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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
A RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E DEFICIÊNCIA FÍSICA
PARA AS MÃES DE
CRIANÇAS COM PARALISIA CEREBRAL
SUELY MARQUES ROSA
GOIÂNIA
2006
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
A RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E DEFICIÊNCIA FÍSICA
PARA AS MÃES DE
CRIANÇAS COM PARALISIA CEREBRAL
SUELY MARQUES ROSA
Dissertação apresentada no
Mestrado em Ciências da
Religião da Universidade
Católica de Goiás, sob a
orientação da Profª Drª Ivoni
Richter Reimer.
GOIÂNIA
2006
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4
Sinto que há uma Luz que segue comigo, insistindo em iluminar mesmo o breu
das noites mais escuras; talvez pela presença dessa Luz em minha vida,
houvesse sempre tão pouco a pedir, e tanto a agradecer...
Ao meu pai e à minha mãe, que souberam compreender minha ausência, e
sempre acreditaram em mim.
Ao meu companheiro, ao meu filho e à minha filha, que sempre me estimularam,
suportaram minhas falhas e nunca deixaram de acreditar em minhas capacidades.
À orientadora querida, que soube confiar em mim, por vezes mais do que eu
mesma.
Aos mestres que nestes dois anos iluminaram minhas idéias e me possibilitaram
crescer.
Aos amigos, amigas e colegas, que riram comigo em meus momentos de alegria,
de desespero e de amnésia...
À instituição que prontamente acolheu minha pesquisa, e a estas mães que,
apesar de seu sofrimento, mostram sua força e sua coragem diariamente.
5
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - crianças com paralisia cerebral mostrando alterações de tônus e
postura...........................................................................................................................27
Tabela 1 - idade da criança ao ser conhecido O diagnóstico..................................30
Figura 2 - meios auxiliares para a manutenção da postura ortostática auxiliando a
função.............................................................................................................................31
Tabela 2 - idade materna na ocasião do parto...........................................................33
Tabela 3 - faixa etária das mães ao receberem o diagnóstico..................................34
Tabela 4 - faixa etária das mães atualmente.............................................................34
Tabela 5 - estado civil atual.........................................................................................35
Tabela 6 - nível de instrução da população...............................................................36
Tabela 7 - profissão das mães....................................................................................37
Tabela 8 - teve contato anterior com pessoas com deficiência...............................38
Tabela 9 - como reagiu à notícia de que sua criança tinha uma doença................39
Tabela 10 - fez alguma promessa para obter a cura da criança..............................40
6
Tabela 11 - faixa etária atual das crianças.................................................................54
Tabela 12 - você crê na existência de Deus...............................................................60
Tabela 13 - mudou de religião ao conhecer o diagnóstico de sua criança............60
Tabela 14 - qual é a sua religião atual........................................................................61
Tabela 15 - recebeu qualquer tipo de “aviso” antes do nascimento......................62
Tabela 16 - buscou auxílio religioso ao saber o diagnóstico...................................63
Tabela 17 - como você explica a doença / deficiência no mundo............................64
Tabela 18 - como você explica a doença / deficiência de sua criança....................65
Tabela 19 - Deus quis comunicar algo através da deficiência de sua criança........75
Tabela 20 - mudou seus valores / relação com Deus após saber da doença de sua
criança............................................................................................................................78
Tabela 21 - você crê que Deus pode castigar através de uma doença /
deficiência......................................................................................................................82
Tabela 22- você crê em qualquer tipo de cura através de Deus..............................92
Tabela 23 - conhecimento de passagens bíblicas sobre deficiência....................102
Fgura 3 - Hefestos Trabalhando................................................................................108
Figura 4 - Hefestos, O Deus Ferreiro........................................................................108
Tabela 24 - quais as maiores dificuldades com sua criança...................................118
Tabela 25 - quando você ora, o que pede a Deus para sua criança.......................120
7
Tabela 26 - quais as maiores alegrias sua criança proporciona............................121
SUMÁRIO
RESUMO........................................................................................................................9
ABSTRACT..................................................................................................................10
INTRODUÇÃO.............................................................................................................11
CAPÍTULO I: TORNAR-SE PAI / MÃE DE UMA CRIANÇA COM DEFICIÊNCIA
FÍSICA..........................................................................................................................21
I.1-O Bebê Idealizado E A Formação Do Vínculo......................................................21
I.2-O Processo De Desenvolvimento Normal Da Criança........................................23
I.3-O Desenvolvimento Atípico: A Criança Com Paralisia Cerebral........................24
I.4-O Bebê Real: As Reações À Deficiência: O Percurso Da Dor............................32
I.4.1-Identificando A População..................................................................................33
I.4.2-O Processo Natural Do Luto...............................................................................39
8
CAPÍTULO II: DOENÇA, SOFRIMENTO E PENSAMENTO RELIGIOSO...................47
2.1-Religião, Organização Social E Nomia ...............................................................47
2.1.1- Internalização De Papéis: As Mães E Os Processos De Nomia / Anomia.....52
2.1.2- O Pensamento Religioso Na Formação Do Nômus.........................................56
2.2-Teodicéia: É Possível Explicar A Presença Do Mal?.........................................59
2.3-Porque Sofrer?.......................................................................................................69
2.4- Saúde, Doença E Cura Através Dos Tempos.....................................................90
2.5- O Texto Bíblico E A Deficiência..........................................................................97
2.6- O Mito Greco-Romano: Hefestos, O Deus Deficiente.......................................105
2.7- O Corpo Deficiente: Aproximações Entre O Texto Bíblico E O Mito Greco-
Romano.......................................................................................................................112
2.8- O Pensamento Religioso E As Situações Sem Alma......................................116
CONCLUSÃO..............................................................................................................123
REFERÊNCIAS...........................................................................................................131
ANEXOS.....................................................................................................................137
9
RESUMO
ROSA, Suely Marques. A relação entre religião e deficiência física para as mães
de crianças com paralisia cerebral. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) -
Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2006.
Este trabalho tem como objetivo mostrar as relações estabelecidas entre doença /
deficiência e pecado, e entre saúde e cura, através de uma pesquisa realizada com
mães de crianças com Paralisia Cerebral atendidas em um grande centro de
reabilitação da cidade de Goiânia. A pesquisa aborda o imaginário que envolve o
nascimento de um/a filho/a e as mudanças que o nascimento de uma criança com
Paralisia Cerebral pode desencadear nas vidas dessas pessoas Estas mães, que
passam por um processo de modificação em seu ethos, buscam o significado do
infortúnio que as acometeu utilizando-se de teodicéias e de outras racionalizações
relacionadas às formas de pedagogia divina que envolvem o imaginário religioso.
Palavras-chave: mães de crianças com paralisia cerebral; religião e doença/ deficiência
física; sofrimento humano; teodicéias.
10
ABSTRACT
ROSA, Suely Marques. The relation between religion and handicap to the
mothers of children with Cerebral Palsy. Dissertation (Mastering in the Science of
Religion) - Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2006.
This paper has the objective of showing the relationships between illness / handicap and
sin, and between health and cure, trough a research with mothers of children with
Cerebral Palsy from a rehabilitation center in this city. This research discusses the
imaginary that involves the birth of a son / daughter and the changes that a birth of a
child with Cerebral Palsy can cause in the life of those people. These mothers goes to a
process of changes in their ethos, search for the meaning of the misfortune that got
them using Theodicee and others rationalizations connected with the ways of divine
pedagogy that involves the religious imaginary.
Key-worlds: mothers of children with cerebral palsy; religion and illness / physical
handicap; human suffering; theodicee.
11
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem suas raízes numa experiência profissional de vinte e três anos
como terapeuta ocupacional clínica, atuando sempre na área de habilitação e
reabilitação e no trabalho como docente do curso de Terapia Ocupacional, cinco
anos, em sala de aula e na supervisão clínica em estágios de campo.
Lidar com o sofrimento humano em suas diversas expressões, atendendo a
pessoas que passam por situações de dor e de extrema impotência perante os desafios
da vida e tentar ajudá-las a superar suas incapacidades, fez brotarem as inquietações e
os questionamentos que conduziram a esta pesquisa.
Fornecer significado às grandes atribulações e às adversidades da vida tem se
constituído, desde sempre, em objeto de reflexão do ser humano, e as doenças graves e
12
potencialmente causadoras de anormalidades físicas e incapacitações têm a
propriedade de remeter o ser a essa busca por significado.
Observar a reação das famílias ao nascimento de crianças com doenças
incapacitantes e acompanhar a trajetória dessas pessoas ao longo dos anos de
tratamento subseqüentes proporcionou a oportunidade de conhecer um pouco de sua
forma de sentir, pensar e agir sobre a doença; levou também ao conhecimento das
maneiras pelas quais essas pessoas buscavam superar, suportar ou, enfim, conviver
com o estigma individual e social da deficiência. Pôde ser observado que orações e
pedidos, novenas, campanhas e óleos de unção, entre outros, constituíam meios
utilizados de forma bastante habitual por estas famílias, quando o tratamento e o
desenvolvimento da criança transcorriam bem (com fins de agradecimento e para
garantir a continuidade das bênçãos), ou nas ocasiões em que os objetivos de
tratamento ou os desejos de cura não eram satisfeitos, com fins de reverter tal situação.
Ao longo deste curso de mestrado, os conhecimentos adquiridos trouxeram,
enfim, a oportunidade de relacionar, à prática vivenciada, as teorias sobre a busca da
religião pelo ser humano. Assim, os estudos teóricos sobre o sofrimento humano, as
racionalizações sobre Deus e sua relação com a doença e os processos de cura, bem
como a teoria de Marx sobre a religião mostraram-se bastante elucidativos na
compreensão da busca da religião por essas famílias, que necessitavam de saúde para
suas crianças e de alívio para sua dor insuportável.
Como ser humano e enquanto profissional –figuras que se aproximam e que se
enriquecem mutuamente em permanente diálogo interior e através da capacidade de
reflexão sobre a prática exercida na área da saúde (ou das ciências da vida) –tornou-se
13
inevitável conjeturar sobre todas estas experiências e, a partir daí, construir alguns
caminhos de investigação:
Por não conseguir tolerar sua dura realidade, estariam estas pessoas
buscando na religião apenas o alívio para o seu sofrimento e algum
significado para sua dor, ou uma solução mágica para seus problemas?
Seria possível explicar a reação destas famílias a partir da relação doença-
pecado presente na cultura religiosa judaico-cristã e da teoria de Marx
sobre a religião?
Poderia estar sendo esta busca Influenciada pela cultura religiosa que, por
meio de passagens do texto bíblico, tem relacionado doença e castigo
divino e sua cura ao perdão dos pecados?
Qual seria a influência da religião judaico-cristã e do texto bíblico na
construção do significado subjetivo da doença e dos valores relacionados à
doença-deficiência e pecado-castigo e entre saúde-cura e perdão divinos?
Haveria mudanças no sistema de valores religiosos após o impacto da
deficiência permanente? Haveria migração religiosa?
Dessa forma, partindo de todas essas premissas, encadeou-se o processo que
deu origem ao objeto desta pesquisa, que buscou investigar a relação entre religião,
deficiência e a noção de castigo divino presentes no imaginário da cultura religiosa
judaico-cristã e os aspectos da busca pela saúde identificados na teoria de Marx sobre a
religião, a partir da visão das famílias de crianças com deficiência física permanente.
14
Este estudo tem relevância por possibilitar aos profissionais e estudiosos das
diferentes áreas como Ciências da Religião, Saúde e Educação, entre outras, conhecer
a influência do pensamento religioso na construção de valores morais e nas atitudes
relacionadas à deficiência na atualidade, numa população direta e profundamente
envolvida.
O tema é ainda pouco explorado na área da saúde, originando por vezes
incômoda sensação de constrangimento nos meios científicos, e as pesquisas
geralmente não o consideram ou o fazem de forma bastante tímida.
A pesquisa teve inicialmente intenção de averiguar a influência da cultura religiosa
judaico-cristã no universo formado por pais e mães de crianças com deficiência física
permanente, investigando sua reação ao nascimento dessas crianças, as possíveis
relações entre deficiência, pecado e castigo divino e entre cura e perdão, bem como a
forma como estas famílias lidam com o tratamento e a impossibilidade de cura.
A teoria de Marx sobre a religião como fonte de alívio do sofrimento e de
satisfação das necessidades de saúde e cura foi considerada, durante toda a construção
do trabalho, como uma provável resposta à busca religiosa destas famílias.
Esta pesquisa foi submetida à apreciação dos Comitês de Ética desta
universidade e da instituição onde foi desenvolvida, tendo obtido total aprovação em
ambas, sem que houvesse nenhuma restrição e as entrevistas foram realizadas
durante os trinta dias subseqüentes.
A proposta inicial incluía uma população formada por pais e mães de crianças
com deficiência física permanente, porém algumas alterações tiveram que ser efetuadas
no decorrer do processo: durante a pesquisa apenas dois dos entrevistados eram do
sexo masculino (pais), tendo sido, para fins de homogeneização da população,
15
excluídos da pesquisa que passou a considerar apenas os sujeitos do sexo feminino,
isto é, as mães.
O número de sujeitos foi determinado em trinta (30) devido à freqüência com que
as respostas se repetiram.
Devido à grande variedade de doenças congênitas ou adquiridas na primeira
infância, potencialmente incapacitantes e causadoras de alterações físico-motoras e de
deformidades, optou-se pelo grupo das encefalopatias não progressivas conhecido
como Paralisia Cerebral, um conjunto de alterações caracterizado por retardo no
desenvolvimento neuro-psicomotor e desordem do tônus, do movimento e da postura,
que tem como causa um dano no encéfalo imaturo, isto é, tem início nos primeiros anos
de vida; para uma maior homogeneização da população foram considerados apenas os
tipos de Paralisia Cerebral congênita ou adquirida durante o parto.
O local para a realização da pesquisa foi escolhido por reunir um grande número
de crianças com distúrbios neurológicos e devido à facilidade de acesso aos sujeitos
pela pesquisadora.
Assim, foi pesquisado o universo formado por 30 mães de crianças com
deficiência física permanente causada por Paralisia Cerebral, em diferentes faixas
etárias e que freqüentavam o setor de Terapia Ocupacional de um centro especializado
no tratamento de reabilitação de crianças e adultos na cidade de Goiânia, o Centro de
Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo. Como critério para inclusão, todos os
sujeitos deveriam ser mães naturais, pois a pesquisa visava investigar sentimentos,
interpretações e reações das mães, relacionados à deficiência de suas crianças. Todas
as crianças deveriam ter o diagnóstico médico confirmado de Paralisia Cerebral,
congênita ou adquirida durante o processo do parto.
16
Foram excluídas as mães de crianças adotadas, as crianças que possuíam uma
patologia não classificada como Paralisia Cerebral e as que adquiriram a Paralisia
Cerebral após o nascimento.
As colaboradoras foram convidadas por meio de contatos individuais informais
realizados nas dependências do centro de reabilitação, tendo sido as entrevistas
realizadas em uma sala do Setor de Terapia Ocupacional da instituição, que é
publicamente reconhecida como Centro de Referência para o atendimento em
reabilitação de pessoas com deficiência.
Considerando-se o compromisso ético subjacente, precedendo a entrevista foi
desenvolvido um trabalho de sensibilização dos sujeitos colaboradores, com o
esclarecimento de dúvidas e enfatizando-se que não haveria respostas certas ou
erradas às questões apresentadas, visto que o significado das experiências vivenciadas
relaciona-se exclusivamente à história de vida individual de cada sujeito.
Na certeza de que o estabelecimento de uma relação de confiança mútua entre a
entrevistadora e os sujeitos aumentaria as chances de obter informações que talvez não
fossem obtidas em outra situação, durante o contato inicial a pesquisadora buscou
promover um clima cordial e obter um vel de confiança por parte das entrevistadas,
explicando a importância da entrevista, assegurando o anonimato de suas identidades e
o sigilo de suas respostas e considerando a disposição das mesmas em responder às
questões formuladas. Foi apresentado um termo de consentimento e livre esclarecido a
todas as colaboradoras, as quais concordaram em assiná-lo sem restrições.
Optou-se pela Pesquisa Qualitativa por oferecer acesso a fenômenos não-
quantificáveis e oportunizar a obtenção de dados significativos, os quais de outra forma
17
não seriam obtidos. Os dados foram posteriormente quantificados. Foi feita a aplicação
da análise de conteúdo, que considerou os discursos explícito e implícito.
O método escolhido para coleta de dados foi a Entrevista, por permitir o
esclarecimento imediato de questões que em caso de dúvida poderiam ser repetidas,
reformuladas e reavaliadas, permitindo serem observadas e registradas as atitudes e
reações das entrevistadas, além de oferecer a possibilidade de correção imediata de
possíveis dificuldades de comunicação que levassem a uma falsa interpretação das
perguntas.
Para a formulação das perguntas foram considerados os estudos teóricos sobre
religião e sociedade, sofrimento humano, relações entre doença / deficiência e castigo e
as fases de reação da família, bem como a prática profissional da pesquisadora.
O número de questões foi limitado em sua extensão, para não causar fadiga ou
desinteresse; a seqüência foi organizada por meio de roteiro, partindo de perguntas mais
gerais e de descontração ou informais versando sobre os dados pessoais das
entrevistadas, os dados referentes às crianças e as questões preparatórias, com função
de estabelecer vínculo entre a pesquisadora e as entrevistadas e de propiciar um
ambiente de segurança.
Em seqüência, foram dispostas as perguntas referentes a sentimentos e atitudes
dos sujeitos em determinadas circunstâncias, as questões de fato ou perguntas de
opinião, essenciais à pesquisa, abordando temas que suscitam sentimentos mais
reservados e que, quando formuladas de forma inadequada, são passíveis de ser
consideradas socialmente inaceitáveis.
18
As entrevistas duraram um tempo aproximado de trinta a quarenta minutos, sendo
que ao seu término buscou-se sempre manter a relação de confiança e o ambiente de
segurança, através de questões atenuantes.
O registro das respostas foi realizado por escrito durante as entrevistas e houve
oportunidade de esclarecimento imediato de todas as dúvidas surgidas. Não foi em
nenhum momento apresentado pela pesquisadora, de forma direta ou indireta, auxílio às
entrevistadas para responder as questões, sugestões de termos ou de palavras ou
pistas para expressão de suas idéias ou sentimentos.
A entrevista seguiu um roteiro contendo questões sobre os dados descritivos da
população, dados de sua vida religiosa, nível de relação com a deficiência em geral e
sentimentos relacionados à doença / deficiência e castigo.
Por mostrarem grande riqueza e complexidade, abrindo caminho para a pesquisa
em várias direções, os dados coletados na entrevista tiveram que ser selecionados,
tendo sido utilizadas para o aprofundamento teórico apenas as seguintes questões
essenciais:
- Quais são as causas da existência de pessoas com deficiência no mundo?
- Quais são as causas da doença / deficiência de sua criança?
- Você pensa que Deus quis comunicar algo com a doença / deficiência de sua
criança? O que mudou em sua vida?
- Você acredita que Deus pode castigar através de uma doença / deficiência?
- Quando você ora, o que pede a Deus para sua criança?
Para elaboração da dissertação, optamos por apresentar e analisar os dados da
pesquisa durante o desenvolvimento do corpo teórico. As respostas foram incluídas no
corpo do texto, durante a análise de dados, quando mostrou-se necessário. Os dados de
19
identificação da população e todas as respostas às questões consideradas essenciais
foram transcritos nos anexos.
Para identificação das entrevistadas, as entrevistas foram numeradas, em ordem
crescente, de um (1) a trinta (30).
O primeiro capítulo discorre sobre a trajetória do tornar-se pais e mães de uma
criança com deficiência física, descrevendo todo o processo de idealização do bebê e
formação do vínculo e o processo de desenvolvimento normal da criança. A seguir,
apresenta o desenvolvimento atípico da criança com uma encefalopatia específica (a
Paralisia Cerebral) e mostra as reações das mães ao tomarem conhecimento da
deficiência de suas crianças e o difícil processo que se segue.
O segundo capítulo aborda a busca do ser humano pela religião enquanto
importante fator de organização social e de nomia. Nos fundamentamos nos estudos de
Peter Berger sobre religião e sociedade, onde o autor dialoga com as idéias e
postulados de Marx, Weber e Durkheim, afirmando o relevante papel desempenhado
pela religião na construção social do mundo material e imaterial.
Com Marx, analisamos a sociedade humana enquanto um empreendimento de
construção do mundo a partir de uma necessidade antropológica de exteriorização, onde
o ser humano, ao construir esse mundo, constrói a si mesmo e à religião, a qual
cumpriria um papel alienante.
Com Weber é destacada a função legitimadora das objetivações sociais e são
estudados os graus de racionalização das teodicéias; em Durkheim trabalhamos com os
conceitos de objetividade coercitiva da sociedade e com a idéia de construção do mundo
como atividade ordenadora ou nomizante capaz de fornecer proteção ao indivíduo
20
contra a perda de sentido ocasionada pelas situações marginais impostas ao ser
humano ou situações de anomia.
Realizamos em seguida um estudo sobre os sentidos e a linguagem do
sofrimento humano, a visão de saúde, doença e cura através dos tempos e as
passagens do texto bíblico, relativas às diversas formas de deficiência e às curas, bem
como os significados religiosos da doença e da cura na cultura religiosa judaico-cristã.
Em seqüência, é apresentado o mito greco-romano do deus Hefestos e são discutidas
as aproximações entre o texto bíblico e o mito, tomando como base o corpo deficiente e
dialogando com os estudos de Foucault sobre os corpos eficientes.
Apresentamos, neste contexto e por final, a teoria de Marx sobre a religião
enquanto construção do ser humano que necessita de consolo e alívio, analisando-a
como uma possível resposta à busca de saúde, cura e significado pela população
pesquisada.
21
CAPÍTULO I
TORNAR-SE PAI / MÃE DE UMA CRIANÇA
COM DEFICIÊNCIA FÍSICA
I.1- O Bebê Idealizado E A Formação Do Vínculo
“Em nosso coração, bem no âmago do nosso ser, todos ansiamos por ter
um filho que seja um atestado eloqüente de nosso valor como pessoas.
Um filho que irá demonstrar ao mundo a grandeza de nossa condição de
pais”.
Maria Amélia Vampré Xavier, mãe.
O nascimento de um filho / filha traz consigo a possibilidade de realizações, de
sucesso e da continuidade de planos e projetos idealizados pelos pais e mães. Estes se
envaidecem ao ver, reconhecidas em sua criança, semelhanças físicas hereditárias ou
características de personalidade, pois a criança representa o orgulho da continuidade
do fluxo de gerações e, caso não corresponda a essas perspectivas, será fonte de
decepção, tristezas e preocupações (Buscaglia, 1997).
22
Os pais e toda a família, antes e durante a gestação, desenvolvem expectativas
especialmente com relação à saúde e à perfeição física da criança e nenhuma família
espera ter uma criança com problemas físicos ou mentais, mas sim que nasçam
“inteligentes, integradas, produtivas e perfeitas” (Araújo, 2004, p. 236). O impacto da
deficiência terá sempre um significado individual e, portanto, diferente em cada membro
da família.
O estabelecimento do vínculo com um bebê desejado e presente no imaginário
dos pais certamente constituirá tarefa agradável e desejável, compreendendo-se
vínculo como a formação de relações com objetos, isto é, pessoas ou coisas do
ambiente, animadas ou não e que são psicologicamente significativas para a vida
psíquica do indivíduo. Formar vínculos constitui necessidade gregária que se opõe à
sensação de isolamento presente no ser humano, fazendo com que o mesmo sinta-se
parte de um grupo. A formação do vínculo tem início antes mesmo do período de
gestação, a partir das expectativas dos pais com relação ao bebê, cujo nascimento é
apenas um marco nos planos que tiveram início por vezes antes da gravidez, no
imaginário da família. O conjunto dessas expectativas é transmitido ao corpo do bebê
através dos primeiros contatos físicos, dos toques, afagos e manuseios e certamente
irão influenciar a construção de sua identidade (Bataglia, 2003, p.188 -192).
O bebê, cercado por cuidados e carinhos, desenvolverá plenamente seus
potenciais, sob os olhos atentos de sua família. Seu desenvolvimento psicomotor
normal é motivo de grande alegria, o que pode ser constatado também com relação às
mães das crianças com Paralisia Cerebral (tabela 25), conforme estudaremos no
capítulo seguinte.
23
I.2- O Processo De Desenvolvimento Normal Da Criança
O desenvolvimento é um processo global que tem todos os seus aspectos
interligados e interdependentes, uma vez que o cérebro funciona de forma sistêmica.
O desenvolvimento cerebral depende, além de estruturas orgânicas intactas, do
movimento e da estimulação advinda do ambiente (input sensorial). O bebê tem
capacidade de agir sobre o ambiente e de sofrer influência do mesmo ainda dentro do
útero, quando seu corpo toca e empurra as paredes, que lhe proporcionam um retorno
(feed-back) sensorial tátil e proprioceptivo; os movimentos da mãe também são
sentidos pelo feto (sensações cinestésicas) e o paladar e a audição estão
permanentemente recebendo estímulos. Estas movimentações e sensações primitivas
constituirão a base para as posteriores aquisições motoras (Bobath, 1990).
Após o parto, o bebê iniciará, por meio de uma motricidade automática e,
posteriormente, através de uma movimentação cada vez mais controlada (voluntária), a
exploração do mundo através do próprio corpo, tocando-se e tocando os objetos mais
próximos, observando-se e observando o meio que o cerca. Ao começar a deslocar-se
no espaço, o bebê segue explorando cada vez mais o ambiente, e assim estabelece
relações diretas através de seu próprio corpo, adquirindo noções de tamanho, distância
e tempo, entre outras. Quando nos referimos ao ambiente, nos referimos a locais,
objetos e estímulos que possam atrair a atenção dos sentidos e despertar no bebê a
motivação para tocar, sentir, ouvir e conhecer; referimo-nos também ao ambiente
humano, isto é, aos cuidadores e cuidadoras da criança, especialmente à figura
materna, sendo a díade mãe-bebê considerada um dos mais importantes aspectos no
desenvolvimento global do bebê.
