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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
EM NOME DOS SANTOS REIS: UMA HISTÓRIA DE
PROTAGONISMO E MEDIAÇÕES EM SANTO ANTÔNIO
DE GOIÁS
Ivone Aparecida Pereira
GOIÂNIA
2005
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
EM NOME DOS SANTOS REIS: UMA HISTÓRIA DE
PROTAGONISMO E MEDIAÇÕES EM SANTO ANTÔNIO
DE GOIÁS
Ivone Aparecida Pereira
Orientadora: Profª Drª Irene Dias de Oliveira
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências
da Religião da Universidade Católica de Goiás, como
requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências da
Religião.
GOIÂNIA
2005
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BANCA EXAMINADORA
1) Profª Dra. Irene Dias de Oliveira (Presidente)-----------------------------------------------
2) Profª Drª Carolina Teles Lemos (Membro)---------------------------------------------------
3) Profº Dr. Jadir de Morais Pessoa (Membro)-------------------------------------------------
... A bandeira acredita
Que a semente seja tanta
Que essa mesa seja farta
Que essa casa seja santa
Que o perdão seja sagrado
Que a fé seja infinita
Que o homem seja livre
Que a justiça sobreviva
Assim como os três reis magos
Que seguiram a estrela guia
A bandeira segue em frente
Atrás de melhores dias
No estandarte vai escrito
Que ele voltará de novo
E o rei será bendito
Ele nascerá do povo.
(Ivan Lins)
DEDICATÓRIA
A Edson Coelho (in memoriam) folião que durante
quarenta e três anos animou a Folia de Reis dos
Meninos de Dezembro de Santo Antônio de Goiás e
que, hoje, seguramente, inventa versos e toca
acordeom em algum outro lugar.
AGRADECIMENTOS
- A Deus, meu porto seguro - certeza de ancoragem... sempre!
- Aos meus pais e irmãos pela credibilidade e força silenciosa. Sem fazer alarde, me
fizeram crer que seria possível ousar.
- À Profª. Drª. Irene Dias de Oliveira pela orientação segura, presença, amizade e dicas
sempre tão valiosas.
- À Profª. Drª. Carolina Teles Lemos e Prof. Dr. Luigi Schiavo pela competência,
acessibilidade e companheirismo. Agradeço, também, pelas valiosas contribuições ao
participarem da minha banca de qualificação.
- Ao Prof. Dr. Jadir de Morais Pessoa, que mesmo sem saber, inspirou-me no desejo de
mergulhar na dinâmica da Folia de Reis e, hoje, participa desta banca de defesa.
- Ao Prof. Dr. Valmor da Silva e Geyza Pereira pela competência, presteza e dedicação.
- Ao Prof. Dr. Manuel Ferreira L. Filho por ter me ensinado a ir ao campo de pesquisa
de olhos atentos e a não desprezar nem mesmo aquilo que parecesse insignificante.
- À comunidade de Santo Antônio de Goiás que me acolheu como pesquisadora e que
não mediu esforços para ajudar-me nessa árdua e gratificante empreitada. Especiais
agradecimentos a Diego Gomes e Marco Antônio da Silva.
- À Profª. Gislene Divina pelas correções ortográficas e incentivo desmedido.
- Meu eterno carinho aos amigos: Guto e Welthon que me ampararam antes mesmo da
prova de seleção e aguçaram o meu desejo de cursar este Mestrado; Norberto,
Vicentina e Willian companheiros de caminhada, de trocas, dores e alegrias; Célia e
Cleusa pela amizade, incentivo e confiança.
- Aos amigos Agnaldo e Cristina Bonetti pela presença observadora, olhar diferenciado
e dicas preciosas quando estiveram comigo no campo de pesquisa.
SUMÁRIO
RESUMO.........................................................................................................................10
ABSTRACT.....................................................................................................................11
INTRODUÇÃO................................................................................................................12
CAPÍTULO I: A FOLIA DE REIS DE SANTO ANTÔNIO DE GOIÁS............................20
1.1 – Folia de Reis: gênese e chegada às terras brasileiras...........................................20
1.2 – A cidade de Santo Antônio de Goiás......................................................................22
1.3 - A Folia de Reis de Santo Antônio de Goiás...........................................................25
1.3.1 – Religião e Folia em Santo Antônio de Goiás.......................................................27
1.3.2 – O processo ritual da Folia de Reis de Santo Antônio de Goiás..........................32
1.3.2.1 – Os componentes da Folia e as tarefas de cada encargo.................................39
1.4 – A construção do imaginário simbólico....................................................................45
1.4.1 – Temor e tremor: o imaginário coletivo dos foliões...............................................49
1.5 – Os medos nossos de cada dia...............................................................................51
1.6 – A direção do giro....................................................................................................56
1.7 – Os votos e barganhas............................................................................................57
CAPÍTULO II: RELIGIOSIDADE POPULAR, INCLUSÃO SOCIAL, PAPÉIS
E LEGITIMAÇÃO...........................................................................................................63
2.1 – Religiosidade popular.............................................................................................63
2.2 – As duas faces do catolicismo.................................................................................70
2.2.1 – Santos e Folias: a sustentação de um jeito de ser católico.................................72
2.2.2 – Folia e saúde: o que Santos Reis tem a ver com isso?......................................76
2.3 – As multifaces da inclusão social.............................................................................81
2.4 – A força legitimadora da religião..............................................................................85
2.4.1 – Papéis sociais: o “que” são e “como” são legitimados........................................87
2.5 – O lugar da mulher na folia......................................................................................90
2.6 – Rituais: ontem, hoje e sempre...............................................................................93
CAPÍTULO III: FOLIA DE REIS: ALTERNATIVA PARA UM NOVO PARADIGMA
SOCIETAL?....................................................................................................................97
3.1 – Desenraizamento: um problema da atualidade......................................................97
3.1.2 – Enraizamento: questão de identidade...............................................................100
3.2 – Festa: uma experimentação do campo do possível.............................................104
3.3 – Sagrado e profano se abraçam............................................................................110
3.4 – A urdidura do trabalho e da vida na festa dos Santos Reis.................................113
3.5 – Mesa farta, apesar da crise..................................................................................115
3.6 – Pertencer: um verbo que é conjugado.................................................................119
3.7 – O que uma folia não faz.......................................................................................123
3.7.1 – Em nome dos Santos Reis................................................................................127
3.8 – Santos Reis se despedem, mas voltam no ano que vem....................................133
CONCLUSÃO...............................................................................................................139
REFERÊNCIAS.............................................................................................................143
ANEXOS
RESUMO
PEREIRA, Ivone Aparecida. Em nome dos Santos Reis: uma história de protagonismo e
mediações em Santo Antônio de Goiás. Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 2005.
O presente estudo busca compreender as relações tecidas no interior dos grupos
sociais, tendo como pano de fundo a Folia de Reis. Tomamos como caso específico um
grupo de foliões da cidade de Santo Antônio de Goiás que se organizou e que caminha
sem a presença e sem a tutela do clero. A hipótese levantada foi a de que a Folia de
Reis pode ser considerada como um espaço para a inclusão social e a legitimação dos
papéis representados por seus foliões. Isso se porque a Folia de Reis consegue
reunir o povo como sujeito histórico que é capaz de interpretar, criar e recriar a sua
própria cultura. Num tempo de erudição, de linguagem sofisticada que divide, que
separa e exclui a Folia de Reis apresenta-se como uma possibilidade de participação
efetiva no campo religioso. Mas, não é uma participação qualquer. O ritual da Folia de
Reis é capaz de transformar pessoas comuns em personagens centrais de uma das
mais importantes histórias ocorridas no âmbito do cristianismo.
Palavras-chave: Religiosidade Popular, Inclusão Social e Legitimação.
ABSTRACT
PEREIRA, Ivone Aparecida. In the name of the Holy Kings: a history of protagonism and
mediactions in Santo Antônio de Goiás. Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 2005.
This study aims to understand the relationship established in the social groups
considering “Folia de Reis” as a scenery, and consider an specific case of a group of
people in the city of Santo Antônio de Goiás that organize themselves and walk without
the presence and protection of the clergy. Folia de Reis” can be considered a space to
social inclusion and genuine representation of the participants called “foliões”. It
happens because “Folia de Reis” can join the people and show them as historical
subjects who are able to play, create and recreate their own culture. Nowadays, the
erudition and the sophisticated language divide and exclude people and “Folia de Reis”
shows itself as a possibility of a real participation in the religious life. But it is not a
simple participation because “Folia de Reis” ritual is able to turn common people into
important characters of one of the most important fact in the Christianism.
Key words: Popular Religiosity, Social Inclusion and Legitimating
INTRODUÇÃO
Em todos os anos, nos meses de dezembro e janeiro, alguns artigos e matérias
televisivas trazem à tona o ritual da Folia de Reis. Logo em seguida, o tema cai no
esquecimento, para ser relembrado no ano seguinte como uma peça folclórica que
estava guardada ou mesmo adormecida. Em sua grande maioria, os artigos trazem
informações históricas acerca da origem da folia, dos componentes do grupo, objetivos
da Companhia
1
e diferenças existentes no ritual de uma Folia de Reis para outra. No
entanto, apesar de referenciadas, muitas vezes, as folias aparecem mais como
ilustrações, como descrição de rituais ou meros espaços para diversão e
entretenimento e nem sempre são objetos de análise e de pesquisa mais séria.
A Folia de Reis está presente em vários estados do Brasil e faz parte da
religiosidade do seu povo. Tradição religiosa e cultural herdada dos portugueses desde
o período da colonização, ela tem subsistido através dos tempos. Estudá-la é uma
forma de resgatar um pouco da história que a constitui e da identidade que a sustenta,
pois é “só se reunindo que a sociedade pode reavivar a percepção e o sentimento que
tem de si mesma” (Durkheim apud Riviere, 1997, p. 8). Esse é o primeiro motivo que
nos faz considerar ser de extrema relevância o estudo do tema ora apresentado.
Um segundo motivo é de ordem pessoal, pois sendo de origem rural, trazemos
distantes na memória, mas vivas na alma, as cantorias e os giros das Folias de Reis de
nossa infância. Parafraseando Carlos Rodrigues Brandão (1985a), diríamos que
estudar a Folia de Reis e celebrar o seu ritual é sempre uma forma de reavivar o desejo
de não esquecermos de tudo aquilo que fez parte do nosso passado. É poder atualizar
e ressignificar nosso presente. Concordamos com o pensamento de Berger, quando ele
afirma que “as experiências que ficam assim retidas são sedimentadas, isto é,
consolidam-se na lembrança como entidades reconhecíveis e capazes de serem
lembradas. Se não houvesse essa sedimentação, o indivíduo não poderia dar sentido à
sua biografia” (2002, p. 95).
Falar da Folia de Reis pressupõe uma observação atenta de toda sua
organização: processo ritual, crenças, distribuição de papéis, a escolha dos festeiros, a
composição da Companhia, a direção do giro
2
, as refeições, as cantorias, as relações
evidenciadas e as relações dissimuladas. É a somatória de todos esses elementos que
faz da Folia de Reis um espaço memorial de oração, solidariedade, confraternização e
festa.
“As Folias de Reis são a viagem ritual mais difundida no Brasil e a mais rica de
ritos e crenças próprias” (Brandão, 1985a, p. 138). As folias são parte integrante da
1
Em Santo Antônio de Goiás o grupo de foliões é chamado de Companhia. Em alguns lugares é chamado também de
comitiva ou ainda, terno de foliões.
2
Jornada. Viagem. É a caminhada que os foliões fazem percorrendo e cantando de casa em casa. Na linguagem dos
foliões, a folia não caminha, ela gira.
religiosidade popular do povo goiano e tem sido transmitida e perpetuada de geração a
geração. Os giros percorrem sempre as zonas rurais, as pequenas cidades e,
ultimamente, também têm percorrido as periferias e alguns bairros da capital do estado.
Comumente, nos meses de dezembro e janeiro, é possível ver um grande número de
Companhias formadas por pessoas idosas, adultos, jovens e crianças que, embalados
pela cantoria comum, seguem o compasso do caixeiro
3
que vai dando o tom da
caminhada.
A Folia de Reis escolhida como objeto de estudo foi a de Santo Antônio de
Goiás, uma pequena cidade que está aproximadamente a vinte quilômetros de Goiânia,
onde o rural e o urbano misturam-se pela origem simples do povo e pela proximidade
da capital.
A cidade de Santo Antônio de Goiás conta com uma população de
aproximadamente 3.600 habitantes, em sua zona rural e urbana. Apesar de ser uma
cidade pequena, nela existem três Folias de Reis. Do dia 18 de dezembro ao dia 06 de
janeiro uma grande quantidade de pessoas está envolvida com o giro, ornamentação
dos altares, dos arcos
4
e preparação da comida. Encontramos inclusive pessoas que
giram nas três folias, dão almoço para um grupo de foliões e pouso
5
para outra folia.
Isso tudo levou-nos a questionar: por que é tão importante para estas pessoas
participarem da Folia de Reis? Que influência tem a Folia de Reis nas relações da
comunidade? Quais os ganhos que o poder simbólico reflete, nessa festa? A Folia de
Reis seria uma forma de preservar valores que correm o risco de serem eliminados ou
3
Pessoa encarregada de bater a caixa. A caixa é um instrumento de fundamental importância dentro da Folia. É pelo
som da caixa que os pandeiristas ritimam os seus instrumentos.
4
Geralmente feitos com folhas de bananeiras, de bambus ou coqueiros. Os arcos são enfeitados com flores. Neles a
Companhia pára, faz a saudação por meio dos cantos, e depois continua a caminhada até o altar.
seria ainda, uma forma de buscar respostas que a sociedade nega-lhes ou não lhes
pode dar?
Levantamos como hipótese inicial, a idéia de que a Folia de Reis é um espaço
valorativo de saberes, crenças, conhecimentos populares e reconstrução da identidade.
Por isso, ela é um elemento que credencia e possibilita a inclusão social dos foliões.
Desta forma, ao reviverem a viagem epifânica dos Reis Magos, os foliões não apenas
protagonizam uma história, eles assumem um papel e, conseqüentemente, são
revestidos de um poder simbólico que os legitima como mediadores do Sagrado.
Em relação ao trabalho exploratório de campo, asseveramos que ele se deu da
seguinte forma: num primeiro momento, lançamos mão de arquivos da prefeitura,
documentos de arquivo da Igreja de Santo Antônio de Goiás e relatos orais dos
moradores mais antigos da cidade, para nos ajudar a descrever nosso campo de
pesquisa, como também, o nosso objeto de estudo. Nesse sentido, podemos afirmar
que o trabalho de pesquisa de campo começou antes mesmo do início do giro da folia.
Idas e vindas à cidade de Santo Antônio de Goiás e o contato com alguns de seus
foliões, garantiu-nos a presença na Companhia como uma observadora participante e
não mais como uma intrusa ou um corpo estranho gerador de desconfianças.
Brandão (1999) aponta a pesquisa participante como uma modalidade de
chegar-se ao conhecimento coletivo, recriando, de dentro para fora, as formas
concretas de grupos e classes pensarem e produzirem conhecimentos em relação a
eles mesmos. Nesse sentido, fizemos uma tentativa séria de olharmos para nosso
objeto de estudo também ‘de dentro para fora’, por entendermos que as ilusões de
5
Local onde os foliões descansam, jantam, deixam os instrumentos musicais e a bandeira. Em algumas folias os
foliões também pernoitam na casa.
ótica, provocadas pela distância, poderiam impedir-nos de ver a realidade como ela,
verdadeiramente, apresenta-se.
Além da pesquisa documental e oral e da observação atenta como pesquisadora
participante no giro da folia nos anos de 2003 e 2004, lançamos mão de entrevistas
semi-estruturadas. Como o instrumental realizado foi o de entrevistas gravadas, as
respostas foram geradoras de outras perguntas, abrindo brechas para a elaboração de
novas hipóteses. Nossa presença ininterrupta no giro permitiu-nos observar, em
movimento, a rede de relações estabelecida no grupo. Nada do que foi dito ou não dito,
mas evidenciado nas relações e posturas, foi desprezado. Acreditamos que “a realidade
é uma coisa diferente e muito mais rica do que aquilo que está codificado na lógica e na
linguagem dos fatos” (Marcuse apud Oliveira, 1999, p. 26).
A experiência das entrevistas semi-estruturadas com perguntas abertas foi muito
interessante. Algumas pessoas foram entrevistadas durante o giro da folia, outras foram
entrevistadas em momentos oportunos, fora do giro. A receptividade à pesquisa foi
bastante favorecida porque as entrevistas abriram espaços para os foliões falarem do
seu passado, fazendo dele uma reconstrução, pela mediação da memória. “Através da
memória pode-se arrancar do passado experiências que permanecem guardadas ou
que foram silenciadas” (Marcon, 2003, p. 34). Alguns foliões chegaram a reivindicar o
direito de também contar suas histórias e de fazer suas memórias. Houve um interesse
em buscar o conhecimento de fatos adormecidos, bem como, de fotografias
amareladas. Marcon (2003) afirma que ao reavivar a memória, atribui-se novos
significados às vivências, aos conflitos e às tensões. A reinterpretação do passado é
um exercício para a auto-afirmação pessoal e social.
Não houve a separação de um tempo para a observação, um tempo para
pesquisa e um tempo para a escrita. Na verdade, observação, pesquisa e escrita
articularam-se o tempo todo. As entrevistas gravadas foram transcritas e superaram
cento e quarenta e cinco páginas.
Além da descrição do nosso objeto de pesquisa (Folia de Reis), outros três
pilares forneceram a base de sustentação teórica de nosso trabalho: religiosidade
popular; inclusão social e legitimação.
Para o desenvolvimento dessas idéias, assim foi sistematizado o trabalho que
ora apresentamos:
No capítulo I: A Folia de Reis de Santo Antônio de Goiás - apresentamos uma
descrição pormenorizada de nosso objeto de estudo, contextualizando-o no município
onde a festa acontece. Elementos como o processo ritual, a composição da
Companhia, os votos
6
, os temores e a construção do imaginário coletivo dos foliões são
trazidos à tona. Para o desenvolvimento desse capítulo, além das informações obtidas
no campo de pesquisa, buscamos suporte em fontes referenciais: Brandão, Pessoa e
Fontoura por serem grandes estudiosos da temática abordada.
No capítulo II: Religiosidade popular, inclusão social, papéis e legitimação -
apresentamos a religião popular como um espaço estratégico para a construção de um
cenário simbólico que se torna alternativa para o enfrentamento do caos social do
mundo contemporâneo. Autores como Richard, Maduro, Alves nos ajudaram na
compreensão dessa forma de expressão religiosa, mas foi a leitura de Parker, a que
mais nos reportamos, porque ele enfoca a religião popular como reprodutora do sentido
6
Promessas. São oferendas em ‘pagamento’ a uma graça alcançada.
de vida. Esse entendimento alargou os horizontes de nossa compreensão do
significado dos “votos” tão presentes no contexto das folias.
Num segundo momento desse capítulo, trabalhamos a inclusão, não no âmbito
da economia, mas num mercado material simbólico de valores. Acreditamos que é
nessa esfera simbólica de valores que os foliões são incluídos porque representam um
papel, assumem uma identidade e até se confundem com os personagens
representados. Como detentores de um poder simbólico conferido pela religião e
alimentado pelo ritual da folia, eles são legitimados socialmente. Dentre outros autores,
buscamos como fontes referenciais: Paugan, Bourdieu, Berger e Durkheim.
No capítulo III: Folia de Reis: alternativa para um novo paradigma societal? -
Apresentamos as relações tecidas no interior da folia, confrontando essas vivências
com o estilo de vida apresentada pela dinâmica societal contemporânea. Vamos
perceber que a Folia de Reis, como todo e qualquer grupo social, não está isenta das
contradições que são próprias dos humanos. No entanto, apesar das limitações, ela
oferece, mesmo que de forma transitória, um outro modelo possível de sociedade.
A festa da folia apresenta-se como um espaço para o resgate e consolidação da
memória; a reconstrução de um jeito de ser, de pensar e agir; a qualificação de um
saber desprestigiado pela “ortodoxia sagrada” e a inclusão num cenário simbólico
produtor de vida e ancorado num forte sentimento de pertença comunitária. Nesse
capítulo, de forma mais incisiva, o trabalho de campo foi iluminado pelo pensamento de
vários teóricos e pesquisadores que estudaram festas da religiosidade popular
brasileira.
Na etapa conclusiva do trabalho, afirmamos que “as festas, assim como a
religião e as demais instituições humanas, apresentam um certo ciclo de vida. Elas
nascem com a intenção de fazer reviver, na lembrança dos povos, suas vitórias e
esperanças” (Lopes Júnior, 1999, p.37). Isso não significa que, com o decorrer do
tempo, as festas também não possam tornar-se instrumentos de dominação,
reprodução e legitimação da ordem social vigente.
No entanto, apesar dos paradoxos, percebemos que a Folia de Reis, muito mais
do que reproduzir ou inverter as experiências sociais, muito mais do que funcionar
como uma válvula de escape para suportar o peso da realidade cotidiana, ela vem para
dar sentido a tudo aquilo que no cotidiano parece estar vazio dele e carente de
significado.
Percebemos que, através de um discurso modesto e aparentemente menos
elaborado, os foliões organizam a sua visão de mundo, o ethos norteador que lhes a
segurança necessária de continuar existindo nesse mundo desnorteado. A Folia de
Reis é também uma possibilidade de relembrar e fazer valer seus valores, suas
crenças, suas histórias de vida, seus desejos e utopias. É ainda, uma possibilidade de
interpretação e recriação de sua cultura. É uma forma de assegurar a sua pertença
comunitária não como um ser passivo, como uma tábula rasa, mas como agentes e
sujeitos de sua própria história.
Para compreendermos um pouco mais desse universo, convidamos o (a) leitor
(a) a mergulhar nas páginas deste trabalho que foi uma tentativa de compreender o
ritual da Folia de Reis, o papel que ela desempenha, o sentido e o significado que ela
tem para a comunidade de Santo Antônio de Goiás.
CAPÍTULO I
1 - A FOLIA DE REIS DE SANTO ANTÔNIO DE GOIÁS
“Devemos temer um mundo e um tempo em que festas como a de Santos Reis
desapareçam. Devemos desconfiar do que nos entra pela casa em lugar delas. Elas são
nossas e nós as criamos todos os anos, por muitos anos” (Brandão apud Pessoa, 1993, p.
6).
1.1 – Folia de Reis: gênese e chegada às terras brasileiras
“Era no Portugal velho uma dança rápida, ao som do pandeiro ou adufe,
acompanhada de cantos” (Cascudo, 1980, p. 336). No entanto, desde o seu surgir na
Península Ibérica, até o presente momento, vamos perceber que muitas mudanças e
adaptações têm ocorrido no ritual da Folia de Reis. “Foi por meio dos portugueses que
a manifestação chegou ao Brasil, onde foi adaptada conforme os costumes locais de
cada região. no ano de 1534 registro histórico da realização de uma folia em
terras brasileiras” (Marcos e Franco Filho, 2003).
As Folias de Reis são a viagem ritual mais difundida no Brasil e a mais rica de
ritos e crenças próprias. Elas foram trazidas pelos Jesuítas para o Brasil e introduzidas
pela Igreja Católica como parte da liturgia que visava catequizar índios e negros e
controlar, simbolicamente, a ordem social (Brandão, 1985a).
Geralmente, no período chamado de epifania (manifestação de Jesus aos
povos) que vai do dia 25 de dezembro a 06 de janeiro, é que se a peregrinação dos
foliões.Tendo à frente uma bandeira com a estampa dos Santos Reis (que também é
chamada de guia) os foliões passam de casa em casa, revivendo a caminhada dos
magos que partiram do Oriente rumo à cidade de Belém em busca do Menino-Deus. Os
foliões repetem esse caminho, referendados pela profecia que dizia: “Tendo Jesus
nascido em Belém da Judéia no tempo do rei Herodes, eis que vieram magos do
Oriente a Jerusalém, perguntando: ‘onde está o rei dos judeus recém-nascido? Com
efeito, vimos a sua estrela no seu surgir e viemos homenageá-lo” (Mt 2, 1-2).
As Folias de Reis estão presentes em várias regiões do Brasil. “Festa visível da
cultura e da fé. Continuam refletindo a vida, recriando-a, conjugando festividade e
devoção, gracejos e sentimentos” (Passos, 2002, p. 173).
O eixo central da Folia de Reis é a viagem epifânica realizada pelos magos do
Oriente. No entanto, para não deixar morrer tão preciosa tradição, os foliões, mantêm o
eixo central, mas vão fazendo concessões e realizando algumas modificações. Dentre
estas, o tempo de giro é encurtado; em muitas folias caminha-se apenas durante o dia;
o trajeto é feito, preferencialmente à pé, mas lança-se mão do transporte motorizado,
quando a distância a ser percorrida é muito extensa; há rodízio dos foliões, para
atender a demanda de trabalho principalmente daqueles que laboram no comércio.
Os foliões mais velhos lembram com saudades das folias do passado, quando,
segundo eles, havia muito mais devoção, espírito de sacrifício e temor aos Santos Reis.
No entanto, não podemos negar que são graças a essas concessões, a esses
desdobramentos, arranjos e adaptações que têm acontecido nos últimos tempos, que
as folias têm perpetuado e chegado às novas gerações.
diferenciações de uma Folia de Reis para outra, porque cada grupo faz uma
leitura, e, mediado pela experiência, constrói a sua teia de significado e o seu universo
simbólico.
Mas, antes de descrevermos a Folia de Reis dos Meninos de Dezembro da
cidade de Santo Antônio de Goiás que é o nosso objeto de estudo, precisamos
conhecer um pouco do município que abriga esta festa.
1.2– A Cidade de Santo Antônio de Goiás
A cidade de Santo Antônio de Goiás conta com uma área de 114.000 km2 e uma
população de aproximadamente 3.600 habitantes em sua zona rural e urbana. Originou-
se na Fazenda São Domingos onde foi instalada a Fazenda Regional de Criação de
Goiânia, administrada pelo Ministério da Agricultura, hoje, EMBRAPA.
A cidade tem como municípios limítrofes as cidades de Brazabrantes, Goiânia,
Goianira, Nerópolis e Nova Veneza. Está localizada a menos de 20 km da capital do
estado e tem como via de acesso a GO-462.
Como fonte de emprego, a cidadezinha conta com um pequeno comércio, a
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) e a Prefeitura local. Parte
dos seus habitantes são pequenos proprietários de terras e trabalha na agricultura
(onde predomina a cultura do arroz e do feijão). Uma grande parcela dos seus
moradores, por falta de opção de trabalho, desloca-se até a capital e retorna no final da
tarde para Santo Antônio de Goiás.
Uma das queixas dos moradores da cidade é a superlotação do transporte
coletivo. A Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos através de sua linha
“287” que transporta os passageiros até a Praça “A” em Campinas
7
, disponibilizou uma
quantidade de vinte horários alternativos de ônibus nos dias úteis e mesmo assim, não
consegue evitar a superlotação. Destarte, Santo Antônio de Goiás é uma cidade
pequena, mas acaba por não usufruir a vida pacata dos moradores das cidades do
interior, porque a grande maioria dos seus habitantes vive a correria dos horários
apertados dos grandes centros uma vez que trabalham na capital.
Como a grande maioria das cidades, Santo Antônio de Goiás foi se formando em
torno da Igreja e da venda. A venda era de propriedade do senhor Antônio de Freitas. O
pequeno comércio estava situado no meio do cerrado e cercado de umas poucas
casas. Por um comentário irônico de um dos passantes que parou na venda, o lugar
passou a ser chamado de Quiabo Assado.
A Igreja foi construída, no ano de 1959, por José Josias da Silva em
cumprimento de uma promessa feita a Santo Antônio. Desde o início, os moradores do
lugar ajudaram na construção da Igreja. Novenas e leilões foram meios utilizados para
angariarem fundos. Com a construção da Igreja, a cidadela levou o nome do santo que
também passou a ser o padroeiro do lugar. Inicialmente a cidade pertencia ao
município de Goianira, mas em 1990, foi emancipada e elevada à categoria de cidade.
A Igreja local sempre contou com a presença esporádica do padre da cidade de
Goianira. Essas visitas limitavam-se às celebrações de batizados, casamentos e às
celebrações eucarísticas que se davam mensalmente. Do ano de 1990 ao ano de 1998,
a Igreja passou a contar com a presença quinzenal de um padre da Ordem de Santo
Agostinho e das irmãs da Congregação do Sagrado Coração de Jesus. Mas, as
atividades continuaram a girar em torno da celebração dos sacramentos.
No dia 15 de agosto de 2001, através do decreto 09/01, a Igreja de Santo
Antônio de Goiás foi desmembrada da Paróquia São Geraldo da cidade de Goianira.
Foi designado, pela Arquidiocese de Goiânia para assumir a Igreja, um padre italiano
da Congregação dos Cônegos Regulares da Imaculada Conceição. A Congregação é
de origem francesa.
Na entrada da cidade de Santo Antônio de Goiás, existe uma estátua do santo
de aproximadamente seis metros de altura. A imagem do santo parecia delimitar um
território católico. No entanto, no ano de 2000, quando ganhou as eleições para prefeito
da cidade um candidato evangélico, ele mandou construir na entrada da cidade, uma
Bíblia com os seguintes versículos: “Feliz é a cidade cujo Deus é o Senhor” (Sl 33, 12);
“Não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20,3). Dessa forma, católicos e
evangélicos habitam um mesmo território e constroem suas identidades expressas em
suas formas de serem e viverem sua fé.
Nessa pequena cidade, acontecem três Folias de Reis (duas no mês de
dezembro e uma no mês de janeiro). Tal fato leva-nos a concluir que esse evento seja
7
Campinas é o bairro mais antigo da capital goiana.
uma manifestação religiosa importante para os seus habitantes. Por isso merece a
pena ser pesquisada.
Foto 1 – A imagem de Santo Antônio e da Bíblia Sagrada dividem espaço e marcam a entrada da cidade.
1.2 – A Folia de Reis de Santo Antônio de Goiás
Observando a constituição das Companhias de Reis presentes em muitos
Estados do Brasil, percebemos que alguns destes grupos originaram-se no interior de
uma família, outros, de uma turma de amigos ou vizinhos. Geralmente, essas folias
levam o nome da família, o nome do embaixador ou o nome da região em que
surgiram. Nesse sentido, a folia passa a ter um dono, um nome ou uma referência.
