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Sandra Regina Soares da Costa
UNIVERSO SONORO POPULAR:
Um estudo da carreira de músico nas camadas populares
PPGAS/MN/UFRJ
2006
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2
UNIVERSO SONORO POPULAR:
Um estudo da carreira de músico nas camadas populares
Sandra Regina Soares da Costa
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do titulo de Doutor em Antropologia Social.
Orientador: Professor Doutor Gilberto Cardoso Alves Velho
PPGAS/MN/UFRJ
2006
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3
Costa, Sandra Regina Soares da.
Universo sonoro popular: Um estudo da carreira de
músico nas camadas populares/ Sandra Regina Soares da
Costa. Rio de Janeiro: UFRJ/ MN/ PPGAS, 2006.
XI, 223 f. 29,7cm.
Orientador: Gilberto Cardoso Alves Velho
Tese (doutorado) UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social, 2006.
Referências Bibliográficas: 212-223.
1. Antropologia Social. 2. Carreira de Músico. 3. Músicos
das camadas populares. 4. Baixada Fluminense. I. Velho,
Gilberto Cardoso Alves. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social. III. Título.
4
UNIVERSO SONORO POPULAR:
Um estudo da carreira de músico nas camadas populares
Sandra Regina Soares da Costa
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social, do Museu Nacional, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários
à obtenção do titulo de Doutor em Antropologia Social.
Aprovada por:
Professor Gilberto Cardoso Alves Velho (orientador)
(Doutor, PPGAS/MN/UFRJ)
Professor Luiz Fernando Dias Duarte
(Doutor, PPGAS/MN/UFRJ)
Professora Yonne de Freitas Leite
(Doutora, PPGAS/MN/UFRJ)
Professora Elizabeth Travassos Lins
(Doutora, UniRio)
Hermano Paes Vianna Junior
(Pesquisador Autônomo)
Suplentes:
Professor Antonio Carlos de Souza Lima
(Doutor, PPGAS/MN/UFRJ)
Professora Myriam Moraes Lins de Barros
(Doutora, ESS/UFRJ)
PPGAS/MN/UFRJ
2006
5
Ao João Grandão, dono do meu coração.
Ao João Grandão, dono do meu coração. Ao João Grandão, dono do meu coração.
Ao João Grandão, dono do meu coração.
6
AGRADECIMENTOS
Aos docentes do curso de Ciências Sociais, da Universidade Federal Fluminense, onde
cursei a graduação. Pela qualidade do trabalho acadêmico, agradeço aos professores Maria
Celina D’Araujo, Eliane Cantarino, Luis Carlos Friedman e Marilia Medeiros.
O PPGAS do Museu Nacional proporcionou-me à obtenção dos títulos de mestre e
doutora. Graças aos seus funcionários, Tânia (secretaria), Álvaro (informática), Carla e Cristina
(Biblioteca Francisca Keller), com os quais sempre pude contar.
Ao corpo docente da instituição, de reconhecido valor, meu muito obrigada pela
possibilidade de convivência. Especialmente, à Bruna Franchetto, José Sérgio Leite Lopes e
Otávio Velho, com os quais tive o prazer de cursar disciplinas.
À minha banca de qualificação, formada pelos professores Luiz Fernando Dias Duarte
(PPGAS/MN), Yonne de Freitas Leite (PPGAS/MN) e Elizabeth Travassos Lins (UniRio) pelas
colaborações preciosas.
Junto ao corpo discente, também tive o prazer da companhia de Ana Telles, Adriana
Facina, Alessandra Barreto, Ana Carmem, Fernanda Piccolo, Rogéria Dutra e Pedro Lopes.
Devo a Gustavo Pacheco, o primeiro contato com a obra de Schafer. Um beijo também para
Francisco Chagas e José Gabriel Correa (ambos do LACED).
À profa. Myriam Moraes Lins de Barros (ESS/UFRJ) que gentilmente me recebeu em
seus cursos para a realização de meu Estágio Docência.
Ao prof. Julio Tavares (IACS/UFF) pelas fértil troca de idéias (você me oportunizou
conhecimentos que eu não teria acesso de outra forma) e pela amizade.
Aos colegas da UniAbeu, pela solidariedade: professores Pingo, Roberto Correa,
Valéria, Paulo Gil, Kiko, Júlio Maia, Anderson, Carlos Eduardo e Adalberto. Também sinto falta
dos queridos colegas (agora, em outras instituições uma pena), Mataruna (Unicamp),
Fabiana (Faculdade Estadual do Ceará) e Ana Patrícia. Agradeço também aos professores
Vinícius Branco e Vinícius Ruas (UFRJ), pela cooperação e ensinamentos quanto à atividade
docente.
Aos amigos-pesquisadores: Nilton Santos (beijos para Wilca) e Renata pela
colaboração (no trabalho e no lazer). Com Marco Antônio Perruso também possuo este duplo
vínculo, de boemia e academia.
Aos amigos Paulo Gato, Cacau Diegues, Pinocchio, Cristina Chagas e Giovana Silva.
Gostaria de vê-los mais, mas não tem dado, né? Pro Antonio DMC, agradeço seu cuidado.
7
Beijnhos também pros “indies”: Felipe, Fátima, Bruno e Raquel Black. É impossível não ser feliz
com todos vocês.
À Dona Anna Paula de Oliveira Mattos Silva (legal esses nomes gigantes, vontade
de por um senhor, dona, antes). Anna, a minha irmã. Além de minha melhor amiga, confidente
preciso ter muita paciência), também é companheira de tema de pesquisa. Trabalhou pacas
na conclusão de minha tese.
A todos os meus entrevistados (e peço desculpas àqueles que não aparecem ao longo
da tese. Infelizmente, não foi possível aproveitar todo o material de entrevistas neste trabalho)
solícitos, simpáticos, colaboradores. Um sonho pra qualquer pesquisador. Foram generosos
e confiaram em alguém que nunca tinham visto na vida. Em especial, para Denise. Sem você,
sua amizade e dedicação, este trabalho não se realizaria.
Gilberto Velho orientou-me durante o mestrado, e continuamos juntos no doutorado.
Confesso, cheia de encabulamento, que dei muito trabalho nos últimos quatro anos (problemas
de saúde, meus e na família). Peço desculpas públicas ao professor, que nunca me abandonou
(quando eu não acreditava, você restaurava a em mim mesma). Gilberto, ao cumprir seu
dever (missão é uma palavra melhor) de professor-orientador dosou preocupações e soluções
para com a produção acadêmica e meus problemas pessoais, de uma maneira, como sempre
ele é, severa e terna (é essa justa medida que mais admiro em você). Agradeço à sua
confiança e à sua (inacreditável) disponibilidade.
À minha família: Terezinha (mãe), Fernanda (sobrinha), Silvânia e Célia (irmãs) um
mundo de mulheres fortes, honestas e belas. Peço desculpas pelas ausências.
Ao Wagner, que trouxe felicidade, esperança e paz para minha alma e pro meu
coração. Que Deus abençoe o nosso amor.
Fui bolsista CAPES durante o doutorado. Agradeço o apoio da instituição e dos
contribuintes deste país que viabilizam os meus estudos desde a graduação.
A todos vocês, pela cumplicidade e apoio,
Com extrema e sincera gratidão,
Sandra.
PPGAS/MN/UFRJ
8
2006
RESUMO
UNIVERSO SONORO POPULAR:
Um estudo da carreira de músico nas camadas populares
Sandra Regina Soares da Costa
Orientador: Gilberto Cardoso Alves Velho
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia
Social.
Esta tese de doutorado propõe a investigação, a partir da realização de trabalho de campo,
como objeto geral, do universo social da carreira de músico, desenvolvida na Baixada
Fluminense, região do Estado do Rio de Janeiro. Especificamente, a idéia é partir do trabalho
que uma rede social formada por esses músicos realiza em escolas, associações voluntárias e
organizações não-governamentais (ONGs) para a difusão de conhecimento formal e não-formal
da música entre crianças e jovens. O objetivo principal é observar como essas carreiras se
constroem. Com isso, meu desejo é explicitar esse mundo de músicos e dos modos de
construção, transmissão e reprodução de conhecimentos produzidos pelas chamadas camadas
populares. A pesquisa estará preocupada com a questão da mudança social, promovida
através da ação coletiva dos músicos de camadas populares. Partindo da reconstrução de suas
trajetórias, através do levantamento da história de vida, pretende-se observar a carreira moral e
a carreira profissional que esses indivíduos constroem, com ênfase na margem de manobra e
negociação que realizaram a partir da definição de seus projetos e do seu campo de
possibilidades.
Palavras-chave:
Carreira de músico;
Músicos das camadas populares;
Baixada Fluminense.
PPGAS/MN/UFRJ
9
2006
ABSTRACT
POPULAR SOUND UNIVERSE:
A study of the popular musicians’s career
Sandra Regina Soares da Costa
Orientador: Gilberto Cardoso Alves Velho
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia
Social.
This doctoral dissertation proposes to investigate the social universe of the career of musician,
based on fieldwork undertaken in the Baixada Fluminense (Fluminense Lowlands) region of the
State of Rio de Janeiro. More specifically, we have here worked within the social network
formed by musicians in schools, volunteer associations and non-governmental organizations
(NGOs) in order to spread formal and informal knowledge of music among children and youth in
this region. Our main objective is to observe how these careers are constructed, explore
this world of musicians and explain the ways in which they construct, transmit and
reproduce knowledge throughout the so-called popular classes. Our research is concerned with
the question of the social change promoted by the collective action of musicians from the
popular classes. Reconstructing their trajectories via the investigation of their life histories, we
attempt to observe the moral and professional careers these individuals construct, emphasizing
the maneuver room they have in negotiating the definition of their projects and their field of
possibilities.
Kew-words:
Musical careers;
Popular musicians;
Baixada Fluminense.
PPGAS/MN/UFRJ
10
2006
SUMÁRIO
Considerações Iniciais 1
1 Baixada Fluminense: uma unidade “sócio-cultural”? 28
1.1 Introdução 29
1.2 Do “campo” estudado? – uma possibilidade de descrição 33
1.2.1 Os sentidos da Baixada: do “aqui não tem nada” ao “celeiro cultural” 42
1.2.2 As Ciências Sociais e os “dormitórios violentos” 54
1.2.3 Novas construções identitárias: do “gueto” ao “celeiro” 62
2 Música na escola 72
2.1 Pelas mãos de Denise – Desvio e liberdade na Baixada Fluminense 72
2.1.1 Quem é Denise? Migração nordestina e imagens da Baixada 75
2.1.2 A animação – arte e metamorfose 89
2.1.3 A animação – desvio e liberdade 96
3 Escola de música 101
3.1 Introdução 101
3.1.1 O susto – vertigem em Nilópolis 103
3.1.2 Nilópolis vem de Nilo Peçanha 107
3.2 A Escola de Música de Nilópolis 109
3.2.1 O alunado 113
3.2.2 As aulas públicas 117
3.2.3 O repertório 118
3.3 Mônica e o desprestígio social 120
3.3.1 Os passos da carreira – família, cor e origem 123
3.3.2 Outro passo importante na carreira – a zona sul 129
3.3.3 Inversão de hierarquia – a professora da Baixada 133
3.3.4 Musicoterapia – para si e para os outros 142
4 Música e dádiva 148
4.1 Introdução 151
4.2 Irmã Mercês – dádiva e amor cristão 161
4.2.1 O método 166
4.2.2 A família 168
4.2.3 Aluna, de novo... 170
4.3 Mauro “Rincon” – dádiva e cidadania 173
4.3.1 Família 177
4.3.2 Diamantes, rock e samba 178
4.3.3 Bob Marley e Calipso 182
4.3.4 De volta a Bel 185
4.4 João Mathias – dádiva e esperança 188
4.4.1 A herança musical 190
4.4.2 Os passos da carreira: aprendendo 193
4.4.3 Os passos da carreira – tocando 194
4.4.4 O uso da música 195
4.4.5 O método – “aprender-sem-querer-querendo” 197
4.4.6 Musica boa e música ruim 201
Considerações Finais 203
Referências Bibliográficas 212
PPGAS/MN/UFRJ
11
2006
A grandeza de uma profissão é talvez, antes de tudo, unir os homens;
só há um luxo verdadeiro, o das relações humanas.
Saint-Exupéry, em Terra de Homens.
12
Considerações Iniciais
Esta tese de doutorado propõe a investigação, a partir da realização de trabalho
de campo, como objeto geral, do universo social da carreira de músico, desenvolvida
na Baixada Fluminense, região do Estado do Rio de Janeiro. Especificamente, a idéia é
partir do trabalho que uma rede formada por esses músicos realiza em escolas,
associações voluntárias e organizações não-governamentais (ONGs)
1
para a difusão de
conhecimento formal
2
e não-formal
3
da música entre crianças e jovens. O objetivo
principal é observar como essas carreiras se constroem. Com isso, meu desejo é
explicitar esse mundo de músicos e dos modos de construção, transmissão e reprodução
de conhecimentos produzidos pelas chamadas camadas populares.
Durante os anos de 2000 e 2001 realizei o trabalho de campo que gerou minha
dissertação de mestrado.
4
Estudando o fenômeno cultural do movimento hip hop
fluminense travei contato, então, não com o universo dos músicos de rap, mas com
uma complexa rede social
5
de artistas e outros profissionais que se mobilizam pela
1
Para facilitar a escrita e a leitura do texto, fica convencionado a utilização da sigla ONG (de
uso corrente) para indicar organização não-governamental.
2
Aquele que visa à diplomação na área de música. Realizado em escolas formalmente
constituídas e que seguem uma grade curricular específica para a certificação do aluno como
músico (no caso desta pesquisa, como técnico).
3
Aquele que não visa à diplomação. Os conhecimentos musicais podem até ser transmitidos
em escolas do ensino regular, mas enquanto uma disciplina complementar, não sendo a
formação musical, o objetivo principal da instituição de ensino. Entretanto, esse tipo de ensino
é realizado geralmente em organizações não-governamentais, entidades associativas, e, como
veremos no decorrer desta pesquisa, até mesmo em residências de particulares.
4
Costa, 2002.
5
Conf. Bott (1976), Mitchel (1969 e 1973) e Epstein (1969).
13
música e pela “política”
6
, construindo suas carreiras, não pela produção musical,
como também pelo ensino da música aos jovens e adolescentes. Fui conhecendo, através
da pesquisa junto aos rappers, espaços nos quais a música era utilizada como forma de
mobilidade social e da implementação de uma determinada visão de mundo.
7
Os agentes
principais desse trabalho são músicos, na maioria dos casos, com nenhuma ou
pouquíssima educação musical formal, o que me chamou à atenção para o modo
peculiar como elaboram sua relação com a produção musical e com a transmissão de
conhecimentos.
Localizados, principalmente, no subúrbio carioca e na Baixada Fluminense,
8
esses músicos tem em associações voluntárias e organizações não-governamentais
(ONGs) os espaços por excelência de captação de recursos para o desenvolvimento de
seus projetos pessoais e comunitários, a partir do seu engajamento em diversos tipos de
movimentos sociais,
9
ligados ao “fortalecimento” do que chamam de “cultura
popular”.
10
Assim, esta pesquisa visa ser um aprofundamento dos estudos iniciados com
minha dissertação, sobre carreiras de músicos oriundos das camadas populares e das
questões que não puderam ser, antes, contempladas.
6
Termo usado pelo universo investigado. Significa “política” no seu sentido mais amplo, de
“relações políticas cotidianas”. A categoria aparece acompanhada, quase sempre, de uma
outra: “consciente”.
7
Conf. Greertz, 1989. O conceito será melhor explicado no decorrer deste capítulo.
8
Fica convencionado que podemos usar também, nesta tese, a expressão “Baixada” para nos
referirmos à Baixada Fluminense.
9
Cardoso, 1983 e Castells, 1974.
10
Ver Arantes, 1985 e Ayla & Ayla, 2002.
14
Através da linha temática “Indivíduo e Sociedade”, conforme desenvolvida por
Gilberto Velho,
11
a pesquisa parte, inicialmente, dos eixos teóricos conhecidos como
Fenomenologia e Interacionismo Simbólico, o que significa:
Uma visão da sociedade como formada por indivíduos ou grupos que se
engajam em ações, i.e., em atividades que desempenham ao interagirem uns
com os outros. A sociedade é vista como existindo em ação, e os indivíduos ou
grupos engajados em ações são percebidos como a realidade mais fundamental
da vida social. A organização social e a estrutura social, menos que
determinantes das ações, derivam delas.
12
A pesquisa estará preocupada com a questão da mudança social, promovida
através da ação coletiva
13
dos músicos de camadas populares. Partindo da reconstrução
de suas trajetórias, através do levantamento da história de vida,
14
pretende-se observar
a carreira moral
15
e a carreira profissional
16
que esses indivíduos constroem, com
ênfase na margem de manobra e negociação que realizaram a partir da definição de seus
projetos
17
e do seu campo de possibilidades.
18
11
Que orientou esta pesquisa.
12
Dicionário de Ciências Sociais, 1987: 625.
13
Becker, 1977.
14
Becker, 1993. Outros autores discutem e problematizam a utilização das biografias pelas
ciências sociais. Entre outros ver: Bourdieu (1998) e Passeron (1990).
15
Goffman, 2001.
16
Ver Becker e Strauss, 1970 e Hughes, 1971 e 1980.
17
Conf. Schtz, 1979.
18
Ver Velho (1997: 27): “[...] o projeto não é um fenômeno puramente interno, subjetivo.
Formula-se e é elaborado dentro de um campo de possibilidades, circunscrito histórica e
culturalmente, tanto em termos da própria noção de indivíduo como dos temas, prioridades e
15
A realização do trabalho de campo com observação participante desse universo
de músicos foi momento importante deste trabalho, que me possibilitou conhecer um
mundo artístico
19
e uma variedade de tipos sociais
20
emergentes no ensino da música na
área conhecida como Grande Rio. Inicialmente, procurarei mapear uma rede de
trabalho, acompanhando um desses músicos-professores, que me levou a ter contato
com outros membros que cooperam,
21
de maneira direta e indireta, para a realização de
atividades educativas ligadas à música.
A música como estilo de vida
Todos conhecemos histórias de músicos de samba e de choro, para dar um
exemplo, que tiveram vidas miseráveis (no que diz respeito às suas condições
socioeconômicas) e das grandes dificuldades que enfrentaram frente ao showbusiness
(dificuldade de gravação, de realização de shows, de execução radiofônica etc), apesar
de reconhecidos como compositores, cantores e instrumentistas de grande valor.
22
Para
não pensarmos que se trata de uma mazela apenas brasileira, nos Estados Unidos
encontramos em situação semelhante os músicos de jazz,
23
apenas citando outro
exemplo.
24
paradigmas culturais existentes. Em qualquer cultura um repertório limitado de
preocupações e problemas centrais ou dominantes.”
19
Becker, 1977.
20
Becker, 1982.
21
No sentido de cooperação, conf. Goffman, 2002.
22
Conf. Sandroni, 2001; Vianna, 1995 e Tinhorão, 1998.
23
Entre outros, ver Becker (1963, 1997) e Hobsbawn (1996, 1999).
24
Ative-me, nos casos citados acima, ao nosso último século, e a músicos que, geralmente,
compartilham com meus entrevistados a condição de classe e de cor. Entretanto, temos
trabalhos sócio-antropológicos que mostram músicos em condições históricas e sócio-culturais
16
O que me chamou à atenção nos jovens músicos do rap que pesquisei, foi sua
crítica à atual indústria cultural, e, aí, acredito eu, resida o seu grande diferenciador: sua
disposição em construir uma indústria para a produção e difusão do rap alternativa
àquela dominante - uma posição não-passiva e construtiva frente ao mundo artístico
estabelecido. Na maior parte da bibliografia produzida sobre o tema, o rap e o hip hop
não são contemplados como construções estéticas, mas como um “contra-discurso”,
uma “reação”. Essas análises, mesmo que involuntariamente, acabam por menosprezar a
capacidade criativa e artística desses artistas. Também apontam para aquilo que tem
sido chamado de “protagonismo juvenil”:
Durante as décadas de 70 e 80, apareceu um novo ator social juvenil: o jovem das
favelas, das zonas e dos bairros populares. Eles haviam estado por por muito
tempo, mas agora conseguiam maiores âmbitos de expressão, construíam novas
formas de recriação e de resistência cultural, novos umbrais de adscrição de
identidade.
25
“Recriação” e “resistência” apontam para grupos que vivem numa situação de
“sobre-vivência”, de “sub-existência”. Acredito que a partir do conceito de criação,
podemos encarar melhor a produção dos setores artísticos das camadas populares. A
idéia de que esses grupos apenas “resistam”, nega-lhes seu poder criativo. A “reação” é
uma ação contra outra ação, logo esses grupos se construiriam apenas em oposição a
determinados setores, e não numa relação dialógica. Sua existência é limitada a
diversas. Os constrangimentos da profissão de músico podem ser vistos, por exemplo, a partir
da trajetória de Mozart (Elias, 1995: 9): “[...] Mozart várias vezes esteve próximo do desespero.
Aos poucos, foi se sentindo derrotado pela vida. Suas dívidas aumentavam”. Pode-se observar
a trajetória de outro músico “clássico” no trabalho de Guérios (2001) sobre Heitor Villa-Lobos.
25
Arce, 1999: 79.
17
“reagir”, seu gosto
26
é construído em “reação” a algo pré-existente. Ou seja, os
parâmetros da sua existência (e de toda a sua expressão e realização) estariam
condicionados à uma condição reativa, alavancada pelo seu “outro”, um “outro”
hierarquicamente superior. Suas motivações não seriam fruto de suas próprias
aspirações, mas da constante “necessidade” imposta pelo “outro”. Esses artistas,
enquanto atores sociais estariam sujeitos a um jogo em que as regras sempre vêm de
cima, mesmo quando da sua produção artística, impregnada dessa “necessidade” e desse
“condicionamento” imposto por outros o que acaba por desqualificá-los enquanto
autores. O exame do processo artístico em virtude de uma condição social, que acredita-
se ser, de “reação” e “sobrevivência” encarcera a produção popular numa condição de
sub-arte, ou de arte periférica. Esse tipo de análise não contribui para a compreensão do
fenômeno estético nas camadas populares.
As referências bibliográficas, produzidas no âmbito das ciências sociais, cujo
tema são músicos e música, sobre as quais me detive durante o projeto de mestrado são,
de alguma forma, monotemáticas - versam sobre um tema específico, o hip hop.
Entretanto, num sentido mais geral, ajudaram-me a compreender um problema:
correspondem à uma parte recente da produção antropológica nacional sobre “culturas
populares urbanas”. Esta tese, nesse sentido, pretende contribuir para estas pesquisas,
tratando do tema da “culturas populares brasileiras” e das “culturas produzidas pelas
camadas populares”.
Um levantamento parcial
27
aponta que não podemos pensar necessariamente
numa produção antropológica ou sociológica atual que prime por teorizar a cerca das
26
Gans, 1974.
27
Este levantamento inicial é extremamente precário. Não se faz menção, por exemplo, à rica
bibliografia antropológica desenvolvida a partir das idéias de “cultura da classe operária” e/ou
“cultura da classe trabalhadora”.
18
“culturas populares”. Encontramos, com pequenas exceções, um vasto complexo de
pesquisas de cunho etnográfico sobre manifestações conhecidas como populares,
28
mas
que não estão necessariamente ocupadas em definir seus limites. Mas durante décadas o
debate sobre o caráter nacional e a identidade nacional passaram pelos debates sobre
“cultura popular”
29
.
Por outro lado, temos as pesquisas sobre as “camadas populares”, incluindo suas
artes e artistas,
30
seus modos de habitar e viver,
31
suas formas de trabalho, sociabilidade
e diversão,
32
seus jogos,
33
suas religiosidades
34
etc. Seus territórios de investigação são
comumente, os subúrbios e as favelas das grandes capitais do país. As categorias com as
quais trabalham são “pobre”, “pobreza”, “povo”, “popular”, para pensar as práticas
sociais e as motivações desses sujeitos, mostrando principalmente, a formação de uma
determinada identidade social. Busca-se compreender as manifestações populares a
partir da análise dos significados que são dados pelos seus próprios produtores e
consumidores. As categorias de identidade regional são problematizadas com as de
identidade étnica e política.
28
Com a noção de “folclore” existe uma “teoria” produzida. Ver: Segato, 1989; Carvalho, 1989 e
Vilhena,1997, que dão conta desse caso. Vários intelectuais de diferentes matrizes se
dedicaram à cultura popular em debates ferrenhos sobre a identidade nacional. Entre os
citados acima ver também Ortiz, 1986 e Travassos, 1997.
29
Por exemplo, Ortiz, 1980 e 1986; Chauí, 1980 e 1986. No tocante às especificidades da
música, ver Travassos, 1997.
30
Vianna, 1999; Vianna, 1995 e 1997; Azevedo, 200; Ceva 2001; Guimarães, 1998;
Herschman, 200; Silva, 1998; Tella 2000.
31
.Zaluar, 1985; Duarte, 1986.
32
Segala, 1991; Guedes, 1997; Vianna, 1997; Duarte, 1999; Heilborn, 1984; Magnani, 1984;
Travassos, 2000; Araújo, 1980.
33
DaMatta e Soárez, 1999.
34
Maggie, 1975; Birman, 1988.
19
A arte e as camadas populares
Em “Universo Sonoro Popular”, motivada pelos problemas citados, pretendo
investigar, a partir da pesquisa sobre a construção da carreira de músico,
35
as
gramaticalidades que são estabelecidas entre setores diversos das “camadas populares”,
e suas relações com os outros setores da sociedade. Aqui, faz-se necessário indicar o
quê, inicialmente, entende-se por “cultura popular” e “camadas populares”. Uso as
definições de Velho (1999), nas quais:
A noção de cultura popular remete à dicotomia elites e classes e/ou camadas
populares. Essa visão dualista distingue dois níveis de cultura dentro de uma
sociedade, relacionados não à desigualdade econômica e política como, de um
modo geral, a visões de mundo e experiências sociais peculiares (Velho, 1999: 64).
E continua:
A cultura popular pode, portanto, no caso de se marcar seu caráter heterogêneo e
plural, ser desdobrada em culturas populares. Nesse caso, sublinha-se a sua
diversidade regional, étnica, ocupacional, religiosa etc. O povo, as camadas e/ou
classes populares são focalizados, sob esse ângulo, nos seus diferentes modos de ser
e de se expressar. [...] Estaremos, assim, lidando com a complexidade e
heterogeneidade da vida cultural da sociedade contemporânea, com seus diversos
níveis, dimensões e combinações. (Velho,1999: 65).
O universo das camadas populares brasileiras é, portanto, amplo, variado e
heterogêneo. Além da classe trabalhadora, propriamente dita, no campo e na cidade,
identificamos camponeses, pequenos proprietários, bóia-frias, pescadores,
35
Sobre a profissionalização de músicos ver Silva (2005) e Travassos (1999).
20
desempregados, semi-empregados, marginais ao mercado de trabalho e de todos os
outros tipos, empregados domésticos, funcionários públicos, colarinhos-brancos,
técnicos de nível médio, comerciários, bancários, diversos setores de camadas
médias, moradores de favelas, conjuntos, subúrbio, periferia etc. As relações desse
universo com outras categorias e grupos sociais podem ser mais ou menos inclusivas
ou antagônicas, variando em contextos históricos e regionais. A indiscutível
iniquidade social brasileira estabelece terríveis fossos, mas não exclui a possibilidade
de interações sociais e simbólicas entre os diferentes mundos e classes, mediante
relações de dominação ou de outra natureza, como foi mencionado. (Velho, 1999:
69)
As definições acima nos dão conta de uma cultura heterogênea (não-monolítica),
relacionada às camadas menos favorecidas (de poder econômico e político) da
população. O autor destaca, sobretudo, a “natureza relacional e interativa” dessas
definições e seus limites fluidos.
36
A produção artística desenvolvida e consumida pelas camadas populares tem
sido vista, de uma maneira geral, de forma ambígua: ora exaltada (aquela classificada
como “genuína”, “de raiz”), ora demonizada (dita “de baixa qualidade estética”).
37
Também, as idéias a respeito da “marginalidade” e do “consumo de massas” desses
fenômenos, constantemente, tem marcado alguns discursos. Nesse sentido, este trabalho
recorta seu objeto, definindo-o a partir dos artefatos culturais produzidos por músicos
das camadas populares, não se atendo, aos gêneros/estilos desenvolvidos. Assim, a
pesquisa tem como questão principal, investigar como músicos, oriundos das “camadas
36
“A sociedade complexa é vista constituída por dois conjuntos culturais básicos que produzem
e vivem essa relação de oposição completar” (Velho, 1999: 65).
37
Ortiz (1980: 67) discute a produção das ciências sociais, que reconhece os fenômenos da
cultura popular vistos a partir das dicotomias de reprodução social/elemento de transformação.
21
populares”, desenvolvem seus trabalhos. Esses artistas podem sociologicamente ser
considerados como outsiders?
38
Como essa posição se constrói, e quem são os agentes
dessa construção?
Como atores sociais em constante processo ativo de interação, o que se busca é
uma compreensão mais dialética das trocas que se dão entre diferentes níveis de cultura,
sem que a priori se defina uma posição agonística ou dominada/passiva/reativa
desses artistas, em que a construção das suas identidades
39
passe sempre pelo pólo
negativo da relação (enquanto dominado, passivo, reativo). Minha hipótese inicial é
que existe um quadro de mudança na qualidade das relações entre camadas populares e
outros setores da sociedade, que ainda não foi contemplado pela literatura antropológica
brasileira, até, claro, pelo seu recente desenvolvimento. Essa mudança se daria devido à
formação de novas subjetividades.
40
Os músicos seriam então “um bom exemplo” para
se pensar como se dão esses processos de interação, que a partir das suas trajetórias,
como pode-se observar, marcadas por estigmas sociais,
41
acredito ser possível discutir
essas questões.
Mas como lidar com o tema de “músicos” e “música” numa pesquisa sócio-
antropológica?
38
Conf. Becker, 1963.
39
Identidade no sentido que Strauss (1999) dá ao termo: “Essa veiculação da identidade
individual (igualmente agregada) à coletiva, bem como de sua respectivas coreografias
temporais cada uma afetando a outa no tempo conduz a uma igual associação explícita
entre a estrutura e a interação” (Strauss, 1999:27). E mais: “[...] a identidade está associada às
avaliações decisivas feitas de nós mesmos – por nós mesmos ou pelos outros. Toda pessoa se
apresenta aos outos e a si mesma e se nos olhos dos julgamentos que eles fazem dela”
(Ibid:29).
40
Para as relações entre subjetividade e sociedade ver Velho, 1989.
41
Conf. Goffman, 1998.
22
Algo sobre música
Os estudos musicológicos nos dizem que a música é construída pelas ordenações
de som, ruído e silêncio (ou intervalo). Wisnik (2001: 30), assim a define:
A música, em sua história, é uma longa conversa entre o som (enquanto recorrência
periódica, produção de constância) e o ruído (enquanto perturbação relativa da
estabilidade, superposição de pulsos complexos, irracionais, defasados).
Mais adiante temos:
O jogo entre som e ruído constitui a música. O som do mundo é ruído, o mundo se
apresenta para nós a todo momento através de freqüências irregulares e caóticas com
as quais a música trabalha para extrair-lhes uma ordenação (ordenação que contém
também margens de instabilidade, com certos padrões sonoros interferindo sobre
outros). (Wisnik, 2001: 33)
Essa definição física sobre a natureza das músicas, elaborada por Wisnik,
desdobra-se numa perspectiva sócio-antropológica, entendendo música (sua produção e
sua aceitabilidade) como um fenômeno social:
Um grito pode ser um som habitual no pátio de uma escola e um escândalo na sala
de aula ou num concerto de música clássica. Uma balada “brega” pode ser
embaladora num baile popular e chocante ou exótica numa festa burguesa (onde
pode ser tornar frisson chique/brega). Tocar um piano desafinado pode ser uma
experiência interessante no caso de um ragtime e inviável em se tratando de uma
sonata de Mozart. Um cluster (acorde formado pelo aglomerado de notas juntas, que
23
um pianista produz batendo o pulso, a mão ou todo o braço no teclado) pode causar
espanto num recital tradicional, sem deixar de ser tedioso e rotinizado num concerto
de vanguarda acadêmica. Um show de rock pode ser um pesadelo para os ouvidos do
pai e da mãe e, no entanto, funcionar para o filho como canção de ninar no mundo do
ruído generalizado.Existe uma ecologia do som que remete a uma antropologia do
ruído [...]. (Wisnik, 2001: 32)
Essa “ecologia do som” nos indica que existe um lugar social para a música (e
para sons, ruídos e silêncios outros), e isso quer dizer, que esse “lugar” não deve ser
reduzido ou simplificado, mas complexificado, problematizado. Muito menos, nos cabe
aqui, normatizá-lo. Meu interesse, nesse sentido, é descobri-lo, conhecê-lo e descrevê-
lo. Buscar descrever, a partir de uma perspectiva sócio-antropológica, a paisagem
sonora
42
de uma dada localidade. Quero dizer: que sons (que músicas) estão inseridas
numa localidade de forma a lhe trazer identidade? Ou que sons/músicas ajudam a
compor a identidade socialmente construída de uma dada localidade?
Numa perspectiva sócio-antropológica, a música é legitimidada como objeto de
pesquisa por ser - a sua produção - uma prática da vida social:
A música não deve ser pensada apenas como uma estrutura de sons, mas, sobretudo,
como um acontecimento que se configura como desempenho e está inserido numa
sociedade e numa situação dadas (Seeger, 1977: 43)
42
Termo cunhado por Murray Schafer (2001:366): “Paisagem sonora o ambiente sonoro.
Tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro vista como um campo de estudos. O termo
pode referir-se a ambientes reais ou a construções abstratas, como composições musicais e
montagens de fitas, em particular quando consideradas como um ambiente”. E ainda: “A
paisagem sonora é qualquer campo de estudo acústico. Podemos referir-nos a uma
composição musical, a um programa de rádio ou mesmo a um ambiente acústico como
paisagens sonoras.” (Ibid: 23).
24
Nesse sentido, a definição de Schafer (1991: 35) nos é de extrema valia:
“Música é uma organização de sons (ritmo, melodia etc.) com a intenção de ser ouvida”.
A intencionalidade contida num objeto sonoro nos traz informações preciosas sobre as
motivações do seu autor e da sociedade no qual ele está inserido. Entretanto, considero
que estas informações não são necessariamente expressas de forma óbvia na obra de
arte. Assim, esta pesquisa o trata da análise (ou interpretação) das letras (ou poemas)
das músicas a partir de uma perspectiva sócio-antropológica, como tem acontecido com
certa regularidade nas Ciências Humanas.
43
Trata, em primeiro lugar, da carreira de
músico e das práticas e constrangimentos sociais que esses músicos vivenciam para
desenvolver sua atividade artística e profissional. Trata daquilo que Becker (1977: 9)
chamou de mundo artístico: “constituído do conjunto de pessoas e organização que
produzem os acontecimentos e objetos definidos por esses mesmo mundo como arte”.
A idéia do autor é que se inverta a seqüência dos passos da pesquisa: ao invés de
investigarmos o fenômeno pela análise do seu produto final - a música (o que
eqüivaleria a dizer: entender o todo, tomando-lhe apenas uma parte), devemos
compreender o contexto social que produziu tal artefato cultural:
[...] Isto significa que não começamos por definir o que é a arte, para depois
descobrirmos quem são as pessoas que produzem os objetos por nós selecionados;
pelo contrário, procuramos localizar, em primeiro lugar, grupos de pessoas que
estejam cooperando na produção de coisas que elas, pelo menos, chamam de arte.
(Becker, 1977: 10)
43
As letras e os poemas podem ser usados nesta pesquisa de maneira acessória, mas não
como um fim em si mesmo.
25
O artefato (a música) não contém em si todos os elementos explicativos que
justifiquem a sua existência, ou mesmo que possam auxiliar, de maneira exclusiva,
numa interpretação sobre quem a produziu e sua sociedade e/ ou cultura. Sobre isso,
Becker (1977: 9) nos diz:
É possível entender as obras de arte considerando-as como o resultado da ação
coordenada de todas as pessoas cuja cooperação é necessária para que o trabalho seja
realizado da forma que é.
Enquanto um fenômeno social, as condições sociais de produção da música é um
fato que complexifica o ato da criação. O self criativo não pode ser visto apenas como
um ente transcendental, mas uma estrutura de um indivíduo social - de uma pessoa, com
suas pré-disposições imaginativas e existenciais, estabelecida num mundo social:
A música, enquanto um meio de comunicação, contribui também para a construção
da realidade. A música, pois, também tem algo a ver com sexismo, etnicidade ou
classismo. Através da nossa prática musical contribuímos para a manutenção das
estruturas sexistas da sociedade, contribuímos para a existência da etnicidade, e
contribuímos também para a diferenciação classista”. (Martí, 1999: 30)
Significa que sua obra não é fruto “apenas” do seu ensimesmamento, mas que o
próprio ensimesmamento está susceptível às informações do mundo exterior. E que
“mundo exterior” é esse?
26
A sociedade significativa
Somos, desde muito cedo, estimulados a acreditar e a operacionalizar o conceito
de “sociedade”. As nossas ações (coletivas ou individuais), nossas idéias, nossos ideais,
nossas perspectivas o conjunto disforme a que chamamos usualmente de
“referências” são balizados pelo que a “sociedade” “pensa”, “determina”, “incute”.
Respondemos (de forma positiva ou negativa) a uma etiqueta socialmente construída. E
essa idéia de uma “sociedade” é algo por demais frouxo. Usualmente, fala-se em
“sociedade ampla” e “sociedade nacional”, para dar conta de um tipo de cultura
nacionalizada. Mas, os indivíduos transitam em diversas esferas de ação e afecção e
o “nacional”, dada a transversalidade que o caracteriza, é um constructo difuso, que,
dependo do universo social estudado se torna difícil de delinear. Daí, considero que
para tratar da construção da carreira de músico, além de investigar o mundo artístico,
devemos também tentar delimitar a sociedade significativa que esse músico reconhece e
da qual participa. Sociedade significativa é a expressão que Goffman usa para definir
toda a área de ação com a qual o “eu” de um indivíduo interage. O autor não realiza
nenhum exercício teórico de definição exaustiva do conceito, que aparece de forma
discreta, quando este define carreira:
Uma vantagem do conceito de carreira é sua ambivalência. Um lado está ligado a
assuntos íntimos e preciosos, tais como, por exemplo, a imagem do eu e a segurança
sentida; o outro lado se liga à posição oficial, relações jurídicas e um estilo, e é parte
de um complexo institucional acessível ao público
44
. Portanto, o conceito de carreira
permite que andemos do público para o íntimo, e vice-versa, entre o eu e sua
sociedade significativa, [...] (Goffman, 2001: 9).
44
Grifo nosso.
27
Proponho que o conceito sinaliza para a leitura da sociedade ampla”, da
“sociedade nacional” em que o indivíduo desenvolve sua vida. Logo, seus familiares
mais próximos, seus vizinhos, seus amigos, e também aqueles outros circuitos sociais
que o influenciam diretamente: as escolas que freqüentou, os locais em que trabalhou,
as formas de lazer que o agradam e as que tem acesso. Também podemos incluir todo o
rol de informações a que o indivíduo é submetido pelos canais midiáticos. Identifica,
dentre as representações sociais a que foi submetido, àquelas que o indivíduo escolheu
ou acolheu (consciente ou inconscientemente) para a composição do seu “eu”.
Considero-o, também, o melhor conceito para pensar o que foi proposto como
relações do tipo “indivíduo e sociedade”, na atual fase de desenvolvimento das relações
sociais e da produção e acesso à informação nesses tempos definidos como
mundializados e/ou globalizados.
45
No caso dos artistas, e como é concomitante à
diversas outras profissões e tipos sociais, a chamada “pós-modernidade” se manifesta
(também, e não exclusivamente) como a possibilidade de conhecimento e ingresso
em múltiplas formas de ethos e de visões de mundo,
46
o que, podemos especular, pode
45
Ver Ortiz, 1996 e 2000.
46
Ethos e visão de mundo são aqui entendidos como os definiu Geertz (1989:143): “Na
discussão antropológica recente, os aspectos morais (e estéticos) de uma dada cultura, os
elementos valorativos, foram resumidos sob o termo ethos, enquanto os aspectos cognitivos,
existenciais foram designados pelo termo visão de mundo. O ethos de um povo é o tom, o
caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral e estético e sua disposição, é a atitude
subjacente em relação a ele mesmo e ao seu mundo que a vida reflete. A visão de mundo que
esse povo tem é o quadro que elabora das coisas como elas são na simples realidade, seu
conceito da natureza, de si mesmo, da sociedade. [...] o ethos torna-se intelectualmente
razoável porque é levado a representar um tipo de vida implícito no estado de coisas real que a
visão de mundo descreve, e a visão de mundo torna-se emocionalmente aceitável por se
apresentar como imagem de um verdadeiro estado de coisas do qual esse tipo de vida é
expressão autêntica”. Ver também Bateson, 1967.
28
trazer conseqüências substanciais sobre o self do indivíduo, e a alteração da sua
sociedade significativa. “A-opinião-que-importa” não chega apenas pela via do controle
social dos vizinhos
47
ou da família, a quantidade e a qualidade das informações são
alteradas drasticamente e quando falo em informações falo de qualquer tipo: aquelas
relativas à política externa de outros países, aos modos de viver de povos estrangeiros,
aos artefatos culturais de outras regiões, o conhecimento de outras formas de
religiosidade, de novas modos e gostos. Enfim, o campo de possibilidades
48
dos
indivíduos se transformou acentuadamente com o desenvolvimento da chamada “cultura
de massas”.
49
Não estou dizendo que exista uma inexorabilidade avassaladora dos
processos de mundialização e globalização. Entretanto, acredito que ao tratar do self e
da carreira de artistas devemos averiguar todas as forças que possam estar concorrendo
para as suas formações. Nesse sentido, essa pesquisa também se presta a averiguar de
que forma está ocorrendo ou não, o fluxo dessas influências
50
sobre a vida dos
indivíduos das camadas populares e suas repercussões nos processos de construção
social da pessoa.
O recurso do cotidiano: músicos-professores da Baixada
Para desenvolver a pesquisa - um estudo sobre a construção da carreira de
músico nas camadas populares -, acredito que o fenômeno observado deva ser visto a
partir da sua origem. Assim, ao invés de tentar reconstruir a história de vida de músicos
47
Um bom exemplo do tipo de situação em que o controle social é exercido pela vizinhança
está no trabalho de Elias e Scotson, 2000.
48
Ver Velho, 1999.
49
Entre outros, podemos destacar na discussão a respeito de cultura de massas e
transformações das identidades locais-nacionais Martin-Barbero, 1997 e Canclini, 1997 e 2001.
50
Conf. Hannerz, 1997.
29
famosos, optei por acompanhar esse desenvolvimento desde os momentos iniciais e
cotidianos quando do ensino e da aprendizagem das práticas musicais. Até porquê,
uma parcela exígua de artistas consegue ter “sucesso”, enquanto um grande número se
mantém na área da música graças a um salário (relativamente) fixo de professor.
Também, porque dessa forma, posso acompanhar todos os passos que são necessários
para esse desenvolvimento da carreira, estando em contato privilegiado com o aspirante
(aluno) e o profissional (professor).
Acreditei, inicialmente, que fosse possível acompanhar o trabalho de músicos
que participam de projetos nas áreas mais socialmente desprestigiadas do Rio de Janeiro
o subúrbio carioca e a área do Grande Rio conhecida como Baixada Fluminense. Mas
o número de projetos sociais que se desenvolvem nessas áreas é muito superior ao que
acreditava. Como estratégia de trabalho, decidi, então, recortar os municípios da
Baixada Fluminense,
51
lugar marcado no imaginário social deste estado (e em certa
medida, até do país) como “violento” e de “condições precárias”.
52
Marcadamente ocupada por população que poderia ser classificada como das
“camadas populares” e de “pequena classe média”, a Baixada Fluminense nos oferece
um cenário peculiar. Diferente da cidade do Rio de Janeiro, sobre a qual se
convencionou utilizar a dicotomia “asfalto/favela”, para descrever a paisagem e a
população “dividida” entre as áreas urbanizadas e aquelas de ocupação irregular, na
Baixada Fluminense, tem-se a sensação de um continuum maior quanto à ocupação
social do espaço. O adensamento populacional da região ocorreu a partir da década de
51
A área conhecida como Baixada Fluminense não compõe uma região administrativa ou
mesmo um espaço geográfico de definição inequívoca. Entretanto, tem-se aceito a idéia de que
é formada pelos municípios de Nova Iguaçu, Duque de Caxias, São João de Meriti, Nilópolis,
Mesquita, Queimados, Japeri, Paracambi, Belford Roxo, Magé e Guapimirim. (Enne, 2002: 21)
52
Conf. Beloch, 1986; Enne, 1995 e 2002; Farias de Almeida, 1998.
30
1930 (antes, basicamente área rural), quando grandes levas de migrantes, recém-
chegados ao Rio de Janeiro, foram ocupar o lugar.
53
Em sua maioria, nordestinos,
54
que
compraram lotes regularizados, e deram matizes ao aspecto da população local. Dessa
forma, não existem enclaves de “brancos ou “negros” (como nas combinações de
asfalto/favela), mas uma população que com freqüência se definiria como “morena”.
Durante o ano de 2002, iniciei o trabalho de campo, fazendo os primeiros
contatos. A partir de uma sondagem inicial, destacaram-se na produção de espaços para
a prática e o ensino da música na Baixada Fluminense, os seguintes:
Organizações não-governamentais;
Escolas de música da rede pública;
Animadores culturais;
Igrejas evangélicas;
Associações voluntárias.
Os músicos-professores que investiguei desenvolvem seus trabalhos nestes
espaços sociais.
55
O material de pesquisa originou-se principalmente a partir de trabalho
de campo realizado na Associação de Músicos na Baixada, na Escola Municipal de
Música de Nilópolis, e da participação de eventos junto à animadores culturais. Durante
53
O período de 1930-50 é descrito como momento importante da migração no estado do Rio
de Janeiro (Abreu, 1997: 107).
54
Também há significativa população oriunda de Minas Gerais.
55
Em sua pesquisa sobre a prática musical numa cidade inglesa, Finnegan (1989:193) destaca
que: “The home, school and church, as well as the local pubs and social clubs, serve as more
than just the physical places for music-making, for the also provide a complex of expected roles
and opportunities for music. Music does not just happen ‘naturally’ in any society, but has to
have its recognised time and place, its organization of personnel, resources, and physical
locations”.
31
a pesquisa de mestrado, recolhi material significativo junto aos rappers que prestavam
serviços à ONG Afroreggae, no âmbito do projeto “Escolas da Paz”, acompanhando
durante seis meses oficinas de discotecagem , junto à crianças e adolescentes, numa
escola pública em Bom Pastor, bairro de Belford Roxo.Durante o ano de 2003, iniciei
observação participante junto à Associação de Músicos da Baixada. É uma ong que
trabalha com os estilos de chorinho e samba, contando atualmente com 90 alunos e
cinco professores. Fundada em 1991 por um grupo de 30 “amigos” (músicos e/ou
amantes da música), que tinham como idéia inicial criar um espaço que servisse aos
seus encontros, e que se desdobrasse, tal como aconteceu, em dois projetos: a Casa do
Compositor e a Escola de Música. Localizada no município de São João de Meriti,
conta com verba do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) e de
doações para manter suas atividades. Além do ensino da música, a ong se dedica a
implementar noções de cidadania junto aos seus alunos. Não é um ensino seriado e não
existem distinções de turmas. Os alunos tem idade variando entre 9 e 17 anos e exige-se
que estejam matriculados na rede pública de ensino para poder participar do projeto.
Tenho acompanho algumas aulas, fiz entrevistas, e assisti a uma apresentação pública
no bairro em que a ong funciona.
Na Baixada Fluminense existem três escolas públicas de música: Escola
Municipal de Nilópolis, Escola Municipal de São João de Meriti, e uma extensão da
Escola de Música Villa-Lobos em Paracambi. Em Nilópolis, contam-se dois mil alunos,
e um corpo docente composto por 30 professores. O curso tem duração de quatro anos.
Os alunos são divididos em faixas etárias – há classes para crianças de 7 a 11 anos, uma
faixa intermediária que congrega a maior parte da população da escola, para aqueles a
32
partir dos 12 anos. E uma terceira classificação, que é a turma da terceira idade.
56
Igualmente acompanhei aulas, fiz entrevistas, e observei-os em participações públicas.