24
O bebê que tem o curso do desenvolvimento neuro-psicomotor normal
expressará suas necessidades através de uma grande variedade de comportamentos,
como choro, sons, sorrisos, expressões faciais e movimentos, que lhe possibilitarão
ser compreendido por sua mãe.
Ao final dos dezoito meses de vida, com base nas sensações vivenciadas, este
bebê terá desenvolvido um certo controle sobre seu corpo e a noção de si mesmo
como diferenciado de seu ambiente, podendo a partir de então, progressiva e
constantemente, desenvolver habilidades cada vez mais elaboradas. Torna-se assim
claro que as bases de todo o conhecimento são construídas através das relações entre
o próprio corpo e o ambiente (Bobath, 1990).
A criança que tem o seu desenvolvimento neuro-psicomotor normal percorrerá
um caminho que deverá culminar com a sua completa independência.
I.3- O Desenvolvimento Atípico: A Criança Com Paralisia Cerebral
O desenvolvimento neuro-psicomotor do bebê, por condições adversas, pode
não ocorrer da forma natural esperada pelos pais e, dentre as causas mais freqüentes
das alterações neuro-desenvolvimentais, encontramos a Paralisia Cerebral, termo
consagrado pelo uso, porém erroneamente utilizado, pois na verdade, o cérebro não
sofre uma paralisação.
A Paralisia Cerebral tem sido estudada por diferentes autores, tendo suas
definições, em comum, a ênfase ao prejuízo motor e à precocidade do
25
comprometimento do sistema nervoso e o seu caráter não progressivo, como podemos
observar nas três definições citadas pelo neurologista Salomão Schwartzman (2004):
“Paralisia Cerebral é uma desordem do movimento e da postura, persistente porém
variável, surgida nos primeiros anos de vida pela interferência no desenvolvimento do
Sistema Nervoso Central, causada por um dano cerebral não progressivo” (Litle Club,
1960, apud Schwartzman, 2004, p.5).
“Paralisia Cerebral é a seqüela de uma agressão encefálica, que se caracteriza
primordialmente por transtorno persistente, porém não invariável, do tono, da postura e
do movimento, que surge na primeira infância e que não somente é diretamente
secundário a esta lesão não evolutiva do encéfalo, mas, devido, também, à influência
que a referida lesão exerce sobre a maturação neurológica” (Barraquer-Bordas; Ponces;
Corominas; Torras; Noguer, 1966, apud Schwartzman, 2004, p.5).
“Paralisia Cerebral é definida como prejuízo permanente do movimento ou postura
resultante de uma desordem encefálica não progressiva. Esta desordem pode ser
causada por fatores hereditários ou eventos ocorridos durante a gravidez, parto, período
neo-natal ou durante os primeiros dois anos de vida” (Haiberg; Haiberg; Olow, 1975,
apud Schwartzman, 2004, p.5).
Diferentes autores discordam quanto aos limites da definição e mesmo com
relação ao conceito da Paralisia Cerebral, os quais podem gerar dúvidas (Xavier;
Noce; Melo, 2004). Há, porém, o consenso quanto à presença de distúrbios
permanentes e de alterações motoras causadas por lesões de etiologias diversas, não
progressivas e ocorridas no cérebro imaturo, antes, durante ou depois do parto,
podendo haver ainda o comprometimento leve, moderado ou severo do sistema
percepto-cognitivo (Lima, 2004).
26
A incidência da Paralisia Cerebral em crianças nascidas vivas é estimada em 1
a 2 por 1000 nos países desenvolvidos e em 7 por 1000 nos países em
desenvolvimento (Fonseca, 2004).
Nos quadros de Paralisia Cerebral, a lesão ocorre nos dois ou três primeiros
anos de vida e se manifesta por desordens da postura e do movimento. Suas
características podem sofrer influência de fatores biológicos relacionados à maturação
do sistema nervoso central e ao ambiente. A Paralisia Cerebral tem em sua etiologia
fatores pré, peri ou pós-natais, que correspondem a diferentes estágios de maturação
neurológica e os quais determinarão diferentes quadros clínicos. Entre as causas mais
comuns, encontramos as doenças maternas, a toxoplasmose, citomegalovírus e
rubéola, os distúrbios placentários, a pré-eclâmpsia, a hipóxia, as hemorragias
cerebrais, baixo peso e prematuridade, hiperbilinirrubinemia e as infecções do sistema
nervoso central, como a meningite bacteriana e os traumatismos crânio-encefálicos;
como fatores de risco, temos a herança genética, as síndromes pré-natais pré-
definidas, as malformações cerebrais e ainda as etiologias desconhecidas (Fonseca,
2004).
A Paralisia Cerebral é mais comumente classificada segundo suas
características clínicas, isto é, segundo o tipo de disfunção motora que apresenta. Esta
classificação considera o tônus ou qualidade da contração muscular e é associada à
classificação topográfica, que considera a distribuição dos prejuízos pelo corpo.
Na Paralisia Cerebral da forma espástica, o tônus muscular (estado de tensão
muscular normal) está aumentado e sua distribuição topográfica se em diplegia,
onde os membros inferiores estão mais comprometidos; em quadriplegia, com
prejuízos equivalentes nos quatro membros; hemiplegia, com comprometimento de um
27
hemicorpo, sendo o membro superior menos funcional e em dupla hemiplegia, com os
membros superiores mais afetados (Zoppa, 1998).
Na Paralisia Cerebral da forma discinética ocorrem movimentos anormais,
controle inadequado do tônus e incoordenação; sua distribuição se dá em hipercinética
ou coreoatetóide, onde todo o corpo se movimenta involuntariamente e em distônica,
onde o tônus muscular varia a cada movimento.
Na Paralisia Cerebral de forma atáxica, predominam a incoordenação, os
tremores aos movimentos e os distúrbios do equilíbrio (Pereira, 1998).
Nas formas mistas da paralisia cerebral, onde encontramos a maioria dos casos
de Paralisia Cerebral, ocorre uma associação das formas anteriormente
descritas.
Fonte própria
Figura 1: crianças com Paralisia Cerebral mostrando alterações de tônus e postura
Na classificação da Paralisia Cerebral considera-se ainda a graduação de
suas formas em comprometimento leve, moderado e severo.
28
É comum a ausência ou a persistência, além do tempo ou mesmo durante toda
a vida, dos Reflexos Primitivos, que são os reflexos naturalmente encontrados nos
bebês durante seu primeiro ano de vida. Também é comum o desenvolvimento não
adequado das Reações Posturais Normais, que são movimentos que nos possibilitam
a manutenção do corpo contra a gravidade nas diferentes posturas, estáticas ou
dinâmicas (Bobath, 1990). A alteração destes mecanismos impedirá o
desenvolvimento normal dos movimentos, da coordenação, da força muscular, das
funções manual e visual e do equilíbrio.
A Paralisia Cerebral tem, como conseqüência de todas essas alterações, os
encurtamentos tendinosos e as contraturas, que são diminuições do tecido muscular
com perda da sua flexibilidade e redução de suas amplitudes de movimentos, podendo
dar origem a deformidades, alterações ósseas e dor.
A marcha (termo que indica a forma correta do andar), em muitos casos não será
adquirida, e as atividades da vida diária, como o auto-cuidado e a higiene pessoal,
alimentar-se, vestir-se e locomover-se, podem necessitar de auxílio ou supervisão
permanentes por toda a vida, estando assim prejudicadas a independência e a
autonomia do indivíduo.
O sistema nervoso central funciona como um todo organizado de forma
integrada (Anunciato; Oliveira, 2004) e a criança poderá ter, além das alterações
descritas, uma série de comprometimentos associados, sendo os mais comuns: a
epilepsia (crises convulsivas); as alterações visuais (estrabismos, erros de refração e
de acuidade e baixa visão com necessidade de uso de óculos, tampões e cirurgias
corretivas); alterações auditivas (déficits de discriminação e surdez, com necessidade
de aparelhamento), alterações da fala (disartrias ou alterações da articulação e a não
29
aquisição); os distúrbios de comunicação (expressão e compreensão); dificuldades de
alimentação (dificuldades para mastigar e engolir); alterações cognitivas (deficiência /
retardo mental em diferentes graus); alterações da sensibilidade tátil e vestibular (hipo
ou hiperreatividade ou reações inadequadas ao estímulo sensorial tátil e rotatório), os
distúrbios de atenção / concentração e as dificuldades de aprendizagem.
Os prejuízos decorrentes da Paralisia Cerebral se relacionam diretamente com
a fase do desenvolvimento cerebral em que ocorreu a lesão, com sua forma (se
abrupta como nos traumatismos ou lenta como nos tumores), com a área do encéfalo
em que se localiza e com sua extensão.
É comum a presença de infecções pulmonares (bronquites, pneumonias), do
refluxo gastro-esofágico, de crises convulsivas e outras complicações, que tornam
freqüente o uso de medicamentos e as internações para tratamento clínico ou
cirúrgico.
O diagnóstico diferencial da Paralisia Cerebral deve ser criterioso e basear-se
num profundo conhecimento do desenvolvimento neuro-psicomotor e suas variações,
na anamnese, exame físico, testes neurológicos, exames laboratoriais, ultra-
sonografia, eletro-encefalograma e exames de imagem como a tomografia axial
computadorizada do encéfalo, a ressonância nuclear magnética e o SPECT cerebral.
O diagnóstico da Paralisia Cerebral é geralmente confirmado até o segundo ano de
vida.
Na tabela 1 podemos observar que o diagnóstico da doença foi (re)conhecido
por 80% das entrevistadas durante o primeiro ano de vida da criança e que até os
dezoito meses 90% já o tinham confirmado. Até os dois anos e seis meses de idade da
30
criança, todas as mães já conheciam o diagnóstico, o que está em acordo com a teoria
pesquisada.
Tabela 1: idade da criança ao ser conhecido o diagnóstico
A criança com Paralisia Cerebral, por ser mais dependente de seus cuidadores,
apresenta com freqüência traços de imaturidade afetiva, com apego excessivo às
pessoas mais próximas, baixa auto-estima e dificuldades para relacionar-se e adaptar-
se a mudanças.
Pode haver exclusão escolar e social em geral, por fatores diversos, os quais
serão aprofundados no próximo capítulo.
Pela diversidade das formas apresentadas, o tratamento exigirá uma equipe
multidisciplinar especializada, geralmente formada por neuropediatra, neurocirurgião,
ortopedista, fisiatra, pediatra, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, fonoaudiólogo,
psicólogo e assistente social, entre outros, além de professores, escola e cuidadores
capacitados, o que inclui os pais (Souza, 2003).
Idade da criança Nº de crianças %
7m intra-uterina 1 3,3%
ao nascimento 1 3,3%
1º ao 6º mês 9 30%
7º ao 12º mês 13 43,3%
13º ao 18º mês 3 10%
2 anos a 2 anos e 6 meses 3 10%
31
É comum o uso de órteses (dispositivos para auxiliar a função, alinhar ou
posicionar os membros superiores e inferiores), de adaptações em objetos de uso
habitual para facilitar seu manuseio (como engrossadores para cabos de utensílios
diversos e auxiliares para preensão) e as adaptações em mobiliários e ambientes
domiciliares e da escola (alargamento de portais, construção de rampas e colocação
de barras em banheiros e outros locais). A necessidade do uso de dispositivos
auxiliares para a locomoção e o transporte também é freqüente, como bengalas,
andadores e cadeiras de rodas.
Todas essas adaptações e dispositivos servem a determinada etapa do
desenvolvimento, tendo que ser geralmente substituídos com o passar do tempo, com
o desgaste, com o crescimento da criança ou conforme as alterações em seu quadro
motor. Como se pode observar, o tratamento pode ser longo e financeiramente
bastante oneroso.
Fonte própria
32
Figura 2:
meios auxiliares para manutenção da postura ortostática auxiliando a função
As possibilidades de alcance terapêutico aumentam com a precocidade do
diagnóstico e início imediato do tratamento devido à maior plasticidade do sistema
nervoso central, ou seja, devido à capacidade de adaptação do organismo após a
injúria (lesão), o que poderá vir a prevenir danos secundários.
As limitações do alcance terapêutico se devem a fatores individuais, tais como a
gravidade do diagnóstico, a distribuição das alterações pelo corpo, o grau de
desequilíbrio muscular e a presença de deformidades ósseas. A compreensão e o
engajamento da família e as suas possibilidades financeiras e os fatores político-
sociais como dificuldades de transporte, barreiras arquitetônicas e as limitações
geográficas de acesso aos recursos também são fatores determinantes para o alcance
terapêutico. Todos esses aspectos deverão orientar o tipo de tratamento e o plano
terapêutico a ser desenvolvido, o qual deverá considerar as capacidades
remanescentes ou intactas e as áreas de dificuldade do indivíduo (Lima, 2004).
I.4- O Bebê Real: As Reações Dos Pais E Mães À Deficiência E O Percurso
Da Dor
Descrevemos nos itens anteriores os processos psíquico-emocionais que
envolvem a família na expectativa do nascimento de uma criança, o processo de
formação do vínculo com esse bebê idealizado, o qual pode ter início mesmo antes da
concepção, o desenvolvimento normal da criança e o desenvolvimento atípico no caso
33
da Paralisia Cerebral. Neste item, estudaremos as reações das mães ao constatar a
doença de seus bebês, apresentando a pesquisa de campo, com os dados descritivos
da população, sua análise e discussão com base na experiência da pesquisadora e nas
fontes pesquisadas: Kübler-Ross (1998), Bataglia (2003), Souza (2004), Ardore e
Regan (2003) e Buscaglia (1979), autores que analisaram e descreveram os estágios
pelos quais as pessoas passam ao se depararem com acontecimentos trágicos.
I.4.1- Identificando a população
Por ocasião do parto, dezoito pesquisadas tinham entre dezessete e vinte e
quatro anos (60%), nove estavam entre vinte e cinco e vinte e nove anos (30%) e três
entre trinta e trinta e cinco anos (10%) (tabela 2).
Tabela 2: idade materna na ocasião do parto
A notícia de que seus bebês tinham uma doença grave foi recebida, no máximo,
dois anos e meio após o nascimento, encontrando-se dezessete mães (56,7%) entre
dezoito e vinte e quatro anos e dez entre vinte e cinco e vinte e nove anos (33,3%).
Idade materna Nº de mães %
17 a 19 ano s 7 23,3%
20 e 24 anos 11 36,7%
25 e 29 anos 9 30%
30 e 35 anos 3 10%
34
Portanto, vinte e sete mães (90%) tinham idade inferior a trinta anos ao conhecer o
diagnóstico de suas crianças (tabela 3).
Tabela 3: faixa etária das mães ao receberem o diagnóstico
Idade
Nº de mães
%
18 a 24 anos
17
56,7%
25 a 29 anos
10
33,3%
32 a 35 anos
3
10%
A população pesquisada encontra-se atualmente entre vinte e quarenta e nove anos de
idade,sendo que vinte e cinco delas situam-se na faixa entre vinte e trinta e quatro
anos, correspondendo a 83,3% dos sujeitos (tabela 4).
35
Tabela 4: faixa etária das mães atualmente
Faixa etária
Nº de mães
%
20 a 24 anos
6
20%
25 e 29 anos
11
36,7%
30 e 34 anos
8
26,7%
35 e 39 anos
3
10%
40 anos
1
3,3%
49 anos
1
3,3%
O grupo pesquisado constituía, como pode ser observado, por ocasião do parto e
ainda atualmente, uma população de jovens mães.
36
Com relação ao estado civil atual, todas as entrevistadas que por ocasião da
entrevista estavam convivendo com seus parceiros há mais de um ano (união
estável) foram consideradas casadas. Constatou-se que a maior parte, vinte e duas
(73,3%), vivia com seus maridos ou companheiros; quatro eram solteiras (13,3%) e
quatro (13,3%) separadas (tabela 5).
Tabela 5: estado civil atual
Estado civil
Nº de mães
%
Casadas
22
73,3%
Solteiras
4
13,3%
Separadas
4
13,3%
Quanto ao grau de instrução, encontramos nove entrevistadas (30%) que não
completaram o primeiro grau e cinco (16,6%) que o completaram, totalizando quatorze
(46%) que cursaram até o primeiro grau. Duas (6,7%) não completaram o segundo grau
e nove (30%) completaram, perfazendo um total de onze (36,7%) entrevistadas que
37
cursaram até o segundo grau. Encontramos três universitárias (10%) e duas
entrevistadas (6,7%) com nível superior (Tabela 6).
Quando as entrevistadas que não concluíram seus estudos foram perguntadas
sobre a possibilidade de dar continuidade aos mesmos, independente da situação
financeira ou interesse, elas foram unânimes em afirmar que, de qualquer forma, não
teriam tempo disponível suficiente, por ter que se dedicar às necessidades da criança.
Conforme pudemos constatar, as necessidades da criança com Paralisia
Cerebral podem incluir uma rotina que envolve consultas médicas, terapias e cuidados
especiais diários, o que certamente requisita da cuidadora um tempo maior do que o
tempo requerido por uma criança da mesma idade que tivesse seu desenvolvimento
neuro-psicomotor normal.
38
Tabela 6: nível de instrução da população
Instrução
Nº de mães
%
Iº grau incompleto
9
30%
Iº grau
5
16,6%
2º grau incompleto
2
6,7%
2º grau
9
30%
3º grau cursando
3
10%
3º grau
2
6,7%
Na tabela 7 observamos que vinte e seis entrevistadas (86,7%) são donas de
casa; uma (3,3%) exerce função de nível técnico, uma (3,3%) é profissional liberal e
duas (6,7%) são estudantes universitárias que cursam Terapia Ocupacional, tendo
iniciado seu curso após o início do tratamento de suas crianças nesta especialidade,
39
após acompanharem as mesmas assiduamente em suas sessões de terapia. Todas as
entrevistadas passam grande parte de seu tempo cuidando das crianças em casa,
atendendo-as em suas necessidades básicas por serem total ou parcialmente
dependentes, ou levando-as para exames e consultas médicas e para as terapias.
Estes dados também serão discutidos no segundo capítulo, ao tratarmos a questão
dos papéis sociais.
Tabela 7: profissão das mães
Com a finalidade de pesquisar a possibilidade de influência do contato anterior
com pessoas com deficiência na reação dessas mães ao tomarem conhecimento da
deficiência de suas crianças, foi perguntado às entrevistadas se haviam tido qualquer
contato com pessoas com deficiência. Vinte e uma entrevistadas (70%) declararam
nunca ter tido nenhum contato com pessoas deficientes e nove entrevistadas (30%)
afirmaram já ter tido algum contato.
Foi observado, porém, que algumas entrevistadas afirmavam inicialmente nunca
ter conhecido nenhuma pessoa com deficiência e, em seguida, recordavam-se de ter
parentes com deficiências e até mesmo de já ter convivido com pessoas com algum tipo
Profissão Nº de mães %
Dona de casa 26 86,7%
Nível técnico 1 3,3%
Profissional liberal 1 3,3%
Estudantes universitárias 2 6,7%
40
de deficiência, porém esses dados não foram registrados. Não foi observada nenhuma
relação entre o contato anterior com pessoas com deficiência e a reação das mães ao
receber a notícia da doença (tabela 8).
Tabela 8: Teve contato anterior com pessoas com deficiência
Ao serem indagadas sobre a reação imediata ao tomarem conhecimento do
diagnóstico da criança, as respostas foram registradas conforme expressas
verbalmente e, para que fosse considerado o significado individual dos adjetivos
utilizados, foi solicitado às pesquisadas que esclarecessem ou definissem, de forma
mais explícita, o sentimento que tentavam expressar. Não foram, em nenhum momento,
oferecidas pistas sobre os adjetivos utilizados pelas entrevistadas ou seus significados.
Os sentimentos que podem ser presumidos / inferidos a partir do discurso das
entrevistadas serão discutidos no segundo capítulo, ao analisarmos os dados
enfocando a questão do sofrimento humano.
Quatro entrevistadas (13,3%) responderam ter ficado tranqüilas ou ter tido uma
reação “normal”, sendo que três reagiram dessa forma por pensar que a doença não
era grave e que logo a criança estaria curada e uma respondeu que “não se importou”,
não justificando sua resposta. Todas as outras vinte e seis entrevistadas (86,6%)
responderam utilizando mais de um adjetivo para expressar-se. Treze entrevistadas
Contato
anterior
Nº de mães %
Não 21 70%
Sim 9 30%
41
(43,3%) utilizaram o termo “desesperadas”; onze (36,7%) utilizaram “deprimidas”; seis
(20%) ficaram “chocadas”; cinco (16,7%) ficaram “revoltadas”; cinco “buscaram
tratamento imediatamente” para suas crianças; três (10%) buscaram o porquê” e três
sentiram “medo e insegurança”; uma (3,3%) sentiu-se “envergonhada”, uma “pensou
em suicidar-se” e uma sentiu-se “culpada” (tabela 9).
Os dados aqui obtidos estão em acordo com a literatura pesquisada referente ao
processo natural do luto que se segue a um infortúnio. Como podemos confirmar
através da teoria exposta a seguir. Estes dados serão retomados no segundo capítulo,
ao discutirmos as teorias sobre o sofrimento humano.
42
Tabela 9: como reagiu à notícia de que sua criança tinha uma doença
Reação à notícia
Nº de mães
%
desespero, gritos
13
43,3%
Choro, tristeza, Depressão
11
36,7%
Choque, susto
6
20%
Raiva, revolta
5
16,7%
Buscou tratamento
Tranqüila
5
4
16,7%
13,3%
Negação, não acreditou, não aceitou
3
10%
Questionou
3
10%
Medo, insegurança
3
10%
Vergonha
43
1
3,3%
Idéias suicidas
1
3,3%
Culpa
1
3,3%
I.4.2- O Processo Natural Do Luto
O luto é um processo natural pelo qual pode passar qualquer pessoa que sofra
uma perda importante e considerada irreparável. Constitui-se de fases ou estágios,
nos quais o indivíduo pode negar o fato, sentir raiva ou mesmo tentar negociar com
Deus, por meio de uma troca ou barganha.
A fase do luto em que ocorre a barganha, estudada a seguir, foi pesquisada ao
se perguntar sobre a realização de promessas. Vinte entrevistadas (66,7%) declararam
não ter feito nenhum tipo de promessas e dez entrevistadas (33,3%) o fizeram (Tabela
10). Esta questão também será tratada no capítulo seguinte, ao discutirmos as
teodicéias.
44
Tabela 10: fez alguma promessa para obter a cura da criança
A reação das famílias ao receberem a notícia de que seu bebê é portador de
uma doença como a Paralisia Cerebral tem sido alvo de estudos por diversos autores,
que comparam o processo que se sucede a essa notícia ao processo de luto pelo qual
passa qualquer ser humano após receber a notícia de uma perda importante. Esses
dados também serão analisados no segundo capítulo, ao tratarmos do significado
religioso do sofrimento.
A psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross (1998), em suas pesquisas realizadas com
pacientes terminais e seus familiares, estudou os diferentes estágios pelos quais as
pessoas passam ao se depararem com notícias trágicas. Segundo a autora, esses
estágios, que podem ter duração variável, constituem mecanismos de defesa para
enfrentar situações extremamente difíceis, sendo que o único sentimento que persistiria
em todos esses estágios seria a esperança.
O primeiro estágio, de negação, é geralmente uma defesa temporária, logo
substituído por uma aceitação parcial e pelo segundo estágio, de raiva, com
sentimentos de revolta e inveja. A raiva pode tomar várias direções, sendo dirigida
contra o médico, o cônjuge ou contra Deus e projetar-se no ambiente. O terceiro
estágio, de barganha, seria na realidade uma tentativa de adiamento, onde a maior
Fez promessa Nº de mães
%
Não 20 66,7%
Sim 10 33,3%
45
parte das trocas é negociada com Deus, através de promessas e onde podem estar
associados os sentimentos de culpa. O quarto estágio, da depressão, é também
freqüentemente acompanhado de culpa ou vergonha, podendo os indivíduos isolarem-
se. Finalmente, porém não obrigatoriamente, viria o estágio da aceitação. As pessoas
podem retroceder a estágios anteriores ou nunca passar por alguns estágios, nunca
chegando à aceitação (Kübler-Ross, 1998).
O luto pode ser considerado um processo adaptativo e saudável, podendo ser
descrito em quatro dimensões: choque e entorpecimento, período de confusão de
sentimentos; ansiedade e busca, período de sentimentos ambíguos e de inquietação,
raiva e culpa; desorientação e desorganização, marcado por sentimentos de tristeza
profunda e, finalmente, reorganização e resolução, onde são tomadas decisões e a vida
(re)toma seu curso (Bowby; Parkes, 1970 apud Bataglia, 2003).
A negação e a repressão, mecanismos de defesa mais intensos e freqüentes
durante a fase do luto, são adaptativos durante as fases de elaboração da perda,
protegendo da dor, mas podendo ser usados para bloquear as informações e a
elaboração da realidade (Moses, 1970 apud Bataglia, 2003).
Pedro A. de Souza (2004) trabalha com o Modelo de Superação da Crise como
Processo de Aprendizagem em Espiral, proposto por Schuchardt, que considera o
processo de superação emocional como uma espiral onde as pessoas transitam de
uma fase a outra e podem também retornar a fases anteriores. Este modelo leva em
consideração o quadro de gravidade e irreversibilidade da Paralisia Cerebral associado
à possibilidade de superação de suas situações de perda, por meio de um contexto
pedagógico orientado por profissionais capacitados, onde conviver com a adversidade
e superá-la torna-se um processo de aprendizado.
46
O modelo é dividido em três estágios, sendo os dois primeiros vivenciados
como um fracasso subjetivo. O estágio I (inicial) é caracterizado por uma dimensão
‘cognitiva’, onde os profissionais tomam as decisões. Este estágio se subdivide em
fases do desconhecimento, com relação ao diagnóstico e à compreensão de seu
significado, que pode ser negado e da informação, onde se oscila entre crer na
verdade ou na utopia da cura. O estágio II (de transição) se caracteriza pelo
‘descontrole emocional’, subdividindo-se em fases de ‘agressão, ‘negociação’ e
‘depressão’, quando a verdade não pode mais ser negada. O estágio III (estágio
alvo) tem na ‘ação auto-controlada’ a sua principal característica e subdivide-se nas
fases de aceitação (da situação e de si), da atividade (ação) e da solidariedade,
quando busca ajudar o próximo e onde deverá ocorrer a verdadeira inclusão social
(Souza, 2004).
