solidariedade intelectual e moral da
humanidade. (p.102)
A interiorização da tolerância supõe convicção, fé, escolha ética e, ao
mesmo tempo, aceitação da expressão das idéias, convicções e escolhas
contrárias às nossas. A tolerância supõe sofrimento ao suportar a expressão de
idéias negativas e a vontade de assumir este sofrimento. Note-se que aqui são
reafirmadas duas importantes ponderações para a análise das relações diante da
diversidade: a tolerância não pressupõe a ausência, negação ou anulação de um
conjunto de idéias, crenças e posições daquele que se dispõe à tolerância. Ao
contrário, mesmo convicto de suas idéias, ele se abre para a escuta do outro. No
entanto, essa escuta não se sempre harmoniosa, passiva e tranqüilamente. Ao
contrário, ela pressupõe sofrimento. A questão central é que aquele que se dispõe
à tolerância, aceita, suporta ou escolhe o sofrimento advindo dessa escuta.
Dessas tensões ou desses paradoxos podem surgir movimentos criativos, novas
idéias, novas possibilidades. O autor ainda nos esclarece sobre uma indagação
que se torna freqüente nas reflexões sobre a tolerância: A tolerância vale, com
certeza, para as idéias, não para os insultos, agressões ou atos homicidas.
89
Buscando estreitar o sentido do termo “tolerância” utilizado por Morin, de
modo a não caracterizá-lo pelos possíveis sentidos de indulgência ou indiferença,
encontramos em Pádua uma consideração esclarecedora:
Não se trata de abrirmos mão de nossas próprias convicções, nem de
“tolerar” o outro, ou “fazer de conta” que se ouve o outro, mas de
investirmos nas possibilidades da inter-relação e da convivência, cientes
da diversidade cultural, social e econômica do mundo contemporâneo e
também das contradições e dos antagonismos presentes em nosso
tempo. Assim, a tolerância deve assumir outro sentido, ou seja, o
princípio democrático que conclama cada um de nós a respeitar a
expressão de idéias antagônicas às nossas, como um dos passos para
a construção de uma ética da compreensão, da solidariedade e da
convivência com o outro.
(2005, p. 36)
Os autores apresentados nos levam a compreender o caráter dinâmico,
interativo e histórico da fronteira. Ao nos referirmos ao trânsito ou à transposição
das fronteiras não nos referimos à possibilidade de acabar com as fronteiras, pelo
contrário, elas constituem definições importantes de territórios, pois, a total falta
de definição de territórios nos sugere a idéia de homogeneização, uniformização e
monocultura. Nesta perspectiva, retomamos a idéia de fronteiras abertas e
fechadas, ao mesmo tempo. O que buscamos analisar neste trabalho são as
finalidades e os mecanismos que determinam as relações nas fronteiras. Assim,
tal análise deve ser feita a partir de uma discussão ética e política.
Referente a esta questão, Shiva, fazendo analogias entre a biodiversidade
e a diversidade cultural, analisando a emergência da biotecnologia para a
manipulação da vida e partindo do princípio que as questões ecológicas
combinam-se com a justiça social, a paz e a democracia (2001, p. 152), convida-
nos para uma importante reflexão: A produção de espécies transgênicas tem sido
alcançada pelo rompimento de fronteiras entre espécies - que constituem a
maneira que a natureza tem de preservar a distinção e a diversidade (p. 147).
Importante notar que, para a autora, a preservação da diversidade é
compreendida como condição básica para a sustentabilidade e a auto-regulação,
tanto natural quanto social.
Mais uma vez, Morin, falando da organização da vida, aponta para a
necessidade de manter a diversidade na unidade e a unidade na diversidade,
90
partindo do princípio que, para tanto, devem existir, ao mesmo tempo, relações
complementares, concorrentes e antagônicas entre diversidade e unidade.
Um dos traços fundamentais da organização [da vida] é a aptidão de
transformar a diversidade em unidade, sem anular a diversidade (...) e
também de criar diversidade na e pela unidade. (...) Tudo o que é
organização viva, quer dizer, não apenas o organismo individual, mas
também os ciclos das reproduções, os ecossistemas, a biosfera, ilustra
o encadeamento em circuito desta dupla proposição: a diversidade
organiza a unidade que organiza a diversidade. (...) Assim, a
diversidade é requisitada, mantida, sustentada e inclusive criada e
desenvolvida na e pela unidade sistêmica que ela mesma cria e
desenvolve.
(2003a, p. 147-148 -
grifos do autor).
Neste trabalho buscamos analisar a colcha de retalhos do movimento
“Tecendo a Paz” como um símbolo para a vivência com a diversidade.
Metaforicamente, podemos considerar que, embora os retalhos mantenham seus
limites e fronteiras definidas, eles estão conectados de modo a definir o todo. No
entanto, no processo de construção da colcha, os limites, as fronteiras e os
pontos de conexão entre os retalhos são definidos e redefinidos dinamicamente,
em função de suas possibilidades e necessidades. E, mais que isso, são definidos
e redefinidos em função da finalidade da construção da colcha. Assim, cada
colcha de retalhos tem uma finalidade, a partir da qual os retalhos se conectam
para formar o todo. Numa colcha de retalhos podemos ver, ao mesmo tempo, a
unidade a colcha, e as partes os retalhos. Assim, as partes integrantes do
todo mantém em si, ao mesmo tempo, sua identidade particular e sua identidade
geral ou, também podemos dizer, o todo mantém em sua unidade uma grande
diversidade. Algumas vezes a colcha de retalhos é usada como sinônimo de
simples ajuntamento e somatória de partes, de modo a não estabelecer conexão
entre os retalhos. Pretendemos, ao longo deste estudo, desenvolver uma outra
possibilidade de analisar o termo “colcha de retalhos”, partindo do princípio que
uma colcha de retalhos somente se torna colcha - uma unidade - a partir do
momento em que os retalhos estiverem conectados.
91
2.2. Interdisciplinaridade e transdisciplinaridade
A questão da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade deve ser
compreendida como necessidade historicamente construída pela própria Ciência
e pela organização das diferentes formas de produção ou trabalho.
A fragmentação do conhecimento, metodologia básica da ciência
moderna, não apenas definiu disciplinas e especialidades, como também imprimiu
a lógica da setorização na própria organização social. Esta metodologia de
abordagem da realidade vem mostrando uma crescente impossibilidade de
responder às demandas atuais do conhecimento e da problemática social, o que
nos coloca diante do desafio histórico de responder a tais demandas.
A interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade têm sido apontadas, neste
momento, como possíveis saídas para o enfrentamento desse problema, uma vez
que buscam redefinir os modos de produção do conhecimento e da organização
social. No entanto, esta é uma árdua tarefa, pois implica a transformação de
estruturas institucionais e culturais historicamente construídas e, por conseguinte,
de valores e hábitos adquiridos pela cultura da sociedade moderna. Assim sendo,
para o desenvolvimento da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade,
entendidas enquanto mudanças relacionais e de abordagem da realidade, é
inevitável o enfrentamento de obstáculos culturais, sociais, pedagógicos,
ideológicos, políticos, psicológicos, metodológicos e técnicos. Entendemos, no
entanto, que na base destes obstáculos encontra-se a necessidade de
transformação da lógica do poder hoje instituída.
(FERIOTTI, 1995)
Como construções históricas, devemos compreender que estas
necessidades e estas formas de organização do conhecimento e da sociedade,
não apenas são determinadas, mas tamm determinantes dos processos
históricos em constante movimento. Não somente a interdisciplinaridade e a
transdisciplinaridade são compreendidas como necessidades históricas, como
também as diferentes definições e abordagens do tema são construções
históricas e ideológicas. Assim sendo, para abordar esta questão faz-se
necessária uma reflexão sobre o desenvolvimento histórico da
92
interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade, assim como sobre suas diferentes
definições e análises, sob o ponto de vista de diversos autores.
9
Ressaltamos que, ao apresentar diferentes definições e posições sobre o
tema, não pretendemos compará-las para atribuir-lhes valor, nem para identificar
seus pontos de exclusão. Ao contrário. Considerando que as diferentes definições
também são construções históricas, portanto limitadas ao seu tempo e ao seu
lugar; que tais definições revelam diferentes visões de mundo ou pontos de vista
e, finalmente, que este trabalho defende o diálogo na diversidade, pretendemos, a
partir deste diálogo, identificar contribuições para a continuidade da reflexão sobre
o tema, num processo de tecelagem e construção histórica.
Segundo Milanesi (2004), a questão da interdisciplinaridade vem sendo
perseguida desde a antiguidade clássica, surgindo em diferentes períodos com
maior ênfase. A partir da Segunda Guerra o tema ganha importância e tratamento
epistemológico, tendo em Gusdorf um de seus pioneiros. No Brasil, em 1976,
Hilton Japiassu é o primeiro teórico a tratá-la como objeto epistemológico
buscando definir com precisão os conceitos de disciplinaridade,
multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade e
transdisciplinaridade. Muitos outros autores brasileiros vêm desenvolvendo o
tema, dentre eles: Ivani Fazenda, Ari Paulo Jantsch, Lucídio Bianchetti, Norberto
J. Etges, Antônio Joaquim Severino e Gaudêncio Frigotto.
A transdisciplinaridade, que por algum tempo foi considerada apenas
como uma das etapas das relações entre as disciplinas, caracterizada como o
nível superior de um processo gradual de interações, começa a destacar-se, a
partir da década de 80, como uma nova perspectiva de abordagem da realidade,
como novo paradigma ou visão de mundo, com profundas transformações
epistemológicas e metodológicas.
9
Neste trabalho não pretendemos, no entanto, aprofundar o estudo sobre a história da interdisciplinaridade e
da transdisciplinaridade, nem esgotar a abordagem dos autores relevantes para o tema, em parte, para não
perder de vista nosso objetivo e o desenvolvimento da linha de pensamento e, em parte, porque existe
uma produção bibliográfica significativa sobre o assunto.
93
Segundo Weil (1993), Jean Piaget foi o primeiro a usar o termo
“transdisciplinaridade” em 1970, num encontro sobre a interdisciplinaridade
promovido pela Organização da Comunidade Européia. O segundo autor a usar
este termo foi Erich Jantsch, em 1972. Em 1980, o termo aparece, pela terceira
vez, com Edgar Morin. Em 1986, na Declaração de Veneza, documento de um
evento internacional promovido pela Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Basarab Nicolescu marca os rumos
de uma nova transdisciplinaridade. Dentre vários signatários da Declaração de
Veneza, encontra-se Ubiratan D’Ambrosio, um renomado matemático brasileiro.
Outros eventos vêm contribuindo para dar maior visibilidade à
transdisciplinaridade, assim como para ampliar as reflexões relativas às suas
definições e possibilidades de desenvolvimento teórico e prático: o Congresso
Ciência e Tradição: Perspectivas Transdisciplinares para o Século XXI
UNESCO, Paris, em dezembro de 1991; o Primeiro Congresso Mundial da
Transdisciplinaridade no Convento de Arrábida, Portugal, em novembro de
1994, do qual se constituiu a “Carta da Transdisciplinaridade”; o Congresso
Internacional: Que Universidade para o Amanhã? Em nome de uma Evolução
Transdisciplinar da Universidade, promovido pelo Centre International de
Recherches et Etudes Transdisciplinaires (CIRET) e UNESCO, Locarno Suíça,
em abril/maio de 1997, onde se constituiu a “Declaração de Locarno”, que visa
orientar o desenvolvimento da educação transdisciplinar; a Conferência
Transdisciplinar Internacional, realizada em Zurique, em fevereiro/março de 2000,
onde foi elaborada a Declaração de Zurique: “Uma visão mais ampla de
transdisciplinaridade”; e o II Congresso Mundial de Transdisciplinaridade,
promovido pelo Centro de Educação Transdisciplinar (CETRANS) e UNESCO,
realizado no Brasil, em Vitória/Vila Velha ES, em setembro de 2005, onde,
retomando, valorizando, ampliando e contextualizando a Carta da
Transdisciplinaridade, é elaborada a “Mensagem de Vila Velha/Vitória”.
10
Da Declaração de Veneza, em 1986, para a Mensagem de Vila
Velha/Vitória, em 2005, podemos notar um significativo aumento do número de
signatários dos documentos: de duas dezenas para uma centena e meia,
10
Os textos integrais dos documentos citados estão disponíveis em <http://www.cetrans.com.br> em
“saber/co-formação – textos – documentos”. Acesso em 31 jan. 2007.
94
aproximadamente. Correspondentemente, também se verifica um crescente
interesse pelo tema e um expressivo aumento na produção de pesquisas e
trabalhos sobre transdisciplinaridade.
Neste percurso histórico identificamos diferentes formas de conceituar os
termos multi, pluri, inter e transdisciplinariade. Apresentamos algumas destas
formulações teóricas com o objetivo de desenvolver nossa reflexão.
Piaget, sendo pioneiro no uso do termo transdisciplinaridade, nos mostra
que
na etapa das relações interdisciplinares, pode-se esperar que se suceda
uma fase superior que seria ‘transdisciplinar’, a qual não se contentaria
em atingir interações ou reciprocidades entre pesquisas especializadas,
mas situaria tais ligações no interior de um sistema total, sem fronteiras
estáveis entre as disciplinas”. (PIAGET, apud WEIL, (1993, p. 39).
Japiassu, em seu livro Interdisciplinaridade e Patologia do Saber (1976),
critica o saber fragmentado e o surgimento das especializações que
caracterizaram a ciência a partir do século XIX, atribuindo-lhes o caráter de
verdadeiras cancerizações epistemológicas (p.48) que impedem a unidade do
saber ou a compreensão integral da realidade. Buscando a integração de
conhecimentos e tendo em vista a unidade do saber, o autor apresenta a
interdisciplinaridade como o remédio mais adequado à cancerização ou à
patologia geral do saber (p.31). Também critica a cisão entre sujeito e objeto, a
compartimentação da universidade e o divórcio dessa universidade com a
sociedade real e concreta.
Diante dos possíveis riscos de utilização superficial da
interdisciplinaridade por modismos, discursos vazios ou significações diversas,
Japiassu (1976, p. 72-74)) buscou a elaboração precisa do termo
interdisciplinaridade e seus conceitos vizinhos de disciplinaridade,
multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade e transdisciplinaridade. Com base no
autor podemos defini-las:
A Disciplinaridade é a abordagem ou exploração científica de um
determinado campo ou domínio de estudo, ou seja, o conjunto sistemático e
organizado de conhecimentos que apresentam características próprias nos planos
do ensino, da formação, dos métodos e das matérias.
95
A Multidisciplinaridade define-se pela proposta simultânea de diferentes
disciplinas, sem aparecer as relações existentes entre elas, com objetivos
múltiplos e nenhuma cooperação.
A Pluridisciplinaridade é a justaposição de diversas disciplinas
agrupadas de modo a aparecer as relações existentes entre elas, com objetivos
múltiplos, alguma cooperação, mas sem coordenação.
A Interdisciplinaridade é definida por um grupo de disciplinas conexas,
com finalidades e coordenação no nível superior, caracterizado por interações
propriamente ditas, reciprocidade nos intercâmbios que gera enriquecimento para
cada disciplina, incorporação dos resultados das várias especialidades,
empréstimo e troca de instrumentos e técnicas metodológicas entre as disciplinas,
com o objetivo de religar as fronteiras entre elas, porém assegurando a cada uma
a sua especificidade.
A transdisciplinaridade é compreendida como superação das fronteiras
e especificidades de cada disciplina. Mais do que interação e reciprocidade entre
as especialidades, busca a integração destas no interior de um sistema total, sem
fronteiras estabelecidas. A coordenação tem em vista uma finalidade comum dos
sistemas.
Japiassu organiza os conceitos de modo a constituir uma construção
gradual no nível de interações entre as disciplinas. Esta graduação visa, em
última instância, a convergência das disciplinas em direção à unidade. Sob essa
ótica, entendemos que a multi e a pluridisciplinaridade mantêm a característica de
paralelismo e justaposição, enquanto a inter e a transdisciplinaridade buscam a
efetivação de integrações reais.
Analisando essas definições podemos considerar que, se a fragmentação
do saber, caracterizado pelas disciplinas ou especialidades, é uma patologia, a
multi e a pluridisciplinaridade não são apenas formas limitadas de abordagem da
realidade, mas, mais que isso, são formas que deveriam ser superadas ou
extintas durante o processo histórico de evolução e transformação para a inter e a
transdisciplinaridade. Podemos considerar que a interdisciplinaridade, que hoje
promove trocas expressivas entre as disciplinas, tenderia, nesse processo
96
histórico, à transdisciplinaridade que, por sua vez, viria a superar as fronteiras e
especificidades das disciplinas. Assim sendo, se as disciplinas são caracterizadas
por suas fronteiras e suas especificidades, concluímos que a busca da unidade do
saber levaria ao fim das disciplinas, uma vez que infinitas trocas e interações
poderiam levar as disciplinas a um processo gradual de homogeneização.
A abordagem da inter e da transdisciplinaridade na perspectiva de fusão
ou síntese das disciplinas também pode ser notada em Jantsch.
11
Weil (1993) nos apresenta a visão de Erich Jantsch que, em 1980,
contestando a visão racional de um mundo estável e estático, defende a idéia de
que a realidade é complexa e que tal complexidade somente pode ser abordada
pela interdisciplinaridade. Buscando fazer uma distinção entre os termos pluri,
multi, inter e transdisciplinaridade, propõe as seguintes definições:
A pluri ou multidisciplinaridade é a justaposição de várias disciplinas
sem nenhuma tentativa de síntese (...). A interdisciplinaridade trata da
síntese de duas ou várias disciplinas, instaurando um novo nível do
discurso (metanível), caracterizado por uma nova linguagem descritiva e
novas relações estruturais. A transdisciplinaridade é o reconhecimento
da interdependência de todos os aspectos da realidade (...) é a
conseqüência normal da síntese dialética provocada pela
interdisciplinaridade, quando esta for bem-sucedida. Esse ideal nunca
estará completamente ao alcance da ciência, mas poderá orientar de
modo decisivo a sua evolução. (WEIL, 1993, p. 31- grifos do autor)
Assim, também em Jantsch podemos perceber que a busca de sínteses
entre as disciplinas, em processo gradual, tenderiam à transdisciplinaridade,
como a grande ntese almejada. Considerando que a cada síntese entre duas
ou mais disciplinas se cria uma nova linguagem e novas relações estruturais,
podemos supor que novas disciplinas seriam sempre criadas, num processo de
sínteses sucessivas, em direção à unidade. Perguntamos: chegaríamos então a
uma disciplina única, universal, integral? E ainda, as sínteses sucessivas para
chegar à unidade teriam destruído as particularidades das disciplinas, num
11
Erich Jantsch (1929-1980) foi um astrofísico austríaco que desenvolveu estudos sobre a auto-organização
do universo, estabelecendo relações com a interdisciplinaridade. São publicações suas: The Self-Organizing
Universe: Scientific and Human Implications of the Emerging Paradigm of Evolution. Oxford: Pergamon, 1980;
The Evolutionary Vision: Toward Unifying Paradigm of Phisical, Biological, and Sociocultural Evolution.
Boulder: Westview Press, 1981; L’interdisciplinarité: lês rêves et la réalité. Perspectives, vol. X, nº. 3, 1980;
Towards Interdisciplinarity and Transdisciplinarity. In Education and Innovation in Interdisciplinarity. Problems
of teaching and research in universities. Paris, OECD, 1972, pp. 97-121.
97
processo de homogeneização? O próprio autor já adverte sobre a inviabilidade
desse ideal para a ciência, atribuindo-lhe mais um caráter de orientação para a
integração de saberes que uma finalidade a ser atingida. Apesar da inviabilidade
da proposta transdisciplinar aqui apresentada, devemos valorizar a construção
histórica no sentido de propor claramente a compreensão da complexidade da
realidade e dos limites científicos para sua abordagem.
De qualquer forma, temos aqui colocada, mais uma vez, a questão das
relações entre o uno e o múltiplo, a parte e o todo, a unidade e a síntese.
Para Morin, a unidade é constituída pelo princípio dialógico que pode ser
definido como a associação complexa (complementar/ concorrente/ antagônica)
de instâncias necessárias em conjunto à existência, ao funcionamento e ao
desenvolvimento de um fenômemo organizado (1999, p. 110 - grifos do autor).
Somente a partir dessa perspectiva é que se pode conceber a unidade que
mantenha a diversidade e a diversidade que constitua a unidade, ou seja, a
integração uno-múltiplo, parte-todo, local-global.
Quando Morin nos fala da dialógica ou da coexistência de
complementaridades, concorrências e antagonismos na unidade, ele aponta para
a possibilidade de conceber a unidade mesmo sem a síntese dialética, ou seja,
nem sempre é necessária a ntese, ou a ultrapassagem das contradições, para
manter a unidade.
Podemos compreender a concepção de dialógica apresentada por Morin,
a partir de fragmentos de uma conversa sua com Basarab Nicolescu sobre
Stéphane Lupasco.
... a partir do momento em que li um de seus livros, fiquei impressionado
com sua concepção fundamental da contradição, o princípio do
antagonismo e a relação entre o atual e o virtual. No fundo, devo dizer
que, sob outro nome, foi a idéia que retomei com o que denomino a
dialógica, porque esta comporta uma relação ao mesmo tempo
complementar, antagônica e, eventualmente concorrente. Acredito que
seja um pouco o princípio de Lupasco, diferente da dialética de Hegel e
é por isso que a denominei dialógica, mais próxima da visão de
Heráclito do que da visão dialética e hegeliana-marxista, que sempre
comportaram uma ultrapassagem. Em outras palavras, o interessante é
que não havia essa ultrapassagem hegeliana, mas havia a tensão dos
98
opostos que, no entanto, era criativa, fundamental e necessária.
(HORIA e NICOLESCU, 2001, p.42)
E, continuando, Morin nos fala do diálogo entre as diferenças, da abertura
necessária às outras verdades que não as nossas:
Devo dizer que, pessoalmente, sem dúvida por que sempre entretive o
sentimento expresso, tanto por Pascal como por Niels Bohr, de que o
contrário de uma verdade profunda não é um erro, mas uma verdade
contrária, eu não podia me impedir de associar termos contraditórios.
Foi isso o que logo me atraiu, tanto para Heráclito quanto para Pascal.
(HORIA e NICOLESCU, 2001, p. 42)
Quanto à complexidade da realidade, uma questão já apontada por
Jantsch, apresentamos aqui a definição desenvolvida por Morin, que tendo a
complexidade como base da construção de seu pensamento, nos oferece uma
grande contribuição para o enfrentamento das questões que perpassam nossas
reflexões:
Complexus significa aquilo que foi tecido junto. De fato,
complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis
constitutivos do todo (como o econômico, o político, o sociológico, o
psicológico, o afetivo, o mitológico), e um tecido interdependente,
interativo e inter-retroativo entre o objeto de conhecimento e seu
contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Por
isso, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade”.
(MORIN, 2001a, p.38)
Buscando a abordagem complexa da realidade, Morin nos propõe
estabelecer relações constantes entre as partes e o todo. Assim, para este autor,
as disciplinas não devem ser extintas ou superadas. Ao contrário, elas continuam
existindo com suas especificidades, limites e linguagens, porém o
dinamicamente modificadas, ao mesmo tempo em que modificam outras
disciplinas, o todo e o contexto, em seus processos de múltiplas interações. As
disciplinas devem, elas mesmas, buscar levar em conta o que lhes é contextual,
porém, não se pode quebrar o que foi criado pelas disciplinas, não se pode
quebrar todas as clausuras. Aqui reside o problema da disciplina, da ciência e da
vida: é preciso que uma disciplina seja ao mesmo tempo aberta e fechada.
(MORIN, 2000, p. 36).
Nesta perspectiva, não se pretende uma evolução gradual das disciplinas
para a inter e a transdisciplinaridade. Ao contrário, é possível a coexistência de
99
relações disciplinares, multi ou polidisciplinares, interdisciplinares e
transdisciplinares ao longo da história.
Diferentemente das posições que consideram as disciplinas como formas
do passado que devem ser superadas, Morin considera o processo histórico de
construção da ciência, e suas próprias transformações paradigmáticas, como
produto de múltiplas interações entre as disciplinas, pois, ao mesmo tempo em
que elas correm o risco de fechar-se e delimitar rigidamente suas fronteiras,
também é possível que elas estabeleçam diálogos, sobreposições, aglutinações e
transferência de conhecimentos, flexibilizando suas fronteiras, modificando-se
internamente ou gerando novas disciplinas.
...a história das ciências não é somente a da constituição e proliferação
de disciplinas, mas também a das rupturas de fronteiras disciplinares, de
sobreposições de um problema de uma disciplina sobre outra, de
circulação de conceitos, de formação de disciplinas híbridas que
terminaram por se autonomizar. É, igualmente, a história da formação
de complexos nos quais diferentes disciplinas se agregam e se
aglutinam. Dito de outra forma, se a história oficial da ciência é a da
disciplinaridade, uma outra história, que lhe é ligada e inseparável, é a
das “inter-trans-poli-disciplinaridades”. (MORIN, 2000, p.29)
Embora existam as nteses, nem sempre é necessário que se faça a
ultrapassagem dialética. Mais do que sínteses, Morin propõe a religação dos
saberes, buscando efetivar relações indissociáveis entre o uno e o múltiplo.
Porém essa religação também não é estável e fechada, pois as relações de
complementariedade, antagonismo e concorrência estão sempre presentes na
unidade. Para promover a transdisciplinaridade nesta perspectiva, torna-se
necessário um paradigma da complexidade que, ao mesmo tempo disjunte e
associe, que conceba os níveis de emergência da realidade sem reduzi-los às
unidades elementares e às leis gerais. (2000, p. 40).
Desse modo é possível transitar pelas disciplinas de diferentes formas,
assim como é possível transitar da parte para o todo, do local para o global, do
individual para o coletivo, sem, no entanto, ter um olhar reducionista da realidade.
A constante busca de religação dos saberes é que se constitui como orientação
básica para esse trânsito. Partes e todo são constitutivos indissolúveis da
realidade, portanto, é necessário que se conheça tanto um quanto outro, porém,
100
não de modo estático como no positivismo, mas sempre de modo dinâmico,
interativo, instável, temporal e provisório.
Algumas vezes o termo “complexo” é usado como sinônimo de algo o
extenso que acaba por justificar um olhar genérico, distante, superficial. Ou ainda
como um olhar que substitui a especialidade pela generalidade, que prega a
extinção das disciplinas ou a construção de um saber inespecífico. Do mesmo
modo, o termo reducionismo é tratado, às vezes, como sinônimo de disciplina ou
especialidade, supondo-se que abandonar o reducionismo é o mesmo que
abandonar ou negar as disciplinas. Considerando que estes significados não
expressam nossa compreensão, julgamos necessário apresentar esses conceitos
e como eles são utilizados neste trabalho.
Segundo Morin (2001a, p. 42) o termo reducionismo refere-se ao princípio
de investigação científica que limita o conhecimento do todo ao conhecimento de
suas partes, como se a organização do todo não produzisse qualidades ou
propriedades novas em relação às partes consideradas isoladamente. Assim, o
reducionismo não é apenas o estudo sobre uma parte do todo, mas a crença de
que esta parte pode ser estudada isoladamente do todo, de modo a não modificar
suas características ao retornar ao todo ou a agregar-se a outros contextos. É
uma idéia que não considera o princípio sistêmico das relações entre partes, todo
e contexto e, por conseguinte, não valoriza o movimento de integralização ou de
busca de múltiplas relações no estudo de uma parte, o que lhe possibilita
estabelecer leis gerais a partir da análise de uma parte. Esta característica atribui
ao reducionismo uma posição contrária à complexidade, na tentativa de simplificar
o complexo e de impedir a apreensão “do que está tecido junto”.
Para compreender a unidade, na perspectiva da complexidade, é ainda
necessário identificar sua concepção de totalidade. Segundo Morin, o “todo” ou o
sistema
é ao mesmo tempo mais, menos, diferente da soma das partes. As
próprias partes são menos, eventualmente, mais, de qualquer forma
diferentes do que elas eram ou seriam fora do sistema. (...) um sistema
é um todo que toma forma ao mesmo tempo em que seus elementos se
transformam.
(2003a, p.146-147)
101
O mesmo autor nos mostra que as partes e o todo estão intimamente
relacionados, pois, como num holograma, cada ponto singular contém a totalidade
da informação do que representa, ou seja, cada parte contém o todo do qual faz
parte e que ao mesmo tempo faz parte dela. (MORIN, 2001a, p. 37-38).
A complexidade não é, portanto, uma visão genérica da totalidade, um
saber pronto ou um saber inespecífico. Ao contrário, é uma atitude constante de
questionamentos, um esforço para buscar as múltiplas relações que compõem a
realidade, sabendo-se, a priori, que a complexidade dessa realidade será maior
que aquela apreendida, num dado momento, por um sujeito. Não é uma busca de
verdades absolutas, gerais e universais, é a perspectiva de encontrar certezas
provisórias, mutáveis, válidas para um contexto, num determinado momento
histórico. Certezas que podem determinar etapas de um processo que se constrói
dinamicamente, diante de novas questões e da busca de novas certezas, também
provisórias.
O pensamento complexo busca religar as disciplinas, religar os saberes,
religar as ciências naturais às ciências humanas, religar a ciência à filosofia, a
técnica à ética.
Esse conhecimento só se desenvolverenunciando a todos os dogmas
da separabilidade e da separação com os quais sempre se nutriu:
separação do sujeito do objeto, cultura da natureza, inteligência da
afetividade, cérebro do espírito, racionalidade do mito, conhecimento da
poesia, homem da mulher. (MORIN, 2003b, p. 8).
A disciplina, segundo Morin, é definida como:
uma categoria que organiza o conhecimento científico e que institui
nesse conhecimento a divisão e a especialização do trabalho
respondendo à diversidade de domínios que as ciências recobrem.
Apesar de estar englobada num conjunto científico mais vasto, uma
disciplina tende naturalmente à autonomia pela delimitação de suas
fronteiras, pela linguagem que instaura, pelas técnicas que é levada a
elaborar ou a utilizar e, eventualmente, pelas teorias que lhe são
próprias.
(2000, p. 27)
Quanto aos termos interdisciplinaridade, poli, multi ou pluridisciplinaridade
e transdisciplinaridade, percebemos que Morin não busca uma precisão em suas
definições por considerá-los conceitos polissêmicos e fluidos. Segundo o autor
102
A interdisciplinaridade pode significar, por exemplo, que diferentes
disciplinas encontram-se reunidas como diferentes nações o fazem na
ONU, sem entretanto poder fazer outra coisa senão afirmar cada uma
seus próprios direitos e suas próprias soberanias em relação às
exigências do vizinho. Mas a interdisciplinaridade pode tamm querer
dizer troca e desse modo, transformar-se em algo orgânico. A
polidisciplinaridade ou pluridisciplinaridade ou multidisciplinaridade
constitui uma associação de disciplinas em torno de um projeto ou de
um objeto que lhes é comum. As disciplinas são chamadas para
colaborar nele, assim como técnicos especialistas convocados para
resolver esse ou aquele problema. De modo contrário, as disciplinas
podem estar em profunda interação para tentar conceber um objeto e
um projeto. Enfim, a transdisciplinaridade se caracteriza geralmente por
esquemas cognitivos que atravessam as disciplinas, às vezes com uma
virulência tal que as coloca em transe. (2000, p.36)
Outros autores, embora partindo de referenciais teóricos distintos,
também criticam as tendências de unificação das disciplinas em um saber
universal ou, contrariamente, ao isolamento disciplinar.
Etges, partindo de uma visão construtivista, criticando as rupturas
sujeito/objeto e ciência/senso-comum, contrapondo-se às abordagens a-históricas
da interdisciplinaridade e analisando o desenvolvimento histórico do trabalho,
mais especificamente, o modo de produção da ciência, considera que
A interdisciplinaridade não poderá jamais consistir em reduzir as ciências
a um denominador comum, que sempre acaba destruindo a
especificidade de cada uma, de um lado, e dissolve cada vez mais os
conteúdos vivos em formalizações vazias, que nada explicam, podendo,
pelo contrário, transformar-se em estratégias de exclusão e de domínio
absoluto. Pelo contrário, deverá ser um mediador que possibilita a
compreensão da ciência, além de formas de cooperação a um nível bem
mais crítico e criativo entre os cientistas. (1995, p. 73).
Este autor identifica duas formas equivocadas de interdisciplinaridade que
vêm sendo propostas: a interdisciplinaridade generalizadora e a
interdisciplinaridade instrumental.
A interdisciplinaridade generalizadora ou universalizante parte do
pressuposto que é possível à ciência chegar a um saber absoluto do mundo em
sua totalidade. Este saber abarcaria todos os saberes menores, e, em função de
elementos comuns presentes em todos eles, chegaria a formar um único saber,
enquanto as ciências particulares seriam apenas conhecimentos parciais,
fragmentados, incompletos. Esta ciência seria única, universal e todo-poderosa e
teria um método que, inevitavelmente, seria o método de uma das ciências em
103
detrimento dos métodos das outras ciências. Estaria operando, portanto, a partir
da lógica do domínio e da exclusão. (ETGES, 1995, p.65-66).
A interdisciplinaridade instrumental é considerada insuficiente para o
autor, pois está sempre relacionada a uma finalidade subjetivamente posta, ou
seja, é uma racionalidade de fins e meios, destinada a satisfazer interesses
práticos e imediatos. Não é o conhecimento enquanto estrutura que interessa,
mas apenas seu funcionamento em vista de fins subjetiva e previamente postos.
(ETGES, 1995, p.68).
Além de insuficiente, esta forma de interdisciplinaridade também carrega
em si um problema ético.
... se o interesse é a destruição da ecologia ou o extermínio de
populações indefesas, ou a sobrevivência da humanidade, a isto o
cientista, em função precisamente do método, não é capaz de
responder. Confrontam-nos com a racionalidade em grau elevado e com
a irracionalidade mais radical e desumana. A postura instrumentalista
fica indefesa diante da violência sem limites, diante do holocausto e da
escravização dos homens, diante do poder dos senhores ou da
onipotência do individualismo exasperado. Neste sentido a concepção
instrumental da interdisciplinaridade é equivocada, pois não atenta nem
à estrutura do saber nem se funda numa ética objetiva. (ETGES, 1995,
p. 68).
Buscando superar essas abordagens, Etges ressalta a
interdisciplinaridade como o princípio da diversidade e da criatividade. (JANTSCH
e BIANCHETTI, 1995, p. 14)
Severino
também coloca a questão da interdisciplinaridade como um
problema das relações entre unidade e multiplicidade. Um problema que, segundo
o autor, somente pode ser abordado pela prática histórica cotidiana, pois é este o
lugar da síntese entre a teoria e a prática. Considerando que, embora as relações
entre o uno e o múltiplo sejam muito antigas na história da Filosofia Ocidental, o
autor identifica, nesse momento histórico, uma nova forma de abordar esta
relação
no sentido de que não se pretende mais que uma polaridade predomine,
diluindo a outra e nem mesmo que ocorra um equilíbrio, por assim dizer,
instável entre ambas. O que se coloca hoje é a necessária
convivialidade das duas perspectivas, de modo que poderíamos
reafirmar, com um sentido novo mas, parafraseando os metafísicos
clássicos, que o ser é uno e múltiplo ao mesmo tempo.
(1995, p. 160)
104
É importante ressaltar ainda que este autor, ao tratar a questão da
interdisciplinaridade, integra seus aspectos epistemológicos, técnicos, políticos,
culturais e éticos, constituídos na construção histórica das sociedades e das
subjetividades humanas.
Fazenda é outra autora brasileira que tem pesquisado amplamente o
tema interdisciplinaridade na Educação. Suas análises são mais focadas nas
atitudes, nas ões volitivas e nas relações intersubjetivas para o
desenvolvimento da interdisciplinaridade.
Quanto às atitudes necessárias à interdisciplinaridade, a autora destaca:
Atitude de busca de alternativas para conhecer mais e melhor; atitude
de espera perante atos não consumados; atitude de reciprocidade que
impele à troca, ao diálogo com pares idênticos, com pares anônimos ou
consigo mesmo; atitude de humildade diante da limitação do próprio
saber; atitude de perplexidade ante a possibilidade de desvendar novos
saberes; atitude desafio diante do novo, desafio de redimensionar o
velho; atitude de envolvimento e comprometimento com os projetos e as
pessoas neles implicadas; atitude, pois, de compromisso de construir
sempre da melhor fora possível; atitude de responsabilidade, mas
sobretudo de alegria, de revelação, de encontro, enfim, de vida. (1995,
p. 13-14).
No estudo das atitudes, o conceito de “parceria” aparece como categoria
mestra nos seus trabalhos. Segundo a autora, a parceria busca incitar o diálogo e
promover a interpenetração de diferentes formas de conhecimento. Porém, o fato
de ser revestida de múltiplos e complexos aspectos, dificulta a elaboração de uma
definição precisa do termo. Assim sendo, a autora, buscando uma simplificação
da linguagem, propõe a tradução do termo para “mania”, e explica
Mania de quê? Mania de compartilhar falas, compartilhar espaços,
compartilhar presenças. Mania de dividir e, no mesmo movimento,
compartilhar, mania de subtrair para, no mesmo tempo, adicionar, que,
em outras palavras seria separar para, ao mesmo tempo, juntar. Mania
de ver no todo a parte ou o inverso de ver na parte o todo. Mania de
ver a teoria na prática e a prática na teoria. Mania de ver a possibilidade
na utopia e utopia na possibilidade. Mania de tornar o uno em múltiplo e
o múltiplo em uno e de tornar o anônimo em identidade e a identidade
em novo anônimo. Mania de periodizar só para fazer história. Mania que
é postura de sempre pretender a produção em parceria. (FAZENDA,
1994, p. 84).
105
Em algumas de suas pesquisas, Fazenda (1994, p. 47-51) buscou
identificar as atitudes que marcavam a prática cotidiana
de professores que
chamou de bem-sucedidos, tendo a interdisciplinaridade como fundamento para
tal prática. Dentre as atitudes ou características encontradas nesses professores,
podemos destacar:
o gosto por conhecer – um conhecimento múltiplo, prático e teórico;
competência e compromisso para com seus alunos;
insatisfações com o seu trabalho, no sentido de admitir dúvidas e fazer
reavaliações constantes;
a marca do novo desenvolvimento de ações únicas, criativas e
inovadoras;
ousadia no uso de técnicas e procedimentos de ensino convencionalmente
pouco utilizados;
cuidado em tornar essas técnicas transformáveis, conforme a necessidade
dos alunos;
envolvimento com a totalidade de cada ato;
solidão, marcada por obstáculos de ordem institucional;
muito trabalho, gerando incômodo àqueles que preferem acomodar-se;
resistência às lógicas institucionais de acomodação.
Embora a maioria das publicações brasileiras, até a década de 90, tenha
tratado com mais ênfase o termo “interdisciplinaridade”, devemos dar atenção ao
progressivo desenvolvimento do termo “transdisciplinaridade” que, a partir da
Declaração de Veneza em 1986, começa a receber um tratamento particular,
sendo redescoberto, renovado e amplamente utilizado como resposta aos
desafios de nossa época. O início do século XXI é marcado, no Brasil, por uma
significativa expansão das publicações sobre transdisciplinaridade, assim como
de centros de estudos e pesquisas transdisciplinares. Dentre muitos outros
autores, podemos destacar Ubiratan D’Ambrosio, Edgard de Assis Carvalho,
Maria da Conceição de Almeida, Américo Sommerman, Maria F. de Mello, Samir
Cristino de Souza, Ivan Domingues, Alfredo Gontijo de Oliveira, Amâncio Friança.
A Declaração de Veneza, em 1986, reafirma como projeto transdisciplinar,
a busca de uma troca dinâmica entre as ciências exatas, as ciências humanas, a
arte e as diferentes tradições, almejando uma nova visão da humanidade e até
106
mesmo uma nova racionalidade. Neste evento, a UNESCO é definida como a
organização que deverá dar prosseguimento a essas idéias, estimulando as
reflexões dirigidas à universalidade e transdisciplinaridade. (CETRANS, 2004a).
O Congresso “Ciência e Tradição: perspectivas transdisciplinares para o
século XXI”, realizado em Paris, em dezembro de 1991 e promovido pela
UNESCO, coloca-se contrário às ameaças planetárias decorrentes do
enfraquecimento da cultura, à crença na existência de um único caminho de
acesso à verdade e à realidade (a ciência moderna), à onipotência da
tecnociência, à fragmentação do conhecimento e à separação entre
ciência/cultura e sujeito/objeto, propondo que as pesquisas transdisciplinares se
apóiem nas atividades da arte, da poesia, da filosofia, do pensamento simbólico,
da experiência interior, da ciência e da tradição, inseridas em sua própria
diversidade e multiplicidade. Podendo identificar, mais uma vez, a necessidade de
relacionar a unidade e a multiplicidade na construção do pensamento inter e
transdisciplinar, o documento deste congresso afirma que o desafio da
transdisciplinaridade é gerar uma civilização, em escala planetária que, por força
do diálogo intercultural, se abra para a singularidade de cada um e para a
inteireza do ser. (CETRANS, 2004b)
O Congresso Internacional de Locarno Suíça, em 1997, marcado pela
busca da paz no planeta e da evolução transdisciplinar da universidade,
apresenta os conceitos de pluri, inter e transdisciplinaridade, considerando a
necessidade de fazer suas distinções:
A pluridisciplinaridade diz respeito ao estudo de um objeto de
uma única disciplina por diversas disciplinas ao mesmo tempo. O objeto
em questão sairá enriquecido pelo cruzamento de várias disciplinas. O
conhecimento do objeto em sua própria disciplina é aprofundado por um
fecundo aporte pluridisciplinar. A pesquisa pluridisciplinar enriquece a
disciplina em questão, porém esse enriquecimento está a serviço
apenas dessa disciplina.
A interdisciplinaridade diz respeito à transferência dos métodos
de uma disciplina à outra. É possível distinguir três graus de
interdisciplinaridade:
- um grau de aplicação
: por exemplo, os métodos da física nuclear
transferidos à medicina conduzem à aparição de novos tratamentos de
câncer;
- um grau epistemológico
; por exemplo, a transferência dos métodos da
lógica formal ao campo do direito gera análises interessantes na
epistemologia do direito;
107
- um grau de geração de novas disciplinas: por exemplo, a transferência
dos métodos da matemática ao campo da física gerou a física-
matemática (...)
A transdisciplinaridade, como o prefixo trans o indica, diz respeito
ao que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das
disciplinas e além de toda disciplina. Sua finalidade é a compreensão do
mundo atual, e um dos imperativos para isso é a unidade do
conhecimento. (CETRANS, 2004d; NICOLESCU, 2005, p. 52-53 – grifos
do autor)
Também
neste conceito de transdisciplinaridade o se espera a
extinção das disciplinas na busca da unidade, mas sim o estudo do universal
inseparável das relações entre os campos disciplinares, buscando-se o que se
encontra entre, através e além das disciplinas. Mas, no próprio congresso, se
levanta a inevitável questão: Existe algo entre e através das disciplinas e além de
todas as disciplinas?
A resposta para essa pergunta encontra-se na Física Quântica que, com a
significativa representação de Basarab Nicolescu
12
, vem se constituindo como
uma das importantes fontes teóricas para o estudo da transdisciplinaridade:
Do ponto de vista do pensamento clássico, não há nada, absolutamente
nada [entre, através e além das disciplinas]. O espaço em questão é
vazio, como o vazio da física clássica (...) Para o pensamento clássico,
a transdisciplinaridade é um absurdo, pois ela não tem objeto. Por outro
lado, para a transdisciplinaridade, o pensamento clássico não é
absurdo, mas seu campo de aplicação é tido como restrito. O espaço
entre as disciplinas e além das disciplinas está cheio, assim como o
vácuo quântico está cheio de potencialidades: da partícula quântica às
galáxias, do quark aos elementos pesados, que condicionam o
aparecimento da vida no universo. (CETRANS, 2004d; NICOLESCU,
2005, p. 53)
Os estudos da mecânica e da física quântica, desde o início do século XX,
vêm provocando profundas transformações na visão de mundo, em oposição
àquela advinda da física clássica. Os conceitos da física clássica relativos à
continuidade, causalidade local, determinismo, objetividade, irreversibilidade do
tempo e simetria começam a ser revistos, a partir dos conceitos de
descontinuidade, causalidade global, indeterminismo, relação sujeito/objeto,
12
Basarab Nicolescu é físico teórico, nasceu na Romênia e transferiu-se para a França. Dentre outras atividades, é
fundador do CIRET (Centre International de Recherches et Etudes Transdisciplinaires), consultor da UNESCO e uma de
suas importantes publicações é “O manifesto da Transdisciplinaridade”, 2005.
108
reversibilidade do tempo e quebra de simetria. Baseado nestes princípios,
Nicolescu (2005) propõe três pilares de sustentação para a transdisciplinaridade,
que determinam, na verdade, a metodologia da pesquisa transdisciplinar, a saber:
a complexidade, os níveis de Realidade
13
e a lógica do terceiro incluído.
O conceito de complexidade, já apresentado neste trabalho e amplamente
desenvolvido por Morin, é absorvido por Nicolescu, que o identifica como um
pensamento que vem, inevitavelmente, substituir o pensamento clássico
unidimensional nos mais diversos campos do conhecimento. Segundo o autor, ao
longo do século XX, a complexidade instala-se por toda parte, assustadora,
terrificante, obscena, fascinante, invasora, como um desafio à nossa própria
existência e ao sentido de nossa própria existência. (NICOLESCU, 2005, p. 43-
44).
O conceito de “níveis de Realidade” também advém da física quântica, de
seu conceito de descontinuidade, e estabelece uma diferença básica entre as
pesquisas disciplinares e transdisciplinares: a pesquisa disciplinar diz respeito, no
máximo, a um único e mesmo nível de Realidade (...) a transdisciplinaridade se
interessa pela dinâmica gerada pela ação de vários níveis de Realidade ao
mesmo tempo. (NICOLESCU, 2005, p. 54).
O autor define “nível de Realidade” como
um conjunto de sistemas invariantes sob a ação de um mero de leis
gerais: por exemplo, as entidades quânticas submetidas às leis
quânticas, as quais estão radicalmente separadas das leis do mundo
macrofísico. (...) Dois níveis de Realidade são diferentes se, passando
de um ao outro, houver ruptura das leis e ruptura dos conceitos
fundamentais. (2005, p.31)
E, para melhor apreender esse conceito, faz-se necessária ainda a
apresentação do conceito de Realidade.
A Realidade é aquilo que resiste às nossas experiências,
representações, descrições, imagens ou formalizações matemáticas. A
física quântica nos fez descobrir que a abstração não é um simples
intermediário entre nós e a Natureza, uma ferramenta para descrever a
realidade, mas uma das partes constitutivas da Natureza. Na física
quântica, o formalismo matemático é inseparável da experiência.
(NICOLESCU,2005, p. 30 -grifo do autor)
13
o autor refere-se à Realidade com letra maiúscula
109
A “lógica do terceiro incluído” é decorrente do surgimento das novas
lógicas quânticas, que visam resolver os paradoxos gerados pela mecânica
quântica, para os quais a lógica clássica não tem alcance. A lógica clássica não
permite a validade de uma coisa e de seu oposto ao mesmo tempo, não permite a
contradição. A lógica clássica, caracterizada pelo pensamento binário, estabelece
normas ou critérios a partir do que considera verdadeiro ou falso, de modo que
um sempre exclui o outro. Segundo Nicolescu (2005, p. 35), a gica clássica é
baseada em três axiomas:
1. o axioma da identidade: A é A
2. o axioma da não-contradição: A não é não-A
3. o axioma do terceiro excluído: não existe um terceiro termo T (T de
terceiro incluído) que é ao mesmo tempo A e não-A.
Verifica-se que esta lógica não pode admitir paradoxos, porque as
contradições são excludentes entre si, ou seja, não podemos afirmar ao mesmo
tempo a validade de uma coisa e seu oposto: A e não-A. (NICOLESCU, 1999,
p.36)
As lógicas quânticas desenvolveram-se no sentido de modificar o axioma
da não-contradição e o axioma do terceiro excluído, de modo a permitir que a
solução de um problema possa ser encontrada pela conciliação temporária dos
contraditórios, ligando-os a um nível de realidade diferente daquele no qual esses
contraditórios se manifestam. O axioma do terceiro incluído (existe um terceiro
termo T que é ao mesmo tempo A e não-A) pode ser melhor compreendido
quando resgatamos a noção de níveis de realidade. A lógica do terceiro incluído
permite atravessar os diferentes campos do conhecimento.
Buscando uma imagem mais clara desta proposição, Nicolescu
representa
os três termos da nova lógica A, não-A e T e seus dinamismos
associados, por um triângulo onde um dos ângulos situa-se em um nível
de Realidade e os outros dois em outro vel de realidade. Se
permanecermos num único nível de realidade, toda manifestação
aparece como uma luta entre dois elementos contraditórios. (...) O
terceiro dinamismo, o do estado T, exerce-se num outro nível de
Realidade, onde aquilo que parece desunido está de fato unido, e aquilo
que parece contraditório é percebido como não contraditório.
(2005, p.
38-39)
110
Buscando diferenciar a dialética hegeliana e a lógica do terceiro incluído,
o autor nos esclarece que
Toda diferença entre uma tríade de terceiro incluído e uma tríade
hegeliana se esclarece quando consideramos o papel do tempo. Numa
tríade de terceiro incluído os três termos coexistem no mesmo momento
do tempo. Por outro lado, os três termos da tríade hegeliana sucedem-
se no tempo. Por isso, a tríade hegeliana é incapaz de promover a
conciliação dos opostos, enquanto a tríade de terceiro incluído é capaz
de fazê-lo. Na lógica do terceiro incluído os opostos são antes
contraditórios: a tensão entre os contraditórios promove uma unidade
mais ampla que os inclui. (
2005, p. 39 -
grifos do autor).
Este autor ressalta ainda que, embora os conceitos de pluri, inter e
transdisciplinaridade sejam distintos, eles também são complementares, pois a
disciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a
transdisciplinaridade são as quatro flechas de um único e mesmo arco: o do
conhecimento. (2005, p. 55).
Finalizando, apresentamos trechos da Carta da Transdisciplinaridade,
elaborada em 1994, com a finalidade de identificar algumas de suas relações com
a educação, com a interculturalidade e com a política.
... Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade, mas, a título de
habitante da Terra, é ao mesmo tempo um ser transnacional. O
reconhecimento pelo direito internacional de um pertencer duplo a
uma nação e à Terra constitui uma das metas da pesquisa
transdisciplinar (...) Não existe um lugar privilegiado de onde se possam
julgar as outras culturas. O movimento transdisciplinar é em si
transcultural (...) Uma educação autêntica o pode privilegiar a
abstração no conhecimento. Deve ensinar a contextualizar, concretizar e
globalizar. A educação transdisciplinar reavalia o papel da intuição, da
imaginação, da sensibilidade e do corpo na transmissão dos
conhecimentos (...) A elaboração de uma economia transdisciplinar é
fundada sobre o postulado de que a economia deve estar a serviço do
ser humano e não o inverso (...) A ética transdisciplinar recusa toda
atitude que recusa o diálogo e a discussão, seja qual for sua origem
de ordem ideológica, científica, religiosa, econômica, política ou
filosófica. (CETRANS, 2004c)
Com esta explanação sobre diferentes conceitos de interdisciplinaridade e
transdisciplinaridade, objetivamos identificar as várias possibilidades de se
abordar a questão da unidade e da multiplicidade e destacar a tendência deste
momento histórico em resistir às diferentes formas de diluição da diversidade em
busca de uma unidade homogênea e homogeneizadora. Ressaltamos as
111
tendências que buscam estabelecer diferentes formas de interação entre as
partes e o todo, de modo a manter, ao mesmo tempo, a unidade e a multiplicidade
ou a diversidade. É nesse sentido que buscamos estabelecer relações
metafóricas com a colcha de retalhos do movimento Tecendo a Paz.
3. Colcha de retalhos: uma metáfora para a vivência com a diversidade?
A cultura, que caracteriza as sociedades humanas, é
organizada/organizadora via o veículo da linguagem, a partir do capital
cognitivo coletivo dos conhecimentos adquiridos, das competências
aprendidas, das experiências vividas, da memória histórica, das crenças
míticas de uma sociedade. Assim se manifestam “representações
coletivas”, “consciência coletiva”, “imaginário coletivo”. E, dispondo de
seu capital cognitivo, a cultura institui as regras/normas que organizam a
sociedade e governam os comportamentos individuais (...) se a cultura
contém um saber coletivo acumulado em memória social, se é portadora
de princípios, modelos, esquemas de conhecimento, se gera uma visão
de mundo, se a linguagem e o mito são partes constitutivas da cultura,
então a cultura não comporta somente uma dimensão cognitiva: é
uma máquina cognitiva cuja práxis é cognitiva. (MORIN, 2002a, p.
19 – grifos do autor)
Partindo desta premissa, buscamos analisar o sentido do termo “colcha
de retalhos”, utilizado freqüentemente tanto na linguagem cotidiana, quanto na
linguagem acadêmica, buscando identificá-lo como uma possível representação
coletiva de uma cultura que ainda não estaria constituída, no núcleo de suas
estruturas cognitivas mais profundas, para lidar com o paradigma emergente.
O termo “colcha de retalhos” tem sido usado como metáfora do simples
ajuntamento ou somatória de partes desconexas, conflitantes ou contraditórias, de
modo a não resultar na construção do todo ou da unidade.
No texto de Fazenda, sobre metodologia da pesquisa educacional, ao
tratar das dificuldades comuns entre os que pesquisam educação, a autora se
refere à colcha de retalhos destacando seu aspecto de desconexão entre as
partes.
112
Um dos produtos da dificuldade para escrever é a chamada “colcha de
retalhos”. Nela, o pesquisador, por não possuir ainda um discurso
próprio, utiliza-se ou apropria-se do discurso alheio, e, ao somar textos,
não percebe que muitas vezes estes estão desconexos ou conflitantes.
(1989, p.14)
Cerisara também se utiliza do termo “colcha de retalhos” como metáfora
de desconexão ou ausência de identidade, ao tratar dos problemas da formação
de educadores infantis, cuja prática tem-se mostrado insatisfatória, não
superando o que a autora entende como contradição entre os aspectos da
assistência e da educação.
... a identidade do educador de educação infantil é uma verdadeira
colcha de retalhos, expressa também pela variedade de denominações
que tem recebido pajem, professor, educador, profissional de creche.
A falta de identidade desse profissional reflete a indefinição presente na
própria área, que é resultado tanto das diferentes políticas públicas
implementadas para a infância quanto dos modismos pedagógicos que,
em vez de incrementar o debate e contribuir para a melhoria da
qualidade do trabalho em uma perspectiva de continuidade, acabam por
cristalizar posturas e negar o que foi construído, criando uma atitude
de eterno começar de novo.
(1995, p.69)
Embora as autoras apresentem questões que mereçam um trabalho de
integração, de busca de sentido, de movimento de continuidade e vivência de
contradições, pensamos que a associação da colcha de retalhos com os aspectos
de desconexão e mera justaposição merece ser revista e discutida. Pois,
devemos considerar que retalhos desconexos o apenas retalhos... Eles não
constituem uma colcha, uma unidade.
Uma colcha é um todo, constituído de retalhos conectados e costurados,
de modo a garantir uma determinada forma que, por si só, terá sua identidade e
sua finalidade. No entanto, a identidade ou a estética da colcha de retalhos,
geralmente, não obedece a um padrão linear, homogêneo, previsível e
previamente determinado. Uma colcha de retalhos é a unidade constituída pela
multiplicidade.
Na construção de uma colcha, os retalhos pedaços retirados de outros
tecidos integram-se, encontram conexões possíveis entre si, seguindo
movimentos às vezes aleatórios, às vezes definidos previamente, às vezes
descobertos no próprio processo, às vezes decorrentes de necessidades
113
diversas. Os retalhos ali colocados guardam características da peça original do
tecido ao qual pertenciam, porém, passam por recortes, transformações,
associações e novas interações que lhes conferem novas características.
Algumas das características originais permanecem na particularidade de cada
retalho, mas outras características lhes são agregadas, advindas das relações
estabelecidas entre os retalhos e também destes com o produto final, a própria
colcha, que também se relaciona com seu contexto. Mas, o que marca uma
colcha de retalhos é o fato de que os retalhos, ao mesmo tempo em que mantém
suas especificidades, eles integram a unidade. A colcha é uma unidade. Quando
usamos uma colcha de retalhos, nos cobrimos com a colcha ou com os retalhos?
Conseguiríamos nos aquecer somente com os retalhos? Talvez não, porque eles
poderiam espalhar-se por todos os lados, deixar buracos. E, no entanto, os
retalhos, na colcha, permanecem unidos, ligados. Porém, eles mantêm bem
definidos os seus limites ou, se assim podemos chamar, as suas fronteiras. Na
costura dos retalhos, as fronteiras ficam evidentes, porém, são construídas
dinamicamente. Para constituir essas costuras, os retalhos passam por recortes,
acomodações, transformações, às vezes fáceis e complementares, outras vezes
difíceis e conflitantes. Seja pelas cores, pelas estampas ou pelo tipo de tecido, os
retalhos podem acomodar-se naturalmente, mas, às vezes, é necessário
encontrar novas técnicas para unir alguns tecidos a outros, outras vezes é preciso
negociar os espaços, às vezes é preciso encontrar outros lugares onde os
retalhos se acomodem melhor ou ainda, basta olhar de uma maneira diferente
para descobrir novas possibilidades e novas interações, mas, mesmo assim,
ainda é possível que sobrem retalhos... Talvez porque nenhuma colcha possa dar
conta da totalidade dos retalhos, pois eles parecem tão inesgotáveis quanto as
possibilidades de se fazer colchas. Enfim, a partir de muitos movimentos
possíveis, cada colcha se constrói, dentro de suas possibilidades, necessidades e
finalidades.
Devemos ainda chamar a atenção para o sentido de reaproveitamento
implícito à colcha de retalhos, ou seja, ela reconhece a potencialidade e novos
significados a retalhos que, em algum outro projeto, foram descartados,
desconsiderados, transformados em resto. Neste sentido poderíamos exercitar
114
outras metáforas, talvez relativas à questão ecológica e uso de recursos naturais
ou ainda aos diversos processos de exclusão social e circulação do capital.
No entanto, pretendemos apontar, principalmente, a metáfora relativa à
construção da unidade a partir da diversidade e à resistência aos processos de
homogeneização das diferenças em torno de uma suposta unidade.
Assim, consideramos que, se a colcha de retalhos carrega em si a
unidade e a diversidade, não seja adequado atribui-lhe características de simples
somatória ou ajuntamento de partes, visto que essa justaposição não garante a
sistemicidade da unidade.
É limitado pensar que cada retalho se relaciona apenas com seus
vizinhos fronteiriços. Preferimos pensar que cada retalho guarda em si, ao mesmo
tempo, o sentido global da colcha e suas características particulares,
relacionando-se o apenas com os limites de suas fronteiras, mas sim, de modo
sistêmico, com todos os demais retalhos. Imaginar que os retalhos justapostos
relacionam-se apenas com seus vizinhos fronteiriços, parece-nos análogo ao fato
de imaginar, por exemplo, que a guerra entre os Estados Unidos da América e o
Iraque não tem nenhuma influência ou relação com o Brasil e com os outros
países do planeta.
Reafirmando a condição sistêmica dessas relações, preferimos, ao invés
de justaposição ou simples somatória, atribuir a esta nossa metáfora a
característica de horizontalidade nas relações entre os retalhos, resgatando as
idéias de tessitura e rede apresentadas por Oliveira e Alves (2006) no capítulo
anterior. Uma horizontalidade que, reconhecendo o valor de cada retalho, atribui-
lhe os mesmos poderes, numa organização diferente do modelo hierárquico de
distribuição de poder.