Os animadores culturais
57
são prestadores de serviço (cooperativados e não-
concursados), ligados às escolas da rede pública estadual, onde desenvolvem suas
atividades de promoção artística junto à comunidade estudantil. Podem trabalhar com
diversas formas de expressão artística, mas, na Baixada Fluminense, a música tem tido
especial destaque. Promovem o ensino de instrumentos, de canto e montam pequenas
apresentações na própria escola. Encontrei-me com freqüência junto a dois animadores
em especial: João (que trabalha em Belford Roxo) e Denise (vinculada à Nova Iguaçu).
As Igrejas Evangélicas foram aqui elencadas devido à informações recebidas
durante o campo. Dos dois mil alunos da Escola de Nilópolis, num cálculo da própria
coordenação mais de 50% são evangélicos. Meus informantes, com muita insistência,
apontavam-me os evangélicos como grandes fomentadores da música na Baixada
Fluminense. Com o desenvolvimento deste trabalho espero poder mensurar melhor essa
influência e verificar sua importância.
Também não trabalhei diretamente com as Associações Voluntárias, embora
alguns animadores culturais participam desses projetos. As Associações Voluntárias
congregam um mero pequeno de pessoas, mas são responsáveis por manter práticas
“tradicionais”, como por exemplo, as fanfarras.
* * *
56
Quando perguntei qual era o limite de idade para essa classe, a resposta veio em tom de
brincadeira: “é turma de velho”. Eu insisti, e me responderam que não havia um critério,
dependendo da pessoa (quer dizer, da sua aparência) poderia variar a partir dos 50 anos, mais
ou menos.
57
Não foi possível definir o número de animadores culturais que atuam na área da Baixada
Fluminense.
33
A partir desses encontros, do desenvolvimento do trabalho de campo novas
questões foram surgindo e a antigas se complexificando. Compartilho aquelas que
foram centrais:
1. o crescimento de organizações não-governamentais (ongs) e
associações voluntárias em áreas pobres e periféricas da cidade. Assim, cabe aos
cientistas sociais averiguar os impactos do que parece ser uma menor participação direta
da instâncias governamentais e uma maior intervenção da sociedade civil organizada
junto a essas comunidades no tocante aos processos de educação e de formação de
ideologias.
58
2. a adoção da música como linguagem prioritária no trato com a
juventude o seu aprendizado não é justificado pelos seus implementadores apenas por
questões de produção artísitico-musical, mas também pela possibilidade de construir
acesso privilegiado aos “corações e mentes” desses jovens, para a implementação do
que o grupo chama de consciência” e “cidadania”. Acredito ser importante
compreender como está sendo inventado esse lugar da música como “instrumento de
conscientização”, que, está me parecendo agora, é utilizada muito menos (nesse casos
específicos) pelo conteúdo de suas letras (ou de sua poesia) e muito mais por um
determinado tipo de sociabilidade que o aprendizado nesses espaços impõe.
Desdobrando um pouco mais, acho que podemos pensar na formação de subjetividades
(dos jovens) que esses novos ambientes comunicativos constituem, nos quais a música é
um dos instrumentos usados para atingir/construir um tipo de emoção definidora de um
58
Conf. Dumont, 1992 e 1995.
34
novo padrão de interação, que acredito ser compreensível enquanto uma frame,
59
permitindo estabelecer relações sociais de qualidade diferente daquelas que os jovens
experenciam com seus pais e seus professores de escolas tradicionais, que são as
instituições primárias com as quais tem contato.
3. As escolhas dos estilos e sub-estilos musicais que serão ensinados
e incentivados, trazendo implicações quanto à formação de novas carreiras profissionais
(de músicos) e de gosto (de platéias). Esse ponto pode ser desdobrado da seguinte
maneira:
3.1 Podemos nos perguntar quais são as implicações sociológicas
desse incentivo à formação de músicos. Ou seja, por que ongs e associações voluntárias
escolheram a carreira de músico, como caminho para a ascensão social dos jovens das
camadas populares? Não devemos nos esquecer que existem outros tipos de profissões
que são implementadas por entidades civis. Eu soube de grupos que formam técnicos
em refrigeração, em silk-screen (técnica de estampar tecidos), em mecânica de
automóveis, cabeleireiros e manicures. Mas tem ganho espaço diferencial aqueles
grupos que trabalham com expressões artísticas destacando-se a citada música, o
teatro e a dança, principalmente - e com o esporte no qual o futebol e o atletismo tem
lugar preferencial. Desses dois grupos, a música e o futebol, respectivamente, são
aqueles que mais tem se sobressaído como possibilidades de um futuro promissor para a
juventude oriunda das áreas mais empobrecidas. Isso aparece tanto no discurso das
camadas populares, no qual a dupla música/futebol é acionada com freqüência, quanto
no de ongs e associações, e agora parece também contar com o apoio dos governos. Por
que essa “saída” (um termo usado com alguma regularidade por esses grupos) pelas
59
Conf. Goffman, 1975.
35
artes e pelo esporte? Por que os meios tradicionais do ensino formal não podem “dar
conta” desses jovens? Por que a escolarização aparece enfraquecida como opção de
ascensão social? Não podemos nos furtar a pesquisar as conexões que possam existir
entre esses discursos e a formação de uma identidade nacional brasileira baseada no
binômio música/futebol, sem perder de vista realidades de outros países que também se
utilizam da arte em seus trabalhos com crianças e adolescentes no que aqui, no Brasil,
convencionou-se chamar de “situação de risco”.
60
3.2 Cabe aqui também averiguar qual é o campo de possibilidades do
jovem (estudante) e do músico (instrutor). De que forma essas carreiras são construídas?
Quais são os principais incentivos e empecilhos para sua realização? Que tipos de
interações estratégicas
61
esses atores (estudantes e músicos) desenvolvem para levar a
cabo seus projetos? Como indivíduos negociam
62
seus projetos individuais a partir de
projetos coletivos?
63
Em que contextos esses atores estão inseridos ou como é
constituído o mundo artístico a que pertencem? Que representações
64
são acionadas
quando a categoria “músico” é utilizada?
3.3 O trabalho dessas ONGs e associações voluntárias ligadas ao
ensino musical não deve ser entendido apenas pelos músicos profissionais que delas
resultaram/resultarão. Muitos não se dedicarão à profissão. Mas sua influência será
sentida por esses jovens dado o tipo de experiência estética que vivenciaram. As ONGs
60
Inicialmente, podemos citar os trabalhos de Antunes (2003) e Pereira (2003). Apesar de
desenvolvidos num contexto social bastante diverso do nosso a sociedade portuguesa, lidam
com as temáticas de juventude, identidade e multiculturalidade, a partir de movimentos
associativos que usam a música como linguagem principal.
61
Conf. Goffman, 2002.
62
No sentido de negociar a realidade, conf. Velho, 1999 e Schutz, 1979.
63
Conf. Velho, 1999.
64
Conf. Goffman, 2002.
36
e associações não formam músicos, mas também, audiências. Sua repercussão
costuma ser sentida nas suas comunidades de origem e vizinhas, onde comumente
realizam apresentações e promovem eventos diversos. Sua área de influência deve
compreender, para ser tomada como um fenômeno sócio-antropológico, toda a
audiência que ela consegue constituir, todo o gosto que produz. Esses grupos se
colocam, então, como agências que fomentam um tipo de política cultural ao elegerem
determinado estilo
65
uma micro-política cultural cotidiana (mais ou menos
consciente), concorrendo com outros meios de divulgação, principalmente a chamada
grande mídia, passando a atuar como formadores de opinião, aquilo que podemos
chamar, num tratamento sociológico, de sociedade significativa. O fenômeno social se
torna mais interessante se adicionarmos mais um componente em nossa análise essas
agências que tenho observado trabalham com instrutores que são músicos nascidos nas
camadas populares, e não nas camadas médias como costumava ser notório entre os
formadores de opinião. O que legitima esses grupos a produzir gosto? A que tipos de
paisagens sonoras esses jovens são expostos? Essas ONGs/associações ajudam a criar
novas paisagens sonoras na cidade?
* * *
Quero destacar, que as experiências musicais que me proponho a estudar são
diversas. Num plano, lido com a produção musical (ou criação musical); noutro, com o
ensino e a aprendizagem, realizados por músicos que obtiveram e que não obtiveram
formação musical em escolas de música tradicionais ou por uma formação musical
institucionalizada. Também, os estilos musicais desenvolvidos são vários, indo do que
65
Como nos casos do rap e do choro, que já mencionei aqui.
37
comumente se reconhece como “cultura popular” (como o samba e o choro), até as
técnicas e estéticas mais contemporâneas de forte acento tecnológico (como as
experiências do hip hop e do funk).
A população desses espaços produtores de música, pertence à gerações diversas
concentrando-se nos estudantes de música (adolescentes, a partir dos 12 anos de
idade) e nos seus mestres (com idades variando, dos 25 até os 70 anos), sendo
majoritariamente homens de pele escura e de baixo poder aquisitivo; são, dessa forma,
os atores sociais principais desta pesquisa.
Pretendo, nesta pesquisa, estender-me naquilo que não foi possível realizar
anteriormente: uma discussão sobre mobilidade social e cultura popular. Discutir a
construção da carreira e a formação de novos quadros, a partir de uma etnografia do
trabalho artístico desenvolvido por esse grupo, de como fazem e ensinam música.
Meu problema básico é que se formou uma rede social
66
de músicos (e destes
com vários espaços, como associações e ONGs) que não respeita o limite do gênero
musical, da geração, da identidade étnica e que alguns momentos, complexifica a
identidade social, marcada por trânsitos diversos. Entender como essas carreiras e essas
redes se constituem são os objetivos desse trabalho, principalmente, as motivações que
as dirigem, porque, acredito podem ser úteis para a compreensão de processos de
construção social da pessoa.
67
A hipótese inicial é que esses artistas estão
implementando novas formas identitárias, que combinam, não as técnicas das quais
dispõem (tocar um instrumento, compor uma canção) com uma visão de mundo
66
Conf. Bott (1976) e Mitchell (1969), que usam o conceito para definir processos de interação
social não apreensíveis a partir da idéia de grupo social, quando as relações sociais aparecem
altamente complexificadas entre indivíduos de pertencimentos distintos, sobretudo nas
sociedades complexas urbanas.
67
Sobre processos de construção social da pessoa junto às camadas populares, ver Duarte,
1986, 1987 e 1999.
38
orientada por um desejo de transformação social, diferente de outras já existentes.
Interessa-me compreender que visão é essa, focalizando, entre outros temas, a
problemática das relações entre ideologias holísticas e individualistas.
68
Pelo que pude constatar, são poucas as pesquisas na área de Antropologia Social
no Brasil, que se debruçaram sobre essa nova construção “estética” e “política” que as
camadas populares estão realizando. alguns trabalhos, realizados por musicólogos e
etnomusicólogos, que destacam, sobretudo, o estudo da música a partir da busca de suas
origens e de sua autenticidade. Esta pesquisa pretende uma abordagem diferente - busca
a compreensão do fenômeno e o sua normatização. Investigando a mobilidade social
desse grupo formado, também quer contribuir com discussões mais gerais sobre o tema
das camadas populares.
68
Ver Duarte (1983, 1986, 1995, 1996, 2003) e Dumont (1985 e 1997).
39
1 Baixada Fluminense: uma unidade “sociocultural”?
1.1 Introdução
Como havia posto anteriormente
69
, foi a partir de minha aproximação junto à
comunidade hip hop fluminense, que me deparei com músicos de outros estilos
musicais, que realizavam um trabalho análogo aquele desenvolvido pelos jovens
rappers e classificado como um tipo de trabalho social”. Foi no convívio com os
músicos de rap que descobri, cada vez mais, músicos (não aqueles ligados ao hip
hop) que trabalhavam em organizações não-governamentais (ONGs)
70
e associações
voluntárias ensinando música para crianças e adolescentes. Esse fato despertou-me
bastante interesse. Se na minha estadia junto aos rappers ouvia sempre que “o hip hop
salva vidas”, junto a esses outros músicos, era “a música” que possibilitava a “salvação
dos jovens”. Fui entrando em contato cada vez mais, com um número de pessoas que se
organizava e desenvolvia atividades que visavam “tirar as crianças das ruas”. Mesmo
junto àqueles que, por motivos diversos, não conseguiam executar qualquer tipo de ação
em que crianças ou adolescentes estivessem, de fato, envolvidos, o discurso da
“salvação pela música”, ou “salvação pela arte” existia. Essas atividades não são um
privilégio do estado fluminense, ou mesmo do nosso país. É um tipo de ação cada vez
mais difundida no mundo. Foi dessa forma, que veio a vontade de desenvolver uma
pesquisa na qual a experiência das pessoas que trabalham com o ensino da música para
crianças e adolescentes fosse relatada. Tentar entender como esse trabalho é realizado,
69
Nas Considerações Iniciais deste trabalho.
70
No decurso deste trabalho, para facilitar a escrita e a leitura, a expressão “organização não-
governamental” aparecerá sob a forma da sigla “ONG”.
40
porque é feito, quem são seus atores sociais são meus objetivos aqui. Na estado do
Rio de Janeiro, uma série de ONGs e outros tipos de organizações realizam essas
atividades.
Mas antes dessas questões, que são fruto, digamos, de uma “vivência
acadêmica”, havia uma série de histórias que eu sentia vontade de relatar. Talvez, até,
esse desejo é que tenha norteado todo o trabalho de recorte do objeto. Eu nasci em São
João de Meriti, cidade que está inserida na área conhecida como “Baixada Fluminense”.
Por diversos caminhos, ao longo de minha adolescência, fui colecionando amigos com
os quais, minha principal afinidade era o gosto pela música. Eu não toco nenhum
instrumento, não canto, mas estava sempre assistindo a novas bandas que nasciam,
ensaios em estúdios da região. Ouvindo dos amigos seus reclames dos pais, dos
vizinhos, e com o passar do tempo, principalmente da polícia, - estes não entendiam o
estilo de vida
71
que era desenvolvido por eles eu mesma em algumas situações sentia
na pele os efeitos dos estranhamentos provocados em outros pelas minhas calças
rasgadas, um corte diferente de cabelo, ou pelo “simples fato” de ouvir um tipo de
música diferente daquelas que comumente tocavam na maioria das rádios e que era tida
como “popular”. Com o avançar dos anos muitos abandonaram a música, outros
passaram a se ocupar dela apenas em tempo parcial (nos exíguos finais de semana). E
alguns poucos, sobreviveram às pressões da falta de dinheiros e tentam seguir, em
tempo integral, uma carreira
72
de músico.
No transcorrer desses quase 15 anos de contato meu com músicos da Baixada
Fluminense, alguns eventos saltaram-me aos olhos e perturbam-me insistentemente: por
que a polícia era sempre tão agressiva com aqueles jovens? Por que os pais estavam
71
Conf. Velho, 1997.
72
Conf. Hugues, 1971; Becker e Strauss, 1970; Goffman, 2001.
41
sempre tão desgostosos com o estilo de vida de seus filhos? Hoje, reencontro algumas
dessas pessoas desenvolvendo o que é chamado comumente de “trabalho social” e a
música que antes causava tanto sofrimento aos pais (e conseqüentemente aos filhos),
“salva vidas”. Em nenhum outro lugar, esses estilos juvenis foram, na minha
adolescência, tão reprimidos quanto na Baixada Fluminense esse é um sentimento que
nos ocorria com muita intensidade. A nossa idéia era a de que, por morarmos na
Baixada Fluminense, sofríamos mais constrangimentos do que jovens da cidade do Rio
de Janeiro, por exemplo. Então, quando escolhi pesquisar o mundo dos músicos que
trabalham com o ensino da música para crianças, a Baixada Fluminense apareceu-me
como o cenário ideal. Hoje, realizando entrevistas, ouço a categoria “Baixada
Fluminense” aparecer com a mesma força e pelos mesmos motivos que no meu passado
de estudante secundarista. Embora, atualmente, ao lado das imagens “negativas”
também co-exista um esforço em demonstrar que não existe apenas “um lado ruim” da
região.
***
Toda etnografia é fruto da memória. Uma memória que se quer sistematizada,
documentada, reportada, devidamente anotada em cadernos de campo, com o objetivo
de ter um tratamento “científico”. Quando tratamos de histórias de vida, e lidamos com
a história oral, tenta-se, ao máximo, exaurir o informante com perguntas referentes às
suas lembranças. Confere-se datas, eventos, refaz-se, incansavelmente, trajetórias. Nesta
tese de doutorado, que pretende investigar a construção da carreira de músico, não
poderia ser diferente. Mas eu não vou contar com a memória dos meus entrevistados.
Eu serei, num certo sentido, também uma “informante”, uma “nativa”. E perscrutando
minhas próprias lembranças, tendo reconstruir, afetivamente, claro, como qualquer
memória, as concepções de Baixada Fluminense que me ocorriam, quando era apenas
42
“mais uma moradora”, e não alguém com o interesse específico de realizar um trabalho
acadêmico. É claro, isso será um esforço de distanciamento, que tenho certeza o
atingirei por completo. Minha dupla inserção rouba de mim parte da “espontaneidade”.
Mas é um risco e um esforço necessários. Fui tecendo essa trama com o auxílio do meu
material de entrevistas e com a bibliografia a que tive acesso sobre a região.
Ao entrevistar os músicos, a “Baixada” sempre aparecia como um tipo de
categoria explicativa, que era acionada como justificava para um certo tipo de
trabalho. “Realizar esse tipo de trabalho, e ainda mais sendo aqui, na Baixada, é
muito importante” seja ter uma banda ou participar de um projeto social, aparecia
como um diferencial. Mas por quê?
Neste capítulo tento responder a esta questão. Acredito que investigando os
sentidos da categoria “Baixada Fluminense” possamos nos aproximar de algumas
respostas. Primeiro, forneço algumas informações básicas e consensuais sobre
aspectos sócio-históricos e geográficos da região, sua composição de municípios e de
população. A segunda parte do capítulo é dedicada a analisar as recorrentes
representações sociais dicotômicas e complementares, que os moradores e a
sociedade mais ampla construíram e utilizam para “explicar” a área. Essas
representações podem ser resumidas a partir das idéias acerca da
“segurança”/”violência”; e do esquema: “aqui não tem nada”/ celeiro cultural”.
Para tal, além das informações colhidas durante o meu próprio trabalho de campo,
apresento e discuto pesquisas realizadas na área das ciências humanas, que se
desenvolveram tendo como locus da pesquisa, a Baixada Fluminense. Veremos, que
as principais problemáticas que instigaram os pesquisadores que se dedicaram à
região, remetem-se com freqüência, à temática da “violência”.
43
1.2 Do “campo” estudado ? – uma possibilidade de descrição
A área conhecida como Baixada Fluminense não compõe uma região
administrativa ou mesmo um espaço geográfico de definição inequívoca. Embora,
geograficamente, correntemente é definida como:
a planície que se estende paralelamente à costa em corredor entre a Serra do
Mar e o oceano [...], tendo como limites, do lado ocidental, Itaguaí, onde a
Serra do Mar passa a ocupar a orla marítima, e do lado oriental, a divisa com o
Espírito Santo. Em função de peculiaridades locais, pode-se subdividir esse
extenso território em unidades fisiográficas menores: Baixada dos Goitacases
ou de Campos, Baixada de Araruama; Baixada da Guanabara, e Baixada de
Sepetiba, da Ilha Grande ou de Itaguaí. (Beloch, 1986: 16).
É por esse motivo, que podemos encontrar trabalhos, que dificilmente, a
partir do senso comum atual, classificaríamos como relativos à Baixada, como o de
Bastos (1977), que pesquisou a lavoura de laranja no município de Itaboraí. No
trabalho de Souza (1992) indicações de que o município de São Gonçalo também
apareça na imprensa como pertencente à Baixada.
Entretanto, tem-se aceito a idéia de que é formada pelos municípios de Nova
Iguaçu, Duque de Caxias, São João de Meriti, Nilópolis, Mesquita, Queimados, Japeri,
Paracambi, Belford Roxo, Magé e Guapimirim
73
, estando inserida na chamada Região
Metropolitana do Rio de Janeiro.
74
No entanto é preciso notar, que durante bastante
73
Ver Enne, 2002:21. O Jornal O Globo tem aos domingos um caderno de notícias dedicado à
Baixada Fluminense que opera com essa classificação.
74
Os demais municípios que compõem a Região Metropolitana são, além da própria cidade do
Rio de Janeiro, Niterói, São Gonçalo, Itaboraí, Marica, Petrópolis, Mangaratiba. Ver
Abreu,1997: 18.
44
tempo, e ainda hoje, os municípios que mais se destacam, no senso comum, como
formadores da região são os quatro primeiros citados anteriormente:
É comum, todavia, designar-se por Baixada Fluminense apenas a porção da
Baixada da Guanabara mais próxima e, portanto mais intimamente vinculada
ao antigo Distrito Federal os municípios de Nova Iguaçu, Duque de Caixas,
Nilópolis e São João de Meriti, detentores de uma configuração física,
econômica e social que lhes propiciou um dos maiores crescimentos
populacionais, constituídos quase exclusivamente de trabalhadores, em boa
parte subempregados [...]. Algumas vezes, nela se incluem o município de
Magé, o que vem se tornando nos últimos anos cada vez mais justificável, dada
a crescente identificação de seus padrões de urbanização, com os dos outros
quatro municípios vizinhos. (Beloch, 1986: 16)
Utilizo-me aqui, da categoria, conforme a definiu Anna Lucia Silva Enne
(2002:37), apontando para:
Uma coleção de lugares, todos resultantes dos contextos de interação e das
experiências dos mais diversos agentes sociais. [...] Podemos partir do
princípio de que o espaço no qual a BF está sendo pensada não é, portanto,
somente um espaço físico, mas antes de tudo um espaço social, um lugar
socialmente experimentado pelos diversos agentes.
Marcadamente ocupada por uma população que poderia ser classificada como das
“camadas populares”, e em menor número por grupos representantes das “camadas médias”
75
, a
75
Opero com os conceitos de “camadas populares” e “camadas médias”, a partir das definições
estabelecidas por Gilberto Velho (1999). Quanto às “camadas populares” (Velho, 1999: 69),
45
Baixada Fluminense nos oferece um cenário peculiar. Diferente da cidade do Rio de Janeiro,
sobre a qual se convencionais utilizar a dicotomia “asfalto/favela”, para descrever sua paisagem
e população “dividida” entre as áreas urbanizadas e aquelas de ocupação irregular, na Baixada
Fluminense, tem-se a sensação de um continuum maior quanto à ocupação social do espaço.
O povoamento da região data da segunda metade do século XVI, e se deu a partir da
região chamada de “Iguaçu”. No século XVII, houve o plantio de canaviais, e a construção de
engenhos de açúcar e aguardente.
76
No século XVIII, a região ganha importância porque em seu
porto (Porto de Iguaçu) é usado como ponto de passagem entre Rio de Janeiro e Minas Gerais:
Por Iguaçu transitava boa parte dos produtos consumidos nas Minas Gerais e
do metal precioso destinado à exportação. As vias terrestres que atingiam as
zonas auríferas integravam-se, no território da atual Duque de Caxias, à rede
fluvial que recobre a área. O transporte se fazia pelos rios e se prolongava, por
via marítima, através da Baía de Guanabara, até alcançar o porto do Rio de
Janeiro. Nessa faixa litorânea do antigo município de Iguaçu, floresceu sua
primeira povoação de certa magnitude, o porto de Iguaçu, às margens do rio de
mesmo nome. (Beloch, 1986:17)
Em 1833, Iguaçu é elevada à condição de Vila. No século XIX, assistiremos à
decadência da mineração. Mas o transporte fluvial continuará sendo utilizado, agora para
as definimos nas Considerações Iniciais deste trabalho. Quanto às “camadas médias”, o autor
salienta a problemática relativa as “fronteiras culturais entre grupos de indivíduos que, segundo
critérios sócio-econômicos comumente usados em ciências sociais, pertenceriam à mesma
categoria. Tanto quando realizei pesquisa com camada média baixa tipo white collar (Velho,
1973), como com camada média alta nos limites de uma burguesia (Velho, 1975), deparei com
o fato de constantemente encontrar indivíduos ou famílias que, sob critérios sócio-econômicos
descritivos tipo renda, ocupação, educação etc., seriam incluídos na mesma categoria, mas
que apresentavam fortes diferenças em termos de ethos e visão de mundo.” (Velho, 1999:
106).
76
Alguns historiados chamam a esse período de “ciclo da cana”, conf. Santos, 1995.
46
distribuir a produção de café, vinda da região, e de outras áreas do Rio de Janeiro. O Rio Iguaçu
será um prolongamento da Estrada Real do Comércio. A partir de 1854, a região também
contará com a rede ferroviária. A primeira linha férrea inaugurada no país vai do Porto de Mauá
até a Fazenda Fragoso, e depois à Raiz da Serra, em Magé. Uma segunda linha é inaugurada em
1858, a Estrada de Ferro D. Pedro II, que vai da capital do Império até Queimados. A linha se
estenderá até as capitais de São Paulo e de Minas Gerais, até o final do século.
Conseqüentemente, as vias fluviais se tornaram obsoletas. Os rios da região, sofrendo processo
de assoreamento, vão provocar o desenvolvimento de charcos insalubres. A situação se agrava
em 1886, quando da inauguração da The Rio de Janeiro Northern Railway (futura Estrada de
Ferro Leopoldina), que vai da cidade do Rio à vila de Meriti (onde atualmente é a sede de
Duque de Caxias). Os aterros necessários para a nova ferrovia provocam mais alagamentos. O
porto de Iguaçu entra em desuso. A Vila de Iguaçu perde seu título de sede do município, que é
transferido para a estação ferroviária de Maxambomba.
77
Nas três primeiras décadas do século XX, iniciam significativos deslocamentos
populacionais, propiciados pelo saneamento da parte noroeste da Baixada. A área saneada, que
compreendia as regiões de Duque de Caxias, São João de Meriti e Nilópolis, já era ligada à rede
ferroviária. Lá, as populações urbanas cresciam, fazendo com que essas localidades, ganhassem
à condição de “sede de distrito”.
78
Iguaçu mantinha-se como área rural, livre de especulação imobiliária que assolava seus
já citados distritos. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, o país aumenta sua atividade de
77
Entre outros ver Beloch, 1986; Abreu, 1997; Enne, 2002.
78
Nilópolis, São João de Meriti e Duque de Caxias eram até então distritos do Município de
Iguaçu. Respectivamente, tornaram-se “sede de distrito”, a partir de 1916, década de 1890, e
em 1931, conforme Abreu (1997). Beloch (1986:17) faz ressaltar que da região, foi a área de
Duque de Caxias, a de saneamento mais difícil, o que fez com que fosse “um grave foco de
malária, pestilenta e pantanosa”. Foi no governo de Vargas que o saneamento fez-se mais
eficaz na área, com a criação da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense, em 1933.
Em 1936, esta se transformaria na Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense. O
Departamento Nacional de Obras de Saneamento, criado em 1940, será responsável pela
Baixada Fluminense, que em 1941 contará com 4.500 km2 saneados.
47
exportação, e a região está dedicada ao plantio de laranjais.
79
Será uma década de prosperidade
para os donos das chácaras de laranjas, até que com o início da Segunda Guerra Mundial, e o
fim das grandes exportações para a Europa (a produção nessa época está totalmente
comprometida com o velho continente), os donos de grandes propriedades vêem-se obrigados a
retalhar suas terras, na forma de pequenos lotes.O período dos laranjais, apesar de curto, tornou-
se uma espécie de tempo mítico para os que dele participavam. Santos (1995: 33), após trabalho
de campo junto a antigos chacreiros de Nova Iguaçu, o descreve assim:
Foi também neste período que o município mais cresceu. A laranja modificou
Nova Iguaçu. Esta provocou uma grande revolução socioeconômica. Houve
um grande aumento populacional e o progresso com suas indústrias, bancos e
estradas, etc... chegou à cidade. Nesta época, Nova Iguaçu ficou conhecida no
mundo inteiro como a “Cidade dos Laranjais” e ganhou o seu lugar de destaque
na economia nacional. Mas, toda esta época de pompas, festas e riquezas estava
por chegar ao fim. E assim como a cana-de-açúcar e o café tiveram sua vez,
chegara, agora, ao fim o período das laranjas.
Durante o “tempo dos laranjais”,
80
a região cresceu bastante, recebendo trabalhadores
para o plantio, a colheita e o beneficiamento da laranja. Oriundos de Minas Gerais, do Espírito
Santo e de cidades do interior do Estado do Rio de Janeiro, principalmente de Valença, essa
população mobilizada pela citricultura, teve que buscar outras formas de trabalho.
81
79
Ver Abreu (1997:82): “Em 1927, Nova Iguaçu já exportava 46.000.000 laranjas para o Rio da
Prata e 10.000.000 para a Europa, encaminhando-se também uma parte da produção para os
mercados do Rio de Janeiro, São Paulo e Santos.”.
80
Ver também: Souza, 1992.
81
Sobre o desenvolvimento da citricultura em Nova Iguaçu, sua decadência e o sistema de
loteamentos urbanos ver Souza (1992) e Santos (1995).
48
O adensamento populacional da região da Baixada Fluminense ocorreu a partir da
década de 1930, quando grandes levas de migrantes,
82
recém-chegados ao Rio de Janeiro foram
ocupar o lugar. Assim o período que vai de 1930 até 1950 é descrito como momento de
importante migração no estado do Rio de Janeiro:
a população da cidade do Rio de Janeiro cresceu a taxas aceleradas durante o
período em estudo, devido principalmente ao incremento do fluxo migratório.
É importante salientar, entretanto, que apenas um número restrito dos
migrantes veio a ocupar as favelas: a estimativa de Parisse é que somente
12,3% do migrantes chegados á cidade na década de 1940 escolheram-nas
como local de residência. Embora não existam dados precisos sobre a
localização de migrantes no espaço, a análise [...] permite afirmar com
segurança que foram os subúrbios mais afastados do centro, e, principalmente,
os municípios da Baixada Fluminense, que abrigaram a maior parte dos recém
chegados ao Rio nesse período. (Abreu, 1997: 107)
Ainda segundo o autor, as condições que propiciaram o incremento da população
estavam ligados à continuidade dos trabalhos de saneamentos promovidos pelo DNOS, a partir
do Serviço de Saneamento da Baixada Fluminense, uma melhoria sensível no transporte férreo
(com a eletrificação da rede que partia da Central do Brasil em 1935 e a instituição de tarifa
mais barata nos trens), e a construção da Avenida Brasil (em 1946).
82
No trabalho de Sonali Souza (1992:111) a autora chama a atenção para a difícil convivência
entre os chacreiros remanescentes (da elite local) e os novos moradores dos loteamentos
(migrantes): “Para a população pobre que passou a residir nos loteamentos é que foram
dirigidas algumas das versões das elites locais a respeito das causas dos problemas do
município. Associando-se à vinda dessa população a idéia de que esta não teria ‘uma
preocupação com a cidade em que vieram para’ formula-se uma oposição entre os ‘de fora’ e
os ‘de dentro’ em que a pobreza e migração estão associadas, compreendendo-se a pobreza
como externa à história do município.”
49
A abertura da Avenida Brasil não só facilitou o acesso à Baixada Fluminense, como
parte de seus operários, lá instalaram suas moradias. Em sua maioria nordestinos,
83
embora
também contando com significativa população oriunda de Minas Gerais, compraram lotes
regularizados, e deram matizes ao aspecto da população local. O Censo Demográfico de 1960,
aponta que
Praticamente a metade dos migrantes chegados na década de 50, ou seja,
625.865, localizaram-se na chamada periferia intermediária, especialmente nos
municípios da Baixada Fluminense e nos bairros cariocas que lhe são
fronteiriços, que apresentaram então os maiores incrementos populacionais de
toda a Área Metropolitana. (Abreu, 1997:121)
Dessa forma, são mais raros os enclaves de “brancos” ou “negros” (como nas
combinações de asfalto/favela), mas uma população que com freqüência se autodefine como
“morena”.
A inauguração da Rodovia Presidente Dutra (Rio-São Paulo), em 1951, também teve
peso equivalente para o boom imobiliário da região. Promovendo ainda mais a integração da
Baixada Fluminense com a cidade do Rio de Janeiro (pela sua ligação com a Avenida Brasil), e
com a região serrana (a partir da Rio-Petrópolis, que data de 1928), é a via por onde escoaria o
trafego na direção das cidades de São Paulo. A nova rodovia também trouxe industrias para o
seu entorno.Essas condições, associadas aos baixos preços dos loteamentos locais, fez com que
os municípios de Duque de Caxias, Nilópolis, Nova Iguaçu e São João de Meriti tivessem
altíssimas taxas de crescimento populacional, na década de 1950.
84
83
Ver Abreu, 1997 e Beloch, 1986.
84
As taxas são, respectivamente, 161%, 105%,145%,149%. Significa dizer que a população
aumentou em 522.322 indivíduos. No mesmo período, apenas para exemplificar, a cidade de
Niterói teve um crescimento de 31%, São Gonçalo de 92%. O Centro do Rio vivia sua fase de
declínio da população residente com taxas negativas (-33%). Foi época de intenso crescimento
na “Zona Rural” (Campo Grande, Guaratiba e Santa Cruz) que atingiriam 82 pontos
percentuais. Seguida Jacarepaguá (81%), a “Zona Suburbana II” (Pavuna, Anchieta Realengo)
50
Mas a região não teve um aumento populacional somente neste período. Dados
demonstram que durante a década de 1960, a população dos municípios de Duque de Caxias,
Nilópolis, Nova Iguaçu e São João de Meriti, juntas registraram um crescimento da ordem de
80%. Segundo a Tabela de Crescimento Demográfico, relativa ao Censo Demográfico de 1970,
esse é o maior índice de aumento populacional ocorrido na área Metropolitana do Rio de
Janeiro.
85
Atualmente, essas são as estimativas populacionais da Baixada Fluminense:
86
com 74% e a Zona Sul” (Glória, Lagoa, Gávea e Copacabana) com 55% de aumento na
população.
85
Os quatro municípios citados correspondiam à rubrica “Subúrbios Periféricos I”, no Censo de
1970. Em números absolutos, esse crescimento aponta para 705.644 novos moradores na
região, no período de uma década (quer dizer, em 1960 registravam-se 883.298 moradores, e
em 1970 esse número subia para 1.588.942). Duque de Caxias, Nilópolis e São João de Meriti
apresentam, respectivamente taxas de 79%, 35% 59%. O município responsável pelo maior
índice de crescimento é o de Nova Iguaçu, com um aumento de 104%. Para se ter uma idéia
do que isso significa, a segunda região em crescimento é a de “Subúrbios Periféricos II” (que
corresponde a São Gonçalo) com 76% de aumento populacional (185.654 moradores a mais
do que no final da década anterior). A Periferia Imediata” (compreendendo Ramos, Penha,
Méier, Engenho Novo, Irajá, Madureira, Jacarepaguá, Ilha do Governador, Paquetá e Niterói)
cresceu 31% (num total de 540.868 novos moradores). O “Núcleo” (no qual estão relacionados
o Centro da cidade do Rio de Janeiro, a região portuária, Rio Comprido, São Cristóvão, Santa
Teresa, Botafogo, Copacabana, Lagoa, Tijuca e Vila Isabel) obteve um crescimento de 14% (o
que dá um aumento de 171.780 no número de residentes). Fonte: Abreu, 1997: 27.
86
Segundo dados fornecidos pelas prefeituras. Essas informações estão disponíveis no site
www.baixadafacil.com.br, foram capturadas no mês de julho/2004.
51
Municípios População estimada
Belford Roxo 540.000
Duque de Caxias 778.000
Guapimirim 37.952
Japeri 83.278
Magé 350.000
Mesquita 160.000
Nilópolis 153.712
Nova Iguaçu 750.485
Paracambi 40.475
Queimados 121.993
São João de Meriti 449.476
Total 3.465.371
52
1.2.1 Os sentidos da Baixada: do “aqui não tem nada” ao “celeiro
cultural”
“Isso aqui, minha filha, nem subúrbio é”.
Neste subcapítulo trataremos das construções identitárias que se apresentam
na Baixada Fluminense. Ambiguamente, temos um jogo entre categorias antagônicas:
para alguns e em alguns momentos, a Baixada é o lugar no qual as mínimas condições
habitacionais não se apresentam, onde não existem “opções de lazer”, espaço dominado
pelos chamados “grupos de extermínio”. No outro oposto, ela é a região na qual “as
pessoas são mais solidárias”, vivem com maior “segurança”, e é definida como um
“celeiro cultural”. Para alcançar este objetivo, que é o de investigar as representações
sociais dominantes entre os moradores e a sociedade mais ampla, além do meu próprio
trabalho de campo e da minha experiência de vida como alguém oriundo da região, faço
um levantamento da produção acadêmica a respeito da Baixada Fluminense, com
atenção àquela desenvolvida no âmbito das ciências sociais (embora outros trabalhos de
diferentes linhas, desde que versem sobre o tema “Baixada”, também possam vir a
serem utilizados).
Eu morei na Baixada durante os primeiros 25 anos da minha vida. Lembro
que desde muito cedo, havia para mim a clara distinção entre “Baixada”, “Subúrbio” e
“Zona Sul”. A “Zona Sul” era o lugar dos ricos, o Subúrbio” e a “Baixada” os lugares
dos pobres. Só que nós, da Baixada, éramos diferentes dos suburbanos.
87
A epígrafe que
87
Maurício de A. Abreu (1997:143) na sua análise sobre estratificação social do Rio de Janeiro,
discorrendo sobre as três primeiras décadas do século XX, caracteriza a região metropolitana
da seguinte maneira: “A burguesia concentra-se na zona sul e na zona norte, áreas que
continuamente recebem benesses do Estado e das concessionárias de serviços públicos. O
53
uso neste subcapítulo era uma frase recorrente de minha mãe, para expressar as
precárias condições de saneamento básico, rede de luz elétrica, de abastecimento de
água tratada e encanada, da irregularidade das linhas de ônibus
88
de nossa região. Minha
mãe, como na época a maioria dos moradores, uma migrante, assustava-se com a falta
de infra-estrutura. Para nós, no “Subúrbio”, desde que não fosse na “favela”, a vida era
melhor tinha luz, água tratada, hospitais e escolas bem mais acessíveis do que na
Baixada:
Todas as ruas do bairro são de terra, com exceção das duas estradas principais
que foram asfaltadas em 1978. recentemente a CEDAE ampliou sua rede de
água para certas ruas do bairro que não têm também sistema de esgoto. A
maioria das casas usa água de poço. Não existe telefone no bairro.Até 1978 não
havia no local nenhum hospital público, estadual ou federal. Um posto de
saúde do INAMPS e uma casa de saúde particular, muito precária, serviam a
população local. Em 1978 começou a ser construído um hospital estadual que,
proletariado, por sua vez, espalha-se por subúrbios carentes e pelos municípios da Baixada,
mais carentes ainda.”
88
O drama do transporte público aparece no trabalho de Beloch (1986:27): “O desenvolvimento
dos transportes não acompanhou todavia a explosão demográfica. Na década de 70, era
patente sua precariedade, além de se estimar que consumissem cerca de um quarto do salário
de um trabalhador.” Atualmente, como no passado descrito acima, além da escassez em
algumas linhas de ônibus, o alto preço das passagens é outro problema. A tarifa de ônibus da
cidade do Rio de Janeiro, em Agosto de 2004, é de R$ 1,60. Na Baixada Fluminense, a tarifa
média, para ônibus que trafeguem no mesmo município é de R$ 1,50. Entretanto, a passagem
para a ligação até o município do Rio de Janeiro varia entre R$ 2,60 e R$ 3,50. O custo
elevado, segundo alguns moradores da região, faz com que se reduzam as chances de um
emprego no centro do Rio (e claro, em áreas mais distantes), já que cabe ao empregador arcar
com essa despesa. Dessa forma, os moradores se sentem preteridos em relação aos
habitantes cariocas.
54
agora, funciona parcialmente. apenas uma escola pública e duas ou três
escolas particulares.
Nos bairros vizinhos existem algumas fábricas, como a de botões, de cimento e
de panelas.
As casas do bairro são de alvenaria, em sua maioria. O comércio é feito em
“barracas”, pequenos armazéns e botequins ao mesmo tempo. Há um pequeno
comércio, com lojas, um supermercado e um cinema no centro de Miguel
Couto, o bairro mais próximo. As “compras” maiores, no entanto, são feitas no
centro da cidade de Nova Iguaçu, que fica a uns vinte quilômetros do bairro.
O trecho, citado de Maggie e Contins (1980:79) descreve bem a paisagem da
área durante as décadas de 1970 e 1980, e que até hoje, em regiões mais distantes dos
centros dos municípios, predomina.
89
As autoras, na época, escreveram: “a Baixada
Fluminense, como um todo, e o bairro estudado, especificamente, vivem uma situação
de isolamento social e espacial” (Maggie e Contins, 1980:91).
Pesquisas mais recentes, continuam apontando a “precariedade” dos
serviços públicos: “Nova Iguaçu é uma cidade de grandes contrastes: possui sólida vida
econômica, porém existe um grande número de ruas sem asfalto e uma quantidade
muito pequena de casas estão ligadas à rede de esgoto” (Santos, 1995: 9).
90
“Aqui não tem nada!” é uma frase até hoje muito usada pela população,
que se ressente da falta de uma rede de serviços públicos de qualidade e de opções de
lazer. “Aqui não tem nada!” pode explicar o inicio de uma banda, de um projeto
89
As autoras Maggie e Contins (1980) desenvolveram trabalho de campo na região, a partir de
meados dos anos de 1970, entre os bairros de Miguel Couto e Vila de Cava, distritos de Nova
Iguaçu. O objeto de estudo era a prática religiosa da umbanda entre os moradores.
90
Embora, os autores Santos (1995) e Maggie e Contins (1980) tenham desenvolvido trabalhos
específicos sobre o município de Nova Iguaçu, é possível generalizar suas observações para
toda a Baixada Fluminense.
55
social, o motivo de um crime, e até mesmo a não realização de algum
empreendimento. Durante o trabalho de campo, após ouvir insistentemente a frase,
perguntei a um entrevistado, que no caso se referia às poucas opções de lazer, quais
os motivos para esse quadro. Ao que ele me respondeu:
Olha, não é que as pessoas não tenham dinheiro pra gastar. Tem até uma classe
média forte aqui. Tem gente rica aqui. Mas o cara que tem dinheiro prefere ir
gastar na Barra. Se você fizer um lugar legal, cobrar um ingresso alto, o caro
vai pra Barra. Quando começam a ganhar dinheiro, vão pra onde? Pra Barra.
Vai ver só na Barra. Todos os comerciantes que conseguiram ganhar algum
dinheiro, todos os políticos, que mantém uma casa aqui, né, mas é só pra dizer
que não saíram da Baixada, mas saíram. Tá todo mundo gastando na Barra.
Mesmo quem ainda mora aqui, no final de semana, prefere ir pra Barra.
Essa idéia é compartilhada também com aqueles que não são moradores.
Durante o trabalho de campo, tive contato com uma universidade local, onde sempre
ouvia: “Aqui as pessoas são muito carentes.” Um dia, após ouvir repetidas vezes esse
conselho, perguntei: Carentes, de quê?”. “De tudo”, foi a resposta que ouvi. “De tudo,
o quê?”. Foi preciso insistir. E o professor universitário, morador de Copacabana,
explicou-me: “De oportunidades, de lazer, de qualidade de vida. Até afetivamente são
carentes.” Mas, por que “afetivamente”? “Não sei, mas aqui as pessoas são muito mais
emotivas. É por isso que gosto de trabalhar aqui, o aluno é muito mais carinhoso, as
pessoas te abraçam, te beijam. Na Zona Sul, os alunos são mais frios.” Essa dimensão
“mais emotiva” do morador da Baixada também apareceu várias vezes durante minha
pesquisa. Os próprios moradores usam esse argumento para marcar uma diferença entre
56
eles e os moradores do Subúrbio e da Zona Sul.
91
“Aqui as pessoas são mais próximas.
Mais carinhosas.”, são frases que podem ser ouvidas com freqüência. É como se as
carências estruturais (das cidades) se refletissem no caráter dos seus moradores. O
argumento da maior “solidariedade”, como um qualificativo dos mais pobres também
aparece entre os moradores das favelas e dos subúrbios, ao construírem uma identidade
contrastiva em relação à zona sul. Heilborn (1984), em sua pesquisa sobre jovens das
camadas médias de um subúrbio carioca, revela que a “experiência da suburbanidade”
92
é por um lado “a de um cotidiano que se depara e enfrenta esse tratamento diferencial, o
da carência de serviços públicos e de opções de lazer”.
93
Mas por outro, o subúrbio é
lugar da amizade e da autenticidade das relações:
94
O certo é que o discurso da suburbanidade que a produção especializada
resgata e adota é o da afirmação de um universo de valores específicos que
contrastam com aqueles predominantes e/ou atribuídos à zona sul. Entre os tais
91
É importante ressaltar que moradores do Subúrbio também comungam de uma identidade
social diferente daquela atribuída aos moradores da Zona Sul carioca. Sobre a hierarquia social
e os valores expressos na relação Subúrbio/Zona Sul, ver Heilborn (1999:42) que nos diz que:
“À generalidade da oposição zona sul/zona norte correspondem, grosso modo, uma maior
tradicionalidade da última em relação à primeira. Trata-se, antes, de uma subsunção do
formato sociológico das relações sociais na dimensão espacial, em que a menção à zona sul
atuaria como uma espécie de metáfora condensadora da modernidade e a referência à zona
norte/subúrbios, como metáfora de tradicionalismo. Essa oposição entre zonas espaciais da
cidade tem um caráter de modelo: apreende certos traços em detrimento de outros. Nos bairros
da zona norte/subúrbios da cidade encontram-se redes de sociabilidade mais densas,
acoplando relações de vizinhança, parentesco, amizade e compadrio em suma, um ambiente
de maior controle social e potencialmente de maior resistência à mudança.”
92
Heilborn, 1984:17
93
Heilborn, 1984:21
94
Nos subcapítulos 2.1 Pelas mãos de Alice” e “3.3 Mônica e o desprestígio social”, as
categorias Zona Sul, Subúrbio e Baixada serão exploradas.
57
valores próprios a essa cultura suburbana estariam aqueles vinculados a uma
sociabilidade intensa, apoiada sobre os laços de parentesco, compadrio e
vizinhança. (Heilborn, 1984: 22)
O bairro ganha, assim, uma densidade afetiva que não se enfraquece, mesmo
diante do (re)conhecimento de que o espaço da cidade é socialmente
estratificado, e de que eles não estão sendo repetida e inferiorizadamente
classificados como suburbanos (Ibid.: 34)
Esse tipo de argumento, tenta apontar o lado “bom” da Baixada: lugar de
maior solidariedade, maior companheirismo. Embora isso possa aparecer como o
produto do sentimento de “exclusão”. Nas palavras de um entrevistado meu:
Na Baixada não tem nada. Então as pessoas se unem, não é nem que sejam
mais unidas que não zona sul. Não é solidariedade. É por pura necessidade
mesmo. Se a gente não se unir, a gente não vai conseguir fazer nada.
Mas vamos ouvir outro morador e seus argumentos:
Eu não troco a minha casa grande, o meu terreno grande, por um ‘buraco’ na
zona sul. Tem gente que abre a boca pra dizer: ‘eu moro em Copacabana’. Vai
ver onde ele mora! Mora num quitinete. Mora num quarto só. Ou então no
da favela. Eu prefiro ter a minha casa aqui. Ter o meu quintal do que viver
apertado.
Esse argumento é usado por boa parte dos moradores para explicar sua
“opção” pela Baixada. Terrenos baratos e grandes, ao invés dos apertos dos prédios bem
58
localizados, pelo quais teriam que pagar aluguel; ou mesmo a “humilhação” da favela.
95
Santos (1995:40) aponta a eletrificação da Estrada de Ferro D. Pedro II e a construção
da Rodovia Presidente Dutra, que encurtaram o trajeto da região até o centro do Rio de
Janeiro, como facilitadores dessa opção de morar na Baixada. No tocante a Nova
Iguaçu, nos diz o autor: “a cidade passou a atrair para suas terras trabalhadores que
queriam ter a sua própria moradia e não pagar mais aluguel”.