Na cidade de Santo Antônio de Goiás, as folias são assim distribuídas e
denominadas: a primeira, que gira do dia 18 ao dia 23 de dezembro, é conhecida como
a Folia dos Meninos; a segunda, que sai no dia 25 e gira até o dia 30 de dezembro, é
conhecida como a Folia dos Meninos de Dezembro; e a terceira, que sai no dia 1º e gira
até o dia 06 de janeiro, é conhecida como a Folia de janeiro. Em Santo Antônio, apesar
das folias abarcarem uma grande quantidade de pessoas da mesma família elas, desde
o início, não levam nome de pessoas e têm como referência o tempo em que
acontecem.
A Folia de Reis é um testemunho vivo da tradição que é passada de pais para
filhos e assim, sucessivamente. No entanto, como a cultura não pode ser congelada, a
própria tradição faz-se dinâmica (Ferretti, 1995) porque as pessoas não se limitam
apenas a reproduzir, mas a construir, através de sua subjetividade, de sua
interpretação e ressignificação uma realidade simbólica. Nesse sentido, o nosso olhar,
interesse e estudo estarão voltados para a Folia de Reis dos Meninos de Dezembro,
pois nos interessa explicitar aqui as relações, os papéis e as representações que esse
ritual tem sustentado, assim como, entender o porquê desse ritual continuar repetindo-
se ao longo desses quarenta e quatro anos.
O próprio nome da folia estudada já revela um pouco de sua história. Ela nasceu
de uma brincadeira de crianças e foi espelhada na experiência dos adultos que giravam
no mês de janeiro. Usando máscaras de papelão, bandeira de folha de bananeira ou de
papel, instrumentos musicais improvisados com latas de marmeladas, caixotes e
tamboretes e um pequeno cavaquinho, esses meninos saíam, na vizinhança, cantando
suas cantigas em busca da “merenda” ou guloseimas que poderiam ser-lhes
oferecidas. Edson Coelho, um dos fundadores da folia (que na época era muito jovem),
disse que diante de uma roça de abacaxi ou de um lanche desejado, rapidamente o
grupo formava-se. Os Meninos-foliões, desde tenra idade, pareciam compreender
que a bandeira e a representação de uma história sagrada poderiam abrir-lhes
passagens para um certo reconhecimento social e um privilégio materializado nas
ofertas e nas partilhas. Como se tratava de crianças, qualquer conflito ou
desentendimento era motivo para rasgarem a bandeira e o grupo era disperso até que
a calmaria dos ânimos garantisse o retorno à missão empreendida.
No entanto, esses meninos foram crescendo e o desejo de ter uma Companhia
organizada foi crescendo junto com eles. No ano de 1960, contando com a motivação e
ajuda dos seus pais, esse grupo de crianças pôde viabilizar o seu sonho e a folia saiu
para o primeiro giro organizado.
Geralmente, os grupos de Folias de Santos Reis têm uma unidade ritual
autônoma. Não estão submetidos à orientação da Igreja institucional e independem de
outros grupos ou de uma organização mais ampla. Mesmo que inspirados e espelhados
num outro grupo existente, os códigos de relações, as normas, a estrutura da festa e o
imaginário vão sendo construídos entre os homens e mulheres da própria Companhia,
mediada pela experiência vivida no cotidiano. É por isso que apesar de ter um único
eixo (Mt 2, 1-12) elas se diferenciam no ritual, nas construções simbólicas e nos papéis
desempenhados por seus foliões.
Na Folia de Reis de Santo Antônio de Goiás sendo participantes assíduos ou
eventuais das missas, cem por cento das pessoas entrevistadas, disseram-se católicas.
No entanto, perguntamos: que relação existe entre a Folia de Reis e a Igreja Católica
local? É o que tentaremos responder a seguir.
1.3.1 – Religião e Folia em Santo Antônio de Goiás
Ao longo do tempo e da história, a religião foi cumprindo papéis e assumindo
funções. Se por um lado ela funciona como fornecedora de sentido, como fator de
coesão e nomia social (Durkheim, 1989), por outro lado ela funciona como uma forma
de expiação e reintegração social (Girard, 1990). Se por uma parte ela pode ser vista
como o espírito de uma situação carente de espírito, portanto, como o ópio do povo
(Marx, 1987), por outra parte ela pode ser entendida como um fator de resistência
(Parker, 1995), ou ainda, entre outras tantas funções, ela, por possuir um caráter
sacralizador, pode legitimar uma dada situação (Berger, 1985).
Olhando para o vasto panorama religioso do nosso país, percebemos que a
religião, nas suas várias expressões, tem desempenhado todas essas funções. Em
determinados momentos a visão que se tem é de que essas posturas rivalizam-se,
mas em outros momentos, percebe-se que essas posturas conjugam-se e se fundem.
Histórias de rivalidades e fusões são observadas também no âmbito do catolicismo
oficial e popular.
No catolicismo oficial, percebemos uma ênfase nos sacramentos e no evangelho.
O crente está subordinado à Igreja e o sacerdote é o ministro dos sacramentos e,
socialmente, reconhecido como detentor do capital religioso. Ao sacerdote é dado ainda
o poder de mediação entre os homens e o sagrado.
no catolicismo popular, percebemos que os aspectos da devoção e da
proteção, buscados nos santos, primam sobre os aspectos sacramentais e evangélicos
e as pessoas podem ter uma relação direta com o sagrado sem a necessidade da
mediação sacerdotal.
Nesse sentido, as histórias de fusão e rivalidades entre essas formas de
catolicidade alternam-se.Temas como a liturgia, milagres, bênçãos, promessas e santos
nem sempre encontraram a concórdia necessária ao longo de tantos anos
transcorridos.
A história que se sabe é que muitos santos protetores e padroeiros, que viviam
restritamente nos oratórios domésticos, em determinado momento da história, foram
assumidos pela religião tida como oficial e incorporados à sua liturgia. As imagens
desses santos que viviam num espaço doméstico foram colocadas nos adros e altares
das Igrejas e suas festas foram assumidas por elas com muita pompa, com muito gosto
e, comumente, com muito lucro financeiro.
Em Santo Antônio de Goiás, duas grandes festas populares foram abraçadas
pela religião tida como oficial. No mês de maio, acontece a festa de Nossa Senhora das
Graças e, no mês de junho, a festa de Santo Antônio, que é o Padroeiro da cidade.
Essas festas são promovidas pelos festeiros e pelo padre local que, juntamente com os
padrinhos das missas e madrinhas das velas (pessoas que colaboram financeiramente
com as festas), organizam as novenas, as quermesses, os leilões, as barraquinhas e,
visando uma arrecadação maior, buscam patrocínios junto às pessoas da comunidade
e os fazendeiros da redondeza.
A Folia de Reis também faz parte da expressão religiosa do catolicismo popular
da cidade de Santo Antônio de Goiás, mas ocorre fora do espaço da Igreja e sem a
presença do clero. Na pesquisa realizada, apesar das quarenta e sete pessoas
entrevistadas responderem que são católicas praticantes, apenas dez por cento destas
aparecem nas programações das festas da Igreja. Segundo o padre local, um
número muito reduzido de pessoas envolvidas nas folias que participam das missas e
se engajam no trabalho pastoral desenvolvido pela Igreja. Ao ser perguntado sobre a
ligação da Folia de Reis com a Igreja católica o padre responde:
“Aqui eu não vejo ligação nenhuma da Folia de Reis com a Igreja. É um costume, uma
tradição, mas em termo religioso eu não vejo nada a não ser uma reminiscência assim
muito longínqua daquilo que os portugueses introduziram com a colonização... Eu vejo
que esses tipos magos, palhaços, correndo pra e pra lá, muito povo ao redor e,
sobretudo, se espera a grande comilança. Esse é o forte, como se diz, é o cerne que
sobrou” (C.T. 52 anos, entrevista: 2004).
Passos (2002) ao descrever certos rituais do catolicismo popular brasileiro,
menciona os códigos, as metáforas e linguagens utilizadas nessas formas de
expressão religiosa. Segundo ele, nem sempre essas expressões religiosas são fáceis
de serem decifradas, porque nelas sempre uma série de produção de sentidos que
são silenciados. Dessa forma, talvez os foliões queiram dizer muito mais do que a
nossa compreensão e a compreensão do padre local possam imaginar e muito mais do
que eles próprios têm consciência de poder dizer, pois assim como diz Certeau apud
Passos “a linguagem popular diz uma coisa querendo significar outra” (2002, p. 165).
Se uma ausência dos foliões leigos nas festas e celebrações eucarísticas da
Igreja de Santo Antônio de Goiás, por outra parte, existe também a ausência do padre
nessa expressão religiosa do povo. Ao perguntarmos a uma das participantes da folia
sobre a relação desta com a Igreja e sobre a presença do padre nos giros e
festividades da folia, ouvimos:
“eu nunca vi o padre participando. Ele também é um pouco meio doente, tem seus
motivos, né? Eu sei que ele gosta, mas nunca vi ele participar de alguma folia, mas
também tem pouco tempo que ele mudou para Santo Antônio” (J. B., artesã, 48 anos,
2003).
Algo interessante que mencionamos, mas voltamos a insistir, é que nas Folias
de Reis existe uma independência litúrgico-organizativa. Elas são protagonizadas e
produzidas “pelos próprios devotos sem a necessidade da presença dos agentes
eclesiásticos e sem a necessidade do uso de lugares oficiais de culto católico”
(Brandão, 1983, p. 148). No entanto, no ano de 2003, no giro da Folia dos Meninos de
Dezembro de Santo Antônio de Goiás, aconteceu algo curioso e que deixou
transparecer um conflito dissimulado entre a Igreja oficial e a “Igreja paralela” dos
foliões. Isso se deu quando um dos embaixadores quis que a Companhia visitasse a
Igreja e fizesse a saudação do altar. Como a Igreja estava fechada, foi solicitado ao
secretário paroquial que buscasse a chave. Na primeira tentativa de abrir a porta, a
chave quebrou-se. Como a visitação parecia algo mesmo muito importante e que o altar
e o espaço sagrado do templo iriam legitimar a folia, uma chave reserva foi solicitada.
E, numa segunda tentativa, ela também quebrou-se. Ao que o embaixador afirmou: “os
três Reis não quiseram entrar aqui porque eles sabem que não são bem-vindos nesse
lugar” (E. C. 64 anos, aposentado, 2003).
Na verdade, os Três Reis Santos são reconhecidos e “canonizados” pelo povo,
mas não são santos oficiais da Igreja Católica. No calendário litúrgico oficial da Igreja,
no dia 06 de janeiro é celebrado o dia da epifania, ou seja, o dia da manifestação de
Jesus aos povos.
Ao debruçarmos no estudo da religião popular, vamos perceber que em todas as
suas nuances, antes de ser uma religião da ética ou da razão, ela é uma religião ligada
à vida prática e cotidiana. Não fazem parte de sua preocupação primordial, temas
escatológicos e voltados para a salvação da alma, e sim, problemas urgentes que
atemorizam e ameaçam a existência e bem-estar da vida no tempo presente.
No entanto, essa preocupação com o bem-estar social, com a garantia de vida
digna para todos, que aparece no seio da religiosidade popular, também aparece
evidenciada na fala do padre da cidade quando ele questiona:
“a história que os foliões cantam tem a ver com a vida social atual de hoje? Qual é o
questionamento não só da Folia de Reis, mas de qualquer fenômeno religioso? Que
incidência tem na descoberta de um pouco de compromisso pessoal e comunitário, diante
da realidade que é terrível? Aqui o pessoal fica muito atrás de tradições, mas no meu
modo de ver não quer descobrir o porquê dessas tradições e não quer atualizá-las. Eu
acho que se fica numa situação tão esquisita, de tradições sem memória do passado, mas
assim num saudosismo... porque todo aspecto que não incomoda é saudoso. Então a
religião que é uma aguinha de rosas assim, não incomoda ninguém é bem vinda porque
não desestabiliza nenhuma ordem social pré-estabelecida” (C. T. 52 anos, 2004).
Tendo pesquisado acerca da religião popular e ouvindo o depoimento do padre
local, percebemos que existe uma preocupação comum entre as duas formas de
expressão religiosa (oficial e popular). Essa constatação leva-nos a questionar: se
existe entre elas uma preocupação comum, onde estaria então assentado o hiato?
Talvez esse hiato estaria assentado na forma de conceber o problema e manifestar
possíveis soluções: materiais e simbólicas. Mas, sobre esse hiato evidenciado na
organização dos foliões e visão do padre local, refletiremos em um outro momento.
Por ora, interessa-nos compreender como é que está estruturado o processo
ritual da Folia de Reis dos Meninos de Dezembro da cidade de Santo Antônio de Goiás.
Pois em nosso entendimento, é a partir da compreensão do grupo enquanto estrutura,
papéis, crenças e relações é que teremos subsídios para darmos um passo a mais
rumo à hipótese que nos guia.
1.3.2 - O Processo Ritual da Folia de Reis de Santo Antônio de Goiás
Segundo Fontoura (1997), a Folia de Reis é um ato de e devoção onde ritos
religiosos e profanos são revelados por meio de uma série de trocas simbólicas, de
mediações e ação político-social. Partilhamos da idéia da autora, porque uma festa,
aparentemente simples, como a Folia de Reis pode explicitar muito mais do que
podemos imaginar.
Na Folia de Reis dos Meninos de Dezembro de Santo Antônio de Goiás, a saída
do giro sempre se da casa do folião do ano. Por volta das dez horas da manhã, os
componentes da folia começam a chegar. Afinam os instrumentos musicais, ensaiam
algumas cantorias e colocam as conversas em dia. A mesa é preparada e a comida é
servida. Logo após o almoço, acontece o agradecimento da mesa, rezam o terço,
fazem a despedida da bandeira e a folia sai para o giro. Em algumas folias, como por
exemplo, a Folia das Lages pesquisada por Pessoa (1993), o roteiro do giro não é
previamente estabelecido, mas em Santo Antônio de Goiás dá-se o contrário. Existe um
itinerário feito pelo gerente de giro e as casas em que se darão os almoços e os pousos
são previamente estabelecidas. Por se tratar de uma cidade pequena, onde o convívio
é estreito, já se sabe onde a bandeira e a comitiva são bem-vindas.
Os foliões iniciam sua árdua jornada logo cedo, com o café da manhã, orações e
despedida da bandeira. E terminam por volta das vinte e duas horas quando a
Companhia chega ao local do pouso. Os foliões protagonizam a história vivida pelos
Reis do Oriente que se colocaram em peregrinação para cumprirem uma jornada que é
também uma missão. Percebemos que existe um sentimento de reverência das
pessoas diante da bandeira e da Companhia. Não receber a bandeira e a comitiva em
suas casas é o mesmo que não receber aos reis peregrinos em busca do Menino-Deus.
Nas casas em que a presença do presépio, também chamado de lapinha,
canta-se o nascimento, relembrando toda a trajetória histórica do Menino-Deus; quando
não há o presépio e sim, imagens ou estampas de outros santos, faz-se a saudação do
altar; quando não a presença do altar, faz-se apenas a saudação aos donos da
casa, pede-se e agradece a esmola oferecida para a festa dos Santos Reis. Eis o que
nos diz alguns versos da cantoria:
Quero pedir a Santos Reis que lhes dê vida e saúde
Ai eles estão lá no céu pedindo a Deus por vocês.
Ai os três Reis lhes pede uma esmola, mas não é por precisão
É para ajudar na sua festa e cumprir com a devoção
Ai Deus vos pague a sua esmola dada de bom coração
Ai no Reino de céu se veja a imagem dos três irmãos.
Os versos podem mudar conforme o espaço e a situação encontrada, mas o
pedido de esmolas e o agradecimento antecipado desta oferta, aparecem em todas as
cantorias. Através da esmola, observa-se uma estrutura de troca solidária, pois como
afirma Passos, “recolher esmolas é mais do que uma partilha”, além do mais, observa-
se também que “outras ausências silenciadas” (2002, p.172), pois existem pessoas
que oferecem algo e o fazem por motivações que elas conhecem. Para Steil a
esmola
“tem um sentido em si mesmo, enquanto estabelece um elo entre o doador e o seu
destinatário... ao doador, portanto, pouco importa a aplicação específica da oferta, mesmo
porque, não pensa ter algum direito de vigiar a utilização daquilo que para ele é a
mediação do sagrado” (Steil, 1996, p.72).
Por isso que ao doador não importa saber qual será a aplicação da oferta. Ele
sabe que a ele não lhe compete esse controle uma vez que entende a esmola como
fruto da mediação do sagrado.
Na Folia de Reis, além da esmola e dos versos inspirados na história bíblica do
nascimento de Cristo, canta-se também as tristezas, as dificuldades, as alegrias, as
saudades e a solidariedade vivida pelas pessoas no dia-a-dia. Isso leva-nos a
questionar: essa forma de expressão religiosa seria apenas um saudosismo, uma
religião de “aguinha de rosas” ou seria também uma forma de indignar-se com um
modelo de sociedade e estilo de vida que são apresentados? Isso não seria também
um apelo político?
Ao chegarem para a visitação a bandeira é entregue aos donos da casa. Logo
após a saudação algumas famílias, andam com ela em todos os cômodos da casa
abençoando-os. Outras pessoas colocam dinheiro na bandeira ou oferecem gêneros
alimentícios e também aquelas que nada podem oferecer além da hospitalidade da
acolhida em seus lares.
Foto 2 É comum a união dos membros familiares no momento solene de receber a bandeira. As
famílias andam com ela pela casa abençoando os cômodos, beijam-na e quase sempre, oferecem uma
“esmola”.
Em casas em que pagadores de promessas uma cantoria apropriada.
Geralmente essas pessoas se prostram diante da bandeira e a reverenciam. Eis os
versos que são entoados aos pagadores de promessas:
Ai que hora abençoada, meus três Reis aqui chegou
Ai encontrou seu devoto, com a promessa pra cumprir
Por isso nesse momento sobre a terra ajoelhou
Ai pra cumprir sua promessa, com os três Reis da nossa guia
Ai você fez o pedido e o milagre Deus mandou
Ai está o rei Gaspar, Melchior e Baltazar
Ai sua promessa está cumprida já pode se levantar
Ai se despede da bandeira, ai que ela agora vai sair
Ai pra seguir sua guia e o milagre fica aí.
Foto 3 Devota pagando promessa prostra-se diante da bandeira. Essa cena pode ser vista nas casas,
nas calçadas, nas ruas e nas pastagens.
No ano de 2003 e 2004, houve uma grande quantidade de pessoas pagando
promessas. No entanto, houve casas em que a folia cantou no ano de 2003 e não
cantou no ano de 2004, porque a família havia mudado de religião. Por isso não se
pode negar que nos últimos anos, tem havido mudanças no campo religioso da
pequena cidade. Isso fez com que, durante o giro, existisse um impasse: se a família
“era de crentes” a folia “cortava volta” ou as famílias fechavam as portas e fingiam que
não havia ninguém. Outrossim, mesmo com estas alterações, promovidas pela divisão
do campo religioso, a Folia dos Meninos de Dezembro de Santo Antônio de Goiás
continua tendo um roteiro apertado de visitas. No ano de 2003, visitamos um total de
duzentas e quatro famílias. No ano de 2004 estima-se ter ultrapassado essa marca,
uma vez que a folia girou mais na cidade de Santo Antônio de Goiás e veio à capital
para um pouso.
Foto 4 - A Companhia em visita à zona rural de Santo Antônio de Goiás.
O giro acompanha sempre a direção do almoço e do pouso. Às vezes o roteiro
pode ser alterado para visitar casas de antigos moradores da cidade que hoje vivem na
zona rural ou em algum bairro de Goiânia. Isso tanto é verdade que a folia, além do
perímetro urbano da pequena cidade, no ano de 2003, visitou chácaras, fazendas,
algumas casas na Vila Nossa Senhora Aparecida, no bairro Criméia Oeste e Balneário
Meia-Ponte, em Goiânia.
A Companhia também não mede esforços para visitar famílias em que existem
votos para serem cumpridos. Cumprir um voto é uma obrigação consentida e partilhada
pelo grupo.
A casa do pouso é cuidadosamente preparada para receber a Companhia. Os
arcos enfeitam a “passarela” para a chegada dos foliões. No altar, todos os santos da
casa fazem-se presentes. A mesa de alimentação, independente da situação financeira
dos donos da casa, é farta e serve a todos: foliões, convidados e curiosos.
O primeiro arco deve ser derrubado pelos palhaços. É um momento esperado
por todos. É realizado com brincadeiras e muita peripécia. Os palhaços comandam o
espetáculo. os dois arcos que se seguem são paradas obrigatórias para saudação
que é feita através da cantoria. O terço é rezado no altar onde, geralmente, os foliões
se ajoelham. depois desse momento orante é que a Companhia dirige-se à mesa
para abençoar os alimentos, agradecer os serventes e as mãos das pessoas que
prepararam essa comida. Apesar de levar o nome de pouso, na folia ora estudada, os
foliões não dormem nesta casa, permanecem ali, apenas a bandeira e os instrumentos
musicais.
Foto 5 A derrubada do primeiro arco é o espetáculo mais esperado por todos e, em especial, pelas
crianças. É um momento de diversão carregado de significado porque esse arco simboliza os soldados
de Herodes que obstaculizavam a passagem dos Reis Magos.
No dia seguinte, os foliões retornam à casa do pouso para o café da manhã,
para as orações e os cantos fazendo, assim, a despedida da bandeira para começar
novamente uma jornada. A bandeira é colocada atravessada na porta e voltada para o
interior da casa. Todos os foliões e presentes saúdam-na beijando-a e passando por
baixo dela.
No último dia de giro, acontece a entrega da folia, que se na casa da festeira.
É o dia de entregar a bandeira, as esmolas, fazer a escolha do festeiro, da festeira e do
folião do próximo ano. É o momento mais solene de todos os dias de caminhada. Os
arcos e o altar são cuidadosamente preparados, assim como, as coroas que serão
colocadas nas cabeças dos novos festeiros e o ramalhete que será entregue ao novo
folião. A casa, sendo ela grande ou pequena, enche-se de luz e se transforma em
Belém que acolhe o Menino-Deus e aguarda a visita dos Reis Santos.
Foto 6 Momento da despedida da bandeira. Enquanto ela é segurada pelos donos da casa, os foliões
cantam e fazem uma coreografia diante da casa para, em seguida, prosseguirem sua jornada.
Mas, a Folia de Reis, como todo e qualquer segmento da sociedade, possui
também uma organização estrutural onde os papéis são representados. Por isso,
nosso próximo passo é entendermos a composição da folia e as tarefas
desempenhadas por seus componentes.
1.3.2.1 – Os componentes da Folia e as tarefas de cada encargo
Em Santo Antônio de Goiás as várias funções desempenhadas dentro da folia
são ocupadas por pessoas adultas, idosas, jovens e crianças. São homens e mulheres
(trabalhadores da construção civil, motoristas, aposentados, funcionários públicos,
comerciantes, donas-de-casa, estudantes...) que deixam os seus ofícios e afazeres
para trilharem um caminho outrora percorrido pelos magos do Oriente.
Os devotos de Santos Reis e o conjunto de foliões que participa do giro da folia,
são chamados de foliões. Geralmente, as folias não têm um número fixo de
participantes uma vez que a adesão e o trabalho são voluntários. Na Folia de Reis dos
Meninos de Dezembro da cidade de Santo Antônio de Goiás, além da denominação de
folião dado a cada componente da Companhia, existe o encargo de folião do ano cujo
papel será posteriormente descrito. As tarefas e encargos de cada função variam muito
de folia para folia. Eis como elas são distribuídas na Companhia estudada:
Festeiro: pessoa que recebe a coroa do festeiro anterior, na noite da entrega da
folia. Ele é o responsável, juntamente com a festeira, em preparar a festa de
encerramento no ano seguinte. Em algumas folias, e outra vez tomamos como exemplo
a Folia das Lages, a escolha do festeiro é resultado de discussões, consultas e
sugestões junto ao grupo de foliões. Em Santo Antônio de Goiás, a responsabilidade da
escolha do sucessor da coroa, está depositada nas mãos do festeiro. É para ele que se
voltam todos os olhares e expectativas, na noite da grande festa, porque é ele quem
tem o poder decisório. No entanto, como é bastante comum a existência de votos para
oferecerem a festa aos Santos Reis , nesse caso, as pessoas pedem antecipadamente
a coroa. Outrossim, mesmo havendo pedido antecipado, guarda-se segredo para não
estragar a surpresa do momento solene.
Festeira: co-responsável do festeiro. É coroada pela festeira do ano anterior e é
em sua casa que se dará a entrega da folia, no ano seguinte. Na Folia de Reis de
Santo Antônio de Goiás, a festeira representa Maria. Na noite solene da entrega da
folia, é ela a responsável por coroar os Reis Magos. Logo após a coroação, inicia-se
um canto apropriado para que todos os presentes possam beijar e se despedir da
bandeira. É nesse momento em que a pessoa ajoelha-se para reverenciar e beijar a
bandeira, que a festeira e festeiro são coroados.
Folião do ano: pessoa responsável em pedir os almoços e pousos, mandar
confeccionar as divisas
8
, enfeitar a bandeira, revisar os instrumentos musicais, viabilizar
hospedagem para os foliões que vêm de outras cidades, tirar o alvará de licença
(também chamado de guia ou autorização) junto ao órgão competente e resolver
problemas eventuais. É em sua casa que se o almoço, a reza do terço e, logo a
seguir, a folia sai para o giro. É também na entrega da folia, no momento solene da
despedida da bandeira, que a pessoa recebe um ramalhete e é condecorada como o
folião ou foliã do ano seguinte.
Embaixador: pessoa responsável em relembrar aos foliões as normas a serem
seguidas, durante o giro, em conduzir a cantoria, “tirando” sempre a primeira estrofe
que será repetida pelas pessoas que fazem a resposta. Ele deve estar sempre muito
atento a tudo o que se passa no interior da folia e nas situações encontradas nas casas
visitadas (imagens de santos, presença ou não de presépios, devotos pagando
promessas, crianças nos colos dos pais...). Além dos versos conhecidos e inspirados
nos ensinamentos bíblicos, o embaixador pode contar outros fatos e relembrar outras
histórias, através de seus versos. O embaixador também pode receber pedidos
diversos por parte dos donos das casas visitadas. Em Santo Antônio de Goiás, é
comum o pedido para cantar por alguém que morreu, por alguém que está enfermo,
por familiares que estão ausentes de casa, por parentes que vivem em outros estados
ou países...). No ano de 2003, houve até cantoria ao telefone para um morador que
estava ausente de casa, fazendo hora-extra no trabalho. Nesse sentido, quando
necessário, o embaixador improvisa versos.
Na Folia de Reis dos Meninos de Dezembro de Santo Antonio de Goiás, existem
três embaixadores: Edson Coelho da Silva, Diego Gomes de Sousa e Marcos Antônio
da Silva. Eles revezam na arte da cantoria. No entanto, diante de uma situação
inusitada em que se faz necessária a arte do improviso, a presença do embaixador
mais experiente é solicitada.
Ao lado do embaixador, colocam-se as pessoas que fazem as respostas
(segunda e terceira vozes, também conhecidas como contralto), acompanhadas da
quarta e quinta vozes que entram na metade dos versos e, por último, a entrada de um
grito muito fino que é chamado de requinta. É sob a responsabilidade do embaixador
que fica o apito que é o instrumento de comando da Companhia. Esse instrumento
determina as evoluções rítmicas, assim como, o momento das orações, o início e
término das cantorias.
Entre os três embaixadores é muito forte a idéia do dom e do carisma para o
exercício de tal função. Os depoimentos a seguir esclarecem o que estamos afirmando:
“... o embaixador a gente não faz, o embaixador nasce. É um dom que ele tem. O
embaixador é tipo um repentista” (E. C, aposentado, 64 anos, 2003).
“Eu tenho uma responsabilidade muito grande porque eu sou embaixador, então eu acho
isso muito bonito. Se isso foi um dom que Deus me deu, eu tenho que aproveitar esse
dom e fazer aquilo que eu posso” (D. G. S. Secretário, 27 anos, 2003).
“Eu acho que embaixar é um dom de Deus porque na hora em que a gente está cantando
é que os versos vêm assim na cabeça prá gente falar ali” (M. A., aposentado, 26 anos,
2003).
8
Tipo de um quepe que é usado por todos os foliões.
Essa idéia do dom aparece também em depoimentos de outros membros
participantes da folia:
Eu acho que todos têm o seu valor, mas se fosse pra dizer quem é a pessoa mais
importante da folia, seria o embaixador. Que é aquele que canta e faz os versos porque
naquela função não é qualquer um. Se ele não tiver o dom mesmo, não tiver a voz ali, não
dá! Então para mim a pessoa mais importante da folia é o embaixador” (F. G. S.,
Repositor comercial, 28 anos, 2003).
Os depoimentos remetem-nos ao pensamento de Weber (2000) que, entende
por carisma uma qualidade considerada como extraordinária e em virtude da qual lhe é
atribuído poderes ou qualidades sobrenaturais. “O carisma pode ser, e naturalmente é,
em regra, qualitativamente singular, e por isso determina-se por fatores internos e não
por ordens externas o limite qualitativo da missão e do poder de seu portador” (Weber,
2000, p. 324).
No giro da folia, esse carisma vem acompanhado da autoridade do embaixador
que é freqüentemente sustentada pelos avisos e pelas combinações feitas na saída do
trajeto, na mesa de alimentação ou ao final das rezas do terço.
Alferes: pessoa encarregada em conduzir a bandeira, orientar as pessoas das
casas que a recebe e recolher as esmolas oferecidas em dinheiro, durante a jornada da
folia. Todas as doações feitas em moeda corrente ou em gêneros alimentícios são
utilizadas para a realização da grande festa no último dia do giro.
O alferes vai sempre à frente da Companhia. Ao chegar a uma residência, a
bandeira é apresentada e entregue aos donos da casa, com a estampa voltada para
eles, ou seja, voltada para o interior da moradia e, assim, deve permanecer enquanto
os versos são entoados. O alferes da bandeira tanto pode ser alguém escolhido no
interior da Companhia ou pessoas que estão cumprindo voto.
