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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
MUSEU NACIONAL
FAMÍLIA E REDES SOCIAIS: UM ESTUDO SOBRE PRÁTICAS E
ESTILOS ALIMENTARES NO MEIO URBANO
Rogéria Campos de Almeida Dutra
Rio de Janeiro
2007
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FAMÍLIA E REDES SOCIAIS: UM ESTUDO SOBRE PRÁTICAS E ESTILOS
ALIMENTARES NO MEIO URBANO
Rogéria Campos de Almeida Dutra
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
s-Graduação em Antropologia Social, do Museu
Nacional, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do tulo de Doutor em Antropologia
Social.
Orientador: Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves
Velho
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2007
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Dutra, Rogéria Campos de Almeida
Família e redes sociais: um estudo sobre as práticas e estilos
alimentares no meio urbano/ Rogéria Campos de Almeida
Dutra - Rio de Janeiro: UFRJ/ MN, 2007.
xi, 303f.: il.; 31cm.
Orientador: Gilberto Cardoso Alves Velho
Tese (doutorado) – UFRJ/ Programa de Pós-Graduação/
Museu Nacional, 2007.
Referências Bibliográficas: f. 287-303
1. Alimentação 2. Redes Sociais 3. Família 4. Consumo
5. Antropologia Urbana 6. Níveis de cultura. I. Velho,
Gilberto Cardoso Alves. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social. III. Título.
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FAMÍLIA E REDES SOCIAIS: UM ESTUDO SOBRE PRÁTICAS E ESTILOS
ALIMENTARES NO MEIO URBANO
Rogéria Campos de Almeida Dutra
Orientador: Gilberto Cardoso Alves Velho
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, do Museu
Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Antropologia Social.
Aprovada por:
_____________________________
Presidente: Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves Velho
_____________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte (PPGAS/MUSEU NACIONAL/UFRJ)
_____________________________
Profa Dra Yonne Leite (PPGAS/MUSEU NACIONAL/UFRJ)
_____________________________
Profa Dra Karina Kuschnir (PUC – RJ)
_____________________________
Profa Dra Sandra Regina Soares da Costa (UERJ)
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2007
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos, que de uma forma ou de outra, contribuíram para a concretização
deste trabalho, às redes de apoio que me sustentaram nesta aventura.
Agradeço ao Prof. Gilberto Velho, meu orientador, a oportunidade de
amadurecimento intelectual que resultou de trabalhar sob sua orientação, sua amizade e
confiança. Sou grata à disponibilidade com que me recebeu dez anos depois da conclusão do
mestrado, também sob sua orientação. Não posso deixar de mencionar a importância do
Prof. Luiz Fernando Dias Duarte em minha formação nem a especial profundidade de suas
reflexões.
Ao Programa de s-Graduação em Antropologia Social na figura de sua
coordenação, seus professores, secretaria e biblioteca. A meus colegas agradeço o interesse
com que discutiram e acompanharam meu trabalho.
Agradeço também aos imprescindíveis recursos financeiros da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal (CAPES), sob a forma de bolsa de estudos, que possibilitaram materialmente a
conclusão de créditos do doutorado e do trabalho de campo.
Sou grata às famílias e seus amigos que generosamente deixaram-me compartilhar de
suas vivências. Muito mais que “informantes”, anfitriões, que partilharam sua intimidade e
seu afeto, sem os quais não seria possível a realização deste trabalho.
Sou grata a Tomio Kikuchi pelo exemplo de sua vida, por seus ensinamentos, que
têm me possibilitado a experiência mais intensa e intencional da existência.
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Em especial agradeço a minha e, a Cleyde, a Kátia, a Cecília, todos família, que me
deram o apoio imprescindível à realização deste meu projeto.
A Sebastião Pité, Ilka, Kossin e Taisin agradeço a paciência com que aguardaram a
presença plena da esposa e mãe para a continuidade de nossos sonhos partilhados.
A todos eles toda minha gratidão
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RESUMO
DUTRA, Rogéria Campos de Almeida. Família e Redes Sociais: um estudo sobre práticas e
estilos alimentares no meio urbano. Rio de Janeiro, 2007. Tese de Doutorado em
Antropologia Social. Programa de s-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2007.
Orientador: Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves Velho
Esta tese se insere no campo das reflexões sobre a dimensão cultural da alimentação,
do papel da comida como mediador das relações sociais e das relações consigo próprio, ou
seja, sua posição estratégica na expêriencia subjetiva da cultura. Ao estudar padrões de
comestibilidade e comensalidade na constituição do gosto, analisa a questão do consumo na
sociedade contemporânea. Tem como objetivo a investigação das práticas e estilos
alimentares no meio urbano, apresentando como foco de análise a experiencia familiar. Ao
eleger famílias de classe média cariocas, com diferentes formas de inserção, seja por
habitarem diferentes bairros, seja pelo tempo biográfico do grupo familiar, procura refletir
sobre a organização social do meio urbano, assim como sobre a questão dos ciclos de
desenvolvimento do grupo doméstico. O parentesco na vida cotidiana assume uma nova
dimensão no contexto da grande metrópole, onde a familia convive com outros grupos de
referência, fazendo-se necessária a investigação de redes sociais de forma a se compreender
os repertórios potenciais dos vínculos.
Palavras – chave: Alimentação, família, redes sociais, consumo.
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ABSTRACT
DUTRA, Rogéria Campos de Almeida. Família e Redes Sociais: um estudo sobre práticas e
estilos alimentares no meio urbano. Rio de Janeiro, 2007. Tese de Doutorado em
Antropologia Social. Programa de s-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2007.
Adviser: Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves Velho
This PhD Dissertation inquiries into the cultural aspects of food. It investigates the
importance of food to create and mantain social relations and its role in the subjective
experience of culture. It aims to bring out the relevante of food preferences and food choices
considering the modern industrial society as a world of goods. It also inquiries into middle
class families so as to understand the social organization in a great city, Rio de Janeiro,
through the investigation of family groups distributed in different areas of the city that are
situated in different stages of the developmental cycle of domestic group.
Key words: Food, family, social networks, consumption
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................. 10
CAPÍTULO 1: A Alimentação na História da Antropologia
1.1. Dos aspectos rituais e sobrenaturais do consumo ....................... 17
1.2. Das lógicas particulares na produção e no consumo ................... 22
1.3. Das lógicas simbólicas ................................................................ 35
1.4. Das diferentes perspectivas ........................................................ 42
CAPÍTULO 2: O Gosto e a Sociedade Contemporânea
2.1. Incerteza, frugalidade, celebração .............................................. 56
2.2. A civilização do apetite
2.2.1. Cálculo, cortesia e urbanidade ..................................... 63
2.2.2. O intercâmbio colombiano .......................................... 70
2.2.3. Os novos padrões de sensibilidade burguesa .............. 78
2.3.4. Apetites privados no espaço público .......................... 85
2.3.5. A construção da “Cozinha Nacional” ......................... 90
2.3.6. O desafio da amplitude ............................................... 102
CAPÍTULO 3: O Cultivo da Relacionalidade: a multiplicidade das formas e
sentidos da família
3.1. Família e parentesco na teoria antropológica............................ 108
3.2. A construção social da família moderna................................... 122
CAPÍTULO 4: A Experiência Local: práticas relacionais e alimentares em três
diferentes contextos
4.1. Delimitando o território.............................................................. 145
4.2. Vivendo e relacionando na Zona Norte: a família Soares.......... 153
4.3. A experiência na Zona Oeste: a família Pinzón......................... 173
4.4. Vivendo e relacionando na Zona Sul: a família Prado............... 191
9
CAPÍTULO 5: Teias Humanas, Urbanas: interdependência, autolimitação,
incorporação
5.1. Das camadas médias................................................................... 209
5.2. Os repertórios familiares............................................................ 221
5.3. Das práticas e estilos alimentares.............................................. 240
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 283
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................... 287
10
INTRODUÇÃO
O estudo da alimentação tem local privilegiado na análise cultural. Através da discrição da
prática cotidiana, desenrola-se esta atividade indispensável à sobrevivência humana. Contudo,
a complexidade dos digos alimentares o se reduz à satisfação das necessidades
fisiológicas. A partir de um sistema particularmente elaborado sobre o comestível, o não
comestível, ou o alimento xico, temos acesso a um tipo de ordenação social e cosmológica:
definir os alimentos comestíveis, a forma de prepará-los, combiná-los, as situações de
utilização, com quem repartir. Os hábitos alimentares nos permitem conhecer uma sociedade;
falar de cozinha não se limita a falar de prazeres gustativos, mas fundamentalmente de
princípios simbólicos.
Se a ordem cultural é construída em termos da coerência de um mundo diferenciado e
unificado; a ordem alimentar constitui-se em um dos níveis onde se exprime simbolicamente
a representação do mundo. Lévi-Strauss (1964) foi um dos autores que mais enfatizaram o
espaço da cozinha como cenário privilegiado de reprodução das classificações culturais de
uma sociedade. Aliás, a partir de uma perspectiva universalista, focaliza-a como experiência
humanizadora: assim como não existe sociedade humana sem língua falada, não existe
sociedade que, de um modo ou outro não processa seu alimento. A culinária, então, seria
esfera privilegiada de acesso à cultura, na medida em que revela o uso social dos alimentos. A
forma como se apreende e se relaciona com a natureza, a qualidade das classificações que se
utiliza e o modo como são manipuladas definem-se como instâncias definidoras da
11
singularidade cultural. É neste sentido que a cozinha de uma sociedade revela-se como eixo
central da integração entre Natureza e Cultura. O acesso aos alimentos, sua in-corporação,
será sempre mediada pela forma cultural.
Cada sociedade opera a escolha que julga culturalmente comestível. A condição de
onívaros representou para os humanos um avanço marcante na possibilidade de
sobrevivência. Os circuitos informativos de nutrição se multiplicam, diminuindo, assim, a
depenncia direta do meio. Amplia-se, potencialmente o universo comestível. Contudo, nem
tudo que é comestível é classificado como tal. Não basta que as coisas sejam boas para comer,
como se refere Fischler (2001) numa clara alusão a Lévi-Strauss; é preciso que sejam boas
para pensar. “Pensar” no sentido da classificação do mundo, da ordenação da realidade,
princípio básico da dimensão cultural, e que envolve também as práticas alimentares. Cada
cultura tem seu próprio critério de palatabilidade; nem tudo que é comestível é concebido
como tal.
As regras culinárias operam as associações plausíveis entre certos alimentos, ou os
interditam, de forma semelhante às exigências gramaticais de determinada língua: as
impropriedades alimentares são desprovidas de sentido, podendo provocar ruídos na
comunicação, assim como uma frase mal construída.podemos entendê-las dentro da lógica
intrínseca da cultura e da sociedade considerada. Em termos nutricionais nada nos impede de
comermos a sobremesa, ou beber o cafezinho como princípio do almoço; assim como nada
nos impede a prática da entomofagia, como o fazem certos povos orientais, africanos ou
mesmo ameríndios brasileiros. As proteínas desta fonte alimentar, inclusive, são reconhecidas
como de melhor assimilação do que a carne. Contudo, a degustação do inseto não nos apetece.
Qual é a diferença entre se deliciar com camarões ou grilos fritos? Os odores de certos
alimentos tanto podem provocar a salivação apetitosa quanto a repulsa, como é o caso de
certas conservas ou tipos de queijos. As moléculas odorantes, percebidas pelas células
12
olfativas são idênticas, mas a significação da experiência da realidade é diversa. Assim
também, insere-se na dimensão da ordenação do mundo e classificação cultural o “lugarda
comida, ou seja, em que contextos ela apresenta-se como alimento, ou como sujeira. Cabelo e
comida, em nossa cultura, é uma combinação particularmente perigosa, nos termos de
Douglas (1976). Desta forma, se uma sopa no prato é uma imagem plausível dentro de nossa
gramática cultural, esta mesma sopa, por um respingo que seja, teria outra consideração se
encontrada na barba. A variedade das escolhas alimentares provém da variedade de sistemas
culturais; e se podemos afirmar algo de universal sobre a experiência cultural é exatamente
sua diversidade intrínseca.
Comer não é neutro, mas algo mágico. Para Fischler (op.cit.), a angústia do ovaro
manifesta-se tanto pelo desafio da escolha quanto pelo processo de incorporação. Incorporar
um alimento envolve assimilar, num plano real e imaginário, as suas propriedades. O
alimento, como vimos anteriormente, não existe sem sua significação; sua ingestão
possibilita o contágio e posteriormente a similitude de suas propriedades. Assim, o alimento
consumido tende a transferir certas características àquele que come, como por exemplo, o
frescor de uma fruta, o vigor da carne e do sangue, ou mesmo a coragem de um guerreiro num
ritual antropofágico.
Neste sentido podemos destacar a importância fundamental da alimentação como tro
constitutivo de nossa identidade, na medida em que representa esta incorporação
cotidianamente decidida. A comida e a cozinha são elementos fundamentais do sentimento
coletivo do pertencimento. Ao se dedicarem à questão das minorias sociais, diversos autores
(cf. Douglas, 1984; Flanzer, 1994; Gans, 1962; Sered, 1988) têm enfatizado a importância do
hábito alimentar como fato cultural na constituição da identidade étnica. O discurso étnico
apresenta, freqüentemente, critérios de unidade biológica e moral onde elementos do
cotidiano, como a culinária, se transformam em instrumentos de exercício de distinvidade.
13
Vale ressaltar a dinâmica muito particular no estabelecimento destes marcos distintivos, pois
eles se fazem fundamentais, ou não, de acordo com o contexto. A sobrevivência de um
sistema alimentar étnico depende de certo grau de segregação da minoria, representando,
muitas vezes, a defesa a uma ameaça externa de despersonalização, dissolução. Gans ( 1962 )
chama-nos a atenção, no estudo de uma comunidade italiana nos Estados Unidos, que os itens
da culinária italiana são observados e valorizados muito mais na situação de um casamento
socialmente reprovado, como na união com um “outsider”, do que num casamento
endogâmico. É de Peter Fry (1982 ) a observação de que um simples prato pode revelar
processos diferenciados de auto-definição cultural. A feijoada, por sua relação ao passado
escravocrata, é reconhecida, nos Estados Unidos, como “soul food”, ou seja, símbolo da
negritude resgatado pelo movimento de liberação negra. no Brasil, ao prato é conferido um
significado simbólico diferente poder-se-ia dizer até oposto pois é apreendida (e
difundida) como símbolo de nacionalidade. Enquanto na primeira situação observa-se a
ênfase na distinção, o caso brasileiro expressa a tendência à incorporação, onde itens culturais
elaborados pelos negros (como a feijoada) são assimilados pela sociedade brasileira como um
todo.
Comer também não é neutro quando observamos as interseções possíveis entre a nutrição e
o sagrado. Não é neutro na medida em que significa privar a natureza de alguma coisa para a
sobrevivência humana. Os rituais de sacrifício, presentes na cultura grega, assim como as
oferendas aos orixás representam este diálogo com o divino. A ritualização das práticas
alimentares se desdobra, freqüentemente, por dois caminhos: pelo sacrifício determina nossa
relação com o sobrenatural; pela partilha, simboliza e reafirma os laços de união entre
indivíduos e com as instituições religiosas e poticas. Tais aspectos nos demonstram a
capacidade da comida em marcar relações sociais e celebrar grandes ou pequenas ocasiões.
14
O bito alimentar também se apresenta como testemunho cotidiano de nossa condição
(quase) inescapável de consumidores. Fenômeno típico da experiência social da modernidade,
conhecer a lógica cultural do consumo possibilita-nos o acesso ao imaginário da sociedade
contemporânea. Através do consumo temos acesso a bens mediadores de relações sociais, o
que se reproduz através das trocas alimentares. A vida social no meio urbano, em particular,
apresenta-se dinâmica, complexa, resistente a formas clássicas e estáticas de compreensão.
Traz-nos questões novas, como o papel do consumo alimentar na constituição da identidade
pessoal, sua atuação na experiência subjetiva do prazer e as possibilidades que oferece ao
auto-cultivo”, não deixando, contudo de continuar operando como forma social de distinção.
Este trabalho tem como objetivo a investigação das práticas e estilos alimentares no
ambiente urbano, apresentando como foco de análise a experiência familiar. O estudo da
família e do parentesco tem sido objeto de reflexão da antropologia desde sua constituição,
vindo nos demonstrar, em suas diferentes perspectivas, que a família não é natural, e sim fruto
das configurações de ordenações simbólicas particulares. Se podemos defini-la, a experiência
das relações de parentesco e da família, e de forma gerica, como um acordo que possibilita
as pessoas a viverem juntas e cooperarem umas com as outras na vida social cotidiana,
certamente que são múltiplas as condições de instauração e regulação desta convivência. Nas
sociedades tribais, por exemplo, os grupos de parentesco ocupam papel preponderante na
localização das pessoas na sociedade. Caracterizam-se principalmente pela coesão, pela
convergência de interesses e sentimentos, permeados pela relação de autoridade, onde, na
maioria das vezes, os direitos dos pais se tornam absolutos e os deveres dos filhos,
inescapáveis. Contudo, a experiência moderna de família, nuclear e metropolitana traz
características particulares, não só na localização deste grupo no meio social, como nas
relações internas entre seus membros. As camadas médias, portadoras por excelência da
ideologia individualista, se definem como agentes centrais na construção da sociedade
15
capitalista moderna. O imperativo em “estar sempre à frente”, o gosto pelas inovações,
associado ao projeto de autoconstrução e à situação de freqüente mobilidade contribuem
certamente para a moldagem do grupo familiar. O conceito de redes sociais vem a se
apresentar como de grande valor na interpretação da condição instável e transiria deste
indivíduo moderno e urbano, que de uma forma ou de outra, “pertence” a uma família.
Meu foco de interesse para reflexão das práticas e estilos alimentares são famílias de
camadas médias cariocas com diferentes formas de inserção espacial e temporalmente - na
cidade do Rio de Janeiro. São famílias residentes em três regiões da cidade, que se situam em
fases diferenciadas do ciclo de vida doméstico. O objetivo da seleção de grupos familiares em
diferentes bairros, reconhecidamente habitados por camadas médias, tem o sentido de refletir
sobre o processo de organização social do espaço urbano; em outros termos, a segmentação
simbólica da metrópole. As diferenças geracionais entre os grupos visam enriquecer a
discussão de sua localização, tratam do ciclo de desenvolvimento de sua identidade blica,
pois que a cada fase biográfica familiar, um novo grupo de desafios e possibilidades se
apresenta a seus membros.
Um sistema social tem uma vida, mantido pela sucessão de gerações, pelo crescimento e
desenvolvimento de humanos, incorporados através da educação. Este processo de reprodução
social tem sido delegado, pelo menos até o presente momento, ao grupo doméstico. O
processo de substituição faz-se crucial dada a limitação da existência humana, que por outro
lado, precisa ser mantida, através da nutrição. As refeições, por diferentes modalidades que
possam existir da mais estruturada à mais informal representam a justaposição entre a
existência individual e coletiva. O grupo familiar, dentre outros, apresenta a peculiaridade de
fazer a mediação entre estas duas dimensões.
O estudo da alimentação, no sentido de hábitos e representações, tem se revelado como
campo rtil para a reflexão antropológica, a meu ver, particularmente procuo por
16
descortinar naturalizações profundas que podem e devem ser problematizadas. Meu interesse
por este tema vem da experiência do mestrado, quando me dediquei, através da questão da
“Cozinha Mineira”, às reflexões sobre a identidade/cozinha regional. Por ora retorno a este
tema no sentido de investigar o papel da alimentação como mediador das relações sociais,
marcador de posições, assim como seu caráter constitutivo da relação consigo próprio, sua
posição estratégica dentro da experiência subjetiva da cultura. Compreender as representações
orientadoras das práticas e estilos alimentares exige-nos o reconhecimento de que padrões de
comestibilidade, assim como regras de comensalidade são de fato construídos, inclusive ao
longo do tempo, pois que o gosto contemporâneo também tem sua hisria. Tema da historia
mundial, inseparável de outras interações dos seres humanos, uns com os outros e com o resto
da natureza, a alimentação pode nos dizer muito sobre nosso tempo.