No desenvolvimento desta reflexão retomamos as questões iniciais deste
trabalho. Quando nos referimos à colcha de retalhos ressaltando apenas os
aspectos da desconexão ou justaposição entre as partes, o estaríamos
reproduzindo a idéia de que a construção da unidade somente poderia ocorrer a
partir da homogeneidade, da padronização? Esta idéia não traria em seu bojo a
115
discriminação das diferenças e a impossibilidade de construir uma unidade a
partir da convivência com a diversidade?
A colcha de retalhos carrega em si as marcas de uma estética rural,
pobre, caipira, fruto de um trabalho coletivo de mulheres que aproveitavam restos
de tecido para produzir calor às suas camas. Haveria uma ideologia nessa
estética e nesse símbolo que, por estigma ou preconceito, o merecesse
confiabilidade?
Podemos notar, mais uma vez, o caráter simplista e desclassificatório,
culturalmente atribuído à colcha de retalhos em nossa linguagem cotidiana, a
partir da reportagem Demagogia com as domésticas”, que trata da formalização
do emprego das domésticas na Medida Provisória 284, da qual apresentamos
fragmentos:
...O projeto de conversão aprovado pelo Congresso tornou compulsório
o que era optativo e encheu o texto original de penduricalhos que nada
têm a ver com o objeto da MP, desfigurando grotescamente a proposta
do Executivo. (...) O pretendido benefício acabou virando uma colcha de
retalhos. (...) O que começou como uma simples medida provisória para
cortejar o voto das empregadas domésticas no pleito de outubro
terminou como um monstrengo legislativo. (O ESTADO DE SÃO
PAULO, Caderno A, 01/07/2006, p. 3)
A antiga colcha de retalhos, com as marcas de nossas avós e de nossa
cultura caipira, hoje começa a ganhar espaço no mundo da moda e do consumo,
mas, para tanto, passa a receber, soberbamente, o nome de patchwork! Por que
receber um nome de origem inglesa e, a partir dcomeçar a ganhar espaços e
valores no mundo do consumo?
Neste trabalho não nos referimos ao patchwork, mas sim à “colcha de
retalhos” e, mais especificamente, à colcha de retalhos que foi construída no
movimento “Tecendo a Paz”. Não é nosso objetivo discutir as diferentes formas
de apropriação de símbolos e discursos pela lógica do capital e do consumo, mas
esta questão está colocada, ainda que implicitamente.
Desconstruindo a idéia de “colcha de retalhos” como “partes desconexas”
ou “justapostas”, podemos reconstruir a idéia de que uma colcha é, antes de tudo,
uma colcha e, portanto, retalhos conectados, ou seja, um tecido constituído a
116
partir de outros tecidos. Uma colcha de retalhos, uma vez constituída como
colcha, traz em si a unidade construída a partir da conexão da diversidade, da
relação entre retalhos ora contraditórios, ora concorrentes, ora complementares.
Tal idéia fundamenta-se na possibilidade de convivência com a diversidade e não
na idealização da harmonia como resultado de um processo de homogeneização.
Para a construção aqui analisada, trabalhamos com o conceito de auto-
organização, pois partimos do princípio que os retalhos foram recortados,
modelados, acomodados e costurados na colcha durante o próprio processo de
construção, a partir das necessidades e possibilidades concretas, sem uma
definição a priori de sua forma final e sem uma coordenação centralizada e
hierárquica do processo. A coordenação das ações manifestou-se como produto
do próprio processo de construção, do objetivo da colcha e de seu sentido.
Buscando desenvolver uma reflexão acerca das possíveis relações entre
auto-organização, estruturas de poder, ciência, cultura, violência e diversidade,
faremos um percurso teórico buscando diferentes autores que nos ajudam nesta
reflexão.
Segundo Shiva (2001, p.127-144) o tratamento da diversidade como
ameaça, perversão, fonte de desordem, doença ou deficiência, é a origem da
violência, pois a diversidade não pode ser submetida a um controle centralizador.
Da mesma forma, quando a auto-organização é percebida como caos, o raro
busca-se a imposição de uma ordem coercitiva, violenta e externa ao sistema em
questão, gerando a perturbação ou destruição da ordem intrínseca a esse
sistema. Assim, a implantação de um controle centralizador, que visa à
homogeneização coercitiva, leva à destruição do tecido plural da sociedade, de
suas culturas e identidades locais e de sua capacidade de auto-organização. Os
processos de homogeneização não eliminam totalmente a diversidade, mas
transformam-na em experiências de competição e exclusão, tornando a
intolerância à diversidade uma nova doença social que, ao invés de permitir o
processo de auto-organização, acaba gerando comunidades vulneráveis ao medo
e à insegurança, ao colapso e à violência, à decadência e à destruição.
117
Fazendo uma análise histórica dos processos de colonização européia,
assim como do atual processo de globalização, Shiva nos lembra que cada vez
que a ordem global tentou eliminar diversidade e impor homogeneidade, a
desordem e a desintegração foram fomentadas (2001, p. 130). Assim, para
garantir condições de sobrevivência, rumo a uma sociedade sustentável e justa,
torna-se imperativo fazer as pazes com a diversidade. Estamos diante de uma
discussão que evoca a constituição econômica e cultural de uma sociedade e de
seus integrantes.
Shiva (2003, p.25), fazendo uma analogia entre o processo de
monocultura mental e os processos de monoculturas agrícolas, aponta as
diferenças entre a agricultura e a silvicultura científicas, de um lado, e a relação
do homem com o campo e com as florestas naturais, de outro lado. Os campos e
as florestas naturais são vistos como produção de alimentos e condições de
subsistência para comunidades locais, enquanto que, na visão científica, o campo
e as florestas não têm relação entre si: a agricultura produz alimento e a floresta
produz madeira para a indústria. No primeiro caso, as florestas produzem vida e
alimento, no segundo, produzem madeira morta e lucro. No segundo caso, a
floresta e a agricultura não são consideradas como sistemas interdependentes e
ainda não são consideradas as relações de interdependência no interior de cada
um dos sistemas. Assim, ao priorizar apenas um produto agrícola ou um produto
para extração da floresta, desprezando os demais, definem-se as monoculturas,
rompendo a integração sistêmica, eliminando a biodiversidade, tornando os
sistemas vulneráveis pela perda de seus mecanismos intrínsecos de auto-
regulação e, conseqüentemente, tornando-os dependentes de uma força externa
ao sistema.
Note-se aqui que o tratamos apenas das metodologias de produção de
conhecimento, mas também das finalidades do uso do conhecimento: enquanto
um produz vida, o outro produz lucro. Cabe, portanto, desenvolver uma reflexão
sobre a ética e a finalidade da ciência no mundo ocidental capitalista.
Ressaltamos a discussão implícita das relações de poder entre as duas formas de
conhecimento: quando a ciência moderna apaga o conhecimento local,
desprezando-o como despreza uma erva-daninha, está também buscando
118
priorizar exclusivamente seus interesses e necessidades, em detrimento dos
demais.
Segundo Shiva
Não lugar para o pequeno; o insignificante não tem valor. A
diversidade orgânica é substituída pelo atomismo e pela uniformidade
fragmentada. A diversidade tem de ser erradicada como uma erva-
daninha, e as monoculturas uniformes de plantas e pessoas têm de
ser administradas de fora porque não são mais auto-reguladas e
autogeridas. Aqueles que não se ajustam à uniformidade são
declarados incompetentes. A simbiose cede lugar à competição, à
dominação e à condição de descartável. (...) Na Ásia existem dois
paradigmas de silvicultura – um que promove a vida e outro que a
destrói. O paradigma que promove a vida surgiu na floresta e nas
comunidades florestais; o paradigma que destrói a vida surgiu no
mercado. (2003, p.33)
Assim,
Shiva nos mostra como o processo de intervenção do homem na
natureza, baseado nos princípios da ciência moderna reducionista, na lógica do
capital e da dominação de um homem sobre o outro, na busca da
homogeneização e na luta contra a diversidade, tanto da natureza quanto da
cultura, acaba por destruir os sistemas de auto-organização e sustentabilidade,
sejam naturais ou sociais, tornando esses sistemas dependentes de intervenções
externas e estranhas aos próprios sistemas.
Uma experiência pessoal me fez compreender essa questão descrita por
Shiva. Quando viajei para Santa Terezinha do Araguaia MT, para mim, um
mundo novo e distante, após percorrer caminhos áridos e difíceis e chegando à
casa de uma agente de saúde que trabalhava junto ao povo indígena Karajá,
deparei-me com uma cena que me marcou profundamente, cujos significados
busco apreender ao longo de minhas reflexões: uma mulher índia, com fortes
marcas de pobreza, carregava no colo um bebê e, com ar de abandono,
dependência e submissão, pedia à agente de saúde um tipo especial de leite em
pó, cuja entrega estava atrasada, dizendo meu filho vai morrer sem “aquele”
leite! O nome específico do leite, como era chamado pela índia, não está aqui
divulgado por motivos éticos. Tratava-se de um leite industrializado enriquecido,
muito conhecido no mercado e de custo bastante elevado, usado como
complemento alimentar para crianças que, por algum motivo, apresentam
deficiências na qualidade da nutrição e do crescimento. A vida daquela criança
119
índia então dependia do leite industrial? Percebi imediatamente que minha
estadia naquela nova realidade, em contato com os Karajá, seria permeada por
inúmeras questões e contradições.
Morin também nos fala dos riscos da fragmentação do saber moderno e
seu distanciamento da natureza.
As mentes formadas pelas disciplinas perdem suas aptidões naturais para
contextualizar os saberes, do mesmo modo que para integrá-los em seus
conjuntos naturais. O enfraquecimento da percepção do global conduz ao
enfraquecimento da responsabilidade (cada qual tende a ser responsável
apenas por sua tarefa especializada), assim como ao enfraquecimento da
solidariedade (cada qual não mais sente os vínculos com seus
concidadãos).
(2001a, p. 40-41)
E ainda,
A especialização “abs-trai”, em outras palavras, extrai um objeto de seu
contexto e de seu conjunto, rejeita os laços e as intercomunicações com
seu meio, introduz o objeto no setor conceptual abstrato que é o da
disciplina compartimentada, cujas fronteiras fragmentam arbitrariamente a
sistemicidade e a multidimensionalidade dos fenômenos. (...) A inteligência
parcelada, compartimentada, mecanicista e reducionista rompe o
complexo do mundo em fragmentos disjuntos, fraciona os problemas,
separa o que está unido, torna unidimensional o multidimensional. É uma
inteligência míope que acaba por ser normalmente cega. (...) Incapaz de
considerar o contexto e o complexo planetário, a inteligência cega torna-se
inconsciente e irresponsável. (MORIN, 2001a, p. 41-43)
Quanto à capacidade de auto-organização ou auto-regulação como fontes
naturais, podemos ressaltar a idéia de que o homem, ao buscar controlar a
natureza de modo racionalista e fragmentado, movido, principalmente, por
questões econômicas, deixou de compreender-se como ser natural, afastando-se
de suas próprias relações sistêmicas consigo mesmo e com a natureza.
Segundo Morin, o humano é um ser a um só tempo plenamente biológico
e plenamente cultural, que traz em si a unidualidade originária (2001a, p. 52), não
podendo dissociar-se da animalidade e da humanidade que constituem a
condição humana.
Partindo do princípio que o homem é parte constituinte e sistêmica da
natureza e do cosmos, alguns autores defendem a idéia da auto-organização para
os sistemas sociais e humanos, tanto quanto para os processos de geração da
vida no planeta, do próprio planeta e do universo.
120
Para Morin
A Terra auto-produziu-se e auto-organizou-se na dependência do Sol;
constituiu-se em complexo biofísico a partir do momento em que se
desenvolveu a biosfera. (...) Somos originários do cosmos, da natureza,
da vida, mas, devido à própria humanidade, à nossa consciência,
tornamo-nos estranhos a este cosmos, que nos parece secretamente
íntimo. Nosso pensamento e nossa consciência fazem-nos conhecer o
mundo físico e distanciam-nos dele. (...) À maneira de ponto do
holograma, trazemos no seio de nossa singularidade não somente toda
a humanidade e toda a vida, mas também quase todo o cosmos,
incluindo seu mistério que, sem dúvida, jaz no fundo da natureza
humana. (2001a, p. 50-51)
Boaventura Santos também nos sua contribuição. Levantando críticas
ao modelo científico positivista que trata a natureza como matéria inerte, passiva,
eterna e reversível, aponta para a necessidade urgente da ciência de constituir-se
a partir dos novos paradigmas, apoiado nas novas teorias da Física, da Química e
da Biologia.
Os avanços recentes da Física e da Biologia põem em causa a distinção
entre o orgânico e o inorgânico, entre seres vivos e matéria inerte e
mesmo entre o humano e o não humano. As características da auto-
organização, do metabolismo e da auto-reprodução, antes consideradas
específicas dos seres vivos, são hoje atribuídas aos sistemas pré-
celulares de moléculas. E quer num quer noutros reconhecem-se
propriedades e comportamentos antes considerados específicos dos
seres humanos e das relações sociais. (...) todas essas teorias
introduzem na matéria os conceitos de historicidade e de processo, de
liberdade, de autodeterminação e até de consciência que antes o
homem e a mulher tinham reservado para si. (2003, p. 61-62)
Para Shiva (2003, p.37) a silvicultura científica reducionista industrializou a
floresta, ou seja, ao invés de levar as relações implícitas à floresta para a
indústria, os processos de colonização levaram o modelo de organização
industrial às florestas, promovendo uma intervenção do homem sobre a natureza,
no sentido de alterar brutalmente suas leis e adequar as florestas às
necessidades econômicas de produtividade. Ao estabelecer a economia e a
produtividade como referência, a floresta natural, cuja diversidade própria não
atende às necessidades industriais, passou a ser considerada anormal e caótica.
A floresta “normal” passou a ser considerada aquela floresta produzida pelo
homem, que obedece à ordem administrativa. Essa intervenção do homem nos
121
ecossistemas, sacrificando o que é natural pode ser melhor compreendida a partir
da declaração de Troup
14
, apresentada e criticada por Shiva.
Para chegarmos a ter uma floresta normal a partir da condição anormal
da floresta natural existente é preciso fazer um certo sacrifício
temporário. Em termos gerais, quanto mais rápida a passagem para o
estado normal, tanto maior o sacrifício; por exemplo: é possível obter
florestas normais de uma vez com uma série de derrubadas
completas seguidas de regeneração artificial; mas, numa floresta
irregular e sem uniformidade na idade de suas espécies, isso significa o
sacrifício de muitas árvores jovens que podem ser invendáveis. É
provável que a questão de minimizar o sacrifício envolvido na introdução
da ordem no caos nos leve a exercitar consideravelmente a nossa
mente em relação à administração florestal. (TROUP, apud SHIVA,
2003, p. 37)
Podemos encontrar na história outros relatos da brutalidade humana
contra a natureza, na busca da adequação à ordem imposta pelos padrões
industriais de produção. A própria indústria exigiu para sua própria implantação, o
sacrifício de homens, mulheres e crianças que foram obrigados a adaptar o ritmo
natural do trabalho ao ritmo industrial, ditado pela máquina e pelo capital.
Huberman nos traz algumas dessas situações.
As máquinas, que podiam ter tornado mais leve o trabalho, na
realidade o fizeram pior. Eram tão eficientes que tinham de fazer sua
mágica durante o maior tempo possível. Para seus donos,
representavam tamanho capital que não podiam parar – tinham de
trabalhar, trabalhar sempre. Além disso, o proprietário inteligente sabia
que arrancar tudo da máquina, o mais depressa possível, era essencial
porque, com as novas invenções, elas podiam tornar-se logo obsoletas.
Por isso os dias de trabalho eram longos, de 16 horas. (...) Mas os dias
longos apenas, não teriam sido tão maus. Os trabalhadores estavam
acostumados a isso. Em suas casas, no sistema doméstico,
trabalhavam durante muito tempo. A dificuldade maior foi adaptar-se à
disciplina da fábrica.
(1986, p. 177- 179)
A ordem estava ligada à disciplina e, particularmente, à produção do
capital. Novamente temos aqui a questão: a exploração de um homem por outro
homem e a dominação da natureza estão ligadas ao método científico moderno
ou à sua utilização pelo capital? É possível separar método e finalidade?
Visando refletir sobre a questão da ordem na perspectiva da ciência
positivista, podemos considerá-la como uma metodologia que promove o
14
TROUP, R.S. Silviculture Systems. – Oxford: Oxford University Press, 1916.
122
pensamento linear, organizado por fases ou etapas, com relações previsíveis e
controláveis de causa–efeito, com possibilidades de inteligibilidade e
racionalização dos fenômenos ou comportamentos e com procedimentos de
análise e ntese, mesmo que de partes isoladas de seu contexto. No entanto, os
novos paradigmas têm colocado em discussão esses métodos, como aponta
Morin
Abandonamos recentemente a idéia do Universo ordenado,
perfeito, eterno, pelo universo nascido da irradiação, em devenir
disperso, onde atuam, de modo complementar, concorrente e
antagônico, a ordem, a desordem e a organização. (...) A epopéia
cósmica da organização, continuamente sujeita às forças da
desorganização e da dispersão, é também a epopéia da religação que,
sozinha, impediu que o cosmos se dispersasse ou se desvanecesse ao
nascer. (2001a. p. 48-49)
E ainda,
O pensamento complexo, que não pode expulsar a contradição de seus
processos, não pode tampouco pretender que as contradições lógicas
reflitam contradições próprias ao real. A contradição vale para o nosso
entendimento, não para o mundo. A contradição surge quando o mundo
resiste à lógica, mas o mundo que resiste à lógica nem por isso é
contraditório. (...) Todo conhecimento é tradução, e a contradição é o
modo pelo qual se traduzem, aos olhos de nossa razão, os buracos
negros nos quais desmoronam as nossas coerênciasgicas. (2002a, p.
241)
Reavaliando o conceito de “ordem” da ciência moderna, e baseando-
se nos novos conceitos da Física e da Biologia, Morin desenvolveu um vasto
estudo sobre as relações entre ordem desordem organização. Segundo o
autor (2003a, p. 71-79) estes termos estão ligados, em um circuito solidário,
através de interações complexas e, portanto, estabelecendo relações
complementares, concorrentes e antagônicas. Os termos
ordem/organização/desordem/interação desenvolvem-se mutuamente uns nos
outros, de modo que não se possa isolá-los, mas se possa pensar,
contrariamente, na ordem da desordem e na desordem da ordem.
Buscando facilitar nossa compreensão sobre o jogo das interações
entre ordem/desordem/organização, Morin nos mostra que as interações
123
1. supõem elementos, seres ou objetos materiais que se podem encontrar;
2. supõem condições de encontro, quer dizer, agitação, turbulência, fluxo
contrário, etc.;
3. obedecem a determinações/imposições ligadas à natureza dos
elementos, objetos ou seres que se encontram;
4. tornam-se, em certas condições, inter-relações (associações, ligações,
combinações, comunicações, etc.), ou seja, dão origem a fenômenos de
organização. (2003a, p. 72)
Assim, o autor conclui que, para que haja organização, é preciso
interações: para que haja interações é preciso encontros, para que haja encontro
é preciso desordem (agitação, turbulência). (MORIN, 2003a, p. 72)
Morin ainda desenvolveu estudos sobre a eco-organização e a auto-
organização. Com relação à eco-organização, suas posições aproximam-se de
Shiva à medida ele também considera que
... a diversidade genética dos indivíduos, no seio de uma população ou
de uma espécie, aumenta a resistência da população ou da espécie às
perturbações. Onde há homogeneidade, todos são atingidos quando um
é atingido; a homogeneidade carrega a morte, e a diversidade
aumenta as chances de vida... (MORIN, 2002b, p. 59)
E ainda,
A diversidade é o ingrediente e o produto de toda a organização viva. A
vida celular nasceu de encontros entre entidades moleculares
extremamente diversas, e o desenvolvimento da organização celular
aumentou esta diversidade desenvolvendo diferenciações e
especializações das moléculas e dos organismos. (MORIN, 2002b, p.
343)
Porém, segundo o autor, existem condições e limitações que determinam
as relações entre diversidade, vitalidade, resistência e complexidade. Não se trata
de uma relação quantitativa, mas sim de um complexo sistema natural auto-
organizacional, que tem a capacidade de se auto-produzir, auto-regenerar e auto-
regular espontaneamente sem ter um centro organizador. É importante explicitar
que, para Morin, a espontaneidade não significa a improvisação de soluções em
quaisquer condições, ao contrário, toda espontaneidade é fruto de um processo
histórico e necessita de um substrato não espontâneo:
Deve-se compreender que a espontaneidade eco-organizadora, na sua
complexidade atual, é fruto de uma longa história evolutiva, em que se
124
constituíram as interações complementares/antagônicas assim como as
cadeias tróficas. Ao longo desse processo, marcados por inúmeros
acontecimentos e o surgimento de novas espécies, as eco-organizações
“descobriram”, de patamar em patamar, as configurações
reorganizadoras e reguladoras (...) Assim, se, desde a origem e por
natureza, a eco-organização é espontânea, a complexidade espontânea
dos ecossistemas evoluídos teve a necessidade de uma história e de
uma experiência. É a aliança da espontaneidade e da não
espontaneidade que permite à espontaneidade desenvolver-se e
enriquecer-se. (MORIN, 2002b, p. 62)
Para analisar as sociedades humanas, Morin utiliza-se do termo antropo-
sócio-organização que, embora distinto de eco-organização, não pode ser
desvinculado deste. O desenvolvimento das sociedades humanas foi
caracterizado, ao longo da história, por um processo de controle e sujeição da
natureza pelo homem, gerando uma intervenção das regras humanas de
organização sobre as regras eco-organizadoras. Um aumento avassalador da
subjugação da natureza pelo homem fez-se evidente após a era industrial, que
também fez aumentar a complexidade da própria sociedade humana. Hoje,
podemos identificar facilmente a destruição e a degradação dos mecanismos eco-
organizadores pelas mais diversas formas de utilização de uma tecnologia
industrial, homogeneizadora, marcada pela especialização e determinada pela
lógica do lucro. Mas, a essa ação, reciprocamente e na mesma medida, o
ecossistema exerce um controle sobre as sociedades humanas, de modo que
estas não podem escapar à eco-relação. (MORIN, 2002b, p. 88-93)
Essas questões nos remetem à reflexão sobre a necessidade de uma
ecologia que promova a integração da esfera antropossocial à ecosfera, no
sentido do resgate dos princípios auto-organizadores que produzem e mantém a
vida em sua diversidade.
O conceito de auto-organização, que também é vastamente desenvolvido
por Morin, estabelece relações constantes entre os processos biológicos e os
processos sociais de auto-organização.
Podemos localizar em um de seus estudos (MORIN, 2002b, p. 341-370),
uma problematização dos termos especialização, hierarquia e centralização, que
levam à análise de outros termos, a saber, antiespecialização, anarquia,
policentrismo e acentrismo. O autor adverte sobre os riscos de uma abordagem
125
simplista da questão, que resulte na mera substituição dos primeiros termos pelos
segundos. Respeitando os princípios de complementariedade, concorrência e
antagonismo na análise complexa das relações, a simples polarização de um
destes termos poderia, no processo dinâmico da vida, gerar o seu oposto. Ou
seja, o excesso de hierarquia pode levar ao movimento de anarquia, assim como
o excesso de anarquia pode levar à hierarquização. Ou ainda, que uma certa
dose de anarquia pode manter e suportar a hierarquia, assim como alguma
hierarquia pode manter e suportar a anarquia. Nota-se que, nos processos de
organização da vida, todos esses termos se inter-relacionam. No entanto, um
sentido que inibe a vida e outro que a produz e mantém:
Com efeito, a sujeição, a subjugação, a exploração tendem a constituir
uma organização gida e pobre, por inibição das qualidades, perda de
autonomia dos seres subordinados e especializados, subemprego das
aptidões computantes, quase-mecanização das operações. A hierarquia
se torna operacionalmente rica (complexa) se houver flexibilidade e
jogo entre os níveis, autonomia dos sujeitados, possibilidade de
decisões na base. De fato, os organismos, sociedades ecossistemas
podem auto-produzir-se e reproduzir-se a partir das interações de base
relativamente autônomas entre indivíduos-sujeitos que os constituem
(...) É preciso que haja, na organização hierárquica, um componente
anárquico. (MORIN, 2002b, p. 352)
A anarquia, segundo Morin
deve ser entendida não como desordem resultante de uma carência de
autoridade mas, ao contrário, como organização nascendo e mantendo-
se, sem que haja necessidade de autoridade dominante, e a partir das
intercomunicações e sinergias dos seres computantes constitutivos do
todo. (2002b, p. 361)
No entanto, para a manutenção da vida é necessário que esses termos se
auto-regulem, pois como ainda nos mostra Morin
A organização viva é um sincretismo variável de quatro lógicas
organizacionais ligadas, recorrendo uma a outra, combatendo-se: uma
lógica centralizadora/hierárquica; uma lógica policêntrica/poliárquica;
uma lógica anárquica; uma ecológica simultaneamente excêntrica e
presente no interior de toda auto-organização. (2002b, p. 362)
E ainda,
Afinal, temos de compreender que o grande problema de uma
organização viva, seja ela qual for, não é somente de funcionar”, e ser
funcionante e fucional, é também de ser capaz de enfrentar os acasos,
os erros, as incertezas, os perigos, isto é, de dispor de aptidões
126
estratégicas e evolutivas. O que importa para uma organização viva não
é apenas adaptar-se mas aprender, inventar, criar
. (2002b, p. 365)
Todas essas interações e essa forma de compreender
ordem/desordem/organização e auto-organização podem ser usadas como
referência para a análise do processo de construção do movimento “Tecendo a
Paz” e da costura da colcha de retalhos.
O processo de organização e divulgação do movimento não se
caracterizou por uma liderança central, mas constituiu-se, ao mesmo tempo, por
alguma coordenação central, algumas coordenações locais e muitos cidadãos
livres que se agregavam espontaneamente ao movimento. Esses diferentes níveis
de participação, no entanto, não estavam organizados hierarquicamente, nem
guardavam entre si relações de poder ou definição de papéis. Organizavam-se a
partir de um objetivo comum, dos princípios que marcaram a sua concepção e
das necessidades decorrentes do próprio processo.
A costura da colcha em praça pública, no entanto, ocorreu sem nenhuma
coordenação ou liderança centralizadas e, por conseguinte, sem nenhum controle
central ou externo ao processo. A maneira como os retalhos foram conectados ao
longo do dia resultando na colcha como produto final, caracterizou-se com um
processo de auto-produção ou auto-organização.
As idéias apresentadas por Morin sobre a relação dinâmica entre as
lógicas centralizadora/hierárquica, policêntrica/poliárquica, anárquica e excêntrica
nos processos de auto-organização, nos ajudam a compreender a intenção
expressa pelas coordenadoras de não assumir a liderança central do movimento
e, ao mesmo tempo, a percepção de que, embora houvesse ões por vezes
centrais e pontuais, suas posições eram determinadas dinamicamente, de modo a
não dirigir o movimento autoritária e hierarquicamente, mas de preservar seus
princípios, promovendo a participação, a autonomia, a espontaneidade e a
criatividade das pessoas no trabalho coletivo.
Assim como Shiva adverte que a construção de estruturas econômicas,
políticas e administrativas resultantes da ciência moderna define estruturas
cognitivas que não toleram a diversidade monoculturas da mente, Morin
também defende a reforma do pensamento, apontando para a necessidade de
127
desenvolver o que ele denomina de pensamento complexo. Os dois autores
trazem no bojo de suas propostas a necessidade de contextualizar o
conhecimento e lidar com a diversidade, de modo a repensar os conceitos
tradicionais de ordem e organização para enfrentar os desafios atuais das
relações globalizadas.
Assim, a reflexão sobre a mudança das estruturas cognitivas ou de
pensamento implica a abordagem de novos métodos de produção do
conhecimento e de novas possibilidades de relações entre os homens e entre os
homens e a natureza, contrários ao processo reducionista.
Podemos aqui resgatar a questão da interdisciplinaridade e da
transdisciplinaridade, como metodologias possíveis para a religação de saberes e
para a construção de um conhecimento contextual que conceba, essencialmente,
a vivência com a diversidade.
A transdisciplinaridade, particularmente, pretende religar os diferentes
saberes constituídos pela humanidade num diálogo intercultural, trazendo à tona
a interação entre a ciência moderna e os conhecimentos tradicionais. Não se
trata de negar a ciência moderna, mas de enfrentar as mudanças paradigmáticas
que nascem, paradoxalmente, no interior dessa própria ciência. Trata-se de
buscar novas metodologias científicas de abordagem da realidade que possam
promover a interação entre a ciência e a cultura, estabelecendo uma ética que
resgate a necessidade de preservação da espécie humana e de todo o sistema
planetário. Como podemos perceber,
A transdisciplinaridade não procura construir sincretismo algum entre a
ciência e a tradição: a metodologia da ciência moderna é radicalmente
diferente das práticas da tradição. A transdisciplinaridade procura
pontos de vista a partir dos quais seja possível torná-las interativas,
procura espaços de pensamento que as façam sair de sua unidade,
respeitando as diferenças, apoiando-se especialmente numa nova
concepção de natureza. (CETRANS, 2004b)
Retomando a metáfora da colcha de retalhos e buscando aproximações
deste símbolo com a transdisciplinaridade, podemos compreendê-la como uma
forma de integrar diferentes conhecimentos produzidos pela humanidade, sem
descaracterizá-los, mas colocando-os à disposição de múltiplas
interações, com a
128
finalidade de abordar o real em sua complexidade. Se buscarmos aproximações
com a idéia de pesquisa, o movimento de construção da colcha pode relacionar-
se com a multirreferencialidade e não com a busca do fundamento. Se fizermos
analogia com processos de organização social e política, podemos nos aproximar
dos processos democráticos de auto-gestão ou auto-organização. Se
estabelecermos analogias com a questão da identidade, podemos invocar a idéia
de identidades híbridas, complexas, abertas e fechadas ao mesmo tempo e não
de uma identidade essencial e fechada, de modo que as trocas culturais se
constituam dinâmica e democraticamente, sem a dominação de uma cultura sobre
outra.
A metáfora aqui desenvolvida diz respeito à vivência com a diversidade
numa relação de cooperação e não de competição, num processo de auto-
organização e não de dominação, numa dinâmica que, ao mesmo tempo o
segregue e não homogeneíze, mas que permita a interação entre as diferentes
partes, de modo que, ao mesmo tempo, o individual e o coletivo se modifiquem,
não a partir de uma imposição externa, mas a partir das necessidades do próprio
processo concreto e coletivo de construção da unidade.
Para a constituição da unidade ou do todo, é possível que nas
interações entre todo e partes se preservem características individuais, de modo
que as partes integrantes não se tornem um amálgama, perdendo aquilo que lhes
é particular, no entanto, nessas interações, as partes também podem modificar-
se, integrando-se ao contexto e à intimidade das relações com as outras partes. O
todo, portanto, é um resultado dinâmico que determina e é determinado pelas
inúmeras relações entre as partes e entre as partes e esse mesmo todo.
Retomando Morin, o todo tem qualidades ou propriedades que não
são encontradas nas partes, se estas estiverem isoladas umas das outras, e
certas qualidades ou propriedades das partes podem ser inibidas pelas restrições
provenientes do todo. (2001a, p. 37)
Queremos ressaltar ainda que a vivência com a diversidade e a
tolerância às diferenças não depende apenas de uma questão de método. Para
garantir essas relações, a ética deve colocar-se como núcleo dessa questão. Não
129
podemos falar apenas em metodologias de produção de conhecimento ou de
interações se não tivermos clareza dos objetivos e dos valores que determinam
essas produções.
Assim, a ética transpassa todas as nossas reflexões, mas uma ética
que vise, ao mesmo tempo, o bem individual e coletivo, uma ética que possa
fundamentar a construção de uma sociedade justa e igualitária, uma ética que
vise à preservação e qualificação da vida no planeta.
O movimento social “Tecendo a Paz” foi uma construção espontânea
e coletiva, no entanto, havia uma ética resguardada por essa coletividade que não
se tratava de uma coletividade abstrata ou indiscriminada, mas uma parte da
sociedade que resistia e lutava contra a violência social e que tinha, portanto,
necessidades, interesses e princípios distintos daqueles que levaram ao
assassinato do prefeito Toninho.
Esse movimento foi um ato de resistência contra as diferentes ameaças e
formas de violência às quais a sociedade estava submetida, dentre as quais, a
grande desintegração da própria coletividade. O ato de costurar, naquele
momento, assumia a força simbólica da união, da religação. Morin nos fala da
necessidade de religar o que está separado, resumindo, de forma poética, a ética
e a resistência que podem dar um sentido àquela costura:
Devemos resistir àquilo que separa, desintegra e distancia, mesmo
sabendo que a separação, a desintegração e o distanciamento
ganharão a partida. A resistência é o que ajuda estas forças fracas, o
que defende o frágil, o perecível, o emergente, o belo, o verdadeiro, a
alma. É o que pode abrir uma fenda no Plexiglas da indiferença, para
sorrir e consolar os prantos. Sorrir, rir, fazer piada, acariciar e abraçar;
tudo isso é também resistir. (2003c, p.274)
A colcha de retalhos do movimento “Tecendo a Paz” expressa não apenas
a integração da diversidade necessária ao desenvolvimento do pensamento
complexo e da sociedade inclusiva, mas também a horizontalidade das relações
que integram a diversidade, idealizando uma organização não autoritária, não
centralizada e não hierarquizada dos poderes que as constituem.
É sobre estas metáforas que nossas reflexões vêm se desenvolvendo. No
entanto, é prudente considerar, desde já, a provisoriedade destas metáforas.
130
Acreditamos que, diante da criatividade do pensamento, dos limites da própria
colcha e do processo de construção histórica, essas metáforas poderão
transformar-se, superar-se, gerar novas reflexões. Hoje, elas nos parecem
possíveis e, talvez, necessárias, mas acreditamos em seus limites históricos, uma
vez que o próprio conhecimento humano é uma produção histórica.
15
15
A colcha de retalhos vem sendo usada como símbolo de outros movimentos sociais, organizações
coletivas ou manifestações artísticas. Embora tenhamos conhecimento desse fenômeno e, embora a
pesquisa desse fenômeno tenha constituído parte de nossos desejos, não nos foi possível ampliar nosso
estudo para esse foco, neste momento. Apenas a título de ilustração, apresentamos fotos relativas ao uso da
colcha de retalhos como símbolo de outros movimentos ou manifestações populares: “Ato em lembrança aos
150 mil mortos pela Aids no Brasil”, no dia internacional de combate à doença, no Anhangabaú – São Paulo
SP (Figura 19) e “Romaria dos Mártires da Caminhada” em Ribeirão Cascalheira – MT (Figuras 20 e 21)
131
Folha de São Paulo, 1º de dezembro de 2001
Figura 19 – A colcha de retalhos como símbolo (1): Ato no Anhangabaú em
São Paulo – SP, no dia internacional da AIDS.
132
Figura 20: A colcha de retalhos como símbolo (2): Romaria dos Mártires da
Caminhada, em Ribeirão Cascalheira – MT, 15 de julho de 2006.
Figura 21: A colcha de retalhos como símbolo (3): Romaria dos Mártires da
Caminhada, em Ribeirão Cascalheira – MT, 15 de julho de 2006.
Foto: Dulce M. P. de Camargo (arquivo pessoal)
Foto: Dulce M. P. de Camargo (arquivo pessoal)
133
CAPÍTULO III
134
NA INTERAÇÃO TEORIA-PRÁTICA... VIVENDO
É bem verdade que a idéia da ligação dos saberes acomete o
inconsciente de todos aqueles que pretendem exercitar a razão aberta
na vida e nas idéias, na prosa e na poesia, no amor e no desejo, na
utopia e na esperança. Com dualidades implodidas e disciplinaridades
questionadas, esses pensadores nômades, angustiados e ansiosos,
projetam uma força idômita que se dissemina em territórios inesperados,
em subjetividades dissipadas, em brechas institucionais, como sintoma
de uma criatividade complexa demais para permanecer nos limites da
Academia. (CARVALHO, 2003b, p. 9)
1. Metodologia da pesquisa
Neste estudo, de natureza qualitativa e descritiva, utilizaram-se, como
instrumentos de investigação, de pesquisa bibliográfica, documental, e pesquisa
de campo. Para a pesquisa de campo foram realizadas entrevistas semi-
estruturadas a professores
da Faculdade de Terapia Ocupacional da PUC-
Campinas, que participaram do movimento “Tecendo a Paz”.
A definição da amostra obedeceu aos seguintes critérios: professores da
Faculdade de Terapia Ocupacional da PUC-Campinas, de ambos os sexos, que
ministraram aulas no Curso de Terapia Ocupacional no segundo semestre de
2001 e que tenham participado do movimento “Tecendo a Paz” em pelo menos
uma de suas fases: organização, divulgação, costura da colcha, utilização de
material relativo ao movimento em sala de aula.
O Curso de Terapia Ocupacional da PUC-Campinas no segundo semestre
de 2001 era composto por vinte e quatro docentes, sendo doze deles
responsáveis pelas disciplinas específicas de Terapia Ocupacional e doze ligados
a outras faculdades da mesma instituição, responsáveis por disciplinas de outras
áreas do conhecimento, a saber: Medicina, Biologia, Sociologia, Filosofia,
Psicologia, Antropologia e Metodologia do Trabalho Científico. Embora a
Faculdade de Terapia Ocupacional tenha investido na integração entre os
docentes das disciplinas específicas e os docentes de outras áreas do
conhecimento, temos que considerar que esta integração não atinge o nível
desejado, tendo em vista as inúmeras questões que envolvem o cotidiano
135
institucional, dentre elas, a predominância de contratação dos docentes no regime
de hora/aula, a distribuição dos cursos em diferentes campi universitários, a
rotatividade dos docentes de outras faculdades designados para as disciplinas, as
diversas atribuições dos docentes e incompatibilidades de agenda, enfim, a
própria estrutura fragmentar da universidade e dos currículos.
Por esse motivo, a entrevista limitou-se aos professores das disciplinas
específicas de Terapia Ocupacional. Não apenas pela dificuldade de resgatar o
contato e a história daqueles docentes, mas também pela pequena
representatividade dessa amostra para o universo desta pesquisa. Porém,
fizemos uma exceção e incluímos neste universo uma professora vinculada ao
Centro de Ciências Humanas que, naquele momento ministrava a disciplina
“Movimentos Sociais e Cidadania” no Curso de Terapia Ocupacional. A escolha
dessa professora como integrante desta pesquisa decorreu de sua participação
no movimento, da ampla utilização do material produzido pelo movimento em sala
de aula e de sua evidente contribuição a este estudo.
Assim sendo, o universo de entrevistados corresponde a sete professores,
sendo um deles a própria pesquisadora. Destes sete professores, seis constituem
o corpo docente das disciplinas específicas de Terapia Ocupacional. A outra
professora, socióloga, pertence à Faculdade de Ciências Sociais. Dos seis
professores das disciplinas específicas, quatro são terapeutas ocupacionais, uma
professora é psicóloga e um professor é filósofo e ator. Do universo total, seis
professoras são do sexo feminino e um professor é do sexo masculino. Cinco
professores ainda compõem o quadro docente da universidade e dois o se
encontram mais nesta instituição. Dos sete professores contatados, seis foram
entrevistados. Apenas um professor, que não pertence mais ao quadro desta
instituição, não pode conceder a entrevista por impedimentos temporais e
espaciais.
A condição para a realização das entrevistas foi submetida aos seguintes
fatores: a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-
Campinas, a plena aceitação do professor em conceder a entrevista e a
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme preconiza a
resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.
136
Após a consulta de interesse e possibilidade dos entrevistados, as
entrevistas eram agendadas previamente em horário e local por eles definidos. No
momento do agendamento eram fornecidas as questões a serem respondidas, o
resumo da pesquisa, a metodologia da entrevista e o termo de consentimento,
com os objetivos de ambientar a entrevista, iniciar o processo de resgate da
memória e dar elementos para que os entrevistados pudessem avaliar seus
aceites.
As entrevistas foram individuais, realizadas pelo próprio pesquisador e
tiveram um tempo médio de duração de uma hora e trinta minutos. As perguntas
eram abertas, possibilitando o relato livre das experiências dos professores,
podendo o entrevistador elaborar novas questões decorrentes de reflexões ou
temas relevantes apresentados durante a entrevista. O roteiro de entrevista era
composto por questões referentes a relatos de experiências e reflexões pessoais
acerca da participação no movimento, dos motivos que os levaram a tal
participação, das contribuições do movimento para a formação dos professores e
suas práticas pedagógicas e da importância do movimento para os alunos e para
a população, havendo ainda um espaço para outras considerações. (ANEXO V)
Os professores entrevistados são identificados pelas iniciais de seus
nomes, idade, sexo, profissão, disciplinas ministradas na época do evento, tempo
de docência e atividades profissionais desenvolvidas no momento da entrevista.
Caso relatem experiências pedagógicas específicas que envolvam alunos, estes
não são identificados nominalmente e, caso relatem fatos que envolvam
instituições não vinculadas à PUC-Campinas, estas também não são nominadas,
a menos que o entrevistado assim tenha desejado.
Os dados foram gravados durante a entrevista e transcritos
posteriormente. A transcrição foi feita por uma terceira pessoa e revisada pela
pesquisadora. Após a transcrição as entrevistas foram textualizadas pela
pesquisadora, visando adequar a linguagem verbal à linguagem escrita, sem, no
entanto, modificar seu conteúdo nem perder sua característica oral. As entrevistas
textualizadas foram revisadas pelo entrevistado que pôde alterar ou completar o
texto a ser divulgado.
137
Para a realização da entrevista da própria pesquisadora, buscou-se manter
as características das outras entrevistas, evitando-se realizar um depoimento
formal ou um monólogo. Para tanto, essa entrevista foi aplicada pela pessoa que
fez a transcrição das demais, respeitando as características metodológicas da
pesquisa. O processo de transcrição das entrevistas possibilitou-lhe a
compreensão para aplicar as questões e promover uma dinâmica de diálogo e
não apenas de simples relato. Cabe ainda ressaltar o fato de que essa
transcritora também participou de algumas das fases do movimento “Tecendo a
Paz”, o que lhe permitiu algum conhecimento do nosso objeto de estudo.
Devemos considerar que, mesmo com esses cuidados, a entrevista da
pesquisadora poderá apresentar diferenças com relação às demais, pois este
relato foi realizado não apenas a partir da memória, mas também a partir de um
envolvimento com o estudo referente a esta pesquisa. De qualquer forma, tanto a
subjetividade dessa experiência quanto o estudo teórico dela decorrente estão
interligados desde o início deste processo. Objetividade e subjetividade, sujeito e
objeto interagem e integram-se tanto na vivência quanto na análise dessa
experiência. Assim sendo, acreditamos que a entrevista da pesquisadora pode
ainda fornecer elementos para a análise desta interação e não apenas para o
objeto de estudo em questão. Por esse motivo, essa entrevista será identificada
como “entrevista aplicada à pesquisadora”.
Também podemos encontrar nas dissertações de Lodi (2005) e Campos
(2005), o desenvolvimento de pesquisas que analisam as entrevistas ou
depoimentos dos próprios pesquisadores.
A análise do material coletado foi realizada de modo a estabelecer relações
entre as experiências e reflexões dos docentes entrevistados, os objetivos da
pesquisa e os referenciais teóricos deste estudo. Para tanto buscamos organizar
os dados em grandes categorias temáticas, entendo a categorização como uma
operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto, por
diferenciação seguida de um reagrupamento baseado em analogias, a partir de
critérios definidos. (FRANCO, 2005, p. 57)
Pela riqueza e pela singularidade de cada entrevista optamos por publicá-
las integralmente, em anexo (ANEXOS VI, VII, VIII, IX, X, XI), considerando que
138
elas oferecem dados além de nossos objetivos e propostas de análise, que elas
expressam visões particulares de processos coletivos, que elas representam
importantes registros históricos e que, dessa forma, possibilitamos ao leitor
desenvolver suas próprias análises. A apresentação das entrevistas nos anexos
segue a seqüência cronológica de realização das mesmas. Na análise das
entrevistas elas serão mencionadas como E.1, E.2, E.3, E.4, E.5 e E.6.
Considerando o caráter histórico do movimento “Tecendo a Paz”,
ressaltamos que as entrevistas semi-estruturadas foram escolhidas como
instrumento de investigação, não apenas para identificar os aspectos referentes à
prática pedagógica e à formação dos docentes que participaram do movimento,
mas também porque a metodologia da história oral tem-se mostrado um
importante procedimento para a produção do conhecimento histórico, na
perspectiva da pesquisa qualitativa e na valorização do cotidiano como lugar de
construção da história.
Segundo Neves
A história oral é um procedimento metodológico que busca, pela
construção de fontes e documentos, registrar, através de narrativas
induzidas e estimuladas, testemunhos, versões e interpretações sobre a
História em suas múltiplas dimensões: factuais, temporais, espaciais,
conflituosas, consensuais. Não é, portanto, um compartimento da
história vivida, mas sim o registro de depoimentos sobre essa
história vivida. (2003, p. 28 - grifos da autora)
A autora nos mostra o caráter pluridisciplinar da história oral e a
importância da memória para a construção desses registros, ressaltando ainda a
responsabilidade do entrevistador que, a partir dos instrumentos utilizados e da
interação com o entrevistado, pode estimular a memória, participando da
construção do depoimento.
[a história oral] Move-se em terreno pluridisciplinar, pois utiliza muitas
vezes Música, Literatura, lembranças, fontes iconográficas,
documentação escrita, entre outras, para estimular a memória. Também
dialoga com a sociologia, a antropologia e a psicanálise, como suportes
para construção de roteiros de entrevistas e para a condução do próprio
depoimento. Finalmente, recorre à memória como fonte principal que a
subsidia e alimenta as narrativas que constituirão o documento final, a
fonte histórica produzida. (NEVES, 2003, p. 28-29)
139
Nesta pesquisa, a opção pela entrega antecipada aos entrevistados das
questões a serem abordadas, proporcionou o contato com suas lembranças e
reflexões sobre o movimento “Tecendo a Paz”, o que, sem dúvida, enriqueceu as
entrevistas. Mas, mesmo assim, as entrevistas não se caracterizaram por simples
relatos definidos previamente. Ao contrário, elas foram construídas durante o
processo, uma vez que, tanto as entrevistadas quanto as entrevistadoras, eram
sempre colocadas diante de novas questões e novas reflexões, a partir das
interações próprias do diálogo.
Olgaria Matos (2001) também aborda a importância do conhecimento
histórico constituído através das narrativas, tanto orais quanto escritas. Segundo
a autora, a “história narrativa”, através das fábulas, dos provérbios, da tragédia,
das poesias, das estórias, dos mitos e das metáforas traz, em si mesma, a força
da transformação, pois une a história à ética e à política, busca a sabedoria,
preserva a memória do que é valoroso e sagrado, ao mesmo tempo em que
atualiza as experiências do presente e trama o futuro. A história narrativa tem
valor estético e político, pois não se separa da vida. E, através da força estética
da narração, traz à tona a subjetividade e o sofrimento humano, buscando dar
sentido à vida.
A história oral também foi eleita como metodologia para este trabalho por
valorizar o cotidiano, atribuindo-lhe importância para o desenvolvimento da
pesquisa histórica.
Segundo Heller
A vida cotidiana não está “fora” da história, mas no “centro” do
acontecer histórico: é a verdadeira “essência” da substância social (...)
As grandes ações não cotidianas que são contadas nos livros de história
partem da vida cotidiana e a ela retornam. Toda grande façanha
histórica concreta torna-se particular e histórica precisamente graças a
seu posterior efeito na cotidianidade (...) A vida cotidiana é a vida do
indivíduo. O indivíduo sempre, simultaneamente, ser particular e ser
genérico. (2000, p. 20 - grifos da autora)
Considerando que esta pesquisa objetiva analisar a participação de
docentes num movimento social e, portanto, num fato histórico, a partir de suas
vivências objetivas e subjetivas, compreendemos que a cotidianidade aqui se
apresenta não apenas pela íntima revelação da constituição do movimento
140
“Tecendo a Paz”, como também pelas reflexões e transformações concretas
advindas dessas vivências, que passaram a integrar a trama das relações
cotidianas que tecem a história num determinado contexto.
Reafirmamos a importância do processo de entrevista que, a partir do
diálogo, possibilitou novas reflexões e aprendizados sobre as questões
pesquisadas, tanto para entrevistados como para entrevistadores, de modo que
as entrevistas constituíram-se, em si mesmas, ricos processos de troca, de
produção de conhecimento e cultura, assim como
estímulo a novas pesquisas e
ações. Todas as entrevistas foram marcadas por um clima de muita cooperação,
motivação, respeito, emoção e prazer.
2. Análise das entrevistas: múltiplos retalhos de uma colcha
Para analisar as entrevistas à luz de nossos objetivos, estabelecendo
relações entre os dados obtidos e os referenciais teóricos utilizados e buscando
valorizar a riqueza das informações fornecidas pelos entrevistados, esta análise
foi estruturada em torno de seis categorias, a saber: perfil dos professores
entrevistados; concepções sobre educação, universidade e prática pedagógica;
contribuição dos movimentos sociais para a formação de professores; a
simbologia da colcha de retalhos; organização e gestão do movimento; a
contribuição do movimento “Tecendo a Paz” para a formação dos professores e
para a prática pedagógica.
Estas categorias foram utilizadas como referências para associar e analisar
as informações, segundo determinados pontos de vista, no entanto, devemos
considerar que esta classificação não é estanque. Ao contrário, ela deve ser
apreendida dinamicamente, uma vez que os dados podem, muitas vezes, transitar
através das categorias de análise ou das referências teóricas utilizadas neste
trabalho, em movimentos complementares, de sobreposição ou de novas
associações. Este movimento se justifica na medida em que os dados
apresentados tratam de vivências pessoais, não devendo, segundo a metodologia
deste trabalho, ser rígida e linearmente separados, classificados e ordenados, de
modo a buscar estabelecer entre eles relações precisas de causa e efeito.
141
A experiência humana é indivisível na multiplicidade de seus aspectos. Por
uma necessidade didática e, talvez, por um limite de nossos processos de
comunicação, nos esforçamos para descrevê-la e compreendê-la em cada um de
seus aspectos, relativamente isolados. Porém esse esforço mediado pela
linguagem é apenas uma aproximação maior ou menor dessa experiência na sua
totalidade.
Apesar do esforço, esta análise não esgota a riqueza de possibilidades
encontrada nas entrevistas. Em parte, porque cada observador poderá sempre
desvelar novos olhares aos dados apresentados, em parte, porque as entrevistas
nos ofereceram dados além de nossos objetivos e ainda porque num determinado
tempo e espaço, cada análise se dá a partir de suas possibilidades, necessidades
e limites.
2.1. Perfil dos professores entrevistados.
Todas as entrevistadas são do sexo feminino, com idades entre quarenta e
sete e cinqüenta e oito anos, com tempo de docência de vinte e três a vinte e seis
anos, até o momento da entrevista.
Das seis entrevistadas, quatro são terapeutas ocupacionais, uma é
psicóloga e uma é socióloga. Cinco delas ainda são docentes vinculadas à PUC-
Campinas e uma o exerce, no momento, atividade docente nem pertence ao
quadro da instituição.
Das cinco professoras vinculadas à PUC-Campinas, apenas uma
desenvolve exclusivamente atividades de docência e pesquisa. As demais
desenvolvem outras atividades além da docência como clínica, assessorias,
consultorias e estão vinculadas a outras instituições, públicas ou privadas, nem
sempre acadêmicas.
No momento em que se realizou a experiência analisada, das seis
professoras vinculadas à Faculdade de Terapia Ocupacional, uma (socióloga)
ministrava uma disciplina teórica; uma (psicóloga) ministrava uma disciplina
teórica, duas práticas terapêuticas supervisionadas laboratórios de vivência e
142
uma prática terapêutica supervisionada supervisão coletiva; das quatro
terapeutas ocupacionais, uma ministrava duas disciplinas teóricas e duas práticas
de laboratório; uma ministrava duas disciplinas teóricas, duas práticas de
laboratório e duas práticas terapêuticas supervisionadas laboratórios de
vivência; uma ministrava uma disciplina teórica e duas práticas terapêuticas
supervisionadas práticas de campo vinculadas à pediatria do Hospital
Universitário e uma ministrava duas práticas terapêuticas supervisionadas
práticas de campo
vinculadas ao Centro de Saúde da mesma região do campus
universitário onde se localiza a faculdade em questão.
Todas as entrevistadas apresentam em suas histórias de vida pessoal e
profissional o envolvimento em diferentes movimentos ou práticas sociais, assim
como uma participação ativa no cotidiano de suas atividades específicas,
buscando o desenvolvimento de um trabalho coletivo e democrático. Tal
participação é marcada por características pessoais como inconformismo, espírito
inovador, visão crítica e política da realidade, como podemos notar:
Eu tenho uma história de lutas, não nos movimentos sociais, mas
também de lutas da nossa própria categoria profissional, dentro da
terapia ocupacional. A história de nunca estar conformada com as
metodologias utilizadas no ensino universitário, não na minha área...
Eu acho que isso é uma característica pessoal. (...) Não sei até quando
vou estar sempre insatisfeita e sempre querendo encontrar a melhor
maneira de poder deixar o mundo mais humano. (...) Não adianta! Você
não vai tirar de mim essa coisa de lutar, de querer ver a vida melhor
para a comunidade ou para o cidadão, porque nasci numa família que
teve que lutar... (E.5)
Também percebemos
o inconformismo, revelado como rebeldia, como
força que impulsiona o docente à construção de práticas transformadoras no seu
cotidiano profissional e a uma análise política da realidade.
Eu nunca dicotomizei a minha prática assistencial, mesmo intra-muros,
no hospital universitário. É necessário analisar a política dentro do
hospital, porque nossa prática está carregada de política. (...) Minha
formação, atrás, foi muito mais técnica. Penso... o que foi
determinando a minha mudança? (...) Acho que uma das coisas que
determinou a minha mudança foi a rebeldia no hospital (...) A rebeldia no
hospital é eu não me deixar cooptar pelo poder, pela ciência pura, pela
setorização e pela departamentização do conhecimento. (...) No hospital
eu sempre tive que lutar muito, tanto pela legitimação da terapia
ocupacional, quanto por uma condição de assistência diferente. Não
pactuava com aquilo. Sou assim, posso ser a minoria, mas não vou
pactuar com o que não acredito. (E.1)
143
E ainda, a inquietação própria dos espíritos inconformados:
[Sobre os motivos para participar do movimento “Tecendo a Paz”]...
além disso, a necessidade de fazer alguma coisa como cidadã diante
daquele fato que desafiava a nossa vida, desafiava a nossa dignidade.
Eu não me permitia simplesmente olhar e ficar passiva diante de tudo
aquilo que estava acontecendo, que aconteceu com o Toninho e que
estava acontecendo com Campinas. (E.4)
Ao inconformismo e à rebeldia, agrega-se a característica da esperança
que age como propulsão para a busca de novas saídas para a sociedade e para a
humanidade:
Como alguém que trabalha com humanos, que trabalha com saúde, que
trabalha com processos terapêuticos e que trabalha, portanto, com a
possibilidade de mudança, pode ter uma desesperança absoluta?
Talvez seja esse o sentido da alegria e do conforto. Eu posso sim
materializar alguma construção, mesmo diante da enorme tristeza. Ou
seja, a sociedade de achar saídas para ela própria. É uma crença no
homem, apesar da tristeza. (E.2)
A esperança aqui não assume um lugar de desconhecimento ou negação
da realidade, nem um lugar ingênuo com ausência de crítica histórica e social,
mas assume, principalmente, o lugar da resiliência
16
, aqui entendida como a
capacidade de lidar com a realidade, superando problemas e dificuldades, diante
das adversidades.
Embora a esperança não esteja aqui representada pela ausência de crítica
histórica, ela tampouco se coloca como uma certeza ou promessa histórica, como
nos esclarece Morin:
16
O conceito de “resiliência” vem da Física, refere-se à resistência dos materiais e suas propriedades de deformação
e recuperação diante de uma determinada tensão. É definida como a capacidade dos materiais de absorver energia
durante o processo de deformação provocado por uma tensão e de devolvê-la ou liberá-la após cessar a tensão.
Neste sentido, a resiliência é usada como medida de elasticidade dos materiais: um material perfeitamente elástico
tem 100% de resiliência. (Ver TIMOSHENKO, S. Resistência dos Materiais. Trad. Dr. Antônio Alves de Noronha. – Rio
de Janeiro: Publicações Pan-Americanas). O termo resiliência vem sendo usado pela Psicologia para, analogamente,
referir-se à capacidade humana de resistir ou superar os problemas, enfrentando as adversidades sem prejuízos para
o seu desenvolvimento. O estudo desse conceito na Psicologia enfatiza os mecanismos e as dinâmicas que permitem
determinadas pessoas não adoecerem quando submetidas a condições psicopatologizantes. A resiliência nos
humanos manifesta-se através de atitudes contrárias à desesperança, à passividade, ao pessimismo e à impotência,
passando a assumir os desafios e o reconhecimento de possibilidades para o enfrentamento dos problemas, mesmo
que tais possibilidades pareçam escondidas ou negadas. Não se trata de subestimar os conflitos ou adversidades,
mas de enfrentá-los criativamente, superando ou transformando as dificuldades neles contidas. (Ver VALENTINI JR,
Willians A.H. e VICENTE, Cenise Monte. A Reabilitação Psicossocial em Campinas. In PITTA, Ana (org.) Reabilitação
Psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec).
144
A possibilidade antropológica, sociológica, cultural, espiritual de
progresso restaura o princípio da esperança, mas sem certeza
“científica” nem promessa “histórica”. É uma possibilidade incerta que
depende muito da tomada de consciência, da vontade, da coragem, da
oportunidade... Do mesmo modo, as tomadas de consciências tornaram-
se urgentes e primordiais. (2001a, p. 75 - grifos do autor)
Podemos perceber a resiliência na compreensão apresentada por uma das
entrevistadas quando, ao referir-se à morte do prefeito e à sua participação no
movimento “Tecendo a Paz”, ela integra a alegria e a tristeza, de modo que uma
não anule a outra, nem tampouco se estabeleça uma cisão entre elas, mas que
se reconheçam as possibilidades de agir e produzir transformações diante e a
partir da tristeza.
Era um sentimento de muita tristeza, de muita indignação, muita derrota.
Talvez derrota da esperança de construção de uma sociedade diferente
(...) E a idéia da costura, naquele momento, me reconfortou (...) a
sensação que eu tinha era que aquilo era reconfortante para todos e,
portanto, alegre. Se existiu uma tristeza que impeliu as pessoas a se
aglutinarem, a ficarem juntas, também existiu uma alegria, tanto na
organização, quanto na confecção daquilo. Um conforto, uma alegria
mesmo. Algo que não anulava a tristeza, mas algo que era possível
existir junto com a tristeza (...) Porque desfalecer ou desistir ou se
desesperançar diante daquela tristeza era negar a saída. (E.2)
Considerando que essa tristeza era gerada pela morte e que a alegria é
aqui compreendida como movimentos de vida, percebemos que a professora
também integra vida e morte, uma contradição clássica que é retomada por Morin,
no sentido integrá-las, diante dos ciclos da vida e do princípio da auto-
organização.
Um aspecto chave da auto-ecoorganização viva é que ela se regenera
permanentemente a partir da morte de suas células, segundo a fórmula
de Heráclito, “viver de morte, morrer de vida”; e as idéias antagônicas de
morte e vida são, ao mesmo tempo, complementares e antagônicas.
