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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
FLAVIA LOPES LOBÃO
CRIANÇAS E ESCOLA EM TRÊS ATOS: UM ESTUDO SOBRE INFÂNCIA,
CIDADANIA E AUTORIA NAS SÉRIES INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Rio de Janeiro
2007
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FLAVIA LOPES LOBÃO
CRIANÇAS E ESCOLA EM TRÊS ATOS: UM ESTUDO SOBRE INFÂNCIA,
CIDADANIA E AUTORIA NAS SÉRIES INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Educação da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro para a
obtenção do título de Mestre em Educação
Orientador(a): Prof(a) Dr(a) Lígia Martha Coimbra da Costa Coelho
Rio de Janeiro
2007
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FLAVIA LOPES LOBÃO
CRIANÇAS E ESCOLA EM TRÊS ATOS: UM ESTUDO SOBRE INFÂNCIA,
CIDADANIA E AUTORIA NAS SÉRIES INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Dissertação apresentada à Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Educação
Aprovada pela Banca Examinadora
Rio de Janeiro, ____/____/____
BANCA EXAMINADORA
Professora Doutora Lígia Martha Coimbra da Costa Coelho
Orientadora UNIRIO
Professor Doutor João Wanderley Geraldi UNICAMP
Professora Doutora Carmen Sanches Sampaio - UNIRIO
Professora Doutora Márcia Cabral da Silva - UERJ
4
Dedico esse trabalho às crianças, todas, por darem sentido a minha vida, me
encherem de alegria e, no momento/força inquietante da infância, me fazerem
crer que o mundo poderia ser de um outro jeito.
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AGRADECIMENTOS
Aos meus alunos que contribuíram para com esta prática reflexiva,
principalmente os da Vila Proletária, que não sei onde andarão e que me ensinaram
primeiro...
Às professoras Lígia e Carmem, que sempre estão me ajudando a olhar com a
necessária paciência, minha gratidão.
Aos colegas da Escola Sá Pereira, meus pares, que partilharam de muitos
momentos da prática educativa apresentada nesta dissertação.
Ao querido sobrinho Gabriel, pela ajuda paciente e cuidadosa no uso da
máquina, da tecnologia necessária na feitura do trabalho.
À Alice, tão inexplicavelmente companheira, as palavras mais doces.
6
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
Que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(João Cabral de Melo Neto)
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RESUMO
O estudo propõe debate sobre infância, cidadania e autoria, elegendo como
tema o ensino da Língua Materna e discute as relações que se estabelecem entre
Autoria e Infância, mediadas pelo espaço formal de aprendizagem a escola. Para a
realização deste estudo, trouxemos produções de textos de crianças com universos
bastante distintos, no que diz respeito não apenas aos aspectos econômico e sócio-
culturais, mas também com relação às possibilidades de escrita meninos e meninas
em processo de alfabetização e finalizando as séries iniciais do ensino fundamental.
O problema se insere na tentativa de construir uma abordagem que é político-
filosófica, e também metodológica, sobre o ensino/apreensão da língua numa
perspectiva mais ampla, que busca constituir os processos sócio-históricos da escrita.
Nosso interesse é pelo conteúdo do texto, pelo que a criança pôde dizer de si, de seu
mundo, como pôde intervir e participar. Buscamos como ancoragem teórico-
metodológica a concepção dialética, não esquecendo que precisamos relacionar as
práticas da interpretação e da transformação, ou seja, temos em vista uma totalidade
que é de ordem teórico-prática. Chamamos A Terceira Margem do Rio nosso
posicionamento teórico-metodológico, isto porque insistimos em não prescindir do
relativo e do transitório por reconhecer aí o princípio dialético, compreendendo,
assim, a totalidade em seu caráter parcial, não deixando, no entanto, de pensar o
universal no que poderá ter de libertador - quando se trata de libertar as
particularidades dos particularismos. Realizamos uma pesquisa teórica, baseada em
bibliografia relacionada aos eixos já apontados, mas mobilizada pelas experiências no
espaço formal da escola. Os textos escritos das crianças são reveladores de
expressivas marcas de autoria. É nesta perspectiva que as reflexões aqui propostas
contribuem para ampliar o debate sobre o tema, principalmente por trazerem marcas
de autoria de crianças, estudo ainda incipiente nos meios acadêmicos.
PALAVRAS-CHAVE: Língua materna, autoria, infância, cidadania.
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ABSTRACT
This study proposes the debate about infancy, citizenship and authorship,
selecting the teaching of the Mother Tongue as the theme and discussing the
established relations between Authorship and Infancy, mediated by the formal place of
learning the school. For the accomplishment of this study, we brought text
productions of children from different realities, not only on economic aspects, nor on
collectivity's culture, but also on writing possibilities - boys and girls learning how to
read and write and finishing the initials years of school. The problem is in the attempt to
make a conception that is both of Political Philosophy, and also of methodology, about
the teaching/understanding of the language in an ampler perspective, trying to
integrate the historic processes of writing, in a collective scope. We are interested on
the text content, what the child could say about himself, about his world, and how could
he intervene and participate. We are theoretically based in a dialectic conception
methodology, remembering that we need to relate the interpretation and transformation
experiences, we have in mind the Theory into Practice as a totality. “The third margin of
the river” is called the theoric methodology sustained in this paper, and that is because
we insist not to refrain the relativeness and transitioning in recognizing the dialetic
principle, understanding, so, the totality in its parcial caracteristics, and not forgetting,
therefore, to think what is universal, in the freedom-making process it would be, when
talking about letting free particularities of particularisms. We did a theoretical research,
based on a bibliography related to the points already mentioned, but mobilized from the
experiences in the formal space of school. The written texts from the children reveal
expressive marks of authorship. In this perspective, the reflections proposed here
contribute to increase the debate about the theme, mainly because they bring children
authorship marks, a study still incipient in the academic atmosphere.
KEY- WORDS: Mother Tongue, Authorship, Infancy, Citizenship.
9
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO: ...................................................................................................... 10
1.1 Escrever é também tecer .......................................................................................10
1.2 Sobre referenciais teóricos e metodologia ............................................... ............ 25
2 DE QUAL LUGAR ESTAMOS FALANDO? A Terceira Margem do
Rio.............................................................................................................................. 31
2.1 “Nem no ovo o pinto está intacto” ...................................................................... 32
2.2 A propósito da escola ......................................................................................... 38
2.3 Sobre infância(s) e temporalidade(s) .................................................................. 42
2.4 Por onde passa a Terceira Margem do Rio? ....................................................... 46
3 INFÂNCIA(S) E CIDADANIA: UM GRANDE SER-TÃO ....................................... 50
3.1 A dança dos conceitos - e seu desdobramento no campo ideológico ................ 72
3.2 Quando o discurso da cidadania se esvazia, ou a “descidadania” social
concreta...................................................................................................................... 84
4 AUTORIA, INFÂNCIA E ESCOLA: NA CONTRACORRENTE ............................. 96
4.1 De discursos e de autoria .................................................................................... 96
4.2 E, seguindo o nosso percurso de catar sonhos... apresentamos Monteiro
Lobato....................................................................................................................... 102
4.3 Catando sonhos: viajando pelo céu e rumo à Grécia! ....................................... 111
4.4 Afinal, o que chamamos autoria ........................................................................ 120
5 PROVISORIAMENTE, CONCLUINDO ................................................................ 128
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 136
10
1 INTRODUÇÃO
1.1 Escrever é também tecer...
Tem que saber ouvir o motor de poesia do vôo de um beija-flor. Vê-lo ficar
estátua, com as asinhas batendo pausas. E nada de imprudências, vê se deixa
o beija-flor fazer o serviço dele. Não se deve atrapalhar as importâncias.
(REZENDE, 2002:8)
Aprendi, com o exercício diário de fazer Educação, a inevitabilidade de pensá-
la a partir da prática é o que me atravessa e co-move, representa o aprendizado
mais importante, o que permite atribuir sentido aos pensamentos, às idéias, aos
referenciais teóricos com os quais vou encontrando e, fundamentalmente, o que me
permite redirecionar o olhar, redimensionar o saber, o conhecimento.
Do encontro diário com meninos e meninas de idades e classes sociais
distintas, deste percurso que reiniciamos a cada ano letivo, desta experiência radical,
fica a lição: é impossível chegar ao final sendo o que se era.
O desejo de produzir este estudo é, sem dúvida, o desejo de partilhar
experiências, de (re)pensá-las, de discuti-las e, quem sabe até, de reescrevê-las. Não
são poucas as vezes, nesta caminhada de trabalho em Educação, que somos
tomados por uma emoção, talvez misto de indignação e daquela vontade teimosa que
insiste em acreditar na Escola como espaço privilegiado de formação, ousaria dizer,
de formação cidadã. E, quando os alunos nos sinalizam que esta aposta não é estéril,
inútil, tomamos um fôlego e, às vezes, reinventamos a tal esperança. É por isso, e
quero ressaltar, que o desejo nesta produção acadêmica é de poder reverter esta
escrita em mais um momento de tomada de posição.
Crianças escrevendo. Crianças em processo de construção da escrita.
Crianças inventando histórias e poemas. Crianças dizendo a sua palavra. Escolhendo
entre dizer isso ou aquilo, isso e aquilo. Em dezesseis anos de trabalho com crianças
em sala de aula, estive sempre envolvida com o processo de alfabetização e
construção da escrita, durante anos com meninos e meninas de cinco/seis anos e,
11
mais recentemente, já com uma meninada mais velha, de terceira e quarta séries do
ensino fundamental. Nesse percurso, muito me chama a atenção os textos que
produzem, e que traduzem percepções, compreensões ou incompreensões,
sentimentos, leituras de mundo e posicionamentos de crianças de tão pouca idade,
aparecendo tais aspectos com tamanha força, a ponto de indicar a insuficiência de
uma análise do que é meramente lingüístico-textual. Hoje, já me parece inevitável
pensar sobre as condições e as formas segundo as quais um autor pode aparecer ou
acontecer na escola.
Essa quase indagação traz em si outras tantas: De que autor se estaria
falando? A criança é realmente autora quando escreve? Todo texto que a criança
produz é um texto com autoria? Ou, que caminhos fazem de um texto um texto?
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1
Algumas dessas indagações também foram postas por OLIVEIRA, Eduardo Calil de. Autoria a criança
e a escrita de histórias inventadas. Londrina: Eduel, 2003.
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Cenário um.
A história deste trabalho que, agora, me proponho a construir, inicia-se há
muitos anos, com meninos e meninas da Vila Proletária, no bairro da Penha, cidade
do Rio de Janeiro. Meninos e meninas comumente excluídos da tal vivência cidadã,
os que não dispunham do capital cultural
2
necessário a tantas “portas de acesso”;
meninos e meninas que, em processo de alfabetização, em geral tinham a escola
enquanto espaço único, ou muito privilegiado, para sua formação de leitores e
escritores; meninos e meninas que jamais desanimaram frente aos desafios
propostos e que tampouco endossaram as diferentes teorias dos “déficits”
3
que
rechearam a formação acadêmica de suas professoras; meninos e meninas que
estiveram sempre muito dispostos para aprender... participantes, perspicazes,
atentos, alegres, sensíveis, talvez porque sempre olhados com admiração, em sua
condição de aprendizes.
Naquele momento, desejávamos construir um projeto de alfabetização que
favorecesse, de certo modo, a formação do pensamento histórico. Digo “de certo
modo” porque, apesar de não pretendermos nenhuma transposição da proposta
freireana para alfabetização de adultos, nos intrigava o fato de não se realizar com
crianças uma proposta com a mesma grandiosidade e compromisso político.
Percebíamos naquela época porque nos doze anos transcorridos alguns avanços
foram significativos que as propostas teórico-práticas para Educação Infantil,
incluindo aí a Classe de Alfabetização, revelavam-se um tanto quanto insuficientes,
por não conseguirem superar as limitações historicamente impostas, como, por
exemplo, a precariedade das propostas para a formação do educador.
2
Para aprofundamento do conceito de capital cultural, ver: BOURDIEU e PASSERON. A Reprodução
Elementos para uma teoria do sistema de ensino.
3
Magda Sores, em Linguagem e escola uma perspectiva social, discute algumas explicações para o
fracasso escolar. Explicações que têm impregnado o discurso e as práticas pedagógicas: a ideologia do dom, da
deficiência cultural (e lingüística) e das diferenças culturais.
13
Trabalhava, no início dos anos 90, em um Programa de Educação Social,
associação civil, sem fins lucrativos. O programa não contava com nenhum apoio
governamental, era quase totalmente financiado por agências colaboradoras do
exterior. Desenvolvíamos propostas de âmbito experimental em Alfabetização, com
crianças de cinco/seis anos, ou seja, período anterior ao ingresso na Escola Pública,
tendo em vista que uma das grandes ausências do Estado estava justamente
relacionada ao atendimento de crianças na Educação Infantil. Não tendo condições
objetivas para atender toda a demanda e reconhecendo o drama vivido pela maioria
das crianças em seu processo de alfabetização assim como o que tal aprendizagem
representava socialmente , fazíamos a opção de trabalhar com esta faixa etária,
assumindo a alfabetização dessas crianças.
Alguns outros projetos eram também desenvolvidos pelo programa, tendo
sempre como eixo da ação pedagógica a educação comunitária para o exercício da
vida política e social transformadora. Apostávamos na configuração de uma relação
entre o comunitário e as outras dimensões da sociedade, igualmente em conflito.
Tínhamos claro que a fórmula de participação não poderia ficar longe da ação da
cidadania. Parecia-nos evidente o poder de participação das pessoas, quando
estimuladas por projetos comuns.
A comunidade é carente de condições básicas para a vida, na medida em que
nela são insuficientes as condições de moradia, serviços de saúde e educação.
Nossos alunos eram vítimas de um modelo de exclusão, a carência era a regra!
Vinham de famílias em geral analfabetas, para as quais a leitura e a escrita eram
instrumentos incipientes, condição reafirmada e agravada pela disseminação de
veículos como rádio e, principalmente, televisão, que fazem da comunicação oral a
dominante, assim como a ideologia intrínseca a tal processo. Por outro lado, já é
sabido o quanto é escasso nessa realidade o acesso ao material escrito o que, de
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certa forma, era motivo já suficiente para que fôssemos ainda mais cuidadosos com
relação a qualquer material escrito enviado para as famílias.
4
Construir um caminho metodológico que desse conta de alfabetizá-los,
formando-os leitores e escritores efetivamente, caminho coerente com nossas opções
políticas e teóricas, era o nosso desafio. Desenvolvíamos nossa proposta de
alfabetização tendo como referência a teoria da construção social do conhecimento. A
inserção destas considerações se dá no eixo das formas de construção vivencial das
crianças, fundamentadas na afetividade e no lúdico. Definimos como conhecimento
vivencial todas as relações que as crianças estabelecem no decorrer da vida, tendo
como referencial a família e a comunidade, cuja expressão é notoriamente mais
evidenciada na fala e nas brincadeiras. Sendo assim priorizávamos, no processo
pedagógico, a apreensão do sistema alfabético da língua, à luz do entendimento de
que as relações das crianças com o mundo têm como ponto de partida a sua inserção
nos grupos sociais. Isso significa que tentávamos garantir em nossos encontros a
construção do espaço coletivo e cooperativo a partir da valorização das brincadeiras,
experimentadas na comunidade e trazidas pela oralidade, além de ampliarmos este
universo, por onde os desdobramentos dos projetos desenvolvidos pudessem nos
levar.
Chamávamos “grupo áulico” sempre de quatro alunos a unidade com a
qual trabalhávamos.
5
Em geral, eram estáveis, para se configurarem como grupos, ou
seja, durante grande período de tempo sentavam-se com os mesmos amigos, e se
responsabilizavam pelos diferentes materiais que lhes eram dados. Pensávamos em
intervenções que os provocassem para discussões, negociações e decisões neste
espaço miúdo para que, num segundo momento, pudéssemos ampliar essas ações
para toda a turma. Organizávamos os grupos, de modo a garantir a maior
heterogeneidade possível: meninos e meninas pertencentes às áreas A, B ou C da
4
Na maioria das vezes, os livros, cadernos, textos das crianças eram os únicos materiais escritos
possíveis, ou, pelo menos, os que circulavam com mais freqüência.
5
Contávamos com cinco grupos em cada uma das três turmas.
15
comunidade
6
, em níveis diferentes de construção/hipóteses da escrita e leitura, por
exemplo. Desta maneira, o conhecimento construído pelo companheiro ao lado
representava um elemento importante, às vezes desestabilizador, que redundava em
novas aprendizagens, novas descobertas.
No entanto, acreditávamos no grupo, não apenas como locus privilegiado para
os desafios cognitivos, mas também como espaço singular das relações afetivas, de
constituição das próprias individualidades, e ainda como espaço político, porque de
democratização do que se aprende, de discussões e negociações.
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Assim sendo, o
trabalho com o grupo - tendo em vista a concepção de criança enquanto sujeito
histórico, pertencente a determinada classe social e participante de alguns grupos
sociais era uma exigência no estabelecimento das condições favoráveis à
construção do conhecimento. A premissa era a troca entre pares, onde o
conhecimento partilhado entre crianças e professoras aparecia como catalisador
deste processo. Procurávamos trabalhar com todos os elementos sócio-culturais
possíveis e disponíveis, como forma de apreensão de valores emancipatórios na
organização popular. Isto significa dizer que primávamos pelo pensar historicamente,
pela problematização da realidade e, naturalmente, pelo engajamento da população
infantil e também de suas famílias na luta pela superação de alguns problemas
emergentes na comunidade.
6
Esta classificação, construída talvez pela Associação de Moradores, se relacionava ao nível de pobreza
de cada família. Os que moravam na área C, por exemplo, eram as mais pobres, moravam numa parte mais rural
da comunidade. Para eles, a falta era ainda maior.
7
Para esta opção, muito nos ajudaram as contribuições de Vygotsky, especialmente o conceito de Zona
de Desenvolvimento Proximal: “É a distância entre o nível de desenvolvimento real que se costuma determinar
através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da
solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes.”
(1991:97)
16
Cenário dois.
Anos mais tarde, quase ano 2000, estava diante de novo desafio e o cenário
mudara completamente: Escola Sá Pereira, uma escola particular, situada em
Botafogo, zona sul da cidade, atendendo crianças de classe média. Outro lugar, outro
olhar, outra intenção ao ensinar, outra infância, outra cidadania. Talvez, e pude logo
suspeitar, houvesse algo em comum entre as duas experiências: o modo respeitoso
como as crianças são tratadas, ou seja, como pessoas de pouca idade, mas com
desejos, pensamentos, vontades de dizer, fazer, sonhar... como pessoas que são e
não que virão a ser, um dia, isso ou aquilo.
Na Sá Pereira, esse modo de compreender a infância se manifesta mais
evidentemente nas escolhas feitas pelas crianças no processo de sua aprendizagem -
sobre o que irão estudar e sobre o planejamento das ações do grupo a que
pertencem - assim como na responsabilidade das avaliações desse processo.
Também havia uma outra “coincidência” muito agradável entre as duas intenções
educativas, na Vila Proletária ou na Sá Pereira: o desejo de uma equipe em trabalhar
o saber e o sabor, articuladamente, parecendo se realizar as palavras de Roland
Barthes: “Nada de poder; um pouquinho de saber; e o máximo possível de sabor...”
(Apud Alves,1999:139)
Foram essas duas certezas, de certo modo, as responsáveis pela serenidade
necessária no acolhimento do desafio e na manutenção da opção por fazer parte
daquela equipe, como professora do ensino fundamental.
A escola foi fundada em 1948, como escola de música. Educar através da Arte
era o ideário fundamental e, aos poucos, foi se ampliando através da incorporação
das outras linguagens, como a dança e o teatro. Apenas na década de sessenta é
que se concretizou o sonho de uma escola infantil e, mais tarde ainda, de uma escola
de ensino fundamental anos iniciais, sempre tendo as Artes, o desafio estético,
17
como eixo norteador fundamental. E é isso o que temos na escola hoje, é deste
tempo que podemos falar.
No Ensino Fundamental, as crianças têm aulas de Projeto e de Tribo - que
explicaremos mais adiante - Matemática, Música, Coral, Teatro, Artes Plásticas,
Expressão Corporal, Educação Física e Inglês. Todas essas áreas aparecem
articuladas na feitura dos projetos de turmas, objetivando uma formação mais
integral, ao extrapolar os limites meramente cognitivos. A pretensão é resistir à
fragmentação do conhecimento.
A comunidade escolar escolhe, anualmente, um tema de estudo para o ano
letivo, sempre bastante abrangente e mobilizador. Chamamos esta prática de Projeto
Institucional. A partir disso, cada grupo constrói um percurso, um caminho, definindo
seus projetos de turma. A idéia fundamental é garantir certa unidade, para que as
pesquisas e os conhecimentos construídos possam ser partilhados entre as turmas.
Nos pontos de convergência podem ir experimentando o exercício de um saber mais
democratizado. A avaliação é realizada de modo contínuo, todo o processo é motivo
de observação, considerado nas atividades mais individualizadas ou nas coletivas.
Existe uma professora, em cada turma, responsável pelas atividades que
acontecem em torno do projeto, mais especialmente. Para garantir uma prática mais
interdisciplinar, tentamos contemplar aí, nas aulas de Projeto, as Ciências Sociais e
Naturais e a Língua, grande catalisadora nesse processo. Tais disciplinas que,
tradicionalmente, nos tem sido apresentadas de modo compartimentado, são tratadas
com um outro olhar cuidadoso e sempre articulado ao esforço metodológico de
apresentá-las numa práxis mais transformadora. Neste sentido, é Platão, (apud Morin
2001, s/p)
8
quem vem nos ajudar. “É a mais radical maneira de aniquilar toda a
argumentação esta de separar cada coisa de todas as outras, pois a razão nos vem
da ligação mútua entre as figuras.”
8
Trata-se de uma epígrafe na introdução, feita pelo autor, para o livro A Religação dos Saberes
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Compreendemos interdisciplinaridade não simplesmente como sinônimo de
prática pedagógica mas, e sobretudo, como avanço epistemológico. E neste sentido,
sabemos o quanto ainda temos por caminhar, se pretendemos um currículo não
disciplinar, tal como tem proposto Gallo(2001), um currículo em rede. Isso porque,
com o autor, consideramos que a interdisciplinaridade e as suas variantes apenas
minimizam alguns efeitos epistemológicos e didáticos da disciplinarização. Porém,
também reconhecemos que o conhecimento escolar não é pura repetição do
conhecimento científico. As escolas são espaços múltiplos, complexos em suas
relações, com movimentos também diversos e, historicamente, próprios.
Há um tempo do grupo escolar, dos professores, na construção coletiva deste
artefato social que chamamos conhecimento e que precisa ser considerado. Quanto a
isso, posso dizer que acessar as informações sobre o mundo, fazer as articulações e
organizações necessárias, perceber e conceber o contexto, o global (todo/partes), o
multidimensional, o complexo, ampliar o conceito de ciência interpretando os fatos
humanos numa forma outra que inclui as dimensões éticas e estéticas têm sido a
nossa grande preocupação. O desafio será sempre grande, posto que a realidade
deixa de se apresentar completamente esclarecida, dando vez às contradições e às
incompreensões.
Reconhecemos também nosso compromisso na socialização do conhecimento
acumulado pela humanidade, mas só a consideramos efetiva se no processo de
aprendizagem estiverem garantidas a significação, a pertinência histórica e social, a
criticidade e certa graça, encantamento, fundamentais da tarefa de ensinar e
aprender. Senão, é conhecimento morto, estéril, sempre à espera de ser (re)
encantado por um grupo de crianças interessantes. Digo isso porque os projetos
institucionais da Escola Sá Pereira poderão ser quaisquer. A rigor, não se trata de um
tema que costumeiramente, ou imediatamente, associamos à infância ou, ainda, aos
currículos postos para os anos iniciais do ensino fundamental. Ou seja, não existe
nenhum conteúdo definido a priori. O que a escola apresenta em sua proposta
pedagógica são objetivos gerais e específicos, incluindo os conceituais, atitudinais e
19
procedimentais. Os conteúdos estão sempre relacionados aos projetos construídos,
que se renovam anualmente, e é por isso que se faz necessária a construção do
material didático pelo próprio professor, a partir de suas pesquisas com o grupo.
A Tribo é, por excelência, espaço de formação cidadã. Todas as turmas têm
encontro semanal, com uma professora exclusivamente responsável por este fórum
de debates. Em geral, os temas são os da vida cotidiana na escola:
É um momento de troca e análise das situações mobilizantes no dia-a
dia das crianças dentro ou fora do ambiente escolar, quando elas têm
um tempo e um espaço dedicados somente a colocar suas idéias,
discutir a sala de aula, a escola, o mundo. Exercita-se o ouvir e
pensar, especialmente o ponto de vista do outro (...) Aprende-se a
optar e a comprometer-se com o que foi combinado ou votado.
(Síntese da Proposta Pedagógica, pp 6 e 7).
Não é realmente de surpreender que a prática participativa, da vida
democrática, estimulada semanalmente nas tribos exercício da cidadania escolar -
e desde que já estão na primeira série, seja estendida para outros momentos, nas
diferentes aulas. Articula-se aos projetos e ao que é matéria-prima na relação
ensino/aprendizagem dos diferentes componentes do currículo. Estas outras aulas,
por sua vez e dialeticamente, acabam potencializando a discussão, ou seja,
representam o solo fértil para manutenção do que puderam experimentar de reflexão
crítica nas tantas tribos acumuladas. Projeto e Tribo se realimentam. Além deste
objetivo intrínseco à proposta pedagógica da escola, há certa crença, à medida que
as crianças irão se despedir na quarta-série, indo para outras e diferentes escolas,
que a tribo os encorajará a atuação em espaços políticos maiores.
20
Entrelaçando os cenários...
O que, de fato, surpreendeu, saltou aos olhos, assim que cheguei à escola, foi
a verificação de que as crianças, alunos da Sá Pereira, não tinham, de modo geral,
nenhuma dificuldade para colocar suas idéias, manifestar seus desejos, vontades ou
mesmo arriscar hipóteses sobre as questões apresentadas. Sabia também que se a
“tribo” estimula por um lado, por outro não seria suficiente para tanta desenvoltura,
não fossem crianças desde muito cedo respeitadas em seus direitos humanos, em
seus direitos de criança, quero dizer, meninos e meninas que experimentam o valor
de sua palavra, o acolhimento de seus anseios e necessidades. Meninos e meninas
cidadãos, por extensão da condição cidadã e privilegiada de suas próprias famílias.
Na Vila Proletária, também a intenção era garantir às crianças um espaço
fecundo para o exercício de compreensão do mundo, dizendo cada um a sua palavra,
e para a prática da participação democrática, mas precisávamos trabalhar muitíssimo
para que as crianças se encorajassem e dissessem a sua palavra, negada
historicamente a elas e às suas famílias.
Na Sá Pereira ou na Vila Proletária,
ensinar para a comunicação amorosa é o objetivo das línguas,
transmitir o acumulado na observação da biosfera para melhorar a
qualidade de vida das pessoas é o único sentido das Ciências, ser
protagonista do processo social é a razão maior do estudo da História
(Alencar, 2001:116)
Tal percurso em diferentes salas de aula, com meninas e meninos mais
abastados, ou com outros tantos vivendo em condição de extrema pobreza, me faz
crer que, se por um lado todos são potencialmente capazes de dizer e fazer da
escrita espaço vital de (re)significação do mundo, por outro, a miséria e a
impossibilidade de se ter uma vida cidadã, associados quase que invariavelmente a
uma condição desumana de opressão, trazem ensinamentos cotidianos de silêncio e
submissão. Como se desnecessário fosse dizer a própria palavra, reconhecer a sua
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palavra, se permitir às histórias inventadas. Difícil é, nessas condições, chegar à
escola achando que se tem o que dizer. A segurança da criação é de fundamental
importância e fica comprometida, se a criança não for respeitada em sua
manifestação sobre o vivido, sobre o contado.
Ainda maior deverá ser o compromisso dos educadores no encontro com tal
realidade e se, neste estudo, trago como tema/foco o ensino da língua materna é
porque compreendo que, especialmente para as crianças dos anos iniciais, esse
ensino se traduz em espaço privilegiado para a experiência da autoria, da criação.
Mas o ensino da língua pode, contudo, e há muitas evidências empíricas para
isso, representar o espaço da palavra negada, para que outras tantas palavras sejam
impostas, pasteurizadas. Por isso afirmo que se trago como objeto o ensino da
escrita e a autoria é porque não quero perder de vista a necessidade de “instaurar um
espaço de encontro criador e transformador da inércia escolar repetidora do mesmo.”
(Kohan, 2004:66)
Nesse sentido, o problema se insere na tentativa de construir uma abordagem,
que é político-filosófica e também metodológica, no que diz respeito ao
ensino/apreensão da Língua, numa perspectiva mais ampla, que busca constituir os
processos sócio-históricos da escrita: O que se escreve? Por que se escreve? Como
se escreve? Quais são as questões sócio-históricas que estão presentes na
discursividade? Como o espaço escolar constrói/constitui/destrói essa discursividade?
Estas são algumas das muitas questões que o atravessam?
No entanto, não me parece possível analisar relações que se estabelecem
entre autoria e infância, mediadas pelo espaço formal de “aprendizagem”, a escola,
ou mesmo discutir concepções de autoria, objetivos pretendidos, prescindindo de
uma reflexão cuidadosa, problematizadora, das idéias/categorias de ausência,
limitação e incapacidade, agregadas à infância.
22
Anos atrás, com os meninos e as meninas da Vila Proletária, percebia que a
aquisição da escrita - a possibilidade de contar e/ou criar muitas histórias, dar cores e
formas às narrativas - oportunizava uma experiência estética singular, especialmente
porque percebíamos, ali, desejo e prazer, crianças dizendo de si, de seus sonhos, de
sua vida, muitas vezes até entregues à atividade de (re) inventar a própria realidade.