Grande parte dos moradores dessa área era oriunda de regiões rurais de
nosso país. Com terrenos maiores era/é possível reproduzir, mesmo que em escalas
mínimas, a antiga vida do campo: terrenos com árvores frutíferas, flores plantadas, a
criação de pequenos animais (naqueles bairros mais afastados dos centros pode-se
encontrar galinhas, patos e porcos principalmente). A descrição que faço confere com a
de Souza (1992:109), em sua pesquisa sobre Nova Iguaçu :
Verificam-se práticas que não poderiam estar presentes em uma cidade tomada
pelo asfalto: nos terrenos baldios, cavalos pastam a qualquer hora do dia; ao
final da tarde houve-se o aboio de um boiadeiro urbano recolhendo o gado para
um bairro mais ao interior, o Riachão; a qualquer hora, pode chegar a entrega
de alguma compra em uma carroça, das muitas que têm o seu ponto no centro
de Austin; esbarra-se de vez em quando em algum porco ou porca que são
‘criados soltos’ e que, conhecendo-se ou não seus donos, não são furtados. Em
algumas famílias, as donas-de-casa mantêm criação de porcos ou de galinha, e
é comum encontrar-se árvores frutíferas nos quintais, sendo as mais comuns
mangueiras, coqueiros e goiabeiras, o popular vira-latas está quase sempre
95
Quanto ao valor social e simbólico do uso residencial do espaço urbano do Rio de Janeiro,
ver também Velho (1978), que num estudo sobre moradores de Copacabana capta a situação
inversa daqueles que preferem morar em lares menores; e Kuschnir (2000) sobre moradores
do subúrbio.
59
presente, “dando sinal” quando alguém chama ao portão. Os muros são baixos
ou inexistentes, usando-se também em algumas residências cercas com arame
farpado e madeira.
Morar na Baixada para os antigos moradores também aparecia como a
garantia de uma vida mais segura. Essa frase pode parecer paradoxal que a imagem
mais poderosa construída da Baixada Fluminense é a de “lugar perigoso”.
Recorro à minha própria memória para explicar melhor esse ponto. Lembro
que na minha infância, a ocupação do meu bairro e dos bairros vizinhos ainda não tinha
se dado por completo. Não tínhamos favelas próximas, como as que existem agora, e
havia muitos terrenos ainda não ocupados, cobertos de mato. Lembro que uma fonte de
medo constante era os boatos acerca dos “tarados”. As mães se preocupavam com suas
filhas que vinham sozinhas da escola, e se organizam em grupos de revezamento para
garantir que as garotas sempre tivessem uma companhia adulta para o retorno às casas,
especialmente nos horários do final de tarde. E mesmo assim, sempre tinha notícias de
que alguma menina “achada nos matagais”. O que significava ter sido estuprada e
provavelmente morta. Em algumas vezes, e eu me recordo de pelo menos uma meia
dúzia delas, os moradores localizavam o suposto “tarado”, que era linchado e tinha as
partes do seu corpo expostas em vários postes da localidade.
96
A idéia de “justiça feita
com as próprias mãos”, sem a intervenção do Estado, que se figuraria na Polícia (civil
ou Militar, nesse caso tanto faz) era a tônica desses momentos de extrema
dramaticidade. Havia, no seu ápice, o sentimento de que a justiça é algo que deva ser
96
Esse não era um caso isolado de São João de Meriti. Ver o documentário “As Justiceiras de
Capivari”, direção de Felipe Nepomuceno, 2002, 6 min., no qual é mostrado um grupo de
mulheres de uma região de Duque de Caxias que se reúnem com a intenção de proteger seus
filhos de um estuprador.
60
acessível a todos, não sendo necessária uma Justiça, enquanto uma instância
governamental. Por outro lado, a Baixada Fluminense se popularizou nos noticiários
televisivos nacionais e internacionais pelas temidas e admiradas, figuras dos
“matadores” ou “justiceiros” locais, e seus coletivos, os “esquadrões da morte” ou
“grupos de extermínio”. O primeiro termo matador era e ainda é o mais utilizado
pela população da Baixada Fluminense. De uma maneira geral, a área ficou marcada no
imaginário social deste estado (e em certa medida, até do país) como “violento” e “de
condições precárias”. Mas, para uma parcela considerável da sua população, os
“justiceiros”, como o próprio nome indica, faziam a “justiça”. Então, para aqueles que
se autoclassificavam como “trabalhadores”, os “justiceiros” não deveriam ser temidos,
mas sim apoiados no seu ofício de distribuir justiça.
Quando estava decidindo os limites deste trabalho, elencando suas possíveis
problemáticas, não tinha nenhum interesse específico em discutir a temática
“violência”- mas à medida que a pesquisa se fazia, a categoria e as representações a
ela ligadas, estabeleciam-se como uma espécie de ponto de partida. Por exemplo, ao
realizar uma pesquisa na Internet com o tema “Baixada Fluminense” deparei com
uma “lista” de conversação destinada à “Comunidade do Software Livre da Baixada
Fluminense”. Trata-se de um domínio no ciberespaço com o título de “Linux na
Baixada Fluminense”.
97
Seu objetivo é a discutir a implementação de programas
gratuitos para computadores. Lia-se: “Estamos inaugurando o novo site de Linux
dedicada a comunidade software livre da Baixada Fluminense no Rio de Janeiro.
Visitem!”. A “lista” havia sido iniciada em 30/06/2003, e qual não foi meu espanto
ao ler a primeira mensagem enviada, em 05/06/2003: “Pensei que lá só tivesse
97
Capturado no endereço: http://brlinux.linuxsecurity.com.br/noticias/000518.html, em
28/05/2004.
61
traficante! Hehe” (quem assina a mensagem se identificou como OO). No dia
seguinte, veio a resposta assinada pelo internauta Deyson Thomé:
A Baixada Fluminense é um local como outro qualquer, que além dos
problemas sociais, tem moradores dignos, que superam as adversidades gerais,
inclusive de segurança pública e estudam, trabalham, produzem e progrIbid,
auxiliando deste modo a si próprios e a sociedade em seu redor. O lótus
floresce na lama. Estão na causa do Linux, são nossos companheiros. não
tem só traficante, [...].
Horas depois, no mesmo dia, o internauta OO pronunciou-se novamente pela “lista”:
“Ah, bom!!! Generalizei... não tem traficante... tem assaltante de banco,
pivete, mendigo, travecada, putas e muitas outras coisas.”
Apesar do tom jocoso do internauta OO, não devemos desprezá-lo enquanto
objeto de análise. Ele nos mostra como uma parcela da população enquadra a Baixada
Fluminense. Num primeiro momento, a associação que fez referia-se ao tráfico de
drogas. Provocado, estendeu-a a outros tipos socialmente desqualificados. O morador da
Baixada sofre com as imputações desses estigmas sociais. Como contrapartida, a
resposta (de um morador? Não temos como saber) que tenta destacar as qualidades dos
moradores e equiparar a Baixada como um “lugar como outro qualquer”.
A pecha de ser oriundo de uma região estigmatizada, principalmente a partir
da imagem de “violenta”, obriga o morador à constantemente elaborar justificativas que
respondam a essa categoria e suas implicações.Como já coloquei, meu interesse na
categoria “violência” refere-se ao fato de ela ser constantemente usada para justificar o
trabalho que meus interlocutores desenvolvem. Ou mesmo como categoria explicativa
62
das dificuldades que precisam superar para fazer música na Baixada. Dou um outro
exemplo. Ao entrevistar um grupo de músicos de São João de Meriti, que tem uma
banda de reggae, soube que tiveram seus dread-locks
98
cortados, com facas do tipo
“comando”, por policiais, no meio da noite. Contaram-me que voltavam de um show, a
pé, quando foram abordados por policiais militares. Após a revista, os policiais, de
maneira zombeteira, segundo meus informantes, diziam que “aquilo era cabelo de
viado”, ou então, “só podia ser coisa de maluco”, e no meio da rua e da noite,
exterminaram os cachos crespos, de dois músicos negros. Eles também foram
espancados. Depois do evento, e não estou afirmando que é em função disso, ambos não
deixaram mais os cabelos crescer. Eu perguntei a opinião deles sobre o motivo que
levou os policiais a fazerem aquilo, e eles teceram várias considerações sobre os grupos
de extermínio que atuavam e atuam na Baixada. Que era uma prática cristalizada
entre a polícia local, a de assumir, nas ruas à noite, as figuras de “juiz, jurado e
carrasco”. Do “esquadrão da morte” ou dos “justiceiros” não restam apenas lembranças,
muitos atos ainda são contabilizados a esses tipos sociais. Em recente entrevista à Rede
Globo de Televisão,
99
os músicos da Banda Maria Preta, fundadores da ONG Flor de
Bel,
100
do município de Belford Roxo, alegam como principal motivo para a realização
do seu “trabalho social”,
101
o desejo de “tirar os jovens das ruas para que eles não
acabem mortos, pelos matadores, como já ocorreu com muitos amigos nossos”. O
apresentador do programa insistiu que esse tipo de projeto é importante para combater o
98
É um tipo de penteado típico dos membros da comunidade reggae. À medida que os cabelos
crespos crescem são torcidos para formar cachos.
99
09/08/2004. Aconteceu no Programa Ação, apresentado por Sergio Grossman.
100
Os músicos e a ONG serão objeto de estudo mais aprofundado no desenvolver deste
trabalho.
101
A ONG oferece oficinas de artesanato com reciclagem de jornal, cacuriá (dança típica da
região norte do país), capoeira e futsal, além das aulas de música.
63
crescimento do narcotráfico, porque oferece “outras possibilidades” aos jovens. O líder
da banda respondeu que:
Na Baixada, o nosso problema não é o tráfico. o tráfico ainda não é forte
como é no Rio de Janeiro. Lá, quem ainda mata os jovens, são os matadores, os
justiceiros. A gente desenvolve esse trabalho porque Belford Roxo foi
conhecida como uma das cidades mais violentas do mundo, por causa dos
assassinatos. A violência de lá, não diminuiu. Foi a do Rio que aumentou.
Então a imprensa não fala tanto da Baixada, porque o Rio ficou pior, por causa
do tráfico. Mas lá continuam matando jovens, como antes.
Os membros dessa ONG, e quase a totalidade dos entrevistados desse trabalho,
constantemente fizeram-me referência aos “matadores”. Essa é uma das imagens
“ruins” da Baixada. A imagem da “violência”, que se difunde por operadores do Estado,
por aqueles que legitimamente tem o direito de usar a força bruta o que cria uma
situação bastante paradoxal. Porque eles impõem “medo”, mas também, “segurança”
para alguns. Muitos entrevistados alegam que o “pouco” desenvolvimento do tráfico de
drogas na região se deve à presença, física e simbólica, dos grupos de extermínio. Mas
como disse, no decorrer do trabalho, essas representações a cerca da Baixada
Fluminense e o peso que tem sobre o trabalho desenvolvido por esse mundo de músicos,
e suas visões de mundo serão melhor entendidas. O que gostaria, é de deixar bem claro,
para o leitor, que de um modo geral, o senso comum – de moradores e de não-
moradores, opera com a idéia de que a Baixada é um lugar no qual a “violência” é muito
grande e evidente e é também, uma área extremamente “pobre”. Durante minha vida
acadêmica, como aluna do mestrado e do doutorado do Museu Nacional, experimentei
várias vezes, o estranhamento quanto à minha condição de “aluna da Baixada”. Lembro
64
de um professor e de dois colegas, com frases do tipo: “Ah, mas se vo não me
contasse que era da Baixada, eu não saberia nunca. Nem parece.” E de uma outra, que
disse “eu acho muito importante termos aqui, entre nós, pessoas como você, da Baixada.
Isso é muito importante.” Significa dizer que existe um lugar social para as pessoas de
Baixada. Confesso que no começo me chateei um bocado, pura frustração. Mas depois
conseguia rir. Foi assim que reagi, achando graça, quando recebi um e-mail, que
fazia parte de uma lista de discussão, de um grupo de alunos do PPGAS, que debatiam
sobre “cotas” de bolsas de dotação para pesquisa, para alunos. Uma estudante, contrária
aos critérios atuais, dizia não estar satisfeita com o atual sistema que destinava bolsas a
alunos estrangeiros, enquanto poderia deixar de contemplar “por exemplo, uma aluna da
Baixada”. Eu realmente não sei qual o município de origem de minha colega (talvez ela
até seja da Baixada), mas na sua classificação, “uma aluna da Baixada”, foi como
conseguiu exprimir o que poderia haver de mais pobre” e “necessitado” na nossa
sociedade.
1.2.2 As Ciências Sociais e os “dormitórios violentos”
Na pesquisa bibliográfica realizada sobre a Baixada Fluminense, dois temas
se destacaram a partir deste campo específico. Foi possível identificar duas temáticas
recorrentes: “religião” e “violência”.
102
Nesse primeiro capítulo, para melhor
desenvolvimento do trabalho, a discussão recairá sobre o segundo tema. Com mais
propriedade no decorrer dos demais capítulos, o tema religião se apresentará.
103
102
Alves (2002) já discutiu esses dois eixos analíticos em artigo.
103
Os trabalhos são: Birman, 1988; Fernandes, 1992; Santos, 1991; Maggie e Contins, 1980. O
trabalho de Enne (1995) tem como um de seus eixos de pesquisa um tema religioso.
65
Alguns trabalhos acadêmicos exploraram com bastante propriedade essas
construções de sentido, que dizem respeito à violência” e a “pobreza”/”carência”, no
tocante à construção de identidade e da pertinência da categoria “Baixada
Fluminense”.
104
Por isso, apenas lanço mão delas à medida em que o objeto me leve
nessa direção. Faço aqui, rápidas referências, às pesquisas que apontam para esses
conceitos, e para outros, como importantes na definição da identidade da “Baixada
Fluminense.”
Beloch (1986) ao desenvolver sua dissertação de mestrado, escolheu como
tema, um lendário político da Baixada Fluminense, Tenório Cavalcanti. Tenório é a
representação (até hoje) do político da região: personalista, espécie de coronel urbano,
faz das armas suas principais aliadas no jogo político. Sua carreira iniciou na década de
1930, indo até 1964, quando é afastado da vida pública pelo Golpe Militar. Tenório é
figura-chave para se compreender como a violência da Baixada Fluminense tornou-se
emblemática e rompeu seus limites geográficos, e convertendo-se num referencial da
região para todo o país. Segundo Belloch, Tenório é responsável por conferir à cidade
de Duque de Caxias, “a pecha de faroeste fluminense”:
105
A violência foi sem dúvida a mais notória marca distintiva de Tenório. Seu
nome ainda hoje é imediatamente associado a tiros, pistolas e confrontos
armados. A familiaridade com a violência, poder-se dizer mesmo o culto da
violência, incorpora-se a sua personalidade. (Beloch, 1986: 65).
104
Ver Alves, 1998; Almeida, 1998; Calçado, 1984; Araújo, 2002; Beloh, 1986; Enne (1995,
2002 e 200); Monteiro, 2001; Souza, 1997; Souza, 1992; Viana, 1998.
105
Beloch, 1986:66.
66
Foi preso oito vezes, recebeu 47 ferimentos de bala de revólver,
“permaneceu hospitalizado por longos períodos e foragido por outros tantos” (Beloch,
1986: 66). Tenório não é violento, mas “de corpo fechado”, perigoso e amado, “esse
festival de violência criava na população, por um lado, reverente temor [...] e por outro,
inflamada admiração por sua valentia” (Ibid.: 70) - promotor de um “tipo muito
especial de justiça”:
Alias, sua concepção sobre a aplicação da justiça pelas próprias mãos coincide
com a noção dominante em parcelas da população trabalhadora, que se traduz
nos linchamentos amiúde repetidos. As punições que prescreve têm inclusive
finalidade de defesa da moral e dos bons costumes. Aludindo a “um marginal
que urina perante moças”, sublinha: “Eu então dou um tiro na perna do
marginal, pra ver se ele reage, para depois atirar no peito. Eu, quando dou um
tiro na barriga da perna de alguém, é porque ele ta maconhado e é uma cobra
venenosa que eu não posso deixar soltar na rua [...]. Os covardes é que se
omitem e deixam o cachorro louco e a cobra venenosa agredir o indefeso. Tem
que matar o agressor injusto, que é injusto não só contra você mas contra toda a
coletividade” (Ibid.: 70).
Tenório encarnou, ou desenvolveu, o tipo ideal de “justiceiro”, que se
difundiria pela Baixada.
106
Ligado ao poder público, influente, armado, protetor: “sua
faceta violenta, sua reputação de pistoleiro, não empanava a imagem positiva que dele
tinham os habitantes humildes de Caxias.”
107
A população de Duque de Caxias é
106
Sobre Tenório Cavalcanti também consultar Grynszpan (1987).
107
Beloch, 1986: 76.
67
caracterizada pelo autor como “os estratos mais humildes da pobre periferia carioca”,
108
“massas despossuídas”,
109
“desassistidos caxienses”,
110
“aquelas populações tão frágeis
e vulneráveis”,
111
“na fronteira do lumpemprletariado”
112
e “massas amorfas e
despolitizadas”.
113
A cidade é a “maltratada Caixas”,
114
“esquecido arrabalde
carioca”.
115
E a Baixada Fluminense, um “redemoinho de violência”.
116
Esse estereótipo da Baixada, associada à violência e à pobreza se generalizou
pelo país, e até pelo mundo, principalmente, a partir dos veículos de comunicação de
massa. na primeira página de sua dissertação de mestrado, Sonali Maria de Souza
(1992:1) indica:
A região hoje comumente conhecida por Baixada Fluminense costuma estar
presente no noticiário nacional e internacional como área de forte
criminalidade, e também como caso dos problemas do modelo metropolitano
brasileiro. O jornalista Fernando Gabeira chegou a escrever que os limites da
Baixada seriam uma “fronteira mítica”, tal a distância social resultante das
imagens e noticiários provenientes desta área.
A autora prossegue (Souza, 1992: 24):
108
Ibid.: 9.
109
Ibid.: 13.
110
Ibid.: 55.
111
Ibid.: 85.
112
Ibid.: 85.
113
Ibid.: 164.
114
Ibid.: 61.
115
Ibid.: 65.
116
Ibid.: 67.
68
Pelos noticiários da imprensa com maior poder de divulgação, a Baixada surge
através de um repertório do qual é constante a violência generalizada e as
carências de sua população. Desse modo, por exemplo, podem ser encontradas
notícias com os seguintes títulos:
“Em sete meses, a Baixada teve mais de 1 mil mortos” (Jornal do Brasil,
31/08/1988)
“Encapuzados matam dois na Baixada” (O Dia, 13/11/1988)
“Baixada luta contra o crime” (Jornal do Brasil, 22/08/1988)
“Freira assassinada na Baixada” (Última Hora, 09/06/1990)
Ao recolher relatos de moradores da região de Nova Iguaçu, que sofreram
assaltos, Souza (1992: 131) relata: “Este, sem dúvida, é um dos principais problemas
desta população, ou seja, a proximidade cotidiana com o crime, informando inclusive as
práticas possíveis de existência no cotidiano dos bairros”. Outro ponto que a ser
destacado é que a população “trabalhadora” não valora positivamente as ações dos
assaltantes:
Com exceção de áreas de trabalhadores pobres, de ocupação mais recente,
como por exemplo as favelas que começam a surgir nos anos 1980, a Baixada,
desde fins dos anos 1960, vive experiências de criminalidade diferentes do
que se indica, por exemplo, em relação aos morros cariocas.
Creio que a autora esteja indicando, com essa diferenciação morro
carioca/Baixada para as relações de proteção e apadrinhamento que se desenvolveram
nas favelas cariocas entre bandidos e moradores. No caso da Baixada, esse tipo de
identificação com a criminalidade ocorreu, mas esta se fez pela “crença na pena de
69
morte [que] se traduz na proliferação dos grupos de extermínio, que fizeram agudizar
os conflitos” (Souza, 1992: 133).
Ana Lucia Silva Enne (1995), nos descreve suas pré-noções acerca da
região, construídas pelo acompanhamento dos noticiários; e seu posterior envolvimento
com a Baixada:
Conhecer melhor a Baixada Fluminense foi uma grande experiência
profissional e pessoal. A idéia que eu fazia, então, da região, formulada a partir
das informações articuladas pela imprensa, era a de uma “terra de ninguém”,
um local onde a violência e o extermínio predominavam. O contato com as
cidades e seus moradores gerou outro quadro, onde o que se via era uma região
repleta de dificuldades (tais como falta de saneamento básico, ruas sem
calçamento, transporte precário etc.) porém muito mais calma do que eu
poderia imaginar e voltada para a construção de uma identidade positiva, que
visava exatamente fazer frente ao preconceito recorrente. Posso dizer que a
minha ligação com a Baixada se articula não por interesse acadêmico, mas
por uma certa afetividade que faz com que minha atenção sempre se volte para
a área. (Enne, 1995: 9)
Estudando uma instituição espírita de Nilópolis, aponta para a dupla representação
que marca toda a Baixada : “Externamente, a cidade é conhecida pelos seus dois
elementos mais famosos: a violência e a Escola de Samba Beija-Flor” (
Ibid
.: 13).
Em outro trabalho, a autora (Enne, 2002), investiga a produção de representações
sociais sobre a Baixada Fluminense, produzida, de um lado pelos próprios
moradores, e de outro, por agentes externos, mais especificamente, a imprensa
carioca:
70
Como procurei demonstrar [...], um esforço partilhado por agentes diversos
inclusive aqueles que formulam suas identidades locais em termos
antagônicos no sentido de gerar “imagens positivas” para a “Baixada
Fluminense”, que possibilitem uma reversão do que muitos consideram o
principal problema dos que resIbid na região: a perda de “auto-estima” em
razão dos estigmas” e “imagens negativas” que as pessoas de “de fora” da
Baixada têm sobre a Baixada, que visa atingir não aos que nela resIbid, mas
também a esse senso comum cristalizado, segundo os agentes entrevistados,
especialmente entre os moradores da cidade do Rio de Janeiro. E tal senso
comum, de acordo com os mesmos agentes, teria sido formado a partir das
imagens negativas produzidas pela grande imprensa acerca da região. Dessa
forma, as ações de “resgate”, ou “construção de uma identidade positiva para a
BF pode ser percebida como reações às representações negativas veiculadas
pela mídia e arraigadas no senso comum. Dentre tais imagens, a violência
ocuparia lugar de destaque como unidade discursiva utilizada pela imprensa
para se referir à Baixada. (Enne, 2002: 88)
Após a análise do conteúdo das matérias produzidas a partir da década de 1950 por
três jornais fluminenses
117
(O Dia, Última Hora e Jornal do Brasil), chegou à
conclusão de que estes contribuíram de maneira significativa para a produção de um
imaginário social do “faroeste fluminense” a Baixada Fluminense sendo
apresentada como lugar privilegiado da ausência de lei, ou esta sendo implementada
por “justiceiros”:
117
A autora desenvolve pesquisa sobre as representações midiáticas da Baixada Fluminense.
Ver Enne, 2004.
71
[...] Até 1950 a Baixada tem relativamente pouca visibilidade dentro da grande
imprensa. Uma mudança neste sentido começa a ser sentida em meados de 50 e
na década de 60, principalmente pelo papel exercido pelo político e pistoleiro
Tenório Cavalcanti e pelas lutas pela posse da terra, no processo de
loteamentos [...]. Neste período, está sendo construída a imagem da região
como “faroeste fluminense”, uma “terra sem lei”. A partir de 1970, já podemos
perceber que a Baixada, principalmente nos jornais de cunho mais
sensacionalista, como o Última Hora, passa a ocupar diariamente a primeira
página, associada principalmente aos motes da “violência” e da “falta de
políticas públicas”. Isso se amplia ainda mais na década de 80, com a criação
da figura do “Mão Branca”, apresentado via imprensa como justiceiro local,
mas na prática, com ações bem similares a dos grupos de extermínio que
atuavam na Baixada nas décadas anteriores. Neste período inicial da década de
80, todos os grandes jornais [...] dedicam generosos espaços em suas edições
para retratar a Baixada, quase sempre associando-a a um espaço marcado pela
“violência” pela “ausência de lei”. (Enne, 2002: 88-9)
A temática da violência é tão dominante e tem-se mostrado o necessária para a
compreensão do universo da Baixada Fluminense, que sua recorrência não está
presente apenas nos estudos produzidos no âmbito das ciências sociais. Abro um
parêntese aqui para citar o trabalho de Araújo (2002). Sendo vinculado à literatura
(trata-se de uma dissertação de mestrado), seu objetivo é analisar a produção poética
de Duque de Caxias e para tal, não se furta à compreender essa produção cultural (e
sua divulgação) a partir de “uma grande região de contraste, onde convivem
poluição, pobreza e produção; riqueza, cultura e uma história” (Araújo. 2002: 12). A
72
poesia de Duque de Caxias, segundo o autor, deve ser contextualizada, e apreendida
como produto da identidade social de uma região conflituosa, que tem
como fator importante na construção da imagem da Baixada como violenta, a
formação dos grupos de extermínio pós-golpe de 64. A violência foi utilizada
largamente na Baixada Fluminense como instrumento de perpetuação de uma
lógica perversa. (Ibid., p. 19)
1.2.3 Novas construções identitárias: do “gueto” ao “celeiro”
A Baixada é a Jamaica sem praia.
Toni Garrido, músico.
Em sua pesquisa, Ana Lucia Enne (2002), além das constantes imagens
negativas produzidas pelos jornais, conseguiu localizar uma série de reportagens de
jornais produzidas na última década nas quais as identificações associadas à região
não são apenas aquelas detratoras:
Na década de 90, no entanto, essas representações associando a BF à
“violência” começam a ser atenuadas nos grandes jornais, permanecendo
somente no Última Hora [...]. Finalmente, no ano de 2000, sem o Última
Hora (que seria extinto em meados de 90), a Baixada como sinônimo de
violência e terra de desmandos praticamente desaparece da grande mídia. Para
os entrevistados, alguns fatores são determinantes para esta mudança de
concepção: a propagação da idéia de que a violência se generalizou, atingindo
principalmente a cidade do Rio de Janeiro; a criação dos cadernos sobre a
73
Baixada (no Dia e no Globo, semanalmente, no JB, através de edições
especiais lançadas no decorrer da década), oferecendo uma outra visão sobre a
região; a criação da Linha Vermelha, que, ao diminuir o tempo para vencer a
distância geográfica, teria causado também um impacto sobre a distância
social; a ação dos movimentos sociais a partir da década de 80, que teriam
conseguido transformar o cenário social da Baixada; a percepção de que a
região seria um mercado consumidor” potencial; o surgimento de uma
preocupação das autoridades políticas locais em construir imagens positivas
para seus municípios; a própria ação destes agentes, que teriam conseguido
mostrar que existe uma “outra Baixada”. (Enne, 2002: 90-1)
Enne (2002) está estudando as construções de identidade social e de memória
da e na Baixada Fluminense, a partir de seus “intelectuais orgânicos”. A autora
identificou duas sub-redes sociais que desenvolvem trabalhos e pesquisas, e
concomitantemente, discursos sobre a Baixada Fluminense. Os dois grupos,
chamados respectivamente de “memorialistas” e de “acadêmicos”, formam “uma
rede ainda maior de produção de memória e história na região” (
Enne, 2002:90-
7),
rede essa que tem como principal objetivo o estudo da história local, que acaba por
contribuir para a disseminação de novos modelos identitários locais. Em seu
trabalho, a categoria “Baixada Fluminense” aparece como um “conceito
polissêmico”:
Assim, muito mais do que nos depararmos com uma região geograficamente
delimitada, temos incidindo sobre o conceito de região em referências outras
que não a dessa ciência. Por isso, a BF vai ser pensada tanto como uma “terra
da violência” quanto um “local de importância histórica para o Brasil”; ou
74
como um “local distante e temido”, ou inversamente, um “bom lugar para se
viver”; tanto quanto uma “região de problemas sociais crônicos” como uma
“região com valores escondidos que precisam ser descobertos”, entre outras
conotações possíveis. As características que são associadas à categoria de
“Baixada Fluminense” não são estáticas, ao contrário, são fluidas, e estão
sendo construídas em fluxos de interações dos mais diversos. (Enne, 2004: 54)
Assim, o recente posicionamento adotado pelos jornais e a constituição desses
agentes sociais preocupados em construir uma “história” do lugar, são indicativos de
um quadro que vem se desenhando, de maneira lenta e muitas vezes contraditória – o
da positivação da categoria Baixada Fluminense. A essas vozes que tem se levantado
para estabelecer novas interpretações da condição de “morador da Baixada”,
podemos observar que as próprias percepções dos demais moradores da Baixada
Fluminense (que não necessariamente estão inseridos nas instituições que abrigam os
jornalistas e os “historiadores” da Baixada) oscilam entre os extremos da “violência”
e da “segurança”; e dos reclames contra a ausência de infra-estrutura/espaços de
sociabilidade e a idéia de que a Baixada é um “celeiro cultural” e/ou “caldeirão
cultural”.
No caso das duas últimas categorias citadas – a de “celeiro cultural” ou
“caldeirão cultural”, tratam-se das representações que positivam a identidade social
da Baixada a partir de sua produção artística e que são acionadas com bastante
regularidade para legitimar os trabalhos desenvolvidos pelos artistas locais.
Durante o trabalho de campo, os entrevistados sempre destacaram as suas
qualidades artísticas e dos seus alunos, a partir do pertencimento à Baixada Fluminense.
Mais que ressaltar suas habilidades individuais, as falas nos remetem a um modelo
75
explicativo no qual é a própria Baixada que carrega as propriedades artísticas – o
próprio “talento” aparece como algo da região. D o uso corrente das expressões
“celeiro cultural” e “caldeirão cultural”, enfatizando o pertencimento ao lugar, como se
fosse o próprio lugar, ou as condições sociais que existem, a fomentar o talento dos
seus habitantes. “A Baixada é um grande caldeirão cultural” foi uma frase que ouvi
repetidas vezes: em entrevistas junto aos animadores culturais,
118
dos músicos locais,
119
de um poeta da região.
120
A frase citada no inicio desse subcapítulo exemplifica bem essas idéias. Ao dizer
que a “Baixada é uma Jamaica sem praia”, Toni Garrido, músico do conhecido grupo
Cidade Negra, cuja origem de seus integrantes (exceto a de Toni) e a da própria
formação da banda é a cidade de Belford Roxo, está evocando as imagens da pobreza
econômica e da riqueza musical, que são associadas às Antilhas e que igualmente vão
aparecer para “explicar” a Baixada.
Essa naturalização, muitas vezes, era explicada pela categoria “vocação”. Assim,
Cada lugar tem uma vocação. Nova Iguaçu, por exemplo. Tem uma vocação
para o teatro, a poesia. Caxias também é assim. Belford Roxo, não. Ele tem
vocação pra música. As pessoas de Belford Roxo são mais musicais.
121
Mas apesar dessa divisão social das competências artísticas, a idéia, defendida
por muitos moradores que se dedicam às chamadas “atividades culturais” é a de que a
118
Frase freqüente da animadora cultural Denise.
119
Dos músicos Rincon (da banda Maria Preta) e Cacau (vocalista da banda Baixada
Brothers).
120
O poeta Macedo de Moraes utiliza a expressão no informativo Abeu expresso, ano 5, n. 61,
2005.
121
Segundo Denise, animadora cultural, moradora de Nova Iguaçu.
76
região, como um todo, estaria impregnada de um espírito artístico. E é a partir dessas
“qualidades artísticas” da região, que os discursos que defendem uma imagem
positivada da Baixada, articulam-se. Não para incentivar a valorização dos bens
artísticos desenvolvidos na localidade, mas também a divulgação de quaisquer
manifestações artísticas de outras origens:
A vida cultural da região é uma de suas carências. Mesmo sendo rica em
artistas e produtores de cultura, a região sofre com a falta de veiculação dessa
produção local e também com a falta de acesso aos bens culturais que trafegam
com mais desenvoltura nos grandes centros urbanos.
122
Esses indivíduos e/ou grupos se esforçam por demonstrar que a existência na
Baixada não é apenas marcada pela experiência negativa da convivência com a
“violência” e a “pobreza”, mas que na região “também tem cultura”. No ano de 2002, a
Escola de Samba Inocentes da Baixada, teve como tema do seu carnaval o município de
São João de Meriti. Uma das partes da letra do samba diz: “Tem esporte, indústria e
cinema / Shopping Center e acervo cultural/ Saúde, educação com amor, explode aqui /
São João vai sacudir”. Anos antes, em 1999, o tema foi a própria Baixada: “A Via
Light
123
caminho da luz / conforto e progresso que ao povo conduz / indústrias,
comércio, esporte e lazer / o futuro é certo, crescer e vencer”.
124
No ano de 2004, para a
divulgação do Prêmio Baixada lia-se que a finalidade da premiação era “reconhecer os
valores culturais, artísticos, históricos e sociais da Baixada [...] a àqueles que de modo
122
Extraído do informativo Baixada Fácil, site de Internet, localizado no endereço
www.baixadafacil.com.br, em 25/07/2004.
123
Via de acesso público.
124
Infelizmente não constam os registros dos autores dos dois sambas
77
direto ou indireto vêm contribuindo para a divulgação do que a Baixada tem de melhor:
o HOMEM, SUA CULTURA E SUA ARTE”.
125
Nesse processo de promoção de um novo “olhar” sobre a Baixada, o uso da
Internet tem sido uma ferramenta importante. Em 25/05/2005 por exemplo, chegou-me
um e-mail que divulgava um Fotoblog,
126
intitulado “Retratos da Baixada”. O texto de
divulgação dizia:
Estou expondo no meu Fotoblog um ensaio fotográfico mostrando pessoas que
de alguma forma contribuem ou contribuíram para mostrar o lado positivo e
construtivo da Baixada.
Além dessas iniciativas individuais, a região conta com sites especializados que são
utilizados para noticiar os eventos sociais considerados mais representativos da
agenda artístico-cultural da região. Colocando-se como agências de noticiais, esses
informes eletrônicos nas suas primeiras páginas destacam acima de tudo a
programação artística local. Um deles é “Baixada On”.
127
Em pesquisa
128
no site foi
possível acessar as seguintes matérias:
125
A premiação ocorreu no dia 24/06/2004 no auditório do Centro Cultural da Secretaria de
Cultura de Nilópolis. Ver: www.baixadaon.com, capturado em 28/07/2004. As letras em caixa
alta foram transcritas tal como aparecem na website.
126
É uma espécie de galeria de fotos veiculada na rede de computadores. O endereço do
fotoblog citado é http://flaviomota.nafoto.net/.
127
O endereço do site é www.baixadaon.com..
128
Pesquisa é referente ao ano de 2004 (meses de janeiro a agosto).
78
Títulos Data
Atrás do Poder é o mais novo espaço cultural de Jardim Primavera 10/02/2004
Amigos da Cultura buscam recursos para ajudar artistas 22/03/2004
Movimento amigos da cultura promove curso de pintura no centro de
Caxias
19/04/2004
O forró na Feira de Caxias volta com força total 24/04/2004
Companhia Dança de Caxias se apresentará no centenário do América 31/05/2004
II Feira do Livro de Duque de Caixas começa nesta segunda 07/06/2004
Inscrições para concurso de Poesias de Caxias vão até dia 25/06 20/06/2004
Cinema e esporte são temas de sessão gratuita de curtas metragens em
Caxias
21/06/2004
Dia 24 tem mais uma edição do Prêmio Baixada 23/06/2004
Companhia de Dança de Caxias vai se apresentar no Teatro Cacilda
Becker
24/06/2004
Ministro Gilberto Gil visita Caxias – Reformas na Fazenda São Bento e
Igreja do Pilar serão anunciadas
28/06/2004
Biblioteca Pública de Jardim Primavera ensina arte do trabalho do com
linha e pano
02/07/2004
Centenário do poeta Pablo Neruda será comemorado em Caxias 12/07/2004
Casa da Cultura promove evento especial de Hip Hop nesta sexta 13/07/2004
Academia Mageense de Letras realiza noite de autógrafos 15/07/2004
Circuito Rio de Cinema estará em praça de Mesquita dia 17 17/07/2004
Paracambi promove sua 19ª Feira Cultural 18/07/2004
Casa da Cultura de São João leva arte ao espaço Criança Esperança 06/08/2004
79
Outro portal da internet que divulga notícias exclusivas da região é o “Baixada
Fácil”.
129
Numa página de abertura, intitulada “Bem vindo às Baixadas” o editor nos
diz que “a diversidade é uma das marcas desse conjunto de municípios nomeado por
sua situação geográfica”.Num outro editorial do informativo, dedicado a comentar o
lançamento de uma revista digital de poesias, o “Arrulho Digital”, nos diz que:
É pensando na nossa região, no seu potencial e nos seus problemas, que
fazemos o Baixada Fácil. Temos a convicção de que só se muda fazendo
mudanças, e que as mudanças passam por todas as esferas: da economia à
cultura, da política à cidadania. Por isso queremos mostrar como a Baixada é
capaz de mudar, fazendo o que é possível, seja com tesoura, cola e xerox ou
com os recursos do ciberespaço. Da Baixada pra o mundo, do mundo para a
Baixada.
Nesse trabalho de desenvolver e divulgar uma nova “imagem” da região também
aparecem em destaque noticiais sobre instituições e ações que ali estão localizadas e
que sinalizam para a existência dessa “outra” Baixada, como o Instituto Histórico
Vereador Thomé Siqueira Barreto,
130
a Escola de Governo da Baixada
Fluminense,
131
o Programa Integrado de Pesquisas e Cooperação Técnica na Baixada
129
Endereço eletrônico: www.baixadafacil.com.br.
130
Site Baixada On, capturado em 28/07/2004, com o título “Instituto Histórico Vereador Thomé
Siqueira Barreto Guardião da Nossa História”. O Instituto é localizado no município de Duque
de Caxias.
131
Site www.faperj.br, capturado em 28/07/2004. A notícia conta da abertura do Curso de
Introdução às Ciências Sociais em 03/07/2003, que “é destinado, preferencialmente aqueles
que têm interesse em obter conhecimentos sobre os aspectos econômicos, sociais e culturais
da Baixada Fluminense e desenvolver estudos sobre a região”.O curso é uma parceria entre a
80
Fluminense,
132
os trabalhos da Comissão de Resgate do Patrimônio Cultural da
Baixada,
133
a Faculdade de Educação da Baixada Fluminense/UERJ,
134
o
Observatório de Políticas Públicas da Baixada,
135
a assinatura da Carta Cultural da
Baixada Fluminense
136
e da criação do Dia da Baixada Fluminense,
137
além da Carta
Escola de Governo da Baixada Fluminense e a Fundação de Amparo a Pesquisa no Rio de
Janeiro (FAPERJ).
132
O Programa Integrado de Pesquisas e Cooperação Técnica na Baixada Fluminense
(PINBA) foi criado em 1992, está sediado na Faculdade de Educação da UERJ/Baixada
Fluminense e “tem por finalidade articular organizações governamentais e não-governamentais
da Baixada com unidades, programas e setores da UERJ, em ações que envolvem estudos,
pesquisas e encaminhamentos dos inúmeros problemas que assolam a região. Capturado do
site www.baixadaon.com, em 28/07/2004.
133
Site Baixada On, capturado em 28/07/2004.
134
Localizada no município de Duque de Caxias. Notícias disponíveis no site Baixada On,
capturada em 28/07/2004.
135
O Observatório de Políticas Públicas tem sede em São João de Meriti e “é um instrumento
sistemático de pesquisa, organização e difusão de conhecimentos sobre políticas públicas dos
municípios da Baixada Fluminense, voltado para a promoção da cidadania a justiça na cidade”.
Ele está vinculado ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ
(IPPUR) e a Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (FASE). Capturado
em www.baixadaon.com em 28/07/2004.
136
Capturado no endereço eletrônico www.baixadafacil.com.br/arte_cultura/carta.htm, em
25/07/2004. A Carta da Baixada foi assinada na Faculdade de Educação da UERJ, em Duque
de Caxias e datada em 09/12/2000. Ela é definida como um “documento-síntese”, cujo objetivo
é reafirmar “a convicção dos participantes no potencial dos artistas, pesquisadores,
historiadores e promotores culturais locais, ao mesmo tempo em que foram destacadas
diversas diretrizes para nortear a formulação de uma política cultural para a região”. Sua
elaboração foi coordenada pelo PINBA e pelo IPAHB. Segundo os coordenadores, aqueles que
a assinaram são “agentes culturais, representado os mais diversos setores do universo cultural
da Baixada Fluminense, tais como: teatro, música, literatura, folclore, artesanato, imprensa,
pesquisa social, ecologia, artes plásticas etc.”.
137
A Carta da Baixada, no seu item 21, solicita a criação do Dia da Baixada Fluminense, a ser
comemorado a cada 30 de abril (segundo os assinantes do documento a data refere-se à
inauguração da primeira estrada de ferro construída no Brasil, ligando o porto de Mauá à região
81
de Meriti.
138
Também é possível acessar páginas (e não apenas notícias) de
instituições como o Instituto de Pesquisas e Análises Históricas e de Ciências Sociais
da Baixada Fluminense (IPAHB)
139
e da Associação do Movimento de Compositores
da Baixada Fluminense.
140
Temos um complexo quadro na Baixada Fluminense, no qual convivem as
lembranças e as práticas dos grupos de extermínios, o incremento do tráfico de
drogas (que segundo representações dos moradores ainda não é o ostensivo como
no município do Rio de Janeiro) , as representações sobre a “pobreza” e a “carência”
e uma Baixada que quer ser positivada “cultural e socialmente”. A que viu nascer e
crescer os pré-vestibulares comunitários no estado do Rio de Janeiro, a que cria
ONGs e associações voluntárias, instituições dedicadas ao ensino e à pesquisa. A que
investe em cursos de teatro, concursos de poesia, mostras de dança, exibições de
cinema e vídeo, apresentações de música. um grande esforço em demonstrar que
essa população produz e se importa com a “cultura”, categoria cujo conteúdo aponta
tanto para as expressões artísticas, quanto para uma produção científica e para o
desenvolvimento de uma idéia de “cidadania”.
de Fragoso). No dia 03/05/2002, o Diário Oficial publicava a Lei n. 3.822, de 02/05/2002 que no
seu artigo primeiro estabelecia o Dia da Baixada conforme o pedido da Carta da Baixada.
138
A Carta de Meriti data de novembro de 1998 e é endereçada à Associação de Prefeitos da
Baixada. Seu objetivo é o de sensibilizar os prefeitos da região quanto ao Patrimônio Histórico
de cada município. Segundo seus assinantes (integrantes da Comissão de Resgate da
História) a “Baixada Fluminense compõe uma das mais valiosas fontes para o entendimento da
História do Brasil nestes 500 anos de pós-descobrimento”. Capturado no site
www.baixadafacil.com.br/historia/cartasjm.htm, em 25/07/2004.
139
Capturado em 05/05/2003, no site www.ipahb.com.br. O IPAHB é uma entidade civil, sem
fins lucrativos, criado no ano de 1997 cuja finalidade é “democratizar os conteúdos sobre a
História Regional”. Sua sede é no município de São João de Meriti.
140
Endereço eletrônico: www.escolaamc.hpg.ig.com.br/htm.
82
2. Música na escola
2.1 Pelas mãos de Denise – Desvio e liberdade na Baixada Fluminense
A minha vida começa quando eu vim pro Rio. eu lembro
das coisas. A minha vida começa na década de 70. Ditadura, a
música... muita música proibida, “farofafá, farofafá...”, muitos
que já morreram...
Conheci Denise tão logo iniciei meu trabalho de campo. Eu tinha
alguns contatos com músicos da Baixada, contatos de longa data, e na tentativa de
afastar minhas próprias pré-noções sobre o universo a ser estudado, e melhor
compreender as relações sociais que este desenvolve no seu processo de reprodução
social,
141
busquei travar conhecimento com outros profissionais do mundo da música,
com especial atenção aqueles que se dedicam a ensinar música. Foi ela, Denise, quem se
apresentou para mim, o que me parece um dado extremamente importante: a sua
disponibilidade de participar de uma pesquisa, na qualidade de “entrevistada”. Ela
soube, “de ouvir falar”, que eu realizava um trabalho sobre os músicos da Baixada e se
oferecia para participar. “Em troca”, ela me pedia, que “ajudasse a divulgar a luta dos
animadores culturais”. Bem, eu não sabia o que eram os animadores cultuais... Tentei
rapidamente explicar os limites do meu modesto trabalho, quanto aos possíveis
impactos políticos (o objetivo principal de Denise era o de sensibilizar a opinião pública
e em especial, o governo estadual) que ele poderia causar. “Mas você vai escrever a
respeito, não vai?”, ela inquiriu depois de alguns instantes de decepção. “Vou, uma tese
de doutorado, algo que tem uma circulação restrita...”, tentei me desculpar. “Mas vai
141
Conf. Bourdieu e Passeron, 1975.
83
estar escrito em algum lugar, não é?”. “Com certeza”, completei. “É o que importa”, ela
disse e sorriu.
Depois desse contato inicial, um pouco frustrante para ela,
preocupante para mim, passamos a nos ver com extrema freqüência. Quanto mais o
tempo passava, ela compreendia que a minha “ajuda” ao seu ofício seria infinitamente
inferior à dela ao meu. Mas mesmo assim, melhor nos relacionávamos, e acredito eu,
tornamo-nos amigas. Um complexo processo de empatia e de identificação foi-se
desenvolvendo entre nós.
A partir desse contato inicial, Denise se revelou de extrema
importância para o desenvolvimento do meu trabalho. Para desenvolver sua atividade
profissional, ela estava inserida numa rede social
142
, que foi me apresentando, às vezes
de maneira formal, às vezes a partir da realização de minha observação participante.
Com o avançar de nossa convivência, pude, paulatinamente, ir conhecendo os nós desse
mundo social
143
no qual Denise se inseria. Ao acompanhar Denise e sua história de vida
pude perceber o funcionamento e a importância da formação de redes, não só para a sua
trajetória em particular. É possível ver como esse mundo social formado por músicos
constrói seus canais e como ele é constructo e construtor de um mundo artístico,
definido nos termos de Becker (1977:9):
Defina-se um mundo como a totalidade de pessoas e organizações cuja ação é
necessária à produção do tipo de acontecimento e objetos caracteristicamente
142
De maneira geral, podemos dizer que essa discussão sobre networks é desenvolvida por
autores como Bott (1976), Mitchell (1969) e Epstein (1969 e 1973). No âmbito do PPGAS,
alguns trabalhos serviram de especial inspiração quanto a validade do uso do conceito para o
estudo da realidade social específica aqui apresentada. Enne (2002) usa o conceito como
premissa metodológica para analisar construções de memória e identidade que se desenrolam
na mesma região deste estudo, a Baixada Fluminense. Outro trabalho bastante significativo é o
de Heilborn (1984), no qual são apresentadas as redes sociais de um subúrbio carioca.
143
Conforme Schutz, 1979.
84
produzidos por aquele mundo. Assim, um mundo artístico será constituído do
conjunto de pessoas e organizações que produzem os acontecimentos e objetos
definidos por esse mundo como arte.
A idéia da formação de uma rede social parece extremamente profícua
para se pensar na natureza específica do trabalho do músico. O conceito aponta para a
idéia de troca de bens materiais e simbólicos, de conquista e estabelecimento de
prestígio e status. Becker destaca que o mundo artístico não é composto apenas por seus
executores mais visíveis, e sim por séries de redes de trabalho artísticas, que ele chama
de cooperative networks (1982:1). O autor também sugere que esse mundo e seus
objetos são frutos de uma ação coletiva.
144
Embora afirme que esse universo social apresenta características
específicas, que nos permitem distingui-lo como um mundo artístico, não estou com
isso dizendo que devemos toma-lo como um algo fechado ou isolado. Os membros
desse grupo social, além da identidade de músicos e de professores de música,
compartilham suas vidas com outros domínios da realidade. O mundo artístico se
apresenta a partir de um universo simbólico próprio, embora não-exclusivo, ocupando
um espaço especial no mapa social vigente, quanto ao prestígio e ao status dos seus
membros.
Meu objetivo aqui é então, o de apontar, a partir da construção de uma
história de vida
145
, as possibilidades de constituição desse universo. Como as pessoas
começam a se interessar por música? Qual o sentido da música na vida desse grupo?
Como trabalham e ganham dinheiro com a música na Baixada Fluminense? São
144
“People are mobilized for collective action”. (Becker, 1982:5).
145
Becker, 1993.
85
questões mais gerias desta tese de doutoramento. Com essa primeira história de vida,
inicio o contorno desse universo, apreendendo algumas de suas representações sociais,
construídas interna e externamente – ou seja, como o grupo se vê e é visto.
