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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
DA HIEROFANIA À RESISTÊNCIA DO SAGRADO: o
mito como expressão do sagrado, suas controvérsias no
discurso ocidental e sua resistência na literatura moderna
LAFAIETE COTINGUIBA ARAÚJO
GOIÂNIA
2005
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
DA HIEROFANIA À RESISTÊNCIA DO SAGRADO: o
mito como expressão do sagrado, suas controvérsias no
discurso ocidental e sua resistência na literatura moderna
LAFAIETE COTINGUIBA ARAÚJO
Orientador:
Profº Dr. Haroldo Reimer
Dissert
ação apresentada ao Programa de
Mestrado em Ciências da Religião como
requisito para obtenção do grau de
mestre.
GOIÂNIA
2005
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A663d Araújo, Lafaiete Coti
nguiba.
Da hierofania à resistência do sagrado : o mito como expressão
do sagrado, suas controvérsias no discurso ocidental e sua
resistência na literatura moderna / Lafaiete Cotinguiba Araújo.
2005.
154 f.
Dissertação (mestrado)
Universidade Católica de Goiás,
Departamento de Filosofia e Teologia, 2005.
Orientador: Prof. Dr. Haroldo Reimer .
1. Mito. 2. Sagrado. 3. Fenomenologia da religião. 4
. Literatura
religião. I. Título.
CDU: 165.613:2
291.13
A minha esposa Aline;
Ao meu pai Manuel (in memoriam) e minha mãe Maria;
Ao meu irmão Geraldo (in memoriam).
Em agradecimento ao Professor Haroldo
Reimer, cuja contribuição foi indispensável
para a realização deste projeto. Agradeço
aos demais professores do Mestrado em
Ciências da Religião e aos funcionários do
Departamento e da Biblioteca. Agradeço ao
meu irmão Djalma a quem sou muito grato
pelo apoio e incentivo e em seu nome
agradeço aos demais irmãos e parentes.
Agradeço aos colegas de trabalhos do
Conselho Tutelar a quem devo o carinho e
a compreensão durante a realização desta
pesquisa. Ao meu amigo Bruno pelo apoio
e sugestões.
SUMÁRIO
RESUMO
...................................................................................................................
08
ABSTRACT
...........................................................................................................................09
INTRODUÇÃO
......................................................................................................................
10
1. O SAGRADO EM NOVAS PERSPECTIVAS
.......................
...................................................13
1.1. O SAGRADO EM RUDOLF OTTO............................................................................................14
1.2. O SAGRADO EM MIRCEA ELIADE....................................
......................................................20
1.2.1. A DIALÉTICA DO SAGRADO....................................................................................................26
1.2.2. HISTÓRIA E MORFOLOGIA DO SAGRADO NO PENSAMENTO DE MIRCEA ELI
ADE.........27
1.2.3. O MÉTODO FENOMENOLÓGICO
-
HERMENÊUTICO..............................................................33
1.3. O REENCONTRO DO SAGRADO EM SEVERINO CROATTO................................................40
1.4. A FENOMENOLOGIA APLICAD
A AO ESTUDO DA RELIGIÃO...............................................41
1.5. RESUMO E PERSPECTIVAS................. .................................................................................50
2. O MITO NA HISTÓRIA DO PENSAMENTO OCIDE
NTAL
......................................
52
2.1. MITO E LOGOS NA GRÉCIA ANTIGA.........................................................................................52
2.2. DO ORAL AO ESCRITO.............................................................
..................................................60
2.3.
A ORALIDADE EM HERÓDOTO E TUCÍDIDES..........................................................................63
2.4. O MITO NA FILOSOFIA DE PLATÃO..................................................
........................................66
2.5. O MITO NO DISCURSO DA ANTROPOLÓGICO........................................................................70
2.5.1. ANTECEDENTES..............................................................................
........................................70
2.5.2. LÈVI
-
BRUHL..............................................................................................................................73
2.5.3. LÉVI
-
STRAUSS E A ANÁLISE ESTRUTURAL DO MITO.................
........................................75
2.6. A MITOLOGIA COMO CIÊNCIA DOS MITOS.............................................................................82
2.6.1. A ESCOLA DE MITOLOGIA COMPARADA......................................................
.................... ..83
2.6.2. A ESCOLA ANTROPOLÓGICA INGLESA...............................................................................85
2.6.3. A ESCOLA DE FILOLOGIA HIISTÓRICA......................................................................
..........85
2.7. NOVAS PERSPECTIVAS NO ESTUDO SOBRE O MITO.......................................................87
2.7.1. RICOUER E A HERMENÊUTICA DOS SÍMBOLOS................................................................94
2.7.2. SÍMBOLO MÍTICO
E SÍMBOLO RELIGIOSO.........................................................................101
2.7.3. O MITO COMO EXPRESSÃO DO SAGRADO.......................................................................104
2.8. RESUMO E PERSPECTIVAS...............
..................................................................................107
3. REPRESENTAÇÃO E RELEITURA DO MITO NO TEXTO LITERÁRIO
..........................110
3.1. MITO E TEXTO LITERÁRIO.......................................................................................................110
3.2. A CAMUFLLAGEM DO MITO NO TEXTO LITERÁRIO..............................................................116
3.3. A LITERATURA MODERNA: OLIMPO DOS DEUSES................................................
...............120
3.4. A EXPERIÊNCIA DO TEMPO NA LEITURA DO TEXTO LITERÁRIO.......................................122
3.5. LEITURA EM VOZ ALTA E LEITURA SILENCIOSA..................................................................126
3.6. A EXPERIÊNCIA E
STÉTICA E A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA.................................................130
3.7. A MAGIA DAS PALAVRAS.........................................................................................................134
3.8. J. R. R. TOLKIEN: O MAGO DAS PA
LAVRAS...........................................................................140
3.9. RESUMO E PERSPECTIAS.......................................................................................................142
CONCLUSÃO.............................
........................................................................................................144
REFERÊNCIAS..................................................................................................................................149
RESUMO
ARAÚJO, Lafaiete Cotinguiba. Da hierofania à resistência do sagrado: o mito como
expressão do sagrado, suas controvérsias no discurso ocidental e sua resistência
na literatura moderna. Goiânia, Universidade Católica de Goiás, 2
005.
A dissertação busca promover uma análise do mito e sua expressividade
como fenômeno pertinente ao âmbito da sacralidade.Tendo em vista a conexão
entre o mito e o sagrado, procuraremos compreender este fenômeno através do
viés metodológico proveniente da fenomenologia da religião. Recorremos a alguns
dos principais expoentes da fenomenologia da religião, como Rudolf Otto e Mircea
Eliade. Realizamos uma breve análise da trajetória do mito no discurso ocidental e,
por conseguinte, as repercussões advindas do confronto de interpretações a que o
mito foi submetido em uma variedade de abordagens epistemológicas. Depois de
um apanhado geral sobre a situação do mito no pensamento ocidental, a tarefa é
verificar como a literatura constitui-se como espaço para a continuação do mito no
imaginário do homem ocidental. Isto é singularmente importante quando
hipotecamos como certa a tese da dessacralização do mundo moderno. Diante do
fenômeno da dessacralização do mundo moderno, cabe ao sagrado se manifestar
de modo camuflado. A camuflagem passa a ser uma das maneiras do sagrado se
manifestar em nosso tempo e a literatura oportuniza o espaço para que temas e
figuras, que são originárias de um universo puramente mítico, passassem a
configurar nas narrativas de obras literárias modernas. São citadas algumas obras
literárias que representam bem esse fenômeno. Partimos da tese de que o sagrado
é uma estrutura da consciência e assim sendo nem mesmo em um mundo por mais
desprovido do sagrado que seja é capaz de expulsar todas as representações do
mito e do sagrado. O sagrado resiste tanto na literatura, através de representações
de temas e figuras mitológicas, quanto em outras expressões culturais da sociedade
ocidental.
Palavras
-
chave: Mito, Sagrado, Literatura e
Camuflagem
ABSTRACT
ARAÙJO, Lafaiete Cotinguiba. Of the hierophany to the resistance of sacred: the myth
as expression of the sacred one, its controversies in the occidental speech person and
its resistence in modern literature. Goiânia, University
Catholic of Goiás, 2005.
The present study aimed to promote an analysis of the Myth and its expression as a
phenomenon that is rightly assigned to the Sacred ambit. We searched for an
understanding of that phenomenon by means of the Religion Phenomenolo
gy
methodology taking into account the connection between Myth and Sacred. In order to
achieve the main objectives of this investigation and obtain its theoretical support, we
turned to the greatest Religion Phenomenology authors, such as Rudolf Otto and M
ircea
Eliade. A brief analysis of the Myth trajectory throughout Occidental discourse was
carried through. We also analysed the consequences of the confrontation between
several interpretations originated from a variety of epistemological approaches. After
doing a review of the Myth situation in the occidental thought, our task was to verify how
the literature constitutes itself as a space for the continuation of the Myth in the
occidental society imaginary. That is particularly important if we take into account the
modern world rejection of the Sacred thesis. Faced with the modern world rejection of
the Sacred phenomenon, it is up to the Sacred to take a stand in a camouflaged way.
The camouflage became a unique opportunity to externalize the manifestations of the
Sacred in our time. The literature also offered a privileged space to the expression of
absolutely mythical themes and characters in the modern literature narratives. Some
literary works, which demonstrate that phenomenon, were mentioned and quoted in this
study. We came from the conception that the Sacred is a consciousness structure and,
because of it, there is no possibility to move the Myth and the Sacred representations
away even from a world apparently lacking the Sacred. Therefore the Sacred resists in
the literature through mythical themes and characters representations and in others
occidental society cultural expressions as well.
keywords: myth, sacred, literature and camouslage
2
INTRODUÇÃO
Este trabalho é fruto de uma pesquisa bibliográfica sobre a temática do
sagrado, do mito e das releituras ou sobrevivência do mítico na literatura. Nosso
trabalho procura compreender o que significa o sagrado e o mito dentro de uma
abordagem fenomenológica. Para isso recorreremos aos teóricos da fenomenologia
da religião, principalmente a Mircea Eliade, reconhecido pelos seus estudos da
religião e pelo uso da perspectiva fenomenológica na abordagem desses temas. A
fenomenologia da religião será a coluna vertebral que da sustentabilidade à
s
teses trabalhadas neste estudo.
O advento da fenomenologia da religião, com van der Leuw, promove uma
reviravolta no estudo da religião. É na arena das disputas entre as teorias
positivistas e historicistas que a fenomenologia da religião surge como alte
rnativa
para a compreensão do fenômeno religioso. Desde a perspectiva das teorias
positivistas, a religião era compreendida como uma etapa superada da história
humana. A abordagem historicista, por outro lado, partia da compreensão de que o
fenômeno religioso é um fato histórico e que precisaria ser analisado dentro do
contexto histórico-cultural em que está inserido. A fenomenologia não descarta a
perspectiva histórica, todavia, o importante para a fenomenologia da religião é
3
buscar o
proprium
dos fenômenos religiosos, ou seja, a essência e a estrutura
desses fenômenos.
A fenomenologia da religião, principalmente a partir de Mircea Eliade,
caminhará na direção de superação dos reducionismos, tanto de cunho histórico
quanto naturalista. A fenomenologia da religião em Eliade perseguirá uma
perspectiva integradora, incorporando os dados das pesquisas históricas sobre a
religião e também de outras disciplinas, tendo como critério uma postura
fenomenológica e hermenêutica diante dos mais variados materiais aprese
ntados
pelos pesquisadores. Guimarães, ao falar da fenomenologia da religião em Eliade,
diz:
A sua perspectiva é aquela do generalizador, enquanto não privilegia esta
ou aquela religião [...] mas busca, apoiado nos dados das pesquisas
fornecidos por aqueles especialistas e recorrendo a um trabalho exegético-
comparativo dos fenômenos religiosos, compreender-lhes a significação
religiosa. A história das religiões não é, portanto, unicamente uma disciplina
histórica, como a arqueologia ou a etnologia, mas é igualmente uma
hermenêutica total (Guimarães, 2000, p. 223).
O sagrado e o mito serão, então compreendidos, no nosso trabalho, a partir
dessa postura epistemológica. Analisaremos, num primeiro capítulo, o sagrado
nessa nova perspectiva a para isso faremos uso das contribuições dos teóricos da
fenomenologia da religião. Daremos uma especial atenção a Rudolf Otto e Mircea
Eliade.
Depois de situar o sagrado dentro desse novo solo epistemológico, faremos
no segundo capítulo, um breve apanhado de como o mito tem se figurado na
4
história do pensamento ocidental. Começaremos analisando o mito entre os gregos
e faremos um percurso até chegar às teorias contemporâneas que resgatam a
dignidade do mito. Aqui novamente nosso porto será a fenomenologia da religião e
Mir
cea Eliade o nosso fenomenólogo de referência.
Concluiremos o presente trabalho tentando apontar, no terceiro capítulo, para
as possibilidades de análises dos textos literários, tendo como enfoque principal a
função mítica desencadeada por esses textos. Visaremos demonstrar que os textos
literários comportam na sua constituição elementos míticos da mesma forma em
que promovem rupturas temporais próprias da esfera do mito. Tanto na recepção do
texto literário pelo leitor moderno, via leitura, quanto na recepção da narrativa
mítica, via audição, nas sociedades tradicionais ou primitivas , ocorrem processos
similares de rupturas temporais, deslocando os sujeitos envolvidos nessas vivências
para uma outra experiência de tempo.
5
C
APÍTULO I
O SAGRADO EM NOVAS PERSPECTIVAS
Algumas questões devem estar sempre presentes quando analisamos a
experiência do sagrado, ou seja, em que nível se a relação entre o discurso
mítico e a experiência religiosa? Como o discurso mítico elabora e formula o evento
hierofânico? É o discurso mítico ele próprio uma hierofania ou simplesmente uma
descrição de um acontecimento hierofânico inaugural?
Para abordar estas questões, percorreremos o caminho elaborado pela
fenomenologia da religião e, a partir deste método, buscaremos observar como o
mito e o sagrado se relacionam e qual papel cabe ao mito na tradução e evocação
da experiência religiosa.
Partindo do instrumental teórico e conceitual elaborado pela fenomenologia
da religião, pretendemos realizar uma análise do discurso mítico e suas possíveis
interconexões com as experiências do sagrado e/ou experiências hierofânicas.
Compreendemos que a partir do arcabouço conceitual oferecido pela
fenomenologia é possível analisar as experiências hierofânicas juntamente com os
elementos que lhe são constitutivos, principalmente as que conectam a hierofania à
expressividade do mito. Neste percurso abordarei alguns autores, iniciando por
Rudolf Otto.
6
1.1. O sagrado em Rudolf Otto
Rudolf Otto (1869-1937), em O Sa
grado
, um estudo clássico da religião,
analisa a experiência religiosa a partir de um olhar fenomenológico. Importa,
sobretudo, a Otto a compreensão do elemento central desta experiência, que ele
chamará de numinoso . Rudolf Otto, ao debruçar-se sobre o sagrado, enfoca
principalmente os elementos racionais e não
-
racionais da experiência religiosa.
O livro de Otto tem como subtítulo Um estudo do elemento não-racional (Das
Irrationale) na idéia do divino e sua relação com o racional. O tradutor do livro p
ara
o português, Prócoro Velasques Filho, ao invés de usar o termo irracional para
Irrationale
, preferiu a expressão não-racional , pois esta não é tão carregada de
preconceitos culturais, arraigados em uma sociedade que valoriza demasiadamente
a razão. Assim, para o ocidente, a idéia de irracional remete ao que é contrário à
razão, ou seja, a estupidez, a idiotice. O termo não-racional não se associa
imediatamente a estes adjetivos, e por isso é preferível ao conceito irracional.
O estudo que Otto realiza da religião enfoca, principalmente, o processo de
psicologização envolvido na experiência religiosa. Ele se preocupa principalmente
com a experiência do sujeito e sua relação subjetiva com o numinoso. O termo
numinoso é utilizado para referir-se ao núcleo central desta experiência. Falo de
uma categoria numinosa como uma categoria especial de interpretação e de
avaliação, um estado de alma que se manifesta quando essa categoria é aplicada,
isto é, cada vez que um objeto é concebido como numinoso (Otto
, 1985, p.30).
7
Para Otto, o sagrado não pode ser compreendido apenas a partir de
referências éticas e morais; é preciso, para chegar a uma categoria sui generis,
como a do numinoso, efetuar uma suspensão eidética ou uma redução
fenomenológica, de juízos previamente estabelecidos, pois, de outra forma, este
objeto nos escapa, devido a sua saturação ética e moral construída no decorrer de
longo processo histórico. Fica esclarecido, desta forma, que o numinoso é vivido na
vida íntima do sujeito e por este motivo ele provoca uma experiência subjetiva e
fortemente carregada de sentimento. O sentimento derivado do contato com o
numinoso é o elemento irredutível da experiência religiosa. Esse sentimento, que
possui características próprias, é o núcleo central da experiência religiosa e a
descrição é a forma privilegiada de acessá-lo, pois, em função de sua própria
natureza, a razão não consegue disponibilizá
-
lo à consciência através de categorias
racionais. Como o objeto numinoso não permite ser conhecido por meio de uma
conceituação racional, por ele estar além das possibilidades de conhecimento pelas
vias da razão, assim a única forma de conhecê-lo é indiretamente, através do
sentimento, quando este aparece como reação à presença do objeto numinoso.
Bruno Birc
k (1993, p. 29) acredita que esse
...sentimento não se confunde com uma mera emoção. O sentimento é um
estado afetivo; é um estado de alma da criatura frente ao
numen
. Este
estado afetivo envolve a pessoa como um todo. Não é uma simples emoção,
pois pen
etra a
região do sentido
do homem
Otto, ao assumir essa posição, não está reduzindo a religião a um puro
irracionalismo. Na verdade, a análise ottoniana quer resgatar o valor do não-
8
racional, relacionado à idéia de Deus, pois para ele o sagrado é uma e
xpressão que
ganhou no ocidente conotações moralistas e racionalistas. Os elementos racionais
se sobrepuseram ao elemento não-racional, o que torna, doravante, a idéia de
sagrado empobrecida, posto que parte significativa de sua constituição foi
desprezada
. Guimarães (2000, p. 364) observa que a postura de Otto, assim como
a de Schleiermacher, visa
circunscrever a religião à esfera da subjetividade contra a hegemonia do
pensamento cientificista e suas explicações redutivas da religião, de modo a
pôr a salvo a sua essência ao analisar a sua emergência na interioridade
subjetiva
A investigação dos elementos racional e não
-
racional da experiência religiosa
constituem, então, o núcleo central da tese de Otto. Bruno Birck compreende que,
para Otto, o sagrado é uma categoria complexa, constituída de dois elementos: o
elemento não-racional (numinoso) e o elemento racional (predicador) (Birck, 1993,
p. 14). Para Otto, os elementos racionais da experiência religiosa referem-se àquilo
que pode ser analisado e conceitualizado, na experiência religiosa, a partir de
categorias racionais, como por exemplo os predicativos de bondade, amor e graça,
que normalmente se atribuem à divindade. os elementos não-racionais da
experiência religiosa caracterizam
-
se essenc
ialmente pela impossibilidade de serem
submetidos a uma conceituação racional, ou seja, a irracionalidade do numinoso
situa
-se no campo do inefável, do inqualificável, daquilo que não se pode expressar
por meios de categorias racionais. É neste campo mesmo que se encontra, na sua
densidade mais significativa, o elemento numinoso da experiência religiosa. O
9
numinoso não se deixar compreender pela razão; a via de acesso a ele é pelo
sentimento. Ele é um estado afetivo da alma. Por isso podemos dizer que o
sagrado, na concepção de Otto, se basicamente no sentimento, pois é ai que
reside a essência ou o fundamento primeiro da experiência religiosa.
O numinoso é, para Otto, a expressão do mistério , e significa qualquer
coisa de secreto, que nos é estranho, incompreensivo, inexplicável; é o totalmente
outro . Todavia, o mistério, que é o numinoso , adquire uma dupla característica,
ou seja, ele se mostra como
mysterium
fascinans et mysterium tremendum. O
numinoso, enquanto
mysterium
fascinans,
exerce um poder de atração, de
fascinação irresistível sobre aquele que passa por essa experiência; por outro lado,
a experiência com o elemento tremendum provoca na pessoa um sentimento de
temor, pânico e pavor que a faz paralisar e sentir
-
se pó e cinza.
A experiência religiosa suscita sentimentos que são próprios deste nível de
experiência. Um exemplo seria o sentimento de ser criatura, que é experimentado
diante de uma vivência religiosa ocasionada pela dimensão
tremendum
do numen.
Esta dimensão, quando aparece na consciência, vem acompanhada pelo
sentimento de temor, medo ou um verdadeiro calafrio. Esses sentimentos
resultantes dessa experiência religiosa podem ser compreendidos por analogia
aos sentimentos da experiência natural. Otto afirma que não existe uma gradação
ou solução de continuidade que parte dos sentimentos do espectro natural até os
sentimentos ocasionados por uma experiência religiosa. Estes são de naturezas
diferentes e qualitativamente distintas. O medo, provocado pelo aspecto colérico d
a
divindade, não é igual, ou da mesma natureza, que o medo provocado por uma
situação da vida cotidiana, como, por exemplo, o medo de ser assaltado ou de ser
10
vítima de algum tipo de violência. Este terror místico é inteiramente diferente dos
estados psíquicos de medo, de angústia, de temor. O pânico espectral, sinistro, é
diferente em grau e qualidade do temor natural (Birck, 1993, p. 34).
Rudolf Otto, apesar de ter orientado a sua investigação a partir de uma
perspectiva fenomenológica da experiência religiosa, focaliza em seu estudo os
aspectos psicológicos envolvidos nesta experiência. Ele analisa com uma riqueza
muito grande a dinâmica psíquica do sujeito exposto a uma experiência desta
ordem. A esse respeito, Roger Caillois escreve que o sagrado é analisado do
ponto de vista psicológico, de modo quase introspectivo, e quase exclusivamente
sob as formas que ele tomou nas grandes religiões universalistas (Caillois, 1988, p.
16).
É por insistir pormenorizadamente na análise das reações psicol
ógicas,
provocadas pelas experiências religiosas, que diremos que o estudo empreendido
por Rudolf Otto caracteriza-se essencialmente pelo seu caráter psicologizante.
Apesar de estar marcado pelo colorido fenomenológico, Otto se deixa seduzir pelo
aspecto subjetivo e emocional causado pela experiência religiosa. O método
fenomenológico e a busca de um fundamento psicológico da experiência religiosa,
não são, todavia, incompatíveis, posto que para a fenomenologia o que é
importante são os atos intencionais da consciência. O sentimento religioso é
constituinte da consciência do ser humano.
A postura investigativa de Otto, no que se refere à valorização do sentimento
como instância primeira e fundante da religião, distancia-se de outras concepções
como a de William James e F. Schleiermacher. Ambos valorizaram a presença do
sentimento que ocorre quando do advento da experiência religiosa. James qualifica
11
essa experiência como sentimento de realidade, enquanto Schleiemacher focaliza o
elemento dessa experiência, como sendo responsável pelo o sentimento de
dependência. Em Schleiemacher predomina uma concepção imanentista do
sentimento religioso. para James o sentimento religioso é provocado por uma
realidade fora do sujeito. Rudolf Otto não assume nem a posição de James nem a
posição de Schleiemacher, pois para ele o sentimento numinoso não se localiza
em nenhuma dessas duas extremidades, ou seja, nem no sujeito, nem no objeto.
Em Otto, essa noção de sujeito e objeto é diluída, pois o sentimento numinoso
acont
ece simultaneamente ao objeto numinoso . Isto significa que não existe uma
predominância de uma instância sobre a outra, posto que mais importante do que
essa dicotomia sujeito/objeto é a consciência intencional, que é um aspecto
fundamental da fenomenol
ogia de Husserl.
Bruno Birck (1998) acredita que Otto utilizou veladamente o método
fenomenológico, pois em momento nenhum ele faz referência a este método e ao
seu criador Edmund Husserl.
Otto foi colega de Husserl na Universidade de
Göttingen durante o período de
1901 a 1907, período que em Husserl estava elaborando o método fenomenológico.
Portanto, é razoável pensar que Otto, de alguma maneira, poderia ter entrado em
contato com as investigações empreendidas pelo filósofo alemão. O
próprio
Husserl, em uma carta a um amigo, diz que R. Otto havia feito uma aplicação
magistral o método fenomenológico ao religioso (Birck, 1993, p. 9).
12
1.2. O Sagrado em Mircea Eliade
Mircea Eliade (1907 1986), historiador das religiões e fenomenólogo,
assegura que é possível falar em modalidades do sagrado como categoria passível
de ser estudada e compreendida a partir de uma metodologia especifica. Existe,
portanto, um fenômeno que se manifesta de inumeráveis maneiras e, mesmo
diante
de um acontecimento hierofânico singular, é possível acessá-lo de modos
diferentes, ou seja, a interpretação que lhe é dada pode variar de acordo com a
posição que o sujeito ocupa na estrutura social. Isto demonstra que podem ocorrer
interpretações
singulares, que se distanciam das interpretações hegemônicas
efetuadas pelos grupos que detém o controle político e religioso em detrimento das
interpretações realizadas pelo resto da comunidade.
Mircea Eliade adota o pressuposto filosófico de q
ue o ser humano religioso ou
o
homo religiosus se configura como uma categoria existencial, usando uma
linguagem heideggeriana, e, a partir deste postulado, é possível então deduzir que
o homem é ontologicamente constituído pela dimensão sagrada e que esta não se
caracteriza como uma etapa na consciência do homem como acreditava o
positivismo, mas como um elemento constituinte da consciência deste homem. O
sagrado não é um estádio na história da consciência, é um elemento na estrutura
desta consciência (Eliade, 1987, p. 113). Colocando a situação desta maneira,
somos conduzidos a refletir alguns desdobramentos inevitáveis decorrentes desta
tomada de posição conceitual.
13
Não existe, portanto, a partir desta perspectiva, um homem totalmente
dessa
cralizado ou desprovido em mínimo de sacralidade. O ser humano,
independentemente do espaço e do tempo, se comportará religiosamente, sendo
que esta expressão religiosa pode assumir intensidades diferenciadas de acordo
com as variáveis contextuais e/ou sóc
io
-
históricas.
Nos graus mais arcaicos de cultura, viver enquanto ser humano é, em si,
um ato religioso, pois a alimentação, a vida sexual e o trabalho têm um valor
sacramental. A experiência do sagrado é inerente ao modo de ser do homem
no mundo. Sem a experiência do real
e do que não é -, o ser humano não
saberia constituir
-se (Eliade, 1987, p. 113-
114).
Quando Eliade diz que os seres humanos das sociedades tradicionais
buscavam viver o maximamente possível na esfera do sagrado, evitando o conta
to,
por mínimo que seja, com a dimensão profana, na verdade, ele está afirmando que
este ser humano é tipicamente aquilo que podemos chamar de homo religiosus, ou
seja, para este ser humano não existe espaço para o profano, pois, sendo este a
concretização
da não-realidade, do não-ser, é compreensível que o homo religiosus
procure participar da esfera do ser e do poder, e sendo o profano o não-ser,
conseqüentemente este ser humano evitará aproximar-se ou estabelecer relações
com a não-realidade do mundo profano. Michel Meslin corrobora essa tese de
Eliade quando afirma que nas sociedades arcaicas toda a vida, até a mais
cotidiana, é uma seqüência de atos sagrados (Meslin, 1992, p. 23). Cleide Rohden
também confirma essa perspectiva em Eliade ao constatar que,
14
é justamente perto desta realidade, fonte de sentido e verdade, que o
homem se esforça por ficar o mais perto possível. Esse desejo de viver num
mundo sagrado exprime, como explica Eliade, uma sede ontológica, na
medida em que um tal universo [...] tem participação no ser (Rohden, 1998,
p. 42).
O acontecimento hierofânico é, para Eliade, a expressão singular e original
do sagrado. É através da hierofania que o sagrado se manifesta, pois é possível
tomar conhecimento do sagrado quando ele se manifesta e a hierofania é
exatamente o ato de manifestação do sagrado, a sua maneira de expressar-se ou
de revelar
-
se.
O fenômeno religioso é, pois, um fato universal, que não escolhe tempo e
espaço para se manifestar. Henri Bergson a esse respeito escreve que se
encontram no passado, e se encontraram até hoje sociedades humanas que o
possuem ciência, nem artes, nem filosofia. Mas nunca existiu sociedade sem
religião (Bergson
apud
Jorge, 1998, p. 11).
Quanto ao fato de nunca ter existido sociedade sem religião, podemos,
seguramente afirmar que o ser religioso é uma categoria existencial e/ou ontológica,
portanto, não tributária das condições históricas ou de qualquer outro nível de
condicionamento social.
É a partir desta base que Eliade, diferentemente de Otto, compreenderá o
sagrado, não se preocupando com a dimensão não-racional deste. Para Eliade é
preciso focar o sagrado na sua expressão total enquanto que o estudo de Otto
ainda guarda um viés fortemente marcado pelo aspecto subjetivo da experiência
com o sagrado.