Tal qual o testemunho de Joseph Epstein (cf. Mintz & Du Bois, 2002: 2), quase vinte
anos atrás, sobre uma percepção do crescente (e curioso) interesse pela alimentação em nossa
sociedade:
Ten years ago I should have said that any fuss about food was
great, but I grow older and food has become more important to me…
Judging from the space given to it in the media, the great number of
cookbooks and restaurant guides published annually, the
conversations of friends it is very nearly topic number one.
Restaurants today are talked about with the kind of excitement that
ten years ago was expended on movies. Kitchen technology
blenders, grinders, vegetable steamers, microwave ovens, and the
rest arouses something akin to the interest once reserved for
cars(…).
17
CAPÍTULO 1
A Alimentação na História da Antropologia
1.1. Dos aspectos rituais e sobrenaturais do consumo
Sacrifícios humanos e espíritos não chegam a constituir um problema sério na
cultura contemporânea...(Douglas, 1986). Cultos “demoníacos” do canibalismo, e outros
temas afins, ocupam, em nossas representações, algum lugar na ficção científica e nos filmes
de terror. Contudo, se hoje tais temas são fonte de entretenimento, foram objeto de grande
interesse intelectual há pouco mais de 100 anos atrás.
Ao que parece a Antropologia, ao amadurecer, tornou-se mais modesta, chegando até
mesmo a duvidar se jamais poderia compreender outra cultura. Não era esta, entretanto a
mentalidade hegemônica do pensamento antropológico em seus primórdios. Um dos
problemas fundamentais para o pensamento do século XIX foi o alvorecer do pensamento
humano. Aos antropólogos cabia decifrar os costumes dos povos “primitivos”, explicar a
enxurrada de informações sobre crenças e práticas aparentemente insanas que chegavam ao
continente através de viajantes, administradores, aventureiros e missionários. Dar sentido ao
insensato e absurdo; esclarecer a crueldade e a irracionalidade de formas de agir e de pensar,
foi o grande desafio daquela época. Imbuídos de tal tarefa, os antropólogos tornam-se o centro
da atenção popular, tal como hoje sicos e astnomos que possam nos trazer alguma notícia
sobre a vida em outros planetas. A estratégia que se fez compreensível e possível, então, foi
construir a unidade original do pensamento humano, e por conseqüência do pensamento
religioso.
18
Compreender a solução evolucionista ao lidar com as práticas exóticas requer destacar
aquele momento como particularmente fértil à enunciação de grandes profecias e explicações:
a ordenação de todas as espécies vivas em quadros evolutivos para tornar a vida esclarecida
em toda sua variedade, o entesouramento nos museus do mostruário fantástico da criatividade
“humana”, a crença de que as grandes crueldades cometidas pelo “homem” contra o próprio
“homem” eram coisa do passado. Podemos destacar W.R.Smith e James Frazer como
grandes protagonistas deste período, ao enfatizarem o processo de evolução social da razão”
humana: um processo de atenuação, através da simbolização, da crueldade das imolações
rituais, através da evolução fluente da religião.
Desde que o tlogo William Robertson Smith estudou, no final do século XIX, o sacrifício
e a comida, a antropologia tem se preocupado com a questão alimentar. O sacrifício era um
tema que suscitava grande interesse do pensamento europeu, reconhecido na literatura
sobre a sociedade greco-romana, como A Cidade Antiga de Fustel de Coulanges
([1864]1971), onde era relatado o costume da oferta de alimentos aos antepassados e a
responsabilidade moral de alimentá-los. A investigação antropológica, contudo, neste
momento, se desloca da veneração dos ancestrais para o exame das ligações entre a oferta de
alimentos às entidades espirituais e outros aspectos da organização social. Robertson Smith
preocupa-se particularmente com os efeitos, na coesão social, da distribuição do alimento
sagrado, onde o comensalismo é visto como grande catalisador da solidariedade:
The ethical significance which thus appertains to the sacrificial meal,
viewed as a social act, received particular emphasis from certain
ancient customs and ideas connected with eating and drinking.
According to antique ideas those who eat and drink together are by
this very act tied to one another by a bond of friendship and mutual
obligation. Hence when we find that in ancient religions all the
ordinary functions of worship are summed up in the sacrificial meal,
and that the ordinary intercourse between gods and men has no other
form, we are to remember that the act of eating and drinking together
is the solemn and stated expression of the fact that all those who share
19
the meal are brethren, and that all the duties of friendship and
brotherhood are implicitly acknowledged in their common act. By
admitting man to his table the god admits his friendship; but this
favour is extended to no men in his mere private capacity; he is
received as one of a community, to eat and drink along with his
fellows, and in the same measure as the act of worship cements the
bond between him and his god, it cements also the bond between him
and his brethren in the common fait.( Smith, W. R. The Religion of
the Semites, 1889:247-8, cf. Goody, 1982:12)
No outro lado do Atlântico, o desafio do pensamento antropológico é catalogar e
explicar o exotismo que se faz tão próximo, ou seja, as centenas de etnias nativas do território
americano. Coronel do exército reformado e já trabalhando no Smithsonianan Institut, Garrick
Mallery publica, em 1888, no American Anthropologist, o artigo “Manners and Meals”.
Mallery, que ficou conhecido por sua contribuição ao estudo da linguagem dos sinais entre os
nativos americanos, expressa o choque cultural do ocidente frente às práticas alimentares
ameríndias. Em Manners and Meals defende a ritualização das práticas alimentares como
específica dos “civilizados”, procurando traçar a origem dos utensílios da mesa, como o garfo,
a faca e a colher. Se por um lado Mallery foi um defensor do estatuto da linguagem de sinais
como instrumento de comunicação intertribal e não como resultado de uma deficiência
lógica nativa por outro, este texto em particular revela toda a mentalidade etnocêntrica da
época, quando compara a forma de comer entre europeus e os nativos americanos: a seu ver,
enquanto os civilizados faziam refeões, os selvagens simplesmente comiam, ou devoravam,
agachados e sem noções de higiene.
Na Europa novamente, ao buscar a unidade original do pensamento religioso desde o
culto primitivo dos arianos, Frazer , influenciado por W.R.Smith, dedica parte de sua obra à
investigação dos tabus alimentares. Afinal, o desafio de sua época era exatamente dar sentido
às informações sobre crenças excessivamente exóticas que chegavam à Europa. Frazer
focalizou as práticas alimentares essencialmente em seu conteúdo simbólico, analisando-as
dentro do conjunto de crenças e práticas gico-religiosas da “humanidade”. A partir de uma
20
perspectiva evolucionista, seu projeto era reconstruir a progressão histórica das imolações
humanas: de festins canibalescos, passando pelos rituais antropofágicos, sacrifícios de
animais e chegando aos nossos dias na forma dos cerimoniais simbólicos no rito cristão.
Do they eat everything edible?” Do they eat their enemies or their friends?” Estes
são exemplos de algumas questões que Frazer pedagogicamente discute em pequeno texto
didático,“Questions on the Customs, Beliefs and Languages of Savages”, publicado pela
Cambridge University Press em 1907. Outro autor que se destaca neste período é Ernest
Crawley (cf. Goody, 1972), que se dedica à reflexão das possíveis relações entre sexo e
comida em The Mystic Rose (1902), na tentativa de responder às questões entre comensalismo
e gênero, ou dos motivos pelos quais maridos e esposas em muitas situações evitavam comer
juntos.
No século XIX o interesse antropológico na comida centrou-se largamente nos
aspectos rituais e sobrenaturais do consumo, onde tabus, totemismo e sacrifico se definem
como traços que, expulsos do cristianismo, permaneciam presentes em grande número de
sociedades. Tais autores buscam a explicação racional de elementos sobreviventes à luz da
evolução social das instituições. Apesar do isolamento das queses alimentares de seu
contexto social, não podemos desqualificar completamente estas contribuições. Afinal, os
evolucionistas destacaram certos traços gerais do comportamento humano que estão
intimamente relacionadas às questões posteriormente analisadas pela antropologia.
A pesquisa antropológica, pom, tomou rumos radicalmente diferentes; tanto a
observação de campo quanto a imersão do pesquisador numa sociedade específica
estimularam a compreensão de tais práticas como que relacionadas à cultura como um todo.
Os traços isolados se recontextualizam, colocados dentro de um processo social mais amplo.
A partir de então, a antropologia não mais deixou de se envolver com o “comer”.
A própria situação de “contato”, por exemplo, que se torna fundamental para a constituição do
21
ethos antropológico s-Frazer, é efetivada muitas vezes através do pacto da cordialidade, da
troca de gêneros alimentícios e do partilhar da refeição. A preocupação com a construção
dietética de uma determinada sociedade, assim como suas relações simbólicas, se deu de
forma variável no tempo e no espaço, entre os diversos períodos e as diferentes escolas
antropológicas. Em linhas gerais podemos relacionar as diversas abordagens com a própria
busca desta ciência em compreender o paradoxo entre a universalidade biológica e a
particularidade simbólica; uma trajetória que não deixa de representar a busca de sua própria
identidade.
De forma ampliada, podemos traçar algumas características deste contexto pioneiro de
pesquisa de campo e disciplina metodológica. A maioria dos antropólogos era composta por
homens que dedicavam pouca atenção às práticas alimentares: nas palavras de Mintz
(1996:3), [they] didn’t find such matters especially interesting”. Os temas que mais
estimulavam a reflexão acadêmica, em geral, versavam sobre a guerra, a iniciação, sucessão e
parentesco. (Mintz,op.cit.). A cozinha, desta forma, ocupava papel secundário como objeto
de pesquisa; até mesmo por pertencer, nas sociedades tribais, ao campo feminino de atuação,
cabendo às mulheres a coleta, o trabalho agrícola e a própria preparação do alimento. Assim,
as práticas alimentares, ao invés de objeto, se tornavam instrumento de estudo de outros
aspectos da vida social, tais como as celebrações, os sacrifícios, a relação com os deuses, os
tabus alimentares, as prescrições religiosas, o canibalismo, o papel do alimento na hierarquia,
dentre outros. As referências aos hábitos alimentares, quando ocorriam, se justificavam pelo
exotismo, ou repulsa aos olhos ocidentais.
A exceção que se fez a esta tendência dominante refere-se ao trabalho de Franz
Boas na América do Norte. Em longa etnografia da sociedade Kwakiutl, dedicou detalhada
atenção aos utensílios culinários, além de reunir uma coleção de receitas nativas. Boas
ressalta, inclusive, a diferença entre o seu paladar ocidental, que não conseguia diferenciar o
22
sabor dos variados pratos à base de peixe e óleo cru, e a classificação nativa dos sabores,
instauradora não de diferentes sensações gustativas, como de usos sociais.(cf.Freyre,
[1939]1997).
Da preocupação inicial com aspectos rituais e sobrenaturais, quando ainda se definia
pelo exotismo enquanto objeto, passamos por diferentes fases, estando a questão das práticas
alimentares diretamente inseridas nas discussões mais recentes da Antropologia, onde a
revisão de paradigmas ocidentais profundos e constitutivos da realidade como a relação
indivíduo e sociedade, natureza e cultura estão presentes. Este capítulo propõe-se, nesta
primeira parte, à reflexão de momentos relevantes da história da antropologia no que se
refere às práticas alimentares.
1.2.Das lógicas particulares na produção e no consumo
Concomitante ao trabalho boasiano, a Europa assiste ao florescimento da pesquisa
antropológica a partir de sua vertente britânica, já envolvida com excursões acadêmicas e a
descrição sistemática de costumes exóticos, sob a orientação de Rivers. Fundamental para a
construção deste campo de reflexão foi o papel desempenhado pela “revolução funcionalista”.
Novas questões de orientação do campo teórico, novas formas de se pesquisar vieram a se
impor, em contraposição à perspectiva evolucionista e à visão difusionista da vida cultural das
sociedades. Destacam-se como principais protagonistas dessa revolução os fundadores da
Escola Brinica de Antropologia: Bronislaw Malinowski e Radcliffe-Brown.
Após sua estadia nas Ilhas de Trobriand, entre 1915 e 1918, e a publicação de
Argonautas do Pacífico Ocidental, em 1922, Malinowski chegou a ser reconhecido por toda
uma geração de adeptos como o “criador de uma disciplina inteiramente nova” (Kuper,
23
1978:7), como ele próprio gostava de se autoproclamar. Contudo, vale ressaltar que tal
revolução” teve como cenário um clima propício e receptivo a novas idéias, em que se
faziam presentes críticas sistemáticas à abordagem evolucionista e suas reconstruções
especulativas do passado da humanidade.
Para além do “trabalho de campo” como regra metodológica, esta nova
perspectiva preocupava-se, de forma mais modesta e realista que as visões anteriores, em
reconhecer e preservar a especificidade de cada sociedade, as lógicas particulares,
características de cada cultura. Seu empenho, buscar a “função” dos costumes, hábitos e
instituições, partindo-se da idéia de que tudo na vida social teria um sentido. Este sentido
poderia ser entendido nos termos do sistema social da inter-relação das partes no qual o
costume, o hábito e as instituições são as partes. A ênfase de Robertson Smith no papel do
comensalismo como promotor e estabilizador das relações sociais em muito se aproxima de
temas centrais perseguidos por estes novos pesquisadores, particularmente influenciados pela
sociologia durkheimiana. São autores que se utilizam, da ferramenta conceitual “fuão” para
explicar, dentre outros aspectos da vida social, a produção e o consumo alimentar. A função
da organização deste processo seria, em última instância, a manutenção do sistema social. Ao
invés de uma explicação puramente religiosa como em R.Smith , busca-se uma explicação
“social”
The Andaman Islanders (1964), de Radcliffe-Brown, é uma monografia que apresenta
estudos feitos no Golfo de Bengala entre 1906 e 1908. Pertence à “era” de pesquisas de
campo pré-Malinowski, ainda influenciadas pelo estilo de Rivers e Selingmen. Apesar de sua
inserção ter sido limitada (o autor teve grandes dificuldades de adaptação, como por exemplo,
dominar a ngua nativa ), e ainda estar fortemente influenciado por certo historicismo, a
busca de origens então em voga (Radcliffe-Brown declara ser seu principal interesse
24
depoimentos sobre como era a sociedade antes do contato com o mundo europeu) esta
monografia já apresenta o esboço de suas idéias de estrutura social.
Habitante de um pequeno arquipélago pertencente à Índia, esta população, de
característica semi-nômade, era composta por cerca de 1300 habitantes subdivididos em duas
ilhas. De acordo com o autor, a sociedade andamanesa se organizava em tribos, baseando-se
na composição familiar mínima como unidade doméstica (pai, mãe e filhos) e na clássica
divisão social do trabalho: a mulher dedicando-se à provisão de vegetais, lenha e água, e o
homem se responsabilizando pela caça. Possuíam uma agricultura incipiente, com a
propriedade coletiva da terra. Apesar de referir-se a certas práticas alimentares, e mais
especificamente ao ritmo sazonal da dieta variações do alimento básico entre mel e frutas
selvagens, porcos e peixes seu foco de análise concentra-se na conduta e sua regulação a
partir dos costumes e instituões:
It is only after his marriage that he [the boy man] becomes
relatively independent and free to please himself in his own actions,
and even then he is required to provide his parents or his foster
parents with food, and to serve in any way they may need. (p.78)
Dedica, neste sentido, particular atenção ao que chamaria de costumes
cerimoniais”, ou seja, ações coletivas executadas convencionalmente no curso da vida social,
cujo propósito seria a expressão, e, portanto a manutenção e transmissão, dos sentimentos
pelos quais a conduta do indivíduo é regida, em conformidade com as necessidades da
sociedade. A comida, neste sentido tem como fuão social promover a proliferação de
sentimentos que contribuem para a socialização dos indivíduos como um membro da
sociedade. Para Radcliffe-Brown, as regras da vida social andamanesa poderiam ser
traduzidas num sistema de direitos/deveres, a partir da definição dos papéis sociais. Assim, as
condutas passavam pelo crivo da aprovação ou repreensão: ações (e sentimentos) tais como
25
preguiça, infidelidade conjugal, desrespeito aos mais velhos, mau humor, ou crueldade,
seriam considerados anti-sociais.
É dentro desta perspectiva que Radcliffe-Brown enfatizará o “valor social” da
comida, o seu significado no mundo andamanês, expresso pela ritualização que envolve as
práticas alimentares. certos alimentos, por exemplo, cujo consumo é acompanhado por
normas e tabus; de acordo com o autor, geralmente seriam estes os alimentos preferidos, ou os
mais inacessíveis, raros ou de aquisição arriscada.
The obtaining of food is the principal social activity and it is an
activity in which every ablebodied member of the community is
required by custom to join (…) Thus food is, for the Andaman
Islanders, the one object above all others that serves to awaken in
him day after day the feeling of his relation to his fellows. (p.270-1)
Objeto de histórias e músicas, fonte de euforia –a experiência de fartura- e de
dysphoria” - a experiência de escassez-, o alimento é algo a ser tratado cuidadosamente, com
respeito e precauções rituais: “...the most valued moral qualities in the Andaman Islanders
are energy in providing food and generosity in distributing it.” (p.271)
Vale aqui destacar o aspecto da “conduta” que envolve as práticas alimentares,
conduta esta que se apresenta como instância analítica particularmente enfatizada no campo
antropológico inglês. A dimensão cerimonial das construções dietéticas é priorizada; ela
revela-se como situação privilegiada de expressão de sentimentos e comportamentos (que são
sociais) de forma mais pura, sendo então este o foco de análise deste autor. Outra questão a
ser considerada refere-se a certo “pragmatismo utilitário” na forma de se abordar o “valor da
comida”, que posteriormente se apresentará de forma mais acentuada em Malinowski. Apesar
de também enfatizar a dimensão da sobrevivência” em relação ao alimento; o valor aqui é
mais coletivo do que individual (biológico/psicológico); valor sociológico e o no sentido
simbólico como posteriormente irá desenvolver Lévi-Strauss. Os ritos de iniciação entre os
26
andamaneses teriam, a seu ver, o papel de promover sentimentos sociais, onde o neófito passa
por um processo de educação moral através da abstinência de certos alimentos, enfatizando
sua completa dependência, enquanto indivíduo, da sociedade. Destaca-se como grande
contribuição de seu trabalho, que será exercitado pelos seus discípulos, esta circulação de um
nível macrofuncional, ou societário, para a análise microfuncional, no nível das instituições,
ou seja, as proibições alimentares nos rituais m um sentido mais amplo. Mais tarde
Radcliffe-Brown aprimorará sua visão de cultura enquanto sistema adaptativo, no qual cada
elemento - sejam costumes, hábitos e instituões tem funções especiais, contribuindo para a
sobrevivência da sociedade. Diferentemente de Malinowski, a função de um elemento e no
caso estamos falando da comida seria o papel que ele representaria em toda a vida social,
em conformidade com as necessidades vitais da sociedade; abordagem esta que lhe
possibilitará a introdução, de forma mais clara, da noção de sistema social.