2.1.1 Quem é Denise? Migração nordestina e imagens da Baixada
Denise nasceu no ano de 1963. Assim, quando nós iniciamos nosso
contato ela estava com mais de 40 anos. Ela, como uma parte expressiva da
população da Baixada Fluminense é uma migrante nordestina. Veio da Bahia para a
cidade de Duque de Caxias aos 5 anos de idade, junto com a avó e primos. A mãe, os
tios e as tias maternos estavam estabelecidos no estado do Rio de Janeiro alguns
anos, quando fizeram vir a avó, Denise e um primo. Essa parece ser uma prática comum
entre migrantes, principalmente os nordestinos,
146
na qual os mais velhos e as crianças
permanecem no local de origem (no caso, os avós com seus netos), enquanto os
jovens/adultos (os filhos) vão para as principais capitais do país, em busca de melhores
oportunidades de trabalho. Durante muitas décadas, e até hoje em certa medida, as
cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro funcionam como chamariz para as populações
do norte e do nordeste. As mulheres, da família de Denise, vieram trabalhar como
empregadas domésticas, no bairro de Copacabana, onde conheceram os futuros maridos
que trabalhavam nos mesmos prédios que elas o padrasto de Denise era zelador. É o
nome deste padrasto que consta na sua certidão de nascimento e é a ele que chama de
pai.
Os homens, seus tios, foram trabalhar na construção civil. Essa
trajetória não é específica de sua família. Fluxos populacionais migratórios, vindos dos
nordeste, além de outras regiões do país, instalaram-se em levas, a partir de meados da
146
Sobre identidade nordestina no Rio de Janeiro ver Morales, 1993.
86
primeira metade do século XX, nas regiões mais pobres da cidade do Rio de Janeiro,
incrementando o número e o adensamento de favelas. Mas acima de tudo, a população
nordestina escolheu a Baixada Fluminense como local de moradia, embora trabalhassem
em sua maioria na capital. Maurício Abreu (1997: 107), após analisar os censos
demográficos das décadas de 1930-1940, afirma: “apenas um número restrito dos
migrantes veio ocupar as favelas [...]”.
Durante os anos de 1950, a intensificação da chegada de migrantes no
Rio de Janeiro, algo estimado em 1.291.670 pessoas, fez crescer a população da
Baixada:
Mais importante do que o crescimento da área limítrofe do antigo Distrito
Federal, que hoje constitui a Região Administrativa de Anchieta, foi entretanto
a ‘explosão demográfica’ da Baixada. Com efeito, todos os municípios aí
situados cresceram a taxas elevadíssimas durante o período, em muitos casos
superiores a 140% [...]. Dentre os fatores que possibilitaram esse crescimento
fantástico, três parecem ter sido os mais significativos: a abertura da nova
Rodovia Rio-São Paulo, o baixo preço dos lotes oferecidos (posto que nada
incorporavam de benfeitorias), e a possibilidade de aí se construir uma moradia
com o mínimo [...] de exigências burocráticas, em contraposição ao
progressivo controle da construção exercido pelo Estado no Distrito Federal
(Abreu, 1997:121).
Abreu (1997) nos chama a atenção para o fato de que a população
recém-chegada, em sua grande maioria, não se instalou em favelas, indo morar nos
novos loteamentos das cidades de Duque de Caxias, São João de Meriti e Nova Iguaçu,
principalmente. Essas terras, além de processos simplificados de regularização dos
lotes, tinham preços baixos (se comparados aos preços praticados na capital, mesmo nos
87
seu subúrbio). Assim, a família de Denise inicialmente se estabeleceu em Duque de
Caxias, local onde a tia foi morar após o casamento. Depois, a avó alugou uma casa em
Nova Iguaçu, na localidade conhecida como Cerâmica. Pouco tempo depois foi a mãe
de Denise quem se casou, indo residir numa casa alugada em Campo Grande, zona oeste
do Rio de Janeiro. Ficaram pouco tempo lá. De volta para a Baixada, a família recém-
formada foi-se instalar próximo à casa da avó de Denise, também pagando aluguel. Em
julho de 1975, um tio (irmão da mãe) e o padrasto compraram terrenos num novo
loteamento do município, por uma pequena entrada e baixas prestações, no bairro do
Corumbá. Depois, as outras duas tias também adquiram terrenos no mesmo loteamento.
Atualmente, todos os parentes de Denise que estão no Rio de Janeiro, moram próximos,
no Corumbá.
147
Denise, então com 12 anos, rejeitou veementemente o novo local de
moradia:
era horrível, eu chorei quando fui para lá. Eu gostava da Cerâmica. Sair da
Cerâmica para morar naquele lugar que tinha mato, que não tinha rua. não
tinha nada. Ônibus, não tinha. Era um de manhã, outro meio dia, e outro à noite. A
minha mãe gostava da Cerâmica, morávamos no centro da Cerâmica, de aluguel.
tinha condução, comércio, a igreja do lado dela. Lá é muito mais urbanizado, só
falta ter banco. A minha mãe nunca falou mal do lugar, eu acho que é porque
quando eu fui morar lá, eu chorei, eu não queria, eu simplesmente sentei num
caminho daquele, porque não tinha rua, e chorei, chorei, chorei: “Porque que a
senhora está me trazendo para cá? Aqui é horrível, aqui na tem nada. Isso dá medo,
147
Da Bahia, vieram ao todo cinco irmãos: três mulheres e dois homens. Quatro vivem no
Corumbá, e o quinto irmão (homem) voltou para a Bahia.
88
tem mato.” Eu tinha que continuar estudando na Cerâmica, era horrível para
pegar a condução.
A mãe, que como Denise diz, nunca reclamou do local, contra-
argumentava: “Isso aqui é nosso, a gente tem que dar valor, porque foi aqui que seu pai
pode comprar. Então é melhor do que viver de aluguel. Amanhã ou depois, eu morro, ou
o seu pai morre, e como é que vocês vão ficar?”
A “explosão demográfica da Baixada” pode ser apreendida então a
partir de uma dimensão simbólica importante: essas famílias rejeitavam a idéia de morar
em favelas, e tinham a “casa própria” como valor, como algo que transmitia segurança
quanto ao seu próprio futuro e de seus filhos. Mesmo alegando não gostar do lugar,
Denise, ao se casar, seguiu o caminho indicado pelos pais:
Quando eu me casei, eu falei: “não quero morar de aluguel. Vou comprar uma
casa”. Aí, nós compramos uma casa de conjunto. Foi um bloco de casas que eles
construíram lá, no Corumbá. E muita gente não quis morar porque é horrível.
eu comprei passado de outra pessoa. Depois é que nós colocamos a casa no
nosso nome. Mas até hoje, eu tento sair dali... um dia em consigo. Eu não gosto
dali. Nunca gostei. Eu sai. Morei na Posse, num apartamento. sai outra vez,
morei mais a frente. Eu falei, “tudo bem, da próxima vez que eu sair, vou sair para
o que é meu.” Comprado, não alugo mais nada.
Denise demonstra rejeitar violentamente o bairro onde mora, embora
sua casa seja “própria”. tentou alugar sua casa algumas vezes e com o dinheiro pagar
aluguel em lugares “melhores”. Mas a casa definitiva, entendida como uma casa “no seu
nome”, em outro lugar, é algo que ainda persegue. O que se nota, não é uma rejeição
89
extensiva às outras áreas da Baixada, porque como ela mesma colocou, existem “bons”
lugares para se viver em Nova Iguaçu. Suas queixas, nesse momento, estão circunscritas
ao lugar em que mora:
É um lugar em que você não tem perspectiva de vida, você não tem nada cultural...
e tudo que você tenta colocar... como eu que tive um centro comunitário. Nós
tínhamos apresentação de teatro, dança, roda de capoeira. E as pessoas não se
interessam por isso. Elas querem um centro social para curso de graça, para dar
cheque-cidadão, para dar bolsas, e quer que você na prefeitura reclamar do
problema que é dela, da porta dela, porque ela mesma não vai.
Eu pergunto se não havia público para freqüentar o centro comunitário
que ela desenvolveu:
Tinha, mas era para isso que estou te falando.Tem um público de cursos, para fazer
cursos, mas para assistir a um teatro? Não tinha. Para assistir um quarteto de
cordas? Não tinha. Você vai fazer uma aula de musica não tinha. As pessoas
tem uma mente muito voltada para o bar do João que toca o pagode, que toca o
funk, que eles podem ir lá, discutir um futebol, ouvir um funk, que eles podem ir
arrumar namorada, mas não tem essa parte cultural. E essa parte cultural do bairro
faz muita falta. [...] Sabe, então essa parte falta o saneamento, a educação do
povo, de ninguém jogar lixo na porta dos outros, de você varrer a sua rua. Isso me
faz falta. De você pegar um ônibus e está próximo a um teatro, está próximo de um
90
cinema, dever um bom filme, ir para um barzinho agradável, em que você não seja
obrigada a ouvir um funk
148
, um pagode.
As suas representações sociais sobre o lugar podem ser sintetizadas
na expressão “não tem nada”. Suas queixas podem ser divididas em :
aquelas que se referem à “falta de estrutura do lugar”, divididas em:
transporte, comércio, igreja, urbanização;
“falta da parte cultural”: segundo seu discurso, para a não
existência de espaços de divulgação e consumo de um
certo tipo de produção artística;
aquelas que apontam para uma relação de vizinhança com um certo grau
de conflito:
falta do que se convencionou chamar de “cultura cidadã”:
representada por um certo “comodismo” dos vizinhos;
excesso de controle social promovido pela “própria
cultura do bairro”.
Quanto a este último item, Denise nos diz:
148
Denise refere-se ao chamado funk carioca”. Esse artefato cultural tem sido alvo de
inúmeras polêmicas que associam o estilo musical a um estilo de vida marcado por
envolvimentos com o tráfico de drogas e a corrupção de menores. Sobre funk carioca ver:
Ceccetto (2003), Cunha (1997), Herschmann (2000), Oliveira (1995), Ribeiro (1996), Vianna
(1996, 1997) e Yudice (1997).
91
dentro[no bairro], eu não freqüento bar nenhum, falo com todo mundo, mas eu
não freqüento. Porque é como se fosse uma pessoa... uma pessoa que tivesse à toa,
é como se fosse da classe baixa, uma pessoa... eles denominam as pessoas que
freqüentam barzinho , boteco, de “gente a toa”. Claro, isso para as mulheres, os
homens podem. Mas as mulheres: “ah, ela está a fim de arranjar um homem”. Ou
então, “ah, ela ta a toa”. Ou é “piranha”, “vadia”, “não tem o que fazer em casa”.
não tem essa cultura de você [mulher] sentar, tomar uma cerveja, sem que
ninguém passe e fique te olhando. Tem uma cultura mesmo... a própria cultura do
bairro, isso me incomoda muito ali dentro.
A construção “lá dentro” para se referir ao bairro do Corumbá
demonstra a sua visão do lugar como um espaço social específico. Um certo tipo de
região moral,
149
no qual o código de conduta vigente impõe sanções sociais aqueles que
lhe desrespeita. Fato sabido é que toda comunidade constrói uma linguagem simbólica
própria, estabelecendo padrões morais de comportamento, com regras sociais definidas.
No caso de Corumbá, a partir do olhar de Denise, nos deparamos com um contexto no
qual a condição de gênero - a condição de mulher, não teria o mesmo prestígio social da
condição masculina, a quem tudo é permitido. Teríamos lugares sociais extremamente
demarcados para homens e mulheres, que causam constrangimentos quanto a circulação
destas últimas. O indivíduo “mulher” estaria subordinada a um tipo de expectativa
social refutada por Denise, que não concorda com a idéia de que as mulheres que
“freqüentam os bares” sejam rotuladas de “mulheres à toa”. Aos poucos e sempre com
mais intensidade, a categoria “liberdade” aparece no seu discurso como um valor a ser
conquistado.
149
Conf. Park, 1967.
92
Gilberto Velho (1978:66) em sua pesquisa sobre os moradores de um
prédio de conjugados, estigmatizado em Copacabana, trabalhou com o que chamou de
unidades mínimas ideológicas, - unidades básicas de análise para montar um sistema de
classificação. Seu objetivo era descobrir porque as pessoas se deslocavam de seus
lugares de origem para ir morar em Copacabana. Dentre as várias unidades que
constatou, podemos encontrar as de “comércio”, “condução”, “viver” e “liberdade” as
mesmas acionadas por Denise. Ela não se refere às qualidades do seu lugar de moradia,
como os habitantes de Copacabana, mas aos defeitos, ou ausências do local, aquilo que
os moradores buscam na zona sul carioca. Aplicando o mesmo modelo a este trabalho,
observo que, de todas essas categorias, a que expressa mais claramente às ambições de
Denise é a de “liberdade”: a liberdade está em jogo quando falta transporte para o
deslocamento, a “liberdade” está limitada quando não comércio próximo, a
“liberdade” está ameaçada pelo controle social da vizinhança.
150
Essas representações sobre a condição feminina são compartilhados
no bairro. Não os vizinhos, mas a família de Denise também apresenta as mesmas
leituras quanto ao lugar social das mulheres. Após terminar o ensino fundamental,
151
que fora cursado em escolas públicas da região, a mãe de Denise, que tinha sido
abandonada pelo marido, decidiu que a filha não deveria mais estudar e que, contando
com 12 anos de idade, iria trabalhar para colaborar no orçamento doméstico. Durante os
nove anos seguintes, ela se revezou nas ocupações de doméstica, babá, cozinheira,
lavadeira, passadeira e faxineira, a que se casou: “Na cabeça da minha mãe é o
seguinte: você tem que ser dona do lar. Você não precisa estudar. A cabeça da minha
mãe era: “você não precisa estudar, você vai se casar. Para que estudar?”
150
O tema da “liberdade também se apresenta no subcapítulo 3.3 Mônica e o desprestígio
social”.
151
O antigo primeiro grau.
93
Aos conflitos familiares e geracionais com a mãe, que marcam
fortemente a experiência de Denise, se sobrepuseram a relação matrimonial, que ela
iniciou aos 22 anos de idade: “Durante o tempo em que eu fui casada, o meu marido não
queira que eu trabalhasse. Ele dizia que mulher que trabalha é safada, ela trai o marido.
Porque mulher que trabalha não presta”.
Numa pesquisa realizada em meados da década de 1980 (mesma
época do casamento de Denise) cujo tema principal foi a doença mental em classes
trabalhadoras, Luis Fernando Dias Duarte (1986) nos diz que:
O elemento polar da mulher encontra-se assim qualificado de forma muito diversa
da do homem. Em primeiro lugar, ela é interna e privada, imbricando-se de maneira
inextricável com o próprio sentido da casa. O mundo da rua é por ela atravessado
apenas em direções muito cuidadosamente balizadas, ressaltando-se certas
situações rituais de passeio ou festa e a freqüência aos espaços religiosos. O
trabalho, ai representado sob a forma pouco descrita no tocante no ethos
masculino, é um espaço que ela pode ocupar de forma algo ilegítima, por mais
freqüentemente que isso tenha de ocorrer. (Duarte, 1986:177-8).
Na década de 1990, Heilborn (1999) desenvolveu trabalho que
consistiu na comparação de carreiras sexuais femininas e masculinas.
152
A população
estudada, com idade variando entre os 25 e 40 anos, situava-se nos grupos das camadas
médias e das camadas populares da Zona Norte e Subúrbio carioca. O resultado da
152
Podemos citar uma série de trabalhos das ciências sociais nos quais a temática “gênero” é
tratada: Aguiar (1997), Alves (2004) Aragão (1983), DaMatta (1989), Dauster (1984 e 1987),
Duarte (1986, 1987), Durham (1983), Ferreira e Nascimento (2002), Franchetto et alli
(1980),Goldemberg (1994), Guimarães (1998), Heilborn (1984, 1996, 1997, 1999, 2004),
Rosaldo e Lamphere (1979), Salem (1980), Silva (2004). Ver também Bourdieu (1999), Simmel
(1969), Pitt-Rivers (1977) Duby e Perrot (1991)
94
pesquisa confirma a idéia de que um valor diferencial entre gêneros e entre camadas
sociais. No caso dos moradores dos setores mais populares, o papel feminino e sua
relação com o trabalho externo ao lar, encontrava-se em situação bastante semelhante
aquela evidenciada por Duarte (1986):
Diferente das camadas médias, quando em certos contextos de fala surgia uma
demanda por uma simetria entre os gêneros, elas [as mulheres das camadas
populares] acatavam distintos papéis para homens e mulheres. [...] Para essas
mulheres é relevante a expectativa de terem para si um homem provedor de
recursos e respeito, cumpridor das obrigações morais com a casa e com a família;
elas, por sua vez, cumprem com as responsabilidade que lhes caberiam: administrar
os gastos familiares, controlar os recursos do grupo, cuidar e educar os filhos,
executar as tarefas domésticas e contribuir, de forma considerada sempre
secundária, com a ampliação da renda familiar. (Heilborn, 1999:53).
Denise, ao se recusar a desempenhar o papel social de mulher
correspondente às expectativas da mãe, e depois do marido, quebra as regras sociais
estabelecidas do seu circuito familiar e de vizinhança. Mas, apesar da percepção do
marido (um garçom pernambucano), sobre as mulheres que trabalham fora, Denise
voltou a se empregar, agora como copeira na prefeitura de Nova Iguaçu. Quando
anunciou que iria também retornar aos seus estudos, os dois se separaram e ela durante
dois anos não teve o direito à guarda da filha que tinha nascido dois anos antes:
Quando eu sai para voltar a estudar, eu ainda estava casada. Isso foi o pé da
briga. Quando eu me separei, ele ficou com a Samanta. Ele não me deixou
ficar com a Samanta. Eu não levei minha filha. Ele ficou dois anos com a
95
minha filha. Eu sempre fiz de tudo para recuperá-la. E aí, mais do que nunca,
eu tinha que estudar, tinha que arranjar um bom emprego para poder ter
como sustentá-la.
Ela foi cursar o ensino médio à noite, no curso de normalista, na
escola Milton Campos, em Nova Iguaçu. Depois, demitida da prefeitura, foi vendedora
de plano de saúde:
Eu trabalhava, depois saí da prefeitura e fui trabalhar como vendedora de
plano de saúde. Na prefeitura, eu entrei para servir cafezinho, depois eu fui
até operadora de rádio. Eu fiquei lá um ano e pouco. Eu sai porque houve uma
intervenção na prefeitura, mudaram o prefeito, na época o prefeito era o
Paulo Leone. Aí, entrou o Gama. Aí, eu sai. Mas eu estava fazendo segundo
grau à noite, no Nilton Campos. Fui vender plano de saúde. Da Golden Cross.
De Nova Iguaçu. Eu fazia contato com as empresas. Isso me sustentou durante
um tempo.
Mas essas ocupações parecem ter menor importância quando Denise
reconstrói sua história. Sua profissionalização e sua própria vida são redirigidas quando,
através de um “colega”, ela entra em contato com um projeto educacional do governo
estadual,
153
no ano de 1992:
153
Os Centro Integrados de Educação Pública serão aqui chamados pela sigla CIEPs. Eram
escolas públicas do governo estadual. Seu projeto educacional foi desenvolvido por Darcy
Ribeiro, durante as gestões de Leonel Brizola, como governador de estado, nas décadas de
1980 e 1990.
96
Aí foi quando abriu o CIEP do Corumbá, eu estudando, aí um colega meu
falou: “Denise, eu estou indo lá pra conversar com diretor, não quer ir lá
conhecer?”. Eu disse: “não, deve ser cargo político, eu não conheço ninguém
lá.” Aí, ele falou: “não, o diretor de lá é muito gente boa”. Eu fui. Nós
começamos a conversar. O Ricardo [o diretor] tem uma cabeça maravilhosa.
Conversamos, eu me apaixonei tanto pelo CIEP, tanto, e eu já estava fazendo
magistério. Eu falei – “me dá um estágio aqui. Eu quero vir participar”. Eu
estava separada. Emprego, eu não me arriscava nem a pedir, todas as vagas já
deviam estar cheias. Ele me disse: “tem vaga para faxineira, você quer?” eu
disse: “você me coloca como faxineira?”. Ele disse: “não acredito que você
fazendo magistério, terminando, [faltavam dois anos, no curso da noite tem
quatro anos de duração] vai se submeter a ser faxineira”. Eu falei: “eu me
sujeito. O CIEP paga bem. Eu trabalho com vendas, e não é todo dia, e eu
preciso ter uma vida estabilizada para trazer de volta a minha filha”. Contei
minha história para ele: “ta bom, vou te arrumar a vaga de faxineira”. E
arrumou. Eu pegava às 07:00 e trabalhava até 17:00, e a noite ia estudar. Eu
fiquei dois meses no cargo. Um dia ele me pediu para ficar no almoxarifado. O
Ricardo era muito desorganizado. Os CIEPs tinham almoxarifados enormes.
E eu fiquei no almoxarifado. Era o CIEP Juarez Antunes, no Corumbá, 216.
Eu tinha um contrato, na época, nos CIEPs era [regidos por] contrato. Os
professores eram bolsistas, não eram do estado. Um dia ele me pediu para ser
secretária. E quem estava fazendo a seleção era um cara que eu tinha ajudado
a um tempo atrás, quando ele estava precisando de trabalho. Ele me ajudou.
Ele me passou no teste de datilografia – tinha um teste e eu não passei. Mas ele
me fez prometer que eu ia fazer o curso. Eu fiz. Fiquei como secretária da
escola. Eu trabalhava mais com o Ricardo, ele me ensinou tudo do CIEP.
97
Quando Denise foi procurar emprego na prefeitura de Nova Iguaçu,
foi um “amigo” quem a indicou. Também foi um “colega” quem a levou para conhecer
o CIEP. Além disso, quando dos testes organizados pela secretaria de educação para o
provimento das vagas de secretária, foi um outro “conhecido” quem lhe favoreceu:
E quem estava fazendo a seleção era um cara que eu tinha ajudado a um tempo
atrás, quando ele estava precisando de trabalho. Ele me ajudou. Ele me passou no
teste de datilografia tinha um teste e eu não passei. Mas ele disse que eu deveria
fazer o curso. Eu fiz. Fiquei como secretária da escola.
Em 1994, Ricardo, o diretor, disse à Denise que, de novo, ela deveria
mudar de função dentro da escola:
E ele disse que eu iria ser animadora cultural, que eu conhecia muito a minha
comunidade. Mas na animação cultural você tinha que ter uma linha artística. E eu
falei, “meu Deus, o que eu vou falar [na entrevista que era feita para concorrer ao
cargo], que eu sou ‘articulada na comunidade’, isso não funciona. Ele me disse:
“você não toca um violão”. “Toco”. “Então, você é auto-didata, você não aprendeu
sozinha? Você vai tocar cantigas com as crianças. O que você sabe você vai passar
para essas crianças”. Eu achei aquilo muito superficial. Mas fui, meti a cara e fui.
Não sei se ficou claro como funcionava o sistema de contratação dos
CIEPs. Esclareço melhor: os diretores de escola indicavam as pessoas que estariam
concorrendo a determinadas vagas naquela instituição de ensino. Caberia à Secretaria de
Educação do Estado avaliar os candidatos, ou seja, realizar a parte final e decisiva do
98
processo seletivo. Então, em todas as contratações diferentes pelas quais passou, Denise
foi testada por funcionários estaduais, diferentes do “seudiretor. Quando a animação
cultural
154
foi constituída havia a figura do “coordenador geral de animação cultural”,
cabia a esse profissional selecionar dentre os pretendentes aqueles que assumiriam à
vaga:
Na época, o nosso coordenador, que hoje é maestro da... o Braga, ele é ou foi
diretor da Escola de Música Villa-Lobos, ele toca piano... Ele olhou na minha cara,
assim meio desconfiado, não quis me dar o emprego, mas o Ricardo tinha um
conhecimento muito bom na época.
Durante nossas entrevistas e o trabalho de campo, a categoria
“conhecimento” foi utilizada por Denise diversas vezes. Boa parte de sua trajetória
profissional pode ser entendida a partir da colaboração de “conhecidos”, “amigos”,
“colegas”, de pessoas que tinham algum tipo de “conhecimento”. Enfim, pelo
estabelecimento de cooperative networks (Becker, 1982).
155
“Conhecimento” indica
indivíduos que em certos espaços sociais gozam de prestígio social, tendo alguma
influência em certas tomadas de decisão.
156
Quando da sua admissão como “animadora
154
O amimador cultural é uma figura dos CIEPs. Sua missão é desenvolver atividades
artísticas junto aos estudantes da escola. Maiores informações sobre a animação cultural serão
posteriormente dadas.
155
Silva (2005:102-5) que pesquisou os estudantes de música da Escola Villa-Lobos/UniRio
demonstra a importância que os alunos atribuem a pertencer a uma “rede de contatos” para a
realização de suas performances.
156
Elias (1995:17-8)) demonstra, a partir da trajetória do compositor Wolfgang Amadeus Mozart
(que se desenvolve na segunda metade do século XVIII), as dificuldades de inserção social e
manutenção da sobrevivência de músicos: “Na verdade, mesmo na geração de Mozart, um
músico que desejasse ser socialmente reconhecido como artista sério, e ao mesmo tempo,
99
cultural”, o “conhecimento” do diretor da escola lhe garantiu a vaga. O coordenador
negociou a entrada de Denise, mesmo não estando satisfeito com o resultado de seu
teste: “O Braga só me contratou depois de muito... Ele fez assim, ‘vou te dar o emprego,
mas você vai me prometer que você vai melhorar essa aula de música’.”
2.1.2 A animação – arte e metamorfose
Denise continuou trabalhando na mesma escola, lidando com o
mesmo diretor, com os mesmos alunos, com os mesmos professores. Morando no
mesmo bairro que vivia antes, mantendo contato com seu parentes. Entretanto, o
momento que ela chama de “entrada para o mundo da animação” marca o início de um
verdadeiro processo de metamorfose:
E aí eu entrei para a animação cultural. Eu cresci muito como pessoa. Fui
conhecer esse lado artístico da coisa. Foi a partir de 94. Porque eu era uma
pessoa dentro de casa, cercada por uma religião, uma mãe que só... a
mentalidade dela era “filha tem que casar, não tem que gozar, tem que trepar,
e acabou”. E eu comecei a viver um mundo que eu não vivia, barzinho à noite.
Mas, o quê encontrou de novo?
A arte, a cultura. Eu descobri coisas dentro de mim que eu não sabia que
existiam. Essa magia. É mágico isso. Da cultura. Eu não sabia o que era um
teatro. Eu ouvia falar. Eu só fui no teatro ver a carochinha, quando eu era
quisesse manter a si e à sua família, tinha que conseguir um posto na rede de instituições da
corte ou em suas ramificações”.
100
babá. Mas freqüentar um teatro, rodas de artistas, gente cantando, percussão,
poetas, sair pelas ruas para escrever poesia. O Modoam ficou famoso em Nova
Iguaçu por isso, nas portas ele gravava suas poesias. Então, nós saíamos, à
noite, depois do barzinho, para ver ele, escrevendo. Íamos eu e o Emir, o
Demetrius, pessoal artístico, de teatro, mambembe, de circo, artista plástico,
eram uns 200 animadores, e eu ficava assim: “que mundo é esse, caraca”!
O conceito de metamorfose, desenvolvido por G. Velho (1999:29-30),
define:
A metamorfose de que falo possibilita, através do acionamento de códigos,
associados a contextos e domínios específicos portanto, a universos simbólicos
diferenciados que os indivíduos estejam sendo permanentemente reconstruídos.
Assim, eles não se esgotam numa dimensão biológico-psicologizante, mas se
transformam não por volição, mas porque fazem parte, eles próprios, do processo
de construção social da realidade.
Podemos dizer que a metamorfose de Denise marca transformações
profundas na sua relação com a vizinhança e sua família. Não que ela tenham se
afastado completamente dessas duas unidades, não é isso. Denise vai se distanciando,
uma espécie de rompimento simbólico, propiciado pelo encontro com um outro
universo social que lhe atrai. A “arte” ou a “cultura” como ela mesma define, foi a
mediadora desse encontro, entre Denise e seu “novo” eu,
157
que possibilitou a
construção de uma nova identidade, a de artista:
157
Conf. Goffman , 2002.
101
o que me mudou foi a minha cabeça, de lidar melhor com as pessoas, de poder ser
o que eu sou, gostar do que eu faço, gostar do que eu sou, de dar valor. Eu acho que
quando ele se descobre [o artista] ele passa isso para a arte dele. Eu não acredito...,
vamos dizer que o artista tenha os momentos dele, mas quando ele... se ele é preso,
se ele tem uma infância, uma vida ruim, ele consegue que uma arte, que uma
linguagem, mude a cabeça dele, a vivência dele, ele transforma, ela passa aquilo
para aquilo que ele faz, eu acho isso fantástico, eu acho que faz mudanças. Porque
fez na minha vida.
Suas mudanças, sua metamorfose, explicitaram-se no seu corpo, que
anunciou para a sua comunidade que uma Denise diferente estava nascendo:
A primeira coisa que eu fiz, quando eu entrei na animação cultural, foi ficar careca.
Eu raspei a cabeça. Minhas roupas todas eram cortadas, minhas camisetas, calças.
Primeiro que eu não usava mais saia, mais blusa de manga. Minhas bermudas eram
rasgadas, minhas camisetas eram rasgadas, minhas calças eram rasgadas, muito
bom... tênis sujo, chinelo, caramba. Eu achava que aquilo me fazia bem. Eu não
tava nem aí. Você podia sentar no chão, você podia abrir as pernas, eu podia gritar,
aquilo tava preso. É como se fosse uma coisa que estava presa, e de repente... eu
pude fazer isso. Eu não sei, mas eu atribuo a arte, eu atribuo a animação cultural.
Eliminar os cabelos compridos, usar roupas rasgadas e sujas, mudar a
gestualidade corporal Denise estava alterando drasticamente seu comportamento
102
social, construindo uma outra fachada pessoal,
158
diferente da que carregava.
159
A
raspagem da cabeça pode ser considerada como uma espécie de rito de passagem.
Denise, evangélica então,
160
tinha sido, uns anos antes, expulsa da Igreja Assembléia de
Deus, por conta de um corte de cabelo. Ela não deliberara ter cabelos curtos e infringir
as regras daquela igreja, mas uma alergia no couro cabeludo a obrigou a diminuir o
comprimento das suas mechas: “eu fui passar uma química e comeu o meu coro
cabeludo. Por eu ter cortado o cabelo, o pastor me excluiu. Eu estava casada ainda. Meu
marido e minha mãe se revoltaram, mas ninguém foi brigar com o pastor.
Entendeu?”. O seu tom de mágoa, com relação a esta igreja e à passividade da sua
família, é evidente.
As “novasroupas, a nova” linguagem corporal e o “novo” cabelo
podem ser vistos como os passos iniciais de sua carreira como animadora cultural.
Becker (1963) na sua pesquisa sobre usuários de maconha nos mostra o caráter de
aprendizagem que marca os primeiros momentos do consumo da droga, quer dizer,
fumar maconha é algo que se aprende a partir de um grupo social. Para Denise, ser
158
Tal como Goffman (2002: 29) define: “Fachada, portanto, é o equipamento expressivo de
tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante sua
representação.” Para o autor a fachada possui duas partes: o cenário e a fachada pessoal.
Esta ultima indica os distintivos de função ou da categoria, vestuário, sexo, idade e
características raciais, altura e aparência, atitude, padrões de linguagem, expressões faciais,
gestos corporais e coisas semelhantes”. (Ibid: 31)
159
Ver o trabalho de Velho (1989: 45) – “É significativo, em termos antropológicos, como isto se
atualiza na própria aparência física, com mudanças no estilo do vestuário, corte de cabelo,
apresentação, em uma outra direção. Trata-se, obviamente, de atualizar, através de um código
visual, a adesão a certos valores e crenças.”
160
Denise nasceu numa família evangélica. Passou por algumas denominações como
“Assembléia de Deus”, “Universal do Reino de Deus” e “Batista”. Até que em 2000, passou a
freqüentar o kardecismo.
103
animadora cultural, sua nova carreira,
161
também é algo marcado por um aprendizado
social.
Denise está, em sua metamorfose, aderindo a um novo estilo de
vida:
162
Eu andava igual a uma ... a animação cultural é caracterizada por isso. Eu achava
aquilo o máximo. As pessoas de turbante. Trança rastafari.
163
Eu andava com uns
caras que eram da parte de filmagem. Os caras eram uns negros, com umas barbas
enormes, aqueles cabelos rastafari, aquelas roupas sujas e rasgadas. as pessoas:
“puta que pariu, chegou a animação cultural” [tom sarcástico-pejorativo]. Aquilo
me impulsionava: caraca, eu quero ser igual. Hoje, parece bobeira [rindo]. Mas foi
muito importante para mim. Foi um momento em que eu falei, caramba, isso pode?
Nossa, legal, a gente não se sente embarrerado. Você não precisava viver aqueles
padrões [da sociedade].
“Entrar para o mundo animação” é participar de um universo social de
artistas,
164
que podem ser vistos como transgressores. No caso de Denise, os controles
sociais exercidos pelo sistema de vizinhança e familiar se manifestaram:
161
Carreira, no sentido que Goffman (2002) dá ao termo, indicando uma trajetória a ser
percorrida por um indivíduo.
162
Ver Velho, 1999.
163
Forma de penteado de origem africana, muito difundida na Jamaica. No Brasil, o penteado é
vinculado sobretudo à comunidade de músicos de reggae.
164
Silva (2005:70) ao pesquisar músicos-estudantes nos diz que: “[...] é especialmente notável
a tendência dos agentes a cultivarem certa continuidade entre uma maneira de fazer música e
uma maneira de viver - entre um modus operandi e um modus vivendi.”
104
As pessoas que me conheciam antes, que não eram do mundo da animação,
diziam que eu estava maluca, que estava doida. Que eu tinha virado piranha. Que
eu era safada. Que eu tinha pirado a cabeça.
Martí (1999) em seu trabalho sobre os jovens de Barcelona destaca a
importância do gênero na análise antropológica que envolva o tema “música”. O autor
nos chama à atenção para questões como: “Por que o número de compositoras é menor
que o de compositores, ou por que se tem relativamente poucas mulheres que toquem
sax, bateria ou que se dediquem ao jazz?” (Martí: 1999: 30). Nesse sentido, o autor
aponta que mesmo dentro da música existe um lugar social para as mulheres. Além
desse lugar simbólico, em nossa sociedade, como vemos, e apesar do grande número de
mulheres envolvidas com atividades musicais, ainda pesam estereótipos sobre a
vinculação com o universo da música, mesmo num contexto educativo.
Mesmo sendo um indivíduo em franco processo de individualização,
Denise não pode abdicar de se sensibilizar com o que o seu núcleo de socialização
básica pensa dela. Os laços de parentesco e de vizinhança não são facilmente rompidos
por Denise. Podem sofrer fraturas, fissuras, mas ainda assim, mantém-se um certo nível
de conexão, isto porque “a auto-imagem e auto-estima de um indivíduo estão ligadas ao
que os outros membros do grupo pensam dele”.
165
Embora se esforce por participar de
outro universo social, ela não está totalmente desvinculada das suas relações primárias,
constituintes da sua sociedade significativa.
166
A pesquisa de Elias & Scotson (2000) sobre uma pequena comunidade
inglesa nos mostra as relações de poder que se estabelecem entre dois grupos distintos
165
Elias & Scotson, 2000:40.
166
Goffman, 2002.
105
de moradores. O primeiro grupo é composto por moradores mais antigos que se
atribuem as qualidades de “tradicionais”, considerados como estabelecidos. O segundo
grupo é formado por moradores mais recentes, aos quais são impingidos
desqualificações quanto à origem e comportamento, sendo os outsiders. Os autores nos
mostram como a produção de “fofoca” (gossip), ou “canais de boataria” (Elias &
Scotson, 2000: 124) o importantes mecanismos de produção de fronteiras entre
grupos.
167
Apesar de Denise não ser “alguém de fora”, vai se tornando uma estranha,
aos olhos dos seus antigos pares, despertando-lhes a raiva, o rancor e o desprezo. O
comportamento de seus vizinhos e parentes pode ser apreendido a partir destes autores,
que destacam a agressividade do grupo estabelecido como maneira de manter definidas
as suas fronteiras sociais:
Pode-se ver com mais clareza, por exemplo, o papel desempenhado nas relações
estabelecidos-outsiders pelas diferenças entre as normas e, em especial, entre os
padrões de autocontrole. O grupo estabelecido tende a vivenciar essas diferenças
como um fator de irritação, em parte porque seu cumprimento das normas está
ligado a seu amor-próprio, às crenças carismáticas de seu grupo, e em parte porque
a não observância dessas normas por terceiros pode enfraquecer sua própria defesa
contra o desejo de romper as normas prescritas. Assim, os outsiders
interdependentes, que são mais tolerantes ou apenas suspeitos de serem mais
tolerantes no cumprimento de restrições cuja observância rigorosa é vital para os
membros do grupo estabelecido, para que estes mantenham seu status perante seus
semelhantes, são vistos pelos grupos estabelecidos como uma ameaça a sua
posição, a sua virtude e graça especiais. (Elias & Scotson, 2000: 50)
167
Sobre o uso da boataria como instrumento de constituição de limites ver também Epstein
1969.
106
2.1.3 A animação – desvio e liberdade
Ao desenvolver novas atitudes corporais (“você pode sentar no chão,
você pode abrir as pernas”), Denise estava contrariando um modelo existente no qual a
posição social da “mulher” lhe confere certas técnicas corporais. Modelo esse vivido de
forma muito dramática, segundo ela, em sua comunidade. Mauss (2003: 401) ao cunhar
a expressão estava definindo como técnica corporal, “as maneiras como os homens,
sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos”.
Nota-se que o autor realça a “natureza social do habitus” corporal
168
. O autor nos diz
que “em todos esses elementos da arte de utilizar o corpo humano, os fatos de educação
dominam.”
169
Ou seja, a nossa movimentação é fruto de um aprendizado social: “cada
sociedade tem hábitos que lhe são próprios”
170
. Mauss ao singularizar a experiência
gestual a partir do seu componente sócio-cultural (e não apenas biológico ou
psicológico) mostra como o controle corporal está ligado a padrões grupais. Os bons”
atos, aqueles que devem ser imitados, estão ligados às pessoas que tem prestígio junto
ao grupo, que os desenvolve, e é isso que “torna o ato ordenado, autorizado e
provado”
171
.
Denise, ao romper com a moral dos gestos
172
vigente em sua
comunidade, recusa a docilização
173
do comportamento corporal feminino, sujeitando-
se a sofrer sanções sociais.
174
Mas o que tanta atraia Denise no novo estilo de vida?
168
Mauss, 1974: 14.
169
Ibid.: 405.
170
Ibid.: 403.
171
Ibid .:405.
172
Tomo emprestada a expressão de Schmitt (1995) que, inspirado em Mauss, realiza um
trabalho sobre os valores éticos que produziram gestos ideais na Roma Antiga e Medieval.
107
A liberdade, a liberdade que eu nunca tinha tido. Eu não conhecia essa liberdade,
de sair a noite, de beber cerveja sem ser rotulada, de estar com um monte de
colegas, cada um com sua vida, e nós não nos importávamos se cheirava, se
fumava, se era homossexual, aquilo não importava. A liberdade fascina, de você
poder fazer sem ter aquele rótulo. Esse grupo, de animadores culturais, eram
pessoas diferentes, pessoas que tinham a liberdade de fazer o que queriam, de
pensar, de falar, de xingar, de mandar todo mundo tomar na bunda, foda-se, de
poder andar rasgado. Era uma coisa que eu queria. Estava guardado, em algum
lugar dentro de mim. Estava guardado.
O encontro com os animadores culturais de Baixada Fluminense abre
um novo campo de possibilidades
175
na vida de Denise, que esta adota a definição
comum da realidade
176
do grupo. É importante sublinhar o caráter relacional existente
no conceito de metamorfose, tal como Velho (1999) o definiu. A “liberdade”
177
que
Denise encontrou junto aos animadores culturais se encontrava em oposição à vida do
bairro, familiar e religiosa, marcada pelo “enclausuramento”:
173
Ver Foucault, 1977. O autor usa a expressão “corpos dóceis” para se referir aos processos
de adestramento do corpo humano, desenvolvidos nas sociedades ocidentais, como forma de
poder.
174
Cabe notar o trabalho de Nobert Elias (1990, 1993). Nele, o autor nos apresenta a idéia de
um processo civilizador e seu desenvolvimento a partir da sociedade ocidental, que leva à
“univocidade” da conduta humana, que se faz pelo autocontrole.
175
Conf. Velho, 1999: 28 – “[...] trata do que é dado com as alternativas construídas do
processo sócio-histórico e com o potencial interpretativo do mundo simbólico da cultura”.
176
Conforme Schutz, 1979.
177
A “liberdade” é um tema comum quando discutimos a produção de arte nas sociedades
ocidentais. Especificamente sobre o tema “músicos populares” podemos citar Hobbsbawm
(1996: 218) “A arte é a única possibilidade de sair da sujeira e da opressão e alcançar uma
relativa liberdade”.
108
Coisa que eu fui criada assim: mesmo que você não goste, você abaixe sua cabeça,
respeite. Mas as pessoas não me respeitavam, elas não queriam saber se eu estava
gostando ou não. Até hoje, a minha mãe é assim. Eu vivi muito enclausurada.
Tinha uma coisa que queria falar mais alto dentro de mim, e eu não conseguia. A
arte, então... essa liberdade da animação cultural...
Então a animação cultural me fez ver esse lado, que eu não via. A igreja, na época
eu era evangélica, eu vivia casa-igreja-vida dos outros... eu mesma me anulava. Foi
a partir do contato com as pessoas da animação cultural que eu mudei.
Paradoxalmente, é a mesma Baixada que aprisiona e liberta. É o grupo
de amigos que faz com que ela se rebele contra os rótulos. E ela só passou a ser rotulada
depois da entrada para o grupo de animadores culturais, mas como disse antes: “era uma
coisa que eu queria. Estava guardado em algum lugar dentro de mim”. Para alguns
grupos da sociedade brasileira pode soar estranho seus reclames quanto à liberdade no
que se refere ao “vestuário, forma de comportamento, de expressão de falar, de pensar,
de debater, de discutir. De falar para você: ‘não gostei’.” Parecem questões, num certo
sentido, superadas para alguns segmentos da nossa sociedade. Lembro que o contato
entre Denise e a animação cultural deu-se em 1994, e acho seu caso exemplar para
pensarmos como as mudanças sociais não ocorrem de maneira uniforme dentro de uma
mesma sociedade (no caso, a fluminense). Na literatura antropológica, na década de
1970, num texto de Velho (1977) sobre as vanguardas artísticas pode-se localizar alguns
dos pontos discutidos até aqui: a relação entre arte e desvio, o ethos das vanguardas
artísticas ligado à contestação de valores dominantes de sua época, a ambigüidade do
seu estilo de vida, a visão que a sociedade brasileira tem sobre os artistas de uma
maneira geral. Apesar de Denise não participar exatamente daquilo que Velho (1977)
109
denominou de “vanguarda artística-intelectual-brasileira contemporânea”, penso que no
seu caso ela estava/está ligada a um tipo de movimento artístico que devido ao seu
próprio caráter, representa um tipo de “ameaça” para os grupos sociais que lhes estão
mais próximos e lhes parecem antagônicos. Compartilhando essa identidade de outsider
ou desviante, alguns artistas (de vanguarda ou não) são rotulados de usuários de drogas,
de apresentarem comportamento homossexual, de serem “desregrados”, enfim, aquilo
que Denise relatou ser classificado como “gente à toa”.
* * *
A antropologia social e a sociologia tem um investimento
considerável no tocante aos estudos da construção e eficácia de estigmas sociais.
178
Neste trabalho, opero com as noções de três autores principais, que são Becker,
Goffman e Velho, além do citado Elias. Becker (1963) contribui com a idéia de
outsider. O desvio para o autor é o produto de uma transação entre um grupo social e
alguém que é visto por este como um “quebrador” de regras. Deve ser encarado como
uma questão histórica, e não configura uma simples característica, presente em alguns
tipos de comportamento e ausentes em outros. É o produto de um processo que envolve
respostas de outras pessoas ao comportamento acusado de ser desviante. O sucesso da
acusação de desvio depende da eficácia da atribuição do rótulo. Goffman, que seguia a
mesma tradição acadêmica de Becker, nos fala do estigma como um “atributo
profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de
relações e não de atributos [...] na realidade, um tipo especial de relação entre atributo e
178
Um bom resumo do tema, até meados da década de 1970, está em “O estudo do
comportamento desviante: a contribuição da Antropologia Social”, de Velho (1974).
110
estereótipo” (Goffman, 1988:13). Também sublinhando o caráter contextual e relacional
do processo de construção de rótulos, Velho (1974:27-8) nos diz que:
O “desviante”, dentro da minha perspectiva, é um indivíduo que não está fora de
sua cultura mas que faz uma “leitura” divergente. Ele poderá estar sozinho (um
desviante secreto?) ou fazer parte de uma minoria organizada. Ele não será sempre
desviante. Existem áreas do comportamento em que agirá como qualquer cidadão
“normal”. Mas em outras áreas divergirá, com seu comportamento, dos valores
dominantes. [...] O fato é que não é o ocasional gap entre a estrutura social e a
cultural mas sim o próprio caráter desigual contraditório e político de todo o
sistema sociocultural que permite entender esses comportamentos. Assim,
poderemos perceber não o sociocultural em geral mas, particularmente, o
político nas mais “microscópicas” instâncias do sistema sociocultural.
111
3. Escola de Música
3.1 Introdução
Quando comecei a desenvolver o trabalho de campo junto à Denise, ela dizia se
sentir bastante desconfortável quanto a sua falta de formação musical. Esse desconforto
se dava principalmente por conta da realização da sua atividade profissional como
animadora cultural. E não só, incomodava-a também não estar “estudando” música, não
estar se “aperfeiçoando” naquilo que ela dizia mais gostar”. Dizia se sentir limitada
profissionalmente e, logo, artisticamente. Para suprir essa lacuna, e desenvolver-se
melhor na sua carreira, via como uma das possibilidades, o ingresso numa escola de
música da rede pública.
Até antes de entrar em contato com Denise, eu não conhecia o universo das
escolas de música da rede pública de um morador da Baixada Fluminense. Foi Denise
quem me apresentou às suas próprias alternativas:
Tem a Escola de Música de Nilópolis. É a mais próxima da minha casa. Tem a
Escola de sica de São João de Meriti. É mais longe.Tem também a Villa-Lobos.
A do Rio. Mas é longe, a passagem é cara. Tem também a Escola de Música Villa-
Lobos em Paracambi. Poxa, mas também é longe à beça. E eu vou gastar um
dinheiro de ônibus e ainda tem que pegar um trem. Vou tentar a de Nilópolis.
Assim, seu campo de possibilidades para o aprendizado da música, estava
constituído de limites geográficos e financeiros. Tínhamos três escolas de música na
Baixada (as municipais de Nilópolis e São João de Meriti, e um núcleo da estadual
112
Villa-Lobos em Paracambi) e uma no centro da cidade do Rio de Janeiro (a Escola de
Música Villa-Lobos). A escolha recaiu sobre a Escola Municipal de Música de
Nilópolis, sendo a mais próxima e a que exigiria menos gastos com transporte, o que
significava apenas uma tarifa convencional na Baixada.
179
Meu objetivo neste subcapítulo é além de descrever o processo de aproximação
de Denise com as institucionais formais públicas de ensino da música na Baixada,
refletir também sobre minha própria experiência junto ao campo. Momento crucial para
mim em termos metodológicos, ir a Nilópolis, como espero demonstrar complexificou
minhas idas a campo. Em contato com Escola Municipal de Música de Nilópolis,
objetivei compreender a organização social da escola e o perfil do seu alunado. Minha
motivação inicial foi entender os processos sociais que a escola desenvolve para a
construção do gosto
180
junto aos seus alunos. Que mecanismos seriam desenvolvidos
para que a “música de conservatório” fosse ensinada? E que tipo de música é buscada
por essa clientela? E que clientela é essa? Quais são suas motivações?
181
179
Para ser mais precisa, o valor da passagem era de R$ 1,40 (um real e quarenta centavos).
Para se deslocar para Nilópolis, de sua residência, Denise gastaria, entre a ida e o retorno, R$
2,80 (dois reais e oitenta centavos) e em torno de 30 (trinta) minutos, cada percurso. Para a
Escola de São João de Meriti, ela gastaria o dobro desse valor, utilizando dois ônibus, e cerca
de uma hora para a ida, e igual tempo para a vinda. Para ir à Paracambi, além de ônibus
convencional, ela ainda precisaria fazer uso dos trens, e de um gasto de tempo superior à duas
horas e meia, que somadas contabilizariam cinco horas gastas em transporte, por dia de aula.
Para a Escola de Música Villa-Lobos no centro do Rio, ela gastaria R$ 7,20 (sete reais e vinte
centavos) e um média de 3 (três) horas entre os deslocamentos.