As reações dos pais ao nascimento de uma criança que não corresponda às
expectativas podem variar, em função de fatores como a aceitação ou rejeição da
gravidez, o tipo de personalidade dos pais, o relacionamento do casal antes do
nascimento e o grau de preconceito com relação a pessoas com deficiência (Ardore;
Regan, 2003). As autoras citam uma pesquisa realizada sobre os sentimentos negativos
mais comuns em mães de crianças com ndrome de Down onde foram encontrados,
em 95% das entrevistadas, a culpa relacionada ao ‘castigo’ por algo que fizeram no
passado, a negação inicial do diagnóstico e os sentimentos de inferioridade por terem
‘produzido’ algo ruim; em 90% constatou-se vergonha, procurando esconder a criança e
confusão perante termos médicos desconhecidos; em 80% constatou-se o desejo de
morrer ou fugir da situação, raiva indiscriminada e culpa dirigida a terceiros; 70%
apresentavam sentimentos de solidão; 60% se consideraram indignas de amor, e 40%
47
tinham idéias de infanticídio passivo e desamparo (Childs, 1992 apud Ardore e Regan,
2003).
Sobre o período pelo qual a família passa ao receber a notícia, Buscaglia (1997)
refere que a reação inicial, basicamente formada por lágrimas, decepção e descrença,
envolverá os pais e os irmãos, que se vêm obrigados a aceitar uma realidade não-
desejada em lugar da criança perfeita esperada. Esse período também se caracteriza
por questionamentos:
“Por que eu? Um tempo para descobrir uma explicação. Será que Deus está nos
punindo? Um período de culpa. Se ao menos tivéssemos procurado aquele outro
médico... Se eu não tivesse tomado aqueles comprimidos...” (Buscaglia, 1997, p.106).
Algumas mães se culpam por falta de cuidado na gravidez e os pais se
envergonham: “Alguns pensarão que a doença está relacionada aos pecados dos pais,
à ignorância, pobreza e sujeira” e que Essas coisas não acontecem a gente de bem,
temente a Deus’ (Buscaglia, 1997, p.106). O autor refere que, quando esses
sentimentos são muito fortes, o indivíduo se sente, além de indigno, pecador e
repugnante. Quando lhes é tirada qualquer esperança de que os filhos possam se
tornar o esperado, esses pais e mães sentem-se indefesos e tentados a se retirar
dessa realidade sentida como cruel. Estas pessoas temem pelo futuro desconhecido e
pelo que sua criança poderá pensar deles. São comuns a depressão, o isolamento e
auto-exílio ou a negação dos sentimentos; eles culpam aos outros e a Deus. Estes
são mecanismos de defesa naturais e necessários para proteção contra a dor
(Buscaglia, 1997).
48
O autor apresenta as reações e os sentimentos dos pais através de
depoimentos, onde estão presentes a negação, quando afirmam não haver nada de
errado com o filho; a culpa auto-dirigida ou atribuída ao cônjuge, quando se perguntam
o que fizeram para causar tal acontecimento; a confusão, quando não sabem o que
fazer ou onde buscar ajuda; a raiva por não haver tratamentos para a recuperação do
filho e o desespero, quando finalmente não encontram mais esperanças (Buscaglia,
1997).
Buscaglia afirma que Uma deficiência não é uma coisa desejável e não
razões para se crer no contrário. Quase sempre causará sofrimento, desconforto,
embaraço, lágrimas, confusão e muito tempo e dinheiro” (1997, p. 20). O autor faz
referência a um depoimento que traduz de forma bastante clara os sentimentos de
desespero e as reações de pais e mães logo após serem informados da deficiência
permanente de suas crianças.
“Aprender a suportar o sofrimento inevitável não é fácil. Posso olhar para trás
agora e ver a lição aprendida, as suas etapas; mas quando eu a estava aprendendo,
cada passo era muito difícil, aparentemente insuperável. Pois, alem do problema prático
de como proteger a vida da criança, que poderá se prolongar mais do que a dos pais,
existe o problema da sua própria aflição. Todo o brilho da vida se apaga, todo o orgulho
da paternidade. Mais ainda, uma verdadeira sensação de que o fio da vida está
sendo cortado com aquela criança. O fluxo das gerações é interrompido. A morte seria
mais fácil de se suportar, pois ela é definitiva, tudo deixa de existir. Quantas vezes gritei
em meu íntimo que seria melhor se minha filha morresse! Se isso choca você, que
nunca passou por essa situação, não chocará aqueles que já a passaram. Eu teria dado
as boas vindas à morte de minha filha e até hoje o faria, pois então ela estaria
finalmente a salvo. É muito difícil alguém se furtar à dor durante toda a vida, pois, assim
como yin e yang, a alegria e a dor andam juntas. Na maioria das vezes, a dor que
vivemos é temporária, vai tão rápido quanto vem. Nada mais é do que outro evento
consciente que se aprendeu a esperar no processo normal da vida. Como tal, é vivido e
49
depois esquecido. É possível, porém, que muitas pessoas vivam sem conhecer o
verdadeiro desespero, o tipo inevitável que não será esquecido, mas com o qual se
deve conviver. Aquele que não se pode modificar. A pessoa terá de mudar seu estilo de
vida e seus sentimentos a fim de acomodá-lo, pois ele estará sempre presente, não se
pode escapar dele” (Buck, 1950 apud Buscaglia, 1997, p.104).
Segundo este autor, as reações iniciais também podem ser determinadas pela
aparência física, isto é, pela visibilidade da deficiência, que recordará a doença à
família; os pais das crianças nascidas com a doença, porém fisicamente perfeitas,
se sentirão permanentemente ameaçados por um futuro imprevisível.
Enfim, desejar um bebê mobiliza sentimentos e cria expectativas. Pais e mães
se preparam para acolher em suas vidas uma criança saudável e que represente a
continuidade de seus sonhos. Ter um bebê com uma doença que pode prejudicar seu
desenvolvimento e comprometer de forma permanente o seu futuro, pode gerar
processos de sofrimento que são percebidos e interpretados por meio de diferentes
formas de racionalizações. A busca pelo significado da doença e do sofrimento tem
levado o ser humano a estabelecer relações com o pensamento religioso desde os
primórdios da civilização. As questões que envolvem o sofrimento e o papel da religião
na construção dos processos nômicos / anômicos, bem como a visão da doença /
deficiência física através do texto bíblico e da mitologia serão desenvolvidos no
segundo capítulo.
50
CAPÍTULO II
DOENÇA, SOFRIMENTO E PENSAMENTO RELIGIOSO
2.1- Religião, Organização Social E Nomia
51
O relevante papel desempenhado pela religião na construção social do mundo
material e imaterial tem sido afirmado por diversos autores. Peter Berger (1985), em
seus estudos sobre religião e sociedade, discute os postulados de Marx, Durkheim e
Weber, a partir dos quais desenvolve suas idéias.
Tomamos, inicialmente, estes autores como referencial para fundamentação
teórica e compreensão das bases do processo de construção de valores e conceitos,
da internalização de papéis, enfim de nomização da população pesquisada.
Fundamentando-se em Marx (2001), o autor desenvolve a visão de sociedade
humana como um empreendimento de construção do mundo a partir de uma
necessidade antropológica de exteriorização, onde o ser humano, ao construir esse
mundo, constrói a si mesmo e à religião; esta, por sua vez, lhe possibilita situar-se
nesse mundo e fornecer-lhe um significado. Este significado é construído
coletivamente, pela própria sociedade, cumprindo a religião, nesta tarefa, o papel de
alienar o indivíduo de suas ações.
O que é idealizado na religião é visto como um produto natural da vida em
sociedade, sendo que se pode criar / recriar uma sociedade se as suas aspirações
puderem ser criadas: idealizar corresponderia a uma condição da existência humana,
sendo a sociedade constituída, antes de tudo, pela idéia que faz de si.
As representações sociais formam a consciência coletiva, considerada como o
conjunto de valores, costumes e crenças que temos sobre as categorias. Todas as
noções fundamentais das categorias da ciência foram originadas na religião (Durkheim
2000).
Berger (1985) aponta que o ser humano produz a linguagem e, sobre esta, os
seus símbolos. A sociedade exerce a função de estruturar, distribuir e coordenar as
52
atividades de construção do mundo, sendo que somente nela os produtos dessas
atividades poderão ser duradouros. A sociedade pode ser descrita como um elemento
da cultura (e como tal, um produto humano) que estrutura as contínuas relações entre
os indivíduos; é constituída e mantida por seres humanos em ação e seus padrões são
relativos no tempo e no espaço e segundo o momento histórico.
A sociedade como produto do indivíduo e este como produto da sociedade
constituem o caráter inerente ao fenômeno dialético social, uma condição necessária à
sua existência. Assim, a sociedade não é apenas o resultado da cultura.
O processo dialético de construção da sociedade humana é realizado
basicamente por meio dos processos de exteriorização, objetivação e interiorização
(Berger, 1985).
A exteriorização se daria por uma necessidade antropológica de expressão do
ser humano que, como ser biologicamente inacabado, se constrói ao construir seu
mundo e sua cultura, num processo permanente onde desenvolve relações instáveis e
nunca acabadas. A existência humana foi sintetizada por Berger como um contínuo
pôr-se em equilíbrio do homem com seu corpo, do homem com seu mundo” (1985, p.
18). Essa construção, longe de ser um fato individual, é coletiva, onde a própria
sociedade estrutura e distribui as atividades, também administrando seu produto.
O processo de objetivação transforma esse mundo material ou imaterial (moral),
humanamente produzido, no mundo dos valores, como uma realidade exterior ao ser
humano, onde os produtos de seu trabalho adquirem uma realidade e uma autonomia
independentes do ser que os criou, podendo até mesmo adquirir uma lógica própria.
O mundo dos valores, humanamente produzido, ao seguir o caminho da
objetivação, subordina o indivíduo e o torna incapaz de se confrontar com as
53
instituições, a cultura e os valores morais, perdendo sobre estes o controle e passando
a sofrer sua influência e por estes ser controlado. Pelo fato de imporem-se como
realidade, estas instituições adquirem objetividade coercitiva, conceito desenvolvido por
Durkheim (2000).
Ruben Alves afirma a transmissão da cultura como um processo de objetivação:
“Aqui está a curiosa propriedade a que nos referimos: nós nos esquecemos de que as
coisas culturais foram inventadas e, então, elas aparecem aos nossos olhos como se
fossem naturais” (Alves, 2002, p.39).
A objetivação define e impõe papéis e condutas, construindo no ser uma
objetivação de si mesmo que é internalizada e passa a ocupar o lugar de consciência,
ou seja, de superego, conceito da psicanálise que indica parte da personalidade que
age inconscientemente sobre o eu (ego), protegendo-o de sentimentos de culpa
(Ferreira, 1999). Berger chega à definição da sociedade como “um produto da atividade
humana que atingiu o status de realidade objetiva (...)” e afirma que “a sociedade pode
até destruir o indivíduo” (Berger, 1985, p.24).
O mundo que a sociedade oferece para ser habitado abrange a biografia do
indivíduo e sua própria vida. Este mundo aparecerá como objetivamente real, a ele
próprio e aos outros, se localizado no interior de uma sociedade que tenha o caráter de
realidade objetiva.
“A objetividade da sociedade se estende a todos os seus elementos constitutivos. As
instituições, os papéis e identidades existem como fenômenos objetivamente reais do
mundo social, embora eles e este mundo sejam ao mesmo tempo produções humanas”
(Berger,1985, p. 26).
54
As instituições exteriores e coercitivas impõem ao indivíduo seus padrões pré-
definidos; os papéis que se espera que o indivíduo desempenhe no contexto
institucional são objetivamente definidos e disponíveis como modelos da conduta
individual. O indivíduo pode desempenhar o papel como um objeto cultural e conservar
uma certa consciência de si mesmo como distinto deste papel. Além dos papéis, a
sociedade oferece uma identidade e o indivíduo deve não representar, mas viver o
papel realmente e ser capaz de dialogar com as objetivações de si mesmo. A função
legitimadora das objetivações sociais é destacada por Weber (1991).
O processo em que o indivíduo se apropria da realidade por ele objetivada, ou
empreendimentos coletivamente construídos, tornando esta realidade parte de si,
subjetivando-a e aceitando a cultura, as instituições, os papéis e a identidade postos é
denominado interiorização. Trata-se, como o processo da socialização, de um processo
dialético não passivo, onde o ser interage e modifica a realidade, ora exteriorizando, ora
objetivando. A interiorização é, antes de tudo, a reabsorção na consciência do mundo
objetivado de tal maneira que as estruturas deste mundo chegam a determinar as
estruturas subjetivas da própria consciência. A sociedade funciona como a ação
formadora da consciência individual onde o indivíduo apreende vários elementos do
mundo objetivado como fenômenos internos de sua consciência ao mesmo tempo em
que os apreende como fenômenos da realidade exterior.
A socialização garante a continuidade da sociedade no tempo. Os processos de
socialização são formas de ensinar uma nova geração a viver de acordo com os
programas institucionais da sociedade; pode ser descrita como um processo de
aprendizado (aceitar papéis e identidades que constituem a estrutura social) e, indo
além, identificando-se com esses sentidos objetivados, sendo por eles modelado,
55
atraindo-os e tornando-os seus sentidos, representando e exprimindo-os. O êxito da
socialização se quando é estabelecido elevado grau de proporção entre o objetivo e
o subjetivo. O indivíduo é socializado para ser uma determinada pessoa e habitar um
determinado mundo.
É possível resumir a formação dialética da identidade pela afirmação de que o
indivíduo se torna a pessoa que os outros consideram quando tratam com ele e é em
diálogo com os outros que ele se apropria do mundo. Caso não ocorra essa interação,
haverá uma apropriação apenas mecânica dessa realidade humana socialmente
produzida (Berger, 1985).
Deste modo, temos que a subjetividade é construída socialmente, passando o
indivíduo a identificar-se e a desejar o que a sociedade valoriza. Os conhecimentos
racionais, lógicos, e as manifestações afetivas são gerais, porque são construções
coletivas. Deste modo, a razão, que não pode ser considerada universal ou abstrata,
por ser sempre relativa aos grupos sociais, ultrapassa os conhecimentos empíricos,
definindo representações, classificações (sistemas de noções hierarquizadas) e
condutas, sendo motivadora de ações (Durkheim, 2000).
Analisar a experiência religiosa subjetivamente (percepção interior) implica
também em analisá-la objetivamente (realidade exterior) e a preocupação do ser
consiste no trabalho consciente de seus sentimentos, origem de seu caráter moral e de
sua forma de se apresentar no mundo.
2.1.1- Internalização de papéis: as mães e os processos de nomia / anomia
56
Os papéis ou a identidade objetivados oferecidos pela sociedade podem passar
a não satisfazer às necessidades do indivíduo. É o que ocorre com a população
investigada ao se ver repentinamente obrigada a lidar com um bebê que, além de não
corresponder às suas expectativas, exige cuidados especiais. Conforme constatamos
no primeiro capítulo, essas mães terão que adentrar o universo da deficiência física,
assumindo responsabilidades com tratamentos médicos e operando mudanças em sua
rotina e em seus planos de vida. Apresenta-se, dessa forma, uma situação de crise de
valores.
Ao investigarmos os dados referentes ao nível de instrução das entrevistadas
(tabela 6), constatamos a necessidade de cuidar da criança como justificativa para o
afastamento dos estudos.
A profissão da população (tabela 7) também foi alvo de investigação no capítulo
anterior, quando observamos que 86,7% das entrevistadas são donas-de-casa. A
profissional liberal (3,3%) é autônoma, sendo seu horário de trabalho flexível; as
estudantes universitárias (6,7%) e a profissional de nível técnico (3,3%), permanecem
em suas atividades durante apenas meio período, distribuindo a outra parte de seu
tempo entre o cuidado com sua criança, o deslocamento para as sessões de terapia e
as tarefas domésticas. As entrevistadas que cursam Terapia Ocupacional afirmam ter
iniciado o seu curso motivadas pelo interesse despertado pela patologia de sua criança.
O papel de dona-de-casa, como podemos constatar, não é exclusivo das
entrevistadas que se declararam como tal; quando avaliado o tempo que esta
população despende em suas tarefas domésticas, constatamos que, quando em seu
cotidiano as entrevistadas que também exercem atividades profissionais se acham
57
obrigadas a escolher entre seu trabalho, as tarefas domésticas ou o cuidado com sua
criança, as atividades profissionais são na maioria das vezes preteridas.
A faixa etária em que as crianças se encontram atualmente (tabela 11),
compreende 72,3% das crianças entre três meses e cinco anos, carecendo, conforme
nossos estudos teóricos no capítulo anterior, além dos cuidados naturais à sua faixa
etária, dos cuidados especiais relativos às necessidades ocasionadas por sua
patologia. As crianças entre nove e dezessete anos, quando não estão na escola,
também necessitam de cuidados especiais. Esses dados tornam evidente que uma
considerável quantidade de tempo deve ser diariamente empenhada nas tarefas
cotidianas.
Tabela 11: faixa etária atual das crianças
Pudemos constatar que as entrevistadas assumem todas as responsabilidades
relativas às decisões e à operacionalização do tratamento da criança, à sua
Idade atual da criança Nº de mães %
3 meses 1 3,3%
10 a 21 meses 3 10%
2 anos a 2 anos e 9 meses 6 20%
4 a 5 anos 12 40%
9 a 10 anos 5 16,7%
14 anos 2 6,7%
17 anos 1 3,3%
58
escolarização e a seus cuidados diários. Considerando que 73,4% das entrevistadas
são casadas, conclui-se que seus cônjuges não se responsabilizam por suas crianças,
a não ser em ocasiões excepcionais (como férias do trabalho ou doença materna) e
também não tomam parte nas tarefas domésticas, conforme afirmado por todas as
entrevistadas. Considerando que 100% dos pais dessas crianças se encontram vivos,
pode ser aqui confirmada a prioridade do papel de mãe e dona-de-casa que
acompanha esta população, sobrecarregando-a.
A internalização de papéis ao saberem-se mães de uma criança com Paralisia
Cerebral pôde ser observada como um processo de difícil modificação de hábitos e
redefinição de condutas, imposto pela situação na qual inesperadamente se
encontraram; o desequilíbrio entre as necessidades objetivas e subjetivas é claramente
notado. A justificativa por não se desvencilharem deste papel mostra resignação, que
pode ser observada através da dificuldade de dialogar com o papel assumido. Estas
mães tentam desempenhar corretamente o papel que lhes foi imposto e que é
totalmente legitimado pela sociedade, não apresentando, porém, capacidade para
confrontá-lo, pois, caso o quisessem, não teriam condições materiais ou não
receberiam o apoio necessário.
Sölle (1996), em seus estudos sobre os papéis sociais de gênero, comenta a
história de uma dona de casa infeliz que assumiu o papel social de esposa e não
conseguia distanciar-se do mesmo, suportando resignadamente os maus-tratos de um
marido violento e tirano sem nada fazer para tentar mudar tal situação. A autora faz
referência à teoria dos papéis, onde o indivíduo desiste de qualquer mudança,
alienando-se de si mesmo por não ser capaz de exercer qualquer modificação em sua
59
vida ou de fornecer-lhe qualquer significação. “A pessoa sofredora é aquela que não é
mais dona e sim escrava de seu papel doméstico” (Sölle, 1996, p. 21).
Assumir o papel de mãe de uma criança com uma doença grave e causadora de
deficiência causou e ainda causa o desequilíbrio entre os interesses objetivados e
subjetivados, com submissão destes últimos. A frase de uma das entrevistadas mostra
com clareza o choque de interesses em sua vida: “Às vezes ainda acordo revoltada
toda a minha vida se voltou para o meu filho”. A teoria dos papéis pode se adequar à
justificação do sofrimento na interpretação cristã para o sofrimento conforme
examinamos a seguir.
2.1.2- O Pensamento Religioso Na Formação Do Nômus
As expressões simbólicas partem da necessidade de fornecer sentido (significar)
e de orientar-se num mundo de experiências incompreensíveis, pois estas conduzem à
compreensão das relações que envolvem religião e valores. Os valores são expressos
nas relações (circulares) entre ethos e visão de mundo, correspondendo ethos aos
elementos valorativos de uma cultura e visão de mundo aos aspectos cognitivos e
existenciais (Geertz, 1989). Os símbolos religiosos guardam os significados positivos ou
negativos que são expressos através de rituais e mitos, sendo o mal interpretado
segundo a visão de mundo do grupo. Os símbolos sagrados, que podem variar
amplamente nas diferentes sociedades, comportam a capacidade de fornecer um outro
sentido ao objeto real e formar um sistema religioso. A abordagem para estudo deste
60
tema deve, portanto, considerar a sociedade e a cultura reais (e não abstratas) nas
quais pessoas reais se inserem.
As condutas padronizadas observáveis, individuais ou coletivas, servem ao
propósito de reafirmar concretamente valores socialmente significativos. Aderir a um
valor significa afirmar a pertença a uma sociedade, estando, portanto a sociedade e a
ação humana saturadas de simbolismo; o simbolismo fundamenta a ação social. Os
símbolos têm as funções interdependentes de comunicação (entre sujeitos) e de
participação (sentimento de pertença) (Rocher, 1971).
Segundo Geertz (1989), a religião, através de sua interferência nos contextos
gerais da existência, fundamenta as questões mais específicas da ação humana; além
de ser metafísica, ela comporta o elemento moral, a exigência de devoção e o reforço
do compromisso emocional, isto é, exerce influência sobre o ethos’, ou a cultura, as
atitudes e os sentimentos dos indivíduos de uma sociedade. Elemento essencial em
todas as religiões, o ethos’ é formado pelos elementos valorativos dos aspectos morais
e estéticos (noção de bem e mal) de uma cultura e descritos pela ‘visão de mundo’, que
compreende seus aspectos cognitivos e existenciais, seus ódios e temores, seus
conceitos de natureza, de si mesmo e de sociedade. Ao fundir ethos e visão de mundo,
a religião proporciona a coesão social (Geertz, 1989).
Assim, o mundo socialmente construído constitui uma ordenação da experiência.
Durkheim (2000) observa a construção do mundo como atividade ordenadora ou
nomizante capaz de fornecer proteção ao indivíduo contra a perda de sentido,
ocasionada pelas situações marginais impostas ao ser humano. O nomos situa a vida
do indivíduo numa trama de sentidos que tudo abarca; esta, pela sua própria índole,
transcende o indivíduo (Berger, 1985).
61
Tratando-se a socialização do indivíduo de um processo contínuo e que nunca é
concluído, e a construção e manutenção do mundo um empreendimento coletivo,
realizado pelo indivíduo em diálogo com pessoas próximas e que lhe são significativas,
torna-se claro o risco que implica a suspensão das relações sociais. Caso ocorra tal
ruptura, como nas situações de mudanças importantes e significativas ou experiências
capazes de desencadear dor moral (como divórcio, doença e morte), pode haver a
perda do equilíbrio e da plausibilidade, ou seja, a anomia.
Lemos (2002, p. 488) afirma que a religião é um fator de nomia por fornecer
justificativas para a existência do indivíduo na posição em que se encontra no mundo e
também para as “experiências vividas por pessoas em situações de doença”. A autora
considera “compreensível que o ser humano se volte para a religião em seus momentos
críticos de doença”, pois a doença representaria o caos e a religião seria o fator
sagrado capaz de estabelecer a ordem.
A população pesquisada, ao ter que assumir o papel de mães de crianças com
uma doença grave, após sofrerem o impacto causado pela notícia da doença e caírem
num processo anômico, tiveram que refazer seu nomos; viram-se obrigadas a
freqüentar clínicas, centros de reabilitação e outras instituições especializadas e a
estarem próximas de grupos até então desconhecidos, como familiares de outras
crianças com deficiências, equipes de profissionais da saúde e associações específicas
e entraram em contato com uma linguagem nova com termos técnicos desconhecidos.
Sua visão de mundo tem sido permanentemente confrontada com seu ethos e, para
afastarem-se da anomia, tiveram que passar por um processo de reaprendizado ou
ressocialização.
62
Os fenômenos anômicos, além de serem superados, devem ser explicados, e
qualquer explicação que forneça significado e constitua uma legitimação religiosa,
independente de seu grau de complexidade teórica, pode ser denominada teodicéia. A
teodicéia exprime importantes elementos psíquicos individuais e coletivos, o que explica
seu êxito na legitimação religiosa dos fenômenos anômicos (Berger, 1985).
Como a população pesquisada explica tal sorte de alterações em seus planos e
em toda a sua vida? Qual será a explicação dessas mães para a doença de suas
crianças? É o que tentaremos compreender a seguir.
2.2- Teodicéia: É Possível Explicar o Mal?
Partindo do pressuposto da existência de um Deus único, criador de um mundo,
perfeito, justo e bom, onipotente (que tudo pode), onipresente (que está em toda parte) e
onisciente (que tudo sabe), como explicar a presença do mal, da injustiça e do sofrimento
no mundo por ele criado? Este é o problema em que se insere a teodicéia.
Do alemão Theodicee vem da origem grega theós, 'deus', 'divindade', + díke,
'justiça'. Termo desenvolvido por Leibniz para designar a doutrina que procura conciliar a
bondade e a onipotência divinas com a existência do mal no mundo (Ferreira, 1999).
O problema da teodicéia foi analisado por Weber (1991) e a partir daí desenvolvido
por Bourdieu e por Berger.
A teodicéia está presente dentro das diferentes tradições, envolvendo um
conjunto de explicações religiosas que buscam responder às questões sobre o
sofrimento do ser humano no mundo; apresenta-se dentro da concepção do
monoteísmo à medida que se coloca a questão de como conciliar um Deus único,
63
onipotente e perfeito à maldade e ao
sofrimento existentes no mundo que ele
próprio criou e governa.