Baseando-se em técnicas radicalmente novas de pesquisa, Bronislaw Malinowski
descreve a vida social Trobriandesa em duas monografias principais: Os Argonautas do
Pacífico Ocidental e Coral Gardens and their Magic. Em seu primeiro livro, publicado em
1922, este autor busca reconstituir, na descrição etnográfica, a integração e a coerência
interna da cultura trobriandesa. A partir da análise do Kula, reconsti a trama de costumes
desta sociedade, com forte ênfase nas interligações; nenhum aspecto da cultura, a seu ver,
deveria ser estudado isoladamente, pois esta se definiria essencialmente por sua natureza
integrada. Todo e qualquer costume, portanto, e entre estes as práticas alimentares, existiria
para preencher um determinado propósito. O “sentido” de práticas e condutas, exóticos aos
olhos ocidentais, não implicaria nas discussões profundas defendidas por Frazer ou Tylor; ao
contrário, deveriam ser compreendidos a partir da investigação de seu uso. Desta forma, antes
que irracional ou imoral, o trobriandês é apresentado como coerente e compreensível.
Malinowski enfatiza ser as atividades, o comportamento humano real, o locus do elemento
27
verdadeiramente sintético, responsável pela coesão interna da vida social. A
instrumentalidade da cultura assegura a racionalidade inerente da função institucional, na
medida em que seu objetivo último é a satisfação das necessidades individuais, sejam elas
biológicas ou psicológicas(cf. Malinowski, 1975)
Neste primeiro trabalho Malinowski aborda questões referentes à vida familiar,
atividades econômicas e magia. As referências às práticas alimentares são esparsas e pouco
detalhadas, como o fato dos habitantes de Bowoytalu (p.61) serem desprezados e
considerados impuros por comerem arraias e porcos do mato, ou a referência ao ritual mágico
Vilamalya (p.133). Tendo como cenário o celeiro e a acumulação da colheita, este ritual tem
por finalidade fazer com que os habitantes diminuam o apetite, fiquem propensos a comer
frutas silvestres e recusar o inhame. De acordo como o autor, os nativos se vangloriam
quando, sendo o feitiço bem feito, metade dos inhames armazenados apodrece e é
descartada. A relação entre o selvagem e os bens materiais o seria, desta forma “puramente
racional”, na medida em que acumulam alimentos não como estoque, mas para exibi-los.
Ainda segundo Malinowski, o centro de gravidade das festas não se encontraria no ato em si
de comer, mas na exibição e no preparo cerimonial dos alimentos.
Tudo isto nos mostra que o ato social de comer e o convívio dele
resultante não estão presentes na mente ou nos costumes dos
trobriandeses, o que é socialmente apreciado é a admiração coletiva
da qualidade e quantidade dos alimentos e o conhecimento de sua
abundância. (p.135)
Em Coral Gardens and their Magic, trabalho publicado em 1935, este autor se
dedica ao processo de aquisição do alimento básico da sociedade trobriandesa, tratando do
cultivo do inhame, as celebrações que envolvem, o exercício de poder dos chefes e a
redistribuição da comida através dos laços matrilineares de parentesco, destacando o papel
fundamental da magia neste contexto.
28
Sob a perspectiva pragmática, a cultura, define-se para este autor, primordialmente
como campo da modalidade, na medida em que molda instintos e necessidades básicas de
forma singular (cf.Malinowski, 1975). As práticas mágicas teriam como objetivo aliviar a
angústia da incerteza, da força das dimensões incontroláveis que afetam a vida tribal, tais
como catástrofes naturais, doenças e infortúnios. A família, assim, se definiria como um meio
eficaz de domesticação do instinto sexual. Declara ainda Malinowski, ao prefaciar o livro de
sua aluna Audrey Richards (1948) que, apesar de ter dedicado atenção particular à questão do
impulso sexual numa sociedade selvagem, faltou-lhe a devida consideração sobre a fome
enquanto instinto básico, pois entre os melanésios, o motivo mais importante da vida em
comunidade, e interesse do indivíduo, seria a comida, e não o sexo. Tais considerações
reforçam a concepção malinowskiana de que a função de uma instituição seria a de preencher
propósitos ou necessidades vitais, biológicas e psicológicas, ao contrário de Radcliffe-Brown
e as “necessidades da sociedade”. Em termos de prioridade, tanto humana quanto social, a
fome teria ascendência ao sexo, pois enquanto este representa, para Malinowski, uma força
potencialmente destrutiva (desruptive) que deve ser regulada; a fome (e a comida) tanto
implica como resulta em sentimentos de cooperação.
É de Adam Kuper (1978) o irônico comentário de que as monografias elaboradas
por seguidores de Malinowski, mais que monografias funcionalistas, seriam malinowskianas,
na medida em que refletiriam diretamente seus interesses pessoais de pesquisa. Certamente,
Hunger and Work in a Savage Community (1948) de Audrey Richards se enquadraria neste
comentário, apresentando-se como contraponto ao trabalho de Malinowski sobre a vida sexual
dos selvagens (cf Malinowski, 1973 ).
Nutrition as a biological process is more fundamental than sex”. (p.1). Assim a
autora inicia o livro, onde pretende tratar das funções sociais e culturais do processo
alimentar. Interessa-a a abordagem da nutrão como força criativa, expressa na maneira
29
como as pessoas comem, sua influência na vida social, na emergência gradual dos valores
sociais, o esforço cooperativo e a necessidade de troca. O contexto social descrito por
Richards, as tribos Bantu na África Central, define-se pela alternância cíclica, sazonal, entre
períodos de fartura e escassez. Frente à competição interna para satisfação das necessidades
do grupo em ambiente de parcos recursos alimentares, a cena cultural ofereceria umdigo de
condutas, baseado em direitos e deveres, para direcionar este impulso biológico. Dada a
situação de precário armazenamento e transporte deficiente, a reciprocidade surge como
estratégia fundamental de controle da fome. Richards refere-se, inclusive à teoria
malinowskiana de “Princípio da Inseguraa Social”, fenômeno este comum às sociedades
“selvagens”: as dificuldades de sobrevivência em tais ambientes estimulariam a extensão das
relações de parentesco a grupos mais distantes do núcleo familiar, numa estratégia de auto-
ajuda. Afinal, ainda de acordo com a autora, as relações de parentesco definem as regras que
governam a produção e a distribuição do alimento. A autoridade paterna - o respeito que lhe é
delegado, assim como o medo e a obediência – está intimamente ligada à possessão e controle
do suprimento da comida. Para Richards, a fome seria a motivação principal das relações
humanas, podendo-se estabelecer o sistema nutritivo de uma sociedade como análogo a seu
sistema reprodutivo.
A base de sobrevivência dos Bantu resultaria da combinação entre agricultura,
atividades pastoris e a caça, adaptando-se, como os andamaneses, ao ritmo sazonal de oferta
de alimentos. Uma dieta monótona, aos olhos ocidentais, submetida a variações drásticas: às
vezes passam a feijão, cogumelos, frutas selvagens. A autora afirma ser comum, inclusive, “as
cólicas do excesso”, quando a fartura de determinado alimento se anuncia, seja após a caçada
de um grande animal, seja consumindo os primeiros frutos; tal como os trobriandeses
acometidos por desinteria em conseqüência da ingestão de inhames verdes.
30
Richards dedica parte deste trabalho ao destaque conferido por aquela cultura às
diferentes sensações fisiológicas vivenciadas pelos nativos em sua prática alimentar, desde os
variados graus de fome e subnutrição às diferentes formas de saciedade. Em escala gradativa
classificam e experimentam socialmente: a repleção, a satisfação, a satisfação parcial, o vago
desconforto premonirio da fome, e por fim dores agudas das contrações gástricas, languidez
e dissociação mental como resultado da inanição. Os Bantu possuem uma rica experiência nas
mudanças psíquicas produzidas por condições físicas, sendo inclusive capazes de reproduzir
uma sensação física a partir do que comem; o que a autora vai definir como as “bases
fisiológicas do uso ritual da comida”, como a utilização de purgantes e vomitivos ou a própria
prática de jejum, freqüentemente utilizado como propiciador do contato com o supernatural.
De acordo com Richards, o homem “primitivo”, ou o Bantu especificamente, adquire suas
crenças sobre a natureza do comer baseando-se na rica variedade de sensações por ele
provocadas, sejam elas fisiológicas ou psicológicas. Estas crenças são expressas em todo tipo
de tabus e restrições sobre o uso da comida.
In fact we cannot analyze the whole system of values centered round
food in a primitive tribe unless we bear in mind the physiological
nature of nutrition and the native theory of digestion current in that
particular society. (p.170)
Para além desta dimensão, podemos destacar um segundo aspecto da sacralização
das práticas alimentares, o fato do alimento ser fruto do trabalho árduo e do esforço
cooperativo, sendo por isto permeado por um sentimento dúbio entre querer o alimento e
relutar em consumir aquele objeto de “complexas sensações emocionais”. Algo como a
amizade do Nuer, descrito por Evans Pritchard (1978), com seu gado e a relutância de matar
alguma rês, ou a própria relutância do trobriandês em comer seus inhames. Além disto,
ainda a consideração da comida enquanto valor social, resultado do esforço comunitário
comum e símbolo da coesão social.
31
Food is sacred because it is the summit of the primitive man’s
ambitions and well being, but also because it represents the ties of
kinship by which he is bound. (p.213)
Outra referência que merece ser lembrada é um artigo de Meyer e Sonia Fortes
Food in the domestic economy of the Tallensi, de 1936 (cf. Goody, 1982), que também trata
de aspectos da produção e consumo de alimentos no nível doméstico. Em seus estudos mais
detalhados sobre os Tallensi, Fortes retoma de forma curiosa o interesse dos precursores”,
Frazer e R. Smith, ao dar especial atenção aos aspectos do consumo alimentar relacionados à
religião, ao sacrifício em particular, que a seu ver se definiria como um importante
mecanismo solidariedade grupal.
Malay Fisherman de Raymond Firth (1966) e Housekeeping among Malay
Peasants, de Rosemary Firth (1966) são monografias resultantes da pesquisa de campo do
casal no final da década de 30 na Malaia. Fazem parte dos estudos de comunidade e cultura
material então em voga, procurando focalizar a questão da sobrevivência e da subsistência.
Podemos considerá-los como estudos complementares, numa divisão clássica de nero, na
medida em que R. Firth analisa a linha produtiva da atividade pesqueira numa pequena
comunidade de pescadores da província de Kelatan, enquanto Rosemary, sua esposa,
concentra-se na ponta do ciclo produtivo, ou seja, o consumo doméstico. Baseando seus
estudos na convivência comunitária com estes habitantes durante 11 meses, este casal de
antropólogos ingleses teve a oportunidade de retornar vinte anos mais tarde à mesma
localidade por mais 8 meses, e comparar os dois períodos.
A comunidade sobrevive através da pesca artesanal, baseada em tecnologias
simples com baixo nível de produtividade. Interessa a Firth identificar como esta comunidade
se sustenta por uma rede de trabalho cooperativo regido não só por leis econômicas como por
obrigações de parentesco. Rosemary se concentra nos “modos de vida” desta comunidade,
32
ou o que a família realmente faz com o que consegue ganhar. Para a autora, a rotina doméstica
é de importância vital para a compreensão de qualquer sistema econômico, na medida em que
a “casa” se define como unidade básica de distribuição e utilização de riquezas, dentro de
um todo interligado e funcional”. O desafio comum a toda economia doméstica nesta
comunidade consiste não em ter o suficiente para manter-se vivo, mas também satisfazer
demandas religiosas, regras e obrigações sociais “tão importantes para a vida do grupo como a
simples subsistência é para a vida do organismo”.
Como alimento básico, estes pescadores têm o arroz, que é complementado por
peixes e vegetais variados. O arroz ocupa papel de prestígio, simboliza riqueza, sendo
freqüentemente distribuído e oferecido em cerimônias em diversas ocasiões, como funerais e
casamentos. A importância básica da comida na economia familiar pode ser detectada na
expressão chari nickan, significando “ganhar a vida”, ou literalmente “buscar comida”.
A autora ainda analisa as possíveis transformações desta pequena comunidade
face à situação de mudança social ocorrida nestes vinte anos de intervalo entre suas estadias.
A seu ver, as mudanças no campo econômico, tecnológico e ideológico têm a possibilidade de
oferecer um variado leque de escolhas a uma pessoa, para as quais, porém, ela não foi
preparada. A melhoria dos meios de transporte trouxe maior variedade de bens e serviços à
aldeia, assim como maior contato com o mundo externo. Contudo, a expansão de facilidades
pode concomitantemente aumentar o “sentimento subjetivo de pobreza”, na medida em que se
tem a oferta de bens diversificados, mas não se tem o acesso. A melhoria do comércio nesta
localidade resultou na redução do comércio artesanal de alimentos, como o caso de algumas
mulheres que preparavam quitutes e lanches rápidos baseados na culinária tradicional para
serem vendidos entre os aldeões. Outras transformações se anunciavam com as oportunidades
educacionais e o serviço assistencial do governo, exigindo-se, porém destes pescadores a
melhoria de técnicas produtivas e o controle da natalidade.
33
Uma atenção especial é dedicada ao convívio doméstico e à organização dos
gastos com a sobrevivência, registrando-se as provisões alimentares, a quantidade consumida
em cada refeição, ou o consumo per capta. O livro é ainda enriquecido com detalhes da vida
cotidiana do pescador malaio como a divisão do trabalho doméstico, detalhes sobre a
educação infantil e a higiene da casa. Em relação aos hábitos alimentares, o livro traz ao final
um conjunto de receitas tradicionalmente utilizadas pela comunidade à base de diferentes
tipos de arroz, qualidades de peixes, coco, pimentas e vegetais variados. Ilustra com a própria
experiência pessoal um aspecto curioso da cultura malaia, o fato das refeições não se
constituírem, freqüentemente, como acontecimentos sociais, pois cada um se serve e come
solitariamente. Assim, convidado para um jantar de despedida, por grandes amigos aldeões, o
casal se viu atônito quando lhe foi oferecida uma mesa fartamente servida com pratos
especiais, enquanto na cozinha permaneceram seus anfitriões, comendo o trivial.
Em termos gerais podemos verificar a preocupação deste casal em investigar o
funcionamento do sistema econômico desta comunidade, aquilo que lhe possibilita a
sobrevivência. A marca da tradição britânica, particularmente de Malinowski, se faz presente
no desafio da reconstrução detalhada da vida social, na busca das funções primordiais e,
sobretudo, o que nos interessa particularmente, na preocupação com a forma como se satisfaz
a necessidade vital de comer através de uma sociedade culturalmente integrada. Anos depois,
Firth iria rever o estilo das monografias malinowskianas, ressaltando a dificuldade em
promover sínteses relevantes, confundindo-se facilmente a relevância analítica da conexão
empírica. (cf. Kuper,1978). Contudo, tais pesquisas, e em particular o trabalho de Rosemary
Firth faz uma associação reflexiva fundamental para pensarmos a questão das práticas
alimentares, que é a investigação da economia local e as formas de organização doméstica e
familiar.
34
Não dúvidas a respeito da importância destes trabalhos para a reflexão sobre as
construções dietéticas. Definindo-se como uma linha particular de pesquisa, estas
monografias fazem parte de um período em que o estudo da comida e da fome era
considerado básico para a compreensão das relações sociais, da vida potica, da questão da
mudança social.
A antropologia britânica se caracteriza, neste período, por seus estudos da
organização social e ecomica de sociedades não industrializadas, subsistindo
principalmente de recursos locais. Destacam ainda que não se poderia ignorar o fato de que a
procura, a preparação e o consumo da comida forneciam o foco primeiro da atividade diária
destes grupos,consumindo-lhes a maior parte do tempo. Os valores emocionais e simbólicos
envolvidos na prática alimentar certamente se referiam a esta necessidade primeira de
sobrevivência enquanto indivíduo ou grupo. Enfatizam também a centralidade da cooperação
social na aquisição e distribuição de víveres.
Em termos gerais, podemos resumir a contribuão da escola funcionalista, no que toca
às práticas alimentares, ao fato dos costumes exóticos não serem mais explicados pela crença
numa suposta evolução humana, mas em termos da posição em que ocupam numa sociedade
específica, onde a “função” seria o conferir sentido ao que não é compreensível”. Uma
noção ainda pouco elaborada do que seria esta dimensão simbólica” da vida social. Verifica-
se também a ausência da dimensão hisrica, da noção de processo que em muito contribuiria
para compreensão dos fatos presentes. E num exercício intelectual poderíamos nos indagar:
afinal, se existe a função, por que não tratar dos componentes “desfuncionais” enquanto tal?
Motivadores de um processo de contínua transformação? Novamente nos deparamos com a
premissa de uma sociedade estática, cujas formas de nada ou pouco se alteram.
35
1.3. Das lógicas simbólicas
Após a Segunda Grande Guerra os trabalhos monográficos se diversificam,
assim como crescem as diferenças internas dentro do campo inglês. A própria situação das
colônias brinicas se modifica, ocorrendo uma integração cada vez maior de culturas antes
isoladas ao fluxo dominante do mercado internacional. No que se refere aos estudos sobre as
práticas alimentares, a influência do pensamento simlico francês, através de Lévi-Strauss se
faz marcante. Podemos dizer que depois de Lévi-Strauss a antropologia não seria mais a
mesma. É de Fischler o comentário de que enquanto os ingleses estudam a comida, os
franceses examinariam a cozinha, referindo-se assim a uma diferença de abordagem entre
estes campos. (cf. Menezes, 1997). Este comentário tem certa pertinência, principalmente se
considerarmos o período inicial da história da antropologia britânica; pom, posteriormente,
autores tais como Mary Douglas e Edmund Leach - e suas reflexões sobre as práticas
alimentares - estabelecerão laços criativos entre estas duas tradições.