15
O acento, neste caso, não é posto, inicialmente, na inacessibilidade do
totalmente outro , mas no fato de que ele se revela
,
se manifesta, sendo a
sua inacessibilidade ou transcendência o que responde, em última análise,
pela proliferação das formas religiosas (Guimarães, 2000, p. 360-
361).
Eliade inicia definindo o sagrado da seguinte maneira: a primeira definição
que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano (Eliade, 2001, p. 17).
Num primeiro momento, esta definição se apresenta decepcionante, mas, no
transcorrer do livro O Sagrado e o Profano, Eliade trabalha essa relação antagônica
de modo que o que parece definido demasiadamente simplório adquire um grau
maior de complexidade. Em relação a isso, Eliade escreve que é quando se trata
de delimitar a esfera da noção de sagrado que as dificuldades começam (Eliade,
2002, p. 7). Nessa mesma linha de entendimento, Roger Caillois afirma que no
fundo, sobre o sagrado em geral, a única coisa que se pode afirmar com validade
está contida na própria definição do termo: é que ele se opõe ao profano (Caillois,
1988, p. 15).
Em seus diálogos com Claude-Hernri Rocquet, Eliade se questiona sobre a
delimitação do sagrado, indagando-
se:
mas como delimitar o sagrado? É muito difícil. O que me parece
inteiramente impossível, em todo o caso, é imaginar como o espírito humano
poderia funcionar sem a convicção de que existe qualquer coisa de
irredutivelmente
real
no mundo. É impossível imaginar como a consciência
poderia aparecer sem conferir uma significação às impulsões e às
16
experiências do homem. A consciência de um mundo real e significativo está
intimamente ligada à descoberta do sagrado (Eliade, 1987, p. 113).
O binômio
sagrado/profano constitui o núcleo central do dualismo, a partir do
qual Eliade focaliza a noção de fenômeno religioso. O antagonismo destas duas
dimensões justifica-se exatamente porque é impossível pensar em um sem referir-
se ao outro. Não é possível falar do sagrado sem nos remetermos ao profano,
assim como é inconcebível falar de justiça sem cogitarmos a injustiça. Esta
oposição, para Caillois, não é suficiente para definir o fenômeno religioso, mas pelo
menos fornece a pedra-
de
-toque que permite reco
nhecê
-lo com maior segurança
(Caillois, 1988, p. 19). Além disso, continua Caillois, estes dois mundos, o do
sagrado e o do profano apenas se definem rigorosamente um pelo o outro (Caillois,
1988, p. 19).
Eliade entende que,
o homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais
possível no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa tendência
é compreensível, pois para os primitivos , como para o homem de todas as
sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder e, em última análise,
à realidade por excelência. O sagrado está saturado de ser. Potência
sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. A
oposição sagrado/profano traduz-se muitas vezes como uma oposição entre
real e irreal ou pseudo
-real (Eliade, 2001, p. 18).
falamos brevemente sobre a hierofania, ou a manifestação do sagrado.
Mas é preciso retomar essa questão para esclarecermos que o acontecimento
17
hierofânico é imprescindível para compreendermos como se processa a dialética d
o
sagrado. O sagrado, ao se manifestar, é conduzido por um processo dialético, que
em si mesmo sinaliza para o elemento estritamente religioso deste evento. Essa
dialética é basicamente constituída pela oposição sagrado versus profano.
Não existe, todavia, um acontecimento hierofânico puro. A sua expressão
necessita sempre de uma realidade mediadora e é a partir desta medição que se
constitui normalmente de objetos do mundo, como por exemplo pessoas, árvores,
pedras e qualquer outro objeto da realidade cotidiana, que se torna possível o
contato do ser humano com a realidade totalmente outra do transcendente. Ao se
manifestar nos objetos do mundo finito, o sagrado não apenas se limita à finitude
desses objetos, como somos tentados a imaginar. Ocorre, por outro lado, que o
sagrado é a realidade infinita e ao se manifestar nos objetos do mundo, ao invés de
se limitar à finitude dos objetos, ele transfigura esses objetos, porém, ainda assim
os objetos consagrados não expressam a um tempo todas as possibilidades de
significados do fenômeno religioso. Os objetos consagrados passam a serem
indicadores de uma realidade transcendente ou incondicionada. Antes de serem
consagrados ou de se tornarem portadores do sagrado, estes objetos não remetiam
a nenhuma realidade extraordinária. Todos os seus significados estavam
delimitados a uma realidade cotidiana e, portanto, absolutamente comum. Uma
pedra, por exemplo, ao ser hierofanizada, adquire significados novos, porém, não
totalmente desvinculados de sua natureza. Assim é provável que ela indique para o
aspecto da imutabilidade do transcendente. Mas, se podemos falar em limitação do
transcendente, é porque os objetos consagrados não conseguem comunicar todos
18
os possíveis significados da experiência religiosa simultaneamente e
independentemente de sua natureza.
1. 2. 1. A Dialética do Sagrado
A dialética do sagrado implica uma relação que se efetua entre duas
realidades diametralmente opostas e inconfundíveis; de um lado o sagrado e tudo
aquilo que ele representa, do outro lado o profano, como sendo aquilo que não se
confunde com o sagrado. Quando dizemos que o sagrado e o profano são duas
realidades inconfundíveis ou dois modos de ser no mundo, queremos dizer que
estas realidades são ontologicamente distintas, mas o sagrado, entretanto,
necessita manter uma relação dialética com o profano posto que sem este o
acontecimento hierofânico não teria condições de manifestar-se. A hierofania
manifesta
-se sempre em um mundo profano, porém a profanidade do mundo não
torna profano o sagrado. O sagrado se mantém no profano sem se confundir com
este. Guimarães (2000, p. 561) diz que o sagrado mostra-
se, revela
-
se diretamente
no objeto profano , porém o existe uma coincidência entre essas duas realidades,
posto que o sagrado é sempre a realidade por excelência enquanto o profano é o
espaço da não-realidade, ou seja, ele se constitui simplesmente como uma
realidade que não possui um estatuto ontológico de fundação, isto é, ele é
esvaziado do ser.
Toda hierofania é sempre um acontecimento fundante, inaugural e
estruturante do mundo. É por meio da hierofania e através dela que o espaço, antes
caótico, torna-se espaço cosmicizado, ou seja, a hierofania espacial torna possível
19
a localização em um espaço, posto que este se torna conhecido, oferecendo as
coordenadas para que o sujeito possa se localizar e movimentar
-
se neste que antes
era apenas uma massa homogênea e indistinta na qual não cabia nenhum tipo de
localização. Se toda hierofania é uma manifestação do sagrado, logo podemos
af
irmar que o sagrado é que funda o mundo. Guimarães, ao analisar função
integradora do sagrado, afirma:
A experiência do sagrado é, pois, a essência da religião e a função desta
ultima é suscitar a experiência do sagrado, experiência essa que estrutura o
mundo e o carrega de significações. O homem não pode viver no caos, não
pode existir humanamente sem a convicção de que algo de
irredutivelmente real no mundo , e foi através da experiência do sagrado que
o espírito humano apreendeu a diferença entre o que se revela como sendo
real, poderoso, rico e significativo, e o que desprovido destas qualidades, isto
é, o fluxo caótico e perigoso das coisas, suas aparições e desaparições
fortuitas e vazias de sentido . No universo da religião, é a abertura do hom
em
ao mundo dos valores trans-humanos, transcendentes que faz dele um ser
plenamente humano ( Guimarães, 2000, p. 369-
70).
1. 2. 2. História e Morfologia do Sagrado no Pensamento de Eliade
A abordagem fenomenológica eliadiana da religião não é necessa
riamente
uma abordagem anti-histórica dos fenômenos religiosos. Eliade reconhece a
historicidade do fenômeno religioso, todavia, ele não reduz o fenômeno religioso a
um fato puramente histórico. É certo que todo fato religioso é um acontecimento
histórico,
porém essa historicidade não expressa o que significa o fenômeno
20
religioso no que ele tem de estritamente religioso, ou seja, aquilo que é possível
ser compreendido em uma escala que indague pelo sentido e que questione o valor
existencial do fato reli
gioso. Para Guimarães,
uma abordagem dos fenômenos religiosos que fosse estritamente histórica
constataria, sem dúvida, a ecumenicidade de certos mbolos, mas
dificilmente se sentiria em condições de concluir pela lógica e autonomia do
simbolismo religioso e erigir de tal descoberta a critério interpretativo dos
fenômenos religiosos (Guimarães, 2000, p. 337).
A crítica dirigida a Eliade por Thomas J. J. Altizer no sentido de denunciar a
sua obra de anti-histórica, é na verdade um mal-entendido, pois, o que é muito
evidente no pensamento de Eliade é a sua postura extremamente crítica ao
historicismo, porém, não podemos confundir anti-historicismo com anti-histórico. O
historicismo é uma corrente filosófica que compreende, dentre outras coisas, que o
fato histórico se explica por si mesmo, sem necessidade de se recorrer a elementos
trans
-históricos para lhe dar sentido. O que Eliade rejeita no historicismo é a sua
concepção de uma história que encontra em si mesma a sua auto-justificação como
negação
de toda transcendência meta-histórica (Guimarães, 2000, p. 157). Na
verdade, quando Eliade faz a afirmativa de que o homo religiosus tem horror à
história, ele não está querendo invalidar a experiência histórica, simplesmente quer
apontar para o fato de que para esse homem o importante é estar o mais próximo
possível do sagrado. O histórico compreendido como sendo uma realidade auto-
suficiente é, portanto, uma dimensão que as sociedades primitivas procuravam
evitar. A esquiva da história era necessária para um homem que se preocupava em
21
viver na região do sentido, ou seja, na região do sagrado. Afastar-se dessa região
representava, então, um risco. Como entender, por exemplo, determinadas
catástrofes ou experiências funestas, se estas estão apenas circunscritas à
dimensão histórica. Viver em uma sociedade em que o acontecimento histórico se
explica por si mesmo, é viver em um niilismo absoluto. Os seres humanos das
civilizações primitivas não conseguiriam compreender, por exemplo, o extermínio
nazista se este fosse circunscrito dentro das dimensões puramente factuais da
história. E nós, que vivemos a historicidade na sua mais plena vigorosidade,
compreendemos Auschwitz como apenas mais uma experiência histórica? É
preciso conferir sentido ao acontecimento histórico e é nesta perspectiva que a
morfologia do sagrado busca sistematizar as estruturas dessa região do sentido.
A análise das condições históricas de determinada expressão religiosa deve
vir acompanhada de uma análise morfológica dessa mesma expressão religiosa.
Isto porque é através do estudo da morfologia que se consegue visualizar a
presença de certas estruturas constantes, que não são condicionadas pelo contexto
histórico e que são fundamentais para compreendermos os significados dos fatos
religi
osos, da mesma forma em que permite inferirmos uma unidade espiritual
subjacente a todas as expressões religiosas de tempos e espaços diferentes. A
esse respeito Guimarães afirma:
esta unidade espiritual é dada, em última análise, pelas experiências
rel
igiosas fundamentais, primordiais (por exemplo, a experiência da
sacralidade da transcendência, expressa pelo simbolismo celeste presente
em numerosos rituais de ascensão, de escada, de iniciação, de realeza,
etc.), mitos (a Árvore Cósmica, a Montanha Cósmica, a Cadeia de Flechas,
22
etc.), lendas (o vôo mágico, etc., no simbolismo do centro (Guimarães, 2000,
p. 339).
A morfologia dos fatos religiosos rompe, de alguma maneira, as barreiras que
separam os homens das sociedades arcaicas dos homens das sociedad
es
modernas. Quando compreendemos os sentidos de determinadas produções
religiosas arcaicas fundamentais ou primordiais, estamos, na verdade
estabelecendo um conectivo, através das expressões simbólicas, do universo
espiritual primitivo com a espiritualidade do homem contemporâneo, ou seja,
estamos abrindo espaços de diálogo. Guimarães acredita que,
nesse sentido, interpretar os documentos históricos-
religiosos é descobrir as
possibilidades de ser por ele indicadas, do mesmo modo que uma
herme
nêutica, como entende Eliade, dos mundos imaginários e dos muitos
comportamentos do homem atual aponta nesta mesma direção: desvelar as
possibilidades de ser, que uma abordagem estritamente histórica não é
capaz de fazer, indicadas pelas produções do inconsciente, pela arte, pela
literatura (Guimarães, 2000, p. 339).
Eliade busca conciliar a abordagem histórica da religião e a fenomenologia
do fenômeno religioso. A história das religiões não prescinde da fenomenologia,
porém, a fenomenologia precisa da história das religiões, pois é a partir dos fatos
religiosos que ela disponibiliza que a fenomenologia edifica uma estrutura sistêmica
e universal desses fatos. É por meio da morfologia do sagrado que o historiador das
religiões consegue movimentar-se em meio a grande diversidade de fatos
religiosos, classificando-os e estabelecendo regras e procedimentos, investigativos,
sem perder de vista o horizonte da compreensão, pois, é a partir daí que o
23
pesquisador vai indagar pelo sentido e significados dos fatos religiosos. A função
da morfologia é, precisamente, realizar a passagem da manifestação do sagrado,
concreta e historicamente situada, à sua significação estrutural (Guimarães, 2000,
p. 570).
A postura intelectual de Eliade, frente a estas duas abordagens
metodológicas, é pautada no sentido de superação das limitações de cada uma
dessas metodologias; de um lado, corre-se o risco de se cair em reducionismo
histórico, do outro lado, a fenomenologia religiosa no seu intuito generalista, sem o
auxílio da história, pode se perder em um confucionismo. A esse respeito escreve
Eliade,
Os resultados destas duas operações intelectuais são igualmente valiosos
para um conhecimento mais adequado do homo religiosus. Pois, se os
fenomenólogos , por seu lado, estão interessados nos significados dos
dados religiosos, os historiadores , por seu lado, tentam mostrar a forma
como esses significados foram experenciados e vividos nas várias culturas e
momentos históricos, como foram transformados, enriquecidos ou
empobreci
dos no decurso da história (Eliade, 1969, p. 23).
A morfologia do dado religioso e a história deste dado são aspectos
complementares, portanto, absolutamente imprescindíveis para se compreender o
fenômeno religioso numa perspectiva mais ampla.
Desta man
eira, não é possível falar que Eliade despreza a história, posto que
o que ele faz é simplesmente rejeitar a história do historicismo, não a história
propriamente dita.
24
A história das religiões é, no entendimento de Eliade, uma disciplina
hermenêutica e que cumpre um papel importante para o ser humano das
sociedades modernas. A modernidade parte de um pressuposto historicista. É na
história que devemos procurar a verdade.
É possível, na modernidade, falar de uma história geral da humanidade. Na
modernidade
surgem as condições de possibilidade para se fazer o discurso
historicista acerca do ser humano e das condições de sua existência. Ocorre,
entretanto, que a possibilidade de se construir uma história geral da humanidade
implica, por outro lado, na possibilidade de se edificar também uma história geral
das religiões. Esta história geral das religiões surge, todavia, em um contexto
historicista e positivista. As interpretações oferecidas pelas abordagens historicistas
e positivistas da religião não são satisfatórias, em função de inumeráveis motivos,
dentre eles a sua obstinação em querer demonstrar a todo custo que o religioso
deriva do não-religioso. Vigora neste contexto a procura alucinada pela origem da
religião. Estas pesquisam fracassam, pois a soluções apresentadas não são
passiveis de serem demonstradas cientificamente como exigem os seus métodos.
A disciplina história das religiões aliada à fenomenologia religiosa representa
a superação desse paradigma e de outro lado fornece elementos para abertura de
uma nova perspectiva no estudo da religião. Aqui a pergunta pela origem da religião
é uma pergunta sem nenhum sentido. O ser humano é desde sempre um ser
religioso. Essa é uma dimensão ôntica do ser humano.
À medida que a modernidade indica para a superação do provinciano, e fala
em uma humanidade global, a história das religiões, por sua parte, cumpre neste
25
contexto a sua verdadeira vocação, quiçá um humanismo planetário como defende
Eliade. Neste sentido pondera Eliade,
É por isso que acreditamos que a história das religiões está destinada a
desempenhar um papel importante na vida cultural contemporânea. Isto não
porque uma compreensão das religiões exóticas e arcaicas auxiliará
significativamente um diálogo cultural com os representantes dessas
religiões, mas também em especial porque, ao tentar compreender as
situações existenciais expressas pelos documentos que estuda, o historiador
das religiões atingirá inevitavelmente um conhecimento mais profundo do
Homem (Eliade, 1969, p. 17).
A história das religiões como disciplina hermenêutica devolve ao ser humano
a sua dimensão planetária. O ser humano é aqui um ser global e para tanto faz se
necessário o uso de uma hermenêutica dos fatos religiosos, que tenha em vista
esta dimensão totalizante do ser humano. O método fenomenológico-
hermenêutico
é a liga que permite conectar as dimensões essenciais e estruturais do fenômeno
religioso e a historicidade desses fenômenos.
1. 2. 3. O método fenomenológico
-
hermenêutico
A busca pelos sentidos e significados dos fatos religiosos, a partir da morfologia do
fenômeno religioso, criou condições para que Eliade elaborasse uma hermenêutica
desses fatos religiosos.
26
A hermenêutica de Mircea Eliade é, essencialmente, uma hermenêutica
voltada para a decifração dos sentidos e significados contidos nas expressões do
sagrado, seja nos mitos, nos ritos ou nos símbolos. Para ele,
a hermenêutica é a pesquisa pelo sentido, pela significação ou pelas
significações, que tal idéia ou tal fenômeno religioso tiveram no decorrer dos
tempos [...] a hermenêutica é a descoberta do sentido cada vez mais
profundo dessas expressões (Eliade, 1987, p. 96).
Esta hermenêutica, enquanto método que busca pelos sentidos e
significados da experiência religiosa, está diretamente vinculada à morfologia das
expressões religiosas. Sem a morfologia, não é possível uma fenomenologia e
muito menos uma hermenêutica dos documentos históricos
-
religiosos.
Neste ponto o pensamento de Eliade é próximo à fenomenologia-
hermenêutica heideggeriana. Para Stein, Heidegger assume a expressão
hermenêutica no sentido de ontologia da compreensão (Stein, 2001, p. 187).
Hermenêutica não significa em Ser e Tempo , nem a teoria da arte de interpretar,
nem a própria interpretação, antes a tentativa de, primeiramente, determinar a
essência da interpretação a partir do hermenêutico (Stein
apud
Heidegger, 2001, p.
187). Esclarecendo a real dimensão da hermenêutica no pensamento de Heidegger,
Stein afirma que,
O hermenêutico é, justamente, o elemento ontológico da compreensão,
enquanto ela radica na própria existencialidade da existência. O ser-aí é, em
si mesmo, hermenêutico, enquanto nele reside uma pré-
compreensão,
fundamento de toda posterior hermenêutica. A compreensão é o modo de ser
27
do ser-aí enquanto existência. A compreensão é um existencial, é o
existencial fundamental, em que reside o próprio , a própria abertura, o
próprio poder-ser do ser-aí. Assim, o ser-aí é, em si mesmo, hermenêutico,
enquanto sempre se movimenta numa compreensão de seu próprio ser
(Stein, 2001, p. 187
-
188).
A compreensão é, portanto, a partir desta perspectiva, um elemento
constituinte do
Dasein
ou, em outras palavras, ela é uma categoria existencial do
ser
-
aí. A compreensão sendo um existencial, significa, entã
o, que a possibilidade de
compreensão é dada aprioristicamente. Portanto, o ser que existe é um ser de
compreensão. Custódio Luis de Almeida observa que,
devemos entender a
compreensão
como uma estrutura prévia de qualquer
interpretação, isto é, interpretamos aquilo que nos atinge no mundo de
sentido no qual vivemos; então, podemos dizer que a compreensão é um
modo de ser do
Dasein
. Por isso, faz sentido a expressão: Desde sempre
compreendemos , porque a compreensão ontológica é imediata, ela me
pe
rtence enquanto condição da minha leitura dos fatos do mundo (Almeida,
2002, p. 244).
Podemos dizer que Eliade caminha nesta mesma direção ao admitir que
quando se aborda uma espiritualidade exótica, compreende-se sobretudo aquilo
que se está predestinado a compreender, por sua própria vocação, por sua própria
orientação cultural e por aquela do momento histórico ao qual se pertence (Eliade
apud
, Guimarães, 2000, p. 357).
Compreender o que se está predestinado a compreender, por sua própria
vo
cação ou orientação cultural, significa partir do princípio que aceita a existência
de um apriori estrutural, ou seja, de uma pré-compreensão como pontua Gadamer.
28
Giovanni Reale, ao analisar a hermenêutica de Gadamer, entende que o intérprete
não é
tabula
rasa
. Ele se aproxima do texto com o seu
Vorverständnis
, isto é, com a
sua pré-compreensão, vale dizer com os seus prejuízos ou
Voruteile
. (Reale &
Antiseri, 1991, p. 630). Com base neste aporte dado apriori, o intérprete não se
aproxima do texto (mitos, doutrinas, literaturas etc.,) de maneira ingênua, pois é
exatamente a pré-compreensão, ou memória cultural, que põem em marcha todo
um processo interpretativo, que forma uma espécie de círculo da compreensão em
linguagem heidggeriana, posteriormente chamado por Gadamer de
círculo
hermenêutico
.
A concepção do ser-aí como um ente de possibilidades e de abertura fornece
as bases epistêmicas, que orientarão as pesquisas histórico-religiosas de Mircea
Eliade. É absolutamente compreensivo a adoção desta perspectiva por parte de do
historiador romeno, pois um dos principais pressupostos filosóficos de sua
hermenêutica, aquele que sustenta que o sagrado é uma categoria existencial,
possui uma relação muito próxima com o postulado heideggeriano da
compr
eensão como elemento estruturante do ser. Isto permite, então, a este ser,
que se compreende na imediaticidade de sua existência, compreender-
se
igualmente em uma relação com um outro como alteridade. É neste contexto que o
ser
-
aí se dá como abertura. A abertura do ser
-
aí é condição imprescindível para que
possamos nos aproximar de textos e estabelecer com estes relações de natureza
dialógica.
A postura metodológica de Eliade é, sem dúvida, uma postura pautada na
abertura oferecida pelo diálogo. É o diálogo
o melhor caminho para se compreender
o outro, pois, é no diálogo que a compreensão de fato acontece.
29
A abertura é uma marca ontológica do
Dasein
; como ser de possibilidade o
ente mundano está aberto ao possível. A abertura é a transcendência
inevitável
. Nela o Dasein tem a possibilidade de estender-se, de ir ao
encontro do outro , de projetar-se e de compreender-se. Ser aberto é
imanência, porque não é uma escolha arbitrária, não é um ato de vontade
individual
- o
Dasein
não escolhe entre a abertura e o fechamento- mas a
abertura é o seu modo de ser [...] a abertura possibilita a pergunta; por isso,
ela é a possibilidade do diálogo (Almeida, 2001, p. 242).
Ao interrogar pelos sentidos e significados dos fatos religiosos das
sociedades primitivas , a hermenêutica eliadiana parte da adoção de um princípio
metodológico, que reconhece esses fenômenos como produções do espírito.
Portanto cabe à hermenêutica estabelecer as condições para que o pesquisador
dessas matérias possa fazer as perguntas necessárias e indispensáveis para,
então, se iniciar uma relação dialógica entre o intérprete e o texto. O texto é
compreendido aqui como alteridade. Quando Eliade faz a pergunta pelos sentidos
dos documentos religiosos das mais variadas tradições, ele o faz através de uma
pergunta que indaga pelos sentidos e significados, dando, assim, início a um
processo de compreensão, que tem na hermenêutica a sua condição necessária. A
pergunta é a porta de entrada para que o diálogo se inicie. Porém, não é qualquer
pergunta que desencadeia o processo dialético. Uma pergunta desprovida de
sentido emudece o texto. Em João 18,38 Pilatos pergunta a Jesus: o que é a
verdade? Todavia, essa pergunta não comporta nenhum sentido, posto que o
diálogo se encerra exatamente depois que ela é proferida. Pilatos se retira e o
diálogo é encerrado. Para que ocorra um verdadeiro diálogo é preciso que exista
30
uma motivação que impulsione o intérprete em direção ao texto, no sentido de
questioná
-lo. Esta motivação tem como pano de fundo a pré-
compre
ensão, ou seja,
é em razão da pré-compreensão que nos aproximamos de determinados temas e
não de outros. Dificilmente alguém perguntaria pelo sentido de um texto se este não
tivesse nenhum significado para ele, pois podemos interpretar aquilo que nos
atinge no mundo de sentido no qual vivemos (Almeida, 2002, p. 244).
A hermenêutica dos textos religiosos em Mircea Eliade aponta para um
horizonte, no qual é possível vislumbrar a presença de uma ecumenicidade radical,
não apenas formal, mas radical no sentido de que nos compreendemos ao
compreendermos o outro. O que Eliade persegue é um novo humanismo, pautado
na integralidade do ser humano.
A hermenêutica em Eliade é dialética e, por isso mesmo, necessita da
alteridade, seja dos mitos, dos símbolos ou toda e qualquer produção espiritual,
independente de pertencerem aos povos aborígines ou ao mundo europeu cristão.
Além da dialética, um outro princípio importante na hermenêutica de Eliade é o
conceito de irredutibilidade do sagrado. Ambos os princípios são fundamentais; um
porque garante a dialética e o outro porque reconhece a autonomia do sagrado.
Nas entrevistas que concedeu a Claude-Henri Rocquet, Eliade considera
como ponto importante para a compreensão do universo religioso das sociedades
arcaicas a rejeição da perspectiva segundo a qual é preciso desmistificar as
produções religiosas e culturais dessas sociedades.
Penso que a atitude de desmistificação é uma atitude de facilidade. Todos
os homens arcaicos ou primitivos crêem que a sua vila é o centro do mundo.
31
Tomar esta crença por ilusão não é difícil e não leva a nada. Ao mesmo
tempo, destruímos o fenômeno devido a não observarmos sobre o plano que
é seu. O importante, pelo contrário, é perguntarmos porque é que esses
homens acreditavam viver
no centro do mundo. Se pretendo compreender tal
tribo, não é para desmistificar a sua mitologia, a sua teologia, os seus
costumes, a sua representação do mundo. Quero compreender a sua cultura
e, logo, porque é que esses homens acreditam no que crêem. E se
compreendo a razão pela qual eles acreditam que a sua vida é o centro do
mundo, começo a compreender a sua mitologia, a sua teologia, logo o seu
modo de existir no mundo (Eliade, 1987, p. 101).
A proposta hermenêutica eliadiana é igu
almente importante pelo seu estatuto
existencial, pois para Eliade é através da atividade hermenêutica que se apreende
os eventos de sua própria existência e os seus possíveis significados. A
hermenêutica em Eliade não está desvinculada da vida; ela não é
simplesmente
uma técnica aplicada a textos; ela é sobretudo uma experiência que transforma a
consciência daquele que se propõe a compreender as produções religiosas do ser
humano. Neste sentido, Eliade afirma que a hermenêutica é uma atividade criativa.
Em primeiro lugar, é para o próprio homem que ela é criativa. O esforço para
decifrar a revelação presente numa criação religiosa
rito, símbolo, mito,
figura divina... , para lhe compreender a significação, a função, o fim, este
esforço enriquece dum modo singular a consciência e a vida do investigador
[...]. A hermenêutica é criativa num segundo sentido: ela revela certos valores
que não eram evidentes sobre o plano da experiência imediata. Tomemos o
exemplo da árvore cósmica, na Indonésia, na Sibéria ou na Mesopotâmia:
certos traços são comuns aos três simbolismos, mas, evidentemente, este
parentesco não é sensível ao mesopotâmico, ao indosio, ao siberiano. O
tabalho hermeneutico revela as significações latentes e o devir dos símbolos
32
[...]. A hermenêutica é criativa num outro sentido ainda. O leitor que
compreende, por exemplo, o simbolismo da árvore cósmica
e sei que isto é
verdadeiro mesmo para pessoas que apenas se interessam ordinariamente
pela história das religiões , esse leitor sente mais que uma alegria
intelectual. Faz uma descoberta importante para a sua vida (Eliade, 1987, p.
96
-
97).
A hermenêutica em Eliade, vista por esta perspectiva, é uma atividade
espiritual assim como a fenomenologia dos valores foi para Marx Scheler. O breve
comentário que Guimarães faz sobre o final do romance Forêt Interdite, de Eliade,
ilustra claramente essa dimensão espiritual da hermenêutica eliadiana, na ocasião
em que Stefan, personagem protagonista do romance, compreende o significado ou
mistério de Mme. Zissu. A partir daquele momento as coisas ficam claras para ele:
deveria fazer alguma coisa
diz ele
deveria talvez rezar, dizer a alguém que me
aconteceu alguma coisa, que tudo quanto me aconteceu tinha um sentido, mas não
sabia como buscá-lo, como entendê-lo. (...) Deveria dizer alguma coisa. Senhor,
seja feita a vossa vontade (Eliade
apud
Guimarães, 2000, p. 166).