Produzir painéis, cartazes, cartas, panfletos, jornais mensais, enfim, produzir escrita,
encher a comunidade, as famílias, de textos escritos, livros, cadernos, jornais,
poesias, histórias, etc, significou, para muitos, a inauguração de uma outra relação,
de uma outra conversa, de uma outra discussão, de uma esperança.
Na escola Sá Pereira, as crianças, em geral, chegam ao Ensino Fundamental
bastante conhecedoras de muitas práticas de escrita e de leitura, sua funcionalidade
já é, sem dúvida, reconhecida. Nosso desafio passa, então, por garantir-lhes a
condição da experiência. Dentre os inúmeros estímulos que lhes são disponibilizados,
provar da escrita, conhecer seu sabor e sua força, fazê-la espaço, potencialmente,
autoral - de (re) significação do mundo com intenção e inventividade é por onde
temos podido contribuir, e se fazemos esta aposta é porque a consideramos uma
experiência humanizadora essencial, já para os meninos e meninas de pouca idade.
Nas escolas, em geral, esta possibilidade é atrelada ao ensino da Língua. E,
nesse ponto, outras questões se apresentam: Não serão o aprendizado da leitura e
da escrita experiências inaugurais para as crianças, onde se conjugam imaginação,
ludicidade, poesia, arte e pensamento crítico? Negar-lhes tais experiências e
insistirmos no ensino da língua repetidor do mesmo não significa negar-lhes a
condição de sujeitos de direitos, negar-lhes, enfim, a condição de cidadania?
O que já sabemos é que, dentro da concepção do vir a ser, não há espaço
para pensar as crianças como atores sociais e autores de suas narrativas. Pensar a
criança como um vir a ser já implica uma dificuldade adicional para pensar a criança
sendo: o ser tudo no futuro esconde um não ser nada no presente” (Kohan,
2003:40). Dentro dessa perspectiva, oscilamos entre a idéia de potencialidade e de
23
inferioridade na compreensão da infância como ausência, vazio. Quais serão os
desdobramentos de tal concepção para as práticas educativas, especialmente para
as práticas de ensino da Língua materna? Pensar na possibilidade da criança
assumir, ainda que parcialmente, a condição de autoria, não deverá pressupor uma
ruptura com tal concepção, nos fazendo remontar a Platão (1996) que, em vários
lugares, nos Diálogos, em A República já defende a falta de razão, de
compreensão e juízo das crianças? Por isso, difícil será defender qualquer
possibilidade de criança-autora sem colocarmos em discussão tais compreensões de
infância. Antes, será preciso compreendê-la como condição de experiência. E,
quem sabe, possamos encontrar um novo início para outra ontologia e
outra política da infância naquela que já não busca normatizar o tipo
ideal ao qual uma criança deve se conformar, ou o tipo de sociedade
que uma criança tem que construir, mas que busca promover,
desencadear, estimular nas crianças, e também em nós mesmos,
essas intensidades criadoras, disruptoras, revolucionárias, que só
podem surgir da abertura do espaço, no encontro entre o novo e o
velho, entre uma criança e um adulto (Kohan, 2004:66)
Um outro aspecto a ser considerado é o fato de não podermos falar de infância
como abstração, sem a devida consideração dos aspectos sócio-históricos e também
culturais que estão aí implicados. Na verdade, poderíamos falar de infâncias, se
considerarmos toda a diversidade na qual estamos inseridos. Querer dizer a sua
palavra, poder dizer a sua palavra na invenção de histórias, por exemplo, requer certa
compreensão e segurança de que tal palavra tem importância, de que se trata de
uma experiência relevante, ou seja, precisa ter valor.
Penso que este projeto de estudo possui relevância para as práticas
educativas. Isso se considerarmos que a formação do aluno leitor e do aluno que
escreve é obrigação da escola, e todas as crianças têm esse direito mas não de
experimentar tais práticas de qualquer forma, e sim como possibilidade de criação e
beleza, como possibilidade de dizer a sua palavra. E, se objetivo analisar as relações
que se estabelecem entre autoria e infância mediadas pela escola, tendo em vista as
produções textuais das próprias crianças, é porque acredito nesse percurso como
24
revelador de algumas pistas importantes nesse sentido. Dar visibilidade aos escritos
das crianças talvez seja uma boa estratégia para defender a idéia de que não lhes
falta o que dizer. E, estou convencida, elas dizem com graça, inventividade e tomada
de posição. Precisamos é de certa disponibilidade para enxergar e fazer a aposta de
que não precisam esperar crescer para isso. Na escola, não estamos fazendo
nenhuma propedêudica. Preparando para. As crianças são, dizem, criam, inventam.
Portanto, uma grande questão é: Segundo que condições e sob quais formas um
autor pode aparecer/acontecer na escola? É disso que quero falar. E isso basta, pelo
menos por agora.
25
1.2 Sobre referenciais teóricos e metodologia
A dialética aqui proposta procura ser aberta, no sentido de que, partindo do
reconhecimento da tendência ocidental a certo determinismo científico,
dispõe-se a reduzi-lo ao mínimo possível. Não é possível deixar de
reconhecer que a dialética também é um sistema metodológico, um esquema
explicativo, uma expressão lógica e assim por diante. Ao mesmo tempo, isto
não é uma condenação à estática, mas a fundamentação da dinâmica, porque
se volta às estruturas que geram a própria necessidade histórica. (Demo,
1990:91)
O percurso, neste estudo, incluirá a apresentação de referencial teórico
específico sobre a infância, visando repensá-la como experiência. É justo nesta
força/forma de (re) significação que sou interpelada pela necessidade de pensar a
infância também alegoricamente. Para tal desafio, muito têm ajudado as obras de
Kohan (2003, 2004) e de Larrosa (1996, 1998, 2004), suas interseções entre Infância,
Educação e Filosofia.
Galeano (1999) e Sarmento (1997,2002) me fazem lembrar, no entanto, que
não poderei abrir mão de refletir também sobre a infância como experiência sócio-
histórica e cultural, já que estarei falando e trazendo à baila a palavra de crianças
reais, contando seus sonhos e expectativas, revelando sentimentos, indagando,
questionando e inventando histórias. Por esta inserção das crianças num mundo real,
e pela possibilidade, ou não, de dizerem a sua palavra, é que também será inevitável
uma reflexão sobre a relação infância e cidadania. Fui percebendo, e cada vez mais,
que se a cidadania não é propriamente meu tema ou questão, não posso ou quero
prescindir de uma reflexão que a traga no decorrer da análise.
O caso é que não podemos falar da infância, no singular, se não de infâncias
muitas delas. As tão diferentes condições que as crianças possuem para viverem isto
a que chamamos infância se relacionam, naturalmente, ao contexto sócio-econômico
e cultural no qual estão inseridas, bem como à sua condição de classe. E, por isto,
uma abordagem sócio-histórica torna-se imprescindível.
26
Quero dizer, ainda, que se farei tal abordagem é porque considero a
inventividade humana, a criação de que são capazes os indivíduos, uma ação que
também está relacionada com a realidade objetiva. E que não é possível
compreender tal realidade sem considerar princípios do método dialético, tais como
os do conflito e contradição.
Claro parece estar que em se tratando de infância não temos conseguido ir
além do projeto iluminista, pretensioso em transformar esses seres imperfeitos em
cidadãos do futuro. Para tratar de modo mais conceitual e problematizado a questão
da cidadania, muito têm ajudado as reflexões de Cortina (2005), especialmente ao
(re) apresentar a idéia de universalização da cidadania social. E é justo porque
qualquer formação social possui suas formas de contradição histórica que não posso
deixar de pensar a infância, em sua relação com a cidadania, sem considerar o
princípio da totalidade, a relação ininterrupta entre o todo e as partes. Em tempo,
esclareço que as totalidades aqui compreendidas serão sempre parciais. Tal princípio
metodológico está muito bem apresentado por Minayo, (1993) citando Joja:
Apreender os fenômenos em sua auto-relação e hetero-relação, em
suas relações com a multiplicidade de seus próprios ângulos e de
seus aspectos intercondicionados, em seu movimento e
desenvolvimento, em sua multiplicidade e condicionamento recíproco
com outros fenômenos ou grupos de fenômenos. (p.70)
Minayo (1993), discutindo aspectos ressaltados por Habermas, com relação à
concepção dialética, faz lembrar que um trabalho que se propõe crítico precisa ter
relacionadas às práticas da interpretação e da transformação. E, neste sentido,
descabido será pensar em uma totalidade metafísica. Ao contrário, num trabalho
crítico, trata-se de uma totalidade “que se faz no processo e que é operada também
no labor teórico”. Falo, então, de uma totalidade teórico-prática que “se recompõe
perenemente no trabalho de reflexão e permanece como horizonte regulador das
questões da prática.”(p.225)
27
O desejo é, aqui, poder trazer, como um dos fios desta narrativa, a palavra das
próprias crianças dizendo, contando, contestando em alguns de seus textos
escritos. Considero importante esclarecer que não farei com este material nenhuma
análise lingüístico-textual, ou seja, não tratarei de questões relativas à coerência,
coesão, por exemplo apenas se tiverem algum destaque especial na atividade
criadora do autor. Tampouco interessa qualquer discussão sobre normas e
convenções gramaticais.
O interesse é pelo conteúdo do texto, pelo que foi dito, pelo que a criança pôde
dizer de si, do seu mundo. Quero trazer à tona a competência que possuem para
recriar as relações do contexto em que estão inseridas, seus espaços e tempos.
Quero falar de uma vontade (que pode ser incentivada nas crianças) para também
expressarem seus desejos, emoções, maneira de ver e (re) significar o mundo, ou
seja, de pôr em relação as diferentes leituras que são capazes de fazer, e através da
escrita. É porque estou convencida desta possibilidade que pretendo falar em autoria.
E, se defendo a escola como espaço privilegiado para este tipo de prática é porque
aposto na escrita como ação humanizadora a escrita como espaço para pensar o
que se vive, o que se lê, lugar de ação/reflexão; a escrita como espaço de atribuição
e construção de sentidos, lugar de correr riscos e imaginar, resgatar a experiência
vivida, recriar, procurar, transformar.
A pesquisa é teórica, baseada em bibliografia significativa acerca do(s)
objeto(s) de estudo, mas sempre mobilizada pelas experiências também significativas
no espaço formal da escola, aprofundando, problematizando a relação teoria/prática.
Os textos das crianças são reveladores de uma autoria, aqui, modesta e inicialmente,
compreendida como prática de escrita intencional do sujeito que quer dizer a sua
palavra e possui alguma consciência do processo de criação, mesmo se tratando de
escritores principiantes.
Oliveira (2004) não nos deixa esquecer que a função-autor está em boa parte
determinada pela exterioridade, por um lugar social. Como produtores de linguagem,
28
podemos dizer que os seres humanos são, potencialmente, autores. Mas me parece
refutável a premissa de que todos o são, de fato. Isso porque, se pensarmos nas
dificuldades da vida material, no custo, em termos de violência e opressão, para a
manutenção das desigualdades, podemos dizer que, para a maioria das crianças, a
linguagem escrita é espaço de reprodução, repetição e imposição ideológica. Como
afirma Voese (2004):
O uso da língua não se reduz a algo como (de)codificação de uma
mensagem, nem apenas a interações eventos culturais , parece que a
produção de sentidos não sugere uma transparência e uma inocência,
antes, o contrário. Os subentendidos e as implicitações
comprometidas com determinados interesses são mais freqüentes do
que se espera ou pensa, e as interpretações que interessam ao
exercício do poder e que geram conflitos representam problemas
maiores do que o fato de fazer apenas uma leitura errada. (p. 40)
Evito, no entanto, o posicionamento maniqueísta presente nas crenças de que
os sujeitos são livres ou assujeitados. A língua é produto e, ao mesmo tempo,
processo. Neste sentido, instituída e instituinte. Condições dialetizáveis porque
convivem numa mesma totalidade, não se excluem simplesmente, assim como as
relações entre singular e universal, imaginação e razão, teoria e prática, base material
e consciência, objetivo e subjetivo, entre outras, costumeiramente dicotomizadas.
É neste momento, mais especialmente, que sinto a necessidade de
problematizar a escola, com suas práticas de ensino da língua materna e, para isto,
autores como Geraldi (1997,2003) e Voese (2005) têm vindo, igualmente, e com certa
freqüência, em minha ajuda.
É preciso reconhecer o esforço de alguns educadores, no sentido de
potencializar o conhecimento trazido pelas crianças no uso que fazem de sua
linguagem oral, contribuindo para que sejam usuárias ainda mais competentes da
língua. Isto porque garantem, na escola, o conhecimento dos mecanismos próprios
da escrita, possibilitando às crianças a maior diversidade de textos possível,
disponível. É este contato o que possibilita a compreensão das diferentes opções
29
textuais, em função dos, também, diferentes contextos e a percepção de que as
escolhas causam efeitos distintos.
É verdade, e minha experiência é importante neste sentido, que em muitas
escolas encontramos crianças, desde bem cedo, envolvidas com a investigação do
mundo que as cerca: lêem, escutam o que lhes é lido, anotam, registram suas idéias
e observações, curiosidades, e também se ocupam em expor o resultado de suas
descobertas. A capacidade de operacionalização no momento da produção de textos
relaciona-se, invariavelmente, com a leitura falo, aqui, de uma concepção ampliada
de leitura, que inclui a vivência que se dá no mundo, ou seja, a leitura que se faz dele.
A democratização deste saber é, sem dúvida, um dever da escola. Talvez, neste
sentido e tendo em conta esta preocupação, é que resida a força das palavras de
Machado (1999)
O direito à leitura é um direito básico do cidadão, como o direito à
saúde, à segurança e à habitação (...)
A exigência de qualidade artística numa obra não é um luxo elitista,
constitui uma necessidade, não para que todos sejam artistas mas
para que ninguém seja escravo. (pp:73-74)
Fazer uso adequado da língua em diferentes contextos, produzir textos com
boa correção ortográfica, coerentes e coesos, argumentativamente fundados e
narrativamente relevantes, sem dúvida, são de fundamental importância quando se
tem em conta o papel da escola no aperfeiçoamento dos conhecimentos adquiridos
pelas crianças, na medida em que vão aprendendo a falar. Mas temos aí uma
intenção clara de contribuir para a formação de bons produtores de textos e o que
neste momento inquieta é um algo mais, talvez, uma sutileza, um diferencial que salta
aos olhos, estando diante de alguns escritos das crianças, escritos reveladores de um
estilo, de uma força, de ponderações e argumentos, num sujeito arrebatado pela
magia da linguagem escrita.
Concordando com Rodrigues (2004), ao afirmar que, além do desejo que
poderá necessitar de cultivo talento e imaginação são essenciais para a prática da
autoria, penso que não se bastam. Experiência e competência são também bastante
30
importantes. O aprendiz precisa compreender como são os mecanismos da narrativa.
Não quero dizer com isso que seja suficiente conhecer tais mecanismos para que
eles sejam operacionalizáveis. De certo modo, é o que a escola tem feito
tradicionalmente, e equivocadamente, na tentativa de formar escritores. Ao mesmo
tempo em que vai impondo práticas de silenciamento e destituindo a leitura e a
escrita de suas práticas sociais, escolarizando-as.
O desafio é muito maior, pois a primeira de todas as exigências para
compreensão dos mecanismos e do funcionamento da linguagem é proporcionar a
experiência de narrar e ser ouvinte de narrativas, para que a reflexão e a prática não
se dicotomizem. O professor será o mediador, ensinante, mas também aprendiz,
porque as compreensões serão sempre muitas e variadas, lançando os sujeitos
envolvidos em novos processos de experimentação e de aprendizagem. Como quem
lida, oficialmente, com a iniciação em tal funcionamento é a escola, é que pergunto:
onde mais poderemos, então, iniciar o projeto radical e revolucionário de “socializar a
idéia de que a leitura e a escrita como instrumentos de imaginação são direitos,
prazer, arma de combate, caminho de redenção, troféu da condição humana”?
(Rodrigues, 2004:193)
31
2 DE QUAL LUGAR ESTAMOS FALANDO? A TERCEIRA MARGEM DO RIO
9
VERDADE
A porta da verdade estava aberta,
Mas só deixava passar
Meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
Porque a meia pessoa que entrava
Só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
Voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
Onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
Diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
Seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
(DRUMMOND: 1985:42)
9
ROSA, Guimarães. 1988
32
O discurso amoroso é hoje de extrema solidão. Tal discurso talvez seja falado
por milhares de sujeitos, mas não é sustentado por ninguém; é completamente
relegado pelas linguagens existentes, ou ignorado, ou depreciado ou
zombado por elas, cortado não apenas do poder, mas também de seus
mecanismos (ciência, saberes, artes) (BARTHES: 2003, s/p Grifo meu)
10
2.1“Nem no ovo o pinto está intacto”
11
Hoje, não são poucos os autores que nos chamam a atenção para o império
da Razão, enfatizado e reforçado ao longo dos séculos. Ainda que não seja
desconsiderando o papel revolucionário que a Ciência desempenhou em determinado
momento de sua história, não podemos deixar de reconhecer que “as promessas
iluministas de um mundo mais justo, mais igualitário, livre, fraterno e feliz parecem
diluir-se no horizonte de nossas esperanças.” (Veiga-Neto, 2001: 229) Basta um olhar
atento para as reflexões mais atuais sobre as diferentes ciências humanas,
especialmente quando se propõem a discutir os novos paradigmas marcados pela
pós-modernidade
12
, e perceberemos que não faltarão críticas, sobretudo acerca da
pretensão de neutralidade científica, da desvalorização dos afetos e, naturalmente, da
crença em um conhecimento desinteressado, tal como na imagem construída por
Weber (Apud Alves, 1981):
E a libélula sonhava que era um sábio... e os cientistas sonhavam que
não mais sonhariam e imaginavam que a imaginação havia morrido...
Com eles nascia uma nova raça de indivíduos frios e racionais e que
diziam para si mesmos: “somos reais inteiramente. Já não existe em
nós nem crença, nem superstição”. E pensavam que, com eles, a
civilização alcançara um nível nunca dantes atingido. (p.57)
Desde já, gostaria de deixar claro que tento escapar do lugar de polarização
entre modernos e pós-modernos. Estou acolhendo, porque considero que poderemos
10
Esta citação encontra-se na apresentação do livro Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland
Barthes.
11
ROSA, Guimarães. 1988, p.15
12
Ao utilizarmos a expressão pós-modernidade não estamos nos rendendo às reflexões que a concebem
como novo estatuto teórico-epistemológico para o mundo antes moderno. Ao contrário, acreditamos que o mundo
moderno segue sendo, com as inconsistências e (in)coerências próprias à sua natureza. Nesse sentido, faz parte
da dialética da modernidade a atual relatividade, a visão em rede cada vez mais paradigmática sem, contudo,
-la, ainda, em essência. Ver Freitas, 2005
33
avançar epistemologicamente, algumas reflexões trazidas com mais veemência por
autores tidos como “pós-modernos”. Isto porque algumas de suas críticas com
relação à pretensão moderna são bastante relevantes. Ou, talvez, o momento
histórico é que seja mais propício para que tais críticas venham à tona, posto que na
História, e de dentro da própria Modernidade, muitas críticas já lhe foram feitas.
Freitas (2005), por exemplo, nos faz lembrar das mais diversas contestações à
modernidade tecnológica, na medida em que, e questionando o discurso pós-
moderno, vai defendendo uma pós-modernidade comprometida com a libertação. Em
certo sentido, se as promessas iluministas de um mundo mais igualitário diluíram-se,
como sinalizou Veiga-Neto (2001), já é passada a hora de reinventarmos a esperança
e revermos o lugar que poderá ser ocupado pela imaginação, neste processo de
construção de uma nova ‘utopística’, “de um sistema histórico que maximize a
igualdade e a fraternidade, que aumente o controle da humanidade sobre sua própria
vida (democracia) e que liberte sua imaginação”. (Freitas, 2005:117 Grifo meu).
Talvez ainda possamos “recuperar” o sentido da Humanidade, mas, para isso,
devemos insistir. Insistir, e muitas vezes, numa saída que seja coletiva. Vale lembrar
que mesmo as liberdades individuais só podem dar-se no coletivo. De forma solitária,
não há possibilidade de saída, sob o risco de nos perdermos num narcisismo
individual e mesmo cultural.
Mas qual será o projeto possível? Aquele que promoverá o reencontro com as
utopias e com os sonhos inconclusos. Tem sido difícil saber em que deveremos
apostar. Isto porque, se por um lado, as grandes narrativas não nos levaram,
concretamente, a um projeto de sociedade, de fato livre e igualitária - não fomos além
das esperanças e de uns tantos equívocos lançar mão das particularidades para a
construção de tal projeto, me parece, no mínimo, bastante arriscado, especialmente
porque dissolvemos nossa possibilidade de resistência e, provavelmente, já não
seremos capazes de reconstituir as estruturas mais profundas da economia política,
34
do poder e da cultura nos arranjos contemporâneos, o que inviabiliza qualquer projeto
de emancipação.
Japiassu (1997) nos oferece uma pista quanto a esta aposta, ao defender que
é necessário
abordar toda e qualquer questão segundo a perspectiva do universal.
Não se trata de um universal da dominação, esmagando, violentando
ou desqualificando os valores particulares, mas de um universal que
se afirma como liberdade, pois visa sempre buscar o universal no
particular e libertar toda particularidade dos particularismos que a
espreitam. (1997:96)
Ainda vale dizer que, se não estou falando de uma perspectiva pós-moderna,
em definitivo, é também porque insisto em olhar a Ciência como possibilidade de
interpelação, de construção crítica. Mas me sinto instigada pela denúncia, sob a
forma como vem sendo anunciada, porque não é difícil detectar uma certa tendência
ao totalitarismo científico e à construção ideológica: “fora da ciência não há salvação”.
Considero de fundamental importância observar a relação entre Ciência e
Poder, em que é possível identificar, a despeito de quantas formas se possa ter
considerado o senso comum, que o “resultado foi a superação de um determinado
senso comum pela criação de um outro, mais adequado à concepção do mundo do
grupo dirigente.” (GRAMSCI, 1995:145)
A questão da objetividade científica pode ser abordada na perspectiva de uma
construção muito mais política do que científica, embora tenha se tornado um
princípio básico da prática científica a partir do século XIX, chegando aos dias atuais
com relativo vigor, agora reforçado pela cultura tecnológica. Neste sentido, importante
é observar a possibilidade de sua dimensão política definir-se no âmbito do
conservadorismo, declarado pelos principais pensadores positivistas para quem a
propósito da definição da sociedade burguesa industrial cabia a concepção
positivista do mundo natural transposta à dimensão humana econômica, política e
social a tarefa de garantir conservação, justificando ‘cientificamente’ a ordem
35
‘natural’, não das diferenças, mas das desigualdades nas sociedades hierarquizadas
(LÖWY, 1994).
É possível identificar a construção histórica do cientista como um mito, o
especialista do pensar, do desvendar “verdades” e construir conhecimentos, técnicas
e tecnologias que, legitimamente, devam induzir a uma série de comportamentos,
sobretudo adequações a uma ordem apresentada quase sempre também como
‘natural’. A transposição dessa naturalização da Ciência e da autoridade científica às
ciências humanas e sociais, por construção do pensamento positivista, pode ser
interpretada como um problema epistemológico e político para o mundo
contemporâneo, na medida em que foi efetiva na construção de ideologias de
objetividade, inefabilidade, previsibilidade, permanência, conservação.
Desde que se conceba a intrínseca relação entre sujeito e objeto, de difícil
aceitação torna-se a idéia de que a ‘objetividade’ científica só é possível onde não
exista uma relação pessoal, de afinidade, interesse ou ‘paixão’. Alves (1981:15)
apresenta uma contestadora e, de certa forma, irreverente passagem, despertando
questionamentos a partir da seguinte reflexão: crer nesta ciência desinteressada é,
mais ou menos, admitir que sendo o sujeito apaixonado por flores jamais poderá
conhecê-las cientificamente; detestando a poluição, tampouco poderá estudá-la,
porque os resultados poderão, estes sim, estar contaminados. Santos (1985:48), por
sua vez, ousando ainda mais na proposta de uma transgressão metodológica, afirma
que "cada método só esclarece o que lhe convêm".
Quais são as interlocuções possíveis quando os resultados científicos parecem
quase tão inevitáveis quanto incontestáveis, assim como os discursos que os
anunciam? Talvez estejamos diante de uma ideologia de inevitabilidade... Nesta
perspectiva, parece importante ter em vista que, se no atual e complexo conjunto de
representações ideológicas, mudança é uma das palavras de ordem, mediante a
apreensão de sua ressignificação, não é difícil constatar que estamos, no mínimo,
diante de um contra-senso. Assim, se a ordem neoconservadora e as ciências, que
36
lhe têm conferido legitimidade, promovem a ideologia da mudança, torna-se uma
ação de responsabilidade desconfiar dos caminhos por elas traçados.
Na complexa relação entre ciência e tecnologia, traduzida no projeto político da
tecnocientocracia, é possível perceber a extensão do modelo declaradamente
conservador inaugurado por Comte que, segundo Löwy, acabou por tornar-se “de
maneira direta ou indireta, aberta ou encoberta, substancial ou diluída, total ou
parcial, reconhecida ou não [...] um dos pilares da ciência universitária (ou
institucional) moderna, até hoje.” (1994:26) De certa forma, a colocação de Konder
(1981) vem esclarecer ainda mais a posição da ciência enquanto construção teórico-
medológica inserida em um projeto político:
Nas coisas que Stálin dizia ou escrevia apareciam, volta e meia, o
advérbio 'objetivamente' e o adjetivo 'objetivo', precisamente porque
ele não encarava dialeticamente a questão do papel da subjetividade
da história e tendia a identificar 'subjetivo' com arbitrário e o 'objetivo'
com científico. (p.72)
Observa-se que, por um lado, a construção histórica sobre a autonomia da
ciência, para não obedecer a outro critério senão a busca de suas verdades, se
apresenta como forma de luta contra aquelas verdades previamente construídas a
partir de critérios dogmáticos. Por outro lado, nas descobertas e construções das
verdades, existe a dimensão ético-política, onde se encerram valores e práticas como
a liberdade, a eqüidade e a justiça social, revelando concepções de mundo e de
homem.
O escrúpulo, portanto, reside na possibilidade de recair-se no totalitarismo
característico de uma racionalidade científica que reserva o lugar de ‘intruso’ para o
senso comum e interpreta a legitimidade das Ciências Humanas a partir de um
estatuto de objetividade extremamente perigoso, negando outras formas de
conhecimento, sugerindo certa desqualificação dos saberes construídos a partir de
outras lógicas diferentes da cultura científica e dominante, observada a relação entre
saber e poder.
37
A Ciência Moderna, tendo nascido e se desenvolvido em oposição ao
dogmatismo, desconstruindo verdades cristalizadas e promovendo rupturas, poderia
ter aí resguardado o compromisso com o pensamento crítico, oferecendo razão à
razão para as mudanças. O conhecimento científico, uma vez assumindo de maneira
responsável o lugar da sua criticidade potencial, pressupõe sua própria socialização
para não correr riscos de esterilidade. Entretanto, seu caráter inacessível à maioria
parece ter acabado por minimizar sua possibilidade crítica, na medida em que não
mobiliza, não instiga, não desafia o senso comum e não chega a ele, na maioria das
vezes, senão para apontar seus ‘equívocos’ e impor verdades, reproduzindo o caráter
dogmático que, propriamente, se propôs e propõe combater e superar, adequando-o
segundo as concepções de mundo que lhe convém redefinir.
No sentido dessas reflexões é que abro este capítulo com a expressão “nem
no ovo o pinto está intacto”. Em outras palavras, inicio minhas considerações teórico-
metodológicas, apontando o espaço em que vou me movendo a terceira margem.
Ou seja, me interessam as interseções e os meandros.
38
2.2 A propósito da escola
Educação é projeto simultaneamente político e filosófico, cuja compreensão
não cabe exclusivamente no âmbito da racionalidade científica. Por exemplo,
não há um currículo para a Educação Fundamental que possa ser
estabelecido apenas por critérios científicos, como se se tratasse apenas de
um objeto suscetível de ser exaustivamente compreendido pelo saber
objetivado. (Mendes,1987:60)
E em que medida interessa toda esta reflexão sobre o projeto da
modernidade? Na medida em que tal projeto institui a escola tal como a conhecemos
hoje. Na medida em que, por lá, delineia a formação de uma infinidade de gerações e
é passado adiante. E se quisermos pensar historicamente o artefato currículo, ou
mais especialmente o currículo de ensino da língua, produto e produtor de tal projeto,
não teremos dificuldade para perceber que as escolas tradicional, nova, tecnicista ou
mesmo progressista com as suas respectivas concepções fundamentais:
“humanista”, tradicional e moderna, analítica e dialética não escaparam da
supervalorização do que, no ser humano, chamamos de racionalidade. Justo aí,
encontramos, fundamentalmente, as bases dos projetos educativos que fomos
conhecendo e que, em geral, nos permitiram construir uma concepção de ensino, de
conhecimento, e, portanto, uma representação para o que seja a escola:
Uma das mais poderosas instituições implicadas com o
estabelecimento e a expansão do ordenamento no Ocidente. E nessa
verdadeira maquinaria de produção da episteme moderna, o currículo
vem funcionando, desde sua invenção, nos fins do século XVI, como
um dos mais poderosos dispositivos encarregados de fabricar o
sujeito moderno (...) um importante artefato nos processos de controle
geral e de subjetivação. (Veiga Neto, 2001:235)
Gostaria de, com uma reflexão de caráter mais epistemológico, contribuir para
trazer à baila a questão do conhecimento, muitas vezes secundarizada. Para isto,
tentarei escapar das denúncias legítimas sobre as relações de poder mascaradas,
por exemplo, nas políticas de currículo. Da visão pós-moderna me interessará,
especialmente neste momento, o caráter denunciador da pretensão científica
expressa, por exemplo, nas diversas polaridades que estabelece. Não se trata de
39
nenhum elogio ao relativismo e sim uma tentativa de desmistificar a idéia de que
somos sujeitos partidos e possuidores de uma razão autônoma, uma cabeça
pensante, responsável por nossas aprendizagens e ações mais nobres, tomando a
escola como espaço privilegiado para esse exercício, legitimado pelas ações de
ensinar e aprender.