Ao serem perguntadas
sobre sua crença na existência de Deus (Tabela 12), vinte e oito (93,4%) afirmaram
crer, uma afirmou não crer (3,3%) e uma disse ter dúvidas (3,3%).
Tabela 12: você crê na existência de Deus
Após tomar conhecimento da doença, vinte e sete entrevistadas (90%)
mantiveram sua religião e três (10%) mudaram, sendo que uma retornou à religião
anterior, não tendo sido estabelecida nenhuma relação entre o conhecimento do
diagnóstico da criança e a mudança de religião, que ocorreu anos depois (Tabela 13).
Crê em Deus Nº de mães %
Sim 28 93,4%
Não 1 3,3%
Duvida 1 3,3%
64
Tabela 13: mudou de religião ao conhecer o diagnóstico de sua criança
Quando perguntadas sobre sua religião, doze entrevistadas (40%) declararam-
se católicas; onze (36,7%) evangélicas; três (10%) disseram freqüentar várias ou
todas, sem se ater a nenhuma religião específica; uma (3,3%) declarou-se espírita e
uma testemunha de Jeová (3,3%); duas (6,7%) declararam-se sem religião (Tabela
14). Não foi possível estabelecer nenhuma relação entre a religião da população
pesquisada e os outros dados colhidos.
Tabela 14: qual é a sua religião atual
Berger (1985) considera que não indivíduo essencialmente distinto de sua
coletividade, sendo que, numa teodicéia mais simples ou menos racionalizada, o
indivíduo identifica-se com a coletividade e seu nomos, como nas religiões do tipo
Mudou de religião Nº de mães %
Não 27 90%
Sim 2 6,7%
Retornou 1 3,3%
Religião atual Nº de mães %
Católica 12 40%
Evangélica 11 36,7%
Nenhuma específica 3 10%
Sem religião 2 6,7%
Testemunha de Jeová 1 3,3%
Espírita 1 3,3%
65
microcósmico / macrocósmico, nas religiões que postulam a participação auto-
transcendente ou a continuidade ontológica e nas religiões ligadas à natureza. Essas
formas religiosas primitivas, onde o indivíduo busca a união com as forças ou seres
sagrados e o mundo é considerado ilusório, descritas por Durkheim (2000), originaram
as teodicéias mais racionalizadas. (...) A maioria dos homens “sem religião” partilha
ainda das pseudo-religiões e mitologias degradadas (Durkheim, 2001).
Em seus estudos sobre as religiões no Brasil, Moreira (2004, p.121) observa os
“processos de hibridização, de mútua influencia de mixagem e justaposição de práticas
e rituais religiosos”, onde os indivíduos reorganizam as idéias religiosas, montando seus
próprios sistemas de crenças e por vezes desvinculando-se das instituições.
Nas teodicéias das religiões bíblicas, tem-se a submissão inquestionável a um
deus todo poderoso e justo, onde o problema da justiça divina é substituído pelo
pecado; isto cria a antropodicéia, que possibilita o mazoquismo, onde o sofrimento
humano é causado pelo próprio indivíduo (Berger, 1985).
Com a intenção de investigar as relações estabelecidas entre doença, pecado e
castigo divino no imaginário da população a partir da doença / deficiência de suas
crianças, foram realizadas as perguntas que se seguem, questionando as possíveis
causas da doença/ /deficiência e relacionando as racionalizações dessa população e a
pesquisa teórica sobre o tema.
Foi perguntado às entrevistadas se ocorreu qualquer espécie de “aviso” a
respeito de sua gravidez, da criança ou qualquer sinal de que o bebê seria diferente
sob qualquer aspecto (Tabela 15). Dezesseis (53,3%) afirmaram não ter recebido
nenhuma espécie de aviso ou sinal. Quatorze (46,7%) afirmaram ter recebido “avisos”
através de sonhos, sensações, “visões” ou pessoas conhecidas ou desconhecidas.
66
Das entrevistadas que receberam “avisos”, 42% são católicas, 42% evangélicas, 8%
freqüentam várias religiões e 8% não tem religião.
Esta pergunta pesquisou a crença da população em símbolos ou
acontecimentos que possam necessitar de uma racionalização mais próxima do
imaginário religioso e a sua capacidade de estabelecer relações entre a doença da
criança e o sagrado.
Tabela 15: recebeu qualquer tipo de “aviso” antes do nascimento
Ao tomar conhecimento do diagnóstico da criança, vinte mães (66,7%) não
buscaram auxílio religioso, enquanto dez (33,3%) o fizeram (Tabela 16). As que
buscaram a religião procuraram reverter a situação por meio de promessas, buscaram
uma justificativa para a doença, ou buscaram apoio (ser consoladas).
Tabela 16: buscou auxílio religioso ao saber o diagnóstico
Recebeu “aviso” Nº de mães %
Não 16 53,3
Sim 14 46,7
Buscou auxílio Nº de mães %
Não 20 66,7%
Sim 10 33,3%
67
Ao ser questionada
a causa da existência de
pessoas com deficiência no
mundo, metade (50%) das
entrevistadas não soube explicar e
destas, três (6%) “nunca pensaram”
sobre o tema. Seis (20%) afirmaram
que Deus utiliza a deficiência para ensinar (o sentimento de culpa e a pedagogia do
sofrimento); duas (6,7%) afirmaram causas médicas (erro médico, problemas no parto,
doenças) e o mesmo número afirmou ser castigo, provação ou resgate (racionalizações
presentes nas teodicéias) e propósito ou vontade divina (Deus quer provar); uma (3,2%)
afirmou que as pessoas deficientes são “pessoas especiais” (portanto, suas mães
seriam pessoas “escolhidas” ou predestinadas) (Tabela 17).
Tabela 17: como você explica a doença / deficiência no mundo
Como explica a deficiência Nº de mães %
Não sabe 15 50%
Deus quer ensinar através 6 20%
Médicas 2 6,7%
Provação / Resgate 2 6,7%
Castigo 2 6,7%
Propósito /Vontade de Deus 2 6,7%
São pessoas especiais 1 3,2%
68
Transcrevemos aqui algumas das respostas das entrevistadas:
1- porque Deus quer;
9- está resgatando o que deixou para trás;
10 -já ouvi falar que estão pagando;
11- são pessoas especiais;
17- ensino de vida para a pessoa saber que a vida não é mar de rosas;
19- nada acontece por acaso; é para acordar as pessoas.
Quando perguntadas sobre quais seriam as possíveis causas da deficiência de
sua criança, as causas médicas incluindo “erro médico”, acidentes e doenças foram
resposta de onze (36,7%) entrevistadas; seis (20%) responderam que a deficiência era
uma forma de Deus ensinar valores, (a culpa e a pedagogia do sofrimento); cinco
(16,7%) não souberam explicar ou nunca pensaram sobre o tema e cinco (16,7%)
afirmaram ser conseqüência de erro cometido pela mãe (noção de pecado e punição);
uma (3,3%) afirmou ser conseqüência de sofrimento (emocional) da mãe durante a
gravidez (sentimento de culpa e punição); uma afirmou que a deficiência foi causada
por erro da própria criança (noção de castigo por erro em vidas anteriores) e uma
respondeu que “Deus quis assim” (Deus quis provar) (Tabela 18).
69
tabela 18: como você explica a doença / deficiência de sua criança
Algumas das respostas, foram:
1- foi por erro do meu filho; Deus queria provar a minha paciência, o meu caráter;
3- sem ter motivo; Deus quis testar a gente;
10- nada acontece por acaso; filhos especiais são para pais especiais; para
crescimento da mãe;
11- não acontece na vida da gente por acaso; é um chamado de Deus para a
gente prestar atenção nas coisas simples da vida;
15- não tem explicação, não sei o que eu fiz de errado;
25- é propósito de Deus.
Como explica a deficiência Nº de mães %
Causas médicas 11 36,7%
Forma de Deus ensinar valores 6 20%
Não sabe 5 16,7%
Erro da mãe 5 16,7%
Sofrimento da mãe na gravidez 1 3,3%
Erro da própria criança 1 3,3%
Deus quer 1 3,3%
70
As questões anteriores (tabelas 17 e 18) e a seguinte (tabela 19) investigam as
teodicéias utilizadas pela população para entender a presença da doença / deficiência e
também investigam a existência de sentimentos de culpa com relação à deficiência da
criança. É interessante notar que 40% das entrevistadas responderam de forma
contraditória às duas questões, afirmando não saber ou causas médicas em uma
questão e utilizando teodicéias para responder à outra questão. Também é interessante
notar a diferença de respostas para as causas da existência de pessoas com deficiência
no mundo e da deficiência em sua criança, onde não saber as causas da deficiência no
mundo foi referido por 50% e não saber a causa em sua própria criança, por 16,7%; as
causas médicas para a existência de pessoas deficientes no mundo foram apontadas por
6,7%, enquanto as causas médicas para a deficiência da própria criança, por 36,7% (ver
a transcrição das respostas no anexo 2).
Diferentes tipos de teodicéia são desenvolvidos conforme os graus de
racionalização das explicações para o mal e o sofrimento no mundo e estão relacionados
à concepção de Deus e à idéia de pecado e salvação. As teodicéias podem ser
classificadas em escatologia messiânica, retribuição, dualismo, predestinação e
transmigração das almas (Weber, 1991).
A escatologia messiânica está presente no cristianismo e se baseia no sacrifício
expiatório de Jesus. Apóia-se na idéia de um deus salvador que virá para fazer justiça, ou
seja, os sofredores serão salvos e os justos herdarão o reino dos céus; os sofrimentos
atuais, conseqüência de pecados cometidos pelos antepassados, deverão ser
recompensados no “além”. O indivíduo passa a orientar suas ações neste mundo com
vistas ás promessas do “além”, e o sofrimento é valorizado como forma de conciliar-se
71
com Deus, como ocorre na ética judaica antiga (Weber,1991). Esta idéia pode ser
observada historicamente em épocas de catástrofes (Berger, 1985).
A idéia ética da retribuição encontra suas bases no dia do juízo final, quando os
bons e os maus feitos seriam recompensados ou punidos; o mau, o pecado, adquiriria a
condição de crime,
“(...) que pode então ser incluído numa casuística racional e pelo qual se deve dar alguma
satisfação, neste mundo ou no além, para poder apresentar-se afinal justificado diante do
juiz dos mortos. Os castigos e as recompensas devem ser graduados de acordo com a
importância do mérito ou da falta (...)” (Weber, 1991, p. 353).
O dualismo apresenta-se como concepção religiosa que tem seus fundamentos na
escatologia (Berger, 1985). Considera que Deus não é todo-poderoso, pois existe uma
força oposta, maligna e de semelhante poder. A luta permanente entre o bem (nomia) e o
mal (anomia) conduzirá inevitavelmente à batalha final, onde os que sofrem serão
consolados e os injustos serão punidos. Esta forma de pensamento possibilita ao ser
humano a identificação dos elementos ético e espiritual ao bem (o que é puro) e do
elemento material / corporal ao mal, que aqui se apresenta como impuro e pecado
(Weber, 1991).
A graça da predestinação pressupõe um deus onipotente e onisciente e a crença
no destino e na total impotência do indivíduo, o qual obtém a salvação apenas pela graça
divina. “A predestinação proporciona ao agraciado o máximo de certeza de salvação
desde que ele esteja convencido de pertencer à aristocracia de salvação dos poucos
eleitos” (Weber, 1991, p. 383). Ela independe das faltas isoladas cometidas, pois
72
“o que a certeza da salvação e da perseverança da graça é saber que não é dessas
faltas, mas do agir desejado por Deus, que nasce a relação íntima e autêntica com Deus,
originada da misteriosa relação de graça, portanto da qualidade central da personalidade”
(Weber, 1991, p. 383).
Berger (1985) afirma que caberia ao indivíduo resignar-se ou comportar-se
eticamente dentro de uma ordem preestabelecida. Este pensamento leva a uma relação
entre a aristocracia dos eleitos, com seu êxito material, racional, profissional e econômico
e as bênçãos divinas, o que prepara um terreno bastante favorável à legitimação do
poder das classes mais favorecidas, além de servir como ”ópio” (na concepção marxista
da religião) para os desfavorecidos, anestesiando-os em suas penúrias (“fusão
essencialmente sadomasoquista”).
A idéia da predestinação poderia vir a favorecer e corroborar um certo
conformismo político-social, justificando e legitimando as posições dentro da ordem social
pré-estabelecida, pois a recompensa estaria não neste mundo, mas no “além”, na vida
eterna: “(...) O resultado é a manutenção do mundo e, de modo muito concreto, a
manutenção da ordem institucional particular” (...) “A teologia implícita de toda ordem
social precede, naturalmente, quaisquer legitimações, religiosas ou não” (Berger, 1985, p.
67, 71).
A crença na transmigração das almas ou doutrina do carma corresponde a uma
“(...) solução formalmente mais perfeita do problema da teodicéia”, apresentando o mundo
como um “cosmos ininterrupto de retribuição ética”, por onde a alma deverá passar até que
sejam retribuídas todas as suas culpas e méritos adquiridos em vidas anteriores e “(...) os
sofrimentos da vida atual, que parecem injustos do ponto de vista da retribuição, são
expiações de pecados de uma vida passada. No sentido mais rigoroso, é o próprio
indivíduo que cria seu destino” (Weber, 1991, p. 354, 355).
73
A doutrina do carma dispensa a figura de um deus todo-poderoso, pois não
necessidade de sua interferência na realização do processo cósmico e, apesar de ser
conservadora como as anteriores, por legitimar a ordem social, apresenta uma idéia
redentora através da possibilidade de libertação final do ciclo de nascimentos com
integração da anomia na divindade / universo.
O problema da teodicéia tem posição central para qualquer tentativa religiosa de
manutenção do mundo ameaçado pelas forças do caos e pela inevitável realidade da
morte. As teodicéias têm, desse modo, função nomizante, independente da postura
existencial ou teórica do indivíduo; funcionam como substrato para outras instituições
legitimadoras, antecedendo qualquer outra legitimação, religiosa ou não (Berger, 1985).
2.3- Por Que Sofrer?
O sofrimento tem sido utilizado historicamente para punição, pedagogia e como
moeda de troca, com fins político-econômicos e religiosos. Sobre essa fundamentação,
Vergely (2000), Sölle (1996) e Kushner (1983) desenvolveram seus trabalhos num
interesosante questionamento sobre a necessidade, a busca de significado e as
justificativas do sofrimento humano, através das dimensões psíquica, social e religiosa.
Utilizaremos aqui esses autores para tentar compreender as reações à dor e ao
sofrimento pelo qual se vê obrigada a passar a população pesquisada.
Afinal, pode o sofrimento ser benéfico?
74
“(...) chega-se a sofrer pelo próprio fato de viver e a perguntar-se “por quê?” Por que
esta vida tão pesada? (...) Esta solidão e estes lutos? Não há uma contradição na vida
pelo fato deste sofrimento? A vida não é feita para a vida? E se ela é feita para a vida,
por que tantos sofrimentos? E por que uma ausência de resposta a esta pergunta? Por
que este céu, aparentemente tão desesperadamente vazio, frente a tantas vidas
desfeitas pela dor e partidas por lágrimas e desgosto?” (Vergely, 2000, p.17).
A dor, como sensação corporal, alerta o indivíduo quanto à presença de perigo,
ou seja, de algo que se opõe à vida. Vergely (2000) nos aponta a sua função de
preservar a vida: é a vida que sentido à dor e não o contrário, pois se a dor fornecer
sentido à vida, a dor estaria justificada, dominando a vida.
A forma como sentimos e reagimos ao sofrimento varia segundo a cultura e o
período da história, sendo o sofrimento suportado de diferentes modos nas diferentes
idades e fases da vida e segundo características individuais; as crianças e os idosos
seriam mais susceptíveis à dor do que o adulto.
O sofrimento pode estar vinculado ao amadurecimento emocional, onde se
considera criança a pessoa que não sofreu, e adulto a que “sofreu, conhece seus
limites e renunciou a suas ilusões” (Vergely, 2000, p.54), ou seja, à vida; uma visão que
conduziria a uma inversão de valores diria que o sofrimento não tem sentido nenhum.
O sofrimento tem uma história, que começa bem antes, na falta de relações que
se pode ter com a vida. Para a sociedade atual, que considera o conforto e os bens
materiais necessários à felicidade, a qual é valorizada como rotina ou objetivo de vida,
“(...) o sofrimento é sempre mais dramático e mais duro do que quando sempre se
sofreu” (Vergely, 2000, p.36).
“O sofrimento, como o verdadeiro infortúnio, alcança as dimensões física, psíquica e
social. Mesmo no caso de ausência ou morte de um ente querido a parte irredutível da
75
aflição é algo como uma dor corporal, com obstrução respiratória, como a sensação de
um artefato constritor a apertar o coração” (Sölle, 1996, p. 22).
Sofrer significa sentir dor, no corpo e na alma. O discurso sobre o sentido do
sofrimento foi historicamente afirmado pelo cristianismo, com base na paixão de Cristo,
como forma de expiação de pecados e salvação. Os avanços da medicina no século
XX, com o desenvolvimento de medicamentos para controle da dor e conseqüente
diminuição do sofrimento reduziram a necessidade da busca de um sentido para o
sofrimento e, não sendo mais tão necessário sofrer, passou-se mesmo a questioná-lo.
Segundo Vergely, o ser humano ao se deparar com o sofrimento, frustra-se por
perder a posição de conhecedor do mundo e assume a postura do saber e a vontade
de saber estaria na origem de todos os males, pois ao buscar compreender, o indivíduo
tenta explicar objetivamente o sofrimento, o que pode levar a uma atitude de anestesia
ou indiferença. A revolta pode surgir como continuidade dessa atitude e o indivíduo
passará a procurar culpar ou acusar algo ou alguém, o que torna livre a própria
consciência e possibilita encontrar responsáveis que possam ser punidos (Vergely,
2000).
“O sofrimento atinge o homem teórico em nós, sendo o homem teórico aquele
que quer explicar o mundo e explicar-se com ele. É ele que sofre em nossos
sofrimentos e que pergunta “por quê?”, a fim de poder reencontrar sua posição
perdida” (Vergely, 2000, p.220, 221).
As tragédias não podem ocorrer ao acaso, pois a causalidade remete à
desordem, ao caos que corresponde ao mal, onde Deus não poderia estar presente,
por isso tentamos encontrar respostas (Kushner, 1983).
76
Na tentativa de fornecer um sentido a tudo, chegamos à racionalização espiritual
do sofrimento, que antes formou a base da economia do sagrado, como base atual da
lógica da sacralização da economia e da política (Vergely, 2000).
A vontade de saber e de compreender a situação pode ser tão prejudicial quanto o
desistir de querer saber, pois este indica que o indivíduo julga tudo saber e, dessa forma,
já terá a sentença já definida. Ambos os casos indicam que o indivíduo assumiu a
posição de deus.
As respostas das entrevistadas sobre a reação imediata ao tomarem
conhecimento do diagnóstico da criança foram discutidas no primeiro capítulo, quando
enfocamos o psiquismo humano nas etapas de elaboração do luto após uma notícia
trágica. A dor da lembrança do momento vivenciado e o processo de confusão e
sofrimento que se seguiu à notícia, também aqui confirmam as teorias pesquisadas.
O desespero, mencionado por 43,3% das entrevistadas, foi descrito com
sentimentos confusos de aflição e ansiedade que incluíam gritos, choro, raiva e
questionamentos, mesclados de tristeza e carência de rumo. Uma mãe descreveu da
seguinte forma a recordação de seu sentimento: “(...) É como se tirassem um pedaço
da gente...”.
A depressão, referida por 36,7%, foi descrita como uma profunda tristeza,
acompanhada de choro e isolamento, assim (bem) descrita por uma das mães: desisti
de tudo...”.
O choque (em 20% das entrevistadas) foi descrito como susto, incredulidade,
como um sentimento de inicial imobilização.
Quando falavam da revolta que sentiram (16,7%), raiva dirigida contra o médico,
contra Deus e/ou contra o mundo (tudo e todos), foram notadas as marcas desse
77
sentimento em todas as entrevistadas, pela alteração do tom de voz e das expressões
faciais; elas também buscaram respostas.
As entrevistadas que buscaram a causa, compreender o porquê (10%),
questionaram-se à procura de uma resposta que se situasse além das questões
médicas.
Apesar de apenas 10% das entrevistadas não terem acreditado ou aceitado o
diagnóstico, a reação inicial de negação pôde ser observada de forma clara nas
entrevistadas que se declararam tranqüilas (13,3%) por imaginar que a doença não era
grave ou que logo seria curada e nas que rapidamente buscaram tratamento (por negar
tratar-se de uma doença sem cura) numa atitude quase automática, como se não
houvesse tempo a perder (16,7%).
Medo e insegurança foram referidos por 10%; vergonha, idéias suicidas e culpa
por 3,3% cada (tabela 9). A presença de todos esses sentimentos e reações pôde ser
confirmada em nossos estudos teóricos.
Sölle apresenta um modelo com três fases de reação da pessoa sofredora ao
infortúnio, onde
“O caminho conduz da isolação do sofrimento, passando pela comunicação e a queixa,
para a solidariedade na promoção das mudanças. O procedimento é aberto e os passos
a serem dados entre ambas as fases podem ser direcionados num sentido e noutro”
(Sölle, 1996, p. 83).
Segundo a autora, a pessoa se mostra inicialmente muda, apática, isola-se, é
incapaz de organizar seus objetivos, tem um comportamento reativo dominado pela
situação em que se encontra e sente-se impotente diante dos fatos. A seguir, se
78
apresentará queixosa, pode orar, comunicar-se e tecer objetivos utópicos; sofre com a
situação e tenta analisá-la; pode aceitar e superar alguns fatos. Num terceiro momento,
o indivíduo busca ser transformador, organizado, utiliza linguagem racional, mostra
solidariedade e sofrimento solidarizado.
Sölle afirma que o infortúnio ou verdadeiro sofrimento é percebido como ridículo,
causando vergonha; há o temor de que ocorra uma desvalorização social, pois a
sociedade, mesmo sem ter plena consciência, habitualmente despreza os infelizes,
relegando-os ao isolamento, abandono e rejeição. “Os homens por natureza se
comportam na presença do sofrimento como as galinhas que se atiram a bicadas sobre
a galinha ferida” (1996, p. 122).
Pode haver desintegração do grupo de relações, pois até mesmo “Jesus foi
negado, traído e abandonado pelos seus amigos.” (... ) Todos desprezam os infelizes
em maior ou menor grau, embora ninguém esteja consciente disso” (Weil, 1953 apud
Sölle, 1996, p. 25, 122).
A autora trabalha com o conceito de apatia (a-patia como “não sofrimento”)
significando indiferença ou incapacidade para o sofrimento e relacionando-a ao
conformismo, atitude de quem aceita, sem questionamento, regras e valores sociais
estabelecidos ou se conforma com todas as situações.
O estado de apatia ou insensibilidade da sociedade diante do sofrimento e
também da alegria e da felicidade constitui uma forma de evitar sofrimentos, não
apenas psíquicos, mas sociais. É o que ocorre nas sociedades de alto nível de
tecnologia ou industrialização: refugia-se na apatia ou assume-se uma atitude de
passividade como forma de fugir do sofrimento.
79
O sofrimento deve conter um significado, pois de outra forma não seria
suportado. O infortúnio instaura o caos que conduz o ser humano à anomia e encontrar
uma mensagem divina pode restaurar a ordem restabelecendo o nomus.
Ao serem perguntadas sobre a possibilidade de Deus ter comunicado algo
através da deficiência da criança, duas (6,7%) afirmaram que não; dezessete
entrevistadas (56,7%) responderam sim, Deus estava querendo ensinar-lhes valores
(ser menos arrogante, ter paciência, ver as coisas boas da vida, não discriminar as
pessoas, promover maior união da família, não ser preconceituosa). Três (10%)
disseram que sim, mas não sabiam o quê; três (10%) afirmaram que Deus estava
provando sua fé; três disseram ser um plano de Deus; uma (3,3%) disse que talvez
fosse um castigo e uma (3,3%) afirmou ser uma manifestação de Deus (Tabela 19).
Tabela 19: Deus quis comunicar algo através da deficiência de sua criança
O que Deus quis Comunicar Nº de mães %
Ensinar valores 17 56,7%
Sim, mas não sabe o quê 3 10%
Provar a fé 3 10%
Plano de Deus 3 10%
Não 2 6,7%
Talvez castigo 1 3,3%
Manifestação de Deus 1 3,3%
As explicações para a doença / deficiência, tanto no mundo quanto em suas
crianças não foram relacionadas a uma causa divina por dez (33,3%) entrevistadas,
80
porém nove delas afirmaram que Deus quis ensinar valores e duas delas afirmaram que
Deus pode castigar por meio de uma doença. Estes dados afirmam a presença do
sentido religioso da doença.
Kushner (1983) questiona o fato de termos que sentir dor e estabelece uma
diferenciação entre a dor com sentido, que conduz a um resultado positivo, ao
crescimento do ponto de vista humano (como a dor do parto ou a dor muscular causada
pelo esforço do atleta) e a dor sem sentido, ou a que ele chama dor estúpida, que torna
o sofrimento vazio (como a dor resultante de uma doença).
Explicar o sofrimento afirmando que Deus nos põe à prova para conhecer nossa
força espiritual também é uma idéia discutida pelo autor. Sua questão é como pode o
ser humano tornar positivas todas as experiências dolorosas. Ele argumenta que não é
a causa da dor que deve fornecer sentido à experiência dolorosa, mas o seu efeito, pois
o mesmo tipo de experiência tem efeitos diversos em diferentes pessoas, podendo
tornar algumas amarguradas e invejosas e outras sensíveis e compassivas” (Kushner,
1983, p. 68-69).
“Há sofrimentos que nenhuma pessoa é capaz de suportar de forma permanente. Ou ela
fica recalcada, embrutece exteriormente e permanece muda como antes ou começa a
elaborar o sofrimento. É pressuposto do ato de elaboração a consciência de viver num
mundo susceptível de mudanças. Quem vive num mundo estático, o que vale o mesmo
que numa cultura prefigurativa, interessado na imitação e na repetição (...), será incapaz
de entender a aprendizagem e as mudanças como o que de mais decisivo existe a ser
aprendido na vida. sua postura ante o sofrimento impede-o de transpor os acanhados
recintos da resignação e da paciência. Somente ali onde as mudanças são entendidas
como valor humano essencial e socialmente reconhecido poderá alterar-se uma atitude
passiva frente ao sofrimento” (Sölle, 1996, p. 79-80).