180
Conf. Gans, 1974.
181
Trabalhos sobre alunos de música (cursando o terceiro grau) foram realizados por Silva
(2005) e Travassos (1999). O locus das pesquisas foi a Escola de Música Villa-Lobos/UniRio.
Os pesquisadores estudaram o alunado, formado em sua maioria por indivíduos pertencentes
às camadas médias cariocas. Além destes, podemos citar pesquisas que versavam sobre
outros tipos de ensino de arte: sobre teatro ver Coelho (1989), sobre artes visuais ver
Lahtermaher (1994) e Reinheimer (2002).
113
3.1.1 O susto – vertigem em Nilópolis
Acompanhei-a quando da sua primeira ida à EMMN.
182
Denise me fazia
“retornar” a Nilópolis. Eu conhecia a cidade muito tempo, desde os dez anos de
idade mais ou menos. Tinha ido algumas vezes com minha mãe, comprar alguma coisa
no comércio de lá. Anos mais tarde, por volta dos vinte anos (nos anos de 1992 e 1993),
eu freqüentei assiduamente a feira municipal no centro de Nilópolis, que acontecia aos
domingos pela manhã. Era uma feira grande, com muitas frutas, legumes e verduras, e
confesso que me deslocava de São João de Meriti (meu município de origem) pela
beleza dos alimentos que ali eram vendidos. Fui à feira de domingo durante quase dois
anos e passei quase dez anos até retornar ao mesmo lugar por conta da observação
participante que realizava. “Retornar” a Nilópolis foi um momento importante no meu
trabalho de campo. Todos os lugares a que tinha me dirigido até então, eram “novos”
para mim. Não conhecia as áreas a que tinha sido levada por Denise. Nilópolis foi o
primeiro lugar a que “retornei”.
Significa dizer que aquele lugar tinha um significado social muito importante
para mim. Diferente de outros, eu conhecera Nilópolis em outro tempo, num outro
tempo da minha memória social. Num tempo em que não estava preocupada e ocupada
com categorias antropológicas e de pesquisa, e flanava aos domingos por um lugar que
era “bonito” para mim. Nas minhas memórias, Nilópolis era o lugar mais bonito da
Baixada, onde gostaria de morar. Quando Denise me convidou para acompanhá-la até a
EMMN fiquei bastante satisfeita. Voltaria a um lugar conhecido e querido, com ruas das
quais gostava. Mas qual não foi a minha decepção.Nilópolis mudou ou eu mudei?
Nilópolis não estava “bonita”. Achei o trecho de muro da linha de trem, que beira uma
182
Para facilitar a compreensão do texto será usada a sigla EMMN para a Escola Municipal de
Música de Nilópolis.
114
rua principal, levando da EMMN até a rodoviária, caminho que tive que percorrer
diversas vezes, árido, feio, sujo e perigoso. Andando pelo centro, achava as ruas
esburacadas demais, irregulares demais. As construções velhas, decrépitas, com
pichações. O caos de gente, camelôs e lojas. A alternância de ruas congestionadas de
tantos transeuntes, seguidas de espaços quase “inóspitos”, assustava-me. Não era aquela
Nilópolis que eu esperava encontrar. Ficara feliz com a idéia de reencontrar a área que
mais gostava na Baixada, pela qual mais tinha carinho, justamente pela sua “beleza”. E
naquelas tardes quentes de abril de 2003, Nilópolis representou a desolação, a
desordem, a sujeira e a aridez para mim.
Passei por uma experiência etnográfica de confronto não do outro, distante e
mediado por uma “outra cultura” mas uma experiência clínica totalmente interna. O
confronto do meu próprio olhar que se transformou através do tempo - minhas noções
antigas de “belo”, “bonito”, “ordenado”, e até mesmo, “civilizado”, com o novo olhar
que ganhei com os anos em que morei fora da Baixada e com a atividade antropológica.
Antes de nos dirigirmos para a EMMN, fomos, eu e Denise, almoçar. Ficamos
num modesto e pequeno restaurante situado na esquina que tinha freqüentado tantas
vezes. Achei tudo muito quente, sujo e acima de tudo, poeirento. Foi difícil comer ali. E
eu ficava cada vez mais escandalizada duplamente escandalizada com o lugar e
comigo mesma. Ao invés de me concentrar na minha refeição ou nas conversas que
travava com minha interlocutora, ficava observando o entorno. Estávamos próximas da
Prefeitura, uma área bastante movimentada. Muitos carros, homens engravatados e
mulheres de salto alto na tarde de sol a pino de uma quarta-feira. Poderiam ser políticos,
funcionários públicos, advogados e todo o tipo de gente que gravita próximo às
prefeituras e aos fóruns (há um fórum próximo). Onde e de que maneira eu perdera o
referencial daquele lugar? Que ponto de vista era esse, que eu assumia e me fazia ver de
115
maneira tão pejorativa, aquelas ruas, aquelas construções que eu tanto admirei no
passado? O “susto de Nilópolis” não era o encontro de pré-noções a uma realidade
específica. O “susto de Nilópolis” ou a vertigem antropológica que experimentei, e em
todas as vezes que voltei ao município, tinha sempre o mesmo olhar ansioso que
buscava reconhecer nas esquinas, praças e prédios, e até no rosto da população que
transitava apressada, o antigo objeto de desejo. Era um viagem minha, internalizada,
não do choque entre “mundos distantes”, mesmo que se trata-se apenas de
diferenciações internas dentro de um mesma sociedade ou grupo social, mas de um
conflito entre visões (no sentido antropológico, ou seja, interpretações
183
) que se davam
num mesmo indivíduo.
Num primeiro momento, confusa no restaurante, tendo diante de mim meu prato
de bife com batatas fritas, acompanhados de arroz, feijão e farofa (o que também gerava
um certo desconforto, pois não é o tipo de comida que eu ingira com freqüência por
motivo de saúde –, principalmente se regado com cerveja, como era o caso), tentei
engolir em seco minha angústia, gerada pelo estranhamento da situação. Não era
apenas o meu olhar sobre o outro que me incomodava, mas a descoberta do meu olhar
que se olhava por e para dentro de mim. Sentia-me profundamente envergonhada:
estava sendo preconceituosa, etnocêntrica ao julgar de maneira tão negativa meu objeto
de estudo. Estava claro para mim a felicidade que Denise sentia ao estar almoçando
comigo naquele restaurante. Ela tinha me convidado. Fez questão de pagar a conta.
Outras pessoas também comiam bastante satisfeitas ao nosso redor: aquele que poderia
ser um office boy ou seu patrão advogado. A experiência do estranhamento se dava em
dois níveis – por um viés externo que localizava naquela ambiência algo que não me era
183
Conf. Geertz, 1989.
116
familiar ou agradável, e no meu Eu que se confundia ao examinar e contrapor minha
própria memória àquela realidade imediata. Fiquei bastante ensimesmada então. Eis que
algum tempo depois, uma luz se acendeu para mim. Comecei a me lembrar dos
primeiros meses de doutorado e da questão (então teórica) que mais me afligia: como
pesquisar meu próprio universo social (a Baixada Fluminense)? Como construir em
mim a alteridade necessária para a realização do trabalho antropológico, que no meu
caso era o de “observar o familiar” ?
184
Se entendermos a produção da pesquisa antropológica tal como na definição de
Geertz (1989:20), segundo a qual:
Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um
manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e
comentários tendenciosos, escritos não com o sinais convencionais do som, mas
com exemplos transitórios de comportamento modelado.
O meu problema inicial – o excesso de identificação com o grupo que iria
pesquisar, estava (circunstancialmente) superado. Aproveitando ao máximo minha
(dolorosa) experiência de estranhamento, poderia retirar dali elementos que me
levassem à uma compreensão muito mais rica sobre os olhares produzidos a partir e
sobre a Baixada Fluminense. Geertz (1989:25) ainda enfatiza que as descrições
antropológicas “devem ser encaradas em termos das interpretações às quais pessoas de
uma denominação particular submetem sua experiência, uma vez que isso é o que elas
professam como descrições”. Eu, que me considerava alguém totalmente “de dentro” da
Baixada, experimentava assim, uma relação estrangeira com aquela pequena área que
184
Tomando-se aqui emprestada a expressão de Velho, 1997.
117
forma o centro de Nilópolis. Esse “susto” nunca foi totalmente superado, e confesso que
lá no fundo ainda não me perdôo pelo que considero uma espécie de traição. Analisando
o evento (que não é apenas um punhado de fatos reunidos, mas uma vivência afetiva,
emocional) sob o ângulo científico, pode-se dizer que tive um ganho metodológico
depois que compreendi as categorias (ou os seus sentidos) que acionava para
hierarquizar feio/bonito, sujo/limpo/ ordenado/caótico, seguro/perigoso.
185
Pude num
certo sentido, “ver” (interpretar) a Baixada como alguém distante dela, algo que até
então tinha-me sido impossível. Mergulhava dessa forma nas poderosas representações
sociais que grande parte da população carioca (e brasileira) tem sobre a região.
3.1.2 Nilópolis vem de Nilo Peçanha
A cidade que é palco deste subcapítulo é pequenina (se comparada a outras da
região metropolitana do Grande Rio). Tem apenas 19 km2 de extensão, mas é
densamente povoada, com cerca de 153.712 habitantes segundo o último censo
realizado pelo IBGE.
186
No site da prefeitura consta que:
Suas terras faziam parte da sesmaria de Brás Cubas e a sua ocupação, em torno de
1566, começou com a expansão da cidade do Rio de Janeiro. Na freguesia de São
João Batista de Meriti localizava-se a Fazenda de São Mateus, com a maior
produção de açúcar e aguardente da região. Em 1833, a localidade passou a fazer
parte da vila de Iguaçu. Mais tarde, as terras de São Mateus foram loteadas. No
local onde a Estrada de Ferro Central do Brasil construiu uma parada de trens,
surgiu um povoado denominado Nilópolis em homenagem a Nilo Peçanha. Em
185
Esse não é meu primeiro susto”. Em artigo, falo sobre as “descobertas” de minha própria
identidade, junto a grupo de jovens rappers e de policiais militares. Ver Costa, 2003.
186
Que é de 2000.
118
1916, a região passou a o município de Nova Iguaçu, do qual foi desmembrado o
Município de Nilópolis em 1947.
O município fica a mais ou menos 30 km de distância do centro da capital
fluminense, e faz limites, além da própria cidade do Rio de Janeiro, com Nova Iguaçu e
São João de Meriti.
No ideário da população em geral, e nos noticiários, Nilópolis goza de certa
fama, em virtude de dois fenômenos que se auto-complementam: o samba, representado
pelo Grêmio Recreativo Escola de Samba Beija-Flor, localizada no município, e
também por ser reconhecida como uma área dominada por bicheiros. Os bicheiros são
contraventores, que se especializaram no chamado “jogo do bicho”, e que por afinidade
ou como forma de lavagem de dinheiro (ou os dois), são tidos (pela imprensa, pela
polícia e pela população) como os grandes patrocinadores de muitas escolas de samba,
inclusive, da Beija-Flor de Nilópolis. A Escola fundada em dezembro de 1948, tornou-
se, e transformou Nilópolis, numa referência nacional devido aos campeonatos
conquistados no Desfiles das Escolas de Samba, que acontecem anualmente na cidade
do Rio de Janeiro.
187
Mesmo quando não é a campeã (ou uma das campeãs do Desfile),
a Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis tem ficado entre as primeiras colocadas.
Para um observador externo, a cidade, e principalmente seu centro, não se
diferenciam das demais que compõem a Baixada Fluminense. Lá, estão a estria formada
pela linha férrea, com seus muros cinzentos cobertos de inscrições, singrando a célula
principal da cidade; a Igreja Católica em posição central; a praça pouco arborizada com
brinquedos quebrados. Também se fazem presente os numerosos camelôs que vendem
todo tido de mercadoria contrabandeada do Paraguai, pequenos comércios de
187
Interessante notar, que no site da Prefeitura de Nilópolis, no item “Principais atrações
turísticas” o que consta é “Sede da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis”.
119
comerciantes antigos, e novas e mais sofisticadas lojas. Tem um pequeno shopping.
Muitos bares de esquina, uma rodoviária e poucos prédios com mais de três andares. As
igrejas evangélicas vão aumentando de número cada vez mais. A prefeitura e o fórum
ficam próximos, numa espécie de centro nervoso que é a Rua Mirandela, cortada por
transversais que abrigam o comércio local, tanto o oficial (dos lojistas) quanto o
oficioso (da camelotagem). Durante a realização do trabalho de campo, havia várias
obras nas ruas do centro. O chão irregular de paralelepípedos tinha se tornado mais
esburacado e verdadeiras crateras eram abertas para as obras de saneamento. A poeira
era intensa, e se misturava à densa nuvem negra de fumaça que os ônibus soltavam, ao
passarem nas estreitas ruas, rugindo com seus motores antigos. Durante os meses de
abril à agosto de 2003, desloquei-me com constância por essas ruas. Ora sozinha, nos
trajetos de ida e vinda para casa, ora acompanhada, durante o horário de almoço, com as
professoras da Escola Municipal de Música de Nilópolis.
3.2 A Escola de Música da Nilópolis
Retomando o início do texto, cheguei à EMMN acompanhando Denise. Na
verdade, o nome oficial da Escola, que nunca vi sendo usado durante minha estadia é
Escola Municipal de Música Professor Weberty Bernardino Aniceto.
Ela estava decidida a estudar música e essa escola lhe pareceu a melhor opção.
Inicialmente ela se apresentou e perguntou quando as vagas para a próxima turma
seriam abertas. A resposta foi curta: “não vagas”. Denise respondeu: “eu sei que
estamos no meio do semestre e que agora o vagas, mas quando elas vão abrir?”.
“Não vão”, foi a resposta da jovem funcionária da secretária. “Como assim, ‘não
vão’?”. Denise ria, ela quando quer sabe ser simpática. “Não têm vagas”, repetia a
funcionária, que baixava a cabeça e se voltava para uma papelada. “Olha, querida, eu sei
120
que agora não tem vagas, mas e no próximo semestre? Ou no próximo ano? Como
funciona aqui? É por semestre ou é por ano?” – insistia Denise. “Olha, é muito difícil ter
uma vaga, entendeu? Se você tiver assim, um amigo que seja vereador, alguém da
prefeitura, então, fala com ele. Se não, você não vai conseguir.” Denise me olhou
derrotada: “está bom. Obrigada”.
Na semana seguinte, eu voltei. Dessa vez, desacompanhada. Tinha minha cópia
de carta de apresentação do Museu Nacional, devidamente assinada pelo meu
orientador, o que, eu sabia não me abriria necessariamente nenhuma porta mágica, mas
sem a qual também teria mais dificuldades. Esperei quase duas horas, até que a diretora
me atendeu. E confesso que fiquei bastante feliz por ter conseguido logo da primeira
vez entrar em contato com a direção da instituição. A diretora foi extremamente cordial
e disse que eu poderia desenvolver minha pesquisa ali, se fosse “para mostrar as
verdadeiras condições” pelas quais passam para a realização do seu trabalho.
Apresentou-me para a coordenadora, que foi igualmente simpática e se colocou à
disposição para contribuir com o meu trabalho.
O lugar estava passando por reformas. O prédio que utilizavam não tinha sido
projetado inicialmente para ser uma escola (muito menos de música). Era a antiga sede
da Justiça Eleitoral no município e do Instituto Félix Pacheco (que era responsável pela
emissão do Registro Geral ou Cédula de Identidade). Eram salas pequeninas, com
grossas barras de ferro e pouco ventiladas. O lugar me lembrava mais uma delegacia
policial (daquelas antigas) do que uma escola. No pátio, que era apenas um corredor
entre dois blocos de saletas, havia uns dois bancos de madeira. Logo na entrada, havia a
recepção, na qual também funcionava a coordenação da Escola, seguida da sala da
diretora. Depois vinham as pequenas salas de aula, eram um total de doze, geminadas ao
bloco da administração, e atrás deste mais um segmento de salas, com muitas cadeiras
121
reviradas e instrumentos danificados. A empresa que realizava a reforma, segundo me
disse depois a coordenadora da instituição, não era muito afeita à delicadeza dos
instrumentos musicais, que simplesmente eram lançados de um lugar para o outro sem
muitos cuidados. Ela, a coordenadora, pessoalmente quis me mostrar três pianos que
segundo disse, foram desafinados e até danificados durante o processo de reforma.
Perguntei se não haveria um lugar “seguro”, em que os instrumentos pudessem ficar até
que as obras terminassem e ela respondeu que não.
188
A EMMN fica na região central do município, de fronte para a Estação de Trem
de Nilópolis. A escola, segundo me informaram, foi criado em 1995, e na época contava
com cerca de 1.500 (mil e quinhentos) alunos. Nunca tive como comprovar esses
números, já que segundo alegavam, não havia um controle rígido de matrículas, mas
uma espécie de “contagem por alto”. Vi vários arquivos de ferro, abarrotadas de pastas
contendo fichas dos alunos, mas não me era permitido averiguá-los. Acredito até, que
não se tratasse de nenhum tipo de cerceamento do meu trabalho. O fato, parecia-me, era
um problema administrativo-burocrático. As fichas fugiram ao controle.
As aulas eram divididas em três turnos, chamados de “manhã”, “tarde” e “noite”.
O curso tinha a duração de quatro anos (que garantia a certificação chamada de “músico
em nível sico”), podendo ser estendido por mais dois anos (dando direito ao título de
“técnico”). Isso significava uma carga semanal de seis horas e vinte minutos, assim
distribuída: História da Música (1h30m), Percepção Musical (1 h), Teoria de um
instrumento a escolher (1h30m), Prática do instrumento escolhido aula individual
(30 minutos), Canto Coral (1h30m), Outras Aulas Práticas aula individual (20
minutos). A mesma disciplina era oferecida em diferentes horários (e às vezes por
188
No trabalho de Silva (2005) vemos que a precariedade material e organizacional está
presente também em escolas de música de terceiro grau no Rio de Janeiro (no caso, a Escola
Villa-Lobos/UniRio).
122
professores diversos) e o aluno tinha uma relativa liberdade em montar a sua quadre de
horário. As aulas se iniciavam às 08:00 da manhã e se encerravam às 21 horas.
Além do curso de “músico em nível básico” e “músico em nível técnico”, a
EMMN, oferecia o curso de “musicalização infantil”, ao qual poderiam se candidatar
crianças com no mínimo 7 anos de idade e no máximo 12 anos, concluintes da primeira
série de escolas regulares e o de “musicalização para a terceira idade”. Para a admissão
neste último, o aluno era submetido a um “questionário”
189
que avaliava suas noções de
língua portuguesa e de compreensão de texto e realizava uma prova de percepção
rítmica.
Na chamada parte administrativa”, a EMMN contava com oito funcionários: a
diretora (que não tinha qualquer tipo de formação musical, mas era enfermeira), quatro
funcionárias na secretaria, e três no chamado “apoio” (serviços gerais, de copa e faxina,
além de guarda do portal da instituição). Além dos instrumentos musicais, a escola
estava aparelhada com rádios e toca-fitas. Não havia aparelhos de televisão, de
videocassete, ou de reprodução de DVD.
Os professores eram em número de 30 (trinta) e constava entre eles, a
coordenadora. Todos os professores, exceto a coordenadora (por conta da especificidade
do cargo) cumpriam uma carga de 12 horas semanais. A distribuição de professores por
disciplina
190
estava assim organizada:
Bateria – 1 professor
Canto popular – 1 professor
189
A coordenadora fez questão de frisar que não se tratava de uma “prova”, mas de um
“questionário”.
190
Na maioria dos casos, um mesmo professor era responsável por duas disciplinas diferentes.
123
Coro – 2 professores
História da Música – 1 professor
Musicalização infantil – 2 professores
Percepção Musical – 6 professores
Piano – 6 professores
Sopro – 2 professores
Teclado – 6 professores
Violão – 5 professores
Violão popular – 1 professor
Violino – 1 professor
3.2.1 O alunado
Infelizmente, Denise não conseguiu ser admitida na EMMN. Por várias vezes,
durante os meses de abril, maio e junho, vi se repetir a cena que descrevi antes.
Perguntas sobre a matrícula de novos alunos sendo respondidas de maneira evasiva.
Entretanto, julho chegou. Época de matrículas. Numa segunda-feira, presenciei rias
sendo realizadas, por pessoas que portavam “cartinhas”, “bilhetinhos” ou mesmo que se
auto-declaravam como “indicadas” por algum político ou por funcionários da prefeitura.
Também lançava-se mão de nomes de “pessoas importantes do local”, como
comerciantes, policiais, médicos etc. Os que eram aceitos (só vi serem aceitos os
“indicados”) deveriam “contribuir” com uma lata de leite em pó. Não resisti e perguntei
para quem o leite seria distribuído. A resposta foi: “ninguém é obrigado a dar. Mas a
gente pede. É para ajudar um orfanato daqui da região”. Além da lata de leite em pó, o
matriculado deveria pagar uma taxa de R$10,00 (dez reais) e comprar na papelaria uma
espécie de “ficha de aluno”, que constituiria a partir dali o seu arquivo escolar (que
124
depois seria colocado nos famigerados armários de ferro). Após uma semana mais ou
menos, esse processo se encerrou, mas vi exceções serem abertas e pessoas sendo
matriculados poucos dias antes do início das aulas.
Como já disse, não havia um critério de controle quanto da admissão dos alunos.
Era difícil precisar a origem, a idade, o gênero do aluno. Como essas informações não
estavam disponíveis para mim, de maneira sistemática, fui inferindo minhas
informações a partir de minha própria observação e confrontando-as com as da direção
e da coordenação. Logo no início do trabalho, uma coisa ficou clara para mim a
presença marcante da população de terceira idade. A diretora acreditava que eles
representavam 50% do total do alunado. Era um número bastante expressivo e que eu
não teria como conferir. Mesmo se tentasse contar nas turmas, jamais teria um número
próximo da realidade, devido a plasticidade da grade. Poderia estar contando o mesmo
aluno várias vezes, devido a inexistência de um horário comum de turma. Mas uma
coisa era certa a sua visibilidade. Eles “ocupavam” muito mais a ambiência da escola
do que os mais jovens, mesmo os adolescentes. Estes e a população de jovens adultos,
entravam e saíam rapidamente da escola, sempre apressados nas sua idas e vindas. Os
mais velhos, não. Chegavam antes da aula marcada com horas de antecedência e jamais
saiam assim que as aulas se encerravam (a não ser a última aula que terminava às 21
horas). Tinham sempre algo a mais para conversar com o professor, alguma dúvida para
tirar com a coordenadora, algo a pedir à diretora. Mesmo quando não podiam estar em
sala de aula, ficavam pelo pátio, nos bancos, com suas sacolas com linha de crocou
tricô. Trocavam receitas, contavam histórias sobre os filhos e suas vidas.
Não demorou muito, foi preciso uma semana para que me abordassem. Um
grupo de senhoras, que aparentavam ter mais de 65 anos me cercou no corredor na
instituição: Vem cá! Você não trabalha na Prefeitura não, né? Você não esaqui para
125
contar para o Prefeito que a gente o sabe tocar, né? Você vai contar para ele que a
gente não sabe tocar?”
Eu ri e achei que fosse brincadeira, mas elas mantiveram o olhar, impassíveis ao
meu redor. Por que aquela preocupação com o prefeito? Elas temiam que a escola fosse
fechada porque não “sabiam” tocar? Era realmente isso? Demorei algum tempo até
acreditar que elas falavam sério. Disse que não, não trabalhava para a prefeitura. E que
ao contrário, gostaria que o meu trabalho contribuísse com a escola delas. Elas ficaram
desconfiadíssimas, e acho que o acreditaram muito em mim. Para elas, eu era um
agente infiltrado pela prefeitura, para descobrir-lhes os furos.
A escola não exigia o uso de uniforme, mas era vendida uma camisa de malha
com o nome da escola, que todas eram na sua maioria mulheres, gostavam de ostentar
sobre o vestido florido. Pareciam muito felizes. Alegres. Orgulhosas de “estarem
estudando com aquela idade”, muitas me disseram. Ou seja, para além da situação de
aprendizado, sociabilidades eram ali desenvolvidas. As histórias eram muito parecidas –
casaram-se cedo, tiveram muitos filhos, trabalharam muito, em casa ou em atividades de
baixa remuneração, não tiveram a oportunidade de freqüentar a escola regular. E sempre
alimentaram o sonho de “aprender a tocar”. Violão e teclado eram os principais
instrumentos. Trocavam conhecimentos, de receitas de bolo aos hinários das igrejas
protestantes. Todas as senhoras que ali conheci, da chamada terceira idade, eram do
grupo religioso “evangélico”.
Quando a diretora e a coordenadora me trouxeram a informação de que a
maioria dos alunos era composta por protestantes, confesso, não acreditei. Imaginei que
elas (diretora e coordenadora) é que fossem, e que essa era a imagem que gostariam de
passar da escola. Um grande engano meu. Quanto aos alunos mais jovens é difícil de
informar, mas no caso dos mais velhos, ou melhor, mais velhas os sinais são mais
126
evidentes: os cabelos compridos rodilhados em volta da cabeça em grossas tranças, as
saias longas de tecido pesado, as blusas de cetim ou seda de gola alta e mangas quase
beirando os cotovelos.
A diretora muito generosamente apresentou-me aos professores e pediu que me
deixassem assistir suas aulas (ela fez o mesmo convite quanto as reuniões de
professores e coordenação). Mas essa experiência acabou não sendo muito produtiva.
As pessoas logo notavam que eu não era uma aluna regular e queriam saber o que estava
fazendo ali. Minha introdução em algumas aulas teve um efeito muito perturbador, e
não me sentia bem competindo com o conteúdo das aulas. Abri mão desse espaço (que
certamente se mostraria muito rico), assistindo somente as aulas de História da Música.
Essas turmas geralmente tinham mais de 40 alunos, de forma que eu conseguia passar
sem chamar muita atenção. Mesmo assim, freqüentei a aula poucas vezes. Durante o
dia, o que fazia era realizar entrevistas formais com os professores que se achassem
disponíveis, e nos intervalos vagar pelos corredores, conversar com aqueles que estão
no entre aulas, ficar no pátio ouvindo ao longe o que se tocava nas aulas práticas – o que
com muita freqüência era “música evangélica”.
3.2.2 As aulas públicas
Mas houve um evento em que a escola se mostrou e que não precisei me
camuflar. Na última semana de maio, comemorava-se a Semana da Música. Para
festejar, e para acelerar as obras de reforma da EMMN, durante toda a semana, as aulas
seriam públicas, e aconteceriam no Teatro Municipal de Nilópolis. A idéia era reunir
não o aluno, mas seus familiares e moradores da região. Nem todos os professores
deram suas aulas “normais” e muitos aproveitaram o momento de “palco” (que foi
127
devidamente preparado com som e luz especiais) para se apresentar e a seus alunos.
Coisas que intuía durante a vivência na escola, ficaram mais evidentes.
O professor subia ao palco e ia apresentando cada aluno, que executava sua
performance. Não era feita qualquer referência à música que seria executada: nome do
autor, da composição, qualquer informação sobre o ano da composição. Existia apenas a
música. Geralmente, os mais jovens executavam músicas conhecidas da chamada mpb.
Músicas que ficaram famosas com artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Marisa
Monte, Herbert Viana, Djavan, Tim Maia.
191
Eram dedilhadas ao piano, tocadas no
violão, ou simplesmente cantadas. Notei também uma grande profusão de músicas
evangélicas, estas apresentadas pelo grupo da “terceira idade”. Mas o que chamou-me
mais a atenção foi a recorrência com que certas músicas populares norte-americanas
eram apresentadas com letras em português com conteúdo evangélico. Então, o arranjo
de “My Way”, que ficou famosa na voz do ítalo-americano Frank Sinatra, aparecia com
letra que fazia referência ao “louvor do senhor”.
Em dado momento, o secretário de cultura do município, que estava presente,
perguntou se podia cantar também. O professor-músico (um pianista) disse que sim,
tudo bem. No palco, o secretário cantou “New York, New York”, outra canção popular
americana, e sapateou. Após, apresentou, de forma cantada, a “Oração de São Francisco
de Assis”. Segui-se a ele, um jovem evangélico que executou o hinoSegura na mão de
Deus”. Depois, um outro jovem rapaz cantou “Fascinação”.
192
O gênero clássico foi executado durante as aulas públicas quando da
disciplina História da Música. A professora optou por realizar uma aula bastante lúdica,
onde expunha as características do “Barroco”. Primeiro, uma aula expositiva sobre a
191
Músicos brasileiros que geralmente são classificados como pertencentes à rubrica MPB
(Música Popular Brasileira.)
192
Versão brasileira de famosa canção norte-americana.
128
arte européia XVIII, na qual usou muito material iconográfico, distribuído aos alunos
que estavam na platéia. Os alunos não pareciam muito interessados. Olhavam quase que
mecanicamente as imagens que passavam rapidamente de mão em mão. Após, a
professora com o auxílio de uma aparelhagem de som ilustrava seus exemplos. Não
tenho medo em afirmar, que aquele pareceu o momento menos interessante da
apresentação para os alunos.
3.2.3 O repertório
Conversamos depois da aula eu e a professora de História da Música. Queria
saber do interesse dos alunos pela música clássica: “Nenhum. Raro, muito raro. Os
alunos não gostam. Eles querem é aprender a tocar e cantar a música da igreja que
freqüentam ou então aquela que escutam no rádio”.
E realmente, durante meu trabalho de campo esses eram os sons dominantes na
EMMN. Não vi, da parte da direção, da coordenação ou mesmo dos professores
qualquer tentativa no sentido de impor ou mesmo direcionar o gosto dos alunos. Eles
chegavam na escola com o seu repertório pré-definido e os professores é que tentavam
trabalhar em cima das canções que eles apresentavam, num processo de negociação
bastante complexo – era daí que surgia “My way” com letra evangélica. O professor não
abria mão do arranjo, mas o aluno tinha espaço para exprimir sua religiosidade.
Segundo um professor: “ou você toca o que eles querem, ou simplesmente não consegue
trabalhar”.
Os professores pareciam, para os alunos, bastante flexíveis quanto aos estilos a
serem trabalhados nas aulas práticas. Não que aprovassem o gosto dos seus alunos.
Alguns me pareceram queixosos e desestimulados, sentiam-se englobados pelo alunado.
Mas simplesmente, achavam que a melhor política a ser desenvolvida era o da evitação
129
do conflito, e entre eles, comentavam quase entristecidos, o “tipo” de música que os
alunos ouviam.
O que via na EMMN destoava bastante de minha perspectiva inicial. Quando
cheguei à escola imaginava que os professores com poderosos pulsos, e um senso
estético fechado e direcionado, manipulassem os repertórios a seu bel-prazer. Mas
tirante algumas aulas extremamente específicas, aula a aula, a programação era
redefinida e o aluno tocava “o que mais gostasse de tocar”. Fiquei espantada com
tamanha abertura, tinha como parâmetro o modelo de trabalho que é desenvolvido na
Escola de Música Villa-Lobos (localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro), que
segundo me contam a professora de piano ainda usa uma pequena régua para indicar,
com “leves” batidas na mão do aluno, seus erros durante a execução de uma peça. Ou
do professor que leciona “Estética” e diz para os seus alunos o que é boa música e o que
não é.
Ali, naquela escola improvisada de Nilópolis, a negociação era contínua, e não
se fazia nos termos tradicionais que marcam a distância social e simbólica que nos
acostumamos a ver entre alunos e professores. Podemos dizer, que, num certo sentido a
hierarquia social era subvertida, redefinindo os papéis sociais entre “alta cultura” e
“cultura popular”.
193
Aqueles que poderiam ser vistos como os mais frágeis na relação:
os alunos, das camadas populares, com pouco ou nenhuma formação escolar, detentores
de pouco capital simbólico, adeptos da cultura de massa laica ou evangélica,
estabeleciam os termos da interação social que desenvolveriam com aqueles que
supostamente seriam detentores de maior prestígio social: os professores, das camadas
193
Conf. Gans, 1974.
130
médias, acadêmicos (alguns mestres e doutores na área), detentores de bens
simbólicos,
194
consagrados a uma cultura erudita ou de elite.
3.3 Mônica e o desprestígio social
Teve uma coisa que me magoou muito. Acho até que pesou para
que eu me separasse do meu marido. É que os amigos dele não
respeitavam o meu trabalho, sabe. “Quê, professora de
música?”, eles riam. “E isso dinheiro?”, mas eles não
sabem nem o que é música clássica. E ficavam me perguntando
para que eu tinha feito faculdade daquilo. Eles achavam que era
tanto estudo à toa
Mônica é a coordenadora geral da Escola Municipal de Música Professor
Weberty Bernardino Aniceto, na qual também responde por três cadeiras: as de piano,
de teoria e de percepção musical. É uma mulher negra, de aparência jovial, com 35 anos
de idade, divorciada, sem filhos. Alta e magra, de fala pida e gestualidade marcante,
estava sempre vestindo calça jeans e camiseta de malha, os cabelos alisados e tingidos
no tom castanho escuro. A decisão de incluir a história de vida de Mônica entre as
demais partiu do fato dela apresentar um diferencial em sua carreira: é a única da rede
social que possui o terceiro grau completo e formação acadêmica em Música.
195
Mônica
194
No sentido que Bourdieu (1974) dá ao termo.
195
Num certo sentido, ela seria, na rede estudada, a única professora-profissional. Esta
pesquisa busca discutir as trajetórias de músicos-professores, com ênfase no seu trabalho
docente (mesmo que informalizado). A discussão a respeito da profissionalização dos músicos,
no tocante as distinções entre músicos profissionais ou amadores não são o objeto de estudo
deste trabalho, até porque à medida que a pesquisa se desenvolveu essa temática não
131
é bacharel em piano
196
pelo Conservatório de Música do Rio de Janeiro.
197
Também é
psicóloga formada pela Universidade Federal Fluminense, com especialização lato-
sensu em sexualidade humana.
Mônica nasceu em Nilópolis, local em que sempre residiu. Seus pais nasceram
no município do Rio de Janeiro, foram moradores do subúrbio carioca. Como boa parte
dos habitantes da Baixada Fluminense, vieram para região em busca dos baixos preços
dos loteamentos.
Durante a realização do trabalho de campo na EMMN,
198
Mônica sempre foi
muito cortês e participativa. Nunca recusou uma entrevista, ou fez qualquer restrição à
pesquisa. Achava “muito legal” alguém se interessar pela música na Baixada,
principalmente numa escola pública, em que segundo ela, “falta muita coisa”. Sempre
muito despreendida, quando lhe perguntei sobre seu salário ela riu e disse: “pra você
não achar que é mentira minha...”, abriu sua bolsa, retirou o contra-cheque que recebe
da Prefeitura de Nilópolis e estendeu-o para que eu examina-se. Ela está matriculada
como coordenadora da escola, num regime de 40 horas semanais. Seu salário líquido
apareceu a partir dos pesquisados. Mas é importante salientar que estas distinções existentes
e constituem importantes referências quanto à construção da identidade de músico. Finnegan
(1989:16) a respeito da tipologia “profissional”, “semi-profissional” e “amador” diz que: [...] the
problematicsof the terms ‘amateur’, ‘professional’ and ‘semi-professional’ are not just of
academic interest but can enter into the perceptions and actions of those involved in local
music. The label ‘professional’ is used and not only in this case as an apparently objective,
but in practice tendentious, descripition to suggest social status and local affiliation rather than
just financial, or even purely musical evaluation.”
196
Segundo ela, além das aulas de piano, está habilitada em regência de coral, aulas de canto
e harmonia.
197
Instituição de ensino, situada no centro da cidade do Rio de Janeiro.
198
Conforme tinha sido convecionado neste trabalho, a sigla EMMN refere-se à Escola
Municipal de Música de Nilópolis, nome não-oficial, mas utilizado comumente para a Escola
Municipal de Música Professor Weberty Bernardino Aniceto.
132
mensal, no mês de setembro de 2003, era de R$485,00 (quatrocentos e oitenta e cinco
reais). A quantia, segundo ela, “é ridícula. Eu tenho vergonha de mostrar esse contra-
cheque. Mas é o que a gente ganha”. Apesar de considerar seu salário baixo, Mônica diz
não passar por dificuldades financeiras graves, pois dispõe de auxílio familiar. Filha
única, diz que sempre se sentiu “discriminada”, vítima de estigmas sociais,
principalmente no tocante a sua “cor de pele” e à sua origem baixadense:
Eu não tinha uma condição de vida ruim, financeiramente a minha vida não era ruim.
Mas a discriminação que eu vivia quando fazia faculdade, na UFF,
199
é porque eu
era da Baixada. Era porque eu morava na Baixada e por causa da cor da minha pele.
As pessoas me perguntavam: “tu mora aonde? Na Baixada? Ah, mas é muito
perigoso.” Porque na cabeça das pessoas [da Zona Sul] era aqui que morriam as
pessoas, era aqui que tinha tiroteio, era aqui que tinha bandido, era aqui que era
lugar de desova. Lá, na Zona Sul, mesmo na zona norte e na zona oeste, as pessoas
acreditavam que não tinha nada disso. As coisas ruins eram todas voltadas para cá.
Agora, não. Agora está geral. Não é mais “a Baixada Fluminense”, é na zona oeste, é
na zona norte, principalmente na Zona Sul. Porque o que aconteceu... é na Zona Sul
que estão as pessoas de poder aquisitivo maior. Então, no que as pessoas acreditam?
Que os pobres saem daqui para assaltar lá, para roubar lá. Até a melhor droga não
vem para cá. Vai para lá. A cocaína mais refinada vai pra lá.
3.3.1 Os passos da carreira – família, cor e origem
Os passos iniciais na carreira de musicista se deram por influência de uma
vizinha. Primeiro, Mônica teve com esta aulas particulares por seis anos, até que no
199
Universidade Federal Fluminense, localizada na cidade de Niterói (RJ).
133
início da adolescência foi estudar no Conservatório de Música, no qual permaneceu por
mais de dez anos, bacharelando-se na instituição:
Eu comecei a estudar música com seis anos. E nunca parei. Fiz do básico até a
faculdade. Dos seis aos 12 anos, eu estudei com uma professora particular, que
também era aluna de música da UFRJ. Ela era minha vizinha de frente, e eu ficava
escutando e vendo ela tocar piano da minha varanda. Até que um dia ela me
convidou para ir na casa dela. Eu quis fazer piano na hora. Ela foi conversar com a
minha mãe, que respondeu que nós não poderíamos comprar um piano. Mas ela se
ofereceu para me dar aulas no piano dela. Foi ela quem me levou, anos mais tarde,
para fazer um teste na UFRJ,
200
era uma espécie de teste vocacional, para ver se eu
tinha habilidade para música, e eu tirei a nota máxima. Mas meu pai achou que não
ia dar horário porque eu fazia o ensino fundamental. E acabei indo para o
Conservatório, com 12 anos de idade.
O apoio familiar, principalmente do pai, que era músico,
201
também foi
importante para sua opção de carreira:
Meu pai era o meu ídolo. Meu pai também era músico. Tocava sax. E todo dia
quando eu chegava da aula, meu pai pedia para eu mostrar para ele o que tinha
aprendido. Eu sentava no piano e tocava. Ele sempre pedia para eu tocar para ele.
Ele gostava muito das valsas de Strauss.
200
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na instituição, além do curso superior de Música,
oferecido pela Escola de Música, há também cursos básicos e técnicos na área.
201
Silva (2005), em seu trabalho junto aos alunos da música da Escola Villa-Lobos/UniRio nos
mostra que muitos dos estudantes da instituição pertencem à famílias de músicos.
134
Ela aponta como um momento crítico
202
para sua carreira moral um evento
ocorrido no Conservatório. Este evento foi importante não para sua
profissionalização, que uma professora a convidou para ser sua substituta durante um
curto período, iniciando assim sua atividade como docente, como também, segundo ela,
lhe desvelou como era percebida no mundo do Conservatório, e por extensão, pelas
camadas médias da Zona Sul carioca:
Uma professora minha, que estava com problemas de saúde, escolheu-me para ser
sua assistente. Eu buscava as aulas na casa dela e transmitia para os alunos. Isso foi
muito bom para a minha vida, muito bom para o meu currículo. Eu era uma aluna
muito tímida, e um dia a professora disse: “hoje é o grande dia, em que eu vou
escolher uma aluna”. Ela não tinha contado nada para mim antes, ela fez uma
surpresa. Foi nessa época que eu tinha perdido meu pai, eu tinha 16 anos. Eu estava
muito calada e muito mais introspectiva do que eu já era.
Ao ser escolhida, entre os outros alunos, Mônica não contava com a reação de
uma colega de classe, que suscitou um drama socia
203
l de extrema relevância quando
esta reconstrói sua história de vida:
Então, tem esse episódio da minha vida, é muito marcante. Foi nesse dia da escolha,
da professora que me escolheu para substituí-la, eu havia passado para o último ano
do curso técnico, eu ia para a faculdade logo após. Então, ela me deu um susto
quando disse que eu ia substituí-la. Eu estava muito abalada na época, com a morte
do meu pai, e uma menina da minha turma, olhando para mim, falou com a
professora: “Logo essa, que mora na Baixada e é preta?”. Eu já estava abalada com a
202
Conf. Hugues, 1980. O autor define o conceito, apontado para situações de vida nas quais
os indivíduos sofrem transformações nas suas trajetórias.
203
Turnr, 1974.
135
situação de ter perdido o meu pai, [...]. E eu adolescente, tudo em flor. Aquela aluna
falou aquilo, foi horrível. A mãe dela também veio falar na escola. Também o
concordou com o fato de eu ser a escolhida da professora. Isso gerou uma polêmica
no Conservatório. Muitas mães se revoltaram com a atitude de aluna e de sua mãe.
Isso chegou à direção da escola, que na época era a D. Amália Conde (mãe do
político Conde). E ela disse: “Calma, minha filha. De jeito nenhum você vai ser
discriminada aqui. Isso é o maior orgulho para a gente.” Por que não era ser da
Baixada, era também a coisa da cor da pele. A Baixada era muito entre aspas. Elas,
as pessoas que não gostavam de mim, frisavam muito a questão da cor: “mas ela é
preta”. Então, o meu problema não era morar na Baixada, mas era por causa da
minha cor também.
O sentimento de discriminação, de se sentir portadora de estigmas sociais que
lhe trazem dificuldades quanto ao trânsito social, dão o tom
204
da entrevista de Mônica,
que se converte numa espécie de desabafo. Pelo demonstrado durante a reconstrução de
sua biografia, outro momento de estranhamento e deslindamento das percepções
externas sobre sua própria identidade social ocorreu durante o período de graduação na
Universidade Federal Fluminense, quando estudava Psicologia:
Dos meus colegas eu também sentia um preconceito. As pessoas deixavam de me
convidar para as festas. Elas falavam: “ah, você não vai, né? Você mora longe, não
é? Em Nilópolis, Mesquita?” Tinha um que brincava: “Deve ter muito mosquito, lá.
204
Tom é usado aqui enquanto um conceito antropológico. Ela aparece sendo usada por
Bateson (1967) quando fala de um “tom de comportamento apropriado”. Entretanto, minha
decisão em tomá-lo como categoria de análise, dá-se pelo modo como Velho (1978 e 1947) se
utiliza do termo, conferindo a ele um tipo de valor metodológico que me parece bastante útil
aqui.
136
Mesquita, mosquito, mesquita, mosquito...”. Tinha umas coisas assim: “Você mora
aonde? São João de Meriti? O que é isso? São João não é aquele da Bíblia? Foi ele
quem fundou essa cidade?E ficavam esses deboches. Na época em que eu fiz UFF
eram poucas as pessoas da Baixada. A maioria era de Jacarepaguá, Méier, Tijuca, da
Zona Sul tinha um número grande, e tinha o pessoal de fora, de outros lugares do
estado e até de outros estados. Um dia houve um evento na UERJ
205
, no qual minha
turma foi participar. No final do dia a professora falou: “olha, vocês que moram
longe, é melhor vocês dormirem aqui. Tem que estar de volta amanhã de manhã, e
vocês não vão conseguir”. Essas coisas me chateavam muito no começo.
A família parece ser para Mônica um importante referencial, não pelo apoio
que demonstraram quanto à sua profissionalização (sendo o pai a figura mais
expressiva) quanto para o que ela chama de “luta” (na qual o destaque é a mãe):
Porque a minha mãe, ela sempre me criou assim: “você sabe que é morador de
Nilópolis. Você sabe que também tem uma discriminação por causa da sua cor, da
sua pele, da sua posição, e por causa de onde você mora”. Então, eu fui estudar
Música Clássica, no Conservatório Brasileiro de Música... para piorar as coisas, né!
A minha mãe sempre preparou a minha cabeça para isso. Para as coisas que eu ia
enfrentar. Ela dizia: “você é pobre. Voé negra. As pessoas tem muito preconceito
a nível da cor da sua pele. Então, por causa disso tudo, você tem que procurar ser a
melhor, porque a gente sabe que as pessoas vão te cobrar. Então, você tem que ser a
melhor. Você sempre deve estar se dedicando para ser “aquela” profissional. Porque
205
A Universidade Estadual do Rio de Janeiro fica no bairro do Maracanã, zona norte do Rio de
Janeiro. Interessante notar que a UERJ se encontra mais próxima do local de moradia de
Mônica, do que a UFF, para a qual ela se dirigia para assistir às aulas de graduação em
Psicologia.
137
isso, ninguém vai poder tirar de você, que é a sua sabedoria, o seu prestígio. O que
você vai fazer, para construir o seu nome, na profissão que você está querendo
abraçar. O que falarem, você vai tirar de letra. Porque a cor da pele, a condição
social e o local em que você mora, não tem nada a ver com a profissional que você
vai ser.” A minha mãe me criou sempre falando isso.
Diferente de outras trajetórias, sua entrada para o mundo da música não
representa um rompimento com a sua família de origem, mas um tipo de continuidade
de uma tradição familiar. Sua “vocação” musical foi estimulada pelos pais, os seus
principais incentivadores. Entretanto, após seu casamento, que aconteceu quando tinha
24 anos, não recebia o mesmo tipo de estímulo do marido, um comerciante da região.
Durante o casamento, teve sua experiência mais marcante de desprestígio social por
conta de sua profissão:
Nós fazíamos uns churrascos no final de semana, em que a gente recebia os amigos
do meu marido. Gente daqui da região, principalmente gente do comércio, como ele.
Eles riam quando eu dizia que era professora: “Coitada!”. Ser professora é ser
coitada para muita gente. Isso me irritava. Eu tenho terceiro grau. Sou professora de
música clássica. é que eles não entendiam mesmo. Achavam que a minha
situação era pior ainda do que do restante das professoras.
A profissão de docente, como vemos na fala acima, tem sido vista, de uma
maneira geral, como um tipo de ocupação não muito prestigiada. “Ser professor” é
comumente associado, ao recebimento de baixos salários, a estar submetido à condições
de trabalho precárias (para aqueles que trabalham em instituições públicas,
principalmente), embora, e talvez por isso mesmo, reconheça-se o considerável
138
investimento que um indivíduo deve fazer para se tornar um docente. No tocante ao
mundo da música, ser professor aparece, em vários momentos, como uma espécie de
segunda opção. No discurso dos músicos (especialmente aqueles que possuem o terceiro
em Música), é comum a idéia de que trabalhar ensinando música, é algo que se faz em
virtude da dificuldade em se conseguir ganhos regulares com a atividade de músico.
206
Em pesquisa realizada junto aos estudantes (de terceiro grau) de música da Escola Villa-
Lobos (da UniRio), Elizabeth Travassos, ao perguntar aqueles que tinham uma
identidade profissional de músico constituída, o porquê de freqüentarem a instituição, a
resposta comum apontava para a “[...] instabilidade dos ganhos como profissional
autônomo de música [...].Numa perspectiva mais instrumental, o diploma é uma
esperança de estabilização financeira porque possibilita os vínculos empregatícios com
escolas oficiais” (Travassos:1999:124). Assim, a licenciatura em música é algo que
aparece desprestigiado, sendo o “abrigo de músicos que encaram o magistério como
tábua de salvação, garantia de uma renda mínima, mas que investirão, de fato, nas
atividades mais valorizadas de composição ou de performance.” (Travassos, 1999:125).
Mônica não só é desprestigiada na sua opção profissional apenas por aqueles “de
fora”, mas também, no conjunto das representações sociais do mundo da música, sua
“opção” não é a mais valorizada.