1. 3. O Reencontro do Sagrado em Severino Croatto
Severino Croatto trabalha na mesma perspectiva de Mircea Eliade quando
promove a sua investigação do sagrado. Ele afirma que o lugar da hierofania está,
na verdade, no próprio ser humano. Isso, porém, não quer dizer, que não existam
objetos sacralizados, mas simplesmente que é na relação do homem com o objeto
que ocorre o acontecimento hierofânico ou a experiência do transcendente.
33
Croatto não trouxe contribuições novas para este tema. Como fenomenólogo
da religião, ele apenas reatualiza os eixos temáticos que foram trabalhados pelos
teór
icos da fenomenologia religiosa. Ele não inaugurou nenhum aspecto novo ou de
importância relativa para a fenomenologia religiosa. Ainda assim, Croatto é
considerado um pesquisador importante neste campo de estudo pelo fato de
promover a discussão acadêmica do fenômeno religioso a partir da perspectiva
fenomenológica, em âmbito latino
-
americano.
Quando Croatto diz o que de fato vem a ser o sagrado, ele dispensa
atenção especial ao elemento relacional, pois, para ele,
o sagrado é essencialmente uma relação entre o sujeito (o ser humano) e
um termo (Deus), relação que se visualiza ou se mostra em um âmbito (a
natureza, a história, as pessoas) ou em objetos, gestos, palavras etc. Sem
essa relação nada é s
agrado (Croatto, 2001 p. 61).
Todas as definições que Croatto elenca em seu livro As Linguagens da
Experiência Religiosa são conceitos incorporados ao arcabouço teórico da
fenomenologia religiosa. Ele pensa o sagrado a partir do solo fenomenológico,
porém não avança com elementos novos para a discursão teórica e metodológica.
O grande mérito de Croatto é trazer para discursão o tema do sagrado e a
importância da fenomenologia no estudo da experiência religiosa.
34
1.4. A
Fenomenologia aplicada ao estudo da religião
A fenomenologia da religião tem seus pressupostos filosóficos na
fenomenologia de Husserl, que foi o primeiro a falar e fundamentar o método
fenomenológico.
Para Thomas Ransom Giles,
a fenomenologia será uma ciência em contato direto com o ser absoluto das
coisas. Todavia, que o absoluto só pode ser o essencial da coisa tal como
se apresenta na sua realidade, toda orientação da fenomenologia consistirá
em dirigir o conhecimento para o essencial (Giles,
1989, p. 57).
Piazza admite que, para Husserl, o fundamento das idéias primeiras,
está em nossa consciência, pois nós a descobrimos segundo a intenção
com que olhamos as coisas. Mas o próprio fato de descobrirmos tais idéias
concretizadas nas coisas, revela que as coisas são, na sua realidade
concreta, portadoras de significado , revela igualmente que elas possuem
uma dimensão transcendente , pois, o significado como tal transcende a
simples concretitude das coisas [...] (Piazza, 1976, p. 192).
A fenomenologia, como método oriundo da filosofia, tem a sua justificativa
epistemológica ao reconhecer como objeto de sua investigação o fenômeno, ou a
forma como o objeto se mostra. O fenômeno, seja qual for a sua natureza, física,
social, lingüística, constitui, portanto, o campo de investigação da fenomenologia. A
fenomenologia não é um método exclusivo ao uso da filosofia; outras ciências
35
recorrem ao método fenomenológico para compreenderem os seus objetos de
investigação.
Com a fenomenologia da religião acontece o mesmo que Giles preconiza,
pois esta tem como fundamento, pelo menos parcialmente, o mesmo princípio
metódico elaborado pelo filósofo Edmund Husserl. Husserl desenvolveu o método
fenomenológico, porém, ele não o aplicou à investigação do fenômeno religioso.
Acenou, entretanto, por diversas vezes a esse respeito em suas correspondências
com Rudolf Otto e Erich Przywara. Nestas ocasiões, Husserl teceu algumas
considerações a respeito da fenomenologia religiosa, todavia, não existe, no escop
o
de sua obra, um mínimo de sistematização a respeito deste tema. Na opinião de
Husserl a pesquisa de Otto é destinada em todo o caso a ficar como uma pedra
fundamental não apenas no âmbito da filosofia, mas também naquele da
fenomenologia da religião (B
ello, 1998, p. 106).
O trabalho de Otto é pioneiro neste tipo de investigação, porém, quem
primeiro fez uso deste método de maneira sistemática, aplicado ao fenômeno
religioso, foi o holandês Gerardus van der Leeuw, que escreveu um livro chamado
Phaenome
nologie der Religion (Fenomenologia da Religião- 1933). Antes dele,
porém, esta expressão havia sido utilizada por um outro holandês, chamado P.D.
Chantepie de la Saussaye, a partir do ano de 1878, quando publicou um Manual de
história das religiões. O ideal da fenomenologia religiosa mirado por Chantepie
ainda não havia se desvinculado por completo ou parcialmente das pretensões
comparatistas do período iluminista. Porém, o trabalho de Chantepie serve como
indicativo ou um ponto de partida para a fenomenologia religiosa, e isto acontece
aproximadamente cinqüenta anos após a publicação do seu
Manual,
quando, em
36
1933, van der Leeuw torna público o seu livro sobre a fenomenologia religiosa.
Enquanto a primeira era filha do positivismo evolucionista que predominava na
segunda metade do século XIX, a outra será filha da reação ao positivismo
(Filoramo & Prandi, 2003, p. 29).
A fenomenologia religiosa inaugurada por van der Leeuw parte da
fenomenologia filosófica de Husserl e também é influenciada, em certa medida, por
um outro grande filósofo alemão, W. Dilthey. De Husserl, ele adota o princípio da
necessidade de se analisar o fenômeno em sua estrutura essencial. de Dilthey
incorpora a concepção de que o importante para compreender determinado
fenômeno é exp
erienciá
-lo, ou seja, vivê-lo, passar pela experiência, para então
entender como um outro ser humano vivencia essa mesma experiência.
Para Ângela Bello, a adoção por Leeuw do postulado diltheyliano é
compreensivo posto que existia uma tendência predominante no pensamento
ocidental do século XIX de ser marcado fortemente pelo ateísmo e pelo sentimento
de irreligiosidade. Ao adotar esta postura investigativa, Leeuw, de alguma maneira,
desqualifica as concepções que desvalorizam a experiência religiosa. Isto significa
que se não se é capaz de aceitar o fenômeno religioso como sendo um aspecto
importante da vida humana, conseqüentemente, não se pode estudar este
fenômeno, pois dificilmente um pesquisador que fosse crítico da religião iria se
sujeitar a vivenciar uma experiência religiosa, ainda que isto fosse condição
imprescindível para compreender o fenômeno.
Bello entende que a partir da proposta de van der Leeuw é possível abordar
duas questões cruciais: primeira, provar que a experiência religiosa precisa ter uma
37
estrutura essencial permanente [...] segunda questão, que tal experiência é
constitutiva do ser humano (Bello, 1998, p. 110).
A fenomenologia da religião faz sentido por que reconhece no fato
religioso um acontecimento fenomênico, condição necessária para se edificar uma
fenomenologia religiosa. A existência do fenômeno é a condição primeira e
fundamental para qualquer tipo de fenomenologia. O fenômeno é, pois, a realidade
que captamos nas coisas por meio da consciência. Para a fenomenologia religiosa,
a realidade é a religião (Piazza
apud
, Simões, 1998, p. 22). Goto, nessa mesma
postura de análise, entende o fenômeno religioso como sendo algo especificamente
humano, portanto, constituinte do ser do homem. Para ele,
a religiosidade se tornou, então, uma condição humana desde o momento
em que a humanidade entrou em contato com esta dimensão na busca de
um sentido supramundano ou sobrenatural para a sua existência. Podemos
afirmar que todos os homens possuem essa manifestação do religio
so,
porém não afetando a todos da mesma maneira e nem na mesma
intensidade. Assim o fenômeno religioso é um autêntico fenômeno do
homem, que se radica como condição humana, chegando assim a ser uma
das naturezas da humanidade (Goto, 2004, p. 60)
Seg
undo Waldomiro Piazza, fenomenologia religiosa é o estudo sistemático
do fato religioso nas suas manifestações e expressões sensíveis, ou seja, como
comportamento humano, com a finalidade de apreender o seu significado profundo
(Piazza, 1983, p. 18).
Den
tro dessa mesma perspectiva, Goto, diz que a fenomenologia da religião
tem como objeto o estudo do fenômeno religioso [...] buscando compreender o
38
significado profundo da religiosidade numa hermenêutica ontológico-
existencial
(não só da especulação racio
nal) e tendo como principal recurso a redução eidética
(Goto, 2004, p. 59).
A busca pelo significado profundo do fato religioso supõe a existência do
sentido e significados expressos destas experiências. O método fenomenológico,
aplicado à análise do fato religioso, visa, para alcançar seu intento, promover a
redução fenomenológica, pois somente a partir deste procedimento é possível
captar as estruturas simbólicas universais do fenômeno religioso, ou seja, voltar às
coisas mesmas da fenomenologia de Hu
sserl.
O fato religioso é a porta de entrada para o fenomenólogo, porém, este não
está interessado simplesmente em descrever ou classificar detalhadamente a
tipologia dos fatos religiosos. A preocupação fundamental do fenomenólogo das
religiões é pelo sentido existencial destes fatos religiosos para o ser humano que
vivenciou ou vivencia determinada experiência religiosa.
O fenomenólogo, de acordo com Croatto, deve, portanto, transitar
cuidadosamente entre dois obstáculos ou pistas falsas: não generalizar a partir da
especificidade de sentido de seu objeto de compreensão, nem ficar no fenômeno na
sua exterioridade sem aprofundar-se na sua intenção originária e atual (Croatto,
2001, p.27).
A fenomenologia da religião está preocupada, desta maneira,
essencia
lmente, em desvelar as estruturas invariantes do fenômeno religioso e
seus significados. Para empreender essa tarefa, o fenomenólogo das religiões
Mircea Eliade faz uso do método morfológico-sincrônico, não dispensando, todavia,
o uso da perspectiva histó
rico
-diacrônica.
39
O eixo morfológico-sincrônico preocupa-se basicamente em captar a
essência e os significados dos fatos religiosos, enquanto o eixo hstórico-
diacrônico
centra o seu foco na recuperação da perspectiva histórico-cronológica. De um lado,
temo
s como preocupação principal a análise das estruturas invariantes e de seus
significados profundos para o homo religiosus
; do outro lado, a atenção direciona
-
se
principalmente para a dimensão histórica do fato religioso e às variáveis contextuais
que são as testemunhas dos acontecimentos religiosos, ao mesmo tempo que
também influenciam este acontecimento, pois, não é possível pensar o fenômeno
religioso fora da história. Todo acontecimento religioso é, paradoxalmente falando,
um evento histórico. Não existe um fato religioso puro, ele sempre ocorre em um
determinado contexto histórico, contexto este portador de uma infinidade de
variáveis que o constituem.
Um princípio fundamental presente na fenomenologia religiosa,
principalmente a partir de Mircea Eliade, que empreende uma verdadeira virada
epistemológica no estudo da religião, é o princípio da irredutibilidade do fenômeno
religioso. As bases que possibilitaram essa virada encontram-se presente no
pensamento de W. Dilthey que, através de sua filosofia, buscou conferir autonomia
às ciências do espírito, fazendo a separação entre ciências do espírito e ciências da
natureza. A partir desta abertura efetuada por Dilthey, Rudolf Otto e van der Leeuw
situarão as suas análises do sagrado. Mircea Eliade parte deste solo
epistemológico, mas não se limita a ele, pois, para ele, o fenômeno religioso é
irredutível em si mesmo, enquanto Otto e van der Leeuw compreendem a
autonomia do sagrado como um elemento condicionado à autonomia das ciências
do espírito.
40
O princípio da irredutibilidade do fenômeno religioso confere dignidade a
este campo de estudo que desde muito tempo tem se constituído como simples
apêndice de outras ciências, como a sociologia, a história, a psicologia, a economia,
etc. Aceitar este princípio é superar as posições poisitivístico-naturalistas e
historicistas, assim como também está implícito nesta tomada de decisão o
abandono da busca da origem da religião, problema enfrentado pelos teóricos
evolucionistas e positivistas. Eliade, na defesa de
ste postulado, diz:
Para o sociólogo, a religião é antes de tudo um fato social; para alguns
sociólogos ela é vista como o fato social por excelência. Para um historiador,
a religião é um fato histórico, e para o psicólogo, um fato psíquico. Tudo isso
é
verdade: pois não fato humano que não seja ao mesmo tempo fato
social, psíquico, histórico (e por suposto também lingüístico, econômico,
biológico, sexual, etc.). Mas trata-se de surpreender justamente o que um
fato religioso nos mostra enquanto fato religioso. [...] É a escala que cria o
fenômeno, observava um físico francês. Neste caso a única dificuldade mais
grave era de pôr-se de acordo sobre que escala escolher. Depois de quase
um século experimentaram-se várias: lingüística, econômica, sociológica
,
fisiológica, psiquiátrica e, mesmo, erótica. Por que não tentar, por uma vez, a
escala religiosa propriamente dita? Isto é, em outros termos, por que não
fazer a fenomenologia da religião ? (Eliade
apud
Guimarães, 2000, p. 355-
356).
O princípio que afirma que é a escala que cria o fenômeno confirma que o
fenômeno religioso pode ser acessado por diversas escalas conceituais e que estas
escalas vão produzir, por sua vez, um discurso específico em relação ao fenômeno
analisado. Se o pesquisador analisa o fenômeno religioso a partir da escala
41
sociológica, ele vai compreendê-lo como um fato social; da mesma forma, o
historiador das religiões tende a entender as religiões como puros fatos históricos.
Por isso podemos recorrer à fenomenologia da religião, que, para Tommy Akira
Goto, configura-se como uma disciplina autônoma, um método peculiar de
abordagem ampla no estudo das diversas culturas religiosas (Goto, 2004, p. 56).
Mircea Eliade nos indaga por que não utilizamos uma escala religi
osa
propriamente dita, pois, se assim o fizéssemos estaríamos em condições de
compreendermos o fenômeno religioso dentro de sua própria dimensão. A
fenomenologia da religião é o método por excelência que permite esse acesso ao
fenômeno religioso sem cair no erro de fazer reducionismo metodológico. Resta à
pesquisa fenomenológica, que estuda a religião a partir de seu elemento básico, o
fenômeno religioso tal como se manifesta no comportamento humano (Piazza,
1983, p. 44-45). Para Croatto, tal comportamento manifesta-se em seus símbolos,
mitos e ritos, que têm relação concreta e histórica, mas enquanto relacionada com
acontecimentos originários e instauradores (Croatto, 2001, p.57).
A fenomenologia religiosa tem, portanto, a tarefa de, a partir dos dados
oferecidos pela sociologia da religião, pela história das religiões, pela lingüística,
compreender sentidos e significados profundos das expressões religiosas,
recusando para tanto as análises normatizadoras da teologia ou do discurso
doutrinário ou ortodoxo da religião institucionalizada. A fenomenologia está
preocupada em estudar os fatos religiosos em si mesmos, ou seja, a sua
intencionalidade, a sua essência. Simões Jorge acredita que ao trabalhar
subsidiada pela história, sociologia, psicologia, filosofia etc., a fenomenologia
42
religiosa, visa uma melhor compreensão do fato religioso e à mais profunda
apreensão do seu significado último (Simões, 1998, p. 18).
A preocupação de Mircea Eliade é construir um instrumento conceitual, a
partir do qual seja possível referir-se ao fenômeno religioso dentro do seu próprio
plano de referência. Para isso, Eliade adota o princípio da dialética do sagrado
como condição necessária para que o fenômeno religioso possa ser compreendido
em seu próprio campo metodológico. O conceito de dialética do sagrado é de
importância fundamental por que é essa dialética que constitui uma estrutura
invariante, que sustenta e rege toda e qualquer hierofania, e confere ao fenômeno
religioso o seu caráter irredutível em relação a qualquer outro tipo de fenômeno
não
-religioso (Guimarães, 2000, p. 562).
A fenomenologia em Eliade distancia-se da fenomenologia transcendental de
Husserl e se torna mais próxima da fenomenologia de M. Heidegger. Esse marco
conceitual
é importante, pois é a part
ir desta nova perspectiva que iremos abordar o
discurso mítico e as conexões que este estabelece com o fenômeno religioso.
1.5. Resumo e Perspectivas
Começamos o nosso estudo efetuando uma análise do sagrado e da
experiência religiosa em teóricos como Rudolf Otto, Mircea Eliade e Severino
Croatto.
Rudolf Otto centraliza a sua a análise do sagrado em torno dos elementos
constituintes da experiência do sagrado, ou seja, os elementos não-racionais e
43
racionais que compõem esta categoria e a experiência resultante do contato do ser
humano com essa dimensão do mistério.
Em Mircea Eliade encontramos um autor preocupado em destacar a
importância da sagrado para o ser humano, classificando essa categoria como
ontológica e existencial. Eliade parte do método fenom
enológico
-hermenêutico e
procura assegurar ao sagrado uma dimensão privilegiada para a compreensão do
fenômeno humano.
Severino Croatto, por sua vez, retoma, em um contexto latino-americano, a
perspectiva da fenomenologia da religião e amplia a discussão em torno de um
estudo fenomenológico da religião em nosso continente.
Esperamos, no capítulo seguinte, estabelecer uma relação entre a
experiência hierofânica do sagrado e suas possíveis conexões com o discurso
fundamentado nas narrativas míticas. Buscaremos demonstrar se sagrado e mito
participam do mesmo estatuto ontológico e, em caso afirmativo em que medida
podemos falar do mito como uma expressão do sagrado.
44
CAPÍTULO II
O MITO NA HISTÓRIA DO PENSAMENTO OCIDENTAL
2.1.
Mito e Logos na Grécia antiga
O mito tem sido objeto de várias mudanças semânticas no decorrer de sua
trajetória histórica, tanto nas análises efetuadas pelo pensamento teológico como
nas reflexões empreendida pela filosofia. Se voltarmos o nossa atenção para os
gregos, perceberemos que a sociedade grega, tem uma mitologia expressiva e
amplamente conhecida do Ocidente. O mito, desde esta época, era objeto de
disputa e contradições. O mito deixou de ser hegemônico, processo esse que teve o
seu nascedouro na Grécia antiga e conseqüentemente o seu posterior
aprofundamento, com o advento da racionalidade na filosofia ocidental que teve a
Grécia como berço.
O mito é o espaço por excelência das contradições e das ambigüidades. O
filósofo grego Xenófanes (cerca de 565-470 a.C) foi o primeiro a criticar e rejeitar o
mito. Desde a época de Xenófanes, o mito, na Grécia, vai gradativamente perdendo
espaço para uma outra forma de compreensão e explicação da realidade e do ser
humano. Essa outra maneira de compreender o mundo e que avança à medida que
45
o mito perde prestígio, é o pensamento estruturado a partir do
logos
.
Compreendemos, entretanto, que esse processo se efetivamente em uma
dimensão conceitual, pois do ponto de vista histórico o racionalismo jônico não
afetou, de modo decisivo, as crenças populares. Existe, então, na Grécia antiga,
uma polaridade entre o discurso estruturado a partir do
mythos
e o discurso
incipiente que tem no
logos
o seu foco de estruturação. A Grécia que viu florescer o
mito na sua forma mais exuberante, também assistiu o declínio e a queda do seu
grandioso sistema mitológico.
A ascensão do racionalismo jônico coincide com uma crítica cada vez mais
corrosiva da mitologia clássica , tal qual é expressa nas obras de Homero e
Hesíodo. S
e em todas as línguas européias o vocábulo mito denota uma ficção é
porque os gregos o proclamaram há vinte e cinco séculos (Eliade, 2000 A, p. 130).
Jean
-
Pierre Vernant, ao falar da origem da filosofia, mostra que:
[...] se o advento da filosofia, na Grécia, marca o declínio do pensamento
mítico e o começo de um saber de tipo racional, pode-se fixar a data e o
lugar de nascimento da razão grega, estabelecer seu estado civil. É no
princípio do século VI, na Mileto jônica, que homens como Tales,
Anaxi
mandro, Anaxímenes inauguram um novo modo de reflexão
concernente à natureza que tomam por objeto de uma investigação
sistemática e desinteressada, de uma
história
, da qual apresentam um
quadro de conjunto, uma
theoria
. Da origem do mundo, de sua composiçã
o,
de sua ordem, dos fenômenos meteorológicos, propõem explicações livres
de toda a imaginária dramática das teogonias e cosmogonias antigas: as
grandes figuras das Potências primordiais já se extinguiram; nada de agentes
sobrenaturais cujas aventuras, lutas, façanhas formavam a trama dos mitos
de gênese que narravam o aparecimento do mundo e a instituição da ordem;
46
nem mesmo a alusão aos deuses que a religião oficial associava, nas
crenças e no culto, às forças da natureza (Vernant, 1998, p. 81).
O racionalismo da filosofia grega deixa marcas definitivas nas interpretações
que se desenvolverão posteriormente na cultura ocidental acerca do mito. Eliade
afirma que queira-se ou não, qualquer tentativa de interpretação do mito grego, ao
menos no interior de uma cultura de tipo ocidental, é sempre até certo ponto
condicionada pela crítica dos racionalistas gregos (Eliade, 2000 A, p. 130).
A crítica dos racionalistas gregos ao mito é dirigida especialmente ao
panteão mitológico e à teogonia sistematizados por Homero e Hesíodo. Essas duas
sistematizações da mitologia grega, que constitui a chamada mitologia clássica, e
que não representa a mitologia grega na sua totalidade, foram duramente criticadas
por diversos filósofos gregos como Tales de Mileto que isolou os deuses em certas
regiões cósmicas, Anaximandro que concebeu um Universo sem deuses e sem
mitos, Xenófanes, que foi o mais duro crítico do antropomorfismo dos deuses
homéricos e hesíodicos e posteriormente pelo judeu-cristianismo. Um dos principais
aspectos pontuados pela crítica racionalista refere-se, principalmente, ao
antropomorfismo que caracterizava os deuses tanto do panteão homérico como da
teogonia de Hesíodo. Vários aspectos são considerados ao se desqualificar esses
sistemas mitológicos, a partir da crítica fundada no antropomorfismo, como por
exemplo a natureza vingativa e invejosa dos deuses e os atos por estes praticados
como o roubo, o adultério, as trapaças e outros. Para Xenófanes, Homero e
Hesíodo atribuíram aos deuses tudo quanto entre os homens é vergonhoso e
47
censurável, roubos, adultérios e mentiras recíprocas (Xenófanes
apud
Kirk &
Raven, 1983, p. 173).
Mesmo passando por um processo crítico duramente erosivo, a mitologia de
Homero e Hesíodo não deixou de exercer uma influência na cultura helenística,
principalmente através das elites da época. Na cultura pós-clássica, a mitologia
passa por um processo de reinterpretação ancorado em duas concepções ou
perspectivas diferentes, ou seja, o alegorismo e o evemerismo (Eliade, 2000 A, p.
135
-
6).
A interpretação alegórica dos mitos estava preocupada em encontrar
significados ocultos ou subentendidos, podendo os deuses representar
alegoricamente aspectos das faculdades humanas assim como elementos da
realidade natural. Teagenes de Régio, no século VI, foi o primeiro a realizar uma
exegese alegórica sobre os mitos de Homero. Na verdade, o interesse de Teagenes
era defender o panteão homérico das críticas que lhes eram feitas por Xenófanes.
Este filósofo estava decidido a apagar da memória da cidade as lembranças das
velhas histórias. Os recitadores de Homero saem em defesa de suas histórias,
dando início a uma hermenêutica dos mitos, fundada nos textos escritos de
Homero. A disputa entre os recitadores de Homero e os críticos das velhas his
tórias
principia toda uma tradição interpretativa do mito. Teagenes quer salvar os mitos
homéricos das ferozes críticas de Xenófanes, mas, para fazê-lo, ele precisa dizer
que os mitos guardam uma verdade escondida, que precisa ser desvelada pelo
intérprete
dos textos. Cabe ao intérprete dos mitos desvelar o sentido segundo que
está subentendido nos textos míticos e torná
-
lo claro para uma análise racional.
48
Assim o mito se purificado dos absurdos, da inverosimilhanças ou das
imoralidades que faziam o escândalo da razão, mas ao preço de uma
renúncia ao que é em si mesmo, ao se recusarem a tomá-lo literalmente e
fazendo
-lhe dizer coisa totalmente diferente do que pretende contar. Esse
tipo de hermenêutica encontrará no estoicismo e no neoplatonismo sua
ex
pressão espetacular (Vernant, 1992, p. 187).
O evemerismo, por outro lado, acreditava que os deuses da mitologia
clássica eram representações de personagens históricos, como antigos reis
divinizados. A perspectiva adotada pelo evemerismo era de buscar a identificação
histórica para os deuses presentes no panteão de Homero e na
Teogonia
de
Hesíodo. Êvemero no século III a.C publicou um livro chamado de História Sacra
(Hicra anagraphe). Neste livro Êvemero acreditava haver descoberto a origem dos
deuses
: estes eram antigos reis divinizados [...] Esses deuses tinham agora uma
realidade : realidade de ordem histórica (mais exatamente, pré-histórica) seus
mitos representavam a reminiscência confusa, ou transfigurada pela imaginação,
dos gestos dos reis primitivos (Eliade, 2000 A, p. 136).
Paul Veyne compreende que a disputa na Grécia em torno do mito girará em
torno de duas perspectivas, ou seja,
duas escolas, pois: a critica das lendas pelos historiadores e a interpretação
alegórica das lendas pela maior parte dos filósofos, entre os quais os
Estóicos; é daqui que sairá a exegese alegórica da Bíblia, destinada a quinze
séculos de triunfo (Veyne, 1987, p. 79).
49
Para Eliade, o alegorismo e o evemerismo são tentativas de salvar a
mitologia grega clássica, porém, é dentro do próprio racionalismo que se processa
essa revalorização da mitologia clássica. Eliade expressa isso ao afirmar que,
graças ao alegorismo e ao evemerismo, graças sobretudo ao fato de toda a
literatura e todas as artes plásticas se terem desenvolvido em torno dos
mitos divinos e heróicos, os deuses e heróis gregos não ficaram relegados
ao esquecimento após o longo processo de desmistificação, nem após o
triunfo do cristianismo (Eliade, 2000 A, p. 136).
O evemerismo, o alegorismo e as artes desempenharam certamente um
importante papel na perpetuação da mitologia clássica, porém não conseguiram
estancar o processo de dessacralização, efetuado principalmente pelo cristianismo.
Hesíodo e Homero foram os sistematizadores da mitologia greg
a. Foram eles
que transformaram os mitos gregos em documentos escritos e graças a eles o
mundo ocidental teve a oportunidade de presenciar a verdadeira odisséia do mito
grego. Mas o que eles transcreveram não representa, ainda assim, os mitos gregos
em sua totalidade, até porque do século XII ao século VIII a.C, a civilização grega
era predominantemente dominada pela cultura oral e isso implica que a cultura
arcaica da Grécia antiga era muito rica em mitos. As sistematizações empreendidas
por Hesíodo e Homero representam apenas uma pequena parcela dos mitos
gregos.
Podemos dizer que Homero e Hesíodo iniciaram o processo de
desmistificação e secularização do mito ao transformar os mitos em textos literários,
pois é a partir do texto que o mito sobrevive, embora totalmente desvinculado do
50
contexto da religiosidade grega. Conhecemos os mitos como documentos
literários e artísticos e não como fontes, ou expressões, de uma experiência
religiosa vinculada a um rito (Eliade, 2000 A, p. 138). A alegorização e a
evemerização da mitologia clássica permitiram que os mitos sobrevivessem na
cultura européia cristã, porém comprometidos e esvaziados de sua vitalidade
religiosa, o que não lhes permitiam apresentarem qualquer tipo de resistência ao
avanço do cristianismo. Quem quiser tentar uma compreensão imediata dos mitos
antigos precisa ser capaz de transportar-se ao ambiente em que viveu e pensou o
homem pré-histórico (Otto
apud
Patai, 1972, p. 42). O mito se tornou um produto
basicamente cultural e por essa razão conseguiu sobreviver no mundo ocidental,
que não representava nenhum perigo para o cristianismo.
Graças à cultura, um universo religioso dessacralizado e uma mitologia
desmistificada formaram e nutriram a civilização ocidental, a única civilização
que
conseguiu tornar-se exemplar. Temos mais que um triunfo do
logos
sobre o
mythos
. É a vitória do livro sobre a tradição oral, do documento
sobretudo do documento escrito
sobre uma experiência vivida que
dispunha de meios de expressão pré
-litrarários (Eliade, 2000 A, p. 137).