81
Se não é um deus que causa a doença, ao buscar sua origem pode-se suspeitar
de uma falta própria e sentir-se culpado, atitude que, inconscientemente, coloca o
indivíduo na posição de deus. Uma outra forma de reagir à doença pode ser
distanciamento de deus (Méier, 1999).
É terrível não se encontrar significado para o mal. Somos capazes de sofrer
qualquer dor ou decepção se achamos que razão por trás dela, um propósito para
ela e até mesmo o menor dos fardos se torna pesado demais quando sentimos que
não faz sentido (Kushner, 1983).
Jean Baudrillard (1984 apud Vergely, 2000, p. 24) denominou “troca simbólica” o
mecanismo onde o indivíduo
“Para sobreviver dizendo a si mesmo que não se sofre à toa, para conservar um lugar na
sociedade mostrando que não se faz pouco ao sofrer, o que chamaremos
desajeitadamente a ‘cultura do sofrimento’ operou uma transmutação simbólica da perda
que o sofrimento constitui fazendo deste um ganho ou, em todo caso, um mal menor”.
Ao ser perguntado se houve qualquer tipo de mudanças em sua relação com a
vida ou com Deus após o nascimento de sua criança, as entrevistadas responderam a
esta questão de várias maneiras: quatorze (46,7%) afirmaram ter aumentado sua e
mudado valores e forma de se relacionar com a vida; nove (30%) disseram ter se
tornado mais fortes e ter aumentado sua fé; quatro (13,3%) afirmaram não ter havido
nenhuma mudança e três (10%) tiveram mudanças em seus valores morais (Tabela
20).
82
Tabela 20: mudou seus valores / relação com Deus após saber da doença de sua criança
Dessa forma, o indivíduo mostra capacidade de auto-recuperação e uma espécie
de transcendência após uma experiência ruim, podendo mostrar-se interiormente
melhor, mais forte espiritualmente.
“Após um episódio ruim o indivíduo tende a recuperar-se por meio de uma forma de
raciocínio econômico consistindo em dizer-se que, por suas provas, ou se paga por uma
falta passada, ou se compra um paraíso futuro, ou se “economiza” uma situação que
poderia ser pior, sendo a finalidade desta operação mostrar que se permanece um ser
capaz de troca e, portanto, um ser portador de significação social” (Vergely, 2000,
p.24,25).
É importante não perdermos de vista os postulados de Berger (1985) sobre a
questão do sacrifício de si para a edificação social baseado na idéia do sofrimento
como moeda de troca, onde o indivíduo sofre neste mundo e acumula bens no “além”.
Vergely (2000), como Berger, também afirma que um dos sentidos conferido ao
sofrimento e que resgata a sua importância tenta ressaltar seu caráter utilitário. Como
utilidade espiritual, historicamente o sofrimento garantiria a salvação; na medicina, o
sofrimento é considerado um sintoma; na pedagogia, indica nossas limitações; política
Mudou sua relação Nº de mães %
Mais fé e mudança de valores 14 46,7%
Mais fé / mais forte 9 30%
Não 4 13,3%
Mudança de valores 3 10%
83
e moralmente ele permitiria a reparação de erros cometidos. Os riscos destas formas
racionalizadas de compreender o sofrimento estariam em possibilitar às pessoas se
sentirem descompromissadas para com o sofrimento alheio, considerando-o natural,
como na medicina ou em algumas ideologias políticas; considerar o sofrimento útil pode
transformar o mal em bem.
Por outro lado, transformar o sofrimento em mal pode fazer com que seja
considerado desprovido de utilidade e levar o indivíduo a tentar livrar-se dele de
qualquer forma.
As duas formas de lidar com o sofrimento denotam o desequilíbrio na tentativa
de se fugir da culpabilização (Vergely, 2000).
O sentimento de culpa pode levar as pessoas a odiar a Deus, a si mesmas e à
vida. Kushner acredita que o sentimento de culpa, de caráter universal, tenha em suas
origens, por um lado, a crença numa lei de causa e efeito e no princípio de que há uma
razão para tudo, reforçando a necessidade do ser humano de acreditar que o mundo
faz sentido. Por outro lado, o sentimento de culpa pode ter raízes na onipotência
infantil ou sentimento de auto-referência desenvolvido na primeira infância e que pode
permanecer até a idade adulta, provocando a sensação de que tudo o que acontece se
relaciona a nós.
“O sentimento oportuno de culpa faz as pessoas se esforçarem para melhorar. Porém, o
sentimento excessivo de culpa, a tendência a nos censurarmos por coisas que
claramente não dependem de nós, despojam-nos de nossa auto-estima e talvez de
nossa capacidade de crescer e agir” (Kushner, 1983, p. 97).
84
Através dos depoimentos colhidos, encontramos a confirmação da presença do
significado religioso da doença / deficiência no imaginário da população entrevistada. A
mãe que afirmou duvidar da existência de Deus, mesmo às vezes pensando que Ele a
abandonou”, ora por seu filho e crê que a deficiência pode ser castigo; a mãe que
afirmou não crer em Deus declarou que, mesmo assim, “ora por obrigaçãoe considera
que a deficiência de seu filho “deve ter algum significado”.
O sentimento de culpa e os atributos pejorativos com relação à deficiência, bem
como a idéia religiosa que inclui sacrifício para a salvação, provar a fé, castigo
merecido, reparação de erro, aprendizado através da dor, eleição, teste de limites e
força, salvação e realce da luz, podem ser claramente observadas através dos
depoimentos aqui transcritos:
- “passei a acreditar mais em Deus”;
- “Deus faz as coisas ruins para nos experimentar, mostrar que conviver com um
deficiente em casa é como se fosse uma coisa normal”;
- “Deus quis provar a minha fé”;
- “minha mãe diz que é castigo pela forma como eu era antes; eu não acredito,
mas nós dois (a mãe e a criança) estamos sendo sacrificados”;
- “Deus quis ensinar união à família”;
- “Deus quer mostrar algo”; ”foi algo que eu errei e ela veio para provação”;
- “Deus está se manifestando em minha vida”;
- “Se existisse o bonito, não teria graça, então o deficiente serve para mostrar
aos outros...”;
- “Deus mandou a criança, porque sabe que tenho capacidade para cuidar”;
- “Ele me escolheu para enviar meu filho”;
85
- “talvez seja conseqüência de uma desobediência minha, coisa do meu
passado”; “Deus usa as pessoas de várias maneiras”;
- “não ter preconceitos; eu era preconceituosa com raças, com pessoas”;
- “mostrar que a gente depende dos outros, que algo pode acontecer com a
gente e que mesmo com as dificuldades a gente pode ser feliz”.
As construções do racionalismo teológico que tentam justificar ou explicar o mal
segundo a lógica divina podem colocar a presença do mal, a perseguição divina, como
um sinal da eleição de Deus sendo, portanto, sinal de sua própria mensagem.
“E é provável (...) que, nas situações de sofrimento, a necessidade de significado é tão
forte quanto a necessidade de felicidade, ou talvez maior. Não resta dúvida de que o
indivíduo que padece, digamos, de uma moléstia que o atormenta, ou de opressão e
exploração na mão dos seus semelhantes, deseja alívio desses infortúnios. Mas deseja
igualmente saber por que lhe sobrevieram esses sofrimentos em primeiro lugar. Se uma
teodicéia responde, de qualquer maneira, a essa indagação de sentido, serve a um
objetivo de suma importância para o indivíduo que sofre, mesmo que não envolva uma
promessa de que o resultado final dos seus sofrimentos é a felicidade neste mundo ou no
outro” (Berger, 1985, p. 70).
Quando perguntado se acreditavam que Deus poderia castigar através de uma
deficiência, dezenove mães (63,3%) afirmaram que não acreditavam, enquanto seis
(20%) disseram que talvez isso pudesse acontecer e cinco (16,7%) afirmaram
acreditar que sim (Tabela 21).
86
Tabela 21: você crê que Deus pode castigar através de uma doença / deficiência
Das entrevistadas que afirmaram que Deus não castiga, 16,7% se justificaram
da seguinte forma: Deus não castiga; não no meu caso”; não acredito –Deus permite
com um propósito”; não acredito –Ele permite para nos lapidar”; “não acredito, porque
Deus não castiga –Ele quer corrigir”; “não, a deficiência é para evitar algo pior –drogas,
crime”. Estas justificativas não são diferentes das justificativas fornecidas pelas
entrevistadas que responderam afirmativamente à questão, pois afirmam a presença
de Deus na origem da doença / deficiência e podem ser observadas na teoria aqui
pesquisada.
Das que responderam sim, obtivemos as seguintes justificativas: o que Ele fez,
Ele pode tirar”; “Deus visita a maldade dos pais nos filhos; se Ele é misericordioso,
também é justo”; “é complicado; a gente quer pensar o melhor de Deus, mas isto é de
certa forma para as pessoas pensarem melhor”; “Ele tem a maneira de provar as
pessoas –a gente vai colher no futuro, porque Ele tudo vê”; “acredito que sim, mas não
sei se esse é o meu caso”.
Vergely aponta a concepção do sofrimento como estando sempre carregado de
sentido, fundamentando-se nas idéias de sofrimento como sinal, como saber, salário e
como salvação:
Deus castiga Nº de mães %
Não 19 63,3%
Talvez 6 20%
Sim 5 16,7%
87
O sofrimento como sinal (diferente de sentido), baseia-se na dor física e
considera a importância da dor para enfatizar o prazer. O sofrimento como saber
valoriza a pedagogia da dor, primeira escola e também recurso último, aliada ao
adestramento. Sofrimento como salário apresenta sua capacidade de reparar uma
dívida, pois “em vista dos erros do passado, é preciso passar por isso, é o preço a
pagar”, servindo também como meio de pagamento ou moeda de troca, (re)integrando
totalmente o indivíduo à sociedade: “soframos hoje, amanhã seremos recompensados”
(Vergely, 2000, p. 47). A idéia de sofrimento como forma de salvação o coloca como
necessário para a auto-superação do ser. Sofrer ensina a valorizar a vida. O sacrifício
em favor do progresso tornou-se a versão atual da idéia de salvação.
Estas idéias já existiam na antiguidade, como bem mostra Porfírio (Ilíada xxiii
apud Méier, 1999, p.32), quando discorre sobre a necessidade do sofrimento até para
os que se tornaram deuses:
“Devemos em todo caso saber que Hércules, os Dióscuros, Esculápio e outros todos que
foram gerados pelos deuses passaram por trabalhos e tolerância auto-controlada de
encontrarem a abençoada vereda rumo aos deuses. Pois não se concede ascensão a
Deus a homens que vivem se poupando, mas a pessoas que aprenderam a sofrer
corajosamente mesmo nas circunstâncias mais difíceis”.
Os sentidos do sofrimento vêm sendo construídos a partir das representações
perante o mal, anteriores ao cristianismo e incluem a idéia de uma falta original que
produziu a queda. Esta idéia carrega o pressuposto de que o mal não é natural no ser
humano e, portanto, nos liberta da ontologia do mal que considera o ser humano
originalmente mau (Vergely, 2000).
88
A antiga tradição judaico-cristã recomenda tirar alguma lição do sofrimento. A
doença e o sofrimento têm sido utilizados com fins religiosos para fixar a aceitação
cristã do sofrimento, como nas publicações encontradas em livrarias cristãs ou hospitais
e instituições eclesiásticas referidas por Sölle, as quais contêm afirmações como:
“O sofrimento procede de Deus. uma relação entre pecado e doença, ainda não
suficientemente conhecida. A raiz mais profunda e verdadeira da doença é o pecado. O
doente ignora essa causa essencial da doença e atribui o seu sofrimento a circunstâncias
externas e naturais. A doença é magnífica oportunidade de crescimento e maturação
interior. Não é precisamente durante a doença que você percebe a ação de Deus em sua
vida? a graça do sofrimento é mais valiosa do que a saúde corporal. Sofrimento educa e
é sinal do amor salvítico de Deus...” (Brenning, 1972 apud Sölle, 1996, p. 25).
As idéias teológicas e interpretações sobre o sofrimento humano incluem o
sofrimento com fins de punição, à qual devemos nos submeter por vontade de um Deus
irado (como no Antigo Testamento e na concepção calvinista) e também o sofrimento
como provação divina ou castigo (como em Jó). Estas tirariam todo o enfoque no ser
humano enquanto ser sofredor e o conduziria à posição de réu a ser julgado e
antecipadamente condenado, pois como nas orações de Calvino, somos todos
“Pobres pecadores, concebidos e nascidos em culpa e perdição, inclinados ao mal,
inúteis para todo o bem (...) Os povos que vens castigar, os homens que foram
golpeados por tuas varas através da doença, da prisão e da pobreza, devem ter pecado”
(Herbst, 1952 apud Sölle, 1996, p. 30, 32).
Fica assim fundamentado e justificado todo sofrimento humano, no que Sölle
define como sendo as proposições que se repetem em todas as teologias sádicas: 1.
Deus é todo-poderoso condutor do mundo, que inflige todo o sofrimento; 2. Deus não
89
age sem fundamento, mas com justiça; 3. Qualquer sofrimento é castigo do pecado”
(Herbst, 1952 apud Sölle, 1996, p. 32).
Conclui-se que todo sofrimento é castigo, provação ou pedagogia, consistindo
esta num processo educativo divino cujo objetivo é conquistar para si as almas.
Surge então a questão: como distinguir um sofrimento que nos torna impassíveis
do que nos faz produtivos? Qual o sentido do sofrimento e quando nos torna mais
humanos? Aquele que não encontra um sentido interno para o sofrimento o busca no
contexto social e perde contato com o seu interior, tornando-se cínico, termo utilizado
por Sölle (1996) com o significado de não sensível à dor do outro e mesmo de sádico.
Sobre a merecida e justa punição divina aos pecadores, temos os postulados de
Calvino:
“Na realidade, Senhor, vemos nos castigos que se têm abatido sobre nós o efeito de tua
justa ira. Sendo reto e justo, infliges, não sem razão, dores e aflições aos teus.
Golpeados por tuas varas, reconhecemos que te dispomos contra nós. Também no
presente vemos erguida a tua mão para nos castigar, pois as espadas que usas para
exerceres a tua vingança cintilam no ar e as ameaças que proferes contra os pecadores
e malfeitores não cessam de nos atingir. Mesmo que nos punisses com muito mais rigor
do que até agora o tens feito e por um flagelo tivéssemos que suportar cem e mesmo que
as maldições com que outrora reagiste aos pecados de Israel, teu povo, recaíssem sobre
nós, reconhecemos que tal sucede de pleno direito e não negamos tê-lo merecido”
(Calvino apud Sölle, 1996, p. 17).
A idéia de um Deus que crie o mal e o sofrimento é contestada por Kushner
(1983), que refuta o pensamento de um Deus que
“(...) cria retardados mentais para despertar a compaixão e gratidão dos que vivem ao
seu redor. Porque haveria Deus de torcer a vida de alguém a um tal grau apenas para
90
elevar minha sensibilidade espiritual? Se não podemos satisfatoriamente explicar o
sofrimento dizendo que merecemos o que recebemos ou que se trata de um ”cura” para
nossas faltas, podemos aceitar a interpretação da tragédia como um teste?” (1983, p.
32).
Existe a idéia de que o sofrimento serviria para realçar o lado bom da vida,
através do estabelecimento de comparações que realçam o não sofrimento, assim
como a sombra realça a luz. Kushner questiona o Deus sádico, capaz de provocar
dores e o Deus que envia provações e aflições “para que possamos descobrir quão
fortes e fiéis nós somos” (1983, p.32). O autor fala sobre o teste de Abraão, explicado
pelo Talmud através da comparação de Deus a um oleiro sábio batendo em seus vasos
de barro mais fortes para mostrar sua resistência. O oleiro nunca bateria nos vasos
defeituosos, pois estes não resistiriam. Assim também Deus envia tais provações e
aflições apenas àquelas pessoas que Ele sabe serem capazes de suportá-las, para que
elas e as outras possam conhecer a extensão de sua força espiritual” (1983, p.32).
Seriam assim os pais dessas crianças, os vasos resistentes escolhidos por
Deus? Essa idéia pode ser observada na seguinte resposta de uma mãe para a causa
da deficiência de sua criança: “Deus a criança a quem Ele sabe que vai dar
conta...” e acrescenta: “e essas crianças têm a salvação por serem puros de
coração”. A expressão “provar” e “experimentar” também estão presentes nas falas
destas mães.
Podemos compreender a questão com Kushner ao analisar a atitude de Deus
na história de Jó, que chega à conclusão de que, seguindo este pensamento, ou
ninguém é perfeito e Deus sabe o que faz, ou, “se não aceitamos essa premissa, o
91
mundo se torna caótico e sem condições de vida” (1983, p.40). Diante de um dilema,
de uma questão para a qual não se pode encontrar solução, tende-se a culpar a vítima
“(...) para que o mal não pareça tão irracional e ameaçador”. (...) Censurar a vítima é uma
maneira de assegurarmos a nós mesmos que o mundo é melhor do que parece e que
ninguém sofre sem que haja uma boa razão (...) Faz com que todos se sintam melhor –à
exceção da vítima, que passa a sofrer em dobro com a condenação social acrescida à
sua desgraça original” (Kushner, 1983, p.44, 45).
O valor pedagógico do sofrimento residiria, então, em oferecer a oportunidade de
se testar os limites, possibilitar o amadurecimento, alcançando “sua verdadeira
humanidade” pelo aprendizado na dor.
Para Vergely (2000), aprender significa sair de si; implica na alienação do sujeito
à cultura (exterior a ele) que passará a habitá-lo. Aprender deve causar alegria, mas
também ruptura com as próprias idéias (esforçar-se e suportar). Esforço para sair de si
compensado pelo prazer do saber. Esforço e prazer juntos, pois ensinar / aprender sem
um desses dois elementos seria demagogia.
Kushner (1983) discute a idéia do sofrimento como forma de educar a
personalidade como um pai zeloso pune o filho ingênuo para seu próprio bem, da
mesma forma que Vergely questiona a pedagogia da dor como forma de afirmar o
engrandecimento e endireitamento da humanidade por meio da provação:
“Não são as provações que engrandecem o homem, mas é a força que nele está a fim de
ultrapassá-las que o engrandece. Quase sempre as provações amesquinham os homens
tornando-os tristes, desconfiados, até mesmo odiosos. Se a sabedoria devesse medir-se
pela quantidade de provas que se é capaz de suportar, a humanidade deveria ser sábia
há muito tempo. O que não é o caso. (...) É preciso também ter muito pouco respeito pelo
92
pensamento e pela cultura para confiar à dor o cuidado de educar os espíritos” (Vergely,
2000, p.57, 58).
Aceitar a concepção de um Deus que envia a doença equivale a afirmar que
Deus envia provações por saber que temos capacidade para suportá-las. Esta idéia,
porém, não considera o fato de que na adversidade é que nos descobrimos fracos e
possuidores de sentimentos de raiva, revolta e culpa. Kushner (1983) afirma que Deus,
na verdade, se apresentaria ao nosso lado ao atingirmos o limite de nossas
capacidades, nos auxiliando a prosseguir, o que também é afirmado por Ivoni R. Reimer
(2002, p. 1236).
Vergely (2000) nos alerta para o fato de que, no princípio da idéia de que a prova
engrandece o ser humano, uma confusão referente ao significado dos termos, pois
prova significa verificação, forma de atestar a veracidade ou a autenticidade, o que se
difere de sofrimento, que quer dizer contato doloroso com a adversidade, infortúnio,
desastre e que se aproxima de provação, uma situação aflitiva ou penosa. As
pedagogias da dor fracassam por considerarem o ódio e rejeitarem a alegria de
aprender; utilizam a dor para camuflar a violência, atuando como as ditaduras que
sempre utilizaram a educação para justificar sua violência, apresentada como método
de reeducação da humanidade, como ortopedia, a pedagogia do adestramento.
Devemos considerar também, a partir dessa concepção, que Cristo foi enviado
com o objetivo de pôr fim ao sofrimento humano, o qual a partir daí deixou de ser
considerado natural, útil, ou sombra que faz destacar a luz. A versão bíblica da
salvação acaba então com a salvação pelo sofrimento, para o qual deve-se buscar um
novo sentido; sentido implica em direção, itinerário interior (Vergely, 2000).
93
Como distinguir então um sofrimento que nos torna impassíveis do sofrimento
que nos faz produtivos? Qual o sentido do sofrimento e quando nos torna mais
humanos? Sölle nos aponta que o indivíduo que não encontra um sentido interno para
seu sofrimento passa a buscá-lo no contexto social, perdendo o contato com seu
interior e tornando-se cínico” (a autora utiliza esse termo para indicar o estado onde o
ser não é mais sensível à dor do outro, podendo mesmo tornar-se sádico (1996, p.12).
O sofrimento, como fenômeno vivo do ser humano, não pode ser objetivado ou
reduzido a um aspecto, tampouco ser racionalizado sem levar em conta o ser
humano que sofre. Razão ou sentimento? Sofrer é sentir-se mal no corpo, na alma, em
toda a vida. É ter que suportar:
“(...) dar provas de paciência quando a doença, as deficiências físicas ou a iminência da
morte estão presentes. Com o que isso comporta de dores. De dificuldades para viver as
coisas mais simples. De angústia... Em resistir também à adversidade. Aos conflitos. À
rupturas com outrem” (Vergely, 2000, p.161).
Sofrer significa não estar mal, mas “também suportar, tolerar, saber esperar
com paciência e, por uma passividade criadora, inverter o mal” (Vergely, 2000, p. 36). A
cultura oriental valoriza a paciência, uma forma de passividade ativa que põe em
movimento forças internas capazes de controlar a violência e de dissipar o mal. Aqueles
que sabem sofrer com paciência recebem reconhecimento moral da sociedade.
O sofrimento, como pudemos constatar, fez ou faz parte da vida da população
estudada. Muitas dessas mães conseguem suportar sua dor e adaptar-se à realidade
da doença / deficiência, utilizando-se de racionalizações fundamentadas no imaginário
94
religioso. As formas como elas se sentem e reagem à situação em que se encontram
dependeriam, então, da racionalização utilizada.
Estudaremos a seguir o pensamento religioso no estabelecimento das relações
entre doença, saúde e cura divina.
2.4- Saúde, Doença E Cura Através Dos Tempos
Discutimos aqui a questão da relação entre a saúde e a doença, existente desde a
antiguidade quando “o homem clássico considerava a doença como efeito de ação
divina, que poderia ser curada por um deus ou por outra ação divina” (Méier, 1999,
p.15).
Séculos antes de Cristo, os egípcios viam a doença como um mal e a saúde como
um bem, opondo-se e excluindo-se mutuamente e estando sempre em conflito no corpo
humano. Na cultura helênica, a noção de saúde se liga ao belo; para a medicina greco-
romana, a doença provém do desequilíbrio da harmonia ética e estética, onde equilíbrio e
felicidade não se diferenciam de saúde (Del Volgo,1998).
Terrin (1988) aponta as estreitas relações entre saúde e salvação, “(...) mostrando
como as religiões do passado e de modo particular também a tradição cristã, jamais
dissociaram a própria missão de “salvação” da sua tarefa “terapêutica” (p. 151). Em seus
estudos o autor mostra que a pesquisa histórica evidencia a preocupação das religiões
com a saúde e que
95
“(...) a história comparada das religiões não encontra em nenhum canto da terra um mundo
religioso que não tenha também uma função “terapêutica”. Parece assim que não é
possível desatrelar a saúde física daquela espiritual, assim como também não é possível
trabalhar para a salvação da alma sem ao mesmo tempo empenhar-se na saúde total da
pessoa do fiel” (1988, p. 151-52).
Segundo Sontag (2002) afirma a presença de um sentimento inconsciente de
culpa, especialmente quando não são conhecidas as causas da doença ou sua cura:
“Qualquer moléstia importante cuja causa é obscura e cujo tratamento é ineficaz, tende a
ser carregada de significação. Primeiro, os objetos do medo mais profundo (corrupção,
decadência, poluição, anomia, fraqueza) são identificados com a doença. Os
sentimentos relacionados com o mal são projetados numa doença. E a doença (assim
enriquecida de significados) é projetada no mundo [...].E são as doenças das quais
se acredita terem múltiplas causas (isto é, as doenças misteriosas) que reúnem as
maiores possibilidades de serem usadas como metáforas para o que se considera
social ou moralmente errado” (2002, p. 76 –9).
Ao perguntarmos às entrevistadas se acreditavam na possibilidade de qualquer
forma de cura por meio divino (Tabela 22), apenas quatro entrevistadas (13,3%)
responderam não crer, duas delas justificando que ele é assim, nasceu assim, não
precisa de cura” e que a época dos milagres passou”. Vinte e seis (86,7%)
afirmaram acreditar em cura por intercessão divina.
96
Tabela 22: você crê em qualquer tipo de cura através de Deus
Como podemos constatar, a relação entre doença e cura divina está presente na
maior parte dessas mães, mesmo ao saberem que sua criança tem uma doença
incurável pelos meios da ciência atual. Uma das entrevistadas relatou sonhar que seu
filho está jogando bola, apesar de conhecer a gravidade de seu quadro motor, o que
evidencia o seu desejo de ver o filho curado. Segundo Terrin (1998), acreditar em
milagres pode ser traduzido como algo positivo se esta crença significar uma expressão
de fé, confiança e otimismo em relação a si mesmo e ao mundo.
As justificativas dessas mães serão abordadas e esta questão retomada ao
discutirmos a doença e as curas no texto bíblico
.