Não vida de que o nome de Lévi-Strauss está vinculado de forma marcante aos
estudos da cozinha e da comida, trazendo para este campo uma forma maussiana de se pensar
a realidade. Se num primeiro momento este autor segue a tradição de correlacionar formas de
pensar e outros aspectos da vida social, ele avança no sentido de investigar a estrutura do
pensamento humano, ou mesmo da mente humana. Para atingir tal fim, ou seja, identificar as
estruturas profundas e relacionar atitudes inconscientes dos indivíduos e a estrutura social de
um grupo, Lévi-Strauss destaca alguns temas que ao seu ver se apresentariam como que
universais, relacionados à evolução e à própria constituição do humano. Da análise das
instituições que envolvem o sexo, como incesto, casamento e parentesco, volta sua atenção à
comida. A primeira referência ao interesse trico neste tema aparece em 1958 com a
publicação de alguns comentários em Anthropologie Structurale, onde analisa
36
comparativamente, de modo breve, as estruturas fundamentais da cozinha inglesa e da
cozinha francesa. Como a língua, a cozinha de uma sociedade seria “...analisável em
elementos constitutivos, que poderíamos chamar neste caso de “gustemas”, os quais são
organizados conforme certas estruturas de oposição e correlação (...):
Cozinha inglesa Cozinha Francesa
endógena /exógena +
central/ periférica +
marcada/ não marcada +
Em outras palavras: na cozinha inglesa os pratos principais das refeições compõem-se
de produtos nacionais preparados de maneira insípida e os complementos são produtos
de base exótica, onde todos os valores diferenciais estão fortemente marcados (chá,
bolo de frutas, doce de laranja, porto). Na cozinha francesa, ao contrário, a oposição
endógena/ exógena se enfraquece ou desaparece, e os “gustemas” igualmente
marcados são combinados entre si, quer na posição central como periférica. (cf. Lévi-
Strauss, 1985:107)
Sua triologia, Mythologiques (Le Cru et le Cuit; l’Origine des Manières de
laTtable et L’Homme Nu) vão trazer referências marcantes ao processo culinário. Nos estudos
sobre mito aborda o papel do fogo na transformação do cru para o cozido, um processo tão
significativo para a emergência da humanidade, quanto o foi o tabu do incesto. Se na história
da antropologia, o fogo havia sido objeto de reflexão, principalmente nos estudos sobre
ritos, Lévi-Strauss o trata de forma destacada na transformação da comida, tanto nas
narrativas dos mitos como nos termos dos processos em que é preparado. Propõe, então, para
analisar os aspectos distintivos de uma cozinha o nome de gustemas ou unidades que
traduziriam sabores básicos, em clara relação à sua influência da lingüística. Em L’Arc (1965)
a análise do processo culinário faz uso do modelo lingüístico de forma diversa: as unidades
básicas “gustemas” tornam-se tipos de operações básicas de transformação da comida, do
estado cru ao estado cozido. Como a linguagem, o cozinhar é universal nas sociedades
37
humanas. O triângulo culinário segue os moldes do triângulo de oposições básicas na
lingüística, o triângulo vogal e o triângulo consonantal.
a k cru
u i p t cozido apodrecido
Fig. 1: Os triângulos vogal, consonantal e culinário (cf. Goody, 1972:20-1)
No triângulo culinário subjaz uma dupla transformação: entre elaborado/ não elaborado e
entre cultura e natureza. O cozido se define como transformação cultural do cru, enquanto o
apodrecido, como transformão natural, tanto do cozido quanto do cru. De forma diversa à
de Richards, que procura produzir um conhecimento exaustivo sobre determinado grupo,
Levi-Strauss objetiva encontrar as constantes na estrutura partindo da análise de diferentes
sociedades. O triângulo culinário se torna posteriormente mais complexo, introduzindo outros
aspectos da preparação da comida para o consumo, como o “defumar” e o “guisar”:
Cru
assado
(-) (+)
Em termos de meios, assar e defumar estão mais do lado da natureza, em oposição
ao guisar, do lado da cultura, na medida em que os primeiros requerem o mínimo de
cru
assado
(-) (+)
Ar Água
(+) (-)
defumado guisado
cozido apodrecido
Fig. 2: O triângulo culinário de Lévi-Strauss em sua segunda versão (cf.Goody,1972: 22)
38
equipamentos, ficando a comida em contato direto com o fogo; cozer, por sua vez, exige a
produção do vasilhame. Em termos de resultado, defumar está do lado da cultura, pois
segundo o autor, assar muda a carne profundamente enquanto defumar transforma o alimento
em substância preservada. assar e guisar aproxima-se da natureza ao se identificarem com
o apodrecido.
Os limites de aplicação de tais esquemas são variados. O uso emrico destes
instrumentos tem pouco alcance, na medida em que tais classificações são por demais
arbitrárias”, assim como as justificativas. Tomemos por exemplo a primeira tentativa de
sistematização das polaridades no processo culinário, onde este autor compara as cozinhas
francesa e inglesa. Ao que parece a própria avaliação do que seja “francesa” ou “inglesa”
simplesmente reproduz num vocabulário acadêmico a imagem francesa da culinária inglesa;
além de estar comparando a “alta cozinha francesa” com expressões culinárias inglesas de
cunho doméstico. Conforme alguns autores (cf. Goody, op.cit.) que questionam a eficácia de
uma interpretação estruturalista da realidade, a busca de um código fixo, ou a estrutura
profunda que repousaria em qualquer comportamento aparente, seria útil se servisse para
predizer outras estruturas superficiais desconhecidas, o que de fato este tipo de análise não
permite. Ao que parece, a apresentação de um sistema classificatório não explica
necessariamente a realidade. Não explica as origens nem as mudanças nos padrões de
preferência, reduz a visão de processo, buscando a dimensão estática e constante nas
estruturas; sob esta perspectiva os aspectos imutáveis tornam-se mais reais e significativos do
que outros, como por exemplo, as transformações do uso da comida pela mudança cultural.
Trata-se de um exercício de análise abstrata que exclui considerações concretas de fatores
sociais, tais como o momento histórico, ou a posição na estrutura social. Quanto às
limitações do binarismo, a escolha dos termos culinários torna-se fruto de certa
39
arbitrariedade cultural por parte do autor, uma vez que se apresentam grande variedade de
sentido e operações.
É neste sentido que Goody (op.cit.:216)) apresenta o trabalho de Adrianne
Lehrer como exemplo de uma possível aplicação do triângulo culinário de Lévi-Strauss.
Lehrer faz uma análise comparativa entre a cozinha inglesa e a cozinha de mais oito etnias,
incluindo os franceses e os yorubas, com o objetivo de investigar os princípios de
classificação. De modo preliminar limitações de se tirar conclusões extensas sobre “a
cultura”, ou aquelas culturas em particular. Primeiro, e de acordo com Lehrer, pelo fato do
modelo fonológico binário de Jackobson ser muito restrito às possibilidades da prática
culinária; segundo, devido ao estatuto de centralidade que ocupa a distinção entre
assar/cozer na análise levi-straussiana, na medida em que, nas línguas investigadas, as
polaridades se apresentariam noutros termos. E, finalmente, porque para a maioria das
culturas referidas “defumar” não é representado como processo de cozimento e sim de
conservação.
Contudo, Lehrer não rejeita completamente o triângulo culinário, apresentando como
proposta um tetraedro tridimensional. Ao invés de priorizar lexemas, utiliza as práticas
operacionais; os fatos comuns entre as diferentes etnias referem-se ao uso semelhante de
materiais e técnicas na cozinha, práticas “do mundo exterior”, e não de uma estrutura interna.
Não há, portanto, uma estrutura neutra de conceitos culinários, que seja válida para todas as
línguas, produzindo-se então diferentes estruturas semânticas. A busca de universais lógicos
seria, a seu ver, fruto de uma desconsideração ao jogo constante entre processo social e
formas de linguagem.
40
grelhar
assar no vapor
AR ÁGUA
fritar
ÓLEO
Fig.3. O tetraedro das operações culinárias de acordo com Lehrer ( Goody, 1972: 219)
Não vidas, porém, de que o estudo antropológico das práticas alimentares deu
um salto qualitativo após as contribuições de Lévi-Strauss, influenciando diversos autores tais
como Mary Douglas, Roland Barthes, Pierre Bourdieu e M. Sahlins. Podemos dizer, de
forma ampla, que uma das grandes virtudes do estruturalismo, que se fará presente nestes
trabalhos posteriores, foi reconhecer que o gosto é culturalmente moldado e socialmente
controlado. Estes autores laam novas luzes aos dilemas e características das sociedades
ocidentais, modernas e industriais, a partir da cozinha , da comida e do consumo.
Certamente tais análises em muito podem fortalecer o pensamento reflexivo sobre as
práticas alimentares, contribuindo para a visão de que a pluralidade de formas alimentares o
se restringe a diferentes culturas, mas se faz presente dentro da mesma sociedade. Em
particular, as sociedades complexas têm se revelado como campo fértil de análise da íntima
relação existente entre as regras de comestibilidade e as regras de conduta social. Bourdieu
(1979 ) traz grande contribuição a este campo ao analisar as estratégias de aspiração social
traçadas pelas classes componentes da sociedade francesa, onde o consumo alimentar, dentre
41
outros aspectos, opera como elemento distintivo.. As preferências alimentares, refletindo o
universo simlico daqueles que as partilham, traduzem, mas principalmente reforçam, o
status daquele grupo, sua localização, não só dentro da sociedade, como dentro de uma
mesma classe social.
Sahlins (1979), por sua vez, analisa o comportamento alimentar da sociedade norte-
americana demonstrando-nos serem as escolhas alimentares resultantes de algo mais do que a
razão prática”, ou a lógica do mercado. Os padrões de comestibilidade atuam
simultaneamente em dois níveis. Como valor estruturante da cultura como um todo - o fato,
por exemplo, dos ocidentais não comerem carne de cachorros e como valor distintivo - o
fato das vísceras animais, objeto de repulsa controlada, serem destinadas às camadas
inferiores da sociedade, em função da impossibilidade monetária de acesso a carnes mais
nobres. De forma diferenciada, estes autores procuram explicar a distribuição contemporânea
de preferências alimentares através do processo social de exclusão.
Jack Goody (1982) é outro autor que merece destaque, na tentativa de analisar a
cozinha no contexto mais amplo - seja regional, seja temporal, seja hierárquico - do processo
de produção, preparação e consumo numa perspectiva comparada. Parte da constatação de
que, diferentemente da sociedade eurasiana, as culturas tradicionais africanas não apresentam
uma cozinha diferenciada internamente entre as classes superiores e inferiores. Ao investigar
os motivos pelos quais tais sociedades passam a apresentar a diferenciação interna entre high
e low cuisine, este autor constrói uma alise valorosa da relação entre cozinha e hierarquia
ao longo da história, de forma que se compreenda o processo de desenvolvimento da
produção industrial dos alimentos.
Outros autores contemporâneos de grande contribuição à reflexão das práticas
alimentares nas sociedades industriais, como Claude Fischler (1992), Jeffrey Pilcher (1992),
42
Sidney Mintz (1985, 1996 ), Stephen Mennel (1996) serão discutidos ao longo dos próximos
capítulos.
1.4. Das diferentes perspectivas
O trabalho de Lévi-Strauss vem demonstrar como a relão entre Cultura e Natureza,
e a discussão desta interação, na hisria da antropologia, define-se como questão central. Os
paradigmas desta ciência se vêem, ao longo de sua história, influenciados alternadamente por
uma proximidade maior entre os dois pólos, ora apoiando-se em explicações naturalistas, ora
em interpretações simbólicas. No que se refere às práticas alimentares esta dualidade se faz
constantemente presente, dada a peculiaridade deste tema, ou seja, a de ser uma atividade
imprescindível para a manutenção da vida; se é que podemos dizer que existam necessidades
mais necessárias que outras.O fato é que temas relacionados às práticas alimentares, como
por exemplo, a questão dos padrões de comestibilidade, tem se tornado um dos grandes
desafios de interpretação do pensamento antropológico.
Em certos momentos a natureza foi a matriz inspiradora desta reflexão como no
evolucionismo, no funcionalismo malinowskiano e no materialismo ecológico. A cultura
nesta perspectiva é vista como um meio proposto para atingir um fim almejado, ou seja,
manipular o ambiente de alguma forma, descobrindo os “melhores” caminhos para se lidar
com os problemas impostos pela natureza; no caso, a fome, ou o imperativo de comer. A
antropologia ecológica, por exemplo, busca sua inspiração na ecologia para explicar o
fenômeno cultural, onde os processos sociais são compreendidos a partir de termos tais como
feedback, homeostase, fitness. De acordo com Sahlins (1979), um dos resultados desta
abordagem seria a diluição do próprio conceito de cultura, como ocorre em Murdock
43
(cf.Sahlins, 1979), que leva ao extremo o princípio das “necessidades vitais”, renunciando ao
conceito de cultura e de sistema social.
Um dos autores que podemos destacar nesta tendência é Marvin Harris (1985), que,
em franco diálogo com Lévi-Strauss, afirma ser os animais “bons para comer” , e não “bons
para pensar”, em oposição à proposta estruturalista que analisa as escolhas culturais como
resultado de uma classificação mais ampla da realidade. O “materialismo cultural”, proposto
por Harris, se define como uma teoria ecológica/evolucionista que tenta explicar que os
hábitos humanos buscam satisfazer as necessidades da forma mais econômica possível.
Harris propõe interpretações utilitaristas de hábitos alimentares aparentemente irracionais,
como o fato das vacas não serem comestíveis entre os hindus, ou os porcos entre os
mulçumanos. A seu ver, os ocidentais acreditam que os indianos preferem morrer de fome a
comer suas vacas; mas se as comessem é que realmente morreriam de fome, pois são
imprescindíveis para a prática da agricultura. No caso dos porcos, Harris (1974: 40) acredita
que tanto a Bíblia quanto o Corão condenariam seu consumo ...because pig farming was a
threat to the integrity of the basic cultural and natural ecosystems of the Middle East”. São
animais interditados por terem dieta semelhante ao homem, tornando-se seu competidor.
muitas controvérsias do ponto de vista acadêmico em torno deste nível de explicações,
tornado-se estas um desafio à questão da arbitrariedade cultural, conceito este tão caro ao
pensamento antropológico.
As sociedades tribais da Amazônia inspiraram uma série de estudos dentro deste
paradigma, gerando discussões sobre o papel dos fatores limitantes para a presença e o
desenvolvimento de sociedades mais complexas do que aquelas que habitavam a Amazônia.
Estabeleceram-se duas grandes explicações: a primeira, inspirada nos trabalhos de Julian
Steward (cf. Senra, 1996), na década de 40 do século passado, destacava que a baixa
qualidade do solo equatorial não sustentaria uma agricultura intensiva, e conseqüentemente
44
uma grande população. Interessava a Steward identificar a ação determinante que o meio
ambiente exercia sobre a cultura , as causas materiais envolvidas no processo de mudança
cultural, relacionando meios de subsisncia e organização social. Posteriormente surge uma
nova interpretação, proposta por Daniel Gross (cf. Senra, op.cit.), que destaca a escassez de
proteína animal como fator limitante e explicativo dos padrões demográficos e sociais
daqueles grupos: na verdade Gross estabelece a conexão entre consumo de proteína animal e
desenvolvimento cultural. Juntamente com Eric Ross e Marvin Harris, estes autores
acreditam ser os tabus alimentares derivados de uma lógica conservacionista subjacente,
como o fato de não se consumir animais de grande porte por se distribuírem em pouca
quantidade naquele meio. A escassez de proteína animal torna-se, então, fator causal do
comportamento e dos padrões culturais ameríndios vindo a explicar a guerra, o infanticídio
feminino, a supremacia masculina nas estruturas políticas etc. Apesar de posteriormente a
antropologia ecológica envolver-se com modelos pluricausais mais poderosos, que
priorizariam a sinergia entre natureza e cultura para a compreensão do estilo de vida
ameríndio , os estudos acima citados não deixam de identificar o “modo de produção” na
base do comportamento humano, ocorrendo freqüentemente uma associação apressada de
nomadismo/simplicidade agrícola com privação alimentar/ penúria.
O outro paradigma que acompanhou a história da antropologia foi responsável pela
identificação da cultura na base do comportamento humano, considerando o homem, não por
seu material getico, mas principalmente por sua capacidade de produzir cultura e de se
socializar. Devemos a Boas a instituição desta forma de ver a realidade humana na
antropologia, destacando a cultura como a “lente” através da qual os homens vêem o mundo,
ou seja, é a cultura que vai condicionar todo o processo de percepção do mundo, por onde
passa o conhecimento e de onde as práticas são orientadas. O lócus original da cultura, antes
que a natureza, seria a tradição. (Sahlins, 1979). Neste sentido, é a capacidade de dar e obter
45
significado que vai orientar a base do relacionamento humano com o meio ambiente onde se
insere, produzindo-se então outra forma de se compreender as práticas alimentares.
Certamente vi-Strauss tem um papel fundamental nesta história da interação dos
grupos com o meio natural, fortalecendo a visão da preeminência da cultura na relação do
homem com o meio ambiente. O longo debate a que se propõe (em parte acima comentado)
sobre a relação complexa entre Natureza e Cultura no processo de humanização, já se inicia
em As Estruturas Elementares do Parentesco (1976). Neste trabalho, Lévi-Strauss afirma,
categoricamente, que não há estado selvagem humano, e que qualquer conjectura neste
sentido representaria um estado de anormalidade, e não de um retorno. O Pensamento
Selvagem (1976a) se apresenta como obra inspiradora das reflexões posteriores sobre a
questão das sociedades tribais e sua forma particular de organização da realidade.
Argumentando ser insipiente a classificação de “primitivo” para estas sociedades, vem
demonstrar que não descontinuidades entre nativo/civilizado,sendo equivocada a visão do
nativo como uma forma pouco elaborada, no sentido da capacidade reflexiva, do civilizado.
Afinal, os “nativos” utilizam categorias abstratas da mesma forma que os ocidentais, o
sendo orientados em suas ações somente por uma razão prática. O pensamento selvagem,
portanto, antes de ser o pensamento dos selvagens se define por uma maneira de perceber o
mundo e de ordená-lo.
A dimensão simbólica como instauradora da vida social, defendida por vi-Strauss
frente às interpretações naturalistas do totemismo abrem novos horizontes aos estudos dos
padrões de comestibilidade. Mary Douglas (1976) apresenta interessante reflexão sobre a
definição dos animais comestíveis/ não comestíveis no Antigo Testamento utilizando-se
da dicotomia puro/ impuro e , principalmente das posições “perigosas”, que são as
intermediárias, indefinidas, ameaçadoras de uma realidade ordenada a partir de
classificações. Conclui que nas interdições alimentares subjaz a noção de que a pureza” dos
46
animais significa a conformidade completa à sua classe, tornando-se as leis dietéticas signos
de inspiração da unidade e da integridade. As interdições alimentares tornam-se uma das
narrativas possíveis da estrutura social. Inspirando-se no pensamento de Evans-Pritchard ,
Douglas procura identificar como o grau de ordenação e de estabilidade de uma sociedade
reflete o nível de consenso e legitimidade alcançado pela ordenação e hierarquização de
experiências, puras ou impuras, onde o perigo representa a ameaça à desestabilização social.
Sagrado e profano, pureza e poluição são classificações relativas e complementares, cujo
sentido as remete a um sistema totalizante. A própria produção da sujeira é a produção do
sistema; contudo, ela é reconhecida em determinadas situações e não em outras, o que
subentende uma classificação valorativa da realidade. As situações de poluição/perigo são
aquelas que envolvem desordem, sentido ambíguo, ou referem-se a uma zona limítrofe, de
passagem.
Inspirando-se na análise estruturalista, Douglas ainda traz grande contribuição à
reflexão das práticas alimentares no cotidiano (cf. Douglas, 1971, 1979, 1982). Entre suas
diversas contribuições podemos destacar a pesquisa entre operários ingleses em Londres. A
partir da observação de sua vida familiar, esta autora procura analisar as regras que ordenam
os sistemas alimentares daquelas famílias. Sua estrutura relaciona-se intimamente à estrutura
da vida familiar, podendo ser compreendidos a partir das relações binárias que os compõem.
Para a autora, cada refeição é um evento social estruturado, cujo sentido encontra-se “num
sistema de analogias repetidas”: seu significado é conferido em relação às outras refeições.
Sua contribuição aos estudos das práticas alimentares vincula-se à percepção da dimensão
simbólica desta atividade humana, que por ser estruturante, e estruturada, apresenta-se
ordenada, na maioria das vezes, de forma inconsciente.
Edmond Leach (1983) traz a tentativa de exercício semelhante, buscando a interpretar
as classificações sociais das culturas inglesa e Kachin de forma ampliada. Desta-se como
47
uma das qualidades deste estudo é a de procurar integrar diferentes aspectos da vida social.
Temas anteriormente tratados separadamente como tabu, abuso verbal, padrões de
comestibilidade e obscenidade social o analisados de forma correlacionada, levando-o à
identificação de uma realidade cultural mais profunda, no sentido interno (uma
cosmovisão?) e o tomando as regras simplesmente como imposições, ou o costume como
aquele que restringe e exerce uma coerção arbitrária.