George Gusdorf, ao analisar o processo de transição do pensamento mítico
para o pensamento racional, o compreende como o resultado de transformações
subjacentes que se processaram na própria estrutura do ser do homem. Para ele a
conquista da escrita foi um avanço importante, todavia, ela não foi determinante,
posto que a variável condicionante desta mudança pode ser identificada na
mutação ocorrida no próprio ser humano, ou seja, na superação de uma ontologia
51
fundada nas expressões míticas por uma racionalidade, ou em outras palavras, por
um saber filosófico. Essa mutação provoca uma ruptura entre o ser humano das
sociedades primitivas, que viviam sob a égide do mito e o ser humano das
sociedades que se reconhecem como históricas. O surgimento da história, de
acordo com essa concepção, é o grande divisor de águas, a fronteira entre o mito e
a razão. Gusdorf partindo desse posicionamento defende que: O advento da
história é, pois, solidário com a aparição da razão. Ora, a razão retoma o papel
estabilizador do mito; sucede-o enquanto princípio de identificação. A história, por
sua parte sustentada por constantes racionais, assume a tarefa de tornar inteligível
o mundo do devir (Gusdorf, 1980, p. 109).
O advento da historicidade do ser humano é concomitante a outros dois
processos igualmente importantes, ou seja, a universalidade e a individualidade,
situações essas alheiam ao pensamento dos primitivos. Para Gusdorf o sentido do
universal e sentido do individual libert
am
-se em forma solidária quando se
desagrega o pensamento mítico (Gusdorf, 1980, p. 124).
O princípio da universalidade pode ser percebido por exemplo no
universalismo político com a formação dos impérios, que põe fim aos
particularismos locais e tamm na descoberta de leis que evidentemente estão
relacionadas ao universal, pois diz respeito aos fenômenos que são universais
como as leis da astrobiologia. A astrobiologia introduz um pensamento de escala
cósmica. Ela articula as aparências para melhor unif
icá
-las, ela sistematiza as
ligações demasiadamente frouxas da participação e da pertinência pela idéia de
uma regulação impessoal e inteligível (Gusdorf, 1980, p. 131).
52
O princípio da individualidade corresponde a descoberta da personalidade. O
surgimento da personalidade foi possível graças a reconfiguração da ontologia
que sai da esfera das representações míticas e exteriores aos sujeitos e passa a se
configurar como ontologia da consciência refletida. O pensar refletido tem como
locus
de ocorrência
a consciência e por esse motivo precisa necessariamente voltar
para si mesmo. É como no dizer socrático Conheça-te a ti mesmo . No indivíduo, e
não mais na comunidade, é que se pronuncia a verdade (Gusdorf, 1980, p. 146).
2.2. Do Oral ao Escrito
A ascensão do
logos
em detrimento do
mythos
está vinculada a alguns
processos contínuos de rupturas estruturais. A passagem da tradição oral para uma
tradição escritualística representou na Grécia antiga um acontecimento
imprescindível para que o
lo
gos
emergisse com força na cultura grega. A superação
da tradição oral, entre os intelectuais, criou as condições de possibilidade para que
um discurso racional viesse à tona e se estabelecesse como lugar da verdade. A
energia, antes utilizada com a memorização, é liberada através da escrita, para
realizar novas incursões, favorecendo dessa forma, o fortalecimento de um novo
modo de compreender o mundo, ou seja, o pensamento conceitual e racional.
Enquanto as narrativas míticas encontravam sua força na palavra
pronunciada, ou na palavra falada, o discurso racional, por sua vez, se sustenta na
palavra escrita. O advento da escrita é um acontecimento importante para o
discurso racional, pois a escrita reordena a própria estrutura do pensar. O
pensame
nto, depois da escrita, na Grécia, é de outra natureza. Para Havelock o
53
surgimento do alfabeto grego representou mudanças de ordem qualitativa na
própria estrutura do pensamento, pois para ele [...] a referida mudança tornou-se o
meio de introduzir um nov
o estado mental
a mente alfabética, se me é permitida a
expressão (Havelock, 1996, p. 15-
6).
O surgimento da filosofia em solo grego não foi obra do acaso, e muito
menos um milagre, está ao contrário vinculado a conquista de um alfabeto aliada a
outras
condições sócio-políticas, como por exemplo, o surgimento da
polis
. Pierre
Vernant mostra que o uso do alfabeto permitiu não somente o surgimento de outros
modos de discursos diferente daqueles pertencentes à tradição oral, mas
principalmente e fundamentalmente se caracterizam por se apresentar como uma
nova forma de pensar. Neste sentido ele afirma:
a redação em prosa
tratados médicos, narrativas históricas, discursos de
oradores em defesa de uma causa, dissertações de filósofos
não constitui
somente, em relação à tradição oral e às criações poéticas, um outro modo
de expressão, e sim uma nova forma de pensamento. A organização do
discurso escrito é paralela a uma análise mais cerrada, um ordenamento
mais estrito da matéria conceitual (Vernant, 1992,
p. 173).
Na presença do texto, o leitor pode fazer uma leitura distanciada, mais
exigente e crítica. Isso não é possível, todavia, quando se está na condição de
ouvinte, o que é natural em sociedades que não desenvolveram a escrita. Nestas
sociedades gozam de grande prestígio as palavras pronunciadas, ou seja, todo
discurso proveniente da oralidade, que normalmente, estão revestidas de uma
musicalidade sedutora e embriagante. É por meio da palavra pronunciada que o
maravilhoso e fabuloso acontece de maneira mais vigorosa, ou em outras palavras,
54
é na tradição oral que os temas da mitologia encontra a sua primeira forma de
expressão. As narrativas míticas encontram a sua expressividade em seu mais
alto vigor.
Ao contrário, da palavra pronunciada da tradição oral, a escrita, mantém
uma serenidade austera e rigorosa. Ela exorciza o maravilhoso e o fabuloso, pois
ela quer ser sóbria e demonstrativa.
O
logos
renunciando voluntariamente ao dramático e ao maravilhoso, o
logos
situa a sua ação sobre o espírito num nível diferente do da operação
mimética (mimêsis) e da participação emocional (simpatheia). Ele se propõe
estabelecer o verdadeiro após investigação escrupulosa e de denunciá-
lo
segundo um modo de exposição que, pelo menos de direito apela para a
inteligência crítica do leitor (Vernant, 1992, p. 175)
Diferentemente da tradição oral, que é controlada por um pequeno grupo de
pessoas privilegiadas pelo dom da palavra, a escrita pertence a todos e é levada
para a p
raça pública. Isso não significa, entretanto, que todos dominem a escrita. As
leis por exemplo são fixadas nas praças públicas independentemente de saberem
ler aqueles que freqüentam a praça. A escrita é da ordem do comum e do cotidiano.
O alfabeto grego não foi uma conquista abrupta e tampouco se popularizou
em tempo recorde, ao contrário, a sua primeira ocorrência data do ano 700 a.C.
entretanto, uma pequena parcela da população grega, os intelectuais, se
tornaram letrados no ano de 550 a.C. como afirma Havelock; mas a suposição de
que a Grécia era plenamente letrada antes de 550 a.C. (ou de fato antes de 430
a.C.) parece não ter fundamento (Havelock, 1996, p. 182).
55
2.3. A Oralidade em Heródoto e Tucídides
Podemos perceber que com a superação gradativa da tradição oral pela
escrita, esse processo ocorre principalmente entre os intelectuais, o
logos
suplanta
o
mythos
e se estabelece como a maneira correta de falar sobre as coisas. O
historiador grego Tucídides exemplifica muito bem o uso
de um discurso racional no
campo da historiografia.
Para o ouvinte, a ausência do maravilhoso nos fatos relatados parecerá
sem dúvidas diminuir seu encanto; mas se se quiser ver claro nos
acontecimentos passados e naqueles que, no futuro, em virtude de seu
caráter humano, apresentarão semelhanças ou analogias, que se julgue
então úteis e isso bastará: eles constituem mais um tesouro para sempre
(Klêma es aiei) de que uma produção de aparato para um auditório do
momento (Tucídides
apud
Vernant, 1992,
p. 176).
Heródoto e Tucídides lidam com a escrita a partir de perspectivas diferentes.
A escrita de Heródoto é respaldada pelos rumores ou pelo o ouvir dizer . Ele ainda
não se desvinculou completamente do contexto oral e a fonte de sua histori
ografia
ainda é eminentemente oral. O ouvir dizer é critério de verdade para Heródoto; não
necessidade de certificar se as fontes são mesmo verdadeiras; se são contadas
pelo povo é por que são verdadeiras. A escrita herodoteana obedece aos padrões
da tr
adição oral.
Tucídides, por outro lado, introduz um critério de verdade histórica mais
rigoroso do que Heródoto. Para ele não basta o ouvir dizer ; é preciso ver com os
próprios olhos e, na impossibilidade de ver, pelo menos interrogar aqueles que
56
dizem ter visto, ou seja, as testemunhas oculares e confrontar as suas versões. Em
Tucídides vale mais o princípio da visão do que o princípio da audição. Na
Guerra
do Peloponeso, ele foi espectador atento dos acontecimentos e procurou descrever
tais fatos históricos com a precisão da sua visão, o que pressupõe, em outras
palavras, que para ser historiador rigoroso, do ponto de vista metodológico, é
preciso ser, talvez, contemporâneo dos acontecimentos, pois não é prudente dar
ouvidos aos contadores de histórias. Para François Hartog, Tucídides o rejeita as
fontes orais, porém, reconhece que existem critérios para se fazer uso da história
oral. um bom e um mau uso da oralidade. Portanto, Tucídides também se
encontra (sem dúvida de uma maneira diferente da de Heródoto) entre o escrito e o
oral (Hartog, 1999, p. 295).
Na verdade, Tucídides, além de criticar o uso da oralidade por Heródoto,
também afirma que Heródoto é um logógrafo, um contador de história, um mitólogo,
ou simplesmente um mentiroso. O autor das
Histórias
sofrerá duros ataques de
Tucídides, seguido de outros autores que procuraram desmascará-lo. Heródoto em
seu texto pretende contar histórias verdadeiras; ocorre, entretanto, que Tucídides
denúncia exatamente essa pretensão de Heródoto. Para ele, as
Histórias
abundam
em
mythos
, o que coloca Heródoto na categoria de falsário e mentiroso. Tucídides
procura compreender o que se passa por trás das palavras e se propõem escrever
uma tese. Por seu turno Heródoto não conseguiu desvinlular-se da tradição oral e
como a oralidade é o espaço por excelência do maravilhoso e do fabuloso, é
compreensivo que seus textos comportem a ocorrência de elementos míticos, ainda
que este os condenasse quando eles apareciam em textos como os de Homero.
57
Malinowski,
ao estudar os povos sem história, e/ou primitivos , ou seja,
aqueles que constroem suas identidades culturais e religiosas através da tradição
oral, sem recorrer a escrita, diz textualmente: as histórias vivem na vida nativa e
não no papel, e quando um estudioso as anota rapidamente, sem evocar a
atmosfera na qual elas florescem estará nos transmitindo apenas pedaços
mutilados da realidade (Malinowski, 1986, p. 163).
Isso vale para o pesquisador, que, ao transformar em documento escritos as
tradições de um povo, deixa escapar o que de mais substancial desse universo.
Os autóctones cantam, recitam, narram; e os etnógrafos, como seu nome
prescreve, escrevem, anotam, arquivam (Detienne, 1992, p. 223). Isso vale
também para os membros de uma comunidade, pois um processo semelhante
também ocorre quando a escrita é utilizada pela própria comunidade como meio de
preservar a memória coletiva. A Grécia é um caso exemplar para essa situação. A
tradição oral é enfraquecida com a introdução da escrita como depósito da
memória. É a tradição oral que mantém viva a memória dos povos sem escrita e
isso acontece, por exemplo, através dos contos folclóricos, das lendas e dos mitos.
Na tradição oral, a memória está armazenada em lugar nenhum, enquanto que com
a introdução da escrita a memória tem endereço e estado civil. Ela é documentada!
Aos indígenas, a escuta primitiva, as emoções intensas, a plenitude do
conhecimento; para nós, restam os livros, a conceitualização do pré
-
logico, a escrita
sobre a mitologia selvagem
(Detienne, 1992, p. 223).
58
2.4. O Mito na filosofia de Platão
A filosofia grega, especialmente em Platão, ainda conserva um misto de
racionalidade e mito. Basta lembrarmos aqui o mito da caverna presente no livro
A
República
. Platão convive com essas duas dimensões explicativas do mundo. Ele
filosofa a partir da razão, sem, contudo, deixar de recorrer à figuras mitológicas para
expressar o seu pensamento. Podemos indagar se o que Platão faz é colocar o mito
na mesma dimensão do logos. Mas como é possível articular mito e logos em um
sistema filosófico sem incorrer em problemas para a filosofia? Hegel e Heidegger
ofereceram respostas diametralmente opostas para esse problema do platonismo.
Hegel compreende que o mito em Platão exerce uma função negativa, pois
os conceitos da filosofia de Platão ainda não eram suficientemente desenvolvidos,
daí a necessidade de recorrer ao mito; o conceito filosófico deve ser sempre
separado do mito, pois se mistura com ele quando ainda não está de todo
amadurecido (Reale, 1994, p. 40). No outro extremo, está a posição de Heidegger,
que acredita que o mito é a expressão mais autêntica do pensamento platônico.
Reale, ilustrando a posição de Heidegger, diz: o logos que domina a teoria das
Idéias, mostra
-
se capaz de ca
ptar
o ser
, mas incapaz de explicar
a vida:
o mito vem
em socorro justamente para explicar a vida e, de certa maneira, supera o logos e se
faz mito-logia (Reale, 1994, p. 41). Existem outras soluções intermediárias às
apresentadas por Hegel e Heidegger. Reale aponta outros aspectos que o mito
pode assumir no platonismo, principalmente o que se refere à natureza do mito no
que diz respeito ao seu caráter de narração provável que está ligada a todas as
coisas sujeitas à geração. O logos, na sua pureza, pode aplicar-se apenas ao ser
59
que não muda; ao contrário, ao ser mutável não se poderá aplicar o logos, mas a
opinião verdadeira ou, justamente, o mito provável (Reale, 1994, p. 43). O logos,
portanto, está condicionado ao ser estável. Aquilo que é imutável e puro é o campo
do logos propriamente dito. O universo físico, que é a imagem de uma idéia ou de
um modelo originário, corresponde às coisas sujeitas à geração e que desta forma
são susceptíveis a mudanças e, portanto, não pertencem a ordem do imutável, ma
s
aquela realidade sobre a qual é apenas possível tecer alguns raciocínios
verossímeis ou algumas opiniões prováveis. É nesse campo da imagética do mundo
que o discurso mítico se fundamenta em Platão. Apesar dessa constante referência
ao mito, efetuada pelo platonismo, o processo de desmitologização não é
estancado, até mesmo porque no platonismo a utilização do discurso mítico não
está vinculado ao discurso religioso.
É preciso considerar, todavia, que a presença de elementos míticos no
pensamento de Platão é um fato paradoxal, posto que Platão está inserido dentro
de uma tradição filosófica fundada na racionalidade. Pierre Vernant esclarece
quando diz:
Platão, que parece tão freqüentemente expulsar o mythos como quando, em
Filebo (14a), fala de um raciocínio, logos que, minado por suas contradições
internas, destrói a si mesma à maneira de um
mythos
, ou quando observa,
no Fedon (16b), pela boca de Sócrates, que o
mythos
não é assunto seu e
sim dos poetas
esses poetas que A República expulsará da cidade
como
mentirosos, esse mesmo Platão reservará em seus escritos um lugar
eminente ao mito como meio de exprimir ao mesmo tempo o que está além e
o que está aquém da linguagem propriamente filosófica (Vernant, 1992, p.
187).
60
Luc Brisson compreende que para Platão o mito apresenta dois defeitos, ou
seja,
é um discurso inverificável e freqüentemente assimilável a um discurso falso
(por razões de censura, quando ele se afasta de tal ou tal ponto da doutrina
defendido pelo filósofo). E é uma narração cujos os elementos se encadeiam
de maneira contingente, contrariamente ao discurso argumentativo cuja
organização interna apresenta um caráter de necessidade. (Brisson, 2002,
p. 77)
Apesar dos problemas apontados por Brisson, Platão não abandona os mitos
e nas suas obras ele faz uso proposital dos mitos tradicionais adaptando-os ao seu
sistema filosófico. Cabe aqui uma questão, Platão cria novos mitos ou apenas utiliza
os mitos tradicionais na sua filosofia ou nenhuma dessas alternativas, o que ele na
verdade
faz é apenas alegoria?
Não é possível dizer que Platão utiliza apenas um recurso alegórico e que o
mito quando aparece na sua filosofia é apenas alegoria. Ele utiliza uma variedade
de mitos tradicionais em sua filosofia e os redimensiona a partir da sua estrutura de
pensamento.
Para Brisson o mito em Platão tem uma dupla função, ou seja, uma prática e
uma teórica.
No plano da ética e da política, o mito conduz o indivíduo a obedecer às
regras morais e às leis estabelecidas pela persuasão, sem que seja
ne
cessário fazer intervir a coerção. No plano propriamente especulativo, os
mitos constituem o ponto de partida da reflexão sobre a alma e sobre as
61
formas inteligíveis, dois temas que irão se impor à tradição que os reterá
como característico da filosofia p
latônica (Brisson, 2002, p. 79).
Carlo Ginzburg defende a tese de que Platão faz uso político do mito. A
República
de Platão não tolera os poetas e mitólogos, pois estes, com suas
histórias, seriam responsáveis pela corrupção da juventude. Porém existe uma
função útil aos mitos, ou seja, o mito é a mentira destinada à manutenção do bem
comum. Mas somente os lideres da cidade podem mentir, a mais ninguém essa
prerrogativa é imputada. Portanto, aos lideres da cidade cabe mentir por causa dos
inimigos ou dos cidadãos, em benefício da própria cidade (Platão
apud
Ginzburg,
2001, p. 61).
Droz (1997) classifica o que ele chama de mitos platônicos sob três tipos
principais, ou seja, mitos alegóricos, mitos conjectura e mitos-expressão de um
a
convicção. Cada tipo particular do mito, segundo essa classificação, pode trabalhar
com determinados temas como por exemplo, a condição humana, a libertação e
ascensão espirituais, o destino das almas e outros temas. Os mitos de Epimeteu e
Prometeu são exemplos de mitos alegóricos Atlântida, o Operário Demiurgo , são
típicos exemplos de mitos- conjecturas e os mitos de Er, o Panifílio representam a
modalidade mitos
-expressão de uma convicção.
Depois de Platão, paulatinamente o mito vai se retirando do
centro
gravitacional da vida da elite intelectual da Grécia. E esse espaço vazio deixado
pelo
mythos
é ocupado pelo
logos
. Então a racionalidade ocupa a centralidade da
vida cultural grega e o mito fica apenas na periferia, parcialmente desprestigiado. O
m
ito se transforma em tudo aquilo que não pode de fato existir.
62
Esse processo de desvalorização e desmitologização do mito encontra no
judeu
-cristianismo um contexto favorável. Aí ele sofre mais um golpe e o seu
desprestígio acentua-se ainda mais. Eliade, ao analisar este processo de
desvalorização do mito pelo judeu-cristianismo, diz que o judeu-cristianismo, por
sua vez, relegou para o campo da falsidade ou ilusão tudo o que não fosse
justificado ou validado por um dos dois Testamentos (Eliade, 2000
A, p. 8).
2.5. O Mito no Discurso Antropológico
O discurso mítico se consolidou no ocidente como sendo, simplesmente, uma
ficção, uma mentira. O ocidente associa, quase que imediatamente o mito a toda
espécie de infantilidade que o ser humano foi capaz de produzir. O ser humano das
sociedades primitivas foi comparado a crianças, ou seja, a sua estrutura de
pensamento seria similar a das crianças. Por esse motivo, o mito era visto, por
grande parte dos primeiros antropólogos, como uma infantilidade, não sendo,
portanto, digno de qualquer consideração por parte dos saberes cientificamente
constituídos, a não ser como possibilidade de oferecerem elementos para que o
homem civilizado pudesse compreender a infância da humanidade e as suas
categorias eleme
ntares.
2.5.1. Antecedentes
Essa antropologia, que parte do estudo de estruturas sociais elementares
(sociedade primitivas) para o estudo de estruturas sociais complexas (sociedade
63
civilizada), tem como propósito identificar e mapear o processo evolutivo que parte
do simples para o complexo. A escola antropológica que adota essas concepções é
qualificada de evolucionista.
Para a antropologia evolucionista existe uma espécie humana idêntica, mas
que se desenvolve (tanto em suas formas tecno-econômicas como nos seus
aspectos sociais e culturais), de acordo com as populações, passando pelas
mesmas etapas, para alcançar o nível final que é o da civilização (Laplantine, 2000,
p. 65).
Surgem no século XIX as primeiras grandes obras antropológicas como A
Cul
tura Primitiva (Primitive Culture, 1871) de E. Tylor a Sociedade Antiga (
Ancient
Society,
1877) de L. Morgan, os primeiros volumes do Ramo de Ouro (The golden
Bough
, 1890 a 1915) de J. Frazer e outros.
A antropologia que se estrutura no século XIX abandona a imagem
dicotômica do bom e do mau selvagem cultivada no século anterior pelo
iluminismo. A partir do século XIX, o
selvagem
é designado de
primitivo
, ou seja, ele
é o ancestral do homem civilizado. Essa escola antropológica se preocupa
fundamentalment
e em compreender a nossa origem. Por isso é preciso buscar no
primitivo a origem elementar e simples da organização social e das estruturas
cognitivas das sociedades complexas e do homem civilizado. O século XIX foi um
século obcecado pela procura das origens. Buscava-se as origens de tudo o que se
conhecia, desde a linguagem até as espécies.
E. Tylor expressa esse posicionamento ao dizer que,
64
a etnografia [...] tem deveres graves, às vezes até mesmo penosos. Ela
deve trazer à luz o que a rude civilização da Antiguidade
passou
às nossas
sociedades sob a forma de superstições deploráveis e condenar estas
superstições a uma destruição certa. Esta obra, se é pouco agradável, é
indispensável ao bem-estar da humanidade (Tylor
apud
Detienne,1998, p.
45).
Tylor procurou, através de seu livro Cultura Primitiva (Primitive Culture
),
reconstruir a origem e a evolução das experiências e crenças religiosas. Para Tylor,
o animismo representava o primeiro estágio da religião, sendo sucedido pelo
politeísmo e este fi
nalmente pelo monoteísmo.
Com Malinowski, o projeto da antropologia distancia-se das pretensões
evolucionistas e se transforma em uma ciência da alteridade, cuja preocupação
principal é o estudo das lógicas particulares de cada cultura. As culturas diferen
tes
da cultura da civilização ocidental são respeitadas e valorizadas naquilo mesmo que
as caracteriza, ou seja, na coerência de seus sistemas internos. Malinowski acessa
as sociedades primitivas tendo como ponto de partida a concepção funcionalista,
rom
pendo desta forma com as escolas evolucionistas.
Malinowski rejeita a idéia de que o mito seja apenas uma especulação ociosa
e vaga sobre as origens do mundo e do homem. Para ele, o mito,
tal como existe em uma comunidade selvagem, isto é, em sua forma
primitiva viva, não é apenas uma história contada, e sim algo vivido. Não
possui a mesma natureza da ficção que podemos ler hoje em um romance,
mas é uma realidade viva, considerada como tendo realmente acontecido em
tempos primevos e que, desde então, continua a influenciar o mundo e os
destinos humanos (Malinowski, 1986, p. 159).
65
Os mitos, na perspectiva de Malinowski, influenciam todas as atividades
desenvolvidas pelo ser humano das sociedades primitivas e, além disso, exercem
um controle do comportamento moral e social. A presença do mito não é o
subproduto resultante de uma mentalidade primitiva, ou uma doença da linguagem.
O mito é um elemento estruturante das sociedades humanas e por isso exerce um
papel vital na constituição de toda forma de organização social, tanto nas
sociedades primitivas como nas sociedades civilizadas . Malinowski mostra que
o mito é um ingrediente vital da civilização humana; não é um conto
despretensioso, mas uma força ativa muito elaborada; não é uma explicação
intelect
ual ou uma fantasia artística, mas um esquema pragmático da sabedoria
moral e da fé primitivas (Malinowski, 1986, p. 160).
Todos os grandes antropólogos dedicaram-se ao estudo do mito como meio
de acessar à sociedade através de suas produções míticas.
2.5.2. Lévy
-
Bruhl
O antropólogo francês, Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939), no livro A
Mentalidade Primitiva (La mentalité Primitive,1922), quis encontrar uma estrutura
pré-lógica, ou seja, uma estrutura de pensamento, dominante entre os povos
primitivos , que ainda não havia alcançado a maturidade racional própria do
ocidente.
As representações coletivas têm suas leis próprias, que não podem ser
descobertas
principalmente se diz respeito aos primitivos
pelo estudo do
66
individuo branco, adulto e civilizado . Ao contrário, é, sem dúvida, o estudo
das representações coletivas e suas ligações nas sociedades inferiores que
poderá lançar alguma luz sobre a gênese de nossas categorias e de nossos
princípios lógicos (Lévy-
Bruhl
apud
Gerken, p. 4).
De acordo com esse raciocínio, é preciso procurar nas sociedades
inferiores a gênese de nossas estruturas mentais. Todavia, as estruturas
cognitivas dos primitivos não são acessíveis e compreensíveis a partir de nossas
categorias lógicas, ou seja, não podemos compreendê-las usando as estruturas
cognitivas do homem branco, adulto e civilizado . Portanto, estas estruturas
cognitivas dos povos primitivos não obedecem às leis da lógica que governam as
operações mentais do branco, adulto e civilizado . Este tipo de pensamento é
desprovido de dois princípios básicos da lógica ocidental herdados de Aristóteles,
ou seja, o princípio da identificação e o da contradição. Assim, é possível afirmar
que a mentalidade primitiva está situada em um patamar diferente aos
da sociedade
ocidental. Como o pensamento lógico do ocidente explicaria, por exemplo, o fato de
que um evento poder ser ao mesmo tempo A e B sem que isso implique em
nenhum problema. O raciocínio lógico não consegue explicar o mundo no qual este
tipo de contradição não representa nenhum tipo de impedimento obstrutivo da
atividade do pensamento.
Lévy
-Bruhl, no final de sua vida, reconhece a falsidade de suas teses sobre o
prelogismo entre os primitivos. Em suas cartas, Lês carnets de Lucien Lévy-
Bruhl
(1949
), ele renuncia ao tripé conceitual que inclui as noções de prelogismo, de
misticismo e participação.
67
2.5.3. Lévi
-
Strauss e a Análise Estrutural do Mito
O estudo dos mitos representa para Lévi
-
Strauss (1908
-
) a possibilidade de
compreensão de uma lógica universal presente no pensamento dos povos
primitivos. Em seu artigo inaugural sobre o estudo dos mitos, intitulado A Análise
Estrutural dos Mitos, Lévi-Strauss aplica o método estruturalista ao estudo do mito
de Édipo. Entretanto, a sua maior contribu
ição a este campo de estudo se dará com
as investigações sistemáticas das mitologias sul-americanas. Ele publica três
volumes nos quais analisa mais de 500 mitos americanos. Ele chamará este obra
de
Mythologiques
.
No seu artigo inaugural Lévi-Strauss parte de três postulados fundamentais
para análise do mito:
1)
Se for possível afirmar que os mitos têm sentidos, estes não dependem
dos elementos que são inseridos na sua composição, mas da maneira
como eles se combinam;
2)
O mito comunga do mesmo estatuto da ordem pertencentes a linguagem,
todavia, a linguagem mítica apresenta características específicas;
3)
A natureza da linguagem mítica não se enquadra dentro das categorias
da lingüística; ela extrapola a linguagem habitual e apresenta elementos
constitutivos idiossincráticos mais complexos do que a nossa linguagem
do cotidiano.
A primeira tese parte da afirmação de que o mito possui um ou mais sentidos
e este sentido é dado nas relações entre os elementos constitutivos da linguagem
68
mítica. Essas unidades constitutivas são os mitemas e estes são normalmente
compostos por frases de valor antagônico e que formam um feixe de relações.
como feixes é que tais relações se podem usar e combinar de modo a produzir um
sentido (Lévi-
Strauss, 1985 p. 242).
O segundo postulado reconhece nos
mitemas
as unidades constitutivas da
linguagem do mito, assim como a linguagem é constituída de unidades como os
fonemas, morfemas e semantemas, a linguagem mítica possui nos
mitemas
a sua
unidade constitutiva básica, chamada por Ricoeur de unidades constituintes
vastas (Ricoeur, 2000, p. 94). Para Ricoeur,
o uso de tal hipótese, as unidades vastas, que são, pelo menos, do mesmo
tamanho que a frase e que, quando agregadas, formam a narrativa própria
do mito, prestar-
se
-ão a ser tratadas segundo as mesmas regras que se
aplicam às mais pequenas unidades conhecidas pela lingüística (Ricoeur,
2000, p. 94).