Dentro desta perspectiva, a imaginação deixou de ser compreendida como
mediadora entre o sensível e o inteligível, como a compreendiam os antigos, e
passou a ser desqualificada, associada à idéia de delírio, fantasia, imprestável,
principalmente quando se trata de conhecer. Para Larrosa, a imaginação perdeu todo
o seu valor cognoscitivo e ficou submetida ao âmbito do psicológico. Em suas
palavras:
Para os antigos, pelo contrário, a imaginação era o meio essencial do
conhecimento. Recorde-se a máxima do aristotelismo não há
compreensão possível para o homem sem imaginação. A imaginação
era a faculdade mediadora entre o objetivo e o subjetivo, entre o
corporal e o incorporal, entre o exterior e o interior. Daí sua analogia
com a experiência. (1996:135)
E é assim que o discurso pedagógico dominante vai se tornando cada vez
mais estéril, pouco arejado e cativante. Constituído por palavras que soam falsas ou
vazias, e que já não dizem com algum sentido muito relevante, palavras que precisam
ser (re) habitadas. Como tantas outras coisas, o saber especializado tratou de
racionalizar a infância, que já está legitimada, apreendida, explicada, pelo
conhecimento científico. E
o que poderia ser compreendido como uma construção do sujeito,
mediada por sua inserção histórico-cultural, adultera-se num processo
de ‘assujeitamento’ da criança a um modelo de desenvolvimento
cientificista, universalizante e a-histórico. (Pereira e Souza, 1998:31)
Para o projeto moderno, imaginação e beleza são desnecessárias no processo
de construção do conhecimento. Na escola, quando conseguem penetrar, não
conseguem escapar do lugar secundarizado, ou estereotipado, apenas escapes,
lazer, para que as coisas sérias e importantes possam continuar acontecendo.
40
O currículo é peça fundamental neste processo, compartimentou e
hierarquizou os saberes atendendo à lógica disciplinar que, por sua vez, tratou de
domesticar a complexidade do mundo. Assim, fomos estabelecendo uma relação com
o conhecimento tutelada pela escola, uma relação cada vez menos de experiência,
posto que pouco nos co-move ou transforma e, em geral, conforma uma relação
que tem prescindido de invenção / imaginação e beleza.
A notícia veio de sopetão: iam meter-me na escola. Já me haviam
falado nisso, em horas de zanga, mas nunca me convencera de que
realizassem a ameaça. A escola, segundo informações dignas de
crédito, era um lugar para onde se enviavam as crianças rebeldes. Eu
me comportava direito: encolhido e morno, deslizava como sombra.
As minhas brincadeiras eram silenciosas. E nem me afoitava a
incomodar as pessoas grandes com perguntas. (RAMOS, 1995:104)
A escola do imaginário de Graciliano Ramos ainda guarda grandes
semelhanças com boa parte das instituições escolares atuais de que se tem notícia.
Embora tenha se expandido no que diz respeito ao atendimento, ainda está longe de
garantir boas lembranças à maioria de nós, no que diz respeito às práticas de
respeito, amorosidade e, por mais paradoxal que possa parecer, de construção
efetiva de conhecimento.
Com relação à linguagem na escola, mais especialmente, tenho indagado, qual
é o espaço que tem sido disponibilizado para a irreverência, para a criação? A forma
como a Língua Portuguesa nas séries iniciais tem sido historicamente apresentada,
ainda com todos os avanços curriculares das propostas oficiais, não escapa a uma
perspectiva ordeira, catalogadora, organizadora, que faz da palavra instrumento de
assujeitamento, morta, que parece estar nos exercícios de repetição, nas práticas de
higienização
13
dos textos infantis, em geral a serviço das intermináveis correções
ortográficas, nas incompreensíveis classes de palavras e conjugações verbais. Os
signo-ficantes poderiam ter, nos espaços privilegiados para o “ensino” da língua,
13
Para um estudo mais aprofundado sobre a questão da higienização ver: JESUS, Conceição Aparecida
de. Reescrevendo o texto: a higienização da escrita. In: GERALDI, J WANDERLEY & CITELLI, BEATRIZ.
(Coords) Aprender e Ensinar com Textos de Alunos. Volume 1. São Paulo: Cortez, 2004.
41
terreno fértil para as tantas ressignificações infantis “conspirações” entre as
crianças, com a insistência e transgressão de que são capazes, e os sentidos que
também insistem na multiplicidade, na polissemia. Ao invés de signo-ficantes,
palavras mortas, de intimidação, obediência e coerção, são recorrentes às práticas
escolares. Ao invés do encontro palavra-participação, a escola tem propiciado
preponderantemente o encontro palavra-paralisação. O professor, muitas vezes
apartado de sua condição de leitor/escritor, já não sabe ser estando
desacompanhado de seu livro didático, agarra-se, então, a sua (quase)condição de
informante.
Não é desse lugar que quero falar. Quero situar-me no interstício, entre a mesa
do professor e as carteiras dos alunos que imaginam, e tentam mostrar essa
imaginação também por meio da palavra escrita. Quero lembrar que nas séries
iniciais do Ensino Fundamental, especialmente, quando o contato com as outras
áreas do conhecimento ainda se faz incipiente na escola, as aulas de Língua
Portuguesa podem representar espaço privilegiado para reconsiderarmos a
imaginação como atividade humanizadora, por nos permitir experimentar outros
papéis, outros lugares, outros sonhos, outras identidades, outros jeitos, ou seja,
outras possibilidades.
2.3 Sobre Infância(s) e Temporalidade(s)
42
Assim um crescer e desconter-se, certo como o ato de respirar - o de fugir
para o espaço em branco. O menino. (Rosa, 1988:7)
Difícil será bolir com o ideário e as práticas de desqualificação que circundam a
infância se não pensarmos na dimensão de sua alteridade. É justamente quando nos
parece que tudo relacionado à infância já foi pensado por especialistas e profissionais
de toda ordem inclusive por aqueles que tratam de denunciar práticas de violência e
de desigualdade as quais estão submetidas as crianças - ; é quando não nos parece
mais possível tantos produtos, entretenimentos, projetos destinados a elas que
reiteramos, com Larrosa, que a infância é um outro: “sempre além de qualquer
tentativa de captura” (1988: 230), e é neste sentido que sempre nos escapará.
Receber os meninos e as meninas na Vila Proletária ou na Escola Sá Pereira,
conhecendo os contextos das suas vidas, não significa que prevemos para essas
crianças o resultado de seus processos de socialização, de individualização e de
conhecimento. Não pensamos que as duas realidades, tremendamente distintas,
estão organizadas, prontas para serem “percebidas”, “categorizadas”; isto é, que elas
sejam, de forma bastante determinista, totalmente exteriores às próprias crianças.
Nosso esforço é não projetar à priori relações e possibilidades comumente
pensadas no espaço escolar em termos de competências/incompetências e nem
tampouco converter a infância aos nossos projetos para o mundo, para o futuro o
que nos faria lançar as crianças à condição de vir a ser. Nesta condição, e com
alguma sorte, seriam completadas pelos adultos ao redor com o que supostamente
lhes faltam ou seja, virão a ser, uma coisa ou outra, depositárias e dependentes dos
projetos e expectativas dos adultos com os quais poderão encontrar. Ou, quando
são, à criança cabe minimizar os males do mundo, portadora de certa ingenuidade e
pureza mas que logo, logo, serão “contaminadas” pela inevitável condição de sujeito
histórico e social. Ainda aqui, com todo o romantismo, não se escapa da carência,
mesmo se tratando da falta de esperteza ou, se quisermos, de consciência, ao
43
mesmo tempo em que dificilmente se considera o que pode ser problema, hostilidade,
e angústia para as crianças nos diferentes contextos de suas vidas. Contrário a isso,
pensamos que não podemos abrir mão da inquietação, do enigma, tal como
apresenta Larrosa, (1988) provocados pelo incerto e pelo desconhecido relacionados
a alteridade infantil, para pragmaticamente pensarmos no progresso, no futuro e no
mercado. “A infância, entendida como um outro, não é o que já sabemos, mas
tampouco é o que ainda não sabemos.” (Larrosa, 1988:231)
São muitas as infâncias, mesmo em grupos aparentemente homogêneos.
Sendo assim, não há possibilidade de fixação, por mais que se tente. Quantas
infâncias cabem na realidade da Vila Proletária, ou na realidade da Sá Pereira?
Sendo muitas, pensá-las relacionadas apenas às diferentes classes sociais não é
suficiente. Elementos que dizem respeito à cultura, à religiosidade, à etnia, à
sexualidade, ao trabalho, somados à presença, cada vez mais marcante, dos meios
de comunicação de massa com as ideologias que lhes dizem respeito e mais o
avanço das novas tecnologias, são aspectos muito relevantes para esta pluralidade,
para estas infâncias. Ao mesmo tempo, pensá-las monoliticamente, encasteladas em
suas classes, é reduzir possibilidades de transposição, de flutuação para uma terceira
margem. A infância, comumente tratada no singular, com tom de adjetivação e a
despeito de como se possa (des) qualificar lugar da falta e da ausência, da
potencialidade ou ainda da pureza e do paraíso não é senão uma etapa, quase
uma questão de tempo, é cronológica e, por isso, passa, nas palavras de Larrosa
(2001) a criança não é nem antiga nem moderna, não está antes nem depois, mas
agora, atual, presente” (p.284).
Kohan, em estudos dedicados a questão “O que é a infância?” propõe que a
pensemos como condição de experiência, ou seja, a infância não apenas como
questão cronológica, etapa de desenvolvimento - a infância dos estudos de
especialistas, a infância das políticas públicas, a infância dos conselhos tutelares e
estatutos. Esta seria a infância majoritária, aponta o autor (2004).
44
Segundo ele, também podemos pensar em uma outra infância, e não
necessariamente excluindo a primeira. Trata-se de uma infância minoritária, e que
habita outra temporalidade. Esta seria a infância como experiência: “É a infância
como intensidade, um situar-se intensivo no mundo; um sair sempre do ‘seu’ lugar e
se situar em outros lugares desconhecidos, inusitados, inesperados.” (Kohan,
2004:63) Nesta perspectiva, a palavra grega mais adequada para referir-se ao tempo
deixaria de ser chrónos da ordenação temporal, que soma passado, presente e
futuro para ser aión que designa “já em seus usos mais antigos a intensidade do
tempo, da vida humana, uma duração, uma temporalidade não numerável nem
sucessiva, intensiva” (Idem, p.54)
Ao fazer uma reflexão sobre infância, em sua relação com a cidadania e com a
autoria, atento para essas duas perspectivas (majoritária e minoritária). A Educação
é, paradoxalmente, prática da continuidade e da descontinuidade, da História e do
acontecimento,
cada novo ser humano se constitui em novo sujeito de linguagem,
afirma sua singularidade de ser falante. Por isso, a infância introduz a
diferença e a descontinuidade e, nessa diferença e nessa
descontinuidade, a possibilidade da comunidade e da história
humana. (Larrosa, 2001:293)
Obviamente, se estamos trabalhando com pessoas de pouca idade, situadas
num contexto que é sócio-histórico, contínuo e cheio de contradições, estamos
lidando com o cronológico. No entanto, isto não é suficiente quando, no convívio com
as crianças, no encontro mesmo entre adulto-criança acontece algo de intenso, de
tenso, de descontínuo até, às vezes, de ruptura com o que estava posto e
estabelecido, de fragilidade quanto a nossa solidez, de interpelação das nossas
certezas, de atribuição de novos sentidos, de indagação sobre as nossas boas
intenções, de interrupção dos planos e inauguração de algo no âmbito do Aión.
Ao tratar de autoria, estou pensando em uma dimensão inventiva, onde a
criança, a infância, também educa, não apenas é educada. Para isto, não pode existir
uma temporalidade cronológica apenas, chrónos não pode dar conta, e a criança já
não comporta a concepção do vir a ser. Pode dar-se o contrário e, também como
45
sinalizou Kohan (2004), o adulto aproximar-se do devir-criança, não porque irá
infantilizar-se ou mesmo desejar manter-se jovem, mas porque “devir-criança é,
assim, uma força que extrai da idade que se tem, do corpo que se é, os fluxos e as
partículas que dão lugar a uma ‘involução criadora’ (...) a uma força que não se
espera, que irrompe, sem ser convidada ou antecipada” Assim sendo, saber
envelhecer seria “extrair os fluxos que constituem a juventude de cada idade” ( p.64).
No sentido que venho imprimindo às reflexões e pensando na condição de
educadores, importante é não rejeitarmos o encontro e, mais(!), insistindo em sua
dimensão criadora, pensarmos em seu caráter de resistência porque, se fundando no
reconhecimento da alteridade, do enigmático da infância, não nos deixa esquecer da
nossa responsabilidade. Grandiosa responsabilidade que vale a extensa citação:
... a infância nunca é o que sabemos (é o outro dos nossos saberes),
mas, por outro lado, é portadora de uma verdade, à qual devemos nos
colocar à disposição de escutar; nunca é aquilo apreendido pelo
nosso poder (é o outro que não pode ser submetido), mas ao
mesmo tempo requer nossa iniciativa; nunca está no lugar que a
ela reservamos (é o outro que não pode ser abarcado), mas devemos
abrir um lugar para recebê-la. Isso é a experiência da criança como
um outro: o encontro de uma verdade que não aceite a medida do
nosso saber, com uma demanda de iniciativa que não aceita a medida
do nosso poder, e com uma exigência de hospitalidade que não aceita
a medida de nossa casa. (Larrosa,1998:232. Grifo meu)
46
2.4 Por onde passa a Terceira Margem do Rio
14
Dizer que somente vale uma interpretação do mundo que dê razão a
vocês, senhores cientistas; uma interpretação que autorize a procurar e a
perseguir trabalhos no sentido que vocês fazem (é mecânico que vocês
pensam, não é?); que somente vale uma interpretação do mundo permitindo
apenas contar, calcular, pesar, ver e tocar, é estupidez e ingenuidade, se é
que não é demência ou idiotice. Uma interpretação "científica" do mundo, tal
como os senhores a entendem, poderia ser uma das mais tolas, das mais
estúpidas dentre todas as que são possíveis: que isto seja dito a seus ouvidos,
à sua consciência, senhores mecânicos de nossa época, que se misturem com
os filósofos e que imaginam que sua mecânica seja a ciência das leis
primeiras e últimas, e que toda existência deva repousar sobre elas como
sobre um fundamento necessário. Um mundo essencialmente mecânico. Mas
seria um mundo essencialmente estúpido. (Nietzsche, s/d: 124)
Penso que a longa citação se justifica pela precisão. Ao mesmo tempo em que
parece nos contar de maneira completa sobre a pretensão científica, não deixa de
nos dar o que dizer. Nos dá o que dizer quando vemos as dicotomias entre
homem/sujeito/cientista/filósofo/consciência e mundo/objeto/realidade que estão por
ser controlados, administrados. Nos dá o que dizer quando encontramos sinalizada a
necessidade de construção de um conhecimento assegurador, que tenha na certeza
a medida para toda a realidade; nos dá o que dizer quando percebemos
subentendido um homem partido, em razão e corpo/sensação/desejo/afeto tendo, em
geral, a supremacia incontestada da primeira parte. O homem partido esforça-se para
negar que conhece com o corpo inteiro, talvez porque pretenda pré-existir à
experiência e estar, desde sempre, constituído. Não é fácil admitir o afeto enquanto
origem, a possibilidade enquanto lugar de concretização do homem, a experiência da
liberdade e o saber comprometido com a vida. Desde que, em tempos de corrida
desenfreada para obtenção de certezas, tempos de exacerbação do controle, do
auto-asseguramento e de captura pragmática do que possa ser novidade. Tempo de
tirania da racionalidade, racionalidade que vem assumindo o cuidado patenteado para
a resolução de nossos problemas de toda ordem. Ou seja, o homem partido é o
homem que faz, que projeta, que intervém, que toma a iniciativa, que encontra seu
destino na fabricação de determinado produto, na realização de uma obra. A eficácia
14
ROSA, Guimarães, 1988
47
de suas ações está determinada pelo seu poder de fazer passar do possível ao real.
Mas, seu pensamento é calculado, sua ação é técnica, o que almeja é conseguir um
produto real, mediante a intervenção calculada num processo pré-concebido.
Poderíamos dizer, trata-se de uma prática técnica, definitivamente, em que o
resultado deve se produzir segundo o que foi previsto antes de iniciar.
A Teoria do Conhecimento em sintonia com tal projeto da qual a escola foi
herdeira, sempre a posteriori e, muitas vezes, com um nível bastante abrangente de
equívocos transmutados nas diferentes práticas pedagógicas está comprometida
com determinada concepção do que seja conhecer e, naturalmente, do que seja a
realidade. Longe de ser pensada enquanto movimento, a realidade já se faria a partir
da dicotomia sujeito/objeto, interno/externo, e teria no conhecimento a possibilidade
de intermediação desses dois pólos, desses dois termos, que, dentro desta
perspectiva, já existem antes de qualquer relação, são entidades estanques, que
terão no conhecimento desinteressado, despoluído das contaminações de todo tipo, a
possibilidade de estarem articuladas. Aos desinteressados de todos os tempos,
Nietzsche parece responder "Contra o positivismo, que se detém nos fenômenos - 'só
existem fatos' - eu diria: não, os fatos são precisamente o que não são, apenas
interpretações." (Apud Tarnas, Richard, 1999:397)
O conhecimento é o instrumento, o meio, deverá desfazer as ilusões,
sobretudo porque dispomos de uma razão apartada do mundo, capaz de pensar
causas para os fatos. “O conhecimento passa a ser uma terceira coisa (...)
responsável por estabelecer a mediação. Ele torna-se uma espécie de hífen para
conectar sujeito e objeto, homem e mundo.”
15
Dentro desta perspectiva, a tensão que constitui a intensidade do viver está
desfeita em pólos, ou seja, de acordo com o ideário moderno, o eu pré-existe e é
portador/construtor de um conhecimento imaculado puro, desinteressado e
15
Esta citação foi feita muitas vezes pelo professor Gilvan Fogel, em suas aulas de “Teoria do
Conhecimento”. É de sua própria autoria, apresentada no material que disponibilizou para a turma um dos
registros de seu planejamento, o texto: Por que não Teoria do Conhecimento? Conhecer é criar. Faculdade de
Filosofia UFRJ 2000.
48
desejoso de objetividade. Este eu foi historicamente concretizado enquanto
consciência/razão e é ela que será capaz de, não apenas compreender a realidade
em seus aspectos mais obscuros, mas também fazer na realidade reparos
necessários. Neste sentido, a Teoria do Conhecimento se encarrega de construir uma
metodologia, podemos dizer, um método para construção deste conhecimento
imaculado, em última instância, um método de acesso ao real.
Não é possível admitir que o homem pré-exista. Trata-se justo do contrário, o
homem só pode ser tardio na medida em que pode ser qualquer possibilidade em seu
esforço de conquista da identidade, de experiência de liberdade, quando aceita o
desafio de realizar o que precisa ser realizado. Não há pré-existência porque o
homem já está sendo em situação, em inserção histórica, como já nos ensinara Freire
(2005). Tudo quanto se possa pretender depois, as diferentes teorias/sistemas, a
tentativa de relacionar os pólos sujeito/objeto é tardio, posto que a relação mesma
sempre já ocorreu e é impossível representar essa tensão, esse instante. O homem já
está sendo no mundo experimentando, com o afeto e o interesse que a Modernidade
pretendeu lhe retirar.
O saber/o conhecer se constitui enquanto força criadora, possível apenas com
a experiência da participação, da escuta atenta de quem é capaz de considerar o que
a história revela, não para conservá-la, tampouco para superá-la, mas para que se
possa continuar dizendo, para (re) significá-la no processo de passá-la adiante e
assim transformá-la. Então, se compreendemos que conhecer é também criar, que
tanto homem quanto realidade são também afetos (afecção), precisamos admitir que
existem muitas possibilidades de ser pelas quais o homem é tocado, são múltiplas as
possibilidades de atividade, de experiência.
Não há, neste estudo, espaço para a soberania da razão, de alguma
racionalidade abstrata, verificação factual. Também não há lugar para antagonismos,
dualismos, recorrentes à tradição metafísica. É importante destacar que qualquer
consideração do porvir representa uma recusa radical à cristalização, à verdade
49
impositiva, cristalizada, que impede a transformação. Deste modo, também parece
não existir espaço para resignação e para nostalgia. O mundo é este, é aqui,
parece aberto e disposto para ser lido de outra maneira o tempo de viver, de atuar,
é agora e deve ser valorizado em sua condição efêmera, finita, não cabendo
nenhuma idealização.
A terceira margem do rio passa por uma necessidade de marcar certo
posicionamento teórico-metodológico, que insistirá em não prescindir do relativo e
transitório, porque nele reconhece o princípio dialético, compreendendo, assim, a
totalidade em seu caráter parcial, mas também libertador, especialmente, e conforme
já lembrara Japiassu (1997), quando se trata de libertar as particularidades dos
particularismos que estão sempre à espreita. Também não prescindirá da totalidade e
dos valores universais, uma vez que se constituem como contrapartes do
posicionamento transitório e partido. Já dizia Camões que “o todo sem a parte não é
todo / a parte sem o todo não é parte”...
E se me proponho a refletir a partir de práticas textuais e dialógicas é porque
acredito que poderemos colocá-las no centro, como algo comum, compartilhado, que
congrega os cidadãos; os sujeitos-educadores, também aprendentes; as crianças-
aprendizes, também ensinantes; na medida em que evidenciam o espaço de
interação entre o eu e o(s) outro(s). Há qualquer coisa de expressivo, no sentido de
crítico e criativo, que poderá marcar/inaugurar a relação dialógica do eu com o outro.
50
3 INFÂNCIA(S) E CIDADANIA: UM GRANDE SER-TÃO
Dia a dia nega-se às crianças o direito de ser crianças. Os fatos, que zombam
desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata
os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar
como o dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem
lixos, para que se transformem em lixo. E os do meio, os que não são ricos
nem pobres, conserva-os atados à mesa do televisor, para que aceitem desde
cedo, como destino, a vida prisioneira. Muita magia e muita sorte têm as
crianças que conseguem ser crianças.(GALEANO, Eduardo.1999:11)
Num primeiro momento, trarei algumas inquietações acerca da infância, para
mim, bastante mobilizadoras. Depois, e porque tenho defendido para as crianças a
condição de sujeitos de direito e de fato , necessário foi pensar a metamorfose de
conceitos e valores que têm esvaziado o sentido e a prática da vida cidadã. Por fim,
inevitável foi refletir sobre a nossa condição de “descidadania” social e situarmos a
Educação neste contexto.
O caso é que, como já anunciado, não podemos falar da infância, no singular,
se não de infâncias muitas delas. As tão diferentes condições que as crianças
possuem para viverem isto a que chamamos infância se relacionam, naturalmente, ao
contexto sócio-econômico e cultural no qual estão inseridas. E sobre isto, são elas
que dizem:
51
52
53
16
16
Inspirados em “Infância”, de Carlos Drummond de Andrade e “A nossa Casa”, de Arnaldo Antunes. Os
autores estudam na quarta-série do ensino fundamental, na escola Sá Pereira. No ano de 2006, o projeto da
escola foi “A casa” - como grande metáfora - a partir da qual cada grupo / turma foi percorrendo o seu caminho de
estudo. Com os meninos maiores, da quarta-série, intensificamos o processo de participação na escolha do que
estudariam. Para isto, propusemos algumas atividades de sensibilização, as quais chamamos “aperitivos”, girando
em torno de alguns eixos tais como CASA-CASA/ CASA-CORPO/ CASA- NAÇÃO/ CASA-PLANETA. A proposta
dessa produção textual era pensar na própria infância em relação a essas diferentes casas: CASA, CORPO,
NAÇÃO, PLANETA, ou seja, O que é ser criança sendo menino ou menina, participante de determinada
família, brasileiro(a), habitante deste planeta chamado Terra? Era esta a contextualização. No final desta
seção, apresento um fragmento do relatório da Turma, registro reflexivo posto em discussão com os colegas, na
escola, disponível no site, e enviado às famílias. Para saber mais 1.
54
Os textos de Lucas e Daniel nos dão algumas dicas sobre suas infâncias,
conhecemos um pouco de suas famílias e gostos, de suas preocupações,
compreensões e desejos. Nas entrelinhas, ou de forma explícita, marcas sociais e
culturais, marcas que os diferenciam de muitas outras infâncias. Não é difícil perceber
a condição de privilegiados, de uma infância bem cuidada, com voz e vez, ora para
nos revelar posicionamentos frente a questões mais amplas, como para apresentar a
problemática das armas, ora para nos falar de relações mais íntimas, familiares,
caseiras, ou mesmo para nos revelar parte do processo de construção de
conhecimento e auto-conhecimento:
Dias depois, fui para a escola/Aprendi por lá que também
precisamos/Cuidar de outro “grupo”: o nosso planeta Terra/Esse
“planeta” eram vários países reunidos/Com várias famílias em cada
um deles/Outro dia aprendi que dentro de mim/Haviam várias
famílias.
E, ainda, o quanto será preciso saber de si, ou melhor, de si em relação ao(s)
mundo(s) para afirmar: “Meu mundo está dentro da minha casa,/É lá dentro o portal
do mundo da linguagem,/Ah, não!/O portal mesmo do mundo da linguagem /É o meu
corpo, o meu pensamento”...
Mesmo que possam parecer produções inusitadas para alguns, na medida em
que são crianças os autores, o fato é que permitem a busca de alguns fios comuns
para entrelaçar as diferentes infâncias. Talvez um desses fios esteja atrelado ao fato
de, um tanto mais, ou um tanto menos privilegiadas, e diferentemente do que
comumente se acredita, as crianças não são seres que virão a ser. Não! As crianças
estão sendo, já.
O problema deste “comumente pensado” vir a ser, é que tal compreensão
agrega à infância uma série de desqualificações. A ela estão, invariavelmente,
atreladas as idéias de menor e da falta. Basílio e Kramer, já na apresentação do livro
Infância, Educação e Direitos Humanos (2003) denunciam o fato de
55
o tema da infância e da adolescência, em vez de abordado como
uma categoria social constituída na história e influenciada por fatores
de caráter econômico, sociológico e político é reduzido ora a faixas
etárias, ora a níveis de escolaridade, ora a estratos ou grupos
sociais que têm alguma coisa em comum. (pp.14-15, grifo meu)
É verdade que, no Brasil, algumas conquistas no plano legal foram,
certamente, fundamentais, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) mas,
e não é menos verdade, temos dado marcha à ré, se considerarmos as políticas
conservadoras que nos têm assolado nos últimos anos e a conseqüente falta de
ações que concretizem a idéia de que as crianças são sujeitos de direito, e de fato, no
âmbito individual e coletivo. Quero com esta reflexão ressaltar os direitos que dizem
respeito às experiências culturais, artísticas e a garantia de poderem dizer a sua
palavra. De serem atores sociais e autores de suas narrativas, frutos das inúmeras
leituras e releituras que fazem do mundo. Estejam em que lugar social estiver.
Por um lado, o Estatuto sinaliza o reconhecimento da criança como um ser
social, que exige cuidados e amparos mas, por outro, não escapa às contradições de
uma sociedade profundamente desigual, o que compromete a sua concretização.
Sarmento (2002) nos fala de uma crise social da infância, que não deve ser pensada
fora do contexto da exclusão social, relacionada às variáveis de classe, etnia e
gênero. Assim é que faz referência a quatro espaços estruturais: o espaço da
produção (relação com o trabalho e distribuição de riqueza); o espaço doméstico; o
espaço da cidadania (escola e esfera pública) e o espaço comunitário (relações de
pares e culturas infanto-juvenis).
Com relação ao primeiro espaço, é possível sinalizar alguns pontos no que diz
respeito à exclusão social das crianças: pobreza, trabalho infantil, desigualdade no
acesso aos bens de mercado. Sobre isso, é Galeano quem nos diz:
Na América Latina, crianças e adolescentes somam quase a metade
da população total. A metade dessa metade vive na miséria.
Sobreviventes: na América Latina a cada hora, cem crianças morrem
de fome ou doença curável, mas há cada vez mais crianças pobres
em ruas e campos dessa região que fabrica pobres e proíbe a
pobreza. Crianças são, em sua maioria, os pobres; e pobres são, em
56
sua maioria, as crianças. E entre todos os reféns do sistema, são elas
que vivem em pior condição. A sociedade as espreme, vigia, castiga e
às vezes mata: quase nunca as escuta, jamais as compreende.
(1999:14)
No mundo globalizado o trabalho infantil, longe de ser erradicado, encontra
terreno fértil para a sua generalização, em condições absolutamente precárias: “são
escravinhos e escravinhas da economia familiar ou do setor informal da economia
globalizada, onde ocupam o escalão mais baixo da população ativa a serviço do
mercado mundial.” (Idem 1999:14).
Também se generaliza, a reboque do processo de globalização, um vasto
mercado de produtos para a infância, contribuindo para certa uniformização de jeitos
e estilos, desejos e expectativas, promovendo ainda maiores desigualdades, já que a
possibilidade do consumo está longe de ser para todos. Tal situação tem sérias
implicações no que Sarmento (2002) chama espaço estrutural, no âmbito do
comunitário. Compromete a relação entre os pares, condição de pertença a
determinado grupo, ou seja, compromete a construção da própria identidade.