Ivoni R. Reimer (2002), ao refletir sobre a questão da busca cristã por saúde e
cura relacionadas à salvação, questiona as relações entre saúde / doença e cura /
salvação; a autora reconhece a unidade do todo ao afirmar que “(...) quando um membro
do nosso corpo sofre, todo o corpo participa desse sofrimento (...)” (p.1236) e reconhece
Deus pode curar Nº de mães %
Não 4 13,3%
Sim 26 86,7%
Pela fé 7 23,4%
Por milagre 6 20%
Por merecimento 3 10%
Na hora certa 1 3,3%
Pelos profissionais 1 3,3%
97
também a influência do ambiente e das relações para a saúde integral’ do ser (p.1238).
Como exemplo, Ivoni R. Reimer cita o texto bíblico, onde são narradas histórias de
doenças em mulheres, prejudicando suas relações “afetivas, sociais, de produção e de
reprodução”, sendo que a cura implica também na reconstrução dessa relações (p.1238-
1239).
A busca da saúde através do sagrado pode ser constatada já em períodos
anteriores à era cristã, como nos mostram Haufe (1973), através do relato de
escavações em Creta, mostrando representações de membros humanos do período
minóico oferecidos aos deuses da saúde. Entre os deuses mais conhecidos, destacava-
se Asclépio (Esculápio), cultuado originariamente em Trica de Tesalia como divindade
ctônica em forma de serpente. Sua fama durou do final do século V ao século III a.C.
Na mitología grega, Asclépio era o deus da medicina, filho do deus da saúde Apolo, o
titular da arte de curar na antiga religião grega (Bulfinch, 2001).
Para que Asclépio operasse suas curas, os seguidores do deus se submetiam
ao processo denominado incubação, isto é, dormiam no seu templo, onde este deus
lhes aparecia em sonhos e prescrevia remédios, devendo os enfermos acordar curados
no dia seguinte. A água salutífera, que brotava da fonte da serpente sagrada, era o
principal elemento mediador da cura. Asclépio usava um bastão em volta do qual se
enroscava uma serpente, o que se tornou o símbolo das artes médicas.
Chevalier e Gueerbrant (1991) apontam que a medicina se acha historicamente
relacionada à sabedoria do corpo e do espírito, a rituais, a espíritos e a mitos primitivos,
e é interessante notar que os deuses estão presentes no Juramento Hipocrático: "Juro
por Apolo médico e por Asclépio e por Higiea e por Panacéia e todos os deuses e
deusas (...)”.
98
O princípio no qual a doença divina poderia ser eliminada pelo remédio divino
corresponde ao princípio da homeopatia (similia similibus curantur) e temos como
exemplo desta homeopatia divina o deus Esculápio. Para este deus, que era a doença
e o próprio remédio, aplicava-se o oráculo de Apolo: “Aquele que fere também cura”
(Trajecti ad Rehnum, 1673 apud Méier, 1999, p. 15). Desta forma, para que houvesse
uma cura bem sucedida, deveria haver uma transformação de sentido durante o
processo da doença e do tratamento. Aqui, o elemento espiritual não era um
componente original da doença, mas um produto dela e, eventualmente, também do
tratamento.
Podemos encontrar o mesmo pensamento na afirmação de uma mãe
anteriormente citada: “o que Ele fez, só Ele pode tirar.
É verdade que, para a atitude espiritual, toda doença como todo golpe do
destino, sempre pareceu infligido por Deus, sendo assim parte de seu preordenado
plano de salvação. Esta idéia também é válida quando a questão é tratada apenas
como castigo:
“(...) O deus em questão parece ter um papel dúbio, pois é ele que faz o homem doente.
Yahweh envia doença e depois mais tarde Apolo e, pelo menos até o período barroco, o
Deus dos cristãos. (...) Hoje a idéia de um deus que inflige a doença não parece mais
atraente” (Méier, 1999, p. 148-149).
O hospital dos Fatebenefratelli foi posteriormente erguido no lugar do santuário
de Esculápio na Ilha do Tibre: a cura passava então das mãos dos deuses às mãos dos
mortais; porém a serpente, atributo de Esculápio, permanece ainda atualmente como
símbolo das artes médicas de cura.
99
Méier (1999) estudou os antigos postulados sobre o sentido oculto da doença a
ser buscado (a causa finalis), relacionando estes estudos ao seu trabalho como
psicoterapeuta junguiano. O autor conclui que os antigos princípios da crença no
sentido da doença relacionado a sua cura, no princípio da homeopatia divina e no deus
da cura como único conhecedor do remédio, são ainda atualmente observados.
Observa-se também relação entre doença (nosos) e pobreza (penia), a falta de algo e a
relação entre saúde (hygieia) e riqueza (ploutos), a plenitude.
Em 1941, Descleé de Brower (apud Del Volgo, 1998, p.34), afirma que “o princípio
da medicina é por vezes curar, freqüentemente aliviar e sempre consolar”. Este princípio
do consolo, o mais próximo do cuidar, era utilizado no início da era cristã (de 20 a 10
anos aC, até aproximadamente 40 dC) pelo filósofo judeu Fílon e pelos Terapeutas de
Alexandria, um grupo de filósofos discípulos de Moisés e de Platão, conhecedores da
natureza e das escrituras, que “postulavam uma antropologia não dual, considerando o
ser humano como uma totalidade corpo/ alma/ espírito” (Leloup, 1996). Estes terapeutas
não separavam ‘o que o próprio Deus uniu’ e saúde plena, para eles, referia-se ao corpo,
à alma e ao nous (a consciência), desde que habitados pelo espírito. Fílon afirmava que,
para o Terapeuta, o cuidar do corpo deveria incluir o cuidar da alma, por não ser possível
a existência de um corpo-máquina sem alma, pois o corpo não animado, sem o sopro,
seria fatalmente reduzido à condição de cadáver (Leloup, 1996, p. 70).
A tarefa primordial para os Terapeutas era cuidar, antes de tudo, do que não é
doente em nós, do sopro que nos habita e que nos inspira, o que quer dizer, da
essência, da saúde e também cuidar do corpo (templo do Espírito), do desejo
(reorientando-o para o essencial), do imaginal que habita a alma, das grandes imagens
arquetípicas (que estruturam a nossa consciência), cuidar do outro, da ética e promover
100
o próprio centramento no Ser. O Terapeuta cuidava das doenças da alma, ‘dolorosas e
difíceis de curar', da tristeza (lypè), do não conformar-se (adikiai) e de outras patologias
(pathon) e sofrimentos. Therapeutes vem do verbo que tem dois significados: servir,
cuidar, cultuar, tratar, sarar e também ‘homens que sabem orar pela saúde dos que
sofrem’. Por cuidar do corpo, também os tecelões e os cozinheiros eram chamados de
Terapeutas (Leloup, 1996).
A conexão interna entre a doença divina e o médico divino constituía o núcleo da
arte de curar no mundo antigo, mas o desenvolvimento da medicina grega fundada por
Hipócrates e Galeno trouxe o início da separação entre doença e médico.
A dessacralização do conceito de saúde, com a perda das funções ética e
simbólica da doença ocorre a partir do início século XIX e do recente desenvolvimento da
racionalização científica do discurso médico, sendo que “desde então, para a medicina
científica, o doente não passa de um porta-voz dos signos da doença, o intermediário
obrigatório entre o médico e a doença, o fator da semiologia médica” (Del Volgo,1998,
p.32). O sagrado deixa de habitar o saber médico a partir do enfoque na etiologia
específica das doenças, do método experimental e da racionalização do método
anátomo-clínico, que fundou o discurso médico com um saber sobre o corpo que tomou o
cadáver como modelo e paradigma. O ser humano passa a ser tratado como máquina,
um sistema de alavancas e polias.
O cuidar do corpo supondo o cuidar da alma (psyche), considerando suas
dimensões ontológica e espiritual, não encontra mais espaço na medicina a partir do
momento em que o sagrado abandona o conceito de saúde. A cura, no texto bíblico, no
entanto, se relaciona à fé e oração e, ainda, à expulsão do mal (Vendrame, 2001); no
grego, soteria significa saúde e salvação e, nos evangelhos, Jesus diz indiferentemente:
101
‘Tua te salvou ou tua te curou’ (Leloup, 1996, p. 32); a necessidade de se
desvincular cura e salvação é apontada por Ivoni R. Reimer (2002). As relações entre
saúde e salvação presentes no texto bíblico serão aprofundadas a seguir.
2.5- O Texto Bíblico E A Deficiência
Lago (2003) em suas pesquisas sobre as relações entre doença, castigo divino e
cura no imaginário religioso da tradição cristã, afirma a importância do texto bíblico na
construção de valores ligados à exclusão de doentes, baseada em critérios de pureza e
impureza.
Nelson Kilpp (1990), em seu estudo sobre as deficiências físicas no Antigo
Testamento, faz uma leitura da doença através da visão bíblica, apontando no texto
bíblico referências a diversas doenças, as quais teriam em sua etiologia, as “precárias
condições higiênicas, sanitárias e medicinais” (p.39) daquela época, quando eram
desconhecidas as formas adequadas de prevenção e tratamento das doenças,
agravando epidemias e, em conseqüência, piorando as condições econômico-sociais de
grande parte da população.
No texto bíblico são comuns as referências à lepra, às pestes, a fraturas, aos
diferentes tipos de doenças de pele e às mal-formações e deformidades com diversas
formas de deficiência física.
São mencionados, com maior freqüência, os surdos-mudos, citados mais
comumente de forma figurada; os cegos, também por vezes citados de forma figurada (e
que adquiriam sua deficiência provavelmente por infecções, pela idade avançada ou por
102
conseqüência da guerra) e o grupo dos ‘coxos’, que abrangia, de forma geral, todas as
dificuldades de locomoção, incluindo o pé-torto congênito, as deformidades e as
paralisias (ou plegias), por causas congênitas ou adquiridas (Killp, 1990).
No Antigo Testamento, as relações entre doença ou deficiência e vontade divina
podem ser observadas em Ex 4, 11, onde Deus se declara autor da deficiência, quando
fala a Moisés: “Quem fez a boca do homem? Ou quem faz o mudo, ou o surdo, ou o que
vê, ou o cego? Não sou Eu, o Senhor?”.
Uma das entrevistadas respondeu que Deus pode curar “se Ele quiser” e outra que
“sim, pois Ele tem o dom de tirar”; as duas respostas explicitam o poder divino sobre a
doença e a saúde.
Em Ex 23, 25, a proteção divina contra a doença é vinculada ao cumprimento da
vontade de Deus, deixando implícito que o desrespeito à lei ocasionaria enfermidade
(punição): “Servireis ao Senhor seu Deus e ele abençoará o vosso pão e a vossa água; e
tirará do vosso meio as enfermidades”.
Em Dt 28, 58-61, da mesma forma, Deus utiliza a doença como ameaça aos que
infringirem a Sua Lei: “Se não tiveres cuidado de guardar todas as palavras desta lei, (...)
também o Senhor fará vir sobre ti toda enfermidade e toda praga que não estão escritas
no livro desta lei, até que sejas destruído”.
Em Lv 21, 16-24, nas leis para os sacerdotes, pode-se observar o impedimento de
todos os doentes e deficientes para os rituais, por serem considerados impuros por Deus,
quando este pede a Moisés que anuncie a Arão, o sacerdote, e aos filhos de Israel que
nenhum de seus descendentes que possuam qualquer defeito poderão oferecer ofertas a
Ele, pois profanariam Seus santuários:
103
“Nenhum homem em quem houver defeito se chegará: como homem cego, ou coxo, ou de
rosto mutilado, ou desproporcionado, ou homem que tiver o quebrado ou mão
quebrada, ou corcovado, ou anão, ou que tiver belida no olho, ou sarna, ou impigens, ou
que tiver testículo quebrado”.
Nesta passagem estão impedidas para o ritual todas as pessoas consideradas
deficientes, tomando-se claramente sua aparência física como referencial para a
exclusão.
Mesmo a utilização de animais ‘defeituosos’ para os rituais é proibida, por também
serem considerados impuros, portanto indignos para o sacrifício (Lv 22, 19-23):
“Quando alguém oferecer sacrifício pacífico ao Senhor, quer em cumprimento de voto ou
do rebanho, o animal deve ser sem defeito para ser aceitável; nele, não haverá defeito
nenhum. O cego ou aleijado, ou mutilado, ou ulceroso, ou sarnoso, ou cheio de impigens,
não os oferecereis ao Senhor” (...).
Ao passarmos à análise do texto do Novo Testamento podemos constatar que, na
maior parte das curas realizadas por Jesus, além do servir a Deus como forma de se
manter livre das doenças, está presente o estabelecimento de relações diretas entre a
doença / deficiência e o pecado e entre a cura da doença e o perdão divino.
Como exemplo, temos o relato da cura de um paralítico em Cafarnaum:
“(...) Vendo-lhes a fé, Jesus disse ao paralítico: homem, estão perdoados os teus pecados.
(...) Qual é mais fácil dizer: Estão perdoados os teus pecados, ou Levanta-te e anda? Mas,
para que saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra autoridade para perdoar os
pecados -disse ao paralítico: Eu te ordeno: Levanta-te, toma o teu leito e vai para casa” (Lc
5, 17-26; Mt 9, 2-8; Mc 2, 1-12).
104
A mesma relação entre doença e pecado e entre cura e perdão é reafirmada em
Jo 5,14, onde após haver ministrado a cura a um enfermo, Jesus adverte: “Olha que
estás curado; não peques mais, para que não te suceda coisa pior”. Algo similar se
verifica em Tg 6, 14-16: “Está alguém entre vós doente? (...) Confessai, pois, os vossos
pecados uns aos outros e orai uns pelos outros, para serdes curados”.
Podemos observar, assim, através do texto bíblico, que a doença e a deficiência
física são consideradas a materialização do castigo divino, revelando aos olhos da
sociedade o pecador e adquirindo um significado punitivo. A culpa por erro cometido e a
cura por merecimento estão presentes nas respostas das entrevistadas, como podemos
constatar: (a criança nasceu com uma doença) “(...) por alguma coisa em que eu erre e
ela (a criança) veio para provação”; “(...) procurei o que eu fiz de errado; talvez por
conseqüência de uma desobediência minha, coisa do meu passado”; “Deus visita a
maldade dos pais nos filhos”; “Deus pode curar, por merecimento”..
A resposta obtida a diferentes questões realizadas com o objetivo de investigar as
relações entre doença / deficiência e castigo divino se referiu à reparação de erros ou à
merecida pedagogia da dor e mostrou a presença do sentimento de culpa fundamentado
no imaginário religioso.
Foi perguntado à população entrevistada se conheciam alguma passagem
bíblica referente a deficientes físicos. Dezesseis entrevistadas (50%) afirmaram não
conhecer ou não se lembrar de nenhuma passagem bíblica sobre deficientes, e
quatorze (50%) responderam afirmativamente, sendo destas seis católicas, cinco
evangélicas, duas que freqüentam várias e uma sem religião. Nenhuma soube localizar
as passagens, especificar ou narrá-las corretamente, conforme a transcrição das
respostas, a seguir.
105
As curas dos cegos foram as passagens mais lembradas, por 30% das
entrevistadas: o cego que Jesus curou com lama”, o cego que Jesus curou com saliva
e lama”, “os cegos que foram curados” e a cura do cego com barro”; uma entrevistada
citou ainda “a parábola do cego que não conseguia mergulhar no rio”.
As curas de pessoas que não andavam foram lembradas por 23,3%: “o homem
coxo que aguardava há trinta e oito anos no poço” e “levanta-te e anda, porque tua fé te
curou”.
As curas dos leprosos, sem especificação, foram citadas por 16,7% das
entrevistadas. As citações que se seguem foram feitas por uma entrevistada cada: “as
curas realizadas por Jesus”; a cura da mulher hemorrágica”; “a mão seca”; a cura de
Lázaro”; “o Senhor é meu pastor” e uma citou “a mulher com o filho convulsivo que
tocou as vestes de Deus e a criança foi curada” (tabela 23).
Não pôde ser estabelecida nenhuma relação entre a opção religiosa da
população e o conhecimento do texto bíblico e, conforme pudemos constatar, a opção
religiosa não pôde ser relacionada a nenhum outro item da pesquisa. Observamos,
nestas transcrições, a generalização (como em “as curas dos cegos”) e uma mistura de
diferentes passagens (como no cego que não conseguia mergulhar no rio e na
“mulher com o filho convulsivo”). Nenhuma das entrevistadas demonstrou
conhecimentos específicos do texto bíblico ou interesse sobre o mesmo.
106
Tabela 23: conhecimento de passagens bíblicas sobre deficiência
Passagens bíblicas sobre deficiência Nº de mães %
Não 16 53%
Sim 14 47%
Curas de cegos 9 23,3%
Curas dos que não andavam (paralíticos, aleijados, coxos
e mancos)
7 16,7%
Curas de leprosos 5 3,3%
Curas por Jesus (sem especificar) 1 3,3%
Mulher hemorrágica 1 3,3%
Mão seca 1 3,3%
Cura de Lázaro 1 3,3%
O Senhor é meu pastor 1 3,3%
Mulher com filho convulsivo (!) 1 3,3%
107
As passagens do texto bíblico apontadas pela população e outras que
relacionam doença a pecado e cura a perdão, são apresentadas a seguir.
Em Lc 5, 12-16, Mt 8, 2-4 e Mc 1, 40-45, encontramos o relato da cura de um
leproso:
“(...) veio à sua presença um homem coberto de lepra: ao ver a Jesus, prostrando-se com
o rosto em terra, suplicou-lhe: Senhor, se quiseres, podes purificar-me. E ele, estendendo
a mão, tocou-lhe dizendo: Quero, fica limpo! E no mesmo instante lhe desapareceu a
lepra”.
Em Lc 17, 11-19, temos o relato da cura de dez leprosos e ao final Jesus diz-lhe:
“levanta-te e vai: a tua te salvou”. Em Mt 8, 16-17, Lc 4, 40-41 e Mc 1, 32-34, temos
que “(...) Ele mesmo tomou as nossas enfermidades e carregou com as nossas
doenças”.
Nas passagens de Lc 6, 6-10 e Mt 12, 9-14, temos: (...) “Ora, achava-se ali um
homem cuja mão direita estava ressequida. (...) e, fitando a todos ao redor, disse ao
homem: estende a mão. Ele assim o fez e a mão lhe foi restaurada”.
Em Lc 6, 17-19: “(...) e todos da multidão procuravam tocá-lo, porque dele saía
poder e curava a todos”.
A passagem que trata da mulher hemorrágica é encontrada em Lc 8, 43-48, Mt 9,
20-22, Mc5, 25-34:
“Certa mulher que, havia doze anos, vinha sofrendo de uma hemorragia e a quem
ninguém tinha podido curar (e que gastara com os médicos todos os seus haveres), veio
por trás dele e lhe tocou na orla da veste e logo lhe estancou a hemorragia. (...) então
Jesus lhe disse: filha, a tua fé te salvou: vai em paz”.
108
Lc 18, 35-43 conta que quando um cego à beira do caminho de Jericó pedia
esmolas, gritou a Jesus que tivesse compaixão e misericórdia dele e Jesus o curou
dizendo: “recupera a tua vista: a tua fé te salvou”.
A cura de dois cegos é relatada em Mt 9, 27-31: “faça-se conforme a vossa fé”.
At 3, 2-10, conta a cura de um coxo por João; o homem que aguardava à beira
de um poço é relatado em Jo 5 : em Jerusalém, no tanque de Betesda, permanecia
uma multidão de enfermos, cegos, coxos, paralíticos aguardando que a água fosse
movida por um anjo para que o primeiro que então entrasse no tanque fosse curado.
Havia ali um homem enfermo aguardando trinta e oito anos e Jesus, ao conhecer
sua história, lhe disse: “levanta-te, toma o teu leito e anda” e ele foi imediatamente
curado.
Os exemplos de curas no texto bíblico o muitos e, como podemos constatar
estão, na maior parte das vezes, relacionados ao perdão dos pecados e à salvação ou
à vontade divina.
Ao perguntarmos às entrevistadas se acreditavam na possibilidade de qualquer
forma de cura por meio da intervenção divina, conforme discutimos anteriormente
(Tabela 24), 13,3% responderam não crer (“ele é assim, não precisa de cura” e a
época dos milagres passou”). Afirmaram acreditar na cura por intercessão divina
86,7%, por meio da e de orações”, de milagre”, na hora certa”, pela dos pais e
da criança”, “por meio dos profissionais”.
Jesus afirma o poder da fé, que é capaz de salvar e curar, e nesta passagem do
Novo Testamento encontra-se fundamentada a afirmação de uma mãe: eu acredito em
milagres, se Deus quiser, meu filho anda agora”!
109
Após estudarmos as passagens bíblicas relacionadas a doença e castigo, e cura e
salvação, passaremos ao estudo do mito da doença / deficiência sica, através do deus
Hefestos. Os mitos pertencem à categoria do sagrado, expressam uma realidade interna
e utilizam linguagem simbólica. Os deuses do panteão representam características
humanas e Hefestos, apesar de ser um deus do Olimpo, recebeu atributos pejorativos em
conseqüência de sua deformidade, tendo sido desprezado e excluído por sua aparência
física. A atribuição de características depreciativas relacionadas à aparência física pode
ser observada na população pesquisada, como estudaremos a seguir.
2.6- O Mito Greco-Romano: Hefestos, O Deus Deficiente
A religião, através do mito, comunica o ser humano com o mundo sobre-humano,
é paradigma e modelo de ações e a experiência com o sagrado faz surgirem as idéias
de realidade, verdade, significação e transcendência (Cazeneuve, 1996).
O mito greco-romano foi relegado ao nível de ficção pelo cristianismo, perdendo
seus significados religiosos e sendo por este assimilado, sob a forma de cultura. O mito,
desmistificado, passou então a fazer parte da civilização ocidental, sobrevivendo muitos
de seus elementos na sociedade moderna, no desejo de transcender o tempo histórico
e mergulhar no tempo desconhecido, no desejo de retornar ao princípio (Wach, 1990).
Os fenômenos religiosos podem pertencer à categoria do sagrado ou do profano
e, ao perder os seus elementos sagrados, o mito passa a ser classificado como
profano, e o profano pertence à espécie do que é impuro (Eliade, 1972).
110
Tentaremos fazer aqui a análise da deficiência física através do mito greco-romano
sendo que, para tanto, se faz necessário compreender o mito em sua função simbólica,
como uma segunda linguagem da experiência religiosa e enquanto relato de um
acontecimento originário no qual os deuses agem e cuja finalidade é dar sentido a uma
realidade significativa (Croatto, 2001).
Croatto (2001) faz referência a Paul Tillich ao descrever o mito como uma forma
de ‘revelação’ ontológica, tratando-se a história mítica não de uma cópia da realidade,
mas sim de sua interpretação; é uma narrativa construída pelo homo religiosus e, como
toda palavra, tem função social. Narra o fato fictício como instaurador de uma realidade
e, como texto, é polissêmico. Sua narrativa situa-se in illo tempore, isto é, num tempo
absoluto, a-cronológico, pré-cósmico, diferente do tempo histórico.
Assim, todo mito remete às origens. O mito não tem valor científico; tem a função
de dar sentido à realidade, portanto, trata de aspectos de grande valor para o ser
humano (Croatto, 2001).
O símbolo, primeira linguagem da experiência religiosa, encontra-se na
composição do mito. O mito enriquece e orienta o símbolo interpretando-o. O símbolo
tem no mito função hermenêutica, canaliza o transcendente.
O mito representa vivências sociais, auxilia na interpretação de realidades sociais
e representa um acontecimento primordial que é modelo de um fato real social,
interpretando fatos de relevância na vida social do grupo. O mito cumpre sua função
hermenêutica ao buscar o sentido das realidades que afetam o grupo. Os fatos novos
que perdem a sintonia com o transcendente exigem a modificação no mito (Croatto,
2001).
111
Compreendendo assim a importância do mito, passamos às quatro teorias que
buscam explicar a mitologia e que, segundo Bulfinch (2001), mostram apenas
parcialmente a verdade.
A teoria bíblica atribui a origem das narrativas mitológicas aos textos das
Escrituras. A teoria histórica afirma que todas as personagens míticas tiveram suas
origens em personagens e em acontecimentos reais. A teoria alegórica oferece ao mito
um valor simbólico que contem verdades morais, religiosas ou filosóficas e, por fim, a
teoria física coloca as primeiras divindades como personificações das forças da natureza.
A estas teorias, Bulfinch acrescenta o desejo do ser humano de explicar os fenômenos
naturais incompreensíveis.
A mitologia grega, enquanto uma dramaturgia que trata tanto da vida interior
quanto da vida social de um povo, envolve originalmente os dogmas filosóficos e os
valores morais daquela sociedade, sem pretensões científicas, pois “o que importa
discernir é o seu valor simbólico, que lhe revela o sentido profundo” (Chevalier;
Gueerbrant, 1991, p. 611-12).
Tomando dessa forma o mito, encontramos, então, o único deus com uma
deficiência física, Hefestos (Vulcano), o filho de Zeus (Júpiter) e Hera (Juno). Sua origem
é narrada de diferentes formas, sendo todas relacionadas à rejeição por parte de seus
pais:
“Nascera coxo e sua mãe sentiu-se tão aborrecida ao vê-lo que o atirou para fora do céu.
Outra versão diz que Júpiter atirou-o para fora com um pontapé, devido à sua participação
numa briga do rei do Olimpo com Juno. O defeito físico de Vulcano seria conseqüência
dessa queda” (Bulfinch, 2001, p.12-13).
112
Hefestos habitava a Ilha de Lemnos, à qual chegou após ter sido chutado por seu
pai e rolar pelo Olimpo abaixo durante um dia inteiro. Era o único deus que trabalhava,
atividade que não era bem vista no panteão:
“Mestre das artes do fogo e governando o mundo industrioso dos ferreiros, dos ourives e
dos operários. É visto soprando seu fogo e penando na sua bigorna, em que fabrica as
armas dos deuses e dos heróis (...)” (Chevalier; Gueerbrant, 1991, p. 485).