3.3 Outro passo importante na carreira – a Zona Sul
Apesar de Mônica num trecho acima da entrevista, ao citar à mãe, falar que “é
pobre”, segundo ela a condição de classe nunca foi de fato um problema, que não se
206
Na tese de doutoramento de Silva (2005) sobre estudantes de música, relata-se o quanto a
opção pela música pode ser desvantajosa do ponto de vista dos ganhos financeiros. (Silva,
2005:72-3).
139
considera realmente “uma pessoa necessitada”. Isso, aliás, até aparece como um
marcador de distinção social com relação ao restante da população de sua região. Mas
isso não impede que um tipo de alteridade apresente-se nas interações sociais que
desenvolveu/desenvolve com pessoas da Zona Sul carioca. Vê-se claramente que
uma categoria social que vincula as pessoas da Baixada Fluminense a uma identidade, e
uma outra opositiva, da Zona Sul:
Agora, quando as pessoas te perguntam: “de onde voveio? Onde moram os seus
familiares? Como se chama o seu pai? Qual a profissão da sua mãe?”, começa a
discriminação. Começam a discriminar você por aí. Eu, nem tanto, porquê? Porque
meu pai é militar, tenente do Exército, meu avô era major. Meu pai morou muito
tempo no Engenho Novo. A família do pai dele era de Jacarepaguá. Minha mãe é
enfermeira, também nascida em Jacarepaguá, na Praça Seca. Então, eu estava num
outro contexto. Minha mãe tinha terceiro grau, era concursada, do Hospital Souza
Aguiar. Eu nasci aqui em Nilópolis, mas as coisas para mim eram diferentes do
restante das pessoas. A minha mãe não era do lar, o meu pai não era metalúrgico.
Mas, mesmo assim, na Zona Sul, essa coisa do sobrenome me incomodava. Meu
sobrenome é Maia, então as pessoas ficam: “você é parente do César Maia?,
207
você
é parente de não-sei-quem?”. Aqui na Baixada não é assim.
Durante minha própria experiência de contato com pessoas da Zona Sul carioca,
também notei e estranhei o uso, que para mim sempre pareceu excessivo, dos
sobrenomes. Não me lembro de na infância tratar meus colegas pelo sobrenome, como
vi na Zona Sul. Mesmo na idade adulta, sempre me referi aos colegas apenas pelo
207
Atual prefeito da cidade do Rio de Janeiro.
140
primeiro nome, ou mais prosaicamente, por um apelido qualquer. E normalmente,
quando era interpelada por alguém, que não conseguia identificar a quem eu me referia,
o sobrenome seria a última coisa a vir na minha cabeça. Sempre recorria a traços físicos
como cor do cabelo, da pele, para descrever de quem falava. Velho usou a expressão
ethos aristocratizante” para definir um tipo de atitude de um segmento das camadas
médias cariocas no qual há a valorização do que chamam de “famílias tradicionais”:
Por outro lado, usando muitas vezes uma linguagem mais ou menos jocosa, falava-se
no bom pedigree do grupo. Assim distinguiam-se “pessoas finas” de grossas, mal-
educadas, “sem berço”. Conforme foi visto, enfatizava-se a procedência de Zona
Sul, o estudo em certos colégios. Mas cada vez mais, no decorrer do período, surgia
com freqüência o assunto do passado das famílias, histórias a respeito de avós,
antepassados etc. A origem das famílias era discutida, velhos álbuns de retratos
redescobertos, e objetos familiares, como jóias e móveis, passara a surgir e ser
espostos, utilizados como mbolos de status. Evidenciou-se progressivamente uma
dimensão aristocrática na visão de mundo predominante. De inicio enfatizavam-se a
criatividade, a capacidade intelectual e o talento, elementos constituintes de uma
“aristocracia de espírito”, mas aos poucos passou a ser também focalizada a origem
familiar, sendo acionados então os mecanismos tradicionalmente usados na
caracterização de uma “aristocracia de sangue”. (Velho, 1998:35)
Assim, o grupo também é definido:
Forma-se uma espécie de “aristocracia de estratos médios”, que não se diferencia
necessariamente por ter mais dinheiro, mas sim em termos do tipo de consumo mais
sofisticado, mais “cultural”. A sua superioridade não se manifesta apenas em relação
141
a iguais ou inferiores em renda, mas é um importante mecanismo para diminuir uma
burguesia “ignorante”, “frívola”, “despreparada”, “semi-analfabeta”. A educação é
seu grande trunfo, servindo de base para a constituição de um estilo de vida bem
marcado. Trata-se de um mbolo até certo ponto reconhecido pela sociedade em
geral, na medida em que as qualificações profissionais dessas pessoas constituem um
“bem escasso” no mercado. A condição de pessoas educadas pode ser manipulada,
marcando fronteiras. (Velho, 1998:189)
É com esse ethos aristocratizante” que Mônica se defronta nas suas primeiras
experiências escolares no Conservatório de Música e na UFF. A sensação de
deslocamento e de descrédito também irá acompanhá-la mesmo quando já formada:
Trabalhei em Barra Mansa, numa escola de música. Trabalhei em Nova Iguaçu, mas
era apenas um estágio. Trabalhei em Nova Friburgo, por dois anos, de 1990 a 1992,
num curso técnico, no Conservatório de Friburgo. Os alunos de Nova Friburgo são
muito estudiosos, são muito atenciosos, aplicados. Mas havia uma coisa assim:
“você estudou onde?”, ou então, “seu diploma é de onde?”. Sabe, era como se eles
não acreditassem em mim, até que um dia eu levei o meu diploma. As pessoas fazem
muita questão de papel. Não é o aluno de Nova Friburgo, o do Rio também é
assim. Aqui na Baixada já não é assim. E sabe, o papel não faz o profissional.
Muitos alunos ficam tentando te pegar pelo pé. Ficam te questionando sobre o
conteúdo. Às vezes, o aluno não sabe nada, está no primeiro ano, mas vem com
questões que só vão aparecer no último ano. Apenas para te testar. Aí você começa a
explicar, e eles, óbvio, não entendem nada. E dizem: “não, está bom. Não precisa
explicar”. Ele não queria saber nada a respeito daquele conteúdo específico, ele
queria era saber se eu sabia.
142
A idéia de que o alunado está sempre “testando” ou mesmo competindo com o
professor é bastante corrente entre os profissionais do ensino. Só que no caso de
Mônica, sua origem social e sua “cor” fazem com ela vivencie de maneira muito
dramática a relação professor-aluno, quando diante do seu outro (que não é apenas a
categoria “aluno”, mas também um indivíduo socialmente e “racialmente” diferente).
A partir de 1990, por intermédio de uma ex-professora sua do Conservatório de
Música, passou a lecionar piano e teoria musical, em uma escola de Laranjeiras, a
Escola de Música Arte e Som (na Zona Sul)
Eu trabalhei durante 12 anos. Eu fui trabalhar a convite de uma antiga
professora minha. Comecei em 1990 e fiquei até 92. Eu saí para me casar em 1992 e
retornei em 1994 e fiquei até 2004. é uma escola especializada em música,
principalmente no piano clássico, mas tem todos os instrumentos. E funciona assim:
tem o trabalho individual de piano. O aluno pode fazer teoria musical geral, ou teoria
musical aplicada ao instrumento que ela vai tocar. Ele pode entrar direto no
instrumento trabalhar a teoria ligada à prática do instrumento. Eu também dava
aulas em turmas de teoria musical, que também poderiam ser aulas individuais.
Também trabalhei com musicalização infantil lá, com crianças de três anos de idade.
dava para levantar uma grana legal. Mesmo tendo apenas alunos individuais de
meia hora, você consegue ganhar bem. Dá para levantar uma grana boa lá.
3.3.3 Inversão de hierarquia – a professora da Baixada
Primeiro Mônica teve aulas no centro do Rio de Janeiro, depois entrou em
contato com a população universitária de Niterói. Agora, lecionava na Zona Sul, lidando
não mais com colegas e professores, mas na condição de professora, tendo alunos, mãe
143
de alunos e chefes. Segundo ela, com alguns alunos tinha uma boa relação, o que lhe
trazia problemas junto aos outros professores:
Eu ganhei muito presente bom dos meus alunos. Eu tenho uma miniatura da Torre
Eifell, que veio da França. Ganhei muito perfume francês, muita roupa. Tenho até
jóias. Uma mãe descobriu que eu era católica, e trouxe diretamente de Fátima, uma
imagem de Nossa Sra. De Fátima. Tudo era motivo para eles te presentearem, se
gostassem de você. Eu tive um aluno de piano, que atualmente é chefe da
enfermagem do Hospital de Cardiologia de Laranjeiras, ele me dava, todo final de
ano e no meu aniversário, uma cesta de chocolates da Kopenhagem. Aí, tinha uma
inveja muito grande dos meus outros colegas, em relação aos presentes que eu
ganhava. Todo mundo queria dar aula para esse aluno, mas ele era meu aluno. As
pessoas tinham interesse nos presentes que ele ia dar. Ele me deu uma tulipa, linda.
Tinha umas coisas engraçadas, como no dia do mestre, que a mãe dizia: olha,
professora, esqueci de comprar o tem presente, mas semana que vem eu trago.” E
traziam. Eu também dava presente para as crianças, fazíamos festinhas para elas.
Mas também as distinções entre a Baixada Fluminense e a Zona Sul foram
ficando cada vez mais claras:
Mas tinha também aquela coisa, tipo, quando acontecia um evento, como as férias, e
vinham as perguntas: “Onde você vai passar as suas férias?” As mães dos meus
alunos e os alunos da Zona Sul me diziam: “eu vou para Milão, vou para Paris, e
você, vai para onde?” E eu respondia: “ah, eu vou para Ponta Negra”,
208
ou então,
208
Balneário da costa norte do Rio de Janeiro. Freqüentado por muitos moradores da Baixada
Fluminense e por pessoas das camadas populares em geral.
144
“eu vou para um sítio em Tinguá
209
”. E as pessoas se assustavam: “Mas o que é isso?
Ponta Negra? Tinguá?”. Isso me incomodava muito.
No citado trabalho de Velho (1998:26), destaca-se a importância, para os
indivíduos do grupo estudado, jovens artistas e intelectuais das camadas médias da Zona
Sul carioca, conferida à experiência das viagens internacionais, como marcador de
status social: Ter vivido ou viajado pelo exterior é importante símbolo de prestígio,
sendo que conversas sobre viagens, vida no estrangeiro etc. constituem importante
tópico dentro do grupo.” Sua relação com a Zona Sul carioca fez com que refletisse
sobre sua própria condição. Num movimento dialético, descobriu não características
que considera negativas no ethos de Zona Sul”, mas também traços positivos, a
“liberdade”:
210
Eu aprendi uma coisa na Zona Sul. A liberdade. O que eu gosto da Zona Sul é essa
liberdade. Porque você é livre. as pessoas não tomam conta da sua vida. Você
tem uma independência de vida total. Mas o pessoal de [da Zona Sul], se você
fizer a sua vida independente, as pessoas não ficam te controlando. Uma coisa que
acontece, que aqui não acontece: você vai de short, de camiseta e de chinelo
havaiana na rua, todo mundo acha normal. Aqui, não. As pessoas vem falar com
você: “o que é isso? Por que você está assim? Você é uma professora, é uma
coordenadora, vonão pode andar vestida assim, você não pode andar de qualquer
jeito”. Se você não arrumar o seu cabelo, as pessoas te perguntam: “mas que cabelo
209
Região da Baixada Fluminense. Bastante freqüentada pela população local por possuir
cachoeiras e sítios onde pode-se alugar quartos nos finais de semana.
210
Em trabalho de Velho (1978), sobre o bairro de Copacabana (bairro da Zona Sul carioca), a
“liberdade” aparece como valor distintivo dos moradores do local. Nesta tese, esse tema
também aparece no subcapítulo “2.1 Pelas mãos de Denise”.
145
é esse? Você não foi num salão? Você não foi num cabeleireiro? Você não fez esse
cabelo? Na Zona Sul, não. As pessoas não estão nem aí. É isso que eu gosto
naquele pessoal de lá.
Não significa dizer que não controle social na Zona Sul carioca, como bem já
ficou demonstrando. Mas se trata de um outro tipo de cobrança social a que o indivíduo
está submetido. Construiu-se no imaginário social, uma imagem da Zona Sul associada
a maior liberdade individual, apesar de, como vimos, um certo tipo de herança familiar
e estilo de vida ser valorizado.
Ao mesmo tempo em que as pessoas da Zona Sul não se metem na sua vida, porque
você é livre para qualquer ação que você quiser, para qualquer conduta que você
quiser adquirir, adotar para a sua vida, como por exemplo, morar sozinha. Isso na
Zona Sul é perfeitamente normal – uma mulher, morar sozinha, trabalhar, receber na
casa dela quem ela quiser, enfim, ter a vida que ela quiser. Mas por outro lado,
quando as pessoas imaginam uma professora de música, e de música clássica, vão
esperar que você tenha cabelos longos, que você seja alta, que você seja clara, que
você tenha olhos verdes, que você tenha uma descendência européia (e olha que eu
tenho uma descendência italiana), mas que você e seus familiares visitem sempre
países europeu e principalmente aquele da sua origem familiar. Então, no início,
quando eu fui trabalhar em Laranjeiras, isso me incomodava.
No trecho acima podemos identificar não a valorização da liberdade
individual, mas também o reconhecimento das dificuldades que sua condição de gênero
apresenta na Baixada Fluminense. Em diversos momentos de nossas conversas, Mônica
parecia muito entusiasmada com o fato de eu morar sozinha, dessa possibilidade ser real
146
para mim,
211
é impossível para ela, segundo suas percepções: quando me separei,
voltei a morar com minha mãe. Mulher não mora sozinha na Baixada”. Apesar da frase
parecer radical, e é claro que existem mulheres que moram sozinhas na Baixada
Fluminense, essa sempre se apresenta como uma opção não muito segura, não por
questões de violência, mas principalmente de moralidade. “Uma mulher morando
sozinha”, ainda tem um efeito perturbador na comunidade, mesmo que seja apenas no
nível das representações, e que de fato, nenhum perigo se apresente. O perigo pode ser
apenas simbólico e não o medo pela segurança dessa mulher, mas pela segurança
do restante dos vizinhos. Essa “mulher” ora pode ser a “frágil e visada”, que todo
bandido procuraria como vítima, ora, torna-se ela a própria corruptora, que por sua
casa podem passar os maridos e os filhos das demais mulheres da vizinhança sem que
haja qualquer tipo de repressão familiar quanto ao seu comportamento.
Essa sensação de desconforto e de controle social não é algo que atinja apenas
aqueles que partilham de um ethos baixadense”. Pessoas de outras origens, ao viver na
região, também podem senti-lo. Acompanhei uma conhecida, professora universitária de
trinta anos, que ao aceitar uma proposta de trabalho na localidade, mudou-se para Nova
Iguaçu. Ela, nascida e até então, moradora do Catete
212
de início estranhou a
“precariedade” do lugar. Não nos seus aspectos físicos (valões a céu aberto, lixo nos
cantos, ruas sem asfaltamento, iluminação precária), mas também na “falta” de opções
de divertimento e lazer para uma “mulher solteira”. Com o passar dos meses, o a
falta de infra-estrutura a incomodava como também uma certa desconfiança por parte
dos vizinhos. A solução que encontrou foi contratar uma empregada que permanecesse
em sua casa, também para dormir, durante os dias da semana útil. Nos finais de semana,
211
Que não moro mais na Baixada.
212
Zona Sul.
147
minha conhecida voltava para a Zona Sul do Rio, ficando na casa de amigos, que não
“suportava” passar o sábado e o domingo na Baixada.
Mônica me diz que não é uma simples opção sua morar na Baixada. Após ter se
divorciado, ela voltou a viver com a mãe, porque precisa lhe fazer companhia (a mãe já
idosa ). Também alega que morando com a mãe não tem despesas de aluguel. Relata-me
o desejo de morar em algum lugar mais “acessível”:
Eu gostaria de morar mais perto de um bom centro comercial. Madureira,
Copacabana... mas pelo fato de ser um centro comercial, um lugar onde você tem
tudo. O Méier, por exemplo. São lugares em que votem tudo, e tem todo tipo de
condução, para onde você quiser ir. Aqui, não. Aqui você tem muitas dificuldades. As
passagens de ônibus são muito caras, os ônibus demoram muito. E você não tem muita
opção. Você tem uma ou duas empresas de ônibus que fazem aquele intinerário.
Você não tem a opção de mudar o intinerário, de optar por empresas. Você tem que
fazer exatamente o mesmo percurso, porque não outros. Morar em Nilópolis, então,
é um transtorno. Para pegar a Av. Brasil, você tem que ir para Deodoro. Ou então, para
Guadalupe. Para ir à Duque de Caxias, de carro você vai mais ou menos rápido, agora
de ônibus... é uma viagem. Eu gastava para ir para Laranjeiras, duas horas. Eu tinha
que me cronometrar assim: preciso de duas horas disponíveis só para o trânsito Mas eu
pegava uma van aqui na rodoviária de Nilópolis, descia no Aeroporto Santos Dumont,
para pegar um ônibus para Laranjeiras, o que levaria mais uns 15 minutos.
Apesar de não ser apenas uma escolha, morar na Baixada, segundo ela não é o
que mais a incomoda dentre os preconceitos a que se sentem submetida. A condição de
baixadense pode ser escamoteada. O indivíduo pode simplesmente mudar para uma
outra região e se omitir quanto a sua origem. Pode também se metamorfosear e assumir
148
uma outra identidade que considere mais representativa de si. Mas algo que Mônica
não pode transformar, aquilo que Erving Goffman chamou de “veículo de transmissão
de sinais fixos” (2002:.31) aquilo que freqüentemente é chamado de condição de
“raça” ou etnia, e que a própria chama de “sua cor”.
213
É parte constituinte e inalterável
da sua fachada pessoal, emitindo um tipo de informação que, para continuarmos usando
a linguagem do autor, não permite controle por parte de quem a detém. “Ser da
Baixada”, é até um certo ponto, uma opção. que é o tipo de informação que pode ser
negada. Mas ser negra, não. Em sua fala anterior, Mônica nos diz que : “quando as
pessoas imaginam uma professora de música, e de música clássica, vão esperar que
você tenha cabelos longos, que você seja alta, que você seja clara, que você tenha olhos
verdes, que você tenha uma descendência européia”, estamos diante de um situação
descrita nas obras de Goffman, na qual uma pessoa estigmatizada é levada a assumir o
papel de desacreditado (1988:51) nas suas interações sociais. A partir de uma
definição de situação, acreditamos que “somente indivíduos de determinado tipo são
provavelmente encontrados em um dado cenário social” (2002:11):
Quando uma discrepância entre a identidade social real de um indivíduo e sua
identidade virtual, é possível que nós, normais, tenhamos conhecimento desse fato
antes de entrarmos em contato com ele ou, então, que essa discrepância se torne
evidente no momento em que ele nos é apresentado. (Goffman, 1988:51)
213
Goffman (2002:31) nos diz: “Entre as partes da fachada pessoal podemos incluir os
distintivos da função ou da categoria, vestuário, sexo, idade e características raciais, altura e
aparência, atitude, padrões de linguagem, expressões faciais, gestos corporais e coisas
semelhantes. Alguns desses veículos de transmissão de sinais, como as características raciais,
são relativamente fixos e, dentro de um certo espaço de tempo, não variam para o indivíduo de
uma situação para outra. Em contraposição, alguns desses veículos de sinais são
relativamente móveis ou transitórios, como a expressão facial, e podem variar, numa
representação de um momento para o outro.”
149
Não que Mônica tenha se auto-atribuído essa identidade, mas é essa que muitos
dos indivíduos, com os quais interage, acionam para lidar com ela. Perguntei como ela
se auto-identificava: “você é negra?”
Não, bem,... Eu me defino assim: eu sou negra. Eu me vejo como uma mulher
brasileira. Eu sou a típica mulher do Brasil. Porque no caso brasileiro, você não tem
uma característica como você tem uma norte-americana, de uma européia, de uma
japonesa. Você não tem isso aqui. Você sabe como o japonês é, quais são as
características deles. Mas e a brasileira? Você tem aquela imagem da mulata, o
corpo bem delineado, as curvas, mas e o negro, o negro em si?
Inquiri também se ela tinha alguma relação com qualquer setor ligado aos
movimentos de afirmação do negro brasileiro. Ou com qualquer outra forma
associativa, na qual defendam-se os direitos da população negra ou afro-descendente.
Eu não concordo muito com essa coisa do movimento negro, com essa coisa que
apóia o negro, da consciência negra, porque que eu acho que tem algumas questões
que eu não concordo. Como se o negro fosse um outro grupo que vive do Brasil,
num outro mundo. Isso que eles trabalham é que eu não concordo. Por isso eu não
me encaixo nesse grupo [do movimento negro]. Eles [movimento negro] fazem uma
diferenciação que eu acho que foge da minha visão. Eu não concordo. Eu não gosto
dessa idéia que eles pregam de vo não fazer amizade, de não ter contato com
pessoas claras.
150
Ela destaca como sendo umas das suas principais críticas ao “movimento
negro”, o controle que exercem sobre a aparência do indivíduo, no que diz respeito ao
trato dos próprios cabelos:
Se eu aliso o meu cabelo, se eu freqüento um tipo de salão que alisa o cabelo, eles
criticam. Eles são muito radicais. Acham que se o seu cabelo é assim, você não pode
usar um produto que alise. Eles acham que fazendo isso, você estaria se
descaracterizando como negro. Eu não concordo. Uma vez, eu até fui convidada por
uma amiga, que faz parte de grupos ligados ao movimento negro, para assistir a uma
reunião. Eu fui por curiosidade. E quando começou a falar sobre o cabelo, que temos
que usar cabelo rastafari, eu não aceitei. Eu não aceito isso. Por que a pessoa negra
não pode ter o cabelo liso? Por que a pessoa negra tem que ficar sempre dizendo que
ela é negra? Por que isso tem que ficar evidenciado, como se isso não fosse óbvio.
Quando você faz isso, você está separando as pessoas. pensou se você chegasse
aqui e falasse: “eu sou a fulana de tal e está vendo , eu sou branca.” Eu não estou
vendo que você é branca? Não é óbvio. Sabe aquelas camisas “100% negro”.
pensou você com uma camisa escrita: “100% branca” ? Ou “100% mulata”, ou
“100% morena”. Mas eu estou vendo a sua cor, você não precisa me dizer ela. É
como se a cor, como eu vou colocar isso... é como se a sua cor fosse uma marca.
E de fato, a cor, o tipo físico são marcas constitutivas de identidades sociais
muito profundas, das quais o indivíduo não pode se livrar a seu bel-prazer. Oraci
Nogueira num estudo sobre o racismo brasileiro usa exatamente a expressão
“preconceito racial de marca” para falar do tipo de discriminação típico da nossa
sociedade
214
. Mônica, principalmente no seu contato com as camadas médias cariocas,
214
Ver Nogueira, 1985.
151
descobriu-se negra, “diferente”, apesar de como ela mesma nos contou, a mãe sempre a
tenha “alertado” para sua condição:
Então aquelas pessoas olhavam para mim, e ficavam me olhando, e eu com aquele
tipo de pensamento: “você gostou da minha cor? Você gostou do meu cabelo? Ta me
achando diferente?” Até que com o tempo eu fui me acostumando com isso, mas no
início, eu tive muita dificuldade para aceitar. Principalmente, na escola em que
trabalhei em Laranjeiras.
3.3.4 Musicoterapia – para si e para os outros
Foi com 18 anos de idade, que ingressou no bacharelado em piano. Aos 20 anos
começou a faculdade de psicologia na Universidade Federal Fluminense. Mas porque
Música e Psicologia?
Porque eu queria fazer musicoterapia. Eu tinha essa idéia de ser musicoterapeuta.
Mas conversando com uma amiga que era musicoterapeuta sobre o mercado de
trabalho aqui no Brasil, ela me desanimou. Você não tem um campo. É normal que
um estudante universitário buscar o mercado de trabalho quando ele está perto de
se formar. E eu não via mercado para a musicoterapia. Eu fiquei triste, puxa! Como
eu queria conciliar as duas áreas. Eu queria desenvolver um trabalho de
musicoterapia dentro das escolas. E na época não se tinha esse tipo de trabalho. Eu
não conhecia ninguém que conseguisse trabalhar como musicoterapeuta. Eu conheci
uma, que era evangélica, e fazia esse trabalho dentro da igreja. Mas eu não queria
fazer esse tipo de trabalho dentro de igrejas. Eu queria fazer esse trabalho num posto
de saúde, numa escola pública, num hospital, em comunidades carentes.
152
Durante dois anos, Mônica fez concomitantemente dois cursos de nível superior,
localizados em duas cidades diferentes, a mais de 50 quilômetros da sua casa:
Mas depois, eu fui fazer faculdade de Psicologia (eu fazia a faculdade de música
há dois anos). Foi complicado, porque eu fazia faculdade de música de manhã e fazia
psicologia de tarde. Foi complicado para estudar, para conciliar as matérias. Eu já
ida direto do centro para Niterói, que é bastante perto. Logo no meu primeiro ano de
psicologia não era tão pesado assim para eu estudar, mas estava bastante pesado na
faculdade de música. Quando terminei a faculdade de música, eu estava entrando
na fase mais complicada.
Com o tempo, ela me conta que sua segunda opção, a Psicologia, veio de uma
necessidade própria de superar seus traumas:
Eu acho que a psicologia reforçou todo o meu lado musical. É claro que você não
vai fazer uma faculdade de psicologia para resolver a sua vida pessoal mas eu
achava isso. Eu pensava: “eu vou ser psicóloga. Então, eu vou ser totalmente
liberada de todos os preconceitos, de conceitos...” que não acontece nada disso, e
muito pelo contrário. É para tratar o outro, e tudo é muito do outro. E se você não
estiver bem com você, como é que vovai dar conta do outro? E é o outro sempre.
Eu fiz oito anos de terapia, como paciente. E nesses anos de terapia foi onde eu me
encontrei. Eu me conheci. Foi quando eu estava no quinto período da faculdade. Mas
eu também não fui buscando esse meu conhecimento. Eu fui porque os meus
professores falavam que todo psicólogo tinha que passar pela experiência de ser um
paciente de terapia. Então, eu fui de curiosidade, para saber como era ser paciente.
Porque eu ia aprender a atender. E como eu ia aprender, seu eu não tinha
conhecimento de como era ser paciente? E era uma chance de observar um outro
153
profissional. Eu fui como estudante, com muita curiosidade, e fui me descobrindo,
conforme a terapeuta me sinalizava algumas coisas e aprendia a técnica dela. Essa
minha primeira terapeuta não se sentia a vontade com isso. No final, eu havia
passado por quatro profissionais diferentes, porque cada um era de uma linha, de
uma corrente. Eu, como psicóloga, optei pela linha Humaninsta, Karl Rogers e a
questão do aqui-e-agora, do presente. Não descartando o seu passado. Ma o mais
importante é o seu presente. Mas como paciente eu fiz um pouco de gestalt, fiz
bioenergética, trabalhei muito a questão do corpo. E por ultimo, conheci a corrente
Humanista e foi quando me decidi. Eu gosto da gestalt, mas pra mim, sei lá. Mas a
gestalt ainda não era aquilo que eu queria. Eu tive frutos, eu gosto, mas eu não
encontrei ali, apesar de achar o trabalho interessante. É tipo com estudar música: eu
dou aula de teoria, mas eu me encontrei na harmonia. Eu acho que eu sou melhor
professora de harmonia do que de teoria. Apesar dos meus alunos de teoria gostarem
de mim. Mas eu mesma, gosto mais de harmonia.
Sobre a sua relação com os professores da UFF, queixa-se de um certo
“esnobismo” da parte deles:
Um professor falou que nós tínhamos que comprar a coleção completa, não sei nem
quantos volumes eram, do Freud. Mas tinham que ser uma coleção que ele citou,
com a capa dura, com a letra dourada. Eu não tenho nada contra o Freud, mas eu
disse que não ia comprar aquela coleção. Logo no primeiro período, sair comprando
livro assim? Eu ia comprar livros das matérias que eu tinha, mas um livro, não uma
coleção, porque o professor queria? Tinha muito isso, sabe? Dos professores
pedirem para a gente comprar livros demais. E eu perguntava: mas vai ser usado? E
eles respondiam: “não, mas você como profissional que escolheu essa linha, tem que
154
ter esse livro. Todo profissional de psicologia tem que ter esse livro.Da minha
turma de 80 alunos, nos formamos 34. Tudo tinha que comprar.
Sua saída da Escola de Música Arte e Som, também se passou com uma certa
dramaticidade, que Mônica se sentiu preterida. Alega que para suas classes iam os
alunos problemáticos”, que tão logo se tornassem “bons alunos” eram transferidos
para outros professores:
Eu pedi para sair de lá. Tem lugares em que você entra na hora certa, e sai na hora
certa. Acho que era o momento certo. Um dos motivos da minha saída foi o trabalho
em si. Eu já não estava mais assim... feliz. Começou a haver uma competição,
davam-me os alunos considerados os “mais difíceis”. Quando eles achavam que o
aluno ia dar trabalho, falavam: coloca para a Mônica”. Quando eu trabalhava o
aluno e deixava ele pronto, ele no ponto, davam o aluno para uma outra
professora. Isso começou a me desmotivar. Por que os alunos que já estavam prontos
deviam ir para outras professoras? Quando eu começava a poder formar o meu
nome, porque o aluno estava começando a ficar bom, ele ia para outra pessoa. Por
que?
E continua:
Eu saí por que estava todo um lado meu emocional, apesar do dinheiro ser bom. Lá,
quando o professor falta, ele tem que repor a aula, mesmo que ele esteja doente.
Quando o aluno falta, ele tem direito a aula, se ele estiver doente e justificar e se for
avisada a escola com pelo menos 24 horas de antecedência. Aí, o professor fica
dispensado daquela aula, e vai repor no horário que eles combinarem, dependendo
do relacionamento que o professor tiver com aquele aluno. Se um aluno no qual você
155
tem um interesse, ele faltou mas você sabe que é um bom aluno, que tem interesse,
você marca um horário. E estava acontecendo que eu estava faltando muito. No
ano em que eu me separei foi um ano muito ruim para mim. Eu estava em falta com
tudo, porque a sua cabeça não coordena mais... eu comecei a perceber que eu
fiquei devendo muitas aulas para reposição. E descobri que, uma das professoras,
por ter parentesco com a direção, devia um monte de aula e não dava reposição de
nenhuma, foi uma aluna que me falou. Ela pediu para eu não contar que ela tinha me
falado, que eu tinha que usar isso em meu favor, mas sem prejudicá-la. A aluna me
disse: “não quero ficar mal com você, nem com a direção. Mas eu acho injusto com
você e os outros profissionais com os quais eles abusam”. Então, eles vieram falar
comigo: “você tem que repor aulas para fulano de tal”. E eu disse: “eu, não”. Eles
me perguntaram o porquê. Eu disse: “olha, depois do horário da pessoa, se ela quiser
ficar mais 20 ou 30 minutos, tudo bem., eu compenso. Mas não virei em dias
específicos para repor a aula de ninguém. Você concorda ou quer que eu te diga
porquê?”. a coordenadora me disse: “ah, mas a mãe do fulano vai reclamar.” Eu
pedi os telefones dos meus alunos e liguei para as mães. Expliquei que eles tinham
horas extras comigo e perguntei se poderia compensar nos dias das próprias aulas.”
Elas achavam perfeito.Então, o meu problema quanto as horas que eu devia não era a
mães. Mas a própria diretora. E não foi eu. Outros professores também saíram
pelo mesmo motivo. Eles não concordavam em repor as aulas da maneira como eles
queriam. Puxa, até quando a aula caia num feriado nacional s tínhamos que repor!
E os professores reclamando: “ué, mas professor não tem feriado? Ah, reclamem do
feriado com o Presidente da República”.
Perguntei a Mônica se não seria possível que ela recebesse os “piores alunos “,
porque a direção da escola acreditava na sua capacidade em lidar com estes. Ela me diz
que não, ser professora de “alunos ruins” é um desprestígio para o grupo:
156
Não sei. Talvez, pode até ser. Mas eu não acredito muito nisso não. Por que eles
tinham que tirar o aluno de mim quando ele ficava bom? Por que eles não podiam
me dar um aluno bom? Você tinha alunos bons que ficavam ótimos e alunos ruins
que ficavam bons. Você tinha crianças péssimas, crianças difíceis, difíceis até para
você se relacionar, com as mães era pior ainda.
Quanto à qualidade da sua interação com as mães dos alunos da Zona Sul
carioca, apesar de ter boas relações com algumas, nos diz que:
Tem mãe fazia uns bilhetinhos para você: “Eu, doutora fulana, mãe do aluno fulano,
não-sei-o-quê, não-sei-o-quê”. Isso tudo é muito formal. Para que eu preciso saber
que ela é “doutora”? Aí, eu comecei a mandar uns bilhetes iguais: “Eu, professora
Mônica,...” E ficava aquela coisa de bilhete para cá, bilhete para lá. Até que um dia
nos víamos pessoalmente. Elas me olhavam e diziam: “você que é a
professora?”[sua voz toma um tom desdenhoso]. “Eu sou a doutora fulana, mãe do
aluno tal. O meu filho gosta da senhora, mas está achando a aula muito cansativa.”
Eu respondia: “eu também gosto muito do seu filho. Mas ele não estuda, e por isso
pode estar achando cansativa a aula. Eu tenho que ficar insistindo na mesma
música porque ele não consegue aprender. Fico dando sempre a mesma aula, os
mesmos exercícios. É claro que ele fica cansado, e eu, mais cansada ainda.”
A hierarquia social não se apresentava apenas na relação entre professora e
mães. Segundo Mônica, mesmo as crianças já estavam imbuídas desses valores:
Um dia eu estava na varanda da escola, e uma criança de seis anos disse para mim:
“Oh Mônica, você pode fazer o favor de ver se o meu motorista chegou?” E eu
157
respondi: “Não posso”. E ela: “mas você não está fazendo nada”. E eu: “exatamente
a mesma coisa que você”.
Segundo ela, o aluno da Baixada é uma criança diferente. diferenças entre as
relações de professor-aluno quando compara o aluno do Rio de Janeiro com o da
Baixada Fluminense:
Quando eu vim dar aula aqui, eu estranhei bastante. Porque na Zona Sul, tudo era
muito artificial, até as crianças são artificiais. No inicio, na Zona Sul, eu estranhei.Lá
na Zona Sul, você não pode tocar nos alunos. Eu tive uma turma de musicalização,
com crianças de três, quatro, cinco anos. E você não toca na criança, você não chega
nela e toca nela. Em criança nenhuma de Laranjeiras você toca. E isso não é uma
regra da direção. É próprio da criança. Isso que aprendi com a minha experiência,
que adquiri lá mesmo. Aqui na Baixada, a criança chega e fala com você: “oi,
querida. Tudo bem” [num tom carinhoso e festivo]. na Zona Sul, não. A criança
fala: “como vai você, fulana”[de maneira formal]. As crianças da Zona Sul falam
com a gente e parece que são adultas. Então eu também falava com elas como se
fossem adultas. Eu dizia: “eu serei a sua professora, o nosso horário será...”, e a
criança me interrompia: “Eu sei. Minha mãe falou.” Isso com crianças de três
anos. Pegam a sua própria pasta e dizem “tchau mãe”. Nas primeiras aulas, eu
convidava as mães para assistir. As mães eram mais infantis que os filhos. Ficavam
bobas, rindo a toa. E as crianças, lá, seríssimas. Se eu fosse escrever uma tese, eu ia
escrever sobre isso. Porque a mãe se empolgava mais, participava mais do que a
própria criança.
Na Baixada Fluminense, haveria mais afetividade entre os professores e seu
alunado. A troca do de toque físico seriam permitidas e incentivadas:
158
Aqui na Baixada a relação é mais calorosa, mesmo. Mais humana. Mais do tato. Na
Zona Sul, depois de um certo tempo, você tinha um contato. a criança se
chegava mais, já te cumprimentava, te beijava, não queria ir mais embora. Mas
para ter mais contato com uma criança, era preciso ser professora dela uns dois
anos. Nem sentar muito perto, essas crianças sentam. Às vezes, com um adulto é até
mais fácil você ter um contato do que com a própria criança. Eu tive muito mais
dificuldade de fazer um elo, de ter uma ligação mais forte, com as crianças de lá, do
que com adultos. Na Zona Sul, eu tinha alunas de seis anos que eram adultas. Coisas
que você não aqui. Não que seja totalmente chato, mas tem horas que isso cansa
você.
Esse tipo de tratamento diferencial não se restringe ao espaço escolar, segundo
Mônica, ele é um tipo de reprodução das relações familiares e sociais mais gerais.
Porque vovem de um lugar em que as relações são diferentes. Na minha família,
por exemplo. Todo mundo se cumprimenta, se beija. Você vai pro seu trabalho
com esses seus hábitos familiares. Você carrega isso para onde vai. Então quando eu
cheguei na Zona Sul, eu estranhei a frieza das relações. Tinha horas que eu tinha que
me policiar, que eu tinha que me lembrar que não podia tratar as pessoas da
mesma maneira que eu tratava aqui.
A necessidade de aceitação social, a sensação de desconforto, o desempenho de
um papel discrepante fizeram da vida profissional de Mônica na Zona Sul algo tão
marcante que a todas as minhas perguntas sobre o alunado da Baixada, ela me
respondia: “são ótimos”, “são bons”, “são legais”. Eram frases curtas e finalizadas com
um belo sorriso. Quanto a sua relação com os demais colegas e a direção da EMMN, ela
também respondia da mesma forma, e pelo que pude observar durante o trabalho de
159
campo eram realmente bastante cordiais. conseguia extrair sua percepção sobre a
Baixada Fluminense (as relações de trabalho, com o alunado) quando este assunto
surgia numa comparação com a Zona Sul. Dessa maneira, Mônica detinha-se mais sobre
a Zona Sul:
Então, no inicio, eu ficava meio perdida. Eu ficava meio isolada. Eu tinha medo de
ser ridícula, de ser cafona, por estar sendo carinhosa. E eu não queria cometer
nenhuma gafe, cometer nenhum mico, nenhum erro. Eu não queria que me achassem
caretona. Então, lá, eu tinha um comportamento e aqui, um outro comportamento.
No inicio, eu ficava mal. Depois, eu aprendi. Até a questão da roupa. Eu tinha roupas
específicas para trabalhar em Laranjeiras, eu tinha roupas para trabalhar aqui. Lá, eu
sempre queira apresentar algo diferente, uma roupa de grife, de marca. Nos recitais,
parece mais um desfile de moda. As meninas vão vestidas iguais a umas princesas,
com uns vestidos. Então, a professora tem que chegar “professora”.
O fato de ter um estilo de vestuário diferente para trabalhar, de se portar de
maneira diferente, de tentar controlar sua gestualidade, de adotar novas técnicas
corporais, de acionar novos modelos de expressão de emocionalidade apontam para a
construção de uma dupla fachada – existe a Mônica da Baixada e a Mônica para a Zona
Sul.
160
4. Música e dádiva
4.1 Introdução
Neste quarto capítulo, apresentaremos três personagens importantes da rede
social que observamos. São indivíduos que aparecem em diferentes momentos na
trajetória de Denise – nossa artífice na montagem da rede – e que esta considera
fundamentais para a compreensão do fazer musical e da construção do gosto na região.
É nesse sentido que devem ser pensados como sujeitos sociais, que, embora não
realizem suas atividades a partir de um projeto coletivo comum, apresentam seus
projetos individuais com muitas semelhanças, nos quais se destacam o ensino da música
e a difusão de certos estilos musicais junto às crianças da região.
O primeiro núcleo da rede nos indica o passado de Denise é Irmã Mercês, sua
primeira “professora de música”, hoje, uma senhora de 73 anos de idade. Ainda na
ativa, com suas aulas de “iniciação musical”, evangélica, (daí a denominação de “irmã”,
forma de tratamento comum entre esse tipo de religiosos), mantém atualmente apenas
duas pequenas turmas de quatro alunos cada. Apesar de dizer que cobra mensalidades
de R$ 35,00 (trinta e cinco reais), a maioria de seus alunos, estudou de graça na pequena
varanda de sua casa, no bairro do Corumbá, em Nova Iguaçu, por onde passaram,
segundo seus próprios cálculos, feitos com a ajuda de Denise (que é um exemplo dos
que estudaram gratuitamente), mais ou menos, 300 crianças. Com Irmã Mercês, Denise
diz ter “descoberto o mundo da música”. Foi a primeira pessoa a quem quis me
apresentar, insistindo na sua relevância para a difusão do aprendizado da música, junto à
pelo menos duas gerações de moradores da sua localidade. Desde 1950, que ela reúne
161
pequenos grupos de “alunos”, para os quais aulas de teoria musical, formação de
coral e de instrumentos como violão e sax, principalmente.
O segundo núcleo a ser apresentado neste capítulo é formado por integrantes da
organização não-governamental Flor de Bel. A ONG, situada em Belford Roxo,
município limítrofe de Nova Iguaçu, também é destacada por Denise, por seu trabalho
de musicalização junto aos jovens locais. Um dos integrantes, João, assim como Denise,
é animador cultural, tendo como “linguagem”,
215
a música – e foi por conta da atividade
comum que se conheceram e passaram a desenvolver trabalhos relacionados. Além de
João, outro elo importante desse trabalho é Mauro Rincon”, que em seus ensinamentos
de música, traz sua experiência na Guiana Inglesa, onde entrou em contato com o estilo
de vida e a música caribenha e que transformou seu gosto musical. Essa viagem
iniciática passou a constituir parte do mito de origem que tenta explicar, o que muitos
(moradores da Baixada e jornalistas da área de música) dizem ser a “vocação” de
Belford Roxo para o estilo de vida e música marcado pela influência do ritmo jamaicano
conhecido como reggae.
A partir de meados dos anos de 1980 e durante os anos de 1990, segundo contam
moradores e jornalistas, a partir do Centro Cultural Donana, localizado no bairro do
Piam (o mesmo da ONG Flor de Bel) várias bandas ligadas ao estilo jamaicano
nasceram, dentre elas, a mais famosa, chamada de Cidade Negra, que muito ajudou na
divulgação da imagem do município como “celeiro musical”, identidade esta
freqüentemente acionada em contraposição à imagem de “uma das cidades mais
violentas do mundo”.
216
Ambas as representações, que ora festejam a região como
215
Como já foi visto anteriormente, os animadores musicais são divididos em categorias,
relacionadas a partir do que chamam de “linguagem”. Assim, a “linguagem da música”,
“linguagem do teatro”, “linguagem das artes plásticas”, “linguagem da dança” etc.
216
Conforme foi discutido no capítulo 1 deste trabalho.
162
detentora de uma rica vida musical (e artística, num sentido mais amplo) e aquela, que a
identifica a uma área dominada por “grupos de extermínio”, sendo uma espécie de
“faroeste caboclo”, uma “terra sem lei”, ou tendo um tipo de “justiça” se realizando a
partir de canais não-institucionais e ilegítimos, cristalizaram-se e sobrevivem, sendo
recorrentemente utilizadas para qualificar e descrever não a cidade de Belford Roxo,
mas toda a região da Baixada Fluminense, tanto por seus moradores sendo parte do
discurso da região, quanto por observadores externos quando constroem suas falas sobre
a área. Assim, a Baixada Fluminense foi sendo convertida numa região moral com
aspectos bastante ambíguos e contraditórios se por um lado é violenta, perigosa, suja,
pouco desenvolvida (características que a desqualificam), também é um lugar
“musical”, “de gente de talento”, “que produz cultura”
217
(sendo estas suas principais
“qualidades”). Nos discursos dominantes temos a oposição entre “violência” e “arte”,
nos quais a segunda categoria se apresenta como solução para o problema que é a
primeira. Ou seja, a idéia geral é que mesmo um “lugar violento” pode produzir “arte”,
e que o crescimento dos artistas ou da produção artística local pode levar a um
refreamento da violência”.É difícil identificar como a dicotomia “violência”/”arte” se
estabeleceu na região, mas é fato que não é privilégio desde caso em particular. A
“violência” é associada comumente à falta de civilidade, à selvageria, ao primitivo. A
“arte” aparece como obra das populações civilizadas, desenvolvidas, cultas. Parece-me
que um esforço no sentido de compensar ou neutralizar os “defeitos” da região,
fazendo sobressair as suas “qualidades civilizatórias”
218
a arte vencendo a violência, a
arte que “resgata” jovens do universo do tráfico de drogas, a arte que possibilita novas
trajetórias sociais que podem resguardar os jovens da ação dos “justiceiros”.
217
O conceito de “cultura” conforme foi mencionado no capítulo 1 é uma categoria “nativa”,
utilizada freqüentemente para indicar produção artística.
218
“ Civlizado” tal como em Elias (1990 e 1993).
163
É nesse sentido que ações como a criação e a gestão de ONGs
219
dedicadas à
atividades culturais (entenda-se, desenvolvimento de produção artística e/ou artesanal)
e esportivas passaram a ser utilizadas como importantes mecanismos de controle social
em áreas socialmente desprestigiadas. Ocupando parte do tempo da criança e do
adolescente, no interior de suas sedes, nas quais podem realizar “oficinas” de expressões
que vão da capoeira ao chorinho, do jongo à música clássica, do futebol à música rock,
as ONGs, e suas antecessoras, as Associações Comunitárias não se interessam apenas
em difundir técnicas artísticas ou incentivar possíveis talentos esportivos, mas em
desenvolver um tipo de ideologia,
220
que passamos aqui a classificar de ideologia
cidadã.
Como integrantes da rede social capitaneada por Denise, o que Irmã Mercês e os
integrantes da ONG Flor de Bel tem em comum é o fato de se apresentarem e serem
apresentados como indivíduos que realizam o que é chamado de “trabalho social” e
no caso específico de ambos, promovem a prática musical entre crianças e adolescentes,
a partir de aulas gratuitas. Por “trabalho social”, uma categoria que os membros da rede
utilizam, podemos entender toda atividade realizada voluntariamente na qual o principal
beneficiário é sua própria comunidade, embora este seja capaz de produzir um efeito em
219
Para um histórico do surgimento das ONGs ver Silva (2001:7-18): “A partir da segunda
metade da década de 80, uma nova forma de organização social começou a surgir no Brasil: as
organizações não-governamentais, ou ONGs, como ficaram conhecidas. Para definir as ONGs,
os estudiosos do tema começam em geral dizendo o que elas não são: não são “Estado”, não
são sindicatos, não são partidos políticos [...]” (Ibid.: 7). Sobre o tema das ONGs, do
associativismo e do voluntariado uma produção bastante significativa. Destacamos, dentre
outros, além do citado acima: Assumpção (1993), Leite (1999), Motta (2004), Montes (1996),
Reinhheimer (2002), Segala (1991), Silva (1998), Soares (1998) e Sholl (1996). Questões
referentes à ação do Estado e administração pública sobre o “social”, ver Lima (1996 e 2003).
220
Conf. Dumont (1990:87), no sentido de “um sistema de idéias e valores”.
164
ondas sentido na sociedade mais ampla. No caso em tela, a “clientela” de ambos é
formada pelas crianças das camadas populares que habitam nas proximidades.
Embora ambos sejam representados por desempenharem os mesmos papéis
sociais, assumindo uma identidade comum a de realizadores de “trabalho social”, D.
Mercês e os fundadores da ONG Flor de Bel, como veremos a partir da construção de
suas histórias de vida, ressignificam as suas ações de maneira bastante diversificada,
podendo até divergir nos sentidos que dão ao seu “trabalho social”.
Suas trajetórias, apesar de apresentarem traços comuns mesmo tipo de
trabalho voluntário, lugar de moradia, origem étnica (são afrodescendentes), oriundos
das camadas populares -, não impedem estes indivíduos de marcarem profundas
descontinuidades quanto às visões de mundo que vão adotar e elaborar e que orientará o
tipo de ensino de música que realizarão. Essas distinções em suas formulações a cerca
dos sentidos de suas ações parecem profundamente influenciadas pelos traços
biográficos que os distinguem: primeiro, a distinção geracional e segundo a filiação
religiosa.
Assim, os sentidos do que é música também se diferenciarão entre eles. Os
significados sociais do ensino da música, da função da música, da construção da
identidade de músico, do que é boa música, dos trânsitos sociais que a música pode ou
não promover na hierarquia social, aparecem a partir de duas perspectivas bastante
diferenciadas.