Não são poucas as fraturas circunscritas aos outros espaços estruturais que
corroboram para a situação de exclusão das crianças.
17
No espaço doméstico, vive-
se uma grande fragilidade nas relações familiares ainda mais dificultadas porque
pouco se consideram as necessidades e especificidades de famílias cada vez menos
nucleares, sendo estas, ainda, colocadas em lugar de referência e modelo. Por outro
lado, pensando no espaço mais público de socialização, - a escola -, nos deparamos
com a realidade de uma instituição bastante comprometida, no que diz respeito ao
seu valor social e fragilizada por uma crise que extrapola, e muito, os limites de seus
muros.
17
Para uma apreciação mais detalhada relativa aos espaços estruturais e a infância ver: SARMENTO,
Manuel. Infância, exclusão social e educação como utopia realizável. In: Educação, Sociedade & Culturas, número
17, 2002.
57
Nas últimas décadas, temos visto a política sendo reduzida à idéia de
administração das coisas, o espaço público desqualificado como “espaço de
ninguém”, e o sujeito-cidadão transfigurado em cliente. Soma-se a isto a idéia de
menoridade, falta e incompetência relacionadas à infância e já podemos imaginar a
possibilidade de participação das crianças quase nula. Estão longe de serem
compreendidas como atores sociais na produção/reprodução cultural. A voz e o olhar
das crianças estão longe de serem considerados, especialmente quando a questão é
discutir o espaço público, as políticas públicas.
Como nos ajuda a refletir Sarmento (1997) sobre os direitos das crianças, são
percebidos avanços no que diz respeito à proteção e à provisão, mas com relação
aos direitos de participação, estamos longe de verificar progressos. E é o autor quem
nos falará desta condição paradoxal:
no fato de os adultos postularem que deve ser dada a prioridade às
crianças, mas cada vez mais as decisões políticas e econômicas com
efeito na vida das crianças serem tomadas sem as ter em conta (...);
no fato de os adultos concordarem em geral que as crianças devem
ser educadas para a liberdade e a democracia, ao mesmo tempo que
a organização social dos serviços para a infância assenta geralmente
no controle e na disciplina;(...) no fato de, sendo as escolas
consideradas pelos adultos como importantes para a sociedade, não
ser reconhecido como válido o contributo das crianças para a
produção do conhecimento (...) (1997:13, o grifo é meu)
O que comumente se noticia sobre as crianças relaciona-se a situações de
violência. Como vilãs ou vítimas estão sempre lá, expostas, nas manchetes e
noticiários maus tratos, vítimas da guerra, usuárias de drogas, assaltantes de
plantão, pequenos trabalhadores, vítimas de pedofilia, prostitutas mirins, etc.
raras são as referências a iniciativas que atribuam às crianças o
papel de agentes ativos na construção da agenda social. (...) não há
nos mundos relatados das crianças o contraponto da política ou do
desporto, ou até da cultura, que, apesar de tudo, fazem da imagem
veiculada pelos jornais um mundo adulto mais humanizado. (2002:15)
Certamente que repensar o(s) lugar(es) que as crianças têm ocupado, pensá-
las para além de uma etapa do desenvolvimento humano, implicá-las em decisões
58
políticas, ouvindo as suas vozes, requer também um novo pensar e lugar para a
experiência da imaginação e do lúdico, e uma disponibilidade, uma abertura, para a
invenção, para a transgressão, para a subversão e criticidade da ordem das coisas. A
escola é, potencialmente, o primeiro espaço político e público coletivo para as
crianças experimentarem a vida democrática ou, como propõe Sarmento, a Educação
como política da vida. E, para isso, “tornar a escola uma organização aprendente é o
primeiro e decisivo elemento na transformação da escola no sentido dessa utopia
realizável.” (Idem, p.27)
Apenas dizemos a nossa palavra e nos colocamos em condição de autoria se
consideramos relevante o que temos para dizer, e isso só poderá se dar num espaço
fecundo, de escuta atenta e participação efetiva. Este é o esforço mais absolutamente
essencial, se pensarmos a educação escolar. Não é pouco, nem menos relevante o
que as crianças têm a dizer:
59
.
18
(Joana Uchôa 10 anos aluna da Quarta-série. Escola Sá Pereira)
18
Estávamos envolvidos com o estudo da crônica, tínhamos disponíveis alguns textos que a situavam
historicamente e outros que nos contavam de sua estrutura, reunidos em uma Apostila de Literatura
confecccionada na escola, a “Farra Literária”. Contávamos com muitas crônicas para serem lidas - o que nos
parecia mais importante de livros, jornais e, ainda um documentário. Propusemos uma roda de leitura. Neste
momento, cada um traria de casa uma crônica, de preferência que tivesse sido lida com a família. Faríamos um
troca-troca em pequenos grupos e algumas seriam eleitas para leitura na turma. Assim é que nos chegou “O
Malabarista”, de Arnaldo Jabor. Época de Copa do Mundo, e o assunto parecia inspirar os comentários e os
60
A questão é que, quando trabalhamos com crianças em situação de grande
pobreza, o desafio nos parece maior e gira, certamente, em torno de desmistificar, de
certa forma e dentro de grandes limitações, o ideário que se constrói acerca da
criança pobre pobreza social” e apontar para a perspectiva de criança agente
de (algumas) possíveis transformações. Aliás, a respeito desta questão seria
pertinente lembrar, através da concepção marxista de fetiche, já discutida por Silva
(1996), o caráter que marca a construção da concepção de Educação práticas
sociais em que as chamadas classes populares fetichizadas surgem como objeto
da retórica comumente conservadora. Neste contexto, a educação, e ainda, a
educação das maiorias marginalizadas, não pode ser desvinculada “de suas
conexões com relação de classe, de gênero, de raça e com relações globais entre
nações” (1996:66). Trata-se, portanto, da tentativa de, em essência, desfetichizar as
relações sociais na construção da prática educacional social e política. E também,
nesta mesma perspectica, repensar a concepção hegemônica de infância como vir a
ser: “Criança não é meio para se chegar ao adulto. Criança é fim, o lugar onde todo
adulto deve chegar”. (Alves, 2004:29)
Retomando a produção textual de Joana, é possível observar certa coerência
com a ideologia dominante, que trata de moralizar, “naturalizar” algo que é de ordem
objetiva, produzido pelos homens com suas práticas de desigualdade e exclusão,
como é o caso da pobreza, da miséria. Mas sua opção, e é importante sinalizar,
dentre as inúmeras crônicas lidas, foi produzir um texto com as marcas de um outro,
pois é do próprio Jabor a idéia de tornar a miséria algo da ordem subjetiva. Nesse
sentido, Joana optou pela intertextualidade, fez das idéias do autor parte de suas
idéias, especialmente ao tratar a miséria como valor, sentimento, talvez, quem sabe,
até por identificação de classe com essas mesmas idéias.
No entanto, foi capaz de sinalizar alguns elementos de contradição, por onde
vai ensaiando a sua necessidade de marcar posição. Ao falar que, injustamente, as
escritos das crianças, que tentavam se aproximar de tal gênero. Joana, no entanto, teve uma outra inspiração, sua
opção foi “O Malabarista”.
61
pessoas não têm os mesmos privilégios, embora não os discutindo em termos de
direitos, retoma a objetividade da questão ou seja, põe em pauta situações de
injustiça e compreende sua condição de privilegiada, que é extensiva ao seu grupo
social. Além disso, estabelece em sua escrita uma relação explícita com um outro
discurso, o de alguém que lhe contou uma experiência em Buenos Aires e que, por
algum motivo, a autora aciona e entrecruza com o discurso de Jabor.
Como fora proposto nas conclusões do seminário promovido pelo Instituto
Interamericano de Direitos Humanos, é preciso promover processos de
empoderamento, principalmente orientados aos atores sociais que historicamente
tiveram menos poder na sociedade.” (Candau, 2003)
19
. E se estou defendendo que a
Educação para os Direitos Humanos deve começar desde cedo, é porque considero
que as crianças devem ser sujeitos desses direitos e não porque, pretensamente,
estamos formando o cidadão do amanhã. Não! Se empoderamento “começa por
liberar o poder, a potência que cada pessoa tem para que ela possa ser sujeito e ator
social”, comecemos a pensar e a viabilizar práticas de empoderamento. Quem sabe
assim, não reinventamos uma qualificação para a infância, liberta dos grilhões
históricos da incapacidade, da ausência e da limitação.
Quando as crianças, em seu processo de alfabetização, de aprendizagem da
leitura e da escrita, são convidadas a pensar sobre os seus direitos, relacionando a
este momento práticas de leitura/escrita, ou seja, quando têm como materialidade de
seu aprendizado conteúdos que dizem respeito a sua vida, a sua história, aos seus
desejos, apresentados a partir da maior diversidade de gêneros discursivos possível,
ampliamos a possibilidade de empoderamento. Ler o que há para ser lido, e não o
que pretensamente se prepara para o ensino da leitura. Escrever o que há de se ser
escrito, e não amontoados de palavras sem graça e sem sentido. Jornal, cartas,
poesia, panfletos, cartazes, bilhetes, receitas, revistas, desenhos, fotografias,
charges, contos, quadrinhos, adivinhas, canções, e tudo o que mais puder ser
19
O Seminário aparece citado no Prefácio de Vera Candau para o livro: Infância, Educação e Direitos
Humanos. Aconteceu em novembro de 1999, em Lima (Peru), com o objetivo de realizar um balanço crítico da
Educação em Direitos Humanos na década de 1990, no continente americano, segundo a autora.
62
pensado, podem encher de sentido e funcionalidade a formação de leitores e
escritores principiantes. O fato é que menino e menina com muitas possibilidades de
dizer a sua palavra e de entendê-la em sua variedade de ler e escrever
comumente ousa tecer novos fios do dizer, contar e inventar; solicita um interlocutor e
já se insere como sujeito, que se faz social, compartilhando uma língua menino e
menina, de certo modo, empoderado. Como pode ser percebido na produção de
Marcele, na Vila Proletária, quando escreveu, espontaneamente, o bilhete que se
segue.
Na produção, Marcele mostra sua liderança, por meio da organização de uma
reunião, o que me possibilita inferir que seu desejo de cidadania não acontece pela
metade, que sua opção como ser histórico envolve participação, ação coletiva. Além
de escrever o bilhete, como cautela, precaução com a leitura, escreve para a
professora, “Para avisos”, indicando o lugar do mural em que seu bilhete deveria ser
colocado.
Ainda dentro desta perspectiva e intenção é que as crianças da Vila Proletária
foram convidadas a pensar os seus direitos, a partir do Estatuto da Criança e do
63
Adolescente e do Livro Pascoalzinho Pé no Chão uma fábula da Reforma Agrária,
de Chico Alencar.
Estávamos em outubro, por ocasião do “Dia das Crianças”, algumas questões
relacionadas à infância acabam ganhando certa centralidade, como por exemplo, o
brinquedo, a brincadeira, as crianças que trabalham e não brincam, etc. Queríamos
aproveitar a ocasião para, de certo modo, fazendo frente à perspectiva do consumo,
trazer a infância ao centro também de nossos estudos. O que é ser criança na Vila
Proletária?
20
Muitas crianças, e/ou suas famílias, tal como o Pascoalzinho da história,
vieram de longe, à procura de um lugar na cidade grande, e acabaram fazendo dali o
seu lugar. Por que não pensar os direitos das crianças, em sua efetivação, como o
presente maior que poderiam receber? E foi esta a nossa idéia, foi este o nosso
projeto, a motivação para a leitura, para a reflexão e para a escrita durante algum
tempo. Entre as diversas produções textuais das crianças, destaque pode ser dado à
que se segue.
20
Lembramos que a faixa etária das crianças era 5/6anos.
64
Antes de apresentarmos os Direitos das Crianças, e especialmente porque
havíamos lido a Fábula do Pascoalzinho sobre a Reforma Agrária - onde os coelhos
filhotes aparecem no contexto de suas famílias, envolvidos que estavam com a
expulsão de suas terras e a ida para a favela de uma grande cidade - consideramos
de fundamental importância falar sobre a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, e para isto trouxemos uma adaptação de Ruth Rocha e Otávio Roth.
65
O Estatuto da Criança e do Adolescente foi apresentado, lemos um ou outro
artigo para que pudessem ter algum contato com este gênero textual, mas nos
debruçamos mesmo em um livro infantil bastante bonito, chamado Os Direitos da
Criança, que contou com a participação de ilustradores de vários países do mundo e
com o apoio da Unicef. Não houve jeito de não se encantarem com o assunto e logo
se animarem para falar das condições que tinham na Vila Proletária para viverem os
seus direitos, em um livro construído por todos os alunos da turma.
66
Sobre os Direitos das Crianças, não foi difícil, para a meninada da Vila
Proletária, perceber que umas crianças têm mais direitos do que outras. A condição
da família privilegiada, trazida no desenho, está expressa na mesa farta e também
nas vestimentas - botas, colar, lenço, saia colorida - que compõem o visual da mãe e
de seu filho. A fala/discurso marcadamente esnobe que a autora atribui ao menino
nos chama a atenção, não bastasse marcar a desigualdade com um desenho
comparativo com os objetos citados acima traz um conteúdo extremamente
crítico, representado na arrogância e falta de generosidade do menino, talvez, para
ela, desdobramento de sua condição de privilegiado, de ter mais do que precisa,
enfim, da abundância.
Ao mesmo tempo, não guarda para a mãe pobre, o que é bastante
interessante, uma postura submissa, desinformada ou, de qualquer modo,
desqualificada. Bem ao contrário. Trata-se de uma mãe que, estando sem dinheiro,
não deixa de reconhecer, afirmar, os direitos de sua filha.
67
Já no segundo desenho, o funk aparece como movimento legítimo no que diz
respeito à comunidade. Porém, é apresentado de modo contextualizado com o
clima tenso que o enreda. O autor afirma implicitamente que o divertimento na
comunidade está proibido, ou seja, o Direito ao Lazer é, no mínimo, dificultado para
as crianças de sua classe social, ao mesmo tempo em que sinaliza a resistência com
umas caixas de som enormes e potentes. De tais caixas, montadas na rua, sai a
canção escolhida pelo menino, e a polícia que chega, invariavelmente está
estabelecido o conflito. “Corre, chegou a polícia” “Pou”. É este o clima: armas, tiros e
correria.
Considero que a condição de autoria de Fabrício e Mayelle, escrevendo e
desenhando com estilos bastante diferentes - há para ela uma necessidade de
discussão que passa pela desigualdade e para ele uma necessidade de denunciar a
violência em uma das cenas mais cotidianas na comunidade envolve a competência
de ler as diferentes condições sociais, marcadas pela cultura, pelo gosto,
vestimentas, etc, com tamanha criticidade.
Em outras palavras, nas produções trazidas, até o momento, no contexto da
Vila Proletária ou da Sá Pereira, transbordam infâncias(s) que pensam e reagem às
condições que as cercam, por vezes de forma que catalisa suas condições objetivas;
por outras, de um modo que caracteriza essas mesmas condições sob uma ótica
mais subjetiva, mais “valorativa”, trazendo à tona marcas ideológicas.
Os textos que se seguem ilustram dois momentos fundamentais do trabalho,
na Vila Proletária: o de planejamento cooperativo das atividades do dia e o da escrita
do relatório, também feita diariamente, e que funcionava como uma espécie de relato-
avaliação.
Na Vila Proletária, ao final do dia, sentávamos em roda, como havia sido feito
no início para o planejamento, avaliávamos oralmente o encontro daquele dia - de
quais atividades planejadas havíamos dado conta, quais ficaram de fora, por qual
68
motivo, e em qual momento poderiam acontecer, num outro encontro, o que tinha
sido motivo de alegria ou desentendimentos, o que, afinal, pudemos aprender. Ao
final desta avaliação a criança responsável pela escrita do relatório fazia a leitura para
o grupo, o que poderia gerar novamente alguma conversa/discussão ou não. Os dois
primeiros textos são produções compartilhadas e no terceiro a autoria é de Fabrício.
21
Opto por encerrar esta seção com tais produções porque, em seu conjunto,
são reveladoras do quanto as crianças podem, se forem estimuladas à participação
democrática, e do quanto a escola pode proporcionar de vivência cidadã, de
experiência coletiva. A partir de tais textos, percebemos movimentos de deliberação,
avaliação, tomadas de posição, pequenos encaminhamentos de trabalho, que
certamente não teriam sido possíveis se cada um estivesse na escola simplesmente
para aprender a ler e a escrever, ou seja, se tivéssemos prescindido deste espaço
chamado grupo que em sua heterogeneidade, revela-se essencial no que diz
respeito aos conflitos para a aprendizagem e, avançando, torna-se o espaço primeiro
da ação política: a argumentação, as diferenças, os debates, a colaboração, o
respeito, as lideranças, a autonomia, a solidariedade são embriões da formação do
cidadão de pouca idade, mas que não precisa esperar crescer para aprender o
exercício da democracia e da responsabilidade.
21
O desejo de escrever este ‘relato-avaliação do dia’ partiu das crianças no seguinte contexto: Na condição
de professora da turma, e também de pesquisadora do programa, em geral, levava para a sala um caderno para
meus registros, uma observação ou outra que me seria importante para a escrita dos meus relatórios em outro
momento. Um dia, uma das crianças perguntou: “O que você escreve neste caderno?” Contei a eles que escrevia
algumas coisas importantes que aconteciam em nossos encontros. Logo me perguntaram se poderiam escrever
também. Expliquei que não poderiam escrever no meu caderno, assim como eu não escrevia no caderno deles.
Mas saí insatisfeita como a minha resposta. Para mim, ficou bem claro o fato de estarem reivindicando a
possibilidade de também escreverem sobre as coisas que aconteciam em nossos encontros e que, para eles,
seriam importantes. Bastante legítima esta reivindicação. Foi aí que tive a idéia de levar um caderno igual ao meu
e disponibilizar para que também escrevessem. Independente do momento de construção da escrita em que cada
um estivesse, todos teriam o mesmo direito de escrever. Eles mesmos chegaram à conclusão de que seria
importante uma organização, na medida em que todos desejavam escrever. Então, no momento de planejarmos o
dia, já decidíamos quem ficaria responsável pelo relato daquele encontro. A partir daí, não houve encontro sem
registro, dia que não fosse contado. Com relação ao texto de planejamento das atividades do dia, que em alguns
momentos aparece escrito no pretérito, em geral, são retomadas de atividades já iniciadas em dias anteriores.
69
70
71
Para saber mais 1...
Quarta-série
Primeiro semestre/2006
Relatório de Projeto
Projeto da escola: A casa.
Escola Sá Pereira
O início do ano letivo tem sempre um sentido inaugural. Inaugurarmos... o sonho? O
imaginário? A relação com os amigos? Com os professores? Com o conhecimento? É momento com
sabor especial, principalmente quando se chega à Quarta-série, última série na escola. Já no tema
institucional, anunciado antes mesmo das crianças retornarem à escola, temos sugerida uma
intensidade criadora, uma força, um espaço aberto, um caminho a ser preenchido, entrevivido,
reinventado. Para a meninada maior, o tema potencializa esse sentido inaugural, se faz expectativa: “O
menino.(...) O menino via, vislumbrava. Respirava muito. Ele queria poder ver ainda mais vívido as
novas tantas coisas o que para os seus olhos se pronunciava.” (Guimarães Rosa)
De nossa parte, dois desejos fundamentais: apostar numa compreensão mais radical, por parte
das crianças, do que seja trabalhar com projetos nessa escola e, também, garantir-lhes um
entendimento mais ampliado da nossa opção por A CASA, como tema institucional. Para isto,
precisaríamos estender as possibilidades de um planejamento mais cooperativo do projeto a ser tratado
pela turma e, ao mesmo tempo, inseri-los num contexto de reflexão que contemplasse A CASA em sua
dimensão poética, abrangente, múltipla e ALEGÓRICA. Então, lançamos mão da justificativa do tema
enviada às famílias e do texto imagético da capa da agenda, como textos motivadores, bem iniciais.
Seguidos de pesquisa e discussão dos múltiplos sentidos sugeridos pelos provérbios populares, o que
logo favoreceu a compreensão da CASA como categoria simbólica. Com os doze provérbios escolhidos,
confeccionamos em interpretações plásticas um calendário para a Turma... “Na nossa casa passa um
rio no meio e o nosso leito pode ser o mar, a nossa casa é onde a gente está, a nossa casa é em todo
lugar... (Arnaldo Antunes)
Pretendíamos estimular o pensamento sobre a relação: TODO/PARTES, ou seja: casa-biosfera
morada da humanidade e Casa-corpo morada mais íntima. Dando visibilidade às dimensões que
não dizem respeito apenas aos aspectos físicos da casa, isto é, queríamos tratar dos sonhos, dos valores,
dos ideais, etc... Optamos por alguns eixos, no sentido de experimentar algumas variações: casa-casa,
casa-corpo, casa-nação e casa-planeta, e chamamos “aperitivos” as atividades propostas a partir
delas é que a meninada escolheria o tema para nos dedicarmos mais intensamente. Insistimos nesta
participação da turma na escolha do que estudariam. Acreditamos que atender às perguntas, aos
desejos das crianças, a partir de nossa decisão em torná-los mais, efetivamente, participativos no
processo de deliberação sobre o projeto desenvolvido não inclui apenas a eleição do tema para o
estudo, mas, ainda, a elaboração de perguntas e suposições acerca dos assuntos, dos temas abordados,
ensaiando, já, alguma problematização. Será sempre de nossa responsabilidade oportunizar, na
elaboração deste percurso, o confronto das suposições individuais e coletivas com as informações de
caráter mais científico. Foi assim que em pequenos grupos de interesse discutiram e combinaram uma
proposta de defesa para o projeto desejado, escolhendo representantes que fariam a defesa no grupão.
Coisa mais bonita de se ver este movimento preparo de argumentação, síntese do que tínhamos
discutido nas atividades propostas, aperitivos, confecção de material para a “campanha”, ensaio das
“falas convencimento” e, o melhor - porque o maior desafio de todos - deixar-se convencer, avaliar a
defesa dos outros grupos, rever a opção inicial, para, então, a votação. (...)
Flavia Lobão, em Julho de 2006
72
3.1 A dança dos conceitos e seu desdobramento no campo ideológico.
Reconheço a dificuldade representada na pretensão de desfetichizar qualquer
coisa que seja, mas não posso deixar de considerar a nossa responsabilidade na
denúncia de que a transformação do campo semântico é sempre parte de projetos
políticos.
Os conceitos definem, limitam e possibilitam que certas coisas sejam
pensadas. Neste processo, algumas categorias vão sendo construídas ou tendo seu
significado transformado. Experimentamos uma nova ordem mundial nos fins dos
anos 80, na América Latina e, com ela, o discurso da área de produção e consumo,
que impregna nossas relações mais íntimas, é distribuído de maneira
assustadoramente eficiente e sua re-significação redunda em equívocos
antidemocráticos e muita injustiça. Estamos impossibilitados de sonhar, os sonhos
estão em suspenso, parece uma dolorosa conclusão. Bauman (1998) traz a idéia de
maneira suficientemente esclarecedora e tristemente irrefutável:
A nossa sociedade pós-moderna é marcada pelo descrédito, escárnio
ou justa desistência de muitas ambições (atualmente denegridas
como utópicas ou condenadas como totalitárias) características da era
moderna. Dentre tais sonhos modernos abandonados e
desesperançados, está a perspectiva de suprimir as desigualdades
socialmente geradas, de garantir a todo indivíduo humano uma
possibilidade igual de acesso a tudo de bom e desejável que a
sociedade pode oferecer. (p.87)
Foi pensando nos sonhos e nos sonhos coletivos que...
Quando propus às crianças da Escola Sá Pereira o estudo da nossa cidade,
sabia que apresentariam, já era de se esperar, uma infinidade de curiosidades e
muitos relatos da violência espalhada pela cidade. Considerei importante, num
primeiro momento, apostar num movimento de (re) encantamento pelo Rio e, para
isso, muitos poetas, músicos e artistas vieram ajudar - acredito que usufruir da beleza
é fundamental para a dignidade humana.
73
No entanto, a indagação fundamental me atravessava: Como dar conta de
estudar a cidade, tratar a questão da violência, mas escapando à condição de refém,
imposta pelas manchetes, diariamente? A proposta, a partir do que as crianças
puderam revelar de suas expectativas ao se encontrarem com o tema, foi estudar um
pouco a história da cidade, mas não de modo linear, o que não daria conta de atender
as necessidades de compreensão deste estado de coisas que vivemos. Uma
estratégia foi, então, tentar tratar a violência em sua história, ou seja, historicizando-a.
Afinal, a violência que experimentamos hoje é também uma construção histórica.
O texto e o desenho a seguir são expressões desses dois movimentos de
apreciação estética de textos literários, especialmente Navio Negreiro, de Castro
Alves; de obras de arte, especialmente dos trabalhos de Debret, e estudo/pesquisa
sobre a história da cidade:
(Debret, D Pedro, D João e Carlota Joaquina.)
74
Pelo buraco da parede
Jacira sempre foi escrava. Estava grávida quando foi proclamada a lei do
Ventre Livre. Sonhava com o futuro de seu rebento, que aos 21 anos não deveria ser mais
escravo. Por isso, a criança nascida em 1871, ganhou o nome de Liberdade. A menina sempre
ouvia da mãe Jacira muitas histórias de seu povo. Que vieram obrigados de uma terra
chamada África, onde eram felizes. Que foram trazidos em Navios Negreiros e escravizados.
Que tinham que obedecer a tudo, sem direito a nada, senão eram açoitados. Mas isso não era
história pra Liberdade, era o que ela mesma vivia em seu dia-a-dia. Os anos passaram. De
repente, parecia que a vida ia tomar outro rumo. A alforria chegou antes do que se esperava.
E não só para Liberdade, a lei Áurea também foi assinada para Jacira.
Mãe e filha deixaram o campo para trás e foram buscar a sorte na cidade. Chegaram
ao Rio de Janeiro, depois de perambular por muitas estradas. Logo perceberam que não
tinham lugar para morar, nem como se sustentar. Não havia condições para viver a
liberdade!! Jacira morreu em pouco tempo, de falta de médico. Por tudo isso, quando
Liberdade teve um filho, lhe deu o nome de Existir.
Liberdade foi trabalhar de faxineira numa escola. Todo dia levava o filho para o
trabalho, porque não tinha com quem deixar. Enquanto ela fazia de tudo, ele não fazia nada.
Um dia, quando estava na cozinha, Existir percebeu um buraquinho na parede. Curioso,
enfiou os olhinhos para ver o que tinha do outro lado. Viu e ouviu muita história, palavra e
números. Todas as noites, quando voltava para casa, um casebre num bairro africano, reunia
as crianças vizinhas e ensinava tudo o que havia aprendido no dia.
Existir cresceu pra onde pôde. Estudou muito e se tornou professor. Nada foi fácil,
passou por muitas dificuldades. Como sua avó e sua mãe, sonhou uma vida melhor para os
seus filhos. Teve duas meninas, chamou-as Justiça e Igualdade. Texto de Aimée Fernandes e
desenho de Daniel Reis
22
22
Este texto faz parte de uma série de Contos Contos da Terceira sobre o Rio de Janeiro livro lançado
pela turma da terceira série da Escola Sá Pereira, em 2005, quando o projeto institucional propunha o estudo
sobre a cidade. Tais textos foram precedidos de algumas “Rodas de Literatura” - iniciamos com ‘Negrinha”, de
Monteiro Lobato e ‘Conto de Escola’, de Machado de Assis. Infelizmente, não temos como recuperar a primeira
versão do texto, feita em seu caderno, que levou embora ao sair da escola. Podemos dizer que o texto passou por
uma revisão, especialmente no que diz respeito a algumas questões ortográficas, e, sobretudo, pontuação. Não
houve nenhuma intervenção no que diz respeito às idéias trazidas pela aluna. No final desta seção, apresento um
fragmento do relatório da Turma, registro reflexivo posto em discussão com os colegas, na escola, disponível no
site, e enviado às famílias. Para saber mais 2.
75
Do que são capazes as crianças quando inseridas num contexto de pesquisa,
conhecimento de sua história, e convidadas a experiência sensível da Arte e da
Literatura? De fato, a autora fala de um tempo que não é atual, de uma cidade com
outros contornos e, até, de um lugar privilegiado socialmente, que é o seu. Aimée
cuida para garantir em seu texto um espaço que possa ser preenchido pelo próprio
leitor. Neste sentido, são exemplares as construções: “Não havia condições para
viver a liberdade!” ou ainda “Existir cresceu para onde pôde.” Lendo o texto, vemos
que muitas relações foram possíveis e, sem dúvida, que o reconhecimento da História
foi fundamental como possibilidade de compreensão das nossas desigualdades
atuais. Remontamos a História, historicizamos a violência. Assim é que Liberdade,
Existir, Justiça e Igualdade, sonhos velhos conhecidos nossos, são trazidos,
atualizados, como aposta para um mundo melhor - esperança de que uma outra vida
seria possível. Ou seja, ainda que bastante presente a ideologia liberal, hegemônica,
bem representada pelo esforço individual do sujeito para superação de sua condição
de pobreza e submissão
23
, persiste uma espécie de “aposta” nas grandes narrativas,
ainda como possibilidades, como uma semente de universalismo ético
24
.