Fonte: http://www.cartagena-virtual.com/users/angahe/img/diccionario/Vulcanodiosg.jpg
113
Figura 3: Hefestos Trabalhando
fonte: www.geocities.com/.../Mythos/grieroma.htm
Figura 4: Hefestos, O Deus Ferreiro
114
O ofício de ferreiro situa-se, dentre os ofícios ligados à transformação dos metais,
como “o mais significativo quanto à importância e à ambivalência dos símbolos que
implica” (Chevalier; Gueerbrant, 1991, p.423). Por ser ferreiro, Hefestos tem provável
participação na obra cosmogônica; vivia num vulcão, habitando as sombras e em relação
com as entranhas da terra, de onde extraia o metal, e com o fogo subterrâneo, com o
qual forjava armas maravilhosas para deuses e heróis e jóias para deusas e belas
mortais, entre outros objetos e artefatos incríveis.
“(...) às vezes, os ferreiros são monstros, ou identificam-se com os guardiões dos tesouros
ocultos. Possuem, portanto, um aspecto temível, propriamente infernal; sua atividade
aparenta-se à magia e à feitiçaria. E é por essa razão que, muitas vezes, os ferreiros eram
mais ou menos excluídos da sociedade; e, na maioria dos casos, seu trabalho era rodeado
de ritos de purificação, de proibições sexuais e de exorcismos. (...) Hefestos é apresentado
como um demiurgo, criatura intermediária entre a natureza divina e a humana, sendo
descrito por Homero como disforme e claudicante, ‘monstro esbaforido e manco, cujas
pernas débeis vacilam sob o peso do corpo’” (Chevalier; Gueerbrant, 1991, p. 424, 485).
Segundo Chevalier e Gueerbrant, “toda deformidade é sinal de mistério, seja
maléfico, seja benéfico”, e a deformidade de Hefestos inscreve-se na ausência de
integridade corporal, como um elemento de desqualificação e de assimetria, o que
elimina a paridade humana e “remete ao uno, esquerdo ou direito malditos” (1991, p.
328).
Pode-se ressaltar alguns aspectos interessantes no mito do deus Hefestos,
apontados por Ligia Amaral (1991). Primeiramente, na gênese do mito, encontramos a
rejeição e a punição, com conseqüente exclusão do Olimpo para as entranhas da terra.
Segundo, a descrição de seu aspecto físico, diferente de outros deuses, trazendo
adjetivos como ‘feio, desgrenhado, monstro esbaforido, manco e de pernas débeis’. Suas
115
características morais também são desfavoráveis, sendo considerado vingativo, ardiloso
e amoral. Apesar de muito inteligente e capaz de produzir artefatos responsáveis pela
glória e beleza de deuses e mortais, era considerado apenas um trabalhador braçal.
Suas representações nas artes foram estudadas por Lígia A. Amaral (1991). O
deus era representado de forma ambígua, como um velho franzino ou pela figura de um
operário forte, envolto numa túnica curta e segurando nas mãos um martelo e, embora
fosse “coxo”, os artistas ‘disfarçavam’ ou suprimiam esse aspecto, ora representando-o
de pé, sem nenhuma deformidade aparente (negação), ora ocultando-a por detrás de
algum objeto (velando, camuflando); por vezes aparecia sentado, mas sempre em
posições ambíguas, podendo sua deformidade passar despercebida (dissimulando).
Estas formas de representação podem ser constatadas, entre outras, nas obras de
Vincenzo de Rossi (escultura de Vulcano) e Velásquez (A Oficina de Vulcano), referidas
por Lígia A. Amaral (1991, p. 193-94).
O mito e suas expressões com significados religiosos, quando reconhecido como
fenômeno humano, nos auxilia na compreensão da história do pensamento, devendo
ser pesquisado em sociedades, onde ainda se encontra vivo, onde é modelo para
nossas ações e justificativa de comportamentos, conferindo significado à existência.
Os mitos primitivos, apesar de terem se modificado pela influência de culturas
dominantes, ainda funcionam como documentos vivos, pois representam a linguagem
da religião primitiva e da sabedoria prática (Eliade, 1972).
A partir desse estudo, podemos compreender o mito greco-romano como uma
narrativa que trata do ethos e da visão de mundo de uma sociedade. O mito tem por
finalidade interpretar e fornecer sentido a uma realidade significativa na vida social do
116
grupo; ao compreendermos a sua função simbólica, revelamos o sentido profundo das
realidades sociais que afetam o grupo.
A deficiência física é historicamente considerada fator de exclusão social, e as
narrativas da origem do deus Hefestos mostram, através da gênese do mito, a rejeição,
a punição e a exclusão por seu pai e sua mãe, em conseqüência de sua aparência
física e, em algumas narrativas, a deficiência de Hefestos é diretamente causada por
seu pai ou por sua mãe.
Uma deformidade denota ausência de integridade corporal e assimetria, que
simbolicamente remeteria a significados relacionados a valores morais desfavoráveis. A
descrição do corpo na presença de uma deformidade física, como no mito de Hefestos,
pode evocar adjetivos como “feio”, “manco” e “de pernas débeis”.
Conforme constatamos, o deus deficiente foi representado nas artes pictóricas de
forma ambígua, onde os artistas disfarçavam, dissimulavam ou suprimiam sua
deformidade, negando-a.
As representações simbólicas do corpo deficiente presentes no mito de Hefestos
fazem parte do imaginário relacionado à deficiência física, o que pode ser constatado no
discurso das entrevistadas sobre a deficiência de suas crianças:
- “Ele (Deus) faz as coisas ruins para experimentar; mostrar que podemos conviver
com deficientes em casa, é como se fosse normal”;
- “se existisse só o bonito, não teria graça... então a deficiência serve para mostrar
isso aos outros”;
-“é a própria imperfeição como o fruto nasce meio defeituoso mas mantém o sabor
(...) eu era muito preconceituosa”;
117
- “é para eu não ter preconceitos: eu era muito preconceituosa com raças, com
pessoas”.
Tentaremos, a seguir, uma aproximação entre as passagens do texto bíblico e o
mito sobre a deficiência.
2.2.7- O Corpo Deficiente: Aproximações Entre O Texto Bíblico E O Mito
Greco-Romano
Conhecendo as origens das relações entre deficiência física e punição divina
dentro da cultura religiosa judaico-cristã e da mitologia greco-romana, podemos
constatar que tanto no texto bíblico quanto no mito de Hefestos, encontra-se claro o
estigma com relação à deficiência física. O estigma, generalizado na pessoa com
deficiência, a aponta como pecadora ou impura, portadora de um mal capaz de
contaminar e devendo ser, portanto, punida e mantida afastada do convívio social (do
sagrado), mesmo tratando-se de um deus, pois, conforme estudamos, os deuses
expressam e interpretam, numa linguagem simbólica, os pensamentos e as realidades
de uma coletividade.
Acreditamos que, por corresponderem a narrativas de questões existencialmente
significativas ao ser humano, revelando conteúdos muitas vezes inconscientes,
representando e ao mesmo tempo interpretando as realidades sociais e também o
acontecimento primordial que é modelo de um fato real social, os mitos deveriam ser
tratados sob a perspectiva de uma hermenêutica mais livre de dogmas religiosos e
disposta a penetrar nas origens dos temores que habitam o ser humano. Se o medo do
118
contato com o diferente / deficiente tem repercussões sociais excludentes e pode nos
remeter a textos fundantes da humanidade, decifrar sua simbologia é necessário para
uma melhor compreensão das atitudes discriminatórias observadas em várias
sociedades e conforme constatamos através do discurso de algumas entrevistadas.
Em “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gn 1,
26), encontramos a associação do homem à imagem e à perfeição divinas e também os
alicerces das relações entre o homem-microcosmo e o universo-macrocosmo
(Chevalier; Gueerbrant, 1991). Esta concepção também é apresentada por Aldo Terrin
que, ao pesquisar a doença na história comparada das religiões, a encontrou
confundindo-se com monstros originários, espíritos maus, possessão demoníaca e com
o pecado, compreendendo a primeira experiência pessoal do anticosmo, do caos e da
desordem (Terrin, 1998).
Ao analisarmos a questão do corpo perfeito e belo, encontramos na simetria o
símbolo da unidade representada pelo ‘Um’, que por sua vez é representado por um
falo erecto, um bastão ou um homem de pé, ativo e associado à obra da criação
sendo este símbolo da totalidade representante também do Deus único (Chevalier;
Gueerbrant, 1991).
Terrin (1998) aponta a importância da aparência física, do corpo perfeito e os
esforços empreendidos atualmente pelas pessoas para a manutenção ou aquisição dos
imperativos de saúde e beleza valorizados pela sociedade.
Observando o simétrico como parâmetro de perfeição e beleza, o que teríamos
então na assimetria da deformidade?
119
“Os seres maléficos ou sombrios (...) são sistematicamente descritos como disformes
(...). Toda deformidade é sinal de mistério, seja maléfico, seja benéfico. (...) A anomalia
exige, para ser compreendida, que se além das normas habituais de julgamento e,
desde logo, conduz a um conhecimento mais profundo dos mistérios do ser e da vida”
(Chevalier; Gueerbrant, 1991, p. 328).
A mutilação se relaciona à desqualificação, trazendo não apenas conseqüências
sociais, mas a transgressão de uma ordem par (simétrica), humana e diurna (duas
pernas, dois pés, dois braços, duas mãos, dois olhos) e o deformado, por ter sua
paridade atingida, é colocado à margem da sociedade humana ou diurna à qual
transgrediu, “passando então a pertencer à ordem da noite, infernal ou celeste, satânica
ou divina” (Chevalier; Gueerbrant, 1991, p. 628).
A eficiência tem sido, junto à beleza e à saúde, um atributo positivo na
classificação valorativa das pessoas. Foucault (1987), ao desenvolver seus estudos
sobre as instituições disciplinares e a dominação dos corpos empreendida na época
clássica, ressalta a importância do caráter utilitário do corpo, do ser humano eficiente,
comparado-o às maquinas (mecânico) e útil aos propósitos políticos e econômicos da
industrialização que avançava a partir do século XVIII. O poder disciplinar responsável
pela fabricação de corpos adestrados estabelecia uma separação dos indivíduos em
categorias, diferenciando-os e comparando-os uns aos outros. Estas medidas visavam
classificar as diferenças individuais, estabelecendo hierarquias de acordo com uma
escala valorativa ou normativa. O normal trouxe a homogeneização e, como critério de
avaliação, estabeleceu a exclusão do corpo-objeto não eficiente (deficiente).
Os corpos dóceis de Foucault (1987) dizem respeito aos corpos passíveis de
submissão e adestramento por meio disciplinar, que os torna fortes (úteis) do ponto de
120
vista econômico e fracos com relação ao poder de decisão, isto é, indivíduos
politicamente domináveis. Estes estudos nos levam a concluir que os corpos não
dóceis, não utilitários das pessoas com deficiência física inscrevem-se nos mais baixos
níveis, na hierarquia da classificação em uma escala valorativa relativa à utilidade.
Ruben Alves afirma a valorização do utilitarismo como fator de banimento do
sagrado no mundo:
“À medida que o utilitarismo se impôs e passou a governar as atividades das pessoas,
processou-se uma enorme revolução no campo dos símbolos. (...) Sagrado e profano não
são propriedades das coisas. Eles se estabelecem pelas atitudes dos homens perante as
coisas, espaços, tempos, pessoas, ações. O mundo profano é o círculo das atitudes
utilitárias. (...) O critério do utilitarismo retira das coisas e das pessoas todo valor que elas
possam ter, em si mesmas e levam em consideração se elas podem ser usadas ou
não. (...) À medida que avança o mundo profano e secular, assim avança também o
individualismo e o utilitarismo” (Alves, 2002, p. 45, 61,62).
A religião pode servir para auxiliar a ideologia política, econômica e social
dominante, a partir do momento em que o indivíduo coloca em Deus a responsabilidade
de solucionar seus problemas e de livrá-lo de seus sofrimentos. Para compreendermos
melhor as necessidades da população entrevistada, estudaremos o pensamento
religioso à luz de Karl Marx, que considera a religião uma construção do ser humano
que precisa suprir as suas necessidades de consolo e de justiça. Os pedidos que a
população entrevistada faz a Deus, como mostraremos a seguir, revelam seus anseios
por saúde e felicidade.
121
2.2.8- O Pensamento Religioso E As Situações Sem Alma
Karl Marx descreve em sua obra a forma como acredita que o ser humano tenha
construído a religião, à qual considera “uma consciência invertida do mundo (...) a sua
base geral de consolo e de defesa”, produzida pela própria sociedade, para consolo do
ser humano oprimido. Segundo o autor, “A religião é o suspiro do ser oprimido, o íntimo
de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma” (Marx, 2001, p. 45-46).
A religião, descrita por Marx (2001) como o ópio do povo (ilusão e delírio),
forneceria respostas abstratas e metafísicas para questões concretas e reais. Apresenta-
se como uma ‘felicidade ilusória’ a qual o pode ser abandonada, pois os que a
procuram ainda não se encontram preparados para enfrentar a realidade:
“O banimento da religião como felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua
felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o
apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. (...) A religião é apenas o sol
ilusório que gira em volta do homem enquanto ele não circula em torno de si mesmo” (Marx,
2001, p. 46).
O ser humano, ao buscar Deus “(...) na realidade magnífica do céu (...) encontrou
apenas o seu próprio espelho (...)” (Marx, 2001, p. 45). Assim, o autor coloca a religião
como o reflexo da sociedade, uma forma de alienação do ser humano, que transfere todos
os seus desejos e o poder de transformação de uma realidade que se mostra dura demais
para ser enfrentada.
A religião é considerada por Marx uma produção da sociedade, que sente
necessidade de projetar num deus imaginário a realização de seus desejos e a satisfação
122
de todas as suas necessidades. Ruben Alves, ao comentar a obra de Marx, apóia suas
idéias no que diz respeito ao grito do indivíduo sofredor:
“De fato, quando o pobre / oprimido, das profundezas do seu sofrimento, balbucia: “É a
vontade de Deus”, cessam todas as razões, todos os argumentos, as injustiças se
transformam em mistérios de desígnios insondáveis e sua própria miséria, uma
provação a ser suportada com paciência, na espera da salvação eterna de sua alma”
(Alves, 2002, p.79).
Vergely (2000, p.113) também comenta os Manuscritos Econômico-Filosóficos,
escritos em 1844, e afirma que Marx está correto ao localizar a questão do sofrimento
não na busca de sentido, mas em sua eliminação, através da eliminação das “(...)
condições políticas, econômicas e sociais que lhe deram origem e que, sobretudo,
continuam a produzi-lo, ao falar em dar-lhe um sentido em vez de acabar com ele pelo
estabelecimento da felicidade real”. O autor nos diz que quando sofremos, não
precisamos de discursos, mas sim de soluções dos meios como “medicina, psicanálise,
economia, política, educação e cultura, quando estas são capazes de voar em socorro
da dor, da pobreza, da opressão, da ignorância e da barbárie que se pode suportar”.
O que de humano no ser tende a assumir uma posição contra a vida que o
oprime, protestando sempre que o sofrimento tende a romper o vínculo que o ser tem
com a vida. Vergely conclui sua obra, acenando de forma bastante esperançosa:
“Se o protesto contra o sofrimento é o sinal de nossa humanidade, de nossa vida perdida
ou ausente, o fato de viver apesar do sofrimento é, em si, o mais belo indício de nosso
protesto. Aqueles que atravessam as provas com as quais a vida os confronta o o
exemplo vivo disso. Eles conseguem inverter essas provas que fazem a vida cair na
servidão pelo simples fato de viverem. E vivendo assim fazem brotar uma surpreendente
123
liberdade dessa servidão dando esta mensagem: a vida não é feita para sofrer. Vivamos,
pois” (Vergely, 2000, p. 230).
A Tabela 24 mostra as principais dificuldades mencionadas pelas mães, as quais
se mostram concretas e refletem suas reais necessidades de saúde e de consolo. Estas
necessidades puderam ser também observadas quando lhes perguntamos o que
pediam a Deus em suas orações (tabela 25). As respostas encontradas para as duas
perguntas estão em acordo com os postulados de Marx referentes à busca religiosa
com objetivo de suprir necessidades reais que deveriam ser resolvidas por meio de
medidas concretas.
Tabela 24: quais as maiores dificuldades com sua criança
Dificuldades Nº de mães %
Não andar / carregar 9 30%
Dependência 5 16,7%
Atraso desenvolvimento 5 16,7%
Falta apoio da família 4 13,3%
Transporte / barreiras arquitetônicas 4 13,3%
Birras dificultando o tratamento 4 13,3%
Incerteza quanto ao futuro 1 3,3%
124
Todas as entrevistadas expressaram mais de um desejo. As preocupações de
nove mães se referiram ao fato de a criança não andar e ter que ser carregada (30%);
cinco preocupam-se com a dependência da criança (16,6%); quatro queixam-se de
dificuldades concretas como o transporte e as barreiras arquitetônicas (13,3%); quatro
sentem a falta de apoio da família (13,3%) e uma (3,3%) externou sua preocupação
com o futuro da criança.
Como podemos constatar, a maior parte das entrevistadas coloca dificuldades
concretas que interferem negativamente no seu cotidiano, como o fato de a criança não
andar ocasionando dificuldades no carregar, na utilização de meios de transporte e na
utilização de serviços públicos, pelas barreiras arquitetônicas. Estes problemas podem
e devem ser solucionados com a aplicação das políticas e das leis que regulamentam e
garantem o livre acesso de todos os cidadãos e com o despertar da consciência da
família.
Quando perguntadas sobre o que pediam a Deus para suas crianças, todas as
mães responderam com mais de um item: dez (30%) pediam saúde; dez pediam que
sua criança andasse; cinco (16,7%) pediam que melhorasse; cinco pediam o melhor
para elas; quatro (13,3%) pediam que fosse independente; quatro oravam por força
para a mãe; três (10%) pediam misericórdia; três pediam bênçãos; três pediam que sua
criança se tornasse normal; três pediam para que fosse feliz; três pediam inteligência;
125
duas (6,7%) pediam pela cura da criança; uma (3,3%) pedia por um milagre; uma pedia
aceitação e uma agradecia por sua criança (Tabela 25).
Tabela 25: quando você ora, o que pede a Deus para sua criança
Todos esses pedidos e queixas das mães confirmam os postulados de Marx, ao
afirmar que, na religião, as pessoas buscam / pedem o que precisam concretamente:
elas precisam que suas crianças melhorem e rogam a Deus por saúde e felicidade. Estes
constituem, na verdade, os desejos de todos os pais e mães para as suas crianças; mas,
O que pede a Deus Nº de mães %
Saúde 10 30%
Andar 10 30%
Melhora 5 16,7%
O melhor 5 16,7%
Independência 4 13,3%
Força para a mãe 4 13,3%
Misericórdia 3 10%
Bênçãos 3 10%
Que seja normal 3 10%
Que seja feliz 3 10%
Inteligência 3 10%
Cura 2 6,7%
Milagre 1 3,3%
Aceitação 1 3,3%
Agradece por ele estar vivo 1 3,3%
126
por não se tratar de crianças como todas as outras, esses desejos se tornam mais
difíceis de serem realizados.
Foi perguntado às entrevistadas quais eram as maiores alegrias que elas
experimentavam com suas crianças e elas expressaram-se com mais de uma resposta
(tabela 25). Dezesseis entrevistadas (53,3%) referiram-se ao desenvolvimento
psicomotor como uma alegria, uma vitória da criança; doze (40%) afirmaram que
qualquer coisa ou tudo o que sua criança consiga fazer é uma alegria e seis mães
(20%) disseram que a criança ser alegre era a sua alegria; o carinho e o esforço da
criança foi referido por três mães (10%); a extroversão foi citada por duas mães (6,7%);
a criança chamar por “mamãe” e o fato de “a criança existir” foram citados por uma mãe
(3,3%) cada (Tabela 26).
Tabela 26: quais as maiores alegrias sua criança proporciona
Quais as maiores alegrias Nº de mães %
Desenvolvimento psicomotor 16 53,3%
Todas / qualquer coisa
que ela faça
12 40%
Inteligência 9 30%
Alegria 6 20%
Esforço 3 10%
Carinho 3 10%
Extroversão 2 6,7%
Chamar por “mamãe” 1 3,3%
Ela existir 1 3,3%
127
Observamos aqui a valorização do desenvolvimento da criança, em seus
aspectos motores e cognitivos e a valorização de qualquer esforço ou tentativa desta
criança. Estas mães, como qualquer mãe, valorizam a saúde e a alegria de suas
crianças. Marx não teria, então, se enganado com relação às necessidades reais e à
busca da religião pelos que se encontram nas situações sem alma. As necessidades
concretas destas pessoas, como pudemos constatar, deveriam ser resolvidas por meio
de medidas concretas, como a aplicação de políticas de saúde e de acessibilidade mais
adequadas. Enquanto estas questões não são resolvidas, estas mães tentam buscar
em suas racionalizações, em seu imaginário religioso e em suas crenças, as
explicações e as justificativas de que necessitam para prosseguir em seus papéis
sociais.
128
CONCLUSÃO
Esta pesquisa detectou uma população de jovens mulheres que se tornaram
mães de crianças com uma patologia grave e de prognóstico reservado.
Compreendemos os sonhos construídos por estas mães, o imaginário sobre um novo
bebê e a importância do nculo estabelecido mesmo antes do nascimento. A Paralisia
Cerebral altera, não apenas o curso normal do desenvolvimento infantil, deixando, na
maior parte dos casos, seqüelas físicas permanentes: ela altera o curso de vida das
mães destas crianças.
Ao entrarmos em contato com um pouco da rotina destas mães e conhecermos
as possibilidades de futuro, delas e de suas crianças, pudemos compreender um pouco
seus sentimentos e suas reações ao se depararem com o inesperado.
Estas mulheres se vêm obrigadas a passar por um penoso processo de
aprendizagem de seu novo papel, pois tornar-se mãe de uma criança com deficiência
física não é uma tarefa a ser naturalmente desempenhada. As formas encontradas para
reagir à adversidade encerram uma busca por significado. Os mecanismos
desenvolvidos para compreensão da situação e superação da crise se apóiam em
129
idéias que, longe de serem individuais, tiveram origem no pensamento religioso de uma
coletividade, fundamentadas antes do cristianismo e posteriormente reafirmadas por
este, e que ainda persistem no imaginário dessas pessoas. Suas racionalizações as
auxiliam a prosseguir suas vidas, a desempenhar seus papéis.
A busca da religião como fonte de alívio do sofrimento e de satisfação das
necessidades de saúde e cura, conforme nos alertou Marx, é uma realidade.
A importância da religião para a construção e manutenção de valores é evidente.
Os fundamentos dos processos nômicos em nossa sociedade e as origens dos
processos anômicos por ruptura com o ethos e a visão de mundo que acompanham
estas mães por ocasião do nascimento da criança com Paralisia Cerebral, são claros.
Os novos papéis que elas têm que internalizar / assumir se somam ao sofrimento da
busca pelo significado dos acontecimentos. Os pais dessas crianças não assumem as
responsabilidades sobre suas vidas, obrigando as mães a assumi-las.
A história das religiões, o texto bíblico e o mito evidenciam relações entre a
doença e a cura divina e o inquietante olhar de Marx sobre a religião como forma de
alienação, que nos torna resignados e nos impede de avançar política e socialmente, se
mostra tão inquietante quanto as formas de racionalização das teodicéias.
Creio que, ao longo desta pesquisa, pudemos constatar que não uma
resposta única às questões inicialmente levantadas, pois lidar com o ser humano
pressupõe sua historicidade e sua singularidade, o que é evidenciado pela teoria dos
papéis sociais desempenhados pela população investigada. Porém, os caminhos aqui
trilhados nos apontaram algumas direções que auxiliam na compreensão das
questões:
130
O imaginário religioso fundamenta a construção da sociedade humana e
dos seus valores morais e materiais. As construções mitológicas anteriores
ao cristianismo, as quais estabeleciam relações entre doença e cura
divina, foram transmudadas pela cultura religiosa judaico-cristã que,
apoiada por algumas passagens do texto bíblico, tem relacionado doença /
deficiência e castigo divino, e sua cura ao perdão dos pecados. Este
pensamento pode estar presente no imaginário religioso, influenciando a
construção do significado subjetivo da doença, bem como dos valores
relacionados à doença-deficiência e pecado-castigo, e entre saúde-cura e
perdão divinos, conforme pôde ser constatado ao longo da pesquisa.
Mesmo não havendo uma preocupação formal com relação ao
conhecimento do texto bíblico, o que pôde ser constatado na pesquisa, as
racionalizações religiosas estão presentes no imaginário religioso da
população pesquisada, que sente necessidade de fornecer um significado
à doença de suas crianças. A utilização da doença/ deficiência como
instrumento da pedagogia divina, mostrou ser a forma mais utilizada por
estas mães para a compreensão/ assimilação da situação em que se
encontram.
A população pesquisada busca sim, na religião, o alívio para o seu
sofrimento e um significado para a sua dor, tanto ao sofrer o impacto da
notícia, quanto nas etapas posteriores, durante o processo de adaptação à
doença; mas estas pessoas também buscam na religião as forças de que
necessitam para conseguirem suportar a sua dura realidade, pois, ao
131
voltar-se para a religião, elas mostram um aumento na capacidade para
enfrentar sua nova situação.
Algumas mães, independente de seu nível de instrução e mesmo tendo
sido esclarecidas sobre a severidade do quadro neurológico de suas
crianças, esperam a cura por meio de um milagre: talvez esta espera por
uma solução divina (mágica) para os seus problemas seja o estímulo que
precisam para suportar sua dura realidade...
Mostrou-se possível explicar a reação destas pessoas, a partir das
construções do imaginário que envolve o nascimento de um bebê, e
também a partir da relação doença-pecado, presente na cultura religiosa
judaico-cristã. A teoria de Marx sobre a religião mostra-se atual e
elucidativa, por evidenciar as necessidades concretas do ser humano que,
desamparado pelo sistema social, político e econômico, se sem
possibilidades de efetivar uma mudança real no curso de sua vida: recorre-
se à religião também para refúgio e apoio nas “situações sem alma”.
As mudanças efetuadas pela população pesquisada em seus sistemas de
valores éticos e religiosos, após o impacto da deficiência permanente,
mostraram-se evidentes. Não ocorreu uma migração religiosa, mas sim
uma (re)afirmação da sua fé, muitas vezes não exteriorizada, mas
constatada através de um intenso movimento interior de reflexão, capaz de
levá-las a repensar seus princípios e suas atitudes –promovendo
mudanças no ethos destas pessoas e tornando-as “mais humanas”.