Na Folia de Reis dos Meninos de Dezembro, a bandeira é carregada dezoito
anos pela mesma pessoa. E mesmo que exista alguém em cumprimento de voto, a
alferes coloca-se ao lado dessa pessoa, para orientá-la em suas funções.
Os palhaços: No imaginário popular, a figura do palhaço e a função que ele
exerce na Companhia são frutos de discórdia e dificilmente chegar-se-á a um
consenso. Os palhaços tanto podem representar os Reis Magos, como também podem
representar o Rei Herodes ou dois de seus soldados. Ou seja, eles tanto podem
simbolizar o “mal” que persegue o Menino-Deus ou o “bem” que abre caminhos,
protege os Santos Reis e, posteriormente, protege também o Menino-Rei. Na Folia de
Reis por nós estudada, os palhaços representam esses dois aspectos. Num primeiro
momento, eles representam os soldados de Herodes que investigam o paradeiro do
Menino Jesus. No entanto, a caminhada em busca desse Menino provoca em suas
vidas uma conversão e eles, de perseguidores, passam a proteger o Menino-Deus. De
acordo com os foliões, como esses soldados desobedecem a uma ordem de Herodes e
não voltam a ele para prestarem contas da missão recebida, eles colocam máscaras
para não serem reconhecidos e vivem assim por sete anos. É, exatamente, por isso
que na folia existe uma crença de que quem veste a indumentária do palhaço, deve
fazê-lo por sete anos consecutivos, nem que seja por uma pequena parte do dia,
durante o período da festa.
Na Folia dos Meninos de Dezembro, os palhaços são elementos de fundamental
importância. São os guardiões da bandeira e não permitem que ninguém à sua
frente. Têm como missão abrir caminho para a passagem dos Santos Reis. Ajudam na
organização da fila dos foliões, chamam a atenção das pessoas que, cedendo ao
cansaço sentam-se na hora da cantoria. São as primeiras pessoas que mantém contato
com os moradores das casas e perguntam se os mesmos querem receber a bandeira
dos Santos Reis em sua casa, juntamente com a sua comitiva. Fazem gracejos e
pedem agrados aos donos das casas a quem eles chamam de patrões.
Os palhaços também têm a função de atrair as crianças e divertir as pessoas.
Eles recebem presentes e agrados que são pendurados no primeiro arco das casas do
pouso. Mas os palhaços não se deixam corromper com os presentes que lhes são
oferecidos. Destroem, com gracejos e muita interação com o público, esse primeiro
arco que é armado como o símbolo da sedução. De acordo com os foliões, os palhaços
realizam, antecipadamente, o inverso do que fez o apóstolo Judas que entregou
Jesus por trinta moedas de prata.
Foto 7 Os palhaços inventam coreografias para atrair as crianças e divertir o público. Eles são também
os guardiões da bandeira.
Após a destruição do primeiro arco, os palhaços são os primeiros a chegarem
nos demais arcos que, geralmente, são colocados nas passarelas das casas dos
pousos. Nestes arcos, comumente são colocadas imagens de santos e por isso, os
palhaços devem ser observadores atentos e conhecer profundamente essas imagens.
Após a identificação do santo, presente nos arcos ou no altar da casa, o palhaço deve
comunicar ao embaixador para que o santo seja saudado na cantoria. Entre os foliões
existe uma crença de que, aquele que vier a morrer na máscara, será condenado ao
inferno. No entanto, o porquê dessa condenação não foi explicado por nenhum dos
entrevistados. Em algumas folias, os palhaços recebem o nome de “bastião” ou
“bonecos”. Em Santo Antônio de Goiás, eles recebem o nome de “véia e véio”.
Gerente do giro: Pessoa encarregada de fazer previamente o roteiro do
percurso. Deve ter o cuidado para que o giro saia sempre pelo lado direito, não deve
deixar que a bandeira se cruze e, tampouco, que a Companhia volte pelo mesmo
caminho percorrido. Isso porque, segundo os foliões, os Reis Magos depois de
visitarem o Menino-Deus colocaram máscaras e voltaram por outros caminhos para
despistar o Rei Herodes que, furioso, estava no encalço do Menino-Rei.
Analisando o ritual da Folia como um todo, entendemos que esta festa tem como
base referencial a memória de fatos vividos e contados pelos avós, pais, padrinhos e
vizinhos dos foliões. Esses fatos são reproduzidos e alimentados a cada ano que se
passa e, ao mesmo tempo, são atualizados por outros casos e histórias exemplares
supostamente ocorridas em cada giro. Isso vem comprovar o que Halbwachs afirma:
“se lembramos, é porque os outros, a situação presente, nos fazem lembrar” (apud
Bosi, 1994, p. 54). Mas “o passado não se evoca recordando-o apenas, mas revivendo-
o, presencializando novamente seus temores e seus deleites” (Cox, 1974, p. 18).
Esses temores e deleites, ou seja, as bênçãos e os supostos castigos garantidos
pelos Santos Reis, são armazenados no imaginário simbólico dos foliões, validados
pela coletividade e refletidos na forma de pensar e agir da vida cotidiana.
1.3 – A construção do imaginário simbólico
Quando falamos em imaginário simbólico, queremos fazer referência àquela
dimensão sócio-cultural que contribui para a construção da identidade de um
determinado grupo. Para entendermos a Folia de Reis, faz-se necessário
aprofundarmos este conceito.
Por muito tempo, o saber científico foi tido como o único, o mais importante e
verdadeiro. Falar de ciência era falar da aplicação de métodos e técnicas. Era falar da
objetividade de um conhecimento “puro” garantido pela neutralidade. Nesse sentido, o
imperialismo da racionalidade, reducionista do simbólico e do afetivo, acabava por
determinar os temas e objetos dignos de serem pesquisados. Tudo aquilo que não
poderia ser provado na materialidade era destituído da verdade e, portanto, deveria cair
na descredibilidade social.
No entanto, essa verdade objetiva, única e exclusiva, no final do século XIX,
foi colocada em xeque, dando espaço a novos conceitos epistemológicos. Para
aproximar-se da compreensão da realidade, essa forma sectária de pensar teve que ser
suplantada pelo pensamento inclusivo, onde vários elementos, olhares e concepções
são tidos como constitutivos dessa realidade como um todo. De acordo com Santos,
“muitas formas de conhecimento, tantas quantas as práticas sociais que as geram e
sustentam” (2001, p. 328).
Nesse contexto, em que outras verdades são incorporadas e consideradas,
torna-se de suma importância entendermos o processo de construção do imaginário
coletivo para, posteriormente percebermos o quanto a vida cotidiana das pessoas é
atravessada e marcada por essas concepções.
Por imaginário entendemos
“um sistema de idéias e imagens de representação coletiva, uma espécie de visão de
mundo, que representa o outro lado do real. O imaginário social se expressa por símbolos,
mitos, ritos, crenças, discursos e representações alegóricas figurativas” (Pesavento apud
Schiavo, 2003, p. 33).
Na verdade, o ser humano vive mergulhado nas representações imaginárias que
são instituídas pelo grupo social e são vivenciadas por eles no âmago das
subjetividades. Essas representações construídas coletivamente são interiorizadas,
muitas vezes inconscientemente pela mente humana, e são materializadas em suas
posturas e ações. Uma vez que “pela ação do simbólico a realidade social é dotada de
sentido e aos indivíduos é oferecida uma visão de ordem das coisas apreendidas
subjetivamente” (Sousa Filho, 2001, p. 24). Nesse sentido, podemos assegurar que
cada cultura, ou seja, cada sociedade simples ou complexa tem o seu imaginário.
O mito e a religião são veículos das expressões cognitivas imaginárias pelas
quais as pessoas constroem as representações do mundo. Segundo Guerriero (2002)
isso não significa que essas representações sejam falsas ou ilusórias, pois o imaginário
diferencia-se da simples imaginação ou ilusão. Essas representações são construídas e
expressas por símbolos e são parte integrante do ser humano.
Sabemos também que o “imaginário trabalha um horizonte psíquico habitado por
representações e imagens canalizadoras de afetos, desejos, emoções, esperanças,
emulações; o próprio tecido social é urdido pelo imaginário” (Swain, 1994, p. 48). Por
isso, a produção do imaginário social é objeto de lutas e disputas, porque é justamente
essa significação social que faz as coisas serem como são.
A produção do imaginário coletivo dá-se através dos meios de comunicação de
massa tais como: cinema, teatro, rádio, televisão (comerciais e propagandas são
exemplos fecundos dessa produção); dá-se também através das obras de arte, dos
contos de fadas, das lendas folclóricas, das cantigas infantis, das anedotas contadas e
repetidas de boca em boca, das charges e, de forma especial, dá-se através da religião.
Nos momentos de crise, quando o perigo de esquecimento das verdades
transmitidas pela religião torna-se eminente, as idéias legitimadoras entram em ação,
na forma de sabedoria tradicional, dos provérbios, dos mandamentos, promovendo
assim, a manutenção da realidade. Desta forma, “o imaginário religioso fundamenta,
instiga, corrobora ordens instituídas, sob o signo do ‘natural’ e do ‘verdadeiro’” (Swain,
1994, p. 63). E à medida que o universo religioso faz sentido a um grupo, ele passa a
compor e integrar sua vivência e influenciar de forma cabal a sua posteridade uma vez
que
“o mundo da vida cotidiana não somente é tomado como uma realidade certa pelos
membros ordinários da sociedade na conduta subjetivamente dotada de sentido que
imprimem a suas vidas, mas é um mundo que se origina no pensamento e na ação dos
homens comuns, sendo afirmado como real para eles” (Berger, 2002, p. 36).
Para Guerriero (2002), o que credibilidade à realidade inventada é a crença e
a fé, pois sem elas, a realidade tornar-se-ia inócua. No entanto, o inventor dessa
realidade não tem consciência de que a inventou e acredita, firmemente, que tal
realidade existiria independente dele. É justamente essa crença que lhe dá a segurança
necessária para situá-lo no mundo, pois ela (a crença) “pressupõe a constituição de
valores e a classificação entre as coisas e acontecimentos que permite a apropriação
humana do mundo exterior” (Guerriero, 2002, p. 102).
Uma vez que a Folia de Reis é também uma manifestação da crença de um
grupo, podemos perceber como ela é repleta de construções simbólicas que torna
plausível cada gesto, palavras e ações. O imaginário das pessoas que participam
“da Folia de Reis reside nos gestos, cerimônias, objetos considerados sagrados e na
memória oral: crenças e casos associados a acontecimentos e situações rituais da Folia,
que legitimam e consagram as várias celebrações que a compõem” (Fontoura, 1997, p.
192).
Antecedendo a esse pensamento, Durkheim (1989) asseverava que as
sociedades para existirem, produzem representações que lhes são estruturalmente
necessárias. Nesse sentido, a Folia de Reis dos Meninos de Dezembro da cidade de
Santo Antônio de Goiás está permeada de representações e significados. Essas
representações são passadas das gerações mais velhas às gerações mais novas e
lhes são extremamente necessárias. Elas (as representações) são expressas através
dos castigos disciplinadores, mas também através das bênçãos abundantes
provenientes dos santos de devoção (Santos Reis). Todos os anos, esses casos
supostamente ocorridos são contados pelos mais velhos que, dessa forma, alimenta a
crença e mantém vivo o imaginário dos mais novos.
1.4.1 – Temor e tremor: o imaginário coletivo dos foliões
O imaginário, assim entendido, contribui para a compreensão de dois aspectos
marcantes na experiência dos foliões: o temor e o tremor. Percebemos que o
sentimento despertado nos foliões, diante da imagem dos Santos Reis, é de profundo
temor. Existe um sentimento respeitoso, reverencial e zeloso para com “as coisas do
santo”. Mas, por outra parte, existe também um medo profundo de agravá-lo, de
esquecê-lo e, com isso, despertar o seu ciúme, a sua ira e a sua vingança. Geralmente,
o castigo é visto como uma forma de expiação pelo rompimento do equilíbrio das
relações de reciprocidade e por isso é legitimado pelo grupo. Percebe-se isso porque “o
indivíduo afetado assume a própria culpa e, ao fazê-lo, reafirma as normas morais e
suas obrigações para com os outros” (Zaluar, 1983, p. 86). No entanto, a noção do
perigo advindo da queda, do erro e da desobediência ou do castigo proveniente da
quebra do contrato que aparece na Folia de Reis, na verdade advém de tempos
remotos. É possível encontrar na Bíblia vários textos que comprovam esta afirmação. A
Bíblia, para os cristãos, é um livro de códigos, de aconselhamentos e prescrições. E
como tal, é geradora de uma cosmovisão que justifica o ethos de um povo. A narração
mítica do livro do Gênesis 1 e 2 é exemplo de uma concepção simbólica que,
geralmente, é inculcada na mente daqueles que nela acreditam.
“Deus criou o céu e a terra e tudo o que nela habita. Deus viu que tudo o que criara era
muito bom, mas Iahweh Deus deu ao homem este mandamento: ‘podeis comer de todas
as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás,
porque no dia em que dela comeres terá que morrer” (Gn. 2,16-17).
A narração traz, de forma clara e concisa, um contrato firmado e uma prescrição,
onde o preço da desobediência seria a morte, ou seja, a separação definitiva da
criatura do seu criador e a exclusão do conforto paradisíaco.
Jean Delumeau (apud Sousa Filho, 2001) chama esses castigos corretivos, de
transgressões da ordem das coisas, de medos escatológicos e evoca o mito do dilúvio,
a destruição de Sodoma e Gomorra, o Juízo final e as pestes dizimadoras da
humanidade, como exemplos desses medos escatológicos. No entanto, esses mitos,
apesar de tão antigos, nada têm de original. O que na verdade eles fazem é recontar
histórias passadas, que fizeram sentido em civilizações muito mais antigas do que
essa. Esses mitos sobre castigos são responsáveis por gerar, veicular e alimentar a
cultura do medo. É através dos mitos contados, repetidos e alimentados pelos rituais,
que as concepções vão tomando força e se fazendo verdade na vida cotidiana das
pessoas.
Nesse sentido, os rituais, as falas, as cantigas e as atitudes, aparentemente sem
importância, vêm para corroborarem o sentimento de medo, disciplinar a vida das
pessoas e estabelecer nelas, o nomos necessário. O nomos para Berger (1985) é o
estabelecimento de normas, regras que permitem o equilíbrio da vida nos grupos. O
permanecer ou atuar fora do nomos gera o caos – situação difícil de ser tolerada para a
grande maioria dos humanos. Nesse sentido, para que o grupo possa ser “disciplinado”
é necessário estabelecer mecanismos que permitam o restabelecimento da ordem ou
do nomos. O castigo é um desses mecanismos que gera o medo e conduz o grupo ao
restabelecimento da ‘normalidade’.
1.4 – Os medos nossos de cada dia
Em todas as culturas, em todos os tempos e lugares, é possível atestar a
existência de mitos sobre castigo. Isso se “porque as sociedades humanas precisam
da adesão dos seus membros a uma crença: a crença de que sem o exemplo da
punição não existirá respeito e obediência às leis, às regras e costumes, etc” (Sousa
Filho, 2001, p. 86). O referido autor, na obra intitulada: “Medos, mitos e castigos” faz
uma relação entre a instituição das práticas de castigos e penas de morte, com os
mitos presentes no imaginário coletivo e no campo da ideologia.
Na obra, supracitada, ele afirma que as emoções e os sentimentos não são
determinados biologicamente, mas são frutos da cultura e do aprendizado social. Nesse
sentido, Sousa Filho chama a atenção para a cultura do medo que foi gerada desde os
primórdios dos tempos e que tem sido alimentada de geração em geração. Segundo
ele a
“difusão do medo serve para manter todos os indivíduos na normalidade da cultura
instituída e muitos dos ritos coletivos, alimentados pelo medo, servem para aliviar as
tensões psíquicas, funcionando como soluções para desequilíbrios que ameaçam ordem”
(Sousa Filho, 2001, p. 16).
Se analisarmos profundamente a questão do medo, podemos observar que
desde tenra idade, as pessoas são socializadas sob o seu efeito. Podemos verificar tal
efeito nas “inocentes” canções infantis que compõem o folclore brasileiro. Quem não se
lembra de ter sido embalado, de ter adormecido ou, ainda, das brincadeiras de rodas
do seu tempo de infância? São canções que estão guardadas na nossa memória e na
nossa saudade e de uma forma, mais evidente para uns e menos para outros,
aparecem em nossas idéias, concepções e ações. Façamos presentes algumas destas
canções:
”Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega essa criança que tem medo de careta...”.
“Nana neném que a cuca vai pegar...”.
“Vem cá Bitu! Vem cá Bitu! Vem cá, meu bem, vem cá! Não vou lá, não vou lá, não vou
lá! Tenho medo de apanhar”.
“Marcha soldado, cabeça de papel! Quem não marchar direito, vai preso pro quartel...”
(Costa, s/d).
Esse pequeno port pouri figura como exemplo do que estamos afirmando. É
possível percebermos mensagens extremamente negativas, preconceituosas, trágicas
e ameaçadoras. A cor preta é vista como uma cor negativa, assombradora. É preciso
dormir, mesmo sem ter sono, porque a Cuca pega crianças desobedientes. Portanto, é
necessário obedecer às ordens instituídas. É preciso marchar direito, ter passos
uniformes, não sair do tom estabelecido e avançar todos na mesma direção. Além do
mais, a cabeça de papel insinua que basta ter corpo porque não é preciso pensar. A
verdade é que somos amedrontados, coagidos, manipulados, ameaçados e encaramos
tragédias desde o berço. De fato observamos que são
“muitos os medos difundidos e a que são habituados os indivíduos humanos: deve-se
temer os deuses (ou a um Deus único, como querem algumas tradições religiosas), aos
demônios, aos chefes de Estado, aos pais, aos mortos, às forças da natureza. E tantos
outros medos menores, mas nem por isso menos profundos e eficazes” (Sousa Filho,
2001, p. 18).
As entidades espirituais, concebidas como exteriores aos homens e a sociedade,
acabam por sustentarem as regras morais necessárias à vida social das pessoas. Pelo
processo de socialização o ser humano é habituado a temer. Existe uma cultura do
medo que condiciona o indivíduo a um modelo de vida social. O campo religioso figura
como uma força eficaz nesses condicionamentos. Os deuses ditam normas de
comportamento que devem ser seguidas, sob pena de castigo. “Esses meios
simbólicos criam um sentido que é por sua vez instituidor e regulador de condutas”
(Parker, 1995, p. 51).
“No imaginário popular o santo de devoção tem um pouco de justiceiro. Ele cobra
dos devotos a perseverança na crença e assiduidade nas tarefas do ritual” (Pessoa,
1993, p. 115). Na Folia de Reis dos Meninos de Dezembro de Santo Antônio de Goiás,
isso se faz muito evidente. O depoimento a seguir clarifica essa idéia:
“a remove montanhas... então eu estou aqui removendo montanhas vinte e sete
anos. Graças a Deus eu nunca falhei nem um ano, nunca tive problema financeiro pra vir,
nunca tive problema de saúde. Então eu acho que o dia que eu não vir na folia eu tenho
medo que aconteça grandes coisas e talvez coisas ruins que eu não quero que aconteça.
Então esse é o motivo de eu nunca ter falhado por acreditar que o dia que eu falhar nunca
mais vai ser como antes, das coisas darem tudo certo pra mim” (V. A, Vendedor, 52 anos,
2003).
Na Folia de Reis, é possível observarmos como a ética e a fidelidade são
mantidas através dos castigos disciplinadores. Os mesmos santos que acolhem e
realizam verdadeiros milagres são capazes de corrigir severamente as pessoas. Eles
são ciumentos e não gostam de serem esquecidos, não gostam de terem uma
promessa negligenciada ou cumprida pela metade. É o que esclarece o relato a seguir:
“... Tenho recebido muitas bênçãos e tenho recebido também, parece que foi um castigo.
Eu tinha uma irmã, ela dava uma febre que não tinha nada que cortasse. o papai fez
promessa de sair com a folia e minha irmã acompanhar, carregando a bandeira. Depois
ela sarou, ficou boa. E papai foi na Igreja arrematar a bandeira. o padre benzeu a
bandeira e depois que ele benzeu falou assim: escuta aqui, eu benzi essa bandeira, mas
você vai andar com anarquia atrás dela, vai? O papai falou: eu vou andar com a folia,
padre. Ele falou: não! Folia é anarquia . Então com essa bandeira você não pode andar. O
papai falou assim: por que? Ela é de Santos Reis! Ele falou: não! É porque essa bandeira
você não anda com ela com anarquia. o papai falou assim: não, padre, mas eu fiz
promessa foi de andar com a bandeira, é pecado porque eu fiz foi de andar. Olha, o
pecado fica nas minhas costas. o papai ficou com aquilo, né? Chegou em casa e
falou com minha mãe: o Luzia, o padre falou que é anarquia, que não pode andar com
essa bandeira, como é que faz? minha mãe falou assim: Chico, quando foi na hora de
você fazer a promessa, você não foi perguntar o padre. Você fez e vai cumprir conforme
você fez. Não, o padre disse que eu posso andar os três dias com a bandeira, pedir
esmolas, mas não é para andar com a folia. E assim saiu, né? Os três dias, a minha irmã
carregando a bandeira... Quando foi na hora do terço, que entregou a folia, rezando a
Salve Rainha... O meu pai tinha feito um ranchão... tinha doce, biscoito, tacho de
comida e pra frente tinha um paiolinho de milho com capado... Menina! Pegou fogo de
uma vez nesse rancho... um rancho de capim, mas não teve quem acudisse... e aquilo
ficou aquele fogão e... o povo pelejando, pelejando e nada apagava esse fogo. o que
fez? Derrubou as paredes e foi tuia de café, de arroz, de feijão e ... jogando água... virou
aquele mistureiro, pegou os tachos de comida e jogava pros terreiros, lata de doce... Sei
que pra mim foi um castigo... aí minha avó desmaiou, todo mundo chorando, né?... virou o
maior desperdício. na hora minha mãe falou assim: vendo, Chico, o cumpriu a
promessa!” (M. C. A, dona de casa, 77 anos, 2003).
Imediatamente, o filho entra no depoimento de sua mãe para dizer que o avô
deveria ter cumprido a promessa do jeito que ele havia prometido aos santos e não
devia ter pedido orientação a outras pessoas.
No imaginário dos foliões, os Reis Magos são santos promotores da paz e da
amizade. No entanto, eles são capazes de corrigir aqueles que se deixam mover pelo
sentimento de egoísmo ou mal-querência com moradores de alguma casa em que a
bandeira adentra. Não cumprir a regra de fidelidade ao santo e não vivenciar o ethos
proposto dessa visitação que não escolhe casa e que tem a obrigação de entrar em
todas os lares que se abrem, implica em atrair sobre si e a sua casa uma contra-dádiva
que é legitimada porque fere as normas sociais vigentes e a continuidade do modelo de
vida social assumida pela coletividade. O depoimento a seguir esclarece o que estamos
afirmando:
“Meu pai era embaixador dessa folia e então tinha um outro embaixador que era o
Gato e eles começaram com uma disputa boba entre os dois. Então quando a folia foi
tocar lá na casa desse embaixador que era o Zé Gato, o meu pai, por ignorância, não quis
entrar na casa dele e foi sentar debaixo de um... não sei se era um de jatobá ou um
pau de óleo. O dia estava claro, normal, com sol e tudo. Não tinha nuvem no céu, nem
nada. E no momento em que ele não foi e a folia começou a tocar caiu um raio na árvore
rachou ela de baixo a cima, a poeira subiu e todo mundo pensou que o meu pai tinha
falecido que quando a poeira abriu e assentou, meu pai tava lá. Então meu pai veio e
pediu perdão para os Santos Reis e disse que não era isso que ele ia fazer mais. Então,
essa história, eu, como filho, sei e a maioria dos foliões, os mais velhos sabem” (C. V. S ,
motorista, 29 anos, 2003).
Um outro aspecto trabalhado por Carlos Rodrigues Brandão em Memórias do
Sagrado (1985), é que os três Reis visitadores de Jesus, ao contrário do que diz a
tradição veiculada pela Igreja Católica, foram santificados. No imaginário popular, os
três reis personificam-se em um único santo. Embora os foliões reconheçam que o
Menino-Deus é digno de todo louvor, são aos três Reis que eles dirigem a festa como
uma forma de agradecimento pelas súplicas atendidas. Existe um santo que é forte,
mas a pessoa tem que ser merecedora da graça. A aparece como condição
indispensável para a atuação dos reis milagreiros. Os depoimentos abaixo vêm ratificar
essas idéias:
“... Então... Santos Reis é forte. Santos Reis ajuda. Ajuda sim, mas nós temos que fazer
por onde receber essa ajuda dele. Porque ele é muito forte. Então a pessoa acha que não,
desfaz, vai desfazendo quando começa a faltar as coisas na vida dele, ele vai vendo
onde errou. Ele vai achando o erro dele... Foi desfazer da imagem dos Santos Reis!” (C.
A, motorista, 29 anos, 2003).
E ainda:
“...Eu quero a bênção dos três Reis. Tenho minha fé, tenho minha casa... Quando eu sofri
o acidente, todo mundo pensava que eu ia morrer...” (O. C. M, funcionário público, 43
anos, 2003).
Nesse sentido, o processo ritual da Folia de Reis possui uma variegada riqueza
de linguagem simbólica em que o temor e o tremor são evidenciados. No entanto,
achamos por bem elucidar aqui, apenas dois destes elementos: a direção do giro e as
promessas (votos), por entendermos que esses elementos ajudar-nos-ão a
compreender a construção da visão de mundo desses foliões, como também, o
mecanismo da força de legitimação exercida pela religião.
1.5 – A direção do giro
Em relação ao sentido do giro, ocorre uma curiosidade: Vigilato (2000),
considerando que os Reis Magos partiram do Oriente em direção a Belém, os foliões
devem fazer o mesmo: a Companhia deve iniciar o giro sempre pela direita, mesmo que
seja necessário traçar o itinerário do percurso em forma de espiral. Essa prática do giro,
iniciada sempre pelo lado direito, tem sido mantida através dos anos.
Mas, que sentido teria a direita e esquerda na concepção dos foliões? De onde
resultaria essa idéia tão fortemente construída?
No imaginário cristão, a direita é sempre atribuída ao que é bom, justo e forte.
Em Mt 25, 32-34;41 o evangelista relata:
“E serão reunidas em sua presença todas as nações e ele separará os homens uns dos
outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos, e porá as ovelhas à sua direita e os
cabritos à sua esquerda. Então dirá o rei aos que estiverem à sua direita: ‘vinde, benditos
de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do
mundo...Em seguida dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘apartai-vos de mim,
malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos’”.
O próprio credo professado pela Igreja Católica retoma e reforça essa idéia,
quando reza que Jesus está sentado à direita do Pai de onde julgará os vivos e os
mortos. A direita não é apenas o lugar reservado aos bons, é o lugar do exercício do
poder.
No entanto, esse texto do segundo Testamento, talvez seja o reflexo de um outro
texto narrado ainda no primeiro Testamento. No livro de Ez. 47, 1-2 onde o lado direito
é o lado em que as águas jorram e descem para o vale do Jordão. A água é sinal de
vida em abundância, é sinal de fertilização das terras, é a certeza da produção farta e
bênção do criador à sua criatura.
Essa mesma idéia, da mão direita como portadora de vida, aparece numa
canção infantil: “A mão direita tem uma roseira, a mão direita tem uma roseira que
flor na primavera, que dá flor na primavera...” (Costa, s/d).
Durkheim (1985) cita um ensaio de Robert Hertz sobre a preeminência da mão
direita, dizendo que a oposição entre as duas mãos nada tem de biológica, mas se
inscreve na ordem das coisas sociais. À direita é associada a “noção de puro, alto,
dentro, mundo superior, ficando a esquerda com a impureza, o baixo, o que está fora, o
mundo inferior”. Para Durkheim “o que está em causa é o próprio entendimento
humano, a faculdade de classificar, de induzir, de deduzir, de associar” (1985, p.19).
Para o referido autor, os universos cognitivos devem ser apreendidos na sua
articulação com os grupos que o exprimem.
No imaginário popular, a atribuição da direita como algo que é bom tem
justificado atrocidades praticadas pelos pais que têm filhos com a predominância da
lateralidade sinistra. Casos como o de crianças que têm o braço esquerdo engessado
ou amarrado para que a destreza do braço direito seja desenvolvida, podem comprovar
a idéia que estamos defendendo. O próprio dicionário Aurélio traz como sinônimo de
sinistro: “esquerdo, que é de mau agouro; fúnebre, funesto, de índole; mau. Que
infunde receio; ameaçador, temível”.
O imaginário é uma forma de conhecimento que vai sendo construído e
alimentado por palavras, casos e pequenas ações do cotidiano. No imaginário do
gerente de giro da Folia de Reis por nós estudada, é assim que está estruturada a
noção de direita:
“A folia pode sair pela direita porque quebra todos os maus olhados. Pela crença que
eu tenho, e quem me passou essa crença inclusive é uma pessoa que faleceu, ela dizia
o seguinte: a folia que sai pela direita é difícil pegar um mau olhado, pegar um olho ruim
porque em folia existe embaraço, sabia?... Uma folia ela pode ficar presa e não conseguir
seguir à frente...” (O. C. S, funcionário público, 43 anos, 2003).
Ao ser indagado sobre os embaraços da folia, o gerente de giro afirma ter
ouvido falar de Companhias em que os instrumentos desafinam, os embaixadores
perdem a voz e a folia não pode prosseguir. Mas em seguida ele ressalta que a sua
Companhia nunca passou por tal situação uma vez que eles são sempre cuidadosos e
atentos com essas questões e nunca ousaram desafiar o poder do santo e saírem pelo
lado esquerdo. No giro da folia do ano de 2003 a casa do folião do ano estava retirada
da cidade e a folia deveria girar em sua direção. No entanto, algumas casas foram
visitadas antes da Companhia tomar a direção da pequena cidade.
1.6 – Os votos e barganhas
Steil (1996), ao pesquisar a Romaria de Bom Jesus da Lapa, cita o culto de
peregrinação como um sistema de trocas simbólicas, acontecidas entre os romeiros e o
santo de devoção. As promessas, na sua grande maioria, visam favores materiais
nessa vida ou redenção espiritual, na outra. Dessas trocas simbólicas, segundo o
referido autor, o dinheiro não está excluído. É justamente por isso que esse “mercado
religioso” é disputado pelos moradores e dirigentes do santuário.