23
As idéias trazidas pelas crianças, em geral, são garantidas e discutidas no coletivo sem,
necessariamente, fazermos alusão diretamente aos seus autores. Isto porque cuidamos para evitar uma prática de
patrulhamento às idéias trazidas, assim como comentários que possam causar qualquer tipo de constrangimento e
inibição da participação oral e da escrita. Mas, como achamos que é de nossa responsabilidade a
problematização e temos compromisso com um outro projeto político distinto do que historicamente temos vivido,
não podemos deixar de discutir as idéias. Para isso, no que diz respeito às intervenções pedagógicas, e se
objetivamos problematizar as idéias trazidas pelas crianças, representações de suas visões de mundo, lançamos
mão de situações-problema que lhes façam refletir sobre as suas posições. Ou seja, trazemos contrapalavras para
algumas palavras que, para nós, cristalizam posições sociais, visões de mundo bastante ideologizadas. Quem
sabe, assim, as crianças não avançam, no processo mesmo de construção de sua autoria, além de suas
condições de classe...
24
Esta idéia será discutida na próxima seção.
76
Em se tratando de humano, nada é natural...
Estamos sujeitos, a todo instante, a aceitar naturalmente algo que foi
culturalmente constituído, ou ideologicamente imposto. Perceber esta leitura invertida
da realidade, que re-instaura formas de exclusão, "metamorfoseando" valores e
conceitos, antes tidos como imperativos na construção de uma sociedade mais justa
e igualitária, não é tarefa fácil.
Considerar que a subjetividade é fabricada e que há agenciamento coletivo
25
é
meio caminho andado para compreendermos e, quem sabe, resistirmos à condição
de oprimido, experimentando um modo de vida mais livre. Importante lembrar
também dos agenciamentos mais territorializados. No Brasil, nas suas diferentes
regiões, no mundo capitalista, em escala internacional. Vive-se em nosso país o
desdobramento de agenciadores internacionais: a crise do capitalismo que se
demarca nos planos econômico-social, ideológico, ético-político e educacional,
trazendo/promovendo alterações em nossas vidas. E, se estou elegendo o plano
econômico-social para um olhar mais atento, é porque aí percebo expressa a crise
das relações humanas, sociais, crise de acumulação de capital e de regulação social.
Elegemos também porque
Não devemos confundir o respeito pela pluralidade da experiência
humana e as lutas sociais com a completa dissolução da causalidade
histórica, em que não há nada a não ser a diversidade, a diferença e a
contingência, sem estruturas unificadoras, sem lógica de processo,
sem capitalismo e, conseqüentemente, sem sua negação, sem
qualquer projeto de emancipação humana. (McLaren, 2000:284)
E como pensar em emancipação humana se não formos capazes de,
assumindo o ponto de vista da universalidade, nos considerar legitimados para
reclamar determinados direitos e dispostos a exigi-los para qualquer outra pessoa?
(Cortina, 2005). Gabriel, Luca e Daniel parecem atentos a esta perspectiva de
25
Guatarri crê que o agenciamento coletivo não corresponde nem a uma entidade individuada, nem a uma
entidade social pré-determinada - mas toda a produção de sentido de eficiência semiótica.
77
pertença a esta relação de inclusão/exclusão quando se trata de direitos humanos,
criando personagens que, de alguma forma, são comumente excluídos: o louco, o
trabalhador, a criança, o homossexual e a mulher.
Ainda que na contramão, possamos detectar estereótipos na caracterização dessas
personagens elas são representantes, em potencial, de muitos tipos de preconceito
que dizem respeito à classe, no caso do trabalhador; à sexualidade, no que diz
respeito ao homossexual; ao gênero, com relação à mulher e, ainda, quanto à criança
e ao louco, não é menos expressiva a desqualificação que, neste caso, passa, dentre
outras coisas, por certa improdutividade, inconcebível no sistema capitalista. A eles,
pertence a cidade!
A quem pertence à cidade?
26
26
Este é apenas o esboço para um grande painel, exposto na Feira Moderna e inspirado no livro de
mesmo nome. As personagens foram feitas individualmente, seguem as eleitas. No painel, que não temos como
recuperar, tínhamos entre centenas de rostos de pessoas diferentes, de todos os tipos, os rostos das próprias
crianças alunos. Sobrepostos e em auto-relevo, estavam as personagens, agora, trazidas, muitíssimo
ampliadas. No final desta seção, apresento um fragmento do relatório da Turma, registro reflexivo posto em
discussão com os colegas, na escola, disponível no site, e enviado às famílias. Para saber mais 3.
78
Penso em crise... Crise do capitalismo, do bem-estar-social, em que anuncia-
se certa implosão do Estado. Atenção! Não é que o Estado esteja ausente ou menor,
ele tem estado apenas a serviço da economia, do grupo dominante e omisso quanto
às necessidades da população. O mercado é o grande orientador das relações
sociais e o consumo a grande motivação existencial; promotores do emagrecimento
moral, intelectual, lançam a cidadania num circuito de compra e venda, de forma que
o consumidor é produzido antes mesmo do produto, dos bens e dos serviços.
Assim a subjetivação capitalista se esforça em gerar o mundo da falta
e instaurar a angústia, a loucura, a dor, a sensação de estarmos
perdidos no mundo. Assegurando-se do poder sobre o máximo de
ritornelos existenciais para controlá-los e neutralizá-los, a subjetivação
capitalista se enebria, se anestesia a si mesma, num sentimento de
pseudo-eternidade. (Guatarri, 1993:37)
Recorro a Guatari para dizer que o neoliberalismo traz como estratégia
essencial para sua aceitação a criação, no imaginário, da idéia de que a crise é
necessária, passageira e conjuntural. Esta idéia acaba tornando-se tacitamente
consensual. Assim, a proposta neoliberal, lançando mão de diferentes agenciamentos
de enunciação, busca produzir a crença de que a única forma de relação social
possível é a mercadológica.
Tudo parece produzido pela subjetivação capitalista e vai nos chegando pela
linguagem, pela propaganda, pelos brinquedos, pela família, pela escola - a
metamorfose que sofre o conceito de qualidade aplicado às escolas possui em si
premissas subjacentes que advém da necessidade de ajustar a educação às
demandas do mercado - enfim... é difícil perceber o que escapa. “Tudo se torna
mercadoria, incluindo currículos, cursos, materiais pedagógicos, estilos de vida e
sistemas de crenças. A economia está invadindo a vida das pessoas hoje mais do
que em qualquer outra época da história (...)” (McLaren, 2000:238). O totalitarismo
passa pela submissão e captura pragmática das alternativas. Compulsivamente
solicitamos a novidade, o inovador, mas para administrá-lo e violentamente convertê-
los em mercadoria mais adiante. Pensando com Cortina, ao trazer a discussão sobre
o mundo dos valores:
79
Acostumados como estamos a estabelecer um preço para as coisas
de acordo com o mercado, podemos acabar acreditando que não
estabelecemos um preço, mas também seu valor. E comum não
confundir os dois, porque sem dúvida podemos definir o preço, mas
não o valor. (2005:175)
O sucesso do projeto neoliberal tem como uma de suas condições a exclusão.
Antes, poderíamos falar de uma pobreza incluída, residual, e também de uma
marginalidade produzida pelo processo econômico, mas, admitia-se, poderia ser
corrigida, era o que se esperava dos governantes. Hoje, temos uma pobreza
estrutural, globalizada, explicada como algo natural e inevitável para o bom
desenvolvimento das forças produtivas. "Os pobres não são incluídos nem marginais,
eles são excluídos". (Santos, 2000: 52)
E, aqui, posso retornar ao nosso problema: “Quais/como as questões sócio-
históricas estão presentes na discursividade?” “Como o espaço escolar
constrói/constitui/destrói essa discursividade”? Estou considerando nesta
problematização que o discurso está sempre relacionado a situações históricas,
podendo ser ele mesmo o acontecimento, constitutivo da subjetividade dos
indivíduos. Com isso, quero dizer que acredito no “ensino” da Língua não como
espaço/processo de comunicação/expressão, simplesmente, mas também como
possibilidade, neste processo, de construção/mediação para a transformação da
realidade historicamente produzida, ou não. E, nesta perspectiva é Voese (2004)
quem nos diz:
A constituição dos indivíduos em sujeitos nas aulas de Língua
Portuguesa não ocorrerá apenas pela atividade que realizam, mas
também quando as suas ações, motivadas e carregadas de
sensibilidade, colocam em segundo plano necessidades e desejos
pessoais e transformam o texto em presente e dom para tecer a
relação de solidariedade e de amorosidade necessária. (p.156)
80
Para saber mais 2...
Terceira-série
Primeiro semestre/2005
Relatório de Projeto
Projeto da escola: A cidade do Rio de Janeiro
Escola Sá Pereira
Helena sonhou que deixava os sonhos esquecidos numa ilha. Claribel Alegria recolhia os
sonhos, os amarrava com uma fita e os guardava bem guardados. Mas as crianças da casa
descobriram o esconderijo e queriam vestir os sonhos de Helena, e Claribel, zangada, dizia a
eles: Nisso ninguém mexe. Então, Claribel telefonava para Helena e perguntava: O que eu
faço com os seus sonhos? (Galeano, O livro dos abraços)
Valendo-nos da idéia de que todo conhecimento começa com um sonho é que gostaríamos de
iniciar este relato. E é por isso que Galeano veio em nossa ajuda. Que graça pode ter estudar uma
cidade tão cheia de problemas como a nossa, senão para desamarrar nossos sonhos e nos aventurar
em busca de um novo modo de compreender, sentir, viver esta cidade?
Talvez seja por isso que muito nos mobilizou quando, do nosso primeiro encontro, as crianças
revelaram suas expectativas com relação à cidade. Não foram poucas as atividades de sensibilização
que propomos e, especialmente, com esta intenção alguns escritores cariocas, ou apaixonados pelo
Rio, nos ajudaram, ‘poetando’ o Rio, enchendo de beleza os nossos dias.
Já sabíamos o tamanho do desafio. Desta vez, o projeto institucional não era algo para o qual
precisávamos buscar estratégias de aproximação. Não! Desta vez, trataríamos da nossa própria
inserção e identidade, afinal, somos todos moradores desta cidade. As estratégias, agora, seriam tão
mais de sedução, para que a meninada pudesse desejar e, desejando, pudesse sonhar.
Percebíamos muito desencanto e um desejo de não pertencimento, que reforçam as práticas das
experiências privadas, protegidas, e do sentimento de que o espaço público é, assombrosamente, o
espaço de ninguém. Tem sido esse o nosso esforço: o de (re) encantamento, a partir do conhecimento
histórico, artístico e literário, que passe pelo desejo de participação efetiva e de reconhecimento da
vida cidadã. Para isso, temos nos esforçado para fazer do grupo, da turma, o espaço primeiro da ação
política.
Para olhar cuidadosamente a cidade no século XIX e já dissemos em outras oportunidades,
se nos demoramos nesse tempo histórico foi porque as questões trazidas pelas crianças como desejo
para o estudo estavam aí situadas lançamos mão do princípio do historicismo: “(...) uma visão ou
enfoque da sociedade radicalmente histórico, no sentido de -la como totalidade em constante
processo de desenvolvimento, de contradições.” (CARDOSO, Ciro Flamarion) Nesta perspectiva é que
estudando à cidade precisamos nos remeter ao cenário nacional: A chegada da Família Real, por
exemplo, em 1808, século recém-inaugurado, não trouxe apenas as benesses para a cidade, mas
também lançou a população em situações de profunda violência. O “PR” “Ponha-se na rua” é
exemplar se quisermos historicizar a questão da violência. Podemos percorrer o século XIX, nos
aproximar do século XX, e ainda não nos faltarão práticas de saque de nossas riquezas, prática da
monocultura, destruição de ecossistemas e formas de trabalho escravo. Tivemos também, no início do
século XIX,, uma Independência “para inglês ver”. Assim, o período monárquico que pelo século XIX
se estendeu, representara apenas uma reprodução da estrutura colonial, sendo Portugal, na esfera do
comércio externo, substituído pela Inglaterra.
Caminhando um pouco mais, isso para falar apenas dos grandes acontecimentos, já no
finalzinho do século, tivemos o “fim” da escravidão e não a melhoria das condições de vida para os
negros e para os pobres de modo geral. Um ano depois, vivemos uma República proclamada sem a
participação popular, como um dos alunos da turma contou, porque leu em algum lugar enquanto
pesquisava: ” o povo mesmo pensou que a Proclamação da República fosse um desfile militar.”
Em pequenos grupos, as crianças foram se aproximando dessas questões, pesquisando e
compartilhando o que aprendiam. Tentamos uma abordagem relacional da História. Reconhecemos as
81
obras de arte e as literárias como fontes privilegiadas de conhecimento e socialização/debate dos
temas abordados. Encontramos em Debret, com suas aquarelas, aspectos reveladores do cotidianos da
cidade; em Castro Alves com seu triste Navio Negreiro, um bom motivo para potencializar a
experiência sensível com a Literatura e preparar belas interpretações plásticas sobre o poema
apresentadas na Mostra de Artes. Jano, outro viajante francês, desta vez, contemporâneo, com sua
irreverência, nos apontou sua percepção das belezas e também das mazelas cariocas, promovendo
debates bastante ricos. Já as charges de Henfil nos ajudaram muito a compreender as relações
históricas e até mobilizaram no sentido da meninada desejar produzir as suas próprias, com boas
tomadas de posição. Grande ainda será o nosso percurso até o final do ano letivo... Na virada do
século XIX- XX, ainda temos a Revolta da Vacina e o bota abaixo, do prefeito Pereira Passos, como
expressões também violentas. É neste momento de estudo que, agora, nos encontramos. Lendo o que
diziam os jornais do começo do século foi grande o nosso trabalho de pesquisa - e acompanhados de
um belo livro de Literatura Infanto-juvenil: Ludi na Revolta da Vacina, de Luciana Sandroni.
As atividades de leitura e de escrita estiveram articuladas ao estudo do projeto, fizeram parte
de um dos aspectos essenciais da aprendizagem progressiva da leitura do mundo, traduzindo-se
também em formação política e construção da cidadania. Ler as entrelinhas, escrever como tomada
de posição, exercício de autoria. Gostaríamos de destacar a proposta de produção de um conto. Mas
não podia ser qualquer um! Contexto: Século XIX. Foi um grande exercício de síntese de todo
estudo e também de imaginação. Foi bastante o que aprenderam. Nas rodas de Literatura vários
contos nos inspiraram em sua beleza e estrutura. Com relação ao conteúdo, especialmente, Rufino,
em A gaiola dourada, nos encantou contando sobre Zumbi. Ficamos animados refletindo as
possibilidades de resistência dos negros, que reconhecemos firme e significativa.
Temos insistido na leitura em voz alta, recuperando um pouco as práticas de leitura mais
públicas e coletivas. Não há melhor maneira de ganhar consciência do que se lê, e, portanto, do que se
poderá vir a escrever. “O que os signos impressos mostram é o desenho da palavra ‘embalsamada’, é
a leitura em voz alta que a ressuscita completamente.” (Saramago).
Desejamos dizer que se estudamos o passado é porque desejamos pôr o presente em questão.
Sobre isso, podemos ainda colocar que com o estudo da História temos sido movidos mais pelos sonhos
e menos pelas certezas. Queremos olhar com outros olhos e indagar sobre o que ainda não sabemos,
quem sabe não “podemos ver ainda mais vívido as novas tantas coisas o que para seus olhos se
pronunciava.” (Guimarães Rosa). Se a meninada puder perceber na contramão do que em geral nos
fizeram acreditar que as transformações e conquistas que pudemos realizar, experimentar, foram
frutos da ousadia dos que sonharam e não de um processo evolutivo, progressivo e natural; se juntos
pudermos pensar o processo histórico de constituição desta cidade, as forças sociais e as relações de
poder, de acordo a serem maiores que o mito, a personalidade, o fato em si e sabemos o tamanho de
nossa ousadia iremos considerar que boa parte de nossos objetivos foram atingidos.
Flavia Lobão, julho de 2005
82
Para saber mais 3...
Terceira-série
Segundo semestre/2005
Relatório de Projeto
Projeto da escola: A cidade do Rio de Janeiro
Escola Sá Pereira
Hora, inevitável, de intensamente pensar e sentir. Mais um ano letivo chega ao fim. Em
que estivemos ocupados em fazer? Estudar a cidade? Mudar o Rio? O quanto de nossas intenções
foram possíveis, realizáveis? Para o que faltou fôlego? No que os sonhos puderam ser transformados?
Se fomos, coletivamente, até o melhor de nossas possibilidades, pensamos que algo de muito
importante aconteceu. Se “cada um saiu mais rico de si mesmo, mais novo do que antes, removido,
arejado e surrupiado por um vento leve, talvez mais inseguro, mais delicado, mais frágil, mais
quebradiço, porém cheio de esperanças” (Nietzsche), podemos dizer que valeu à pena.
Iniciamos o semestre já com o saber e o sabor dedicados à Feira Moderna.
Momento privilegiado para aproximação de alguns conceitos das Ciências. Passeios ao Instituto
Oswaldo Cruz e ao Centro de tratamento de efluentes à vista. Conhecíamos uma organização de
trabalho em grupo já do semestre anterior, o que nos facilitaria. Ação dos microorganismos, lixo
orgânico e inorgânico, decomposição, conservação dos alimentos falsa hipótese da geração
espontânea, importância e utilização das bactérias, doenças e vacinas, foram os assuntos tratados.
Importante destacar que mesmo trabalhando em grupos, tentamos garantir um processo não
fragmentado. Ou seja, a turma junta passou por todos os textos e experiências, antes de estarem
divididos em grupos.
Podemos dizer que o livro de Sandroni, Ludi na Revolta da Vacina, representou para turma
uma força especial, uma força que atuou no sentido de manter uma grande mobilização e durante tanto
tempo atravessou o período de férias, se encheu de um outro encantamento com a visita da autora,
nos garantiu o fio da meada no estudo do tempo histórico em questão, incluindo a apresentação de
personagens importantes da nossa História como Pereira Passos e Oswaldo Cruz; possibilitou uma
série de reflexões, articulações, entre as Ciências sociais e Naturais que pudemos, em parte, apresentar
na Feira Moderna: Movimento Sanitarista, Reforma da Cidade, Modernização, Expropriação, etc. O
livro, passado a Feira, continuou nos dando o que dizer, posto que ainda estava em processo de
gestação o espetáculo: “Iluminando a História.” Esse percurso foi importante, diríamos, denso até.
Um de nossos esforços foi contribuir para que as crianças pudessem reconhecer o caráter coletivo
deste artefato social que chamamos conhecimento. E o tempo percorrido para realizarmos o percurso
acima descrito - do livro à Feira, da Feira ao espetáculo - foi rico nesse sentido: acessar as
informações sobre a cidade em determinado momento, fazer as articulações necessárias, especialmente
com a demanda que nos chegava da cidade atual, garantindo as organizações fundamentais ao
processo didático-pedagógico. Pensando em tal complexidade, ganha força as palavras do filósofo:
“Ensinar a pensar é ensinar a bailar” (Nietzsche).
Dois outros livros foram nos ajudando a compor o cenário e também o enredo de nosso estudo:
“A quem pertence a cidade?” e “O Rio e eu”. Duas provocações literárias, preciosas no sentido de
favorecer às crianças uma interlocoção significativa, foi bastante o que puderam preencher “no
texto”, “na história” com a atividade da leitura. À indagação “A quem pertence a cidade?” não nos
passou em branco. Parte das respostas trazidas pelas crianças estiveram compondo o painel com o
mesmo nome na Feira Moderna, na boca das personagens criadas por elas, no estilo de charges, que
estudávamos nas aulas de Artes. “O Rio e eu” encantou, sobretudo, pelo modo poético como a autora
escreve. Ligia Bojunga nos inspirou desde a ocasião da Feira, quando escrevemos umas declarações
de amor ao Rio, e as colocamos em tantas estrelas. Talvez, com a autora tenhamos observado mais de
perto o que Manoel de Barros quer dizer quando conta “Eu acho que buscar a beleza nas palavras é
uma solenidade de amor.“ Esta idéia foi insistentemente (re) apresentada, afinal pretendíamos
83
terminar o ano, desta vez lançando Os poemas sobre o Rio da terceira. Por isso, intensificamos as
leituras de poemas nas rodas de Literatura, as crianças trouxeram muitos deles. Incentivamos,
especialmente, a leitura de Manoel de Barros. “Poesia é uma graça verbal” Esta foi a idéia que nos
acompanhou nessa feitura.
Ainda sobre Literatura, inauguramos uma dinâmica diferente de leitura para último livro
adotado Os Contos, um Para Gostar de Ler: Fizemos uma leitura comentada. Mas comentada de um
jeito diferente do qual estávamos acostumados a experimentar. Em duplas, ficaram responsáveis pelo
texto, com tempo para ensaiar a leitura, antes de fazê-la em voz alta, para o grupo, que acompanhava,
silenciosamente, no livro. Ao final, comentávamos aspectos da leitura dos amigos e, sobretudo, da
experiência de estar lendo alguns autores clássicos da Literatura Brasileira, em textos que não são
literatura infantil. Foram capazes de fazer ótimas considerações a respeito, inclusive articulando uma
reflexão entre competência relativa de leitura, pois estavam diante de textos com cenários,
ambientalização, e personagens, por exemplo, diferentes dos que lidam mais costumeiramente, na
Literatura Infantil, o que tornava o aspecto de antecipação da leitura um pouco mais difícil. Ou seja,
foi exercício de leitura, experiência de leitura, e reflexão desse processo. Na verdade, pretendíamos,
como desafio primeiro dessa formação de leitores educar o sentido do gosto, e ter como critério
conhecer o segredo de ler nas entrelinhas. Um desafio e tanto!
Finalizamos o ano pensando a tal cidadania. Conhecendo um pouquinho mais as
atribuições do prefeito e dos vereadores, pesquisando as leis, nos aproximando da idéia de vida
cidadã. Lançamos mão da canção “Um trem para as estrelas” e remontamos a História: percebemos
com PR (ponha-se na rua), com os negros abandonados a própria sorte, após a abolição mais certo
dizer ao próprio azar com o bota- abaixo e com as diversas remoções vividas por grande parte da
população desta cidade, que o problema da habitação é também histórico. Voltamos à problematização
que, praticamente, inaugurou o ano. Fazendo uma pesquisa entre os freqüentadores da Cobal, por
ocasião do aniversário da cidade, em março, e apresentando uma listagem com “sugestões” de
presentes à cidade, habitação, esteve em último colocado para as pessoas que por ali circulavam. Isso
nos rendeu algumas boas conversas. O que diriam as pessoas hoje? Agora, voltamos ao ponto inicial,
já em outra condição de pensar sobre o processo de favelização. Estamos mais sabidos! Mais
crescidos, mais sensíveis, esperamos!
Flavia Lobão, dezembro, 2007
84
3.2 Quando o discurso da cidadania se esvazia
ou a "descidadania" social concreta.
27
Nos últimos anos, o discurso da cidadania tem estado na ordem do dia
reitero, aqui, a idéia de que os enunciados são, eles próprios, acontecimentos, na
condição de mediadores e apareceu subjacente às mais diferentes propostas
políticas. Sendo assim, é uma ação de responsabilidade a reflexão em torno da
complexidade e da transformação semântica, simbólica e prática do que chamamos
cidadania.
27
Os desenhos/textos que seguem nesta seção, com exceção de “Pátria minha, Pátria amada” foram todos
presentes das crianças, manifestações espontâneas, mobilizadas que estavam com a crise no governo,
especialmente com o escândalo do denominado “Mensalão”, em 2005.
85
Colocar a cidadania em questão sugere, em minha compreensão, pelo menos,
dois movimentos. Faz-se necessário, para iniciar, algum entendimento acerca,
propriamente, da idéia, por definição, sua condição de possibilidade, pois, como diria
Canivez (1991:27), "sem a idéia que dá sentido à crítica, a denúncia é impossível",
passando, então, num segundo momento, a problematizar sua realização, tanto no
que diz respeito à complexa situação brasileira, quanto ao âmbito histórico mais
global.
Em verbete de dicionário
28
, cidadão seria "Indivíduo no gozo dos direitos civis e
políticos de um Estado". Ainda podemos estender essa definição, com o acréscimo
dos direitos sociais, assim como considerar os deveres aos quais estão os direitos
extremamente vinculados.
Aqui, torna-se necessário trazer duas considerações que se entrecruzam, na
tentativa de ultrapassar esta discussão, de certa forma, já no domínio do senso
comum e elaborar de forma mais rigorosa a questão. Tais considerações me sugerem
o desafio de desviarmos o olhar em direção a uma perspectiva talvez mais ousada.
Canivez (1991), pensando com Kant, nos coloca que a consciência do
indivíduo sobre a sua natureza não é a consciência de um direito e sim a consciência
moral de um dever. Sendo assim, os "direitos humanos são os direitos dos outros, se
são também meus é porque sou semelhante a qualquer outro". (Idem, p.89) Esta
idéia nos sugere o dever de um absoluto respeito pela Humanidade, e parece residir
aí a força do imperativo categórico: "age apenas segundo uma máxima tal que
possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma Lei Universal.” (Kant, 1995:59)
Ou seja, para todos ao seres racionais. Mas, e é Cortina (2005) quem não nos deixa
esquecer, “cada pessoa é uma união de intelecto e de desejo, de razão e de
sentimento. Por isso, se essas leis pretensamente humanizadoras não encontram
uma base sólida na razão senciente dos seres humanos, a falta de ‘humanidade’ é
insuperável.” (p.15)
28
Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
86
Pensar o dever, em Kant, é pensar uma verdadeira legislação para as nossas
ações. É tratar de imperativos categóricos que, por sua vez, não podem estar
veiculados a, absolutamente, nenhuma condição que não seja a própria lei.
Agir por dever implica, necessariamente, no reconhecimento de tal lei, a partir
da auto-determinação de uma boa vontade vontade legisladora universal. Não
basta, no entanto, apenas reconhecê-la e, por assim dizer, agir em sua conformidade.
É necessário deliberá-la. Nesta perspectiva, o sujeito é 'convidado' à condição de
legislador. Enquanto ser cognoscível, é capaz de empreender um processo de
avaliação, julgamento e adoção das ações. E é neste momento, então, que posso
trazer a segunda consideração.
Para a deliberação onde reside, precisamente, a dignidade humana é
preciso tomar o direito de liberdade que, para Kant, está inseparavelmente ligado ao
conceito de autonomia. Assim, o sujeito reconhece a moralidade, auto-determinando
o seu agir, submetendo-se à própria legislação, porque reconhece a autonomia de
sua vontade. Desta maneira, a liberdade aparece enquanto direito fundamental, pois
"não há direitos a não ser para um ente livre" (Canivez,1991:65). Mas, “ser livre exige
saber detectar o que humaniza e o que não o faz, bem como aprender a incorporá-lo
na vida cotidiana” (Cortina, 2005:185). É a partir desta perspectiva que podemos
compreender o self ético para Bauman, citado por McLaren(2000):
A humanidade só se completa na forma do self ético. Só assim ela
adquire a combinação da sutil e tão procurada reconciliação da
condição de ser único com a condição de estar juntos. Apenas quando
elevada ao nível do self ético, a individualidade não significa
isolamento e estar juntos não significa opressão. ‘Importar-se com o
outro, ao nível do sacrifício, ao nível de morrer por ele, de
responsabilidade pelo outro’, isto é, como insiste Lévinas, a ‘opção de
simplesmente ser’, a única saída do que seria uma existência fechada
em si mesma, egoísta, só, vazia (e, em última análise, sem significado
algum. (p.281)
Certamente que este sujeito autônomo, livre, de Kant, ainda está muito longe
de ser possível, historicamente pensando. Mas, abandoná-lo enquanto sonho,
87
condição que podemos, por agora, almejar, também me parece comprometedor,
posto que já não teremos alternativa frente ao sujeito narcísico que vem sendo
constituído. Quem sabe, podemos, ao menos, “na condição de cidadãos críticos, agir
como se a eliminação do sofrimento desnecessário de todas as outras pessoas
dependesse das escolhas que fazemos no dia-a-dia” (McLaren, 2000:281). E como
seremos capazes de pensar nesta perspectiva, se nos faltarem as bases, a intenção,
a esperança de um plano de educação cosmopolita comprometida, por exemplo, com
a denúncia de crimes contra a humanidade? Preciso esclarecer que não se trata,
aqui, de nenhum essencialismo ético-moral, até porque acreditamos que a
moralidade, como parte do processo de formação da subjetividade, também se
constrói sócio-historicamente.
Mas isso não quer dizer que aceitamos um relativismo em que, supostamente,
nada parece ter valor ou tudo pode valer a mesma coisa. E, se pensamos em uma
Educação Cosmopolita
29
é porque defendemos uma ética cidadã que poderá ser
aprendida, também, na escola, e isto pressupõe o aprendizado da apreciação dos
valores, especialmente, os que dizem respeito à justiça e à vida democrática. Tais
valores não podem ser prescindíveis se pensarmos em um mundo habitável. Quais
as possibilidades de habitabilidade em um mundo injusto, violento, miserável e sem
beleza?
Tomando estas reflexões por base, tentarei alguma problematização sugerida
pelo tema. Duas questões estão especialmente patentes: Quem, no mundo
contemporâneo, é efetivamente cidadão? É possível construir uma cidadania neste
marco de exclusão sistemática? Parece cada vez mais evidenciada a fragilidade da
nossa cidadania representativa, e Daniel não nos deixa esquecer disto:
29
A educação cosmopolita se relaciona à idéia de cidadania cosmopolita, assim como discute Cortina (2005).
Tal idéia, não deixando de considerar, obviamente, o caráter identitário, cultural, que constitui determinado grupo de
cidadãos - até porque é justo isto que garante o pertencimento, diferenciando um grupo de todos os outros aposta na
semente do universalismo ético, herança política do socialismo, e marca a necessidade de universalização da cidadania
social. Tal ideal “está latente no reconhecimento de direitos aos refugiados, na denúncia de crimes contra a
humanidade, na necessidade de um direito internacional (...) e, sobretudo, na solidariedade de uma sociedade civil”.