(2001a, p. 95)
A esperança e a crença na capacidade humana de transformação de si
mesmo e da realidade também podem ser identificadas na constatação da
professora, quando afirma que... ser movida pela crença de que é possível
mudar... é a única forma que eu sei viver... (E.6)
145
Outra professora, ao referir-se à capacidade de transformação do homem e
à superação da discriminação das diferenças e das desigualdades sociais,
também reafirma sua fé no homem:
Ultimamente tenho pensado que eu posso acreditar... mas eu posso não
ter fé. Eu ainda não discuti essas palavras, mas fui buscar. Eu acho
que a gente vai conseguir mudar (...) na medida em que a gente
acredita e tem fé. Não importa se é a minha crença ou a do outro, mas a
gente tem de que isto possa ser construído (...) A fé no coletivo, no
homem, essa fé no ser humano. (E.5)
Para Morin, a missão de ensinar, além de difícil, é muito elevada e supõe a
fé na cultura e nas possibilidades do espírito humano. (2001a, p. 102)
A crença na capacidade criadora e transformadora do homem, condição
básica para o desenvolvimento da resiliência, permite que se olhe para a
realidade buscando suas potencialidades e não apenas seus limites, suas
deficiências ou seus aspectos patológicos, como podemos notar:
Uma das coisas que o terapeuta ocupacional faz, essencialmente, é
buscar formas para manifestar concretamente a subjetividade humana
ou realizar produções materiais a partir de potencialidades, a partir de
coisas latentes nos homens. Talvez essa minha formação, esse meu
olhar e esse meu hábito de buscar concretizar coisas a partir de
potencialidades ou de latências tenha me ajudado a ver aquela
possibilidade. O fato é que, quando ela me falou das colchas que
estavam sendo feitas, ficou clara a possibilidade de ampliar isso para
uma atividade coletiva, na cidade. (E.4)
A visibilidade da capacidade criadora e transformadora do homem
possibilita o desenvolvimento, tanto nos processos terapêuticos quanto
educacionais, de uma atitude de valorização da potencialidade humana e
descoberta de novas possibilidades de construção cotidiana da vida, em
contraponto às atitudes de discriminação e adaptação social que são fundadas,
na maioria das vezes, na visibilidade preponderante das deficiências, dos limites e
das patologias.
Não consigo imaginar processos terapêuticos lidando apenas com a
linearidade do formal, do instituído e da adaptação social. Não quero
dizer que o homem pode ser apenas, simbolicamente, a expressão do
seu desejo para se realizar. Não é isso. É claro que alguma adaptação
da convivência é necessária. Mas (...) não tem sentido pensar apenas
em adaptação social. (E.2)
146
Nessa perspectiva, a criatividade ocupa um lugar importante nas
atividades e nas relações cotidianas, tanto pedagógicas quanto terapêuticas, uma
vez que as saídas para a satisfação das mais diversas necessidades humanas
não são dadas a priori, mas construídas a partir dos elementos que constituem
cada situação e seu contexto, com suas especificidades, seus limites e suas
possibilidades.
[Sobre as idéias iniciais do “Tecendo a Paz”]... A gente teria que falar de
processos criativos, de relações interpessoais. Pensando em processos
criativos, a mim também surpreendeu a forma como as idéias
brotaram... muito rapidamente e muito definidamente. Eu estava de
prontidão para fazer algo. A pergunta que a aluna me fez [cobrando uma
proposição diante da tragédia ocorrida] me colocou em prontidão, diante
da necessidade de fazer alguma coisa (...) Acho que eu percebi essa
potencialidade [de transformar a atividade inicial em movimento social]
porque eu estava de prontidão para receber a criatividade e descobrir
caminhos que viabilizassem a concretização de uma necessidade. (E.4)
Outra característica marcante das professoras entrevistadas é a
importância atribuída aos processos coletivos na construção do cotidiano:
... o que me levou ao movimento (...) foi essa história de acreditar que a
atividade humana coletiva (...) ela muda o mundo. Ela muda. Essa é
uma crença! Acredito que a atividade levada no coletivo, não importa se
os sujeitos têm objetivos diferentes, mas se tiver um objetivo que una o
grupo... ela muda (...) Claro que não a atividade isolada, solitária, mas a
atividade coletiva. Qualquer produção coletiva muda e transforma, para
o bem ou para o mal. (E.5)
O coletivo não se mostra apenas como um ideal para estas professoras,
mas também permeia suas práticas pedagógicas:
Independe da disciplina, seja Saúde Coletiva, que o nome fala, ou
Laboratório de Vivência, ou Supervisão Coletiva... parece que o coletivo
está gravado na minha cabeça, inclusive no nome das disciplinas... Não
tem como, nada chama individual, tudo chama coletivo! (E.2)
Um coletivo que se manifesta também nas práticas de saúde e que, como
podemos notar pelo relato de uma das entrevistadas, não desconsidera o
indivíduo, mas também não o trata na perspectiva individualista, percebendo a
interação e a indissolubilidade entre o individual e o coletivo, ou seja, um
individual que não é confundido com individualismo e um coletivo que o é
compreendido como uma massa homogênea:
147
Eu acho que o meu tempo é muito consumido para a construção do
tecido social (...) para concluir que nunca na minha vida será possível o
individualismo. Mesmo que neste momento eu esteja fazendo a opção
da prática clínica em consultório, que eu tentei no passado e que a
imensa solidão que eu sentia não me permitiu, eu sei que hoje eu tenho
uma história para olhar, tenho um produto que me permite entender que
mesmo no espaço do consultório será possível levar essa energia, essa
compreensão. (E.6)
A dimensão do cotidiano é outra questão muito presente, explícita ou
implicitamente, nas entrevistas. As práticas pedagógicas e de saúde são
permeadas pela compreensão de que as ações locais, nas suas múltiplas
relações cotidianas, podem constituir história, tendo, portanto, força de construção
e transformação das relações e das práticas sociais. Um cotidiano que pode ser
entendido como o lugar de construção da história concreta pelas pessoas
envolvidas nessa história, um lugar onde se estabelece a relação concreta entre
os desejos, as possibilidades e as necessidades e onde se constroem novos
desejos, novas possibilidades e novas necessidades:
Vai chegar um momento em que se vai poder ser supra qualquer coisa...
Supra. Independente de religião, de cor, de raça, de ideologia, de
paradigma, etc. [e a única coisa que pode agrupar as pessoas neste
lugar, neste “supra”] são as questões da vida cotidiana. Nada mais
agrupa. Porque o resto é resto! (...) As necessidades cotidianas vitais.
Vitais. Só! Sem isso não tem jeito! (E.5)
É para repensar de que forma se pode transformar e acreditar que se
pode transformar. (...) É para acreditar que a gente planta sementes sim
(...) O que você planta? Às vezes a gente acha que precisa grandes
ações para ter transformação. (E.1)
As ações locais não se caracterizam por ões isoladas ou
descontextualizadas, pelo contrário, elas podem ser compreendidas a partir das
relações intrínsecas entre o local e o global, o particular e o universal:
Essa organização toda [a organização da comunidade diante do
problema da violência na região] trouxe o sentimento de que é possível
fazer alguma coisa, é possível transformar. Hoje eu sinto o ar mais
respirável, as pessoas circulando mais à vontade (...) Eu vejo que cada
espaço melhorou. As coisas que traçamos como meta, num sentido
formal, foram atingidas. Mas esse trabalho se deu, muito mais, na
crença e na emoção do dia a dia, no cotidiano mesmo. Hoje podemos
ver que a região melhorou muito. (E.6)
148
A valorização do cotidiano na construção histórica pressupõe a valorização
da prática ou da atividade concreta para efetivação dos processos de
transformação do homem e de sua realidade. Diante da concretude das
experiências práticas, a necessidade de identificar e lidar com os erros ou com os
limites dessas experiências possibilita uma avaliação das próprias ões, uma
avaliação que passa a ser compreendida como propulsora do aprendizado.
No trajeto histórico (...) até mesmo independente dos paradigmas,
quando o sujeito começa a observar melhor a atividade humana, ele
passa a construir uma outra referência de mundo (...) O discurso não
muda a sociedade, não muda a realidade social. Um belo projeto no
papel é apenas um belo projeto no papel. Uma pessoa que resolve fazer
alguma coisa ou imprime uma determinada ação e vai aos tropeços...
tem que olhar, porque quando você tropeça tem que olhar onde
tropeçou... ela não pula por cima, ela tropeça... E quando o projeto está
pronto a gente pula por cima, a gente não vê aquilo e esconde, deixa de
pensar sobre aquilo. É aí que está a possibilidade de mudança: no
momento em que ela começa a tropeçar, também começa a avaliar...
(E.5)
A partir dessa ilustração podemos identificar a interação entre a atividade
prática e a atividade teórica, de modo que não é dada primazia a uma teoria que
se impõe sobre a prática, mas que valoriza a construção da teoria a partir da
prática e vice-versa, numa relação dinâmica e processual.
Eu acho que o docente não pode ficar encastelado. Primeiro, a
universidade não pode. Conhecimento se constrói no dia a dia e na sua
vigência. Se você se encastelar e achar que basta se apoiar nos livros...
Não estou menosprezando os livros e as teorias, mas elas m da
prática. A prática da teoria, a teoria da prática. (E.1)
A interação entre a teoria e a prática é acompanhada da interação entre o
objetivo e o subjetivo, a razão e a emoção, a intelectualidade e a afetividade,
tanto no ensino quanto na pesquisa.
Eu também me emociono muito quando trabalho essas coisas, porque a
gente tem uma leitura muito funda dessa experiência [o movimento
“Tecendo a Paz”]. A gente consegue produzir intelectualmente bem,
se você estiver subjetivamente marcada por aquilo. (E.3)
Percebemos ainda que, na busca da interação entre teoria e prática,
subjetividade e objetividade, intelectualidade e afetividade, a relação professor-
aluno ocupa lugar de importância na atividade pedagógica e na construção do
conhecimento, gerando aprendizado tanto para o aluno quanto para o professor.
149
Para tanto, é necessário que este se disponha a vivenciar os conflitos inerentes à
prática pedagógica e à relação professor-aluno e praticar um constante processo
de auto-avaliação.
No momento em que estávamos todos perplexos, indignados, chocados,
com um grande sentimento de impotência (...) uma aluna chegou para
mim e perguntou: E agora, professora?! Você sempre diz que temos a
responsabilidade de construir e transformar a sociedade, participando
como cidadãos ativos... e agora?! Era uma pergunta desafio. Uma
pergunta de checagem, na verdade, da coerência entre o discurso e a
prática. Sempre me preocupei muito em não dissociar o discurso da
ação, a teoria da prática. E essa pergunta me tomou. Essa pergunta me
tomou de tal forma que, tentando manter a coerência do meu discurso
pedagógico com a minha prática e tentando manter a minha coerência
comigo mesma, eu não sabia o que fazer. (E.4)
Nicolescu, abordando a questão da “atitude transdisciplinar”
17
faz uma
crítica à excessiva valorização da eficácia ou da efetividade, em detrimento da
afetividade, que acaba ficando restrita à arte e às religiões. Defendendo a
valorização da afetividade e o equilíbrio entre efetividade e afetividade como
condições para que se estabeleça, de fato, uma interação entre sujeito e objeto, o
autor nos mostra que
O acordo entre Sujeito e Objeto pressupõe uma harmonização entre o
espaço exterior da efetividade e o espaço interior da afetividade. Tanto
efetividade como afetividade deveriam ser as palavras de ordem de um
projeto de civilização proporcional aos desafios de nosso tempo. (2005,
p.96)
Além da busca de interação entre teoria e prática, subjetividade e
objetividade, intelectualidade e afetividade, podemos perceber no relato de alguns
professores, a possibilidade de enfrentar contradições de diversas ordens e,
consequentemente, a disponibilidade para vivenciar e superar conflitos, uma
atitude que se diferencia daquela que busca negar, minimizar, suprimir ou reprimir
os conflitos, sejam eles de ordem intrapessoal, interpessoal, social ou política.
17
Segundo Nicolescu, atitude quer dizer aptidão para manter uma postura e, na perspectiva transdisciplinar,
atitude é a capacidade individual ou social para manter uma orientação constante, imutável, qualquer que
seja a complexidade de uma situação e dos acasos da vida. No plano social, esta orientação é a do fluxo de
informação que atravessa os diferentes níveis de Realidade, enquanto que, no plano individual, esta
orientação é a do fluxo de consciência que atravessa os diferentes níveis de percepção. (2005, p. 95)
150
O espaço público é o lugar de se discutir o conflito. É o lugar de se
discutir a contradição e de negociar essa contradição (...) Isso é um
esforço de defender a democracia na cidade (...) O Toninho morreu para
negar a discussão, a negociação dos conflitos em espaço público. O
Toninho discutia no espaço público a contradição de interesses que
estava posta na cidade (...) Tem divergências? Vamos negociar essas
divergências (...) O que significou a sua morte? Que acabou isso! Essa
democracia participativa, essa negociação de conflitos em espaço
público. Acabou! Então a colcha é a retomada do espaço público: Não,
não acabou! Nós estamos aqui e vamos continuar discutindo nossas
questões no espaço público. Não é que na colcha todas as partes ali
não tenham contradição. Tem! (E.3)
A impossibilidade de classificar ou delimitar com precisão a extensão e a
qualidade dos conflitos em individuais ou sociais e a necessidade de
compreender as relações políticas e culturais inerentes à manifestação desses
conflitos podem ser identificadas neste relato:
A gestão é uma coisa que me interessa, sempre me interessou. Não a
administração no sentido burocrático, mas a administração de pessoas,
de conflitos, de relações. As administrações que a gente faz na terapia,
na educação e também na gerência de instituições. As relações
interpessoais e as dinâmicas institucionais sempre me interessaram
muito. E com isso, também me interesso, inevitavelmente, pela análise
das relações de poder. (E.4)
No âmbito do trabalho hospitalar, quando a equipe se vê diante de
dificuldades, limites e conflitos de ordem técnica e ética, também podemos notar a
disponibilidade para o enfrentamento do conflito na experiência de uma das
professoras, ao analisar as contradições dos protocolos hospitalares e,
mais
especificamente, dos protocolos para dar notícias de morte ou maus prognósticos
aos pacientes e familiares:
O impacto que isso gera quase não é visto... Esse impacto ninguém
quer ver... Então, o protocolo poderia romper, por exemplo, com essas
defesas. Porque nós poderíamos dividir algo que é muito difícil para
toda a equipe, que são os limites da aplicação da ciência. É quando
você está esgotado, quando a doença te vence, quando você percebe
que, por mais que estude... um limite! (...) mas o que me irrita é
querer usá-lo [o protocolo] como camisa-de-força. (E.1)
A possibilidade de conviver com os conflitos e as contradições, sejam eles
de ordem pessoal ou social, psicológica ou política, ética ou técnica, teórica ou
prática, manifesta-se como um aprendizado processual que envolve
conhecimentos e experiências diversas:
151
Eu praticamente convivo com dualidades desde que me conheço. Acho
que juntar retalhos, estudar a diversidade, estudar a complexidade, tem
muito a ver com a minha eterna convivência com a dualidade. Hoje eu
vejo que não preciso escolher um dos lados, é possível conviver com a
ambivalência e a dualidade. Tudo isso pode existir junto. (E.4)
No perfil das professoras entrevistadas podemos identificar algumas
características, crenças, valores, vivências e atitudes que nos levam a perceber
um grande investimento e envolvimento pessoal em suas práticas pedagógicas
não apenas no que se refere à formação específica, mas também no que se
refere à compreensão da educação como prática de transformação social e
construção histórica. Aliás, devemos notar que a formação específica não é
tratada de modo isolado da formação global, social e contextual.
Em síntese, das características das professoras entrevistadas podemos
ressaltar os seguintes aspectos: história de participação em movimentos e
práticas sociais; análise política e visão crítica da realidade; inconformismo;
espírito inovador; criatividade; rebeldia, resiliência; esperança; crença na
capacidade criadora e transformadora do homem; valorização da potencialidade
humana em contraponto à visão de adaptação social; valorização das ações
coletivas; capacidade para convivência e enfrentamento de contradições e
conflitos; disposição para auto-avaliação; percepção da dimensão cotidiana da
história; valorização das atividades práticas; vinculação teoria e prática,
intelectualidade e afetividade, objetividade e subjetividade.
Algumas dessas características tamm foram identificadas por Fazenda,
ao pesquisar as atitudes de professores que, segundo seus critérios de análise,
eram bem-sucedidos no desenvolvimento de ações interdisciplinares:
... a marca do novo sempre é revelada em suas ações, em que cada
momento é único (...) Competência, envolvimento, compromisso
marcam o itinerário desse profissional que luta por uma educação
melhor, afirmando-a diariamente (...) Suas histórias de vida
profissional estão marcadas pela resistência às instituições
acomodadas, seja no que se refere às escolas onde trabalham, seja
resistindo à acomodação dos organismos norteadores da política
educacional que tenta submetê-los.
(2005, p. 49
- grifos da autora)
Cunha, pesquisando a história de vida de professores que conseguiram
fazer uma ruptura com o paradigma reprodutivo de ensino e com o paradigma
tradicional da ciência, também identifica algumas características que se
152
aproximam dos relatos dos professores desta pesquisa, como: insatisfação com a
prática realizada e desacomodação no comportamento; relação teoria-prática e
articulação entre ensino e pesquisa; trabalho coletivo; existência de um elemento
motivador e de uma estrutura de apoio para reflexão e sistematização das
experiências; sensibilidade com as questões político-sociais; compreensão do
ensino como prática utópica. (1998, p. 60-61)
Tanto em nossa pesquisa quanto nas pesquisas realizadas por Fazenda e
Cunha, identificamos o envolvimento, o prazer e a generosidade no
desenvolvimento das atividades dos professores entrevistados. Segundo Morin,
esses aspectos são considerados indispensáveis à prática pedagógica:
Existe algo que não é mencionado em nenhum manual, mas que Platão
havia acusado como condição indispensável a todo ensino: o eros,
que é, a um só tempo, desejo, prazer e amor; desejo e prazer de
transmitir, amor pelo conhecimento e amor pelos alunos. O eros permite
dominar a fruição ligada ao poder, em benefício da fruição ligada à
doação. É isso que, antes de tudo mais, pode despertar o desejo, o
prazer e o amor no aluno e no estudante.
(2001a, p. 101-102)
2.2. Concepções sobre educação, universidade e prática pedagógica
Todas as professoras entrevistadas apresentam a preocupação em
desenvolver conteúdos técnicos e específicos no processo pedagógico, de modo
a estabelecer as relações regionais, sociais, históricas e políticas e, portanto,
particularizando e contextualizando o conhecimento. Neste sentido, a
preocupação com o papel social da educação e com a formação para a cidadania
ocupa lugar de destaque nas entrevistas:
Eu acho que a questão principal é que, antes de ser uma docente, antes
de ser uma docente terapeuta ocupacional numa área específica, é
necessário compreender o que é ser sujeito social, o que é cidadania, o
que é movimento popular e, principalmente, qual é o chão que você pisa
(...) Eu não consigo conceber um docente que não esteja atento para a
cidadania. (...) Não consigo conceber um docente que vai para uma sala
de aula para reproduzir o livro que leu, descaracterizando a
regionalidade (...) O docente tem que ter isso muito internalizado para
passar aos alunos que uma simples técnica não resolve a vida pessoal
e cotidiana de quem ele vai atender, de que uma simples técnica não
educa. Não educa! (E.5)
153
Uma educação para a cidadania, para a vida comunitária, uma educação
emancipatória na qual também se revela uma preocupação ecológica:
... o que é a aula senão uma vida na escola e a escola na vida? (...) O
que se ensina e para quê se ensina? (...) Qual é o sentido de ensinar
senão ensinar para a vida? Para viver, para construir e, no nosso caso,
profissionais da saúde, para auxiliar o outro a viver. Qual é o sentido?
Estou falando da T.O., estou falando da Universidade, estou falando de
toda a escola. Para quê o homem vai à escola? (...) A escola foi criada
tal qual todas as instituições sociais, como uma instituição de controle
(...) Como podemos fazer uma instituição que, embora criada para o
controle possa, de fato, produzir a vida em sociedade de uma forma
mais satisfatória para todos, melhor para todos, com algum sentido da
natureza, inclusive, com um sentido ecológico? (E.2)
Uma educação emancipatória que, contrária ao papel de controle social,
busca desenvolver nos alunos a autonomia intelectual, a capacidade de analisar,
contextualizar e produzir conhecimento, de modo a poder escolher,
conscientemente, seus próprios caminhos:
Quando você crê e tem de que o papel do educador é algo além de
ensinar técnica, você consegue levar os seus alunos a questionar essa
realidade, e até o que você está colocando. E por vezes é muito
interessante (...) porque você leva a sua crença e a sua fé em
determinada metodologia ou em determinado paradigma e você
consegue que esses alunos parem e perguntem Por que é assim,
professora? (...) Eles trazem, eles questionam! Isso é muito bom porque
eles passam a não tomar para si como dada e pronta aquela técnica,
aquela compreensão da realidade, aquele paradigma. (E.5)
Essa concepção de educação aproxima-se da proposta de Paulo Freire
que valoriza a curiosidade, o espírito investigador, a criticidade e a criatividade do
aluno diante do processo de aprendizagem e da própria vida. O sentido da crítica
que o autor faz à “educação bancária”
18
também pode ser percebido na reflexão
apresentada pela professora:
Qual o sentido de 90% das aulas que a gente ministra e de 90% do
conteúdo que os alunos decoram? Qual o sentido disso na construção
do mundo? Nenhum, absolutamente nenhum! Se perde na memória ou
se perde no cotidiano, não se usa aquilo para a construção do mundo.
Ou seja, a aula vira mais um espaço de alienação. Às vezes com um
intelectual de boa vontade fazendo um discurso marxista, de esquerda,
na frente. Mas um discurso, com o aluno anotando no caderno, para
responder na avaliação, na prova, exatamente as palavras que aquele
professor quer ouvir, para ser bem avaliado. (E.2)
18
“Educação bancária”, segundo Paulo Freire, significa aquele conhecimento que é “depositado”
no aluno para ser “sacado” na hora da avaliação. Ver FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
154
Tratando-se, predominantemente, de professores da área da saúde,
notamos que não existe uma cisão entre as visões de educação e de saúde, de
modo que ambas se desenvolvem com o mesmo compromisso social e a busca
de uma análise crítica da realidade, resguardando e integrando as especificidades
técnicas e responsabilidades profissionais de cada área.
O engajamento com os movimentos sociais é uma coisa muito próxima
do trabalho na Unidade Básica de Saúde onde estou vinculada (...) A
nossa origem no centro de saúde sempre foi marcada por uma parceria
com a população, com as lideranças, com os grupos organizados. Eu
sempre procurei envolver os alunos, mesmo aqueles mais resistentes a
esse modelo de saúde. Mesmo estes, acabavam vivendo as
experiências, se sensibilizavam e depois faziam uma opção mais clara a
respeito de seu perfil, de seus papéis e de seus modelos de atuação
profissional. A nossa história nessas disciplinas foi sempre marcada
pela participação nos espaços comunitários (...) desenvolvendo uma
compreensão mais ampla de saúde. (E.6)
Fiz especialização em Planejamento em Saúde. era possível pensar
(...) formas de mudar o sistema. (...) Deparei-me com estudos que havia
perdido no meio do caminho, pela minha formação biológica: a história
social da criança e da família, as políticas de saúde, as transformações
do mundo do trabalho, etc. Essa especialização foi a chance que tive
para resgatar o outro lado: sair do foco curativo e voltar-me para a
saúde pública e para o estudo de sistemas. Preciso entender sistemas,
inclusive porque eu estou dentro do sistema. (E.1)
Mesmo trabalhando com as especificidades profissionais, percebemos que
não existe uma cisão entre a técnica e a política, ou seja, a aplicação de uma
determinada técnica está vinculada a uma visão de mundo e às múltiplas relações
sociais nas quais se podem identificar, inclusive, os mecanismos de poder:
Muitas vezes as alunas reclamam que não são reconhecidas dentro do
hospital... e eu lhes pergunto será falta de reconhecimento ou exercício
de poder? (...) É importante mostrar ao aluno a dificuldade de interagir
de forma horizontal, não hierárquica, e isso é o que mais acontece. (...)
O próprio instrumental técnico é estratificado. Os alunos se sentem
diminuídos porque devem enfrentar perguntas assim O que é mais
científico? O que tem mais valor? Brincar de boneca com as pacientes é
científico?! Comparo com meus alunos o que se na sociedade e o
que se vê na prática profissional dentro de uma instituição. Isso se
reproduz em todos os lugares, por isso não para ser apolítico e falar
Ah! Vai falar de política!... Ela existe. Essas forças sociais existem em
qualquer lugar. (E.1)
A perspectiva de uma educação para a cidadania pressupõe a abertura da
universidade para com a sociedade e para com a realidade que a circunda, de
155
modo que a produção do conhecimento não fique restrita às formulações teóricas
no interior da escola, mas que possa transitar de dentro para fora, do local para o
global e, consequentemente, da teoria à prática.
Essa é uma crítica que fazemos a várias universidades e a vários
pesquisadores: eles começam a se isolar tanto do contexto social e das
demandas, de tudo que tem fora, que começam a fazer pesquisas
que interessam somente a eles, mas não têm uma repercussão fora,
não têm impacto. (E.1)
E, ainda nessa perspectiva, percebemos a expectativa de que o ensino, a
pesquisa e a extensão estejam interligados:
Acho que você faz a pesquisa a partir de alguns indicadores que te
mobilizaram, alguma coisa que te sensibilizou. Tem sempre um fato.
Posso montar um projeto a partir de alguma coisa que está acontecendo
com a população, que está me sensibilizando e que eu quero mudar,
quero transformar. (E.1)
É importante ressaltar que, ao falar em sociedade e contexto, as
entrevistadas não se referem apenas àquilo que é externo à universidade, mas
também à própria instituição de ensino que está historicamente constituída pelos
mesmos mecanismos sociais e políticos que caracterizam a comunidade local e
global onde ela se insere.
Não para fazer essa separação: aqui eu vou ensinar a técnica, vou
fazer a discussão profissional e, fora, quem sabe... Não. Não dá! A
própria estrutura, a própria instituição onde está o educador, também, se
você não ficar atento, vai inferir nele o que ela quer, o profissional que
ela quer ver formado. Se o educador não estiver esperto, não estiver
atento, ele vai cumprir com os deveres institucionais sem questionar a
formação e o papel do educador. Não questiona! Ele assume para si
que o papel do educador é isso. Acabou! (E.5)
Quando se pensa em educação considerando seu contexto, sua
complexidade e particularizando o aprendizado, de modo a constituir um
conhecimento significativo para os alunos, a visibilidade e o respeito à diversidade
cultural também ganham importância no desenvolvimento do processo
pedagógico, como podemos notar:
A grande questão está na complexidade humana. A gente não poderia,
mas, por mais que a gente lide no cotidiano, a gente normatiza, agrupa.
Porém nós somos singulares, a complexidade humana se pela
singularidade de cada um. Eu vejo nos grupos que a gente atende, nos
alunos, nas aulas, em tudo se observa isso. (...) A gente põe no caixilho
porque tem alguma coisa em comum. Porém se esse caixilho tiver dez
156
pessoas,
às vezes com a mesma crença e com a mesma fé, ainda
assim haverá a singularidade. Isso é complexidade humana. Porque
cada um apreendeu para si, cada um nasceu num estado, num país e
viveu uma determinada cultura e ele é um sujeito único, singular e único.
(E.5)
Todas
essas preocupações encontram expressão em Delors, quando nos
aponta a necessidade de uma educação cívica comprometida com a democracia
e com a construção de práticas de cidadania:
A educação não pode contentar-se em reunir pessoas, fazendo-as
aderir a valores comuns forjados no passado. Deve, também, responder
à questão: viver juntos, com que finalidades, para fazer o quê? E dar a
cada um, ao longo de toda a vida, a capacidade de participar,
ativamente, num projeto de sociedade. (2001, p. 60 - grifos do autor)
O desenvolvimento da educação nesta perspectiva pressupõe uma
abordagem complexa, interdisciplinar e transdisciplinar da realidade, tendo em
vista a multiplicidade de fatores interativos que devem ser considerados e
analisados nesse processo.
Segundo Morin, a tarefa de educar não pode reduzir-se a uma técnica ou a
um conhecimento específico:
O caráter funcional do ensino leva a reduzir o professor ao funcionário.
O caráter profissional do ensino leva a reduzir o professor ao
especialista. O ensino deve voltar a ser não apenas uma função, uma
especialização, uma profissão, mas tamm uma tarefa de saúde
pública: uma missão. Uma missão de transmissão. A transmissão exige,
evidentemente, competência, mas também requer, além da técnica,
uma arte.
(2001a, p. 101)
Em síntese, as concepções e posições sobre educação das professoras
entrevistadas o caracterizadas pelo compromisso com o papel social da escola
e pela construção da cidadania; por uma educação emancipatória e não de
controle social; pela interação entre os conteúdos específicos e o contexto local e
global; pelo desenvolvimento da cultura e da diversidade; por preocupações
ecológicas e de promoção de vida; pela relação entre a teoria e a prática e pela
integração entre ensino, pesquisa e extensão.
157
2.3. Contribuição dos movimentos sociais para a formação de
professores
Todas as professoras entrevistadas reconhecem a importância da
participação em movimentos sociais para o desenvolvimento das práticas
pedagógicas e assistenciais, para o desenvolvimento da cidadania e também para
a sua própria formação. Os movimentos sociais são considerados, em si mesmos,
espaços de formação docente, de qualificação da prática pedagógica e da relação
professor-aluno, possibilitando a formação de cidadania, tanto para professores
quanto para alunos.
O diferencial promovido pelos movimentos sociais na formação docente é
enfatizado nesta entrevista:
Eu acho que a experiência com o movimento popular, para mim, é
fundamental para a formação docente porque permite lidar com o aluno,
na universidade, de diferentes classes sociais. A experiência da
participação no movimento social te traz desafios e você consegue
perceber, numa sala de aula, a diversidade social, de classes, de cultura
e até de posições políticas. Para mim, o movimento social é uma grande
escola, foi uma grande escola. Pela minha experiência de militância
política é clara a diferença dos docentes que nunca passaram por essa
experiência. É clara para mim essa diferença. Para a formão docente,
o movimento social faz docentes diferentes. (E.3)
Esta mesma professora, atribuindo aos movimentos sociais a importância
para a formação docente e para a sociedade, compreende que um movimento
social, mesmo depois que termine, continua produzindo cultura, a partir dos
significados e aprendizados que foram proporcionados aos seus integrantes.
Assim sendo, mesmo que um movimento tenha uma pequena duração, o
processo de reflexão e aprendizado se mantém, como uma experiência vivida que
pode ser infinitamente analisada:
Ao longo do tempo é que, estudando tantos outros movimentos, você vê
que ele pode ter uma história absolutamente breve, mas o que importa é
o grau de significado que ele deixou (...) A parte mais interessante não
morre! Quando você fala o movimento acabou... Acabou daquele jeito,
mas ele revive de outras maneiras (...) em outros lugares. (E.3)
158
Podemos encontrar a confirmação dessa afirmativa em outras entrevistas
que analisam a importância da sua participação no movimento “Tecendo a Paz”
Eu penso ahoje na palavra “Tecendo a Paz”, ou seja, é algo que eu
posso ir costurando ao longo da vida, não só naquele momento, naquele
movimento. É algo que eu posso construir a cada dia, no cotidiano, eu
posso continuar tecendo. E sinto que muita gente que estava ali, com as
quais eu me relaciono até hoje, quando pensam nisso, também pensam
com esse sentido. O movimento não morreu, para mim, não é
algo que
foi, acabou, é algo perene. Primeiro, porque eu continuo usando em sala
de aula e, segundo, porque eu ajudei a tecer a paz, costurando na
praça. Como é que eu estou costurando agora? Porque a situação do
mundo é igual. Não mudou. (E.2)
[há pouco tempo] eu vi a colcha de novo na televisão (...) a colcha
voltou! Então ela não ficou esquecida, ela ficou como um marco
histórico (...) uma atividade é carregada de história. [Ao olhar para a
colcha] você vai lembrar das pessoas que foram, vai lembrar que
mataram o Toninho, vai lembrar que até hoje o desfecho dado ao crime
não satisfaz à população, vai lembrar que daqui a pouco poderá haver
outras mortes, vai pensar que a gente ficou passiva de novo, quem sabe
em quem a gente vai votar desta vez... Então, ela tem um símbolo que
pode deixar o homem pensar (...) porque foi um momento em que ele
viveu algo que se pode transpor para a política, para a sua participação
como cidadão, escolhendo em quem vai votar, pensando se pode fazer
alguma coisa no seu bairro. Aquilo pode suscitar atitudes melhores no
dia a dia. (E.1)
Partindo desse princípio, uma das professoras enfatiza que os movimentos
sociais constituem-se, em si mesmos, produtores de conhecimento:
Quem estuda movimentos sociais, como eu, sabe que qualquer
movimento social produz conhecimento, e produz conhecimento, muitas
vezes, apenas na oralidade. (...) Então como reconhecer que ali dentro
está sendo construído um conhecimento popular e como aprender com
este conhecimento? É preciso reconhecer, sempre, que todo o
movimento social produz conhecimento informal. E esse conhecimento
informal fica invisível se ele não for traduzido na cultura intelectual, se
não for para o papel. (E.3)
Percebemos aqui a importância dos movimentos sociais para a construção
cultural de um grupo ou de uma comunidade e, segundo essa professora, a
extensão desse aprendizado ou dessa construção cultural depende da visibilidade
que se possa dar ao conhecimento produzido pelos movimentos sociais. Neste
sentido, a entrevistada atribui ao intelectual a responsabilidade de desenvolver tal
visibilidade e, consequentemente, contribuir para a construção cultural de uma
sociedade, a partir de seus movimentos populares:
159
Eu acho que o papel do intelectual é tornar atuante o conhecimento
invisível, oculto... É traduzir esse conhecimento para o mundo letrado.
Esse é o papel do intelectual que trabalha com movimento social. (...) O
que é que ele precisa tirar da escuridão... Porque tudo está na mídia,
tudo está sendo dito, mas tem uma produção de conhecimento que é
invisível, e o papel do intelectual é trazer à luz essa discussão (...) para
que isso seja discutido por outras culturas. (E.3)
Não apenas para ampliar a visibilidade é importante que se pesquise e
sistematize o conhecimento produzido nos movimentos sociais, mas também para
valorizar e reconhecer os produtores deste conhecimento
... e até para poder devolver isso para o próprio movimento. (...) Para
mim, o movimento social tem essas várias possibilidades de enriquecer
o ser humano. E, mesmo aqueles que participam, quando ficam
sabendo da existência de um trabalho sobre ele... É uma experiência
única! É uma experiência encantadora! Porque eles se sentem sujeitos
reconhecidos. Porque eles se sentem sujeitos da história, mas
reconhecidos numa outra cultura. E isso é fundamental do ponto de
vista que esse sujeito forme outros sujeitos. (...) Essa reprodução, que
vai além da gente, tem um caminho que segue por si só. (...) Você tece
fios que você, às vezes, não percebe. (E.3)
A importância da construção cultural de uma sociedade, advinda dos
movimentos sociais também pode ser percebida a partir deste exemplo:
Eu sempre fui contra as cotas cotas para negros na universidade,
cotas para índios, cotas para mulheres, etc. Só que, ao longo do tempo,
a questão das cotas traz uma mudança, as pessoas vão conseguindo
perceber que aquelas minorias teriam que ter mesmo, num determinado
momento, a possibilidade de adentrar naqueles espaços. É uma
questão cultural. Você começa a ter a possibilidade de perguntar-se:
porque a maioria dos negros não estuda nas universidades públicas?
(...) Hoje eu sou uma das lutadoras pelas cotas, para que ela seja o
início de um processo, e que essas minorias não precisem mais daqui a
um tempo estar trabalhando com cotas. (E.5)
O enriquecimento da formação docente através da participação em
movimentos sociais e do desenvolvimento de projetos de ensino e extensão junto
a comunidades excluídas também é ressaltado por esta professora:
Eu sempre achei que o professor tem que viver fora (...) Porque
fora eu também vou rever os conceitos que estou usando, sua
aplicação, se o movimento social foi mais rápido que os meus conceitos,
se eu devo repensá-los, o que eu tenho que estudar mais para dar
conta das demandas, dos riscos, das doenças, do meio ambiente (...)
Acho que essas experiências extra-muros me enriquecem como
docente. Enriquecem com outros valores, me ajudam a entender as
linguagens locais, fazem com que eu traga esse material para a sala de
aula, enquanto professora, enquanto pessoa. (E.1)
160
A intersecção das experiências de vida pessoal e profissional constituem, a
partir de um complexo processo de construção histórica, a identidade do
professor. Segundo Brasileiro (2000) a militância política possibilita, na construção
desta identidade, a integração entre o “ser professor” e o “ser militante”, de modo
que os aspectos pessoal e profissional não se separem, constituindo uma unidade
“professor-militante-profissional-sujeito”. Essa dimensão da identidade do
professor também é identificada em nossa pesquisa.
Em primeiro lugar, não existe educação, não existe saúde, não existem
profissionais técnicos, se eles não tiverem um envolvimento enquanto
cidadãos. Eu não sou num momento a profissional e noutro momento a
pessoa. Eu sou uma pessoa e sou cidadã e, por um acaso, por
felicidade, tive a oportunidade de estudar, de fazer universidade naquilo
que eu queria fazer. Eu digo felicidade porque no nosso país a estrutura
educacional é complicada. (E.5)
A formação dessa identidade integrada possibilita a qualificação do
desenvolvimento técnico específico, pois, como aponta uma das professoras
entrevistadas, o aprendizado técnico diante da participação em movimentos e
práticas sociais, se com mais qualidade e com menos ingenuidade ou menos
carregado de exercício de poder. (E.1)
Embora a formação política e a participação comunitária do professor
devam caracterizar-se como opção, devemos considerar que a estrutura
universitária e as políticas educacionais podem organizar-se de modo a promover
e facilitar essa prática ou, contrariamente, de modo a desestimular, dificultar ou
mesmo impedir o desenvolvimento dessas atividades:
As minhas aulas do dia 10 de outubro de 2001 foram marcadas no paço
municipal para fazer a colcha de retalhos. Eu não marquei as aulas na
faculdade, eu marquei as aulas ali. Naquela época era mais fácil fazer
isso, porque o controle do ponto do professor não era tão rígido como
hoje. Tínhamos várias atividades externas no curso de Terapia
Ocupacional. Hoje, todo o controle burocrático é maior. (E.4)
De alguma maneira a universidade me proporcionou estar lá [na costura
da colcha do movimento “Tecendo a Paz”]. A Faculdade de Terapia
Ocupacional sempre teve muita confiança em cada docente seu e
sempre foi possível, para nós, ter autonomia. Eu acho que a autonomia
é a principal coisa para você poder criar, revolucionar a si e ao outro. De
uns tempos para eu tenho vivido na universidade um
desencantamento. Parece que cada vez mais tem tarefas burocráticas e
elas nos tornam mais solitários, mais pesados. (E.6)
161
Neste momento faz-se necessária uma reflexão sobre os riscos de um
processo de burocratização excessiva da atividade pedagógica, pois ele pode
gerar um movimento contrário a toda a produção de vida, de prazer, de troca, de
criatividade, de liberdade, de autonomia e de construção coletiva do
conhecimento, condições estas que vêm sendo apontadas como necessárias ao
desenvolvimento de uma educação que possa responder aos novos paradigmas
científicos e culturais.
Em síntese, a partir das entrevistas realizadas podemos considerar que os
movimentos sociais são importantes para a formação de professores porque
possibilitam a formação de cidadania e a qualificação da prática pedagógica e da
relação professor-aluno; promovem a integração entre a universidade e a
sociedade; favorecem trocas culturais e ensinam os professores a lidar com a
diversidade em sala de aula; são produtores de conhecimento e de cultura;
possibilitam a aquisição, renovação e transformação de valores, idéias e
conceitos; facilitam o desenvolvimento da crítica social e institucional.
2.4. A simbologia da colcha de retalhos
Considerando a potencialidade de produção de cultura dos movimentos
sociais, buscamos analisar os significados atribuídos à colcha de retalhos do
movimento “Tecendo a Paz” e, consequentemente, às construções simbólicas
decorrentes que podem ter contribuído para a formação de conceitos e valores
das professoras entrevistadas.
Algumas das professoras entrevistadas reconhecem que a escolha da
colcha de retalhos como atividade a ser realizada no movimento facilitou e
motivou a participação popular:
Acho que a colcha, em especial, proporcionou essa ampla participação
popular. Se fosse outra atividade, talvez não tivesse o mesmo
significado. Acho que se tivesse uma divulgação como “vamos fazer
uma passeata” (...) acho que não teria a mesma participação. Uma das
minhas vivências, lá na costura, foi ver quantas pessoas estavam indo e
fazendo. (E.1)
162
A força da atividade prática e concreta proposta pelo movimento, também é
ressaltada por esta professora:
O movimento de “vamos fazer alguma coisa”... fazer alguma coisa
concreta... imediatamente me conquistou. (...) Eu via muito mais sentido
nisso do que estar gritando palavras de ordem contra algo ou a favor de
alguém. Eu via muito mais sentido em estar construindo efetivamente
alguma coisa. (E.2)
A ampla participação popular, segundo algumas professoras, não se deu
apenas pela proposta de uma atividade concreta, mas também pela
acessibilidade daquela atividade, em particular, a colcha de retalhos.
Foi um fazer humano muito próximo de qualquer classe social, que é a
costura, o pano: não era uma atividade intelectual... se fosse, haveria
uma cisão: você continuaria propondo o não acesso a todos. Ao
contrário, pela colcha, eu poderia não gostar de costurar, mas eu
poderia juntar alguns panos para levar para alguém costurar. Eu acho
que ela tinha um significado: pouco ou muito, alguém tinha algum
retalho para levar... e também isso fazia diferença para os diferentes
grupos (...) A costura é algo simples, que um ensina ao outro. (E.1)
Eu lembro das minhas perguntas: Quanto vai precisar de tecido? E de
linha e de agulha? E aí eu fico pensando que talvez precisasse do que
todo mundo tem. Todo mundo levou o que tinha nas suas casas. Afinal
de contas, agulha, linha e tecido são coisas muito simples. (E.2)
O ato de costurar também recebeu uma conotação simbólica, sendo-lhe
atribuído um sentido de construção criativa e de união das partes:
A costura é uma coisa que começa de algo muito disforme, vamos
dizer, um tecido, e de repente vai ganhando uma forma, vai ganhando
um contorno, vai ganhando um modo diferente de ser. Permite criar,
permite fazer escolhas o tempo inteiro. A sensação que eu tinha era
que aquilo era reconfortante. (...) E a possibilidade de costurar a dor,
costurar a sociedade, costurar as pessoas. Costurar é unir partes,
costurar não é separar, costurar é juntar partes, Costurar é ficar junto,
é dar sentido para os pedaços de coisas. (E.2)
Através da costura e da idéia da colcha como algo que cobre, protege e
aquece os homens, podemos identificar a possibilidade de expressão e
acolhimento para uma dor coletiva, mesmo diante da diversidade:
Nossa preocupação era costurar e colocar os pedaços um junto com o
outro, e dava certo costurar sem ter combinado que um ia costurar um
quadrado de vinte, outro de dez, porque dois de dez é um de vinte e na
hora da emenda ia dar certo (...) Foi muito alegre. Não no sentido de
uma histeria ou de uma alegria mórbida, afinal de contas, todos
163
estávamos muito tristes. (...) Somente depois é que fui pensar: a
colcha é algo muito reconfortante. A colcha é algo com o qual a gente
se cobre, a sociedade se cobre, as pessoas se cobrem, porque fica
gostosa a temperatura. (E.2)
A manifestação da dor e do desejo da coletividade através da construção
daquela atividade possibilitou uma experiência de resiliência e, portanto, não
apenas de acolhimento da dor, mas também de transformação da própria dor
diante da necessidade de buscar saídas.
A possibilidade de materializar em cima de um objeto concreto, de uma
confecção humana concreta, que era a colcha, o ato de costurar numa
colcha o que a gente estava sentindo, de um lado, e querendo, de outro.
Ou seja, ficar junto, juntar pedaços, pedaços do quê? Nossos pedaços.
Nossas tristezas. Nossa capacidade de produzir diante daquela tristeza.
(E.2)
Essa experiência de resiliência tamm pode ser percebida como
expressão de resistência política às forças que geram a desintegração social.
Com certeza, ela [a colcha] se tornou um símbolo que pode ser lido de
diferentes maneiras, dependendo de quem participou. Para mim, ela
representa a cidade dividida, esquecida, fragmentada, violentada. E,
quando cada canto da cidade veio e colocou um pedaço de si ali, foi
como um ato de resistência simbólica para mostrar que, apesar de
terem tentado, eles ainda se sentem membros daquela cidade,
querendo tomar conta do destino daquela cidade. (E.3)
Uma resistência a favor da integração e da construção da unidade que, no
entanto, não desconsidera nem homogeneíza as diferenças, podendo assim
atribuir àquela colcha os aspectos de diversidade e de síntese
concomitantemente, evidenciando a possibilidade de constituir a unidade com a
diversidade.
Seja no centro, seja na periferia, as várias partes procuraram estar
representadas na colcha. Diversidade na cor, diversidade de lugares
geográficos, diversidade de tipos de movimentos sociais, diversidade de
reivindicações possíveis, de diferentes conflitos colocados ali. Síntese,
porque simboliza, em toda essa diversidade, uma síntese da indignação,
de uma reação, de uma resistência contra as forças da adversidade
que, naquele momento, pareciam tomar conta da cidade. (E.3)
E ainda:
Uma colcha tecida no espaço público, que simboliza o poder político da
cidade... Juntar essas duas coisas, para mim, foi muito forte naquele
momento, do ponto de vista do que significa espaço público. A unidade
da colcha eu posso chamar também de espaço público. A unidade. (E.3)
164
A simbologia que contempla a unidade na diversidade é ainda identificada
no relato da professora quando, ao referir-se ao processo de organização de uma
comunidade que enfrentou a problemática da violência criando diferentes
estratégias para garantir a inclusão social, afirma que
um sentimento de que a gente também construiu uma colcha... É
possível construir a unidade na diversidade (...) Essa é uma vivência da
comunidade. E se em alguns momentos ficam situações
homogeneizadas num lugar ou noutro, essa vivência está internalizada
(...) As relações não partem para a competição. Parece que essa
vivência foi tão verdadeira, tão intensa e as pessoas acreditaram tanto
nela, que existe essa liberdade e a compreensão de que, em
determinados momentos, você precisa se envolver em causas mais
específicas. (E.6)
Note-se que a unidade e a diversidade não são apresentadas como
condições ou lugares fixos, estáticos. Ao contrário, o exemplo acima nos remete à
idéia de movimento e de trânsito entre o particular e o geral, o específico e o
genérico.
A dimensão política da simbologia de “juntar pedaços também é
encontrada nesta entrevista:
Nós não estávamos ali simplesmente para emendar pedaços de tecido
ou para enfiar o fio na agulha e ficar costurando (...) Nós estávamos ali
para juntar os pedaços. Eu acho que, naquele momento, o sentido foi
juntar os pedaços de um povo que havia eleito o seu prefeito (...) o
sujeito que foi eleito pela população com uma vantagem imensa de
votos... um sujeito que as pessoas acreditaram e que estava
construindo um processo... A colcha, para mim, representava Vamos
juntar os cacos?” Mas juntar os cacos de modo que a gente possa dar
continuidade a esse processo, acreditar que é possível e, acreditando
que é possível, realmente transformar um pouco esse município. (E.5)
A expressão política do movimento “Tecendo a Paz” encontra no modo de
construção desta colcha e no seu tamanho final, não apenas a possibilidade de
vivência com a diversidade, mas também a simbologia da potencialidade do
trabalho coletivo:
Uma colcha de retalhos de 250m² construída em praça pública em um
único dia, vale pelo seu tamanho, que denuncia a diversidade e a
potencialidade do trabalho coletivo! (...) Gostaria que essa colcha
pudesse, um dia, fazer parte de alguma exposição, de algum museu, de
algum memorial. Gostaria que ela pudesse ficar preservada como
memória da potencialidade do trabalho coletivo, mesmo diante da
diversidade. (E.4)
165
Esse símbolo não se restringe ao trabalho coletivo, mas carrega a idéia de
gestão coletiva, de emancipação popular e democracia participativa, como
podemos notar no relato da professora sobre o momento de entrega da colcha de
retalhos à prefeita:
Foi um momento que simbolizou a entrega da cidade unida e de sua
potencialidade coletiva ao poder público que se entendia, então,
legitimado. A idéia era Mataram o Toninho, mas não mataram a
possibilidade da gestão coletiva. (E.4)
Além do trabalho coletivo, a colcha carregou ainda o sentido de esperança
da humanização das relações entre os homens e entre os homens e a natureza, a
partir da ação.
Dá esperança. O contrário do que a gente estava vivendo naquele
momento: a desesperança (...) Estava dado o contrário, para mim,
naquela hora de fazer. Quero dizer, é possível! A grande esperança
humana de construir a humanidade, de manter essa humanidade na
relação com a natureza, com as coisas e com a produção estava dada
ali. (E.2)
A colcha de retalhos foi associada ao símbolo feminino por uma das
professoras entrevistadas:
A colcha também tem o lado simbólico muito feminino. Eu não saberia
dizer como os homens criaram uma maneira de participar, eu sei que
alguns homens também costuraram, ou seja, a colcha possibilitou uma
participação muito democrática (...) Os homens, eu não sei, eu tenho um
pouco de dificuldade, porque para mim a colcha é um mbolo da
mulher. A mulher cidade, a mulher-viúva, a mulher na sua diversidade,
mas eu tenho dificuldade de perceber como os homens viram o
movimento, como os homens se integraram. Provavelmente dando
apoio logístico, outros tipos de apoio, tomando conta da passeata,
ajudando na organização, ajudando fazer um panfleto... (E.3)
Embora muitos homens tenham participado do movimento e da costura da
colcha, este relato nos chama a atenção para o fato de que a organização do
movimento foi sustentada por mulheres, assim como as entrevistas realizadas
nesta pesquisa são constituídas por mulheres.
Não pretendemos atribuir uma conotação de gênero às atividades,
discriminando-as em atividades femininas ou masculinas como a cultura vem
fazendo historicamente para, muitas vezes, determinar relações de poder, como
nos mostra esta professora, ao trazer uma discussão sobre o feminismo:
166
Ainda se carrega o ranço das mulheres que tiveram de queimar o
soutien para dizer que não queriam ser discriminadas. Os movimentos
tiveram que ser muito pesados por causa da desigualdade (...) Foi um
processo que se iniciou dessa forma, mas hoje, o que a gente [mulher]
quer? A gente quer ter parceiros e poder dividir com eles todas as
tarefas que nos foram delegadas culturalmente. Olha onde entra a
cultura. Nossa diferença é sexual. Só. O resto foi construção que se fez
culturalmente em cima do que cabe ao homem, quais são os direitos e
os deveres do homem e da mulher. Daí a mulher ficou como a
cuidadora... (E.5)
No entanto, não podemos negar a força desta mesma construção histórica
e cultural nas representações que acabam por organizar a vida cotidiana de
homens e mulheres numa determinada sociedade. Assim sendo, entendemos que
não se trata de discriminar as atividades em femininas e masculinas, mas de
buscar compreender as estruturações simbólicas constituídas culturalmente em
nossa história.
Retomando a reflexão de Nicolescu sobre a necessidade de buscar o
equilíbrio entre efetividade e afetividade na construção da atitude transdisciplinar,
percebemos que ele os relaciona, simbolicamente, à masculinidade e
feminilidade, respectivamente. No entanto, o autor adverte que, obviamente, o
sexo dos seres humanos não está ligado diretamente à masculinidade ou à
feminilidade do mundo. Um homem pode muito bem se encontrar na feminilidade
do mundo e uma mulher na masculinidade deste mundo. (2005, p. 97)
Partindo desse princípio, o autor atribui a grande marginalização social da
mulher à lógica mercantilista da eficácia pela eficácia e sugere que o feminismo,
hoje, caminhe no sentido de buscar um equilíbrio entre a masculinidade e a
feminilidade do mundo, ou seja, entre a efetividade e a afetividade. Buscando
esse equilíbrio diante de um momento histórico onde a eficácia pela eficácia ainda
se revela mais forte que a afetividade, o autor nos apresenta a idéia de
feminilização social:
Todo projeto de futuro de uma civilização passa necessariamente pela
feminilização social. Como é a mulher, e não o homem, que dá à luz a
criança, é a feminilização de nosso mundo que poderia dar à luz os
laços sociais tão cruelmente ausentes nos dias de hoje, as pontes entre
os seres humanos desta Terra. (2005, p. 98 – grifos do autor)
167
Do ponto de vista simbólico e não a partir da discriminação social das
atividades em femininas ou masculinas, podemos compreender que, em algum
nível das representações culturais, essa colcha de retalhos contribuiu para o que
Nicolescu chama de feminilização social”, pois além da expressão política, ela
agregou muita afetividade. E o sentido da costura, também simbolicamente, pode
associar-se à união, à formação dos laços sociais, à religação.
A religação, segundo Morin, deve substituir a disjunção e apelar à
“simbiosofia, sabedoria de viver junto (2001a, p.78). A religação, sob essa
perspectiva, permite o desenvolvimento da diversidade na construção da unidade
sem almejar a homogeneidade.
O duplo imperativo antropológico impõe-se: salvar a unidade humana e
salvar a diversidade humana. Desenvolver nossas identidades a um
tempo concêntricas e plurais: a de nossa etnia, a de nossa pátria, a de
nossa comunidade de civilização, enfim, a de cidadãos terrestres.
(2001a, p. 78)
Buscando sintetizar as idéias apresentadas sobre a simbologia da colcha
de retalhos do movimento “Tecendo a Paz”, podemos resgatar imagens
referentes à ação, acessibilidade, união de partes, religação, unidade, ntese e
diversidade, criatividade, afetividade, feminilidade, acolhimento, proteção, calor,
coletividade, resiliência, resistência, emancipação, democracia.
2.5. Organização e gestão do movimento
O movimento “Tecendo a Paz” caracterizou-se como um movimento
espontâneo e auto-organizado que desenvolveu uma comunicação em rede e
agregou uma grande diversidade de representações sociais.
O caráter inovador deste movimento, como aglutinador de diferentes
representações sociais é ressaltado por uma das entrevistadas:
O ”Tecendo a Paz” tem uma característica muito diferente (...) ele
sintetizou, propiciou a participação de outros movimentos (...) Quando
eu estava no paço municipal, reconheci, naquele espaço, diferentes
lideranças de diferentes movimentos sociais. Eu vi lideranças do
movimento de moradia de anos anteriores, vi representantes de
168
Comunidades Eclesiais de Base - CEBs, vi representantes de
movimentos de periferia, de creches, de mães, de igrejas, de diferentes
igrejas, de diferentes expressões religiosas e, pelo menos de início, a
presença de outros partidos, não o Partido dos Trabalhadores.
Lideranças da cidade faziam questão de passar, cumprimentar, elogiar,
dar apoio, se colocar à disposição do movimento. Então percebi que
aquele movimento, na verdade, permitiu aglutinar todos os espaços de
organização política e popular da cidade, principalmente popular, que
queriam, de alguma forma, fazer essa manifestação. (E.3)
A inovação quanto à organização do movimento também é ressaltada:
A organização/desorganização desse movimento, quero dizer, é claro
que não foi uma desorganização, mas foi um outro modo de
organização diferente dos que eu conhecia. Particularmente, esse modo
de organização mexeu comigo e mexe até hoje. Eu não vivi em nenhum
outro momento da minha trajetória política, social, profissional, etc. um
modo de organização, de contaminação, vamos dizer, de irradiação e
não de normativa, de regra pré-instituída, de formalização de um convite
com dia e horário. Enfim, isso me marcou muito, me marca até hoje (...)
Não foi uma organização centrada numa tipologia, numa hierarquia. Foi
uma organização de irradiação, talvez fruto de um sentimento de
indignação, de tristeza. (E.2)
Essa forma de organização do movimento, segundo a professora,
possibilitou a construção de um objeto que é considerado “orgânico”, ou seja, um
objeto que mantém a relação entre a unidade e a diversidade, o todo e as partes,
mantendo sua sistemicidade:
O sentido próprio de um objeto que eu chamo de orgânico, e que
consegue ser orgânico porque é um objeto... O sentido próprio que cada
um pôde ter e pôde dar naquela adesão e naquela participação. Isso eu
estou chamando de organização/desorganização. Não é algo que veio
de fora, que alguém deu a palavra de ordem ou a visão de futuro ou a
proposta final ou a idéia de onde se quer chegar com aquilo, que
sempre está dada na maioria dos movimentos políticos, sociais (...) O
que eu chamo de desorganização é essa não regra, essa indefinição, a
priori, de onde se quer chegar, sem uma pré-imposição, sem uma pré-
colocação (...) Todo mundo pôde ser o que é e, no entanto, o objeto era
orgânico. (E.2)
A percepção da organização/desorganização do movimento nessa
entrevista nos faz retomar a questão da auto-organização que, segundo Morin, é
resultado de interações complexas entre desordem, ordem e organização.
Segundo o autor, a ordem e a desordem vêm recebendo diferentes
conotações nos estudos da Física e nas teorias de formação do universo, partindo
inicialmente da idéia que desordem estava ligada à morte e deveria, portanto, ser
169
eliminada ou controlada e chegando à idéia atual de que ordem e desordem estão
em interações constantes ou, mais que isso, que a desordem pode ser a gênese
da criação, ou seja, que a ordem se constrói a partir da desordem:
Podemos nos interrogar hoje em dia sobre a possibilidade de uma
gênese na e pela desordem, voltando à origem da termodinâmica, onde
havia surgido a desordem desorganizadora, e onde surge hoje a idéia
de uma desordem organizadora. É que o novo desenvolvimento da
termodinâmica, do qual Prigogine é precursor, nos mostra que não
necessariamente exclusão, mas eventualmente complementaridade
entre fenômenos desordenados e fenômenos organizadores. (2003a, p.
60)
Essas mudanças nos conceitos de ordem/desordem constituem grandes
transformações paradigmáticas no âmbito da ciência e da cultura, uma vez que
vêm interferir nas explicações dos fenômenos físicos e também nas formas de
organização social. A idéia de ordem e evolução linear ligada à ciência tradicional
passa então a ser questionada, abrindo espaço para novas concepções de
organização que não apenas suportam a desordem, mas que a integram ao
desenvolvimento de processos criativos.
As mudanças paradigmáticas ocorrem, elas mesmas, a partir de conflitos e
movimentos desordenados, seja no nível das idéias seja nas estruturas sociais e
institucionais, como podemos perceber no relato de uma das professoras, ao
referir-se ao processo inicial de organização do movimento junto aos alunos nos
laboratórios da faculdade:
Eu lembro que nesse dia, especialmente, o funcionário do laboratório
achou difícil... havia barulho, as portas abertas, gente discutindo,
procurando linha, procurando tecido... (E.2)
Os alunos chegavam mais cedo para organizar o dia da costura no
paço, os telefones tocavam, você tinha que sair da sala de aula para
atender os telefonemas de pessoas que perguntavam aonde ir, o que
levar, enfim, mudou o contexto. Ou seja, mexeu com a organização do
cotidiano. Ele impulsionou, movido pelo desejo, uma organização
diferente do cotidiano. Talvez isso tenha incomodado outras pessoas. O
barulho maior, o movimento, as perguntas que os alunos passaram a
fazer generalizadamente nas outras disciplinas, em sala de aula (...)
mexeu com a estrutura, tal qual ela está dada. O que é que mexe? É a
vida que mexe. (E.2)
170
Neste relato, a desorganização é vista como força propulsora da
criatividade e da estruturação do movimento auto-organizador, o que nos leva ao
resgate da idéia desenvolvida por Morin no Capítulo II deste trabalho, mostrando
que para haver criações e interações é necessário que haja encontros e,
consequentemente, que haja calor, turbulência, agitação e desordem. (2003a, p.