Para Lévi-Strauss, no processo de compreensão do mito precisamos levar
em consideração os aspectos diacrônico e sincrônico. Para compreender o texto
mítico não basta que se efetue uma leitura diacrônica deste, ou seja, página por
página, da esquerda para a direita, é necessário, todavia, que se leve me
consideração o aspecto sincrônico, ou seja, o texto precisa ser lido de cima para
ba
ixo de acordo com um outro eixo. Se o intento for apenas narrar o mito basta
permanecer na dimensão diacrônica, entretanto, se o objetivo visa compreendê-
lo
é preciso considerar essa outra dimensão, a sincrônica.
69
Como as unidades constitutivas do mito formam feixes de relações e esses
feixes se combinam adquirindo uma função significante, é preciso então, ao
interpretar o mito efetuar o agrupamento desses feixes de relações para que o texto
mítico possa ser analisado a partir da dimensão sincrônica. Nesse processo de
agrupamento as relações que pertencem ao mesmo feixe são disposta em uma
mesma coluna, de acordo com a sua localização no texto, sem deixar de levar em
conta a seqüência horizontal deste texto. Esse agrupamento dos feixes de relações
procede mais ou menos como se fossemos agrupar em uma coluna em forma de
quadro todos os números 1, 2, 3, e assim sucessivamente, em uma seqüência de
números inteiros dispostos em uma forma de organização diacrônica do seguinte
tipo; 1, 2, 4, 7, 8, 2, 3, 4, 6, 8, 1,
4, 5, 7, 8, 1, 2, 5, 7, 3, 4, 5, 6, 8.
1 2 4 7 8
2 3 4 6 8
1
4 5 7 8
1 2 5 7
3 4 5 6 8
A utilização deste método de análise do mito dispensa uma leitura
simplesmente diacrônica, neste caso proceder-
se
-ia a leitura primeiramente das
colunas da esquerda para a direita uma após a outra.
Partindo desse método, Lévi-Strauss analisa o mito de Édipo. Ele adota um
esquema
no qual as unidades constitutivas do mito são agrupadas formando feixes
de relações.
70
I II III IV
Cadmo procura
sua irmã Europa,
seduzida por Zeus
Cadmo mata
o dragão
Os Spartoi
exterminam
-
se
mutuamente.
Lábdacos (pai
Édipo desposa de Laio)=coxo
Jocastr
a, sua mãe.
Laio (pai de
Édipo)=c
anhoto;
Édipo=pés inchado
Édipo mata
seu pai Laio.
Édipo imola
Antígona enterra a esfinge.
Poliníces, seu irmão,
violando a proibição
Etéocles mata seu
irmão Polinice
Na I coluna estão agrupados os fatos vinculados à relações exageradas ou
supervalorização do parentesco
. Na II coluna, a relação é inversa em comparaçã
o a
I coluna. Tem-se uma relação de subvalorização ou depreciação do parentesco
.
A III coluna descreve fatos relacionados a assassínios ou destruição de monstros
ctônicos ou criaturas anômalas. a IV coluna pontua aspectos igualmente
anômalos que pers
istem no homem, pés inchados e coxos por exemplo.
Partindo de uma análise estrutural, Lévi-Strauss, reconhece dois eixos
fundamentais presentes no mito de Édipo. De um lado, as relações de parentesco
e, do outro, os fatos vinculados à autoctonia do ser humano. As colunas I e II estão
71
ligadas às relações de parentesco enquanto as colunas III e IV referem-se à crença
ctônica de que o ser humano nasce da Mãe
-
Terra.
O mito de Édipo segundo Lévi-Strauss lida exatamente com esse
antagonismo fundamental, ou seja, a crença na autoctonia do ser humano, de um
lado, e o fato dos seres humanos nascerem da união entre um homem e uma
mulher, do outro lado. O mito é então a tentativa apresentada pelo grupo social,
visando a superação desse antagonismo fundamental. Lévi-Strauss a esse respeito
escreve explica:
O que significa, pois, o mito de Édipo assim interpretado à americana ? ele
exprimiria a impossibilidade em que se encontra uma sociedade que
professa a crença na autoctonia do homem [...] de passar, desta teoria, ao
reconhecimento do fato de um de nós nasceu realmente da união de um
homem e de uma mulher. A dificuldade é insuperável. Mas o mito de Édipo
oferece uma espécie de instrumento lógico que permite lançar uma ponte
entre o problema inicial
nascemos de um ou de dois
e o problema
derivado, que se pode formular, aproximadamente: o mesmo nasce do
mesmo, ou do outro?
(Lévi
-
Strauss, 1985, p. 249).
Os
mitemas
presentes na coluna III indicam para a superação dessa
contradição, e isso acontece quando Cadmo mata o dragão e Édipo imola a
Esfinge. Estes animais anômalos representam aspectos ctônicos, portanto, vencê-
los significa a superação dessa crença. Porém as unidades constitutivas da coluna
IV ainda apontam para a persistência elem
entos ctônicos presentes no ser humano.
Édipo por exemplo tem pés inchados por que quando nasceu foi amarrado em uma
estaca presa ao solo. Verifica-se assim a persistência da origem autóctone do ser
72
humano. Para Lévi-Strauss quando a contradição é real ela não é superada ou
resolvida pelo mito, como bem assinala a coluna IV.
Existe, para Lévi-Strauss uma lógica universal primitiva que se manifesta no
complexo mitológicos dos povos primitivos. Essa lógica universal é diferente da
lógica do tipo racional da sociedade ocidental cientificista, todavia, é na tentativa de
solucionar as contradições que se apresentam ao grupo social que essa lógica não-
racional se fundamenta, mesmo se a superação destes paradoxos não sejam
concretamente resolvidos, pois, essa antinomia fundamental é diluída dentro de um
processo dialético que conta com a presença operacional de termos mediadores.
Em relação a isso Lévi
-
Strauss afirma que:
Todos os paradoxos concebidos pelo espírito nativo, nos mais diversos
planos
geográficos, econômicos, sociológicos e até cosmológicos
são,
em última instância, assimilados àquela menos óbvio e, no entanto, tão real
paradoxo que o casamento com a prima matrilateral tenta resolver mas
fracassa. Mas o fracasso é admitido em nossos mitos e reside,
precisamente, a sua função (Lévi-
Strauss
apud
Leach 1973, p. 57).
A oposição Natureza-Cultura pode, por exemplo, ser representada de uma
outra maneira através de outros pares opostos como o alto e o baixo, o leste e o
oeste, céu e a terra, para citar alguns exemplares, os quais estão presentes na
lógica binária do pensamento primitivo.
Os termos mediadores são necessários para harmonizar essas polaridades
absolutas. O par terra-céu, por exemplo, se estão muito próximos pode representar
um risco da terra ser queimada pelo sol, mas por outro lado, sem esse cozimento
73
pode acontecer das coisas apodrecerem. O fogo da cozinha é o elemento mediador
introduzido entre a polaridade céu-
terra.
Lévi
-Strauss, rejeita a tese defendida por Lévy-Bruhl, segunda a qual não
existem funções lógicas entre os povos primitivos . Para Lévi-Strauss, o
pensamento dos povos primitivos é tão lógico quanto o pensamento do homem
civilizado , porém a natureza lógica entre os primitivos é inconsciente e, por outro
lado, a lógica científica é de natureza consciente. A racionalidade entre os
primitivos pode ser encontrada na estrutura de seus mitos, que têm como
finalidade, segundo Lévi-Strauss, ordenar, classificar e dar sentido aos fenômen
os
sociais. Talvez descobriremos um dia que a mesma lógica se produz no
pensamento mítico e no pensamento científico, e que o homem sempre pensou do
mesmo modo (Lévi-Strauss, 1985, p. 256). Então não se pode, simplesmente,
acusar os povos primitivos de irracionalidade, posto que os mitos são a prova
evidente da presença de uma estrutura lógico-formal que torna possível a estes
povos estabelecer relações ordenadas, inteligíveis e classificatórias da natureza e
da sociedade.
Lévi
-Strauss afirma que a falsa antinomia entre mentalidade lógica e
mentalidade pré-lógica havia sido superada. Afirma também que o pensamento
selvagem é lógico, no mesmo sentido e da mesma forma que o nosso, mas como o
é apenas o nosso quando se aplica ao conhecimento do universo a que reconhece,
simultaneamente, propriedades físicas e propriedades semânticas (Lévi-
Strauss,
1970, p. 304).
O pensamento selvagem não é o pensamento dos selvagens e sim o próprio
pensamento que é selvagem, o que o distingue do pensamento domesticado típi
co
74
do racionalismo. O pensamento selvagem não é privilégio dos povos primitivos ,
assim como a lógica racional o é privilégio do ser humano moderno. O
pensamento primitivo pode ser identificado no homem civilizado por meio de suas
expressões artística
s, principalmente através da música. Neste sentido Lévi
-
Strauss
afirma, [...] que de todas as artes, parece-me que a música é a mais próxima do
mito, ela se desenrola no tempo. Mas simultaneamente, a música, como o mito
procura desmentir o tempo, apresentando como uma totalidade fechada sobre si
mesma (Lévi-Strauss, 1970, p. 142). Do outro lado, o pensamento racional das
sociedades industriais modernas também encontra uma contrapartida no
pensamento primitivo, perceptível principalmente através da confecção de
ferramentas e o domínio do fogo, só para citar dois exemplos.
2.6. A Mitologia como Ciência dos Mitos
Na primeira metade do século XVIII, o padre jesuíta J. F. Lafitau realizou
estudos que estabelecia um paralelo entre os mitos gregos e aquilo que ele
chamava de supertições dos indígenas do Novo Mundo. Lafitau percebeu
semelhanças entre as narrativas míticas dos gregos com aquelas dos primitivos
das Américas. Essas semelhanças produziram um desconforto na elite intelectual
européia, posto que não era nenhum pouco razoável colocar em uma mesma
dimensão os gregos e os povos primitivos . Como explicar, então, o fato de uma
civilização, que alcançou o mais alto patamar da racionalidade, conviver com
expressões tão aberrantes como as do mito? A estratégia para salvar o mito grego
e responder a esta questão continuava sendo aquela proposta pelo alegorismo.
75
Porém, o alegorismo não gozava de tanto prestígio, o que deixava o mito grego,
no século XVIII, em situação embaraçosa. Embaraçamento esse provocado por
causa dessa possível semelhança entre a mitologia das sociedades primitivas e a
mitologia da Grécia antiga.
A polêmica levantada por Lafitau alimentou as disputas sobre os mitos, que
se tornaram, na segunda metade do século XIX, objeto de uma ciência, ou seja, a
ciência dos mitos.
Compreendemos o conceito de mitologia como sendo um conjunto de mitos
de uma determinada comunidade ou grupo social nos quais é possível observar
série de práticas e narrativas, assim como enunciados ticos e relatos,
tr
ansmitidos a partir da perspectiva de uma tradição. Por outro lado, mitologia é
uma modalidade de discurso que se dedica a efetuar uma análise sobre o conjunto
dessas narrativas, sendo, portanto, uma vertente do saber sistematizado que
estuda as origens, e os posteriores desdobramentos do discurso mítico, assim
como também quer compreender a natureza dos mitos a partir de si mesmo ou em
sua relação com outros discursos.
Três escolas se destacaram, nesta época, em suas pesquisas sobre os
mitos: a escola de mitologia comparada, a escola antropológica inglesa e,
finalmente, a escola alemã de filologia histórica.
2.6.1. Escola de Mitologia Comparada
Max Müller publicou em 1856 os Ensaios de Mitologia Comparada (Essays in
Comparative Mythology). Esse é o primeiro texto importante sobre religião
76
comparada que surge no século XIX . Max Müller introduz no campo de estudo da
religião a noção de que os mitos são resultante de uma patologia da linguagem. Na
verdade, é possível explicar a monstruosidade da mitologia, de acordo com Max
Müller, se se considerar que houve um desvio patológico no desenvolvimento da
linguagem, ou seja, a primeira linguagem se torna parasitária de um elemento que
lhe é totalmente estranho e que provoca um quadro sintomático que é express
o nas
produções mitológicas. Müller assim se expressou sobre a mitologia dizendo que
esta,
tornou-se, de fato, uma questão de psicologia, e, como nossa mente torna-
se objetiva para nós principalmente através da linguagem, tornou-se numa
questão da Ciência da Linguagem. Isto explica o por que... chamarei [o mito]
uma Doença da Linguagem e do Pensamento... A linguagem e o pensamento
são inseparáveis, e... uma doença da linguagem é portanto a mesma coisa
que uma doença do pensamento... Representar o deus supremo cometendo
todo tipo de crime, sendo enganado pelos homens, ficando irado com a sua
esposa e violento com os seus filhos, é com certeza prova de uma doença
enfermidade, de uma condição incomum de pensamento, ou, para falar mais
claramen
te, de verdadeira loucura...É um caso de patologia mitológica...
(Müller
apud
Cassirer, 1994, p. 182).
O helenista Pierre Vernant diz tacitamente que para a Escola de Mitologia
Comparada;
mitologia é discurso patológico que se introduz e se desenvolve na árvore
da linguagem, cujo tronco se enraíza na experiência original dos grandes
fenômenos cósmicos como o retorno regular do sol ou do desencadeamento
da tempestade (Vernant, 1992, p. 193).
77
A Escola de Mitologia Comparada visa principalmente explicar o elemento
estúpido
,
selvagem
e
absurdo
na mitologia (Detienne, 1998, p. 17). Paul Decharme
parte do mesmo princípio na sua definição do objeto científico da mitologia, pois
para ele o objeto da ciência dos mitos são as fábulas monstruosas, repugnantes e
imorais (Detienne, 1998, p. 17).
2.6.2. Escola Antropológica Inglesa
A escola antropológica inglesa é representada principalmente por E. B. Tylor,
Andrew Lang e J. G. Frazer. Estes estudiosos não estavam preocupados com
questões de ordem lingüística quando pesquisavam sobre o mito, pois para eles o
mito é a expressão de um estágio evolutivo da humanidade. O mito seria a infância
do ser humano. Não nos deteremos nessa escola, porque já falamos sobre a
perspectiva evolucionista anteriormente. Vale registrar que essa escola de
antropologia exerceu grande influência no estudo do mito no século XIX, apesar de
não se aceitar mais os pressupostos adotados pelo evolucionismo antropológico
pela antropologia contemporânea.
2.6.3. Escola de Filologia Histórica
A escola de filologia histórica adota uma metodologia estritamente positivista
com vistas a estabelecer um conhecimento o mais exato possível a respeito da
origem e do desenvolvimento de um ou de vários mito. O método filológico histórico
78
se propõe a responder inúmeros questionamentos sobre o mito e a sua natureza,
como, por exemplo, de onde vem, onde apareceu, quando se constituiu, de que
formas sucessivas se revestiu, o que se pode saber de sua primeira versão
confirmada, o que deve ser considerado o seu arquétipo? (Vernant, 1992, p. 195-
6).
O foco de interesse do método filológico consiste basicamente em realizar
uma análise voltada para o aspecto cronológico do mito, ou seja, todo o
desenvolvimento e formas de expressão que o mito apresentou no transcorrer de
sua história. Um outro aspecto considerado por este método é a sua preocupação
em realizar um estudo tipográfico do mito. Além desses dois aspectos acima
mencionados, o método filológico não se interessa pela questão do sentido que um
mito possa apresentar. Está fora de seu interesse toda e qualquer preocupação
pelos sentidos que um mito possa exprimir.
Além disso, o horizonte mítico é assimilado à história, pois para essa escola
é possível descortinar acontecimentos históricos por trás de eventos míticos. Neste
ponto, Vernant considera que, se o arquétipo de um mito aparece em tal lugar, em
tal momento, supor-
se
que ele traduz tal acontecimento histórico: migração de
povos, conflito entre cidades, derrubada de dinastias etc (Vernant, 1992, p.
196).
Neste aspecto, a filologia reedita o evemerismo.
Afinal em que consiste o discurso científico sobre o mito? Existe possibilidade
de se construir um discurso rigoroso e que obedeça às exigências científicas ao
falar do mito? É possível uma ciência do
mito?
A mitologia é a primeira tentativa de racionalização dos mitos e surge na
Grécia antiga. Hesíodo com a sua
Teogonia
foi o primeiro a sistematizar
79
racionalmente os mitos gregos. Paradoxalmente, é Hesíodo, agitado pelos
pesadelos do homem grego, quem decreta o declínio da antiga mitologia,
precisamente por se dedicar, na
Teogonia,
a um trabalho de sistematização
(Detienne, 1992, p. 210).
A mitologia só se tornou possível em função do aparecimento do logos. Todo
discurso mitológico produzido pelos logógrafos gregos, os novos contadores de
história, no final do século VI, é um discurso a partir da razão. Ele está fundado na
razão e se faz compreender por meio dela. A escrita é o instrumento pelo qual os
logógrafos enclausuraram o mito; eles são os escribas da tradição. Considerando o
fato de a escrita necessitar de um mínimo de sistematização para transmitir uma
mensagem, podemos assim dizer que ela contém em si o princípio da
racionalização. À sua maneira, o mitólogo Hesíodo é tão racional quanto os
filósofos de Mileto (Detienne, 1992, p. 211).
2.7. Novas Perspectivas no Estudo Sobre o Mito
A compreensão do mito, na segunda metade do século XIX, passa por uma
renovação e isso se confirma com o advento de novas teorias. O mito passa por um
processo de reabilitação. São três as vertentes principais que promovem a
reabilitação do mito no mundo ocidental: a vertente simbolista, a funcionalista e a
estruturalista
.
Para as teorias simbolistas, que têm no filósofo alemão F. Schelling o seu
primeiro idealizador, o mito não é uma construção alegórica e sim tautegórica. A
mitologia deve ser entendida tal qual se exprime, como se nada houvesse sido
80
subentendido, como se ela nada dissesse senão o que diz. A mitologia não é
alegórica, ela é tautegórica (Schelling
apud
Crippa, 1975, p. 61).
O filósofo alemão, na última fase de seu pensamento, estabeleceu uma
divisão da filosofia, ou seja, ele concebe uma filosofia negativa e uma filosofia
positiva. A filosofia negativa é aquela fundamentada na razão, enquanto a
filosofia
positiva, além da razão, também se fundamenta na religião e na revelação. É este
último Schelling que início à reabilitação do mito, tendo como princípio norteador
o enfoque simbolista.
Ernest Cassirer adota os pressupostos do simbolismo ao realizar o seu
estudo sobre o mito. Cassirer parte da perspectiva segundo a qual o homem é um
animal symbolicum. O ser humano tece verdadeiros sistemas simbólicos e neles
edifica a sua existência, como por exemplo, a ciência, a linguagem, o mito, a arte, a
religião, etc. O mundo que existe é o mundo do símbolo; é nele que o ser humano
vive. A realidade pura está sobrepujada por um tecido simbólico que a reveste e
mediatiza todas as relações do ser humano com o mundo. Não estando mais num
universo meramente físico, o homem vive em um universo simbólico (Cassirer,
2001, p. 48)
Cassirer compreende que o ser humano, diferentemente dos animais,
constrói para si um sistema simbólico que lhe abre o caminho para a civilização.
Enquanto os animais estão circunscritos a um círculo fechado em sua relação com
o mundo, composto, basicamente por um sistema receptor e um sistema efeituador,
o mundo animal reduz-se a este círculo funcional, que consiste em um sistema de
estímulos e respostas, sem indicar para uma abertura que sinalize para além das
possibilidades do que é dado a priori, ou seja, o filogenético. O máximo que os
81
animais conseguem realizar fora do seu círculo funcional é uma espécie de
inteligência prática e que pode ser verificada empiricamente. O modelo pavlov
iano
de análise, S
R representa bem esse círculo funcional do mundo animal.
No mundo humano introduz-se um elemento novo, o pensamento, que é
responsável pela ruptura das respostas automáticas que ocorrem no mundo animal.
O círculo funcional humano não evoca necessariamente uma resposta automática e
que corresponda aquele estímulo específico, apesar desse fenômeno acontecer em
uma faixa restrita do comportamento humano, como por exemplo nos
comportamento reflexos. Diante da apresentação de um estímulo luminoso que
incida diretamente sobre o olho, este eliciará uma resposta automática e invariável
de dilatação da pupila, tanto no ser humano como no animal.
O mundo humano, mesmo sendo constituído por uma pequena faixa de
comportamentos do tipo reflexos, não se reduz a estes comportamentos. Eles
tendem a diminuir a sua incidência à medida que as etapas do desenvolvimento
psico
-social se concretizam. É verdade, por exemplo, que em um recém nascido
são predominantemente superiores os comportamentos de natureza reflexa. O seu
repertório comportamental, usando uma linguagem behaviorista, é mínimo e
obedece ao modelo S
R, onde o S indica o estímulo e o R a resposta
comportamental. À medida que a criança é inserida no universo simbólico humano,
este mundo do reflexo tende a reduzir a sua influência no comportamento humano.
Não é correto tentar compreender o ser humano a partir do paradigma S
R como
tentaram fazer os behavioristas metodológicos.
O mundo humano é constituído basicamente pelo universo do símbolo. É
o
símbolo que permite o acontecer do milagre humano. Cassirer compreende que
82
entre o sistema receptor e o efetuador, que são encontrados em todas as espécies
de animais, observamos no homem um terceiro elo que podemos descrever como
sistema simbólico. Essa nova aquisição transforma o conjunto da vida humana
(Cassirer, 2001, p. 47). Cassirer continua a sua análise da importância do mbolo
quando diz que:
o homem não pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente; não
pode
vê-la, por assim dizer, frente a frente. A realidade física parece recuar
em proporção ao avanço da atividade simbólica do homem por assim dizer,
ele não pode mais vê-la face a face. A realidade física parece retroceder à
medida que a atividade simbólica do homem. Em vez de lidar com as
próprias coisas o homem está, de certo modo, conversando constantemente
consigo mesmo. Envolveu-se de tal modo em formas lingüísticas, imagens
artísticas, símbolos míticos ou ritos religiosos que não consegue ver ou
conhece
r coisa alguma a não ser pela imposição desse meio artificial
(Cassirer, 2001, p. 48-
9).
Com a adoção do postulado que preconiza o ser humano como um
animal
symbolicum,
Cassirer rejeita a primazia da razão como qualificativo absoluto que
diferencia o ser humano dos demais animais. A racionalidade é parte de uma
totalidade, portanto, não se deve trocar a parte pelo todo, pois a razão é estrutura
integrante ou fundante de um sistema simbólico particular. É a racionalidade que
estrutura o pensar científico; todavia, é a ciência ela própria fundamentalmente um
sistema simbólico.
Para Cassirer (2001, p. 123-4), as teorias científicas que tentam
compreender o mito são portadoras de grandes dificuldades, pois o mito não se
83
deixa engessar por nenhuma teoria devido a sua natureza e idiossincrasias. O mito
não é teórico e não se deixa compreender por uma construção teórica e racional. As
categorias racionais das quais dispomos não conseguem acessar a natureza do
mito em suas particularidade. O mito não pode ser um objeto científico, posto que
ele não se deixa compreender pelo viés da razão e sendo a razão peça estruturante
de um sistema simbólico específico, deduzimos então que toda tentativa de
compreensão do mito, a partir de construtos racionais, é na verdade um
sobrepujamento de um sistema simbólico sobre um outro sistema simbólico.
Quando tentamos dizer o que é o mito, e o fazemos a partir da racionalidade, o que
estamos de fato fazendo é atestando a verdade da ciência em outros domínios, ou
seja, em outros sist
emas simbólicos.
O mito deve ser compreendido a partir da perspectiva simbolista, dentro de
seu próprio sistema de referência, dentro de sua própria dinamicidade. Não convém
compreendê
-lo a partir de um outro sistema simbólico. Assim como o explicamos
a
ciência partindo do mito, apesar da falsa crença de Tylor e Comte, que viam na
mitologia a ciência dos primitivos ou o nascedouro da ciência moderna, também
não podemos explicar o mito partindo da ciência.
As tentativas de compreensão do mito alcança um campo de estudo muito
vasto, passando pela filosofia, psicologia, psicanálise, antropologia, lingüística entre
outros saberes. Estes saberes, que reivindicam para si a verdade do mito, estão
todos conectados a um discurso científico. Não existe, dentre estes saberes, uma
verdade do mito dita a partir do mito. O que se são verdades fabricadas dentro
de outros discursos e que o normalmente reducionistas. O mito não diz; quem diz
são os discursos psicanalistas, psicológico, antropológico, lingüísticos e
outros.
84
Para a psicanálise de Freud, por exemplo, as produções míticas estão relacionadas
a aspectos psicológicos como a sexualidade. Este é um exemplo típico de análise
reducionista do mito. Na psicanálise, o mito não tem voz; este está relacionado a
conteúdos do inconsciente como bem demonstra a análise que Freud realizou do
mito de Édipo.
Os simbolistas, dentre os quais se incluem Cassirer, Paul Ricoeur, Van der
Leeuw, W.F. Otto, Mircea Eliade e Jung, reivindicam o direito do mito de dizer,
embora, com diferenças acentuadas e divergências em suas abordagens. Para
eles, é preciso escutar o que o mito diz e isso é possível se de fato deixarmos
que ele efetivamente diga.
A partir da perspectiva simbolista, o mito adquire o status de uma linguagem
expres
siva e rica em conteúdos, porém diferente da linguagem conceitual da
ciência. Pierre Vernant observa que a reflexão sobre a simbólica do mito como
modo de expressão diferente do pensamento conceitual é um dos componentes
mais importantes da interrogação m
oderna sobre o sentido e o alcance das criações
míticas (Vernant, 1992, p. 200).
Jean Pierre Vernant utiliza a racionalidade, através dos seus construtos, o
pensamento lógico, os conceitos precisamente definidos, como pontos de referência
para compreender algumas abordagens que têm como objeto o símbolo. O aparato
conceitual da ciência serve como linha divisória ou margem fronteiriça para situar o
símbolo. os que colocam o mbolo abaixo do conceito e do signo e aqueles
que o situam acima da linha divisória constituída pela racionalidade. O primeiro
grupo é ilustrado pela teoria psicanalítica, pois para a psicanálise o símbolo está
conectado as pulsões inconscientes, sendo o símbolo a expressão sintomática de
85
desejos inconscientes. A análise dos sonhos é um exemplo de como a psicanálise
opera sobre símbolo. O mbolo é a linguagem com a qual os nossos desejos
inconscientes se expressam. Estes possuem uma estreita vinculação com as
pulsões libidinais. No segundo grupo encontram-se estudiosos como Jung, Mircea
Eliade, W.F. Otto, Van der Leeuw, Cassirer e outros. Para eles, a simbólica do mito,
por exemplo, situa-se acima da linha divisória da racionalidade e escapa a toda
tentativa de racionalização, o que não quer dizer que o símbolo não possa ser
conhe
cido, quando na verdade ele pode, entretanto, ser pensado , reconhecido
através das formas de expressão onde se inscreve a aspiração humana ao
incondicionado, ao absoluto, ao infinito, à totalidade, [...] à abertura ao sagrado
(Vernant, 1992, p. 202).
O pensar através dos símbolos não significa a apropriação dos símbolos
pelas categorias racionais, pelo contrário, é antes uma apreensão direta do mistério,
sem uma submissão prévia a uma análise crítica e radicalmente racionalizada. O
símbolo está para além do conceito, porém, isso não inviabiliza que se apreenda os
sentidos do mundo e de sua própria existência.
Tanto para os que situam o símbolo abaixo da racionalidade como para os
que o colocam acima deste quadro de referência, este continua sendo definido
como flutuante, difuso, indeterminado, complexo, sincrético. Ao ideal de
univocidade do signo ele contrapõe sua polissemia, sua aptidão inesgotável a se
carregar de novos valores expressivos (Vernant, 1992, p. 202).
86
2.7.1. Ricoeur e a Herme
nêutica dos Símbolos
O filósofo francês Paul Ricoeur propõe uma filosofia que pense a partir do
símbolo. Para ele, o símbolo o que pensar. Na perspectiva ricoeuriana, o
símbolo é um espaço no qual e através do qual se pensa racionalmente. Existe, em
Ricoeur, uma tentativa de conciliação da razão com o mbolo, sem prejuízo para
nenhuma das partes.
Ricoeur constrói uma hermenêutica dos símbolos, apesar desta construção
corresponder à primeira fase do pensamento filosófico de Ricoeur é, sem dúvida,
uma contribuição fundamental para uma aproximação dos textos sagrados e
míticos. A hermenêutica de Paul Ricoeur é certamente uma hermenêutica do
símbolo. É também, secundariamente uma hermenêutica do mito (Franco, 1995, p.