Para Leach, a grande questão é: qual é a operação lógica que orienta a seleção de
alimentos potenciais por parte de uma sociedade? Parte-se do pressuposto que o ambiente
físico de qualquer sociedade humana contém um amplo espectro de materiais que são tanto
comestíveis quanto nutritivos e que, contudo, somente uma parte deste meio será de fato
classificada como alimento. Leach proe, então, uma divisão básica destes alimentos em
potenciais: as substâncias comestíveis que fazem parte de uma dieta a normal; os alimentos
possíveis que são comidos em ocasiões especiais, cujo consumo é regido por alguma forma
de tabu, sendo alimentos conscientemente interditados; e as substâncias tidas como não
comestíveis, ou inconscientemente interditadas (subsncias que não são concebidas como
alimento). Sua análise parte das categorias verbais como forma de discriminação de áreas do
espaço social em termos dedistância” de um dado Ego. Destaca também a tendência
universal da associação tanto ritual, como verbal, entre o ato sexual e o comer, identificando,
então, uma íntima correspondência entre padrões de acessibilidade sexual e categorias de
comestibilidade. Para este autor o modo pelo qual os animais são categorizados em relação a
sua comestibilidade terá alguma correspondência ao modo pelo qual os seres humanos são
categorizados com respeito às relações sexuais, assim como ambas as classificações
vinculam-se à ordenação do espaço:
48
Acessibilidade
sexual
irmã prima vizinha estrangeira
Ambiente físico casa “fazenda floresta remoto
Comestibilidade não comestível
comestível com
interdições
comestível não comestível
Fig. 4: Padrões de comestibilidade e padrões de sexualidade entre os ingleses. (Leach, 1986)
incesto não casamento,
relações ilícitas
casamento não parentes
distantes
EGO (EU) NI (sogra) NA/NAU “irmã” NAM prima
cruzada casável
RAW
perto (o
comestível)
ocasião sagrada
(comestível se
sacrificada)
floresta
(comestível)
fogo da floresta
(não comestível)
Fig. 5: Categorias Kachin de relacionamentos humanos (Leach , 1986:198)
Em franco diálogo com Lévi-Strauss e suas reflexões sobre o “pensamento selvagem”,
Leach expressa o intuito de ampliar a questão das classificações. No lugar de dicotomias,
propõe uma escala possível de gradações de proximidade e distância, por entender não ser
suficiente um esquema de discriminação de extremos como eu/isto ou nós/eles. Assim, as
coisas do mundo não são classificadas simplesmente como sagradas/ não sagradas, e sim
como “mais sagradas” ou “menos sagradas”, ou seja, as classificações operam dentro de uma
escala graduada entre os dois limites possíveis, mais perto/ mais longe, mais como eu/ menos
como eu.(op.cit.:198). Para Leach, a lógica dos padrões de comestibilidade se definiria pelos
mesmos parâmetros, interditando os animais por demais como s” , assim como aqueles
completamente como eles”, ou seja, afastado do universo reconhecido.
Ainda como desdobramento deste paradigma, a antropologia cognitiva surge na
década de 60 no sentido de investigar a lógica interna das culturas estudadas, com atenção
49
especial às formas de classificações nativas do mundo que os rodeia. Se o método
estruturalista de Lévi-Strauss parte de uma ordem universal pré-concebida, onde a realidade
observada se encaixaria, o método cognitivo tem como objetivo revelar esta ordem a partir
dos dados fornecidos: a etnociência (etnobotância, etnobiologia etc.) vem se dedicar a esta
sistemática classificatória nativa. Se a princípio este estudo do discurso nativo ainda procura
inseri-lo dentro de uma ordem cientifica ocidental, posteriormente ele vai ganhando
legitimidade e reconhecimento do nativo como “pensador”, ou seja, aquele capaz de
sistematizar conhecimento sobre o seu ambiente. Neste sentido, podemos destacar o estudo
liderado por Darryl Posey , entre os Mebêngôkre demonstrando como as classificações do
ecossistema têm referência básica nos parâmetros culturais: plantas , por exemplo, possuem
personalidades específicas, o que vai explicar o motivo pelo qual algumas se associam,
crescem juntas, e outras não. Outro trabalho que se destaca é o de Reichel-Dolmatoff entre os
Desana e sua percepção integrativa e histórica do ecossistema, visto como resultado da
interligação de seres vivos e espíritos (cf. Mercante, 2005)
Autores como Ingold (1996) e Descola (1998) vêm amadurecer a reflexão sobre a
dicotomia entre Natureza e Cultura, assim como as relativizações possíveis a esta dicotomia,
através da valorização das categorias nativas de entendimento do ecossistema. Ingold proe
a substituição do conceito de natureza” pelo de “meio ambiente”, destacando que o conceito
de natureza ocidental como “realidade fora”, o qual o homem deveria decodificar deveria
ser superado pela situação de envolvimento do ser humano com aquilo que o forma e o
envolve. A seu ver, as sociedades tribais apresentam um envolvimento ativo e perceptivo
com o meio que o cerca, priorizando a imagem da interdependência. Ao contrário das
representações ocidentais, que conferem à presença humana o princípio instaurador do
mundo natural, estes povos têm a vida orgânica como ativa e o simplesmente reativa à
presença humana; o que faz compreender o motivo pelo qual a sua relação com o mundo é
50
representada como um processo de revelação, e o de decodificação. A humanidade se
torna, neste sentido, como uma possibilidade entre as rias formas de vida (Descola, 1998),
pois a intencionalidade e a consciência reflexiva não são atributos exclusivos da humanidade,
mas potencialmente de todos os seres do cosmo.
Outro autor que se destaca na história das interações dos grupos humanos com o meio
natural e no que nos interessa particularmente, na reflexão sobre as práticas alimentares
frente a divisão natureza e cultura - é Kaj Arhem (1996). Baseando-se em estudos na
sociedade Makuna, este autor destaca o fato de que entre os ameríndios a noção de natureza
é contígua ao de sociedade, constituindo juntos uma ordem integrada, onde a humanidade é
vista como uma forma particular de vida participando de uma comunidade mais ampla de
seres vivos, regulados por um conjunto único de regras de conduta. Diferentemente dos
ocidentais, os Makuna, e os ameríndios em geral, não operam ruptura e sim relações de
continuidade entre natureza e cultura. Ecosofia é o conceito por este autor explorado para
expressar este sentimento ameríndio de ser integrante de uma grande teia smica, onde
todos os seres participam; um campo de interação social baseado na cadeia de predação e
troca. O mundo vivo é construído como uma sociedade smica, onde seres mortais são
ontologicamente iguais: humanos e animais se submetem a mesma realidade integrada, se
unificando por um pacto de reciprocidade, onde atuarão, potencialmente, como comedor/
comida, caçador/ presa. (op.cit: 189)
This is a hunter universe; the world seen from a male, “predatory”
point of view. The limits of the system are defined, at one extreme, by
the supreme predators, who prey on all living beings but are prey to
none; and, at the other extreme, edible plants which other extreme, ,
in relation to the other life forms in the system, are only food. The
intemediate trophic level comprises most life forms, including human
beings, who are at the same time both eaters and food. And since all
animals – in their essential aspect – are ‘people’, the scheme applies
to any animal; from the point of view of game and fish, men are
51
included in the category of ‘predators’, while fruits, seeds, insects,
and plant detritus are included in their ‘food’ category.
Ou seja, à diversidade das formas exteriores corresponde uma unidade interna de
essência espiritual, tornado-se os animais parentes virtuais dos índios. Neste sentido, a caça
vai estar intimamente relacionada à afinidade: ela produz afins ao propor uma troca a vida
do animal vai ser substituída pelo nascimento de outro-, estabelece uma relação recíproca,
onde a morte (predação), ao promover a regeneração, atua como instrumento de reprodução
da vida. A caça se torna um ritual de reciprocidade, onde se reverencia e se recompensa o
animal que se deseja capturar. É esta iia, ou, nos termos do autor, ideologia de
reciprocidade, que vai orientar moralmente a interação deste povo com o meio ambiente,
impondo fortes saões à super-exploração da floresta. Ahren destaca, então, alguns
princípios que regem os padrões de comestibilidade entre os Makuna. A comida é, por
essência, ambivalente e poderosa (ou perigosa, nos termos de Douglas). Contém as
substâncias primordiais de que o mundo foi feito e através das quais o mundo é
continuamente recriado; ao mesmo tempo que sustenta a vida e força, mata e causa
doenças. Xamanizar” a comida é parte importante do processo de sua preparação, a
contraparte masculina da cozinha feminina. Toda planta e animal comestíveis, trazidos da
floresta são “xamanizados” antes de comidos: nesta lógica, comer torna-se uma batalha, na
medida em que o comedor conquista e supera as defesas (ou características) do comido (seu
principio vital), estando sob risco constante de ser derrotado por suas armas letais.
Os seres humanos ocupam uma posição especial na teia smica. São distintos dos
outros seres vivos por comerem por meio de rituais xamânicos. Abençoando a comida eles
transformam os animais-pessoas em comida para humanos, confirmando sua humanidade. A
capacidade xamânica permite aos humanos superar os perigos inerentes à natureza, e ao
mesmo tempo incorporar sua força vital.
52
comedor - comida/comedor - comida
jaguar gente peixe
espíritos seres vivos animais/ plantas
predador humanos presa
A visão de que cada ser pertencente ao cosmo Makuna possui sua própria e legítima
visão de mundo é denominada por Arhem de ponto de vista, conceito este fundamental para a
concepção do perspectivismo de Viveiros de Castro (1996). O perspectivismo parte da
concepção comum entre os ameríndios de que o mundo é habitado por diferentes espécies de
sujeitos e pessoas, humanos e não humanos, o que é assimilado segundo pontos de vistas
distintos. A discussão sobre as escalas de comestibilidade vai, neste sentido, estar vinculada à
qualidade da perspectiva. Os animais predadores e os espíritos vêem os humanos como
animais presas. Os animais presas vêem os humanos como predadores, demonstrado a
categoria ambígua na qual está inserido o humano. Uma das características amazônicas é
conceber como mais comestíveis os animais que de alguma forma se “assemelham” aos seres
humanos: seja por sua qualidade de presa, seja por bitos de vida, inclusive através da
observação do que o animal come (como uma dieta leve e parecida com os humanos), seja
por seu comportamento.
Ainda sobre os padrões de comestibilidade entre os ameríndios, Fausto (2002) inclui
neste campo de reflexões a prática antropofágica, comum a certos grupos da região. Este
autor se propõe a uma interessante reflexão sobre a amplitude do significado de “comer”,
onde a incorporação torna-se um dos elementos definidores desta atividade. Se a alimentação
(produto da caça) produz o corpo sico, visando o crescimento vegetativo individual, comer
junto, prática comensal, representa um dispositivo de produção de corpos aparentados. Neste
sentido Fausto defende a idéia da fabricação do parentesco convergindo para o universo da
cozinha e da partilha alimentar, definindo-se esta esfera como lócus original de dois
processos de transformação: comer com/ como alguém, o comensalismo e o comer alguém, o
53
canibalismo. É preciso produzir a caça enquanto comida, ou seja, xamanizar o animal morto
e depois neutralizar sua condição subjetiva por meio do cozimento. O fogo atua como
operador central neste processo. De certa forma, Fausto resgata as reflexões de Lévi-Strauss
sobre o processo culinário; se há limitações sobre a aplicação/interpretação do triângulo
culinário em termos universais, ele se revela sintetizador de vários aspectos das
representações ameríndias, destacados por Fausto, como por exemplo, a centralidade do fogo
na produção da humanidade, da comestibilidade e na diferenciação simbólica entre o cozido
e o assado. O cozido, como parte da endocozinha, define-se como processo de digestão
coletiva do cru, oferecendo menor risco de contaminação do que o assado. Fausto cita o
exemplo dos Arakmbut, do Peru que evitam o assado por temerem o cozimento incompleto.
Se cozinhar a comida representa tratá-la no sentido estrito do alimento, comer a comida crua
representa apropriar-se das capacidades anímicas da vítima. A incorporação através do ato de
comer, se dá, portanto, pelo o consumo do outro, seja na condição de comida, seja na
condição de pessoa. Por sua condição ambígua de poder/perigo, a relação com o alimento
o é uniforme, ora se estimulando ora a distância, ora a proximidade. No primeiro caso, da
distância, o comer torna-se foco de restrições estritas, exaltando-se atitudes de resguardo. São
precauções necessárias, dada a qualidade intrínseca da teia cósmica: uma competição
potencial entre as diferentes espécies, onde a disputa real é representada pelo sentido da
direção da transformação. Os resguardos procuram controlar processo de transformação
evitando que tomem a direção errada, pois ao invés de se apropriar, a pessoa pode ser
apropriada por aquilo que come. A proximidade, por outro lado, é construída através do
estímulo ao consumo, quando se objetiva, por exemplo, desencadear processos de
transformações por meio do consumo de animais interditos, aqueles animais que são somente
predadores que são consumidos crus ou assados. São práticas alimentares em que os animais
(inclusive os outros humanos) não são tomados como comida, mas como fonte de
54
capacidades. O canibalismo assume a forma de predação guerreira onde o inimigo é comido,
ou seja, domesticado, familiarizado, apropriado.
Conclui-se, portanto, que a distinção entre a caça e a guerra na Amazônia o é dada,
mas construída; daí, a importância do fogo nos mitos sul-americanos citados por vi-
Strauss, por sua capacidade de definir dois códigos predatórios, o do jaguar e o dos humanos.
O fogo torna possível a alimentação carnívora não-canibal, permitindo aos parentes (re)
produziremse como parentes. Estas reflexões que giram em torno do perspectivismo
ameríndio vêm reafirmar a noção de como a antropologia atua como poderoso instrumento
de auto-reflexão e auto-conhecimento, na medida em que desnudam formas ocidentais de
classificação ainda pouco problematizadas. Torna-se um desafio, portanto, compreender os
padrões de comestibilidade ocidentais a partir desta matriz teórica.
No Brasil, a literatura sobre a questão alimentar contextualizada na primeira metade
do século XX privilegia a abordagem dopovo brasileiro”, em afinidade ao projeto da
construção do Brasil enquanto nação. São trabalhos que refletem ora a preocupação em
demonstrar como a culinária brasileira traduz a originalidade do processo de miscigenação,
ora a preocupação com a deficiência nutricional da alimentação dos brasileiros, identificando-
se esta como um dos obstáculos ao desenvolvimento do país (cf. Cascudo, [1963] 1983;
Castro,[1946] 2001; Freyre,[1933] 1973; Mello, 1961). Dos estudos acadêmicos, destacam-se
os trabalhos em torno de tabus alimentares (cf. Peirano,1975 e Maués, 1978), e de hábitos
alimentares das populações urbanas (Heilborn, 1984; Velho, 1977; Zaluar, 1985 ). Na última
década, um novo grupo de reflexões sobre as práticas alimentares tem se consolidado,
evidenciado pela realização de Fóruns de Pesquisa “Comida e Simbolismo” nas Reuniões da
Associação Brasileira de Antropologia (1996, 2000, 2002, 2004, 2006). Este diálogo, muitas
vezes interdisciplinar, tem resultado em trocas entre pesquisadores latino-americanos e
europeus, o que pode ser demonstrado pela criação da Sessão Brasileira da “International
55
Comission on the Anthropology of Food” (ICAF Brasil) e do Grupo de Antropologia da
Alimentação Brasileira (GAAB). Vale ressaltar o crescente interesse pelas práticas
alimentares, tornando-se a cozinha objeto de resignificações em diferentes contextos da
sociedade brasileira publicação de livros de receitas, de história da alimentação, programas
televisivos etc. assim como nas áreas de turismo e patrimônio, inaugurando novas formas
de aproprião e reflexão que visam, inclusive, o estabelecimento de políticas de preservação.
Os estudos antropológicos que envolvem as práticas alimentares amadureceram o
suficiente para servir de veículo para examinar problemas amplos e variados da teoria
antropológica. Não vidas de que são imprescindíveis as diversas interpretações das
práticas alimentares, nos lembrando que as diferentes perspectivas vêm se complementar.
Apesar das diferenças, afirmam com unanimidade a posição estratégica da alimentação no
sistema de vida e de valores da sociedade. Seu estudo torna-se inseparável das outras
interações dos seres humanos, seja consigo mesmo, uns com os outros ou com o resto da
natureza. Compreender em sua complexidade os hábitos alimentares nos leva a caminhos
onde a superação de linhas rígidas que demarcam as fronteiras entre espírito/corpo,
intelecto/matéria, indivíduo/sociedade se faz necessária.
56
CAPÍTULO 2
O gosto e a sociedade contemporânea
2.1.Incerteza, frugalidade e celebração
Se a variação do gosto no espaço se apresentou como desafio às diferentes correntes
antropológicas, a variação do gosto no tempo, ou seja, através da história das sociedades
ocidentais, tem sido objeto de reflexão do pensamento social, seja por historiadores, seja por
antropólogos, dedicados à análise da vida social nas sociedades complexas e industriais.
O gosto tem sua hisria; o gosto contemporâneo, um processo e até mesmo uma
diversidade sociológica. Em oposição à temporalidade da evolução da espécie humana, tão
extensa que parece imutável no curso do tempo histórico, é possível marcar variações na
constituição do gosto através das épocas. Se os órgãos sensoriais evoluem ao ritmo da
natureza, as percepções evoluem ao ritmo da temporalidade histórica dos homens, uma vez
que se inserem no universo das interpretações. Conhecer o processo histórico do gosto
significa pontuar as suas transformações ao longo do tempo, com especial atenção ao
significado das práticas alimentares, assim como à sua relação com a distribuição de poder e
autoridade em dada sociedade.
A Idade Média consolida transformações que vinham lentamente ocorrendo na
sociedade romana, no sentido da ruptura às práticas alimentares do mundo antigo. No período
do império romano, por influência da tradição itálica, evidencia-se progressivamente o
aumento do consumo carnívoro, dissociando-o da prática sacrificial. O sacrifício traz marcas
de uma sociedade “pagã”, povoada de deuses, cujo diálogo com os homens requeria formas
57
simbólicas de reciprocidade. Além da simplificação administrativa bem vinda a um império
que possui cada vez mais bocas urbanas para alimentar, o hábito sacrificial encontra forte
oposição do cristianismo. O sacrifício simbólico, baseado no pão e vinho, é adotado na
liturgia católica, vindo a predominar em todo o medievo; de forma paradoxal, pois trata-se de
uma representação sacrificial basicamente cerealista, vivenciada numa realidade de grande
prestígio do consumo carnívoro. Como exemplo da cisão simbólica entre Oriente e Ocidente
(cf. Flandrin, 1996), podemos destacar o fato do imperador de Bizâncio ter sido, neste
período, constantemente objeto de zombarias, por parte da aristocracia européia e carnívora,
devido a sua prefencia a legumes freqüentes da horta grega, como alho, alho-poró e cebola.
O cenário medieval, basicamente rural, caracteriza-se pela ocupação do interior do
continente europeu, na forma de feudos autônomos, cujo isolamento, reforçado pelas
péssimas condições de transporte, estimula a auto-suficiência. Em termos de práticas
alimentares, as diferenças hierárquicas se fazem mais marcantes do que as diferenças
espaciais, ou seja, a nobreza européia partilha de padrões gustativos semelhantes, cruzando as
fronteiras territoriais. Quanto mais alto o estrato social, maior o consumo de carne. Os nobres
medievais comem a carne assada contrastada com pratos temperados e doces que proviam
alívio ao paladar. A cozinha nobre medieval resulta de uma composição curiosa entre o
passado romano e a proximidade árabe, uma combinação que Mennel (1996) associaria à
cozinha indiana nos dias de hoje. Dos romanos podemos identificar a preferência a pássaros e
galináceos diversos à mesa, carnes temperadas com mel, como nas receitas de Apicius, além
da prática mimética de transformar, de forma espetacular, a aparência e o gosto de centenas de
ingredientes fundidos num sabor. Dos árabes, os sabores adocicados e ingredientes
perfumados, a presença de amêndoas, água de rosas, sementes de romã e pasta de passas.