72)
Baseado em estudos da Física e da termodinâmica, o autor nos mostra que
fluxos caloríficos, em condições de flutuação e de instabilidade, ou seja, de
desordem, podem se transformar espontaneamente em “estrutura ou forma
organizada (2003a, p.60-61). Assim, desvio, perturbação e dissipação podem
provocar a estrutura e a organização, de modo que não se pode separar ou
excluir a desordem da ordem.
Morin nos mostra ainda que
Assim como o calor se tornou uma noção fundamental no devir físico, é
preciso dar-lhe um lugar de destaque no devir social e cultural, o que
nos leva a considerar, onde “calor cultural”, não um determinismo
rígido, mas condições instáveis e movediças. Do mesmo modo que o
calor físico significa intensidade/multiplicidade na agitação e nos
encontros entre partículas, o “calor cultural” pode significar
intensidade/multiplicidade de trocas, confrontos, polêmicas entre
opiniões, idéias, concepções. E, se o frio físico significa rigidez,
imobilidade, invariância, vê-se então bem, que o abrandamento da
rigidez e das invariâncias cognitivas pode ser introduzido pelo “calor
cultural”. (2002a, p. 35 – grifos do autor)
A possibilidade de gerar a estrutura e a organização a partir da desordem é
descrita no processo de costura da colcha de retalhos:
As pessoas escolhiam tecidos aleatoriamente (...) As pessoas escolhiam
o que estavam sentindo. E, no entanto, tinha um sentido porque os
pedaços iam se juntando, se juntando, se juntando... e aí, era uma
grande colcha, que dava para cobrir todo o mundo. (...) Também
identifiquei que chegavam pessoas de todos os lados (...) iam se
juntando... tinham alguns transeuntes que passavam (...) Muitas
pessoas olhavam e seguiam. Mas outras tantas paravam e se
abaixavam (...) Isso me chamava à atenção: porque a pessoa não
perguntava quem estava organizando, mas perguntava me um
pedaço de pano, posso costurar assim? Pode! E quando você via, a
pessoa estava absolutamente integrada na tarefa de construir a colcha.
(E.2)
171
[A construção da colcha de retalhos] foi-se dando caoticamente ao
mesmo tempo organizadamente, porque as pessoas iam chegando e
colocando retalhos aleatoriamente (...) Fiquei aproximadamente duas
horas longe da colcha... [Quando voltei] surpreendentemente, a colcha
tinha crescido muito, muito, muito! E, mais surpreendentemente ainda,
ela estava quase que perfeitamente retangular! Ela estava organizada,
dentro daquela grande desorganização, e sem nenhum controle. Ela
aconteceu por si só! (...) Dentro do caos e de uma dada organização e
na ausência de um controle, a colcha se fez. (E.4)
Alguns conflitos e dificuldades decorrentes das mudanças paradigmáticas
são expressos nesta entrevista quando, durante a costura da colcha no paço
municipal, a professora identifica alguns de seus hábitos e expectativas ainda
ligados às idéias tradicionais de ordem e organização, mesmo já estando
racionalmente ligada às novas teorias e aos novos paradigmas.
Quando a colcha começou a ser costurada, quando nós dispusemos
pelo chão as colchas que já estavam prontas para serem unidas e daí
continuar a costura das outras colchas e dos retalhos, nós as
dispusemos de tal modo que ficasse uma linha reta definindo o começo,
a partir de onde ela teria então continuidade. (...) Acho que professores
e terapeutas aprendem a controlar... a comandar o processo! Eu
acreditava que aquela tarefa me competia e, naturalmente, esperava
que a colcha se construísse dali para frente (...) na lógica cartesiana,
tradicional... Uma colcha retangular com o começo neste ponto e o fim,
linearmente definido, daqui para lá. (E.4)
Continuando seu relato, a professora confessa a percepção do
distanciamento entre a teoria e a prática, na vivência do conflito gerado pela
inevitável e bem-vinda subversão da ordem por ela idealizada.
Uma pessoa chegou com seu retalho e, naturalmente, colocou-o
exatamente do lado contrário da linha inicial (...) desmontando toda a
linearidade e a ordem que eu havia estabelecido! (...) Aquilo me
incomodou profundamente! (...) Embora eu pensasse em auto-
organização, em gestões democráticas e participativas... Embora eu
brigasse pela não liderança central e embora eu tivesse começado a
estudar teorias que rediscutiam o modelo cartesiano de pensamento,
devo admitir que, até então, tudo isso estava no nível da racionalidade.
O fato é que, na minha subjetividade, eu estava extremamente ansiosa
pela organização linear daquela imensa colcha. Ainda não estava
processada a integração real entre o discurso e a prática. (E.4)
Neste momento cabe observar a importância das atitudes desviantes tanto
das pessoas que costuraram essa colcha quanto dos professores que
organizaram e participaram do movimento.
172
Os desvios têm potencialidade tanto para a criação quanto para a
destruição. A idéia de desvio ligada às questões éticas de preservação da vida e
abordagem complexa da realidade é que devem buscar sua potencialidade
criadora, rompendo com determinismos culturais que podem aprisionar a
humanidade na construção e reprodução de diferentes formas de opressão.
Segundo Morin, os desvios são formas de não submissão ao imprinting
cultural e à normalização. (2002a, p.28-64)
O imprinting cultural, segundo o autor, é uma impressão cultural matricial
que, desde a mais tenra infância, estrutura e conformidade ao modo de
conhecer e agir dos indivíduos e, a partir da qual operam todas as determinações
sociais, econômicas, políticas e culturais, constituindo assim um conformismo
cognitivo. O imprinting, com a força de uma impressão matricial, pode nos levar a
uma desatenção seletiva, desconsiderando toda informação que parecer
inadequada às nossas convicções. O imprinting manifesta os seus efeitos mesmo
em nossa percepção visual: somos culturalmente hipnotizados desde a infância.
(2002a, p. 30)
A normalização está ligada à eliminação do não-conforme e à imposição do
que passa a ser concebido como verdade:
A normalização manifesta-se de maneira repressiva ou intimidatória;
cala os que teriam a tentação de duvidar ou de contestar (...) A
normalização, com seus subaspectos de conformismo, exerce uma
prevenção contra o desvio e elimina-o, se ele se manifesta. Mantém,
impõe a norma do que é importante, válido, inadmissível, verdadeiro,
errôneo, imbecil, perverso. Indica os limites a não ultrapassar, as
palavras a não proferir, os conceitos a desdenhar, as teorias a
desprezar. (2002a, p. 31)
A relação entre a ausência de normas e a liberdade de expressão foi
identificada por uma das professoras como elemento facilitador da adesão e
apropriação do movimento por seus participantes, ao analisar a organização do
“Tecendo a Paz”:
Porque é a não norma. É a forma diferente com que ele ocorreu. Por
não ter as palavras de ordem, a bandeira, “queremos a terra” ou então
“abaixo a ditadura” ou então “viva a democracia”, o Partido X. Não tinha
isso. Quem na hora sentou e se apropriou daquilo ou participou da
passeata deve estar, até hoje, dando o seu sentido àquele movimento.
(E.2)
173
Os desvios podem ser percebidos nas atitudes dos professores que
participaram do movimento, uma vez que sua forma de organização exigia uma
estruturação diferente do cotidiano acadêmico instituído:
Ao mesmo tempo em que existia um movimento muito a favor, também
existia um certo estranhamento na universidade. Várias vezes me senti
olhada com algum estranhamento, como se eu tivesse enlouquecido!
(...) De fato, era uma coisa fora do contexto, fora do padrão, fora da
formatação! Mas eu continuei no meu caminho, divulgando, falando
disso sempre que possível. (E.4)
Eu senti que aquele movimento, naqueles dias de preparação, trouxe
um incômodo para algumas pessoas, incômodo mesmo, para alguns
alunos, alguns docentes, alguns funcionários. Tinha barulho, tinha
telefonema a toda hora, tinha comunicação não formal, sem burocracia.
(E.2)
E, mais que isso, os desvios estão ligados à própria gênese desse
movimento, uma vez que ele nasce no interior de um serviço de saúde mental, um
serviço que cuida de pessoas que vêm sendo historicamente discriminadas,
desacreditadas e marginalizadas do convívio social por seus comportamentos
desviantes:
[O movimento “Tecendo a Paz”] surgiu espontaneamente da população.
Da população dos serviços de saúde. Mais que isso, da população de
serviços de saúde mental. Isso é uma coisa interessante de se notar: o
fato deste movimento nascer no lugar da “loucura”... Isso é algo que
deve ser pensado (...) Considerando que hoje os serviços de saúde
mental visam trabalhar a cidadania e resgatar os laços da vida
comunitária do doente mental (...) é importante ressaltar o papel
daqueles serviços na construção desse movimento: a proposta de
integrar o indivíduo na sociedade não se expressou no fato de levar o
louco para o lugar comum... mas os loucos é que possibilitaram dividir o
lugar com toda a comunidade. (E.4)
Os desvios surgem com uma força criadora e inovadora, não obedecem
aos determinismos, mas nascem nas brechas abertas ou que se abriram no
determinismo sócio-cultural. Segundo Morin
Basta, por vezes, uma pequena brecha no determinismo, permitindo a
emergência de um desvio inovador ou provocado por um abcesso de
crise, para criar as condições iniciais de uma transformação que pode,
eventualmente, tornar-se profunda. (2002a, p. 39)
174
A importância da experiência vivida no movimento “Tecendo a Paz” para a
constituição cultural dos professores diante da transição paradigmática, pode ser
reafirmada e compreendida através das considerações de Morin.
Anomias, desvios, incertezas, insatisfações, contradições vividas,
podem associar-se, em uma espécie de força capaz de gerar turbilhões,
que corrói cada vez mais profundamente a base do conhecimento
estabelecido, determinando assim uma radicalização crescente do
pensamento. A partir daí, o pensamento radicalizado ataca o
fundamento das teorias, os axiomas considerados evidentes, ou mesmo
os paradigmas ocultos que governam a organização das idéias. Assim
se encontram reunidas as condições subjetivas/objetivas para uma
eventual revolução do pensamento, que institui novos fundamentos ou
axiomas e transforma os paradigmas. (2002a, 62-63)
As mudanças culturais ocorrem quando as idéias e os conhecimentos
criados pelos desvios são aceitos e se transformam em tendências. A partir daí,
portanto, nos adverte Morin, é necessária muita atenção, pois se essa tendência
se afirma vitoriosamente, pode converter-se em nova ortodoxia e impor, assim,
uma nova normalização e um novo imprinting em sua esfera de dominação.
(2002a, p. 38)
Refletindo sobre essa advertência podemos compreender as preocupações
das organizadoras e de participantes acerca do possível uso inadequado do
movimento, quando uma das professoras nos fala da construção cultural do
“Tecendo a Paz” e da possibilidade de transformação cognitiva, através da
produção de símbolos, valores e modos de compreender o mundo:
Eu acho que teve um sentido enorme, tanto que houve uma captação
inadequada do próprio movimento e da construção da colcha. Daí
aparecerem milhares de colchas nas comunidades, não como desejo ou
como oferta da possibilidade de participação, mas como Olha!
Funcionou! (...) Tanto houve que, não o grupo envolvido, mas o poder
da cidade usou o movimento de forma inadequada. Porque isso é mudar
o que foi transformado. São inferidos outros princípios no movimento...
(E.5)
A análise de um movimento onde se pode perceber a auto-organização e a
manifestação de desvios e potencialidades criadoras exige uma observação
acerca dos mecanismos de coordenação ou liderança desse movimento.
A partir do relato de uma das organizadoras do “Tecendo a Paz”
percebemos que as três mulheres que assumiram a organização inicial do
175
movimento pretendiam uma gestão o centralizadora, buscando manter a
espontaneidade que caracterizou a concepção do movimento:
Tínhamos muito claro que esse movimento não poderia ser partidário.
Era uma manifestação popular, espontânea, apartidária. (...) Na
verdade, nunca quisemos assumir o nome de coordenadoras do
movimento. Queríamos apenas cuidar do processo, para que essa idéia
fosse concretizada. Durante muito tempo nos chamaram de
coordenadoras... as mulheres da colcha... resistimos muito a assumir
esse nome e esse lugar, porque, desde sempre, imaginamos que esse
movimento não poderia ter nenhuma centralização, nenhum tipo de
liderança. Ele deveria manter a sua conformação inicial: espontânea,
auto-organizada, popular e livre. (E.4)
No entanto, essa escolha não parece simples e sem contradições, pois,
podemos perceber algumas dúvidas e conflitos decorrentes dessa opção de
gestão:
Ao mesmo tempo em que não queríamos ser coordenadoras, no sentido
da liderança, também entendemos, muito rapidamente, que tínhamos
que cuidar para que a idéia inicial não fosse deturpada. Então, melhor
que coordenadoras, nos entendemos como cuidadoras, viabilizadoras,
facilitadoras, alguma coisa nesse sentido. Na verdade isso deu muito
trabalho!
(E.4)
A idéia de coordenação vinculada a cuidado, facilitação ou viabilização
sugere uma proposta de gestão que visa dar oportunidade à manifestação da
potencialidade, da criatividade e da autonomia de todos os integrantes, uma vez
que as tarefas não são fechadas ou previamente definidas. A definição de tarefas
é construída durante o processo, a partir das necessidades, de modo a integrar a
teoria e a prática, o projeto e as ações.
Não havia uma liderança central. Apenas a idéia que unia as pessoas e
em torno da qual elas se dispunham a fazer as tarefas necessárias. Mas
não existia a determinação de tarefas. Na verdade, as tarefas eram
desenvolvidas sem que fossem determinadas por alguém. Eram
necessidades, percebidas como tal, por quem as percebesse. (E.4)
Nunca houve uma reunião, no sentido formal (...) Não me lembro de
nenhuma reunião! Não tínhamos esse tipo de organização. Lembro-me
de muitas e diferentes conversas... (E.4)
O fortalecimento do movimento não se deu a partir de um projeto
previamente definido ou de interesses particulares de um pequeno grupo. Foi
decorrência do movimento espontâneo de uma ampla coletividade diante de uma
necessidade, como notamos no relato de uma das organizadoras do movimento:
176
[a idéia de ampliar para a cidade a costura das colchas iniciadas nos
CAPS, assim como o nome e a poesia do movimento] simplesmente me
vieram à cabeça (...) Na verdade acho que elas vieram como catálise de
algo que coletivamente estava acontecendo. Acho que eu pude
perceber algo que era uma necessidade coletiva e encontrar algum
canal de viabilidade para essa necessidade. (E.4)
É provável que esta condição tenha permitido a participação espontânea
das pessoas, partindo de um convite:
O Tecendo a Paz” foi apresentado publicamente como um convite a
toda a cidade para continuar a costura das colchas que estavam
iniciadas. (E.4)
A condução do grupo tinha esse olhar e esse acolhimento: “Gente, nós
estamos fazendo isso aqui, quem quer chegar? Quem acha que quer
participar? Como é que vamos trabalhar?” (E.5)
Esperava-se que o movimento se desenvolvesse a partir da formação de
uma rede e que sua divulgação ocorresse a partir de multiplicadores que se
dispusessem a colaborar espontaneamente, por encontrar sentido naquela
proposta:
No dia em que o movimento foi anunciado publicamente, tínhamos três
mil panfletos, que foram distribuídos durante a passeata que se dirigiu à
catedral (...) Não havia mais do que duas ou três pessoas distribuindo
esses panfletos (...) Decidimos que essa divulgação seria feita em rede:
cada pessoa ajudaria a distribuir os panfletos e a falar do movimento
para quem pudesse, do jeito que pudesse. (E.4)
E
a divulgação, de fato, ocorreu dessa forma:
... o modo como isso se irradiou. Irradiou-se sem precisar dizer Vamos
escrever para todas as instituições de Campinas, etc. mas sim fala com
fulano, beltrano... e os alunos foram falando e nós, professores, fomos
falando. Com quem? Com quem encontrávamos no cotidiano. Seja nos
serviços de saúde, seja na rua, seja na nossa vizinhança (...) Enfim, não
foi uma organização centrada numa tipologia, numa hierarquia. (E.2)
O ato de convidar pode ser associado ao ato de oferecer, que supõe a
generosidade e o prazer de proporcionar ao outro algo de bom, algo de si:
Para mim a colcha teve esse valor. Quando a gente oferece ou se
propõe ou propõe a alguém um leque de materiais para ver o que ela
quer fazer... você está oferecendo (...) como aquela cozinheira que vai
para a cozinha, prepara uma coisa gostosa que sabe que as pessoas
vão gostar e tem o prazer de oferecer... Oferecer ao outro a
possibilidade de saborear coisas... Oferecer... entendeu? (E.5)
177
A forma como se desenvolveu a liderança do movimento, também é
identificada como uma inovação:
A liderança do movimento “Tecendo a Paz” era uma liderança para
agrupar ou congregar pessoas que estivessem (...) preocupadas em
recompor a nossa cidade (...) independente de partido, cor, raça,
orientação sexual (...) Eu acho que é um tipo de liderança que ainda não
existe nome para isso. Pelo menos eu não conheço (...) Ela surge de
dentro para fora, ela surge da necessidade (...) Um dia isso vai ter
nome, esse tipo de liderança. E aí tem uma questão muito séria: eu não
acredito que seja já! Eu acredito que a gente esteja construindo isso.
(E.5)
Ressaltamos a perspectiva de construção histórica do movimento, uma vez
que ela reafirma as construções culturais que são tratadas nesta pesquisa.
Esse é um movimento que surgiu num determinado momento... vamos
construir uma colcha e juntar os pedaços... porque podemos... Ele vai
ressurgir não como uma colcha, mas como diferentes outras atividades,
porque as sementes foram lançadas (...) Sementes de valores e de
possibilidades... (E.5)
O processo histórico de constituição cultural de uma sociedade não ocorre
rapidamente nem efetivamente a partir de relações lineares de causa e efeito, ao
contrário, ocorrem lentamente, numa complexa construção cotidiana que busca
integrar passado, presente e futuro, como mostra Morin
É no encontro com seu passado que um grupo humano encontra
energia para enfrentar seu presente e preparar seu futuro. A busca do
futuro melhor deve ser complementar, não mais antagônica, ao
reencontro com o passado. Todo ser humano, toda coletividade deve
irrigar sua vida pela circulação incessante entre o passado, no qual
reafirma sua identidade ao restabelecer o elo com os ascendentes, o
presente, quando afirma suas necessidades, e o futuro, no qual projeta
aspirações e esforços. (2001a, p. 77)
A proposta de liderança do “Tecendo a Paz” exigiu de suas coordenadoras
o enfrentamento das incertezas, o cuidado para não deixar-se levar pela
ansiedade do êxito, a consciência dos interesses que estavam em jogo e a
humildade dos limites históricos:
Partimos do princípio que o movimento aconteceria se ele tivesse
que acontecer... não tínhamos nenhuma certeza. Durante o processo de
organização muitas pessoas nos perguntavam se isso daria certo ou
não. E nós sempre ficamos muito tranqüilas em relação a isso, porque,
na verdade, ele não tinha que dar certo. O que era dar certo naquele
movimento? A gente queria reunir pessoas na praça para fazer uma
grande colcha. E isso aconteceria se tivesse sentido para a
178
coletividade. E se não acontecesse? O que se perderia? Não havia
nada a perder, a não ser, talvez, a nossa esperança! (...) Não havia
interesses particulares nesse movimento, nem se tratava de uma
campanha política! (E.4)
Não havia certezas nem garantias, mas havia a disposição para enfrentar
alguns riscos:
Caminhávamos dispostas a correr os riscos de nos apresentarmos
sozinhas no dia dez de outubro no paço municipal com algumas
colchas, linhas e agulhas... (E.4)
A necessidade de incluir a incerteza e a imprevisibilidade nos processos
gerenciais também é percebida por outra professora, ao associar a gestão do
movimento “Tecendo a Paz” à gestão hospitalar:
O hospital não deixa de ser uma empresa e tem que ser rentável
também. que o hospital trabalha com o imprevisível e os
administradores têm que administrar o imprevisível. Mas as técnicas e
as normativas não aceitam a imprevisibilidade! A colcha é a mesma
coisa. Eu tinha dúvidas de quantas pessoas iriam. Porque quando a
gente pensa numa ão, para mim, ela não é sempre previsível. Podia
ser uma frustração. Eu fui com medo para ver quem estava no paço
municipal. Quando eu cheguei, que surpresa! (E.1)
A forma como se estruturou a coordenação do “Tecendo a Paz”
proporcionou um movimento de auto-organização e a vivência com a diversidade
foi uma marca do movimento.
Retomando as idéias de Shiva (2003) desenvolvidas no Capítulo II,
podemos compreender que a diversidade está ligada à auto-organização, uma
vez que a homogeneização, tanto da natureza quanto da cultura, acaba por
destruir os sistemas auto-organizados ou sustentáveis, tornado-os vulneráveis e
dependentes de intervenções externas aos próprios sistemas.
Morin (2002b) também relaciona a auto-organização à vivência com a
diversidade ao associar a homogeneidade à morte e a diversidade à vida,
partindo do princípio que a diversidade, tanto biológica quanto cultural, aumenta a
resistência da população às diversas perturbações. E a regulação desta
resistência depende de um complexo sistema espontâneo e auto-organizacional,
que tem a capacidade de se auto-produzir sem ter um centro organizador.
179
Essa noção de auto-organização, no entanto, não pressupõe a total
inexistência de um centro, mas sim a interação dinâmica entre um movimento
central, um movimento policêntrico, um movimento anárquico e um movimento
excêntrico, o que pode explicar as contradições vividas pelas coordenadoras do
movimento que, mesmo desejando a total ausência de uma liderança central,
perceberam, de certa forma, a sua necessidade, porém partindo do princípio que
essa coordenação era instável e dinâmica, que devia se relacionar com as outras
formas de coordenações locais, de modo a promover a autonomia, a liberdade e a
criatividade dos participantes do movimento.
Assim, a coordenação desse movimento buscou estruturar-se de modo a
promover a auto-gestão, considerando que este processo o ocorre
naturalmente em nossa sociedade. Ao contrário, quando ele ocorre, sua
efetivação é resultado de movimentos de luta e resistência, de movimentos que
almejam uma grande mudança cultural e social.
Para resgatar a capacidade de auto-organização dos sistemas sociais é
necessário que se criem condições para a efetivação dos diferentes níveis de
interação que possam promover tal organização, uma vez que os mecanismos de
estruturação social encontram-se hoje muito distantes desta perspectiva.
A construção histórica dessa possibilidade deve ser fruto de um complexo
processo de reconstituição das relações sociais e naturais, um processo onde a
revisão das relações de poder e dos modelos de gestão deve ocupar lugar de
destaque.
2.6. A contribuição do movimento para a formação dos professores e
para a prática pedagógica
Considerando que todas as professoras entrevistadas têm uma história de
participação em movimentos sociais e uma concepção de educação voltada para
a construção da cidadania, não podemos atribuir exclusivamente ao movimento
“Tecendo a Paz” a influência em suas formações e práticas pedagógicas, uma
180
vez que a própria participação destas professoras neste movimento foi decorrente
de sua formação anterior e de suas concepções sobre educação.
Entendemos que, como um processo dinâmico de construção histórica,
presente, passado e futuro se interconectam nas experiências vividas pelas
professoras neste movimento, de modo a reafirmar, atualizar, complementar ou
modificar conceitos já sedimentados e também permitir o desenvolvimento de
novas reflexões e ações.
Assim sendo, buscamos identificar algumas contribuições particulares do
movimento “Tecendo a Paz” para a formação destas professoras e suas práticas
pedagógicas, preservando a idéia de que tal contribuição se entrelaça à história
de vida das professoras e considerando que muito desta reflexão está
contemplada nos itens anteriores, uma vez que esta análise, assim como
compreendemos o processo histórico, busca constituir-se como uma tecelagem.
Um aspecto ressaltado nas entrevistas é a originalidade da proposta do
movimento no que diz respeito ao caráter prático e concreto da costura da colcha.
Acho que esse foi um dos movimentos que mais tentou dar expressão a
essa variedade de sentimentos de indignação com a morte, além da
perda da pessoa, o Toninho, que tinha uma trajetória política, que tinha
uma identificação com a cidade. (E.3)
Devemos considerar o fato de que o curso de Terapia Ocupacional é
caracterizado por um grande número de aulas práticas que visam ao estudo da
ação humana, através do desenvolvimento e análise de atividades artísticas,
artesanais, lúdicas, profissionais e de auto-cuidado, de modo que o fazer humano
e suas múltiplas possibilidades de análise ocupam lugar central no currículo.
Assim, acreditamos que essa característica tenha facilitado não apenas a
construção do movimento como também a sua utilização no cotidiano da prática
pedagógica:
A realização de atividades em sala de aula, nas aulas práticas
principalmente, é uma característica dos cursos de terapia ocupacional.
Uma das atividades com as quais eu trabalho com os alunos é
exatamente a costura. (...) Então comecei a trabalhar com os alunos a
confecção de colchas de retalhos. Todo esse processo foi muito
interessante porque os alunos puderam não realizar a atividade de
costura e analisar seus conteúdos específicos, como também entender
181
o significado daquela atividade num contexto muito maior que era a
sociedade, naquele momento histórico que a gente estava vivendo.
Pudemos, inclusive, juntar isso com outras disciplinas, como a disciplina
que discute os movimentos sociais, por exemplo. (E.4)
Percebemos a importância dada ao contexto social e às relações
interdisciplinares no processo pedagógico, mesmo quando se desenvolvem
conteúdos específicos.
Podemos ainda identificar a realização de atividades como característica
intrínseca à Terapia Ocupacional e a vinculação desta característica ao “Tecendo
a Paz”, a partir da afirmação de uma professora que, embora ministre aulas na
Faculdade de Terapia Ocupacional da Puc-Campinas, não é terapeuta
ocupacional.
Penso que essa coisa de fazer ou de materializar no objeto aquilo que a
gente está sentindo, tem relação com a essência da profissão.
É assim
que eu vejo. Essa é a experiência que eu pude viver. Não sei se teria
surgido num outro espaço que não o da Terapia Ocupacional. Um
movimento social, sem dúvida nenhuma poderá surgir, como surgiram
vários... Mas um movimento com aquela simbolização, com aquela
expressão na matéria, talvez não. Talvez não. (E.2)
A mesma professora valoriza o caráter prático do movimento por entender
que, a partir da atividade concreta, o aprendizado pode unir o cognitivo e o
sensível:
Eu não gosto de separar o cognitivo do sensível (...) Eu diria que para
mim [a participação no movimento “Tecendo a Paz”] foi um modo
cognitivo-sensível novo de aprender. Não sei se isso esclarece. É um
modo inteligente, por isso estou chamando de cognitivo e sensível, ao
mesmo tempo, de aprender. (E.2)
Essa percepção de aprendizado reflete a perspectiva da Declaração
Brasileira para o Pensamento Complexo que considera que, para enfrentar os
desafios do momento histórico atual, uma educação autêntica deve, dentre outras
coisas,
ser processada de modo contextualizado, concreto e global. Uma
educação que inclua a intuição, o imaginário, a sensibilidade e o corpo
na transmissão do conhecimento, e que insista no amor e na amizade
como traço constitutivo da solidariedade universal. (COMPLEXUS;
GRECOM, 1998)
O movimento “Tecendo a Paz”, no entanto, não foi utilizado como material
didático apenas nas aulas práticas. De diferentes formas, esse material de
182
instrumentalizar também as aulas teóricas e as atividades assistenciais,
associando e integrando teoria e prática, conteúdos específicos e genéricos,
análises locais e globais:
Não apenas nas aulas práticas, mas também nas aulas teóricas se
discutia o tema. Embora na teoria a gente tenha um conteúdo específico
um pouco mais rígido, um pouco mais fixo que nas práticas, as
associações do conteúdo específico com o contexto e com o momento
histórico também eram feitas. Não dava, naquele momento, para se
falar do conteúdo, sem se referir ao sentimento, ao que a gente estava
vivendo. Esse passou a ser o assunto central daquele mês nas minhas
disciplinas. Os alunos participaram com muito ânimo dessas atividades,
mostraram muito interesse. (E.4)
Não era preciso que eu fizesse muitas argumentações para convencer
os alunos de que era importante participar. Eles transpiravam isso.
Fazíamos muitas reflexões. Resgatamos Paulo Freire, lemos textos de
Marilena Chauí, pegamos Pichón Riviere, um autor que gosto muito e
que tem muitos textos sobre constituição de grupos. Estudamos grupos
operativos. Tínhamos o teórico e a vivência, para olhar e estabelecer as
correlações. (E.6)
Pode-se fazer uma pedagogia da problematização, quando se parte de
um foco para levar o aluno à sensibilidade, para ir trabalhando, ir vendo
como ele encontra saídas frente àquele problema ou àquele fato ou
caso. Quando eu usava o movimento em sala de aula, eu tentava
identificar o que um terapeuta ocupacional poderia trabalhar diante de
um impacto. E esse impacto pode ser tudo; pode ser a perda de
alguém... e nós perdemos o líder da cidade. Isso foi uma atividade super
coletiva, para a cidade toda! (E.1)
A busca de integração entre conteúdos específicos e genéricos e a análise
local e global podem ser feitas de modo a reafirmar o caráter emancipatório e
crítico de uma educação comprometida com a formação da cidadania, como
podemos perceber nesta entrevista:
Acho que foi importante a possibilidade do aluno, sendo do município ou
não, sendo morador de Campinas ou não, mas sendo sujeito e um
sujeito que vive a violência atual de nosso mundo moderno, se envolver
numa atividade “que se usa na prática profissional de terapia
ocupacional” e que foi realizada, se fôssemos fazer uma análise de
atividade cinesiológica ortodoxa de Terapia Ocupacional, de maneira
completamente inadequada. As pessoas sentadas no chão costurando...
deitavam, debruçavam-se em cima da costura... Pelo lado mais
ortodoxo da Terapia Ocupacional isso seria um crime, um assassinato
da atividade!! Mas esse aluno pode participar e ver que as coisas
acontecem... e pode se sentir autor do processo (...) É um momento em
que o aluno pode perceber que ele é capaz de se transformar a partir de
determinada ação, principalmente coletiva (...) E este aprendizado,
183
principalmente para os profissionais de saúde, é extremamente
importante. O profissional de saúde ainda é aquele formado para ser
quem sabe o que o outro precisa e sabe o que a sociedade necessita.
Ele tem o poder absoluto de determinar o que será melhor para aquele
que ele está tratando. (E.5).
E ainda,
Ela [a colcha] se construiu a partir das diferenças na composição do
todo. Isso se transpõe para a Terapia Ocupacional, quando se mostra,
nos trabalhos grupais, que os grupos são heterogêneos, que nesses
grupos pode existir opressão, liderança, etc. E a atividade pode
trabalhar essas relações. (E.1)
A professora de “Movimentos Sociais e Cidadania”, uma disciplina teórica,
também ressalta a motivação dos alunos diante da possibilidade de unir a teoria à
prática, o ensino à pesquisa e o seu próprio desafio, como docente, para permitir
a criatividade dos alunos no desenvolvimento dos trabalhos diante de uma nova
dinâmica pedagógica:
A disciplina começou em agosto, em setembro teve a tragédia, e daí,
como os alunos já estavam lendo alguns textos sobre movimentos
sociais e surgiu a proposta do Tecendo a Paz, eu me engajei no grupo
que estava discutindo com os professores da T.O. uma maneira de
participar e de integrar os alunos (...) Como toda a disciplina, todo o
curso, nem todos os alunos se envolveram igualmente, mas (...) aqueles
que se envolveram realmente, me deram muita alegria, porque eles
ficaram extremamente motivados (...) para explicar o movimento
Tecendo a Paz relacionando-o com autores básicos que definem o que
é movimento social (...) Eles traziam dúvidas sobre os textos, mas
pensar em cima de um caso concreto foi muito melhor do que nos
semestres anteriores, onde a teoria não tinha uma vinculação tão direta
com o movimento dos alunos (...) Esse semestre, em particular, foi
diferente de todos os outros (...) porque as alunas vivenciaram
concretamente o que estava acontecendo exatamente naquele
momento, naquela conjuntura. Foi muito mais vibrante, muito mais
dinâmica a discussão em sala de aula. Foi mais pesquisa da prática que
ensino de teoria. Acho que cruzamos as duas coisas, o tempo inteiro.
(...) Eu fui muito desafiada, vamos dizer, a estar tentando pensar várias
possibilidades, não fechar as escolhas que elas poderiam fazer para
apresentar os trabalhos. Teve uma apresentação interna em sala de
aula, depois esses cartazes foram para uma apresentação mais coletiva
[na Semana de Estudos da Faculdade] (E.3)
Esta mesma professora identifica, a partir da forma como o movimento foi
introduzido na prática pedagógica, uma facilitação para as relações
interdisciplinares e maior integração dos docentes no projeto pedagógico do
curso, mesmo que advindos de outras faculdades e áreas diferentes do
conhecimento e tendo como base os currículos organizados por disciplinas:
184
Percebi que houve um tema comum que foi trabalhado de diferentes
maneiras e todo mundo muito motivado, tanto professores, como
alunos, querendo dar vazão, expressar de alguma maneira... e eu
também me senti incluída nessa forma de expressão (...) [o movimento]
me marcou como uma experiência positiva de uma professora que se
sentia, nessa disciplina, meio marginal, que não entende a outra área
muito bem e que se esforçava para compreender o trabalho que estava
sendo feito. Não é muito simples para o professor que chega de outro
Centro, de outra área de conhecimento e tenta criar uma dinâmica que
se aproxime de uma área que você tenta conhecer, mas nem sempre
consegue. Aliás, não consegue compreender o sentido de todas as
atividades e de todas as aulas que são dadas (...) Mas, naquele
momento, naquela experiência, eu acho que me senti mais integrada ao
corpo docente, ao projeto pedagógico do curso de Terapia Ocupacional,
que sempre fiz questão de conhecer, de tentar complementar, ser um
complemento do projeto pedagógico. (E.3)
Como o processo pedagógico é dinâmico e pode ser, em si mesmo,
produtor de conhecimento e de transformações tanto do aluno, quanto do docente
e da realidade social, uma das professoras identifica novas possibilidades de
integração entre teoria e prática, conteúdos específicos e genéricos, assim como
novos métodos pedagógicos, a partir da experiência do movimento e de sua
utilização em sala de aula:
O sentido do movimento “Tecendo a Paz” e da colcha de retalhos me
traz ainda outra reflexão: a gente fica reinventando a escola todos os
dias: o conteúdo, o método, o programa, a avaliação. E a vida nos
coloca situações, todos os dias, que retratam exatamente aquilo que
durante anos ou meses a gente persegue para o aluno realizar. Se a
gente usasse apenas a vida, o que acontece no cotidiano, na cidade, ou
talvez no entorno da escola, você poderia ensinar Física, Química ou
Terapia Ocupacional ou o que quer que seja. E, no entanto, a gente
morre reinventando a escola e se frustra com cada método, com cada
programa, com cada técnica de avaliação, com cada técnica ou
estratégia de ensino. Então a colcha me ensinou isso, eu não preciso
escolher o teórico, o tema. Eu posso olhar para a vida e dizer pra as
pessoas vamos construí-la? E aí a gente consegue... (E.2)
Buscando uma prática docente transdisciplinar que permite transitar do
específico para o global, do particular para o genérico, do social para o individual
e vice-versa, ligando de modo indissolúvel muitos dos diferentes aspectos que
constituem a aprendizagem, e descobrindo novas estratégias de ensino, uma das
professoras faz uma menção às dificuldades inerentes ao processo de
transformação do professor.
185
Isso é um sofrimento para o docente! (...) E como o docente sofre uma
pressão institucional, ele tem que descobrir os caminhos. Muitas vezes
é longo o caminho para chegar até o momento de propor uma atividade,
ao invés de “dar uma aula” de Atividades e Recursos Terapêuticos... de
trazer o grupo de alunos para um movimento social, por exemplo. O
docente tem que descobrir outros caminhos. São muito mais longos do
que normalmente seriam se ele ficasse dentro da Instituição. (E.5)
Diante das dificuldades vividas pelos docentes para a formação de
profissionais de saúde que possam religar diferentes conhecimentos não apenas
para tratar doenças, mas para dar um sentido ao mundo dos sujeitos tratados, a
professora fala sobre a contribuição do movimento para o exercício de sua prática
pedagógica, tendo em vista a construção interdisciplinar:
Pensando na colcha e no trabalho que faço como professora e
profissional da saúde com os alunos que estou formando... fico
pensando nas nossas dificuldades. Quanta dificuldade a gente tem ao
falar no cotidiano sobre equipes, eu que supervisiono equipes
multiprofissionais de saúde e ensino os alunos a trabalhar em equipe.
Quanta dificuldade a gente tem para juntar os saberes populares, os
saberes da ciência e os saberes das disciplinas todas, para dar sentido.
E qual o pulo do gato? Como é que vivendo a experiência da colcha,
você aprende e ensina essa junção dos saberes. Isso, o tempo todo me
é um guia. (E.2)
Considerando que, para a prática pedagógica interdisciplinar e
transdisciplinar é necessária uma formação docente que, muitas vezes, exige
uma transformação de antigos conceitos e ações, podemos identificar neste
relato, um aprendizado profundamente transformador, a partir da vivência do
movimento Tecendo a Paz”, principalmente no que se refere às relações
interpessoais, ao exercício do poder e à reestruturação de um pensamento
cartesiano para um pensamento complexo:
Durante o processo de costura da colcha, eu tive o que considero um
dos maiores aprendizados da minha vida pedagógica, terapêutica e
também social [sobre a tentativa de controlar o processo de modo linear,
previamente organizado e centralizado e perceber que o processo
ocorreu de modo auto-organizado, caoticamente e sem liderança
central] (...) Eu entendi o quanto, apesar de eu lutar contra, eu ainda era
controladora. Na verdade, acho que foi um processo de auto-cura!
Deixei de ser controladora! Depois disso, mudei as minhas atitudes nas
relações com os alunos, com os pacientes, na relação com a vida. Essa
vivência foi muito forte e mudou minha prática... para além do discurso e
de uma racionalidade que já me era muito conhecida. (E.4)
186
Continuando, a professora considera que essa mudança refletiu-se
diretamente na relação professor-aluno.
Acho que hoje sou mais espontânea como professora e, obviamente,
quando você é mais espontânea, o outro também tende a ser mais
espontâneo e a relação fica mais fluida (...) Fico pensando que, talvez
essa divergência entre o discurso e a ão diminuía a minha
espontaneidade e alimentava uma certa rigidez, talvez pela necessidade
de manutenção de um lugar de controle. Não sei exatamente. Mas acho
que hoje sou mais espontânea e sinto que o retorno dos alunos também
é mais espontâneo. (E.4)
As perspectivas da auto-organização e da possibilidade de integrar
individualidade e coletividade na construção de uma sociedade solidária também
foram reafirmadas culturalmente neste movimento.
Essa idéia de que se o homem não tiver uma organização externa,
imposta a ele, não é capaz ou vai sucumbir, porque um vai comer o
outro, é uma idéia que, para este movimento, caiu por terra,
absolutamente. Essa idéia de que a gente não é capaz de se expressar
individualmente com o seu sentido e, ao mesmo tempo, coletivamente,
de não ter uma atitude de construção do mundo e sim de destruição...
essa idéia da barbárie... é o que está dado... é o que estava dado. (...)
Essa experiência foi única para mim. (E.2)
Considerando a importância do movimento “Tecendo a Paz para a
formação de professores, podemos ressaltar ainda o valor de troca intercultural na
vivência com a diversidade.
[o movimento] marcou na minha formação, sim, porque, lidar com
movimento social, entender o que ele tem a dizer e conseguir se fazer
entender, principalmente com movimentos populares, e não com um
movimento, por exemplo, docente, onde é falar de igual para igual...
mas no movimento popular, você tem uma dimensão de troca cultural
ali, que é de aprendizado. Então, quando eu participei dos atos, dos dois
atos, um que era no Paço Municipal e outro que era uma caminhada,
nos dois casos, eu me senti muito bem, no seguinte sentido: eu sei
como fazer, eu sei como participar, eu sei como entender. O que, em
outros movimentos anteriores, de anos atrás, eu tive que aprender, eu
tive que ouvir, observar, perguntar. (E.3)
Quanto à contribuição para a formação dos alunos que participaram do
movimento, identificamos que
para o aluno foi importante para ele acreditar que é possível lidar com
as diferenças, para ele acreditar que sua ação pode ter impacto.
Também acho que o aluno pode lidar com conceitos de cidadania, com
sua auto-estima, com estigmas, pode lidar com seus preconceitos e
entender que você pode compor um todo, que não precisa ter ações
segmentadas, porque a sociedade interage (...) e também fazer um
187
paralelo com a equipe multiprofissional, transportando as leituras
políticas e os jogos de poder. (E.1)
Também são identificados aprendizados específicos para os alunos e, mais
amplamente, para a formação do perfil do aluno de Terapia Ocupacional da Puc-
Campinas, que tem demonstrado facilidade para lidar com a diversidade:
Eu sempre vejo muitos alunos e ex-alunos da Terapia Ocupacional nos
eventos que, de alguma forma, buscam a inclusão, buscam o lugar da
diversidade (...) percebo os alunos se colocarem como atores, dispostos
a participar da construção social para a inclusão. Na época do
movimento “Tecendo a Paz” percebi que, para os alunos, ficou mais
claro o papel social da universidade, a importância da universidade
compor com os movimentos sociais, estar junto. Eu me lembro que,
naquela época, a auto-estima dos alunos ficou muito alta. Porque eles
estavam participando de um movimento de muita ação e porque o
discurso que nós defendíamos estava sendo ouvido (...) E também com
relação à atividade, acho que os alunos puderam compreender melhor
como a atividade pode ser transformadora, não apenas numa situação
terapêutica definida, mas tamm numa situação coletiva. Acho que
eles puderam compreender que qualquer situação em potencial pode
ser transformadora. (E.6)
A contribuição do “Tecendo a Paz” para a formação dos alunos não se
limitou, no entanto, à vivência do movimento. Percebemos que ele transformou-se
em material didático, que ainda hoje é utilizado na prática pedagógica:
Hoje, pouquíssimas coisas na história me significam tanto quanto o fato
de eu me apropriar disso [da vivência do movimento e das reflexões
decorrentes dessa vivência] como elemento constitutivo de disciplina, de
conteúdo. Sabendo dos limites do que é contar, dos limites do que é o
não vivido mas o ouvido e sabendo também que o ser humano é capaz
de ouvir e viver a partir da experiência de outro, tenho tentado resgatar
movimentos semelhantes ao da colcha, buscando, de qualquer forma,
irradiar, no sentido da construção de novos movimentos, que às vezes
não são tão grandes, mas que deveriam se dar em cada unidade de
serviço. (E.2)
A mesma professora refere o uso desse material pedagógico como
estratégia para o desenvolvimento da autonomia do aluno, de sua participação
política e para a vivência da diversidade:
... Em sala de aula, quando os alunos têm muita dificuldade em
situações como eu não posso fazer o Centro Acadêmico funcionar,
porque eu não faço parte dele... e os professores poderiam dar uma
mãozinha... Quando eu tento mostrar que todos somos significativos
para construir algo coletivo e que cada um pode fazer isso e o aluno não
consegue entender... seja no exemplo do C.A. ou na organização de
uma semana de estudos ou de um campeonato esportivo... eu tenho
188
retomado a colcha para ao alunos que não viveram o movimento porque
entraram na universidade depois disso. Tamm tenho usado, às vezes,
quando isso se torna foco, para falar dos movimentos de destruição, de
antagonismos, de polarização que acontecem no mundo... quando os
alunos trazem questões como os americanos estão massacrando os
árabes ou, ao contrário, os árabes estão provocando o mundo ocidental,
o capitalismo, a religião... Quando eles têm dificuldade para entender
que é possível construir na diversidade, mas que para isso é preciso
basear-se em outros paradigmas, além do saber ocidental
predominante... eu uso muito esse exemplo, de que é possível
materializar humanamente com as diferenças e dar um sentido
construtivo a isso, não destrutivo. (E.2)
O processo de construção da colcha de retalhos do “Tecendo a Paz”
também possibilitou o desenvolvimento de técnicas didáticas e exercícios
pedagógicos com a finalidade de trabalhar relações grupais:
Eu trabalho muito com grupos (grupos de alunos, equipes
multiprofissionais, etc.) e a metodologia da construção da colcha de
retalhos e as relações decorrentes daquela atividade coletiva tem me
ajudado no trabalho com essas relações grupais. Não apenas a partir da
discussão do movimento, mas também a partir de exercícios práticos de
construção de diferentes colchas de retalhos. Venho desenvolvendo
essa metodologia com diferentes grupos e venho percebendo resultados
muito satisfatórios, pois, a partir desses exercícios podemos perceber e
analisar inúmeras possibilidades de relações grupais e construir muitas
metáforas. (E.4)
A importância da vivência deste movimento e a perenidade dos
aprendizados dela decorrentes são enfatizadas neste relato:
Se eu pudesse dar um presente de formatura para os alunos, eu daria a
possibilidade de viver algo parecido. Mais do que qualquer aula,
conferência, congresso, embora todos tenham seu valor. Mas, a
possibilidade de viver essa construção, de aprendizagem da vida, além
da aprendizagem da Terapia Ocupacional... eu daria isso de presente
para cada aluno que tenho ou que tive durante minha trajetória. Porque,
para mim, a possibilidade de viver esse movimento foi um presente, não
a possibilidade de ser um movimento social apenas, porque disso eu já
tinha participado. Mas, desta forma, deste modo, de algo onde
estivessem presentes a alegria e a tristeza de cada um, de algo que
surgiu pela desesperança e trouxe tanta esperança... trouxe não... traz
ainda, no meu cotidiano. Eu daria isso de presente. (E.2)
Em síntese, o movimento “Tecendo a Paz” contribuiu para a formação dos
professores na medida em que possibilitou: refletir sobre a educação e inovar
seus métodos, estratégias e objetivos; integrar universidade e sociedade;
interligar ensino, pesquisa e extensão; desenvolver ações interdisciplinares e
189
transdisciplinares; integrar saberes científicos e saberes populares; integrar teoria
e prática, discurso e ação, racionalidade e afetividade; participar como sujeitos da
construção social coletiva; exercitar trocas interculturais; rever conceitos e inovar
ações relativos às relações sociais, institucionais e interpessoais; identificar e
reestruturar relações de poder no cotidiano; qualificar a relação professor-aluno;
expressar, catalisar e transformar sentimentos; manifestar necessidades e
posições políticas; vivenciar a diversidade, a incerteza, a auto-organização e
resgatar a esperança.
Quanto às contribuições para o desenvolvimento da prática pedagógica
podemos identificar que o movimento possibilitou: a integração entre teoria e
prática, entre conteúdos específicos e contexto social; a formação da cidadania
do aluno e o exercício da crítica social; a valorização do aluno no processo de
aprendizagem e participação social; a utilização do movimento e seus símbolos
como material didático para reflexão e vivências que visem promover uma
educação emancipatória, a cultura da diversidade, o desenvolvimento de atitudes
cooperativas e solidárias, a integração entre saberes científicos, saberes
populares e cultura; o desenvolvimento de projetos e relações interdisciplinares e
transdisciplinares nos trabalhos grupais, nas equipes multiprofissionais, nos
grupos terapêuticos e nas relações institucionais.
190
CONSIDERAÇÕES FINAIS
191
As descobertas científicas desde o início do século XX, principalmente no
campo da Física, e as demandas da humanidade numa sociedade globalizada
vêm exigindo profundas mudanças na compreensão e nas formas tradicionais de
abordagem do conhecimento, da natureza e das relações sociais.
Ainda com uma forte tradição da ciência reducionista, o conhecimento atual
clama por uma abordagem da realidade que possa analisá-la em sua
complexidade. Nessa busca, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade vêm
ocupando lugar de destaque nas reflexões atuais, uma vez que são
compreendidas como caminhos possíveis para essa abordagem que, contrária ao
reducionismo, tende à associação e integração dos saberes.
Enquanto a interdisciplinaridade busca integrar diferentes disciplinas,
compreendidas como campos específicos do conhecimento científico, a
transdisciplinaridade busca, além disso, a integração do conhecimento científico a
outros modos de produção de conhecimento historicamente construídos pela
humanidade. Contrária à neutralidade e objetividade da ciência tradicional, a
transdisciplinaridade reconhece a importância da subjetividade humana na
produção do conhecimento.
Este processo de transição paradigmática envolve radicalmente a
Educação, pois através dela passam a produção e a transmissão do
conhecimento, de modo que podemos atribuir-lhe importância capital na
constituição cultural das sociedades. No entanto, a Educação é constituída pelos
mesmos homens e pelos mesmos mecanismos que constituem as sociedades e
suas histórias. Assim, para que a Educação promova a transformação cultural e a
transição paradigmática, é necessário colocá-la no interior desta questão,
buscando compreendê-la e transformá-la neste processo.
Essa transformação é extensa e envolve a estrutura social onde se
inserem as escolas, as políticas educacionais, as instituições locais e o cotidiano
da prática pedagógica. E no núcleo de toda essa extensão encontra-se o
professor, sujeito que marca e opera esse cotidiano, na constante relação com os
alunos. Uma relação que identidade ao cotidiano escolar, porque carrega as
referências culturais
tanto do professor quanto do aluno. Referências que também
passam pelos conflitos entre o tradicional e o emergente, no embate entre as
contradições e necessidades individuais e coletivas.
192
Assim, compreendemos que esta transformação cultural e os conflitos dela
decorrentes, embora envolvam grandes estruturas e múltiplas relações, também
se desenvolvem, em toda sua plenitude, na individualidade e na cotidianidade do
professor que, neste processo, é sujeito e objeto.
A formação de professores, ela mesma sendo processada no interior
dessas transformações, deve balizar seus caminhos pela proximidade com a
prática e pelo pensamento crítico e contextualizado, buscando minimizar os riscos
de fechar-se em produções teóricas generalizantes.
Na busca de uma abordagem teórico-prática e contextual que possa
facilitar a compreensão das necessidades atuais da Educação, são bem vindas
propostas e iniciativas que visem integrar a escola e a prática docente às
condições concretas das sociedades e da existência humana, em suas múltiplas
necessidades e contradições. Nessa perspectiva, a integração entre ensino,
pesquisa e extensão deve marcar a vida universitária.
Dentre as inúmeras possibilidades de buscar essa integração e contribuir
para a formação docente, os movimentos sociais vêm revelando sua extensa
potencialidade pedagógica. A participação de professoras da Faculdade de
Terapia Ocupacional da PUC-Campinas no movimento social “Tecendo a Paz”
proporcionou, além de seus objetivos sociais, a integração entre ensino, pesquisa
e extensão, assim como uma contribuição à formação docente e qualificação da
prática pedagógica.
As entrevistas realizadas com estas professoras, objeto de nosso estudo,
apresentaram uma íntima relação com os pressupostos e objetivos desta
pesquisa, assim como com os referenciais teóricos utilizados, vindo a confirmar a
contribuição desta experiência para a formação docente e a prática pedagógica
diante deste momento de transição paradigmática.
Embora estas professoras tivessem uma história pessoal e profissional
marcada por uma intensa participação em movimentos e atividades sociais e uma
concepção de educação voltada para a construção da cidadania e para o
compromisso social da escola, o movimento “Tecendo a Paz” proporcionou
193
contribuições específicas, seja reafirmando, complementando, inovando ou
instrumentalizando a constituição de conceitos, valores e ações.
Dentre estas contribuições, destacamos aquelas que envolvem a
construção de relações interdisciplinares e transdisciplinares, tanto no âmbito da
teoria quanto da prática, por expressarem os objetivos e as questões centrais
deste trabalho.
Compreendemos que, tanto a interdisciplinaridade quanto a
transdisciplinaridade, como formas de associação e religação de diferentes
saberes ou campos de conhecimento, pressupõem a vivência e a integração da
diversidade.
A colcha de retalhos, símbolo do movimento “Tecendo a Paz”, utilizada
como metáfora de vivência e interação da diversidade na constituição da unidade,
ao transformar-se em manifestação social, possibilitou uma nova construção
cultural, mais especificamente, a expressão de uma cultura de paz, mesmo diante
da diversidade.
No núcleo destas reflexões encontra-se uma questão ética que exige uma
revisão das formas como a humanidade tem construído suas relações entre os
homens e entre homens e natureza, em torno da qual giram questões sobre as
produções científicas, políticas e econômicas. Do ponto de vista ético, a
integração dos saberes deve contribuir para o desenvolvimento de um
conhecimento contextual com vistas à qualificação da vida nas relações sociais e
naturais.
A vivência respeitosa com a diversidade carrega, implicitamente, a
necessidade de analisar as relações de poder, uma vez que, sob esse ponto de
vista, as referências axiomáticas, a organização política e os interesses
econômicos não deveriam ser definidos de modo centralizado ou hierarquizado,
mas constituir-se dinâmica e democraticamente, buscando contemplar a
complexidade inerente à diversidade.
Neste sentido, o movimento “Tecendo a Paz” proporcionou uma
experiência de auto-organização, uma vez que se caracterizou como um
194
movimento popular, espontâneo, apartidário e sem liderança central. As diferentes
iniciativas para a organização do movimento não se dirigiram no sentido do
controle de suas múltiplas participações, mas sim para o reconhecimento das
diferentes formas de expressão e para o desenvolvimento da criatividade e
autenticidade de seus componentes.
O aprendizado decorrente desta experiência não ficou limitado ao
tempo/espaço de sua realização. Ao contrário, esse movimento produziu não
apenas um significativo processo de reflexão para as docentes envolvidas, como
também constituiu rico material didático que ainda hoje é utilizado para facilitar o
acesso, tanto reflexivo quanto empírico, à metodologia das relações e projetos
interdisciplinares e transdisciplinares, seja no âmbito acadêmico, seja em
diferentes instituições sociais.
Se considerarmos que o Projeto Pedagógico do Curso de Terapia
Ocupacional da PUC-Campinas é construído a partir de novos paradigmas,
podemos compreender a extensão deste movimento na formação de seus
professores e na construção de práticas pedagógicas emancipatórias. Tal projeto
fundamenta-se nos seguintes princípios: a interdisciplinaridade e, por
conseguinte, a integração entre os diferentes saberes e o desenvolvimento de
estruturas e relações de poder que permitam a abordagem poliocular da
realidade; a integração teoria-prática e ensino-pesquisa-extensão; a interação
entre conhecimento específico, conhecimento global e análise contextual; a
integração entre formação técnica e formação pessoal; o desenvolvimento da
cidadania, compromisso social, análise crítica da realidade, construção coletivo-
cotidiana da história e ampliação da consciência ética.
Compreendemos ainda que, ao mesmo tempo em que o movimento
“Tecendo a Paz” contribuiu para a formação docente e a prática pedagógica da
Faculdade de Terapia Ocupacional da PUC-Campinas, a estrutura deste Projeto
Pedagógico também permitiu o desenvolvimento deste movimento no seu interior.
Dentre os sentimentos que marcaram os docentes que participaram deste
movimento, devemos ressaltar a esperança. Uma esperança que não deve ser
confundida com ingenuidade ou ausência de crítica social, mas uma esperança
195
que assume o lugar da resistência contra as mais diversas forças da
desintegração e da exclusão.
Enfatizamos o êxito do Movimento “Tecendo a Paz”, tendo em vista suas
possibilidades de expressão popular e manifestação política, sua contribuição
para uma construção cultural e pedagógica e sua experiência de auto-
organização. Mas também compreendemos seus limites, considerando a
extensão e a complexidade dos mecanismos sociais e institucionais, tanto locais
quanto globais, diante das transformações necessárias à construção de uma
sociedade pacífica e solidária.
Reafirmando que individual não é compreendido como individualismo e
coletivo o é compreendido como massificação ou homogeneização,
gostaríamos de deixar nossa contribuição no sentido de alimentar reflexões
acerca das possibilidades e das responsabilidades individuais e coletivas, locais e
globais, para a construção de relações que busquem, verdadeiramente, a
preservação e a qualificação da vida no planeta e nas sociedades locais, a partir
do respeito e valorização da diversidade.
Esperamos que este estudo possa gerar novas pesquisas e, para finalizá-
lo, emprestamos de Morin uma indagação que expressa nossas preocupações e
nos parece absolutamente necessária neste momento histórico.
Morin, considerando que o mundo encontra-se num estado de agonia,
determinado pelas mais diversas formas de violência, onde se degladiam as
forças de morte e de vida, pergunta: a humanidade do fim do último milênio
chegou a um impasse, ou seja, não pode seguir no mesmo rumo. Caminhamos
para uma metamorfose ou para uma catástrofe? (2003d, p.243).
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203
ANEXOS
204
ANEXO I
205
DECLARAÇÃO BRASILEIRA DO PENSAMENTO COMPLEXO
O primeiro laboratório brasileiro para o pensamento complexo, realizado na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, nos meses de maio de junho de 1998, coordenado
pelo Núcleo de Estudos da Complexidade (PUC-SP) e Grupo de Estudos da
Complexidade (Grecom-UFRN), em adesão e ressonância aos princípios firmados na
Declaração de Veneza (1996) e na Carta da Transdisciplinaridade de Arrábida (1991),
torna pública esta Declaração como forma de provocar nova atitude diante do mundo,
da ciência e da vida.
ENTENDENDO QUE:
A agonia planetária exige a construção da ética da solidariedade, da responsabilidade
e da fraternização;
A cultura mundial está presente em toda manifestação cultural particular;
A construção de uma ética universal se efetivará pelo alargamento progressivo das
singularidades culturais;
A complexificação da cultura exige que os pensamentos lógico-racional e mítico-
imaginário dialoguem mutuamente;
A geopolítica do caos’, em nome de uma globalização homogeneizadora, vem
promovendo desigualdades sociais crescentes;
AFIRMAMOS
A complexidade como atitude epistemológica que recusa o pensamento linear e
causal.
A transdisciplinaridade como dissipação das fronteiras dos saberes instituídos e busca
de validação de formas de conhecimentos que rejuntem ciências, artes, tradições e
mitos.
A ética da diversidade como princípio solidário de sobrevivência íntegra das culturas
locais que vise à construção de uma cidadania mundial.
A refundação de práticas políticas e econômicas direcionadas para uma antropoética
desejante fundada em perspectiva ecocêntrica.
A vida como arte. A poesia o só no cotidiano da prática política e científica, mas
igualmente nas relações interpessoais.
A necessidade de uma educação autêntica processada de modo contextualizado,
concreto e global. Uma educação que inclua a instituição, o imaginário, a sensibilidade
e o corpo na transmissão do conhecimento, e que insista no amor e na amizade como
traço constitutivo da solidariedade universal.
206
ANEXO II
207
208
ANEXO III
209
TECENDO A PAZ
O movimento TECENDO A PAZ nasce em decorrência do bárbaro
assassinato de nosso prefeito e também da tragédia norte-americana que
abalou o planeta.
É um movimento que nasce espontânea e criativamente de
trabalhadores da Saúde, foi levado a público no ato do dia 17/09/2001 no
Paço Municipal e foi ganhando corpo e adesão de outros segmentos da
sociedade, provavelmente por representar e catalisar um sentimento e um
desejo da coletividade. É isso que lhe a característica de um movimento
popular, espontâneo, apartidário, sem liderança central. A idéia é formar uma
grande rede de pessoas que se unam e trabalhem pela Paz, de modo que cada
pessoa ou segmento social que aderir ao movimento se transforme num
multiplicador, divulgando a idéia e formando grupos que se organizem em
torno da colcha de retalhos.
Esta iniciativa, vinda dos trabalhadores da Saúde, expressa a indignação
e o sofrimento daqueles que lidam direta e indiretamente com as vítimas da
violência.
O sentido deste movimento é simples e engloba, simbolicamente,
algumas idéias básicas:
- partir da palavra para a ação, tecendo...