(Cortina, 2005:200) Uma educação cosmopolita seria, sobretudo, aquela capaz de gerar projetos de esperança.
88
89
Talvez fosse oportuno abordar algumas das diferentes concepções e vivências
de cidadania que vieram se construindo, no decorrer dos tempos. Em cada momento
histórico, tivemos diferentes maneiras de engajamento, de participação na
comunidade política. Porém, é necessário sublinhar algo de semelhante entre elas.
Houve sempre na história uma parcela considerável de seres racionais excluída, sem
possibilidade de assumir este lugar de sujeito-cidadão.
Certamente uma análise mais profunda e adequada desta questão, da idéia-
vivência de cidadania, desde sua constituição na Antigüidade Clássica, pensando em
suas diferentes concepções civil, jurídica, política e social é bastante provocativa,
mas escapa aos limites deste trabalho. Nesse sentido, farei uma modesta discussão,
tendo em vista a proximidade dos dias mais atuais.
Direitos do homem, democracia e paz, são três momentos
necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem,
reconhecidos e protegidos, não há Democracia, sem Democracia não
existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos.
A Democracia é a sociedade dos cidadãos. (Bobbio, 1992: 01)
Partir das palavras de Bobbio é uma tentativa de buscar a expressão que,
vestida de simplicidade traz, em si, um fantástico conjunto de constatações e
reflexões, traduzindo-se em questões emergentes e essenciais.
Um olhar atento às Democracias Modernas, sobretudo às crises inerentes ao
modo de produção capitalista e necessidade de adaptação do Estado na
redefinição de seu papel no âmbito da economia nos possibilita perceber não só o
distanciamento dos segmentos populares no que diz respeito à participação política e
a garantia de seus direitos, mas também às estratégias para o esvaziamento das
lutas pela construção da própria cidadania. Uma dessas estratégias aparece
denunciada por Daniel, na charge que elaborou e que reproduzimos a seguir:
90
É possível destacar aqui, enquanto estratégia eficaz, o desmonte do espaço
público e, obviamente, a banalização da idéia que lhe confere valor, redundando na
despolitização das nossas relações e na construção de uma nova concepção de
cidadania: a concepção consumista de cidadania. Dentro de tal perspectiva, os
direitos tornam-se privilégios de quem pode pagar para tê-los. Parece-me razoável
reconhecer que o cidadão até agora foi e é aquele bem articulado ao sistema, pela
apropriação, acumulação e reprodução do capital. E se reconhecemos, com Canivez,
que os direitos são apenas aqueles garantidos a todos os cidadãos, precisamos não
só admitir que o Estado de Direito não existe, mas, com Boron, denunciar que a
91
"Democracia é uma farsa"
30
. A representação popular, apesar do sufrágio universal,
está longe de ser suficiente para que possamos assegurar uma “Democracia
sustentável”. Segundo Cortina (2005), “além de criar modelos racionais de justiça,
precisamos fortalecer nos indivíduos seu sentido de pertença a uma comunidade.
Princípios e atitudes são igualmente indispensáveis.” (p.26) Acontece que nos
deparamos com
O capital (que) subordina e coordena todas as formas de
subjetividade dentro da cultura do capitalismo tardio, criando formas
de cidadania que são de uma fraqueza inerte, ainda que se presuma
falsamente que tenham autonomia crescente e autodeterminação
democrática. O capitalismo tornou-se o árbitro mais poderoso de
nossa nova tecnodemocracia. (McLaren, 2000:239)
E é por isso, tendo em conta este jogo de forças, que já não é possível falar
em princípios e atitudes se não trouxermos a Educação à baila.
Apontamos, como segunda estratégia neste entrave da luta política pela
construção da cidadania, a questão do saber. O argumento mais elementar gira em
torno da desigualdade dos indivíduos em relação ao conhecimento e à formação. A
Educação, como prática social, se esvazia de possibilidades, acentuando o dualismo
e tantas vezes, em nome do progresso, endossando certo darwinismo social.
Gostaria de ir mais além e trazer o cientificismo à discussão, na medida em
que este tem conferido legitimidade aos mecanismos de exclusão e desigualdade,
racionalizando-os e reduzindo a política à administração e à organização das coisas.
Construir a idéia de que a ciência é o único saber verdadeiro e de que, por isso, é
capaz de resolver todos os nossos problemas teóricos e práticos, é condição sine qua
non para tornar legítima e desejável a, já citada, tecnocientocracia, que confere aos
experts - tecnocientistas - o cuidado patenteado para a resolução de problemas de
30
BORON, Atílio. Em palestra proferida na UERJ, em 1996, sobre o tema ESTADO, CAPITALISMO E
DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA.
92
toda ordem. Só eles sabem o que é bom e justo, por isso podem e devem tomar
decisões. Como nos lembra Santos (2000):
As bases materiais históricas dessa mitificação estão na realidade da
técnica atual. A técnica apresenta-se ao homem comum como um
mistério e uma banalidade. De fato, a técnica é mais aceita que
compreendida. Como tudo parece dela depender, ela se apresenta
como uma necessidade universal, uma presença indiscutível, dotada
de uma força quase divina à qual os homens acabam se rendendo
sem buscar entendê-la... Tais características alimentam seu
imaginário, alicerçado nas suas relações com a ciência, na sua
exigência de racionalidade, no absolutismo com que, ao serviço do
mercado, conforma os comportamentos; tudo isso fazendo crer na sua
inevitabilidade. (p.45)
Enquanto isso, os expropriados de saber vão, na melhor das hipóteses, se
preparando para, quem sabe, o mercado de trabalho e, como se fossem súditos
aguardando as boas intenções, a caridade pública e privada. Nem direito, nem
liberdade/autonomia, nem igualdade, nem democracia, nem sujeito-cidadão!
Para finalizar é necessário contestar certo fatalismo que vem nos
assombrando. É certo que os Tempos não são mesmo, por si, otimistas. Mas, se a
História terminou, como vêm proclamando alguns ideólogos neoliberais, não valeria
reanimá-la. Tal imperativo estreita-se à negação do Político e, por ele, não
precisaríamos mais intervir em nosso Tempo, posto que já se encontraria em
gestação a construção de uma sociedade apolítica, funcionando graças à força das
coisas ou do mercado.
Pensar nossas dificuldades talvez nos aponte algumas pistas possíveis, tal
como parece ter sugerido Bachelard com a colocação de que "nada é fixo, para
aquele que, alternadamente, pensa e sonha" E, tratando de pensamentos e sonhos é
que, tal como Ana, ao falar de sua Pátria
31
, reivindicamos a afirmação do Político na
escola.
31
Envolvidos com o estudo da Poesia é que as crianças conheceram, mais especialmente, Pátria Minha e
O operário em construção, de Vinícius de Moraes. Trabalhamos com os textos na íntegra, lendo, declamando,
93
buscando interpretações e, num segundo momento a partir, inclusive, do próprio filme Vinícius, de Miguel Faria
Jr., é que trabalhamos com alguns fragmentos. O texto da Ana Arruti é a primeira versão de uma proposta de
releitura. Selecionamos alguns fragmentos e a proposta era de, após uma leitura atenta e a partir do primeiro
verso de cada estrofe selecionada, escrever um poema sobre a sua Pátria, Pátria atual, de menino e menina com
10 anos de idade. Sobre o texto da Ana, é importante destacar que, além de se tratar da primeira versão,
nenhuma correção foi feita, nenhuma intervenção, não nos solicitou ajuda ou perguntou qualquer coisa. Escreveu
em silêncio absoluto. Ao terminar, pediu para ler, e aí estava o texto, deste jeito dito, escrito e pontuado,
exatamente do modo como, agora, o apresentamos.
94
Pode ser que alguém ainda esteja pensando: “E o que tudo isso tem a ver com
a Educação?” Em primeiro lugar, a luta pela educação pública e de qualidade já
deveria ser posta enquanto expressão de participação e cidadania. E, depois,
acredito na possibilidade de pensarmos em estratégias de trabalho que possam
envolver nossos tantos alunos e não são poucas as pessoas que circulam por
instituições escolares diariamente com questões para as quais estamos
aparentemente cansados e poucos disponíveis, como as relativas à vida cidadã, por
exemplo. O fato é que nossa disponibilidade é cada vez menor quando o assunto é
compartilhar os encargos da vida comum.
Assim, as escolas podem representar mais do que nunca, para as crianças e
os jovens, espaços privilegiados para encontros efetivos, ainda mais se fizermos a
aposta de que podemos aprender uns com os outros, se acreditarmos que os alunos
terão sempre o que dizer, estando num ambiente favorável à participação. E foi
especialmente por isso que fizemos questão, neste capítulo, de trazer os textos das
crianças como citação, pois enxergamos neles marcas de reflexões consistentes,
posicionamentos políticos, críticos, autorais, frutos de um trabalho intencionalmente
planejado para a construção de uma moralidade da cidadania que muito distinta da
moralidade autoritária só poderá acontecer e ser reconhecida com a formação de
sujeitos autônomos e livres.
32
Isso, supostamente, demandará a criação de espaços educativos onde se
possa exercer a prática do questionamento, da palavra signo-ficante, capaz de
submeter à reflexão crítica, inclusive, os seus próprios valores, as suas próprias
idéias. Na escola, temos bons motivos e também oportunidades para discussão em
torno do bem comum e do trabalho cooperativo.
32
Sobre Moralidade da Cidadania ver: GENTILI, Pablo. Qual educação para qual cidadania? Reflexões
sobre a formação do sujeito democrático. In: AZEVEDO, José Clóvis de, GENTILI, Pablo, KRUG, Andréa e
SIMON, Cátia.(orgs) Utopia e Democracia na Educação Cidadã. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, 2000.
95
A escola poderá ser espaço fecundo para a construção da cidadania, tendo em
vista a sua condição de práxis intersubjetiva. Quais outros espaços comuns nos
restaram para mexermos com este sentimento generalizado de “não é comigo”?
Como (re) significar o espaço do público, do coletivo? Quem sabe, inaugurando uma
outra relação com nossos alunos, uma relação que tenha como um dos princípios
fundamentais a coerência entre o que pensamos/sonhamos/falamos e o que somos
capazes de fazer, capazes de realizar. Quem sabe assumindo com empenho uma
relação de amorosidade, sabedoria, respeito e militância solidária. Talvez, seja um
bom começo para abandonarmos o discurso na terceira pessoa o problema é deles,
dos “outros” e assumirmos nós, nós mesmos, com alguma desobediência o único
des que me parece oportuno a atuação em nosso Tempo. Na contracorrente,
bulimos com a nossa condição de descidadania.
96
4 AUTORIA, INFÂNCIA E ESCOLA: NA CONTRACORRENTE
Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência
deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos
vendo... se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível,
distraídos das coisas mais importantes. (ROSA, 1988:65)
4.1 De discursos e de autoria...
Catando sonhos no velho e no novo mundo - Era assim que
denominávamos o tema institucional da escola Sá Pereira, no ano de 2004.
Acreditávamos que o nome representava uma boa síntese do que a comunidade
escolar havia discutido em seus encontros. 2004 - Ano de Olimpíadas e na Grécia, o
que nos parecia bastante sugestivo, e ao mesmo tempo, desafiador.
Como mobilizar a “meninada” da terceira série para a escolha de um projeto de
turma, levando em conta um tema tão desafiador como esse? Como aproximar as
crianças das muitas idéias sugeridas, quando lhes dizemos que nos ocuparemos de
catar sonhos? Desafiador porque, desta vez, especialmente, não se tratava apenas
de adequar os conteúdos ao tema institucional, pensar os eixos temáticos,
problematizar... Não! Havia algo de mais íntimo, profundo, de mais arriscado até. Ao
tratarmos de sonhos, mitos, lendas, heróis, imaginações, fantasias, crenças,
pluralidade de explicações para as coisas, nossa possessão de nós mesmos, nossa
identidade estariam, certamente, mais vulneráveis. A realidade deixa de se
apresentar completamente esclarecida dando vez às contradições e mistérios.
Desafiador porque os limites realidade-imaginação são na prática, mais tênues do
que nos fizeram historicamente acreditar. Desafiador porque exige esforço para nos
reafirmarmos como seres humanos não partidos diante das incontáveis polarizações,
já velhas conhecidas nossas.
97
Naquele momento, acreditávamos a equipe pedagógica - que o
conhecimento mítico, uma vez cuidado para não ser indevidamente escolarizado, nos
traria nova possibilidade de reconhecimento e valorização da vida cotidiana,
preenchendo as tantas lacunas deixadas pela racionalidade, dando sentido à vida, à
arte, à existência, à própria condição humana, enfim, nos convidando a uma relação
mais afetiva e poética com o mundo e também mais humilde, por nos fazer revelar a
insuficiência do conhecimento científico para tratar, sozinho, dos problemas
epistemológicos, filosóficos e éticos. Apostávamos que, do contato com o
pensamento mítico, poderíamos sair mais ricos ou seja, mais novos do que antes,
mais arejados mais delicados e, até, mais cheios de esperança.
Com a intenção, então, de aproximar a turma do tema institucional,
consideramos boa a idéia de começar desconstruindo alguns discursos já
hegemônicos e, em boa parte, fragmentos, influências, do que nos dizem as
ciências e até as instituições religiosas para as intermináveis explicações das mais
diferentes coisas. Iniciamos privilegiando o surgimento do Universo para um olhar
mais cuidadoso. Foi grande a mobilização das crianças para a pesquisa das
explicações mitológicas dos diferentes povos e culturas: gregos, egípcios, hindus,
africanos, índios da América Latina...
De minha parte, contribuí também com algumas explicações trazidas por
Eduardo Galeano, especialmente em suas Memórias do Fogo. É claro que cada
história acaba puxando uma outra e, assim, a curiosidade estava suscitada para a
explicação de outros temas: o surgimento do homem, do amor, da morte, da
violência, etc. Naturalmente, toda esta leitura - no que ela nos deu o que dizer, pensar
e rir - ampliou, e muito, o desejo das crianças em tecer outros fios que, entrecruzados
aos que liam, provocavam outros sentidos, outros dizeres, outros pensamentos e
outras risadas. Foi daí que me veio a idéia de criar explicações fantásticas para
temas levantados pela turma. Neste momento, pudemos refletir sobre a natureza da
própria “explicação”, ou seja, o que mobilizamos, em nós, quando tentamos explicar
98
algo
33
e quantas explicações / interpretações são possíveis para o mesmo fato?
Vejamos parte do que a “meninada” pôde criar
34
:
QUEM VEIO PRIMEIRO, O OVO OU A GALINHA?
Um dia Deus achou que o mundo não tinha penas, então, no dia seguinte, foi
voando até a Grécia. Falou com a secretária de Zeus, que estava tomando hidromel com os
deuses vickings. Deus mandou a secretária chamar Zeus, que chegou em cinco segundos. Deus
disse a ele que iria dar asas ao mundo e o encher de penas. Zeus não entendeu nada e
começou a achar que Deus já estava começando a ficar maluco. Mas Deus explicou tim-tim
por tim-tim. De repente, a secretária intrometida se meteu no meio da discussão bem na hora
que Zeus estava quase entendendo tudo. Quando Zeus, finalmente, compreendeu a idéia achou
ótima. Os dois, então, se reuniram e juntaram as fórmulas para dar um pássaro divino, como o
pavão (que ainda não existia na época). Mas Zeus, que era muito desajeitado, esbarrou em um
pote de vidro, que continha um elemento secreto, que caiu na mistura, e acabou saindo um
animal estranho que só fazia “có có”, botava ovo e ainda por cima não voava! O bichinho
ainda não tinha nome, batizaram assim: as fêmeas com o nome de galinha e os machos com o
nome de galo. Foi assim que a galinha veio antes do ovo.
(Autores: Ana Luisa, Bruna, Maria e Vicente).
33
O livro Mania de Explicação, de Adriana Falcão, nos trouxe boa inspiração.
34
Estes textos foram produzidos coletivamente, e não dispomos da primeira versão. Assim como todos os
textos desta seção, foram escritos no ano de 2004, na turma de terceira série. Na época, não pensávamos em
utilizá-los para nenhum trabalho acadêmico, por isso não temos nenhuma das versões com a letra das próprias
crianças, posto que foram levadas embora, em seus cadernos, apostilas, etc. Conseguimos recuperá-los digitados,
no entanto, porque, na ocasião, ganharam alguma visibilidade através de livros lançados na escola, de exposições
e principalmente dos Informes uma pequena publicação semanal que circula na comunidade escolar, contando
sobre o desenvolvimento dos projetos nas diferentes turmas, publicizando as produções das crianças ou notícias
escritas por elas, informando sobre eventos, solicitando a colaboração das famílias quando é o caso, registrando
passeios feitos, esclarecendo questões, etc.
99
COMO SURGIU A VIOLÊNCIA?
Era uma vez uma linda menina. Ela foi pegar água com seu pai na beira do rio.
O pai estava caçando, enquanto a menina estava pegando água, de repente, um monstro a
agarrou. Quando seu pai sentiu a ausência da filha, foi à caverna do monstro e era lá que ela
estava. Eles começaram uma batalha com arcos, flechas e lanças. Em volta deles, observavam
várias pessoas. O pai derrotou o monstro e todos que estavam em volta ficaram influenciados
com a luta e começaram a usá-la com freqüência. A filha e seu pai saíram de lá e sempre que
têm que resolver alguma coisa eles usam esse método.
(Autoras: Daniela, Fernanda Libman, Fernanda Tarlen e Maria Elisa).
Em relação à questão da autoria, destaco da observação dos dois textos, uma
tentativa de articulação entre forma e conteúdo. Assim é que, do ponto de vista da
estrutura textual, as crianças tomaram cuidado com o dizer de modo objetivo,
compacto, direto e bastante preciso, caracterizando o gênero textual e lançando mão
de conectores que adequadamente amarraram, articularam as passagens dos
raciocínios e apresentaram de modo irreverente as situações criadas: Um dia
Deus achou que o mundo não tinha penas, então, no dia seguinte, foi voando até a
Grécia” (...) “Quando Zeus, finalmente, compreendeu a idéia achou ótima”. Também
vão lançando mão de uma série de apostos explicativos e parênteses, visando uma
explicação em detalhes: “(...) como o pavão (que ainda não existia na época)”; “(...)
Mas Zeus, que era muito desajeitado, esbarrou em um pote de vidro, que continha
um elemento secreto, que caiu na mistura (...)”.
.
A utilização cuidada da estrutura formal auxiliou a concatenação do conteúdo
dos textos, inclusive dentro de um certo estilo que pudesse garantir-lhes o status de
fantástico pensar numa situação de atuação conjunta de Deus e Zeus, ainda mais
para dar asas ao mundo e o encher de penas, nos parece especial neste sentido,
assim como a utilização de certo vocabulário: Grécia, Deus, Zeus, vickings, hidromel,
elemento secreto...
100
Ainda sobre a articulação forma/conteúdo, a explicação é fantástica, e neste
sentido o estilo era fundamental sobretudo por termos sugerido a originalidade
como quesito a ser atendido mas o texto precisava ser absolutamente coerente,
consistindo nisto o desafio.
Assim é que as autoras do segundo texto, por exemplo, trazem a idéia,
recorrente nos contos para as crianças, de lutas entre homens, mocinhos, e
monstros, representantes do que há de tenebroso, para apresentar o surgimento da
violência. Também chama a atenção a utilização de uma expressão-síntese para
conceituá-la: trata-se de um método. Bastante curioso, ainda, o fato das autoras
optarem por criar uma explicação para algo que não é concreto, objeto, no sentido de
palpável, como ocorreu com o primeiro caso apresentado.
Interessante o recorte que puderam fazer, associando violência às disputas,
lutas, duelos, na medida em que podemos dizer, por conhecermos o contexto no qual
estão inseridas, que tais crianças não estão expostas a situações de violência diária -
mesmo as mais simbólicas - privilegiadas como são, super protegidas nos diferentes
espaços por onde circulam. Por isso, não surpreende que a explicação apresentada
para a violência se aproxime de tal modo aos elementos de histórias que puderam
ler/ouvir, inclusive na mídia imagética, que os influencia, e que, de certa forma, acaba
se transformando no veículo pelo qual vêem/ouvem a violência. Assim é que, posso
dizer, nos escritos de um autor há algo que está além da idéia de um menino ou
menina/indivíduo que escreve seu texto. Como Oliveira (2004) nos aponta, o sujeito
do discurso fala, escreve, constrói as suas histórias de um lugar social.
Acredito que podemos dizer de todas as produções das crianças que virão a
seguir que as condições de produção, as possibilidades de interlocução, os
conhecimentos prévios, especialmente os da ordem do discurso, são ingredientes
importantes. A grande questão é o que cada um sujeito consegue construir a
partir do que lhe foi dito, contado, ensinado, silenciado, e até negado. Ou seja, me
interessa é como o sujeito age/retroage a partir das determinações de caráter sócio-
101
cultural assumindo, dialogicamente, a sua função de produtor de linguagem. E, agora,
é Geraldi que vem ajudar, para falar desta relação:
Nascidos nos universos de discursos que nos precederam,
internalizamos dos discursos de que participamos
expressões/compreensões pré-construídas, num processo contínuo
de tornar intraindividual o que é interindividual. Mas a cada nova
expressão/compreensão pré-construída fazemos corresponder nossas
contrapalavras, articulando e rearticulando dialogicamente o que
agora se apreende com as mediações próprias do que antes já fora
apreendido. (2005:20)
Talvez outro grande desafio seja o de a escola evidenciar e, de certa forma,
construir esse processo de produção sem esquecer, ainda, da disputa que se trava
entre os discursos intra e interindividual no contexto sócio-histórico em que se
inserem.
102
4.2 E seguindo o nosso percurso de catar os sonhos... apresentamos Monteiro
Lobato.
Um momento bastante significativo foi a aproximação das crianças do universo
do Sítio do Pica-Pau Amarelo e da genialidade de seu criador. Lobato povoa as suas
histórias com personagens mitológicos, seres encantados e institui, especialmente
com a Grécia Antiga, uma via de mão dupla com o universo de seu Sítio. A verdade é
que a “meninada se esbaldou com tanto encantamento”. A começar por Sandroni
35
que, com sua irreverência, nos apresentou a biografia do escritor, dando vez e voz a
dois de seus personagens: Emília e Visconde de Sabugosa.
Montamos uma apostila, “Farra Literária”, e com este material didático, fomos
fazendo as costuras necessárias, conhecendo outros textos referentes às histórias de
Lobato, como Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector, por exemplo, e até os
textos e os autores citados por Sandroni, em suas Memórias de Lobato, como José,
de Drummond. Mas, e pensando nas explicações fantásticas, foi com o próprio
Lobato que inauguramos a nossa “Farra Literária”, explicando a origem do mundo:
Afinal, “como tudo começou?”. Com este material didático, também pudemos
organizar algumas informações biográficas apresentadas por Sandroni, reconhecer a
importância de Lobato para a Literatura, a partir de depoimentos de outros escritores
brasileiros e, ainda, produzir pequenos textos. Impossível foi conter as crianças no
desejo de conhecer as histórias do próprio autor!
Assim, enquanto líamos coletivamente Minhas Memórias de Lobato, boa parte
da turma já se encantava com algumas aventuras Pílula Falante, A visita do
Príncipe, Viagem ao Céu, Aritmética da Emília, Dom Quixote das Crianças, Os doze
trabalhos de Hércules, O Nascimento de Visconde, O Saci, O Casamento da Emília.
Fizemos muitas grandes rodas, onde puderam dividir impressões, sensações, idéias,
35
Trata-se do livro “Minhas Memórias de Lobato”, de Luciana Sandroni, Cia das Letrinhas, lido pela Turma.
103
elegendo, cada grupo, uma das histórias lidas para um trabalho mais elaborado, para
uma contação de história especial. Todos os grupos optaram pela teatralização.
Então, “mãos à obra”: adaptação dos textos, seleção das falas, concepção dos
personagens, preparação de cenários e adereços, ensaio e... reconto. O trabalho foi
finalizado com uma filmagem e uma sessão apresentada às famílias e às outras
turmas da escola, o que, por sua vez, nos rendeu outras novas aprendizagens.
Compreendo que um livro é uma força que atua sempre sobre outras,
produzindo efeitos muito variados; que as compreensões, os sentimentos, os
pensamentos, e até o envolvimento, experimentados pelas crianças são sempre
muito distintos. E é porque desejava valorizar esta diversidade “que as histórias
deram o que dizer”. E por insistir que fossem além do entendimento do significado
dos textos literários, vivendo-os em tantas representações, é que optamos por nos
demorar nesse processo.
Junto a esse trabalho de reconto, a “meninada” foi, inspirada no autor, criando
também os seus personagens fantásticos elaborando pequenas biografias para
eles, à moda de Lobato, inserindo-os em aventuras e, por fim, fazendo-os chegar ao
Sítio do Pica Pau Amarelo. Três momentos de produção de texto distintos, portanto.
Primeiro, o momento da criação do personagem, apresentado num texto mais
biográfico. Depois, e sendo o personagem fantástico, era preciso inseri-lo em uma
aventura, e foi esse o esforço de produção de texto. Por fim, o personagem chega ao
Sítio, e encontrando algum(s) de seu(s) personagem(s), também fantástico(s),
participa de uma outra aventura, agora aproveitando do contexto criado por Lobato.
As histórias nos renderam um livro, com direito a lançamento na Festa Pedagógica da
escola. Vejamos uma dessas aventuras:
104
Palinelza dos Santos
36
Autora: Maria Elisa
Informações Biográficas
Palinelza nasceu em Milão (capital da moda), no dia onze de outubro. Ela tem vinte e
dois anos e é muito vaidosa, criava seus próprios estilos que faziam muito sucesso. Aconteceu
uma coisa tristíssima em sua vida: seus pais foram a Tóquio (no Japão), então entraram uns
terroristas (amigos do Bin Laden) no avião. Oh! Pobres pais de Palinelza. O negócio foi o
seguinte: Entraram os terroristas no avião, foram para a cabine do piloto e começaram a
controlar o avião. Eles deram piruetas radicais e muitas outras coisas esquisitas (eu digo que
um piloto nunca faz). Foi por isso que os pais de Palinelza morreram. Palinelza chorou tanto,
mas tanto, que dava até para formar um mar. Bom, vamos voltar ao assunto, ela chorou muito
mas depois se acostumou com a morte de seus pais. Palinelza viveu momentos muito tristes
em sua vida como a morte deles e também como a morte de seus maridos. (...)
A sua história
Senhorita Palinelza era muito vaidosa, sabia tudo de moda. Certo dia, Palinelza
resolveu criar seu próprio estilo, que era assim: uma calça boca de sino (jeans), um cinto
super “fashion”, blusa de uma alça só e uma melancia no pescoço. O estilo, aos poucos, foi
ficando famoso e ela foi ficando rica. Arranjou uns vinte namorados. Um deles era o mais
perfeito. Loiro, de olhos azuis, alto, rico e outras vantagens. Ela morava em Pernambuco e
foi para o Japão. Por lá, ela vendeu uns 50.000 do seu estilo. Ficou “zilionária”. Comprou
uma casa nos Estados Unidos, uma lá no fim do mundo e, finalmente, uma no Canadá, que era
o seu sonho. Ela e o namorado se casaram. Foram todos ao casamento, choraram, se
emocionaram. Depois da cerimônia, todos foram para a festa. Certas pessoas ficaram
bêbadas, o namorado dela, o Sr. Crodonildo, ficou muito, mas muito, bêbado e quando foram
embora, às cinco da manhã, o pobre Crodonildo dirigiu, ainda todo bêbado. Então, num
cruzamento perigoso, Crodonildo bateu num poste, bateu com a cabeça e MORREU!!! Foi
uma tristeza, no dia do casamento o marido morre! O enterro foi no dia seguinte às sete horas
da noite, no cemitério mais famoso da cidade, claro. A Senhora Palinelza ficou com a herança,
36
Este texto foi escrito por Maria Elisa, aluna de 9 anos, da terceira série, da Escola Sá Pereira, no ano de
2004. A aluna revisou seu texto algumas (poucas) vezes, especialmente, com relação à ortografia de algumas
palavras e ao uso mais adequado da pontuação. Os grifos são todos meus e pretendem chamar a atenção para a
análise que farei em seguida.
105
era bolos de coisas valiosas, tinha a herança do pai, da mãe, da avó e de outras pessoas mais.
Bom , depois do enterro, ela ficou desapontada, aquilo teria sido a chance da sua vida, o
Crodonildo era um big, big, zilionário e, além do mais, ela perdeu o grande amor de sua vida.
Bom, dois meses depois da morte do marido, ela já tinha se casado com outra pessoa. As
pessoas ficaram admiradas pois ela já planejava tudo, casar com outro, ter um filho e muito
mais, depois de só dois meses ... que absurdo até um monstro se assustaria!!!! Bom, mas,
pelo menos, o marido não morreu, né? (Ah, mas não fique todo felizinho, não, tá? Porque
esta história é triste) Três meses depois do casamento o marido foi trabalhar nos EUA, afinal
era um homem de negócios. Logo na vez que ele foi, o Osama deu a louca e atacou o prédio
que ele estava trabalhando e, mais uma vez, morre um marido. Foram ao mesmo cemitério,
viram o caixão do ex-marido e enterraram esse aí. Foi a mesma choradeira. Mas, o engraçado
mesmo, é que dois meses depois ela ainda estava viúva, a pobre coitada não tinha ninguém
para conversar. Ela estava sendo tratada como uma princesa, todo dia ia um cavalheiro forte
em seu palácio, afinal, ela era rica, mas não aceitava nenhum, eram todos de mau coração.
Até que um certo dia chegou um homem pobre e todo acabado, mas era um homem bom.(...)
Depois de muito tempo, tinha encontrado seu amor verdadeiro. (...) eles foram de barco para
uma ilha que só tinha pássaros, e lá ficaram por sete anos. Quando perceberam, já não eram
mais tão jovens, e sim adultos com seus trinta e sete anos, já estavam quase nos quarenta!! (...)