No entanto, o que fica tão evidente no Santuário de Bom Jesus da Lapa, não
aparece na Folia de Reis por nós estudada, uma vez que nela, os favores concedidos
pelos Santos Reis são retribuídos em forma de ofertas. Essas, em sua grande maioria,
são vacas, porcos, galinhas, pequenas quantidades em dinheiro ou gêneros
alimentícios que ajudam, nas despesas da festa maior, que é chamada de entrega da
folia.
A promessa é definida como um trato realizado entre o fiel e o santo. “O trato é
sinônimo de troca, sinônimo de compromisso espiritual como resposta à generosidade
divina” (Couto, 2003, p. 126). Ou seja, o fiel recebe uma dádiva e sente-se na
obrigação de retribuir imediatamente a graça recebida. O depoimento a seguir deixa
claro essa idéia:
“eu gosto de andar na folia em primeiro lugar porque eu tenho uma muito grande em
Santos Reis. Eu consegui muitas coisas através dessa folia. Então eu acho que tudo o
que eu fizer ainda vai ser pouco diante de todas as graças que eu recebi através dos
Santos Reis” (D. G. S., secretário, 27 anos, 2003).
Brandão (1985b), ao estudar a Festa do Santo Preto, na cidade de Catalão, faz a
mesma constatação e ressalta a existência de uma relação contratual entre o devoto e
o santo.
Como vimos, na Folia de Reis dos Meninos de Dezembro de Santo Antônio de
Goiás, também aparece fortemente marcada essa relação contratual evidenciada nos
milagres, nos sacrifícios e penitências. Existe uma “cultura de voto ou de promessa”
das mais variadas. Além dos exemplos citados, faz-se voto para ser festeiro,
acompanhar o giro (obrigando-se a longas caminhadas diárias), receber de joelhos a
bandeira...
“A promessa é uma relação estabelecida entre a condição humana concreta de um
invólucro de santidade que rodeia, faz parte de uma visão de mundo dentro da qual
constitui um modo de comunicação essencial. Por isso mesmo ela aproxima-se do
sacrifício, ao mesmo tempo em que se insere no quadro de uma economia, a de troca”
(Sanchis apud Magalhães, 2002, p. 103).
Na relação contratual, uma vez satisfeita a ambas as partes dos interessados,
ela encerra-se porque é transitória. No entanto, na Folia de Reis de Santo Antônio de
Goiás, além dessa relação contratual, existe um vínculo estabelecido entre os devotos
e os Santos Reis. Esse vínculo torna-se confuso porque nele um misto de amor, fé,
medo e dependência dos poderes sobrenaturais. São exatamente esses sentimentos
despertados que fazem os foliões continuarem o contrato de favores e lealdades e,
antes mesmo de terem um pedido atendido, já fazem nova promessa. O depoimento a
seguir vem para comprovar essa idéia:
“Os médicos tinham negado as vistas da minha irmã. Disseram que ela não ia enxergar
mais. Então minha mãe fez um voto e na hora que a minha irmã terminou de cumprir o
voto ela começou a enxergar. Os médicos ficaram admirados do trabalho que foi feito nas
vistas dela pela graça de Deus, em primeiro lugar, e dos três reis santos” (R. C. F.,
pedreiro, 29 anos, 2003).
No entanto, todo voto deve ser realizado na íntegra sob pena de atrair para si a
ira dos Santos, pois de acordo com Paleari existe
“uma ética pessoal, que reflete a ligação que se tem com o santo. É composta de
preceitos e leis que regulam a troca de benefícios, a interajuda, o respeito e, até, a
vingança, quando acontece a quebra da palavra dada, como, de outro lado, revolta
quando o santo não respeita a promessa feita” (1990, p. 71).
Um outro dado interessante, em relação aos deveres para com os santos, é que
estes não são abolidos nem com a morte do suplicante. Voto feito e não cumprido
impede a alma do falecido de descansar em paz e precisa ser assumido por um
parente para que as ‘contas’ sejam definitivamente acertadas.
“Eu tenho uma história que aconteceu na minha família. Um tio meu que faleceu no ano
de 1982 e que era folião dessa folia tinha feito uma promessa aos três Reis que ia dar um
almoço de folia e um quarto de vaca no dia da entrega. que ele morreu antes de
cumprir a promessa. Minha tia começou então a sonhar com ele. Sempre sonhava com
ele carregando a bandeira. Logo ela recebeu a mensagem de um homem que era muito
amigo do meu tio. Esse homem disse que era para minha tia carregar a bandeira durante
os seis dias, dar o almoço aos foliões e o quarto de vaca para a festa da entrega. Minha
avó cumpriu a promessa e nunca mais sonhou com ele” (M. A. S., aposentado, 26 anos,
2003).
Algo interessante que podemos observar é que sempre as obrigações para com
os santos remetem a obrigações assumidas para com toda a comunidade, uma vez que
a maioria dos votos é para dar almoço, pouso ou fazer a festa final.
O contrato exige fidelidade, o tolera quebra. Existe um sistema de
reciprocidade. É por isso que os mesmos santos que abençoam e são proclamados
como milagreiros, são capazes também de punir, exemplarmente, as pessoas que
tentam infligir o contrato de fidelidade estabelecido. “Honra e obrigação, consideradas
por Mauss como dois dos elementos essenciais da dádiva, entrelaçam-se em um
difícil de desatar. O medo de se perder a graça alcançada e o medo de um castigo
muito maior conjugam-se pelo rompimento do trato” (Couto, 2003, p. 127). Essa idéia
aparece evidenciada no depoimento a seguir:
“Teve um ano que eu falhei e vim assim... meio contrariado. Estava com um comércio
muito grande e pensando que a coisa ia muito bem e eu não precisava. Fiquei por
cuidando das minhas coisas e esqueci aquilo que já tinha há muito tempo. Isso tem uns
12 anos atrás mais ou menos. Eu deixei de vir na folia uns dois dias seguidos o Edson
mandou falar pra mim que era pra mim vir . Eu vim e ele me falou: rapaz, você es
ficando doido? Por que você fez um negócio desses? E as coisas atrapalharam prá mim.
Eu quebrei, voltei assim a zero, sabe? Fui trabalhar de servente de pedreiro porque na
minha profissão eu não achava emprego. Quebrei que acabou. Foi muito difícil. Isso eu
tomei como uma lição, como um castigo e acredito que isso não vai acontecer nunca
mais. A gente tem muito medo. E graças a Deus, as coisas, depois trabalhando de
motorista, consegui uma... uma não, duas casas já, e as coisas só vão melhorando depois
que eu voltei para a folia” (A C. S, motorista, 47 anos, 2003).
A partir dos elementos constitutivos da Folia de Reis, podemos afirmar que ela é
uma das festas mais expressivas da religiosidade popular do Estado de Goiás. No
entanto, cabe-nos entender o que faz parte dessa religiosidade popular, como ela se
estrutura, com que objetivo ela se organiza, para então percebermos se ela pode ou
não ser apontada como uma porta para a inclusão social dos foliões e a legitimação
dos papéis representados por eles.
CAPÍTULO II
2 - RELIGIOSIDADE POPULAR, INCLUSÃO SOCIAL, PAPÉIS E LEGITIMAÇÃO
“A religião popular, em suas diversas manifestações, contribui para a reprodução da vida,
para proteger dos perigos que a atacam, porém também contribui para dotar a vida de um
sentido extra, revalorizando-a . Por meio das crenças e dos rituais populares, o homem se
salva de estar ‘perdido’ em meio à miséria, aos vícios, à desumanização, à lama, e
recupera sua dignidade humana, volta a recuperar um sentido pessoal e uma vocação
pessoal e social” (Parker, 1995, p. 286).
2.1 – Religiosidade Popular
No quadro da religiosidade popular brasileira, poderíamos falar do
pentecostalismo, dos cultos sincréticos afro-americanos, das várias seitas, dos
movimentos messiânicos, etc. Mas, como a Folia de Reis, objeto de estudo aqui
enfocado, dá-se no contexto do catolicismo, faremos um recorte da expressão religiosa
vivenciada por seus adeptos.
Espín (2000) afirma que toda e qualquer religião bem elaborada e
normativamente definida, acaba por desenvolver uma versão popular de si mesma, isto
é, os próprios fiéis criam caminhos alternativos para a liturgia e paralelos às normas
doutrinais, levando à formação do que poderia chamar a versão “popular” da religião.
Essa versão pressupõe uma releitura das doutrinas e dos ritos da religião tida como
oficial, buscando a aproximação desta, às necessidades da vida cotidiana do povo.
Brandão (1980) afirma que a religiosidade popular não é fruto de uma espécie de
caipirização ingênua ou depravada, mas efeito de um sistema religioso erudito,
doutrinário e sacramental que se transforma em um outro comunitário e devocional que
se populariza.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, Alves (1999) assevera que, durante muito
tempo, a religiosidade popular fora vista como uma prática das pessoas incultas,
supersticiosas e uma alternativa para os ignorantes que, intelectualmente privados do
entendimento da teologia erudita e profunda, viam, nessa religiosidade, uma forma de
participação. Essas formas populares de religião eram entendidas pelos acadêmicos
como um fenômeno exótico que seria em pouco tempo liquidado e suplantado pela
expansão da ciência.
No entanto, o que a história nos revela é que, a partir da década de sessenta, o
Estado brasileiro, cada vez mais secularizado, menos necessitava da legitimação
ideológica da Igreja. Com isso, “a Igreja marginalizada e perseguida, foi forçada a se
perguntar acerca de suas lealdades e alianças. Reprimida pelos poderosos, ela
descobriu sua solidariedade com os oprimidos” (Alves, 1999, p.134). Nesse sentido, a
religiosidade popular torna-se foco de interesse no seio da Igreja Católica. Esse tema
vem à tona na Conferência Episcopal de Medellín (1968), é aprofundado na
Conferência de Puebla (1979) e aparece novamente na Conferência de Santo Domingo
(1992), sendo assumida como uma riqueza capaz de contemplar e respeitar as várias
formas de expressão da fé.
O documento de Puebla deixou claro essa opção, quando mencionou que “a
religiosidade popular não é somente objeto de evangelização, mas também, enquanto
contém encarnada a Palavra de Deus, é uma forma ativa com a qual o povo evangeliza
continuamente a si próprio” (Puebla, 1986, p. 201).
No entanto, a aproximação entre essas duas maneiras de ser Igreja, não se deu
de uma forma tão pacífica assim. Sabemos que a prática religiosa popular por várias
vezes foi considerada como profana, como inferior e adversária à católica.
Justamente por isso foi perseguida, deslegitimada e substituída por outras práticas
‘sagradas’ aprovadas pela liturgia oficial que possuía uma fórmula adequada para
homenagear seus santos. Weber (2002) clarifica essa idéia quando afirma que
“peregrinações, procissões e festas de santos não raras vezes foram controladas,
proibidas ou apenas toleradas contra a vontade, por parte da hierarquia religiosa” (p.
147). Mas o fato dessa expressão religiosa popular ter sido perseguida e controlada
não significa que em outro momento conveniente da história ela não pudesse ser
abraçada e assumida pela Igreja oficial. E, o que num momento anterior era visto como
prática dos incultos, supersticiosos e alienados, pudesse passar a ser entendido como
uma forma de resistir a toda realidade estranha que era imposta pela cultura, pela
economia e sistema político.
Na verdade, o que sempre se pôde perceber é que nunca existiu uma polaridade
constante entre essas formas de manifestação do fenômeno religioso, porque religião
popular e religião oficial articularam-se permanentemente, num processo dialético e
circular.
“Mas a interação entre essas duas tradições não é simplesmente parte de um processo
adaptativo contínuo. Ela não se faz sem conflitos, conforme demonstram as diversas
reações às tentativas da Igreja Católica de modificar as festas de santo, nem tem
mecânica própria que permita estudá-la independentemente de outras transformações
sociais ocorridas” (Zaluar, 1983, p. 120).
Martelli (1995) assegura que Gramsci vê, na religião popular, com suas
devoções de massa e de caráter fortemente emocional, uma forma de expressão da
“resistência” passiva das classes pobres e marginalizadas, diante das contínuas
tentativas de assimilação cultural e de imposição ideológica das classes dominantes
com o apoio do clero católico.
Parker (1995), ao invés do termo religiosidade, prefere usar “religião popular”,
vendo nesse último termo, um conceito mais adequado para tratar cientificamente das
expressões religiosas e culturais do povo latino-americano. Ele entende que
“as religiões populares são manifestações coletivas que exprimem a seu modo, de forma
particular e espontânea, as necessidades, as angústias, as esperanças e os anseios que
não encontram resposta adequada na religião oficial ou nas expressões religiosas das
elites e das classes dominantes” (Parker, 1995, p. 55-6).
Esse jeito particular e espontâneo de viver as necessidades e angústias da vida
cotidiana aparece de uma forma muito intensa na Folia de Reis. Para os foliões, a
escatologia não é assunto para os Santos Reis. Os santos atendem as urgências, o
imediato que ano a ano é trazido para o seio da folia para ser rezado e festejado.
Ainda discutindo a complexidade da relação entre a religião oficial e a religião
popular, Parker (1995), assevera que esta, nada mais é do que reflexo da relação
conflitiva que existe numa sociedade que é estratificada. Ele afirma que a fé está
intimamente ligada à vida e contrapõe a concepção de que a religião popular seja
oposta e alternativa à palavra erudita e que seja apenas um agregado de superstições
e de magia. Para o autor, a religião popular é uma espécie de estratégia simbólica de
sobrevivência que contribui para reprodução do sentido da vida. Ela é capaz de afastar
a insegurança e dissipar a ameaça destruidora da ordem significativa e da própria vida,
nessas classes marginalizadas. De acordo com Parker (1995, p. 158) é “onde o
sentido da vida é posto em tela de juízo, que recorre-se a Deus e aos santos com os
quais se estabelece uma espécie de pacto onde vigora um intercâmbio ritual: o
suplicante deve realizar sua promessa em troca da realização do milagre”.
Esse movimento, subentendido pela “troca”, coloca o indivíduo em ação e em
relação com as demais pessoas. Dessa forma, o povo descobre na prática a
capacidade de recriar o seu sentido religioso, a partir de suas experiências, dores e
alegrias. E nesse contexto, as pessoas simples e pobres são reconhecidas não
como sujeitos de suas próprias histórias, mas também portadores de um saber que é
reconhecido pelas pessoas da comunidade. Nesse sentido, a religiosidade popular
assumiria o importante papel de revelar e expressar o evangelho da vida encarnado
numa cultura. É por isso que Alves postula que, assim, a religiosidade popular, “seria
um ato político camuflado, comprimido como uma mola, à espera do momento para a
sua revelação e expressão. O arcaico se transfigura em utópico, a aparente presença
do passado se transforma em anúncio do futuro, a memória torna-se profecia” (1999, p.
139).
Richard (1983) também a religiosidade popular como uma autêntica
manifestação da cultura popular, a única que o povo pode possuir, viver e sentir. Ou
seja, a religiosidade popular é uma forma de reunir o povo como classe e como sujeito
histórico de sua própria cultura, de sua própria consciência, de sua maneira de viver e
exprimir sua fé. Desta forma,
“o povo explorado e crente, na medida em que se afirma como sujeito de sua própria
história, é também o sujeito próprio da religiosidade popular. A consciência revolucionária
desse povo é também sujeito de sua consciência evangelizadora. A potencialidade de sua
libertadora está ligada à sua capacidade revolucionária e vice-versa” (Richard, 1983,
p.25).
Para Maduro (1981), nenhuma sociedade de classe consegue ser totalmente
dominada porque sempre existe a resistência. A classe dominante não tem controle
absoluto da vida coletiva. A classe dominada manifesta sua resistência através de
rebelião coletiva, consciente e organizada, mesmo que dentro dos limites e sob as
orientações impostas pelas classes dominantes. Os grupos sociais subalternos têm a
capacidade de transformar sua condição social visando um mundo independente em
oposição à visão dominante do mundo em sua própria sociedade. Nesse sentido,
Maduro apresenta o trabalho religioso como aquele que é capaz de situar e orientar as
classes subalternas em seu meio sócio natural de modo autônomo, independente das
classes dominantes. Tal postura religiosa, resultará numa função social revolucionária
contradizendo a tese de Marx de que a religião aliena e paralisa as pessoas na busca
de uma solução prática para os infortúnios e injustiças do mundo capitalista opressor.
A religião popular, no pensamento parkiano, advém da tradição oral, das raízes
ancestrais (indígenas, africanas e ibéricas) que, somadas à criatividade do povo, ao
trabalho socializador das igrejas, das escolas e da mídia faz dessa forma de religião um
processo dinâmico, original e, muitas vezes, estranho diante da cultura oficial e das
elites intelectuais. De acordo com Parker, a religiosidade popular é
“uma visão do mundo submersa, flutuante e desigualmente distribuída, cuja manifestação
nem sempre deixa ver suas próprias raízes e cujas flores, embora não sejam do tipo de
fragrância e da espécie que finamente cultiva a alta cultura, são de uma vitalidade ímpar”
(1995, p. 138).
Brandão (1985a) menciona como membros da religião popular as comunidades
de lavradores, os trabalhadores volantes da agricultura, os posseiros, subempregados
e operários. Segundo ele, esta é a forma de religião que abarca as benzedeiras, os
beatos, os ermitãos, pregadores ambulantes, santos conselheiros, capelães e mestre
de grupos rituais. Essas pessoas dispensam a presença dos sacerdotes oficiais,
distribuem entre si as obrigações em relação ao culto, aprendem e ensinam
mutuamente nutrindo, assim, a vida, a fé e os sonhos.
Parker (1995) também a religião popular, em suas diversas manifestações,
como fonte de vida que é vivificada. Nela, o pobre e o indigente recuperam sua
dignidade e sua identidade como homens e também como filhos de Deus. Isto é,
quando ele “recupera sua dignidade humana, volta a recuperar um sentido pessoal e
uma vocação pessoal e social” (Parker, 1995, p.286). Os rituais comunitários ocorridos
nesta forma de expressão religiosa possibilitam a aproximação e vivências da
solidariedade.
A vivência da solidariedade que se através da doação de alimentos, dos
grandes mutirões que preparam a comida e a torna acessível a todas as pessoas e o
sentimento de pertença a um grupo que caminha de forma autônoma com suas crenças
e verdades é a grande tônica da Folia de Reis.
Após apresentarmos o pensamento de vários autores acerca da religiosidade
popular sentimos a necessidade de afunilarmos nossa reflexão numa das vertentes
dessa forma de expressão popular. Destarte, ao fazermos o recorte do catolicismo,
esperamos situar melhor nosso objeto de estudo e oferecer subsídios para
entendermos se a Folia de Reis dos Meninos de Dezembro de Santo Antônio de Goiás
pode ser apontada como um espaço para a inclusão sócio-cultural e a legitimação dos
papéis dos foliões e, conseqüentemente, ser apontada como uma alternativa de novo
paradigma societal.
2.2 – As duas faces do catolicismo
O Brasil abriga, em seu seio, um número relativamente grande de religiões,
igrejas, seitas, ou seja, ele tem sido canteiro de experiências religiosas das mais
variadas possíveis. Mas, apesar dessa diversidade de cultos existentes, e outras
crenças que estão sendo introduzidas, ele ainda é reconhecido como a maior nação
católica do mundo. O senso do ano de 2000, divulgado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, diz que 73,8% da população brasileira se diz católica. “O
catolicismo é socialmente a possibilidade de todas as categorias de sujeitos sociais
possuírem uma mesma religião e diferenciarem, no seu interior, modalidades próprias
de sua religiosidade” (Brandão, 1987, p. 110).
Essa forma de religiosidade católica popular no Brasil é denominada de
catolicismo Folk, catolicismo rústico, ou ainda, catolicismo popular, sendo, pois, essa
última, a denominação escolhida por nós, para discorrer sobre tal tema.
Hoornaert (1991) defende a idéia de que existe um catolicismo popular distinto
do catolicismo patriarcal e de que esse primeiro, constitui a cultura mais original e mais
rica que o Brasil já produziu, durante toda a sua história.
Espín (2000) define o termo “popular” não como sinônimo de difusão e sim como
algo que pertence e que é do povo. É a maneira de muitos católicos serem católicos,
independente do gosto e desejo dos teólogos e agentes pastorais. Ele também partilha
da opinião de que, dentro da Igreja, existe o catolicismo popular e o catolicismo “oficial”
e, segundo ele, essas duas tradições coexistem, expressam discordâncias e
incompreensões, mas não são forças hostilizadoras e contrapostas.
Brandão (1987, p.132), ao analisar o Brasil e a expressão de do seu povo,
afirma que “o catolicismo do povo brasileiro é sempre um sistema dissidente de um
catolicismo ‘de igreja’, e os seus agentes próprios são sujeitos recrutados entre os das
classes subalternas que aprenderam direta ou indiretamente ‘com os padres’ e que
depois reaprenderam com a classe”. Ou seja, é uma forma combinada de
aprendizagem advinda de setores dominantes da Igreja colonial, transformada e
alargada com o modo de vida e entendimento do campesinato.
Paleari (1993) também fala de dois tipos de catolicismo: um, tradicional popular,
que foi trazido pelos portugueses pobres e começou a penetrar na zona rural do Brasil.
Esse catolicismo, segundo ele, era marcado pelos santos e pelos leigos, não estava
atrelado ao poder político constituído e nem se beneficiava de seus préstimos.
O outro tipo de catolicismo, dominador, foi também trazido pelos portugueses
colonizadores ricos e poderosos. Tinha como ênfase os sacramentos, como meio
individual de salvação, e a figura do padre vivia em estreita aliança com a burguesia
capitalista emergente. Esse último tipo de catolicismo, tradicional romanizado,
empreende uma luta ferrenha contra o catolicismo popular. Nessa luta, vale tudo: a
importação de santos; a substituição das festas alegres, onde o sagrado e o profano
conviviam em harmonia, por festas mais austeras; e a presença dos clérigos, em lugar
dos leigos. Talvez por isso a Folia de Reis seja motivo de desconfiança para muitas
autoridades constituídas da Igreja Católica e seja vista apenas como diversão e não
como uma expressão de fé que faz parte da religiosidade católica.
Segundo Paleari (1993), o efeito do catolicismo romanizado sobre o catolicismo
popular tradicional fez surgir uma forma híbrida de prática religiosa “com uma mistura
de práticas privadas de devoção a santos (rezas, promessas e cultos às imagens) e
uma freqüência irregular e esporádica à missa e aos sacramentos” (Paleari, 1993,
p.74). Essa realidade aparece de forma muito evidente na cidade de Santo Antônio de
Goiás onde, segundo o padre local, a participação nas missas e dos sacramentos tem
sido muito pequena.
A preocupação emergente no catolicismo popular é com a vida que a pessoa
leva aqui na terra. É a preocupação com os problemas do homem e da mulher de hoje.
Por isso, essa forma de expressão do catolicismo, lançando mão de uma criatividade
ímpar e de todo um cenário simbólico, constrói um sentido capaz de enfrentar o caos
social e desestabilizador do mundo contemporâneo. Ainda que esse sentido, não raras
vezes, possa ser confundido por muitos como uma expressão supersticiosa ou como
uma forma de alienação.
Poderíamos elencar aqui muitos elementos que fazem da religião popular o canal
de expressão da criatividade humana e, ao mesmo tempo, um espaço para representar
as crenças comuns e a visão de mundo partilhada pelo grupo. No entanto, fazemos
presentes as figuras dos santos e folias como exemplos de alternativas encontradas de
forma criativa pelo povo brasileiro para buscar soluções simbólicas para o
enfrentamento da dura realidade cotidiana que é permeada de sofrimentos e privações.
2.2.1– Santos e Folias: a sustentação de um jeito de ser católico
A figura do santo é um dos elementos fundamentais do catolicismo popular. É
objeto de devoção, de reverência e de culto. Se observarmos, ao longo da história,
vamos perceber que a Igreja, as irmandades religiosas e as famílias importantes tinham
tradicionalmente suas próprias imagens de santos que eram venerados e passados de
geração em geração.
“Qualquer localidade permanente, quer fosse freguesia, povoado ou cidade, tinha
seu padroeiro. Às vezes, esse padroeiro era designado pela Igreja e sofria a
concorrência do santo espontaneamente escolhido pelo povo como seu protetor”
(Zaluar, 1983, p. 61).
Houve um tempo inclusive que, para batizar um filho ou filha na Igreja Católica,
se o nome principal da pessoa a ser batizada não fosse de santo, certos padres
“aconselhavam” os pais a agregarem-nos para que o Sacramento pudesse ser
efetivado.
Em alguns países, como por exemplo na Espanha, além do dia do aniversário,
comemora-se também o dia do santo particular que, por ser seu “xará”, recebe a
incumbência de ser o seu protetor. “Os santos são os padrinhos ricos que estão no
mundo do povo para distribuir favores e receber homenagens com orações, velas,
pagamentos de promessas, procissão com andor, cantos, vivas e foguetes” (Leers,
1977, p. 84).
Segundo Parker (1995), em todas as classes sociais existem práticas
devocionais e promessas dirigidas aos santos. No entanto, é nos estratos mais baixos
da sociedade que essas práticas são mais elevadas justamente porque elas estão
diretamente relacionadas com as necessidades vitais como a saúde, a fome, a pobreza
e a morte. Em Santo Antônio de Goiás, aparece bem evidente a relação dos Santos
Reis com a saúde. Sobre essa questão deter-nos-emos com mais cuidado num outro
momento de nosso trabalho.
A relação do fiel e do santo é baseada na dependência e na reciprocidade de
serviços e obrigações morais entre as partes implicadas. Mas, a relação vai além da
pura dependência, porque existe uma carga de afetividade canalizada para a imagem
do santo que recebe cuidados especiais e lugares de destaque nas casas e crenças
das pessoas. É por isso que Parker afirma que
“o valor do ícone, a escultura policromada dos santos e das virgens, e a sobrecarga de
figuras plásticas e de ornamentações reside precisamente no fato de que se trata de um
símbolo concreto de uma realidade mediadora para o transcendente, símbolo em torno do
qual, de forma sensível e corpórea, é possível reverter a forte carga de sentimentos que a
experiência mística popular vai acumulando para expressar na data precisa da festa
patronal” (1995, p. 168).
Segundo o vigário da Igreja de Santo Antônio de Goiás, os santos são
alternativas utilizadas pela própria igreja oficial e sempre propõem um método diferente
de encarar o evangelho” (C. T., 2004). Independente de terem vivido num tempo
distante ou próximo, os santos acercam-se mais às vidas das pessoas porque se
encarnaram numa realidade, viveram problemas muito parecidos com os problemas do
homem e da mulher contemporânea e superaram essas limitações.
Algo interessante que ocorre nesta forma de viver o catolicismo popular é que o
fiel sempre relaciona-se com o seu santo protetor, padroeiro ou milagreiro, como
alguém que se relaciona com um amigo: a ele faz o seu pedido, agradece, faz
promessa, paga o voto ou o negocia depois da graça alcançada. Essa intimidade até
permite que o fiel possa enfadar-se com o seu santo, quando a sua promessa não é
atendida e os seus desejos são negligenciados. É justamente essa intimidade e a
liberdade de fazer um voto que “cria uma amplitude de possibilidades que escapam ao
controle clerical e se realizam no terreno da devoção privada” (Leers, 1977, p. 66). Em
outras palavras, o fiel tem fácil acesso ao seu santo protetor, relaciona-se diretamente
com ele, dispensando com isso, a necessidade de intermediários. Segundo Paleari,
existe
“uma ética pessoal, que reflete a ligação que se tem com o santo. É composta de
preceitos e leis que regulam a troca de benefícios, a interajuda, o respeito e, até, a
vingança, quando acontece a quebra da palavra dada, como, de outro lado, revolta
quando o santo não respeita a promessa feita” (1993, p. 71).
As imagens dos santos estão nas cabeceiras das camas, nos oratórios
familiares, nas entradas das cidades, nas fachadas do comércio, nas capelas, nos
túmulos, nas Igrejas e Santuários. Por eles fazem-se orações pessoais, dedicam-se
novenas, ladainhas, procissões, sacrifícios, constroem-se altares e é através de suas
imagens que a eficácia de uma crença é garantida e um jeito de ser católico é
sustentado. De acordo com Steil,
“na afirmação do culto às imagens estava em questão assegurar a base de sustentação
do conceito católico de sacramento: a eficácia simbólica, que torna presente o significado
através do significante (...). A defesa das imagens faz parte da ‘identidade católica’, isto é,
a sua insistência quase obsessiva sobre a importância do significante” (1996, p. 243).
Um outro traço marcante do catolicismo popular são as folias. Essas, são
dedicadas aos Santos Reis, ao Divino Espírito Santo, a São Sebastião, a São Benedito
entre outros santos. De todos os santos aos quais são dedicadas as folias, os Santos
Reis são os únicos que não são reconhecidos oficialmente pela Igreja Católica. Na
verdade, foram proclamados santos e reis pela fé do povo.
As folias “são grupos errantes de devotos cantores e instrumentistas que
angariam bens (dinheiro ou prendas) para a festa do santo” (Brandão, 1985a, p. 137).
Entre estas folias concordâncias, divergências e adaptações. No entanto, a alegria,
a participação eminentemente de leigos, o caráter esmolar e de visitação são pontos
que as unificam.
Dentre estas folias, destacamos a de Santos Reis, sobre a qual fizemos no
primeiro capítulo, uma descrição pormenorizada do seu ritual, da distribuição dos
papéis, das teias de relações e representações que são evidenciadas ou camufladas no
seu interior. As Folias de Reis, muito mais que relembrar e interpretar uma história
sagrada, elas, como parte da religiosidade popular, também cumprem uma função
social. Observa-se que uma das funções sociais diz respeito à saúde uma vez que a
enfermidade é uma manifestação da morte, do caos, da anomia e vulnerabilidade
humana. Estudos realizados na América Latina (Parker, 1995), deixa claro que à
medida que o povo empobrecido não tem suas necessidades básicas atendidas,
uma maior propensão a se buscar ajuda no sobrenatural, isto é, recorrendo-se aos
santos.