- formar uma grande rede que trabalhe por um objetivo comum: a paz.
- valorizar o trabalho e a contribuição de cada um, permitindo que todos
encontrem um lugar na grande colcha: não importa o tamanho, o formato ou a
cor do retalho, mas importa que ele NÃO contenha violência.
- juntar os pedaços, costurar as diferenças, lidar com a diversidade e tecer
uma malha social sem buracos e exclusões.
- unir forças, possibilidades e criatividade para a construção de um mundo
justo e melhor.
- criar uma rede de proteção, solidariedade e acolhimento para esta nossa dor
coletiva.
- prestar uma homenagem a Toninho.
Leve seus retalhos, colchas, linhas e agulhas e assim, esperamos que no
dia 10 de outubro, ao completar um mês da morte de Toninho, esta cidade
construa uma enorme colcha de múltiplos retalhos e uma lição de
cidadania!
JUSTIÇA SIM !
VIOLÊNCIA NÃO !
Campinas, setembro de 2001
210
ANEXO IV
211
TECENDO A PAZ
O movimento TECENDO A PAZ é um movimento apartidário, popular e
sem liderança central que nasce espontânea, criativa e coletivamente de um
grupo de trabalhadores da Saúde, em decorrência do bárbaro assassinato de
nosso prefeito e da tragédia norte-americana que abalou o planeta, motivado pela
indignação diante da violência.
Foi levado a público no ato do dia 17/09/2001, no Paço Municipal, como um
convite a toda a população campineira para dar continuidade à colcha de retalhos
iniciada por funcionários e usuários de Serviços Municipais de Saúde da região
Noroeste de Campinas.
O sentido dessa colcha engloba, simbolicamente, os seguintes princípios:
- partir da palavra para a ação, tecendo...
- formar uma grande rede que trabalhe por um objetivo comum: a paz.
- valorizar o trabalho e a contribuição de cada um, permitindo que todos
encontrem um lugar na grande colcha: não importa o tamanho, o formato ou a cor
do retalho, mas importa que ele NÃO contenha violência.
- juntar os pedaços, costurar as diferenças, lidar com a diversidade e tecer uma
malha sem buracos e exclusões.
- unir forças, possibilidades e criatividade para a construção de um mundo justo e
melhor.
- criar uma rede de proteção, solidariedade e acolhimento para esta nossa dor
coletiva.
- prestar uma homenagem a Toninho.
A divulgação do movimento ocorre a partir da formação de uma rede, de
modo que cada pessoa ou entidade que aderir à idéia, transforma-se num
multiplicador, divulgando-a e/ou formando grupos que se organizem em torno da
colcha de retalhos.
No dia 10/10/2001, ao completar um mês da morte de Toninho, muitas
pessoas de diferentes idades, raças, classes sociais, profissões, credos e
ideologias reuniram-se durante todo o dia no Paço Municipal e costuraram juntas
uma colcha de retalhos de aproximadamente 200m2, que foi levada, em
passeata, ao Largo do Rosário, para integrar o movimento “Campinas contra
violência – esta bandeira também é sua”.
A prefeita Izalene Tiene, acolheu a colcha e o movimento TECENDO A
PAZ, propondo sua continuidade: a colcha deverá ser usada para cobrir o Palácio
dos Jequitibás e, em todo dia 10 de cada mês, ela deverá ser continuada e
ampliada.
Vamos dar uma lição de cidadania: todo dia 10, no Paço Municipal, traga
seus retalhos, linhas e agulhas, vamos tecer juntos uma nova sociedade, vamos
trabalhar pela Paz em Campinas e pela Paz no mundo!
JUSTIÇA SIM !
VIOLÊNCIA NÃO !
Campinas, outubro de 2001
212
ANEXO V
213
Roteiro de entrevista
1. Dados de identificação:
nome (somente as iniciais)
idade
sexo
profissão
disciplinas ministradas na Faculdade de Terapia Ocupacional no
semestre de 2001
tempo de docência
atividades profissionais no momento
data da entrevista
2. O senhor(a) participou do movimento “Tecendo a Paz” em pelo menos uma de
suas fases, seja de organização, divulgação, costura da colcha, passeata ou
utilização do material em sala de aula? Qual (is)?
3. Quais os motivos que o(a) levaram a participar do movimento?
4. Faça um relato de sua participação no movimento, ressaltando aspectos que
considere importantes para sua formação docente e para o desenvolvimento de
sua prática pedagógica.
5. Como o senhor(a) avalia a importância do movimento “Tecendo a Paz” para a
população e para os alunos da Faculdade de Terapia Ocupacional da PUC-
Campinas?
6. Faça outras considerações que julgar necessário.
214
ANEXO VI
215
ENTREVISTA 1 – E.1
Nome (iniciais): L.B.B.F.
Idade: 47 anos
Sexo: feminino
Profissão: terapeuta ocupacional
Disciplinas ministradas na Faculdade de Terapia Ocupacional da PUC-Campinas no
semestre de 2001: Prática Terapêutica Supervisionada III, Prática Terapêutica
Supervisionada VII, Terapia Ocupacional aplicada à criança e ao adolescente sob
cuidados clínicos e cirúrgicos – carga horária semanal: 19 horas/aula.
Tempo de docência até hoje: 25 anos
Atividades profissionais no momento: Docente da Faculdade de Terapia Ocupacional da
PUC-Campinas e sócia fundadora de OSCIP (Organização da Sociedade Civil de
Interesse Público) para pesquisa, assessoria e apoio de projetos sociais e de saúde.
Data da entrevista: 22/09/2006
Entrevistadora: Você participou do movimento “Tecendo a Paz” em pelo menos uma de
suas fases, seja de organização, divulgação, costura da colcha, passeata ou utilização do
material em sala de aula? Quais?
Entrevistada: Sim. O que me é mais marcante é a etapa da divulgação. Ajudei a divulgar.
Tínhamos os folhetos que avisavam sobre a atividade que ia acontecer no saguão da
Prefeitura. Eu não tive uma presença muito constante no dia da costura, no paço
municipal. Lembro-me que estive lá por um tempo curto, mas me impactou ver as
pessoas fazendo a atividade. Também utilizei o material em sala de aula, discutindo
várias questões como: o que motivou as pessoas a participarem; que momento
estávamos vivendo quando aconteceu esse movimento pela paz, porque era um marco
histórico, aliás, dois marcos históricos: o ataque às torres gêmeas do World Trade Center
e a morte do Toninho. Eu acho que estes acontecimentos dão um material importante em
sala de aula. Foram situações que chacoalharam a população, provocaram um impacto,
mobilizaram diferentes grupos sociais para que ocorresse esse movimento. Tem outras
questões que depois vou discutir, porque acho que a colcha, em especial, proporcionou
essa ampla participação popular. Se fosse outra atividade, talvez não tivesse o mesmo
significado. Acho que se tivesse uma divulgação como “vamos fazer uma passeata”,
andando pela Francisco Glicério, com cartazes repudiando a violência... acho que não
teria a mesma participação. Uma das minhas vivências, na costura, foi ver quantas
pessoas estavam indo e fazendo!
Entrevistadora: Você tem algumas idéias sobre os motivos que levaram a população
ao movimento. Essa pergunta é importante e ela está feita abaixo. Você quer respondê-la
agora ou deixar para depois?
Entrevistadora: Posso responder agora. Eu acho que, primeiro, quando se faz um grande
movimento político, trabalha-se com várias camadas sociais. A leitura que faço é que
vivíamos um momento de muita descrença política. Para mim, a entrada do Toninho
como prefeito, representava uma esperança de transformação e de mudança para a
população. E isso atingia várias camadas sociais: a credibilidade no Toninho, a
esperança de mudanças políticas. De repente, quando a população está cheia desse
desejo de mudança (isso é um ponto que acho que mobilizou) vem o impacto da
impossibilidade de se atingir alguns sonhos, algumas mudanças sociais, alguma
expectativa de acesso ao trabalho, de mudanças de todas as classes sociais. Bem, não
digo todas... acho que algumas tinham resistência, mas, estou falando do que me
impactou, de como se conseguiu agregar, aproximar as pessoas excluídas, porque acho
216
que essas é que chegaram! Não acho que naquele movimento tinha uma grande
participação da elite, mas tinha a representação de diferentes grupos sociais.
Entrevistadora: Você acha que naquele movimento tinha uma grande diversidade de
classes sociais representadas?
Entrevistada: Com diferentes ideologias, com diferentes acessos aos bens de consumo,
ao trabalho e ao lazer, enfim, acesso, de maneira geral, como direito de cidadania. A
morte do Toninho e o ataque às torres gêmeas, ao mesmo tempo, provocaram um
grande impacto. Mas, acho que a morte do Toninho impactou justamente pela
simplicidade com que ele passava a credibilidade de alguma mudança. Por que eu acho
que foi a colcha a determinante dessa participação? Porque foi, primeiro, um fazer
humano muito próximo de qualquer classe social que é a costura, o pano: não era uma
atividade intelectual, se fosse, haveria uma cisão: você continuaria propondo o não
acesso a todos. Ao contrário, pela colcha, eu poderia não gostar de costurar, mas eu
poderia juntar alguns panos para levar para alguém costurar. Eu acho que ela tinha um
significado: pouco ou muito, alguém tinha algum retalho para levar... e também isso fazia
diferença para os diferentes grupos: a questão da aquisição, a questão de não fazer um
recorte pela intelectualidade e trabalhar com a racionalidade e o afeto. Acho que tinha a
racionalidade da descrença em alguma mudança e, ao mesmo tempo, o afeto de
escolher esse ou aquele retalho para juntar com os dos outros. Fiquei pensando muito
nisso: o tipo de atividade que é fundamental para a participação.
Entrevistadora: Você acha que o tipo de atividade a colcha por várias características
que você vem pontuando, ela determinou a possibilidade de participação?
Entrevistada: Sim. Eu trabalho com vários extratos sociais e percebo que a questão da
baixa auto-estima, do não acesso e do não direito à cidadania, muitas vezes faz com que
as pessoas não se arrisquem a criar, a participar, a se envolver. Parece que elas não têm
esse direito. Parece que elas são excluídas disso porque não têm condições... e um
retalho de pano, ainda mais nas camadas mais simples... é sempre possível ter. A
costura é algo simples, que um ensina ao outro. Pode fazer pontos de “vai e vem”, não
precisa de processos tão elaborados. Acho que isso foi fundamental para que as pessoas
não se sentissem tão diferentes e participassem.
Entrevistadora: Quando você fala que viu uma grande diversidade de classes sociais e
excluídos naquela colcha, como você identificou ou percebeu esses excluídos? Quais
excluídos? Você poderia falar mais dessa sua percepção?
Entrevistada: Eu observava as relações de ajuda que eles estabeleciam entre si. Acho
que quem trabalha com diferentes grupos populacionais percebe isso: a solidariedade é
mais presente onde se tem menos acesso. Isso eu tenho observado sempre. Às vezes, a
postura de intelectuais era mais de observar o cenário acontecendo. O fazer... ficava para
quem tinha a chance de poder estar executando. O acesso e a solidariedade para discutir
que tamanho de retalho colocar, o que você acha, o que o outro acha, de ouvir o outro.
Eu sinto a mesma coisa quando eu deixo comida para pessoas carentes no “Laurão”
(como é conhecido um viaduto de Campinas): eu nunca presenciei um roubar a comida
do outro... eles sentam e comem juntos. Eu acho que a dificuldade provoca essa rede de
ajuda. Também observei as linguagens diferentes, as formas mais tímidas de perguntar
Ah! bonito?... Ah... eu não sei, mas estou fazendo o melhor que posso... São formas
de responder a um elogio, que parece que nunca é possível. Eu vejo isso nas oficinas de
brinquedo no hospital. Parece que a criação está ligada ao conhecimento, à
intelectualidade. Então, quando você disponibiliza materiais e pede para se inventar um
brinquedo, a reação é não sei, porque não sei ler, não sei escrever. A colcha tinha pré-
requisitos mínimos... eram pedaços de pano... costuras que podiam ser chuleios, vai e
217
vem... que tinham bom gosto na combinação de cores... tinham etapas de elaboração
com poucas exigências, que permitiam essa diversidade.
Entrevistadora: No processo de costura da colcha tinham escolhas, tinham decisões que
as pessoas precisavam tomar durante a organização do trabalho?
Entrevistada: Sim.
Entrevistadora: Essas escolhas ocorriam individualmente ou coletivamente, de modo que
a distribuição e a localização dos retalhos era uma decisão deles?
Entrevistada: É... Eles estavam juntos definindo. Eles tinham clareza que, pouco ou
muito, estavam contribuindo para fazer um produto só.
Entrevistadora: Você está falando dos motivos que levaram a população ao movimento.
Você percebeu mais algum motivo que possa tê-los levado ao movimento?
Entrevistada: Eu acho que, inicialmente, sabendo que o motivo era um movimento pela
paz, era também uma tentativa ou possibilidade de falar de outra forma o que é mudança,
que se quer que aconteça alguma coisa. que abafaram matando, outras formas de
a gente falar de novo. Acho que a gente vem vivendo o calar a boca” histórico da
população. As pessoas vêm perdendo a iniciativa, sem credibilidade e, principalmente,
sem status para discutir política. Veja os movimentos que a gente vivia na ditadura. Hoje,
se diz tanto que tem democracia e, no entanto, eu acho que é uma ditadura muito
mascarada, ela é mais perversa porque ela é velada, ela não é explícita. Eu acho que
essa ditadura oprime mais, porque quando ela é mais declarada você tem, inclusive, mais
chance de escolher de que lado ficar. Quando ela mascara, ela trabalha com a
racionalidade, com a intelectualidade, eu a acho mais perversa, porque ela consegue
por a máscara em classes sociais que não tem uma análise tão crítica. Penso que ir para
numa condição de poder participar e poder dizer que se quer a paz, que não se quer
aquilo que estava acontecendo, era uma chance da população poder se expressar.
Entrevistadora: Indo para a pergunta de mero três. Quais os motivos que te levaram à
participação do movimento?
Entrevistada: Eu nunca esqueço que, quando liguei a televisão para ver as notícias da
morte do Toninho, de repente apareceram as torres gêmeas. O ataque ao World Trade
Center foi mais focado que a morte do Toninho. A morte do Toninho quase não foi
divulgada, ela foi abafada, inclusive. Aliás, foi bem interessante para quem fez. Não foi?
Foi muito interessante, uma sorte para eles e para o Bush... Que ironia! No mesmo dia! E
o Bush, do jeito que vem fazendo história... Mais vitimado do que aquilo! Isso era tudo o
que ele queria para começar a fazer outras coisas. O Toninho foi a vítima abafada! Não
era um momento em que eu estava mobilizada. Eu estava impactada. Reconheço que foi
um dia dicil... depois da gente digerir tudo aquilo. Mas quando começou o movimento,
percebi que era uma chance de resgatar novamente a minha condição de poder falar das
coisas que eu não estava gostando. Porque, como docente, a gente faz um paralelo com
o quanto a universidade também não tem vivido historicamente esses movimentos
políticos, o quanto também a falsa democracia tem se instaurado e calado a nossa boca.
Eu acho que fui sensibilizada pelo movimento político, por uma esperança de
transformação. Como disse, aquilo tudo foi um golpe, mais que um golpe, foi, mais
uma vez, tirado o tapete de todo o mundo que tinha esperança de poder mudar. Uma das
coisas que eu queria ver era que a população saísse da passividade que estava
muito tempo. E a gente também, oprimida pelo trabalho. Essa passividade da
população... E acreditar que a atividade pudesse mobilizar para a mudança. Isso foi o
que me motivou a divulgar o movimento e a trazê-lo para a sala de aula, para os alunos
218
entenderem que é possível, desde que a gente acredite. Pode-se ter mais movimentos
numa época, mais em outra, mas é possível. Acho que as escolhas têm que ser
adequadas e a escolha da colcha foi muito adequada, porque propunha uma
transformação a partir de um fato. Nunca é do nada, é a partir de alguma mobilização que
se tem. Assim como a gente luta tanto em sala de aula: é a questão da complexidade dos
processos educacionais. Pode-se fazer uma pedagogia da problematização, quando se
parte de um foco para levar o aluno à sensibilidade, para ir trabalhando, ir vendo como
ele encontra saídas frente àquele problema ou àquele fato ou caso. Quando eu usava o
movimento em sala de aula, eu tentava identificar o que um terapeuta ocupacional
poderia trabalhar diante de um impacto. E esse impacto pode ser tudo: pode ser a perda
de alguém... e nós perdemos o der da cidade. Isso foi uma atividade “super” coletiva,
para a cidade toda! Arriscou-se, não se arriscou? Podia não dar em nada e isso tamm
teria um sentido... Às vezes o aluno diz Ninguém respondeu a minha entrevista da
pesquisa... então a pesquisa furou? Não, essa é uma resposta, quando se cala, também
se uma resposta. Eu acho que teve uma resposta e acho que o que me mobilizou foi
isso. Começo a girar em círculo, mas as respostas me emocionam...
Entrevistadora: Você está relatando parte da quarta questão, que trata da contribuição
do movimento para sua prática pedagógica. Você fez algumas relações do movimento
social com a universidade, com a prática pedagógica e com a Terapia Ocupacional, de
modo a não separar cada uma dessas coisas...
Entrevistada: Eu acho que o docente não pode ficar encastelado. Primeiro, a
universidade não pode. Conhecimento se constrói no dia a dia e na sua vigência. Se você
se encastelar e achar que basta se apoiar nos livros... Não estou menosprezando os
livros e as teorias, mas elas vêm da prática. A prática da teoria, a teoria da prática. Se
você ficar só no interior da universidade, você corre sérios riscos. Essa é uma crítica que
fazemos a várias universidades e a vários pesquisadores: eles começam a se isolar tanto
do contexto social e das demandas, de tudo que tem fora, que começam a fazer
pesquisas que interessam somente a eles, mas que não têm uma repercussão fora,
não tem impacto. Acho que você faz pesquisa a partir de alguns indicadores que te
mobilizaram, alguma coisa que te sensibilizou. Tem sempre um fato. Posso montar um
projeto a partir de alguma coisa que está acontecendo com a população, que está me
sensibilizando e que eu quero mudar, quero transformar.
Entrevistadora: Quando você fala em fato, você se refere a um fato que sensibiliza, que
tem um significado a ponto de mobilizar o individuo para uma determinada ação?
Entrevistada: Mudança. Isso. Eu sempre achei que o professor tem que viver lá fora para
constituir os conceitos que ele forma, que ele ensina, que ele troca na atividade. Uma das
coisas que acho o maior equívoco é fazer os bancos de dados da extensão para a
população vir procurar. Se ela tivesse condição de chegar, por exemplo, na catedral e
procurar o que ela precisa de ajuda, ela já estaria mais de 80% salva, porque ela
consegue identificar, consegue buscar e consegue saber onde tem ajuda. São diferentes
concepções de exclusão. Eu tenho que ir na comunidade, porque se eu quero que ele
fique com a mesma condição de outros grupos sociais, não é paternalismo, é porque ele
está com o seu mundo restrito. Tem gente que não sabe nem onde fica a catedral. Acho
que o lugar onde vocês escolheram para fazer a colcha é significativo: na prefeitura, que
é um órgão público, que todo mundo precisou alguma vez ir lá. Não é qualquer lugar. É
um serviço público. Não tem jeito de dizer que não sabe onde é a prefeitura da cidade,
mas ela pode não saber onde é a paróquia tal... A atividade que eu venho desenvolvendo
ao longo da minha história, junto às comunidades mais excluídas, repensar com elas as
possibilidades de auto-gerenciamento e de auto-organização, fez com que eu me
mobilizasse para essa atividade. Essa é uma condição que eu, enquanto professora,
ganho muito ao trazer essa riqueza para dentro da sala de aula. Porque fora eu
219
também vou rever os conceitos que estou usando, sua aplicação, se o movimento social
foi mais rápido que os meus conceitos, se eu devo repensá-los, o quê eu tenho que
estudar mais para dar conta das demandas, dos riscos, das doenças, do meio ambiente...
enfim, está tudo mudando o tempo todo e eu tenho que ver se também eu não estou
ficando para trás. Acho que essas experiências extra-muros me enriquecem como
docente. Enriquecem com outros valores, me ajudam a entender as linguagens locais, as
culturas locais, fazem com que eu traga esse material para a sala de aula, enquanto
professor, enquanto pessoa. Mas tem um outro lado também: eu nunca dicotomizei a
minha prática assistencial, mesmo intramuros, no hospital universitário. É necessário
analisar a política dentro do hospital, porque nossa prática está carregada de política.
Quando eu oriento uma mãe eu posso lhe dizer; pergunte ao médico o que você não
entendeu... se ele falar alguma coisa que você não entendeu peça-lhe para explicar
novamente. Assim, estou de alguma forma, motivando a luta pelos seus direitos, para
que ela tenha condição de entender o que está acontecendo com os seus filhos. Tem um
papel social e político por trás, não dúvida, não é apenas uma orientação técnica. Um
profissional pode exercer o poder do saber sobre ela... pode ditar tudo... e a família, se
possível, que “engula” bem e siga as instruções com o filho. Muitas vezes as alunas
reclamam que não são reconhecidas dentro do hospital... e eu lhes pergunto será falta de
reconhecimento ou exercício de poder? Porque, se alguém reconhecer que a sua ação
também é importante, estará compartilhando no mesmo nível mas, se não reconhecer,
então se sentirá mais importante que você e exercerá poder sobre você. Assim, não se
faz junto... se determina. É importante mostrar ao aluno a dificuldade de interagir de uma
forma horizontal, não hierárquica, e que isso é o que mais acontece. Isso também separa
as diferentes formas de ver o homem e a técnica dentro da ciência. O próprio
instrumental técnico tamm é estratificado. Os alunos se sentem diminuídos porque
devem enfrentar perguntas assim: O que é mais científico? O que tem mais valor?
Brincar de boneca com as pacientes é científico? Comparo com meus alunos o que se vê
na sociedade com o que se na prática profissional dentro de uma instituição. Isso se
reproduz em todos os lugares, por isso não para ser apolítico e falar Ah! vai falar de
política! Ela existe. Essas forças sociais existem em qualquer lugar. É engano achar que
não existem.
Entrevistadora: Então você acha que a participação em movimentos sociais, além da
participação em outras atividades da sociedade, possibilita trazer uma contribuição para o
aprendizado técnico específico?
Entrevistada: Com mais qualidade e com menos ingenuidade ou menos carregado de
exercício de poder. O povo está sofrendo, passando fome, está com muitas dificuldades,
está adoecendo, está morrendo. Agora, se eu acho que o meu saber é importante,
um empobrecimento do processo de formação. Como o aluno vai fazer uma análise
critica da situação, se ele age somente quando ele é importante? Se ele acredita que
pode dar conta de tudo e quando não consegue, se frustra? Como responder à
impotência frente à técnica? Porque o ser humano e a natureza vão sempre nos mostrar
nossos limites, nossas incapacidades. E aí, o que muitas vezes acontece? eu me
frustro, eu abandono o paciente, porque não tem mais saída mesmo. Ele vai morrer ou a
doença dele não tem cura. Então quando eu me deparo com as impossibilidades, eu
não tenho o que fazer. Eu não posso ser humana? Eu não posso ser solidária? Eu não
posso acolher melhor?
Entrevistadora: Uma técnica não existe isolada de uma série de outras técnicas e
aspectos de âmbito subjetivo, de âmbito social, de âmbito filosófico.
Entrevistada: Não.
220
Entrevistadora: Parece-me que você foi ao movimento Tecendo a Paz por já
compreender que a participação em movimentos sociais é importante para a prática
pedagógica. Já foi uma escolha dada por uma visão de mundo e por uma postura
pedagógica e política. Você reconhece que os movimentos sociais e toda a participação
social do professor, do aluno, da universidade é uma prática pedagógica importante?
Entrevistada: Sim. Você não aprende só em sala de aula.
Entrevistadora: Além de toda a sua formação anterior que te levou ao movimento, a
participação no movimento Tecendo a Paz trouxe alguma contribuição particular para sua
formação docente e sua prática pedagógica?
Entrevistada: Você fala da minha história. A minha formação, atrás, foi muito mais
técnica. Gozado isso! Quando você falou, voltei para os anos 80! Minha formação foi bem
mais técnica. Penso... o que foi determinando minha mudança? Acho que uma das
coisas que determinou minha mudança foi a rebeldia no hospital. Nisso ele me ajudou!
Entrevistadora: Você pode explicar melhor o que é “rebeldia no hospital"?
Entrevistada: A rebeldia no hospital é eu não me deixar cooptar pelo poder, pela ciência
pura, pela setorização e pela departamentização do conhecimento. Por mais que o
hospital seja a instituição mais carregada do modelo biológico de saúde, eu me sinto
menos alienada e mais politizada que alguns terapeutas ocupacionais que estão, muitas
vezes, em clínicas ou ambulatórios, porque não tiveram que se esbarrar e lutar tanto pelo
espaço e discutir com a discordância.
Entrevistadora: Quais discordâncias?
Entrevistada: O modelo assistencial, a visão de homem, as leis que determinam, por
exemplo, que a família não pode acompanhar o paciente. Eu vivi a época onde a visita
hospitalar era restrita. A prioridade era a assepsia, não a convivência. Era um modelo
estritamente biológico. A gente isola o doente e fica tudo ótimo. E eu percebia, na prática,
que isso não dava conta, inclusive da minha evolução com o cliente. Eu me rebelava e
dizia eu vou autorizar a família a permanecer com o filho sim! A norma tem que ter
exceção. A padronização é uma das coisas que mais me arrepia até hoje. Que maldito
nome de padronização! Porque as pessoas não são iguais, os blocos de internação e as
equipes não são iguais, as faixas etárias são diferentes. Embora a minha prática
profissional tenha sido num lugar de modelo caracteristicamente biológico, acho que me
politizei e rebelei muito mais que muita gente que tinha tudo pronto na mão. Por isso eu
acredito que os focos determinam a transformação e a mudança. O que te incomoda te
faz mudar, não te deixa na passividade. Também fiz capacitação em gerenciamento da
saúde, fiz especialização em Planejamento em Saúde. era possível pensar,
justamente por esse incômodo, como eu poderia repensar formas de mudar o sistema.
Trabalhei na formação de gerências de unidades básicas de saúde. Deparei-me com
estudos que havia perdido no meio do caminho, pela formação biológica: a história social
da criança e da família, as políticas de saúde, as transformações do mundo do trabalho,
etc. Essa especialização foi a chance que tive para resgatar o outro lado: sair do foco
curativo e voltar-me para a saúde pública e para o estudo de sistemas. Preciso entender
sistemas, inclusive porque eu estou dentro do sistema. No hospital, eu sempre tive que
lutar muito, tanto pela legitimação da terapia ocupacional, quanto por uma condição de
assistência diferente. Não pactuava com aquilo.
Sou assim, posso ser a minoria, mas não
vou pactuar com o que não acredito. Quando trabalhei com a formação de gestores, eu
também cresci muito, aprendi muito. Trabalhamos com a pedagogia da problematização.
Nossa visão de gerente, era daquele que saía de trás da mesa e ia ver qual era a área de
abrangência, ia ver o que a população precisava. Até para fazer um diagnóstico, para ver
221
se o que se oferecia tinha compatibilidade com o que a população precisava, discutir o
acesso, discutir programas. Precisava andar para conhecer bairros, precisava saber
quais recursos existiam, quais eram suas lideranças, como se fazia uma rede de apoio,
porque o centro de saúde não conta. Para formar a rede são necessários outros
equipamentos sociais, a escola, a creche, associação de moradores de bairro. Percebi
que, embora estando dentro do hospital, eu nunca deixei de prestar atenção fora dele, a
minha preocupação era evitar que os pacientes voltassem para o hospital, que fossem
reinternados. Porque se eu der alta para o paciente e ele voltar de novo... eu estaria
alienada se não percebesse que o sistema e, inclusive, o tratamento estão errados. Ele é
crônico. Se o paciente internou três vezes com pneumonia, eu vou continuar tratando-o
como crônico ou colocá-lo no ambulatório, para bloquear esse processo de internação e
dar-lhe a chance de tratar-se na comunidade? É preciso buscar o tratamento na própria
comunidade. Para ter a visibilidade de fora, não é preciso estar sempre fora. Você tem
que transitar de dentro para fora.
Entrevistadora: Na verdade, o encastelamento não é um local. O encastelamento, mais
do que um lugar, é uma atitude.
Entrevistada: Claro! Para ter o poder!
Entrevistadora: Você pode ver a pessoa e a doença dessa forma se você partir do
princípio que a doença está num determinado contexto e o desconhecimento desse
contexto pode levar à indicação de um tratamento equivocado.
Entrevistada: Do mesmo jeito que a gente tem que entender que cada instituição vai
atingir os seus objetivos se não for uma reprodução de outras. Por exemplo, um
projeto no hospital, nesta semana, que es sendo chamado atendimento singular. A
equipe toda discute um caso, traça um plano, todos registram e seguem esse plano...
Com dois ou três dias de internação?! Isso é possível nos serviços de atendimento
domiciliar. Dentro do hospital, pode-se usar a lógica da discussão interdisciplinar , mas a
conduta, o plano, a reavaliação.. tem que ser no cotidiano, no dia a dia, se não, não dá.
Por quê? Porque está querendo reproduzir modelos de fora, dentro!
Entrevistadora? A singularidade não pode ser um protocolo, é isso?
Entrevistada: Exatamente. Ela pode usar princípios, mas ela não pode ser reprodução.
Um protocolo deve se adequar à realidade local, senão está equivocado. A
interdisciplinaridade... para praticá-la, você tem que ousar se despir das suas defesas.
Entrevistadora: Você pode repetir isso?
Entrevistada: Para a interdisciplinaridade, você tem que ousar se despir das suas
defesas. As pessoas se defendem com a certeza da teoria, como uma forma de ser
capaz. As pessoas têm medo de tirar essa proteção... eu não tenho! Eu aceito ficar
perdida diante da dificuldade... quando não sabemos o que fazer... por isso é que eu
acho que tem que ser “inter”. O produto final, eu quero melhorar, mas fazê-lo melhorar é
um desafio. Nós vamos ter que juntar os nossos saberes. Não perco a minha identidade
por causa disso, mas nós vamos ter que nos juntarmos para dar conta desse recado, das
demandas.
Entrevistadora: Você não perde a sua identidade?
Entrevistada: Não. Mas acho que o poder ameaça e as pessoas se defendem com a
teoria. E aí os profissionais ficam se esbarrando e tentando definir as barreiras do
conhecimento: Você faz o que eu faço? A psique é do psicólogo e do psiquiatra? E o
222
físico? E qual a minha fatia? As pessoas se defendem atrás da nomenclatura. Por
exemplo: Você quer ver um profissional louco? É quando não tem um nome para a
doença, um diagnóstico! Porque não se consegue dar um título? Vamos trabalhar causas
e conseqüências e ver como as coisas vão indo? É claro que o diagnóstico é importante,
é claro que existem doenças com conseqüências sérias que precisam de um diagnóstico,
mas, a princípio, a angústia é muito grande. Por quê? Por que a pressa em dar um
nome? E, muitas vezes, se um nome errado. Depois de dar o nome... se segue a
cartilha! O protocolo. Sabe qual é uma das coisas mais difíceis de se mexer dentro do
hospital? A padronização dos medicamentos. Usa-se uma droga durante muito tempo e
o uso passa a ser automático... mas a cepa muda. A colônia de bactérias do hospital
passa a não responder aos antibióticos, e para mudar a droga... você não tem idéia do
custo disso! E onde fica a reavaliação? Onde fica o acompanhamento? A dinamicidade, a
singularidade? O hospital não deixa de ser uma empresa e tem que ser rentável também.
Só que o hospital trabalha com o imprevisível e os administradores têm que administrar o
imprevisível. Mas as técnicas e as normativas não aceitam a imprevisibilidade! A colcha é
a mesma coisa. Eu tinha dúvidas de quantas pessoas iriam. Porque quando a gente
pensa numa ação, para mim, ela não é sempre previsível. Podia ser uma frustração. Eu
fui com medo, para ver quem estava no paço municipal. Quando eu cheguei... Que
surpresa!
Entrevistadora: Você contava com a possibilidade de não ter pessoas no paço?
Entrevistada: Contava. Tamanha era a pressão!
Entrevistadora: E você se dispôs a correr esse risco?
Entrevistada: Sim. Quis pagar para ver! Porque a gente vai descrendo dos movimentos.
Duas coisas eu acho que hoje são importantes considerar: movimentos políticos como
antes, não existem mais... Outra coisa que me intriga muito, e acho que ela é viés de
tudo, é a comunicação. Até que ponto ela chega até as pessoas? Eu ficava em dúvida?
Será que o panfleto deu certo? Quanto e como as pessoas souberam do movimento?
Entrevistadora: Você também temia que a comunicação em rede não se efetivasse?
Entrevistada: Isso! Porque é muito fácil ser cooptada. Tem tanta sacanagem na
comunicação em rede! Basta você pegar os jornais e ver quem apóia quem... Eu acho
que qualquer projeto tem o viés da comunicação, mas pode não interessar a todos.
Entrevistadora: Eu quero retomar algumas coisas que, para essa pesquisa, são
particularmente importantes. Quando você falou da sua rebeldia no hospital, você
pontuou algumas coisas que foram aparecendo durante toda a sua fala. Você falou em
padronização, em dinâmicas institucionais e relações de poder, em modelos
assistenciais, modelos de saúde, em setorização ou fragmentação do conhecimento, em
especialidades e você falou da sua perspectiva de humanização da saúde e de
compreensão da saúde como um sistema...
Entrevistada: Olhar para um novo homem... Eu não estou tratando a pneumonia do
Joãozinho. É o Joãozinho que está com pneumonia, que chora por ficar sem a mãe, que
está deixando de ir à escola, quer dizer, é a vida do Joãozinho, da qual foi tirada a
possibilidade de estar no seu meio, para estar no hospital, adoecido. O quê é que a gente
faz para o Joãozinho e não para uma pneumonia? Esse é o desafio.
Entrevistadora: A vivência da colcha do movimento Tecendo a Paz lhe trouxe alguma
contribuição específica?
223
Entrevistada: Foi o que eu falei. É para repensar de que forma se pode transformar e
acreditar que se pode transformar. Porque as pessoas vieram sim... e isso foi a primeira
coisa que me pegou! Você se lembra que há pouco tempo eu te perguntei: eu vi a colcha
de novo na televisão, você não viu? Veja nos jornais, a colcha voltou! Então ela não ficou
esquecida, ela ficou como um marco histórico. É para acreditar que a gente planta
sementes sim. Da mesma forma, em menor proporção, o nosso aluno atende um
paciente e acha que fez muito pouco... mas às vezes ele encontra um paciente no ônibus
e... Nossa! ele se lembrou de mim, ele conversou comigo, eu acho que fiz tão pouco para
ele! O quê vo planta? Às vezes a gente acha que precisa grandes ações para ter
transformação. Quando eles trouxeram novamente a colcha, mais de uma vez, à cidade,
isso significa que ela é um marco e quando alguém a resgata, há uma mobilização
interna nas pessoas, volta aquele desejo de recuperar algum movimento semelhante
àquele.
Entrevistadora: Volta como? Volta como símbolo, volta como esperança? Volta como?
Entrevistada: É porque o símbolo pode mostrar muitas coisas que vem por trás dele.
Quando você olhar para a colcha você vai lembrar... Eu acho que uma atividade é
carregada de história. Então você vai lembrar das pessoas que foram, vai lembrar que
mataram o Toninho, vai lembrar que até hoje o desfecho dado ao crime não satisfez à
população, vai lembrar que daqui a pouco poderá haver outras mortes, vai pensar que a
gente ficou passiva de novo, quem sabe em quem a gente vai votar desta vez... Então,
ela tem um símbolo que pode deixar o ser humano pensar o que ele quiser da sua vida.
Porque foi um momento em que ele viveu algo que pode transpor para a política, para
sua participação como cidadão, escolhendo em quem ele vai votar, pensando se pode
fazer alguma coisa no seu bairro. Aquilo pode suscitar atitudes melhores no dia a dia.
Entrevistadora: É um aprendizado?
Entrevistada: É um aprendizado. É um símbolo que marca um processo que aconteceu.
Por isso a colcha sempre reaparece.
Entrevistadora: A colcha tem aparecido nos movimentos que homenageiam o Toninho ou
fazem algum protesto, frequentemente organizados pela ONG “Quem matou Toninho?”
Entrevistada: Eu percebo que a colcha sempre aparece em momentos de crise. A esposa
do Toninho, com o irmão do Toninho, também têm uma ação política. Eles reaparecem
em momentos importantes da política. Ela se cala por um tempo... depois ela vem
novamente. Como eles são muito pequenos frente a todos esses poderes, eu acho que
eles percebem a hora e a brecha para gerar o impacto e para resgatar o mbolo da
colcha.
Entrevistadora: Então, mesmo sendo pequeno e mesmo sendo local, é possível que isso
provoque, senão uma mudança na estrutura, mudanças prolongadas e grandes?
Entrevistada: Ah! Sim. Para quem não quiser apagar a história. Quanta gente apaga a
história, não é?
Entrevistadora: É importante não apagar a história...
Entrevistada: Claro que é! No hospital, aquelas pequenas ações é que respeitam a
história... aquilo tudo que representa poder e opressão não...
Entrevistadora: Fazendo um exercício: padronizar, institucionalizar, exercer poder sobre,
setorizar, seriam formas de negar a história?
224
Entrevistada: Ou de perpetuar formas que possibilitam implementação de um certo
pensamento.
Entrevistadora: Ou formas de manutenção de um poder.
Entrevistada: Sim, de um poder. Eu não quero ser radical e dizer que padronizar nunca é
bom. Mas que as padronizações, quando necessárias, em cada uma de suas formas,
sejam usadas na medida certa. Quando eu crio um protocolo... por exemplo, até hoje eu
busco desenvolver um protocolo para notícias... para más notícias. Porque eu acho que
elas são dadas no cumprimento da tarefa e, nem sempre, de modo adequado... morreu...
sequelou...tem tal doença... etc. O impacto que isso gera... quase não é visto... Esse
impacto ninguém quer ver... Então, o protocolo poderia romper, por exemplo, com essas
defesas. Porque nós poderíamos dividir algo que é muito difícil para toda a equipe, que
são os limites da aplicação da ciência. É quando você está esgotado, quando a doença te
vence, quando você percebe que, por mais que estude... há um limite!
Entrevistadora: Se estou compreendendo, você está dizendo que o protocolo não é ruim
nem bom? Que ele é algo necessário algumas vezes, ou seja, definir e generalizar ações
ou intervenções, colocar limites e ter referências ou definição de ações algumas vezes é
necessário...
Entrevistada: Sim, senão fica anárquico...
Entrevistadora: Senão, fica sem nenhuma referência... no entanto, essas definições,
esses limites e esses protocolos não podem criar vida própria e funcionar
descontextualizados... ao contrário, devem estar em constante relação com o meu objeto
e com o contexto. Na verdade, ele não é mera reprodução, ele é uma referência
necessária para alguns momentos.
Entrevistada: Isso. Você pode ter balizas, pode ter normas, mesmo porque, é aí que você
vai poder fazer avaliações, redirecionamentos, mudanças de indicadores, estatísticas,
avaliações de impacto das suas ações... Mas o que me irrita é querer usá-lo como
camisa-de-força. Veja... como começou a se permitir que as crianças, nas internações
hospitalares, pudessem ter acompanhantes? Direito hoje garantido pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente. E também com os idosos... Primeiro pelo próprio interesse da
instituição em otimizar seu trabalho... depois essa experiência foi se adequando às
necessidades históricas de cada local...
Entrevistadora: O que você chamou de anárquico é a total falta de referência, limites e
definições?
Entrevistada: Sim.
Entrevistadora: Limites, referências e definições são necessários, até os protocolos são
necessários, desde que, relacionados com seu próprio objeto, com o contexto e com o
processo onde ele se coloca.
Entrevistada: Sim. Por exemplo, a visita de crianças no hospital é proibida, mas,
dependendo da situação, eu posso fazer uma visita programada, cuidando do paciente
que é visitado e da criança que visita. Cuidando para que ela não se assuste ou não seja
contaminada, etc. Estou fazendo uma exceção da norma, mas com critérios e cuidados.
Entrevistadora: Podemos dizer que, fazendo isso, você está resgatando os princípios
pelos quais essa norma foi criada? Ou seja, esse protocolo talvez tenha sido criado para
proteger a criança, mas, a partir do momento em que um protocolo é simplesmente
225
reproduzido, sem saber de sua origem, os seus motivos, os seus objetivos, você
reproduz sem saber por que... Mas quando você desconsidera esse protocolo ou tem que
fazer a exceção, cuidando daquilo que deve ser cuidado, você não cumpre simplesmente
o protocolo, mas cuida singularmente de uma necessidade ou demanda.
Entrevistada: Todas as regras e normas devem ter exceções, porque as pessoas não são
iguais.
Entrevistadora: Como você avalia a importância do movimento Tecendo a Paz para a
população e para os alunos? Acho que essa questão foi respondida, mas gostaria de
saber se há mais alguma consideração a fazer.
Entrevistada: A população, através dessa atividade, uniformizou as diferenças.
Uniformizou no sentido saudável: possibilitou a todos.
Entrevistadora: O que é “uniformizar no sentido saudável”? Isso é importante para a
minha pesquisa.
Entrevistada: Uniformizar no sentido saudável é poder aglutinar, apesar das diferenças.
Não é querer que todo o mundo seja igual. Permitiu o acesso, pela forma que foi. Para o
aluno foi importante para ele acreditar que é possível lidar com as diferenças, para ele
acreditar que sua ação pode ter impacto. Também acho que o aluno pode lidar com
conceitos de cidadania, com sua auto-estima, com estigmas, pode lidar com seus
preconceitos e entender que você pode compor um todo, que não precisa ter ações
segmentadas, porque a sociedade interage. Portanto, tratar também significa tratar nas
relações, não basta aplicar técnicas em ambientes protegidos... E também fazer um
paralelo com a equipe multiprofissional, transportando as leituras políticas e os jogos de
poder. Acho que atividades dessa natureza mostram que é possível pensar nas
transformações e exercer tais práticas. O simbolismo do fazer é importante tanto para o
aluno quanto para a sociedade, ou seja, se perceber fazendo, perceber que é capaz de
fazer. E a importância dos diferentes saberes se completando e atingindo um único
objetivo. Naquele movimento havia pessoas diferentes fazendo junto e o objetivo naquele
momento era um mbolo, que era a colcha. A colcha poderia ficar de qualquer
tamanho... mesmo que ficasse pequena, seria o tamanho do movimento pela paz. Ela se
construiu a partir das diferenças na composição do todo. Isso se transpõe para a Terapia
Ocupacional, quando se mostra, nos trabalhos grupais, que os grupos são heterogêneos,
que nesses grupos pode existir opressão, liderança, etc. E a atividade pode trabalhar
essas relações.
Entrevistadora: Podem-se trabalhar dinâmicas relacionais?
Entrevistada: Sim. E cada qual vai participar como pode. Numa vivência de auto-
conhecimento que participei do processo Hoffmann, lembro-me que um dia devíamos
fazer o exercício: “dia de ser”. Para isso, não podíamos usar nenhuma “ferramenta”
aprendida e apenas ficar em contato com a natureza, sem falar. Estava chovendo, eu
andei, andei... e quando parou de chover deitei num banco e comecei a olhar a natureza,
de baixo para cima... a natureza tem os mesmos símbolos da sociedade, porque vi
árvores com aqueles arbustos imensos, cheios de trepadeiras... Como existem pessoas
que muitas vezes conseguem subir sugando outras... se beneficiando das outras... ou
também, de outro lado, como uma pessoa forte consegue, tantas vezes, ser líder e puxar
as outras... há aquelas plantinhas que rastejam, mas fazem uma forração linda no chão...
podemos fazer várias associações...
Entrevistadora: Sua contribuição foi muito grande. ainda alguma consideração que
julga necessária?
226
Entrevistada: Não. Eu acho que quanto mais eu vivo, mais eu entendo que os estudos
são necessários. Mas tem muito saber que nenhuma academia ensina. Há muitos
saberes que não são respeitados, há potenciais que não são descobertos. Quando se vai
na comunidade, na cultura local, e você vê um artista anônimo, um talento jovem e
tantos talentos escondidos. Muitas vezes o que lhes falta é a chance de poder participar.
Isso me faz acreditar mais na terapia ocupacional e não ter medo de perder, de modificar,
de somar ou dividir. Mas, às vezes cansa! Eu ando precisando de novas energias.
Alguns grupos sociais são tão oprimidos que muitas vezes não conseguem tantas
mudanças, as transformações são lentas. Precisamos sempre nos preparar e nos cuidar
também, pois somos parte e atores destes processos.
Entrevistadora: São nossos limites históricos.
Entrevistada: Tenho certeza que a partir dessa prática toda, eu estou precisando retomar
alguns livros e começar a escrever, a publicar...
Entrevistadora: Boa idéia! A sua contribuição foi inestimável. Muito obrigada!
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ANEXO VII
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ENTREVISTA 2 – E.2
Nome (iniciais): M.J.C.N.S.
Idade: 52 anos
Sexo: feminino
Profissão: psicóloga
Disciplinas ministradas na Faculdade de Terapia Ocupacional da PUC-Campinas no
semestre de 2001: Prática Terapêutica Supervisionada III – laboratório de vivências,
Prática Terapêutica Supervisionada V – laboratório de vivências, Prática Terapêutica
Supervisionada VII – supervisão coletiva, Saúde Coletiva e Terapia Ocupacional.
Tempo de docência até o momento: 23 anos
Atividades profissionais no momento: docente da PUC-Campinas, supervisora clínico-
institucional de equipe multidisciplinar em saúde mental, assessoria e consultoria em
Planejamento em Saúde para setores públicos e privados.
Data da entrevista: 25/ 09/2006.
Entrevistadora: Você participou do Movimento “Tecendo a Paz”, em pelo menos uma de
suas fases, ou seja, de organização, divulgação, costura da colcha, passeata ou
utilização do material em sala de aula? Quais?
Entrevistada: Eu participei de todas as fases, mais intensamente de algumas, e menos de
outras. Mas participei de todas. Vou falar na ordem. Eu me lembro que, da organização,
eu comecei a participar, talvez no dia em que estivesse começando o embrião da colcha.
Ao entrar no laboratório de Terapia Ocupacional, que é o lugar onde eu ministro minhas
aulas, e que gosto muito, porque vejo os laboratórios onde são desenvolvidas as ARTs
(disciplinas de “Atividades e Recursos Terapêuticos”) que sempre me chamaram a
atenção pelo cheiro, pelo barulho, por ter tinta, por não ser um espaço de sala de aula
onde todos sentam e olham para o professor. Então, é um espaço onde eu gosto de
chegar e observar o que está acontecendo dentro das salas. Lembro-me que nesse dia,
ao chegar, percebi que estava acontecendo alguma coisa diferente. Diferente do que já é
diferente, para mim. Uma aluna estava na porta da sala onde você aula, dizendo que
ali estava se construindo alguma coisa. Vamos fazer alguma coisa, vamos fazer alguma
coisa! dizia ela. Era um momento em que a gente chegava muito triste para as aulas. O
que estava acontecendo em Campinas e também no mundo, era motivo de discussão
nas minhas aulas, mas aquele movimento de Vamos fazer alguma coisa... talvez seja
isso ... Mais do que vamos falar alguma coisa, porque o falar estava sendo falado, por
mim e pelos meus alunos. Imediatamente, eu fui até a minha sala, aos meus alunos, e
comecei a desmanchar o espaço da aula tradicional, para vir para a aula que era
construir, fazer alguma coisa.
Entrevistadora: Unindo os dois grupos?
Entrevistada: Isso, isso! Eu lembro que os alunos acharam esquisito quando eu fiz a
proposta. Eu lembro que nesse dia, especialmente, o funcionário do laboratório achou
difícil... havia um barulho, as portas abertas, gente discutindo, procurando linha,
procurando tecido... E eu, imediatamente, achei que tinha que se fazer alguma coisa. Eu
e os meus alunos. Eu não disse aos meus alunos Vocês tem que ir ali ao lado. Nada
disso. Eu apenas comuniquei que as pessoas estavam pensando em fazer alguma coisa,
diante do que estava acontecendo em Campinas, no mundo, diante da tristeza que todo o
mundo estava sentindo. Era um sentimento de muita tristeza, de muita indignação, muita
derrota. Talvez derrota da esperança de construção de uma sociedade diferente. Acho
que o Toninho representava um pouco do que a gente gostaria de ter para a vida, para a
cidade. Alguém que amasse as coisas e não que fizesse uma carreira em cima das
coisas. Cada vez que eu penso no Toninho, isso me vem... ele amava Campinas. Isso é
muito forte para mim, até hoje. Cada vez que eu penso nele eu não o penso como o
229
político, o professor ou o arquiteto. Eu o penso como alguém que, desde muito cedo,
amava esta cidade e queria construir um espaço mais humano, nesta cidade. É essa a
maior representação. E a perda disso, a perda dele, causou uma desesperança . E aí, o
movimento de vamos fazer alguma coisa... fazer alguma coisa concreta, imediatamente
me conquistou. Assim me conquistou. Além disso, talvez, tenha sido a idéia de entrar no
espaço do laboratório das Atividades e Recursos Terapêuticos, onde eu nunca entro...
(risos) e costurar ...(risos).
Entrevistadora: Participar das atividades da terapia ocupacional?
Entrevistada: Das atividades de ensino de Terapia Ocupacional, que ensina serrando,
ensina costurando, ensina pintando, ensina moldando. Para todas as outras profissões
esse não é um espaço comum, não são conteúdos comuns de se ensinar.
Entrevistadora: Você, apesar de estar muito integrada ao curso de Terapia Ocupacional e
ministrar muitas disciplinas, por ser psicóloga, jamais ministrou as disciplinas de
Atividades e Recursos Terapêuticos. Isso te falta?
Entrevistada: Os alunos brincam que eu sou a psicóloga mais terapeuta ocupacional que
eles conhecem! Por que... acho que de tanto olhar, respeitar e me integrar de verdade no
curso... acabo até usando no discurso nós, terapeutas ocupacionais!... Mas eu não tenho
o número do CREFITO! Mas não é no discurso. Eu aprendi nos laboratórios que
ministro. Muitas vezes fo uma crítica, uma consideração, um apontamento sobre o uso
da atividade quando o aluno está simulando um atendimento com o paciente e utilizando
atividades, e eles se impactam porque eu acredito mais no potencial terapêutico da
atividade do que o aluno de terapia ocupacional! Eles me dizem isso. Eu estou dizendo o
discurso. Mas acho que não é por olhar, eu acho que é por viver isso na minha vida.
Assim... a coisa da ação sobre a matéria. Não é só de concepção política, mas é de vida
mesmo, de cotidiano, do fazer, do construir. Eu gosto muito de atividades manuais,
várias. Eu gosto de cozinhar, eu gosto de pintar parede ... isso fui eu que pintei
(mostrando para uma parede de seu apartamento). Eu gosto de olhar as pessoas
produzindo e ver como elas estão produzindo. Enfim, o trabalho humano e a produção
humana, embora eu seja psicóloga, e mesmo antes de dar aula na terapia ocupacional,
sempre me intrigou, sempre me fascinou. Então, o fazer algo naquele momento, e fazer
algo com essa idéia de construção, imediatamente me fascinou, e aos alunos também...
alguns alunos. Isso me intrigou e fascinou; meus alunos logo aderiram e outros alunos
que não estavam naquele momento comigo também logo aderiram, mas, por outro lado,
também senti que teve gente que observou. Eu senti que aquele movimento,
naqueles dias de preparação, trouxe um incômodo para algumas pessoas, incômodo
mesmo, para alguns alunos, alguns docentes, alguns funcionários. Tinha barulho, tinha
telefonema a toda a hora, tinha procura de material, tinha comunicação não formal, sem
burocracia. Era telefonema, era gente que não era de lá. Eu me lembro que nesses
momentos de preparação, algumas pessoas que não eram do curso de TO, iam até
para perguntar: Como eu posso ajudar, como eu entro nisso, eu levo material, não levo?
Eu lembro das minhas perguntas: quanto vai precisar de tecido? E de linha e de agulha?
E aí, eu fico pensando que, talvez, precisasse do que todo mundo tem. Todo o mundo
levou o que tinha nas suas casas. Afinal de contas, agulha, linha e tecido são coisas
muito simples. Duvido que uma casa não consiga ter isso, uma casa de humanos! E a
idéia de ser costura, naquele momento, me reconfortou. A costura é uma coisa que
começa de algo muito disforme, vamos dizer, um tecido, e de repente vai ganhando uma
forma, vai ganhando um contorno, vai ganhando um modo diferente de ser. Permite criar,
permite fazer escolhas o tempo inteiro. A sensação que eu tinha era que aquilo era
reconfortante para todos e, portanto, alegre. Vou retomar isso. Se existiu uma tristeza
que impeliu as pessoas a se aglutinarem, a ficarem juntas, também existiu uma alegria,
tanto na organização, quanto na confecção daquilo. Um conforto, uma alegria mesmo.
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Algo que não anulava a tristeza, mas algo que era possível existir junto com a tristeza,
um conforto, uma coisa muito gostosa, muito boa.
Entrevistadora: Não houve uma cisão entre alegria e tristeza.
Entrevistada: Não houve!
Entrevistadora: E não houve um abafamento da tristeza?
Entrevistada: Não.
Entrevistadora: Mas houve um encaminhamento de ações de vida diante da tristeza?
Entrevistada: De Vida! De vida! Por quê? Porque desfalecer ou desistir ou se
desesperançar diante daquela tristeza era negar a saída. Como alguém que trabalha com
humanos, que trabalha com saúde, que trabalha com processos terapêuticos e que
trabalha, portanto, com a possibilidade de mudança, pode ter uma desesperança
absoluta? Talvez seja esse o sentido da alegria e do conforto. Eu posso sim materializar
alguma construção, mesmo diante dessa enorme tristeza. Ou seja, a sociedade de
achar saídas para ela própria. É uma crença no homem, apesar da tristeza.
Entrevistadora: Você acha que essa vivência particular, a tristeza transformada em ação,
ou em ações que transformem essa tristeza em outras coisas, é importante para a
formação de um profissional de saúde, de um Terapeuta Ocupacional?
Entrevistada: Acho que é essencial. Não consigo imaginar processos terapêuticos lidando
apenas com a linearidade do formal, do instituído e da adaptação social. Não quero dizer
que o homem pode ser apenas, simbolicamente, a expressão do seu desejo para se
realizar. Não é isso. É claro que alguma adaptação da convivência é necessária. Mas
naquele momento, o que era necessário expressar? Era necessário expressar a tristeza,
a dor da perda, a indignação diante do esgarçamento social, do fenômeno da violência, e
tudo isso. Não tem sentido pensar apenas em adaptação social. Um “adaptador” é um
adestrador de cachorros... e a gente lida com humanos!
Entrevistadora: Você acredita que o fato de existirem, no curso de Terapia Ocupacional,
espaços onde se fazem e se analisam atividades, tenha facilitado ou contribuído para a
construção do movimento? E, mais do que isso, o fato de ter sido escolhida ou ter
surgido, espontaneamente, a colcha de retalhos, também facilitou ou deu uma tonalidade
diferente ao movimento?
Entrevistada: Para mim isso foi fundamental. Tanto a organização/desorganização desse
movimento, quero dizer, é claro que não foi uma desorganização, mas foi um outro modo
de organização, diferente dos que eu conhecia. Particularmente, esse modo de
organização mexeu comigo, e mexe até hoje. Eu não vivi em nenhum outro momento da
minha trajetória política, social, profissional, etc. um modo de organização, de
contaminação, vamos dizer, de irradiação, e não de normativa, de regra pré-instituída, de
formalização de um convite com dia e horário. Enfim isso me marcou muito, me marca
até hoje. Quero dizer, a nascente desse processo ter sido um laboratório, um ateliê, uma
sala de aula... isso marca. E o modo como isso se irradiou. Irradiou-se sem precisar dizer
Vamos escrever para todas as instituições de Campinas, etc. Mas sim fala com fulano,
beltrano... e os alunos foram falando, e nós, professores fomos falando. Com quem?
Com quem encontrávamos no cotidiano. Seja nos serviços de saúde, seja na rua, seja
na nossa vizinhança. Eu lembro que cheguei a falar do dia em que a gente combinou de
ir ao paço municipal, falar com as pessoas que não tinham nada a ver com a Terapia
Ocupacional, com a saúde, mas pessoas que eu consegui encontrar no meu cotidiano. E
231
os alunos também fizeram um pouco disso. Lembro-me de parentes de alunos, alunas
que levaram companheiras de república que não eram da terapia ocupacional nem da
área da saúde. Enfim, não foi uma organização centrada numa tipologia, numa
hierarquia. Foi uma organização de irradiação, talvez fruto de um sentimento de
indignação, de tristeza e, de outro lado, vou chegar naquilo que você perguntou, da
possibilidade de materializar em cima de um objeto concreto, de uma confecção humana
concreta, que era a colcha, que era a costura, o ato de costurar numa colcha o que a
gente estava sentindo, de um lado, e querendo, de outro. Ou seja, ficar junto, juntar
pedaços, pedaços do quê? Nossos pedaços. Nossas tristezas. Nossa capacidade de
produzir diante daquela tristeza. Então acho que tem a ver, sim, com a terapia
ocupacional. Talvez possa parecer pouco sofisticado, um tanto primário para o discurso
sociológico, psicológico... mas, para o discurso, talvez, do artista e do artesão, não! E eu
não estou dizendo com isso que a terapia ocupacional forma artistas ou artesãos. Mas
penso que essa coisa de fazer ou de materializar no objeto, aquilo que a gente está
sentindo, tem relação com a essência da profissão. É assim que eu vejo. Essa é a
experiência que eu pude viver. Não sei se teria surgido num outro espaço que não o da
Terapia Ocupacional. Um movimento social, sem dúvida nenhuma poderá surgir, como
surgiram vários... Mas um movimento com aquela simbolização, com aquela expressão
na matéria, talvez não. Talvez não.
Entrevistadora: Para você foi uma experiência única?
Entrevistada: Única! Única! Desde a forma de organização, dessa não regra”, dessa
irradiação, vamos dizer, fazer algo que tenha um sentido para todos e para nós próprios
nesse momento. Isso me marcou muito, a organização. E a confecção também... eu vou
entrar agora nessa questão.
Entrevistadora: Antes, você poderia me falar um pouco mais da questão da
organização/desorganização? Você traz isso com muita ênfase e esse aspecto é muito
importante para a minha pesquisa.
Entrevistada: O sentido próprio de um objeto que eu chamo de orgânico, e que consegue
ser orgânico porque é um objeto... O sentido próprio que cada um pôde ter, pôde dar
naquela adesão e naquela participação. Isso eu estou chamando de
organização/desorganização. Não é algo que veio de fora, que alguém deu a palavra de
ordem ou a visão de futuro... eu que trabalho com planejamento... ou a proposta final ou
a idéia de onde se quer chegar com aquilo, que sempre está dada, na maioria dos
movimentos políticos, sociais, etc. Geralmente um movimento se propõe a “isso”, o
partido se propõe a “isso”, o dogma se propõe a “isso”. E “isso” não estava dado! E, no
entanto, ser orgânico, ser um objeto, ser uma forma de participação, que de fato, precisa
de uma organização corporal, inclusive, cognitiva, inclusive... Eu não gosto de separar o
cognitivo do sensível. Eu diria que é um modo... como posso dizer? Eu diria que, para
mim, foi um modo cognitivo-sensível novo de aprender. Não sei se isso esclarece. É um
modo inteligente, por isso estou chamando de cognitivo e sensível, ao mesmo tempo, de
aprender. E o que eu chamo de desorganização, é essa não regra, essa indefinição, a
priori, de onde se quer chegar, sem uma pré-imposição, sem uma pré-colocação. Cada
um pode expressar-se nesse objeto e fazê-lo de um modo concreto, com o seu sentido.