Apesar de coletivamente execrados, havia, no nível cultural elevado das cortes principescas,
certa admiração ao mundo islâmico. Muitos europeus buscavam, na Espanha, aprofundar seus
58
conhecimentos no conjunto “ciência, magia e culinária”, procurando, a partir deste contexto
de admiração científica, imitar os muçulmanos na visão da culinária como uma espécie de
alquimia poderosa, capaz de transmutar ingredientes básicos em artigos de luxo, ou em forças
ocultas de restauração da saúde. A associação aos traços da cozinha indiana se deve à
presença de pratos fortemente temperados acompanhados como molhos brandos e doces,
promotores do alívio ao paladar.
A idéia de que o uso de especiarias resultaria de uma “necessidade” em disfarçar a
carne ou o peixe contaminado, difundida em larga escala, advém de explicações de um
pragmatismo simplificador que ofusca o papel da construção cultural do gosto, assim como
seu papel como operador da distinção. Esta leitura se revela etnocêntrica, primeiro pela
existência naquela época de métodos eficientes de conservação e segundo, pelo fato de que a
conservação” torna-se uma necessidade real muito maior no mundo moderno; num certo
sentido, poderíamos arriscar a dizer que os alimentos eram, então, mais frescos que hoje,
dado o imperativo da produção local. Além disso, a utilização de especiarias começou a
modificar-se em fase anterior ao desenvolvimento dos métodos de preservação, o que não
justifica tal argumento.
As especiarias se incluem na categoria de “artigos do prazer” que assistem ao processo
de expansão de uso no Ocidente a partir de então. Trata-se de um grupo de substâncias de
consumo humano que têm como fim último promover prazer aos sentidos, dentre os quais se
encontram além das especiarias, os estimulantes, intoxicantes e narcóticos, como tabaco, café,
chá, álcool e ópio. As especiarias tinham em comum a sua origem não-européia; muitas vezes
a comida servia com veículo de condimentos, pois além de temperar os alimentos e bebidas,
conferindo novos sabores e sensações, tinham uso ritual, sendo presenteadas. Emissárias de
um mundo lendário, estavam relacionadas à evocação do Paraíso, ou de uma ordem espiritual
transcendente; a ânsia, ou ambição, européia da vivência do Paraíso podia ser experimentada
59
através do consumo das especiarias. Este Paraíso, contudo, se secularizou juntamente com a
expansão das rotas comerciais européias, se tornando, então, a terra das possibilidades
ilimitadas, narrada em diferentes fábulas. (Schivelbusch,, 1993)
O uso de especiarias se fazia particularmente diferenciador e excludente, dado seu alto
preço, sua raridade, seu exotismo; consumi-las significava não saboreá-las, mas também
“incorporá-las”, se apropriando de um sentido poético, fantástico, estimulado pela imaginação
deste paraíso longínquo e terrestre. As especiarias são, neste momento, as “jóias e pedras
preciosas gastronômicas das fronteiras do exotismo suntuoso. E é esta alta demanda de
artigos operadores de distinção que vai, posteriormente, sustentar as mais arriscadas aventuras
de se penetrar no Oceano Índico.
A hisria de Gargantua, que tem como cenário básico banquetes e festins contínuos,
traduz uma imagem que não condiz completamente à realidade desta época, primeiro, por
envolver somente uma pequena parcela desta população e segundo, por não traduzir
completamente aquele cotidiano de incertezas e insegurança alimentar. As festas se
caracterizavam pela longa duração e pela experiência do excesso, representando o ápice de
uma dieta oscilante mesmo para os nobres. Mesmo estes não experimentavam uma larga
escolha de alimentos o tempo todo: o marco da festa, ao invés da qualidade, ou sofisticação
dos pratos, residia na quantidade. A estética corporal de então se definia pelo prestígio da
corpulência saudável, onde a capacidade de ingestão, muito mais que o refinamento do gosto,
era notada, como é o caso de Catarina de dici, conhecida por seu admivel apetite e
freqüentes indigestões, ou as histórias envolvendo o consumo prodigioso de Luis XIV.
Os banquetes se revelavam como oportunidades de demonstração visível dos laços de
poder, dependência e obrigações mútuas entre anfitriões e convidados. de se lembrar
também a hospitalidade senhoril como área primária da potica; o anfitro deveria ser
generoso, hospitaleiro, dominando a arte de discriminar os convidados de honra. Espaço de
60
fortalecimento de alianças, estes são momentos significativos à pacificação interna da
sociedade guerreira, onde a abundância revelava generosidade e poder, servida em
quantidades espantosas. A luxúria da gula atua como demarcador de fronteiras entre ricos e
pobres; nada mais emblemático do impacto da abundância do que servir animais inteiros à
mesa, cujo destrinchar revelava-se como rito importante na vida da corte. Tanto o trincho,
como a distribuição da carne, são considerados como honras especiais, cabendo ao dono da
casa ou convidado ilustre executar a tarefa.
Contudo, a vida medieval não se constituía somente pela abundância carnívora, se
caracterizando, simultaneamente, pela abstinência, seja a ideológica , seja a da escassez. Os
monastérios estabeleciam fortes restrições ao consumo carnívoro freqüente a seus membros,
enquanto a abstinência temporária atingia a todos através dos jejuns semanais e anuais.
Apesar da longa história do cristianismo apresentar diferentes formas de recusa ascética,
podemos definir como uma de suas constantes ideológicas a classificação da gula como um
dos sete pecados capitais. A princípio, o jejum generalizado pela igreja poderia, na opinião de
Mennel (op.cit.), evidenciar as pressões sobre o auto-controle do apetite; os franceses
denominariam des jours maigres, marcados pela exclusão de vinho e carne das refeições.
Contudo, os jejuns medievais representam muito mais marcos de constrangimentos externos
do que internos, como mais tarde viriam a ocorrer.
A este consumo prodigioso da nobreza, intercalado por momentos de recusa
intencional, se oe, contudo, a monotonia e frugalidade alimentar do campesinato. O
assado” dispendioso da carne nobre, nos termos de vi-Strauss (op.cit. ), contrasta com a
economia do “cozido” camponês: uma alimentação baseada em cereais e vegetais cozidos e
na presença constante das leguminosas, como ervilhas e favas, ensopadas. Há de se ressaltar,
além do vinho e cerveja, o papel do pão neste período. Carlo Ginzburg (1989), através de seu
personagem Menocchio nos mostra o papel crucial do moleiro numa Europa rural e
61
cerealista. O sucesso do trigo, na competição entre cereais, em muito se deveu ao pão. Pão de
trigo, plantado em terras férteis alimentando os nobres; de centeio, cultivados em terras
pouco exigentes, para os desfavorecidos. O pão “branco” atendia aos paladares delicados,
exigentes de distinção, personificando o refinamento social. Ao que parece, o refinamento do
trigo tem funcionado como operador distintivo e hierárquico há bastante tempo na hisria,
ocorrendo ao menos desde o império romano. (cf. Goody, 1982)
A ruptura das redes comerciais no medievo pode ser destacada como um dos fatores
definidores do perfil das práticas alimentares, tanto referente à ausência de diversidade -a
preeminência da quantidade sobre a qualidade enquanto valor – como também ao clima
constante de insegurança alimentar. Os significados destas flutuações merecem atenção
particular. Primeiramente, as oscilações entre frugalidade e celebração atingiam a sociedade
como um todo: não devemos nos esquecer das festas populares junto às feiras, que às vezes
duravam dias, ou das celebrações da colheita, que ocorriam paralelas aos festins encastelados.
Nestas circunstâncias, o auto-controle dificilmente se definia como um problema para a
maioria.
A insegurança generalizada neste período deve-se, sobretudo, a um contexto de
ameaça de saques constantes, da baixa expectativa de vida, da freqüente desnutrição, das
precárias condições sanitárias e higiênicas, das epidemias, dos grandes incêndios, das guerras
e da fome resultante da colheita incerta. Devemos a Elias (1993 ) a conexão entre a
precariedade generalizada deste ambiente social com a situação de imprevisibilidade da
existência e seu reflexo na personalidade, crenças e comportamento social. Para este autor, a
oscilação entre “fasting/feasting” ocorre paralela à volatilidade emocional do povo medieval,
ou seja, sua habilidade em expressar emoções com maior liberdade em comparação aos
períodos posteriores. Keith Thomas (1971) faz apropriada consideração em relação a este
fato ao relacionar o risco de vida presente entre os séculos XVI e XVII com a prevalência de
62
crenças mágicas e superstões, que vão declinar com o crescimento do sentimento de
segurança.
É neste sentido que podemos compreender temas freqüentes no imaginário
camponês; no folclore, são usuais as refencias à fome e à obsessão em morrer de fome, a
situações de abandono infantil, de ímpeto ao canibalismo. Os motivos usuais da grandiosa
utopia camponesa se fazem presentes em diferentes narrativas, como nos milagres dos santos
multiplicadores de pães, de peixes, dentre outros -, e a Fábula do País da Cocanha. Esta
fábula narra a existência de um país distante, um “mundo novo” onde reina a abundância,
além da mais completa liberdade sexual (Ginzburg, 1989: 165):
À medida que os grandes senhores feudais, mais ricos e poderosos, ampliaram seu
poder social em relação aos mais fracos, maior a oportunidade e mais necessária se tornava a
expressão de seu poder pelo esplendor de suas cortes. Os grandes banquetes se apresentam,
neste contexto, momentos oportunos de expreso de uma vida cultural. A emergência dos
Minnesänger e trovadores, filhos de uma classe de nobres pobres e sem terra, que utilizavam
a música e a poesia para celebrar as conquistas de seu senhor é característica deste período.
Durante um bom tempo estas cortes foram mais ricas não só em comparação a outros feudos,
como também em relação às cidades. Estes grandes senhores envolvem-se progressivamente
Uma montanha de queijo ralado
se vê sozinha em meio da planura
e um caldeirão puseram-lhe no cimo...
Um rio de leite nasce de uma grota
e corre pelo meio do país,
seus taludes são feitos de ricota...
Ao rei do lugar chama Bungalosso;
Por ser o mais poltrão, foi feito rei;
qual um grande paiol, é grão e grosso
e do seu cu maná lhe vai manando
e quando cospe cospe marzipã;
tem peixes, não piolhos, na cabeça.
Não é preciso saia nem saiote
lá, nem calça ou camisa em tempo algum,
andam nus todos, homens e mulheres
Não faz frio nem calor, de dia ou noite,
vê-se cada um e toca-se à vontade:
oh que vida feliz, oh que bom tempo...
Lá não importa ter-se muitos filhos
a criar, como aqui entre nós;
pois quando chove, chovem raviólis.
Ninguém se preocupa em casar as filhas,
que são posse comum e cada qual
satisfaz os seus próprios apetites
63
nas redes de comércio, além de se aparelharem com um corpo administrativo e tributário, de
forma a organizar seus vastos donios. A partir do fortalecimento da cortes, crescem as
cidades, se apresentando como novas formas de assentamento e integração social, resultantes
do aumento da divisão do trabalho e da interdependência entre as pessoas.
Ao final da Idade Média, autoridades seculares da Fraa e Inglaterra se mobilizam
no sentido de inibir o consumo ostensivo através das suntuary laws. Antes que uma tentativa
de regular o apetite, a questão que se fazia premente era a regulação da exibição e da
demonstração de poder, uma vez que tais leis se aplicavam também ao uso ostensivo das
roupas. Mesmo que não tenham sido completamente seguidas, podemos identificar nesta
atitude do governo e parlamento reais sinais de uma sociedade gradativamente mais aberta.
Afinal, se os grandes banquetes ainda eram aceiveis enquanto parte de uma lógica feudal de
reciprocidade - onde os senhores dividiam sua carne por costume e obrigação com seus
seguidores, assim como dispunham suas sobras aos pobres -, se tornam, contudo,
excessivos” e “ostensivos” na medida em que passam a ser imitados por um grupo
ascendente, cujas obrigações sociais ainda não estão bem definidas. As “leis suntuárias
podem ser consideradas, neste sentido, sintoma de uma pressão social de baixo - na forma da
competição da comida e no modo de comer - da corte pelos não nobres, anunciando novos
tempos.
2.2. A civilização do apetite
2.2.1. Cálculo, cortesia e urbanidade
A emergência de um novo grupo no cenário político, a burguesia, intensifica o
deslocamento contínuo do poder para a esfera urbana. A divisão do trabalho, assim como as
64
técnicas de produção envolvidas nos setores comercializados, avançam simultaneamente à
contínua formação do Estado. O processo de centralização do poder, que nas vias
institucionais se traduz pelo monopólio da tributação e do uso da força física, é acompanhado
pela tendência à contenção e moderação das paixões. O processo civilizador, nos termos de
Elias (op.cit.), vem estabelecer uma conexão generalizada entre a mudança da economia
emocional da personalidade e a crescente previsibilidade e segurança da vida social. A
pacificação interna é simultânea ao poder da regulação interna dos Estados, à progressiva
limitação e dependência, definindo-se um cenário regulado por um dispositivo refinado de
distinção, através de um digo de maneiras, que controla não os outros, mas a própria
conduta. uma relação geral entre a economia emocional da personalidade e o crescimento
gradual da calculabilidade da existência. A civilização do apetite é resultado de uma série de
transformações sociais que se traduzem no maior sentimento de segurança, regularidade de
abastecimento e variedade alimentar, que ocorre de forma simulnea à civilização dos
modos e ao desenvolvimento da gentileza, da cortesia, da urbanidade.
As sutilezas do intercâmbio social passam a ser regidas por instrumentos refinados de
distinção em relação às camadas inferiores, de forma que se torne visível a hierarquia, e se
torne manifesta a “dignidade”. A complexificação das relações sociais, o crescente
entrelaçamento das redes sociais reflete na esfera das interações a tendência cada vez maior
das pessoas se auto-observarem e observarem aos demais. Neste sentido, esta situação de
constante vigilância promove, nos termos de Elias, um avanço no patamar do embaraço e da
vergonha. A construção deste novo padrão de repugnância se revela no decoro corporal
externo, na postura, nos gestos, no vestuário, nas expressões faciais, nos modos e formas de
comer. Tudo que é repugnante”, ou que apresenta certa proximidade à natureza animal
humana, como o sono, o sexo e outras funções corporais são removidos para o fundo da vida
social.
65
Em termos de práticas alimentares, a sociedade européia assiste, então,
transformações significativas em relação ao mundo medieval, tanto nos modos à mesa,
quanto na forma de se alimentar; a comida e o comer tornam-se objeto de disputa entre os
diferentes estratos sociais. Os livros de instrução de boas maneiras à mesa lentamente se
espalham pelas cortes, ensinando jovens a não mais limpar seu nariz com as mangas, não
devolver o pedaço de carne comido à vasilha coletiva, o se limpar com a toalha, evitar
expressões fisiológicas à mesa tais como o arroto e a flatulência ou as posturas animalescas
de lamber”. Neste sentido, o processo civilizador revela-se no imperativo de se aprender
formas de agir que individualiza, privatiza e restringe o comportamento. O contato com a
saliva torna-se altamente poluidor: o vinho, antes coletivo, passa a ser bebido em taças
individuais, a faca comum é abolida, os talheres se especializam nas suas funções. A faca em
especial é um importante elemento simbólico da pacificação interna na esfera social; sua
utilização passa a ser regida por inumeráveis proibições sendo remodelada para uso
específico à mesa. Comparando-se ao período medieval, a vida se torna, neste período,
“menos perigosa e menos emocional” atenuando-se a imagem dos choques sicos, das
guerras, das rixas. Tudo aquilo que se associa simbolicamente a esta espontaneidade
“instintiva”, seja por impulsividade violenta ou sensorial, se recolhe do cenário social.
O fato é que por volta do século XVII já era impossível à nobreza comer (somente)
quantitativamente. Enquanto as possibilidades de diferenciação pela ingestão da quantidade
pareciam limitadas, qualitativamente, se apresentavam inexauríveis. A experiência da
glutonice” é substituída pela do apetite”, que deve ser conquistado através das incríveis
peripécias da arte culinária.
Embora a forma de organização potica centrada na figura do monarca absolutista
tenha ocorrido em diferentes regiões da Europa, seguindo uma temporalidade específica a
estas regiões, a experiência francesa da vida cortesã torna-se emblemática, dado seu
66
esplendor. A centralização do Estado exige da nobreza guerreira a migração para a corte, de
forma a se beneficiar de posições de prestígio. Com o processo de pacificação interna, assim
como a desvalorização da terra enquanto fonte de poder, a velha nobreza perde a função do
ponto de vista do Estado. Contudo, passa a ocupar papel fundamental do ponto de vista do
rei; servindo-o, ela contribui para mantê-lo à parte do resto da sociedade, atuando como
contrapeso aos grupos burgueses em ascensão. Metamorfose da nobreza guerreira, a
sociedade da corte constitui-se, então, a partir de um grande número de aristocratas vivendo
ociosamente à custa das relações pessoais, que, ameaçados pelo crescente poder burguês, se
esforçam pela distinção do refinamento.
Na época absolutista, a corte assume então o papel de centro difusor de estilos, da
moda, dos bons bitos, resultando na noção da etiqueta. um refinamento, inclusive, nas
formas de dominação. O poder absoluto do rei não significava apenas o controle do Estado
sobre a potica e a economia; o modo de vida da corte, rica, imponente e poderosa, inspirava
todas as camadas sociais. O desejo de enobrecer, manifesto pelas camadas burguesas mais
abastadas, ao mesmo tempo refletia e alimentava a glorificação das atitudes e imagens dos
reis. Os cortesãos desenvolveram extraordinário senso de status e importância por sua
aparência, promovendo o desenvolvimento de uma sensibilidade de “adequação” como
instrumento de auto-afirmação e defesa das pressões de baixo. A obrigação à magnificência
os compele aos detalhes superficiais e rituais rebuscados.
O ato de comer adquire um novo estilo, correspondendo a novas necessidades da
vida social, a um novo padrão especial de relações humanas e estrutura dos sentimentos. A
dignidade alcançada pela arte culinária como espaço de civilização e de prestígio se revela
no extravagante número de pratos servidos nas refeições, na sua variedade, no número de
convidados, no espírito das concessões de nomes aristocráticos às novas receitas, no estilo
67
rebuscado dos gestos. Enfim, no interesse geral da vida cortesã pela arte culinária como
experiência da distinção, mas também da sensação, do prazer gustativo e da comensalidade.
A descoberta de um prato novo é mais importante para a felicidade
do gênero humano do que a descoberta de uma estrela”.
“Não se mudar de vinho é uma heresia; a língua se satura e, depois
do terceiro copo, o melhor dos vinhos produz apenas uma sensação
confusa”
A figura de Brilltat-Savarin, autor dos “aforismos” acima em A Fisiologia do Gosto
([1848] 1989: 15), é emblemática no jogo de forças sociais vigentes. Revela a importância da
culinária enquanto arte, o papel fundamental do artista talentoso a serviço dos grandes
aristocratas, o valor conferido às sensações gustativas; afinal, era um bon vivant. Adota,
contudo, um estilo que gostaria que fosse reconhecido como científico, através da
investigação da fisiologia. São as proposições racionais, e não a intuição e inspiração, que
evocam, neste momento, a confiança, expressando, portanto, o espírito ilustrado de erudição
da época iluminista, uma visão de mundo muito mais afinada à ótica burguesa que avança
irreparavelmente.
A experiência do registro e a democratização do saber.
Dentre as diversas transformações ocorridas na Europa ocidental, a invenção da
imprensa assume importância particular no que toca às práticas alimentares. Sem vidas, a
reprodução gráfica propicia a democratização do saber em larga escala, o que vai ocorrer
paulatinamente nos séculos seguintes. O crescimento da circulação do conhecimento e das
idéias, assim como sua fixação através da escrita são responsáveis pela ampliação do debate,
do estímulo ao espírito crítico, que se torna fundamental naquele processo de mudança
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social. No entanto, a cultura escrita continua atuando como operador distintivo, redefinindo
novas fronteiras; dentre a própria nobreza, a distinção entre a aristocracia urbana e letrada e
a nobreza rural e tosca; no meio urbano, entre uma elite ilustrada composta por nobres e
burgueses, e uma classe trabalhadora analfabeta. (cf. Mennel, op.cit.)