2.2.2 – Folia e saúde: o que Santos Reis tem a ver com isso?
A devoção aos santos é uma forma de buscar solução simbólica para problemas
enfrentados na cotidianidade da vida: trabalho, saúde, relacionamentos afetivos e
familiares, dificuldades econômicas, estudo, etc são exemplos de problemas
corriqueiros que ocorrem na vida das pessoas, em especial, das menos favorecidas
economicamente. Por isso, Parker afirma que o problema da saúde é um sério desafio
para uma “cultura que, precisamente por viver em condições de miséria, de
marginalização e de exploração, não tem acesso garantido às práticas modernas
institucionalizadas e especializadas – porém mercantilizadas de saúde” (1995, p. 159).
Em Santo Antônio de Goiás, aparece também essa relação estreita entre a
experiência religiosa e as necessidades vitais das pessoas. Na pesquisa realizada, no
ano de 2003, foi constatado que quarenta e cinco por cento dos entrevistados
começaram a girar na Folia para cumprirem um voto de agradecimento aos Santos
Reis por uma graça alcançada. As promessas, em sua grande maioria, foram feitas em
momento de penúria, em eminente perigo de morte e perda da saúde. Ou seja, num
momento de fragilidade, de sentimento de abandono e de profunda exclusão social,
porque são às margens da sociedade que se encontram as pessoas enfermas.
Parker (1995) afirma existir, na mentalidade popular, uma profunda ligação entre
a saúde corporal e a saúde moral e espiritual. “A religiosidade no meio popular
assumiria o caráter de um poder sobrenatural que socorre o indivíduo, oferecendo-lhe
benefícios que a sociedade lhe nega ou consolando-o em sua frustração” (Parker,
1995, p. 273). Talvez por isso nos países desenvolvidos onde a população tem acesso
à saúde, à educação, à segurança e moradia digna, a religião, com seus deuses e
santos, que durante séculos e séculos ocupou um lugar central na vida das pessoas,
não esteja, hoje, ocupando a mesma centralidade de outrora.
No entanto, o acesso garantido à educação, à segurança, à moradia digna e à
saúde com qualidade, não é uma realidade brasileira, menos ainda, da cidade de Santo
Antônio de Goiás.
A pequena cidade conta com o Hospital Municipal Vaz Machado, desde o ano de
1990. Nele, a presença de um médico clínico geral, um pediatra e a presença, duas
vezes por semana, de uma psicóloga e uma fonoaudióloga. O Município conta ainda
com o Programa de Saúde da Família (PSF) que faz um trabalho preventivo
(hipertensão, diabetes, crescimento, escovação...). As consultas de rotina são
atendidas no local, no entanto, os casos mais sérios de saúde não podem ser tratados
ali, porque faltam aparelhagens e recursos para exames mais elaborados. Os pacientes
que requerem um atendimento que o hospital não pode oferecer são encaminhados
aos hospitais públicos de Goiânia ou à Santa Casa de Misericórdia que atende aos
enfermos encaminhados pela Associação São Vicente de Paulo. Mas, nem sempre o
encaminhamento é garantia de atendimento e, menos ainda, garantia de acesso às
práticas modernas e especializadas de saúde.
Se o acesso à saúde era um problema enfrentado pela população da cidade
de Santo Antônio de Goiás, o problema veio a agravar-se ainda mais quando, no dia 04
de outubro de 2004, para atender à lei de responsabilidade fiscal, o prefeito da cidade
(que não foi reeleito pela população) resolveu fechar o Hospital Municipal. Os
moradores da pequena cidade protestaram, o assunto foi parar na dia e, em poucos
dias, o hospital foi reaberto. No entanto, sem aparelhos, sem medicação, inclusive para
as doenças mais simples, e com a presença irregular dos médicos, o sistema de saúde
local passa por um verdadeiro caos. Assim, uma moradora, descreve o sistema
municipal de saúde:
“Está péssimo o jeito de tratar as pessoas aqui. O atendimento está irregular. Você chega
e os funcionários falam assim: ‘não, hoje não tem médico. Em outra hora: o médico
foi embora. Eles não atendem a gente e fazem o encaminhamento e manda a gente ir pra
Goiânia. Geralmente a gente tem que deslocar daqui para lá e procurar socorro mais para
lá” (H. V., dona de casa, 59 anos, 2004).
Num outro depoimento:
“Nos últimos três anos o atendimento médico aqui em Santo Antônio de Goiás tem
deixado a desejar. Os médicos atendem a hora e a quem eles querem. Nos últimos dias
então, atendem emergência. Assim... olha o paciente, mas não tem medicamento, não
tem nada. Tem que encaminhar ou para o Hugo ou para a Santa Casa ou para o Hospital
Geral de Goiânia (H.G.G) isso quando tem médico para atender e encaminhar” (M. A
serviços gerais, 29 anos, 2004).
E, ainda:
“Aqui o sistema de saúde não está bom devido o prefeito ter gastado muito. Ele abriu
muito as mãos e, para começar, o hospital teve que fechar. Amanhã mesmo eu não vou
trabalhar porque não tem nada no hospital: não tem remédio, não tem médico (porque os
médicos estão com três meses que não recebem) e eles não estão trabalhando. Eu
trabalho e minha filha também trabalha. Ela é enfermeira. Mesmo assim, nunca ficou
sem enfermeira, sem cozinheira, nunca ficou sem o pessoal da limpeza, nunca ficou sem
a lavanderia. Sempre a gente está para manter o hospital, mesmo fechado fica uma
porta aberta pelo fundo para a gente receber as pessoas que vêm fazer curativo, vem
procurar onde eles podem receber socorro e a gente indica a eles. Es uma situação
muito triste, mas eu não estou falando do prefeito, estou falando da situação precária que
está” (A . X. S., cozinheira, 59 anos, 2004).
Diante deste quadro apresentado, não resta à população outra alternativa senão
a de recorrer ao Sagrado e, por isso, pudemos observar que muitos dos votos feitos
dizem respeito à saúde.
Cavignac (1999) também estabelece uma relação dos votos feitos aos santos
com o sistema de saúde. A autora relata as curas e milagres que são realizados pelos
santos especialistas. Ela defende a idéia de que, essas mediações buscadas nos
santos dotados de uma especialidade, refletem o problema crônico e disfuncional do
serviço público de saúde. Resolver o seu problema diretamente com o santo é mais
rápido uma vez que não é preciso ‘tirar uma ficha’ ou agendar uma consulta com meses
de antecedência.
A enfermidade, em todos os tempos, foi tida como um problema moral e social.
Alguns textos do Evangelho são exemplos desta situação de precariedade e do
processo de exclusão vivida por pessoas que tinham suas doenças relacionadas com a
sua vida espiritual. A cura do leproso (Lc 5,12-16); a cura do paralítico (Mc 2,1-2); a
cura da filha de Jairo e da hemorroíssa (Mc 5,21-43). Esses textos falam-nos de
pessoas feridas em sua dignidade e legalmente marginalizadas. No imaginário
religioso, a enfermidade era considerada como um castigo de Deus. Era uma reparação
por um pecado cometido pelos pais ou pela própria pessoa acometida pela doença. A
enfermidade trazia sempre consigo a marginalização social e a exclusão da
comunidade.
Algumas vezes, a doença não é tida como sinal de precariedade, mas como
algo não permitido e, justamente por isso, a pessoa portadora de uma enfermidade ou
deficiência, deve ser castigada. O castigo pode se dar no sentido estrito da palavra ou
por meio de uma situação vexatória da dependência da caridade alheia. Exemplo da
enfermidade que sugere castigo pode ser encontrada em um dos versos de uma das
cantigas infantis mais populares no Brasil:
Samba-Lelê está doente, está com a cabeça quebrada. Samba-Lelê precisava de umas
dezoito lambadas” (Costa, s/d, p. 23).
Ironicamente, na canção, a pessoa que está com a saúde debilitada e pela
lógica, necessitaria de cuidados especiais, de atendimento médico-hospitalar, ao invés
dos cuidados exigidos, deve apanhar. O imaginário reforçado pela canção infantil é o
de que a doença deve ser vista como algo proibido, algo errado e que deve ser punido.
Implicitamente, a canção reforça a idéia de que as pessoas não têm o direito de
adoecer.
Na sociedade contemporânea, a situação dos enfermos não é muito diferente.
Num mundo que tem como paradigma societal um mercado ditador, marcado pelo
utilitarismo e pela produção, a doença, além de impedir a produtividade, onera os cofres
públicos e é vista como causadora de um prejuízo social. Principalmente, nas classes
menos favorecidas, quem não produz é considerado um peso morto para a sociedade.
Nesse sentido, a cura de uma enfermidade representa a volta à rotina diária, ao
convívio familiar, ao mercado produtor e, conseqüentemente, à inclusão social.
É por isso que, diante de um sistema de saúde que é precário e que não pode
garantir o acesso adequado e o tratamento eficaz aos enfermos, as crenças religiosas
fortalecem-se. Isso se porque as pessoas que estão doentes e os seus familiares,
acabam por buscar na religião uma estratégia simbólica para resolver os problemas que
a sociedade lhes nega. E nesse sentido, a Folia de Reis dos Meninos de Dezembro tem
cumprido um importante papel uma vez que nela, quarenta e cinco por cento das
pessoas entrevistadas disseram ter encontrado a cura de uma enfermidade séria ou a
solução para um problema que lhes atormentava a vida.
Fontoura (1997) cita a Folia de Reis como a maior manifestação do catolicismo
popular na cidade de Uberaba, estado de Minas Gerais. No Estado de Goiás, as Folias
de Reis também estão presentes e assumem caráter de grande relevância na
religiosidade do seu povo. Elas reúnem pessoas vindas das mais variadas classes
sociais, de todas as idades, formação e profissão. Exatamente por isso, vemos indícios
de que a Folia de Reis possa ser entendida como um espaço possibilitador da inclusão
social. Mas de que forma de inclusão estamos falando?
2.3– As multifaces da inclusão social
Para falar da inclusão social é preciso estar ciente da complexidade e das
contradições que envolvem tal categoria e da dificuldade em defini-la do ponto de vista
epistemológico. O difícil empreendimento dá-se pela dinamicidade e abrangência do
termo, mas não nos resta outra alternativa senão a de precisar, conceitualmente, o
termo (inclusão), ou o seu inverso (exclusão), a fim de eliminar interpretações
dubitativas.
Com base em nossas leituras, vemos que a grande maioria das pesquisas e
artigos elucidativos à inclusão/exclusão, tem centrado suas análises em duas vertentes:
na desigualdade econômica, traduzida na pobreza como sinônimo da carência de bens
materiais, de saúde, de trabalho e de justiça social (esfera socioeconômica trabalhada a
exaustão por Karl Marx), ou utilizam esta categoria para tratar de minorias específicas
(negros, deficientes físicos, homossexuais, etc). No entanto, não desconsiderando
estas formas de exclusão, até porque compreendemos que existem ligações diretas ou
indiretas entre elas, fazemos a opção por aprofundarmos a vertente da esfera sócio-
cultural, por entendermos que “excluídos são todos aqueles que são rejeitados de
nossos mercados materiais ou simbólicos, de nossos valores” (Xiberras apud
Wanderley, 2002, p. 17). Em nosso entendimento, é praticamente impossível
desmembrar o mercado material do mercado simbólico, porque existe uma imbricação
ou uma interligação entre eles.
Paugam (2003), num trabalho de pesquisa realizado na França, ao falar do
processo multidimensional que caracteriza “a nova pobreza”, cita a precariedade do
trabalho, a ausência de qualificação, o desemprego prolongado, a incerteza do futuro,
mas também a fragilização dos laços sociais e da vivência das solidariedades
socioespaciais e de classe, como formas de desqualificação social. Dentre outras idéias
apresentadas pelo autor, ele associa o conceito de exclusão ao conceito de identidade,
positiva ou negativa, de crise e de construção dessa identidade.
“O conceito de exclusão social é dinâmico, referindo-se tanto a processos quanto a
situações conseqüentes (...) Mais claramente que o conceito de pobreza, compreendido
muito freqüentemente como referindo-se exclusivamente à renda, ele também estabelece
a natureza multidimensional dos mecanismos através dos quais os indivíduos e grupos
são excluídos das trocas sociais, das práticas componentes e dos direitos de integração
social e de identidade” (Atkinson apud Paugam, 2003, p.16-7).
Nesse sentido, o mundo contemporâneo, marcado pela dinâmica capitalista de
produção, pela competitividade agressiva e opressora, tem inviabilizado as trocas
sociais, tem dificultado as relações interpessoais o que tem contribuído para a difusão
do individualismo exacerbado. É por isso que Sawaia afirma que a exclusão
“é processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais,
políticas, relacionais e subjetivas. É processo sutil e dialético, pois existe em relação à
inclusão como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou um estado, é processo que
envolve o homem por inteiro e suas relações com os outros” (2002, p. 9).
Um núcleo de estudos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP) revela que, na gênese do sofrimento das pessoas que foram entrevistadas,
aparece o sentimento de inferioridade, desvalorização e deslegitimidade social (Sawaia,
2002). Ser validado é ser reconhecido e qualificado. A qualificação passa pela maneira
como a pessoa é tratada na sua intersubjetividade, passa pelo reconhecimento social e
valorização daquilo que a pessoa é e traz como conhecimento e experiência.
Concordamos com a afirmação de Gebara (2000, p. 81) de que “o ser humano constrói
sua humanidade na consciência de seu valor, no reconhecimento mútuo de sua
personalidade e de sua originalidade. Quando o valor faz falta, as pessoas vivem um
mal”.
Bourdieu (2001), numa reflexão sobre a divisão do trabalho religioso e o
processo de moralização e sistematização das práticas e crenças religiosas, faz a
distinção entre uma competência religiosa advinda de um domínio prático,
objetivamente sistemático e adquirida pela familiarização; e um outro saber de domínio
erudito, sistematizado por especialistas e que, geralmente está ligado a uma instituição.
Ou seja, não existe apenas uma distinção entre os saberes e competências, existe um
saber que é legitimado e um saber que é desqualificado pelo corpo de especialistas
“socialmente reconhecidos como os detentores exclusivos da competência específica
necessária à produção de um corpus’ deliberadamente organizado de conhecimentos
secretos (e portanto raros), a constituição de um campo religioso acompanha a
desapropriação objetiva daqueles que dele são excluídos e que se transformam por essa
razão em leigos (ou profanos, no duplo sentido do termo) destituídos do capital religioso
(enquanto trabalho simbólico acumulado) e reconhecendo a legitimidade desta
desapropriação pelo simples fato de que a desconhecem como tal” (Bourdieu, 2001, p.
39).
Desta forma, entendemos que a exclusão social passa pelo material, mediada
pelo sistema de rendas, mas não termina aí, porque existe um outro universo simbólico
composto por uma realidade complexa e subjetiva onde a pessoa pode ficar à margem
de um grupo, de uma Instituição ou de um corpo social, podendo ser impedida de
desempenhar certos papéis e alcançar certos status que a qualificaria como agente e
protagonista de uma história e não apenas como mera reprodutora desta.
Concordamos com o pensamento de Wanderley, quando ela afirma que os excluídos
“não são simplesmente rejeitados física, geográfica ou materialmente, não apenas do
mercado e de suas trocas, mas de todas as riquezas espirituais, seus valores não são
reconhecidos, ou seja, há também uma exclusão cultural” (Wanderley, 2002, p. 17-8).
Dentre os elementos constitutivos desta realidade, podemos citar uma gama de
conhecimentos que são estigmatizados e de saberes que não são reconhecidos
socialmente ou pior ainda, são desqualificados. Sabemos que “há muitas formas de
conhecimento, tantas quantas as práticas sociais que as geram e as sustentam”
(Santos, 2001, p. 328) e que estas formas de conhecimento precisam ser reconhecidas
e validadas.
O não reconhecimento desse saber construído pelas práticas sociais alternativas
implica na deslegitimação e desqualificação desta práxis e, nesse sentido, estaria
contribuindo para a exclusão sócio-cultural. “É preciso, contra o saber, criar saberes e,
contra os saberes, contra-saberes” (Santos, 2001, p. 104).
Vai ficando para nós, cada vez mais evidente, que a religião popular, nas suas
várias formas de expressão, ao considerar a história de vida das pessoas, suas raízes,
valorizar seus saberes, suas crenças, suas verdades, etc, ela possibilita uma inclusão
sócio-cultural desses agentes numa esfera de valores que é reconhecida e validada
socialmente. No entanto, ao mesmo tempo em que a religião popular inclui, social e
culturalmente as pessoas, ela, lançando mão de um poder simbólico, legitima o papel
social e religioso representados por seus agentes.
Por poder simbólico entendemos o “poder invisível o qual pode ser exercido
com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo
que o exercem” (Bourdieu, 2003, p. 7-8). É justamente porque a religião consegue ter o
caráter da sacralidade é que ela torna legítimo, natural e absoluto o arbitrário.
A seguir, tentaremos conceituar o termo legitimação para logo adiante podermos
entender se a religião e, de forma mais específica a Folia de Reis, pode ser entendida
como uma força legitimadora dos poderes.
2.4 – A força legitimadora da religião
Por legitimação entendemos: o processo através do qual um sistema social ou
algum aspecto do mesmo vêm a ser aceitos como justos e são em geral apoiados pelos
que deles participam” (Johnson, 1997, p. 134).
Para Bourdieu (2001), os sistemas simbólicos possuem uma realidade própria
que encontra no campo religioso um terreno propício para as lutas entre as diferentes
empresas de bens de salvação e um campo fecundo para a legitimação social. Isso
porque a religião é para ele um instrumento de comunicação, de conhecimento, ou seja,
é um veículo simbólico, estruturado e estruturante, capaz de possibilitar um consenso
quanto ao sentido dos signos e do mundo. A religião legitima porque oferece um efeito
de consagração e naturalização, reproduzindo uma forma transfigurada dos laços
sociais em laços sobrenaturais. É justamente a dissimulação dessa relação que a
impede de ser reconhecida. Para o autor, toda “legitimação mantém a realidade
socialmente definida. A religião legitima de modo tão eficaz porque relaciona com a
realidade suprema as precárias construções da realidade erguidas pelas sociedades
empíricas” (Berger, 1985, p. 45).
Olhando para o pensamento de Bourdieu, em relação à transfiguração social, à
primeira vista, essa idéia surge como uma artimanha planejada com requinte de
maldade por parte da religião. Mas, não é isso o que verdadeiramente ocorre. Não se
trata de algo planejado, conscientemente, e é justamente porque está dissimulado,
tanto por parte daqueles que a produzem como por parte daqueles que a recebem, que
a força desse simbolismo torna-se tão eficaz. Isso porque a legitimação produz novos
significados, que servem para integrar os significados ligados a processos
institucionais díspares” (Berger, 2002, p. 127). Ou seja, a legitimação torna
objetivamente acessível e subjetivamente plausível os conhecimentos anteriormente
institucionalizados. A legitimação explica e justifica a ordem institucional, outorgando-
lhe validade e dignidade normativa a seus imperativos práticos. “A legitimação não
apenas diz ao indivíduo por que deve realizar uma ação e não outra; diz também por
que as coisas são o que são” (Berger, 2002, p. 129).
Durkheim (1989) assevera que as sociedades, para existirem, produzem
representações que lhes são estruturalmente necessárias. Berger (2002), nessa mesma
linha de pensamento, afirma que os papéis tornam possível a existência contínua das
instituições que se materializam na experiência dos indivíduos e precisam ser
vivificadas, para continuar existindo. Segundo ele, o que a história revela-nos é que os
papéis que representam simbolicamente a ordem institucional na sua totalidade, na
maioria das vezes, estiveram presentes nas instituições políticas e religiosas. Estiveram
presentes nessas instituições, porque elas são portadoras de um conjunto de
conhecimentos objetivados, ou seja, de um conjunto de conhecimentos legitimadores.
O universo simbólico, é apontado por Berger, como a matriz de todos os significados
socialmente objetivados e subjetivamente reais e é a esse universo que pertencem
todas as formas de condutas e papéis institucionais e é , que eles são legitimados.
Segundo Geertz a
“religião é um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e
duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de conceitos de
uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade
que as disposições e motivações parecem singularmente realistas” (1989, p. 104-5).
Por isso, torna-se de fundamental importância compreendermos a estruturação
desse universo simbólico e do processo de objetivação que tornam legítimos os papéis,
a ordem de relações e condutas para avançarmos em nosso estudo e darmos um
passo a mais rumo a um dos objetivos que nos guia que é o de analisar se a Folia de
Reis pode ser entendida como um espaço de legitimação social e religiosa dos foliões.
2.4.1 – Papéis sociais: o “que” são e “como” são legitimados
Por papel social, assumiremos o conceito de que “é um conjunto de idéias
associadas a um status social, que definem sua relação com outra posição. O papel é
um elemento básico de construção de sistemas sociais” (Johnson, 1997, p. 168-9).
Olhando para a sociedade, sabemos que ela, em todos os tempos, traz em seu
cerne uma série de papéis que ela mesma gera e que devem ser desempenhados
pelos atores que ela mesma suscita. Nesse sentido, existe um variegado número de
papéis: papel de pai, papel de mãe, de professor, de aluno, papel masculino, feminino,
etc. O papel estabelece o padrão de conduta segundo a qual a pessoa deve agir diante
de cada situação que a vida lhe apresentar. “Todo papel ocupacional na sociedade, até
mesmo em empregos muito humildes, traz consigo um código de conduta que não pode
ser violado impunemente” (Berger, 1972, p. 89). Ou seja, a sociedade acaba por criar
um script para todos os seus personagens. “Os papéis trazem em seu bojo tanto as
ações como as emoções e atitudes a elas relacionadas” (Berger, 1972, p. 109). Nesse
sentido, todo papel que é desempenhado acaba por acarretar uma certa identidade que
é atribuída, sustentada e transformada pela própria sociedade. Em outras palavras,
“identidade não é uma coisa pré-existente; é atribuída em atos de reconhecimento
social. Somos aquilo que os outros crêem que sejamos”.(Berger, 1972, p.113).
A Folia de Reis dos Meninos de Dezembro da cidade de Santo Antônio de Goiás
é um espaço privilegiado para a representação desses papéis que são construídos e
sustentados pela coletividade. É também um espaço propiciador da construção de
normas e condutas. Existe um código de ética que é criado e legitimado pelo grupo:
bebida alcoólica, desavença entre os membros da Companhia ou destes com a
comunidade , esquivar-se de rezar o terço, sentar-se na hora da oração, colher frutos
dos quintais alheios sem a prévia permissão, são alguns dos exemplos de infrações
que não são toleradas. Sobre essas normas um dos entrevistados afirma:
“a gente tem que ter consciência daquilo que a gente está fazendo. Então se a pessoa
quer entrar na folia ela tem que entrar, mas respeitar as normas que existem dentro dela
porque tem tempo para tudo, né? Então a gente tem que obedecer as regras” (D. G. S.,
secretário, 27 anos, 2003).
E ainda, num outro depoimento:
“geralmente na mesa o embaixador ou o folião chega e fala: olha gente, são seis dias
que a gente tem. Por favor não beba. Não faça isso! Mas muitas vezes são quebradas
essas regras e as pessoas não dão conta (...). Geralmente quando acontece uma coisa
que vai desagradando a gente durante o dia, quando dá no pouso, o embaixador e o folião
pedem e muitas vezes acontece até de tomar a divisa daquela pessoa que estava
desagradando” (H. V., dona de casa, 58 anos, 2003).
Portanto, os seis dias da folia, além de um tempo propício à representação de
papéis, à construção de normas, valores e verdades, é também um tempo privilegiado
do exercício do poder (no depoimento anterior aparece em evidência a pessoa do
embaixador e do folião). Eles estão revestidos de autoridade e são legitimados pelo
grupo de foliões no exercício do poder.
O giro da folia é também um espaço para o exercício da abnegação e ao mesmo
tempo de auto-afirmação para alguns membros da Companhia. Todos os foliões usam
um quepe que eles chamam de divisa. Divisa, como o próprio dicionário Aurélio traduz,
é um sinal divisório, um marco, uma fronteira. Ela é usada para marcar e diferenciar os
foliões das demais pessoas da comunidade. Por exemplo: ir a um bar beber é até
permitido, desde que não esteja com o distintivo de folião. Isso nos remete ao
pensamento bergeriano de que o papel, uma vez assumido, acaba por estabelecer um
padrão de conduta. O depoimento a seguir esclarece essa idéia:
“... a pessoa saiu da folia com a divisa e foi pra um boteco e tomou demais, se embriagou
e veio pra folia e a gente pediu para ele se retirar. A norma é essa: enquanto estiver com a
Companhia usar essa divisa e se for sair pra algum lugar tirar a divisa porque é uma coisa
que a gente tem que respeitar” (M. A S., aposentado, 26 anos, 2003).
Na Folia de Reis dos Meninos de Dezembro da cidade de Santo Antônio de
Goiás, além desse sinal divisório que diferencia os foliões das demais pessoas da
comunidade, existe também uma marca diferencial nos quepes de quem exerce uma
função de destaque dentro da Companhia. Observamos que as divisas do folião do
ano, dos embaixadores e do gerente de giro no ano de 2003 traziam uma cor a mais. E
no ano de 2004, como as fitas eram todas da mesma cor, a diferença fazia-se porque
nas divisas das autoridades existiam três fitinhas a mais em relação aos quepes dos
demais membros do grupo.
Se na Folia de Reis, para cada ator existe um papel a ser desempenhado, e
existe uma hierarquia de poder que é legitimada socialmente, ela nada mais faria do
que prolongar “a existência cotidiana reproduzindo no seu desenvolvimento as
contradições da sociedade, não podendo ser o lugar da subversão ou da livre
expressão igualitária, a não ser de maneira fragmentada” (Pedreira, 1999). Isso nos
remete ao pensamento de Bourdieu (2001), quando ele afirma que a religião é esse
veículo simbólico que tem a capacidade de transfigurar o social de forma tão natural e
harmônica. Será que é essa a estrutura que a Folia de Reis reproduz na relação interna
dos seus atores? E a mulher, que papel ou que lugar ela ocupa no âmbito da Folia de
Reis?
2.5 – O lugar da mulher na folia
Ao falarmos do lugar da mulher dentro da folia queremos fazer presente a
mediação do gênero que não é simplesmente o fato de ser, biologicamente, homem ou
mulher, mas que é fruto de uma construção social. De acordo com Gebara (2000),
gênero é um jeito de ser no mundo e nesse jeito de ser entra a forma que fomos
educados, que somos percebidos e condicionados. Isto é, compreende o jeito que
agimos, é um modo de ser no mundo fruto de uma teia complexa de relações culturais.
Fontoura (1997), ao pesquisar a Folia de Reis de Uberaba, chama as pessoas
que dão sustentação à festa, trabalhando na cozinha, na decoração do rancho, dos
arcos e altares de Folia Invisível. Segundo a autora, nessa Folia Invisível a grande
maioria é de mulheres. São pessoas que estão nos bastidores, mas não aparecem nos
lugares públicos da festa.
Pessoa (1999), ao pesquisar a Folia de Reis das Lages no estado de Goiás,
relembra os papéis feminino e masculino, fazendo uma relação destes com os espaços
ocupados dentro da casa e os espaços públicos. Segundo o autor, a folia acontece num
espaço eminentemente masculino (sala, estradas, roçados, pastagens) e não permitido
às mulheres. Por isso, nenhuma das funções fixas é ocupada por mulheres e Pessoa
chega a definir a Folia de Reis como um grupo itinerante de homens devotos.
Foto 8 – O mutirão que se dá em torno da preparação da comida é uma das marcas fortes da
solidariedade vivida nos bastidores da folia onde podemos ver grande presença feminina.
No entanto, apesar da grande maioria dos participantes da folia ser de homens,
percebemos que esta realidade tem passado por mudanças nos últimos tempos.
Observamos isso nas apresentações dos grupos de folias que participam do Encontro
anual dos foliões
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que tem acontecido ao lado do Santuário de Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro, em Goiânia. Nessas apresentações, tem sido cada vez maior a
presença da mulher. Em algumas delas as mulheres cantam, tocam instrumentos,
vestem-se de palhaças e carregam a bandeira.
Na Folia de Reis de Santo Antônio de Goiás, percebemos que também uma
certa inclusão do elemento feminino. A bandeira tem como alferes uma mulher que foi
incorporada ao grupo e acompanha todo o giro da folia apesar de não estar cumprindo
promessa. Uma mulher é também condecorada como festeira e recebe a coroa na noite
da entrega da folia. A re-quinta (uma voz alta e fina que acabamento aos versos) é
também feita por uma mulher. Instrumentos como o pandeiro e o reco-reco são tocados
por elas que, além da cantoria, também vestem-se de palhaça.
No entanto, estar na folia e desempenhar nela um papel, pode significar uma
forma de inclusão do elemento feminino, mas não isenta as mulheres da
responsabilidade de um papel que foi gerado e gestado socialmente para elas. Algumas
das mulheres que acompanham o giro fazem-no numa parte da jornada porque na
outra parte do dia devem cuidar da organização da casa e cumprirem a
responsabilidade delegada a elas que é a de nutrir a família e cuidar dos filhos. Pois,
“programar a alimentação, dividi-la, guardá-la para que sirva a toda a família é uma
responsabilidade e uma angústia próprias às mulheres” (Gebara, 2000, p. 50). Segundo
a autora o mal não está no tipo de trabalho que é executado, mas na imposição e na
determinação de um papel que se torna um destino ou que são tidos mais conforme a
“natureza” da mulher.
Uma outra questão interessante, observada no âmbito da folia, é que os
palhaços, como descrito no primeiro capítulo, ocupam função de relevância dentro da
Companhia. Em Santo Antônio de Goiás, é formado por um casal e são chamados de
véio” e “véia”. No entanto, um fato curioso chamou-nos a atenção. Os palhaços são as
primeiras pessoas que fazem o contato com os moradores e perguntam se eles querem
receber em suas casas a Companhia dos três reis. São também as primeiras pessoas
que revisam os arcos, adentram nas casas dos pousos e fazem o reconhecimento dos
santos do altar (caso não reconheçam as imagens dos santos podem ficar presos no
altar até que os donos da casa os liberem). Mas o fato interessante é que a véia” pode
até fazer o reconhecimento dos santos, mas o contato com o embaixador como o porta-
voz de um saber pode ser feito pelo “véio”. Isso nos remete ao pensamento de
Gebara (2000, p. 63) quando ela afirma “que o saber é um lugar eminentemente
masculino”. Num outro momento a autora acrescenta que “o poder é distribuído de
modo desigual entre os sexos: as mulheres ocupam em geral posições subalternas na
organização mais ampla da vida social e também na organização das religiões do
Ocidente” (p. 39).