Uns mais tristes, uns com maior habilidade para costura, outros com maior habilidade
para emendar pedaços grandes, uns com um tipo de costura mais firme, outras mais
frouxas, uns com cores expressas no tecido. Todo mundo pôde ser o que é e, no entanto,
o objeto era orgânico. Essa idéia de que se o homem não tiver uma organização externa,
imposta a ele, não é capaz ou vai sucumbir, porque um vai comer o outro, é uma idéia
que, para este movimento, caiu por terra, absolutamente. Essa idéia de que a gente não
é capaz de se expressar individualmente com o seu sentido e, ao mesmo tempo,
coletivamente, de não ter uma atitude de construção do mundo e sim de destruição...
232
essa idéia da barbárie... é o que está dado... é o que estava dado. O Toninho continua
morrendo todos os dias, até hoje. Ele está morrendo a cada segundo, ou seja, esse
esgarçamento social, essa tentativa de grupos, essa opressão de que melhor e pior,
isso continua a cada segundo. E a idéia de participar de um mundo que não é o da
barbárie, e que tenha um sentido para cada sujeito que participa, que constrói e não
destrói e que, ao mesmo tempo, é triste e é alegre... isso é a coisa da vida mesmo... essa
experiência foi única para mim. Nunca participei disso antes. E olha que eu sou uma
pessoa que participou bastante de movimentos sociais, de partidos políticos, etc.
Entrevistadora: Você tem experiências de participação em movimentos sociais?
Entrevistada. Tenho! Tenho! Participo até hoje. Movimento da Reforma Sanitária no país,
no tempo da ditadura, movimento da Reforma Psiquiátrica no país que tem, talvez, mais
até que o da Sanitária, uma idéia de libertação, por ser saúde mental. Mas ainda assim
tem comandos, tem grupos, tem disputa, tem uma arena destrutiva...
Entrevistadora: Hierárquica?
Entrevistada: Hierárquica! Hierárquica! Tem dono, inclusive. No Brasil, os movimentos
sociais acabam tendo dono.
Entrevistadora: Como você viu essa organização/desorganização, no espaço formal da
universidade, na sala de aula?
Entrevistada: Eu penso que talvez seja, nessa minha trajetória de 23 anos de docência,
um dos únicos momentos, de fato, de aula. Porque o que é a aula senão uma vida na
escola e a escola na vida? E não é assim que acontece? Por mais que a gente fale em
educação emancipatória, consiga ainda ter crítica nos espaços de sala de aula, ter
análise e não apenas transmissão de informação, ainda assim, a norma institucional,
muitas vezes, por mais que o professor seja um libertário ou alguém com grandes
possibilidades, ainda te coloca as questões de conteúdo programático, o dia da prova, o
dia da avaliação, o ENAD, que o aluno tem que fazer e mostrar que o curso que ele es
fazendo tem boa nota... Não me refiro apenas à T.O., estou falando do meu universo,
mas também do universo da escola em geral. Da pré-escola à universidade. O que é que
se ensina e para quê se ensina. Qual é o sentido de 90% das aulas que a gente ministra
e de 90% do conteúdo que os alunos decoram? Qual é o sentido disso na construção do
mundo? Nenhum, absolutamente nenhum! Se perde na memória ou se perde no
cotidiano, não se usa aquilo para a construção do mundo. Ou seja, a aula vira mais um
espaço de alienação. Às vezes com um intelectual de boa vontade fazendo um discurso
marxista, de esquerda, lá na frente. Mas um discurso, com o aluno anotando no caderno,
para responder na avaliação, na prova, exatamente as palavras que aquele professor
quer ouvir, para ser bem avaliado. Qual é o sentido de ensinar, senão ensinar para a
vida? Para viver, para construir e, no nosso caso, profissionais da saúde, para auxiliar o
outro a viver. Qual é o sentido? Estou falando da TO, estou falando da Universidade,
estou falando de toda a escola. Para quê o homem vai à escola? Para deixar de ser
irracional? Porque, senão fosse a escola estaríamos comendo uns aos outros, como na
idade da pedra? Não. A escola foi criada tal qual todas as instituições sociais, como uma
instituição de controle, talvez, na sua gênese. Ou, de outro lado. Como podemos fazer
uma instituição que, embora criada para o controle possa, de fato, produzir a vida em
sociedade de uma forma mais satisfatória para todos, melhor para todos, com algum
sentido da natureza, inclusive, com um sentido ecológico?
Entrevistadora: Para operar este movimento que você considera uma aula, você
conseguiu manter a estrutura de horários e locais de aula, como antes?
233
Entrevistada: Não, mudou tudo! Os alunos chegavam mais cedo para organizar o dia da
costura no paço, os telefones tocavam, você tinha que sair da sala de aula para atender
os telefonemas de pessoas que perguntavam aonde ir, o que levar, enfim, mudou o
contexto. Ou seja, mexeu com a organização do cotidiano. Ele impulsionou, movido pelo
desejo, uma organização diferente do cotidiano. Talvez isso tenha incomodado outras
pessoas. O barulho maior, o movimento, as perguntas que os alunos passaram a fazer
generalizadamente nas outras disciplinas, em sala de aula. Eu me lembro de aluno
dizendo Eu falei para a professora da disciplina biológica que nós estamos fazendo isso e
que eu ia sair mais cedo da aula... e o professor disse: para quê fazer isso, cuidado, a
polícia pode baixar lá... isso é perigoso! Sabe, coisas desse tipo. Mexeu com a estrutura,
tal qual ela está dada. O que é que mexe? É a vida que mexe. Ou seja, é a estrutura da
sala de aula que tem que conter a vida, ou é a vida que tem que conter a estrutura da
sala de aula? Essa é uma pergunta que eu faço... É o horário ou é a cadeirinha, sentado
olhando para frente? Ou é a vida na sua concretude, o sentimento das pessoas. Isso eu
estou chamando de vida. Que sentido faria eu dar uma aula naquele momento sobre
epidemiologia do alcoolismo, por exemplo? Não que não tenha sentido... Mas, naquele
momento em que as pessoas estavam tristes, em que o assunto cotidiano era esse? Era
a morte de alguém que representava o amor pela cidade, e, o que é a cidade, senão a
construção humana mais simbólica e expressiva? Eu não sou ligada à arquitetura ou
engenharia, mas eu tenho paixão pelas cidades, sempre tive. Adoro sair na estrada para
chegar a qualquer cidade, pode ser Jaguariúna, pertinho de Campinas, por exemplo,
sempre me é excitante. Olhar a cidade quando você está chegando e olhar a cidade
quando você está deixando. Por que será? Eu fico me perguntando, se eu não sou
arquiteta, então não é o desenho da cidade que me marca. Não sou geógrafa, não me
importa se a cidade tem rio, não tem rio. Sou muito mais ligada ao humano. A expressão
do humano está contida ali, naquele lugar. Do humano histórico, do humano de hoje, está
contida ali. Que símbolo será? Por baixo daqueles telhados? Eu fico sempre tentando
decifrar. Mas não é o prédio nem a arquitetura, porque disso eu não sei nada. É o que o
homem pôs ali dentro.
Entrevistadora: Vamos para as outras fases do movimento?
Entrevistada: Ajudei na divulgação. Ajudei a divulgar para todos que eu encontrava.
Casa, prédio, pessoas na rua com quem eu convivia e alunos que não eram meus
naquele momento do curso.
Entrevistadora: Uma divulgação que tamm não foi organizada?
Entrevistada: Absolutamente! Alguém ligava na minha casa naquela semana e não sabia
nada do que estava acontecendo e eu falava. Observei que com todo mundo foi desse
jeito. Quem ia para um serviço, avisava o pessoal daquele serviço, eventualmente algum
serviço de saúde que o aluno ia, ou que eu passava e avisava as pessoas, no prédio
onde morava. Não tinha uma diretriz: vamos chamar o profissional de saúde, vamos fazer
o papel. Não. Foi ligado à vida, quem a gente pudesse encontrar. Até porque as pessoas,
quando você encontrava de verdade, o assunto não era o movimento, porque as pessoas
não estavam sabendo, mas o assunto era a sua tristeza, a sua indignação diante da
violência, diante da perda do Toninho. Diante de tudo isso.
Entrevistadora: Outras fases?
Entrevistada: A costura da colcha no paço municipal! Na costura da colcha... eu me achei
muito bem, porque eu podia costurar na praça e eu vi um sentido tão grande naquilo, tão
imenso... Eu me lembro que, quando cheguei, tinham algumas pessoas, e depois foi
chegando gente, foi chegando gente, e eu conversava com as pessoas que estavam
costurando do meu lado, emendando uns pedaços que eu estava emendando, gente que
234
eu nunca tinha visto, gente que eu não sabia se era da saúde se não era, se era
paciente, se era gente que estava passando na rua, mais velho, mais novo. E a nossa
preocupação era costurar e colocar os pedaços um junto com outro, e dava certo costurar
sem ter combinado que um ia costurar um quadrado de vinte, outro de dez, porque dois
de dez é um de vinte e na hora da emenda ia dar certo. E a gente ia pondo grandes
pedaços costurados de retalhos, formando retalhos ainda maiores, e dava certo, e um
passava linha mais grossa, porque o peso dos pedaços emendados começou a ficar
grande. Eu via muito mais sentido nisso do que estar gritando palavras de ordem contra
algo ou a favor de algo. Eu via muito mais sentido em estar construindo efetivamente
alguma coisa. Eu chamo de um momento muito alegre. Foi muito alegre. Não no sentido
de uma histeria ou de uma alegria mórbida, afinal de contas, todos estávamos muito
tristes, mas da materialização de uma vontade coletiva, de fato, de fazer uma colcha.
Somente tempos depois é que eu fui pensar: a colcha é algo muito reconfortante. A
colcha é algo com o qual a gente se cobre, a sociedade se cobre, as pessoas se cobrem,
porque fica gostosa a temperatura. Tem gente que, para dormir, precisa de um pesinho,
de uma coisa boa. eu entendi que era uma colcha, era uma colcha para a sociedade,
para todos nós, para a nossa dor, mas também para a nossa alegria, para a nossa
possibilidade de construir. Para dar um sentido ao que cada um trazia naquele momento,
diante do fato da morte do Toninho. Para uns, talvez, estivesse expressa ali a sua raiva,
para outros a sua dor, a sua indignação, a sua tristeza, a sua esperança, a sua
desesperança. Mas tinha algum sentido. Não havia disputa entre os sentimentos. Eu
estou mais triste que você, você não está triste, você está alegre. As instituições sociais
tentam atribuir papéis, e os papéis ali eram os seus próprios papéis, mas, ao mesmo
tempo, um papel da sociedade toda que participou.
Entrevistadora: Ao mesmo tempo em que cada indivíduo colocava as suas expressões
particulares, os seus desejos e as suas necessidades, o sentido era único: a construção
da colcha. Tinha um sentido coletivo. Esse coletivo não abafava o individual?
Entrevistada: De forma nenhuma. Porque as pessoas escolhiam tecidos aleatoriamente,
escolhiam fazer a bandeira do Brasil, escolhiam preto, tecidos escuros... as pessoas
escolhiam o que estavam sentindo. E, no entanto, tinha um sentido porque os pedaços
iam se juntando, se juntando, se juntando... e aí, era uma grande colcha, que dava para
cobrir todo o mundo.
Entrevistadora: Aquele movimento de organização/desorganização, você também
identificou no dia da costura da colcha?
Entrevistada: Também identifiquei que chegavam pessoas de todos os lados... as
pessoas chegaram ao paço municipal não apenas pela escada. Vinha gente de trás, ia se
juntando, tinha alguns transeuntes que passavam e que, provavelmente, não estavam
sabendo daquilo. Paravam. Muitas pessoas olhavam e seguiam. Mas outras tantas
paravam e se abaixavam no chão... porque tinha que se abaixar no chão para costurar a
colcha, ela era muito pesada, tinha que ficar no chão. E começavam a cortar: posso
pegar este tecido? Sem ao menos perguntar coisas do tipo Quem es organizando?
Qual partido? Comumente acontecem movimentos na praça pública, quando alguma
manifestação. Mesmo bandeiras em praça pública, sempre tem bandeiras de um partido
ou de palavras de ordem. Isso me chamava à atenção: porque a pessoa não perguntava
quem estava organizando, mas perguntava me um pedaço de pano, posso costurar
assim? Pode! E quando você via, a pessoa estava absolutamente integrada na tarefa de
construir a colcha. Para mim, isso faz um sentido enorme, porque, é cada um costurando
o seu pedaço, do jeito que consegue costurar...
Entrevistadora: Num todo que tem lugar para todos... Desde que queira.
235
Entrevistada: Isso! Isso! Isso faz um sentido muito grande. Muito grande. Ou seja,
esperança. O contrário do que a gente estava vivendo naquele momento: a
desesperança de perder alguém que representou o amor por uma cidade, ou seja, pela
produção humana. Estava dado o contrário, para mim, naquela hora de fazer. Quero
dizer, é possível! A grande esperança humana de construir a humanidade, de manter
essa humanidade na relação com a natureza, com as coisas e com a produção estava
dada ali.
Entrevistadora: Você tem alguma coisa a dizer com relação à sua participação na
passeata ou utilizão do material na sala de aula?
Entrevistada: Depois disso, até hoje, eu tenho me referido a esse movimento em sala de
aula. Quando os alunos têm muita dificuldade em situações como eu não posso fazer o
Centro Acadêmico funcionar, porque eu não faço parte dele... e os professores poderiam
dar uma mãozinha... Quando eu tento mostrar que todos somos significativos para
construir algo coletivo e que cada um pode fazer isso e o aluno não consegue entender...
seja no exemplo do C.A. ou na organização de uma semana de estudos ou de um
campeonato esportivo... eu tenho retomado a colcha para os alunos que não viveram o
movimento porque entraram na universidade depois disso. Também tenho usado, às
vezes, quando isso se torna foco, para falar dos movimentos de destruição, de
antagonismos, de polarização que acontecem no mundo... quando os alunos trazem
questões como os americanos estão massacrando os árabes ou, ao contrário, os árabes
estão provocando o mundo ocidental, o capitalismo, a religião... Quando eles têm
dificuldade para entender que é possível construir na diversidade, mas que para isso é
preciso basear-se em outros paradigmas, além do saber ocidental predominante... eu
uso muito esse exemplo, de que é possível materializar humanamente com as diferenças
e dar um sentido construtivo a isso, não destrutivo.
Entrevistadora: Usar essa experiência como uma referência tem facilitado aos alunos a
compreensão e o acesso a esse tipo de pensamento?
Entrevistada: Acho que tem. Sobretudo em Terapia Ocupacional.
Não sei como que seria
essa experiência num outro curso, mas para eles, o fato de ter construído algo como
numa grande oficina, uma oficina de sentimento da sociedade e materializar isso... acho
que sim. Não sei se seria o mesmo se não fosse um curso de Terapia Ocupacional.
Entrevistadora. A próxima pergunta, creio que já foi respondida, de qualquer forma,
pergunto novamente. Responda apenas se ainda tiver algo a dizer. Quais os motivos eu
te levaram a participar do movimento?
Entrevistada: Acho que eu respondi com a história, mas, falando individualmente, A
pergunta que me moveu foi: Onde é que eu coloco a minha tristeza? O que é que eu faço
diante desse horror? Essa foi a primeira coisa, do ponto de vista individual. A Segunda
coisa. O burburinho do primeiro dia, a aluna dizendo vamos fazer algo, quase que um
chamado. Essa irradiação, ainda sem um fim planejado, essa percepção de que o outro
também queria fazer algo diante daquilo. Então isso também me marcou muito. E a
possibilidade de costurar a dor, costurar a sociedade, costurar as pessoas. Costurar é
unir sempre partes, costurar não é separar, costurar é juntar partes. Costurar é ficar junto,
é dar um sentido para os pedaços de coisas. Foi um laboratório vivo de terapia
ocupacional. Não mais aquele que eu ficava babando quando eu via. Mas aquele ao vivo!
Onde cada um era protagonista. Onde cada um que estava e até cada um que não
estava era protagonista. Porque uma colcha, quando você olha, jamais você vai
identificar, numa colcha daquele tamanho, o pedaço que você fez. Fica Impossível. Mas
você sabe que o teu pedaço está e outros que você pôde levar, e talvez de todos,
simbolicamente.
236
Entrevistadora: Acho que todas as perguntas foram respondidas, mas ainda
considerações a fazer?
Entrevistada: Eu queria falar de uma coisa. Pensando na colcha e no trabalho que faço
como professora e profissional de saúde, com os alunos que estou formando... fico
pensando nas nossas dificuldades. Quanta dificuldade a gente tem ao falar no cotidiano
sobre equipes, eu que supervisiono equipes multiprofissionais de saúde e ensino os
alunos a trabalhar em equipe. Quanta dificuldade a gente tem para juntar os saberes
populares, os saberes da ciência e os saberes das disciplinas todas, para dar um sentido.
E qual é o pulo do gato? Como é que, vivendo a experiência da colcha, você ensina e
aprende essa junção dos saberes. Isso, o tempo todo, me é um guia. Independe da
disciplina, seja Saúde Coletiva, que o nome fala, seja Laboratório de Vivência, seja
Supervisão Coletiva... parece que o coletivo está gravado na minha cabeça, inclusive no
nome das disciplinas... não tem como, nada chama individual, tudo chama coletivo!
(risos). O quanto que essa experiência se torna distante das outras formações, daquelas
que eu gostaria até de participar e não posso porque a Universidade está montada dessa
forma, da não possibilidade de experimentar que os outros não tiveram, nem na
experiência da colcha, nem algo semelhante ou que lhes faça sentido e de como isso se
reproduz no cotidiano dos serviços, que a gente supervisiona, dos serviços que a gente
forma o aluno para atuar. Ou seja, eu tenho um mundo num sujeito doente, ou sofrido, ou
com carências, ou o nome que você quiser. E eu tenho um batalhão de pessoas com
saberes que não conseguem dar um sentido para construir esse mundo de um sujeito. E
cursos, e supervisões, e estratégias das mais diversas naturezas, que às vezes os
serviços oferecem, às vezes não interessa oferecer, e longos e longos anos se
chamando uma equipe de desagregada, de desestruturada, porque o sentido dado na
colcha por cada um, não consegue muitas vezes ser dado no seu trabalho cotidiano. Uso
demais na sala de aula com a esperança de que aquela rede, aquelas pessoas saiam da
posição de dizer: o outro é isso, o outro é aquilo, ora mandando, ganhando, ora
perdendo...
Entrevistadora: Tanto quanto você acha importante usar essa experiência como material
pedagógico para os seus alunos e como material de tratamento, você também considera
a sua experiência na colcha um processo de aprendizado?
Entrevistada: Total e absoluto! falei que foi único. Porque eu não tinha nenhuma
ferramenta. Podia ser que no pensamento verbal eu tangenciasse fenômenos,
fenômenos não, eu tangenciasse conceitos semelhantes a esses que eu fui colocando de
forma bem individual, talvez não formulados como conceitos. Mas hoje, pouquíssimas
coisas na história, me significam tanto quanto o fato de eu me apropriar disso como
elemento constitutivo de disciplina, de conteúdo. Sabendo dos limites do que é contar,
dos limites do que é o não vivido mas o ouvido e sabendo também que o ser humano é
capaz de ouvir e viver a partir da experiência de outro, tenho tentado resgatar
movimentos semelhantes ao da colcha, buscando, de qualquer forma, irradiar, no sentido
da construção de novos movimentos, que às vezes não são tão grandes, mas que
deveriam se dar em cada unidade de serviço. Se pegasse aqueles 10 ou 20 profissionais
e os seus usuários, seria um grande movimento social, um grande movimento de
construção do mundo.
Entrevistadora: Então também já está respondida a questão sobre a importância do
movimento para a população e para os alunos do curso de Terapia Ocupacional da PUC
Campinas.
Entrevistada: Para a população, a partir da minha experiência, do dia em que vi que
umas pessoas chegavam, que umas iam embora, olhavam impactadas.. acho que não há
237
uma identificação daquilo com um nome, assim como o movimento Tecendo a Paz.
Talvez o nome não tenha ficado gravado, mesmo para aqueles que participaram, que
pararam, costuraram, que foram na passeata. A sensação que eu tenho é que eles
podem não identificar o nome, mas talvez tenham identificado a esquisitice de algo que
não lhes era conhecido, como não era para mim. Essa coisa. Quem que está chamando?
Para onde vai isso? Isso não foi respondido como é respondido nas outras formas de
movimento social. Essa coisa é ”tecendo a paz” ... pode não ter ficado como terminologia,
mas é. Eu participei de algo grande, de algo intenso que tinha um sentido de irradiar... Eu
posso estar junto com, para construir um mundo um pouco melhor, etc. E vamos
continuar tecendo.
Entrevistadora: que “esquisitice”?
Entrevistada: Porque é a não norma. É a forma diferente com que ele ocorreu. Por não
ter as palavras de ordem, a bandeira, queremos a terra ou então abaixo a ditadura ou
então viva a democracia, o Partido X. Não tinha isso. Quem na hora sentou e se
apropriou daquilo ou participou da passeata, deve estar, até hoje, dando o seu sentido
àquele movimento.
Entrevistadora: Inclusive o sentido do movimento, ele é particular e político?
Entrevistada: Isso! É Isso.
Entrevistadora: Que interessante! O próprio sentido do movimento é também particular?
Entrevistada: É particular e, ao mesmo tempo, coletivo. Eu penso até hoje na palavra
“Tecendo a Paz”, ou seja, é algo que eu posso ir costurando ao longo da vida, não
naquele momento, naquele movimento. É algo que eu posso construir a cada dia, no
cotidiano, eu posso continuar tecendo. E sinto que muita gente que estava ali, com as
quais eu me relaciono até hoje, quando pensam nisso, tamm pensam com esse
sentido. O movimento não morreu, para mim, não é algo que foi, acabou, é algo perene.
Primeiro, porque eu continuo usando em sala de aula e, segundo, porque eu ajudei a
tecer a paz, costurando na praça. Como é que eu estou costurando agora? Porque a
situação do mundo é igual. Não mudou.
Entrevistadora: Eu posso traduzir isso como um símbolo que tem sido usado como uma
referência, ou uma nova referência de possibilidade de compreender a realidade e intervir
no mundo?
Entrevistada: Isso. Isso. É dessa forma que eu penso individualmente e que eu trabalho
na sala de aula nessas oportunidades, quando eu me refiro à equipe interdisciplinar, a
grupos terapêuticos, a relações institucionais ... O sentido do movimento Tecendo a Paz
e da colcha de retalhos me trazem ainda outra reflexão: A gente fica reinventando a
escola todos os dias: o conteúdo, o método, o programa, a avaliação. E a vida nos coloca
situações, todos os dias, que retratam exatamente aquilo que durante anos ou meses a
gente persegue para o aluno realizar. Se a gente usasse apenas a vida, o que acontece
no cotidiano, na cidade ou talvez no entorno da escola, você poderia ensinar sica,
Química ou Terapia Ocupacional ou o que quer que seja. E, no entanto, a gente morre
reinventando a escola e se frustra, com cada método, com cada programa, com cada
técnica de avaliação, com cada técnica ou estratégia de ensino. E a vida vai passando.
Então a colcha me ensinou isso, eu não preciso escolher o teórico, o tema. Eu posso
olhar para a vida e dizer para as pessoas: vamos aprender a construí-la? E a gente
consegue...
Entrevistadora: mais alguma consideração?
238
Entrevistada: Se eu pudesse dar um presente de formatura para os alunos, eu daria a
possibilidade de viver algo parecido. Mais do que qualquer aula, conferência, congresso,
embora todos tenham o seu valor. Mas, a possibilidade de viver essa construção, de
aprendizagem da vida, além da aprendizagem da Terapia Ocupacional, eu daria isso de
presente, para cada aluno que tenho ou que eu tive durante minha trajetória. Porque,
para mim, a possibilidade de viver esse movimento foi um presente, não a possibilidade
de ser um movimento social apenas, porque disso eu tinha participado. Mas desta
forma, deste modo, de algo onde estivessem presentes a alegria e a tristeza de cada um,
de algo que surgiu pela desesperança e trouxe tanta esperança... trouxe não... traz ainda,
no meu cotidiano. Eu daria isso de presente.
Entrevistadora: Teria que ser uma formatura completamente fora do comum!(risos). Muito
obrigada por sua entrevista. Sua contribuição foi preciosa. Muito obrigada!
Entrevistada: Boa pesquisa! Boa dissertação!
239
ANEXO VIII
240
ENTREVISTA 3 – E.3
Nome (iniciais): D.A.L.
Idade: 58 anos
Sexo: feminino
Profissão: socióloga (sociologia urbana)
Disciplinas ministradas na Faculdade de Terapia Ocupacional no semestre de 2001:
Movimentos Sociais e Cidadania.
Tempo de docência: 25 anos
Atividades profissionais no momento: docente da Puc-Campinas, desenvolvimento de
pesquisas junto ao LESEC (Laboratório de Ciências Sociais).
Data da entrevista: 03/10/2006
Entrevistadora: Você participou do movimento “Tecendo a Paz” em pelo menos uma de
suas fases, seja de organização, divulgação, costura da colcha, passeata ou utilização do
material em sala de aula? Qual(is)?
Entrevistada: Acho que a minha contribuição, a minha parte, foi mais de uso do material
em sala de aula. Participei também como cidadã, que vai num evento, assiste um evento,
tenta participar do evento. Mas acho que a parte principal foi de utilização do material em
sala de aula. A disciplina começou em agosto, em setembro teve a tragédia, e daí, como
os alunos estavam lendo alguns textos sobre movimentos sociais e surgiu a proposta
do Tecendo a Paz, eu me engajei no grupo que estava discutindo com os professores da
TO, uma maneira de participar e de integrar os alunos.
Entrevistadora: Quais os motivos que te levaram a participar do movimento?
Entrevistada: Na verdade, o mesmo que aconteceu com quase todos os que se
chocaram com a morte do prefeito, tão violenta, porque isso significava matar o símbolo
da representatividade política da cidade. Uma sensação horrível de perda de controle
sobre a própria vida da cidade. Como manifestar isso, como expressar essa perda, essa
indignação, essa perplexidade? Acho que esse foi um dos movimentos que mais tentou
dar expressão a essa variedade de sentimentos de indignação com a morte, além da
perda da própria pessoa, o Toninho, que tinha uma trajetória política, que tinha uma
identificação com a cidade, com as propostas políticas da cidade. A gente perde o
homem e perde uma rie de outras referências numa conjuntura de muita violência no
país, especialmente São Paulo. Então, quando aparece essa proposta, as próprias
alunas trouxeram a vontade de estar discutindo em sala de aula. Eu me lembro de ter
conversado com você e com outros professores, lembro que fizemos até uma reunião e
pensamos como cada um poderia participar. Daí eu pensei em organizar grupos que
iriam relacionar os textos de sala de aula com a participação na praça. Muita coisa da
praça, da confecção da colcha, das atividades de organização, acho que eu acompanhei
mais através dos alunos do que eu mesma podendo participar.
Entrevistadora: Como você está falando dos alunos e, considerando que eles foram
importantes para a sua visibilidade do movimento, eu vou inverter a ordem das
perguntas, passando para a pergunta cinco: Como você avalia a importância do
movimento Tecendo a Paz para a população e para os alunos do curso de Terapia
Ocupacional da PUC-Campinas?
241
Entrevistada: Como toda a disciplina, todo o curso, nem todos os alunos se envolveram
igualmente, mas os grupos, e dentro de cada grupo, aqueles que se envolveram
realmente, me deram muita alegria, porque eles ficaram extremamente motivados para
poder fazer o relatório e os cartazes, que um grupo tinha que apresentar para o outro.
Nem tanto no cartaz, mas mais no próprio relatório, eles ficaram extremamente
motivados para explicar o movimento Tecendo a Paz relacionando-o com autores
básicos, que definem o que é movimento social. Eles tinham dúvida se o movimento
social tinha que ser muito grande, se tinha que durar muito tempo, e todas essas dúvidas
foram sendo resolvidas. Eles traziam dúvidas sobre os textos, mas pensar em cima de
um caso concreto foi muito melhor que nos semestres anteriores, onde a teoria não tinha
uma vinculação tão direta com o movimento dos alunos. Antes, os alunos faziam uma
experiência de estudar um determinado movimento social que tinha ocorrido.
Geralmente eu indicava um movimento social na área da saúde, porque está mais
próximo deles compreenderem, da sua realidade profissional, e mesmo de formação
política, da formação da cidadania do aluno de TO. Então esse semestre, em particular,
foi diferente de todos os outros que eu havia dado. Esse foi diferente porque as alunas
vivenciaram concretamente o que estava acontecendo exatamente naquele momento,
naquela conjuntura. Foi muito mais vibrante, muito mais dinâmica a discussão em sala de
aula. Foi mais pesquisa da prática que ensino de teoria. Acho que cruzamos as duas
coisas, o tempo inteiro: ah, como é que a gente põe aqui? Como é que eu trabalho a
organização das mulheres fazendo a colcha? Como é que eu falo da visão dos homens
querendo participar? Eu fui muito desafiada, vamos dizer, a estar tentando pensar várias
possibilidades, não fechar as escolhas que elas poderiam fazer para apresentar o
trabalho. Teve uma apresentação interna na sala de aula, depois esses cartazes foram
para uma atividade mais coletiva que vocês fazem na faculdade, acho que foi a semana
de estudos. Elas levaram a experiência para os cartazes e eu também participei da
semana de estudos, vi outros materiais. Percebi que houve um tema comum que foi
trabalhado de diferentes maneiras e todo mundo muito motivado, tanto professores,
como alunos, querendo dar vazão, expressar de alguma maneira... e eu também me senti
incluída nessa forma de expressão que foi dada, embora não tão presente dentro do
movimento. Sobre o movimento, em particular, eu tenho uma leitura. O Tecendo a Paz
tem uma característica muito diferente, como todo movimento, lógico! Mas, ele foi criado
não como um movimento sozinho, um movimento que começou, teve seu auge, como
todo movimento social, e depois ele se desfaz naturalmente. O Tecendo a Paz,
sintetizou, propiciou a participação de outros movimentos. Percebi indo ao Paço
Municipal, quando eu estava no Paço Municipal... reconheci, naquele espaço, diferentes
lideranças de diferentes movimentos sociais. Eu vi lideranças do movimento de moradia
de anos anteriores, vi representantes de movimentos sindicais de diferentes sindicatos, vi
ali representantes de CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), eu vi ali representantes de
movimentos de periferia, de creches, de mães, de igrejas, de diferentes igrejas, de
diferentes expressões religiosas e, pelo menos no início, a presença de outros partidos,
não só o partido dos trabalhadores. Lideranças políticas da cidade, faziam questão de
passar, cumprimentar, elogiar, dar apoio, se colocar à disposição do movimento. Então
percebi que aquele movimento Tecendo a Paz, na verdade, permitiu aglutinar todos os
espaços de organização política e popular da cidade, principalmente popular, que queria
de alguma forma, fazer essa manifestação. Fizeram. O enterro do Toninho também foi
uma grande manifestação. O próprio enterro foi uma manifestação de massa da cidade.
Várias celebrações. A missa de sétimo dia foi uma grande celebração que, além de
religiosa, teve uma grande expressão política. Expressões políticas de indignação, de
perplexidade, de dor, o só pela morte do Toninho, mas pela situação social política que
a gente estava vivendo naquele momento na cidade, descontrole da violência na cidade.
Isso tudo me fez perceber que o Tecendo a Paz, e aquela colcha, é aquilo mesmo que eu
li no resumo da sua pesquisa: a cidade inteira dividida e querendo se expressar. A colcha
para mim é cada movimento social dessa cidade, o O.P., enfim aquilo que estava
germinando, e o que estava posto na cidade, em termos de organização popular, eles
242
vieram e colocaram pedos de si naquela colcha. O Tecendo a Paz, para mim, não é
um movimento em si. Ele é a síntese de vários movimentos, é a diversidade das
expressões de participação que tinha na cidade. O interessante é que, depois, quando
fiquei um ano e meio na Ouvidoria da Prefeitura, eu vi algo que lembrava essa colcha. A
mesa do Toninho, um painel de tecido colorido na parede, a própria pipa, algumas coisas
que tinham sido dadas como presentes ficaram para lembrar o Toninho, ficaram na
sala do prefeito. A Isalene não usava a mesa do Toninho, não mexeu. Ela despachava
naquela sala, mas não naquela mesa, e fez questão de deixar muitas coisas ali. Aquele
painel me lembrava a colcha, achava que era a colcha que estava ali.
Entrevistadora: Não era a mesma colcha que foi costurada no dia 10 de outubro no paço
municipal?
Entrevistada: Acho que não era a mesma colcha, mas eu lembrava daquela colcha.
Porque tinha na sala uma colcha cheia de retalhos. Acho que alguém fez essa colcha...
Não era muito grande... aquela outra ficou imensa, imensa, imensa... Essa não era muito
grande, mas olhava aquilo e lembrava da colcha do Tecendo a Paz.
Entrevistadora: De qualquer forma, a colcha virou um mbolo, passou a ser uma
representação. Você identifica uma colcha de retalhos, que não necessariamente aquela,
mas uma colcha de retalhos, como símbolo daquele movimento. Nesse sentido,
buscando os significados da colcha de retalhos e retomando o que você falou de ntese
e diversidade, você acha que o uso da colcha, ou a colcha do movimento Tecendo a Paz,
enquanto símbolo, teve alguma importância na construção do movimento? Se a gente
fizesse um movimento com uma outra coisa que não uma colcha, será que ele teria
acontecido dessa forma? Ou seja, qual a análise que você faz da colcha, enquanto a
proposta central do movimento, que se tornou um símbolo, e por que ela permitiu essa
síntese e essa diversidade?
Entrevistada: É uma pergunta interessante e difícil de responder. Não sei se essa
escolha, essa forma de expressão, a colcha, poderia ter sido outra, não sei, não saberia
responder. Mas, com certeza, ela se tornou um símbolo que pode ser lido de diferentes
maneiras, dependendo de quem participou. Para mim, ela representa a cidade dividida,
esquecida, fragmentada, violentada. E quando cada canto da cidade veio e colocou um
pedaço de si ali, foi como um ato de resistência simbólica para mostrar que, apesar de
terem tentado, eles ainda se sentem membros daquela cidade, querendo tomar conta do
destino daquela cidade. Então, eu sou daquela cidade, vocês estão querendo me tirar
dessa participação, mas eu vou colocar um pedaço da gente naquela colcha. Seja no
centro, seja na periferia, as várias partes procuraram estar representadas na colcha.
Diversidade na cor, diversidade de lugares geográficos, diversidade de tipos de
movimentos sociais, diversidade de reivindicações possíveis, de diferentes conflitos
colocados ali. Síntese, porque simboliza, em toda essa diversidade, uma síntese da
indignação, de uma reação, de uma resistência contra as forças da adversidade que,
naquele momento, pareciam tomar conta da cidade. Seja de negócios escusos, de
grandes interesses privados e políticos envolvidos, seja contra a criminalidade. Uma
reação contra o caos da cidade: - Não! A gente não vai abrir mão, apesar de toda a
adversidade vinda de grandes interesses privados que dominam a política e a
criminalidade por si só... Nós vamos querer expressar a nossa visão de cidade. Nós
estamos aqui, estamos representados, queremos retomar essa cidade nas mãos.
Infelizmente, na seqüência, eu acho que o governo Municipal, apesar de ter feito muitas
coisas interessantes, boas para a cidade, não conseguiu liderar essa reação. Não
conseguiu liderar não por conta do poder Municipal, mas porque teve uma parte das
pessoas ligadas ao Toninho que tiveram muita dificuldade de aceitar a tragédia, de
aceitar a perda. Porque são cargos de confiança e, quem não estava envolvido
243
apaixonadamente dentro do problema, entende que qualquer cidade que muda de
prefeito, tem uma troca dos cargos de confiança. Eu acho que os dois lados tiveram
muitos problemas. De um lado, o poder Municipal teve muitos problemas, porque trouxe
um monte de gente que a cidade não conhecia e isso, por si só, cria uma dificuldade.
Se você for pensar em todos esses movimentos e no movimento da colcha, olhando a
composição do governo com pessoas que não são reconhecíveis, eu acho que isso criou
uma dificuldade violenta de cara. Do outro lado, o grupo que acabou se retirando,
também se sentiu com dificuldade de aceitar um grupo de uma outra corrente política,
era uma dificuldade, uma porção de gente que não é da cidade, é outra dificuldade.
Então se criou o dissenso, a incompreensão, a radicalização das posições, dos dois
lados. E a população e os movimentos perderam, perderam. O resultado disso, nós
estamos vendo agora, após as eleições, ninguém se elegeu. Ninguém se elegeu. No
processo político, o resultado não vem imediatamente. Ao longo do tempo vai-se fazendo
o processo. Então eu não saberia dizer se outro símbolo poderia. O símbolo da pipa ficou
muito forte, algumas coisas ficaram fortes, eu não sei se a colcha... E a colcha também
tem o lado simbólico muito feminino. Eu não saberia dizer como os homens criaram uma
maneira de participar, eu sei que alguns homens também costuraram, ou seja, a colcha
possibilitou uma participação muito democrática, de homossexuais, de negros, de
religiões diferentes, de mulheres. Os homens, não sei, eu tenho um pouco de dificuldade,
porque para mim a colcha é um símbolo da mulher. A mulher-cidade, a mulher-viúva, a
mulher na sua diversidade, mas eu tenho dificuldade de perceber como é que os homens
viram o movimento, como que os homens se integraram. Provavelmente dando apoio
logístico, outros tipos de apoio, tomando conta da passeata, ajudando na organização,
ajudando a fazer um panfleto, redigir um panfleto, acho que isso pode ter sido uma forma
dos homens participarem, mas eu não prestei muita atenção nesse aspecto.
Entrevistadora: Apesar do número de homens ser menor que o de mulheres, havia
muitos homens costurando a colcha. Vi muitos homens, de várias idades, ajoelhados no
chão, costurando. Isso também foi uma coisa importante de se notar. Importante.
Retomando a idéia da colcha como símbolo, e você fala em diversidade e síntese, daria
para dizer que a colcha de retalhos, por ter retalhos conectados e unidos, eles suportam
as diferenças, que são expressas nos retalhos, porque eles estão unidos por uma
finalidade comum? Você disse que, apesar das diferenças, existia um sentimento e uma
finalidade comum que era de uma política diferente daquela que a gente tinha ou estava
tendo, um sentimento de tristeza, indignação, perplexidade, enfim. Daria para dizer, ou,
você concorda com a idéia de que a colcha de retalhos, ao mesmo tempo em que aceita
a diversidade, ela também tem uma unidade, um objetivo, uma finalidade comum, ao
mesmo tempo?
Entrevistada: Sim. Naquele momento sim, teve essa unidade. A unidade ou possibilidade
de criar num espaço público uma participação que expressasse politicamente (acho que
a questão emocional da perda está posta), mas o sentido maior é politicamente colocado
numa reação, numa indignação quanto ao que todo o mundo na cidade sabe, ou seja, o
Toninho morreu por alguma razão política, por contrariar interesses econômicos, grandes
interesses econômicos, quais deles eu não sei, porque foram vários. Mas todo o mundo
teve certeza disso. Que foi um crime político. Como expressar isso? Como unificar essa
expressão? Precisa do espaço público. O espaço público é o lugar de se discutir o
conflito. É o lugar de se discutir a contradição e de negociar essa contradição. Enquanto
o Brasil não construir, a cidade não construir e não lutar para que no espaço público se
faça a negociação dos conflitos, não democracia! Isso é um esforço de defender a
democracia na cidade. Isso pode ser feito no espaço público. O Toninho morreu para
negar a discussão, a negociação dos conflitos em espaço público. O Toninho discutia no
espaço público a contradição de interesses que estava posta na cidade. Era o lixo, era o
aeroporto de Viracopos, era o transporte, os perueiros, o bingo, e assim por diante. Põe
no espaço público a discussão, que é, portanto, o lugar da discussão democrática. Tem
244
divergências? Vamos negociar essas divergências, no espaço público, dentro das
reuniões, no O.P., na câmara municipal, no movimento social. O que significou a sua
morte? Que acabou isso! Essa democracia participativa, essa negociação de conflitos em
espaço público. Acabou! Então a colcha é a retomada do espaço público: Não, não
acabou! Nós estamos aqui e vamos continuar discutindo nossas questões no espaço
público. Para mim também tem o significado de defender o espaço público como o lugar,
e o único lugar, onde se defende a negociação da contradição. Não é que na colcha
todas as partes ali não tenham contradição. Tem! Tem movimentos sociais que são
contraditórios a outros, um nega o outro, até no mesmo espaço geográfico. Mas se cada
um desses movimentos tem a sua representação, tem a sua organização política, na
colcha ele expressa a vontade de negociar esses conflitos no espaço público. No Paço
Municipal, um espaço público... Uma colcha tecida no espaço público, que simboliza o
poder político da cidade... Juntar essas duas coisas, para mim, foi muito forte naquele
momento, do ponto de vista da discussão do que significa espaço público. A unidade da
colcha eu posso chamar tamm de espaço público. A Unidade.
Entrevistadora: O que você está dizendo é tão importante para minha pesquisa! E tão
bonito! Bem, voltando para as questões do roteiro: Que aspetos você considera
importantes para a sua formação como docente?
Entrevistada: Se o movimento teve uma influência na minha formação docente, o que eu
posso dizer é que ele marcou como uma experiência positiva de uma professora que se
sentia, nessa disciplina, meio marginal, que não entende a outra área muito bem e que se
esforçava para compreender o trabalho que estava sendo feito. Não é muito simples para
o professor que chega de outro centro, de outra área de conhecimento e tenta criar uma
dinâmica que se aproxime de uma área que você tenta conhecer, mas nem sempre
consegue. Aliás, não consegue compreender o sentido de todas as atividades e de todas
as aulas que são dadas. Algumas eu conseguia perceber claramente. Por exemplo, a
discussão sobre as políticas de saúde, as questões que envolvem as políticas nacionais,
municipais e estaduais de saúde, o SUS, enfim. Mas outras são tão especificas, que a
gente se sente um pouco estranha, fica aquele estranhamento com uma área que a
gente não domina. Mas, naquele momento, naquela experiência, eu acho que me senti
mais integrada ao corpo docente, ao projeto pedagógico do curso de Terapia
Ocupacional, que eu sempre fiz questão de conhecer, de tentar complementar, ser um
complemento do projeto pedagógico. Agora, o movimento, em si, eu não posso dizer que
me marcou profundamente, porque eu vivenciei vários outros movimentos sociais. Outros
movimentos sociais me marcaram mais, por eu ter tido mais tempo, mais integração, por
ser num outro período da minha vida. Mas, marcou na minha formação, sim, porque,
lidar com movimento social, entender o que ele tem a dizer e conseguir se fazer
entender, principalmente com movimentos populares, e não com um movimento, por
exemplo, docente, onde é falar de igual para igual... mas no movimento popular, você
tem uma dimensão de troca cultural ali, que é de aprendizado. Então, quando eu
participei dos atos, dos dois atos, um que era no Paço Municipal e outro que era uma
caminhada, nos dois casos eu me senti muito bem, no seguinte sentido: eu sei como
fazer, eu sei como participar, eu sei como entender. O que, em outros movimentos
anteriores, de anos atrás, eu tive que aprender, eu tive que ouvir, observar, perguntar. Eu
acho que a experiência com o movimento popular, para mim, é fundamental para a
formação docente porque permite lidar com o aluno, na universidade, de diferentes
classes sociais. A experiência da participação no movimento social te traz desafios e
você consegue perceber, numa sala de aula, a diversidade social, de classes, de cultura
e até de posições políticas. Para mim, o movimento social é uma grande escola, foi uma
grande escola. Pela minha experiência de militância política é clara a diferença dos
docentes que nunca passaram por essa experiência. É clara para mim essa diferença.
Para a formação docente, o movimento social faz docentes diferentes.
245
Entrevistadora: De um modo geral, para você, os movimentos sociais o um processo
de formação docente sempre.
Entrevistada: Sempre
Entrevistadora: E eles fazem a diferença?
Entrevistada: Fazem a diferença, até porque quem estuda movimentos sociais, como eu,
sabe que qualquer movimento social produz conhecimento, e produz conhecimento,
muitas vezes, apenas na oralidade. Às vezes não vai para o papel. Então como
reconhecer que ali dentro está sendo construído um conhecimento popular, e como
aprender com este conhecimento? É preciso reconhecer, sempre, que todo o movimento
social produz conhecimento informal. E esse conhecimento informal fica invisível se ele
não for traduzido na cultura intelectual, se não for para o papel. Eu acho que o papel do
intelectual é tornar atuante o conhecimento invisível, oculto... É traduzir esse
conhecimento para o mundo letrado. Esse é o papel do intelectual que trabalha com
movimento social. É assim que eu me vejo, como docente que está formando docente,
que está formando cientista social, que vai fazer pesquisa social... O que é que ele
precisa tirar da escuridão... Porque tudo está na mídia, tudo está sendo dito, mas tem
uma produção de conhecimento que é invisível, e o papel do intelectual é trazer à luz
essa discussão. Não é nem dizer se está certo ou errado, não é ser normativo, mas é
trazer à luz para que isso seja discutido por outras culturas. E até para poder devolver
isso para o próprio movimento, sempre que possível de ser feito. Para mim o movimento
social tem essas várias possibilidades de enriquecer o ser humano. E mesmo aqueles
que participam, quando ficam sabendo da existência de um trabalho sobre ele... É uma
experiência única! É uma experiência encantadora! Porque eles se sentem sujeitos
reconhecidos. Porque eles se sentem sujeitos da história, mas reconhecidos numa outra
cultura. E isso é fundamental do ponto de vista que esse sujeito forme outros sujeitos:
Olha! O que eu fiz, a minha história de vida está escrita, está documentada. Eu sou parte
da história dessa cidade e a minha história está escrita! Essa reprodução, que vai além
da gente, tem um caminho que segue por si só. Muitas vezes você vai descobrir, anos
depois, que alguém vai dizer Olha! O meu avô falou que você escreveu um livro e ele
deu uma entrevista, que você contou a história desse movimento. Você tece fios que
você, às vezes, não percebe.
Entrevistadora: Isso que você fala me emociona. Porque é um conhecimento produzido e
registrado, mas é um conhecimento onde tudo está ligado de modo indissolúvel. Não é a
academia ou a sociedade, nem o indivíduo ou o coletivo, nem o tempo de hoje ou o
tempo de ontem e de amanhã. Quero dizer, tudo está tecido junto mesmo.
Entrevistada: E complexo!
Entrevistadora: E complexo! (risos)
Entrevistada: Tem uma coisa que eu quase esqueço de falar, mas tenho que falar. Fiquei
lembrando, lembrando, escapava e voltava. Eu também me emociono muito quando eu
trabalho essas coisas, porque a gente tem uma leitura muito funda dessa experiência. A
gente consegue produzir intelectualmente bem, se você estiver subjetivamente
marcada por aquilo. Então, eu não digo que eu fui marcada pelo movimento, pela minha
participação marginal, mas eu consigo entender o quanto é marcante participar de um
movimento forte. O que eu acrescento, que eu acho que ficou faltando falar, e que eu
gosto de sublinhar, é que a Comuna de Paris durou poucos dias, pouquíssimos dias, e,
no entanto, é um movimento social que continua sendo estudado porque ele continua
desafiando a vontade de entender aquelas pessoas que participaram naqueles dias,
quebrando relógios, montando barricadas. Enfim, foi tão forte, tão simbólico! O simbólico
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daquele movimento foi tão forte que ele continua desafiando a discussão na minha área.
Então, o fato de durar poucas horas, poucos dias, de acabar, como tantos outros
movimentos, é próprio da história política, é próprio da história social. Nenhum
movimento se perpetua, nenhum. Embora a vontade da gente é que assim seja. Eu sofri
muito quando o movimento da Assembléia do Povo acabou... eu não me conformava. Ao
longo do tempo é que, estudando tantos outros movimentos, você que ele pode ter
uma história absolutamente breve, mas o que importa é qual o grau de significado que
ele deixou. E aí, alguém tem que registrar. E, geralmente, quando alguém registra a
primeira vez, chama a atenção para outros olhares. Outros olhares: Ah! não respondeu
isso, mas como será aquilo? Eu senti isso quando eu escrevi o livro “Marginais da
história? pergunto”, outros trabalhos surgiram. Alguns foram concomitantes, porque
participaram também do movimento. Concomitantes, com diferentes abordagens. Mas
outros surgiram depois, de gente do próprio movimento.
Entrevistadora: O que confirma a idéia de aprendizado e produção de conhecimento a
partir do movimento social, porque, mesmo que o movimento em si tenha durado pouco
tempo, o processo de reflexão e aprendizado se mantém, como uma experiência vivida a
ser infinitamente analisada.
Entrevistada: A parte mais interessante não morre! Quando você fala o movimento
acabou... acabou daquele jeito, mas ele revive de outras maneiras.
Entrevistadora: Em outros lugares
Entrevistada: Em outros lugares.
Entrevistadora: Que bonito! Bem, as principais perguntas estão respondidas e a sua
contribuição, como uma estudiosa de movimentos sociais, me é muito cara e muito
importante. Considerando a sua experiência na área, eu queria saber se você ainda tem
alguma consideração a fazer, algo mais a dizer sobre o movimento Tecendo a Paz.
Entrevistada: Eu tenho uma curiosidade pessoal. Por que os organizadores desse
movimento não fazem uma conversa entre eles e convidam quem participou, não vai lotar
a praça, mas, por que não utilizar a colcha, ou as fotos da colcha, a parte visual? Porque
não fazer uma exposição, uma rememoração, uma memória, inclusive visual? Sabe por
que estou falando isso? Porque uma vez, no governo da Isalene, o O.P. resolveu fazer
um encontro para discutir alguma questão que eu não lembro exatamente, mas para
poder fazer isso, simbolicamente, eles chamaram uma exposição visual, fotos
principalmente, do movimento da Assembléia do Povo. Fizeram um folder, puseram as
fotos, daí vieram muitas lideranças antigas, vários faleceram, mas muitos ainda estão
vivos. Eles vieram, ficaram encantados com a exposição, falaram de novo. Esse falar de
novo, em outra conjuntura, em outras circunstâncias, pode ser interessante. Poderia ser
interessante, no sentido de retomar num outro contexto. Retomar até com novos
significados, para um outro momento que a gente está vivendo.
Entrevistadora: Como uma das organizadoras do movimento, vou tentar responder, no
que for possível. Na verdade, não são respostas, são algumas idéias que eu também
tenho tentado construir, para justificar algo que não aconteceu, embora fosse o nosso
desejo. Seria necessário mobilizar outro movimento para que isso acontecesse. A idéia
inicial era que esta colcha fizesse parte de um movimento contínuo, tanto de encontros
para costura, como de exposições, como protestos. Por vários motivos, isso não
aconteceu, de fato. Eu nem conheço todos esses motivos, eu levanto hipóteses. Eu acho
que para tratar disso, seria necessária uma outra pesquisa. Em parte, como entendíamos
que a organização do movimento não se pretendia centralizadora, depois que a colcha
passou a ser efetivamente pública, acabamos não mais definindo ou propondo as ões.
247
E, em parte, porque a colcha acabou sendo, de certa forma, institucionalizada, e eu acho
que isso também contribuiu para o esvaziamento do movimento. Enfim, ainda tenho
muitos porquês. O que conseguimos fazer com a colcha, dois anos depois da sua
existência, foi entregá-la para a Roseana, num ato solene de celebração do segundo ano
da morte do Toninho. A colcha ficou na casa do Toninho, no seu escritório, na tulha, e ela
tem sido carregada, quando existe algum movimento do grupo “Quem matou Toninho?”.
Agora, eu acho que a importância dessa colcha é a visualizão do seu tamanho! E isso
ainda não conseguimos fazer em nenhuma exposição... Não conseguimos trabalhar isso
formalmente. Ela é muito grande!!
Entrevistada: É engraçado... porque isso está acontecendo com vários movimentos...
acabam sendo apropriados por um ser privado. Um membro da vida privada, não da vida
pública.
Entrevistadora: Neste trabalho, eu não vou entrar nessa discussão, porque, de fato, eu
acho que isso demanda uma outra pesquisa. Mas, como informação: o tempo em que
nós deixamos a colcha na instituição pública, para que fosse publicamente apresentada,
reconhecida e usada, isso também não aconteceu. Ao contrário. Num determinado
momento nós tivemos que retirar a colcha da prefeitura para que ela não deteriorasse,
porque ela estava embolorando.
Entrevistada: Virou um objeto... um arquivo morto?
Entrevistadora: Isso é muito complicado, difícil de analisar, envolve uma outra pesquisa.
Mas, o fato é que, quando a colcha ficou na Prefeitura, ela embolorou. Nós tivemos que
retirá-la de lá porque estava embolorando.
Entrevistada. tem dois problemas. O pessoal do Toninho nunca admitiu que o outro
lado defendesse o Toninho. Não podiam defender o Toninho porque falavam que “estava
usando”. Nem todos. Teve gente que estava usando, mas teve gente que não estava
usando. E o lado de resolveu enterrar a colcha porque seria continuar lidando com
uma autoridade política que atrapalharia o que eles tinham que fazer.
Entrevistadora: Esta análise nos levaria a pensar que o movimento da colcha não
aconteceu na prefeitura, por isso ela embolou. O movimento da colcha, tudo aquilo que
você mesmo disse que ele promoveu, ou seja, relações conflituosas, mas com uma
unidade, eu acho que não aconteceu. E para mim, a idéia da colcha embolorada é muito
pesada. Tudo o que conseguimos fazer, foi retirar a colcha da instituição pública para que
ela não embolorasse. Que triste! Nós não sabíamos exatamente o que fazer com a
colcha... E hoje ela está na casa do Toninho. Gostaríamos muito que ela fosse para um
memorial, mas ela não nos pertence. Na verdade essa colcha nunca foi de ninguém, ela
não é de ninguém... ela é de todos. E isso é muito importante. Esta questão,
especificamente, eu acho que é uma outra pesquisa. Eu não estou me propondo a fazer
essa pesquisa agora, mas, a análise dos processos de institucionalização dos
movimentos sociais, talvez seja o próximo passo, quem sabe, para a continuidade desse
trabalho.
Entrevistada: Isso é uma tendência geral. Todo o movimento caminha para a
institucionalização. E tem outra tendência depois dessa globalização, neoliberalismo,
privatização... essa confusão de discurso... Tem vários discursos... O discurso que eu
faço sobre a colcha, tem um discurso igualzinho sobre responsabilidade social que as
empresas estão fazendo, tem um discurso igualzinho que os partidos de direita estão
fazendo. É proposital. Essa apropriação do discurso dos movimentos sociais,
principalmente populares, está sendo traduzida em diversos tipos de institucionalização.
Existe a institucionalização que já ocorria normalmente pela esquerda, mas existe
248
pesadamente, agora, uma institucionalização que se faz pela direita. E quando se
institucionaliza, por exemplo, movimento social de periferia, bairro de periferia, chega um
momento que ele vira uma associação de bairro. Quando vira uma associação de bairro,
está institucionalizado, isso é um caminho que sempre ocorreu. É assim que acontece.
Ele é autônomo, independente, alternativo, na sua formação. Chega uma hora que,
para continuar o diálogo com outras instâncias, vai se institucionalizar. Esse é o caminho.
O problema maior não é mais esse. O problema que estamos estudando agora, e as
ciências sociais estão produzindo muita coisa, caminha no sentido de repensar o que foi
que aconteceu com a redemocratização do país, a eclosão, a emergência de novos
movimentos sociais, o que aconteceu com esses movimentos sociais. Nesses trabalhos,
é interessante notar que a redemocratização e a eclosão dos movimentos sociais
coincidem com a entrada do neoliberalismo no Brasil e a globalização. E o resultado é
que este movimento à direita criou instâncias para enquadrar os movimentos. Então, a
responsabilidade social... ONGs que continuam sérias e ONGs que são apropriadas
pelo capital privado e por políticos da direita. muitos políticos da direita que montaram
ONG, e assim, despolitizaram o social. E a população não consegue mais se orientar
porque os discursos são iguais. Neste momento, estamos vivendo um aprendizado para
encontrar alternativas para escapar da armadilha que construíram, do ponto de vista
discursivo, porque ele é igual.
Entrevistadora: O que você está dizendo é muito importante, mas acho que seria, de fato,
a continuidade deste trabalho, um outro trabalho. Não conseguirei abordar tudo isso
agora. Mas, aproveitando desta prosa produtiva, sua fala me faz lembrar o que uma
pessoa veiculada à imprensa me disse durante a organização do movimento: Tomem
muito cuidado para que essa colcha não se transforme numa peça publicitária! Depois
que a colcha começou a ser feita, depois que se viu o tamanho que ela estava ficando,
essa pessoa disse Esta colcha pode mesmo ser uma grande peça publicitária, cuidado!
Desde o começo da organização do movimento, embora ele fosse muito vulnerável e
pouco visível, percebemos que, de muitos lados e de muitos jeitos, a gente precisava
cuidar para que ele não fosse usado e, desde muito cedo, percebemos que a
coordenação de um trabalho que se pretendia de auto-organização, consistia mais em
protegê-lo das ameaças contra a espontaneidade do movimento popular, do que
qualquer outra coisa, qualquer tipo de direcionamento ou coisa parecida. Nós
trabalhamos sempre nesse sentido. A coordenação, que nós, inclusive, não queríamos
chamar de coordenação (resistimos muito em chamar de coordenação até pouco
tempo), consistiu em proteger o movimento para garantir a criação espontânea e auto-
organizadora. Depois que a colcha ficou pronta, de fato, ela ficou uma tentação! E
quando ela foi para a prefeitura começou a haver uma confusão, e percebi isso pelos
jornais, porque algumas vezes a colcha do movimento Tecendo a Paz era trazida como a
“colcha da prefeita”. Escrevi algumas vezes aos jornais para esclarecer o movimento e o
sentido da colcha e para dizer que essa colcha não pertencia a ninguém, muito menos à
prefeita, que ela era um movimento popular espontâneo. Algumas vezes tive resposta,
outras não. Bem, de fato, ao final do dia da costura da colcha no Paço, e somente no final
do dia, a prefeita chegou até a colcha, fez um discurso inflamado e caminhou à frente da
colcha na passeata, “puxando” a passeata. Naquele momento queríamos exatamente
isso, porque acreditávamos que isso significava entregar a cidade e suas potencialidades
ao poder público que, legitimamente representado e representante, levaria adiante os
sonhos e as esperanças deixadas por Toninho. Hoje, tenho uma dúvida: o fato da prefeita
“tomar a colcha para si” ao final do movimento, pode ter feito as pessoas esvaziarem o
movimento? É uma pergunta. Entregamos a colcha solenemente à prefeita com o
compromisso de que ela seria estendida no prédio da prefeitura, substituindo a faixa
preta do luto, para dar visibilidade da força do trabalho coletivo na união dos retalhos.
Mas isso não aconteceu. Ela foi colocada na marquise da prefeitura, toda dobrada, como
um bandô de cortina, que não tinha nenhuma visibilidade. Foi assim que ela embolorou!
Então, o fato de termos entregue a colcha à prefeitura, esperando que ela desse
249
continuidade à espontaneidade e à visibilidade do movimento não aconteceu. E hoje eu
ainda não sei se o movimento esvaziou porque as pessoas identificaram sua possível
institucionalização ou se esse foi o tempo dele. Não sei. O fato é que isso é uma
possibilidade. A apropriação dos discursos, como você fala, eu acho importantíssimo,
porque a colcha, a colcha de retalhos, que tem todo esse significado, agora também
começa a ser usada como moda... Enfim! Terminando nossa entrevista, há ainda alguma
consideração a fazer?
Entrevistada: Não.