Meu interesse é ressaltar que essa rede social que se desenvolveu para a
promoção da atividade musical na Baixada Flumimense não pode ser pensada enquanto
algo que forme um grupo social específico – os indivíduos que se dedicam a esse tipo de
“trabalho social” podem possuir ideologias bastante diferentes e até opostas entre si. A
“clientela” – os jovens locais – embora e de uma certa maneira, possam ter em comum o
165
mesmo campo de possibilidades, podem sofrer influências de visões diversas. Embora,
repito, não possamos identificar um grupo, no sentido tradicional, com limites rígidos,
as conexões que existem entre esses indivíduos, não só por conta da natureza do
trabalho que desenvolvem numa região específica, mas acima de tudo pelo fato de que
estão trabalhando com a mesma “clientela” e de que existem pessoas que funcionam
como elos, comunicando-os e integrando-os, mesmo que de maneira indireta.
Não podemos nos esquecer que por mais que a Baixada Fluminense seja vista a
partir dos estereótipos que a associam ao “atraso”, ao “arcaico”, ao “passado”, que nos
remete a um tipo de sociedade com menor grau de diferenciação, e que os estilos de
vida de seus moradores sejam muitas vezes percebidos através da idéia de que estes
vivem numa espécie de “gueto”, estamos no âmbito das sociedades complexas
moderno-contemporâneas, que segundo Velho (1999:38):
São constituídas e caracterizam-s por um intenso processo de interação entre
grupos e segmentos diferenciados. A própria natureza da complexidade moderna
está indissoluvelmente associada ao mercado internacional cada vez mais
onipresente, a uma permanente troca cultural através de migrações, viagens,
encontros internacionais de todo o tipo, além do fenômeno da cultura e
comunicação de massas.
É dessa maneira, que procuramos apreender a população pesquisada o
desenvolvimento de suas representações, visões de mundo e trajetória social, bem
como a construção de suas subjetividades e carreiras, a partir da noção de
complexidade, segundo a qual:
166
Os indivíduos modernos nascem e vivem dentro de culturas e tradições
particulares, como seus antepassados de todas as épocas e áreas geográficas. Mas,
de um modo inédito, estão expostos, são afetados e vivenciam sistemas de valores
diferenciados e heterogêneos. (Velho, 1999:39)
Mas insisto em sublinhar o que guardam em comum e é o objeto dessa tese – um
alto grau de commitment
221
para com esse tipo de ação, que faz com que disponham de
seu tempo, e muitas vezes de seus parcos recursos financeiros, para compartilhar os
frutos da sua “vocação” o conhecimento e o gosto musical, acreditando assim que
contribuem para um melhor processo de socialização desses jovens junto às suas
comunidades e talvez até mais importante, a ampliação dos seus campos de
possibilidade, favorecendo a possibilidade de novos projetos e de novas trajetórias
sociais.
Alguns autores contemporâneos tem observado o fenômeno social chamado de
associativismo a partir da idéia de dádiva desenvolvida originalmente por Marcel Mauss
(2003),
222
que também podemos localizar no trabalho de Malinowski (1976),
223
com
seus desdobramentos na obra de Levi-Strauss (1967)
224
e Marshall Sahlins (1976). Em
Mauss (2003), temos uma “teoria geral da obrigação”, que leva “à circulação obrigatória
das riquezas, tributos e dádivas”, num circuito que se forma a partir da “instituição da
prestação total”: a “obrigação de dar, de receber e de retribuir”.
225
221
Becker, 1963 e Hughes, 1971.
222
O texto original, “Ensaio sobre a dádiva”, é de 1925.
223
Em “Os Argonautas do Pacífico Ocidental”, publicado em 1922.
224
Em “As estruturas elementares do parentesco”.
225
Mauss, 2003: 200.
167
O desejo de “ajudar” a desconhecidos é interpretado a partir das idéias de
reciprocidade, de obrigação e de gratuidade por autores como Jacques T. Godbout
(1999) e Alain Caillé (2002), que realizam uma “sociologia do fenômeno
associativo”:
226
Em todos os quadrantes da terra se assiste a um desenvolvimento simplesmente
espetacular do setor terciário, do voluntariado (do volunteering, como dizem os
americanos) e do engajamento associativo. No mundo da pobreza, porque o Estado
e o mercado, insuficiente desenvolvidos e estruturados, estão longe de poder
garantir a sobrevivência material da totalidade da população e porque os cidadãos
sentem então a necessidade de “se virar” recorrendo a todos os instrumentos do
“informal”. no mundo da riqueza, é muitas vezes o próprio
superdesenvolvimento do mercado e do Estado que acaba criando novos problemas
e necessidades novas aos quais não são capazes ou não mais capazes de responder.
Além das solidariedades tradicionais de familiar, deve-se, portanto, criar
solidariedades novas que se exprimem através das cooperativas sociais, das
associações e do conjunto das atividades coletivas com fins não lucrativos (non
profit). Em todos esses exemplos, quer se trate de um tipo tradicionalista ou
moderno, é claro que o engajamento associativo e voluntário implica que a pessoa
uma parcela de seu tempo e se empenhe pessoalmente em alguma tarefa. Claro,
em outros termos, que ele deve funcionar em primeiro lugar no registro do dom.
(Caillé, 2002:141)
Godbout (1999) discute a aplicação do conceito aos tempos modernos. Sua
análise contempla, por exemplo, o que classificou como dois modelos diferentes de
associativismo: os organismos que tem como base a beneficência (serviços sem
reciprocidade) e grupos de auto-ajuda (baseados na reciporicidade) como os Alcoólicos
226
Caillé, 2002:148.
168
Anônimos. Preocupado com a complexidade, Caillé propõe que a “distinção entre três
sistemas de dons”: “entre rivais, pares e contemporâneos, entre as gerações, e entre os
homens e as potências espirituais superiores”.
227
Para o autor,
[...] mesmo o Estado, o mercado e a ciência, embora governados por um princípio
de impessoalidade, podem funcionar apoiando-se sobre a socialidade primária, o
dom e o simbolismo onde vão haurir suas reservas de sentido e de motivação.
228
O próprio Mauss (2003), em seu ensaio inaugural estendia seu modelo que
emergiu da observação de sociedades tradicionais à sua própria:
Por um lado, vê-se despontar e entrar nos fatos a moral profissional e o direito
corporativo. Essas caixas de compensação, essas sociedades mútuas que os grupos
industriais formam em favor dessa ou daquela obra corporativa, não incorrem em
nenhum vício, aos olhos de uma moral pura, exceto pelo fato de sua gestão ser
puramente patronal. Ademais, são grupos que agem: o Estado, as comunas, os
estabelecimentos públicos de assistência, as caixas de aposentadoria, de poupança,
as cooperativas, o patronato, os assalariados: todos estão associados, por exemplo
na legislação social da Alemanha, da Alsácia-Lorena; e amanhã, na previdência
social francesa, todos o estarão igualmente. Voltamos portanto a uma moral de
grupos.
Por outro lado, trata-se de indivíduos dos quais o Estado e seus subgrupos querem
cuidar. A sociedade quer reencontrar a célula social. Ela procura, cerca o indivíduo,
num curioso estado de espírito, no qual se misturam o sentimento dos direitos que
ele possui e outros sentimentos mais puros de caridade, de “serviço social”, de
solidariedade. Os temas da dádiva, da liberdade e da obrigação na dádiva, da
227
Caillé, 2000: 308.
228
Ibid.: 311.
169
liberalidade e do interesse que em dar, reaparecem entre nós, como um motivo
dominante há muito esquecido. (Mauss, 2003: 297-8)
Será que podemos analisar o tipo de trabalho desenvolvido por Irmã Mercês e os
membros da ONG Flor de Bel, a partir das categorias propostas por Mauss, descritas
acima? Será que o tipo de commitment e “responsabilidade” que apresentam quanto à
trajetória dos jovens de sua região estão baseados nos princípios segundos os quais:
a dádiva é tão moderna e contemporânea quanto característica das sociedades
primitivas; que ela não se refere unicamente a momentos isolados e descontínuos
da existência social, mas a sua totalidade. Ainda hoje, nada pode se iniciar ou
empreender, crescer e funcionar se não for alimentado pela dádiva. (Godbout,
1999:20)
Segundo as recentes propostas (Godbout, 1999 e Caillé, 2002), menos que
atividades caritativas, esse tipo de ação social, ou como o universo social pesquisado
identifica, esse tipo de “trabalho social”, deve ser pensado como um exercício do/no
campo político. Campo esse não restrito às instituições políticas tradicionais (como os
políticos), mas algo constitutivo da vida social e cotidiana, a que todos estamos
vinculados:
[...] gostaríamos de sugerir aqui que dom, associação e política são realidades
indissociáveis que não se podem compreender plenamente a não ser quando
interpenetradas uma pela outra. (Caillé, 2002: 142).
[...] o paradigma do dom e do simbolismo é igualmente um paradigma do político.
O dom é a forma que a política reveste na microssociedade. O político é aquilo que
permite a generalização do dom na macrossociedade. Como se pode ver, o dom não
170
tem nada a ver, em primeira instância, com a caridade, mas com a administração do
antagonismo”. (Ibid.: 147).
4.2 Irmã Mercês – dádiva e amor cristão
Se a pessoa estiver doente, é capaz até de sarar, de ficar
bom, se ouvir algo gostoso, suave. Aquela harmonia...
isso é bom. Qualquer música bonita, que fale ao seu
coração.
Irmã Mercês foi a primeira pessoa que Denise quis que eu conhecesse.
Nunca cansou de insistir na importância da velha senhora para a iniciação musical dos
moradores do Corumbá, bairro de Nova Iguaçu.
Nascida em 1932, na pequena cidade mineira de Tebas, filha de
lavradores, Irmã Mercês, como é chamada pelos vizinhos, chegou à Baixada
Fluminense aos 14 anos de idade. Tinha estudado até a segunda série primária.
229
Veio
com os pais, que se instalaram na localidade conhecida como Corumbá, pertencente ao
município de Nova Iguaçu. E é no mesmo local, que Irmã Mercês se casou e reside até
hoje, dando aulas de música para crianças 52 anos. É uma senhora negra, de aspecto
tranqüilo, olhos vivos e fala mansa. Acredita, que pela sua casa tenham passado, na
condição de alunas, “umas trezentas crianças”.
A área onde reside era utilizada para chácaras de laranjais até meados
do século passado. Guarda ainda um certo aspecto rural. Existem extensões de mata que
229
Hoje, segundo ano do ensino fundamental.
171
se limitam com os grandes terrenos de terra batida, tomados por árvores frutíferas e
flores. As casas são modestas, porém amplas. Em sua maioria de tijolo e laje de
cimento, com dois quartos, além da sala, da cozinha e do banheiro. Nos quintais, é
possível ver as roupas quarando, ou mesmo sendo colocadas para secar em grandes
arames ou cordas. Existe calçamento em quase todas as ruas, mas os ônibus passam
apenas numa via principal. também água encanada. O sistema de esgoto é precário,
pode-se ver pontos de valas negras em vários lugares.
Dois anos após a mudança para o Estado do Rio de Janeiro, por
decisão da mãe, a menina começou a ter as primeiras aulas de música. Dava o primeiro
passo então em direção à carreira de “professora de música”.
230
O professor, residente
em Engenho de Dentro (bairro da cidade do Rio de Janeiro), deslocava-se até a casa de
Irmã Mercês para lhe dar as lições:
Aqui não tinha nada. Quando o professor vinha me dar as aulas, não tinha nem
estrada. O que tinham eram trilhas. E laranja. Nem água gelada tinha para fazer um
suco para ele.
A mãe, evangélica e semi-analfabeta, contratou o professor para que
os filhos (na época, eram quatro, os que residiam com ela) aprendessem a tocar algum
instrumento, para se apresentarem junto à banda da Igreja Assembléia de Deus, que
freqüentavam, e a qual até hoje, Irmã Mercês é fiel. Aparece nesse momento de sua
trajetória social um forte elemento, comum a outras biografias de adeptos do
protestantismo: o status social diferenciado adquirido a partir do domínio das técnicas
da música, garantindo uma posição social privilegiada na hierarquia da igreja.
230
Uso aqui a terminologia usada pelo grupo.
172
Em pesquisa na Baixada Fluminense, ao etnografar um culto da igreja
batista, Fernandes (1992) destaca os eventos musicais como parte importante da
cerimônia religiosa. Foram cantadas, ao todo, cinco músicas “de louvor”:
Muita música para louvar a Deus... e não estão aqui todas a apresentações que
aconteceram nessa noite. “Nós, batistas, somos muitos alegres”, dizem eles. Os
cultos, de um modo geral, possuem a estrutura deste que, sumariamente,
descrevemos: a Palavra é lida, interpretada na pregação, cantada nos hinos e
corinhos. Ela é texto a ser aprendido, música que alegra, manual para a
ação.(Fernandes, 1992:81-2)
Vemos que esse fenômeno não é apenas brasileiro. A importância da
música “na igreja”, e da igreja para a música, é demonstrada por Ruth Finnegan (1989)
em seu trabalho sobre as práticas musicais desenvolvidas numa cidade inglesa. Ela
destaca um capítulo (The churches and music) para analisar a importância das igrejas
como espaços de produção musical local:
In the past the church was one major patron and facilitator of music not just the
church in general bur the series of churches up and down the country, providing
the locale and impetus for musical activity. Something of this role is still played
by local churches in the 1980s. It is true that they are not sole context for music
and attract only certain section of the population, but this can still mean a sizable
number of people. Judging from the local evidence to be presented in this
chapter, the churches are still major centers for the training and organization of
music-making, with effects spread widely into the community. (Finnegan, 1989:
207).
173
Assim, socializada num ambiente em que os investimentos em
educação e prática musical o valorizados, a família continuou mantendo os estudos
musicais de Irmã Mercês. Após um ano de aulas, Irmã Mercês trocou de professor.
Passou a ir até Padre Miguel (também no município do Rio) para ter aulas particulares,
por um ano. Mas por que tão longe? “Porque esse professor era ótimo, ele era
excelente.”
Para custear as aulas, e toda a despesa da família, os pais trabalhavam
na própria localidade onde moravam como agricultores, e realizavam pequenos
trabalhos para os vizinhos.
Quando completou 18 anos de idade, passou a dar aulas, ensinando o
que havia aprendido com os dois professores:
Eu reunia todo mundo na casa da minha mãe. Era uma casa de palha. E ensinava
música. Era uma casa de estuque, com cobertura de palha. Aqui era tudo mato,
tinha até peixe por aqui. Peixe, cobra, jacaré. Tinha uma lagoazinha por ali. Quem
tinha casa de telha... era muito pouco. Com o tempo é que foi melhorando. A gente
tinha um rádio de pilha, meu irmão foi quem deu. Meu irmão era muito cuidadoso
com a minha mãe. Ele era como um pai pra gente, o mais velho. Minha mãe
mandava a gente buscar água, era longe, era uma mina-nascente. Água e lenha, a
gente tinha que ir buscar. Tinha uma estaçãozinha ali, e a gente passava com
aqueles feixes de lenha. E ai de nós, se a gente não passasse. A gente ia longe,
buscar água e lenha.
Solteira (ela se casaria 10 anos depois), foi como auxiliar de regente
do coral da igreja do seu bairro que se iniciou na profissão. Logo após sua entrada, o
174
maestro principal veio a falecer e ela se ocupou dessa posição por um bom tempo,
garantindo assim seu processo de ascensão no universo social da igreja.
Eu comecei a ensinar para as crianças porque eu gostava muito delas. E também
porque tinha muita criança aqui. Tinha tantos sobrinhos. da nossa família, dava
um coral. Cada um [dos irmãos] tinha muitos filhos, eram 13, 14 filhos. Olha, só na
minha família, tinha umas 50 crianças. Aí, eu comecei a ensinar, comecei a pegar
gosto.
No início, as aulas às crianças aconteciam em paralelo com sua
atividade de dona-de-casa. Segundo conta, os parentes se reuniram e decidiram pagá-la
pelas aulas, para que cuidasse das crianças e não trabalhasse “fora”. depois de uma
década é que voltou a trabalhar longe de casa, numa fábrica de papelão em Nova
Iguaçu, durante cinco anos, e mesmo assim, ainda manteve as aulas acontecendo duas
vezes por semana em sua residência. Afastou-se de novo do trabalho “fora”, para não
voltar mais.
Além dos filhos dos parentes, e mais tarde, de seus três filhos, os
alunos eram moradores do lugar, e vinham, às vezes, dos municípios de Nilópolis, de
Belford Roxo, ou mesmo da região central de Nova Iguaçu. Ela mantinha duas turmas
(uma de manhã, e outra à tarde), de 15 alunos cada, com encontros duas vezes na
semana. Como a maioria dos seus alunos sempre foi muito pobre, os instrumentos que
usavam eram os da banda da Igreja Evangélica Assembléia de Deus do bairro de Santa
Rita, próxima à sua casa. Mas seus alunos não eram apenas as crianças da religião
protestante. IrMercês diz que recebia crianças sem distinção de credo religioso. “Eu
ensinava sem discriminação. Eu ensinava para qualquer pessoa. O direito é para todos”.
175
4.2.1 O método
Os alunos deviam levar como material escolar: um caderno, uma
caneta e um lápis. Irmã Mercês não usava quadro negro, ela mesma passava as lições de
teoria musical nos cadernos. Na aula seguinte, “tomava” de cada aluno, a lição que
havia sido dada na aula anterior. Após seis meses de estudos de teoria musical, é que o
aluno passaria a manusear um instrumento: “Depois de um ano, ele, o aluno, estava
tocando muito. Saia daqui para fazer outros cursos”.
No seu repertório, além das músicas da Igreja, entram canções
populares. Ela demonstra certa flexibilidade junto aos alunos, quanto ao gosto. Segundo
ela, prefere trabalhar com músicas que as crianças saibam e que queiram aprender a
tocar. A criança indica a música que gostaria de aprender, e ela tenta montar o arranjo
para ensinar. Podemos que agindo assim, ela não contribui para a formação de uma
audiência exclusivamente evangélica. Mas sozinha, diz que não ouve rádio ou mesmo
música mecânica. Gosta mesmo é de cantar os hinos de sua religião.
No decorrer da minha pesquisa, muitos entrevistados apontaram a
religião protestante como grande incentivadora do crescimento da música. Perguntei à
Irmã Mercês sua opinião: “Sabe o que é, é o incentivo da própria comunidade. Eles
incentivam: ‘vamos aprender, isso é importante.’ A nossa orquestra na igreja é linda.”
As orquestras seriam assim motivo de orgulho e honra. “Ter uma
orquestra bonita”, “uma orquestra que toque bem” aparece como valor neste tipo de
ideologia religiosa. E aqueles membros que conseguirem se sobressair na sua
performance musical se tornam portadores de uma identidade social especial, detentores
de maior prestígio social.
Durante muito tempo, não cobrou mensalidade. Recebia pequenas
contribuições dos pais que se dispusessem a fazê-las e usava parte desse dinheiro para
176
comprar o material das crianças que não tinham condições para tal. Talvez possamos
pensar no conceito de Mauss de dádiva
231
para explicar seu apreço pelos alunos que não
poderiam pagar. Como detentora de uma “vocação”, dada por Deus, cabe-lhe repassar
os conhecimentos que gratuitamente recebeu por benção divina. Assim, também está
obrigada a doar esse conhecimento aqueles que não podem pagar por ele.
Os alunos evangélicos, no término do curso, passam por um evento
realizado na própria igreja, apresentando-se na banda para a comunidade:
Quando eles estão prontos, tem uma festividade. Eu fico com eles na frente, e
os pais ficam do lado, é tipo uma formatura. É uma coisa linda. Eles passam a ter
uma responsabilidade, quando entram para a banda da igreja. Eu os coloco lá,
bonzinhos mesmo, tocando bem, senão o maestro não aceita.
Assim, o circuito de dar, receber e retribuir se faz, também pela
“caridade” no sentido cristão, e pela “honra”, que ter “bons alunos” é motivo de
orgulho para a professora (em relação aos demais membros da igreja) e de toda a igreja
(em relação às demais congregações).
Eu quis saber sobre as diferenças entre os seus alunos do passado e os
atuais:
Existe uma diferença muito grande. Com as crianças de hoje, a gente tem que ter
muito cuidado. Até para chamar a atenção. Tem que ter até mais carinho. Sabe, não
são ‘aquelas crianças’. Você sente... Mas você não pode dizer isso para eles. Eles
não querem obedecer. Mas todos eles chegam lá. Depende de quem? Da gente, que
231
Mauss, 2003.
177
está lidando com eles. A gente sabe de tudo isso, mas procura se dedicar. É que
eles precisam de mais carinho a diferença é essa. Então a gente faz assim, o
máximo de amor e carinho. Se não tiver amor e carinho com eles, vai tudo de água
abaixo.
O “amor” que irmã Mercês diz sentir pela música, pelo ensino da
música, por seus alunos - pode ser apreendido a partir de sua vivência como cristã,
232
mas também interpretado a partir da noção de dádiva.
4.2.2 A família
Irmã Mercês acredita que a música possa colaborar para que crianças e jovens
tenham uma vida mais segura, longe do tráfico de drogas. Entretanto, afirma que o
fundamental nesses casos, é a família:
Se o jovem não tiver incentivo dos pais... Hoje em dia, tem que ter muito incentivo
dos pais. Assim o jovem consegue. Mas se deixar a vontade... não certo, não.
Nos meus filhos, eu bati, assim calma, com essa cara que voestá vendo. E eles,
hoje, são meus amigos. Mas hoje em dia, não pra fazer isso. Eu batia neles com
vara de goiaba.
Mas ela não considera a vizinhança “violenta”:
232
Jabor (2005: 68) em pesquisa sobre comunidades batistas das camadas médias da zona sul
carioca indica que para o grupo o “amor ao próximo” é mais difícil de se realizar dentro da
própria família, sendo, assim, “mais fácil”, “amar” (no sentido de praticar atos cristãos) aqueles
que não estão fazem parte do vínculo familiar.
178
Aqui dentro é difícil ter alguma coisa. De vez em quando aparece um morto pra
lá, outro morto pra cá. Gente que mexe no que é dos outros. Aí, vai rodar mesmo,
D. Justa vai atrás. Mas é difícil ter isso por aqui. Quase todos eles [alunos] que
passaram por aqui, seguiram a sica. Os que não seguiram, é porque não tinha
jeito mesmo.
Seus filhos seguiram, todos, a carreira iniciada pela mãe, juntamente com sua
religiosidade. São músicos profissionais do circuito evangélico: Ed Gomes, Enéas
Gomes e Zizi. Eles estudaram junto às turmas de Irmã Mercês. Ed começou a tocar com
oito anos e Enéas aos nove. Sobre sua única filha, nos conta:
Quando eu comecei a ensinar a ela, notei que ela começou a fracassar na escola. Aí,
ela parou um pouco. Depois, voltei a pegar ela. Ela me pediu uma flauta, isso
com 22 anos. Com muita dificuldade, eu dei uma flauta pra ela. Eu, mesmo sem
saber direito, ensinei a ela. Foi por causa do sax, eu ensinei pra ela a escala. Aí,
com esse pouco que eu ensinei, ela entrou na Villa Lobos, na do Rio, é formada em
canto.
Zizi recebeu o legado da mãe: é responsável pelo coral da Igreja e tem a sua
própria turma de alunos em casa. Seus alunos são os mais novos, com idades entre
quatro e cinco anos. Além da formação musical, Zizi é diplomada em Fonoaudiologia.
Os outros dois filhos também têm o terceiro grau completo. Ed é formado em Letras e
Enéas em Música (é professor universitário).
Do apoio inicial dado pelos pais, o marido também compartilhou:
179
Ele nunca reclamou de nada. Passava da hora de colocar a comida, e ninguém
reclamava de nada. Ninguém. Ficava aí, com vontade de almoçar, mas ninguém
reclamava de nada. Eu fui estudar sax na igreja, e levava às crianças. Ás vezes, eles
choravam, choravam. Mas eu venci. Foi difícil, mas venci. Na carreira que eu
corri... Mas eu consegui a vitória. Graças a Deus.
O tom triunfante do “eu venci” refere-se, sobretudo, ao “sucesso” na criação dos
filhos. Segundo ela, a família teve que fazer muitos sacrifícios até que suas crianças se
formassem:
Naquela época, a merenda dos nossos filhos era uma bananada Hoje, as crianças
querem hambúrguer, ‘refri’. Mas os nossos filhos, levavam uma bananada, um
biscoitinho quando tinha. E nunca reclamaram de nada. E estamos aí, venceram, e
chegaram ao final da carreira. Eu tenho muito orgulho deles. O mais velho, então...
Porque o mais velho é o primeiro.
4.2.3 Aluna, de novo...
Atualmente, aos 72 anos de idade, recebendo uma aposentadoria do INSS, Irmã
Mercês não rege mais o coral da Igreja. Decidiu voltar a estudar. É aluna da Escola
Estadual de Música Villa-Lobos, no núcleo de Paracambi. Gasta, em média quatro horas
até chegar na escola – trajeto que faz de ônibus:
Eu saio de casa às 11 horas. Para chegar às 15 horas. Olha, tudo é com
dificuldade. Se você não encarar essas coisas, você não consegue nada. Meus filhos
me apóiam, meu esposo. Eu decidi entrar na escola depois de tanto tempo, porque...
eu já sou professora há muito tempo, mas eu não tinha um registro. E agora, eu vou
180
ter um registro, graças a Deus. Agora, eu vou ter um certificado, vai ser uma
maravilha. A força de vontade, a força de vontade vale muito. Meus filhos não
deram contra, nem meu esposo, então, pé na rua...
A responsável pela sua entrada na Villa Lobos foi uma sobrinha, ex-aluna sua,
que a inscreveu sem que Irmã Mercês soubesse. Está matriculada no último semestre do
curso “básico”, que freqüenta junto com colegas com idade entre os 20 e 30 anos.
Segundo ela, não existem turmas especiais para pessoas mais velhas, tal como acontece
na Villa-Lobos do centro do Rio ou na Escola de Música de Nilópolis: “E eu prefiro
assim. E eu gosto muito, gosto sim”. E cai na gargalhada. Perguntei se ela sente
dificuldades para estudar:
Tem umas coisas tão difíceis. Mas na minha mente, eu sabia. Quem sabe
música, não acha tão difícil. E tem os amigos da gente que ajudam na hora. Estudar
é uma coisa muito boa. Saber um pouquinho mais... nunca é demais.
Eu pergunto: “a senhora aprendeu música muito tempo atrás. E agora está
aprendendo de novo. Tem muita diferença entre o ensino daquela época e o de hoje em
dia?”
Ela me respondeu simplesmente que “não, que antigamente não se exigia
muito. E hoje em dia, está mais avançado.”Diz que gosta muito dos professores da
escola de Paracambi, que são excelentes. Que gosta muito dos exercícios de leitura
métrica e de solfejo. Além disso, faz aulas de teclados, que é seu instrumento preferido:
181
Música é uma coisa muito boa pra gente. Toda senhora de idade tinha que estudar
música. Elas não iam ficar tão velhas. A música traz uma coisa boa, vem aquela
melodia suave, que sopra lá dentro do coração
As aulas, na sua casa, acontecem atualmente às segundas-feiras, no
horário da noite, para alunos mais velhos, e na sexta-feira pela manhã, para crianças.
Cobra R$ 35,00 por mês, “daqueles alunos que podem pagar”. Ela diz que está “bem
mais devagar”, e que por problemas de saúde, trabalha com turmas pequenas de, no
máximo, quatro alunos. Perguntei quando ela pretende parar de ensinar:
Não! quando eu... subir. Eu não quero parar nunca. Eu nunca parei. Desde o
primeiro dia que eu comecei a dar aula. Eu não posso parar. Se eu parar, eu vou
sentir muita falta. Eu tenho aquele prazer de saber que o aluno está chegando.
Quando eles chegam, está tudo preparado. Não tem nada pra preparar na hora,
quando você chega aqui, está tudo preparado. Eu tenho pra mim, que os meus
alunos são os meus filhos. Eles não são alunos.
Na varanda da sua casa, estão as cadeiras dos alunos e os pedestais
para partitura. Como a cinco décadas atrás.
182
4.3 Mauro “Rincon” – dádiva e cidadania
A música é um troço, que... acho que é igual a doidão:
um conhece o outro. Música é a mesma coisa. Você sai
e de repente para um cara do teu lado com um violão.
Aí, tu vê, e o cara fala, “toca aí”. Aí, você pega o violão
sem querer e toca também. Você toca algo que o cara
não conhece, e ele quer saber como é. Quando vê, você
acaba se envolvendo.
Há dois anos, em 2002, Mauro, baixista da banda Maria Preta, decidiu
desenvolver um tipo de “trabalho social”, no município em que mora, Belford Roxo.
Belford Roxo é considerada “uma filial da Jamaica”. Essa idéia corrente, aparece não só
nas falas do nosso entrevistado, mas é uma espécie de senso comum entre os jornalistas
especializados em música. Vejam abaixo a descrição de um morador do local, que
apareceu em importante revista de circulação nacional:
Parece jamaicano, fala como jamaicano, canta como jamaicano, mas não é um
jamaicano. O que é? Certamente, um jovem morador de Belford Roxo, cidade
espetada no meio da Baixada Fluminense que se tomou de amores por tudo o que
vem da Jamaica. Quem está na moda usa dread-locks - tranças que são a marca dos
negros seguidores do rastafari - e roupas que levem as cores verde, amarela e
vermelha, da bandeira jamaicana. Nas rodas de conversa, os mais informados
transformam em gíria palavras extraídas do rastafarianismo, a religião que saiu da
África para o Caribe. E a música preferida, obviamente, é o reggae: existem no
pequeno município nada menos que dez bandas. A mais famosa delas é o grupo
Cidade Negra, que saiu de para se transformar na principal referência do reggae
183
nacional.
233
A partir dessas idéias, de que Belford Roxo se parece com Kingstown,
enquanto um lugar que expressa pobreza nas casas pequenas e sem reboco, no mato que
cresce nas beiradas das ruas sem calçamento, nos esgotos que tingem de negro e que
correm entre pequenas vielas ou mesmo os que formam grandes valões, de que sua
população também guarda traços físicos, sociais e culturais em comum (a localidade
apresenta uma grande concentração de afrodescentes), durante os anos 90 a identidade
local juvenil foi sendo reelaborada, no sentido de uma reinterpretação daquilo que foi
identificado como traços comuns entre as duas populações. Foi dessa forma, que nasceu
a “Jamaica da Baixada”- os jovens locais passaram a adotar elementos do estilo de vida
rastafari jamaicano. Essa apropriação possibilitou aos jovens construírem uma
identidade nova, alternativa às cristalizações existentes que apontavam para as figuras
dos “justiceiros”, dos “bandidos” e do “trabalhador”.
Essa releitura, de símbolos da cultura rastafari em solo baixadense,
foi possível por conta de contatos que se estabeleceram entre músicos da Jamaica e
moradores-músicos da região. Não o contato cultural específico com a terra do
reggae, mas com uma cultura mais ampla, a caribenha.
Mauro Rincon foi uma das figuras responsáveis por essas trocas
culturais, que inicialmente se realizaram num circuito bastante reduzido, mas que com o
tempo se disseminaram e contribuíram para constituir um tipo de identidade juvenil
baixadense.
233
Extraído da revista Isto É, de 12/06/1996.
184
É preciso ressaltar que o fenômeno da disseminação e releitura do
estilo de vida rastafari não é exclusivo da Baixada Fluminense, no caso brasileiro. São
Luís, capital do estado do Maranhão é reconhecida também por ser fortemente
influenciada por esse estilo. Outra cidade, que apresenta também uma juventude que
adota elementos do estilo rastafari é Salvador. Cunha (1991) desenvolveu pesquisa
sobre o estilo rasta na capital na capital baiana – a autora aponta para a heterogeneidade
de apropriações que são feitas a partir das idéias do rastafarianismo, em suas
imbricações entre lazer, política e religião:
234
Povoando as ruas da cidade e se exibindo através dos cabelos, roupas e gestos, se
fazem presente os rastas. São inúmeros jovens negros, em sua maioria homens,
com seus cabelos dreads, reinterpretando e adotando de maneiras diferenciadas o
imaginário rastafari no cotidiano de suas vidas. São símbolos de afirmação de
etnicidade, digos e sinais de apropriação e reinvenção das idéias rastafari partir
de um novo contexto. Estes serão expressos fundamentalmente através de
234
O “Capítulo I O movimento do povo de Jah” (Cunha, 19991: 10-50) traz um histórico do
rastafarianismo, que “se constitui num movimento político-religioso que expressa sua visão de
mundo e estilo de vida a partir de uma leitura e interpretação ‘étnica’ da bíblia. Sobretudo do
Velho Testamento. Num universo polarizado, - povos que se opõem os negros por sua
descendência mítica e histórica seriam os verdadeiros herdeiros do Sião, a ‘terra prometida’, a
Etiópia ‘mãe civilizatória de toda a humanidade’. Dentro desta concepção, seus membros se
acreditam verdadeiros Israelitas, vítimas da perseguição e da opressão. E através da
orientação de Rás Tafari, o imperador etíope Haile Selassie, é que seriam conduzidos de volta
à África. O coroamento de Selassie teria sido a sinalização para o cumprimento de um novo
tempo e da revelação, na qual uma consciência política e racial uniria todos os negros na África
e na diáspora possibilitando não a redenção mas profundas alterações nos sistemas
políticos mundiais. Tal qual havia profetizado Garvey nas suas visões do paraíso e da
redenção. O retorno à África concretizaria a libertação do julgo da Babilônia termo usado
como referência aos instrumentos de dominação através do qual o ‘branco’ impede a
consciência dos povos negros dominados”. (Ibid: 25).
185
referências estéticas, novos estilos de vida urbanos e visões de mundo. (Cunha,
1991: 51).
Atualmente, ele é um dos idealizadores de um “projeto social”,
desenvolvido na ONG que fundou junto com os outros integrantes da banda de música
da qual participa, a Maria Preta. Na ONG Flor de Bel existem aulas de capoeira, de
cacuriá,
235
de futebol de salão, e claro, de música. Mauro, além de presidente da
organização não-governamental Flor de Bel, ensina jovens a tocar instrumentos
musicais. Nascido e criado na cidade que durante anos teve a fama de “uma das mais
violentas do mundo”,
236
o rapaz negro que tenho a minha frente não aparenta os
declarados 42 anos de idade (ele nasceu no ano de 1962) e nem ser avô de duas
crianças. Magro, usando óculos de grau e dreadlocks
237
ainda curtos, ele têm duas
filhas, é morador de Piam, bairro famoso como “celeiro de reggae”. Cursou até o
235
Dança típica do estado do Pará.
236
Ver capítulo 1.
237
Tipo de penteado, muito comum entre os amantes da música reggae. Segundo Cunha , em
sua nota 19 (1991:34): ‘Dreadfull people’ era a forma que setores das classes dominantes se
referiam aos negros barbados e com longas traças que começam a aparece a partir dos anos
40. mais tarde essa passou a ser uma forma de auto-identificação dos próprios rastas, ao
referir-se aos cabelos”. E a autora continua: “São assim denominadas as grandes tranças
(quase sempre disformes) que têm servido para caracterizar esteticamente um adepto, ou
mesmo um simpatizante do rastafarianismo. Seu uso está fundamentado na bíblia (Levítico,
19:27; 2:5; Números, 6:5). Os dreadlocks são concebidos como um símbolo de dignidade e
negritude. Para os rastas os cabelos, tal como a cabeleira de Sansão, são condutores da força
e da ‘energia divina’, que emana de Jah. Esta energia deve ser mantida dentro de cada homem
sem que qualquer processo artificial interrompa ou modifique seu estado original. Os cabelos
em forma de locks representam as jubas de um leão, animal que simboliza a resistência
africana à submissão. O leão está presente nas bandeiras, nas letras das músicas, nos bottons
e nas camisetas, fazendo alusão a Jah Rastafari, o ‘leão conquistador da Tribo de Judá’,
segundo a profecia presente no apocalipse de São João. Entretanto, o uso dos dreadlocks não
pode ser utilizado como um critério de identificação de um adepto do movimento.” (Cunha,
1991: 34).
186
segundo ano do ensino médio, e durante boa parte de sua vida adulta, sua profissão
principal foi a de lapidário de diamantes. Ele abandonou a escola, porque já trabalhando
como lapidário no centro do Rio de Janeiro, não conseguia chegar em Belford Roxo,
onde morava e estudava a tempo. O trem, meio de transporte até hoje muito utilizado
por quem vem da capital para a Baixada, só chegava às 20 horas, enquanto sua aula já
havia começado desde as 19 horas.
4.3.1 Família
Mauro recebeu fortes influencias familiares quanto à música. Assim,
sua trajetória no mundo da música inicia-se cedo: seu pai tocava violão. Era comum,
nas festas de finais de ano, que seus parentes levassem instrumentos e improvisassem
rodas de samba e de partido alto nos quintais. Sua infância é marcada pelos sons
oriundos de uma “radiovitrola”: o soul norte-americano da década de 1970, a música
brasileira de Clara Nunes e Martinho da Vila. Um tio mangueirense,
238
ensinou-lhe a
tocar pandeiro, quando era criança. A influência familiar, dessa forma, fez-se influente
nos seus primeiros anos de vida, contribuindo assim para um tipo de formação de
gosto.
239
Além dos parentes, os vizinhos tocando violão nas ruas, também o
inspiraram:
A musicalidade aqui, em Belford Roxo, é a flor da pele. Naquele pedacinho que
existe ali, na beira do rio, a música estava no ar, estava sempre ali. O Cirinho
tocava violão. Eu fui numa excursão do Seu Mangagá. Chegamos lá, tava o Da
238
Que é participante da Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira.
239
Conf. Gans, 1974.
187
Gama, que hoje é do Cidade Negra, o Vilson, uma galera. Eles começaram a tocar
violão. Então, de repente, uma menina começou a tocar também, aquela música,
“numa tarde tão linda de sol, ela me apareceu”. Eu falei, “caraca mané, agora eu
cismei! Vou tocar violão”. Cheguei em casa e peguei o violão do meu pai.
Como vimos no relato acima, as relações de vizinhança também
tiveram um peso importante na carreira de Mauro. A competência musical indicava um
tipo de status social, que marcava, pelo menos para o grupo da vizinhança imediata,
positivamente o indivíduo. Ficar nas calçadas das casas, à tardinha, empunhando um
violão e executando canções populares trazia prestígio social, principalmente entre os
mais jovens. Era bastante comum na região, não de Belford Roxo, mas de toda
Baixada Fluminense, um tipo de sociabilidade que se desenvolveu durante meados da
década de 1980, cuja base era o gosto pela música. Grupos de adolescentes, que se
reuniam ao cair da noite, para tocar e cantar suas músicas prediletas. Normalmente,
prevaleciam nas performances musicais instrumentais as figuras masculinas, que
ganhavam destaque tanto entre os demais homens do grupo quanto junto às moças. Para
elas, ter um namorado que tocasse violão (mesmo que não houvesse nenhum tipo de
virtuosismo em sua performance, apenas o dedilhar das notas mais fáceis de uma
canção conhecida que freqüentasse as paradas dos rádios) garantia um certo tipo de
distinção social.
4.3.2 Diamantes, rock e samba
Mas se podemos localizar os primeiros passos que indicariam a
carreira de músico para Mauro na primeira infância, e sua continuação na adolescência,
sua trajetória social foi mais complexa. Durante muitos anos, teve que desenvolver
188
outras atividades profissionais, mas isso não fez com que abandonasse seu objetivo
primeiro. Pelo contrário. O gosto e a prática da música sempre estiveram presentes. O
que Mauro fez foi tentar arrumar espaços, dentro da sua trajetória, para que a música se
mantivesse presente, não no seu aspecto fruitivo, mas também numa constante busca
por conhecimento e profissionalização.
Logo após o abandono da escola, um primo o convidou para trabalhar
na cidade de Cuiabá. Ele foi morar no bairro Parque Universitário, próximo a
Universidade Federal do Mato Grosso. Com o tempo, por conta das afinidades trazidas
pela música, conheceu universitários que o incentivavam a ingressar na instituição.
Aparece aí, um dado fundamental para a compreensão da biografia de Mauro. Entrar
em contato com jovens acadêmicos significa participar de outras províncias de
significado, diferentes daquelas da sua experiência cotidiana de morador de Belford
Roxo. Indica uma capacidade de trânsito entre os não tão facilmente visíveis, porém
eficazes, limites para a interação social que existem entre os diversos mundos que
compõem a nossa existência em sociedade. Mauro é então um jovem negro,
subempregado, que se relaciona com jovens das camadas médias e altas por conta da
relação que estes estabelecem com a música.
Mas na época, 1984, “estourou” o garimpo de ouro e pedras preciosas
da região da Juína, cidade do mesmo estado, para onde Mauro se mudou e morou por
cinco anos. O sonho de cursar a faculdade foi abandonado e ele foi trabalhar na
lapidação. Lá, novamente, estabeleceu laços sociais, construindo uma nova rede de
relações de sociabilidade, a partir da música:
O Aurélio e o Divino decidiram comprar uma bateria. Tiveram que escrever para
uma revistinha [para comprar]. Porque lá em Juína, não tinha nada. Era uma cidade
em que tudo era de madeira, as casas todas de madeira. Os colonizadores eram
189
paranaenses. Mas quando começou o garimpo tinha gente de tudo quanto é canto,
tinha muito judeu. A gente montou uma banda de música lá. Eu, Aurélio, Divino e
Ronaldo. Chamava-se Sociedade Anônima. E nos finais de semana, a gente
montava um esquema atrás da lapidação e da ourivesaria.Botava os instrumentos
lá, e ficava cheio. Lotava. Tinha um cara que era dono do supermercado, e ele
gostava de música, então ele sentava na bateria e colocava logo duas caixas de
cerveja. A gente não deixava ele sair da bateria. Era uma zoeira. pintou um
festival de música da Universidade Federal do Mato Grosso, sairiam representantes
de várias cidades. Nós ficamos em segundo lugar, da nossa cidade. Com uma
música chamada ‘Nem ligo’. Fomos participar do festival, lá na Chapada dos
Guimarães. E foi muito maneiro. A gente nunca tinha visto um palco daquele
tamanho. Naquela época, o Cidade Negra
240
estava estourando com aquela música,
“ei, estamos aí, pro que der e vier”..., então, eu lembro, eu estava lá, no meio do
festival, enquanto os caras estavam montando os equipamentos e ouvindo essa
música. Nós tocamos, e fomos logo eliminados, nessa época tocava muita música
sertaneja, Chitãozinho e Xororó
241
estavam explodindo no Brasil. tinha cara
bonitinho, cantando música sertaneja, de chapelão. Ai, nós fomos logos eliminados.
Mauro e seus amigos de banda não tinham qualquer tipo de educação
musical formal. Na marra”, eles foram aprendendo aconhecer os instrumentos: “A
gente comprou a bateria. Mas a gente não sabia nem montar a bateria. Levamos dois
dias pra entender que o bumbo ficava aqui, que a caixa ficava ali.”.
Característica marcante no mundo musical, o “improviso”, aqui
também aparece (como aparecerá em outros momentos) como uma categoria
240
Banda que parte dos integrantes é oriunda de Belford Roxo.
241
Dupla de cantores sertanejos, bastante populares.
190
importante. Ter habilidade para “improvisar” na vida cotidiana é uma qualidade
fundamental dentro do estilo de vida desenvolvido pelas camadas populares.
Assim, o primeiro contra-baixo da banda foi improvisado a partir de
um violão velho. A Sociedade Anômina era uma banda dedicada ao estilo rock, mas
seus componentes não se limitavam a esse tipo de sonoridade. A prefeitura da Juína
havia decidido organizar pela primeira vez o carnaval da cidade. Os conhecidos
arregimentaram Mauro para auxiliar na formação da festa. Durante a infância e a
adolescência, ele tinha freqüentado a Quadra do Embalo, no bairro de Areia Branca,
242
onde aprendeu a tocar samba. Ao não se dedicar exclusivamente a um estilo musical,
Mauro nos informa de um traço importante das taste cultures
243
a diversidade e a
flexibilidade com que operam. Não estando preso a dogmas e operando com um sistema
de classificação musical diferente daquele ensinado em conservatórios, que implica no
estabelecimento de categorias rígidas quanto ao valor estético dos diferentes estilos
musicais, o indivíduo abre espaço para um tipo de subjetividade que hierarquiza o seu
gosto musical de maneira a valorizar músicas populares, sem a necessidade de
categorizar excessivamente os diferentes estilos.
Com seus conhecimentos de ritmista, elaborou uma lista de
instrumentos que foram providenciados pela prefeitura local. Ele montou um bloco:
Botei o Haroldo no surdão, que a gente chama de ‘primeira’. Coloquei meu primo
na ‘segunda’, que é um outro surdo. E botei uns caras, de uma cidade que tem lá,
que tem descendente de escravos, eu não lembro o nome, a tocar a ‘terceira’.
Eles tocavam com o sotaque deles. A gente ensaiava todo dia. Alguém ficou com o
242
Bairro do município de Belford Roxo.
243
Conf. Gans, 1974.
191
repique, a caixa ficou dividida entre outras pessoas. A gente montou uma escola de
samba.
Arrumaram um caminhão, improvisaram mestre-sala e porta-bandeira
e passistas. A Bolsa de Diamantes
244
bancou as arquibancadas. A Unidos de Juína fez
seu primeiro desfile, com 150 componentes.
Além do carnaval memorável, sua experiência nos garimpos de ouro e
pedras preciosas, deu-lhe lembranças de muita malária, tiros de revólver e dinheiro.
Inicialmente, no garimpo, trabalhou nas balsas que eram usadas para retirar os
diamantes dos rios.
Quando eu cheguei, eu trabalhei na cozinha. Com uma semana, eu desci
[mergulhou]. Vesti aquela roupa, quando cheguei no meio do rio, no fundo, deu
uma tremedeira danada. Como eu era lapidador, o dono da balsa me colocava
para separar os diamantes, isso era uma mordomia. Mas no garimpo é uma vida de
faroeste. Todo mundo tinha revólver. Eu nunca tive. Mas tinha gente que tinha
dois, três. De manhã, tava todo mundo limpando arma. A vida no garimpo é muito
dura, chove demais, tem cobras imensas, aranhas.
4.3.3 Bob Marley e Calipso
Após quatro meses de extração de diamantes, Mauro decidiu voltar a
fazer apenas a lapidação das pedras em Juína, para um judeu chamado Moisés. Com o
tempo, montou seu próprio negócio, e segundo ele, ganhou muito dinheiro. Um dia
244
Comércio local de diamantes.
192
chegou um conhecido, vindo da capital da Guiana Inglesa: “cara, você tem que ir a
Georgetown, lá só tem negão, é muito maneiro.”
Mauro saiu de Cuiabá, foi até São Paulo, na embaixada da Guiana
Inglesa solicitar visto. Passou o Ano Novo no Rio de Janeiro. Durante o primeiro mês
do ano, foi de ônibus até Porto Velho. De lá, pegou um avião até Manaus. Conheceu
Manaus, e embarcou, de novo de ônibus, para Roraima. então, embarcou num vôo
para a Guiana Inglesa, onde morou por meses, com um amigo chamado de Negão, que
já conhecia o país:
Aquilo era um país novo pra gente. Tudo diferente. O volante do carro era do
outro lado. não tinha ônibus, van. Pra mim, tudo era novidade. Os caras,
rastafaris, com o cabelo arrastando no pé. A população de é indiana e negra. As
casas são lindas. O Cristo lá, é o maior negão, muito maneiro.
245
Tudo diferente.Lá
tinha muito ladrão. Mas a gente nunca era assaltado, confundiam a gente com os
locais. Com o tempo é que descobriram que a gente era brasileiro. E passavam por
nós, “hello, Brazil!”.
A experiência no país estrangeiro contribui significativamente para
diversificar ainda mais o gosto musical de Mauro.
246
Estava ouvindo, ao vivo, pela
primeira vez, os ritmos caribenhos, e realizando importantes trocas culturais com outros
músicos:
245
Refere-se a uma estátua de Jesus Cristo.
246
Conhecer vários estilos e ser versátil neles aparece como valor para vários músicos. Em
pesquisa com músicos-estudantes, Silva (2005:49) nos diz que: “Também se nota, por diversos
depoimentos que a versatilidade estilística, com um domínio de técnicas e conhecimentos
variados, tem sido profissionalmente vantajosa para certos músicos e passa a ser, para muitos
instrumentistas, um dos objetivos a alcançar durante o processo de formação universitária e ao
longo da carreira – uma vez que pode aumentar concretamente as oportunidades de trabalho).
193
Tinha um clube lá, que só ia negão de Mercedes. Mas a gente ia de calça jeans. Não
podia, mas a gente começava a falar português. Eles viam que não éramos de lá.