O que aparece na folia, certamente, é produto de uma cultura que primazia
ao masculino, fruto de um aprendizado social e de um imaginário inculcado e
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Esse Encontro anual das Folias de Reis é uma promoção da Secretaria Municipal de Cultura de Goiânia e tem
acontecido pelo 4º ano consecutivo. Em todos os anos mais de 40 grupos de foliões participaram das apresentações.
transmitido de geração em geração. Seguramente, romper essa cultura construída e
imaginário produzido levará ainda muito tempo de lutas e reflexões.
O imaginário encontra, nos rituais, uma forma de estabelecer paradigmas, criar
normas, valores e verdades. Por isso, os rituais sempre foram elementos importantes
no âmbito das sociedades, desde as mais elementares às mais complexas.
2.6 – Rituais: ontem, hoje e sempre
Segundo Durkheim (1989), religião e vida estão intimamente ligadas. Uma, é
expressão e representação da outra. Para ele o entendimento da sociedade se via
religião e vice-versa. Nesse sentido, o sociólogo cita os ritos religiosos como espaços
privilegiados para a compreensão da dinâmica social. De acordo com ele:
“as representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades
coletivas; os ritos são maneiras de agir que surgem unicamente no seio dos grupos
reunidos e que se destinam a suscitar, a manter ou a refazer certos estados mentais
desses grupos” (Durkheim, 1989, p. 38).
Isso significa dizer que em qualquer tempo ou lugar, a sociedade ou um
segmento dela, sai da rotina, extrapola o ordinário e corriqueiro para viver eventos
especiais e extra-ordinários aos quais chamamos de rituais. Estes, são “um conjunto de
manifestações simbólicas, inscrito portanto na ordem da significação capaz de ser lido,
revelado ou percebido por todos os segmentos da sociedade em que se realiza” (Alves,
1980, p. 21). Esses ritos não estão vinculados apenas à esfera religiosa, eles podem
ser profanos, festivos, simples ou elaborados. Nesse sentido, cerimônias como
casamento, formatura, batizado, funeral e até mesmo um jogo final da copa do mundo
pode ser considerado um ritual.
É graças a determinados ritos que as pessoas reúnem-se, fazem memória de
um tempo e atualizam-no, mantendo os elos estabelecidos entre si. Segundo Peirano
(2003), o que está presente no ritual também se encontra na vida cotidiana e vice-
versa. “Os rituais são ao mesmo tempo seqüências estruturadas e estruturantes, no
duplo sentido em que expressam a ordem das coisas e implicam na percepção de que
o mundo e as coisas têm uma ordem e assim deve ser entendido” (Alves, 1980, p. 23).
Segundo Zaluar (1983, p. 36) “a função política do ritual é de afirmar a unidade e
legitimar posições sociais”. Ou ainda, é através dos ritos que a sociedade reconstrói
sentidos, identidades, transmite valores, perpetua conhecimentos socialmente
adquiridos, resolve conflitos, inverte ou reproduz as relações sociais, legitimando-as.
Ou seja, os rituais podem servir tanto para ocultar como para realçar as contradições
existentes na sociedade e refletirem a unidade imaginária do grupo. Os rituais são
portas viabilizadoras do exercício do poder e da representação dos papéis almejados e
não conquistados ou dos papéis vividos no cotidiano e que ali são reproduzidos ou
dissimulados. “É a sociabilidade do rito que constitui sua própria eficácia. Por outras
palavras, a execução dos ritos é um imperativo que não é possível ser evitado porque,
periodicamente, eles recriam o ser moral da sociedade do qual dependem todos os
membros” (Rivière, 1996, p. 46).
Num tempo em que o passado é recordado com saudosismo e a ele é dada uma
conotação positiva, “ao criar algo fora do tempo, o rito permite evitar os riscos do caos”
(Rivière, 1996, p. 78) e a insegurança sentida diante do futuro desafiador. “A nostalgia
se transforma então numa vontade partilhada de produzir um lugar, com sua identidade
local, reconstruindo para esse fim os signos do seu passado como elementos
fundadores do seu futuro” (Jeudy, 1990, p. 120).
Num ritual, o mundo real e o mundo imaginado acabam por fundirem-se sob a
mediação de um único conjunto de formas simbólicas. Todo rito está carregado de
sentido, transmite uma mensagem carregada de valores e verdades e estabelece uma
forma de conduta. Nesse sentido, ao analisarmos os rituais podemos observar
aspectos fundamentais de como uma sociedade vive, pensa, se organiza, se mantém,
se reproduz ou se transforma. A Folia de Reis de Santo Antônio de Goiás traz
elementos importantes de análise nesse sentido e que serão aprofundados no terceiro
capítulo. Isso porque os símbolos sagrados acabam por sintetizar “o ethos de um povo,
o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticas
e sua visão de mundo - o quadro que fazem do que são as coisas na sua simples
atualidade, suas idéias mais abrangentes sobre a ordem” (Geertz, 1989, p. 103-4).
A Folia de Reis é, portanto, um processo ritual carregado de mensagens, de
crenças e significado onde os papéis são assumidos e representados. Em relação aos
papéis tem-se claro indício de que ora uma reprodução ou uma transfiguração,
apropriando-nos aqui de um termo utilizado por Bourdieu, daquilo que ocorre na
sociedade. No entanto, em outros momentos, tem-se a impressão de que uma
subversão desses papéis e a Folia de Reis pode até ser apresentada como um novo
paradigma societal justamente por negar o modelo apresentado. Mas afinal de contas,
que modelo de sociedade a Folia de Reis dos Meninos de Dezembro de Santo Antônio
de Goiás apresenta ou reproduz? Vamos, no próximo capítulo, sinalizar pistas nesta
direção.
CAPÍTULO III
3 - FOLIA DE REIS: ALTERNATIVA PARA UM NOVO PARADIGMA SOCIETAL?
“Precisamos da utopia como o pão para a boca (...). Enquanto nova epistemologia, a
utopia recusa o fechamento do horizonte de expectativas e de possibilidades e cria
alternativas; enquanto nova psicologia, a utopia recusa a subjetividade do conformismo e
cria a vontade de lutar por alternativas” (Santos, 2001, 43, 324).
3.1 – Desenraizamento: um problema da atualidade
Santos (2001) faz uma leitura em relação às transformações ocorridas na
sociedade nos últimos tempos. Segundo ele, a lógica econômica capitalista, sob a
forma neoliberal e a conseqüente apologia do mercado e da livre iniciativa, gerou um
estilo de vida cada vez mais marcado pelo individualismo e pelo consumismo. Ou seja,
“o desenvolvimento societal aumentou a burocracia e a vigilância sobre os indivíduos,
sujeitando-os às rotinas de produção de consumo; criou um espaço urbano
desagregador e atomizante, destruidor das solidariedades das redes sociais de
interconhecimento e de entreajuda “(Santos, 2001, p. 245). A própria dinâmica societal
imposta por esse modelo ditador da produção e do ‘salve-se quem puder’, acaba por
fragilizar os vínculos sociais entre a parentela, o núcleo familiar e dificultando cada vez
mais a inserção em movimentos associativos e participativos o que acaba por culminar
também numa crise do sistema de proteção social.
É portanto, nesse contexto de fragilização dos vínculos sociais, nesse mundo de
ebulição de idéias e de constantes mudanças que a vida delineia diversos panoramas.
Novos horizontes influenciam o jeito de pensar, de ser e viver das pessoas e
transformam os seus trabalhos e suas relações.
De acordo com Rolnik (1997, p. 19), “a globalização da economia e os avanços
tecnológicos , especialmente da mídia eletrônica, aproximam universos de toda
espécie, situados em qualquer ponto do planeta, numa variabilidade e numa
densificação cada vez maiores”. Nesse sentido, a mesma globalização que é capaz de
intensificar as misturas e pulverizar as identidades é também a responsável em produzir
um perfil-padrão de pessoas de acordo com a exigência do mercado. Esses kits
humanos que são produzidos são consumidos pelas subjetividades independente do
contexto geográfico, cultural e histórico em que estão situados. Essa produção
generalizada vem colocar em risco as identidades fixas locais. O risco, não
necessariamente significa o abandono da referência identitária, mas a desestabilização
o que poderia resultar num vazio de sentido por não conseguir assimilar o novo
paradigma proposto e esquecer o ‘velho’ paradigma que estava assentado na
identidade local.
Essas transformações econômicas e sociais que têm ocorrido nas últimas
décadas têm submetido diversos grupos sociais, a um processo de desenraizamento
cultural.
“Um ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de
uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos
do futuro. O desenraizamento é uma condição desagregadora da memória: sua causa é o
predomínio das relações de dinheiro sobre outros vínculos sociais. Ter um passado, eis
outro direito da pessoa que deriva do seu enraizamento” (Bosi, 2003, p. 443).
O enraizamento do indivíduo se num determinado espaço que é real. Nesse
lugar real, ao qual podemos chamar de território, o sujeito experimenta uma sensação
de segurança gerada pelo sentimento de pertença a um determinado grupo social. Mas,
o território é um espaço geográfico que transcende a essa demarcação física. O
território é construído por homens e mulheres que vão assimilando um jeito próprio de
ser que está carregado de sentimentos, de percepções e atravessados por valores e
visões de mundo que também são construídas. O território é um ponto referencial e
constitui o corpo e a alma de um determinado lugar pois o habitante
“precisa adaptar-se a esse habitat, penetrar em sua essência como uma raiz penetra na
terra. Ele precisa viver seu espaço, criar os ‘anticorpos’ que o levarão a resistir ao tempo.
Isso implica dizer que necessitamos gestar regras de convivência social, mecanismos de
defesa e o controle do lugar, para que tenhamos a sensação de quando estamos seguros
ou inseguros. Ao constituir esse espaço, o homem, enquanto ser histórico, se constrói e,
ao mesmo tempo, constrói novas relações sociais” (Ribeiro, 2000).
A Folia de Reis de Santo Antônio de Goiás evidencia uma situação bastante
interessante. Ela nasceu de um grupo de crianças. Crianças que se tornaram adultas,
muitas casaram-se e mudaram da cidade. No entanto, nos seis últimos dias de cada
ano, essas pessoas, que hoje residem em Aparecida de Goiânia, Brasília, Belo
Horizonte e Goiânia, têm um encontro marcado. uma revitalização dos laços
familiares uma vez que a Folia de Reis traz de volta os filhos que saíram do lugar onde
nasceram.
Se entendermos que a função da raiz é fixar o organismo vegetal e retirar do
substrato os nutrientes e a água necessários para a planta, vamos entender o porquê
dessas pessoas terem um encontro marcado e repetirem, anualmente, esse ritual. A
Folia de Reis é um espaço e a cidade de Santo Antônio de Goiás é o lugar para
reencontrarem os amigos, fazerem memória de um tempo dando ao mesmo, novo
significado. Como a grande maioria das pessoas engajadas na folia tem uma origem
rural, o ritual recria esse espaço. São os arcos de bambus, as folhas de coqueiros ou
bananeiras, as comidas feitas nos tachos, o próprio cardápio e a forma de fazer a
comida são também recuperados. A folia ainda é um tempo e espaço apropriados para
o fortalecimento de suas crenças, para o renovar de sua fé, interpretando uma história
sagrada onde os foliões não são atores co-adjuvantes, mas sim, os protagonistas
principais. O depoimento a seguir deixa claro essa idéia:
“Eu gosto de participar da folia em primeiro lugar porque sou devoto dos Santos Reis,
tenho muita neles. Em segundo lugar porque é onde a gente encontra os amigos que
moram longe: o pessoal de Brasília, de Goiânia que a gente, praticamente encontra na
época da folia. Então é uma ocasião que nós temos de nos encontrar, colocar as
conversas em dia e matar as saudades participando do giro da folia” (C. A . V. M.,
motorista, 30 anos, 2003).
Ao “matar as saudades e colocar as conversas em dia” essas pessoas
ressignificam o seu jeito de ser, alimentam suas crenças, recriam e renovam suas
identidades.
3.1.2 - Enraizamento: questão de identidade
Nunca uma expressão esteve tão em voga como a palavra identidade. Talvez
isso se porque ela esteja passando por um momento de crise, sendo ameaçada e
enfraquecida e por isso nos últimos tempos, uma busca de valorização do conjunto
de caracteres que diferencia uma pessoa das outras ou uma classe de outras classes.
“Um dos imperativos da modernidade contemporânea, indiscutivelmente, é a busca da
identidade, isto é, da representação e construção do eu como sujeito único e igual a si
mesmo e o uso desta como referência de liberdade, felicidade e cidadania, tanto nas
relações interpessoais, como intergrupais e internacionais” (Sawaia, 2002, p. 119).
Segundo Rajagopalan (2002), de todas as identidades, a do ser humano é a
mais difícil de ser pensada, exatamente porque ela está constantemente sendo
construída e reconstruída numa tentativa de garantir a sobrevivência. Segundo o autor,
o momento atual é marcado por uma intensa crise de identidade, não no sentido de não
saber quem de verdade nós somos, mas no sentido de conceituar com rigor e
consistência a própria palavra identidade.
Alguns autores, ao invés do termo ‘identidade’, preferem utilizar o termo
‘identificação’, exatamente porque ela é um processo em construção, nunca acabado.
“Embora tenha suas condições determinadas de existência, o que inclui os recursos
materiais e simbólicos exigidos para sustentá-la, a identificação é, ao fim e ao cabo,
condicional; ela está ao fim e ao cabo, alojada na contingência” (Hall, 2004, p. 106).
No entanto, o que não nos deixa dúvida é que a identidade, ou a identificação
(caso façamos a opção por esse termo), não possui um núcleo estável, porque,
constantemente, é construída pelo grupo social e é reforçada pelos sistemas
simbólicos, através dos quais os significados são produzidos.
“É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa
experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos
tornam possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar: a representação,
compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas
(...). Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais
os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar” (Woodward, 2004, p.
17).
Segundo Cohen (1978), é impossível mantermos nossa identidade individual e
nossa postura, num mundo que não conhecemos. Por isso, o mundo desconhecido é
substituído pela crença, num universo, que é simbolicamente construído para dar-nos a
segurança necessária.
Um dos veículos capacitados para criar esse universo simbólico, dar a segurança
necessária e propiciar aos seus membros a construção da identidade como grupo,
reforçando com isso a unidade entre eles e desenvolvendo o sentimento de pertença
comunitária, é a religião.
“A religião identifica o indivíduo com o seu grupo, apóia-o na incerteza, consola-o na
decepção, liga-os ao objetivo da sociedade, aumenta o seu moral e lhe elementos de
identidade. Procura reforçar a unidade e a estabilidade da sociedade, ao apoiar o controle
social, ao ampliar valores e objetivos estabelecidos, e ao dar os meios para superar a
culpa e alienação” (O’Dea, 1969, p. 28).
No entanto, para superar o estado de alienação, não basta fazer parte de uma
religião ou de um determinado grupo religioso. Não basta ser expectador, é preciso ser
sujeito. “O sujeito não é a mesma coisa que a pessoa humana, mas uma categoria
simbolicamente construída” (Althusser apud Woodward, p. 60). De acordo com Parker
(1995), a religião popular figura como um espaço propício para a construção simbólica
desse sujeito.
À medida que a religião popular emerge das bases, leva em consideração os
problemas, as dores, os anseios, as dificuldades e as lutas empreendidas,
cotidianamente, pelas pessoas que sustentam essa base, ela cria oportunidades de
participação, valoriza seus saberes, suas crenças e os retira da postura de tábulas
rasas e de expectadores passivos e os coloca na postura de sujeitos, de pessoas que
constroem suas próprias histórias de esperança e de fé. Dessa forma, “na trama
ordenada de símbolos, gestos e representações, o catolicismo vai-se entrecruzando
com a vida. Dor, alegria, esperança, problemas, anseios, festas, novenas e santos, vão
compondo o cenário do dia-a-dia” (Passos, 2002, p. 169).
Parker (1995) aponta a festa, uma das expressões mais fortes do catolicismo
popular, como uma oportunidade de reconstrução do tecido simbólico das identidades
sociais. Segundo ele, ser devoto deste ou daquele santo assegura um emblema de
identificação coletiva. Talvez, por isso, as grandes romarias e as peregrinações ocupem
espaço tão importante no contexto religioso.
A Folia de Reis e a devoção aos santos magos do oriente figura também como
um elemento identificador entre os crentes peregrinos. Ser folião é partilhar de um
sentimento comum, de uma mesma crença, de uma paixão conjunta que é fortalecida
pelo rito anualmente repetido. A Folia de Reis é um tempo e espaço para fazer memória
de fatos passados, de ensinamentos que estão adormecidos, mas são despertados
pela coletividade e atualizados na vida de cada um.
Bosi (1994) estabelece uma relação entre as lembranças que estão
armazenadas em nossa memória, desde o período da infância, com as construções
materiais. Segundo a autora, um pouco de nós morre junto às paredes que são
destruídas, mas grande parte de nossas lembranças não se perde nas ruínas, porque
é relembrada e reconstituída pelo grupo ao qual pertencemos. Segundo ela, quando
uma parte do bairro é destruída
“algo de si morre junto com as paredes ruídas, os jardins cimentados. Mas a tristeza do
indivíduo não muda o curso das coisas: o grupo pode resistir e recompor traços de sua
vida passada. a inteligência e o trabalho de um grupo podem reconquistar as coisas
preciosas que se perderam, enquanto estas são reconquistáveis. Quando não essa
resistência coletiva os indivíduos se dispersam e são lançados longe, as raízes partidas”
(Bosi, 1994, p. 452).
A memória é reconstituída pelo grupo, mas para Bosi (1994) ela não é fruto da
mera acumulação passiva de dados do passado, mas fruto da inteligência e trabalho
das pessoas. Nesse sentido, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir e repensar
as experiências do passado com as idéias e imagens do presente. É por isso que
segundo a autora, a lembrança de um fato antigo, por mais nítida e viva que ela possa
estar, nunca será a mesma. Isso ocorre porque nós não somos os mesmos, nossa
visão, pensamentos, juízos e valores foram alterados pela vivência transcorrida. A
memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do
passado ser recordado tal como foi porque a memória engloba os esquecimentos e
trabalho de seleção.
Para que as lembranças não sejam esquecidas, elas são atualizadas e
ritualizadas pelo grupo.
Segundo Durkheim (1989), é por meio dos ritos que o grupo reanima
periodicamente o sentimento que tem de si mesmo e de suas unidades. Isso porque,
nos rituais, os indivíduos são revigorados em sua natureza de seres sociais. Nesse
sentido, as festas além de apresentarem-se como espaços da reconstrução da
identidade, apresentam-se como espaço privilegiado para o revigorar das energias,
para o enfrentamento da rotina diária. É sobre elas que pousará o nosso olhar e nossa
reflexão.
3.2 – Festa: uma experimentação do campo do possível
De acordo com Barros (2002, p. 59), no cristianismo trazido pelos missionários
ibéricos, existia, “uma forma de piedade medieval, expressão da penitência dos
pecadores públicos da Europa feudal, ou seja, um cristianismo centrado na dor, no luto
e na devoção à morte”. Mas, apesar de toda essa imagem sombria da cruz, dos santos
martirizados, dos cantos piedosos e dolentes, que foram entronizados pelos
missionários europeus, apesar ainda, da desigualdade econômica e social que violenta
o país, o povo brasileiro não perdeu a dimensão da festa. Exemplo desse caráter
festivo são as imagens do futebol, do carnaval e das grandes festas de santos que são
veiculadas por todo o Brasil e também em outros países como motivações para a
aquisição de grandes pacotes turísticos. É possível dizer que a festa ocupa uma certa
centralidade na vida do povo brasileiro.
“A festa tem como função inserir o Tempo e o Espaço míticos na realidade
humana, pois, diferentes do vazio ou do comum da temporalidade e espacialidade
cotidiana, elas possuem uma ‘qualidade’, uma validade, ontológica” (Camurça, 2003,
p.13).
Segundo Perez (2002), a festa pode ser tomada como um objeto autônomo e
heuristicamente produtivo, porque ela tem uma dinâmica própria de ser que permite a
compreensão da sociedade viver as mais variadas experiências humanas. Enquanto a
vida ordinária classifica e separa, a festa é um espaço privilegiado da reunião das
diferenças. Ela é um ato coletivo que acontece fora do ordinário, fora do temporal e do
lógico. Na festa, o ‘faz de conta’ que são todos iguais não é sinônimo de mentira,
porque o alvo é o sucesso do momento sociável. A festa é sempre uma utopia porque
ela é uma experimentação do campo do possível. De acordo com Perez a
“festa instaura e constitui um outro mundo, uma outra forma de experienciar a vida social,
marcada pelo lúdico, pela exaltação dos sentidos e das emoções. Ela é fundamentalmente
transgressora e instauradora de uma forma de sociação, na qual o acento é dado pelo
estar-junto, pelo mesmo fato da relação” (2002, p. 19).
Pessoa (1993) menciona a festa da saída e da chegada da Folia de Reis e os
dias de giro como uma forma de incluir socialmente os foliões, principalmente, aqueles
economicamente desprovidos. “Pelo menos nesse tempo eles, que são na maioria não-
proprietários, são os sujeitos principais da vida da comunidade local. Estando no
cumprimento dessa ‘obrigação’ sagrada, os foliões são sempre muito cortejados,
comem bem e até ganham cigarro de papel para o uso diário” (p. 139).
Um outro exemplo de reconhecimento social em que os foliões ocupam um lugar
de destaque no Estado de Goiás acontece no grande Encontro anual das Folias de
Reis, mencionado anteriormente. Nesse grande dia os foliões participam da liturgia
oficial da Igreja Católica, são fotografados e entrevistados pela mídia. As bandeiras são
recebidas por pessoas influentes no cenário político, cultural e religioso. Apertar a mão
do prefeito, dedicar a ele uns versos de improviso e pousar para uma fotografia, são
oportunidades que a Folia lhes propiciam. Por outra parte, receber a bandeira e abraçar
os foliões também não deixa de ser uma oportunidade de legitimar um posto político
alcançado. No ano de 2005 aconteceu algo interessante: enquanto o prefeito estava
presente no palco acabou por fazer uma concorrência com os santos que eram
saudados na cantoria.
Na Folia de Reis dos Meninos de Dezembro de Santo Antônio de Goiás, o
privilégio de mesa farta e, cuidadosamente, preparada para os foliões é claramente
evidenciado. Existe uma mesa preparada para os foliões e uma outra mesa para servir
a comunidade. Enquanto, na mesa dos foliões (que ocupa sempre o centro da barraca)
todas as iguarias são servidas em pratos de louças, os refrigerantes servidos em copos
de vidros; a mesa da comunidade é servida com pratos e copos descartáveis e nem
sempre contam com a presença do refrigerante. A primeira mesa preparada, servida e
re-abastecida é a mesa dos foliões.
A festa da Folia de Reis de Santo Antônio de Goiás, é gratuita e acontece com a
participação ativa de toda a comunidade. Nesse sentido, ela diferencia-se do
espetáculo, que o espetáculo, segundo Barros (2002), exige público pagante ou
patrocinadores. O espetáculo não necessita da comunidade porque se alimenta de
espectadores.
Se pensarmos que a festa é comunitária e é sinônimo de gratuidade, vamos
perceber que a grande maioria das festas religiosas do catolicismo popular tem perdido
o principal elemento que as diferencia do espetáculo e tem deixado fora dos seus
salões e de suas quermesses uma grande quantidade de fiéis, economicamente,
desprovidos.
No entanto, essa participação impedida ou impossibilitada pelo fator econômico,
ainda não chegou aos festejos dos Santos Reis. Na folia, o giro, muitas vezes cansativo
ocorrido durante o dia, é encerrado com um jantar festivo à noite. Para que a festa
possa acontecer, existe uma responsabilidade solidária daqueles que possuem uma
situação privilegiada em relação aos demais participantes que é traduzida nas vacas
que são ofertadas, nas leitoas, nos frangos e grãos que são oferecidos. Desde os
ínfimos valores em moeda corrente que são colocados na bandeira, a um ovo que é
doado, um dia de trabalho nos tachos de comida, a uma barraca que é levantada ou um
altar que é enfeitado é possível perceber uma adesão voluntária que contrapõe o
mundo individualizador e mercantilizado. De acordo com Zaluar, a
“festa de santo cria um campo de atividades específico que unifica, no plano simbólico,
classes sociais e diversos agrupamentos de pessoas e que efetivamente reúne pessoas
de uma área local mais ampla do que aquela normalmente abrangida nas atividades
profanas comuns” (1983, p. 118).
Segundo Durkheim (1989), é por meio das exaltações coletivas que a sociedade
gera imagens e situações onde ela se cria e se repõe. Na festa, a sociedade pode
tomar consciência de si mesma.
“A festa memorada fertiliza os corpos para um coletivo reunificador. Faz brotar o
vigor da esperança. Partilha segredos e desejos. Endereça caminhos no horizonte da
espera” (Passos, 2002, p. 190). As festas funcionam como oásis plantados no meio do
deserto. É lugar e tempo para descanso, para distrair-se das usuais preocupações
quotidianas, refazer as energias e recompor as forças já minguadas pela dinâmica
opressora do dia-a-dia. Esse lugar de descanso, de paz e tranqüilidade como um meio
de recuperar o fôlego para enfrentar a rotina diária ficou bastante evidenciado na fala
de muitos dos foliões entrevistados:
“Quando você está na folia você esquece do mundo fora. Você está aqui dentro, você
está de alma limpa, você sente uma pessoa realizada... É por isso que eu gosto de folia e
sempre vou gostar porque eu sei que eu estando aqui eu não estou ocupando minha
cabeça com outras coisas. Eu não vou estar ocupando minha vida com droga, com
bebida, com nada. Sempre eu vou estar com minha mente limpa. Então isso que eu acho:
que o gostoso da vida é isso aí, você passar seis dias da sua vida numa reflexão tão boa
na mente da gente” (R. C. F., pedreiro, 29 anos, 2003).
Numa outra fala a entrevistada diz:
“Eu me sinto bem quando estou aqui na folia. Esqueço os problemas, esqueço tudo. Aqui
é tranqüilo... É paz também” (M. H. G., estudante, 17 anos, 2003).
Um outro entrevistado acrescenta:
“Eu me sinto bem estando na folia. Eu tiro o excesso, a carga negativa. Tudo de bom eu
adquiro aqui, na época da folia” (C. E. A. S., revendedor, 26 anos, 2003).
No entanto, a festa não é o lugar do descanso e da paz. Nela, aparecem
também os conflitos, as discórdias e desentendimentos. Na Folia de Reis dos Meninos
de Dezembro de Santo Antônio de Goiás, nem sempre a escolha dos festeiros e do
folião do ano agrada a todos os participantes e isso acaba gerando discórdias entre os
foliões.
Segundo Zaluar (1983), a festa não é apenas um espaço unificador e de vivência
da gratuidade, ela é também uma oportunidade para os fazendeiros legitimarem suas
posses.
Na Folia de Reis dos Meninos de Dezembro do ano de 2004, os festeiros
ganharam quatro vacas para a realização da grande festa. Segundo os fazendeiros
doadores, eles estavam apenas devolvendo aos santos o que os santos haviam lhes
dado. De acordo com Weber (1994), os fiéis das classes privilegiadas buscam na
religião a legitimação de sua situação de indivíduos economicamente privilegiados.
Além disso, a festa é também uma oportunidade para a ostentação daquilo que o
festeiro conseguiu produzir, comprar e mobilizar através de uma rede de relações. Na
Folia de Reis em Santo Antônio de Goiás, essa rede de relações também aparece
claramente na fala da festeira do ano de 2003.
“Muita gente ajuda porque é questão de amizade. As pessoas doam muita coisa:
macarrão, vaca, porco, a carne que é mais usada. Nesse ano ganhamos três vacas.
Questão de amizade. Tem que ter amizade porque senão você não conta de fazer a
festa” (A F. R., estudante, 17 anos, 2003).
No entanto, nas festas da Igreja tida como oficial, os bezerros, as leitoas e as
prendas diversas são levadas a leilão e publicamente são exaltados aqueles que
podem dar um lance mais alto. uma divisão entre aqueles que podem arrematar
uma prenda e aqueles que não podem; entre aqueles que podem reunir os amigos e
parentes para comerem, publicamente, a prenda arrematada e aqueles que não podem
comer, uma vez que os leilões são vendidos a preços muito mais elevados do que os
preços praticados nos dias comuns.
Bem ao contrário dessa realidade apresentada nos adros da Igreja tida como
oficial, ocorre nos festejos dos Santos Reis. Nesta, as ofertas endereçadas aos santos
são distribuídas de forma gratuita não apenas aos foliões, mas a todos que se fizerem
presentes para o café da manhã, para o almoço ou o jantar.
Um outro dado interessante que ocorre na Folia de Reis é que a festa é rezada e
a reza é festejada. Ou seja, existe uma comunhão entre o ordinário e o extra-ordinário e
sobre essa idéia, deter-nos-emos a seguir.
3.3 – Sagrado e profano se abraçam
Desde os primórdios da existência humana, idéias dicotômicas digladiam-se,
buscando força de afirmação. Céu/inferno; corpo/alma; bem/mal; sagrado/profano são
exemplos de realidades que convivem no mesmo espaço, ora misturam, confundem-se
e, em outros momentos, se distanciam, limitam espaços e se opõem.
No pensamento durkheimiano, o traço distintivo do pensamento religioso é a
divisão do mundo em dois domínios que se distinguem e se opõem: sagrado e profano.
Para Durkheim, “os dois mundos não são apenas concebidos como separados, mas
como hostis e ciosamente rivais um do outro” (1989, p. 71). Segundo o autor, sagrado e
profano pertencem a regiões distintas do universo físico, são gêneros que não podem
aproximar-se e conservar ao mesmo tempo a sua natureza, porque o sagrado é
contagioso. No entanto, a rivalidade presente entre os dois domínios não significa que
um ser não possa jamais passar de um desses mundos para o outro. uma mudança
de estado. Morre-se para uma realidade, para renascer para a outra de uma forma
nova. “Os dois gêneros não podem se aproximar e conservar ao mesmo tempo sua
natureza própria” (Durkheim, 1989, p. 72).