Bom, como sempre, todo mundo morre e foi o que aconteceu com o querido marido de
Palinelza. Pobre Palinelza, por que isso tinha que acontecer sempre com ela? Como ela já
estava acostumada com mortes de maridos, em vez de chorar e de enterrá-lo, mandou
empalhá-lo e colocá-lo em sua casa, como enfeite.
Palinelza chega ao Sítio do Pica-Pau Amarelo
Um dia, Palinelza resolveu ir ao Sítio do Pica-Pau Amarelo, ligou para Dona Benta e
perguntou se podia passar alguns dias lá no sítio. Dona Benta disse sim e Palinelza ficou
super feliz. Chegou em casa e foi correndo fazer as malas. Dona Benta avisou a todos que
Palinelza estava chegando, disse ao Pedrinho que viesse logo para a sua chegada. Pedrinho,
ansioso, enfiou tudo na mala e saiu correndo ZUP. Por sorte, por muita sorte, Pedrinho
chegou antes de Palinelza, meia hora antes. Palinelza ficou super, hiper feliz, ao chegar ao
Sítio. O personagem que ela mais queria conhecer era o Pedrinho, mas quando ela o viu,
percebeu que era a coisa mais feia e mais mal educada do mundo. Ele achou dela o contrário:
106
linda, maravilhosa, mas não falou nada a ela. Palinelza foi convidada por Narizinho para ir
ao Reino das Águas Claras, ela adorou o convite e foi. Quando chegou lá, ficou encantada
com duas coisas: o reino e o sentinela do palácio, o Major-Agarra-e-Não-Larga-Mais. Ela
sabia que ele era meio estranho, mas era o namorado do jeito que ela queria, ele também ficou
apaixonado por ela. Então, Palinelza tomou coragem, muita coragem, e falou: - Major, o
senhor quer namorar comigo?” O Major não acreditou que ela estava dizendo aquilo, e
respondeu um SIM tão grande que fez tremer todo o palácio. Palinelza ficou tão feliz que até
chorou. Depois, perguntou a Narizinho onde é que estava a Emília. Narizinho contou-lhe que
Emília tinha ido a uma costureira fazer uns ajustes em si mesma. Então, resolveu pedir a
Narizinho para ir ao Ribeirão, e foram. Lá, tiveram uma surpresa, elas viram a Daiane dos
Santos que havia voltado de Atenas e, por um acidente, caiu lá no Ribeirão. Depois disso,
foram as três à caverna da Cuca. Quando a Cuca viu a Daiane ficou louca da vida. Pediu dez
autógrafos e ela deu, para não virar comida de jacaré. A Cuca convidou todas para um jantar
em sua casa, as meninas aceitaram. À noite, estavam todas lá, na caverna. Foi uma festa de
arromba, teve de tudo: pipoca, bebida e também umas coisas que bruxas comem. Depois, se
despediram e falaram que nunca tinham se divertido tanto com uma bruxa. Mas, na verdade,
aquilo que elas comeram não era comida de verdade e sim veneno. Quando elas chegaram em
casa, começaram a se sentir estranhas, o veneno fazia as pessoas ficarem malvadas. Quando
elas já estavam bem malvadas, começaram a deixar o sítio de perna pro ar. Dona Benta
tinha ido ao Arraial fazer certas coisas, quando voltou viu o sítio daquele jeito, deu o maior
gritão que fez tremer tudo o que estava em volta dela. Dona Benta perguntou a Tia Nastácia o
que era aquela bagunça. Tia Nastácia disse que não sabia de nada, quando viu aquilo,
também ficou surpresa. Quando acharam Daiane, Narizinho e Palinelza fazendo aquilo
ficaram boquiabertas. Tia Nastácia falou super assustada: - Ai meu São Jorge! Como essas
crianças fizeram isso!!? Jesus, como a Daiane veio parar aqui?
Pedrinho, que tinha saído para pescar com o tio Barnabé, quando voltou, ficou
tentando descobrir o que tinha acontecido. Depois de um tempo, parou, deu dois pulinhos e
falou:
- É claro, como eu não pensei nisso antes, quem fez isso com elas foi a CUCA! Vou
explicar tudo para vocês: Ontem, elas foram convidadas para jantar na casa da Cuca, elas
comeram, se divertiram, sem saber que a comida não era comida de verdade e sim veneno.
107
Então, temos que ir disfarçadamente até a caverna e pegar a cura do veneno, porque se não
pegarmos em dois dias elas ficarão assim para sempre!
Bom , feita a explicação, foram correndo para a caverna da Cuca. Pedrinho que era
amigo do Saci, pediu a ele que pegasse a cura do veneno. Pedido é feito, o Saci saiu da
caverna com a cura na mão. Todos agradeceram. (...) Depois que o remédio fez efeito
(demorava cinco minutos para fazer), elas ficaram ótimas da vida. Pedrinho explicou tudo
para elas. Emília chegou logo depois da explicação, e já foi abrindo a torneirinha de asneiras,
perguntando: - Como a Daiane e essa moça vieram parar aqui? E o que é isso na mão do
Pedrinho escrito: Cura do veneno malvadeza?!(...)
O Major-Agarra-e- Não-Larga-Mais, mandou uma carta para Palinelza, pedindo para que se
casasse com ele, ela respondeu a carta um segundo depois de lê-la, e sabe qual foi a
resposta? Sua resposta foi: SIM!! Quando o Major leu a carta com a resposta, ficou tão feliz
que abraçou a todos no reino, até os que ele não gostava. Desta vez o casamento foi lá no
Sítio, para Dona Benta, Tia Nastácia, e Tio Barnabé conhecerem o pessoal do Reino e, afinal,
era a vez de Tia Nastácia, Dona Benta e o pessoal do Sítio arrumarem a festa, a comilança, os
convidados e muito mais. No dia do casamento, todos estavam ocupadíssimos e, ao mesmo
tempo, super ansiosos. A mesa de doces estava linda, Tia Nastácia tinha caprichado. O
casamento estava marcado para a uma hora da tarde, mas ao meio dia já tinha gente.
Palinelza, Daiane, Narizinho e Emília foram lá na casa da Dona Aranha pegar seus vestidos,
que ficaram lindos, lindos não, magníficos. Quando as meninas chegaram, todos já estavam
Palinelza estava linda. O Major estava todo chique, de terno, uma calça e uma gravata de
bolinhas chocante! A noiva andou o altar inteiro com um salto de dezoito centímetros!
Narizinho, Daiane e Emília eram as daminhas de honra.(...)
Bom, todo dia alguém nasce, alguém morre e alguém vai embora, e foi assim que
aconteceu no Sítio do Pica-Pau Amarelo, a plantação de alface morreu, a de cenoura
nasceu e, infelizmente, chegou a hora de Palinelza e Daiane irem embora. Foi uma
despedida e tanto, teve até festa com bolo! Esse é o fim de apenas um grande sonho de
Palinelza.
108
A reflexão sobre autoria, a partir desta história contada por Maria Elisa, traz à
tona a idéia de intertextualidade, aqui compreendida como a “dimensão primeira de
que o texto deriva” (BARROS, 1999, p.4), e não como dimensão derivada. A história
em questão nos leva a pensar: Quantos textos couberam nesta aventura? E quantos
discursos? Quantas vozes? Quais operações de textualização
37
já consegue
construir esta autora de pouca idade? Como é capaz de relacionar contexto e
cotexto? E, sobre isso, é Cardoso (2005) quem traz a explicação: “Entende-se por
contexto as condições de produção de uma situação sócio-discursiva; cotexto, por
seu turno, designa o ambiente lingüístico imediato: os enunciados que precedem e/ou
sucedem o enunciado considerado.” (p.114).
Tentando uma resposta, mesmo que provisória, para as indagações acima,
além de uma leitura atenta de Lobato - o que lhe permitiu uma caracterização
bastante adequada dos personagens do Sítio e a construção do ambiente que nos
remete, imediatamente, a tal contexto , a autora traz uma leitura da realidade, que
foi apropriada e (re) significada com certa irreverência. Assim é que aparecem Bin
Laden, seus amigos e o de 11 de setembro. E de uma forma que não esconde seu
lugar social, nem a ideologia que o conforma, vinda da mídia mais presente como
reféns da ideologia imperialista, que sempre os reduzirá a malvados terroristas.
Essa leitura da realidade faz-se de forma caleidoscópica, ou seja, não se trata
de uma realidade, mas de realidades superpostas. Nesse sentido, é que, em um
segundo momento, são as Olimpíadas que se evidenciam como elemento
mobilizador, na figura de Daiane dos Santos, metida em uma aventura das boas”,
numa caverna da Bruxa Cuca. Tais acontecimentos aparecem como pretextos
fundamentais, que trazem um toque de graça à narrativa. A autora foi capaz de
desenvolver uma instância de controle
38
durante a escrita e foi absolutamente
37
Para um aprofundamento sobre tal questão ver CARDOSO, em A pontuação como recurso de
textualização: as descobertas de uma criança, in: ROCHA, Gladys e VAL, Maria da Graça Costa (Orgs).Reflexões
sobre Práticas Escolares de Produção de Texto o sujeito autor. Aqui, a autora apresenta três tipos de operações
de textualização: as de coesão, as de conexão/segmentação e as de modalização.
38
Chamo de instância de controle porque, autonomamente, Maria Elisa foi capaz de fazer todas as opções
necessárias para a criação de sua história, escolheu e planejou, com certa astúcia, todos os efeitos de sentido que
considerou importante para garantir o humor que era parte dos seus objetivos. Os acontecimentos da atualidade,
109
autônoma no planejamento de seu texto que funcionou durante toda a feitura da
história. O humor era a sua intenção.
Como garantia desta intenção bem humorada é que vai fazendo uso de
expressões vinculadas a um mesmo campo significativo, muitas vezes reiterando
suas asserções com sinônimos, e lançando mão de recursos de modalização
39
de
modo cuidadoso e adequado: “que absurdo até um monstro se assustaria!!!”, além de
trazer contrafalas para o seu narrador e buscar a interlocução de seus leitores: “Mas
não fique todo felizinho, não, tá? Porque essa história é triste”. Cria Palinelza uma
jovem cheia de estilo e, novamente, esteve bastante atenta aos ditos, ou quase
ditos, da moda, do mundo dos negócios, do dinheiro, dos estereótipos e, até, de certa
superficialidade nas relações amorosas: “Arranjou uns vinte namorados. Um deles
era o mais perfeito. Loiro, de olhos azuis, alto, rico e outras vantagens”.
Que idéias e/ou discursos fazem de um homem ‘loiro, de olhos azuis, alto e
rico’, o mais perfeito de todos? E o que dizer das ‘outras vantagens’ que, de certa
forma, estão atreladas à condição de classe e ao padrão de beleza estabelecido?
Reiteramos, nesta passagem, a fusão entre a realidade que se estabelece como
condição de classe e, nesse caso, permeada pela(s) ideologia(s) que fomenta e o
processo de autoria, que interfere nessa realidade, constituindo um outro texto no
contexto sócio-histórico.
Com relação a ambientalização, nos aspectos tempo/espaço, a autora cuida
para que, de uma passagem à outra, de um ambiente a outro, a amarração lógica
seja feita usando conectores que tecem os raciocínios na apresentação das
situações: “Bom, vamos voltar ao assunto, ela chorou muito mas depois...”
Não é mesmo à toa que o amor verdadeiro apenas será possível com um
homem pobre mas bom, revelando, mais explicitamente, certo conteúdo /
as frases de efeito, a perspectiva do exagero, a construção de imagens emblemáticas, de representações
exemplares, de estereótipos, que logo, facilmente, poderiam ser reconhecidos pelo leitor de seu texto.
39
Como, por exemplo, o posicionamento do enunciador quanto àquilo que enuncia.
110
posicionamento moral, carregado de estereótipos, como se a bondade fosse
compensatória para o fato do sujeito ser pobre. No entanto, é interessante perceber
como Maria Elisa tece essa realidade/condição de classe ao texto que constrói, como
condição de sujeito-autor, não hesitando em dar àquele o mesmo destino dos demais
maridos, como garantia da manutenção da coerência, do estilo bem-humorado do
qual não abriu mão.
É apenas no contexto encantado do Sítio do Pica-Pau Amarelo, com o Major
Agarra-e-não-larga-mais, que Palinelza parece encontrar um amor mais definitivo. E,
estando num contexto absolutamente encantado, acaba nos dando pistas sobre o
desfecho da história um grande sonho de Palinelza. Para o leitor, a finalização
aparece como espaço aberto para ser preenchido, espaço de interlocução, de
possibilidade de sentidos variados, ou seja, espaço para a constituição do sujeito-
autor e do leitor-autor. Afinal, que grande SONHO Palinelza pode ter tido?
111
4.3 Catando sonhos: viajando pelo céu e rumo à Grécia!
Em Viagem ao Céu, Tia Nastácia nos deu o que falar, com toda aquela crença
em São Jorge. Aproveitamos a ocasião para refletir um pouco sobre a força de
nossas crenças. Neste sentido, recebemos a visita do presidente do Instituto
Palmares para uma boa conversa. Pudemos, assim, conhecer um pouquinho mais
sobre a cultura dos Orixás e a prática do Sincretismo. Viagem ao Céu nos trouxe
ainda muitas outras possibilidades, como o próprio estudo sobre o Universo. Eram
muitas as curiosidades. As visitas ao Museu da Astronomia e ao Planetário foram
esclarecedoras e, ao mesmo tempo, reapresentaram outras indagações,
realimentaram o desejo de saber mais. Lemos e pesquisamos bastante, e aí entraram
em cena outros textos, de caráter mais científico. Finalizamos, preparando uma aula
para as crianças da primeira série, que também estudavam sobre o assunto. A idéia
era dividir o que tínhamos aprendido. Mas, para isto, algumas exigências deveriam
ser cumpridas. Além de precisar recuperar o que havíamos estudado, produzido
durante aquele período, havia a necessidade de construir critérios: O que seria
adequado apresentarmos? O que necessitaria de adequações, adaptações? Ou seja,
tínhamos como tarefa coletiva o exercício de análise e síntese, nas tarefas de
avaliação e planejamento cooperativos, objetivando a aula para a primeira série.
Cada pequeno grupo e propuseram que os grupos fossem organizados a
partir dos regentes dos próprios signos seria responsável por apresentar
determinado planeta. A lua e o sol também estavam valendo. Assim, prepararam um
roteiro de apresentação do planeta em transparências, e planejaram brincadeiras e
jogos. Uma exigência importante era que atentassem para a adequação da
linguagem, na adequação do roteiro e na oralidade, uma vez que experimentariam o
gênero da ordem do discurso didático. Afinal, estariam apresentando o resultado de
suas pesquisas para crianças bem menores.
112
Para tal “aula”, também trouxeram os “picapauzinhos”. Criaram, em
quadrinhos, histórias onde tais personagens se aventuraram e saíram a conhecer o
Universo. Para esse texto, produzido também em grupos, deveriam atender a dois
critérios: o texto precisava conter elementos das muitas histórias mitológicas
pesquisadas por eles mesmos sobre a formação do Universo e também, no momento
de informar sobre o planeta em questão, deveriam lançar mão das informações
científicas apreendidas em nosso estudo. Assim, “brincávamos” de confrontar
conhecimento mitológico e conhecimento científico - este, colocado, e “sem
pestanejar”, pelas crianças, na boca do Sabugo científico. Mais uma prova da
interferência da realidade/condição social?
Pelo tamanho das histórias e sua forma em quadrinhos - sentimos
dificuldade para trazê-las aqui. Mas gostaríamos de destacar, sobre tal proposta, a
intenção de experimentar um outro gênero textual. Os quadrinhos, já no momento da
construção do argumento, ampliando-se na criação dos diálogos, sugerem um tipo de
interação com o texto que é bastante rico e distinto dos gêneros da ordem do narrar
conto, fábula, romance com os quais as crianças, nas séries iniciais, têm algum
contato: trata-se de interação fundamentalmente argumentativa. Levar para os
amigos menores algumas informações aprendidas, especialmente, com uma “Viagem
ao céu”, com as visitas ao Museu de Astronomia e ao Planetário, em forma de
histórias em quadrinhos era uma boa idéia, elas estão na lista das preferidas entre as
crianças. Mas produzir uma história em quadrinhos requer um manejo bastante
complexo, inclusive para ler e produzir textos não escritos desenhos e expressões,
diversidade de balões, tipos de letras e seus significados, etc. Um desafio para os
nossos alunos da terceira série!
No entanto, claro também está que a complexidade, em geral, amplia as
competências e as possibilidades do escritor experimentar a língua em sua função
social, na medida em que é capaz de reconstruir esta variedade de textos à sua
vontade. E foi isto que a turma ousou empreender, da melhor forma conseguida,
113
dentro da condição social de seus integrantes, da cidadania que experimentavam e
com a(s) infância(s) que lhes foram possíveis...
...quisera uma linguagem que obedecesse mais a desordem das falas infantis
do que as ordens gramaticais. Desfazer o normal há de ser uma norma... Eu
queria só descobrir e não descrever. (BARROS, 2006, X)
Gostaria de retomar a reflexão sobre os desafios fundamentais que
acompanham a prática pedagógica. O primeiro se inscreve em nossa intenção de
trabalhar de modo menos disciplinar nas séries iniciais, quebrando ao máximo que
nos for possível tais amarras. E, neste sentido, todo o nosso esforço na escola girou
em torno de favorecer a construção de tempos-espaços de integração. Tentando,
dentro de nossos limites, uma integração em profundidade e síntese e, com isso, a
descoberta de cada um em suas possibilidades. Tentamos não perder de vista que
“jogo, palco, texto ou biografia, o mundo é comunicação... nessa situação confluem
sentidos [...] arrastando consigo as areias dos nossos percursos moleculares,
individuais, comunitários e sociais.” (SANTOS, 1985:35).
Um outro desafio, não menos importante na construção do trabalho com as
crianças, diz respeito ao cuidado permanente para que as atividades de escrita e
leitura sejam vivenciadas enquanto experiência - para além de seu caráter
instrumental. Ou seja, devemos pensá-las em sua dimensão formadora, como
práticas que co-movem, atravessam a gente e transformam.
Todos sabemos da abundância de estímulos e da quantidade de informações
que caracterizam o nosso mundo; porém, quase nada nos passa e é por isso que
insistimos em resistir. Ler, pensar e escrever são fundamentalmente questões de
resistência? Lemos e escrevemos para viver? Lemos e escrevemos para fazer
perguntas? Essas inquietações me acompanhavam diariamente no encontro com
esses meninos e meninas. Foi bonito de se ver, e em muitas crianças, um certo
apaixonamento pelos próprios escritos, ou pelo movimento, pela descoberta de poder
ser também o autor da idéia, da história, do poema, do rap, da notícia, enfim, por um
114
deixar-se arrebatar pela magia da linguagem escrita, complemento de nossa
especificidade humana.
Naturalmente que, para algumas crianças, o movimento neste sentido foi bem
tímido, pois dar conta dos aspectos lingüísticos, textuais, ainda era tarefa difícil, ou
seja, estavam ocupadas em garantir a coerência, a coesão, acertar, minimamente, as
questões ortográficas e a pontuação necessárias desconsiderando, de certo modo, os
aspectos mais semânticos e literários no momento da produção de texto. Mas, ainda
nessas crianças percebemos um grande esforço para assumirem, mesmo que
parcialmente, a condição de autoria. Obviamente que a capacidade de
operacionalização de toda produção de texto relaciona-se, invariavelmente, com a
competência de leitura, entendida no sentido mais amplo que possamos imaginar. E
não há outro jeito: É preciso trabalhar ‘com’ e ‘sobre’ a língua para compreender o
sistema de escrita, elaborar hipóteses, buscar as regularidades e, também, as
singularidades e/ou especificidades que vão configurando a autoria.
Com a aproximação das Olimpíadas, passamos a olhar mais atentamente o
texto jornalístico, as notícias veiculadas pela mídia impressa. Lemos, discutimos e
montamos um grande jornal-mural. Os doze trabalhos de Hércules conhecidos para
alguns do texto de Lobato nos ajudaram no que diz respeito à reflexão sobre as
virtudes, sempre oportuna, e especialmente em tempos de competição.
Não poderíamos esquecer o fato de “estarmos” na Grécia. E, quanto aos
gregos, privilegiamos a questão da beleza. A conversa sobre o belo foi o nosso fio
condutor. Para isso adotamos, de Lobato, O Minotauro que nos brinda com uma
definição primorosa sobre a Beleza Olímpica. Divinas Aventuras, outro livro bastante
interessante, nos possibilitou uma maior apreciação da beleza dos deuses gregos.
Tentamos, em contraponto, uma reflexão sobre a beleza humana, os modelos que
nos são postos e impostos. Realizaram pequenas entrevistas, falaram dos modelos
da TV, observaram atentamente algumas revistas, se colocaram a respeito do que
percebiam em comerciais, propagandas, novelas, enfim, foi uma conversa e tanto!
115
Confeccionamos, na tentativa de dar alguma visibilidade a toda esta reflexão,
um painel que chamamos: “Entre deuses e humanos”, e alguns textos sobre o tema
“Ser belo é...”. Entre eles, destacamos o seguinte:
SER BELO É...
40
Ser bom,
Não pode ser do mal,
Tem que ser gentil,
E estar de alto astral...
Tem que ser tranqüilo,
Tem que ser legal...
-Peitão, não!!!!
-Bundão, não!!!
-E, então?
-Tem que ter bom coração!!!
É bom ter felicidade,
E também honestidade.
Tem que cuidar da natureza,
E nem ter toda a beleza,
Tem que ter respeito,
E não ter preconceito.
-Aprenderam a lição?
-Tem que ter bom coração.
Autoras: Ana Luisa, Gabriela, Luiza e Maria
Este texto me remete à indagação: ”Para que se escreve?”. Certamente,
muitas respostas são possíveis. Aqui, poderia pensar que se escreve para tomar
partido, para dizer o que se pensa, para se posicionar. Assim é que as autoras vão
40
Como disse em nota anterior, também os textos desta seção passaram por revisões, especialmente no
que diz respeito à correção ortográfica, pontuação e um ou outro aspecto de coesão textual. Como estamos nos
propondo à análise de conteúdo e as idéias das crianças são quase sempre mantidas, achamos relevante trazê-
los, mesmo que não sejam nas primeiras versões, com as letras das crianças. Não as temos.
116
tentando, intencionalmente, deslocar uma questão que é do domínio da estética, no
caso, o belo, para refletir sobre algo que diz respeito à moral e aos valores. Já no
primeiro verso, respondendo a “ser belo é...”, se posicionam: “ser bom”. A partir daí,
vão criando um jogo de imagens: gentileza, bom humor, tranqüilidade, felicidade,
honestidade e respeito, fazendo o contraponto com as idéias da maldade e do
preconceito. Curiosamente, falam dos únicos elementos que dizem respeito aos
aspectos físicos (peitão, bundão) e aspectos supervalorizados em nosso tempo e
em nosso lugar - buscando uma dialogia ainda maior com o leitor, e, em tom
provocativo, retomam ao final do texto: “Aprenderam a lição?”
Não foram poucos os sabores comunicados por Lobato em O Minotauro.
Insistimos para que as crianças aprendessem, estimassem, e se comprometessem
com a leitura em voz alta. Não há melhor maneira de ganhar consciência do que se
lê, e, portanto, do que se poderá vir a escrever. Semanalmente, e impreterivelmente,
partilhávamos desta leitura, vivíamos esse momento coletivo. Foi bastante o que
aprendemos sobre a Grécia antiga, suas histórias fantásticas, sua arte e cultura, seus
deuses e heróis, homens e mulheres, filósofos e artistas, e com eles, sua política e
democracia, suas idéias e filosofias, sempre mediados por Lobato e o Seu Minotauro.
Que genial este livro, pensávamos uma síntese recheada de conhecimento histórico
e de muita aventura, situações encantadas. Mesmo densa, em alguns momentos, a
leitura nos permitiu uma bela e desafiadora viagem.
Rimos, nos admiramos com aquele jeito de Lobato escrever, contar e explicar
para os gregos antigos, na boca de seus personagens, as nossas “modernidades”.
Desta admiração é que nasceu a idéia de propor à turma para, tal como os
‘picapauzinhos’, elegerem um aparato, artefato moderno e também construírem uma
explicação para Fídias, Sócrates e Péricles representantes do artista, do pensador
e do político da Grécia Clássica. Computador, caneta, rádio, jornal, silicone,
automóvel, avião, foram alguns dos objetos escolhidos.
117
Foi bastante significativa mais esta experiência de leitura/escrita, porque nos trouxe a
possibilidade de ampliar o raio de ação/reflexão sobre tempos e lugares diferentes,
sobre o jeito e o saber dos diferentes personagens criados pelo autor - era necessário
garantir-lhes pensamentos e falas adequadas neste sentido e, finalmente, sobre o
estilo do próprio Lobato afinal, sendo a proposta uma interferência no livro, algo que
pudesse mesmo compô-lo, era preciso garantir o ritmo, a cadência da história. Esse
trabalho proposto à turma gerou textos cuja autoria é inquestionável. A partir de
passagem destacada de Lobato, em O Minotauro, que transcrevemos a seguir, Luisa
e Bruna, por exemplo, nos deram uma deliciosa interpretação. Vejamos:
Realmente disse Fídias a linguagem que vocês usam me deixa
tonto.
Pedrinho riu-se.
-Ah, se o senhor aparecesse no nosso mundo, por um dia que fosse...
Que tontura, hein Narizinho? Ele num cinema, num avião...
-Nem precisava isso respondeu a menina. Ele num trem ou no
bonde...
-Que trem ou bonde, Narizinho! berrou Emília. ELE DIANTE...”
...a partir desta fala de Emília, eis a interferência de Luisa e Bruna:
...ele diante de uma mulher turbinada: na frente, atrás, de um lado, de
outro...
-Você sabe o que é silicone, Senhor Marmorista?
-Hã...hã... Sili o que? -Perguntou Fídias, que pelo jeito não estava
entendendo nada.
-Silicone berrou Emília- SI-LI-CO-NE!
-Que diabo é isso? perguntou Fídias atordoado.
-Emília! Explica direito para ele! murmurou Narizinho.
118
-Tá, tá Narizinho. reclamou a boneca e, virando-se para o escultor- Bom,
silicone serve para deixar o peito das mulheres grande. É tipo um plástico...
-Plástico? interrompeu-a Fídias
-Tipo um pano borrachoso. Só que silicone é esticável.
-Bom , Emília, você já explicou o que é silicone disse Visconde que queria
ir embora logo para apreciar o lugar- então vamos indo.
-Não Sr. Acha-que-sabe-tudo! Quis dizer botar silicone berrou a boneca.
-Emília, você vai ficar aí discutindo com o Visconde ou vai explicar para o
pobre do Fídias o que é botar silicone? Disse Narizinho.
-OK, então, hã, hã, botar silicone é fazer uma operação para, como eu já
disse, ficar com peitão. Nessa operação, os operadores...
-Operadores, não, Emília, cirurgiões. Corrigiu-a Visconde, com cara de
sabe tudo.
-Tá, tá! Esses tais ciru-alguma-coisa dão uma anestesia...
-Não são os anes...
-Ah, Visconde, não enche! -Disse Emília sem querer saber o que ele queria
dizer- A anestesia...
-Anestesia? Perguntou Fídias
-É uma substância que alivia a dor, e permite que a operação seja iniciada
disse Visconde ‘se sentindo’.
-Obrigada, Visconde, daqui em diante não me interrompa mais. Depois da
anestesia eles abrem o peito da mulher...
-Atrás da glândula mamária, se não impede o bebê de mamar disse o
Sabugo.
-VISCONDE!!! explicou Emília- Eles abrem o peito da mulher com uma
faquinha especial...
-Faca?-perguntou Fídias
-Ah é, vocês não usam faca, esqueci disse Emília é um objeto que corta
continuou Emília com a paciência esgotada- então eles enfiam o silicone
dentro.
-Depois costuram o local aberto- disse Visconde.
119
-Ei, ia falar isso reclamou a boneca.
-Cruzes, eles costuram a pele! Espantou-se Fídias
-Bom, costuram mesmo e não precisa fazer cara de marmelada lambida!
brigou Emília.
-É só para mulheres?! Perguntou Fídias
-Claro que é! Queria botar um? Respondeu Emília
-HÁ, HÁ, HÁ!!! -riram todos, enquanto Fídias ficava com cara de bobo.
Importante destacar o esforço das autoras para garantir o mesmo campo
significativo criado por Lobato. Na obra, Lobato traz parte do ambiente da Grécia, em
determinado período histórico. As crianças foram se apropriando como puderam - a
partir das leituras, das nossas conversas, de um ou outro documentário e dos tantos
outros textos e informações que cada um tem à sua disposição para pôr aí, em
relação, a intertextualidade.
De modo geral - e embora se possa estranhar algumas das suposições das
autoras: o fato de Fídias ficar espantado por uma pessoa ser cortada e costurada, por
exemplo; ou mesmo constatar a falta de alguns conhecimentos de Luisa e Bruna, o
uso do silicone não é exclusivamente feminino - nos impressiona a busca de
veracidade argumentativa, de verossimilhança, que foram capazes de realizar. Junto a
isso, a adequação das falas aos personagens criados pelo autor, de modo que não
fossem descaracterizados. A eterna briga entre Emília e o Visconde que o digam...
As palavras, ou melhor, o texto de Luiza e Bruna ganha ainda maior força ao
agregar a todas essas qualidades o aspecto da atualidade, as leituras que, a seu-
jeito, são capazes de fazer dos eventos de seu tempo, de modo cuidadoso e gracioso
/ grandioso:silicone serve para deixar o peito das mulheres grande. É tipo um
plástico...-Plástico? interrompeu-a Fídias -Tipo um pano borrachoso. Só que silicone
é esticável.”