132
Uma inquietante questão (dentre muitas) permeou todos os depoimentos das
mães ao longo da pesquisa: a afirmação da doença / deficiência e do sofrimento como
forma divina de ensinar “algo” às pessoas. O contato tão próximo com a deficiência
física, certamente evocou preconceitos e confusos sentimentos de rejeição ligados à
deficiência e que podem, de certa forma, ser considerados naturais, visto que estas
mães foram surpreendidas pela inesperada doença de suas crianças. Ao interpretar a
doença como uma forma de pedagogia divina, as mães se referiram ao processo de
assimilação da situação, que as obrigou a um novo olhar sobre os valores ligados às
suas atitudes frente à vida em geral e à doença / deficiência especificamente,
revisitando seus conceitos e preconceitos. Estas mães, para aceitar o fato da doença
em suas crianças, tiveram que promover uma mudança em seus sistemas de valores
morais e estéticos, e em sua noção de bem e de mal –onde se inscrevem os valores
relacionados à deficiência. A pedagogia seria, então, obrigar estas pessoas a uma
mudança em seu ethos, a partir do choque entre seus valores e interesses pessoais e
as mudanças de planos e de rumo, e do aprendizado do novo e difícil papel social de
“mãe de uma criança com deficiência física”. É evidente que a doença / deficiência
física não se constitui numa opção desejável por nenhum ser humano, para si mesmo
ou para seus descendentes, mas é também irrefutável que os valores humanos
deveriam se sobrepor a qualquer tipo de preconceito, o que não tem se mostrado ser
uma prática comum em nossa sociedade.
Enfim, o sofrimento faz parte da vida destas pessoas e pode, algumas vezes, ser
transformado, originando algo positivo, como muitas destas mães nos mostraram ao
conseguir ultrapassar a própria dor, saindo de si e tornando-se sensíveis ao outro. Como
133
nos sugere Vergely, tomar as dores do outro como sendo suas, pode tornar o ser
humano
“(...) não só muito auxiliador, mas completamente pronto a sacrificar sua pessoa se puder
assim salvar várias outras, esse homem que em cada ser reconhece a si mesmo,
considera as infinitas dores do que vive como sendo suas dores. Doravante, nenhum
sofrimento lhe é estranho (...)” (Aubert, 1996 apud Vergely, 2000, p. 104).
“(...) É difícil ser feliz; é um combate contra muitos homens (...). O que não foi
suficientemente dito é que é um dever para com os outros ser feliz (...). Pois a
infelicidade, o tédio e o desespero estão no ar que todos respiramos; assim devemos
reconhecimento e coroa de atleta àqueles que dirigem os miasmas e purificam a vida
comum por seu enérgico exemplo (...) todo homem e toda mulher deveriam pensar nisso,
que a felicidade é a oferenda mais generosa” (Al, 1988 apud Vergely, 2000, p.105).
Vergely (2000) afirma que se pode agir positivamente frente a uma tragédia, pois
os fatos remetem ao que é, ao que está pronto, enquanto os valores remetem ao que
deve ser, isto é, são construídos. Neste sentido, Kushner (1983, p. 75) sugere que uma
mudança de foco deve ser operada nas ocasiões de grandes infortúnios, da questão
“porque isso acontece?” para “o que fazer agora que isto aconteceu”? Desta forma, o
autor indica que não seria o fato em si, mas a nossa forma de reagir que nos colocaria
contra ou a favor de Deus:
“(...) Seja-me permitido sugerir que os males que surgem em nossas vidas não contêm
nenhum significado especial. Não acontecem por nenhuma boa razão que nos faça
aceitá-los de boa vontade. Mas podemos dar a eles um sentido. Podemos redimir essas
tragédias da falta de sentido impondo-lhes um sentido. ‘Que fiz eu para merecer isso?’ é
um grito compreensível da parte de um enfermo ou de um sofredor, porém a pergunta
está realmente mal formulada. A questão que devemos propor não é ‘porque isto me
aconteceu? Que fiz para merecer isto?’ Esta é realmente uma questão irrespondível,
134
sem graça. Uma pergunta mais interessante seria: ‘Agora que isto me aconteceu, que
vou fazer?’“ (Kushner, 1983, p. 137).
“(...) talvez haja uma solução satisfatória para as tragédias de nossas vidas. (...) perdoar
o mundo por não ser perfeito, perdoar a Deus por não ter feito um mundo melhor, abraçar
as pessoas que estão ao nosso redor e continuar vivendo não obstante tudo” (Kushner,
1983, p.147).
Kushner (1983, p. 147) afirma que o amor não seria “a admiração da perfeição,
mas a aceitação de uma pessoa imperfeita com todas as suas imperfeições, porque
amá-la e aceitá-la nos torna melhores e mais fortes”. Seria o amor a arma destas mães
contra o infortúnio? Certamente é importante que estas mães amem suas crianças,
compreendendo amor enquanto um sentimento de absoluta dedicação e que as
predispõe a desejar o bem de suas crianças; mas as condições concretas para que
este amor se realize podem e devem ser oferecidas: pelo Estado, por meio das políticas
de saúde; pela família, através do apoio do pai da criança, assumindo seu papel social
de pai e dividindo todas as responsabilidades com esta mãe e, finalmente, pela
sociedade, que deve desenvolver em sua visão de mundo os valores humanos de
solidariedade como prioridade.
Muitas das respostas e explicações fornecidas por estas mães, por ocasião da
entrevista, não puderam ser aqui aprofundadas, constituindo material para estudos
posteriores. Acreditamos que a investigação das reações dos pais das crianças com
Paralisia Cerebral, numa pesquisa comparada à das mães, poderia elucidar, além do
processo de aprendizado e internalização de papéis, as formas de racionalização
religiosas a partir de uma perspectiva de gênero.
Os resultados obtidos nesta pesquisa reafirmam a nossa convicção de que a
religião constitui-se num tema transversal de interesse a todas as áreas do
135
conhecimento humano, e de especial relevância à grande Área da Saúde, por
envolver, mais do que qualquer outra área, o cuidado com o ser humano adoecido e
em processo de sofrimento. A semente foi lançada.
136
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142
ANEXOS
ANEXO I
QUESTIONÁRIO PARA ENTREVISTA data:.............
Entrevistada – idade atual:..........idade no parto:..........estado civil:...................... Criança
- idade ao diagn:...........idade atual:........diagnóstico:.....................
1-Você já teve contato anterior com pessoas deficientes?
2-Quando soube que sua criança tinha uma deficiência?
3-Como você reagiu à notícia? E o pai da criança / outros?
4-Quais as maiores dificuldades com sua criança?
5-Quais as maiores alegrias com sua criança?
6-Você crê em Deus? Como O descreve?
7-Você tem religião / qual freqüenta / como expressa sua fé?
8-Você manteve a fé, buscou / obteve apoio de sua igreja ao saber da doença?
9-Você mudou de religião ao saber da doença de sua criança?
10-Houve mudanças em sua relação com Deus, com sua religião ou com a vida após o
nascimento de sua criança?
11-Você (ou outra pessoa da família) fez algum tipo de promessa?
12-Você recebeu algum tipo de “aviso” sobre sua gravidez ou sua criança?
13-Você pensa que Deus quis comunicar algo através de sua criança?
14-Você conhece alguma passagem da Bíblia sobre deficiência?
15-Você tem uma explicação para a existência de pessoas deficientes no mundo?
143
16-Você tem uma explicação para a deficiência de sua criança? E o pai?
17-Como você se posiciona à afirmativa de que Deus pode castigar através de uma
deficiência?
18-Quando você ora, o que pede a Deus para sua criança?
19-Você crê em cura ou em intervenção divina? Por quais meios?
ANEXO II
Transcrição das Entrevistas
Quais são as causas da existência de pessoas com deficiência no mundo?
1- Porque Deus quer
2- Não sabe
3- Causas médicas
4- Não sabe
5- Talvez provação
6- Não sabe
7- Não sabe
8- Não sabe
9- Acho que devemos aprender; estão resgatando o que deixaram para atrás
10- Já ouvi falar que estão pagando
11- São pessoas especiais
12- Não sabe
13- Para aprender limites, persistência
14- Não sabe
15- Para aperfeiçoar a gente, aprender a valorizar mais a vida
16- Não sabe
17- Ensino de vida para a pessoa saber que a vida não é mar de rosas
18- Não sabe
19- Nada acontece por acaso, é para acordar as pessoas
20- Se existisse só o bonito, não teria graça, então o deficiente serve para mostrar aos outros
21- Porque a medicina salva
22- Não sabe
23- Não sabe
24- Não sabe
144
25- Tudo é um propósito de Deus na vida da pessoa
26- Não sabe
27- Não sabe
28- É a própria imperfeição, como o fruto nasce meio defeituoso, mas mantém o sabor; é
herança do pecado de Adão
29- Já fui atrás de várias igrejas, mas não consigo entender
30- Deve ter algum significado, senão, o que justificaria, porque Deus não pode ser ruim
Quais são as causas da doença / deficiência de sua criança?
1- Porque passou da hora de nascer e Deus quis
2- Por sofrimento meu na gravidez
3- Foi sem ter motivo, Deus quis testar a gente
4- Causas médicas
5- Não sei se é provação...
6- Causas médicas
7- Causas médicas
8- Causas médicas
9- Não sabe
10- Nada acontece por acaso; filhos especiais são para pais especiais, para crescimento da
mãe
11- Por alguma coisa em que eu errei, e ela (a filha) veio para provação
12- Não acontece na vida da gente por acaso, é um chamado de Deus para prestar atenção
nas coisas simples da vida
13- Ele (o filho) está aqui para ensinar
14- Causas médicas
15- Não tem explicação; já procurei o que eu fiz de errado
16- Não sabe
17- Causas médicas
18- Aconteceu...
19- Causas médicas
20- Causas médicas
21- Causas médicas
22- Foi porque eu não queria engravidar, aí Deus quis mostrar
23- Não sabe
145
24- Deus só dá a criança a quem Ele sabe que vai dar conta e essas crianças já têm a salvação
por serem puros de coração
25- É propósito de Deus; eu aprendo com ela todos os dia, a ser humilde
26- Talvez por conseqüência de uma desobediência minha, coisa do meu passado
27- Causas médicas
28- Causas médicas
29- Não sabe
30- Por erro dele (do filho); Deus queria testar a minha paciência, provar se eu sou capaz
Você pensa que Deus quis comunicar algo com a doença / deficiência de sua
criança? O que mudou?
1- Deus o mandou porque sabe que eu tenho capacidade para cuidar; dobrou a mina fé; nós
(pai e mãe) éramos custosos; é para dar valor à vida
2- Às vezes sim; acredito mais em Deus agora
3- Ele faz as coisas ruins para experimentar; é para mostrar que podemos conviver com um
deficiente em casa, é como se fosse normal
4- Ele quis, para mudarmos o jeito de vida; fiquei mais religiosa
5- Deus quis provar a minha fé; fiquei mais religiosa
6- minha mãe diz que é castigo pelo jeito que eu era antes; eu não sei, mas nós dois estamos
sendo sacrificados
7- Não
8- Sim, eu mudei da água para o vinho, antes eu não me importava com nada, era custosa,
insuportável; aumentou a minha fé
9- Testar a paciência; tudo melhorou, o casamento, a família se uniu
10- Ele veio para melhorar a relação da família, aproximou a todos
11- Ele quer mostrar algo, porque já tem deficientes na família; mudou meus valores, carinho,
atenção
12- Deus está se manifestando em minha vida (através da criança)
13- Ensinar menos arrogância, mais família; fiquei mais religiosa
14- Não sei
15- Deixar de ser autoritária, valorizar mais as coisas; me tornei mais religiosa, mais humana
16- A relação com meu marido, trouxe paz; fiquei mais paciente, mais religiosa
17- Mudar nossa forma de agir na vida; acredito mais em Jesus
18- Não; minha fé aumentou
19- Ajudar a melhorar meus conceitos; fiquei mais religiosa
146
20- Fiquei mais religiosa, menos rebelde; às vezes penso que ela está em suas últimas
encarnações
21- Eu tinha medo de perdê-la após o nascimento; fiquei mais perto d' Ele
22- Ele deve ter um plano bom, porque ela é minha alegria
23- Testar tolerância; nada acontece por acaso; fiquei mais tolerante, mais paciente
24- Não, mas Ele me escolheu para enviar meu filho; passei a ter mais fé
25- Minha filha me levou para o lado bom da vida; mudei para melhor; procuro entender a
deficiência dela como um projeto de Deus para a minha vida; minha fé cresceu
26- Deus usa as pessoas de várias maneiras; fiquei com mais intimidade com Deus
27- Mostrar que ainda existe mãe; fiquei mais próxima de Deus
28- É para eu não ter preconceitos: eu era muito preconceituosa com raças, pessoas
29- Ele usou meu filho para mostrar uma série de coisas para a família; às vezes ainda acordo
revoltada
30- Mostrar que a gente depende dos outros, que pode acontecer algo com a gente e mesmo
com dificuldades a gente pode ser feliz
Você acredita que Deus pode castigar através de uma doença / deficiência?
1- Não
2- Não
3- Não no meu caso
4- Sim
5- Não
6- Às vezes
7- Não
8- Não
9- O que Ele fez, só Ele pode tirar
10- Não
11- Deus permite por um propósito
12- Não; Ele permite para nos lapidar
13- Não
14- Não
15- Deus não castiga, Ele quer corrigir
16- Às vezes
147
17- Deus visita a maldade dos pais nos filhos; se Ele é misericordioso, também é justo
18- Não
19- É complicado: a gente quer pensar o melhor de Deus, mas é de certa forma para as
pessoas pensarem melhor
20- Não
21- Não
22- Não
23- Não
24- Não
25- Não
26- Ele tem a maneira de provar as pessoas; a gente vai colher no futuro, porque Ele tudo
27- Não
28- Não
29- Acredito que sim, mas não sei se é no meu caso
30- Não; é para provar a fé; a deficiência é para evitar algo pior, como drogas, crime
Quando você ora, o que pede a Deus para sua criança?
1- Para ser normal, para andar
2- Para que Ele faça um milagre, que ela ande e fale como uma criança normal, que para a
escola
3- Melhora, saúde, paz, que a ajude a recuperar os movimentos do lado esquerdo
4- Que ele me dê forças para continuar, paciência e calma para nós duas (mãe e filha)
5- O melhor, que ela ande
6- O melhor, o que Ele acha que deve fazer; para tirá-lo dessa cadeira de rodas, porque é
horrível ele ficar preso, não poder chutar bola
7- Melhora suficiente para ela se cuidar quando eu não estiver mais por perto
8- Saúde e para que ele ande
9- Melhoras, muita saúde
10- Para que seja feliz, tenha paz, seja respeitado e tenha uma futuro promissor
11- Misericórdia para que ela consiga viver com normalidade; que possa ser uma criança
normal; que ela ande e seja saudável
12- Saúde e que Ele lhe conceda a graça de ser o mais independente possível
148
13- Saúde, alegria, tudo de bom, proteção, luz, persistência
14- Saúde, vida, força, que faça com que ela melhore e que Ele faça a obra
15- Para que Ele não a tire de mim, mesmo que ela não ande
16- Para que ele se recupere a cada dia mais e que ande o mais rápido possível
17- Para que Deus faça a Sua vontade e não a nossa, porque Ele é perfeito
18- Peço bênçãos e que o livre do mal
19- Para que ela seja o que Deus programou para ela: que se locomova sozinha e que tenha
independência
20- Saúde, tolerância e entendimento para nós duas (mãe e filha)
21- Saúde, inteligência, que ande, que compreenda o mundo
22- Que ela siga o seu caminho feliz, que ande e fale, saúde, que tenha perfeição
23- Peço sabedoria e que, se for para ele melhorar, que seja
24- Para que ele ande, porque ele tem vontade; que Ele tenha misericórdia e o libertando
dessa doença
25- Peço que ela tenha aceitação da doença, porque ela é muito vaidosa e tem muita
consciência de suas limitações e eu tenho medo da adolescência
26- Que Ele venha a libertar ele de maneira completa, que ele possa ser curado para glorificá-
Lo; que tenha misericórdia e mude a história de sua vida
27- Saúde, paz, felicidade e inteligência; espero a cura
28- Não peço nada, eu só agradeço; peço que Ele derrame suas bênçãos, como faz comigo
29- Que seja feita a vontade Dele; espero tudo de bom
30- Peço que seja independente em suas vontades de homem e por sua inteligência, que seja
um grande homem
149
ANEXO III
Quadro: dados de identificação da população
150
Nome Idade
atual
Estado civil instrução Profissão Religião
Atual
1 22 Casada 7ª série Do lar Evangélica
2 26 Casada 5ª série Do lar Evangélica
3 23 Casada 2º grau Do lar Católica
4 20 Solteira 1º grau Do lar Várias
5 49 Casada 6ª série Do lar Evangélica
6 26 Casada 2º grau Do lar Católica
7 27 Casada Técnico Do lar Evangélica
8 22 Casada 6ª série Do lar Evangélica
9 26 Casada 6ª série Serviços gráficos Espírita
10 34 Casada 3º grau cursando Do lar Católica
11 26 Separada Superior Do lar Católica
12 28 Casada 2º grau Do lar Católica
13 33 Casada 3º grau incompleto Do lar Católica
14 29 Casada 2º grau Do lar Evangélica
15 40 Solteira 6ª série Do lar Evangélica
16 28 Casada 6ª série Do lar Evangélica
17 28 Casada 1º grau Do lar Evangélica
18 30 Casada 6ª série Do lar Várias
19 33 Casada 2º grau Vendedora Católica
20 35 Casada 1º grau Faxineira Católica
21 31 Solteira 2º grau Do lar Católica
22 37 Casada 2º grau incompleto Do lar Evangélica
23 31 Casada 5ª série Do lar Test. Jeová
24 22 Separada 2º grau Do lar Católica
25 26 Separada 3º grau cursando Do lar Católica
26 24 Separada 1º grau Do lar Evangélica
27 33 Casada 3º grau cursando Do lar Católica
28 30 Casada Superior Profissional liberal Nenhuma
29 35 Casada 3º grau incompleto Do lar Várias
30 29 Solteira 2º grau Do lar Nenhuma
151
ANEXO IV
TABELAS
152
Tabela 1: idade da criança ao ser conhecido o diagnóstico
Idade da criança Nº de mães %
7m intra-uterina 1 3,3%
ao nascimento 1 3,3%
1º ao 6º mês 9 30%
7º ao 12º mês 13 43,3%
13º ao 18º mês 3 10%
2 anos a 2 anos e 6 meses 3 10%
153
Tabela 2: idade materna na ocasião do parto
Idade materna
Nº de mães
%
17 a 19 ano s
7
23,3%
20 e 24 anos
11
36,7%
25 e 29 anos
9
30%
30 e 35 anos
3
10%
154
Tabela 3: faixa etária das mães ao receberem o diagnóstico
Idade materna
Nº de mães
%
18 a 24 anos
17
56,7%
25 a 29 anos
10
33,3%
32 a 35 anos
3
10%
155
Tabela 4: faixa etária das mães atualmente
Faixa etária
Nº de mães
%
20 a 24 anos
6
20%
25 e 29 anos
11
36,7%
30 e 34 anos
8
26,7%
35 e 39 anos
3
10%
40 anos
1
3,3%
49 anos
1
3,3%
156
Tabela 5: estado civil atualmente
Estado civil
Casadas 22 73,3%
Solteiras 4 13,3%
Separadas 4 13,3%
157
Tabela 6: nível de instrução da população
Instrução
Nº de mães
%
Iº grau incompleto
9
30%
Iº grau
5
16,6%
2º grau incompleto
2
6,7%
2º grau
9
30%
3º grau cursando
3
10%
3º grau
2
6,7%
158
Tabela 7: profissão das mães
Tabela 8: contato anterior com pessoas com deficiência
Profissão Nº de mães %
Dona de casa 26 86,7%
Nível técnico 1 3,3%
Profissional liberal 1 3,3%
Estudantes universitárias 2 6,7%
Contata anterior Nº de mães %
Não 21 70%
Sim 9 30%
159
Tabela 9: como reagiu à notícia de que sua criança tinha uma doença
Como reagiu à notícia
Nº de mães
%
desespero, gritos
13
43,3%
Choro, tristeza, Depressão
11
36,7%
Choque, susto
6
20%
Raiva, revolta
5
16,7%
Buscou tratamento
Tranqüila
5
4
16,7%
13,3%
Negação, não acreditou, não aceitou
3
10%
Questionou
3
10%
Medo, insegurança
3
10%
160
Vergonha
1
3,3%
Idéias suicidas
1
3,3%
Culpa
1
3,3%
Tabela 10: fez alguma promessa para obter a cura da criança
Promessa
Nº de mães
%
Não
20
66,7%
Sim
10
33,3%
161
Tabela 11: faixa etária atual das crianças
Tabela 12: você crê na existência de Deus
Tabela 13: mudou de religião ao conhecer o diagnóstico de sua criança
Idade atual da criança Nº de crianças %
3 meses 1 3,3%
10 a 21 meses 3 10%
2 anos a 2 anos e 9 meses 6 20%
4 a 5 anos 12 40%
9 a 10 anos 5 16,7%
14 anos 2 6,7%
17 anos 1 3,3%
Crê em Deus Nº de mães %
Sim 28 93,4%
Não 1 3,3%
Duvida 1 3,3%
Mudou de religião Nº de mães %
Não 27 90%
Sim 2 6,7%
Retornou 1 3,3%
162
Tabela 14: qual é a sua religião atual
Tabela 15: você recebeu qualquer tipo de aviso antes do nascimento
Tabela 16: você buscou auxílio religioso ao saber o diagnóstico
Religião atual Nº de mães %
Católica 12 40%
Evangélica 11 36,7%
Nenhuma específica 3 10%
Sem religião 2 6,7%
Testemunha de Jeová 1 3,3%
Espírita 1 3,3%
Recebeu “aviso” Nº de mães %
Não 16 53,3
Sim 14 46,7
Buscou auxílio Nº de mães %
Não 20 66,7%
Sim 10 33,3%
163
Tabela 17: como você explica a doença / deficiência no mundo
Tabela 18: como você explica a doença / deficiência de sua criança
Como explica a deficiência Nº de mães %
Não sabe 15 50%
Deus quer ensinar através 6 20%
Médicas 2 6,7%
Provação / Resgate 2 6,7%
Castigo 2 6,7%
Propósito /Vontade de Deus 2 6,7%
São pessoas especiais 1 3,2%
Como explica a deficiência Nº de mães %
Causas médicas 11 36,7%
Forma de Deus ensinar valores 6 20%
Não sabe 5 16,7%
Erro da mãe 5 16,7%
Sofrimento da mãe na gravidez 1 3,3%
Erro da própria criança 1 3,3%
Deus quer 1 3,3%
164
Tabela 19: Deus quis comunicar algo através da deficiência de sua criança
Tabela 20: mudou seus valores/
relação com Deus após saber da
doença de sua criança
Deus quis comunicar Nº de mães %
Ensinar valores 17 56,7%
Sim, mas não sabe o quê 3 10%
Provar a fé 3 10%
Plano de Deus 3 10%
Não 2 6,7%
Talvez castigo 1 3,3%
Manifestação de deus 1 3,3%
Mudou a relação com Deus Nº de mães %
Mais fé e mudança de valores 14 46,7%
Mais fé / mais forte 9 30%
Não 4 13,3%
Mudança de valores 3 10%
165
Tabela 21: você crê que Deus pode castigar através de uma doença / deficiência
Tabela 22: você crê em qualquer tipo de cura através de Deus
Deus castiga Nº de mães %
Não 19 63,3%
Talvez 6 20%
Sim 5 16,7%
Deus pode curar Nº de mães %
Não 4 13,3%
Sim 26 86,7%
Pela fé 7 23,4%
Por milagre 6 20%
Por merecimento 3 10%
Na hora certa 1 3,3%
Pelos profissionais 1 3,3%
166
Tabela 23: conhecimento de passagens bíblicas sobre deficiência
Passagens bíblicas sobre deficiência Nº de mães %
Não 16 53%
Sim 14 47%
Curas de cegos 9 23,3%
Curas dos que não andavam (paralíticos,
aleijados, coxos e mancos)
7 16,7%
Curas de leprosos 5 3,3%
Curas por Jesus (sem especificar) 1 3,3%
Mulher hemorrágica 1 3,3%
Mão seca 1 3,3%
Cura de Lázaro 1 3,3%
O Senhor é meu pastor 1 3,3%
Mulher com filho convulsivo (!) 1 3,3%
167
Tabela 24: quais as maiores dificuldades com sua criança
Tabela 25: quando você ora, o que pede a Deus para sua criança
Dificuldades com a criança Nº de mães %
Não andar / carregar 9 30%
Dependência 5 16,7%
Atraso desenvolvimento 5 16,7%
Falta apoio da família 4 13,3%
Transporte / barreiras arquitetônicas 4 13,3%
Birras dificultando o tratamento 4 13,3%
Incerteza quanto ao futuro 1 3,3%
O que pede a Deus Nº de mães %
Saúde 10 30%
Andar 10 30%
Melhora 5 16,7%
O melhor 5 16,7%
Independência 4 13,3%
Força para a mãe 4 13,3%
Misericórdia 3 10%
Bênçãos 3 10%
Que seja normal 3 10%
Que seja feliz 3 10%
Inteligência 3 10%
Cura 2 6,7%
Milagre 1 3,3%
Aceitação 1 3,3%
Agradece por ele estar vivo 1 3,3%
168
Tabela 26: quais as maiores alegrias sua criança proporciona
As maiores alegrias Nº de mães %
Desenvolvimento psicomotor 16 53,3%
Todas / qualquer coisa
que ela faça
12 40%
Inteligência 9 30%
Alegria 6 20%
Esforço 3 10%
Carinho 3 10%
Extroversão 2 6,7%
Chamar por “mamãe” 1 3,3%
Ela existir 1 3,3%
Livros Grátis
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