No livro de Ex. 3, ao descrever o episódio da sarça ardente, o autor diz que Deus
chamou Moisés do meio do fogo dizendo: “Moisés, Moisés, não te aproximes daqui; tira
as sandálias dos pés porque o lugar em que estás é uma terra santa”. O que
representaria aqui as sandálias? O sagrado estaria vinculado a um lugar ou a um
tempo?
Para Eliade (2001), o tempo sagrado, tal como o espaço sagrado, não é
homogêneo e nem contínuo para o homem religioso. Há o tempo sagrado (datas
densas de significado) onde o homem fazendo memória do passado, atualiza a
experiência fundante. Há também o tempo profano que são os dias normais, ordinários,
rotineiros. O tempo sagrado funciona como alento para enfrentar a rotina do dia-a-dia.
Através dos ritos, o homem religioso pode mudar do tempo ordinário para o tempo
sagrado sem que essa mobilidade possa oferecer “perigo” para o homem religioso.
Contrapondo o pensamento de Dhurkheim, Rivière (1996) assevera que nem
sempre é possível discernir as fronteiras entre o sagrado e o profano e afirma existir
formas de sacralidade que estão fora da religião, citando os nossos ritos cotidianos
como exemplo de sacralidade.
Marcon (2003) ao estudar as práticas da religiosidade cabocla afirma que a
superação da dicotomia entre o sagrado e o profano é de fundamental importância para
a compreensão do significado das rezas e das festas, porque nestas a pessoa está por
inteira com todos os aspectos da sua individualidade e personalidade. Segundo o autor,
esta forma dicotômica “de apreender a realidade é parte de um discurso
institucionalizado e formal, pautado no racionalismo da ilustração, que se assenta na
dualidade objetividade/subjetividade, cultura/natureza, dominante /dominado” (Marcon,
2003, p. 232).
Cox (1974) em sua obra intitulada a festa dos foliões, ao descrever uma espécie
de carnaval ocorrido na idade média, lamenta existir um hiato, uma separação entre
aqueles que querem gozar a vida e aqueles que querem transformar a sociedade.
Segundo o autor, os cristãos costumavam dançar bastante nos primórdios da Igreja.
Faziam-no nos adros, nas festas dos santos, nos cemitérios e nos lugares de cultos.
Para Cox, o “homem é festivo e imaginoso por natureza. Para se tornar plenamente
humano, precisa o homem industrial do Ocidente, assim como os seus irmãos não-
ocidentais enquanto atingidos pela mesma debilitação, aprender de novo a bailar e
sonhar” (1974, p. 17).
Alves (1980) ao estudar a festa de Nazaré, na cidade de Belém, classificou-a
como um carnaval devoto por reunir devoção, informalidade, alegria, e festa.
Segundo o autor o
“sagrado e o profano, assim, longe de serem opostos absolutos, constituem-se categorias
que operam simultaneamente. A festa de Nazaré é, a um tempo, um conjunto de atos
litúrgicos que celebram um santo padroeiro e também atos de encontro, de solidariedade,
de neutralização de diferenças” (1980, p. 26).
Na Folia de Reis dos Meninos de Dezembro de Santo Antônio de Goiás, o
ordinário e o extra-ordinário conjugam o mesmo espaço e tempo. A reza do terço
convive com as brincadeiras, com as anedotas e piadas. Os momentos de orações e de
cantorias não estão separados da rotina de trabalho das pessoas que preparam os
alimentos e ambientações da festa. Durante o giro da folia, o intervalo entre uma casa e
outra é espaço para se cantar os amores, as paixões não correspondidas, as traições.
Os erros na cantoria, os desafinamentos das vozes, os tombos que os palhaços levam,
os pratos cheios de comidas (geralmente chamados de serras) são motivos para risos e
chacotas entre os membros da Companhia. “O folião não se preocupa muito em
distinguir o que é fé/devoção do que é alegria de se divertir e comer bem às custas dos
Três Santos. Se isso faz parte da vida, faz parte também da devoção ao Santo Protetor”
(Pessoa, 1993, p. 142).
Algo bastante interessante, observado durante o giro da folia, foi a preocupação
com a bebida alcoólica. Nos avisos dados pelo embaixador e nas falas dos
entrevistados, sempre aparecem a preocupação com a cachaça. Uma das normas da
folia reza exatamente sobre a proibição da bebida alcoólica sob pena de perder a divisa
e ter que abandonar o giro. No entanto, o que pudemos observar é que a proibição fica
muito mais nas normas que, verdadeiramente, na prática.
Segundo Pessoa (1993), a cachaça não é um problema moral e sim um
problema social que aflige uma fatia bastante considerável da população brasileira.
Dessa forma, se é um problema social, é evidente que ele também apareça na Folia de
Reis. Em Santo Antônio de Goiás, percebemos que sóbrios e bêbados, compungidos e
eufóricos, devotos e curiosos dividem o mesmo espaço ritualmente unificador da vida
ordinária e da vida extra-ordinária.
Um outro fato peculiar é que na Folia de Reis não existe uma separação
dicotômica entre a ação e a oração. Na verdade, o trabalho e a vida se confundem com
os cantos, com os risos e com a reza do terço. Sobre esse aspecto, deter-nos-emos a
seguir.
3.4 -A urdidura do trabalho e da vida na festa dos Santos Reis
Alves (1980) ao estudar o ritual da festa de Nazaré, na cidade de Belém,
descreve o almoço do Círio como a finalização de um ritual que começa na procissão e
termina na mesa. Segundo ele, nesse almoço especial, está em jogo não apenas o
grupo familiar, mas a estrutura que é revelada. Ele é uma oportunidade para revigorar
os padrões de solidariedade, de ajuda mútua e de reforçar os laços de amizade e
respeito.
Na Folia de Reis de Santo Antônio de Goiás, esse aspecto da solidariedade
vivida através da gratuidade do mutirão faz-se muito presente. A preparação da comida
é uma mostra evidente de nossa afirmação. São mulheres e homens que se oferecem
para enfeitar a casa, matar frangos, capados, leitoas, lavar a louça, limpar a casa e
varrer os terreiros. Oferecem-se para emprestar talheres, pratos e utensílios
domésticos. Existe um intercâmbio de favores onde o mutirão é regido pelas relações
interpessoais de obrigações morais. Nele, não apenas o trabalho é partilhado, mas as
dificuldades, as preocupações, os sonhos, os projetos, as dores e aprendizagens. São
as receitas da culinária, dos chás e das simpatias que circulam e são ensinados.
Foto 9 Pessoas da vizinhança, familiares que moram próximos e distantes reúnem-se para o grande
mutirão solidário. Podemos dizer que existem os foliões que giram de casa em casa, mas também,
nas casas dos almoços e pousos, uma folia permanente de trabalho e doação.
O mutirão é a oportunidade de colocar em dia as conversas, as saudades, os
casos, as histórias, a memória, enfim, a vida. “Halbwachs amarra a memória da pessoa
à memória do grupo; e esta última à esfera maior da tradição, que é a memória coletiva
da sociedade” (Bosi, 1994, p. 55). Nesse sentido, o autor assegura que o fato de
lembrarmos ou esquecermos determinados fatos depende dos grupos de convívio ou
de referências. Os fatos que são testemunhados são objetos de lembranças e
conversas e, logo, são legitimados pelo grupo.
O mutirão solidário que acontece na folia geralmente gira em torno da comida
que é sempre farta e alimenta a todos. A comida é um elemento importante, porque é a
somatória dos esforços materiais e afetivos da comunidade.
3.5 – Mesa farta, apesar da crise
Rivière (1996) ao descrever os ritos profanos, destaca a importância do
cerimonial do comer. Segundo ele, ao comer não é somente o corpo que se constrói,
mas a pessoa como um todo que é socializada pela aprendizagem repetitiva das
refeições. “Não comemos somente para nos alimentarmos, mas também por razões
cerimoniais e sociais, operando uma escolha nas virtualidades alimentares e
consumindo símbolos juntamente com os alimentos” (p. 243).
Desde os mais remotos tempos, a refeição sempre foi um ato integrador. Mesmo
quando as tarefas eram divididas entre homens e mulheres ou entre as criadas das
sinhás, a refeição era um momento de integração porque resultava na soma de
esforços e energia de todo um grupo. Mas, essa situação tem se modificado ao longo
dos anos.
O mundo contemporâneo criou um espaço urbano desagregador que inviabiliza o
fortalecimento da rede de solidariedade. Como um dos exemplos de desagregação
causados pela dinâmica imposta nas últimas décadas, podemos citar o próprio
cerimonial da comida. Cenas de famílias reunidas em torno de uma mesa têm sido cada
vez mais raras. O relógio impiedoso, com seus ponteiros desgovernados e horários
diversos, tem impossibilitado o encontro dos membros familiares. Nas grandes cidades,
o almoço tem sido substituído pelas refeições rápidas feitas na lanchonete mais
próxima. Ou ainda, aqueles que moram distante do trabalho levam a marmita e fazem a
sua refeição na sua seção de trabalho ou nos canteiros de obras.
Foto 10 Mesa típica servida aos foliões. Ela sempre ocupa o lugar central da casa ou da tenda que
geralmente é armada para recepcioná-los. fartura, diversidade de comida, os pratos são de louça e
sempre conta com a presença de refrigerantes.
Uma outra mudança tem ocorrido na forma de preparação da comida. Na zona
rural e nas pequenas cidades o fogão à lenha tem sido, aos poucos, substituído pelo
fogão a gás. Nas cidades maiores, o fogão a gás já perde função para o forno de
microondas. A culinária aos poucos vai sendo substituída pelos produtos pré-cozidos ou
congelados e os rituais tradicionais acabam suplantados por outros costumes.
Um dos costumes do povo goiano, que atualmente já está caindo em desuso, é a
reunião dos familiares e amigos para as grandes pamonhadas
10
. Nessas pamonhadas,
todo um ritual para cortar o milho, limpar e ralar as espigas e amarrar as pamonhas.
Atualmente, as pamonharias multiplicam-se. Pode-se comprar o produto acabado ou a
massa pronta para não se ‘perder tempo’. Afinal, numa sociedade capitalista tempo
equivale a dinheiro.
No entanto, não se pode negar que o mutirão em torno do feitio da comida ou
mesmo o fato de sentar-se à mesa ou em torno de uma churrasqueira (costume ainda
preservado) abre-se o espaço para as conversas, para a resolução de conflitos, para a
evocação das lembranças. Comemos com nossas lembranças (...). Comemos as
lembranças que nos garantem mais segurança, condimentadas com ternura e ritos, ou
seja, as que marcaram nossa pequena infância” (Moulin apud Rivière, 1996, p. 256).
“Comer juntamente com os outros ensina a viver juntos, a manipular um sistema de
sinais e compartilhar uma cultura ao mesmo tempo em que o objeto alimentar” (Rivière,
1996, p. 260).
Esse dado das refeições, da centralidade e da fartura da mesa como resultado
de um esforço comunitário, chamou-nos a atenção no giro da folia. Casas grandes e
pequenas, famílias consideradas “remediadas” e também as economicamente
desprovidas, oferecem aos foliões e a toda a comunidade, mesas fartas e
cuidadosamente preparadas. São pessoas que trabalham o ano todo, economizam,
recebem ajuda dos parentes e vizinhos e oferecem o melhor que podem. “Se em todos
os dias do ano a comida é simples e pouca, no dia da festa come-se muito,
especialmente carne que é símbolo de boa comida” (Pessoa, 1993, p. 142). O
depoimento a seguir esclarece esta idéia:
“No dia da entrega da folia todo mundo ajuda. Um uma coisa; outro outra coisa. Os
festeiros vão nas fazendas e pedem ou às vezes os próprios fazendeiros oferecem uma
vaca ou alguma coisa assim. Então geralmente essas despesas mais caras é
praticamente tudo ganhado. Fica o básico mesmo para os festeiros comprarem. Mas o
povo aqui é muito humano. Todo mundo ajuda todo mundo” (J. B., artesã, 48 anos, 2003).
Uma outra entrevistada acrescenta:
“A festa acontece através da solidariedade das pessoas da família e das pessoas de fora
também. Todo mundo reúne e cada um um pouco. Então a união faz a força e a gente
faz a festa. Todo mundo ajuda. Todo mundo participa” (S. G. O., dona de casa, 51 anos,
2003).
Na festa dos Santos Reis, toda carência material e precariedade são negadas.
Mesmo sem poder negar as evidências da realidade social apresentada, fartura de
comida e abundância de alegria. E mesmo na sua transitoriedade e efemeridade, a
festa de Reis deixa indícios de que existe um outro modelo possível de sociedade.
Segundo Perez (2002), mais do que proporcionar a inversão da ordem estabelecida
socialmente, a festa é um ato de produção de vida.
Na noite da entrega da Folia, chega a reunir para a janta aproximadamente, três
mil pessoas. Não existem convidados, não existem escolhidos, todos estão incluídos na
dinâmica da grande festa. A casa está aberta, os terreiros estão preparados
(geralmente com uma grande barraca feita de lona ou de zinco). Essa forma festiva e
10
Comida típica goiana feita com o milho verde ralado e cozida nas palhas do próprio milho.
coletiva de viver a fé contrapõe-se ao individualismo e à segregação que caracterizam a
ordem capitalista.
No capítulo anterior, apresentamos a religião popular como uma forma de
participação do povo. No entanto, ser incluído nessa dinâmica de participação é muito
mais do que ocupar um lugar numa festa e desempenhar nela um papel. Ser incluído é
ser valorizado, ser qualificado e ser reconhecido. Além do reconhecimento e da
qualificação de um saber e prática de uma experiência religiosa, essa inclusão passa
pelo sentimento de pertença comunitária que é um dos mais fortes elementos
credenciadores das relações intrapessoal e interpessoal. Segundo Jodelet, “o
engajamento e a implicação emocional com relação ao grupo ao qual pertencemos,
conduzem a nele investir sua própria identidade” (2002, p. 61).
3.6 – Pertencer: um verbo que é conjugado
Pessoa (1999), ao pesquisar a Igreja do Evangelho da cidade de Ceres, Estado
de Goiás, constata que esta, apesar de vestir-se de um ideal libertário, socializante e
definido como popular, não encontra a ressonância e resposta que pensava encontrar
nesta camada popular. Segundo o autor, isso se deu porque a prática religiosa assumiu
o caráter político, mas perdeu o encanto do simbólico tornando-se uma crença racional
e secularizada centrada na reflexão do Evangelho e dos problemas da atualidade.
O pensamento de Pessoa (1999) remete-nos ao Campo de Pesquisa onde
entrevistamos um total de quarenta e sete pessoas e estas, unanimemente,
apresentaram-se como católicas. No entanto, na fala do padre de Santo Antônio de
Goiás, dessas pessoas que estão envolvidas na folia, uma quantidade muito pequena
participa das missas e estão engajadas em algum tipo de trabalho paroquial.
Procuramos entender, como a Igreja local estruturou-se enquanto pastoral.
Percebemos que as atividades da Igreja giram mais em torno da realização dos
Sacramentos, onde a competência quase que exclusiva é do ministro ordenado. Os
leigos ministram a catequese para as crianças que se preparam para a primeira
eucaristia e para os jovens que se preparam para a crisma. os cursos de noivos e
batismo são realizados pelo próprio padre.
Bourdieu (2001) faz a distinção entre uma competência religiosa advinda de um
domínio prático que é sistematizado e adquirido pela familiarização e um outro saber
erudito, sistematizado por especialistas e que, geralmente, estão ligados a uma
instituição. Segundo o autor, existe um saber que é legitimado e um saber que é
desqualificado pelo corpo de especialistas. É por isso que “o mesmo camarada que é
‘normal’, quando reza ao seu santo, acompanha a novena do vizinho, ou fica caçoando
com seus companheiros, ‘perde os estribos’ na frente do vigário ou fica com medo de
falar” (Leers, 1977, p. 96).
Muito embora tenha havido uma abertura maior à participação dos leigos na
Igreja Católica após o Concílio Vaticano II e a religião popular tenha sido foco de
discussão e reconhecimento nos documentos de Puebla, Medellín e Santo Domingo,
sabe-se que muitas práticas populares ainda são tidas como supersticiosas diante da
religião oficial. O povo, muitas vezes, é confundido como ignorante e por isso deve ser
considerado apenas como receptor da verdade instituída.
Se espaço para ser ocupado pelos leigos, na Igreja tida como oficial, por que
existem então tantos lugares vazios? Segundo o padre da Igreja de Santo Antônio de
Goiás,
“a Igreja como tal e nós cristãos católicos, deveríamos fazer um bom exame de
consciência no sentido de que não mastigamos a mensagem de Jesus. Muitas vezes
somos simples e meros repetidores de uma mensagem não digerida, não inculturada”
(entrevista, 2004).
E mais adiante o padre acrescenta: “a vida é celebração, é festa, mas também é
ação. Às vezes eu acho que sou muito italiano, muito europeu e custo a adaptar-me a
tanta festança” (entrevista, 2004).
Percebemos, na fala do padre local, a preocupação com uma mensagem que é
transmitida, mas não é assimilada. Aparece também uma preocupação com os
problemas vividos pelos moradores da cidade:
“a comunidade precisa enfrentar com mais sinceridade os seus problemas como o
desemprego, as drogas, problemas de roubos, de rede de esgoto, tratamento do lixo, as
escrituras das casas... Tem um conselho tutelar que está começando a dar uns passinhos,
mas muito fraco ainda. Então tem uma série de exigências que a população mereceria que
não são satisfeitas, mas também, que a população é conivente porque não se organiza”
(entrevista, 2004).
No entanto, olhando para a organização da população de Santo Antônio de
Goiás em torno das folias, não se pode negar o potencial criativo dos foliões na busca
de estratégias e soluções simbólicas para resolver seus problemas emergentes e
produzir, coletivamente, suas representações e práticas religiosas. Por isso, estamos
de acordo com Parker, quando ele afirma que essa forma de religião popular é uma
religião do
“rito e do mito, dos sonhos e da sensibilidade, do corpo e da busca do bem-estar
intramundano. Porém trata-se de uma religião que se afirma na transcendência, e não num
agregado de superstições e de magia...É certamente outra maneira de sentir, de pensar e de
agir, alternativa à racionalidade erudita e ao tipo de racionalizada que é o seu produto. A
popular é antes de mais nada, uma teodicéia popular que sustenta um Deus da vida”
(Parker, 1995 p. 165).
A construção da Igreja de Santo Antônio de Goiás, deu-se no ano de 1959, e,
desse período até o ano de 2001, a comunidade contava com a presença de um padre
que vinha quinzenalmente para a celebração eucarística. Com isso, a comunidade teve
necessidade de organizar-se por conta própria. Nesse sentido, dentre outras
alternativas, podemos apontar as Folias de Reis como exemplo dessa organização
autônoma. Observamos que os foliões, de uma forma aparentemente alienada,
recontam uma história, vestem-se de personagens, desempenham papéis, exercem
lideranças, exibem um certo poder, mas, sobretudo, vivem uma experiência de e
apresentam uma sociedade possível, onde as mesas são fartas e o espírito solidário é
contagiante. Diante de uma crença racional e secularizada, a capacidade de simbolizar,
tão necessária nesses últimos tempos, é resgatada. Fala-se muito mais pelos gestos do
que pelas palavras.
Um outro elemento interessante que ocorre dentro da folia é o sentimento de
pertença comunitária. Pertencer não é a mesma coisa que assistir. Pertencer é tomar
parte, ser proprietário, ter uma relação. Quando perguntamos aos foliões por que a folia
de Reis é importante para eles, ouvimos:
“Isso aqui é uma coisa que é da gente e a gente segue porque gosta, lembra daquele
tempo de infância (...). Levo isso aqui com a maior sinceridade” (A. C. L., pedreiro, 46
anos, 2004).
Um outro entrevistado acrescenta:
“Aqui na folia cada um é dono, cada um tem um pedacinho dela. Então cada um tem que
fazer a sua parte. Eu, pelo menos, faço o melhor que posso fazer e acho que cada um
deles pensa a mesma coisa que eu. Está no que puder ajudar. Por isso que eu falo
que sou curinga na folia porque eu faço de tudo. Eu não escolho o que vou fazer. O que
me pedem para fazer eu estou a disposição para ajudar a qualquer hora” (R. C. F.,
pedreiro, 27 anos , 2003).
E ainda,
“A folia somos nós mesmos, somos a comunidade inteira” (F. H. S., agente de saúde, 27
anos, 2003).
Até mesmo as crianças encontram um motivo para estar na folia:
“Eu gosto de andar na folia para bater o pandeiro. Já tem dois anos que eu estou
andando” (C. C. B. S., estudante, 9 anos, 2003).
Foto 11 – Na Folia de Reis de Santo Antônio de Goiás existe grande presença de crianças e jovens. Eles
recebem a divisa e ajudam, geralmente batendo os pandeiros e participando da cantoria (fazem a voz
alta e fina que dá o acabamento aos versos: re-quinta).
Ao longo de nosso trabalho temos apontado sinais evidentes de que a Folia de
Reis é um espaço possibilitador da inclusão social. Em nosso entendimento, isso se
porque ela, ao levar em consideração a história de vida do povo, considerar suas
raízes, valorizar seus saberes, suas crenças e verdades, ela propicia a inclusão destas
pessoas numa esfera de valores que é reconhecida e valorizada, socialmente. No
entanto, ao mesmo tempo em que a Folia de Reis pode ser considerada como esse
canal de inclusão sócio-cultural, ela pode ser entendida também como o espaço para a
legitimação dos papéis. Sobre esse aspecto, teceremos algumas reflexões a seguir.
3.7 – O que uma folia não faz
Magalhães (2002), ao pesquisar a festa do Divino da cidade mineira de Sabará,
cita a mesma como espaço de encontro coletivo de reconciliação, mas também como
espaço onde desabrocham os desencontros e rixas. Com uma certa ironia, a autora
apresenta a titulação dos membros da festa, afirmando existir uma hierarquia dos
postos, na pretensa corte do Imperador. Magalhães faz alusão aos nomes usados pela
Confraria como herança do antigo regime republicano.
Na Folia de Reis dos Meninos de Dezembro de Santo Antônio de Goiás, alguns
nomes que nos remetem ao poderio também são utilizados: alferes - nome que
relembra uma hierarquia militar- é dado à pessoa que vai à frente e que porta a
bandeira dos Santos Reis; embaixador categoria mais alta de representante
diplomático de um Estado junto a outro Estado ou de um organismo internacional é
dado à pessoa encarregada de tirar os versos e comandar a cantoria; gerente aquele
que gere ou administra negócios, bens ou serviços - é dado à pessoa que faz o trajeto
do giro. O festeiro e a festeira recebem, no encerramento do giro da folia, coroas
douradas e reluzentes, símbolo do poder e da dignidade real.
E não se pode dizer que, ocupar alguns desses cargos que ficam mais em
evidência na Folia de Reis, não deixa de trazer um certo prestígio social. No Estado de
Goiás, são comuns os convites feitos à população pelos meios de comunicação, em
especial pela rádio Difusora de Goiânia, onde são anunciados os nomes dos
embaixadores, dos festeiros e do folião do ano. Essas pessoas evidenciadas, muitas
vezes acabam por tornarem-se os donos da folia, dando a estas os seus próprios
nomes. Pelo menos por um tempo, embaixadores, foliões e festeiros são os centros das
atenções e comentários.
Foto 12 A coroação dos festeiros é o momento mais esperado da festa. Comumente os festeiros que
são coroados permanecem com essa coroa por grande intervalo de tempo e tornam-se figuras centrais
das atenções e comentários.
Em algumas folias, os embaixadores são chamados de mestres e são
procurados pelos membros da comunidade para dar conselhos e orientações. Oliveira
(2003), ao pesquisar o grupo “Três Reis Magos do Oriente” na cidade de Juiz de Fora,
(Minas Gerias) constata que o status do embaixador adquirido pela participação na folia
ultrapassa o tempo do giro e se estende para o cotidiano. Nesse sentido, a autora
afirma que “a casa do mestre Adão é um ponto de referência no bairro, é a ela que
recorrem seus companheiros de folia e seus familiares, sempre que precisam de ajuda
ou orientações” (Oliveira, 2003, p. 31).
Afirmamos, anteriormente, que é através dos ritos que a sociedade reconstrói
sentidos, resolve conflitos, inverte ou reproduz as relações sociais. Nesse sentido, o
ritual da Folia, com os seus papéis e funções, talvez estivesse prolongando a existência
cotidiana reproduzindo assim, no seu interior, as contradições da sociedade onde
uma hierarquia clara de poderes.
Na Folia de Reis dos Meninos de Dezembro de Santo Antônio de Goiás,
observamos que as pessoas do folião do ano e do embaixador diariamente reforçam
suas autoridades através dos avisos dados à Companhia e muitas vezes o “eu”
sobrepõe-se ao pensamento do grupo. Na fala de muitos entrevistados a figura do
embaixador aparece como a pessoa hierarquicamente superior aos demais
participantes. Inclusive na fala dos próprios embaixadores, o dom de “embaixar” os
legitima nesta posição.
No entanto, Pessoa (1993), ao estudar a Folia de Reis das Lages em Goiás,
observa que não existe uma estrutura fixa de poder e de tomada de decisões porque é
na dinâmica da folia, nas várias situações e espaços em que ela está situada, que os
papéis e autoridades sustentam-se.
11
Na Folia de Reis, estudada por nós, observamos que há uma concentração
maior do poder decisório do que na Folia das Lages. Isso se porque a escolha dos
festeiros e do folião do ano, fica, inteiramente, sob a responsabilidade dos festeiros e
do folião da festa do ano anterior. Isso nos remete ao pensamento de Weber (2000, p.
33), quando ele afirma que o “poder significa toda probabilidade de impor a própria
vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento
dessa probabilidade”. No entanto, apesar desse diferencial em relação ao poder
decisório, pudemos notar, ao mesmo tempo, uma certa similitude entre as duas folias
em se tratando da circularidade do poder e da tomada de decisões. Isso ocorre porque
em outros momentos da folia e em outros espaços dela, embaixadores, gerente de giro,
folião, alferes, palhaços, os donos das casas e os pagadores de promessas cada uma
destas pessoas têm a sua autoridade sustentada e legitimada pelo grupo e pela
comunidade. Observamos portanto, que apesar de alguns papéis ficarem mais em
evidência, não existe um poderio fixo e centralizado. Existe sim, uma hierarquia
funcional rotativa que é, extremamente necessária, na dinâmica do giro, da reza e da
festa. O próprio coral das vozes que vão se complementando, deixa clara a
importância de cada uma das pessoas, no desenvolvimento do ritual.
“Na folia, se a pessoa chega e quer participar, ela tem lugar. Aqui não tem aquela história
de ser dono de uma função. A voz da pessoa encaixou naquela situação, ela fica e o
rodízio é feito. Além do mais, serve para descansar o próprio folião” (C. V. S., motorista, 29
anos, 2003).
11
Para melhor entendimento da caracterização das principais funções rituais e organizativas da folia indicamos
consulta de esquema pormenorizado e explicativo em PESSOA, 1993, p. 117.
Mas, se por um lado existe uma circularidade de poderes e papéis entre os
membros da Companhia e os donos das casas visitadas, por outra parte, percebemos
que há um acento diferencial entre os foliões e os demais membros da comunidade. Os
foliões são tidos como os emissários, os porta-vozes, aqueles que falam em nome dos
Santos Reis, mas determinados momentos em que eles até se confundem com os
próprios santos imitados.
3.7.1 – Em nome dos Santos Reis
A história relatada e cantada pelos foliões tem como eixo referencial o Evangelho
de Mt 2, 1-12, onde os Reis Magos protagonizam a cena. Os foliões, ao colocarem-se
em peregrinação, representam os protagonistas da história que caminham em busca do
Menino-Deus. Há, por parte dos foliões, todo um envolvimento de crença e assumência
de papéis diante desta missão. Por outro lado, há, por parte da comunidade, um
sentimento de reverência diante da bandeira e da Companhia. Isso leva-nos a confirmar
a hipótese de que o ritual que envolve os componentes acontece de forma tão intensa,
que a representação é transcendida e torna-se realidade tanto para aqueles que
representam o papel quanto para aqueles que recebem a Companhia em suas famílias.
Não receber a bandeira e a comitiva em suas casas é o mesmo que não receber os reis
peregrinos. Dessa forma, os foliões, que no contexto da cotidianidade, são
considerados como pessoas comuns e às vezes até taxados de bêbados e
desocupados, acabam por desempenhar o relevante papel de mediadores entre os
homens e o Sagrado. Isso remete-nos ao pensamento de Berger de que “os atores
corporificam papéis e efetivam o drama ao representá-lo em um determinado palco”
(2002, p. 104).
Brandão em sua obra: Sacerdotes de viola fala exatamente dessa reprodução
fidedigna desempenhada pelos foliões.
“Os mesmos homens do trabalho agrário cotidiano aparecem por sete dias revestidos de
cumplicidade com os mitos populares de uma história sagrada que todos conhecem por
ali. Na medida que realizam a jornada e cantam de casa em casa, eles reconstituem tanto
esta história, quanto os gestos e as palavras de suas pequenas histórias, tal como
acreditam que tenham acontecido e tal como supõem que reproduzem, com uma
fidelidade que se perde aos poucos, mas que ainda é legítima sem dúvida alguma”
(Brandão, 1981, p. 41).
Couto (2003), ao pesquisar a tradição da Congada na cidade de Bom Despacho
MG, faz uma observação interessante. Ela constata que todos os milagres obtidos por
intermédio da Virgem do Rosário dão-se através dos seus mensageiros. É servindo aos
seus dançadores, de forma direta ou não, que se pode servir à virgem.
Na Folia de Reis dos Meninos de Dezembro de Santo Antônio de Goiás, essa
relação mediadora entre os foliões e o Sagrado também ficou bastante evidenciada. As
promessas geralmente são para dar almoço, lanche ou janta à Companhia. Segundo
“F” (um dos foliões que se vestiu de palhaço na folia, mas também uma das pessoas
que ofereceu pouso aos foliões no ano de 2003) “cada pessoa oferece o melhor que
pode e faz isso tudo com o coração porque não é para os foliões que ela está
oferecendo e sim para os Santos Reis”.