Entrevistadora: Muito obrigada! Sua contribuição foi muito importante.
250
ANEXO IX
251
ENTREVISTA 4 – E.4
Nome (iniciais): M.L.F.
Idade: 50 anos
Sexo: feminino
Profissão: terapeuta ocupacional
Disciplinas ministradas na Faculdade de Terapia Ocupacional no semestre de 2001:
disciplinas teóricas e práticas de Atividades e Recursos Terapêuticos e Práticas
Terapêuticas Supervisionadas – laboratórios de vivência.
Tempo de docência: 25 anos
Atividades profissionais no momento: docente da PUC-Campinas, supervisora clínico-
institucional de serviços de saúde mental, coordenadora de grupos de estudos
interdisciplinares.
Data da entrevista: 02 de novembro de 2006
*entrevista aplicada à pesquisadora
Entrevistadora: Você participou do movimento Tecendo a Paz em pelo menos uma de
suas fases, seja de organização, divulgação, costura da colcha, passeata ou utilização do
material em sala de aula. Quais?
Entrevistada: Participei em todas as fases do movimento desde a sua concepção até a
finalização do movimento. De todas as fases.
Entrevistadora: Quais os motivos que te levaram a participar do movimento?
Entrevistada: Foram vários motivos. Primeiro foi o choque pela morte do Toninho. Pelo
Toninho a gente tinha, além de uma esperança e uma admiração pelo seu projeto
político, uma relação afetuosa. Embora não tivéssemos proximidade havia uma relação
afetuosa. Ele era professor da PUC-Campinas, o meu marido havia sido aluno dele,
enfim... Além disso, a necessidade de fazer alguma coisa como cidadã diante daquele
fato que desafiava a nossa vida, desafiava a nossa dignidade. Eu não me permitia
simplesmente olhar e ficar passiva diante de tudo aquilo que estava acontecendo, que
aconteceu com o Toninho e que estava acontecendo com Campinas. Mas o que foi
determinante, talvez a mola propulsora para essa participação, foi um episódio em sala
de aula com algumas alunas. No momento em que estávamos todos perplexos,
indignados, chocados, com um grande sentimento de impotência diante do que havia
acontecido, uma aluna chegou para mim e perguntou. E agora, professora?! Você
sempre diz que temos a responsabilidade de construir e transformar a sociedade,
participando como cidadãos ativos... e agora?! Era uma pergunta desafio. Uma pergunta
de checagem, na verdade, da coerência entre o discurso e a prática. Sempre me
preocupei muito em não dissociar o discurso da ação, a teoria da prática. E essa
pergunta me tomou. Essa pergunta me tomou de tal forma que, tentando manter a
coerência do meu discurso pedagógico com a minha prática e tentando manter a minha
coerência comigo mesma, eu não sabia o que fazer. Por isso a resposta que eu
consegui dar naquele momento foi apenas: neste momento eu não sei o que fazer, neste
momento eu posso compartilhar com vocês o mesmo sentimento de impotência e
tristeza. Mas me senti cobrada, eu me cobrei, e achei que tinha que fazer alguma coisa,
mas não sabia o quê. Talvez esse estado de espírito tenha me preparado para descobrir
a potencialidade de algo que poderia ser feito a partir do que veio a acontecer nos
próximos dias. Antes de falar do que aconteceu, eu preciso falar um pouco do que eu
fazia na época, dos meus vínculos institucionais, porque esses vínculos e as
252
características das minhas atividades profissionais permitiram que muitas coisas se
agregassem e pudessem gerar possibilidades. Além de docente do curso de Terapia
Ocupacional da PUC-Campinas, eu também desenvolvia atividades como supervisora
clínico-institucional da equipe multiprofissional de trabalhadores de saúde mental de um
dos CAPS da região noroeste de Campinas, aliás, a mesma região onde se encontra o
campus da saúde da PUC-Campinas. Essa atividade não era vinculada à universidade.
Embora a universidade pudesse estar vinculada a esse serviço de saúde através dos
estágios que ela desenvolve, essa atividade era desenvolvida através de um vínculo com
a prefeitura. Portanto, eu tinha dois vínculos: um com a universidade e outro com a
prefeitura municipal. O fato de transitar por esses dois serviços e de perceber, tanto nos
alunos quanto na equipe de trabalhadores, os mesmos sentimentos e as mesmas
necessidades de expressão desses sentimentos, talvez tenha me colocado diante das
possibilidades de constituir, junto com outras pessoas, o início desse movimento.
Enquanto eu me cobrava fazer alguma coisa, ainda com a ressonância da pergunta da
aluna, a então coordenadora daquele serviço de saúde mental e também terapeuta
ocupacional, me telefona, dizendo: Nós, os CAPS da região noroeste, começamos a
fazer colchas de retalhos em nossos ateliês, tentando resgatar um símbolo... Foi uma
atividade que surgiu espontaneamente e resolvemos, nos serviços de saúde mental da
região, começar a fazer colchas de retalhos! Imediatamente me veio a idéia de ampliar a
confecção dessas colchas de retalhos para a cidade. Essa idéia surgiu de repente... Foi
uma idéia que me tomou, não foi nada planejado nem pensado, foi uma idéia que me
tomou. E eu lhe disse: E se nós transformássemos essas colchas numa atividade coletiva
para a cidade? Na verdade, eu nem tinha dimensão do que eu estava dizendo! Achamos
a idéia um pouco “maluca”, mas aquela coordenadora, que é uma pessoa muito criativa,
muito esperançosa, muito vivaz e muito potente, foi logo se animando... Isso aconteceu
num domingo de manhã, seis dias após a morte do Toninho. Queríamos dividir essa idéia
com alguém, encontrar parceiros para verificar as possibilidades da nossa “maluquice”.
Ela então me disse que naquele mesmo dia, à tarde, haveria uma reunião do Partido dos
Trabalhadores na prefeitura e poderíamos trocar essa idéia com muita gente.
Combinamos um encontro lá. Enquanto isso, eu fui tomada por uma euforia, diante da
perspectiva de gerar um movimento social. Fui tomada por idéias. Na verdade, acho que
não planejei nada, simplesmente as idéias brotavam. Era domingo de manhã. Enquanto
eu preparava o almoço, me veio à mente o nome do movimento “Tecendo a Paz” e
também brotou, não sei de onde, a poesia que depois se transformou na chamada do
movimento. Simplesmente brotou! Escrevi rapidamente essa poesia num papel qualquer
para não esquecer. Lembro-me até hoje que, enquanto eu conversava com minha família
sobre isso tudo, sobre minhas esperanças, minhas dúvidas e meus temores, meu filho,
ainda criança, me disse com a ingenuidade e a sabedoria da infância: Mãe, se você quer,
você consegue! Isso também me marcou muito! Fomos para a prefeitura, munidas de
algumas idéias e um pedaço de papel com a poesia e o nome do movimento. Havia
muitas pessoas espalhadas pelo paço municipal, saindo da reunião. Começamos a
apresentar nossas idéias, ainda que timidamente, para uns e para outros. Algumas
pessoas gostaram muito. Outras nos olharam com um ar esquisito, outras começaram a
transformar a idéia em um movimento político-partidário. Tínhamos muito claro que esse
movimento não poderia ser partidário. Era uma manifestação popular, espontânea,
apartidária. Recusamos essa possibilidade e algumas pessoas nos abandonaram. Mas
sobraram outras que comungavam das mesmas idéias. Destas conversas surgiu então a
idéia de marcar-se a confecção dessa colcha para o dia 10 de outubro de 2001, um mês
após a morte do Toninho, no próprio paço municipal. As pessoas que se interessaram
pela idéia foram logo contribuindo com o que fosse possível. Um grupo de trabalhadores
da rede municipal de saúde se dispôs a fazer a impressão dos folhetos para divulgação.
Já havia uma passeata marcada por esses trabalhadores da saúde para o dia seguinte, o
dia da celebração da missa de sétimo dia da morte do prefeito. Essa passeata viria do
hospital municipal à prefeitura, onde haveria um ato e depois, em nova passeata, para a
catedral, onde se realizaria a missa. Integramos esse movimento e, durante o ato de
253
“abraçar a prefeitura”, o Tecendo a Paz” foi apresentado publicamente como um convite
a toda a cidade para continuar a costura das colchas que já estavam iniciadas. A
coordenadora do CAPS fez esse convite e os trabalhadores e usuários dos CAPS da
região apresentaram suas colchas. Nesse dia o movimento “Tecendo a Paz” foi levado a
público. Havia poucas pessoas nesse ato, pois muita gente estava se dirigindo à
catedral. Durante a passeata para a catedral, distribuíamos os folhetos para divulgação
do movimento. Nesse momento, é óbvio que aquela aluna que me havia tocado com sua
“pergunta-desafio”, que me havia colocado naquele estado de premência, também
estava participando da organização do movimento.
Entrevistadora: Como é que vocês conseguiram uma idéia tão completa em tão pouco
tempo?
Entrevistada: Eu não posso explicar. Posso apenas descrever. Essa explicação precisaria
de uma pesquisa, porque a gente teria que falar de processos criativos, de relações
interpessoais e tantas outras coisas. Pensando em processos criativos, a mim também
surpreendeu a forma como as idéias brotaram... muito rapidamente e muito
definidamente. Eu estava de prontidão para fazer algo. A pergunta que a aluna me fez
me colocou em prontidão, diante da necessidade de fazer alguma coisa. E quando a
coordenadora do CAPS me falou que estavam fazendo colchas, por algum motivo, eu
consegui descobrir a potencialidade daquela atividade para a construção de um
movimento social. Acho que eu percebi essa potencialidade porque eu estava de
prontidão para receber a criatividade e descobrir caminhos que viabilizassem a
concretização de uma necessidade. Acho que o fato de eu ser terapeuta ocupacional me
ajudou muito nessa hora. Uma das coisas que o terapeuta ocupacional faz,
essencialmente, é buscar formas para manifestar concretamente a subjetividade humana
ou realizar produções materiais a partir de potencialidades, a partir de coisas latentes nos
homens. Talvez essa minha formação, esse meu olhar e esse meu hábito de buscar
concretizar coisas a partir de potencialidades ou de latências, tenha me ajudado a ver
aquela possibilidade. O fato é que, quando ela me falou das colchas que estavam sendo
feitas, ficou muito clara a possibilidade de ampliar isso para uma atividade coletiva, na
cidade. O nome do movimento e a poesia, eu me lembro, simplesmente me vieram à
cabeça.
Entrevistadora: Simplesmente!
Entrevistada: Na verdade acho que elas vieram como catálise de algo que coletivamente
já estava acontecendo. Acho que eu pude perceber algo que era uma necessidade
coletiva e encontrar algum canal de viabilidade para essa necessidade. Quando fomos à
prefeitura para encontrar outras pessoas, o que nós esperávamos era poder dividir essa
idéia, verificar possibilidades, encontrar parceiros e buscar forças no coletivo.
Buscávamos, em parte, verificar se a nossa idéia era muito maluca e, em parte, viabilizar
algo que nos parecia viável, mas certamente não era viável só a partir das nossas mãos.
Entrevistadora: Enfim, você não estava mais parada. Você tinha começado a caminhar.
Entrevistada: Isso! Tinha começado a transformar em ação alguma coisa que era latente,
que estava guardada na subjetividade.
Entrevistadora: Essa era a resposta que a aluna queria...
Entrevistada: Talvez. A partir daí, nós três passamos a ser as “coordenadoras do
movimento”: eu, a então coordenadora do CAPS e a aluna, cuja pergunta foi o estopim
da minha criatividade. Essa aluna também é uma pessoa muito criativa. É artista, além de
terapeuta ocupacional. Na verdade, nunca quisemos assumir o nome de “coordenadoras
254
do movimento”. Queríamos apenas cuidar do processo, para que essa idéia fosse
concretizada. Durante muito tempo nos chamaram de coordenadoras, “as mulheres da
colcha”. Resistimos muito a assumir esse nome e esse lugar, porque, desde sempre,
imaginamos que esse movimento não podia ter nenhuma centralizão, não podia ter
nenhum tipo de liderança. Ele deveria manter a sua conformação inicial: espontânea,
auto-organizada, popular e livre. Mas, ao mesmo tempo em que não queríamos ser
coordenadoras, no sentido da liderança, também entendemos, muito rapidamente, que
tínhamos que cuidar para que a idéia inicial não fosse deturpada. Então, melhor que
coordenadoras, nos entendemos como cuidadoras, viabilizadoras, facilitadoras, alguma
coisa nesse sentido. Na verdade, isso deu muito trabalho. É muito difícil cuidar de um
movimento dessa forma. Mas é possível. Foi difícil manter o movimento sem ceder às
características e preocupações partidárias. Sempre tivemos muito claro que esse era um
movimento social popular, mas ele não poderia estar ligado ao Partido dos
Trabalhadores, embora o prefeito fosse do PT, porque ele surgiu espontaneamente da
população. Da população dos serviços de saúde. Mais que isso, da população de
serviços de saúde mental. Isso também é uma coisa interessante de se notar: o fato
deste movimento nascer no lugar da “loucura”... Isso é algo que deve ser pensado. Ele
nasceu no lugar onde vivem e convivem os “loucos”, as pessoas desacreditadas,
segregadas, as pessoas que vêm sendo historicamente excluídas da vida social.
Entrevistadora: Mas verdadeiras...
Entrevistada: Verdadeiras e sofridas. Onde a subjetividade humana é incontestavelmente
humana, incontestavelmente real. Talvez esteja mais uma das possibilidades de se
pensar na potencialidade criadora do homem, na força da subjetividade. Enfim, isso é
assunto para uma outra conversa. Mas acho importante pontuar que essa colcha nasceu
de uma casa de loucos... e tomou conta da cidade! E, considerando que hoje os serviços
de saúde mental visam trabalhar a cidadania e resgatar os laços de vida comunitária do
doente mental, que até então foi excluído da história da humanidade, é importante
ressaltar também o papel daqueles serviços de saúde mental na construção desse
movimento. A proposta de integrar o indivíduo na sociedade não se expressou no fato de
levar o louco para o lugar comum, mas os loucos é que possibilitaram dividir o lugar
comum com toda a comunidade. Isso é muito importante se a gente for estudar a
Reforma Psiquiátrica, que também é um movimento que vem modificando as formas de
compreensão da loucura e do tratamento da doença mental. Mas, voltando para o nosso
assunto, naquele dia na prefeitura, compreendemos que existiam duas possibilidades de
organizar o movimento: uma, como movimento político partidário, e outra, como
movimento social popular e espontâneo. Rapidamente, optamos pela idéia do movimento
social, popular e espontâneo sem vinculação partidária.
Entrevistadora: Essa opção se deu na própria reunião?
Entrevistada: Na verdade, nunca houve uma reunião, no sentido formal. Aquilo não foi
uma reunião, foi uma conversa. Não me lembro de nenhuma “reunião”. Não tínhamos
esse tipo de organização. Lembro-me de muitas e diferentes conversas... muitas
conversas... Nós já tínhamos em mente que o movimento não era partidário, mas isso foi
ficando mais claro lá, quando percebemos que, de fato, este movimento poderia
transformar-se em político partidário. Penso até que algumas pessoas deixaram de
participar por isso.
Entrevistadora: Por quê?
Entrevistada: Talvez porque não concordassem com esse tipo de gestão de movimento
ou não acreditassem nessa possibilidade.
255
Entrevistadora: De liberdade?
Entrevistada: Da liberdade como nós a entendemos. Enfim, as poucas pessoas que
integraram o início do movimento foram suficientes para se ter, no dia seguinte, os
panfletos, as colchas e o microfone para torná-lo público.
Entrevistadora: A rapidez e a assertividade dessa realização me chamam a atenção.
Entrevistada: E sem uma liderança central. Apenas uma idéia que unia as pessoas e em
torno da qual elas se dispunham a fazer as tarefas necessárias. Mas não existia a
determinação de tarefas. Na verdade, as tarefas eram desenvolvidas sem que elas
fossem determinadas por alguém. Eram necessidades, percebidas como tal, por quem as
percebesse. No dia em que o movimento foi anunciado publicamente, tínhamos 3000
panfletos, que foram distribuídos durante a passeata que se dirigiu à catedral para a
missa de sétimo dia. Tamm distribuímos na porta da igreja, na saída da missa. Não
havia mais do que duas ou três pessoas distribuindo esses panfletos. A igreja estava
lotada, a praça da catedral estava lotada, tinha muita gente com bandeiras,
manifestações escritas ou verbais, rituais, enfim, manifestações de todo o tipo. Ali nós
simplesmente distribuímos os panfletos e decidimos que essa divulgação seria feita em
rede: cada pessoa ajudaria a distribuir os panfletos e a falar do movimento para quem
pudesse, do jeito que pudesse. Partimos do princípio que o movimento só aconteceria se
ele tivesse que acontecer... não tínhamos nenhuma certeza. Durante todo o processo de
organização muitas pessoas nos perguntavam se isso daria certo ou não. E nós sempre
ficamos muito tranqüilas em relação a isso, porque, na verdade, ele não tinha que “dar
certo”. O que era “dar certo” naquele movimento? A gente queria reunir pessoas na praça
para fazer uma grande colcha no dia dez. E isso só aconteceria se tivesse sentido para a
coletividade. E se não acontecesse? O que se perderia? Quem perderia? Não havia nada
a perder, a não ser, talvez, a nossa esperança! É... talvez perdêssemos a esperança...
Não havia interesses particulares nesse movimento, nem se tratava de uma campanha
política! Então, decidimos viver esse processo sem a ansiedade para dar certo. Tínhamos
preocupações sobre as possíveis incompreensões e, por isso, cuidávamos das
informações e dos esclarecimentos durante a divulgação. Mas, caminhávamos dispostas
a correr os riscos de nos apresentarmos sozinhas no dia 10 de outubro no paço municipal
com algumas colchas, linhas e agulhas... Pensamos: e daí? O que de mal nisso? E
resolvemos correr esse risco. O máximo que me poderia acontecer era esperar passar
alguns dias para resgatar a imagem da “professora competente” e para enfrentar os ares
debochados da turma que “torcia contra”! Tudo bem! Topei o desafio!
Entrevistadora: Faça um relato da sua participação no movimento ressaltando aspectos
que considera importantes para a sua formação docente.
Entrevistada: Durante as três semanas que antecederam o dia da costura da colcha em
praça pública, as minhas aulas práticas começaram a ser destinadas ao movimento.
Acho que eu tenho uma vantagem na estrutura das minhas disciplinas comparadas a
outras estruturas pedagógicas, que facilitou essa minha ão: o fato de ser terapeuta
ocupacional me possibilita trabalhar com atividades artesanais, artísticas ou lúdicas em
sala de aula. Aliás, a realização de atividades em sala de aula, nas aulas práticas
principalmente, é uma característica dos cursos de terapia ocupacional. Uma das
atividades com as quais eu trabalho com os alunos é exatamente a costura. também
outras modalidades de aulas práticas, mas, de qualquer forma, também nestas aulas se
podem utilizar atividades diversas. Então comecei a trabalhar com os alunos a confecção
de colchas de retalhos. Cada grupo ia fazendo as suas colchas e essas colchas iriam se
juntar às outras colchas e aos outros retalhos, na praça. Todo esse processo foi muito
interessante porque os alunos puderam não realizar a atividade de costura e analisar
seus conteúdos específicos, como também entender o significado daquela atividade num
256
contexto muito maior que era a sociedade, naquele momento histórico que a gente
estava vivendo. Pudemos, inclusive, juntar isso com outras disciplinas, com a disciplina
que discute os movimentos sociais, por exemplo. Não apenas nas aulas práticas, mas
também nas aulas teóricas se discutia o tema. Embora na teoria a gente tenha um
conteúdo específico um pouco mais rígido, um pouco mais fixo que nas práticas, as
associações dos conteúdos específicos com o contexto e com o momento histórico
também eram feitas. Não dava, naquele momento, para se falar do conteúdo, sem se
referir ao sentimento, ao que a gente estava vivendo. Esse passou a ser ao assunto
central daquele s, nas minhas disciplinas. Os alunos participaram com muito ânimo
dessas atividades, mostraram muito interesse. Parece-me que eles aprenderam muito!
Tem o relato de uma aluna, que me marcou muito, e talvez expresse parte da vivência
dos alunos: No dia em que começamos a atividade de costura da colcha, numa aula
prática, cada aluna trazia o seu retalho e, se quisesse, contava algo sobre o retalho
estava trazendo. Essa aluna trouxe algo que, antes de mostrar ao grupo, disse: desde
que sou bebê, tenho um cobertorzinho que gosto muito. Guardo até hoje esse cobertor e
sempre pensei em me dispor dele somente em uma situação muito especial. Trouxe esse
cobertor para colocar nessa colcha! E entregou o cobertor ao grupo. Você percebe o
significado disso?! Coisas muito emocionantes aconteceram nesse processo. Muito
emocionantes. As pessoas colocavam coisas importantes de si naquela colcha...
Algumas escreviam mensagens, outras faziam reivindicações, outras falavam das suas
necessidades políticas, históricas. Enfim, aquela colcha tem a força das subjetividades e
das necessidades humanas! É incrível! Durante todo esse processo, alguns professores
do curso participaram, mas não todos. Ao mesmo tempo em que existia um movimento
muito a favor, também existia um certo estranhamento na Universidade. Várias vezes me
senti olhada com algum estranhamento, como se eu tivesse enlouquecido! Mas ninguém
nunca me contrariou! De fato, era uma coisa muito fora do contexto, fora do padrão, fora
da formatação habitual! Era mesmo uma coisa de louco! Mas eu continuei no meu
caminho, divulgando , falando disso, sempre e onde fosse possível. Sabíamos que o
movimento estava se disseminando, mas não sabíamos onde e como. A gente não tinha
visibilidade disso porque o plano era criar uma rede de multiplicadores. Não tínhamos
visibilidade nem controle. Não sabíamos o que aconteceria no dia 10 de outubro no paço
municipal. Bem, eu marquei minhas aulas no paço. Eu nem fui para a universidade
naquele dia. Eu marquei minhas aulas no Paço Municipal.
Entrevistadora: A tua aula foi na Prefeitura?!
Entrevistada: As minhas aulas do dia 10 de Outubro de 2001 foram marcadas no paço
municipal para fazer a colcha de retalhos. Eu não marquei as aulas na faculdade, eu
marquei as aulas na prefeitura. Naquela época era mais fácil fazer isso, porque o
controle do ponto do professor não era o rígido como hoje. Tínhamos várias atividades
externas no curso de Terapia Ocupacional. Hoje, todo o controle burocrático é maior.
Enfim, marquei minhas aulas ali, com retalhos, linhas, agulhas e tesouras. Eu sabia que
alguns dos meus alunos iriam, outros poderiam faltar como sempre se pode faltar em
alguma aula. Mas muitos foram, muitos mesmo! Alguns outros professores que se
agregaram ao movimento também iriam com os seus alunos. O pessoal dos CAPS
também iria. Um ou outro amigo, com quem a gente ia falando, também iria. E era essa a
visibilidade que a gente tinha. A gente não tinha a visibilidade da rede. Eu comecei a
perceber que esse movimento tinha crescido muito, quando, na véspera do “grande dia”,
a assessora de imprensa da Universidade me telefonou, porque ela tinha sabido do
movimento, mas não sabia exatamente do que se tratava. Entendia que era uma
manifestação que a Universidade estava fazendo, em apoio ao Toninho. eu tive a
possibilidade de explicar-lhe que, na verdade, não era um movimento da Universidade, e
sim um movimento de pessoas da Universidade junto com pessoas de outras instituições.
Pude explicar-lhe o movimento. Ela gostou muito da idéia, gostou muito mesmo, e disse
que passaria isso à imprensa da cidade para fazer a cobertura do movimento no dia
257
seguinte. Nesse dia eu tive a noção de que esse movimento tinha crescido e estava
sendo conhecido e tive também uma grande preocupação porque, a partir de então, a
imprensa apareceria para registrar o que a gente nem sabia se aconteceria ou não. E é
importante dizer que, até então, a imprensa não tinha se manifestado, embora alguns dos
multiplicadores do movimento tivessem tentado fazer a notícia circular pela mídia. A
imprensa não ajudou na chamada do movimento, antes do dia dez. Eu até imagino que
seja pelo fato de não ter ninguém que respondesse pelo movimento, não tinha um líder,
não tinha um nome, não tinha um responsável, um partido ou uma entidade, não tinha
nada. Eu imagino que divulgar algo assim fosse difícil mesmo. Um movimento, talvez,
desacreditado ou desacreditável. Então não foi divulgado. No dia dez, às nove horas da
manhã, como previsto, a imprensa estava toda ali. A imprensa escrita, a imprensa do
rádio e da televisão estavam ali, no paço municipal. Algumas pessoas também
estavam ali, com sacolinhas na mão, esperando alguma coisa acontecer e quando
chegamos e começamos a abrir as colchas, a estendê-las no chão, as pessoas foram se
aproximando lentamente. Assim começou o dia. A imprensa nos entrevistou, tivemos a
oportunidade de explicar a idéia e os princípios do movimento e nesse dia eu acho que a
imprensa nos ajudou muito porque a notícia veiculou pelo rádio e pela televisão. Acredito
que muita gente acabou indo à praça por conta dessa notícia, nos jornais regionais.
Acabei aparecendo na televisão como “coordenadora do movimento”! Era tudo o que eu
não queria! Tentei, mas não consegui evitar! O fato é que o movimento foi crescendo,
crescendo. Aquela colcha foi crescendo, crescendo, assim como foi crescendo o número
de pessoas que ia chegando... Durante o processo de costura da colcha, eu tive o que
considero um dos maiores aprendizados da minha vida pedagógica, terapêutica e
também social. Uma vivência muito simples, mas que me deu a possibilidade de uma
grande transformação, não só no nível da compreensão e da racionalidade, mas também
no nível da ação. Tive um insight, uma vivência tão forte, que a minha ação mudou.
Mudou no que se refere ao gerenciamento das relações, principalmente. Além de ser
professora e terapeuta ocupacional, exerci vários cargos administrativos durante a minha
vida profissional. A gestão é uma coisa que me interessa, sempre me interessou. Não a
administração no sentido burocrático, mas a administração de pessoas, de conflitos, de
relações. As administrações que a gente faz na terapia, na educação, e tamm na
gerência de instituições. As relações interpessoais e as dinâmicas institucionais sempre
me interessaram muito. E com isso, tamm me interesso, inevitavelmente, pela análise
das relações de poder. O que aconteceu? Quando a colcha começou a ser costurada,
quando nós dispusemos pelo chão as colchas que já estavam prontas para serem unidas
e daí continuar a costura das outras colchas e dos retalhos, nós as dispusemos de tal
modo que o início ficasse reto, que ficasse uma linha reta definindo o começo, a partir de
onde ela teria então continuidade. Esperava que a costura se desse dali para frente! Veja
que presunção! Que idéia de ordem! Hoje acho isso muito engraçado, mas no dia era
sério! Provavelmente, aquela obsessividade denunciava meus vícios de professora e de
terapeuta! Acho que professores e terapeutas aprender a controlar... a comandar o
processo! Sei lá! A gente tem essa mania, tem o hábito, tem a petulância de achar que a
gente pode controlar o processo das pessoas e definir formas de organizão para a
ação das pessoas! Eu acreditava que aquela tarefa me competia! E eu, naturalmente,
esperava que a colcha se construísse dali para frente, respeitando a linha reta inicial.
Entrevistadora: Na lógica...
Entrevistada: Na lógica cartesiana, tradicional, é claro! Uma colcha retangular com o
começo neste ponto e o fim, linearmente definido, daqui para lá. Aí aconteceu,
felizmente, algo muito engraçado: uma pessoa chegou com seu retalho e, naturalmente,
colocou o retalho exatamente do lado contrário da linha inicial. Ou seja, ela colocou seu
retalho sozinho, do outro lado da linha, desmontando toda a linearidade e a ordem que eu
havia estabelecido! Que atrevimento! Aquilo me incomodou profundamente! É verdade!
Incomodou profundamente! Se não me engano, essa mulher era uma usuária de CAPS.
258
Não me contive e lhe falei, educadamente, gentilmente, tentando esconder meu
autoritarismo: não seria melhor colocar este retalho ali? Em outro lugar?
Entrevistadora: Para lá da linha?
Entrevistada: Claro! Não podia atravessar a linha! Não podia desmontar toda a ordem!
Como é que ela queria deixar um retalho solto, sozinho, para lá da linha?
Entrevistadora: E ela tirou o retalho?
Entrevistada: É claro que não! Por sorte! (gargalhadas). Ela apenas me olhou. Apenas!
Mas foi um olhar tão sério que eu entendi tudo! Entendi mesmo! Eu nunca mais fui a
mesma pessoa depois daquele olhar! Mas, mesmo entendendo tudo, eu continuei
ansiosa com a organização da colcha. Embora eu pensasse em auto-organização, em
gestões democráticas e participativas... Embora eu brigasse pela não liderança central e
embora eu tivesse começado a estudar teorias que rediscutiam e criticavam o modelo
cartesiano de pensamento, devo admitir que, até então, tudo isso estava no nível da
racionalidade. O fato é que na minha subjetividade, eu estava extremamente ansiosa
pela organização linear daquela imensa colcha. Ainda não estava processada a
integração real entre o discurso e a ação, entre a razão e a emoção. Eu fiquei um bom
tempo tomada por isso, querendo ver como essa organização se dava. E ela foi-se dando
caoticamente, ao mesmo tempo organizadamente, porque as pessoas iam chegando e
colocando retalhos aleatoriamente. Para sorte minha e da própria colcha, depois de
algum tempo eu fui retirada daquele espaço: meu marido me levou para almoçar... Eu
estava obstinadamente envolvida no processo de construção da colcha e, obviamente,
ansiosa. Ele me retirou dali... Foi um almoço demorado porque encontramos a Roseana,
a esposa do Toninho. Enfim, fiquei aproximadamente duas horas longe da colcha. E
quando voltei, acho que aprendi algumas coisas muito importantes para a minha vida.
Surpreendentemente, a colcha tinha crescido muito, muito! E, mais surpreendentemente
ainda, ela estava quase que perfeitamente retangular! Ela estava organizada, dentro
daquela grande desorganização, e sem nenhum controle. Ela aconteceu por si só! E,
felizmente, eu nem estava lá... Não corri o risco de atrapalhar esse processo! Nesse dia,
passei a acreditar, de fato, na auto-organização. Dentro do caos, numa dada organização
e na ausência de um controle, a colcha se fez.
Entrevistadora: Rapidamente e efetivamente!
Entrevistada: É... rapidamente e efetivamente! Eu entendi o quanto, apesar de lutar
contra, eu ainda era controladora. E percebi, depois disso, o quanto eu, de fato, deixei de
ser controladora. Na verdade, acho que foi um processo de auto-cura! Deixei de ser
controladora! Depois disso, mudei as minhas atitudes nas relações com os alunos, com
os pacientes, na relação com a vida. Essa vivência foi muito forte e mudou a minha
prática, para além do discurso de uma racionalidade que me era muito conhecida.
Acho que esse foi o aprendizado mais importante desta experiência. Mas não foi o único.
Houve muitos outros aprendizados, muitos outros. Eu trabalho muito com grupos (grupos
de alunos, equipes multiprofissionais, etc.) e a metodologia da construção da colcha de
retalhos e das relações decorrentes daquela atividade coletiva tem me ajudado no
trabalho com essas relações grupais. Não apenas a partir da discussão do movimento,
mas também a partir de exercícios práticos de construção de diferentes colchas de
retalhos. Venho desenvolvendo essa metodologia com diferentes grupos e venho
percebendo resultados muito satisfatórios, pois, a partir desses exercícios podemos
perceber e analisar inúmeras possibilidades de relações grupais e construir muitas
metáforas. Depois disso eu estudei muito. Aprofundei meus estudos sobre a
complexidade, porque ela me ajudava a entender aquilo tudo. Acho que depois desse
259
movimento eu descobri o meu caminho teórico. Tenho muito interesse pelo estudo de
processos criativos e auto-organizadores.
Entrevistadora: Isso se espelhou na tua relação com os alunos? Eles te deram o
feedback?
Entrevistada: Sim. Acho que sim, embora eu não lhes tenha feito essa pergunta de modo
tão direto. Eu tenho desenvolvido, ao longo do tempo, uma relação com os alunos que
nos é muito satisfatória, a mim e a uma grande parte dos alunos. Eu percebo isso, muitos
alunos manifestam isso. É claro que também existem divergências, discordâncias e
conflitos, mas existe uma relação muito forte com os alunos. Hoje me percebo mais
espontânea na relação professor-aluno. Os alunos costumam reclamar de minha
seriedade e de algum distanciamento... é possível, mas, no fundo, acho que é timidez
mesmo (nunca disse isso a eles, mesmo porque eles não acreditariam!). Eu acho que
hoje sou mais espontânea como professora e, obviamente, quando você é mais
espontânea, o outro também tende a ser mais espontâneo e a relação fica mais fluida.
Apesar disso, sempre tive avaliações positivas dos alunos. Fico pensando que essa
divergência entre o discurso e a ação diminuía a minha espontaneidade e alimentava
uma certa rigidez, talvez pela necessidade de manutenção de um lugar de controle. Não
sei exatamente. Mas acho que hoje sou muito mais espontânea e sinto que o retorno dos
alunos também é mais espontâneo. Eles têm reclamado menos do meu distanciamento e
da minha seriedade. Na verdade, isso é uma contradição, pois mesmo quando eles estão
falando do meu distanciamento, estamos muito próximos!
Entrevistadora: Quando você fala da tua postura e da tua atuação como professora, eu
me lembro do Toninho, como meu professor. Eu fui aluna dele na faculdade de
Arquitetura. Tem um fato que realmente me marcou e cuja movimentação foi muito
parecida com essa que você diz que se criou na faculdade com a colcha. Um dia
chegamos à faculdade de manhã... e havia uma movimentação diferente do habitual. As
pessoas corriam das outras faculdades em direção ao prédio da Arquitetura, uma
agitação que a gente não entendia. Havia uma mulher nua na sala de aula! O Toninho
havia trazido um modelo vivo para sua aula de desenho! E eu pensei: Como? O Toninho?
Porque o Toninho tinha essa característica: a gente percebia uma cobrança interna muito
forte com o cronograma, com o programa, em fazer tudo certo... mas, ao mesmo tempo,
a gente sentia que ele também tinha vontade de extrapolar! Eu sei que a modelo estava
fazendo o seu trabalho, ela estava no meio da sala e as pessoas estavam desenhando...
tudo certo! Mas isso criou uma confusão! O diretor da faculdade tentou interferir e o
Toninho manteve sua posição: o objetivo daquela aula era desenhar a modelo e era isso
que ele ia fazer, independente do que aquilo poderia significar para a faculdade! A mulher
ficou e todo mundo desenhou. O que quero dizer é que não acreditei que o Toninho é
quem tinha levado a mulher... Essa dualidade era presente no Toninho. Outra coisa que
me marcou muito é que o Toninho nunca mudou seu jeito de tratar as pessoas, mesmo
depois que chegou ao poder... Por essa razão sou, até hoje, exigente com os políticos.
Quando o mataram, eu entendi por quê. Ele era uma pessoa livre. Ele falava o que tinha
que falar e, acima de tudo, sem medo. Não podia ser assim.
Entrevistada: Eu acho que a potencialidade do movimento Tecendo a Paz, a costura
daquela cocha, foi gerada exatamente pela postura e pela figura do Toninho, pelo que ele
simbolizava no imaginário popular. Na verdade, o que se perdeu, o que mataram além do
Toninho, foi a possibilidade de se ter na política a mesma dignidade, a mesma liberdade,
a mesma transparência que ele tinha. Mataram muito mais que uma pessoa. Mataram a
liberdade.
Entrevistadora: Mataram a liberdade...
260
Entrevistada: Você falou da dualidade do Toninho. Eu praticamente convivo com
dualidades desde que me conheço. Acho que juntar retalhos, estudar a diversidade,
estudar a complexidade tem muito a ver com a minha eterna convivência com a
dualidade. Hoje eu vejo que não preciso escolher um dos lados, é possível conviver com
a ambivalência e com a dualidade. Tudo isso pode existir junto.
Entrevistadora: Você já falou de todas as fases em que participou do movimento?
Entrevistada: Durante o dia da costura da colcha nós estabelecemos alguns diálogos com
a prefeita. Nós tínhamos a expectativa de manter o movimento e marcar encontros para
todos os dias dez de cada mês para continuar essa colcha. Queríamos que ela se
transformasse num símbolo para caminhar pela cidade, ser exposta em diferentes locais
públicos. Tínhamos a expectativa de entregar essa colcha para a prefeita, por
entendermos que ela seria a continuidade do Toninho e que o poder público estava
legitimado. O fato é que ao final do dia, e somente ao final do dia, a prefeita desceu para
falar ao microfone, diante da colcha. Ela não participou do processo de construção da
colcha, mas desceu ao final do processo para falar no microfone e fazer a proposta de
continuidade do movimento, valorizando a sua potencialidade. Depois a colcha foi
levantada em passeata e a prefeita foi à frente, falando ao microfone sobre alguns
programas de seu governo. Não era momento para isso! A colcha chegou ao Largo do
Rosário, unindo-se a outro ato, organizado pela prefeitura, e a colcha foi então entregue à
prefeita. Ela mesma sugeriu que se cobrisse o Palácio dos Jequitibás com a colcha,
substituindo a faixa preta de luto que ali estava. Essa idéia foi acolhida por todos... A
gente esperou que isso acontecesse e não aconteceu. A chegada da prefeita no final do
movimento e seus encaminhamentos, provavelmente, deram ao movimento um caráter
institucional. Não prevíamos isso na época, mas depois, analisando, vimos que isso
aconteceu. O fato é que a colcha ficou na prefeitura depois de ser entregue à prefeita ali
no palco onde ocorreria um show. Quando a colcha chegou à praça, em passeata, conta
quem ali estava (eu estava debaixo da colcha) que a multidão abriu um clarão para que a
colcha entrasse e se posicionasse diante do palco. Ali ela foi estendida e, sem nenhuma
palavra de ordem, sem que ninguém dissesse o que fazer, as pessoas a colocaram no
chão, aplaudiram e a dobraram solenemente como se dobra uma bandeira!
Entrevistadora: Fico emocionada!
Entrevistada: E depois de dobrada ela foi entregue à prefeita. A foto da chegada da
colcha na praça foi registrada nas primeiras páginas dos jornais da cidade. Foi um
momento de muita emoção. Foi um momento que simbolizou a entrega da cidade unida e
de sua potencialidade coletiva ao poder público que se entendia, então, legitimado. A
idéia era Mataram o Toninho, mas não mataram a possibilidade da gestão coletiva.
Infelizmente a história, depois, veio mostrar que mataram sim. Mataram a gestão coletiva.
Entrevistadora: Mataram a gestão coletiva!
Entrevistada: E a colcha ficou institucionalizada. Não me disponho a fazer essa análise,
mas é necessário contar a história até o final. Depois que ela ficou guardada na
prefeitura, nós (as “coordenadoras”) insistimos para que ela fosse pendurada aberta no
prédio, cobrindo o Palácio dos Jequitibás, como a própria prefeita tinha sugerido.
Começou um entrave técnico de como pendurar, como não pendurar. Várias pessoas
ofereceram ajuda técnica para pendurar a colcha, mas, a partir do momento em que ela
estava na prefeitura, isso passava por trâmites setoriais e burocráticos, de modo que o
acesso do povo, de nossos amigos arquitetos e engenheiros não era tão fácil. A colcha
tinha que ser colocada no prédio, por um departamento, por um setor específico da
prefeitura. Depois de algum tempo, depois de um bom tempo, essa colcha então aparece
a público. Ela aparece a público não como uma grande colcha estendida, porque na
261
verdade essa colcha tem valor pelo seu tamanho. Uma colcha de retalhos de 250 m²
construída em praça pública, em um único dia, vale pelo seu tamanho, que revela a
potencialidade do trabalho coletivo, mesmo diante da diversidade! Isso tinha que ser
visível, a colcha precisava ser mostrada aberta, em sua grandiosidade. Mas, de repente,
ela apareceu como um bandô de cortina na marquise do paço municipal. Um bandô que
dobrou a colcha, amassou, amarrou e escondeu seus retalhos, perdendo toda sua
visibilidade. Isso provocou uma grande frustração em todos. Para mim, foi uma
decepção: não consigo dissociar do bandô de cortina, a idéia da burguesia francesa!
Então, esse “aburguesamento” da colcha, foi demais para mim! Muita gente ficou
decepcionada com isso. Algumas pessoas se sentiram agredidas. Enfim, negociamos a
retirada da colcha da prefeitura... não foi muito fácil. Quando a resgatamos, ela estava
embolorada! O bolor da colcha foi outra grande decepção! Um dia a coordenadora do
CAPS conseguiu resgatar e transportar a colcha para aquele serviço de saúde mental
onde ela nascera. A colcha precisava ficar aberta para secar, mas ela era maior do que a
casa onde funcionava aquele CAPS! A colcha não podia ficar lá, porque ela ocupava
muito espaço. Então resolvi trazer a colcha para o porão da minha casa que, naquela
época, ainda não era casa... era uma obra, mas havia um porão bem ventilado. Ali essa
colcha ficou guardada por quase dois anos, livre de traças e bolor. Sempre pensávamos
em fazer alguma coisa, mas não foi possível retomar o movimento e encontrar um
destino para ela. Até que, quando a Roseana resolveu fazer uma solenidade celebrando
o segundo ano da morte do Toninho, resolvemos entregar-lhe a colcha. Quem poderia ter
a representatividade popular e política, mas não institucional da colcha? Atualmente essa
colcha caminha, em alguns eventos, alguns protestos, algumas manifestações da ONG
“Quem matou Toninho?”, um grupo que tenta desarquivar o processo e recuperar a
discussão sobre esse crime.
Entrevistadora: O pessoal dobrou a colcha com todo o cuidado, entregou a colcha ao
poder público, entregou o que cada um tem de melhor, e disse: Cuide disso... É o que a
gente espera que um governo faça. Mas, depois que ela entrou pela porta da prefeitura,
não havia mais comunicação! Como não existia comunicação, não se podia perceber o
valor que a colcha tinha... o valor nascido do mais íntimo das pessoas! Voltando às
questões, como você avalia a importância do Movimento Tecendo a Paz para a
população e para os alunos do curso de Terapia Ocupacional da PUC-Campinas?
Entrevistada: Para os alunos, acho que já respondi. Do engajamento deles, da
possibilidade de estudar conjuntamente conteúdos específicos, técnicas e o contexto
social, através do movimento. E tamm da melhoria da qualidade da relação professor-
aluno. Para os usuários dos serviços de saúde mental, percebemos muita melhora nas
suas relações cotidianas, na sua auto-estima. Alguns se sentiram muito importantes pela
proximidade com a prefeita. O trânsito pelo espaço público, a proximidade com o poder
público parece que foi muito bom. Para a população, acredito que tenha possibilitado a
expressão de sentimentos individuais e coletivos e revelado a potencialidade de uma
proposta de gestão coletiva. Essa colcha revela muitas coisas, esse processo foi um
grande aprendizado. Não sei a extensão desses aprendizados, mas sei que muitas
pessoas sempre me diziam: aprendi muito com esse movimento!
Entrevistadora: Mais alguma consideração?
Entrevistada: Gostaria que essa colcha pudesse, um dia, fazer parte de alguma
exposição, de algum museu, de algum memorial. Gostaria que ela pudesse ficar
preservada como memória da potencialidade do trabalho coletivo, mesmo diante da
diversidade.
Entrevistadora: Gostaria de agradecer a oportunidade de participar deste trabalho. Isso
está sendo muito importante para mim. Também acabei estudando esse movimento, que
262
me foi muito significativo. Vou falar a mesma coisa que as outras pessoas falaram: eu
também aprendi muito com esse movimento. Aprendi muito com isso tudo.
Entrevistada: Eu é que agradeço por me entrevistar, por transcrever as entrevistas, por
participar da costura da colcha e por fazer isso tudo com tanta motivação. Muito obrigada!
263
ANEXO X
264
ENTREVISTA 5 – E.5
Nome (iniciais): B.R.F.
Idade: 57 anos
Sexo: feminino
Profissão: terapeuta ocupacional
Disciplinas ministradas na Faculdade de Terapia ocupacional no semestre de 2001:
Atividades e Recursos Terapêuticos I e II teóricas e práticas.
Tempo de docência: 25 anos (desenvolveu atividades docentes até 2002, não estando
mais ligada à universidade desde então)
Atividades profissionais no momento: coordenadora da Coordenadoria da Mulher da
Prefeitura Municipal de Campinas e responsável técnica pelo convênio de cooperação
internacional com a Comunidade Européia “Rede URBAL-12: Observatório
Intercontinental de Liderança de Mulheres no Âmbito Local”.
Data da entrevista: 06 de novembro de 2006
Entrevistadora: Você participou do movimento Tecendo a Paz em pelo menos uma de
suas fases, ou seja, organização, divulgação, costura da colcha, passeata, utilização do
material em sala de aula? Quais?
Entrevistada: Sim. Participei da costura da colcha e da divulgação. O grupo havia feito
um folder e ajudei a divulgar, não aos alunos de Terapia Ocupacional. A divulgação se
deu passando de pessoas para pessoas, para quem eu tinha contato. Explicava que
haveria uma passeata, qual era o sentido do movimento, como ele nasceu... porque o
folder contava um pouco a história do movimento. Mas eu participei, realmente, da
costura da colcha, da construção dessa colcha no paço municipal. E foi interessante que
aquele era um momento em que eu estava me afastando da universidade, não estava
mais dando aulas na Terapia Ocupacional.
Entrevistadora: Você quer dizer que você não era mais do corpo docente fixo da
universidade? Que você, naquele momento, tinha um contrato temporário?
Entrevistada: Naquele momento eu estava ministrando algumas aulas temporariamente,
como substituta, pois havia me desligado da universidade algum tempo. É
importante ressaltar que eu não vim ao paço municipal costurar a colcha simplesmente
pela Terapia Ocupacional. Não era uma simples colcha. Eu vim na perspectiva de fincar
um fato social naquele momento, através de uma outra forma de mostrar que a gente
pode constituir um fato e trazer esse fato para que o povo veja o que é e sinta vontade de
participar. Eu lembro de algumas pessoas que passavam pelo paço e perguntavam se
podiam costurar também. Eram pessoas que estavam vindo ao paço municipal para
resolver algum problema na prefeitura. Não eram pessoas que sabiam do movimento,
que vieram para participar. Eu acho que o mais importante foi essa construção. Eu não
vim como docente. Eu vim pelo movimento social. Apesar de profissional e educadora, eu
vim pelo movimento social e isso é uma característica muito pessoal.
Entrevistadora: Você veio como cidadã?
Entrevistada: Como cidadã
Entrevistadora: Naquele contexto você era docente e terapeuta ocupacional...
265
Entrevistada: Era docente e terapeuta educacional, mas a participação foi como cidadã.
Entrevistadora: Quais os motivos, além desse, que te levaram à participação naquele
movimento?
Entrevistada: Eu tenho uma história de lutas, não só nos movimentos sociais, mas
também de lutas dentro da nossa própria categoria profissional, dentro da própria Terapia
Ocupacional. A história de nunca estar conformada com os métodos, com as técnicas,
com os procedimentos da prática profissional... A história de nunca estar conformada
com as metodologias utilizadas no ensino universitário, não na minha área... Eu acho
que isso é uma característica pessoal. Existe uma história de vida que se junta com os
motivos que me levaram a participar do movimento, que são motivos muito pessoais. Em
primeiro lugar, não existe educação, não existe saúde, não existem profissionais
técnicos, se eles não tiverem um envolvimento enquanto cidadãos. Eu não sou num
momento a profissional e noutro momento a pessoa. Eu sou uma pessoa e sou cidadã e,
por um acaso, por felicidade, tive a oportunidade de estudar, de fazer uma universidade
naquilo que eu queria fazer. Eu digo felicidade porque no nosso país a estrutura
educacional é complicada. Vim de uma família pobre que não teria condições de pagar
uma universidade e consegui entrar numa universidade pública. Usufr muito da
universidade pública porque, como cidadã, eu sabia que quem pagava a universidade
não era eu, mas era a população com seus impostos. Fiz o possível numa fase difícil da
minha vida: levava o filho de seis meses no colo para ficar comigo na universidade, para
fazer o curso. Eu acho que o que me levou ao movimento, quando você apontou Vamos
fazer a colcha , vamos no dia 10... se você quiser ir, apareça, foi essa história de
acreditar que a atividade humana coletiva, não precisa ser com um terapeuta
ocupacional, não precisa ser com um profissional instrumentalizando, ela muda o mundo.
Ela muda. Essa é uma crença! Acredito que a atividade levada no coletivo, não importa
se os sujeitos têm objetivos diferentes, mas se tiver um objetivo que una o grupo... ela
muda.
Entrevistadora: A atividade tem a forca da mudança do mundo, da transformação da
realidade.
Entrevistada: Exato. Claro que não a atividade isolada, solitária, mas a atividade coletiva.
Qualquer produção coletiva muda e transforma, para o bem ou para o mal. Agora, a
gente precisa ver para onde vai caminhar e fazer fluir, mas ela muda. Usando alguns
exemplos mais atuais: eu sempre fui contra as cotas: cotas para negros na universidade,
cotas para índios, cotas para mulheres, etc. que, ao longo do tempo, a questão das
cotas traz uma mudança, as pessoas vão conseguindo perceber que aquelas minorias
teriam que ter mesmo, num determinado momento, a possibilidade de adentrar naqueles
espaços. É uma questão cultural. Você coma a ter a possibilidade de perguntar-se:
Porque a maioria dos negros não estuda nas universidades públicas? Porque não tiveram
a oportunidade de ir para um colégio particular? Não tiveram a oportunidade de absorver
a cultura oficial?
Entrevistadora. Você está falado em cultura como uma construção cognitiva, de valores
da realidade social. E que um fato, uma lei, um evento, alguma coisa pode, mesmo que
não tenha um efeito imediato, levar a um processo de transformação cultural da
sociedade...
Entrevistada: Isso... do próprio grupo! Hoje eu sou uma das lutadoras pelas cotas, para
que ela seja o início de um processo, e que essas minorias não precisem mais daqui a
um tempo estar trabalhando com cotas. Eu acho que o que me levou a isso foi a
docência, foi o fato de trabalhar com mulheres a vida inteira. O curso de Terapia
Ocupacional tem essa característica: por lidar com atividades humanas e ter uma história
266
em que as atividades que ali estavam inseridas eram sexualizadas para o gênero mulher
(se é assim que a gente pode falar) e por não ser uma profissão considerada de primeira
classe, então 99,9% eram sempre mulheres. Nós sempre lidamos muito com as alunas,
com as mulheres. Acho que foi daí que eu trouxe a bagagem para estar na atividade que
estou hoje. Então, se eu tiver que discutir atividade humana, atividade e gênero,
atividade, raça e etnia, que são as coisas que passam pela minha cabeça, a discussão
vai por um outro caminho. A discussão perpassa mesmo pela questão de gênero, pela
questão da raça, da etnia, da orientação sexual. Eu digo que o que eu estou fazendo
hoje veio enriquecer esse meu espírito. Não sei quando ele vai mudar! Não sei até
quando vou estar sempre insatisfeita e sempre querendo encontrar a melhor maneira de
poder deixar o mundo mais humano. Acho que o que a gente faz é para humanizar o
mundo mesmo, não é nada além disso. É para humanizar as relações. Eu sinto que o
trabalho, principalmente na nossa categoria profissional, lida diretamente com o sujeito
que es na construção da vida... reconstruindo cotidianamente a sua possibilidade de
vida. Não se trata de fazer um exercício funcional... O atendimento na nossa área é
extremamente enraizado no sujeito, naquela pessoa.
Entrevistadora: E na cultura?
Entrevistada: Consequentemente. Porque aquele sujeito representa a cultura,
infelizmente, ainda a cultura da classe social em que ele vive. Infelizmente. Mas que no
processo de terapia ocupacional, ele pode absorver, sorver mesmo, se deliciar com a
possibilidade não de retomar a sua vida cotidiana de uma forma diferenciada (pois
muitas vezes as incapacidades estão presentes), mas ele pode aprender e reaprender a
partir de suas próprias experiências, numa relação com as atividades que você
disponibilizar. E quando você disponibiliza a atividade humana, você disponibiliza a arte,
a cultura, o lúdico. A gente disponibiliza aquilo que um ser humano precisa. A gente não
disponibiliza um joguinho, uma atividade de costura. Se a gente for discutir o “Tecendo a
Paz”, a colcha, nós não estávamos ali simplesmente para emendar pedaços de tecido ou
para enfiar o fio na agulha e ficar costurando...
Entrevistadora: Havia um sentido
Entrevistada: Um sentido, um sentido amplo... Nós estávamos ali para juntar os pedaços.
Eu acho que, naquele momento, o sentido foi juntar os pedaços de um povo que havia
eleito o seu prefeito, que tinha acreditado na possibilidade e que perdia a figura maior do
seu município... Não tem jeito... o mandante maior do município, o sujeito que foi eleito
pela população, com uma vantagem imensa de votos... um sujeito que as pessoas
acreditaram e que estava construindo um processo... morre! A colcha, para mim,
representava: “vamos juntar os cacos?” Mas juntar os cacos de modo que a gente possa
dar continuidade a esse processo, acreditar que é possível e, acreditando que é
possível... realmente transformar um pouco esse município. Pra mim, a colcha teve esse
valor. Quando a gente oferece ou se propõe ou propõe a alguém um leque de materiais
para que a pessoa possa ver o que ela quer fazer... você está oferecendo... Noutro dia eu
estava escrevendo um texto e fiz uma frase que ficou muito bonita... Eu me senti na
Terapia Ocupacional, sendo docente, participando dos movimentos sociais e das
atividades, como aquela cozinheira que vai para a cozinha, prepara uma coisa gostosa
que sabe que as pessoas vão gostar e tem o prazer de oferecer... Oferecer ao outro a
possibilidade de saborear coisas... Oferecer... entendeu?
Entrevistadora: Quando você diz isso, eu lembro que, enquanto eu pensava o movimento
Tecendo a Paz, no momento em que ele era concebido, quando eu pensava no nome e
na poesia do movimento, eu estava cozinhando... e, enquanto eu cozinhava, esse nome
e essa poesia surgiam espontaneamente, sem o menor esforço...
267
Entrevistada: Exatamente... é que vem mesmo! Os motivos para participar do
movimento... tem um eixo... o motivo é ser cidadã e se lançar a participar dos
movimentos sociais que aí estão!
Entrevistadora: Você fala de produção de cultura enquanto construção de valores e
compreensão de mundo, ou seja, uma transformação na esfera cognitiva, a partir de
atividades e fatos, principalmente coletivos e sociais. Você acha que a colcha, enquanto
símbolo, e a costura daquela colcha, enquanto atividade, contribuíram para a construção
cultural, no sentido que você dá à cultura?
Entrevistada: Eu acho que teve um sentido enorme, tanto que houve uma captação
inadequada do próprio movimento e da construção da colcha. Daí aparecerem milhares
de colchas nas comunidades, não como desejo ou como oferta da possibilidade de
participação, mas como Olha! Funcionou!... E isso é terrível! Tanto houve que, não o
grupo envolvido, mas o poder da cidade usou o movimento inteiro de uma forma
inadequada. Usou. Fez uso do movimento... e essa é uma coisa que eu não suporto!!
Porque isso é mudar o que foi transformado. São inferidos outros princípios no
movimento, e, a partir daí, acho que as pessoas que estavam mais envolvidas, também
tomaram “um banho de água fria”. Mas não era isso o que a gente queria! A gente
queria que fosse absorvido do jeito que ele estava, que pudesse ampliar isso nas
comunidades ... Esse uso, para mim, foi perverso, porque quiseram revestir de uma
determinada ideologia, um movimento que foi pensado a partir da necessidade de um
grupo de pessoas para trabalhar com o seu sofrimento pela perda de seu prefeito e para
mostrar a força da reunião de pessoas, do agrupar pessoas, do trazer as pessoas para
conversar sobre isso... Eu lembro que no dia da colcha a gente conversava sobre a
morte do Toninho... a gente não falava da cor da linha ou do tecido... estava todo mundo
muito sensibilizado ... Esse uso que fizeram do movimento foi inadequado... inferir uma
determinada ideologia para dizer - olha o movimento popular faz! ...Não é o movimento
popular que faz... Mesmo porque a gente precisa discutir o que é movimento popular... e
o que é comunidade, o que são as lideranças hoje nas comunidades de Campinas... As
lideranças são, o tempo inteiro, manipuladas e manuseadas de acordo com os interesses
partidários neste país... É tudo isso que a gente precisa olhar com clareza...
Entrevistadora: Você acha que a colcha foi usada como peça publicitária?
Entrevistada: Com certeza!
Entrevistadora: Há uma questão que, embora não esteja sendo discutida nesta pesquisa,
ela tem perpassado a maioria das entrevistas. Acho que essa questão gera uma
demanda que poderá ser melhor analisada em outra pesquisa. Mas, vamos, ao menos,
pontuá-la como necessidade de reflexão: Nós tínhamos a expectativa de que esse
movimento tivesse alguma continuidade, no entanto, após o grande dia 10 de outubro, o
movimento foi se perdendo, a colcha foi ficando escondida e as pessoas
desaparecendo... Você concorda com a idéia de que a colcha passou a ser
institucionalizada e, a partir do processo de institucionalização, ela perdeu então a
autenticidade popular que lhe marcava?
Entrevistada: Com certeza. A partir do momento em que você traz para dentro da
instituição, infere uma determinada ideologia, infere e faz uso disso... (os marqueteiros”
devem saber bem como se faz isso... e nós não sabemos)... isto é muito complicado. À
medida que você institucionaliza a construção de um grupo, a construção que vem do
povo, eu digo que a gente costuma emoldurar, encaixotar, trancafiar... eu sinto que
268
passa pela cabeça das pessoas... não é mais aquilo... agora a instituição vai fazer
como ela quiser.
Entrevistadora: Houve uma ingenuidade da nossa parte naquele momento do movimento,
talvez...
Entrevistada: Eu não sei... Eu não diria que é ingenuidade. Porque os movimentos
quando surgem, surgem a partir de um fato, de uma necessidade de um grupo se rebelar
contra um fato acontecido e, em momento algum o grupo de pessoas pára para pensar
se aquilo que eles estão fazendo vai ser usado por outros... Acho importante mostrar
para a população daquele espaço, daquele lugar, que é possível fazer e que a gente tem
desejo e que a gente quer isso. Então nesse momento a gente não pensa... Não é que
seja ingenuidade, é que o grupo tem uma força tamanha, que ele acredita que vai dar
conta! Isso não é ingenuidade. É uma possibilidade...
Entrevistadora: ... a ser melhor desenvolvida na nossa sociedade...
Entrevistada: Com certeza! Porque se você pega os movimentos fora... até em países
pequenos aqui próximos... quando você vai para a rua, você põe 10.000 pessoas, à
vezes o movimento começa com 15.000. O povo vai, se organiza, faz o movimento. Às
vezes o movimento recua por muito tempo, parece que se perdeu, mas, como na música
do Chico, as sementes ficam. Então esse é um movimento, o Tecendo a Paz, que surgiu
num determinado momento... vamos construir uma colcha e juntar os pedaços... porque
podemos... Ele vai ressurgir não como uma colcha, mas como diferentes outras
atividades, porque as sementes foram espalhadas.
Entrevistadora: Sementes culturais?
Entrevistada: Com certeza. Sementes de valores e de possibilidades...
Entrevistadora: Ao mesmo tempo em que essa colcha revelou e revela as possibilidades
do coletivo, a força do grupo e a força da atividade, ela também revela a distância, o
abismo, a ruptura, a cisão que existe entre a populão e o poder público.