120
4.4 Afinal, o que chamamos Autoria?
Inspirados em O Conto da Ilha Desconhecida
121
“Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco. A casa do rei tinha muitas mais
portas, mas aquela era a das petições. Como o rei passava todo o tempo sentado à porta dos
obséquios(...) Só quando o ressoar contínuo aldabra de bronze se tornava, mais do que notório,
escandaloso, (...) é que dava a ordem ao primeiro-secretário para ir saber o que queria o impetrante,
que não havia maneira de se calar. Então, o primeiro-secretário chamava o segundo- secretário, este
chamava o terceiro, que mandava o primeiro- ajudante(...) e assim por aí fora até chegar à mulher da
limpeza, a qual, não tendo ninguém em quem mandar, entreabria a porta das petições(...) Que é que
tu queres.” ( O Conto da Ilha Desconhecida)
41
É claro, e talvez nem fosse necessário dizer, que as respostas das crianças
são sempre bastante diferentes, porque também são diferentes seus conhecimentos
lingüísticos e, naturalmente, a capacidade de colocar tudo isso em relação.
Compreendo que “conceber o aluno como produtor de textos é concebê-lo
como participante ativo deste diálogo contínuo: com textos e com leitores”. (Geraldi,
41
Líamos, na ocasião, (maio de 2006, com a quarta-série do ensino fundamental) O Conto da Ilha
Desconhecida, de José Saramago. A professora assumiu a leitura, alguns alunos apenas ouviam, outros
acompanhavam a leitura, com outros exemplares, e em grupos. Na época, estudávamos sobre os sonhos, em
suas diferentes manifestações. Depois de muitas conversas, tentamos a interpretação plástica de algumas
passagens que, por algum motivo, nos chamara a atenção. Também nos esforçamos para pensar nas dicas do
autor para a caracterização de suas personagens, nos sonhos que cada um deles poderia guardar. Na primeira
imagem o grupo tentou caracterizar o próprio o autor José Saramago - e na segunda fez uma interpretação
plástica para uma passagem do texto O Conto da Ilha Desconhecida, transcrita logo abaixo do desenho. Destaco
o pontilhado utilizado pelos autores para representar o movimento dos funcionários do reino em sua prática de
mando e hierarquia: o rei manda o primeiro secretário que manda o segundo que, por sua vez manda um
terceiro... até chegar à mulher da faxina que executa a ordem, pois não tem ninguém a quem mandar.
Para saber
mais 4, ao final deste capítulo, trata mais detalhadamente desta proposta de atividade com a turma.
122
2002:22). Abrir mão da tradicional redação escolar prática de escrita caricaturesca,
que só acontece na escola e pensar na perspectiva da produção de texto implica,
necessariamente, devolver à escrita o seu lugar de objeto social, posto que para
grande parte das crianças a escrita ainda tem se revelado como objeto escolarizado,
didatizado. Especialmente em processo de alfabetização, quando as crianças são
submetidas aos rituais da iniciação, a escrita chega a ser apresentada de modo
absolutamente equivocado, como transcrição da oralidade.
Propor a produção de texto como atividade escrita e se, de fato, não estamos
fazendo apenas alteração na terminologia implica pensarmos na perspectiva da
intertextualidade, de um saber entrevivido, espaço aberto para o encontro e entrelace
do saber instituído dos adultos com o saber latente, arejado das crianças, entre
outras possibilidades. Não existe texto fora de correlações com outros tantos textos,
escritos ou não. Inaugurar esta prática implicará também, com lembra Geraldi, a
devolução da palavra ao sujeito e, naturalmente, em alguns desdobramentos políticos
que podemos pensar para esta ação. Isso porque o mesmo sujeito, produto de certa
herança cultural, também é produtor do novo, e será capaz de dizer sempre do “seu-
jeito”. Dito de outro modo: “Aposta-se no diálogo e na possibilidade de recuperar na
‘história contida e não contada’ elementos indicativos do novo que se imiscui nas
diferentes formas de retomar o vivido, de inventar o cotidiano.” (Geraldi, 2002:20).
Cheguei até aqui tentando dar algumas pistas do quanto é possível inserir as
crianças no processo de comunicação e expressão tendo em vista a leitura e a
escrita. Oferecer às crianças o máximo de ocasiões para produzir e interpretar
escritas, tendo como princípio o respeito a tais tentativas, me parece o primeiro
passo, se a intenção for formar crianças leitoras e escritoras.
Também gostaria de pôr em discussão certo espontaneismo que, muitas
vezes, se apresenta em diferentes práticas pedagógicas. Não basta dizer: “Crianças,
escrevam!” É preciso que o educador tome para si a responsabilidade de intervir
neste processo, de planejar cuidadosamente as atividades propostas, de pensar num
123
caminho metodológico que possibilite alcançar os objetivos pretendidos. Assim é que
pensamos sobre a idéia de contextualização. Ou seja, as crianças precisam estar
embaladas, afetadas, mobilizadas por alguma questão que represente um bom
motivo para a escrita. Alguma criança poderá ter uma questão motivadora própria, é
verdade, mas, em geral, na escola, a contextualização é construída coletivamente, e
aí está em jogo a intenção/habilidade do educador para colocar um motivo / um texto
no centro, como algo comum, compartilhado.
Também deverá ser preocupação do professor o cuidado com a estrutura
textual, para que efetivamente seja dito no texto o que se quer dizer, as idéias
precisam ser claras e estarem coerentes; então, alguns aspectos tais como
estruturação dos parágrafos, pontuação, ortografia, coesão precisam ser tratados.
Acredito que a aprendizagem de tais regras ganhará um outro sentido, na medida em
que estão relacionadas ao uso, à funcionalidade, pois a criança saberá que está
escrevendo para ser lida, e não simplesmente corrigida.
Como vimos anteriormente, diferentes intencionalidades irão requerer
diferentes tipos de textos que, por sua vez, demandam estruturações, organizações
textuais também distintas. Assegurando tal conhecimento ao aluno, estaremos
contribuindo para que ele seja capaz de assumir, mesmo que parcialmente, o
processo de revisão, de editoração dos textos produzidos, ou seja, poderá ser
capaz de perceber possíveis falhas, desvios na norma padrão, situações de
truncamento que dificultam a compreensão do que se pretende dizer/expressar
aumentando, assim, sua competência de usuário da língua, sua competência de
leitura e escrita.
O que seria, então, um aluno autor, pensando a produção de textos escritos?
Não é fácil responder a esta questão, mas ao longo deste trabalho fui fazendo alguns
ensaios para tentar respondê-la.
É de Bakhtin um conceito-chave, do qual lanço mão para chegar a tal resposta,
o conceito de dialogismo. Fiorin (2003) nos traz o autor apresentando, de modo
124
bastante esclarecedor, alguns outros conceitos que se articulam a este - texto,
discurso - e seus correlatos - intertextualidade e interdiscursividade, respectivamente.
Temos para o primeiro a idéia de unidade, lugar da manifestação dos sentidos, sendo
a intertextualidade a relação entre os textos, tendo em vista a incorporação de um
pelo outro, ou as releituras e transformações possíveis, criadas. Este processo se dá
através de citações, alusões e estilizações. Refletindo acerca desta caracterização, o
texto deve ser entendido, aqui, em seu sentido amplo e, dessa forma, catalisar as
diversas manifestações da linguagem humana. Entre elas, a própria utilização da
língua materna.
Já o discurso “é o patamar do percurso gerativo de sentido em que o
enunciador assume as estruturas narrativas e, por meio de mecanismos de
enunciação, especializa-as, temporaliza-as e reveste-as de temas e/ou figuras.”
(Fiorin, 2003:30), sendo a interdiscursividade a incorporação de temas e/ou figuras de
um discurso para outro, através dos processos de citação e de alusão. Obviamente, a
reflexão acima também pode ser efetivada quanto ao discurso. Em outras palavras,
depreendemos que, de sua manifestação concreta, outras linguagens são
compreendidas.
Tratar de autoria significa trazer tais conceitos à baila. Um autor atua em tais
interseções de textos e discursos produzidos socialmente, cotidianamente,
entrelaçando o extraliterário das tantas histórias vividas e/ou contadas ao que se
apreende de conceitual, ao que se conhece da História, ao que se reflete como valor,
ou ainda ao que se experimenta de artístico.
Gostaria de destacar o estilo
42
como parte dos processos citados, e para isto
muito contribuíram as reflexões de Brait (2006), ao tratá-lo não especialmente no
âmbito dos gêneros literários, mas “como um dado de enunciação estreitamente
42
Para uma discussão mais aprofundada ver: BRAIT, Beth. Estilo, dialogismo e autoria: identidade e
alteridade. In: FARACO, Alberto, TEZZA, Cristovão, CASTRO, Gilberto de. (Orgs) Vinte ensaios sobre Mikhail
Bakhtin. Petrópolis: Vozes, 2006.
125
ligado à interação, à situação em que o evento de linguagem acontece, ao gênero
implicado, ao embate existente entre o ‘eu’ e o ‘outro’ “ (Brait, 2006:62).
E não sendo a concepção de estilo apenas da ordem do literário, também se
pode dizer que não faz parte apenas da obra do artista, podendo fazer parte do
trabalho do autor. Em outras palavras, estilo, em meu entendimento, compreende a
ordem do(s) discurso(s), sendo estes literários ou não. Como nos lembra Brait (2006)
“estilo implica em interação (...) está necessariamente implicado em qualquer
interação” (p.58) e, citando Bakhtin: “o estilo é pelo menos duas pessoas ou, mais
precisamente, uma pessoa mais seu grupo social na forma de seu representante
autorizado, o ouvinte o participante constante na fala interior e exterior de uma
pessoa.” (Apud Brait, 2006:58).
Portanto, podemos dizer que o aluno autor é aquele que consegue, a partir dos
textos de que dispõe - e não apenas os escritos ou seja, de sua relação com o que
já lhe foi dito, com os sentidos que já lhe foram apresentados, em diferentes
situações de contextualização, (re) significar, criar outros sentidos, criativamente e
criticamente se expressar, se posicionar, dizer, ESCREVER, a sua palavra. O aluno
autor é aquele capaz de marcar EXPRESSIVAMENTE a relação dialógica entre o eu
e o outro, é aquele capaz de perceber que a escrita e a leitura são sempre
movimentos inacabados, porque, para o menino/menina autor(a) sempre será
possível ler e escrever numa outra direção e com outro sentido.
A meio, a medo, acordava, e daquele estro estrambótico. O que:
aquilo nunca parava, não tinha começo nem fim? Não havia tempo
decorrido. E como ajuizado terminar, então? Precisava. E fiz uma
força comigo, para me soltar do encantamento. Cada um de nós se
esquecera de si mesmo, e estávamos transvivendo, sobrecrentes,
disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito o
milmaravilhoso a gente voava num amor, nas palavras: o que se
ouvia dos outros e no nosso próprio falar. (ROSA, 1988:46)
Ficarei satisfeita se tiver, neste desafio de catar os sonhos contribuído para
que essa “meninada” tenha compreendido/sentido o conhecimento como uma
126
aventura encantada, e para que o possível leitor deste texto possa ter se empenhado
em continuar dizendo/pensando sobre a questão da autoria.
127
Para saber mais 4 (Fragmento de relatório)
Quarta-série
Primeiro semestre/2006
Relatório de Projeto
Projeto da escola: A casa
Escola Sá Pereira
(...) Achamos que a escolha das crianças em iniciar o estudo pelo CORPO pode ser justificada
por um viés um tanto inovador: Em nossa CASA/CORPO estão impressas marcas das diferentes casas
em que habitamos, parece residir aí a força das palavras do poeta: “Cada homem é, sozinho, a casa da
humanidade.” (Tom Zé) Alguns objetivos nos saltaram aos olhos: Contribuir para um conhecimento
mais respeitoso entre as crianças, a partir do maior conhecimento de seu corpo, da verificação das
diferenças e das igualdades entre as pessoas. Contribuir para a desmistificação de um corpo
fisiológico e partido, a-histórico, compreendendo-o como um todo, integrado, prenhe de juízos, sonhos
e história. Contribuir para uma compreensão das relações entre aspectos biológicos, afetivos,
culturais, e também sócio-econômicos. Tais objetivos nos levaram a começar tratando o corpo de um
jeito diferente, deixando o mais fisiológico para um segundo momento, para pensá-lo como morada dos
sonhos, das virtudes, das idéias, e com a historicidade que é devida. O encontro, um tanto casual, com
Saramago, com a utopia em seu “ Conto da Ilha Desconhecida” - e foi na íntegra que fizemos esta
leitura foi o nosso fio condutor por um bom tempo. Pensar as personagens, de sua embalagem ao
mais interior ainda e, naturalmente, arriscar algumas idéias sobre o próprio autor - e aí, brincaram
com as palavras, unindo duas ou três, mexendo com a letra inicial e com a letra final: palavrAlegria,
romancEmoção, literaturAção, filosofiAventuraSaramago, leRever, sonhOlhar, poesiAlegria, faziam
parte da nossa intenção de viver um pouco mais poeticamente isto que chamamos conhecimento.
Apreciaram os sonhos que ali, no corpo daqueles personagens faziam morada, e os trouxeram à(s)
cena(s), fruto da imaginação enquanto a história ia sendo lida. Nisso, aproveitavam para preencher
com idéias e emoções os espaços propositalmente deixados pelo autor, para, depois, contar, escrever
os próprios sonhos, foi um desafio e tanto.
Num segundo momento, fomos entrelaçando a isto outros sonhos. Aqueles que acontecem
quando estamos dormindo. Lançamos mão da Ciência Hoje para as Crianças e da
SUPERINTERESSANTE como fontes importantes. E, como sonho e memória têm um tanto a ver...
lemos, de Roberto Lent, “Neurim, o neurônio lembrador”, foram recorrentes ao nosso estudo: “O
esquecimento do Neurônio Lembrador” e “ O Neurônio Apaixonado.” As informações de caráter
científico trazidas pelas histórias nos foram bastante valiosas. (...) Flavia Lobão, julho, 2006
128
5 PROVISORIAMENTE, CONCLUINDO...
(...) uma palavra capaz de dar outra palavra diferente da sua é uma palavra
fecunda; um pensamento capaz de dar outro pensamento diferente do seu é
um pensamento fecundo; um homem capaz de dar outra humanidade
diferente da sua humanidade é uma humanidade fecunda(...) (LARROSA,
2001:290)
Das palavras que me foram dadas durante esses anos de trabalho como
educadora as mais fecundas foram, sem dúvida, as que me deram o que pensar; dos
pensamentos, os mais fecundos foram aqueles que me deram o que dizer; dos
homens, a humanidade mais fecunda, porque de total alteridade, esteve relacionada
à infância, às crianças, nos diferentes contextos de suas vidas.
O encontro diário com meninos e meninas experimentando situações de
escrita e de leitura, construindo conhecimento, me mostrou a fecundidade dos
espaços formais de aprendizagem e isto, em geral, em contraposição ao que dizem
os estudos, as pesquisas, as estatísticas e uma infinidade de evidências empíricas,
relacionadas à escola, à educação, do ponto de vista político e epistemológico.
Inevitável foi pensar as contradições, os desafios, as possibilidades; por isso
problematizar a infância, rever nossa condição de cidadania e apostar num trabalho
docente cuidadoso com a prática de autoria, como catalisadora do processo de
aprendizado da língua materna em sua complexidade e como exercício de vivência
cidadã.
Aprendi que as crianças escrevem quando se sentem mobilizadas, enquanto o
momento de contextualização vai se processando e se estiverem fortalecidas, se
compreenderem que têm o que dizer são essas condições fundamentais para que
um autor apareça/aconteça na escola. O espaço escolar será fecundo no processo de
construção da discursividade, se o(s) texto(s), se o(s) discurso(s) deixarem de sair
129
somente das mãos, dos olhos e da boca dos professores para, nas mãos, nos olhos e
nas bocas das crianças viabilizarem a formação cidadã.
Acredito na escola como lugar fecundo para tal embate, para a construção
desta discursividade, quanto mais for coletivo o seu projeto. E no professor como
mediador deste processo, se for capaz de compreendê-lo simples e fundamental,
quanto mais for capaz de se colocar também no lugar de aprendente, comprometido
com a emancipação. Dizemos que o processo é simples porque não é privilégio de
ninguém todo texto que a criança produz poderá ser um texto de autoria a
condição de autor não supõe meninos e meninas “mais dotados”, “mais privilegiados”
pressupõe, isso sim, mediações acertadas. E fundamental, porque implica, neste
embate, que cada um possa dizer a sua palavra, trazendo à tona questões sócio-
históricas, fundamentais ao projeto de emancipação.
As produções escritas vão trazendo marcas sócio-históricas, que poderão ser
marcas de autoria se forem capazes de se inscrever num processo de discursividade
movimento/momento de reconhecer a palavra do outro e de dizer a sua. É na
experiência das crianças dizerem a sua palavra que vamos flagrando cosmovisões -
traços ideológicos, valores, anseios e receios - e está neste processo, que requer
mediações atentas, a possibilidade de mobilizar contrapalavras, garantindo, no
espaço pedagógico, avanços e transformações.
Trabalhar nesta perspectiva nas séries iniciais, e mesmo num espaço formal,
requer entre outras coisas, que o conteúdo a ser tratado não esteja definido à priori,
à revelia do grupo e de seus interesses. Diferentemente da ideologia constituída em
torno da criança gostar de um mundo encantado, mítico, minha experiência aponta
para a realidade de que existe uma outra ansiedade infantil em torno de descobrir o
mundo o mundo real, de indivíduos em suas realidades sociais, de onde emergem
infinitas e interessantes questões. Neste sentido, pensando já nas séries iniciais e no
ensino de Língua, os conteúdos a serem trabalhados na escola poderão representar
também temas históricos, questões culturais, políticas e sociais, por exemplo. Ou
130
seja, o estudo da Língua não pode ser transformado em uma série de atividades
escolarizadas que não façam sentido em lugar algum, ou apenas na própria escola, é
preciso que esteja articulado às práticas sociais. Melhor dizendo, não existem temas
infantis. E nisto reside o trabalho de contextualização, momento de sensibilização
para o que será proposto ou mesmo mobilização para a decisão coletiva do que será
estudado, para o que estará no centro, sendo partilhado.
Assim, estamos diante de um dos aspectos essenciais da aprendizagem da
leitura do mundo, de caminhar análogo à aprendizagem da leitura e da escrita,
traduzindo-se em formação política e construção da cidadania para além da
concepção do vir a ser. Ir além de tal concepção e participando do encontro
pedagógico com as crianças, imprimir marcas diferentes do preparar para, requer
uma ruptura com a idéia de natureza infantil, comumente universalizada, tendo em
vista uma concepção burguesa de infância. Tal concepção, comumente escamoteia a
significação social da infância, tornando tão consensual e incrivelmente
concreto/natural um modelo abstrato de criança na medida em que se materializa
num conjunto de valores, verdades, mercadorias e ações na relação com ela que
(quase) nem se percebe o quanto se trata de um processo ideológico, uma vez não
se encaixando neste modelo a maioria das crianças.
A segurança no processo de qualquer criação ou manifestação estou falando
aqui dos textos escritos das crianças - é de fundamental importância e será possível
se forem respeitadas em sua manifestação sobre o vivido, o contado. Nesta
perspectiva, a questão da classe social salta aos olhos. As crianças mais pobres, da
Vila Proletária, por exemplo, com as quais convivi, experimentam situações de
violência e desrespeito cotidianamente. Chegam à escola acuadas, muitas vezes, por
parte da família, da sociedade, de modo geral, e do próprio Estado - já é histórica a
postura de desqualificação da infância, especialmente da infância pobre ou marginal,
assim como são precárias as possibilidades de suas famílias terem garantidos alguns
direitos da vida cidadã.
131
Em contextos como o descrito acima, o trabalho do professor é intenso, no
sentido de contribuir para que a estima seja cuidada, recuperada, e as crianças
possam reconhecer que sua fala tem importância e valor. Na Vila Proletária,
aprendemos uma primeira e sutil lição: Era urgente ensinar o era uma veze foram
felizes para sempre”, pois a criançada não reconhecia essas expressões, e,
intuitivamente, isso me parecia motivo de preocupação: estava aí revelada mais uma
forma de exclusão, aquela do tipo mais sutil, que impede a criança de, no limite
realidade/imaginação, acreditar em possibilidades, em realidades/movimentos,
utopias, exemplares em tais expressões. Nesse mesmo sentido, é preciso lembrar
que, antes de serem entendidas como expressões de representação da infância
burguesa como posso vê-las e, a despeito de toda a discussão que tem sido feita
acerca da ideologia nos contos de fada, representam um patrimônio de boa parte da
humanidade, do qual as crianças deveriam ter o direito.
Crianças de classe mais abastada, com as quais trabalho hoje, em geral não
têm dificuldades em dizer a sua palavra, reivindicar seus direitos, defender suas
idéias, se manifestarem sobre o vivido, sobre o contado, mas na condição de
privilegiadas, também podem avançar indo além do que sua condição social permite,
no que diz respeito a reprodução das desigualdades, das injustiças e dos
preconceitos. Do mesmo modo, a essas crianças não faltam condições de classe,
inclusive para serem/ se tornarem leitoras e autoras. No entanto, a forma como se
expressam/expressarão vai evidenciar tanto essa condição, como sua superação,
acredito, dependendo também do grau de autoria e do comprometimento que se
constrói com projetos coletivos e democráticos, que devem ser experimentados na
escola, espaço público por excelência.
A condição de cidadania garantida às famílias privilegiadas é estendida aos
seus filhos. Estes, quase sempre, podem estar em uma escola que foi
cuidadosamente escolhida por seus pais, com um projeto político pedagógico
condizente com seus interesses, também políticos. Interesses que podem passar pela
formação para a cidadania, pela formação religiosa, artística ou ainda por uma
132
formação que vislumbre a competição no mercado de trabalho e/ou o sucesso no
vestibular. O que parece comum nesta tamanha diversidade é que, neste país, se tem
uma escola pobre para os pobres e uma escola rica para os ricos. Sendo que as
possibilidades de uma família pobre optar por uma escola para seus filhos são
sempre mínimas.
No calor destas reflexões, gostaria de contestar certa polarização entre espaço
público × espaço privado, isto porque ela requer generalizações, para mim,
inadequadas. Fala-se numa suposta escola pública, de um lado, e numa suposta
escola privada, de outro, quando todos já sabemos que, tanto de um lado quanto de
outro existe uma grande variedade de escolas. Basta um olhar mais atento para os
centros de excelência e para as escolas da periferia dos subúrbios cariocas, tanto de
uma rede quanto de outra.
Nem todas as escolas privadas estabelecem uma relação clientelista, nem
todas estão preocupadas com o vestibular, ou com o mercado de trabalho. Nem
todas as pessoas que optam por pagar uma escola para seus filhos são ricas,
inescrupulosas, de direita, ou reacionárias; nem todos os professores que aí
trabalham são vendidos e, tenho certeza, nem todas as crianças alienadas,
insensíveis, futuros mandantes / opressores neste país. Podemos até contra-
argumentar que existem chances disto acontecer, é possível, mas não determinado,
obtusamente fechado.
Também não penso que todas as escolas públicas sejam mais democráticas,
mais sérias e mais progressistas, infelizmente. Não cabe aqui seguir discutindo tais
questões, apenas o suficiente para poder afirmar que, trabalhando no espaço privado
não estamos, necessariamente, a serviço da manutenção do status quo e das
desigualdades sociais. Assim como quando trabalhamos com classes mais populares
não somos necessariamente coniventes com a idéia / prática perversas de pobreza
social, com todos os desdobramentos que isso acarreta.
133
Finalizando, quero tratar sobre a minha opção por fazer análise de conteúdo e
não análise do discurso das produções das crianças, embora a proposta me
parecesse sedutora. Em primeiro lugar, não me propus a nenhuma discussão
especial no âmbito da ideologia - diferencial importante quando se trata de tal tipo de
análise. Em segundo lugar, acho que este caminho implica em entrar em outro
território, buscando outras referências até, isso para escapar de análises
estereotipadas, por exemplo. Depois, e em decorrência, porque tive o receio de cair
num reducionismo estéril, um tanto ortodoxo, imprimindo uma perspectiva policialesca
ao fazer as análises, não enxergando além das classes sociais as quais pertencem
às crianças, além das dificuldades que teria para manter a coerência com o
referencial teórico-metodológico escolhido. Talvez não conseguisse me mover pela
Terceira Margem do Rio, embora essa terceira margem também compreenda,
dialeticamente, a questão ideológica.
Em minha compreensão, há questões que não se resolvem apenas em termos
de classe social. Quando Aimée, em “Pelo Buraco da Parede”, no capítulo 2, sinaliza
uma solução individual de “superação” da pobreza, de relações de trabalho
escravocratas, está lançando mão do ideário liberal, propagador do mérito e do
esforço individual, sim. Mas não considero que isso aconteça porque ela é uma
criança de classe social privilegiada, e sim porque essa é uma ideologia dominante, e
como tal, propagada e difundida por (quase) todos. Ah, se somente os ricos
pensassem assim... Quero dizer que é perfeitamente possível uma criança da Vila
Proletária, ou outra qualquer, apresentar esta idéia. Assim como poderiam tratar o Bin
Laden como terrorista, o que fez Maria Elisa em seu conto, no capítulo 3, pois esta é
uma ideologia imperialista, norte-americana, fortemente divulgada pela mídia.
Também a idéia de naturalização da miséria, na crônica “Quando eu vejo a
miséria; quando a miséria me vê” de Joana, no capítulo 2, infelizmente, poderia
aparecer na Vila Proletária, inclusive porque boa parte acredita que é pobre porque
Deus quis.
Não me surpreende que as crianças tragam tais marcas ideológicas em
seus discursos. A questão é o que fazemos a partir do que elas dizem, quais são as
134
palavras do contra, provocativas. Isso terá a ver com as nossas mediações e atitudes
planejadas, em situações mais ou menos formais, não importa. São devoluções,
problematizações, em geral, feitas para/com o grupo e não interdições da
palavra/idéia da criança no momento em que escreve. Mediações planejadas por
mim, pelos outros professores, ou mesmo pela escola mais institucionalmente.
Como se fora brincadeira de roda. Memória
Jogo do trabalho na dança das mãos. Macias (...)
O suor dos corpos na canção da vida. História
O suor da vida no calor de irmãos. Magia (...)
Como um animal que sabe da floresta. Memória
Redescobrir o sal que está na própria pele. Macia(...)
Vai bicho homem fruto da semente. Memória
Renascer da própria força, a própria luz e fé(...)
Entender que tudo é nosso e sempre esteve em nós. História(...)
Somos a semente, ato, mente e voz. Magia. (...)
Vai como a criança que não teme o tempo. Mistério
Amor se fazer é tão presente que é como se fosse dor. Magia
43
Entre as palavras e os pensamentos fecundos, tentei me mover por um
percurso de valorização dos meandros, a que chamamos Terceira Margem do Rio.
Isso porque acredito que toda realidade pode ser pensada enquanto movimento, e
todo conhecimento compreendido com processo. Dentro desta perspectiva, difícil é
pensar em termos de dicotomia, qualquer que seja ela sujeito/objeto,
universal/particular, razão/imaginação, prática/teoria porque sempre absolutas e
definitivas. Para esta maneira de pretender conhecer, têm força as palavras de Freire:
É preciso ousar dizer, cientificamente, e não bla, bla, blantemente,
que estudamos, aprendemos, ensinamos, conhecemos, com o nosso
corpo inteiro. Com os sentimentos, vidas, com a paixão e também
com a razão crítica (s/d:10)
Partindo desta idéia é que termino este texto. Busquei a serenidade necessária
para que esta dissertação pudesse comportar o registro de um projeto de Educação,
aliado ao desejo iminente de deixar claro que, em nenhum momento, tive a pretensão
de torná-la um conjunto de idéias acabadas. Muitas dúvidas sempre permearão
43
A Composição é de Gonzaguinha, o grifo é meu.
135
qualquer processo de construção, aliás, penso nas dúvidas enquanto essenciais em
qualquer empreendimento humano que vislumbre a transformação do sujeito e sua
atuação na realidade, ainda mais quando se desdobram em Educação, em relação de
conhecimento e de amor. Para tanto, tomo a posição de sujeito, acreditando estar
diante de um grande desafio, tal qual nos indicou Rezende, em tão poucas efetivas
linhas, no texto epigrafado na introdução deste trabalho e rememorado aqui:
Tem que saber ouvir o motor de poesia do vôo de um beija-flor. Vê-lo
ficar estátua, com as asinhas batendo pausas. E nada de
imprudências, vê se deixa o beija-flor fazer o serviço dele. Não se
deve atrapalhar as importâncias. (2002:8)
O que fazemos na escola de mais fundamental senão a criação de
importâncias? Quais importâncias terei ajudado a criar? Quais terei realizado,
sonhado, neste percurso de educadora? Criar importâncias passa por um aprender a
ver, e para isso necessitamos de educadores “para habituar o olho à calma, à
paciência, a deixar-que-as-coisas-aproximem-se-de-nós: aprender a aplacar o juízo, a
rodear e abarcar o caso particular a partir de todos os lados” (Nietzsche apud
Larrosa, 2002:32).
Poderia acrescentar que me esforcei para ensinar/aprender multiplicando as
perspectivas, o número de olhares - fazê-los afeto, amplitude e problematização. Um
ensaiar e perguntar foi todo o meu caminhar, olhos e perguntas novas para tratar do
que ainda pode ser desconhecido nas coisas da realidade “e nada de imprudências,
não se deve atrapalhar as importâncias.” Com relação às crianças, está feita a
aposta, a de que cada um é/será o melhor que pode/puder Ser e é esta a maior
das Importâncias.
136
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