Então, a gente conseguia entrar. Tinha uma banda que tocava. Eu pedia para tocar
violão. E tocava bossa nova. A bossa nova tem uma linguagem muito particular,
qualquer um que é músico e escuta, se interessa. Então, os músicos desse clube
começaram a ir na minha casa, para eu ensinar para eles. Eles tocavam muito
reggae, soul, calipso. O carnaval é maravilhoso. Toca essas coisas. Essa viagem
foi também uma descoberta musical. Aqui eu conhecia Bob Marley
247
. Achava que
conhecia Bob Marley. Quando eu cheguei na Guiana Inglesa, a primeira coisa que
eu ouvi foi Bob Marley. Foi uma música chamada War.
Ele e o amigo freqüentavam essa casa noturna quase todos os dias da
semana. Além dessa, iam ao bar de um hotel, onde também ficaram conhecidos da
banda local.
Passados oito meses, Mauro resolveu abandonar a lapidação, voltar
pra casa dos pais, e definitivamente assumir a carreira de músico: “Eu pensei, cara, eu
não quero nem saber, eu vou viver de música. Eu vou pro Rio. Vou voltar pra Belford
Roxo, encontrar minha galera lá, e montar uma banda.”
A distância do Brasil e o contato com um novo país fez com que
Mauro montasse paralelos entre as duas realidades sociais. Segundo ele, Georgetown e
o Brasil têm em comum, o “abismo social, os ricos muito ricos, e os pobres muito
pobres.” Isso o levou a ser filiar ao Partido Comunista do Brasil:
247
O mais famoso músico do estilo reggae. Nascido na Jamaica e falecido em 11 de maio de
1981. Bob Marley foi o principal responsável pela popularização do estilo rasta entre a
juventude negra, pregando as idéias do rastafarianismo em suas letras. Ver Albuquerque, 1997
e Cunha, 1991.
194
Dizem que o comunismo acabou, mas é a gente que não ta preparado para ele. Na
boa, ninguém quer ver ninguém bem. O ser humano quer sempre estar por cima.Se
você uma colméia, as abelhas trabalham, todas elas, por um objetivo, de todo
mundo estar bem. Umas, às vezes, tem que se sacrificar, mas elas trabalham por um
objetivo comum. O ser humano tem um objetivo: mais! Eu quero mais, não
quero saber! Parece que tem alguma coisa, ta no nosso DNA. Mais! Eu quero
sempre mais!
De volta ao Brasil, foi até Juína, desfazer-se dos bens que ainda
possuía na cidade (sua lapidação de diamantes).
4.3.4 De volta a Bel
Ao chegar no Rio de Janeiro, trabalhou como representante comercial
de sacolas plásticas para supermercados. Demitiu-se, ficou um tempo desempregado,
até que um conhecido o chamou para trabalhar na reforma de um CIEP,
248
como pintor
de paredes. Isso faz sete anos. Quatro anos depois, trabalhou na Telemar,
249
instalando telefones, por cinco meses.
Em Belford Roxo, montou a banda Postura Africana. Assumiu a
guitarra base com os vizinhos: Rico na guitarra solo, Silvio Neto nos vocais, Emerson
no contra-baixo, Samuca tocando bateria e Praxédes na percussão. O grupo tocou na
campanha de Benedita da Silva, quando ela foi candidata à prefeita, pela primeira vez,
na cidade do Rio de Janeiro. Depois, veio a Cinco Quilates:
248
Escola pública.
249
Empresa de telefonia.
195
Eu gosto muito de reggae. Mas quando eu pego um violão pra tocar, eu gosto de
tocar um Djavan, um Chico Buarque, um Bob Marley, um Gilberto Gil, eu queria
montar uma banda, mas que eu não ficasse tachado como uma banda de reggae. A
gente queria ser livre para tocar. Se um cara é um pintor de quadro, você não vai
dizer pra ele: você vai pintar plantas! O cara pode pintar plantas, mas e se ele
quiser pintar um cavalo? Não vai poder pintar um cavalo? Na minha cabeça,
música é assim. A Cinco Quilates era uma banda de reggae. Mas a gente tinha
muita influência de soul, de charm... Então era um reggae não muito mais original.
Há três anos, a banda assinou contrato com a Sun Records. E gravou o
primeiro álbum. A gravação de um CD de música é um dos passos mais importantes na
trajetória dos músicos. Significa ter a materialização dos esforços e da criatividade,
bem como o estabelecimento de um produto que pode ser comercializado.
Na gravação do segundo álbum, o nome foi mudado para Maria Preta,
referência à brincadeira de criança em que um balão feito com folhas de jornal é
incendiado, e sobe devido ao acúmulo de ar quente no interior da sua estrutura.
Enquanto ganha altura, o brinquedo também vai se desmanchado, consumido pelo fogo.
Embora, seja fundamental nessa carreira ter um contrato assinado co
uma gravadora, isso não é certeza de lucro ou de estabilidade profissional. Além disso,
com o contrato assinado, os músicos não podem mais dispor do seu tempo para ter
outras profissões:
Pra você ter uma banda é muito esforço, é muito sacrifício mesmo. Ninguém pode
ter um emprego fixo. Porque precisa viajar, e qual o patrão que vai aceitar isso? A
única pessoa da banda que trabalha fora é o João, porque ele é funcionário público,
e consegue dar um jeito de ser dispensado.
196
A banda conseguiu esse primeiro contato “meio por acaso”. Um dos
guitarristas era amigo de um fotógrafo profissional, ex-morador de Nova Iguaçu, que
trabalha para gravadoras. Levou um CD demo
250
do grupo para outro conhecido na
gravadora, que aceitou custear a gravação. No entanto, a gravadora alega não ter
dinheiro para lançar o CD. Os shows que o grupo tem realizado nos últimos meses, vem
a partir do trabalho dos membros do grupo, e não do agenciamento da gravadora.
Mauro vive com as economias que conseguiu guardar ainda da época
dos garimpos e da lapidação. Até hoje, um amigo, morador de Austin,
251
quando tem
excesso de trabalho, passa pedras para Mauro lapidar, o que lhe garante algum dinheiro.
Ele não paga aluguel, sua casa é própria, construída no terreno dos pais, onde sua esposa
trabalha como cabeleireira. Disse que os integrantes da banda ganham roupas dadas por
patrocinadores arranjados pela gravadora. Também recebe direitos autorais
esporadicamente, de composições suas gravadas por outros artistas:
Até hoje, pra mim, música é diversão. Porque dinheiro com música, eu nunca
ganhei. Eu não sei quando eu vou tomar vergonha na cara. E se eu não ganhar
dinheiro com música, eu não ganho com mais nada. Porque eu fiz tanta coisa na
vida. O grande lance pra mim é o carnaval, eu separo uma grama. É a única coisa
que a minha esposa faz questão.
250
Um CD de demonstrações.
251
Localidade da Baixada Fluminense.
197
4.4 João Mathias – dádiva e esperança
Comecei aí, com 17 anos. Hoje, estou com 43. E estou até hoje
nessa estrada aí. Quero dizer, estou começando ainda.
Geralmente, na música, você não tem um limite, você esta
sempre começando.
João Mathias é outro músico da Banda Maria Preta, na qual toca teclado. E
também participante da ONG Flor de Bel. Além disso, atua como animador cultural
num CIEP da região e foi a partir desta sua atividade que estabeleceu contato com os
outros indivíduos da rede, objeto desta tese. Durante suas atividades, como animador
cultural, João Mathias e Denise se conheceram e passaram a trocar técnicas e
informações.
Morador do bairro do Piam, “nascido e criado em Belford Roxo”, João, da
mesma forma que seu colega Rincon, é um “jovem” negro com mais de 40 anos. Sua
aparência
252
pode facilmente identificá-lo como pertencente ao grupo da região que é
associado ao estilo de vida rastafari jamaicano
253
. Usa também cabelos tipo dreadlocks,
que podem estar presos por baixo de toucas com as cores associadas à Jamaica (verde,
vermelho e amarelo). Pode vestir batas coloridas, sobre jeans puídos e chinelas de
couro. Segundo ele, inicialmente sua imagem causava um certo estranhamento, mas
isso não chega à incomodá-lo atualmente, embora confesse que nos momentos inicias
252
No sentido que Goffman (2002:31) dá ao termo, indicando parte da fachada pessoal.
253
Sobre o estilo de vida rastafari, ver o subcapítulo “4.3 Mauro ‘Rincon’ – dádiva e cidadania.”
198
que marcam seus encontros a interação social possa se dar de maneira mais
dramática:
254
Em nasci em 1961. Não parece, mas eu tenho 43 anos. Todo mundo fala que não
parece. É por causa do meu jeito, o cabelo todo embolado; eu, meio largadão. As
pessoas dizem: “você não é sério”. Mas eu não sou muito de ficar esquentando a
cabeça.
O pessoal acostuma. Tem escola em que eu vou, e o pessoal fica olhando. As
crianças ficam olhando, os professores também ficam. Mas na minha escola, não.
Eu posso chegar do que jeito que for. Quando eu estou de toquinha, os alunos
pedem para eu tirá-la para eles verem meu cabelo. Eles acostumaram, é mais o
costume. No início era difícil, mas eu nunca me senti discriminado. Eu sei que
existe discriminação, de um modo geral. Mas eu não sei se é por que eu não estou
muito para isso, então eu nunca me senti discriminado. Acho isso, a
discriminação, terrível. Não existe ninguém igual. Você tem que saber lidar com a
pessoa como ela é.
Participou da formação de diversas bandas locais que são consideradas
representativas da “Jamaica da Baixada”, entre elas, a banda KMD5, uma das mais
famosas e míticas da cena “regueira” local.
Mas, apesar da adoção do visual que remete a um tipo de identidade juvenil
baixadense, João não seu local de nascimento como o “templo do reggaeno Estado
do Rio de Janeiro, como muitos supõem:
254
Os conceitos de encontro, interação social e realização dramática estão em Goffman (2002).
199
O fato do Cidade Negra ser uma banda daqui e que estorou, criou essa coisa com o
reggae. Aí virou, “Belford Roxo, a cidade do Reggae”. Mas também tem no
Maranhão, muito mais forte do que aqui. Não tem nem comparação. Eu não vejo
Belford Roxo como a “cidade do reggae”. Eu não saio falando isso por aí, que é
para não ficar contrariando a idéia dos outros. Eu acho que Belford Roxo é uma
cidade musical. Ela tem muitos artistas, não só na parte musical, como artista
plástico, pessoal de cinema. Acho Belford Roxo muito envolvida com a arte, com a
cultura. Mas não que seja uma cidade especifica do reggae. É uma cidade musical,
onde rola arte por todas as portas.
Nesse sentido, João compartilha de um tipo de representação corrente que
associa a Baixada Fluminense a um tipo de “celeiro cultural”, de lugar de intensa
criatividade artística e que também a descreve como um lugar de ausências:
“Ultimamente, eu não tenho saído para lugar nenhum. Tudo acontece no Rio. E ir
para o Rio, você sabe. Ir é mole. O problema é voltar.”
4.4.1 A herança musical
Nasceu em 1961, filho de um policial militar e de uma dona-de-casa, que
tiveram três filhos (João, José e Galisteu). Como a maioria dos entrevistados desta
pesquisa, a família foi a responsável pela sua iniciação no mundo da música. Não na
construção do gosto, realizada a partir da socialização de gêneros e cantores específicos,
que acontecia em festas e reuniões familiares, mas por algo que os entrevistados
associam a um tipo de hereditariedade genética, a música é “transmitida pelo sangue”:
Minha mãe sempre cantou. O pai dela tinha bandolim, era um feirante. Ele ia
para a feira e tocava bandolin, ele tinha um montão de mulheres... minha mãe
200
sempre cantava, sempre rolava seresta aqui em casa, nos aniversários. Acho que
está no sangue. Rolava muita festinha, seresta naquele tempo, Jamelão, Nelson
Gonçalves, até conheço através dela. Hoje em dia ela está devagar. A música
vem da minha mãe. O meu pai gostava da música, mas era mais devagar. Não
tocava nada, não cantava. Ele era sargento da polícia militar. Queria que eu fosse
advogado. Mas eu fui para esse outro lado.
É interessante notar, como na trajetória de vida de João Mathias, as duas
influências concorrentes a de sua mãe, amante da música e a de seu pai, policial
aparecerão num evento bastante singular e decisivo, representante de um primeiro passo
da sua carreira de músico. De um lado, o violão, na ponta extrema, a espingarda:
Eu comecei com música, eu tinha uns dezessete, dezoito anos. É aquela velha
história, o meu irmão ganhou um violão. Na verdade, foi assim, um irmão meu
ganhou um violão e o outro, uma espingarda de chumbinho. um dia, acertaram
um chumbinho na minha testa. Minha mãe reclamou: “eu não quero esse negócio
de arma aqui”. Aí trocaram [a espingarda] por um outro violão. Aí esse violão novo
ficou comigo e com meu outro irmão. que o meu irmão não se dedicava a ele, e
eu, gostava. começamos a montar bandinha, participar de festivais, surgiu
meu interesse pela música. Até então, era brincadeira. “ah, vamos fazer música...
vamos compor”. Participava de bastante festival. Em Nova Iguaçu tinha festival
para caramba, em Belford Roxo também.
Os festivais locais que aconteceram durante a década de 1980 na Baixada
Fluminense, incentivaram a formação de bandas musicais, produzindo e favorencendo
redes de sociabilidade prioritariamente masculinas, que se organizavam a partir do
gosto pela música, criando entre os jovens da comunidade, grupos de status
201
diferenciado, marcados por uma identidade juvenil em elaboração. Para João, pertencer
a esse grupo de vizinhança, estabelecido em torno do consumo e das práticas musicais
foi fundamental para a adoção de um certo estilo de vida, permitindo-lhe participar de
um campo de possibilidades, não vislumbrado por outros indivíduos do seu grupo social
de origem. A música (e não tão somente ela, mas qualquer outra atividade artística ou
esportiva) aparece como instrumento ordenador da vida social, ocupando a “mente” e o
“tempo” livre” da criança e do adolescente, oferecendo-lhe, segundo o entrevistado,
uma “opção” ao mundo da criminalidade:
255
A música tira as crianças da bandidagem. Tira mesmo. Aqui perto da minha casa,
tinha um movimento, uma boca de fumo para ser mais exato. que a maioria da
galera, aqui da nossa área, era mais ligado a tirar som do violão. A galera se reunia
para tocar. A gente formava um grupinho que estava sempre tocando. E tinha o
movimento de maconha, os caras vendendo maconha, na época nem tinha cocaína.
E a gente não se deixou levar para esse. De repente, se a gente não tivesse a
música, um violão para ficar ali com a memória, com a mente voltada para aquilo,
preocupado em escutar uma música e tirar, de repente, a gente estaria no ócio. É
aquela coisa: vai para escola e chegou em casa, não tem nada para fazer. Aí, você
o cara vendendo [drogas], ganhando o dinheiro dele, e de repente você entrava
para aquela vida de bobeira, como muitos amigos meus entraram. Alguns
conseguiram se livrar, outros morreram. Eu acho que a música tira mesmo. Não
a música como qualquer tipo de arte ou de esporte. Tira, tira mesmo.
255
Sobre o uso da música em escolas, com vistas a prevenir/extinguir o uso de drogas entre
crianças, ver Andrade, 1999. Sobre as relações que são desenvolvidas nas escolas públicas do
Rio de Janeiro com o tráfico de dorgas ver Guimarães, 1998.
202
4.4.2 Os passos da carreira: aprendendo
João inicialmente aprendeu a tocar violão com os amigos do bairro em que
nasceu. Foi durante a adolescência, que o menino participou de grupo locais. A partir
daí, buscou o ensino formal. Em quatro diferentes momentos, freqüentou escolas de
música. Sua primeira experiência foi com Escola de Música Villa-Lobos, enquanto
terminava o último ano do ensino médio
256
. Voltou para Villa-Lobos em 1994, ficando
apenas mais um ano. Depois, estudou durante 2 semestres na Faculdade Estácio de Sá,
porque o período foi gratuito. Transcorrido esse tempo, o curso passava a ser pago e
João não podia arcar com as despesas de uma faculdade de música. Conseguiu mais
uma vez ingressar na Villa-Lobos, onde foi estudar teclado, ficando dessa vez por três
anos. Como não conseguiu terminar nenhum dos cursos que começou, não possui
diplomas na área. João reconhece que o seu conhecimento musical é fruto do ensino
formal e do informal, daquilo que aprendeu com professores, colegas e de maneira
autodidata:
Não terminei os cursos. Eu abandonei. Eu fiz a teoria e quando você faz a teoria
musical, você nunca mais esquece. você, em casa mesmo, vai lapidando. É
lógico que se você fizer uma faculdade é super importante, é bacana para caramba.
Mas para fazer faculdade você tem que estar com tempo, com dinheiro e eu preciso
trabalhar. Eu tenho vontade de voltar a estudar. Eu aprendi pouca coisa. para
enganar, para caminhar mas, não é “sou um tecladista”. Eu toco guitarra, baixo
elétrico, cavaquinho e teclado. Quer dizer, eu não toco tudo. Se for junto com os
outros músicos, “ah, vamos montar uma música”. Então, ta bom. A gente vai fazer.
Mas não sou nenhum virtuoso em nenhum deles. Mas entendo desses instrumentos.
256
No qual formou-se professor primário.
203
Na bateria é que sou ruim. Mas nesses outros dá para enganar. toquei como
guitarrista, tecladista Eu comecei de curiosidade com o teclado. E depois estudei o
instrumento na Villa-Lobos.
4.4.3 Os passos da carreira – tocando
O amor às bandas locais sobreviveu ao tempo. E João participou de várias delas,
tocando inclusive, um estilo diferente daquele a que normalmente é associado (o
reggae), como o “pagode”, por exemplo. O trânsito entre estilos musicais e de músicos
parece freqüente, embora não se realize sem conflitos:
Primeiro, eu participei de uma banda chamada À Flor da Pele. Nós tínhamos
violão, que tinha que ser guitarra e baixo. E dois tambores de macumba, e uma
bateria. E a gente participava de festival. Em Nova Iguaçu, aqui na Piam. Eu tinha
uns vinte anos. Depois, fui para um grupo chamado Desaguada, todo mundo aqui
de Belford Roxo. Depois a coisa ficou mais séria. Virou a KMD5. Nós chegamos a
gravar uma demo
257
. fiquei um tempo sem banda. dando aula de música, de
violão e de cavaquinho. Às vezes, em barzinhos, em pagodes, eu tocava. O pessoal
me chamava. Eu fiquei dando aula e tirando um sonzinho particular. Depois
apareceu um colega e me chamou para um grupo de pagode. O meu forte não é
pagode. É reggae, é soul, é soul music. Mas como era música, eu pensei, “vou”.
Gravamos um disco. A banda se chamava Requinte do Samba. Gravamos, mas não
deu em nada. A gente ia tocar, mas tocávamos mais músicas dos outros. Eu
comecei a colocar alguns reggaes no meio do repertório, e os caras não estavam
muito católicos comigo
258
. Mas com o tempo, eu vi que não dava para tocar aquilo
257
Demo significa demonstração. Atualmente, faz-se CD demo. Na época, eram utilizadas fitas.
258
“Não estar muito católico” é uma expressão que indica descontentamento.
204
[pagode]. Aí, montei uma banda de reggae, chamada Negrotu. Tinha um cara que
veio do samba tocar guitarra com a gente, o restante era do reggae. Fizemos alguns
shows, gravamos um CDzinho. É sempre a mesma guerra: faz o CD, vai mostrar,
faz showzinho.
4.4.4 O uso da música
A música, segundo nosso entrevistado, pode interferir diretamente numa
trajetória individual porque “muda a cabeça da pessoa”. Seria assim responsável por
um tipo de construção do eu, numa espécie de “ação preventiva”, que evita que uma
criança se transforme num criminoso. Nesse sentido, as escolas poderiam desempenhar
papel de destaque na promoção desse tipo de indivíduo:
Antigamente, tinha aula de música nas escolas. Hoje em dia, você não vê. Eu acho
que é legal para caramba. Muda a cabeça da pessoa. Às vezes, você está de bobeira,
com um instrumento e vai para casa. Às vezes, você mora em área de risco, que
tem muita malandragem. Se você está com seu instrumentinho, vai para casa e faz a
lição, faz a sua tarefa.
O principal problema a ser resolvido, para João, diz respeito às expectativas
dessa jovem população, e às suas ausências de “sonho” e de “esperança” que a vida
cotidiana encerra. A arte e o desporto brilhariam como faróis, sinalizando a
possibilidade de aquisição de bens materiais e simbólicos:
Desde o momento que a criança está envolvida com a arte, ela não vai partir para
outro caminho. Ela vai ter sonho, vai ter esperança. É como a gente na nossa banda.
205
Eu já estou com 43 anos, gravamos agora, temos uma gravadora, um empresário,
temos um disco. É um sonho realizado. Não estou rico, não tenho carrão do ano e
de repente, nunca vou ter. Morro e não tenho. Mas também, não morri mais cedo
porque me envolvi com outras coisas. O que aconteceria se não tivesse a música? É
um sonho que você vai levando, levando e aí... também chega uma hora que você
não tem mais idade para ser bandido ou vagabundo, não tem como. É legal você ter
esperança. Você pode não ir jogar na Seleção Brasileira, mas pelo menos você ta
ali jogando. E vem, bate aquela idade que não mais para ser bandido, e você
continua com sua arte. Agora, você, parado, sem pensar em nada, sem fazer nada,
jogado, principalmente hoje em dia, que todo mundo quer ter tênis do ano, da
moda, de marca. Eu acho que o caminho hoje em dia para a criançada é a arte, é o
esporte. Criar projetos envolvendo essas áreas, se não o Brasil vai acabar. As
pessoas falam mal do Brizola e dos CIEPs, mas imagina onde estariam essas
crianças todas! A violência ia ser muito maior do que está hoje. Imagina essas
crianças sem escola. Ia estar tudo perdido.
Para João Mathias, “música é sonho, é esperança”, a negação da criminalidade e
da violência. Como animador cultural e voluntário na ONG, um outro tipo de cultivo
norteia suas práticas musicais: o que chama de “resgate do folclore”. No CIEP em que
trabalha, estudam cerca de 600 alunos em tempo integral, destes, 40 (alunos da à
série) integram o Coral regido por João e 25 alunos (da à série) participam de sua
Orquestra de Flautas:
No coral, eu gosto de trabalhar com cantigas populares. A orquestra de flautas está
ensaiando trechos da Sinfonia de Bethoven. E eu tenho um projeto novo, de
trabalhar com músicas folclóricas, de fazer um resgate das cantigas de roda. A
gente toca “Cai, cai, balão”, “Ciranda, cirandinha”, “O cravo brigou com a rosa”. O
206
projeto surgiu da idéia de uma professora que queria fazer um trabalho sobre o
folclore. Ele me deu uma lista de músicas e disse: “ah, ensina aí.”. Algumas
músicas a gente faz inteira, outras a metade, porque complica. A gente quer
trabalhar com cantiga de roda, para as crianças saberem que existem. Hoje em dia,
você vai perguntar essas músicas para as crianças e elas não sabem. Não cantam
“Ciranda, cirandinha” ou “Atirei o pau no gato”. Hoje em dia, você vai numa
festinha de escola, e vai pensando que vai ver um resgate de coisas do folclore
brasileiro, mas não é isso. Vai ver é O Tcham!, neguinho dançando na boquinha da
garrafa, o Bonde do Tigrão. Não que eu tenha algo contra, mas vamos mostrar as
coisas nossas. O folclore brasileiro. Você não criança hoje em dia brincando de
roda, brincando de pique, de bandeirinha. Aqui mesmo você não vê isso.
4.4.5 O método – “aprender-sem-querer-querendo”
Vemos um tipo de construção social do gosto que não se atém à dimensão
musical exclusiva. Mas a todo um repertório cultural, que João identifica nas músicas e
brincadeiras infantis do passado. Pergunto se resistência por parte dos alunos em
aprender um tipo de música a qual não estão acostumados. João me explica que uma
música “chata” pode ser metamorfosear em “bonita” através do prazer obtido pelo
reconhecimento da capacidade de desempenho. Assim, o aluno experimenta um tipo de
prestígio social, autopercebido e expresso também nas relações familiares:
Eles gostam, principalmente, quando eles sentem que estão tocando legal. Que a
música é aquilo. Voacha a música chata, quando você não pegou a música.
Você passa uma música como “o cravo brigou com a rosa...” [cantando], e eles
fazem cara feia. Aí você vai e ensina eles a tocar. Então quando eles estão tocando,
a música fica bonita. Enquanto não aprendem a tocar, ficam falando: “ah, que
207
música chata”. Então, é legal que para eles é uma novidade. Eles vão tocando,
começam a aprender, e acabam ouvindo não sei aonde: “ih, tio, ouvi aquela música
que toca aqui”. E aí vai o Bethoven e o “Trenzinho Caipira”
259
. Então vai sendo um
apanhado, eles começam a conhecer as coisas sem querer, querendo. Você passa a
teoria e ensina uma musiquinha, eles vão para casa tocando, enchem o saco da
mãe. Elas ficam felizes: “pô, meu filho está tocando”. É legal para caramba, é
maneiro. E de vez em quando eles se apresentam, na própria escola ou em outras
quando tem algum evento.Eu sempre passo uma tarefa. Mas eu faço uma jogada
com eles. Eu digo: “tem essa parte aqui para estudar e quem não estiver legal o
poderá sair para as festividades, quando tiver”. Então, isso faz com que eles
cheguem afiados.
O método de ensino de João, como um tipo de negociação da realidade, visa
não só promover (pelo “resgate”) as músicas consideradas boas para as crianças”, mas
também, facilitar o que parece ser a parte mais difícil da educação musical a teoria,
principalmente, quando o agente educador e os educandos dispõem de poucos recursos
para o processo de ensino/aprendizagem. Ter um coral e uma orquestra de flautas são
alternativas de baixo custo, utilizadas por João.
A orquestrinha de flauta doce, eu montei para poder ensinar a musica. Se você for
ensinar música e ficar na naquela coisa da teoria para criança, geralmente na faixa
etária de 10 a 14 anos, então tem que ter alguma coisa para eles praticarem. Pra
você não passar só teoria e ficar aquela coisa sacal, de compasso tal, então o que eu
fiz? Escolhi um instrumento que é baratinho, uma flautinha doce. no armarinho
259
Música do compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos.
208
tem, é R$ 1,99. Então cada aluno compra uma e voconsegue juntar o útil ao
agradável – ensinar a teoria e tocar.
Na Igreja, no bairro e também no espaço escolar, tocar um instrumento
proporciona distinção social. Mesmo entre crianças, a performance musical pressupõe
um status social diferenciado. O reconhecimento do talento não se restringe ao espaço
escolar. Quando os grupos se apresentam em eventos na própria escola ou em outras da
região, as redes de vizinhança e de família constituem a platéia. Estar no palco e ser
aplaudido (reconhecido socialmente) é o desejo de todos os estudantes:
No ano passado, eu tive doze alunos que estudaram mesmo. Tem uns que estudam,
mas é aquele negócio, nem todo mundo tem o mesmo talento. Esse ano, devo ter
uns 25 a 30 alunos estudando. que nem todos terminam com a gente. Vai
peneirando, vai formando. Mas quando tem eventos, tem que levar todos. Não pode
deixar um. Você bota os melhores na frente, porque o som vai ficar mais alto.
aqueles que você sabe que vai dar uma erradinha, uma tropeçadinha na hora que
tiver tocando, você coloca eles atrás pra você não excluir. Porque se você não
levar alguém para tocar, ele acaba jogando o instrumento fora e achando que ele [o
aluno] é ruim mesmo e não querendo fazer mais nada da vida.
As atividades desenvolvidas por João, no CIEP, junto às crianças, acontecem
após o almoço dos estudantes, numa espécie de tempo vago. A partir das 13 horas, os
alunos dispõem de uma hora livre que, a critério do aluno, pode ser utilizada na turma
de educação musical. Significa dizer que o aluno não está matriculado em uma
disciplina específica de musicalização, apenas que pode usar seu tempo livre para
participar das aulas de música, caso e quando queira. Assim, não se formam turmas
209
específicas, com a cobrança de freqüência ou com a necessidade de avaliação por parte
do docente. Também o a possibilidade de implantação de um programa de ensino
sistemático ou seriado:
Às vezes, quando não tem aula, eu passo o maior sufoco. Eles vem: “tio, não vai ter
aula, não?”. Eu respondo: “não, o tio hoje tem que participar de uma reunião”. Eles
ficam reclamando, até pena. Eles dizem: “pô, trouxe minha flauta hoje.” Ou
então, “olha, comprei minha flauta”. E a cada novo dia, aparece um aluno novo,
mais uma flautinha, você tem que voltar nas aulas de novo. Eu prefiro voltar as
aulas do que dividir a turma, em melhores ou piores. Assim, fica todo mundo no
mesmo balaio, e a gente vai levando. . É essa experiência que eu passo para as
crianças. Uma noção da teoria. Dali, de 10, 20 alunos, tem três, quatro, que vão se
identificar, que vão partir, estudar, procurar uma escola. O negócio é você dar o
pontapé inicial. Mostrar para eles, que existe aquilo ali. Agora se eles vão querer
seguir aquilo ali, vai depender de cada um.
O animador cultural também fica responsável por complementar o horário das
aulas dos alunos, quando os professores precisam se ausentar, em caso de reuniões,
planejamento escolar ou mesmo faltas.
260
Para esses casos, João prefere deixar a música
de lado, dado o quantitativo das turmas e a falta de instrumentos musicais e faz o que
chama de “mini-recreação”:
260
No caso de ausência dos professores, os animadores culturais não são os únicos que
podem preencher a carga horária da turma. Também podem acontecer as chamadas
“atividades de vídeo” ou na de leitura.
210
Posso usar a quadra de esportes. Montar um jogo com bola. A gente usa o
brinquedo que tem à mão. E, geralmente, quando falta alguém, sempre mandam
para mim. Então eu posso ficar de uma até quatro horas com uma turma.
4.4.6 Música boa e música ruim
Quando fala do seu gosto musical, João Mathias faz questão de salientar que não
é adepto de um gênero ou estilo exclusivo, embora diga que prefere “música brasileira”.
Cita Gilberto Gil, Caetano Veloso, Ednardo, Nelson Gonçalves,
261
frisando que “não era
muito chegado a uma música gringa. Podia até curtir música norte-americana, mas não
sabia o nome dos caras ou das músicas”. Entretanto, ele faz uma exceção para músicos
como Stevie Wonder,
262
Milles Davis e Charles Parker.
263
Lembra que durante a
adolescência eram freqüentes os bailes de charm
264
na região, nos quais conheceu a
música de James Brown.
265
Depois de todos estes, é que o reggae e seu principal
representante, Bob Marley chegaram ao seu conhecimento através dos amigos do bairro.
Tal como nos depoimentos de seu colega de banda, Mauro Rincón, Mathias também se
apresenta como um músico que preza pela diversidade, e que considera que a
“qualidade” das músicas não está vinculada aos padrões acadêmicos que estabelecem
valores estéticos. Nem tampouco, aos próprios preceitos que determinados grupos
sociais populares produzem:
261
Cantores e compósitos brasileiros, pertencentes à chamada MPB.
262
Cantor e compositor de uma vertente da black music norte-americana, na sua versão mais
funky.
263
Músicos de jazz.
264
Derivação mais lenta do funk.
265
Considerado um dos fundadores de funk norte-americano.
211
Eu gosto muito de música. Não tem essa coisa de ser Bob Marley. Eu gosto de
música, se a música for boa, ela vai ficar na minha cabeça. Às vezes, em casa, eu
fico ouvindo rádio MEC, tem uns programas de música instrumental, de jazz. Eu
gosto de ficar curtindo aquilo ali. Se a música é boa, você engole. A ruim, vo
joga fora. Também não sei se tem música ruim. Toda música tem alguém que
goste. Se tem alguém que goste, aquilo ali não é tão ruim assim. É ruim para mim,
mas para aquela pessoa é legal. Nelson Gonçalves, eu me amarro. Não tem essa de
“ah, se for Bob Marley”. Não, se for bacana, vamos ouvir. Tem gente que é
radical, “eu não curto isso, eu não curto aquilo”.
212
Considerações Finais
Ao longo das duas últimas décadas, a Baixada Fluminense tem passado por uma
série de mudanças. Lentas, descontínuas de natureza estrutural e no campo do
simbólico. Uma série de investimentos, das prefeituras, do governo estadual e das
instâncias federais tentam melhorar as condições de vida da população, quanto à
qualidade do espaço urbano mais saneamento, uma melhor estrutura de abastecimento
de água, melhorias no sistema de transporte coletivo,
266
incremento das atividades
comerciais e industriais, criação de parques de preservação ambiental e de novas praças
públicas, construção de vias expressas que ligam localidades da região entre si e ao
município do Rio de Janeiro.
A região conta com um número maior e crescente de cursos de nível superior
(privados e públicos), centros históricos e de preservação da memória, áreas
consideradas importantes para o Patrimônio Histórico estão sendo levantadas. Foram
criados núcleos de estudos e pesquisas sobre a região, para avaliar seus aspectos
socioeconômicos. Também é digna de nota, a criação de um quadro diário, no principal
telejornal diurno da televisão “carioca”, dedicado à Baixada Fluminense.
267
Tem-se observado a criação de centros de lazer e recreação, aumentou o número
de casas de espetáculos, restaurantes, bares, cafés, shopping centers. Surgiram bairros
de reconhecido prestígio local geralmente ocupados por condomínios de casas onde
266
o existe uma estação de metrô na Baixada. Mas adotou-se o sistema de integração
metrô-ônibus para algumas localidades. Partindo da estação da Pavuna (limítrofe com o centro
da cidade de São João de Meriti) é possível embarcar em ônibus direto para Nova Iguaçu,
pagando uma tarifa mais barata que a normal.
267
No entanto, a maioria das matérias trata dos problemas” da região: falta de calçamento, de
recolhimento do lixo urbano, precariedade do abastecimento de água, crise dos hospitais etc. O
telejornal é o RJTV, produzido e exibido pela Rede Globo de Televisão.
213
mora a parcela economicamente mais próspera extratos mais elevados das camadas
médias,
268
normalmente composta por comerciantes locais e profissionais liberais que
atuam na região.
Mas como foi dito anteriormente, esse “crescimento” é descontínuo. Pode se
apresentar de maneira muito vigorosa num pequeno núcleo (o “centro” do município,
como o de Nova Iguaçu e de Duque de Caxias, por exemplo) e ir se espraiando, até que
a paisagem dominante é quase rural, com vacas pastando tranqüilamente ao pé de
alguma cerca. Ou então, para o amontoado de casas à beira de valões (ainda existem
muitos), nos quais as crianças se divertem caçando rãs (assumo, comi carne de rã,
“pescada” numa vala negra por um amiguinho meu. Nós a cozinhamos numa lata de
óleo descartada pela minha mãe. Fazíamos uma pequena fogueira com gravetos e
repartíamos nossa “iguaria” com o restante das crianças com quem brincávamos na rua).
não é mais possível falar da “Baixada”, como símbolo de pobreza e violência,
exclusivamente. Como Enne (2002) apontou, existe a polissemia do termo são
“Baixadas”. Não mais, apenas, a da pobreza, do descaso, dos grupos de extermínio
mas esta ainda existe. Ou melhor, co-existe, com sua “prima rica” a “Baixada” que
quer ser grande, desenvolvida, limpa, civilizada; quer ser também analisada, explicada,
explicitada,
269
historicizada
270
.
268
É comum ouvir queixas dos moradores quanto aos valores dos aluguéis de residências,
principalmente no centro de Nova Iguaçu e de Duque de Caxias. Realmente, numa
comparação, bastante informal, descobri que os preços dos mais prestigiados se igualam ao de
imóveis, do mesmo tamanho e tipo, de partes da Zona Sul, como Glória, Catete e Largo do
Machado. No entanto, o mesmo não é válido quanto ao preço de compra das residências, que
ainda é bem mais barato, em relação à cidade do Rio de Janeiro.
269
É o que fazemos nós, os antropólogos-nativos. Como o meu trabalho, muitos outros sobre a
Baixada Fluminense são realizados por “filhos” da região.
270
Ver o trabalho de Enne (2002) no qual dois grupos disputam a hegemonia da construção e
reconstrução da história da Baixada Fluminense.
214
As transformações da região não se restringem aos seus aspectos físicos. Criar
uma nova imagem para a Baixada, construir um novo índice de leitura, não diz respeito
somente ao asfaltamento das suas ruas ou ao embelezamento das praças. Para que o
“exterior” leia a área de maneira diversa daquelas cristalizações construídas ao longo de
quase um século, é preciso que a consciência do próprio povo mude, é preciso criar um
novo campo de representações, novos modelos de relações sociais. Até porque, são os
indivíduos que se destacam dessa população, o principal agente de mudanças. As
transformações sociais que podemos reconhecer no aspecto material (visíveis,
perceptíveis ao olhar) e na identidade (captadas a partir do deslindamento de novas
visões de mundo e da implementação de novas relações sociais, novos códigos morais)
são frutos de ações coletivas, que nascem a partir da cooperação entre projetos
individuais, de subjetividades que se reconhecem e se organização para difundir um tipo
de estilo de vida específico.
É a partir de um ato de auto-reflexão, de pensar-se a si mesmo, e de se ver em
ação, - da construção de um tipo de subjetividade, que valoriza o desenvolvimento do
eu, - que leva os indivíduos a se assumirem como sujeitos, negando serem englobados
por valores ou tradições com quais não se identificam mais. Esses processos de
construção e representação do eu são potencializados nas sociedades moderno-
contemporâneas:
A multiplicação e a fragmentação de domínios, associadas a variáveis econômicas,
políticas, sociológicas e simbólicas, constituem um mundo de indivíduos cuja
identidade é colocada permanentemente em cheque e sujeita a alterações drásticas.
O trânsito intenso e freqüente entre domínios diferenciados implica adaptações
constantes dos atores, produtores de e produzidos por escalas de valores e
ideologias individualistas constitutivas da vida moderna. (Velho, 1999:44)
215
A “Baixada” é uma categoria ambígua. Ela é o “celeiro artístico”, o “faroeste-
caboclo”, lugar de gente “mais carinhosa”, e “lugar que não tem nada”. É “muito rica de
cultura”, mas também a “terra de ninguém”. Essas representações convivem, co-
existem entre os moradores e todos aqueles que entram em contato com a região. A
região possui limites simbólicos, mas também apresenta um certo grau de
heterogeneidade e diversificação assim é possível o desenvolvimento e a coexistência
de opiniões tão diversas e auto-excludentes. Podemos falar num ethos baixadense”,
ainda bastante marcado por antigas concepções e práticas sociais: o uso da força e de
instâncias e práticas ilegais para a resolução de problemas, o personalismo das relações,
a apropriação privada da coisa pública, o apadrinhamento, a rede de clientelismo, o
mandonismo, relações de gênero baseadas numa hierarquia em que a mulher é o pólo
negativo da relação, a falta de acesso à mecanismos que promovam a cidadania, a falta
de universalismo. E também, as redes de solidariedade, compadrio, parentesco e
vizinhança mais intensas, uma vida mais comunitária. Enfim, tudo aquilo que
normalmente associamos ao Brasil arcaico”. Por outro lado temos o forte desejo de
grupos que lutam por construir uma identidade positivada da Baixada – livre dos
estereótipos que marcam as trajetórias locais.
271
Mas quem são os agentes dessa transformação? Quem são os promotores dessas
mudanças sociais, que, ao desenvolverem seus estilos de vida e suas visões de mundo,
constroem também novos espaços sociais, lugares de implemento de novas
sociabilidades e de novas sensibilidades?
271
E cito mais uma vez o trabalho de Enne (2002) por ser exemplar no sentido de mostrar
esses grupos. No caso da sua pesquisa, era um grupo de “acadêmicos” professores ou
pesquisadores da área de humanas.
216
Transformando a si mesmos, esses indivíduos transformam sua região. Não
promovem transformações objetivas, mas também aquelas do campo das ideologias e
das representações, apresentando novas formas de estar no mundo. É claro, que há de se
ter cuidado com isso que qualificamos aqui de “novo”. Que não pode ter uma vida
alienígena, e sua existência se faz por que existem ambientes comunicativos que o
permitem. Não poderia, obviamente, prescindir de interagir com outros domínios da
realidade, com os quais constantemente se comunica. Também não se trata de
“inventar” novos padrões de interação, até por que, eles existiam, que de maneira
tímida, sutil, velada até, sendo, às vezes, privilégio de um pequeno circuito social:
Os projetos individuais sempre interagem com outros dentro de um campo de
possibilidades. Não operam num vácuo, mas sim a partir de premissas e
paradigmas culturais compartilhados por universos específicos. Por isso mesmo são
complexos e os indivíduos, em princípio, podem se portadores de projetos
diferentes, até contraditórios. (Velho, 1999:46)
Em uma sociedade complexa moderna, os mapas de orientação para a vida social
são particularmente ambíguos, tortuosos e contraditórios. A construção de
identidade e a elaboração de projetos individuais são feitas dentro de um contexto
em que diferentes “mundos” ou esferas da vida social se interpenetram, sem
misturam e muitas vezes, entram em conflito. A possibilidade de formação de
grupos de indivíduos com um projeto social que englobe, sintetize ou incorpore os
diferentes projetos individuais, depende de uma percepção e vivência de interesses
comuns que podem ser os mais variados, como foi mencionado classe social,
grupo étnico, grupo de status, família, religião, vizinhança, ocupação, partido
político etc. A estabilidade e a continuidade desses projetos supra-individuais
dependerão de sua capacidade de estabelecer uma definição de realidade
217
convincente, coerente e gratificante em outras palavras, de sua eficácia simbólica
e política propriamente dita. (Velho, 1999:33).
Mas alguns indivíduos se destacam por abordarem de maneira mais contundente,
algo que já existe lá, no campo do “social”. E ao assumirem pra si essa tarefa –
representando algo no que acreditam, re-elaborando o próprio self e adotando um tipo
específico de imagem pública, publicizam suas concepções de vida, suas visões de
mundo. E nesse movimento podem correr riscos.
Para falar da Baixada, das identidades da Baixada, eu escolhi os músicos-
professores. Por que? Porque sempre foi um grupo que me chamou bastante à atenção.
Como vimos ao longo do trabalho, a carreira de músico é bastante ambígua e sua
valoração se positiva ou negativa, se faz de maneira muito relacional e contextual.
Ainda são tipos sociais bastante idealizados (tanto nos aspectos positivos, quanto nos
negativos). É uma daquelas ocupações em que se vive numa espécie de fio da navalha –
a remuneração estável é pouca e rara, mas as chances de se ficar rico e famoso existem.
No imaginário da população, o músico pode ser o herói aqueles que ficam famosos,
aparecem em programas de televisão (e suas histórias de “meninos pobres” são contadas
por suas mães com os olhos cheios d’água, num desses domingos à tarde), suas músicas
são executadas nos rádios, seus shows lotam estádios. Mas, nosso vizinho que é
sambista pode ser famoso na região como um “vagabundo”. O músico negro de cabelos
compridos é constantemente acusado de ser usuário de drogas. A mulher que se dedica à
atividade artística ainda pode ser tida como “prostituta”: “músicos são agentes sociais
bastante desconhecidos (concepções nebulosas e mistificadas sobre eles estão
assentadas no senso comum).” (Silva, 2005: 6).
* * *
218
Neste trabalho, um de meus objetivos foi discutir questões de mudança e de
continuidade na região conhecida como Baixada Fluminense. Não é possível dizer que
exista uma univocidade das interpretações ou das representações sociais produzidas,
mas podemos afirmar algumas coisas sobre o ethos dominante. Ao realizarmos uma
análise dos domínios da moralidade local veremos que ainda vigem uma série de
códigos que não se manifestam com tanta regularidade em outros espaços, ou pelos
menos, não se mostram de maneira tão portentosa como acontece na Baixada. Mas por
outro lado, entramos em contato com indivíduos que conseguiram desenvolver
trajetórias de intenso trânsito social, que propõem uma reordenação de suas vidas (e da
sua comunidade), marcada pelo dinamismo das relações.
Ao longo deste trabalho, meu objetivo foi trazer as histórias de vida de músicos-
professores das camadas populares. Sendo a categoria músico, ainda portadora de um
certo tipo de estigma social, - ela pode representar a fama, o reconhecimento, o
dinheiro, mas também a vagabundagem, o desregramento, enfim, a adoção de um estilo
de vida, visto por alguns grupos mais conservadores como perigoso ou transgressor.
Interessei-me por ver, como esses músicos-professores desenvolvem seus trabalhos,
estando, a maioria dos entrevistados aqui, não comprometidos com a própria
reprodução, mas também com a difusão de valores ligados à promoção da
“cidadania”
272
ou do bem estar do outro. A partir de uma informante, foi possível a
montagem de uma rede de trabalho e de sociabilidade. Junto aos indivíduos dessa rede,
pude ver com que freqüência a categoria “Baixada” é atualizada. Invariavelmente, suas
explicações de vida passavam por “ser da Baixada” ou “estar na Baixada”.
Interessante notar que mesmo se tratando de uma categoria que permite leituras
diversificadas - pode ter muitos significados existe uma identidade social que os
272
Tal como o grupo usa o termo.
219
moradores da região atualizam com freqüência. O “outro” dessa relaçãoou “outros”
é o morador do Subúrbio e o da Zona Sul. De maneira relacional, essas categorias,
“morador da Baixada”, “morador do Subúrbio”, “morador da Zona Sul” vão aparecer,
ora positivadas, ora desqualificadas. As alianças, também transitórias e contextuais,
apareceram. Assim, a Baixada “não tem nada”, é “violenta”, “suja” mas, também é
lugar onde os vínculos de parentesco, de vizinhança e de amizade são mais valorizados,
um lugar mais “solidário” e essas representações ela divide com o Subúrbio. Se os
vínculos são mais estáveis e profundos, o controle social também será exercido de
maneira mais coercitiva. Esses dois lugares simbólicos da “solidariedade”, também se
caracterizam por apresentar uma moralidade mais rígida, principalmente quando
comparados com a Zona Sul – lugar tido como de maior “liberdade”.
O tema da “liberdade” apareceu nos relatos com extrema freqüência as
mulheres ainda se queixam dos excessos de controle externo. Querem liberdade,
liberdade de gestos, do linguajar, do modo de apresentação, do vestuário, dos gostos, do
comportamento, financeira e emotiva. Enfim, queixam-se de liberdade para seguirem
um estilo de vida que mais lhe agradam, sem que isso não represente sanções sociais de
seus familiares e no bairro em que residem ou trabalhem. No caso desta pesquisa,
apenas para a entrevistada “evangélica” não havia a falta de liberdade. Para as outras
duas, “ser mulher” na Baixada é pertencer a um gênero socialmente desprestigiado, ou
que pelo menos, não conta com o mesmo status social que o gênero masculino.
Além dos problemas inerentes à condição de gênero a experiência de um
controle social mais rígido, a exigência de um código de postura diferenciado,
também os estigmas que pesam sobre os membros das camadas populares e sobre os
negros. Uma das entrevistadas, em particular, Mônica, vive sua condição de negra de
maneira exemplarmente dramática, somando-se aí, todos os estereótipos que pesam
220
sobre si (enquanto moradora da Baixada) e sobre o seu “outro” constante (moradores da
Zona Sul). para Denise, o problema étnico não se coloca não que seja “branca”,
mas não é classificada como “negra”, não sofrendo com os estigmas que pesam sobre a
cor. Mas nem por isso, no seu relato, não entrevemos as angústias de quem se sente
“enclausurada” sendo reprimida e vigiada pela família e vizinhos. Interessante notar
que mesmo, apesar do tom angustiado de minhas entrevistadas, suas marcas sociais – os
estigmas impostos, não as imobilizam. O estigma não foi suficiente para estancar os
movimentos de diferenciação; e mesmo vivenciando as sanções que são atribuídas em
virtude de suas escolhas, elas não alteram suas trajetórias, não abrem mão dos seus
projetos.
O mesmo vale para os homens pesquisados. Mesmo usufruindo de um
considerável status social mais elevado, devido à condição masculina, também padecem
os dilemas dos estigmas sociais. São negros, adeptos do estilo rastafari, circulando com
seus cabelos torcidos e de tamanho desigual, e suas roupas coloridas mas não estão
“guetificados”, marcados de uma maneira que fiquem imobilizados. Ao contrário,
através dos seus trânsitos sociais promovem a troca de informações, no caso musicais, e
de estilo de vida - bens simbólicos importantes que oxigenam este universo social.
Os espaços para negociações e manobras são visíveis. As trocas culturais
acontecem constantemente. O dinamismo marca as relações desses moradores e
construtores da Baixada.
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