Entrevistada: Com certeza absoluta! Vou te falar de um ponto de vista: eu estou no poder
público hoje, estou numa posição de poder... para construir política pública para
dar continuidade aos desejos que surgem da população... não é nos orçamentos
participativos não, não é na pseudo participação popular... essa não é efetiva... São
pequenos grupos ideologicamente instrumentalizados, com determinados valores, que se
juntam a outras pessoas e as trazem para os movimentos... porque, se nós tivéssemos o
“par e passo” do movimento popular e do poder público... se o poder público realmente
ouvisse os desejos e as possibilidades da população... porque a população, quando fala
em desejo, ela aponta possibilidades... mínimas, mas aponta... esse movimento Tecendo
a Paz não teria sido institucionalizado e utilizado como marqueting.
Entrevistadora: Quando você fala isso, eu me lembro de outro momento difícil da colcha...
Quando esperávamos que ela fosse aberta cobrindo o prédio da prefeitura, não cobrindo
exatamente porque o prédio é muito grande, mas que ela se desfraldasse pelo prédio da
prefeitura, houve muitas colaborações do povo para tentar resolver os problemas
técnicos para pendurar a colcha, porque isso demandava uma técnica, um cálculo de
engenharia, e o acesso das pessoas que se dispuseram a isso, na verdade, foi restrito...
E, depois de algum tempo, essa colcha apareceu como um bandô na marquise da
prefeitura. Nós havíamos marcado um segundo encontro para continuar costurando
colchas... e quando algumas pessoas chegaram e viram aquela colcha amarrada como
um bandô, o que eu ouvi e que me marcou profundamente foi: O que fizeram com essa
269
colcha é o que o poder público faz com a cidade, com a população! Na verdade, essa
colcha revelou tanto a sua potencialidade transformadora quanto a relação do povo com
o poder público e vice-versa.
Entrevistada: Isso é muito claro nas discussões que a gente leva nos diferentes cantos,
nas diferentes práticas profissionais, em diferentes momentos, que é uma discussão
séria. O poder blico não pode viver de estratégias de governo, propostas de governo.
Aquilo que o povo consegue que implante, a gente tem que fazer no mínimo, no mínimo.
Tem que, no mínimo, lutar para que isso seja problema de Estado, ou seja, se vai
institucionalizar, que se institucionalize direito. Institucionalize devolvendo à população,
institucionalize junto com a população, ouvindo, vendo como é que a gente pode fazer,
como a gente dá conta de determinadas questões e, principalmente, naquele momento, a
questão da violência. A violência escarrada. A gente estava falando de violência, a gente
estava dizendo de perda, a gente estava falando de terem subtraído da população uma
possibilidade de mudança. Isso é muito sério, pois estamos falando de violência, do
princípio básico da vida humana. Eu acho que a gente tem mesmo que pensar o tempo
inteiro no uso que se faz e a distância dos governos no sentido das políticas públicas e a
população.
Entrevistadora: Para você, o poder público deveria potencializar...
Entrevistada: Exato! Acolher e potencializar a demanda social. Mas, nós não somos
ingênuos... nós sabemos que é necessário ter um olhar muito claro para o que o
movimento está trazendo, e não ingênuo, e agora falo de ingenuidade mesmo... Por
exemplo, nos próximos anos teremos questões sérias para resolver na área da saúde
mental, com relação às moradias, porque na hora em que a população que não é doente
mental souber que o poder público paga para essa pessoa morar porque ela teve uma
vida ruim, infeliz, porque ficou no hospital psiquiátrico e tudo o mais... O sujeito que
continua morando na área alagada, que continua não tendo trabalho, e nós temos em
Campinas hoje 40.000 famílias nessa situação, de não ter o que comer... Como é que o
poder público vai lidar com isso? É muita gente excluída! E o que estamos chamando de
excluída... são pessoas abaixo da linha da pobreza.
Entrevistadora: Você falou também da questão das lideranças dos movimentos sociais ou
de vários agrupamentos. A questão da organização do movimento “Tecendo a Paz”
também é algo que estou pesquisando. Você poderia falar um pouco sobre como você
entende ou como você pretende as lideranças? E também como você entendeu a
liderança do movimento Tecendo a Paz?
Entrevistada: A questão das lideranças. A liderança do movimento Tecendo a Paz era
uma liderança para agrupar ou congregar pessoas que estivessem, naquele momento,
vivendo a necessidade de reconstruir, preocupados em recompor a nossa cidade, que
estivessem indignados com toda a construção de violência da nossa cidade, que é hoje
uma das mais violentas do país, independente de partido, cor, raça, orientação sexual...
As pessoas não estavam ali porque eram negras, não estavam ali porque eram brancas,
não estavam ali porque eram mulheres... estavam ali... E a condução do grupo tinha esse
olhar e esse acolhimento: Gente, nós estamos fazendo isso aqui, quem quer chegar?
Quem acha que quer participar? Como é que nós vamos trabalhar? Eu acho que é um
tipo de liderança que ainda não existe nome para isso. Pelo menos eu não conheço. As
discussões técnicas de liderança hoje no mundo globalizado são absurdas! Há o discurso
do “politicamente correto”, que é politicamente incorreto... Você tem que fazer dessa
forma, daquela forma. Não! Ela surge de dentro para fora, ela surge da necessidade. E o
comando desse grupo, a liderança, o digo liderança, eu vou até usar outra palavra... o
grupo que se responsabilizou e que assumiu a parte mais difícil do movimento, que é
270
organizar, ver material, etc. trazia para as pessoas e dizia Olha! Nós vamos fazer, vocês
querem? A gente quer discutir violência, a gente quer paz na nossa cidade, a gente quer
uma outra cidade. Um dia isso vai ter nome, esse tipo de liderança. E aí tem uma questão
muito séria: eu não acredito que seja ! Eu acredito que a gente esteja construindo isso.
Vai chegar um momento em que se vai poder ser “supra” qualquer coisa...
Entrevistadora: Supra?
Entrevistada: Supra. Independente de religião, de cor, de raça, de ideologia, de
paradigma, etc. Você é Supra! O foco da minha atenção é aquele.
Entrevistadora: O que poderia aglutinar as pessoas neste lugar? Neste “supra”?
Entrevistada: Só questões da vida cotidiana. Nada mais agrupa. Porque o resto é resto. É
resto!
Entrevistadora: As necessidades cotidianas?
Entrevistada: As necessidades cotidianas vitais. Vitais.
Entrevistadora: As necessidades vitais da vida cotidiana.
Entrevistada: ! Sem isso não tem jeito. coisas que hoje estou podendo estudar
mais, participar mais, que é a questão de gênero, por exemplo. Estou trabalhando nisso
dois anos. Ainda se carrega o ranço das mulheres que tiveram de queimar o soutien
para dizer que não queriam ser discriminadas. Os movimentos tiveram que ser muito
pesados em cima da desigualdade. Tanto que, desde 75 e 76... são trinta anos. O
movimento no Brasil, nas grandes capitais, Rio, São Paulo, Belo Horizonte, no Norte e
Nordeste também, onde o movimento foi forte... levou trinta anos para que as pessoas
fossem perdendo o ranço e fossem percebendo a igualdade entre os sujeitos, entre os
cidadãos, que cidadania é igualdade, que tinha que passar a ver a mulher, o gênero
mulher. Hoje a gente chega com um ranço danado, porque o pessoal fala de feminismo
como se feminismo fosse a bruxaria, como se as mulheres fossem todas contra os
homens. Por quê? Porque foi um processo que se iniciou dessa forma e hoje, o que a
gente quer? A gente quer ter parceiros e poder dividir com eles todas as tarefas que nos
foram delegadas culturalmente. Olha onde entra a cultura. Nossa diferença é sexual. Só.
O resto foi construção que se fez culturalmente em cima do que cabe ao homem, quais
são os direitos e os deveres do homem e da mulher. Daí a mulher ficou como a
cuidadora. Quando eu comecei a pensar nisso, eu comecei a analisar a construção da
Terapia Ocupacional, uma profissão de cuidadoras...
Entrevistadora: Mulheres...
Entrevistada: Mulheres, por isso cuidadoras. Retomando a questão da condução do
movimento. Se isso aconteceu no “Tecendo a Paz”, você imagina na vida cotidiana, onde
surgem as lideranças, aquelas pessoas que estão mais atentas ao coletivo. E começam a
juntar pessoas para reivindicar do poder público os seus direitos, e assim que essa
pessoa, esse grupo se fortalece, ele é cooptado por um partido político, isso tem que ficar
claro, por um partido político, por uma determinada ideologia, para que você fortaleça e
use o movimento. Isto para mim está cada vez mais insuportável. Quando a gente
discute, por exemplo, o gênero, a gente discute tamm raça, etnia, tudo isso junto com
todas as questões da vida cotidiana da mulher. É a violência, é a educação não sexista, a
questão da linguagem, porque a língua portuguesa é maravilhosa, uma linguagem não
sexista! Quando a gente leva para esse lado, é tão difícil ser supra e pensar que a gente
está discutindo mulher e gênero... porque cada um traz a ideologia que está construída e
271
quer que a sua, que infelizmente se traduz em partidarismo político, seja a melhor. Não
se consegue levar uma discussão que possa realmente colocar na bandeja todas as
possibilidades de pensamento sobre aquela questão e sair com uma que seja mais
próxima da necessidade apontada por aquele grupo.
Entrevistadora: Você está colocando uma questão que também é central na minha
pesquisa: como chegar ao supra sem querer afirmar o seu lugar como referência nem tão
pouco deixar de ser quem você é? Como você entende este problema a ser enfrentado
na atualidade?
Entrevistada: Extremamente complexo! Extremamente complexo porque nós aprendemos
culturalmente que aquele sujeito que é minimamente atento para a realidade social, ele
tem que imprimir, traduzir seus desejos por aquilo que ele acredita. Traduzir e imprimir na
realidade social aquilo que ele acredita. É interessante porque entra uma separação
entre crer e ter fé. Ultimamente tenho pensado que eu posso acreditar... mas eu posso
não ter fé. Eu ainda não discuti essas palavras, mas fui buscar. Eu acho que a gente
vai conseguir mudar e realmente ser supra, na medida em que a gente acreditar e
tiver fé. Não importa se é a minha crença ou a do outro, mas a gente tem de que isto
possa ser construído. Que isto se construa!
Entrevistadora: Fé em...?
Entrevistada: Ah! No coletivo, no homem, essa no ser humano. Essa de que o homem
pode, de que o homem deve, de que o homem tem necessidades básicas... O ser
humano tem essas necessidades básicas. Essa é a primeira que a gente tem que ter.
A gente só tem fé quando a gente acredita que a gente necessita.
Entrevistadora: É esta que possibilita às pessoas estar no supra? O supra teria a
necessidade da vida, a preservação da vida, as necessidades humanas?
Entrevistada: Lidar com essa complexidade humana. Eu acho que a grande questão es
aí, na complexidade humana. A grande questão está na complexidade humana. A gente
não poderia, mas, por mais que a gente lide no cotidiano, a gente normatiza, agrupa.
Porém nós somos singulares, a complexidade humana se pela singularidade de cada
um. Eu vejo nos grupos que a gente atende, nos alunos, nas aulas, em tudo se observa
isso. Você coloca num caixilho, mulheres, negras, alunas de TO do primeiro ano,
psiquiatras... A gente põe tudo no caixilho porque tem alguma coisa em comum. Porém
se esse caixilho tiver dez pessoas, às vezes com a mesma crença e com a mesma fé,
ainda assim haverá a singularidade. Isso é complexidade humana. Porque cada um
apreendeu para si, cada um nasceu num estado, num país e viveu uma determinada
cultura e ele é um sujeito único, singular e único. Porque ele carrega aquela cultura
dentro dele. Não adianta! Você não vai tirar de mim essa coisa de lutar, de querer ver a
vida melhor para a comunidade ou para o cidadão, porque nasci numa família que teve
que lutar... Foi uma vida comunitária dentro da família, porque era uma família grande.
Não adianta! Isso é construção da singularidade humana. E para falar em
singularidade humana a partir da cultura, não para falar a partir da psique... Não
para falar a partir de nada disso, a cultura é o centro, é o eixo. Vamos para a Austrália,
um grupo de aborígenes, são várias e diferentes tribos aborígenes. Se você pegar um
desses grupos, você vai observar que ali eles estão deslocados dessa globalização,
deste contexto, dessa vida cotidiana... e que aquele grupo tem menos singularidades,
você as ações mais próximas. Vamos olhar os índios brasileiros, uma daquelas tribos
que não foram ainda modificadas pelo contato com outras nações ou com os brancos.
Ela é uma nação, ela enquanto tribo é uma nação. Você vai ficar de olhos arregalados!
Pôxa! As pessoas são tão iguaizinhas! Por que será? É que está a complexidade. Por
272
onde passa essa singularidade? Eu vejo dessa forma. E eu acredito que a construção
mais difícil hoje, no sentido da construção social, perpassa pela questão da ideologia.
Entrevistadora: Esta discussão também nos leva a outras tantas reflexões. De alguma
forma você está dizendo que as sociedades urbanas e industriais são mais complexas
que as sociedades primitivas?
Entrevistada: Sim. Mas por quê? Tem uma questão de cultura e de economia. Uma de
cada lado.
Entrevistadora: Econômico, cultural e político?
Entrevistada: E político, com certeza! Talvez até seja o contrário: político, econômico e
cultural. Eu acho que a gente tem que começar a ter um olhar diferenciado para a urbe. O
que é ser um sujeito urbano? Vamos falar da nossa cidade. A cidade de Campinas tem
um território rural grande, mas pouca atividade rural. Não é grande a atividade rural em
Campinas. Se imaginarmos que oitenta e poucos por cento da população vive na
condição urbana... Os demais, apenas quinze por cento, vivem na condição rural. Quem
é a população que vem para Campinas? É o pessoal que sai da terra, de Minas, aqui tem
muito mineiro, muito paranaense, muito cearense. Uma população que sai do rural e vem
para Campinas tentar uma vida na urbe, nesta cidade enorme, que tem de tudo. Essa
população vem de uma experiência rural, de uma vida vivida com valores rurais. Valores
de troca, de compra sim, mas de troca, de uso de bens próprios ou arrendados, que é um
olhar para a realidade. Vem para uma situação de cidade, onde ele não vai poder ter a
mesma vida que ele tinha antes, porque os valores são outros. Os valores estão calcados
na capacidade de trabalho, na capacidade técnica e de atualização do trabalho... a
informática. Precisa estar instrumentalizado, precisa saber usar o computador, precisa
passar um e-mail. Ele pode ser um ferreiro, ele pode ser um montador de peças numa
indústria, mas ele precisa ter esse conhecimento para sobreviver. Ele precisa se deslocar
de alguma forma e, às vezes, as distâncias são tão imensas que não dá para se deslocar
a pé. A gente esquece que a urbe tem avenida que precisa atravessar, tem avenida que
não tem calcada... Diante desta construção, ele tem que se recolocar no mundo. Para
mim isso é se recolocar no mundo. Não é uma simples mudança. É como se você tivesse
que matar tudo o que você tinha, da sua perspectiva de vida, da cultura que você
vivenciava, para nascer dentro da urbe. Temos pouquíssimos estudos de como tem se
dado essa relação: homem e a situação da urbanidade. Eu vejo que nós temos um
complicador enorme da urbanidade, porque é quando a gente bate de frente com o poder
público e com a responsabilidade do poder público. Ele tem que dar a infra, mas que infra
é essa? E a quem interessa essa infra? A que tipo de população, a que tipo de camada
social? E o poder blico não conta... se ele o o mínimo para essa população
esfacelada, ele não conta. Tem que dar o nimo. E a gente pergunta: Qual tem
sido esse mínimo?
Entrevistadora: O mínimo na cidade é muito mais que o mínimo no campo?
Entrevistada: É muito mais. O mínimo da cidade é assim 50.000 vezes mais do que o
mínimo no campo!
Entrevistadora: Um comentário que me veio à mente a partir do que você está falando: a
colcha de retalhos tem uma origem caipira, rural. E a colcha de retalhos no campo é
uma colcha de retalhos. Mas na cidade ela ganha outras conotações... passa a ser
metáfora de mostrengo, de falta de ligação!
Entrevistada: Tanto que ela teve que virar um patchwork, não é?
273
Entrevistadora: Hoje ela é patchwork! Na cidade, a colcha de retalhos virou sinônimo da
impossibilidade da vivência com a diversidade! Voltando para as nossas questões...
Através da sua participação no movimento “Tecendo a Paz”, que contribuições você
considera importantes para a sua formação docente e para o desenvolvimento da sua
prática pedagógica.
Entrevistada: Eu acho que a questão principal é que, antes de ser uma docente, antes de
ser uma docente terapeuta ocupacional numa área específica, é necessário compreender
o que é ser sujeito social, o que é cidadania, o que é um movimento popular e,
principalmente, qual é o chão onde você pisa. É estar sempre atento. Eu não consigo
conceber um docente que não esteja atento para a cidadania. Eu vou usar a palavra
cidadania, porque ela traduz uma série de coisas que não precisamos repetir. Não
consigo conceber um docente que vai para uma sala de aula para reproduzir o livro que
leu, descaracterizando a regionalidade. Ou seja, estamos no Brasil, no Estado de São
Paulo, na cidade de Campinas. E essa população que é brasileira, que é paulista (lembra
das singularidades?), que mora em Campinas, que tem X, Y ou Z características,
independente, e hoje é mais fácil dizer, independente da camada social dos alunos...
Eles precisam de você enquanto docente na sua prática profissional. O docente tem que
ter isso muito internalizado, para passar aos alunos que uma simples técnica não resolve
a vida pessoal e cotidiana de quem ele vai atender, de que uma simples técnica não
educa. Não educa! A não ser que você seja extremamente aficcionado por treinamento e
recompensa, tudo bem! Você vai, você estuda aquele livro, toma como sua referência
e vai reproduzi-lo, independente de quem você está formando e da realidade social em
que você vive. Eu não consigo entender, eu não aceito um educador que não olhe para a
realidade na qual que ele está vivendo e que não leve para a sala de aula o movimento
da realidade social em que ele está vivendo. Não para você fazer essa separação.
Aqui eu vou ensinar a técnica, vou fazer a discussão da formação profissional e, fora,
quem sabe... Não. Não ! A própria estrutura, a própria instituição onde está o
educador, também, se você não ficar atento, vai inferir nele o que ela quer, o profissional
que ela quer ver formado. Se o educador não estiver esperto, não estiver atento, ele vai
cumprir com os deveres institucionais sem questionar a formação e o papel do educador.
Não questiona. Ele assume para si que o papel do educador é isso. Acabou! Quando
você crê e tem fé de que o papel do educador é algo além de ensinar técnica, você
consegue levar os seus alunos a questionar essa realidade, e até o que você está
colocando. E por vezes é muito interessante... e eu acho muito bonito, porque você leva a
sua crença e a sua fé em determinada metodologia ou em determinado paradigma e você
consegue que esses alunos parem e perguntem Por que é assim, professora? Eles
trazem, eles questionam. Eles trazem o questionamento sobre a realidade que está
vivendo com os pacientes: Professora, por que tantos professores de Terapia
Ocupacional e cada um valora a Terapia Ocupacional e mostra como tem que ser
atendido o paciente de forma completamente diferente? Isso é muito bom porque eles
passam a não tomar para si como dada e pronta aquela técnica, aquela compreensão da
realidade, aquele paradigma.
Entrevistadora: A sua fé no supra te permite, inclusive, trabalhar uma determinada
técnica ou uma especificidade profissional, levando o aluno a uma compreensão supra...
Entrevistada: A uma compreensão supra. Exato. Por exemplo, as disciplinas que eu
ministrei por mais tempo foram as “Atividades e Recursos Terapêuticos”. Você sabe que
é preciso analisar uma atividade para conhecê-la, mas pode analisá-la de diferentes
formas. Eu já não analiso mais a atividade, analiso o material. Material com o qual eu vou
construir ou fazer aquela atividade. Qual é o sujeito que vai construir aquela atividade?
Não falo do sujeito “psique”, não. Falo do sujeito social que mora em tal lugar e que
estabelece relações com aquele material, com aquela atividade vai construir. Ele pode,
inclusive, desenvolver atividades das quais eu me arrepio quando eu vejo terapeutas
274
ocupacionais utilizando. Mas eu me arrepio porque eles utilizam dizendo: é isso que você
tem que fazer, porque é essa atividade que vai melhorar o seu estado de saúde. Então
você tem essa possibilidade. Você permite ao sujeito que você está atendendo que ele
passe a olhar, a ter possibilidades de escolha, independente das suas crenças.
Entrevistadora: Você sabe de uma coisa? Tenho percebido, em muitas das entrevistas,
que os entrevistados ao falarem das suas práticas pedagógicas, transitam com grande
facilidade do específico para o genérico e do genérico para o específico, do social para o
individual, do particular para o universal e vice-versa, juntando, de modo indissolúvel,
muitos dos diferentes aspectos que constituem a aprendizagem, numa perspectiva que
vou chamar de transdisciplinar. Não há o momento do específico e o momento do
genérico... eles estão integrados e unidos. Posso entender o seu “supra” como
transdisciplinar?
Entrevistada: Sim, é isso mesmo! Agora... isso é um sofrimento para o docente!
Entrevistadora: Acho que também para aluno...
Entrevistada: Para o aluno também. E como o docente sofre uma pressão institucional,
ele tem que descobrir os caminhos. Muitas vezes é longo o caminho para chegar até o
momento de propor uma atividade, ao invés de “dar uma aula” de Atividades e Recursos
Terapêuticos... de trazer o grupo de alunos para um movimento social, por exemplo. O
docente tem que descobrir outros caminhos. São muito mais longos do que normalmente
seriam se ele ficasse dentro da instituição.
Entrevistadora: Eu penso que as questões foram respondidas, mas, existe mais
alguma coisa a falar sobre a importância do Movimento Tecendo a Paz para a população
e para os alunos?
Entrevistada: Eu queria focar um pouco mais nos alunos, porque era o que estávamos
discutindo anteriormente. Acho que foi importante a possibilidade do aluno, sendo do
município ou não, sendo morador de Campinas ou não, mas sendo sujeito e um sujeito
que vive a violência atual do nosso mundo moderno, se envolver numa atividade “que se
usa na prática profissional de terapia ocupacional” e que foi realizada, se fôssemos fazer
uma análise de atividade cinesiológica ortodoxa de Terapia Ocupacional, de maneira
completamente inadequada. As pessoas sentadas no chão costurando... deitavam,
debruçavam-se em cima da costura... Pelo lado mais ortodoxo da Terapia Ocupacional
isso seria um crime, um assassinato da atividade! Mas esse aluno pode participar e ver
que as coisas acontecem... e pode se sentir autor do processo. Eu acho que a gente tem
que ser aquele que faz. Autor, não é só ator. É Autor! Normalmente a gente fala nos
atores sociais. Não! Os atores representam... A gente é autor desse processo. Eu acho
que isso deve acontecer de muitas outras formas dentro da graduação, não importa em
que área. É um momento em que o aluno pode perceber que ele é capaz, e ele é capaz
de se transformar a partir de determinada ação, principalmente coletiva. Porque é no
coletivo que você encontra seus pares, é no coletivo que você encontra o eixo que reúne
as pessoas. E este aprendizado, principalmente para os profissionais de saúde, é
extremamente importante. O profissional de saúde ainda é aquele que é formado para
ser quem sabe o que o outro precisa e sabe o que a sociedade necessita. Ele tem o
poder absoluto de determinar o que será melhor para aquele que ele está tratando.
Entrevistadora: Mais alguma consideração?
Entrevistada: Eu tenho sim. Talvez seja mais um relato que uma consideração. A prática
profissional e a profissão do terapeuta ocupacional, ao longo da história, passaram por
vários caminhos, desde uma prática mais reducionista até uma prática que se locou no
275
sujeito que se desenvolve e pensa o que ele quer. No trajeto histórico, com mudanças de
paradigmas, eu tenho percebido que, até mesmo independente dos paradigmas, quando
o sujeito começa a observar melhor a atividade humana, ele passa a construir uma outra
referência de mundo. É muito interessante... é olhar quando a gente entrou na
universidade e saiu da universidade, depois começou uma prática profissional e muitos
anos depois, você vai se vendo como um outro sujeito... eu acho que essa
transformação é decorrente da atividade... quando a gente fica atento para a atividade
humana... atento para levar aquele que a gente atende e aquele que está sob a nossa
responsabilidade educacional, a perceber que o discurso não muda a sociedade, não
muda a realidade social. Um belo projeto no papel é apenas um belo projeto no papel.
Uma pessoa que resolve fazer alguma coisa ou imprime uma determinada ação e vai aos
tropeços... tem que olhar, porque quando você tropeça tem que olhar onde você
tropeçou, ela não pula por cima, ela tropeça... E quando o projeto está pronto a gente
pula por cima, a gente não aquilo e esconde, deixa de pensar sobre aquilo. É que
está a possibilidade de mudança: no momento em que ela começa a tropeçar, tamm
começa a avaliar... que valores são esses que eu tenho internalizados até agora, através
da cultura., principalmente? A cultura tem esse papel: por que eu gosto de tal coisa? Por
que eu fico irritada e indignada com aquilo? A cultura tem esse papel. Querendo ou não,
a prática profissional do terapeuta ocupacional tem que ser voltada para a realidade
social em que o sujeito vive. Isto é básico. A regionalidade, onde o sujeito está e onde ele
vai ficar. Porque ele pode estar no sertão nordestino... ele pode estar se tratando aqui e
querer voltar para a sua cidade que é no Rio Grande do Sul... para que ele possa
transformar literalmente (e transformar não é reajeitar) a sua possibilidade de vida. A
terapia ocupacional, quando não tem esse pensar, não consegue se postar e ser
creditada enquanto uma ciência do ser humano.
Entrevistadora: Numa outra ocasião continuaremos esta conversa, talvez começando do
seguinte ponto: se a atividade humana, se a capacidade humana de concretização de
idéias e desejos é tão importante para o homem, o que é que a gente vai fazer com uma
urbe que cada vez mais tira do homem a sua possibilidade de fazer e o coloca diante da
virtualidade, da racionalidade, distanciando-o da manualidade? Mas essa é uma outra
conversa, para um outro dia... Para essa pesquisa, podemos finalizar aqui e eu te
agradeço muito pela sua riquíssima contribuição.
Entrevistada: Eu é que agradeço por essa possibilidade. Normalmente as pessoas m
fazer entrevistas com propostas de perguntas fechadas, com respostas de sim ou não.
Nunca é possível resgatar, inclusive, a sua história pessoal. Cada um de nós tem a sua
história pessoal, com as relações que estabeleceu com o mundo, desde que veio ao
mundo, para chegar hoje aqui de um jeito ou de outro. Essa entrevista possibilitou ir
fazendo as costuras, retomando alguns pedacinhos de retalhos que ficaram esperando
para chegar ao todo, num determinado momento. Como dizia um filósofo, que agora não
me vem o nome... esse magnífico vitral que a gente vai construindo... E realmente a
gente vai construindo com aqueles pequenos cacos de vidro (ou com os retalhos de
tecido) um vitral que nós não vamos conseguir entender, mas ele será construído.
Entrevistadora: E um dia compreendido...
Entrevistada: Nós ainda estamos no processo... e quando ele estiver completo, nós talvez
nem estejamos mais aqui... Uma outra geração é que vai dar continuidade. Quiçá
compreendido neste momento... mas compreendido e retomado cada vez mais. Eu acho
que quando a gente pensa em paz, a gente pensa na possibilidade do ser humano viver
no coletivo. Para mim essa é a grande dificuldade: é o ser humano conseguir viver as
diferenças, respeitando-as e no coletivo.
Entrevistadora: Maravilhoso! Muito obrigada
276
ANEXO XI
277
ENTREVISTA 6 – E.6
Nome (iniciais): D.M.
Idade: 47 anos
Sexo: feminino
Profissão: terapeuta ocupacional
Disciplinas ministradas Na Faculdade de Terapia Ocupacional no semestre de 2001:
Prática Terapêutica Supervisionada I e Prática Terapêutica Supervisionada III.
Tempo de docência: 26 anos
Atividades profissionais no momento: docente da Faculdade de Terapia Ocupacional da
PUC-Campinas e atividade clínica em consultório.
Data da entrevista: 08 de novembro de 2006
Entrevistadora: Você participou do movimento tecendo a paz em pelo menos uma de
suas fases, seja de organização, divulgação, costura da colcha, passeata ou utilização do
material em sala de aula? Quais?
Entrevistada: Sim. Eu participei da divulgação e da costura da colcha num nível mais
amplo, na prefeitura e, em nível local, regional, eu participei também da organização.
Durante a organização, houve desdobramentos e eventos que ocorreram na região onde
se desenvolvem os estágios supervisionados, dos quais falarei mais adiante.
Entrevistadora: Quais os motivos que te levaram a participar do movimento?
Entrevistada: Por acreditar nele, por considerá-lo pertinente e necessário.
Entrevistadora: Faça um relato de sua participação no movimento, ressaltando aspectos
que considere importantes para sua formação docente e para o desenvolvimento de sua
prática pedagógica.
Entrevistada: O engajamento com os movimentos sociais é uma coisa muito próxima do
trabalho na Unidade Básica de Saúde onde estou vinculada, desenvolvendo as
disciplinas Prática Terapêutica Supervisionada III e Prática Terapêutica Supervisionada I,
que eram as disciplinas que eu tinha na época.
Entrevistadora: Para melhor compreensão, você poderia falar rapidamente sobre essas
disciplinas e sobre a prática da Terapia Ocupacional na unidade básica de saúde?
Entrevistada: Posso. A Prática Terapêutica Supervisionada do quarto ano desenvolve-se
em estágios semestrais, com uma média de quatro a seis alunos. Na época essa
disciplina tinha uma carga horária de vinte horas semanais e este trabalho permitia um
bom relacionamento com o centro de saúde, numa perspectiva de saúde comunitária
muito maior que a desenvolvida na Prática Terapêutica Supervisionada do segundo ano,
porque nesta os alunos ficavam um período mais curto, em média dois meses, com um
encontro semanal apenas e com um mero maior de alunos. Então eu elegia, para o
segundo ano, alguns programas mais técnicos, mais pontuais, que acabavam tendo
alguns desdobramentos na perspectiva da saúde comunitária também, mas era menor
que a dos alunos do quarto ano, pelo próprio objetivo da disciplina e porque eles
precisavam ter outros domínios. Já no quarto ano, havia a possibilidade de expandir para
essas articulações que possibilitaram, historicamente, nossa participação nos
movimentos locais.
278
Entrevistadora: O trabalho comunitário é parte do seu projeto assistencial e docente
neste estágio?
Entrevistada: É uma opção. Mesmo no centro de saúde, áreas e profissionais que,
muitas vezes, desenvolvem trabalhos somente intramuros, dentro do centro de saúde,
numa visão de saúde muito focada na doença, no tratamento clássico. Mas, mesmo
assim, o centro de saúde é um avanço, porque possibilita o acesso dentro do território
onde as pessoas vivem e trabalham. Isso diferencia esta estrutura de outros espaços
da saúde. uma natureza mais afetiva, mais calorosa. Muitos profissionais constroem
sua prática com qualidade dentro desse espaço. A nossa origem no centro de saúde
sempre foi marcada por uma parceria com a população, com as lideranças, com os
grupos organizados. Eu sempre procurei envolver os alunos, mesmo aqueles mais
resistentes a esse modelo de saúde. Mesmo estes, acabavam vivendo as experiências,
se sensibilizavam e depois faziam uma opção mais clara a respeito do seu perfil, de seus
papéis e de seus modelos de atuação profissional. Outros já partiam, muitas vezes até
surpreendendo e superando dificuldades, para um engajamento profissional na vida
comunitária ao longo da carreira. A nossa história nestas disciplinas foi sempre marcada
pela participação nos espaços comunitários, fazendo uma ponte de ligação entre o centro
de saúde e a população, tentando mudar a concepção de saúde, desenvolvendo uma
compreensão mais ampla de saúde. Em 2001, houve a implantação do Paidéia, um
programa municipal de saúde que trazia as idéias de integralização, com
responsabilidade, vínculo, criação de redes e fortalecimento dessas redes. Nós nos
sentíamos muito à vontade diante dessa proposta, porque já era a nossa vivência. A
questão da subjetividade, da singularidade... tudo isso era a nossa prática, era de
nosso domínio. E, dentro do centro de saúde havia uma abertura, com a presença de
agentes comunitários de saúde, para ter uma noção mais ampla dos espaços sociais, das
relações, das forças... tudo isso estava muito presente. No centro de saúde estava
começando a ter essas discussões e a gente tinha então essa articulação. É
importante fazer uma referência: naquela região a questão da violência, do tráfico, enfim,
das questões sociais mais dramáticas mesmo, de assassinatos, etc. eram coisas muito
pesadas e faziam parte do cotidiano. É um bairro que tem sido reconhecido por isso. Ao
mesmo tempo, hoje ele também é reconhecido pela organização social que existe lá. É
um espaço muito privilegiado em termos de equipamentos sociais e de saúde, em termos
de lutas sociais. E a gente vem acompanhando isso desde 1981, participando de muitos
movimentos sociais junto com a comunidade. Naquele momento, a gente vinha de uma
experiência muito rica em 1999, quando a cultura, a educação, a saúde, juntamente com
o conselho local de saúde, pastoral da saúde, grupo de terceira idade e outros grupos se
articularam com o Ministério da Justiça para um programa de formação de agentes de
defesa de direitos humanos e cidadania. É importante destacar que o grupo da terceira
idade evoluiu de um grupo de mulheres da periferia que teve muitas lutas no início do
bairro, foi se fortalecendo, se transformando e atuando continuamente. Acompanhamos
esses grupos de perto e, assim, tínhamos essa história conjunta. Em 1999, pudemos
realizar, através da Casa de Cultura que articulou, juntamente com o Ministério da
Justiça, um programa de formação de agentes de defesa de direitos humanos e da
cidadania. Isso foi uma coisa muito boa! Foram três meses de curso com verba do
Ministério da Justiça. Uma articulação para discutir minorias, para discutir violência, para
discutir alternativas de organizão para o encaminhamento dessas questões. Todas as
quartas feiras, durante três horas, a comunidade se reunia com técnicos, políticos,
teóricos, artistas, com muitas vivências. Havia representações de todos os lugares.
Posteriormente ao curso, como o grupo ficou muito unido e muito forte, passou a ter uma
prática de reuniões semanais. O Centro de Convivência e Cooperativa CECCO,
inspirado no modelo de reabilitação psicossocial da saúde mental, passou a ser adotado
pela região como uma estratégia de ação, sem, no entanto, limitar-se à clientela da saúde
mental.
279
Entrevistadora: Era um movimento de um grupo da população?
Entrevistada: De um grupo da população, com os profissionais de todas essas áreas.
Entrevistadora: Não institucionalizado?
Entrevistada: Não institucionalizado. Ele já era inter-setorial e não era composto por
uma única faixa etária. No bairro há muitos equipamentos sociais que lidam com a
criança e o adolescente. Tamm muitas escolas na região, tanto municipais como
estaduais, tem umas cinco ou seis escolas. Assim, havia a participação de muitas
crianças e adolescentes. Também o CAPS e o centro de saúde e isso levava à
participação tamm a população com deficiência mental, com doença mental, o
deficiente físico, uma população idosa extensa e muito organizada. Então tinha tudo.
Entrevistadora: Organizações sociais institucionais e não institucionais. Serviços de
saúde, diferentes equipamentos de saúde, associações comunitárias diversas... Isso
caracteriza essa região.
Entrevistada: Exatamente! E essa estratégia do curso de direitos humanos e cidadania foi
a possibilidade de uma articulação melhor. A partir daí desenvolveu-se uma linguagem
comum, chegaram informações. Foi uma coisa de muita emoção, muito conhecimento e
muita vontade de continuar junto.
Entrevistadora: Foi uma capacitação da própria comunidade?
Entrevistada: Da própria comunidade. Tanto das lideranças, quanto das pessoas que não
tinham esse perfil de liderança, mas tinham essa vontade de estar junto e também dos
profissionais e estudantes, que na época se dispuseram a ficar junto.
Entrevistadora: O curso foi financiado pelo Ministério da Justiça?
Entrevistada: Sim. Foi financiado pelo Ministério da Justiça. Tivemos a assessoria de um
candidato a vereador envolvido com as questões daquela comunidade para podermos
montar e articular o curso. Isso foi no final de 1999, no segundo semestre de 1999 e, em
2000, estávamos, com prazer, promovendo eventos para lidar com as situações mais
difíceis da região. As referências do CECCO eram a Praça dos Trabalhadores e o espaço
da Casa de Cultura, por onde circulávamos e onde aconteciam as reuniões. Mesmo com
histórias de assassinatos na praça, o espaço foi ocupado, pois entendíamos que se
abandonássemos aqueles espaços, mais ainda as forças do tráfico, as forças contrárias a
uma situação de mudança, iriam se apropriar. Tanto é que isso acontecia com outros
espaços e, nos desdobramentos históricos de outros movimentos do bairro, percebemos
que muitos espaços que eram abandonados e perigosos, hoje são muito produtivos e têm
usos e finalidades muito interessantes. A praça que era um reduto ainda não tão
contaminado, estava correndo esse risco. Então, mais do que nunca, precisávamos nos
instalar lá. A idéia da violência já era muito presente. Era necessário combater e resistir à
violência. Quando ocorreu o movimento Tecendo a Paz, que foi uma situação maior, ele
veio a enriquecer uma vivência que a gente já tinha. Ele aconteceu e nós continuamos...
Entrevistadora: Como o Movimento Tecendo a Paz chegou até vocês? Vocês estão na
mesma região onde ele nasceu. Você tem notícia da construção desse embrião ou não?
Entrevistada: A questão do orçamento participativo na região estava muito aquecida.
Discutíamos a reforma da Casa de Cultura, a construção da sede do novo CAPS, a
280
construção de um distrito policial da guarda municipal. Havia muitas reuniões e a questão
da segurança estava pegando muito ali, pelo alto índice de assassinatos e violência...
Entrevistadora: Naquela época toda a cidade estava sofrendo muito com a violência.
Entrevistada: Estava muito exposta, e ali havia uma concentração muito grande. A gente
discutia isso, buscando saídas e formas de resistência. O assassinato do prefeito
pegou a gente! Sensibilizou demais! Agora eu não me lembro se a
notícia da colcha
chegou através da terapia ocupacional no centro de saúde... Mas nós realmente
reservamos o dia 10 de outubro para costurar a colcha no paço. Fomos para com
pessoas da população. Não lembro exatamente como a notícia chegou... mas chegou e
fez ressonância, fez eco. Naquela época havia muitos movimentos no bairro, com o tema
Tecendo a Paz. Tiveram reuniões nas escolas, passeata e, no centro de saúde
começamos a fazer uma colcha. Não vou saber identificar o que era feito em cada lugar,
pois fiquei mais envolvida com as atividades do centro de saúde. Nós já havíamos
iniciado uma feira como iniciativa do centro de saúde, uma feira que acontecia na praça,
que mesclava a venda de produtos alimentícios e artesanais e onde se realizavam
eventos artísticos, como uma peça teatral, uma apresentação musical, contadores de
histórias, Maracatu, jogos, corais, palestras. Procurávamos fazer nesses espaços de
caráter artístico e lúdico, algum nível de reflexão. Nós tínhamos uma barraca nessa feira.
A colcha que estávamos construindo para o movimento Tecendo a Paz acompanhava
esses eventos. Ela era itinerante.
Entrevistadora: Nesses espaços e nesses encontros as pessoas se organizavam fazendo
colchas?
Entrevistada: Também. Tinham várias coisas e dentre elas, na Terapia Ocupacional, a
gente costurava a colcha que depois foi levada ao paço, no dia 10.
Entrevistadora: Houve costura de colchas que depois integraram a colcha maior.
Também nas escolas da região se costuraram colchas?
Entrevistada: Não posso falar sobre o que aconteceu nos outros lugares. No Centro de
Saúde houve. Sei que nas escolas da região se discutiu o movimento, mas não sei se
fizeram colchas.
Entrevistadora: Escolas de primeiro grau?
Entrevistada: Escolas de primeiro e segundo graus, creches, espaços de educação
informal e organizações sociais para crianças e adolescentes. Tinha essa representação
de vários locais e fizemos essa relação no centro de saúde: educação e movimento
social, saúde e movimento social.
Entrevistadora: De qualquer forma, o Tecendo a Paz foi tema de discussão na região, em
instituições e organizações sociais. E algumas colchas de retalhos foram costuradas nos
equipamentos de Saúde e na região?
Entrevistada: Sim, mas eu não tenho domínio de todas essas informações. Com certeza
no centro de saúde e, muito provavelmente, na Casa de Cultura e num projeto de
educação informal para crianças e adolescentes. Não sei em outros espaços. As escolas
tinham uma situação mais difícil, menos permeável. Hoje em dia tem uma escola
municipal que produz muita coisa, faz muitos eventos. Os equipamentos sociais que
lidam com a criança e o adolescente estão com uma articulação mais estreita. o uso
comum de recursos audio-visuais, uma parceria institucional que ajuda na troca e
socialização de recursos...
281
Entrevistadora: Então o movimento Tecendo a Paz chegou até a região e tocou a
população, a comunidade, que estava aberta para isso. Houve uma atração entre o
movimento e algumas das necessidades e formas de organização daquela comunidade.
Houve um casamento, um encontro... Continuando o relato da sua participação no
movimento...
Entrevistada: A organização em nível local, o momento da costura no paço municipal e,
posteriormente, a análise desse material na prática docente, nos estágios...
Entrevistadora: Tanto no centro de saúde quanto no paço, você fez essas atividades com
os alunos e com a população?
Entrevistada: Com todos os alunos do quarto ano. E fizemos o convite à população.
Como havia problemas de condução, havia um limite, pois muitos dos que estão mais
próximos da gente são pessoas com dificuldade de circulação. Nós conseguimos que
houvesse a ida de uma parte mais autônoma da população. Hoje em dia, aqueles que, na
época, eram menos autônomos, hoje têm maior autonomia e achamos que isso já é fruto
de todo o trabalho na região. Quanto à participação no movimento, acho que houve uma
confluência de informações e experiências que acabou fortalecendo ainda mais o
movimento local. Já vínhamos discutindo a questão da paz e da violência, a questão de
“tecer a paz”. E, neste sentido, uma coisa era muito identificável: as alternativas de
trabalho para a população. Naquele grupo nhamos o compromisso de pensar
alternativas de trabalho e também de lazer ou outras vias de expressão. Com o tempo,
tivemos produtos desses investimentos. Passamos por algumas dificuldades, algumas
crises institucionais, mas sempre tinha alguém que não deixava a “peteca cair”. Depois
que começamos a atingir os objetivos que considerávamos necessários para melhorar a
qualidade de vida, incluindo uma melhor condição de segurança, mesmo que algum
grupo ou representação precisasse se ausentar, essa ausência não significava falta de
composição. Pelo contrário. Toda vez que se volta a fazer um projeto em conjunto, a rede
se forma... a rede já está montada, já está feita!
Entrevistadora: Porque é rede!
Entrevistada: Porque é rede! Sempre há muita sintonia! Penso que nós, da saúde mental,
talvez tenhamos nos tornando o grupo que manteve a coesão por mais tempo. No último
ano, tivemos que fazer um investimento muito grande na geração de renda para a
população com comprometimentos de saúde mental.
Entrevistadora: A questão da autonomia...
Entrevistada: Exatamente. Depois de algumas crises institucionais, os equipamentos de
saúde e educação voltaram a se articular. Hoje temos no espaço do Centro Social, a
participação da CPFL, que está dando apoio a programas artísticos e culturais. dois
educadores sociais que semanalmente passam filmes para discussão e debates.
tempos queríamos esse projeto. Os grupos organizados da terceira idade tinham muita
vontade de organizar um centro-dia para idoso. Mas esse centro-dia dependeria de muito
investimento para a formação da equipe, dos espaços e não houve essa possibilidade.
Mas se criou o “Gira-vida” que é um movimento de resistência e de convívio. É um
espaço independente que se mantém e onde uma média de quarenta a cinqüenta
pessoas de idade avançada ficam ali uma tarde por semana, numa experiência de
convívio.
Entrevistadora: E o índice de violência na região, com todo este trabalho, mudou?
282
Entrevistada: um sentimento de maior tranqüilidade, de maior confiança no trânsito
das pessoas, no ir e vir. Aquela época era uma época de muita insegurança. Ocorreu,
inclusive, o assassinato de um assessor de político. Eu nunca tinha me preocupado em
fazer seguro de vida, mas, lembro-me que eu e uma outra profissional da região tivemos
a mesma atitude: fizemos um seguro de vida! Na época, a gente se sentia muito exposta.
Entrevistadora: Porque a insegurança era muito grande.
Entrevistada: Era muito grande. Essa organização toda trouxe o sentimento de que é
possível fazer alguma coisa, é possível transformar. Hoje eu sinto o ar mais respirável, as
pessoas circulando mais à vontade. A própria Casa de Cultura, antes da reforma, foi alvo
de roubos e de ameaças. Ela estava com equipamentos de alto custo, havia recebido
computadores de última geração! Hoje em dia eles estão num espaço muito adequado e
tem uma projeção nacional muito grande. Os educadores sociais, inclusive, estão saindo
do voluntariado para ter algum nível de remuneração. Eu vejo que cada espaço
melhorou. As coisas que traçamos como meta, num sentido formal, foram atingidas. Mas
esse trabalho se deu, muito mais, na crença e na emoção do dia a dia, no cotidiano
mesmo. Hoje podemos ver que a região melhorou muito. Os programas para as
populações mais excluídas, as ações da saúde mental, as oficinas de geração de renda...
O desemprego diminuiu na região. Foi criada uma cooperativa de material reciclável que
consegue empregar uma média de 25 pessoas, com uma fixação de ganho interessante.
Aqueles espaços ociosos e invadidos, onde se acentuava a criminalidade, porque eram
os locais do tráfico, foram reencaminhados. A presença dos agentes comunitários e a
bolsa falia, eu acho que contribuiu bastante. As coisas iam se entrelaçando e todo o
mundo estava muito atento. Eu acho que, no geral, houve muita melhoria.
Entrevistadora: Há algum dado estatístico disso?
Entrevistada: Em termos de índices de assassinatos e violência? Eu posso verificar essa
informação. Mas podemos perceber que não se escuta mais tantas notícias de mortes
por criminalidade.
Entrevistadora: Mesmo não tendo os dados estatísticos, se pode perceber que na vida
comunitária e no cotidiano hoje se tem uma qualidade de vida diferente com relação à
segurança. Não se vive tanto o medo, nem a insegurança, a opressão ou a dificuldade de
transitar como antes. um ar de liberdade, um ar de segurança e de domínio do
espaço... E isso é perceptível? Há mais qualidade de vida, enfim?
Entrevistada: Sim. Eu percebo que sim. A freqüência com que ocorriam arrombamentos
de carros está menor, pelo menos chegam menos notícias de casos de roubos e
violência. Por causa da minha formação, eu fico sempre buscando a saúde, a
potencialidade, a criatividade, enfim... E, às vezes, fico preocupada em ter até um
desligamento da realidade... Mas o que eu percebo no trânsito das pessoas, no
crescimento de cada uma das instituições, e o reflexo disso entre as pessoas que moram
ali, é que está muito mais tranqüilo, muito mais arejado. Eu até desfiz meu seguro de
vida! Acho que isso é simbólico!
Entrevistadora: Pois é! Independente dos dados estatísticos, você sempre foi preocupada
com a visibilidade das potencialidades. No entanto, mesmo assim, em 2001, você e
outras pessoas precisaram agir no sentido de assegurar a vida, fazer um seguro de vida.
Hoje, você continua com o mesmo trabalho, no mesmo lugar, que você desfez o
seguro de vida. Essa subjetividade diz respeito à qualidade de vida, ela é um resultado.
Mesmo que não esteja mensurado, é um resultado, não é?
Entrevistada: Eu não tinha feito essa conexão...
283
Entrevistadora: Estas entrevistas tem sido ótimas porque, na verdade, tanto o
entrevistado quanto o entrevistador descobrem coisas! Quando você fala do Tecendo
Paz, é impossível para você falar somente dele porque, no bairro, ele não foi vivido
como uma coisa isolada. Ele está num contexto, se entrelaçando com outras histórias e
outros movimentos locais. Considerando isso, vou modificar um pouco a pergunta de
número quatro: como os movimentos sociais podem contribuir para a formação docente e
para a prática pedagógica? E, especificamente, a colcha de retalhos do Tecendo a Paz,
enquanto um símbolo, enquanto uma atividade, teve algum significado cultural?
Entrevistada: Na época, havia um grande envolvimento dos alunos. Não era preciso que
eu fizesse muitas argumentações para convencê-los de que era importante participar.
Eles transpiravam isso. Fazíamos muitas reflexões. Resgatamos Paulo Freire, lemos
textos de Marilena Chauí, pegamos Pichón Riviere, um autor que gosto muito e que tinha
muitos textos sobre constituição de grupos. Estudamos grupos operativos. Tínhamos o
teórico e a vivência para olhar e estabelecer as correlações. Quando leio o resumo desta
sua pesquisa, a forma como você traz a questão da colcha de retalhos, que ela tem sido
usada como a impossibilidade de construir a unidade através da diversidade... Ali
vivíamos um sentimento de que era possível sim, construir a unidade com a diversidade.
Os eventos que promovíamos sempre visavam, a partir dessa ótica, o tecer a paz. Por
exemplo, quando se fazia uma programação para os idosos, também se tinha a
preocupação de programar atividades atraentes para outras faixas etárias. E assim, era
natural a presença das diferenças. Nós sempre chegávamos nos diferentes espaços com
essa nossa população historicamente excluída, visando a sua inclusão. Hoje em dia eu
vejo que essa população, que um dia nós tomamos a sua defesa e fomos seus porta-
vozes, ocupa um espaço melhor, que é a Casa das Oficinas, um espaço que cuidamos
muito para que não se transforme num espaço que venha segregar ou excluir. E a
população, que está acostumada com essa convivência, também é muito receptiva a
esse espaço. Há um sentimento de que a gente também construiu uma colcha... É
possível construir a unidade na diversidade.
Entrevistadora: É possível construir unidade com diversidade?
Entrevistada: Sim. Essa é uma vivência da comunidade. E se por alguns momentos ficam
situações homogeneizadas num lugar ou noutro, essa vivência está internalizada. Por
exemplo, todos os eventos que surgem no bairro, todo o mundo quer ir, quer participar.
Assim foi naquele movimento a saúde mental no cinema”: todos queriam ir ao shopping
assistir ao filme “Os dois Filhos de Francisco”. Se tem um bingo para arrecadar fundos
para um projeto... todos participam! Na comemoração dos quinze anos do Centro de
Saúde foi feita uma dança circular externa e participaram cadeirantes, pacientes com
transtornos mentais em pleno surto... e até mesmo as suas histórias eram acolhidas pela
população. A presença do ”diferente” é uma constante ali. Estar incluído é uma realidade!
Entrevistadora: Interessante que você, ao mesmo tempo em que usa a imagem que a
diversidade existe, você também a mostra não como uma coisa estática. Ou seja, às
vezes os grupos ficam mais homogêneos, depois eles se dissolvem para suas
diversidades e compõem outros grupos que, em outros momentos também podem ficar
homogêneos, enfim... você a idéia de movimento, a idéia de que unidade,
diversidade e homogeneidade não são lugares fixos... é necessário transitar...
Entrevistada: E uma coisa bacana que existe é o respeito. As relações não partem para a
competição. Parece que essa vivência foi tão verdadeira, tão intensa, e as pessoas
acreditaram tanto nela, que existe essa liberdade e a compreensão de que, em
determinados momentos, você precisa se envolver em causas mais específicas.
284
Entrevistadora: Isso é uma construção comunitária, social e é tamm uma construção
cultural, não é? Uma construção de valores, de compreensão de mundo e de relações.
Uma construção cultural conquistada e produzida...
Entrevistada: Conquistada! Eu tenho a impressão que o curso (de formação de agentes
de defesa de direitos humanos e da cidadania) foi um marco. Nesse curso se tratou de
muitos temas importantes. Falou-se muito sobre preconceito e discriminação. Houve a
representação do movimento dos homossexuais. Enfim, foram muitas vivências. Eu acho
que esse aprendizado dificilmente será ameaçado por situações que, eventualmente, as
pessoas precisem priorizar.
Entrevistadora: Porque houve um investimento na teoria e também na prática. Houve um
investimento nas questões objetivas e uma vivência subjetiva. Quero dizer, a constituição
do movimento dessa região foi teórico, prático, objetivo, subjetivo, formal, informal,
institucional, não institucional.
Entrevistada: Múltiplo, criativo, artístico...
Entrevistadora: É importante deixar registrado: essa comunidade existe?!
Entrevistada: Existe! Às vezes o tempo atrapalha a nossa visibilidade... chegam novas
pessoas, que talvez não compreendam, mas acabam pensando as diferenças. Hoje a
população do CAPS faz uso dos espaços públicos junto à comunidade. Usam a Praça
dos Trabalhadores para jogar futebol...
Entrevistadora: Os espaços são de múltiplo uso. Institucionais ou não institucionais, eles
são públicos. São espaços públicos?
Entrevistada: São. São espaços públicos. Os espaços institucionais acabam requerendo
maior planejamento para a realização de algum evento que possa ocorrer. Mas sempre
o cuidado de chamar, convidar, envolver. Eu acho que essa idéia do “envolver para
fazer junto” é muito legal!
Entrevistadora: Que bela experiência! Eu acho que a quinta questão foi respondida:
como você avalia a importância do Tecendo a Paz para a população e para os alunos do
curso de Terapia Ocupacional da PUC-Campinas?
Entrevistada: Eu acho que o meu tempo é muito consumido para a construção do tecido
social e, muitas vezes, o tempo para sistematizar, refletir, buscar mais informações sobre
determinadas experiências que os alunos viveram e qual o impacto desse aprendizado
na época ou na vida futura deles, acaba ficando restrito. Eu sempre vejo muitos alunos e
ex-alunos da Terapia Ocupacional nos eventos que, de alguma forma, buscam a
inclusão, buscam o lugar da diversidade. Então, eu acho que uma influência sim, pois
percebo os alunos se colocarem como atores, dispostos a participar da construção social
para a inclusão. Na época do movimento Tecendo a Paz percebi que, para os alunos,
ficou mais claro o papel social da universidade, a importância da universidade compor
com os movimentos sociais, estar junto. Eu me lembro que, naquela época, a auto-estima
dos alunos de Terapia Ocupacional ficou muito alta. Porque eles estavam participando de
um movimento de muita ação e porque o discurso que nós defendíamos estava sendo
ouvido. Mesmo que às vezes com sentimentos de medo, o aluno de Terapia Ocupacional
se sentia dentro do movimento, com domínio e conhecimento da situação. E também,
com relação à atividade, acho que os alunos puderam compreender melhor como a
atividade pode ser transformadora, não apenas numa situação terapêutica definida, mas
também numa situação coletiva. Acho que eles puderam compreender que qualquer
situação em potencial pode ser transformadora.
285
Entrevistadora: Através da ação?
Entrevistada: Através da ação. Atualmente nossa prioridade tem sido o programa de
geração de renda. Antes, os alunos cumpriam suas atividades de estágio nos horários
obrigatórios e hoje, me surpreendo porque alguns alunos participam de algumas reuniões
de grupos voluntariamente, para continuar pensando a questão do coletivo mais amplo.
Entrevistadora: Por quê? Porque descobriram algum valor, se sentiram bem ou se
descobriram nessa atividade?
Entrevistada: Temos que considerar sempre o perfil de cada aluno, mas eu acho que
essa participação está aumentando. Acho que antes os alunos me acompanhavam...
Hoje eu tenho sido surpreendida com experiências muito positivas, eles estão mais
autônomos.
Entrevistadora: Eles começam a entrar na lógica do funcionamento da comunidade, que
não é paternalista, não é diretiva. E, talvez, eles estejam te dando esse retorno...
Entrevistada: Sempre existem aqueles alunos que se transformam em bases, alunos que
continuam suas experiências na região com os programas de aprimoramento. Às vezes
alguns alunos participam de atividades daquela comunidade ou em atividades na Casa
de Cultura e isso facilita a constituição da rede.
Entrevistadora: Os papéis dos alunos também se misturam, eles participam como
estudantes, mas também participam como cidadãos da vida comunitária. Interessante!
Indo para a última pergunta, há ainda alguma consideração que você julga necessária?
Entrevistada: Quando eu comecei a ler o resumo desta pesquisa, eu fui reconstituindo a
memória. Fui buscando os dados das disciplinas, do curso de direitos humanos, fui
lembrando das sensações que eu tinha na época. E era uma coisa muito viva! Havia
muita paixão pelo que estava sendo feito. Eu acho que, de alguma maneira, eu pude me
reconectar com aquele estado nesta entrevista. Tudo o que foi relatado provocou um
redimensionamento também da vida pessoal, porque para que tudo isso pudesse ser
construído, muito tempo extra de trabalho teve que ser colocado. Muito trabalho nos
finais de semana, à noite. Isso era possível naquele momento. Depois, em função da vida
pessoal, eu tive que fazer outras escolhas. Mas isso me reacendeu!
Entrevistadora: Isso te emociona ainda hoje?
Entrevistada: Nossa! Muito. Tanto é que essa vontade de um reencontro com o
sentimento de tudo que já foi conquistado, com esses valores, com essa confiança... está
muito presente. A vontade de rever, não numa posição saudosista, mas para concluir que
nunca na minha vida será possível viver o individualismo. Mesmo que neste momento eu
esteja fazendo a opção da prática clínica em consultório, que eu tentei no passado e que
a imensa solidão que eu sentia não me permitiu, eu sei que hoje eu tenho uma história
para olhar, tenho um produto que me permite entender que mesmo no espaço do
consultório será possível levar essa energia, essa compreensão. Mas esse é outro
capítulo...
Entrevistadora: O fato de você estar com poucas pessoas ou com mais uma pessoa
no consultório não significa “individual”, porque o coletivo está presente, mesmo que você
esteja sozinha.
Entrevistada: Exato!
286
Entrevistadora: Estas entrevistas m sido muito emocionantes e emocionadas, as
memórias de fato surgem com uma força arrebatadora. Além de coleta de dados, elas
têm sido um momento de reflexão e resgate de emoções, alimentando esperanças.
Porque, a partir das entrevistas e das memórias que delas surgem, os entrevistados
resgatam a vontade de reavivar os sentimentos de luta ou conquista.
Entrevistada: Para mim também, esses sentimentos me levam a fazer um balanço. Toda
essa força, essa autenticidade... De alguma maneira, a universidade me proporcionou
estar lá. A Faculdade de Terapia Ocupacional sempre teve muita confiança em cada
docente seu e sempre foi possível, para nós, ter muita autonomia. Eu acho que a
autonomia é a principal coisa para você poder criar, revolucionar a si e ao outro. De uns
tempos para eu tenho vivido na universidade um desencantamento. Parece que cada
vez mais tem tarefas burocráticas e elas nos tornam mais solitários, mais pesados. Cada
vez mais uma pressão e uma preocupação excessiva com aspectos que podem ser
relevantes, mas não combinam comigo. Então foi muito bom esse momento de olhar para
uma história recente, tão perto daquilo que eu acredito que deva ser mesmo o papel da
universidade e ver coisas que modificaram, que a comunidade está vivendo um momento
de poder colher... e aí, esse encontro que vontade de fazer de novo acho que tem a
ver com o momento de celebrar a colheita, não é? Em termos macro, minha análise fica
mais prejudicada... mas, ser movida pela crença de que é possível mudar... é a única
forma que eu sei viver... Foi muito boa também para mim essa entrevista! É uma
oportunidade e, por isso, também quero te agradecer.
Entrevistadora: As entrevistas têm sido muito boas, mas, infelizmente elas precisam
terminar... pelo menos neste momento e para este objetivo... Muito obrigada! Sua
contribuição foi muito importante!
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