53). É nesta primeira fase que Ricoeur escreve o livro A Simbólica do Mal (La
Symbolique du Mal, 1960) no qual mostrará a relevância de uma hermenêutica
fundamentada na expressão simbólica do homem, especialmente os símbolos
sagrados. O símbolo, como diria Ricoeur, a pensar e esse pensar se
concretiza através de uma filosofia hermenêutica, cuja tarefa consiste em decifrar a
natureza polissêmica do símbolo e ainda atuar como arbítrio do conflito que
envolve métodos de interpretação díspares, todos oriundos da riqueza infinita e
multif
acetada dos símbolos.
Para Abrahão C. Andrade, em Ricoeur é possível, vislumbrar uma interação
entre símbolo e pensamento reflexivo, sem contudo renunciar ao rigor característico
da racionalidade ocidental (Andrade, 2000, p. 42). Posto que este filósofo
se
preocupa demasiadamente em construir um sistema filosófico que considera a
87
preciosidade que é a linguagem simbólica, capaz, dentre outras coisas de nos
conectar à riqueza do mundo da cultura a atividade do pensamento filosófico.
Ricoeur usa o símbolo como um recurso fundamental à sua reflexão. Estudando o
símbolo, investiga o próprio homem e desvela a sua intimidade. Para ele, o símbolo
é
locus
privilegiado para iniciar a reflexão filosófica e se serve desta fonte pré-
filosófica sem nenhum constrangimento (Franco, 1995, p. 54).
A razão não sai empobrecida dessa experiência com o mundo da cultura e
do símbolo como se poderia imaginar, apesar da razão iluminista ter como um dos
seus propósitos básicos atacar e invalidar as expressões do mito e desqualificar as
dimensões do imaginário. O destronamento da razão de sua condição de rainha
intocável suscita questionamentos e tomadas de posições, a partir das quais se
percebe a impossibilidade de um sujeito pensar para além das determinações do
seu
ethos
, ou seja, pensar a partir de categorias apodíticas. Assim sendo, o foco
desta compreensão transforma o símbolo em um espaço de reflexão filosófica
capaz de decifrar e apropriar-se do sentido. Esse sentido se reatualiza em novas
situações, abrindo novas possibilidades de interpretações dentro de uma tradição
interpretante, sem, contudo, se perder na imensidão e variedade que é própria das
expressões simbólicas. Para Sérgio Gouvêa Franco, na perspectiva de Ricoeur, a
tarefa da filosofia é refletir sobre os sentidos e os significados desse material
(símbolos). Crê-se que todo material simbólico, ainda que não passe pelo crivo do
rigor lógico, tem sentido, tem muito sentido (Franco, 1995, p. 57)
.
Ricoeur reconhece três zonas de emergência dos símbolos: a do sagrado, a
psíquica e a poética. O livro La Symbolique du Mal analisa especialmente os
88
símbolos da zona de emergência constituída pelo sagrado, com um enfoque voltado
especificamente para a simbólica do mal e seus mitos dentro da tradição ocidental.
O desafio em
preendido por Ricoeur é certamente resgatar o valor do símbolo
sem, contudo, abrir mão da racionalidade, porém, a proposta ricoeuriana não é de
submissão total aos ditames da razão, mas a de repensar a racionalidade a partir
de uma nova chave, que seja capaz de articular e se envolver com a dimensão
simbólica sem, no entanto, se perder no emaranhado mundo dos símbolos. Os
símbolos ofertam elementos sobre os quais é possível pensar, mesmo
considerando a falta de habilidade da filosofia em lidar com os elemen
tos
constitutivos do símbolo, o que poderia levá-la a cometer abusos ou violência ao
símbolo.
Ricoeur exemplifica esta questão quando nos fala da problemática do mal a
partir da concepção teológica das Igrejas da Reforma, que em suas confissões de
apregoam que toda a descendência de Adão está infectada pela doença
contagiosa que é o pecado original, vício hereditário. Segundo Ricoeur, nas
palavras pecado originário, vício hereditário, opera-se uma mudança de nível,
passando
-se do plano da pregação para o teológico, do domínio do pastor para o
de doutor. Concomitantemente a esta mudança de nível, observa-se também uma
mudança no domínio da expressão, pois o cativeiro era uma imagem, uma
parábola; o pecado originário quer ser um conceito. Ricoeur acentua, porém, que o
conceito, considerado em si mesmo não é bíblico, mas remete a uma tentativa de
explicação por meio do aparelho racional, que tenta refletir sobre a significação
própria do conteúdo da confissão e da pregação, e a partir daí reencontrar as
inten
ções do conceito, que estão subjacentes naquilo que o conceito deixa escapar,
89
ou seja os elementos significativos ou simbólicos. Dito de outra forma, poderíamos
afirmar que a tentativa de busca da significação representa de alguma maneira um
ato de desconstrução do conceito e sobre os seus escombros encontrar-
se
o
sentido (Ricoeur, 1988).
A tentativa de desfazer-se ou destruir o conceito apresenta-se de certa forma
de maneira paradoxal em Ricoeur. Dizíamos que a filosofia de Ricoeur representa
um novo projeto da racionalidade, pois ele quer que a razão pense também a partir
do símbolo, e se a razão vai pensar a partir de uma lógica do símbolo, não é
razoável que se destrua o seu instrumento básico de análise do mundo no qual
opera a racionalidade, que é o conceito. Porém, Ricoeur prossegue dizendo que é
somente por meio da destruição do conceito que se vai compreender a intenção do
sentido, por exemplo, o conceito de pecado original é um falso saber e como tal
deverá ser eliminado, porém ele nos assegura que o falso saber é verdadeiro
símbolo, que ele pode transmitir. Desta maneira, Ricoeur acredita estar
redimensionando o símbolo dentro de uma lógica racional.
O projeto filosófico de Ricoeur está basicamente ancorado na articulação
entre a reflexão filosófica e a interpretação dos símbolos. Entretanto, nós havíamos
apontado anteriormente que um dos elementos que dificultavam a apreensão da
verdade do mito estava justamente na injunção que a racionalidade faz do mito e de
todo o seu universo constitutivo. Ricoeur não abre mão da racionalidade, porém, a
lógica de acesso ao mito proposta por Ricoeur não está fundamentada numa
primazia da razão sobre os mitos. A razão se transforma nesse contato com o
universo do símbolo. Danilo Almeida enfoca esse aspecto qu
ando afirma que o que
o símbolo a pensar não servirá para aumentar a consciência de si ou facilitar a
90
extensão da circunscrição reflexiva. Não se trata de extensão, mas de mudança;
uma filosofia intuída pelos símbolos tem por tarefa uma verdadeira tran
sformação
qualitativa da consciência reflexiva (César, 1998, p. 87).
Então, o pensar a partir dos símbolos não é apenas uma extensão da
filosofia reflexiva. A filosofia reflexiva o capta os símbolos para o seu universo de
reflexão de forma passiva; existe uma relação que promove uma mudança
qualitativa no próprio fazer filosófico.
Para Ricoeur, o símbolo é toda a estrutura de significação em que um
sentido direto, primário, literal, designa por acréscimo um outro sentido indireto,
secundário, figurado, que apenas pode ser apreendido através do primeiro
(Ricoeur, 1988, p. 14). Dentro desta mesma perspectiva, Ricoeur define o conceito
de interpretação como sendo trabalho de pensamento que consiste em decifrar o
sentido escondido no sentido aparente, em desdobrar os níveis de significação
implicados na significação literal (Ricoeur, 1988. p. 15). Essa definição de mbolo
e a definição de interpretação nos induzem a pensar que Ricoeur mantém ainda
uma referência inicial à exegese, que buscava interpretar os textos bíblicos a partir
dos sentidos escondidos. Ocorre, entretanto, que esses dois métodos não se
confundem. O método alegórico visa principalmente decifrar os sentidos do texto
que estão cifrados em um primeiro sentido, que, todavia, não tem valor de verdade.
A Interpretação simbólica, por sua vez também busca o segundo sentido do texto,
que não se apresenta imediata e inequivocamente; ele se faz conhecer através do
sentido primário ou literal. Diferentemente do método alegórico, na interpretação
simbólica, o segundo sentido não é ofertado de uma única vez; existe sempre uma
reserva de sentido, daí falarmos em polissemia do símbolo. Na interpretação
91
alegórica, depois de decifrado o sentido do texto, ele se esgota; já na interpretação
simbólica, a fonte de produção de sentidos é infinita e inesgotável. A interpretação
alegórica e a interpretação simbólica são, portanto, dois métodos distintos e que
não se confundem.
O grande desafio de Ricoeur é conciliar a univocidade da filosofia reflexiva
com a equivocidade que surge da interpretação simbólica. Como conciliar esses
dois projetos que caminham em direções opostas? O caminho adotado por Ricoeur
é o questionamento do projeto da filosofia reflexiva desde Descartes. O
Cogito
cartesiano quer ser transparente e unívoco; ele não admite a ambigüidade. Uma
filosofia que quer pensar a partir do símbolo, como propõem Ricoeur, tem
necessariamente que se locomover no terreno movediço do mundo da cultura e,
conseqüentemente, dos símbolos. Uma filosofia fundada no
Co
gito
não permite
tamanha disparidade. O
Cogito
pressupõem clareza e distinção; não há lugar para a
ambigüidade e a polissemia que os símbolos comportam.
Para Ricoeur, Freud, Marx e Nietzsche, são mestres da suspeita. A partir de
seus sistemas filosóficos questionam a eficácia da filosofia cartesiana. Na
psicanálise de Freud, o sujeito não é constituído apenas pelo Cogito. Não existe
consciência; existe também o inconsciente e frente ao inconsciente toda clareza e
distinção da filosofia cartesiana se desfaz ou pelo menos sofre um profundo abalo
em suas estruturas.
Para Abrahão Andrade,
Ricoeur os caracteriza como mestres da suspeita , pois são eles que
começam por mostrar que existe algo de errado, ou melhor, de arredio, de
oculto ou mascarado atrás daquele desejo de transparência. Suspeita que
92
torna problemáticos o desejo (de o sujeito ser, imediatamente, senhor do
sentido de si) e o interesse da filosofia em ser guardiã da racionalidade,
interesse talvez resultante justamente dessa posse imediata do sentido
(Andrade, 2000, p. 16).
A consciência não é mais o lugar privilegiado da verdade, ela é apenas mais
um lugar. Freud introduz a idéia de inconsciente como estrutura constituinte do ser
humano, mostrando assim, que não temos somente uma consciência clara e
transparente, somos também constituídos por elementos obscuros e ambíguos. A
consciência é reduzida e o
Cogito
, questionado.
É dentro desse redimensionamento da filosofia reflexiva que Ricoeur situa a
sua filosofia, mais precisamente do encontro da arqueologia psicanalítica com a
fenomenologia teleológica de Hegel. A filosofia reflexiva, em Ricoeur, torna-
se
filosofia hermenêutica e é exatamente a hermenêutica que permite esse encontro
com o mundo dos símbolos e o torna possível de ser pensado dentro de um projeto
racional. A filosofia reflexiva afirma Andrade, [...] deve vir a se tornar uma
hermenêutica, isto é, uma filosofia que articula um conjunto de procedimentos
racionais e intuitivos em vista de encontrar o(s) sentido(s) oculto(s) no se
ntido
aparente do tesouro simbólico que o mundo [...] nos oferece (Andrade, 2000, p.
38).
Se considerarmos a razão como linha divisória, como foi colocado
anteriormente, para situar alguns autores que escreveram sobre o mito, poderíamos
dizer que Ricoeur
situa
-se exatamente no centro dessa linha divisória, dialogando
tanto com a psicanálise, que situa o mito e os símbolos abaixo da racionalidade
quanto com a fenomenologia religiosa que os coloca acima dessa fronteira.
93
Ricoeur, garantindo a viabilidade filosófica de seu projeto, subdivide o
símbolo em duas categorias principais: os símbolos primários e os secundários. Os
primeiros são todos aqueles que possuem uma linguagem elementar e que têm
como referência um significante de primeiro grau proveniente do contato do homem
com a natureza. Como exemplo pode-se citar os símbolos do mal como a nódoa, a
mancha, em uma concepção mágica do mal, e do desvio, da transgressão em uma
concepção ética do pecado, ou da do peso, carga em uma experiência mais
interiorizada
do mal em sentimento de culpabilidade. Os símbolos secundários
geralmente são ticos e estão mais articulados e comportam uma perspectiva
narrativa, com lugares e personagens. Estas três dimensões da simbólica do mal,
ou seja, a da mancha, do pecado e da
culpabilidade mostram uma sobreposição de
sentidos que vai de uma condição mais exteriorizada, como é o caso da mancha,
até uma situação mais interiorizada como é o caso da culpabilidade.
2.7.2. Símbolo Mítico e Símbolo Religioso
Dentre os elementos que
estruturam a linguagem do mito está o símbolo, que
é ele próprio uma linguagem. Se o mito é uma forma de linguagem, pressupõe-
se
que ele exerça uma função comunicativa através de códigos específicos. O mito
transmite mensagens portadoras de sentidos e significados e para fazê-lo recorre
ao símbolo, pois somente assim é possível ao mito se tornar inteligível ao um grupo
social ou uma coletividade.
Diferentemente da linguagem conceitual que se expressa através de signos,
a linguagem mítica e religiosa o faz
por meio dos símbolos. Para Croatto, o símbolo
94
é [...] a linguagem originária e fundante da experiência religiosa, a primeira e a que
alimenta todas as demais (Croatto, 2001, p. 81).
Se o mbolo está na base da experiência religiosa, significa, então, que ele
mantém uma estreita relação com o sagrado sendo inclusive indissociável deste,
pois é por meio dele que o sagrado, se faz conhecer. Ocorre, todavia, que esse
conhecimento não se dá de maneira direta e imediata. O símbolo funciona como um
elemento de mediação entre o ser humano e a realidade totalmente Outra. Assim
como não é possível acessar o mundo diretamente, possuir o fato puro da
realidade, como nos ensina Cassirer, da mesma forma não podemos acessar o
sagrado sem as estruturas mediacionais, sem intermediação. É através do símbolo
que nos conectamos ao sagrado e vivenciamos a experiência religiosa. Entre a
realidade do mundo e a realidade do totalmente Outro existem dimensões
mediacionais e é nelas que construímos a nossa morada.
O ser humano, de um lado, não consegue perceber o mundo na sua
imediaticidade, e, do outro lado, também não consegue perceber o sagrado
diretamente. Os objetos do mundo e até mesmo as palavras se convertem em
objetos simbólicos e são o receptáculo dessa realidade inobjetivável. Estes objetos
que se convertem em símbolos não deixam, entretanto, de ser eles mesmos objetos
fenomênicos. A árvore convertida em símbolo não deixa de ser árvore, porém, ela
sofre um processo de transiginificação, podendo significar realidades
trans
cendentes como o Centro do Mundo, por exemplo. Sem os objetos
convertidos em símbolos, apaga-se a percepção do sagrado na forma como se
experimenta
, e tampouco se pode expressá-la (Croatto, 2001, p. 90). Por isso, a
95
afirmação de Cassirer de que o ser humano é um animal symbolicum é justa e
absolutamente compreensível.
Aqui, entretanto, estamos interessados no simbolismo religioso e mítico do
que no simbolismo em sua expressão mais geral, pois compreendemos que o
símbolo representa uma realidade muito vasta; ele pode representar toda realidade
humana, todo mundo humano. Sendo o homem um homo symbolicus e estando o
simbolismo implícito em todas as suas atividades, todos os fatos religiosos têm,
necessariamente, um caráter simbólico (Eliade, 1999, p. 217).
Caberia aqui uma indagação sobre a relação entre símbolo mítico e símbolo
religioso; estes pertencem ao mesmo estatuto ôntico ou são de outra natureza?
Todos os mitos são expressões do sagrado vinculado a determinados ritos
religiosos ou nem sempre tal vinculação existe e é necessária? Cassirer por
exemplo defende a tese de que não existe uma diferença radical entre pensamento
religioso e pensamento mítico. Para ele, ambos têm origem nos mesmos
fenômenos fundamentais da vida humana. No desenvolvimento da cultura humana,
não podemos fixar um ponto em que o mito acaba ou começa a religião. Em todo o
curso de sua história, a religião permanece indissoluvelmente ligada a elementos
míticos, e impregnada deles (Cassirer, 2001, p. 145-
6).
O pensamento tico, e o pensamento religioso não são, portanto, de
naturezas diferentes; existem diferenças, é verdade, todavia, as relações de
proximidades e semelhanças são marcadamente significativas. Eles estão muito
próximos e às vezes se confundem, como ocorre por exemplo com o mito
cosmogônico narrado no livro de Gênesis, só para citar um exemplo.
96
Se a tese de Ricoeur, que reconhece o sagrado como espaço de emergência
de símbolos e mitos, for verdadeira, então os símbolos míticos e religiosos não se
diferenciam ontologicamente; pelo contrário, eles são da mesma natureza. Neste
caso, não existem regiões ontológicas especificas para cada uma destas
expressões simbólicas; existe sim uma única região ontológica responsável pelas
manifestações simbólicas do ser humano. Sérgio Franco admite que mesmo as
outras zonas de emergência simbólicas, a poética e a psíquica, não mudam a
natureza do símbolo. O símbolo é em última análise único. O símbolo é um só.
Emerge em três zonas diferentes, isso é certo, mas o símbolo é mesmo um só.
Ta
lvez fosse melhor dizer que o verdadeiro símbolo reúne em si estas três
dimensões: cósmica, psíquica e poética (Franco, 1995, p. 55).
2.7.3. O Mito Como Expressão do Sagrado
O mito, em Mircea Eliade, quer dizer história verdadeira, da mesma forma em
que
também é palavra verdadeira. Palavras que propõem e justifica realidades
assim como ela é na atualidade ou poderá vir a ser no futuro.
O mito, como discurso narrativo, produzido por mãos humanas sempre
remete a uma realidade primordial que é anterior a todos os entes existentes e, é
exatamente em razão dessa anterioridade que podemos falar do mito como
realidade que antecede o próprio mundo. Em todo começo, em todo evento
inaugural é a voz do mito que se escuta. O mito diz como as coisas vieram a ser o
que
de fato são; ele descreve e narra os acontecimentos inaugurais, assim como a
existência do mundo e de tudo aquilo que o constitui. Os mitos narram a origem do
97
mundo, das sociedades com suas instituições, de comportamentos, de hábitos e de
costumes. A construção de uma casa entre os primitivos, por exemplo, segue o
modelo paradigmático oferecido pelo mito cosmogônico. A repetição do que
aconteceu no tempo mítico ou in illo tempore conecta os seres humanos das
sociedades arcaicas com essa realidade paradigmática e transcendental. Através
da recapitulação, efetuada por meio dos ritos é que o ser humano se torna
contemporâneo dos deuses e vive o tempo tico da criação; ele participa desses
grandes acontecimentos que tiveram lugar em um tempo fabuloso e longínq
uo,
enfim em um tempo mágico.Eliade nos oferta a seguinte definição do mito:
o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no
tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio . Em outros termos, o mito
narra como, graças às façanhas do Entes Sobrenaturais, uma realidade
passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um
fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma
instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma criação : ele relata de
que modo algo foi produzido e começou a ser (Eliade, 2000 A, p. 11).
O mito, como nos ensina o historiador das religiões Mircea Eliade, conta uma
história sagrada e conseqüentemente verdadeira, pois o sagrado é a fonte do real
por excelência. Então tudo o que nos conta o mito é necessariamente verdadeiro,
pois este está conectado ao sagrado. Servindo-se de símbolos e imagens
sensíveis, os mitos remetem sempre as coisas ao processo de manifestação do
sagrado (Crippa, 1975, p. 118). Não seria possível, a partir desta perspectiva, falar
do mito sem o remetê-lo às experiências com o sagrado. Nas palavras de Eliade,
98
os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do
sagrado (ou do sobrenatural ) no Mundo (Eliade, 2000 A, p
. 11).
Os mitos estruturam a sua linguagem a partir do acontecimento hierofânico,
portanto, a partir do sagrado. É a linguagem mítica estruturada tendo como ponto
de partida a hierofania, que se dirige a consciência, mas não a uma consciência
reflexiva, an
tes disso, é uma consciência enraizada em uma ontologia mítica.
A recitação do mito, seja ele cosmogônico ou um simples mito de origem,
representa a possibilidade real de se reatualizar os acontecimentos que tiveram
lugar no tempo fabuloso das origens. A recitação do mito tem o poder de promover
a reintegração a um tempo sagrado. Rompe-se temporariamente com a dimensão
cotidiana do tempo e vive-se a experiência insólita e qualitativamente diferente de
um tempo forte e significativo. Dizemos que esse tempo é um tempo sagrado pela
razão simples deste ser um tempo dos deuses e dos heróis e/ou dos Entes
Sobrenaturais.
Os mitos, como afirma Mircea Eliade, contam uma história sagrada, ou seja,
é a história dos atos dos Entes Sobrenaturais e é, portanto, verdadeira; eles
também fazem referência como o mundo e tudo o que nele existe foram criados.
Por esse motivo é possível, através dos mitos, conhecer a origem das coisas e do
mundo e assim dominá-las e manipulá-las. Conhecendo-se a origem da doença é
possí
vel curá
-
la, conhecendo
-
se a origem do fogo pode
-
se dominá
-
lo.
A recitação do mito, portanto, equivale a uma experiência vivida real e não
uma simples fuga da realidade para um mundo imaginário, neste sentido Eliade
observa que: viver os mitos implica, pois, uma experiência verdadeiramente
religiosa , pois ela se distingue da experiência ordinária da vida quotidiana. A
99
religiosidade dessa experiência deve-se ao fato de que, ao reatualizar os eventos
fabulosos, exaltantes, significativos, assiste-se novamente às obras criadoras dos
Entes Sobrenaturais (Eliade, 2000 A, p. 22).
O mito como história dos atos dos Entes Sobrenaturais é uma das chaves
para a compreensão do mito como expressão do sagrado. Os mitos funcionam
como paradigmas, modelos exemplares, arquétipos, por isso, podemos dizer que
tudo se passou no tempo mítico assume essa dimensão paradigmática e
instauradora do real. E ao se conectar com o mito estar-se, de alguma maneira,
participando dessa realidade forte e significativa, portanto, quem vive o tempo
mítico impregna
-
se do sagrado e conseqüentemente do mistério que ele representa.
Para Eliade os mitos revelam que o mundo, o homem e a vida têm uma origem e
uma história sobrenaturais, e que essa história é significativa, preciosa e exemplar
(El
iade, 2000 A, p. 22).
2.8. Resumo e Perspectivas
No capítulo II procuramos elucidar a maneira pela qual o discurso sobre o
mito foi ao longo dos séculos se constituindo e assumindo determinados contornos.
Começamos o nosso empreendimento a partir dos gregos e estabelecemos, em
linhas gerais, como se deu a passagem de um discurso mítico para um discurso
racional. Realizamos uma breve análise da cultura oral no contexto da cultura grega
e procuramos estabelecer as relações entre cultura oral e as narrativas míticas, da
mesma forma em que buscamos realizar um conectivo entre a tradição fundada na
escrita e o advento da racionalidade. Buscamos também um aporte no discurso
100
antropológico em teóricos como Lévi-Bruhl e Lévi-Strauss, principalmente em Lévi-
Strauss
e sua a análise estrutural do mito.
Seguindo a trajetória do mito no Ocidente, efetuamos uma suscinta análise
das escolas de mitologia comparada, a escola inglesa de antropologia e a escola de
filologia histórica para, finalmente, vermos uma sinalização indicando novas
perspectivas sobre o mito e a sua importância para se compreender não o ser
humano de outrora nas sociedades tradicionais como também o ser humano de
hoje nas sociedades complexas e contemporâneas.
Nessa nova configuração que o mito assume no contexto do pensamento
ocidental, autores como Ernest Cassirer, Paul Ricoeur, Mircea Eliade são
importantes alavancadores de uma perspectiva que reconhece o mito como uma
produção humana altamente significativa e não simplesmente um terreno de
produçõ
es pueris do espírito humano como tentaram nos convencer alguns
estudiosos desde a Grécia antiga.
Encerramos o capítulo procurando focalizar a relação entre o sagrado e o
mito e como essas duas expressões do espírito humano normalmente estão
próximas uma d
a outra.
Analisaremos no terceiro e último capítulo a releitura que a literatura faz das
narrativas míticas numa perspectiva da camuflagem do mito no texto literário.
Entendemos que o fenômeno da camuflagem está diretamente relacionado a um
modo de ser do sagrado na cultura ocidental secularizada. Procuraremos mostrar
que a literatura oferece as condições necessárias para que ocorra o fenômeno da
camuflagem do mito em textos literários. Dedicaremos também uma breve atenção
para o fenômeno da leitura e o pa
pel que essa atividade desempenha ao conectar o
101
leitor, seja de um romance policial ou uma literatura ficcional, a uma outra
experiência temporal, ou seja, a uma ruptura de nível que ocorre no momento
mesmo do ato da leitura.
102
CAPÍTULO III
REPRESENTAÇÂO E RELEITURA DO MITO NO TEXTO LITERÁRIO
A abordagem da questão da representação do mito em textos literários
provoca alguns questionamentos iniciais, a saber. O mito literário possui a mesma
natureza do mito etno-religioso? As narrativas míticas que aparecem em textos
literários são produções autônomas ou simplesmente transposições do relato mítico
para a narrativa literária como forma de enxerto? Existe na estética narrativa do
texto literário uma similitude com a
estética do texto mítico ou essas duas formas de
narrativas são antagônicas e adversárias?
3.1. Mito e Texto Literário
A questão da relação entre texto mítico e texto literário é uma questão
controversa e de certa forma polêmica, pois as opiniões em torno desta relação
normalmente não são consensuais. Quais elementos, então, diferenciam, por
exemplo o texto literário de um texto mítico? Se considerarmos a posição de Lévi-
Strauss sobre a diferenciação que ele promove entre mito e poesia, vistos como
forma
s de expressão lingüísticas, pois, tanto os mitos quanto a poesia são de fato
formas de manifestações lingüísticas, existe aí, para ele, uma diferença de
103
natureza, apesar de compartilharem o mesmo estatuto lingüístico. Lévi-
Strauss
entende que,
o lugar do mito, na escala dos modos de expressão lingüístico, é oposto ao
da poesia, não importando o que se tenha dito para aproximá-los. A poesia é
uma forma de linguagem sumamente difícil de ser traduzida para uma língua
estrangeira, e qualquer tradução acarreta múltiplas deformações. Ao
contrário, o valor do mito como mito persiste a despeito da pior tradução
(Lévi
-
Strauss, 1975, p. 242.).
No prefácio do Dicionário de Mitos Literários, Pierre Brunel faz um pequeno
panorama do desenvolvimento histórico deste campo de investigação e nos traz
algumas informações acerca de como esse problema foi colocado e de seus
possíveis desdobramentos.
Em 1965, Raymond Trousson publicou um artigo intitulado Estudo de Temas
,
cuja finalidade era demonstrar a existênc
ia de núcleos temáticos no texto literário. O
seu interesse, porém, não era pautado pela questão do mito, mas isso se modifica
posteriormente, quando ele faz a revisão do seu ensaio e lhe deu um novo título:
Temas e Mitos (Thèmes et Mythes, 1981). Ainda que mantivesse uma postura
crítica quanto a expressão mito e mitos literários.
Para o francês Pierre Albouy, os
Temas
de Trousson poderiam ser chamados
de mitos literários, todavia, o mito literário é constituído pela narrativa do mito,
podendo o autor efetuar as mudanças que lhe aprouver. Estas mudanças, porém,
não são transformações gratuitas; elas trazem consigo novos elementos
significantes. O mito literário existe à medida que lhe são acrescidos elementos
104
significantes, ausentes na narrativa original; sem estes novos significantes existiria
apenas um
tema
(Brunel, 2000, s. d).
Philippe Sellier, em sua tentativa de definir o mito literário, estabelece alguns
parâmetros entre mito e mitos literários. Para Sellier, a narrativa mítica funda uma
realidade, é anônima e coletiva, e tem o status de história verdadeira. Por outro
lado, nas narrativas literárias, as características acima mencionadas desaparecem,
ou seja, o mito literário não funda uma realidade. Os mitos literários não são
anônimos, postos que têm uma autoria muito bem clara e definida e também não
são considerados verdadeiros; ao contrário, são puras produções fictícias. Apesar
destas diferenças evidentes, existem entre essas duas narrativas elementos
comuns e semelhantes, como por exemplo a saturação simbólica, uma forma de
organização fechada e uma iluminação metafísica (Brunel, 2000, s. d).
Max Bilen faz um amplo levantamento sobre a questão da oposição entre
narrativa mítica e a narrativa literária, e como ela aparece em diversos estudiosos
de mitologia. Apontaremos, a seguir algumas dessas oposições como aparece no
artigo de Max Bilen,
O comportamento mítico
-
poético
.