A circulação de livros de culinária quebra a dependência absoluta do aprendizado
pessoal direto, conferindo à transmissão maior amplitude. A receita escrita apresenta caráter
prescritivo ao estabelecer medidas, normas a serem seguidas, ingredientes a serem utilizados,
conferindo ao prato inclusive um nome; esta formalização e sistematização de um saber
outrora oral promovem uma série de pressões à conformidade e à preservação da
originalidade das receitas, impedindo a superposição anônima de formas. Por outro lado, esta
mesma tradição estabelecida vem estimular a mudança através da inovação; a publicação
freqüente de livros testemunha o processo constante de popularização e superação das
combinações culinárias. Paralelamente, cresce a precisão técnica e o prestígio social daquele
profissional a serviço das classes superiores. O livro de culinária possibilita o fenômeno da
autoria, a realização individual, promovendo, junto à vida social cortesã, a ascensão de um
ofício antes desvalorizado ao estatuto de arte; a arte culinária se torna espaço legítimo de
expressão da originalidade e da personalização.
Primeiramente na Itália e depois em outros países, a competão social através da
cozinha exerceu pressões para as invenções de pratos cada vez mais elaborados, num
contexto de crescente segurança alimentar. Os livros italianos do final do século XVI
apresentam pratos mais variados, que se distanciam paulatinamente do referencial medieval
da cozinha nobre. Diminuem a proporção de pratos com carne, cresce a atenção aos vegetais,
massas e embutidos, assim como se verificam inovações nas técnicas de cozinha como o
marinar, o escaldar e o cozimento lento que amacia a carne. Se os italianos foram os
pioneiros, certamente não foram os deres desta transformação, dado o papel preponderante
69
da culinária francesa como centro difusor dos modos. Em 1651 Varème publica Cuisinier
Français; o cozinheiro, serviçal imprescindível à vida cortesã apresenta-se ao público num
misto de humildade social, ao agradecer o nobre que o promove, e orgulho profissional.
A cozinha francesa vai delineando seu perfil de haute cuisine caracterizada neste
momento, pela ascensão dos produtos lácteos ao consumo aristocrático através da utilização
da manteiga e cremes, do uso constante de molhos de longo cozimento e pela substituição de
ervas exóticas por plantas familiares como salsa e tomilho. Aparentemente, o afastamento do
universo das especiarias por parte da elite, neste momento, se apresenta como contraditório,
uma vez que mais crucial se torna a distância entre os gostos e modos da aristocracia frente às
pressões sociais. Contudo, possui certa coerência, uma vez que as especiarias se
encontravam largamente acessíveis ao mundo burguês, graças ao comércio em grande escala,
realizado por mercadores portugueses e holandeses. O critério distintivo torna-se, então, o
imperativo social de o ofender os semelhantes, a delicadeza nos modos de agir, nos modos
de comer; a etiqueta como o “molho dos gestos”.
Através de seus livros, os cozinheiros travam batalhas blicas de estilos que se
superam, promovendo o afastamento de qualquer referência à rusticidade e oferecendo ao
público leigo os representantes da burguesia - o acesso ao estilo aristocrático. As
transformações por que passa a arte, neste período, a transição do barroco para o rococó, traz
modificações na cozinha cortesã, com o aparo do excesso e das extravagâncias para o que
repetidamente se chamaria a cada nova ruptura de estilo, de nouvelle cuisine, com a sátira da
voluptuosidade de Versailles. Os livros, obedecendo aos padrões da nobreza cortesã,
encontram blico leitor entre os burgueses; alguns com versões o tão extravagantes para
aqueles menos afortunados. La Cuisinière Bourgeouise, de 1746 é o exemplo de um livro que
oportuniza estes estratos a partilhar do leque gustativo das “altas rodas”; com a devida
70
simplificação de receitas, destina-se a um público doméstico, de classe média, urbano, e,
sobretudo, feminino.
2.2.2. O intercâmbio colombiano
O período das Grandes Navegações inaugura uma grande revolução ecológica na
hisria mundial em função do trânsito global de inúmeros representantes da flora e fauna dos
cinco continentes. A enorme ampliação das rotas globais de navegação, no início do período
moderno, vem favorecer o transplante de produtos para novos climas, instaurando a reversão,
em grande escala, do longo processo evolutivo de especialização da fauna e da flora no
espaço geográfico; de um padrão divergente, que vinha ocorrendo desde a separação dos
continentes, a biota planetária assume um padrão convergente: o trigo europeu se
estabelecendo nas planícies norte-americanas, o café da Etiópia em terririo brasileiro, o
gado indiano espalhado pela América do Sul, a batata dos Andes como alimento básico de
grande parte da população européia. O intercâmbio colombiano, ao que parece, a maior
intervenção humana na história ambiental até os dias atuais, vem favorecer o acesso de dietas
variadas a populações demasiadamente dependentes de alimentos básicos específicos. A
Europa sofre grande impacto com a chegada do milho e da batata, que, se o promoveu o
aumento populacional, certamente garantiu, dada a sua produtividade, a sobrevivência do
campesinato europeu. Este aumento populacional é que, futuramente, irá sustentar a revolução
industrial. O café, o chá e o chocolate, acompanhados pelo açúcar, inauguram a ascensão e
popularização do gosto por bebidas quentes e adocicadas na Europa, delineando novos
padrões de sociabilidade.
O contexto da história do uso do açúcar na cozinha européia relaciona-se à expansão
das especiarias no fim da Idade Média. A grande mudança que converteu o mundo dos
71
monopólios orientais de especiarias em um mundo novo, um sistema global em que os
poderes ocidentais passam a controlar o comércio e parte da produção de especiarias, pode ser
compreendida a partir de três momentos. Primeiro, a transferência para oeste dos principais
centros produtores de açúcar - do Oriente Médio para o sul da Itália, da Ilha da Madeira para
o Novo Mundo; segundo, o desenvolvimento de novas rotas comerciais e, finalmente, a
tomada progressiva do controle da produção por parte dos poderes ocidentais. O oceano, ao
invés de barreira ao trânsito mundial, torna-se então uma grande via de comunicação. Este
intercâmbio ecológico, que se intensifica a partir do monopólio do comércio das especiarias,
conquistada, vale ressaltar, ao poder do uso da violência, marca a mudança permanente no
equilíbrio de conhecimento e poder no mundo, favorecendo o Ocidente.
No seu significado cultural, ou seja, enquanto consumo conspícuo, as especiarias
perderam sentido na era moderna. Dentre os condimentos exóticos, é o açúcar que mais
rapidamente se torna acessível ao consumo popular: além de adaptar-se ao cultivo no
Mediterrâneo, trata-se de uma especiaria inodora, agradando, portanto, a um maior número
de paladares. Rapidamente, de consumo farmacológico o açúcar tinha estatuto medicinal
com atuação restauradora das funções fisiológicas, inclusive, o uso da sobremesa, doce, após
as refeições advém da representação européia de que o açúcar facilitaria a digestão –, o açúcar
cai no gosto de grande parte da população.
Nunca é demais relembrar que sua expansão foi conseguida com muito suor e opressão
baseada na o de obra escrava e barata, no sistema de plantation no Novo Mundo. Esta
produção, baseada em relações pré-capitalistas, vai paradoxalmente responder à necessidade
de expansão do consumo da sociedade de mercado emergente na Europa (Mintz 1986). O
consumo de açúcar se alarga primeiramente como item de consumo conspícuo; antes reduzido
à aristocracia, vai paulatinamente atingindo outros setores sociais ávidos em ascensão e
prestígio. Quando atinge as classes populares, torna-se, inclusive, uma necessidade: além de
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acompanhar as “bebidas quentes” (ca e chá) cujo consumo passa a ser estimulado por
industriais preocupados com os danos da dependência alcoólica à produtividade, transforma-
se em fonte barata de calorias para trabalhadores subnutridos. A elite logo percebeu que seria
mais lucrativo satisfazer o desejo dos mais humildes do que agradar o paladar dos ricos. As
classes populares acreditavam, por sua vez, que estavam crescendo em liberdade e status ao
consumir o açúcar.
A decadência do consumo do açúcar como condimento excludente, é seguida, então,
por sua utilização junto a um novo grupo de sabores, o chocolate, o chá e o café. O chocolate
chega à Europa através da Espanha e tem rápida adesão de consumo da aristocracia,
enriquecendo o cenário da vida na corte, e sua profusão de ritos, gestos, louças e toda
elegância do estilo rococó. Schivelbusch (op.cit) faz interessante associação entre o consumo
do café e a ética protestante e capitalista, em contraposição ao mundo católico da Europa
meridional, como centro específico de utilização do chocolate. Como produto nativo de suas
colônias, a descoberta, o comércio e o consumo do chocolate estavam associados a sua
Majestade Católica, o Rei da Espanha. O uso do chocolate tornou-se tro do estilo da corte
espanhola, estilo predominante entre a aristocracia no século XVII. Ao final deste século, o
estilo francês suplanta o espanhol, marcado pelo casamento de Ana da Áustria com Luís XIII;
Ana foi criada em Madrid , levando o chocolate para a França. O chocolate apresenta
significado particular para o mundo católico ao se encaixar na faixa de alimentos adequados
aos períodos de abstinência alimentar, dada a qualidade dos líquidos em não quebrar o jejum.
Vendido lido e servido para beber, dissolvido em água, leite ou com adição de vinho, tem
como virtude o valor nutritivo. Comparativamente, o desjejum burguês à base de café em
muito se diferencia do jejum aristocrático baseado no chocolate. Enquanto a família de classe
dia senta-se à mesa, movida por um senso de responsabilidade e disciplina, o ritual do
chocolate tem outra temporalidade, associado à fluidez do lento despertar, com ares de
73
preguiça. Ao propiciar um estado intermediário entre o deitar e o despertar, associa-se à
languidez; considerado de caráter afrodisíaco, opõe-se ao café anticorpóreo e antierótico.
Além disto, não se definia como luxúria específica ao mundo adulto e masculino, como o
café, estando acessível a crianças e mulheres.
Conhecido como o “vinho do Islã”, a particularidade do café enquanto bebida do
mundo islâmico vai além da associação geográfica; enquanto prática alimentar, o café traz
uma carga simbólica de grande afinidade à cultura árabe. A lógica de seu uso social relaciona-
se ao fato de se tratar de uma bebida não-alcoólica, não-tóxica, sóbria, além de poderoso
estimulante mental, adequada a uma cultura que proibia o consumo de álcool e dominada
pela abstração; curiosamente berço da matemática moderna. Até o século XVII, o café não
passava de uma curiosidade para os europeus. Envolvida com a voluptuosidade do chocolate,
a sociedade da corte tinha como preocupação central, no lugar das qualidades intrínsecas da
substância ingerida, a forma de uso, ou seja, como poderia ser consumida, e as oportunidades
que criava para a exibição da elegância e do refinamento. A sociedade burguesa, por sua vez,
se preocupava mais com a substância do que a forma; tido como panacéia, as propriedades
fisiológicas e efeitos referidos ao café eram exaltados.
É preciso reconhecer as forças ideológicas por detrás desta reorientação da sobriedade
e abstinência, exercidas pelo apelo puritano do movimento ascético. Dentre as inúmeras
alterações na condução da vida pessoal, promovidas pela Reforma, a atitude em relação ao
beber sofre grande modificação. Em primeiro lugar é preciso destacar o papel significativo do
álcool antes da chegada das bebidas quentes na Europa. A cerveja, por exemplo, tem papel
crucial na alimentação cotidiana medieval; sua elaboração fazia parte dos deveres da dona de
casa, além de ser componente fundamental nos momentos de lazer, como as competições
pelas quantidades ingeridas, até à perda da consciência, presentes nas feiras e festins
medievais.
74
Uma das qualidades principais do café era o fato de ser considerado uma bebida
sóbria, que promoveria em seu consumidor bom senso e eficiência nos negócios. Como
estimulante da atividade mental, o café define-se como a bebida da era moderna, quando a
burguesia se diferencia dos povos nos séculos anteriores pelo estilo de vida singular, tanto
mental quanto sico: o tipo idealizado do “burguês moderno” torna-se cada vez mais aquele
que se dedica ao trabalho mental, sedentário, no escritório ou na oficina. Neste sentido,
podemos considerá-lo, o café, uma droga que se encaixaria aos anseios da ética do trabalho na
era industrial, por permitir aos humanos “funcionar” uniforme e regularmente, como relógio.
Para a classe média otimista e progressiva, a principal propriedade do café seria estimular a
mente, mantê-la “acordada” funcionando como um recurso produtivo em sintonia à premissa
do “tempo é dinheiro”. Com o café, o princípio de racionalidade entra para fisiologia humana,
transformando-a para se adequar a seus próprios requisitos. Muitas vezes recomendado por
clérigos, do café também se exaltavam poderes anti-eróticos, na medida em que substitui o
desejo sexual pelo estímulo intelectual. Nos séculos XVII e XVIII o café era visto como
substância extremamente seca e dissecante”; escritores da classe média progressiva
vangloriavam a drenagem do corpo, a substituição da cerveja por uma bebida de baixa caloria.
A noção de secura associada à abstração e ao nervosismo são características que marcam
princípio moderno por excelência.
O Iluminismo tem como um dos cenários de socialização as Casas de Café, locais de
reunião de intelectuais, lugar de negócios. Em oposição à taverna, elas se definem pela
sobriedade e pela ordem, atuando como centro de comunicação, testemunhando a invenção
do espaço público como área de sociabilidade na era moderna. A assimilação do café pelos
países europeus se de forma diferenciada, tendo como lócus de maior expressão durante
certo período a sociedade inglesa. De acordo com Schivelbusch (op.cit.), esta bebida levou
cerca de meio século para que entrasse nas casas, se tornando, então, a bebida do desjejum,
75
um conforto doméstico que inaugura o dia de trabalho. Fundamental para a consolidação do
sentimento de modernidade, é através do consumo do café que outras populações européias,
como os alemães, ainda em processo de implementação do capitalismo, se apropriam do ethos
urbano-industrial.
A virada do século XVIII representa a modificação do consumo inglês de capara o
chá. Neste sentido, vale destacar interessante reflexão de Sahlins (1988) sobre o consumo de
chá pelos ingleses, responsável pela criação de um hábito que abalou os pilares de uma
nação dominada pela razão prática. O “paradoxo do ópiorepresenta o ápice de um capítulo
da história do consumo de estimulantes no Ocidente, demonstrando-nos que os contatos
europeus com as nações periféricas” (ou nativas) moldaram tanto a história dos povos
colonizados, quanto dos próprios colonizadores. Enquanto os chineses incorporam os
brinicos em sua rede comercial como mais um povo bárbaro a fazer parte do grande
império, os britânicos tentam impor a lógica comercial capitalista que os beneficiariam como
compradores de “matéria prima”. Contudo, foi preciso chegar-se à violência da guerra e a
construção de uma “necessidade” intoxicante, do uso do ópio por grande parte da população
chinesa, para que se revertesse o equilíbrio da balança comercial, favorável, então, ao império
chinês, na medida em que os ingleses trocavam chá por prata. Todo este empenho, de grandes
custos por parte da nação européia, por que o chá torna-se uma necessidade indispensável na
Grã-Bretanha: objeto de fascínio e rigor no uso ritual, e ao mesmo tempo, uma substância
eficaz em tornar a classe trabalhadora dócil e sóbria. A superação das bebidas medievais pelas
bebidas quentes adocicadas, contudo, não foi imediata, e muito menos uniforme, em face do
avanço da produção industrial de bebidas alcoólicas.
Em termos gerais, a sobriedade estabelecida pelo café (e posteriormente, pelo chá) se
limitava a setores específicos da população, especialmente a classe média, que considerava
revoltante, e até repulsivo, o uso irrestrito do álcool entre os trabalhadores. Na verdade, as
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classes inferiores se situaram à margem da cultura do café, se limitando à cultura medieval
das bebidas fermentadas. Os ritos arcaicos medievais de beber sobreviveram nas classes
trabalhadoras, tanto como forma de escapismo da dura realidade, como pelo companheirismo
social que a partilha da bebida possibilitava. Contudo, a industrialização trouxe tal
intensificação social da miséria para a vida dos trabalhadores que o motivo do escapismo
tornou-se mais forte que em épocas anteriores. (cf. Mennel, op.cit.; Schivelbusch, op.cit. e
Thompson, 1998)
O mercado atacadista de bebidas destiladas é coisa relativamente recente no mercado
mundial. Até então, vinho, cerveja e sidra compunham grande parte do comércio, na maioria
local, de bebidas, que vão lentamente perdendo espaço para a indústria de bebidas alclicas.
Na crise euroia no século XVII, onde os cereais se encontram desvalorizados no mercado,
a classe senhorial decide aumentar o volume de vendas para as populações empobrecidas,
fabricando bebida alcoólica. Frente à crise na agricultura de exportação multiplicam-se as
cervejarias na Europa do Norte, juntamente com um conjunto de destilados que se destinam
ao consumo tanto do campesinato, ainda em estado de miserável servidão, quanto da
população urbana.
uma íntima relação entre a revolução industrial e a necessidade de um intoxicante
barato e poderoso. O acelerado processo de urbanização tem como contrapartida o êxodo
rural, reunindo nas cidades grandes massas desenraizadas, expostas a um novo e estranho
mundo onde velhas normas são quebradas. Este fenômeno de tal forma se intensifica que o
alcoolismo da classe trabalhadora torna-se uma grande questão para os socialistas. Com efeito
inverso ao café, os destilados, têm seu consumo largamente difundido. Dado seu maior teor
alcoólico, ocupam o espaço da cerveja, se estabelecem como bebida cotidiana, se tornando
um dos grandes responsáveis pela aceleração da intoxicação. O gim vem reforçar este
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quadro, na promessa de ajudá-los a esquecer a situação insustentável, iniciando-se assim, uma
experiência inaudita na história até então, o beber solitário.
A exemplo do caso chinês, o papel dos intoxicantes, no caso, das bebidas alcoólicas,
na conquista do Novo Mundo, foi decisivo, ao possibilitar a submissão da lógica nativa à
lógica comercial capitalista. Na América do Norte, por exemplo, os comerciantes europeus de
peles encontram um sistema econômico indiferente às flutuações do mercado europeu.
Somente após a criação demanda do álcool é que os nativos foram compelidos a se
comportar de acordo com os ditados do mercado econômico inglês e alemão, minando assim
o cálculo nativo da quantidade de animais que iriam matar em determinada estação.
Na hisria dos grandes intercâmbios mundiais, vale ainda destacar o papel da cachaça
brasileira como importante componente do sistema alimentar do Atlântico Sul. Luís Felipe de
Alencastro (2000) é da opinião de que seu papel estratégico nas relações comerciais do Brasil
colonial com África permaneceu inexplicavelmente ignorado pela historiografia brasileira. A
cachaça desbanca as bebidas alcoólicas ibéricas nos mercados centro-africanos, confirmando
a consisncia da economia bipolar entre a zona brasileira de produção escravista, e a zona
angolana de reprodução dos escravos.