Existem também promessas em que as pessoas deitam-se no chão e devem ser
puladas ou tocadas pelos foliões. É um gesto que desperta a curiosidade dos
presentes, mas é vivido com muita comoção tanto por parte do penitente como por
parte dos foliões. Observamos que um toque respeitoso, um toque mediador, um
toque sagrado. Vejamos o que nos diz uma devota dos Santos Reis:
“Então eu peguei com Santos Reis e fiz uma promessa que se Santos Reis curasse o meu
filho ele ia deitar embaixo do arco como se estivesse morto. Ele deitava, colocava a mão,
eu ajoelhava do lado e doze foliões colocariam o do lado da dor que ele tinha e
passavam. Foi feito isso durante sete anos...” (T.G.S., dona de casa, 51 anos, 2003).
O depoimento da entrevistada levou-nos a um questionamento: teria alguma
relação entre os foliões que tocam o devoto e o número de apóstolos que foram
convidados para seguirem o Mestre Jesus? Ao ser indagada a entrevistada não soube
dar-nos maiores explicações em relação ao número de anos em que o voto deveria ser
cumprido, nem do número de foliões e do toque mediador dos mesmos. Disse apenas
que foi esse o sentimento que veio em seu coração, no momento do seu desespero.
Talvez aqui, o imaginário cristão internalizado de forma inconsciente, tenha falado mais
alto, no momento da devota efetivar o seu pedido.
No entanto, ao perguntar a uma outra entrevistada o porquê do toque do folião,
ela respondeu:
“com certeza é porque o folião tem mais fé, ele tem mais força com Santos Reis. Certa vez
o Bira, quando foi festeiro, me falou que quando a gente ganha a coroa, a gente sabe que
naquele ano a gente não vai morrer porque a gente vai fazer aquela festa. Então é por
isso: os foliões são mais protegidos pelos três reis” (I. C., aposentada, 68 anos, 2004).
Na entrega da folia do ano de 2003, uma devota também se deitou, na porta de
entrada (debaixo do arco), para agradecer aos Santos Reis, cumprindo sua promessa e
acertando suas contas com os santos. Assim ela descreveu o seu voto:
“O voto que eu fiz foi em intenção do meu filho “L”. Ele tinha um problema nas pernas e
usou um aparelho durante um ano e por isso ele só ficava deitado, não podia correr e nem
brincar. Então eu pedi com muita fé, e os Santos Reis mais uma vez intercederam
juntamente a Jesus, e ouviu minhas preces. Eu prometi que se meu filho fosse curado, e
no momento que ele fosse ao médico recebesse alta, eu ia deitar e os foliões que
acompanharam a folia durante os seis dias colocariam o em cima de mim como se
estivesse pisando naquela doença que passou na vida do meu filho...” (M. A . G., serviços
gerais, 29 anos, 2004).
Ao ser indagada sobre o porquê do toque dos foliões a entrevistada respondeu:
“Eu senti no momento que os foliões ao percorrerem a folia nos seis dias, triscando um pé
em mim, eu estaria no lugar do meu filho e ele seria curado. Os foliões representam como
se fosse os três reis magos, naquela fé, naquela luta. Eles não cansam. Para eles não tem
barreiras: enfrentam chuva, sol. Então aquilo para mim foi muito gratificante. Fiquei muito
feliz, recebi a graça. Hoje o meu filho não usa o aparelho mais e percorre a folia” (M.
A . G., serviços gerais, 29 anos, 2004).
Ainda falando sobre legitimação, Brandão (1977), fazendo a descrição das Folias
de Reis de Mossâmedes (GO), percebeu que a escolha de um proprietário de terras
para ser festeiro permanece como regra, mesmo que isso não seja assumido pelo
grupo de foliões.
Pessoa (1993), ao relatar os cinqüenta anos da Folia de Reis das Lages (GO),
constatou que dos cinqüenta festeiros apenas nove destes não eram proprietários de
terras, quando fizeram a festa. Isso remete-nos ao pensamento de Bourdieu (2003),
que aponta a classe dominante como o lugar da luta pelos princípios de hierarquização,
quando as frações que dominam, cujo poder está assentado no capital econômico, têm
em vista como uma das formas de impor a legitimidade de sua dominação a produção
simbólica. É, justamente, por isso que Pessoa (1993) aponta a folia como um dos
mecanismos mais eficazes de legitimação das condições sociais. Isso se porque as
práticas religiosas funcionam como um instrumento importante de fortalecimento da
hegemonia local. Onde, quem tem o controle religioso,
“pode ganhar o consentimento dos dominados à dominação, de modo que as práticas
sociais impostas pelas relações sociais de produção aparecem na consciência dos atores
sociais não como imposições, mas como atos voluntários ou deveres morais” (Oliveira
apud Pessoa, 1993, p. 138).
Já em Santo Antônio de Goiás, percebemos que a escolha dos festeiros não está
vinculada e nem relacionada com a classe social de maior poder aquisitivo. Essa
escolha é muito mais motivada pela relação de amizade ou de parentesco do que pela
classe social a que estas pessoas pertencem. Os festeiros não necessitam ter boa
condição econômica, uma vez que não necessitam arcar com as despesas da festa.
Isso porque recebem doações em carne, grãos e dinheiro provenientes dos fazendeiros
da região e de toda a comunidade. No entanto, mesmo não sendo detentores de
posses, ao fazerem a festa, distribuírem as esmolas dos Santos Reis em forma de
comida, os festeiros reafirmam também uma posição. Segundo Zaluar (1983, p. 38).
“a relação entre o festeiro que tradicionalmente redistribui o que foi recolhido dos
promesseiros pela Folia, e seus convivas, geralmente a gente mais pobre das localidades,
acentua ritualmente os padrões morais de relação entre patrões e lavradores, entre ricos e
pobres, entre poderosos e dependentes”.
Em Santo Antônio de Goiás, os festeiros são vistos como as pessoas que
recebem os Santos Reis e dão a festa para a comunidade, distribuindo a comida para
todos. Na noite do encerramento da folia, aparece gente de todos os lados. A rua fica
repleta. Muitas pessoas jantam e levam pratos feitos para suas casas.
Se por um lado, não percebemos a legitimação de uma classe social,
percebemos que existe uma outra forma de poder que é legitimado. Assim como a
Igreja, administradora dos bens de salvação, torna legítima a ação dos seus
representantes como os donos da ortodoxia e da competência sagrada, os foliões, ao
serem revestidos de um papel simbólico, autolegitimam-se e são também legitimados
pela comunidade. Mas, isso não significa que seja um poder conscientemente
almejado, fruto de planos diabólicos e intencionais.
A Folia de Reis é repleta de construções simbólicas que torna plausível cada
gesto, palavras e ações. Fontoura (1997) esclarece essa idéia quando afirma que “o
imaginário da Folia de Reis reside nos gestos, cerimônias, objetos considerados
sagrados e na memória oral: crenças e casos associados a acontecimentos e situações
rituais da folia, que legitimam e consagram as várias celebrações que a compõem”. Na
verdade, todo o imaginário construído em torno das bênçãos, mas também dos castigos
dos Santos Reis, fortalecem o ritual e o poder daqueles que o vivenciam. São muitos os
casos veiculados pelos foliões, de pessoas que foram castigadas, que perderam gado e
animais de estimação, porque não receberam a Companhia em suas terras ou em suas
casas.
A esse respeito, uma das entrevistadas diz:
“Eu sei o quanto o pessoal de Santo Antônio é religioso e Santos Reis é muito importante
para eles porque tem muita gente aqui que recebe castigo de Santos Reis e recebe graças
de Santos Reis” (A .X. S., cozinheira, 59 anos, 2004).
Ao ser indagada da situação em que Santos Reis é vingativo, ouvimos:
“Santos Reis é vingativo numa situação de crítica porque tem muita gente que critica. Eu já
ouvi falar de gente mais velha que contava muitas graças que eles faziam, mas também
contava os castigos que eles davam para o pessoal como uma forma de corrigir” (A .X. S.,
cozinheira, 59 anos, 2004).
Segundo Bourdieu (2001), a pessoa do leigo é objetivamente definida como
profana, no duplo sentido de ignorante da religião e de estranho ao sagrado. O corpo
de administradores do sagrado, constitui a base do princípio da oposição entre o
sagrado e o profano. O leigo, por ser possuidor de um domínio prático dos esquemas
de pensamento e de ação que foram objetivamente sistematizados, é levado a pensar
que ele não é dotado de graça especial, justamente por não possuir esse saber
sistematizado, no campo da doutrina. Por isso, ele é visto como alguém que não tem
competência para gerir os bens de salvação e é mantido à distância.
Destarte, a Folia de Reis sai do domínio dos donos da ortodoxia tida como
sagrada, e vai para o domínio prático e da experiência. A representação de um papel
sagrado dá-se de uma forma tão intensa que, no reconhecimento do poder dos santos
que fazem milagres, mas também castigam, está o reconhecimento do poder daqueles
que são os seus representantes legítimos: os foliões.
E assim, a cada ano, esse ritual é repetido e mais uma vez Santos Reis
despendem-se para que embaixadores, festeiros, cantadores, serventes, cozinheiras,
palhaços, alferes...voltem às suas vidas ordinárias. É a história que é vivida e
alimentada quando se repete a cada ano.
3.8 – Santos Reis despedem-se, mas voltam no ano que vem
A entrega da folia é uma solenidade especial. É o momento de cantar o
nascimento do Menino-Deus e visitá-lo na manjedoura que se faz presente no altar.
Apesar de extenso, fizemos a opção em colocar aqui esses versos, porque eles cantam
o eixo central da folia. É assim que os Meninos de Dezembro saúdam o nascimento de
Jesus:
Oh! Meus nobres foliões, bendito vamos rezar;
vão chegando e vão saudando fazendo pelo sinal.
Bendito louvado seja, louvado seja bendito;
vamos fazer a saudação do nascimento de Cristo.
25 de dezembro todo o campo floresceu;
canta o galo anunciando o rei da glória nasceu.
25 de dezembro da meia noite pro dia;
nasceu Cristo redentor, filho da Virgem Maria.
Esperava ser nascido em castelo de ouro fino,
debaixo de uma choupana foi nascido Deus-Menino.
Os três Reis quando souberam que era nascido o Messias,
partiram do Oriente chegando em breves dias.
Os três Reis quando partiram do porto do Oriente,
foi guiado pela estrela de um só Deus Onipotente.
Chegando em Jerusalém a estrela então parou,
na casa do Rei Herodes os três Reis então portou.
Perguntaram ao Rei Herodes se era nascido o Messias,
Rei Herodes respondeu que ele ainda não sabia.
E chamando seu profeta perguntou suas idéias
Jesus Cristo foi nascido em Belém lá da Judéia.
O Rei Herodes então pediu para eles informar:
veja que menino é esse que eu também quero adorar.
Quando foi no outro dia a estrela desfechou
para o lado de Belém onde está nosso Senhor.
Saiu a virgem Maria vestida de virgem
era os famosos três Reis Magos e o anjo Gabriel.
Os três reis abriram os cofres para a Jesus ofertar,
o primeiro trouxe ouro para o seu trono enfeitar.
O segundo trouxe mirra para seu altar mirrar,
o terceiro trouxe incenso para sua missa incensar.
Deus te salve casa santa onde Deus fez a morada,
onde mora o cálix bento e a hóstia consagrada.
Os três Reis foram avisados pelo anjo do Senhor,
ao voltar para suas casas por outra estrada passou.
Bendita louvada seja no céu a Divina Luz,
já fizemos a saudação do nascimento de Jesus.
Em algumas folias, o nascimento chega a ter vinte e cinco estrofes. Em outras,
canta-se de forma mais abreviada, mas sempre com o cuidado de preservar a essência,
ou seja, o eixo central que está presente em Mt 2,1-12.
Segundo Zaluar (1983), a eficácia da festa consiste em ajustar contas com os
santos e também com a tradição para retomar a vida rotineira com as normas e valores
relembrados e reavivados.
É essa repetição contínua, materializada nos rituais, que inculca valores,
relembra comportamentos, ativa a memória, reaviva crenças, reconstrói a identidade e
o ethos norteador que dá plausibilidade às suas vidas. Pois,
“diante de situações novas e de transformações sociais em escala crescente, torna-se
necessário criar âncoras identitárias que passem a imagem de uma referência ancestral,
visando promover um estilo padronizado mas extremamente cerimonial e pomposo, dado
que busca a manutenção de uma ‘tradição’. O resultado bem sucedido desta construção é
a coesão social e a legitimação de instituições e de autoridades” (Camurça, 2003, p. 15-6).
Weber (2000) descreve a ação tradicional como aquela nascida e perpetuada por
hábitos, costumes e crenças. Segundo ele, nesse tipo de ação o autor obedece
simplesmente a reflexos sedimentados e enraizados por longa prática, independente da
emoção e um objetivo pré-concebido. No entanto, Giddens (1991, p. 107) contrapõe
essa idéia ao afirmar que a “tradição é rotina. Mas ela é uma rotina que é
intrinsecamente significativa, ao invés de um hábito por amor ao hábito, meramente
vazio”.
Na Folia de Reis de Santo Antônio de Goiás, percebemos que a tradição é
resultado dessa rotina significativa. Em muitas casas visitadas, vimos gestos repetidos
que eram motivados pela saudade de pessoas que já não vivem mais. Numa delas, a
moradora ao receber a bandeira andou com ela em todos os cômodos da casa. Ao ser
indagada, respondeu-nos: “minha mãe fazia isso e eu também faço. É para abençoar a
casa da gente e todos os cômodos” (M. A . P. S., dona de casa, 34 anos, 2004).
Das quarenta e sete pessoas entrevistadas, vinte e oito destas disseram estar na
folia porque foram levadas pelos avós, pelos pais ou familiares. Daí percebermos que a
tradição, nesse sentido, “contribui de maneira básica para a segurança ontológica na
medida que mantém a confiança na continuidade do passado, presente e futuro, e
vincula esta confiança a práticas sociais rotinizadas” (Giddens, 1991, p. 107).
Percebemos, também, que uma vez cumprido o dever ritual, os foliões voltam à
vida ordinária com mais energia e com mais ardor, não apenas porque colocaram-se
em relação com uma fonte superior, alimentaram sua e reabasteceram suas forças,
mas também porque, pelo menos por alguns dias, mesmo que de uma forma provisória,
puderam realizar um nivelamento social, fruto de um anseio coletivo de que não haja
divisões e nem exclusões.
A festa é ainda, uma forma de resolver simbolicamente, as contradições
presentes na sociedade. Num mundo caótico, em que as soluções propostas e não
encontradas agudizam-se, a presença da utopia faz-se mais necessária do que nunca.
“Precisamos da utopia como o pão para a boca” (Santos, 2001, p. 43). A utopia é o
vislumbrar de novas possibilidades e a soma das vontades humanas diante de uma
realidade que não é concreta, mas que pode vir a ser. “Enquanto nova epistemologia, a
utopia recusa o fechamento do horizonte de expectativas e de possibilidades e cria
alternativas; enquanto nova psicologia, a utopia recusa a subjetividade do conformismo
e cria a vontade de lutar por alternativas” (p. 324).
A Folia de Reis, como todo grupo social, não está isenta dos conflitos que são
próprios dos humanos. Nela, há contradições, rixas e disputa de poder. Mas também há
solidariedade, acolhimento, espaço para participação, o reconhecimento dos
valores de cada um, a valorização de um saber advindo da prática e da experiência
e, por isso, ousamos apontá-la como uma referência para um paradigma inclusivo de
sociedade. Isso porque ela, como festa que é rezada,
“é sempre uma volta ao símbolo, à corporeidade expressiva, ao sentimento e à
imaginação. Suas regras são distintas; se introduz uma moral, uma sociabilidade, uma
economia e uma lógica que contradiz a todos os dias... Através da festa, o povo se liberta
das normas e opressões que lhe são impostas: zomba dos deuses, dos princípios e das
leis” (Parker, 1995, p.163-4).
Assim entendida, a festa seria uma válvula de escape capaz de aliviar o peso do
fardo da cotidianidade, recompondo as energias e esperanças para enfrentar os
problemas e contradições apresentados pelo mundo contemporâneo.
A entrega da folia é o dia da grande festa. É momento solene de agradecimento
pela caminhada empreendida nos dias do giro. É dia de fazer a escolha dos festeiros e
do folião do ano. É dia de confraternização. É o momento de agradecer pela caminhada
empreendida, pelas casas que se abriram para acolher a bandeira e a Companhia. É
momento de pedir aos Santos Reis vida e saúde para todos os foliões renovando a
promessa de voltar no ano que vem e, mais uma vez, caminhar de casa em casa e ser
os protagonistas de uma história sagrada.
Foto 13 A casa é cuidadosamente preparada para a entrega da Folia. Nesta, a parede que fazia fundo
ao altar foi recoberta com um painel alusivo à visitação realizada pelos Santos Reis.
Viva Santos Reis! Viva! Viva os cozinheiros! Viva!
Viva os foliões! Viva! Viva os serventes! Viva!
Viva os festeiros! Viva! Viva toda a comunidade! Viva!
CONCLUSÃO
Não podemos deixar de mencionar o quão desafiador e instigante foi pesquisar o
ritual da Folia de Reis. Ao admitirmos que as formas de vida são organizações
complexas é preciso assumir as falhas que nenhum instrumental de pesquisa poderá
preencher. Pesquisar seres em constante ebulição é lidar com a subjetividade que torna
precária toda e qualquer forma de análise, porque há histórias e verdades que escapam
ao nosso olhar e entendimento. Isso nos remete ao pensamento de Certeau, quando
ele afirma que “a linguagem popular diz uma coisa querendo significar outra” (apud
Passos, 2002, p. 165).
É por isso que, embora enriquecidos pela experiência construída, sabemos que
os desafios para uma compreensão ampliada e profunda do ritual e das relações
tecidas no âmbito da Folia de Reis permanecem. O ponto de chegada não representa o
fim, não representa uma verdade fechada, mas apenas uma pausa para um descanso
reflexivo, no sentido de abrir possibilidade para novos enfoques e pesquisas.
Parker (1995) assevera que, quando a coletividade, existencialmente
confrontada, vê-se diante de uma situação-limite que ameaça a vida, ela reclama o
estabelecimento de um nexo social, um cosmo sagrado que lhe a possibilidade de
reforçar essa coletividade e oferecer um sentido coletivo a esses atores. Essa
segurança é vislumbrada através dos ritos.
Nesse sentido, compreendemos que o ritual da Folia de Reis dos Meninos de
Dezembro de Santo Antônio de Goiás cumpre um importante papel. O de reunir antigos
moradores do lugarejo que hoje estão vivendo em Goiânia, Brasília, Aparecida de
Goiânia e Belo Horizonte. E, o encontrar os amigos, reviver as suas saudades, ativar a
memória que foi construída na coletividade, reavivar os seus valores e crenças é uma
forma de constituir um grupo social.
Nesse grupo social, existe um jeito próprio de ser que está carregado de
sentimentos, de percepções e atravessados por valores e visões de mundo que
funcionam como âncoras identitárias. Nesse sentido, a Folia de Reis seria então uma
forma de reunir o povo como sujeito histórico, capaz de interpretar, criar e recriar a sua
própria cultura. Seria um espaço de busca de autonomia e tomada de consciência de
que eles, como sujeitos e não mais como espectadores, possuem uma maneira peculiar
de viver e exprimir sua fé.
A Folia de Reis é, portanto, num tempo de erudição, de linguagem sofisticada
que divide, que separa e exclui, uma possibilidade de participação efetiva no campo
religioso. Mas, não é uma participação qualquer. O ritual da Folia de Reis é capaz de
transformar pessoas comuns em personagens centrais de uma das mais importantes
histórias da humanidade ocorrida no âmbito do cristianismo.
Por outra parte, sabemos que o modelo de sociedade apresentado ao povo
brasileiro sempre esteve fortemente assentado em torno de um conjunto de hierarquias
que são reforçadoras dos laços de dominação. Basta olharmos para o cenário
econômico, político e cultural.
Olhando para a sociedade contemporânea, percebemos que o cenário não é dos
mais animadores. Existe um estilo de vida marcado pelo individualismo e consumismo
onde os nculos sociais estão cada vez mais fragilizados . Em contraposição a esse
espaço desagregador e destruidor das solidariedades, ousamos apresentar as Folias
de Reis. Em nosso entendimento, apesar das contradições que aparecem no ritual,
porque são inerentes à pessoa humana, as folias ainda figuram como um espaço que
consolida e viabiliza as amizades e a vivência da solidariedade e das relações de
entreajuda que são concretizadas nos mutirões que surgem em função dos pousos e
almoços oferecidos à comitiva dos Santos Reis. Isso dá-se porque ela acaba por
consagrar algumas aspirações coletivas e descartar outras.
As mesas fartas, a gratuidade da comida e o acesso garantido a todos que se
fazem presentes, sem a necessidade de convite, representa um outro modelo de
sociedade que vive na utopia dos foliões. Apresenta ainda, à Igreja tida como oficial,
que na grande maioria das vezes, tem suas quermesses privatizadas a um grupo
privilegiado de pagantes, uma alternativa de celebrar a de uma forma inclusiva e
comunitária.
Percebemos ainda, que num tempo em que a Igreja, tida como oficial, não
possuía a presença de um ministro ordenado que pudesse “assistir” a comunidade de
Santo Antônio de Goiás, esse grupo de leigos buscou autonomia, organizou-se a seu
modo e buscou caminhar mesmo sem a presença e sem a tutela do clero.
A Folia de Reis dos Meninos de Dezembro é um exemplo dessa organização
autônoma. Ela abarca homens, mulheres, crianças, deficientes, letrados, analfabetos,
empregados, desempregados, sóbrios e alcoólatras. Segundo os seus integrantes, para
fazer parte do grupo ninguém precisa receber um convite especial, basta ser devoto
dos Santos Reis.
A Folia de Reis, ao considerar a história de vida das pessoas, ao considerar suas
raízes, valorizar seus saberes, suas crenças e suas verdades, ela possibilita uma
inclusão sócio-cultural desses agentes numa esfera de valores que é reconhecida e
validada socialmente. No entanto, ao mesmo tempo em que a folia inclui, social e
culturalmente as pessoas, ela, lançando mão de um poder simbólico, legitima o papel
social e religioso representado por seus agentes. “O poder simbólico é, com efeito, esse
poder invisível o qual pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não
querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (Bourdieu, 2003, p. 7-
8).
Esse poder simbólico, essa vida diferente que é idealizada e sonhada, é
presenteada pela festa. “A festa permite todas as audácias e inovações sociais: ela é o
que torna possível, pelo menos em pensamento, o que nos é cotidianamente
apresentado como impossível” (Rousseau apud Mériot, 1999, p. 8). Nas festas: as
coroas, os postos sociais, o protagonismo de uma história, o sentimento de pertença a
um grupo, um tipo de saber que é reconhecido e validado socialmente, a proximidade
do Sagrado que os credencia como mediadores dele, o socorro que é negado pelos
poderes públicos é encontrado nos santos ...Eis o que, pelo menos temporariamente,
uma Folia de Reis é capaz de fazer!
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popular. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
ANEXOS
ORAÇÃO REZADA NA SAÍDA DA FOLIA
Quão suave vai ser a estrada por onde iremos passar
E as casas que nós visitarmos santas bênçãos os Reis vão deixar
Seguiremos a estrela Senhor até chegarmos lá em Belém
Visitar o Menino-Deus que nasceu para o nosso bem
Ao seguirmos nossa jornada Santos Reis a nos guiar
As promessas que todos fizeram para o céu eles vão levar
Ao receber o brilho da estrela que no Oriente apareceu
Avisando aos três Reis Santos que o Menino Jesus nasceu
Pediremos a estrela guia que seu brilho nos conduza
Pra chegarmos lá em Belém onde está o Menino Jesus
Despedindo do morador e todos aqui também
Pediremos vida e saúde para voltarmos no ano que vem
CANTO PARA A CHEGADA DA FOLIA NO POUSO
Ai ô de casa morador
Meus três Reis aqui chegou
Ai girando de mão em mão
Na sua casa chegou
Ai senhores donos da casa
Os três Reis vem perguntar
Ai como vai sua saúde
E também sua família
Ai sei que vai muito bem
Conforme Deus vai ajudando
Ai os três Reis aqui chegou
nesta casa nesta hora
Ai encontrou Nossa Senhora
Perto de um arco de flor
Ai Deus te salve nobre arco
Todo enfeitado de flor
Ai Deus te salve nobre arco
E as mãos que te enfeitou
Ai pode trocar as bandeiras
E meus três Reis passam pra frente
Ai segue, segue as bandeiras
Até chegar lá no altar
Aonde os Três Reis Santos vão descansar da viagem
Ai senhores donos da casa
Os Três Reis vem perguntar
Se aqui veio portador pedindo para jantar
Ai se vós deu consentimento ponha
As bandeiras no altar
CANTO PARA A SAÍDA DA FOLIA DO POUSO
Ai quando o dia amanheceu
Os três Reis se levantou
Ai pra continuar sua viagem
Visitar os moradores
Ai Deus vos pague o alimento
Ai que vós deu para a companhia
Ai a despesa que vós fez
Os Três Reis quem vão pagar
Ai eles estão lá no céu
Pedindo a Deus por vocês
Ai Deus vos pague o agasalho
Ai que cobriu nossa bandeira
Ai Deus vos pague o agasalho
Ai que vós deu para os instrumentos
Ai os Três Reis é milagroso
E nunca vai te faltar o pão
Ai se despede da bandeira
Ai que ela agora vai sair
Ai ela segue a nossa guia
E o milagre fica aí
Ai Deus te salve nobre altar
Todo enfeitado de flor
Ai Deus nobre altar
Morada da Santa imagem
Ai Deus te salve nobre altar
E as mãos que te enfeitou.
ROTEIRO DE PERGUNTAS PARA AS ENTREVISTAS:
Com os foliões:
01 – Diga por favor, o seu nome completo, sua idade e sua profissão.
02 – Onde você mora?
03 – Qual a sua religião?
04 – Você é um praticante assíduo de sua religião ou um praticante eventual?
05 – Desde quando você participa do giro desta folia?
06 – Como se deu a sua entrada na Companhia dos Santos Reis?
07 – Por que você gosta de participar da Folia?
08- Que significado tem a Folia de Reis em sua vida?
09 Que função você ocupa dentro da Companhia? Fale-nos um pouco da
responsabilidade do seu cargo.
10 Se fosse para falarmos nas funções em termo de hierarquia, qual seria a função
mais importante dentro da folia ou na folia não existe isso?
11 - O que a pessoa deve fazer para entrar na Companhia? Qualquer pessoa pode
entrar?
12 – Você sabe como se dá a escolha dos festeiros?
13 – Existem normas dentro da Companhia? Fale-nos um pouco sobre elas...
14 aconteceram casos de pessoas serem convidadas a retirarem-se da
Companhia por desobedecerem a uma norma? Em que circunstância isso se deu?
15 Olhando para vocês, a impressão que se tem é de que existe um clima de muita
amizade, um clima de família. Isso acontece mais no período da folia ou esse clima
perpassa esse período?
Com os moradores que recebem a folia:
01 – Diga por favor, o seu nome completo, sua idade e sua profissão
02 – Onde você mora?
03 – qual a sua religião?
04 – Você é um praticante assíduo de sua religião ou um praticante eventual?
05 – Que significado tem a Folia de Reis em sua vida?
06 – O que representa para você receber a bandeira e a Companhia em sua casa?
07 – Você já fez alguma promessa aos Santos Reis?
Com as pessoas que oferecem almoço ou jantar:
01 – Diga por favor, o seu nome completo, sua idade e sua profissão.
2 – Onde você mora?
03 – Qual a sua religião?
04 – Você é um praticante assíduo de sua religião ou um praticante eventual?
05 – Que significado tem a Folia de Reis em sua vida?
06 – Você já fez alguma promessa aos Santos Reis?
07 – O que representa para você receber a bandeira e a Companhia em sua casa?
08 –Estamos passando por tempos difíceis (economicamente falando). Não é difícil
para vocês oferecerem comida para tanta gente?
09 – A despesa com a comida foi feita só por vocês ou houve alguma ajuda de
terceiros?
10 As pessoas que estão na cozinha foram convidadas para ajudar? Como esse
trabalho é realizado?
Com as crianças que acompanham a folia:
01 – Diga por favor, o seu nome completo, sua idade e escolaridade
02 – Você vai também à Igreja ou só participa da folia?
03 – Desde quando você participa do giro desta folia?
04 Você está de férias da escola... Então você poderia estar brincando com seus
amigos, vendo televisão ou fazendo outras coisas, no entanto você está aqui. Por que
você gosta de participar da folia?
05 – Você tem pessoas da família que também participam desta folia?
Com o padre da Cidade de Santo Antônio de Goiás:
01 - Diga, por favor o seu nome completo, sua idade e a Congregação religiosa que o
senhor pertence.
02 - Desde quando o senhor está aqui em Santo Antônio de Goiás?
03 - O senhor poderia enumerar algumas dificuldades ou facilidades para articular o
seu trabalho pastoral aqui em Santo Antônio de Goiás...
04 - Em relação à participação na vida pastoral da comunidade como o senhor poderia
classificar as pessoas aqui de Santo Antônio de Goiás?
05 - Aqui em Santo Antônio de Goiás, uma cidade relativamente pequena, existem 03
folias de Reis. Ou seja, desde o dia 18 até o dia 30 de dezembro elas estão girando e
pessoas que giram nas três folias. Na sua opinião, por que as folias de Reis são tão
importantes para o povo daqui?
06 - O senhor diria que a grande maioria dos foliões também participa das atividades
promovidas pela Igreja?
07 - Como o senhor vê a Folia de Reis?
08 - Os reis não são santos reconhecidos pela Igreja Católica. Como o senhor essa
crença tão forte entre o povo daqui?
09) Nas entrevistas realizadas no ano passado foi constatado que 45% das pessoas
que estão envolvidas na folia (giro, almoço, pouso, são festeiros e festeiras) entraram
para cumprirem um voto a Santos Reis. Na sua opinião padre, por que acontece essa
incidência tão alta de votos?
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