A narrativa romanesca é mais ou menos fictícia, a narrativa mítica impõe-
se
como verdadeira (
Lévi
-Brühl, M. Leenhar, Mauss, Eliade, Sellier); o poema é
intraduzível, enquanto a narrativa mítica pode ser traduzida em todas as
línguas (Lévi-Strauss); o texto literário é constituído em suas partes,
enquanto a narrativa mítica é um conjunto de símbolo
s, podendo até reduzir
-
se a uma estrutura permanente (Gusdorf, Lévi-Strauss); a narrativa literária
tem como referência um momento histórico, enquanto a mítica supõe um
tempo reversível que caracteriza o tempo sagrado (Eliade); [...] a narrativa
literária
preenche uma função sócio-histórica, profana, a mítica uma função
105
sócio
-religiosa sagrada (M.M. Münch); a narrativa literária tem uma verdade
relativa, a tica uma verdade absoluta e eterna, é uma narrativa de base
(Eliade); a narrativa literária faz uma análise psicológica do herói, a mítica
examina o homem em sua integridade (M. M. Münch); [...] comparada a
narrativa literária, a narrativa mítica tem na maioria das vezes um caráter
iniciático e transcendental (Bilen
apud
Brunel, 2000, p. 186).
Para Rougemont, o mito encontra na literatura dois momentos de profanação,
ou seja, o seu nascimento para a literatura e o seu declínio na subliteratura. Claude
Lévi
-Strauss vê a literatura como farrapo da mitologia ou o indicativo da decadência
de uma estrutura (Brunel, 2000, s. d).
Esses dois posicionamentos, de Lévi-Strauss e Rougemont, partem de uma
visão negativa da literatura quando comparada ao mito ou quando, em uma outra
hipótese, esta se propõe, de alguma forma, a substituir a estética da narrativa
mítica. Como conjugar, por exemplo, a questão, praticamente inevitável no mundo
moderno, da transmissão dos mitos através da escrita. Todos os mitos que nos
chegam estão diretamente vinculados a um modo de transmissão escrito, ou sej
a, a
um texto impresso por caracteres, um alfabeto.
De acordo com este postulado, não se pode colocar num mesmo patamar as
produções míticas e as produções poéticas. A natureza dessas criações do espírito
humano são qualitativamente diferenciadas e, portanto, não cabe nenhum tipo de
aproximação ou tentativa de igualar esses dois campos. Resta saber, então, se a
literatura compartilha do mesmo regime ontológico que a poesia.
Ao voltarmos o nosso olhar para o início da literatura na Grécia antiga,
percebe
-se que o contexto no qual a literatura é marcado pelo avanço da cultura
106
letrada. A prática da escrita é necessária para que tenhamos uma literatura. A
literatura se concretiza na forma como a entendemos como texto escrito e para que
isso acontecesse era necessário que a escrita se transformasse em instrumento de
difusão e armazenamento da memória.
A civilização grega no século VI a.C ainda era fortemente influenciada por
tradições orais. A palavra pronunciada pelos poetas e outros personagens era o
lugar da verdade (
alétheia
). Os mitos estão mais vivamente presentes no contexto
das tradições orais, tanto na Grécia antiga como em outras civilizações primitivas.
As Musas da mitologia grega eram potências religiosas, ou seja, deusas
que
exerciam uma função de inspiradoras dos poetas e quando o poeta era possuído
por elas ele absorvia o conhecimento diretamente da ciência de Mnemosyne
(Memória).
A palavra do poeta, tal como se desenvolve na atividade poética, é solidária
a duas noções complementares: a Musa e a Memória. Essas duas potências
religiosas definem a configuração geral que à
Alétheia
poética sua
significação real e profunda (Detienne, 1988, p. 15).
Antes do surgimento de uma cultura letrada, as Musas e a deusa
Mnemo
syne
ocupavam um lugar privilegiado na civilização grega. A memória é uma função
psicológica extremamente valorizada em uma cultura oral. Toda tradição de uma
civilização que ainda não desenvolveu um alfabeto depende consideravelmente da
memória. Talvez isto explique o fato da memória ocupar um lugar no panteão grego
dos deuses. O privilegio de Mnemósine confere ao
aedo
é o de um contato com o
107
outro mundo, a possibilidade de nele entrar e sair livremente. O passado surge
como uma dimensão do além (Vernant
apud
Eliade, 2000, p. 108).
A palavra, antes de uma cultura letrada, é cantada e ritmada; ela é,
sobretudo, uma construção poética. O surgimento da prosa sufoca o cântico dos
poetas e tenta silenciar o murmúrio das musas. A literatura é filha dessa nova
configuração da cultura com o advento da escrita e conseqüentemente da prosa. A
Ilíada
e a
Odisséia
são os primeiros textos literários de que o Ocidente tem
conhecimento. Entretanto, esses textos ainda guardam uma áurea da cultura oral e
a sua escrita obedece aos padrões estabelecidos pelas tradições orais,
especialmente os textos poéticos.
Se considerarmos a tese que sustenta que o mito encontra na literatura a sua
decadência, então temos que pontuar que isso se inicia, fundamentalmente, com as
obras de Homero. Mas, por outro lado, podemos falar em uma literatura oral, que é
o principal celeiro no qual florescem segmentos do imaginário de diversas
sociedades, que ainda não eram portadoras de uma literatura escrita.
Com o advento da escrita, a memória passa a ter como uma das principais
formas de armazenamento os documentos escritos. A literatura, que antes estava
no domínio da oralidade, passa então a se configurar em textos escritos e esta se
transforma em sua principal forma de difusão. Os mitos gregos eram transmitidos,
antes do surgimento da escrita, que ocorre por volta do século VII a.C, através das
narrativas populares. O canto épico é um exemplo desse tipo de narrativa.
Para Mircea Eliade, a literatura oral e escrita é herdeira da mitologia e a
respeito dessa herança ele afirma:
108
Sabemos bem que a literatura, oral ou escrita, é filha da mitologia e que é
herdeira de suas funções: contar as aventuras, contar o que se passou de
significativo no mundo. Mas porque é tão importante saber o que se passa,
de saber o que acontece à marquesa que toma o chá das cinco horas?
Penso que toda narração, mesmo a de um fato bastante comum, prolonga as
grandes histórias contadas pelos mitos que explicam como este mundo veio
à existência e como a nossa condição é tal qual a conhecemos hoje em dia
(Eliade, 1987, p. 123
-
4).
Essa herança, todavia, não pode ser compreendida como uma espécie de
solução de continuidade, ou seja, a literatura não é, simplesmente, uma nova forma
de contar os mitos, que substituiu a antiga recitação oral. Existem diferenças
significativas entre essas duas formas de narração, mas existem também muitas
semelhanças e pontos convergentes, como procuramos indicar anteriormente.
3.2. A Camuflagem d
os Mitos no Texto Literário
A posição de Eliade não é tão dura com a literatura como a de Lévi-
Strauss.
Eliade trabalha, por exemplo, com o conceito de camuflagem do sagrado em um
mundo moderno e dessacralizado. A camuflagem implica um mostrar-
se
escondendo, um velar desvelando. O sagrado, de acordo com essa tese, manifesta
-
se camuflando e isso pode ser percebido nas criações artísticas e dentre as
criações artísticas a literatura é um espaço em que o sagrado se manifesta
camuflando. A obra literária de Eliade persegue justamente este tema. Através do
uso do fantástico, o problema da camuflagem do sagrado no concreto histórico é
desenvolvido em toda a sua plenitude (Rohden, 1998, p. 76-5).
109
Mircea Eliade, além de historiador das religiões, foi também romancista,
tendo escrito diversos romances em que a tônica da camuflagem aparece com uma
certa persistência.
A literatura, no mundo moderno, é entendida, na acepção de Eliade, como um
espaço profano, porém, o profano é sempre o espaço de mediação do sagrado; e é
nele que o sagrado se manifesta. O profano se torna assim o meio por excelência
para a manifestação do sagrado. Ao invés de ser uma realidade que impede a
manifestação do sagrado, é a partir dela mesma que o sagrado se revela aos
homens (Rohden, 1998, p. 70).
O texto literário como peça constituinte de um mundo que se apresenta cada
vez mais dessacralizado, se torna então como qualquer outro objeto deste mundo e
pode vir a ser um possível espaço para que o sagrado nele se manifeste. Eliade,
todavia, olha com uma certa suspeita para o comportamento do ser humano das
sociedades modernas, pois ainda que ele se orgulhe pelo fato de ter vencido o
sagrado e o expulsado do mundo, mesmo assim se comporta em determinada
s
ocasiões como se estivesse vivenciando uma experiência religiosa. Para Rohden, o
sagrado, em um mundo radicalmente dessacralizado, adquire um novo estatuto.
Sendo assim a camuflagem passa a ser o novo estatuto do sagrado no mundo
moderno dessacralizado, em outros termos, encontramos uma radicalização da
camuflagem, desde que ela é uma estrutura presente no fenômeno religioso. O
sagrado se torna irreconhecível, isto é, se identifica com o profano (Rohden, 1998,
p. 99).
O fato da realidade sagrada se identificar com o profana precisa ser
esclarecido, pois esse identificar aqui significa camuflar, posto que o sagrado e o
110
profano o se identificam no sentido de fusão de suas identidades. Um objeto
profano o deixa de ser um objeto profano, simplesmente por que passou por um
processo de hierofanização. Uma pedra será sempre uma pedra mesmo que seja
uma pedra sagrada.
As produções artísticas do mundo moderno tendem a compartilhar de uma
mesma visão de mundo inaugurada a partir do advento da modernidade, ou seja,
com o surgimento da modernidade opera-se uma transição de paradigmas; cai o
paradigma onto-teológico, e entra em cena o paradigma onto-antropológico. Nesse
espaço ocupado exclusivamente pelo ser humano, o sagrado será sempre
re
chaçado e posto em uma condição de inferioridade. O espírito moderno condena
tudo aquilo que não diz respeito ao homem. A sentença de Nietzsche que decreta a
morte de Deus já indica os caminhos de um mundo sem o sagrado.
A ausência total do sagrado no mundo não pode ser um fato concreto e
irrefutável, posto que, se assim o for, temos então que admitir que a tese que
sustenta ser o sagrado uma etapa na consciência do ser humano teria aí elementos
para a sua corroboração. Pensamos, outrossim, que o sagrado, como ensina
Mircea Eliade, mais do que um estágio da consciência, é uma estrutura da própria
consciência. Se ele assim se constitui, então, é praticamente impensável uma
sociedade que seja totalmente desprovida de alguma sacralidade. A hipótese da
camuflagem, levantada pelo próprio Eliade, explicaria como o sagrado se manifesta
em um mundo que, teoricamente, não o comporta, pois, como já vimos, este
processo de camuflagem é o próprio modo de ser do sagrado em nosso mundo.
Se aceitarmos que a camuflagem é o modo de ser do sagrado no mundo
moderno, então significa que ela pode se manifestar em situações e
111
comportamentos diversificados do ser humano moderno. Todavia, esse processo
não segue exatamente o modelo das sociedades tradicionais, que viviam sob a
absoluta tutela dos paradigmas exemplares instaurados pelos deuses e heróis de
sua mitologia. Em nosso mundo secularizado, os paradigmas mitológicos não
desempenham um papel eficaz, com algumas exceções no que diz respeito aos
mitos cristão
s.
Para Eliade (2000 B, p. 24),
parece improvável que uma sociedade possa libertar-se completamente do
mito porque, das observações essenciais do comportamento mítico
modelo
exemplar, repetição, ruptura da duração e integração do tempo pri
mordial
as duas primeiras, pelo menos, são consubstancias a toda condição
humana .
O mito está, a partir desta perspectiva, diretamente ligado às várias
dimensões do sagrado. O mito instaura modelos que são imitados, narra os feitos
de deuses e heróis, portanto é história sagrada, fala de um tempo primordial e de
como as coisas passaram a ser o que são, justifica e valida os comportamentos e
as instituições de uma sociedade. No mundo ocidental secularizado e laicizado, o
mito não possui tanta eficácia como nas sociedades tradicionais, todavia, a sua
presença pode ser percebida em situações diversas. Nos interessa aqui, entretanto,
o modo como ele se camufla na literatura, que é um dos possíveis modos de
camuflagem do sagrado em um mundo dessacralizado. Eliade insiste nesse
aspecto, pois para ele
112
[...] o homem moderno é submetido à influência de toda uma mitologia
difusa, que lhe propõe um número de modelos a imitar. Os heróis,
imaginários ou não, desempenham um papel importante na formação dos
adolescentes europeus: personagens dos romances de aventuras, heróis da
guerra, glórias do cinema, etc (Eliade, 2000 B, p. 25).
3.3. A Literatura moderna: Olímpio dos deuses
A literatura moderna apresenta uma variedade majestosa de romances, cuja
pr
esença de deuses da mitologia grega e de temas pertinente a consciência mítica
são facilmente verificáveis. Passaremos agora a uma revisão de algumas obras
literárias do século XX para apontarmos como o mito tem sobrevivido na literatura,
apesar de todas as tentativas efetuadas ao longo da história do pensamento
ocidental para descredenciá
-
lo.
Para demonstrarmos como figuras míticas e temas ou mitologemas
configuram o esteio de muitos romances, faremos uma breve revisão bibliográfica,
no qual indicaremos, a partir do século XX, como determinados personagens e
temas da mitologia são o pano de funde de muitos romances.
Dédalo
- Iniciaremos a nossa tarefa verificando a incidência do personagem
Dédalo na literatura do século XX. Em 1912, Herbert Eulenberg publica o romance
Icaro e Dédalo. Em 1932 surge o livro de Juan José Domenchina intitulado
Dédalo
.
Anghelos Sikelianos é o autor de Dédalo em Creta (1943). O Eu e os Reis de
Ernest Schnabel se torna público em 1958. O Testamento de Dédalo de Michel
Ayrton (1962
); Roger Zelasny, em 1966, publica
O Mestre dos Sonhos.
113
O Labirinto - O labirinto é um tema, cuja presença em romances do século
XX é singularmente significativa. Citaremos aqui alguns romances que abordam o
tema do labirinto:
Krisolov
( O apanhador de ratos) de A. Grin (1924); A casa de mil
andares
de J. Weiss (1929); Le Labyrunthe de M. Sandoz (1949); Os túmulos de
Atuan
de Úrsula La Guin (1971); Deste lado do paraíso de F. S. Fitzgerald (1920);
El Laberinto mágico de Maux Aub de (1940-
42)
O deus do
labirinto
de Colin Wilson
(1970).
Mitos cosmogônicos - Na categoria mitos cosmogônicos temos os romances
A serpente emplumada de D. H. Lawrence (1926); Pedra de sol de Octavio Paz
(1957);
Elegias de Duino e sonetos a Orfeu de R. M. Rilke (1923); Cinq gran
des
odes
de P. Claudel (1904).
Minotauro
- Este personagem mitológico prefigura as páginas de muitas
obras literárias, dentre elas o romance de Binyamin Tammuz, O minotauro, de
1980.
Merlim
- Merlim é uma figura mitológica, cuja presença em romances
remont
a à Idade Média, principalmente na literatura arturiana. No século XX, o mito
de Merlim é o elemento inspirador de muitos escritores romancistas. Em 1904,
Guillaume Apollinaire publica O feiticeiro putrefacto. Outros romances aparecem no
cenário literário deste século como
Nilerm
de Frenz Hellens (1918);
Merlim
de
Tankred Dorst (1981); Testamento de Merlim de Théodore Briant (1975). Merlim, o
feiticeiro
de Florence Delay e Jacques Roubaud (1979).
A literatura traz consigo o comportamento de ler e esse com
portamento
produz algumas repercussões no espírito do leitor. É sobre essas repercussões que
queremos falar brevemente.
114
3.4. A Experiência do Tempo na Leitura do Texto Literário
Mircea Eliade reconhece que é no comportamento humano relacionado ao
tempo que a camuflagem dos mitos aparece com mais intensidade. É preciso
lembrar aqui que o mito nas sociedades tradicionais tem o poder de recapitular os
grandes acontecimentos que tiveram lugar no tempo primordial. O tempo vivido por
um participante de uma ritual, no qual um mito é recitado durante a execução do
rito, é qualitativamente diferente da experiência de tempo que ele experimenta no
seu cotidiano e essa experiência tem o poder de transportá-lo para um outro tempo
ou o tempo sem duração que é chamado tempo sagrado em oposição ao tempo
profano. Esse tempo sagrado é de natureza diferente da experiência do tempo
cronológico e ordinário que vivenciamos no nosso dia a dia. Para Eliade existe uma
diferença essencial entre essas duas qualidades de Tempo: o tempo sagrado é por
sua própria natureza reversível, no sentido em que é, propriamente falando, um
Tempo mítico primordial tornado presente
(Eliade, 2001, p. 63).
É fácil de constatar a presença de temas mitológicos em romances seja qual
for o gênero literário; do romance policial ao de ficção científica encontra-se temas
mitológicos em sua estrutura narrativa. É possível observar, contudo, que a leitura
destes textos provoca naquele que os lê efeito de ruptura na sua estrutura temporal.
Isso significa que quando estamos lendo um romance, normalmente opera-se uma
mudança de nível e o leitor é transportado para um outro tempo, um tempo mágico,
que possui um status ôntico diferente do nosso tempo cotidiano.
Poderíamos dizer que quando estamos lendo algum texto literário ocorre um
processo de evasão da realidade, uma espécie de alienação, posto que a realidade
115
é suspensa ou colocada entre parêntese por alguns instantes. Ler é morrer para si
próprio e para o mundo profano, a fim de atingir o mundo sagrado dos mitos e dos
símbolos (Bilen
apud
Brunel, 2000, p. 587). Os mitos literários, portanto, não
somente configuram-se como elementos constituintes de alguns textos literários,
mas também são capazes de exercer funções similares a dos mitos em s
eus
contextos originários, ou seja, a recitação de um mito em uma situação ritual projeta
aquele que escuta a narrativa do mito para um outro tempo ou o tempo sagrado das
origens.
Os mitos literários não nos remetem para um tempo mítico próprio de nossa
tradição, posto que estamos lidando apenas com alguns elementos desconectados
de seu contexto original. A recitação de um mito nas sociedades tradicionais
envolve todo um aparato ritualístico como condição necessária para que o mito de
fato opere esse grande milagre que é retirar o ser humano do tempo profano e
torná
-lo contemporâneo dos deuses.
Não nos tornamos contemporâneos dos deuses lendo um romance
comodamente sentado em uma poltrona, mas certamente experimentamos a
certeza de que o nosso tempo cronológico pode ser rompido e que é possível viver
uma nova experiência do tempo similar, em algum sentido, a daqueles que pelo
poder do rito se tornam contemporâneos dos deuses.
O sentimento de evasão experimentado quando se está a ler um romance
não deve ser, pois, confundido com mera válvula de escape ou um mecanismo de
proteção contra as condições impostas pela realidade. Essa evasão não é um mero
escapismo e sim um indicativo de que é possível romper essa aparente unidade do
temp
o ordinário ao qual estamos involuntariamente condicionados.
116
A experiência de evasão denuncia, ao contrário de qualquer outra
interpretação que lhe queiram dar, a vontade de superação pelo ser humano de sua
condição finita, limitada e condicionada por variáveis sociais, culturais e políticas.
Max Bilen define o comportamento mítico-poético como um estado ao qual o
indivíduo (nessa circunstância o poeta, ou, mais exatamente, o artista) tenta chegar
pelos caminhos do imaginário, uma metamorfose do estado que lhe permitiria
libertar
-se de toda determinação e viver em um tempo reversível (Bilen
apud
Brunel, 2000, p. 187).
Ressaltamos, contudo, que esse estado não é um privilégio somente do
poeta ou do artista de uma maneira geral. O leitor, no seu ato privado de leitura,
assim como o poeta na sua individualidade criativa, experimentam ambos, o
sentimentos de evasão da realidade. E a esse respeito o próprio Bilen é categórico
quando afirma:
Ler um poema, ouvir uma peça musical, contemplar uma obra de arte
plástica nada mais são que uma ocasião de evasão; muitas vezes, e com
mais freqüência do que se pensa, são a ocasião de viver o sentimento de
uma liberdade impossível, a mesma experimentada pelo artista durante a
criação de sua obra, aquele espaço onde s o encontramos quando, liberto
das contingências através de um desvio da linguagem, ele tem a impressão
muito nítida de haver alcançado o intemporal. É esse estado estranho de
liberdade, esse encantamento diante de um universo transformado que
devemos poder ler em uma obra, através de situações, de imagens, das
idéias e dos sentimentos sugeridos. Talvez nessa visão encontremos o
segredo do sentimento misterioso de beleza que todos nós esperamos
(Bilen
apud
Brunel, 2000, p. 187).
117
Nas sociedades tradicionais nas quais vigoravam ou vigoram as tradições
orais, as experiências em torno do mito são, na maioria das vezes, coletivas, pois
são ritualísticas e, normalmente, o ritual envolve todo o grupo social ou parte dele;
sabemos que existem determinados ritos em que é proibida a participação de
mulheres e crianças. Não existe nestas sociedades o ato privado da leitura. A leitura
tal qual a entendemos é uma conquista relativamente recente e tem se constituído
ao longo do tempo como uma das características das sociedades tipicamente
modernas. Não existe sociedade moderna sem leitores.
A relação boca
ouvido própria das sociedades orais foi substituída pela
relação olho
mão. Nas sociedades de cultura oral, o conhecimento é transmit
ido
sem a intermediação de textos escritos; a memória e a fala eram os instrumentos
básicos e fundamentais dessa transmissão do saber
se é que podemos usar a
expressão saber
enquanto nas sociedades dominadas pela cultura escrita a
transmissão do conhecimento ou do saber
aqui podemos usar a expressão
saber sem preocupação
se dá pela intermediação do texto escrito. Então o leitor é
peça fundamental dessa nova estrutura, na qual o conhecimento acontece, com o
predomínio, portanto, da relação olho
mão. Essa relação é assim denominada por
que a visão se dirige para um texto sustentado pelas mãos, ao contrário de uma fala
dirigida ao ouvido (Havelock, 1995, p. 27).
Queremos assim demonstrar que a leitura é uma invenção recente e
profundamente presente na modernidade e que, portanto, é plausível, a partir
desses dados, admitir que a sua prática seja um novo caminho pelo qual o ser
118
humano das sociedades industrializadas se colocam em contato com outros níveis
da realidade.
A prática da leitura é solidária com descoberta da racionalidade, posto que
antes do advento da razão, no mundo ocidental, a cultura oral predominava em
absoluta hegemonia. Antes da escrita, todo conhecimento se dava dentro de uma
configuração totalmente oral. A consciência mítica e as suas variantes eram o
espaço por excelência de toda a realidade humana. Mesmo depois do surgimento
da escrita, as tradições orais não são sufocadas abruptamente. A convivência entre
tradição oral e tradição escrita acontece ainda hoje em nossa sociedade, que é
marcadamente letrada e comporta uma presença significativa de imagens. O
processo de separação entre a palavra falada da tradição oral e a palavra escrita da
tradição letrada passará por uma aceleração a partir do século X quando a prática
da leitura
silenciosa avança em detrimento da leitura em voz alta. Em vez da leitura
oral dominante na Antiguidade, o final da Idade Média se caracterizou pela leitura
visual de textos cuja sintaxe e expressão gráfica fossem mais simples (Saenger,
1998, p. 155).
3.5. Leitura em Voz Alta e Leitura Silenciosa
Mesmo com o surgimento do texto escrito na Grécia antiga, a sua leitura, era
em uma esmagadora maioria das situações, feita em voz alta. A leitura em voz alta
significa uma apropriação da escrita pela cultura oral, pois a voz é o elemento
fundamental de uma sociedade fundada na oralidade. Para Jesper Svenbro a
escrita teria sido utilizada pela cultura oral em uma perspectiva que não seria a de
119
proteger a tradição épica [...] mas, sim, a de contribuir para a produção de som, de
palavras eficazes, de glória retumbante (Svenbro, 1998, p. 42).
O leitor, na verdade, emprestava a sua voz a palavra escrita, que a princípio
era muda e que, portanto, necessitava da voz do leitor para ser ouvida e
compreendida. A sonori
dade do texto escrito composto para ser lido em voz alta era
um elemento constituinte do próprio texto, ou seja, ele precisava da voz para se
realizar plenamente, pois, em uma cultura que valorizava a palavra falada da
maneira como fizeram os gregos, a es
crita só interessa na medida em que visa uma
leitura oralizada (Svenbro, 1998, p. 42). A leitura silenciosa, aquela que ocorre na
relação entre o texto e os olhos, vai ocupar um espaço cada vez mais amplo a partir
do final da Idade Média.
A leitura silenc
iosa compartilha de uma nova configuração mental e cognitiva.
Ler em silêncio é o índice de uma nova perspectiva do pensamento que havia se
iniciado desde a origem da filosofia na Grécia antiga. Sócrates descobre a
interioridade, a vida íntima, a alma e é a partir desta descoberta que a
individualidade efetivamente se emancipa do mundo participativo e coletivo das
sociedades primitivas. A Grécia assistiu a esse grande acontecimento quando
presenciou o acontecer de uma razão discursiva e demonstrativa. A descoberta da
interioridade é, portanto, condição necessária para a posterior prática de uma leitura
silenciosa. A leitura silenciosa fortalece o seu leque de abrangência a medida em
que entra em cena a modernidade via René Descartes. Numa sociedade modern
a,
o ato de ler é consubstancial a uma postura silenciosa, enquanto nas sociedades
primitivas as palavras são portadoras de uma sonoridade e ler em voz alta é a única
maneira possível de ressaltar o som das palavras escritas. A equação que se
120
estabelece nas sociedades primitivas, diferentemente das sociedades modernas, é
da seguinte ordem, leitor/ouvinte, enquanto que nas sociedades modernas a
equação é escritura/texto/leitor.
Eliade, ao discorrer sobre esta questão, relaciona esse fenômeno com o
mundo moderno e assim afirma:
Mas é sobretudo a função mitológica da leitura que nos interessa, porque
deparamos aqui com um fenômeno especifico do mundo moderno,
desconhecido de outras civilizações. A leitura substitui não só a literatura oral
ainda viva nas comunidades rurais da Europa
mas também o recital dos
mitos nas sociedades arcaicas. Ora ela, talvez ainda mais do que o
espetáculo, obtém uma ruptura do presente e concomitantemente uma
saída do tempo . Quer se mate o tempo com um romance policial, quer se
penetre em um universo temporal estranho, representado num qualquer
romance, a leitura projeta o moderno para fora do seu tempo e integra-
o
noutros ritmos, fá-lo viver outras histórias. A leitura constitui uma via fácil ,
no sentido em que torna possível, com pouco custo, a modificação da
experiência temporal: ela é, para o moderno, a distração por excelência,
permite
-lhe a ilusão de um domínio do tempo, o que nos o direito de
suspeitar de um secreto desejo de se subtrair ao provir implacável que
conduz à morte (Eliade, 2000 B, p. 28).
A prática da leitura, especialmente dos textos literários, como já observamos,
nos remete a um outro tempo, desconectando nossa consciência dos
condicionamentos da vida social. Para Mircea Eliade, o ser humano moderno busca
sair dessa do tempo histórico que o angustia. É bom lembrarmos aqui a tese,
trabalhada no capítulo I, defendida pelo próprio Eliade, de que os seres humanos
das sociedades arcaicas tinham pavor a história, pois os acontecimentos pura
mente
121
históricos não possuíam nenhum significado além de si mesmos, portanto, eram a
não
-
realidade que deveria ser evitada. Por isso Eliade garante que:
Essa angústia perante o tempo histórico, acompanhada pelo desejo
obscuro de participar num tempo glorioso, primordial, total, denuncia-
se,
entre os modernos, por uma tentativa por vezes desesperada para quebrar a
homogeneidade do Tempo, para sair do presente e reintegrar-se num
tempo qualitativamente diferente daquele que cria, ao decorrer, a sua própr
ia
história. [...] Por meios múltiplos, mas homologáveis, o homem moderno
esforça
-se, também ele, por sair da sua história e viver um ritmo temporal
qualitativamente diferente. Ora, ao fazê-lo, reencontra, sem se dar conta
disso, o comportamento mítico
(Eliade, 2000 B, p. 26).
A tentativa do ser humano das sociedades modernas de romper a
homogeneidade do tempo e sair desse tempo, ingressando em um outro tempo, um
tempo mítico, mesmo quando não tem consciência desse fenômeno, é o indicat
ivo
de que ele está se envolvendo em um comportamento, cujas estruturas reportam ao
sagrado e ao mito.
Como aquela do mito, essa experiência anuncia a emergência de um saber
inefável, supõe uma lenta e dolorosa metamorfose de condição humana,
atingir a unicidade de uma linguagem original de tal ordem que todo escrito
nascido dessa linguagem aparece como fundador num tempo tornado
reversível (Bilen
apud
Brunel, 2000, p. 588).
O sagrado, neste contexto, não se nas evidências imediatas posto que a
sua forma de aparecer é discreta e camuflada. É preciso sondar e suspeitar as
122
experiências dessa natureza, porque é possível encontrar o sagrado aonde menos
se espera.
3.6. A Experiência Estética e a Experiência Religiosa
As experiências evocadas pela leitura de textos literários, no âmbito dos
diversos gêneros literários, têm sucitado algumas questões sobre a equivalência
entre o sentimento que surge da experiência da leitura e que, evidentemente, está
condicionado a padrões estéticos do texto,
ou em outras palavras a beleza do texto,
e o sentimento religioso que emana de uma experiência do sujeito quando estes se
põem em contato com o sagrado. Expondo a questão de outra maneira, poderíamos
perguntar se existe alguma relação, e se existe em qual nível se dá, entre uma
experiência extática, ocasionada por uma experiência religiosa e o êxtase resultante
de uma experiência provocada pelo contato com objetos artísticos. Nos interessa
aqui o sentimento que ocorre quando se um texto literário, um romance por
exemplo, que é uma produção artística. É sabido, de uma maneira geral, que
determinadas leituras de romances exercem um forte poder de encantamento sobre
o leitor, podendo inclusive levá-lo a uma experiência de êxtase. Essa experiência,
entretanto
, transporta em si certa similitude com a experiência extática advinda do
contato com o transcendente.
Não temos condições objetivas de estabelecer parâmetros que sejam
capazes de fazer uma clara distinção entre esses dois tipos de experiências.
Tipologica
mente elas apresentam semelhanças estruturais, porém, é sobre a
123
natureza ontológica dessas experiências que não temos condições precisas de
apontar as diferenças que lhes são constituintes.
O psicólogo Geraldo José Paiva, ao analisar a experiência religiosa e a
experiência estética em artistas plásticos, afirma que a experiência religiosa e
experiência estética são complexos processos psicológicos que envolvem sentidos,
cognição e o afeto e dizem respeito à imediata apreensão respectivamente do
objeto religioso e do objeto belo, em particular a obra de arte (Paiva, 2004, p. 223).
É em relação à natureza desses processos psicológicos que não podemos dizer se
eles comungam do mesmo estatuto ontológico.
A relação entre religião e literatura no ocidente tem sido marcada por uma
série de conflitos e embates. O século XX assistiu o confronte entre duas
tendências opostas e rivais no que tange a presença de temas religiosos no texto
literário. O cerne da disputa girava em torno da relação entre religião e literatura e
os partidários da literatura desferiram duras críticas a qualquer gênero literário
complacente com as questões da religião. Gottfried Benn, um crítico severo da
religião, vai afirmar que Deus é um péssimo princípio estilístico, pois, os deu
ses,
mortos, os deuses da cruz e do vinho, ainda mais que mortos: mau princípio
estilístico, quando a gente se torna religioso, abranda a expressão (Benn
apud
Kuschel, 1999, p. 17).
A posição de Benn é representativa de uma nova modalidade de crítica à
religião, ou seja, a crítica estética e literária. A religião tem sido, desde o advento da
modernidade, alvo de uma série de criticas, principalmente por parte dos
racionalistas e de alguns campos científicos da modernidade. A crítica estética e
124
li
terária se configuraria como mais um campo dentro desse espaço crítico
preconfigurado.
Benn encontrava-se sintonizado com as disposições impostas pelo processo
de secularização o que vai levá
-
lo a acreditar que a única transcendência possível é
aquela obtida através da experiência proveniente do contato com as produções
artísticas. Benn ao falar sobre a presença da religião em sua vida e o que restou
desta diz:
Com a mesma certeza com que me afastei dos problemas referentes aos
dogmas e a doutrina de uma comunidade de fé, que era movido somente
pelos problemas da forma, da palavra e da literatura, mantenho até hoje a
atmosfera da casa paterna: no fanatismo quanto à transcendência, na
firmeza de propósito quanto a recusar qualquer materialismo de natureza
histórica ou psicológica como insuficiente para a compreensão e
representação da vida. Hoje, no entanto, vejo essa transcendência como
voltada para o artístico, como filosofia, como metafísica da arte. Vejo a arte
suplantar a religião em importância. Em meio ao niilismo geral europeu, em
meio ao niilismo de todos os valores, não vejo outra transcendência senão a
do prazer criador (Benn
apud
Kuschel, 1999, p. 18).
O reconhecimento de Benn de que é possível através da arte substituir a
transcendência religiosa, significa que o sentido de transcendência presente na arte
não compartilha do mesmo significado posto pela religião. Na arte a transcendência
artística substitui a religiosa. Fica, contudo a sensação, a partir da concepção de
Benn, de que a arte é uma religião sem Deus.
Em uma outra perspectiva situa-se a posição do filósofo dinamarquês Sören
Kierkegaard. Para ele, a arte não passaria [...] de um jogo descomprometido sem
125
seriedade existencial, um exercício estético sem e
thos
, poesia sem anseio de
veracidade (Kuschel, 1999, p. 23). A arte, focada sob este ângulo, não é digna para
representar conteúdos e temas próprios da religião, especialmente os da religião
cristã. Kuschel esclarece essa questão ao explicar o que significa a representação
de Deus pela literatura. A representação de Deus e do homem na literatura é
eticamente recriminável; por estar orientada pelos sentidos, ela corrompe a
juventude, que desperta e alimenta desejos baixos ((Kuschel, 1999, p. 23). Ao
contrário da máxima que dizia ser Deus um péssimo princípio estético, críticos da
arte vão afirmar que a arte parece ser um mau princípio para a (Kuschel, 1999,
p. 23).
Não obstante, a diversidade de opiniões sobre o tema, a posição de Geraldo
Paiva, em seu artigo sobre a experiência religiosa e experiência estética, aponta
para uma direção possível e intermediária desse antagonismo referido
anteriormente. Ressaltamos, todavia, que a esfera de análise de Paiva é em torno
das artes plásticas. Para ele é necessário fazer uma distinção entre religião
substantiva e religião funcional.
Distinguimos primeiramente, com Berger (1974), van der Lans (1986) e
Vergote (1986), entre religião substantiva, denotada pela linguagem comum
e referida ao sobrenatural (energias, espíritos, deuses, Deus), e religião
funcional, entendida como qualquer realidade fundamental que sentido à
vida, ao mal e a morte. Distinguimos, em segundo lugar, com Vergote (1974,
1997), entre o religioso, referido ao sobrenatural, e o sagrado, relativo aos
valores essenciais e ideais. A partir dessas distinções, levantamos as
hipóteses de que a experiência estética pode substituir a experiência
religiosa no sentido funcional, mas não no sentido substantivo, e de que a
126
experiência estética pode ser uma experiência do sagrado (Paiva, 2004, p.
226).
A distinção entre religião substantiva e religião funcional é fundamental para
corroborar a tese da camuflagem do sagrado no mundo moderno. O conceito de
religião funcional é mais flexível e passível de ser compreendido a partir do
postulado da secularização. A arte, em todas as suas dimensões, não substitui a
religião, principalmente a religião substantiva e institucionalizada, todavia, as
produções humanas das sociedades secularizadas podem assumir funções
religiosas, porém, fora dos padrões convencionais adotados pelas igrejas ou
instituições religiosas. As produções artísticas denunciam um desejo humano de
auto superação e de uma busca pelo o incondicionado ou o absoluto, sem falar no
sentido que a arte pode proporcionar, tanto ao artista quanto aquele a quem a arte
se destina. Assim como a religião a arte fornece sentido a vida.
3.7. A Magia das Palavras
O poder mágico da palavra normalmente esteve ligado às palavras que são
pronunciada
s, ou seja, aquelas que são faladas. A eficácia sedutora das palavras
quando fixadas em um texto, ou seja, a palavra escrita, é, em comparação a palavra
pronunciada significativamente menor. Porém quando se trata da elaboração de um
pensamento abstrato, cujo rigor seja imprescindível, a palavra escrita é um recurso
mais eficiente do que a palavra falada.
127
Com o desenvolvimento da cultura escrita, o Ocidente assistiu a
concretização de conquistas culturais, filosóficas e científicas, inimagináveis sem a
reali
zação de um alfabeto. O helenista Havelock, ao investigar o surgimento da
escrita na Grécia antiga e as revoluções que o alfabeto grego provocou, afirma que:
sem a moderna cultura escrita, o que significa a cultura escrita grega, não teríamos
a ciência, a filosofia, a lei escrita ou a literatura e, tampouco, o automóvel ou o
avião (Havelock, 1995, p.31).
O que podemos presumir a partir da tese defendida por Havelock é que a
palavra escrita oferece as condições de possibilidade para o desenvolvimento da
filosofia e da ciência, ou seja, de um sistema conceitual próprio do racionalismo
desde o seu surgimento junto aos gregos. é possível elaborar determinados
conceitos abstratos e transmiti-los a uma comunidade filosófica ou científica se
houver um instrumento eficaz que permita fazê-lo, ou seja, a palavra escrita. Sem a
palavra escrita não existiria, portanto, a ciência, a filosofia a tecnologia, a literatura,
etc.
É bom ressaltar que Havelock está se referindo ao alfabeto fonético
desenvolvido pelos gregos a partir do alfabeto semítico do tipo silabário, isto é,
consonantal. Coube aos gregos, entretanto, a realização de um importante e
fundamental processo, ou seja, a introdução das vogais no seu alfabeto. O alfabeto
vocálico desenvolvido pelos gregos representou uma ruptura psicológica de
profundas repercussões para o pensamento e a subjetividade humana.
A palavra escrita, na sua origem grega, ainda assim, manteve uma relação
muito próxima com as tradições orais. As obras de Homero e Hesíodo, como foi
dito, são exemplo dessa proximidade entre a palavra escrita e a palavra
128
pronunciada das tradições orais. A primeira literatura escrita no Ocidente, como
dissemos anteriormente, foram a
Ilíada
e a
Odisséia
de Homero. Observa
-
se nestes
textos uma estrutura narrativa e ritmizada, padrões esses incorporados das
tradições orais. É somente com o desenvolvimento da prosa, que se inicia
especialmente com Platão, que a prática da escrita se distancia das influências das
narrativas orais. Lembramos aqui que o diálogo é o estilo literário da escrita de
Platão. Trata-
se para Platão de substituir uma concepção da verdade, que se apóia
sobre um dom excepcional de cunho irracional e de caráter indemonstrável, pela
pesquisa sistemática e racional das relações da palavra e da realidade (Arêas,
2004, p. 6) É essa escrita expurgada de todo e qualquer resquício de oralidade, que
vai se tornar o instrumento fundamental da atividade filosófica. O canto das musas é
paulatinamente silenciado e a magia das palavras cantadas cede lugar para as
palavras que vão expressar uma nova forma de pensar, cujo objetivo básico prima
pela objetividade e rigorosidade.
O poder mágico das palavras é lentamente substituído pela objetividade e
pelo rigor conceitual. Não existe lugar nessa nova configuração da palavra para o
extraordinário e para o maravilhoso. As palavras referem-se a coisas reais que
possuem um ente real e não a realidades imaginárias ou ilusórias. Marcel Detienne
explica o processo de laicização que ocorreu na Grécia, em relação a palavra e nos
ensina que:
Por mais absoluto que seja o império da palavra mágico-religiosa, alguns
meios sociais parecem ter escapado de sua influência. Desde a época mais
remota, possuem um outro tipo de palavra: a palavra-diálogo. Esses
dois
129
tipos de palavra opõem-se em toda uma série de pontos: a primeira é eficaz,
intemporal; é inseparável das condutas e dos valores simbólicos; ela é o
privilégio de um tipo de homem excepcional. Ao contrário, a palavra
-
diálogo é
laicizada, complementar à ação, inscrita no tempo, provida de uma
autonomia própria e ampliada às dimensões de um grupo social (Detienne,
1981, p. 45).
O processo de laicização da palavra está relacionado a diversas causas, mas
as principais são os fatores de ordem política como por exemplo, o surgimento da
cidade ou a
polis
e a sua organização política. Nesse novo espaço articulam-
se
outros personagens com diferentes discursos: o retórico, o filosófico, o jurídico e o
histórico. O triunfo da palavra-diálogo coincide com a nova organização política que
surge no âmbito da cidade, ou seja, a democracia. A palavra mágico-religiosa o
goza de nenhum prestígio em uma assembléia popular; ao contrário da palavra
mágico
-religiosa, a palavra-diálogo é usada para convencer o povo e ganhar o voto
dos cidadãos que compõem a assembléia. Aqui não cabe a sedução mágica da
palavra; é preciso, ao contrário convencer e para isso é necessário utilizar
argumentos bem consistentes e fundamentados. A palavra mágico-
religiosa
encontra o seu decl
ínio e
de agora em diante, a palavra-diálogo supera-a. Com o advento da cidade,
ela ocupa o primeiro lugar. Constitui o instrumento político por excelência ,
instrumento privilegiado das relações sociais. É através da palavra que os
homens agem no âmago das assembléias, através dela combatem, exercem
sua dominação sobre o outro. A palavra não está presa numa rede simbólico
-
religiosa, ela atinge sua autonomia, constitui seu próprio mundo no jogo do
130
diálogo que define uma espécie de espaço, um campo fechado onde se
enfrentam os dois discursos (Detienne, 1981, p. 54-
5).
A palavra mágico-religiosa cantada pelos poetas e inspirada pelas Musas é
capaz de exercer um fascínio sedutor, de encantar e emocionar aquele que a
escuta. Quando se está sob o efeito de seu charme, do prazer que elas provocam,
o mortal foge do tempo cotidiano, o tempo das misérias e das balbúrdias (Detienne,
1981, p. 40).
Na Grécia arcaica três personagens desfrutavam uma condição de prestígio
em razão de serem eles os de
tentores das palavras de verdade: o rei, o sacerdote e
o poeta. Primeiramente era a palavra do rei a palavra de verdade, todavia, a
eficácia desta palavra não estava apenas circunscrita a esfera do poder político. O
rei fundia em sua pessoa a figura do sacerdote e a do magistrado. Portanto a
palavra do rei detinha um poder para além do meramente político. No contexto da
soberania real da palavra a fala do rei tinha o poder instaurador da própria
realidade. A palavra do rei é carregada de um poder especial cuja potência é capaz
de ordenar e dá forma a um universo regido por forças cegas e obscuras. O dito do
rei a sua voz, e o gesto único que a acompanha, podem intervir diretamente seja
no curso dos fenômenos naturais seja no destino da comunidade humana qu
e
preside (Arêas, 2004, p. 8).
Com o fim da soberania do rei coexistem novos personagens que reivindicam
também para si esse privilégio de serem portadores da palavra de verdade, ou seja,
o sacerdote e o poeta. A imagem de um monarca monofônico que é, ele próprio, a
verdade, substitui-se a diversidade polifônica de delirantes divinos, cuja função é a
131
de interpretar, celebrar ou consignar sob a ótica de elogio e de censura o desígnio
dos deuses (Arêas, 2004, p. 10).
As palavras de verdade no contexto das sociedades de cultura oral não são
simplesmente uma forma de comunicação entre os seres humanos. As palavras
instauram e realizam a realidade.
[...] a palavra de verdade vale sempre pelo caráter gestual e evocativo, pela
situação concreta ou pela realidade que ela instaura. A palavra, enquanto
enunciação, constitui um espaço de realidade que ela exprime, é uma
potência orientada para o real. É ela que instaura ou realiza a própria
realidade, apresenta
-
a ou exibe
-a sem hesitação (Arêas, 2004, p. 4).
O desaparecimento do rei cria as condições para que as palavras de verdade
pudessem ser pronunciadas por outras pessoas. O domínio real da palavra é
substituído por uma forma de expressão heterogênea da verdade. A verdade neste
contexto não pertence mais somente a uma pessoa, uma infinidade de outros
personagens podem desfrutar do privilégio de serem agraciados com o dom
excepcional de se comunicarem com os deuses e viverem a divina loucura.
Podemos afirmar que o desenvolvimento do alfabeto fonético pelos
gregos,
representou a decadência de um sistema fundado sob o regime da audição. Com o
alfabeto é a visão o sentido mais explorado e, é a partir dela que todo um sistema,
cultural e psicológico irá se estruturar.
132
3.8. J. R. R. Tolkien: o mago da pal
avra
Um gênero literário que tem gosto pelo maravilhoso, pelo insólito e pelo
extraordinário é a literatura de ficção. Nesse tipo de literatura é comum a
abundância de narrativas míticas, como os grandes feitos heróicos e belíssimas
jornadas e aventuras de heróis e seres extraordinários. Autores como J. R. R.
Tolkien, C.S. Lewis e o brasileiro Guimarães Rosa são exemplo de romancistas que
escreveram um tipo de literatura que nos convida a efetuar, juntamente com os
seus personagens, verdadeiras jornadas h
eróicas. Os livros
O Senhor dos Anéis,
de
Tolkien,
As Crônicas de Nárnia, de Lewis e o Grande Sertão: veredas, de
Guimarães Rosa, são, para citar alguns exemplos, eles próprios quase que
verdadeiras realidades mitológicas a ponto de fundarem realidades
e estabelecerem
paradigmas de comportamentos, como fazem os mitos em seus contextos etno-
religioso.
Rosa Sílvia López, referindo
-
se ao livro
O Senhor dos Anéis,
pondera sobre a
questão da ruptura do tempo, porém com o acréscimo de uma outra ruptura, ou
se
ja, a espacial. Sendo assim, para ela o objetivo da narrativa é, pois, transcender,
ir além da palavra, e efetuar uma ruptura no espaço/tempo do cotidiano, inserindo-
lhe a perspectiva mítica (López, 2004, p. 28).
A obra de Tolkien é, sem sombra de dúvidas, uma obra cujo valor mítico-
poético é inquestionável. A sua obra ficcional é capaz de transportar o leitor a outros
níveis de realidade da mesma maneira em que o instiga a transcender a sua
condição histórica. A palavra cantada por Tolkien em sua epopéia é sedutora e ao
mesmo tempo possui uma musicalidade que envolve o leitor, seja ele jovem ou
133
adulto e o convida para ser partícipe desses majestosos acontecimentos que
aconteceram em um outro tempo e em um outro espaço, no tempo de outrora e
num espaço lon
gínquo.
Tolkien, que era filólogo, nutria uma verdadeira paixão pela palavra. A
palavra era a matéria prima com a qual ele construiu um universo com o qual os
seus leitores se encantavam e se sentiam fascinados. Os poetas gregos, inspirados
pelas Musas, seduziam a sua platéia e a envolviam num jogo mágico de encanto e
prazer. O nosso mago, da mesma forma que o poeta grego, também é possuidor de
um poder de seduzir os seus leitores e os remeter a um tempo sem duração.
Sobre o poder da palavra na obra de Tolk
ien, Sílvia López afirma que:
A palavra foi transformada em medium, em ponte, em elemento mediador
que transpõe as barreiras lingüísticas e temporais. Seus alunos diziam que
ele conseguia transformar a sala de aula em um salão de hidromel , como
se todos que estivessem ali ouvindo, se sentissem participantes de um
banquete dos tempos heróicos, a ouvir o bardo, a ouvir o poeta relatar as
aventuras, das quais todos os presentes haviam acabado de participar
(López, 2004, p. 37).
Como tivemos a oportunidade de ver anteriormente, esse poder mágico das
palavras esteve associado na Grécia antiga aos poetas, logográfos, mitólogos ou
contadores de histórias e que com o passar do tempo essa expressão cultural foi
perdendo a vitalidade e um outro tipo de discurso, com bases racionais, conquista
um espaço e se firma como o lugar da verdade, e para dizer com mais precisão, o
lugar da verdade por excelência. O mítico, o poético, o fantástico, o maravilhoso são
134
a antítese do racional, a sua contraparte, pois sem ela o
racional não conseguiria se
afirmar. Isto acontecia porque a medida de sua afirmação e de sua validação como
lugar da verdade é possível se ela também puder indicar o lugar do falso e do
mentiroso. Certamente esse lugar é ocupado pelo mito, pela religião, pela poesia,
pela literatura enfim pela arte de uma maneira geral. Para Avelino é preciso que
resgatemos do mito uma filosofia! Reincorporemos o mito à visão de mundo!
Adotemos a racionalidade mítica que dá importância ao que é importante! (Avelino,
2003, p. 82).
A obra de Tolkien é exemplarmente significativa para demonstrarmos como
temas e figuras mitológicas são materiais importantes na feitura dos textos literários
na modernidade. A literatura não é uma atividade pueril e desprovida de sentido
exi
stencial, de forma que entender a presença do mito na literatura é dá importância
ao que e importante.
3.9. Resumo e Perspectivas
Foi nosso propósito no capítulo III demonstrar, brevemente, como a literatura
se constitui como espaço de releitura e camuflagem dos mitos. Partimos da tese do
sagrado como estrutura de consciência para demonstrarmos que a camuflagem é
um modo de ser da sagrado no mundo moderno. Sendo o sagrado uma estrutura da
consciência e a modernidade um tempo e espaço por excelência da
dessacralização, acreditamos que seja possível admitir que a camuflagem é o modo
do sagrado se manifestar e a literatura um possível locus dessa manifestação.
135
Abordamos também a relação vivida da experiência de tempo pelos leitores
de textos literários e as possíveis conexões que esse processo mantém com as
rupturas de tempo vivenciadas pelo ser humano das sociedades tradicionais.
Buscamos ainda compreender um pouco de como se processou e ainda se
processa a transição da tradição oral para a tradição de cultura escrita e as
implicações que este acontecimento representou para o Ocidente, tanto do ponto de
vista das produções culturais como da constituição mental do ser humano dessa
sociedade.
Acreditamos que a equação oralidade
cultura escrita é um campo de
pesquisa que necessita de mais investigações no sentido de se tentar compreender
como o mito é tecido nessas duas dimensões da expressão do espírito humano.
136
CONCLUSÃO
Ao longo do presente trabalho buscamos elucidar como o mito se configurou
no horizonte mental e cognitivo das sociedades ocidentais modernas. Tínhamos
sempre em vista que o mito nos narra uma história sagrada e, portanto, é saturada
de significados para aqueles que ai depositam sentido e nelas acreditam.
A fenomenologia da religião, uma nova perspectiva epistemológica, tem se
dedicado ao estudo da religião e de temas correlatos, e tem contribuído para retirar
o estudo da religião da condição de disciplina subalterna e muitas vezes
instrumentalizada
por abordagens que não visam a compreensão da religião em si.
A religião tem se configurado em muitas teorias contemporâneas apenas como um
objeto secundário. Na sociologia da religião busca-se compreender a religião como
um viés para se chegar à sociedad
e. Na psicologia, o estudo da religião é justificado
tendo em vista um real conhecimento do psiquismo humano.
A fenomenologia da religião tem o mérito de situar o estudo da religião dentro
de uma perspectiva, cujo foco de interesse reside na própria religião. Na
fenomenologia não se estuda a religião para subsidiar um objeto primário
subjacente, neste caso a religião. Ela mesma é o objeto e por isso reclama um
método que seja capaz de oferecer um instrumental metodológico eficiente para
lidar com
esse objeto e torná
-
lo claro e inteligível.
137
A descoberta do homo religiosus, e para isso contribuiu muito a
fenomenologia, sinaliza para o reconhecimento de um modo de existência
específico independentemente das variadas formas histórico-
religio
sas existente no
mundo. É por causa desse homo religiosus que sempre somos capazes de
reconhecer que existe uma realidade absoluta, ou seja, uma realidade sagrada. O
sagrado é a realidade por excelência, é a fonte de poder e de sentido para o ser
humano que vive sob a sua tutela. O sagrado cria o mundo e sentido e
significado para as coisas do mundo, tornado-o real. Nesta perspectiva a realidade
é indissociável do sagrado. O sagrado é o Real.
O mito, dentro desse raciocínio, é um modelo exemplar que conta uma
historia sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo
do Tempo, ab initio. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um
mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses ou
Heróis
civilizadores (Eliade, 2001, p. 84). Assim como o sagrado é o real, o
verdadeiro, a narrativa mítica também o é na medida em que narra os feitos dos
deuses e Heróis, ou de Entes sobrenaturais. O mito revela a sacralidade absoluta
porque relata a atividade criadora dos deuses (Eliade, 2001, p. 86). A sacralidade
da narrativa mítica é pois inquestionável sob este prisma.
Os mitos, normalmente, proclamam como determinadas realidades
começaram a existir ou como passaram a ser. Os mitos, portanto, falam da
criação , de como as coisas passaram da não-realidade para a realidade. Neste
sentido eles são solidários da ontologia, pois eles falam das
realidades,
do que
aconteceu
realmente
, do que se manifestou plenamente (Eliade, 2001, p. 85).
138
Em razão de tratar da origem das coisas, de como elas passaram a existir em
um tempo primordial, o mito remete o ser humano para uma realidade anterior,
primeira e constituinte de toda realidade posterior.
Essa realidade percebida direta e imediatamente é o real por excelência. O
profano não compartilha dessa realidade, pois ele está circunscrito à não-
realidade,
ao ilusório, portanto não pertence ao ser. A dimensão ontológica do mito é
justificada na medida em que as narrativas míticas pertencem à esfer
a do sagrado e
por conseguinte compartilham do ser.
No mundo moderno a condição profana do ser humano adquiriu o status de
exemplaridade. É na contraposição ao sagrado que o profano se institui com
modelo e como paradigma de orientação do ser humano. A religiosidade do ser
humano das sociedades tradicionais passa a ser o contraponto da a-
religiosidade
das sociedades modernas. O ser humano a-religioso das sociedades modernas
afirma a sua condição existencial à medida em que promovem uma ruptura com o
universo sagrado do seu predecessor.
O esvaziamento do sagrado no mundo moderno significa entre outras coisas
uma nova situação existencial. Uma nova postura frente à vida é exigida desse ser
humano que se apartado das referências transcendentais e que é compelido a
buscar os sentidos de sua existência no factível, no concreto, no material, no
puramente histórico. O ser humano moderno é ser histórico; é na história, seja ela
individual ou coletiva, que se busca as razões da existência e as soluções para as
suas crises existências.
Esse ser humano sujeito e agente de sua própria história só é possível
porque ele promove um processo de dessacralização do mundo e dele mesmo. A
139
existência humana é dessacralizada, mas, apesar disso, o
homem moderno que se
sente e se pretende a-religioso carrega ainda toda uma mitologia camuflada e
numerosos ritualismos degradados (Eliade, 2001, p. 116).
Eliade aponta diversas situações em que é possível perceber a presença de
comportamento
s que seriam vestígios de ritos e mitos que são fácieis de notar no
comportamento do ser humano da sociedade contemporânea. Podemos usar os
exemplos enumerados pelo próprio Eliade; as festas de Ano Novo, as
comemorações de nascimentos, casamentos, o novo
emprego, a ascensão social, o
cinema, a literatura, o misticismo políticos, movimentos sociais, nudismo e outros.
A literatura se apresenta, como o próprio Eliade afirma, como uma
possibilidade de se encontrar vestígios do sagrado e/ou do mítico. A literatura pode
ser analisada, neste sentido, sob dois aspectos, ou seja, sob a égide dos temas
míticos que permeiam os textos literários, de um lado, e a função mitológica
condicionada ao processo de leitura, do outro lado. Para Eliade,
... os arquétipos míticos sobrevivem de uma certa maneira nos grandes
romances modernos. Os desafios que uma personagem de romance deve
vencer têm o seu modelo no herói mítico. Pôde igualmente mostrar-se como
os temas míticos das águas primordiais, da ilha paradisíaca, da procura do
Santo Graal, da iniciação heróica ou mística, etc, dominam ainda a moderna
literatura européia (Eliade, 2000 B, p. 27).
Já quanto a função mítica desencadeada pelo processo de leitura, Eliade diz:
a leitura substitui não só
a literatura [...] mas também o recital dos mitos nas
sociedades arcaicas. [..] Quer se mate o tempo com um romance policial,
140
quer se penetre num universo temporal estranho, representado num qualquer
romance, a leitura projecta o moderno para fora do seu tempo e integra-
o
noutros ritmos, fá
-lo viver outras histórias (Eliade, 2000 B, p. 28).
Dessa maneira fica claro que tanto na via da constituição do texto literário
quanto no acesso a esse texto encontram-se estruturas míticas e processos de
ruptura temporais ocasionados pelo ato de ler.
A nossa intenção, neste trabalho, foi demonstrar que, mesmo no mundo
tipicamente dessacralizado como o nosso, é possível encontrar mitologias
camufladas, tanto na literatura quanto em outros contextos. A literatura é
singularmente importante porque ela, além de reeditar os mitos e temas da
mitologia, é capaz de promover as rupturas com o tempo cotidiano e nos mostra
que é possível transitar em ritmos temporais distintos do tempo cotidiano que nos
opr
ime e nos angustia.
A hierofania é o momento mágico e inaugural no qual o sagrado se mostra,
todavia, quando os homens começam a se esquecer desse tipo de experiência
humana, ele sorrateiramente resiste, se camufla e evoca em contextos inesperado
s
a experiência do totalmente Outro. Na literatura, no cinema, nos espetáculos, nas
festas e às vezes até mesmo no insólito pode-se ter a experiência ou um encontro
com o extraordinário e dionisíaco mistério da vida.
141
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VEYNE, P. Acreditaram os Gregos Nos Seus Mitos? Tradução de Antônio
Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1987.
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