De fato, o comércio escravista teve como marca a utilização da prática do escambo,
onde os escravos eram trocados por víveres. Na verdade, são usos construídos a partir do
contato; produtos tropicais americanos como a mandioca, o milho e a batata doce tiveram
larga aceitação entre a população africana. Sua utilização como alimentação dos cativos nos
portos e nos tumbeiros fez parte do know how” português em garantir a sobrevivência dos
negros até sua chegada em solo brasileiro; um saber que lhes conferiu grande superioridade
no comércio mundial de cativos. A pilhagem de aldeias angolanas pelos escravistas se tornou
prática estratégica: destruíam deliberadamente palmeiras de onde se extraía o malafo
1
e
1
Malafo era um tipo de bebida fermentada pela qual os nativos tinham grande apreço. Conhecido entre os
portugueses como “vinho de palma”, era fabricado a partir de uma palmeira africana, largamente cultivada nas
78
ofereciam vinhos e aguardentes europeus. Mercadoria de prestígio, a cachaça conquista as
feiras em solo africano, enriquecendo os senhores de engenho, aumentando a oferta de
escravos, garantindo a supremacia brasileira no tráfico.
Diferentemente da mandioca e do tabaco - este posteriormente, será o grande
responsável pela penetração dos colonos da América Portuguesa no Golfo da Guiné – a
cachaça foi crucial na conquista brasílica do mercado de escravos da África Central. As
exportões de cachaça ilustram o modo pelo qual o comércio intercolonial sul atlântico se
sobrepõe aos interesses de grupos metropolitanos, a jeribita enfrenta o vinho e a aguardente
da Europa. No culo XIX , quando os negreiros europeus drenam o tráfico do Norte de
Angola e do Congo para as Antilhas - motivados pelo alto pro pago “peça”, quase o dobro
do praticado em terra brasileira - a bebida aparece como o único meio de dar continuidade ao
comércio português na região. O deslanche no quadro da cachaça representa um caso original
no quadro das transformações econômicas, pois ela vem competir com os produtos alcoólicos
europeus tornando-se elemento central do trato brasileiro em Angola.
2.2.3. Os novos padrões de sensibilidade burguesa
O fato é que as turbulências sociais por que passava a sociedade européia são
acompanhadas por uma revolução no universo das percepções. Uma das transformações que
se destaca e que vai agregar novos sentidos ao comer é a modificação da forma com que
aqueles homens passam a lidar com a Natureza, ou o “mundo natural”, nos termos de Thomas
aldeias, possuindo tanto a bebida quanto a planta da qual se origina, grande importância simbólica entre os
nativos. Alencastro (op.cit.) faz referências a depoimentos portugueses da tristeza dos aldeões frente à destruição
de seus palmeirais pelos invasores, lamentando mais a sua perda do que a morte ou captura de seus filhos. Este
autor levanta interessante questão sobre a possível relação entre a crucialidade desta palmeira para os nativos
africanos e o nome do “Quilombo dos Palmares”, sugerindo assim, a referência à planta como estratégia de
reconstituição da própria identidade entre os quilombolas.
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(1998), fato este intimamente ligado ao “processo civilizador” de Elias, anteriormente
discutido. As reflexões de Thomas, apesar de se concentrarem na sociedade inglesa, não
deixam de contribuir para a compreensão do processo de consolidação das sociedades
ocidentais contemporâneas.
Durante um bom tempo na história da cultura ocidental, o empolgante espírito
antropocêntrico se manifestou através da visão do predomínio humano, onde as outras
espécies deveriam subordinar-se a seus desejos. Os relatos que chegavam ao solo europeu de
como as religiões orientais mantinham uma visão totalmente diferente, de respeito à vida dos
animais (inclusive por hábitos de não comer carne), eram acompanhados com certo desdém;
aos olhos europeus era um contra-senso jogar viúvas na pira e ao mesmo tempo ser cuidadoso
com “criaturas insignificantes”.
A manutenção de fronteiras tidas entre o homem e o mundo natural transparece não
no pensamento religioso como também na reflexão filosófica; tanto a teologia da época,
quanto a própria negação cartesiana da alma dos animais, forneciam os alicerces morais para
esse predonio do homem sobre a natureza; na verdade, se delineiam como tentativas de se
definir o estatuto do “humano” , depurando-o de uma realidade “animal”. Thomas (op. cit.)
refere-se a uma ansiedade, ora latente, ora explicitada, no início do período moderno, quanto a
qualquer forma de comportamento que ameaçaria transgredir os frágeis limites entre o homem
e o mundo animal. A educação erudita, a “civilidade” e o refinamento são propostas de
elevação dos homens acima dos animais; toda proximidade é potencialmente perigosa, o que
vai transparecer nas regras de compostura à mesa. “Não estale os lábios como um cavalo...
não engula a comida sem mastigar, como cegonha; não roa os ossos, como o cão; não lamba
o prato como felino” (Erasmo, in Thomas, op.cit.:44).
A criação bruta fornecia ponto de referência mais acessível para o contínuo processo
de autodefinição humana. O homem atribuía aos animais os impulsos da natureza que mais
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temia em si mesmo, como a ferocidade, a gula, a sexualidade; nos termos de Thomas, foi a
partir de um comentário implícito sobre a natureza humana que se delineou o conceito de
animalidade”. São desprezadas como funções “animais” todas as atividades fisiológicas;
amamentar, por exemplo, era visto como degradante, uma função delegada às mulheres do
povo. A moderação do corpo se constituía como forte operador distintivo, na medida em que
os impulsos físicos eram vistos como impulsos animais. A nudez era bestial, assim como o
ato de nadar. Bestial também era o hábito dos homens de usar cabelos excessivamente longos;
o que nos faz lembrar a proibição do uso da barba entre seus súditos, estabelecida por Pedro,
o grande, em sua jornada civilizatória da nação russa. Vestir, como o ato de cozinhar, era
exclusividade dos humanos.
Não é por acaso que são o vestuário e as maneiras à mesa os emblemas primordiais da
distinção aristocrática na sociedade da corte. O critério de exclusão social, ou as formas de
julgamento entre superiores e inferiores, guardam íntima correlação com a proximidade, ou
distância, do mundo natural. De fato, são classificações sociais que se reproduzem ao olhar
para o mundo natural. São os menos favorecidos, trabalhadores e camponeses que mais
intimamente se inserem “na natureza” nas maneiras, nos hábitos corporais e alimentares, na
intimidade com os animais - e dela dependem, utilizando-a diretamente para sobrevivência. O
projeto civilizador ocidental supõe, neste momento, o afastamento progressivo e isto é
representado como um progresso” deste mundo, até mesmo como pré-requisito
fundamental da lógica da dominação/conquista da natureza.
Algumas formas classificatórias das plantas e animais vão refletir estes pressupostos.
Tentativas de se reproduzir a lógica da desigualdade social no mundo da natureza são
freqüentes, como a criação de certos animais domésticos - cavalos e cães mais
freqüentemente – que são “cultivados” sob o viés hierárquico da raça e descendência. Tal fato
nos remete à grande influência que A Grande Cadeia dos Seres, uma representação do
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universo como hierarquia linear, assim denominada por Lovejoy (cf. Dumont, 1985),
exerceu na história do pensamento ocidental. Nela, o conjunto do mundo natural estaria
organizado em uma escala, que subiria do homem aos anjos e desceria gradativamente dele
para seres de graus menores de perfeição.
É esta linha lida de divórcio entre homens e animais que justifica, no princípio do
período moderno, a caça, o hábito de comer carne, a domesticação dos animais, o externio
sistemático de animais nocivos e predadores. A classificação do mundo natural
fundamentava-se, portanto, na sua relação com o homem. As plantas são reconhecidas em
função de seus usos humanos; o principal estímulo para os estudos botânicos foi durante
muito tempo a sua utilidade prática, ou seja, seu valor medicinal. Somente ao final do século
XVII, a botânica lentamente deixa de ser um ramo da medicina. Como exemplo desta
classificação, podemos citar a proposta de William Coles, em 1656, de que na natureza
haveria sete tipos de ervas: “ervas de vaso, ervas medicinais, cereais, legumes, flores, capim e
ervas daninhas”. A classificação dos animais segue a mesma lógica. O tlogo Edward
Topsell, ao estudar os animais quadrúpedes ao longo da história, sugere dividi-los entre:
ferozes e mansos, úteis e inúteis, comestíveis e não comestíveis.
Interessa-nos particularmente este aspecto, pois esta classificação incipiente no
princípio do período moderno define padrões de comestibilidade que o influenciar as
condutas alimentares nas sociedades ocidentais contemporâneas. Apesar de inexistir um
conjunto de leis dietéticas formais como aquelas estabelecidas pelo Letico (estudadas
detalhadamente por Douglas, 1976), proibições igualmente fortes, embora implícitas,
regulavam o cotidiano dos costumes alimentares dos ingleses. Muitas das quais refletiam certa
intimidade deste mundo natural; freqüentemente, era a natureza da dieta específica de cada
animal que determinava seu estatuto de comestível, priorizando-se como comestíveis os
animais herbívoros, que se nutriam de graneas e bagas.
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Na Inglaterra, no séc. XVIII a Igreja decreta proibões quanto a hábitos pagãos de
comer gralhas, corvos, cegonhas, lebres, castores e cavalos. Estas interdições, contudo, são
suspensas, ao menos formalmente, com a Reforma; em sua ambição de depurar o sentimento
religioso de toda alegoria, o movimento reformista dissemina a visão de que todos os
alimentos seriam citos e de que os hábitos dietéticos não consistiriam assunto religioso.
Afinal, para os puros todas as coisas seriam puras”, ou seja, a vinda de Cristo teria libertado
a humanidade da distinção entre alimentos limpos e sujos. Contudo, as interdições
continuavam operantes na definição do hábito cotidiano, fundamentando-se em diferentes
aspectos. Animais que se alimentavam de carniça e excrementos eram rejeitados como sujos,
assim como as aves que comiam insetos. Outra regra seria a de não matar animais
indispensáveis para o trabalho para usá-los como alimentos, como cavalos e cães. Thomas
(op.cit.) afirma que a ascensão do culto ao rosbife inglês acompanhou bem de perto o declínio
do boi como animal de trabalho. Havia também a aversão a comidas que guardassem
demasiada semelhança com a carne humana como macacos; a aversão a animais nascidos da
putrefação como rãs, lesmas, cogumelos e ostras; e a rejeição, no caso dos bretões, a comer
lebres, galos, ou gansos por serem animais destinados ao entretenimento. De acordo com o
autor, a persistência da dúvida popular quanto à comestibilidade das lebres perdurou durante
muito tempo devido à crença de que sua ingestão por parte da mãe, durante a gravidez,
resultaria em um bebê com lábios leporinos.
Ainda assim, o leque dos animais comestíveis apresentava uma amplitude silvestre
muito maior do que nos dias de hoje, estando incluídos como apropriados ao consumo
humano esquilos, texugos, focas, corujas, porcos-espinhos, lontras, tartarugas. No caso das
plantas, além da vasta utilização popular de ervas medicinais, uma gama maior de plantas
silvestres era usada como alimentação: colher os brotos e folhas de tudo o que cresce nos
quintais e nos campos e ajuntá-los...”, se definia como a maneira comum de fazer saladas.
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Na medida em que a urbanização, a revolução industrial e o progresso científico
avançavam mais se tornaram concorrentes as visões populares e eruditas do mundo da
natureza. O processo de imposição de uma nova forma de organização intelectual ao mundo
natural, baseados em princípios mais objetivos de classificação, tornaram irrelevantes a
consideração das plantas e animais por sua comestibilidade, beleza, utilidade, ou estatuto
moral. Várias dessas noções populares haviam sido condenadas por moralistas como
supersticiosas; os protestantes, por exemplo, zelosos no controle de qualquer vestígio de
paganismo, não viam com bons olhos até mesmo o galho de alecrim na carne quando trazida
à mesa. Contudo, são os naturalistas, os responsáveis pela batalha da definição do mundo da
natureza como autônomo, ou seja, definido em termos não humanos.
De fato, a ruptura com a tradição alegórica - não nos esqueçamos que a nova ciência se
autodefiniu a partir da negação do pensamento simbólico - representou uma revolução no
mundo das percepções. Urgia a aceitação explícita de que o mundo o existiria somente para
o homem. Uma nova fronteira moral se delineia, a partir de então, compreendendo outras
espécies que não as humanas. A reflexão inglesa sobre a crueldade animal, comum até então,
torna-se cada vez mais difundida, levantando-se o debate em torno de “práticas selvagens”.
No seio deste debate insere-se a contestação dos métodos convencionais de produção de
alimentos, dos abates brutais às crueldades gastronômicas. Aves domésticas criadas na
escuridão, cegadas, amputadas de suas pernas, ou depenadas ainda vivas, para a melhoria da
qualidade da carne; gansos engordados com as membranas dos pés pregadas ao chão; peixes
que são retalhados ainda vivos; a longa sangria, onde novilhos e cordeiros morem lentamente,
são práticas que vão progressivamente ser acusadas, condenadas e banidas do meio social.
Alguns procedimentos, contudo, ainda permanecem justificados pela “purificação”, como a
castração de animais machos comestíveis; no final do período moderno, as cidades inglesas
tinham como lei a obrigação de açulamento de animais não castrados antes do abate.
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O crescimento das cidades, a emergência de uma ordem industrial, onde os animais se
tornavam marginais no processo de produção, são fatores decisivos nesta mudança de
perspectiva. O afastamento do mundo natural traz consigo dois movimentos: a segregação
objetiva, fundamentada na separação necessária entre os homens e os animais enquanto
objetos de uso e de troca”; e paradoxalmente, a aproximação, para o dizer, a apropriação
de alguns eleitos. Em termos do distanciamento necessário à civilidade, no começo do
século XVI, os ingleses vangloriavam-se de manter a criação doméstica à distância,
menosprezando irlandeses, gauleses e escoceses, que dormiam e comiam sob o mesmo teto
que os animais. Este movimento se tornaria irreversível mais tarde em todo mundo ocidental.
No outro extremo ocorre o desenvolvimento de um outro sentimento, que começou a ser
expresso por citadinos bem situados, afastados do processo agrícola, propensos a considerar
os animais como bichos de estimação e não como criação para o trabalho, cuja sensibilidade
seria diferente da dos homens rústicos. A preocupação com o bem-estar animal fazia parte de
uma preocupação mais ampla que envolvia o cultivo dos sentimentos humanitários. Estes
setores, classes médias profissionais, isolados nas cidades em relação aos animais, são
pioneiros nos novos padrões de sensibilidade, fundamentados na sensação e no sentimento
enquanto valor. o devemos esquecer que o ethos burguês se define, então, dentre outros
aspectos, pela racionalidade e aversão à tradição bélica da aristocracia.
A nuclearização da família, a separação do espaço público e do privado, assim como a
invenção da intimidade são fatores determinantes neste processo. Com a sentimentalização
das relações familiares, prestou-se maior atenção às virtudes domésticas de alguns animais,
como o gato, por exemplo. Vistos como indivíduos, humanos metomicos, portadores de
nome pessoal, isolados do convívio com outras espécies, da mesma forma que os humanos
passam a se isolar, estes animais jamais serviriam de alimentos. É neste sentido que pássaros
canoros silvestres saem lentamente dos cardápios das classes médias inglesas...
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No Brasil, este movimento de afastamento de determinados hábitos alimentares é
mencionado tanto por Freyre (1973[1933]), quanto por Cascudo (1983), onde alimentos
silvestres como as larvas “rhaú” , as tanajuras, a cambuquira, o broto de samambaia, dentre
outros, saem lentamente do cardápio das populações que se urbanizam.
2.2.4. “Apetites privados no espaço público”
“Ao chegar à sala de jantar, observei com espanto diversas mesas
dispostas lado a lado, o que me fez pensar que estivéssemos
esperando por um grande grupo, ou talvez, indo jantar à table
d’hôte’. Mas a minha surpresa foi ainda maior quando via pessoas
entrarem sem cumprimentar umas às outras, sentarem sem olhar
umas para as outras e comerem separadamente sem falar umas com
as outras ou sequer oferecerem repartir sua refeição” (cf. Spang,
2003: 27 )
É neste contexto social da intensificação da circulação de dinheiro e de pessoas, que
devemos referir-nos a nova prática de comer fora” instituída pelos restaurantes.
Diferentemente das estalagens e das tabernas medievais, podemos defini-lo como uma
instituição moderna, um estabelecimento de serviço de refeições privadas em locaisblicos.
Não um consenso entre os historiadores sobre os fatores determinantes de sua
origem. A versão mais difundida associa-o diretamente à Revolução Francesa pois de fato o
restaurante foi, durante um bom tempo, uma instituição particularmente parisiense -, e às
transformações por ela provocadas. Com a fuga e execução de grande número de aristocratas,
seus respectivos chefs tiveram que se estabelecer por conta própria, passando a oferecer a um
público mais amplo a oportunidade da degustação de especialidades; o que se tornou
possível graças à instituição do livre comércio, obtida com a abolição das guildas. Spang
(op.cit.), contudo, apresenta certas ressalvas à abordagem do restaurante como epifemeno
86
revolucionário, procurando enfatizar outros sentidos que motivaram seu surgimento. A
princípio, os restaurantes eram concebidos como lugares possíveis para a regeneração social
e individual; restaurants eram caldos “restaurativos”, feitos a partir do cozimento lento de
variadas carnes. Conhecidos desde o séc. XV, se por um lado os restaurants foram se
modificando em seu perfil alquímico (como o abandono, por exemplo, do uso de pedras
preciosas em sua receita, prática esta inserida no universo das representações medievais), por
outro, sua natureza de preparado semi-medicinal se manteve.
Na verdade acredito que as duas versões se complementam, pois este tipo particular de
instituição pública se difundiu devido ao grande número de transformações sofridas por
alguns países europeus, sejam elas de natureza simbólica, poticas ou econômicas. De fato,
sua difusão democratizou o acesso de alguns setores sociais às combinações até então
exclusivas das mesas aristocráticas. Contudo, o devemos menosprezar a dimensão do
significado, ou sentido, destas casas de restauração, intimamente ligadas ao novo estilo
burguês de comer, brio e atento aos desequilíbrios. Conquistar respeitabilidade frente às
autoridades demandou uma série de argumentos que os legitimassem como espaço das xícaras
confortantes, sopas saudáveis e pratos salutares. A sensibilidade romântica encontrou
oportunidade de vivência gastronômica nestes locais, não por oferecerem tratamento
medicinal, como também por se constituírem a partir de uma culinária suave, delicada,
erudita.
Algumas décadas após seu surgimento os restaurantes já não eram mais
especializados em sopas saudáveis para aqueles de peito fraco, mas reconhecidos como
aqueles que servem comida para paladares individuais, em poções individuais, em mesas
pequenas. Uma comida variada com horário flexível, oferecendo oportunidade de distrações
para o espírito. A presença do cardápio exemplifica a ênfase na liberdade pessoal de um
87
espaço que, em oposição aos banquetes poticos e às ceias fraternais, privilegia o
recolhimento e o caro refinamento.
São todas estas transformações que vão subsidiar as novas práticas alimentares
burguesas. No século XVIII, a moda dos ragôuts delicados e variados se espalha nos círculos
burgueses consolidando-se então, novas qualidades distintivas e excludentes, a saber, a
delicadeza e a autovigilância. Se a moda da corte moveu-se lentamente para a valorização de
pratos delicados, custosos, assim como o domínio de algum conhecimento sobre o “bem
comer”, agora, o senso de delicadeza implica cada vez mais em autocontrole. A burguesia,
que ambicionava seguir o modelo da corte, não tinha, em sua maioria, recursos suficientes
para o consumo conspícuo, encontrando-se assim pressionada à escolha do “mais adequado
através da discriminação, da seleção e mesmo da rejeição de certos alimentos e pratos.
Vale resgatar aqui alguns aspectos econômicos e poticos do processo civilizador
narrado por Elias (op.cit.), de forma a compreender este novo estatuto das práticas
alimentares. O aumento da segurança potica e da interdepenncia promove, no corpo
social, maior estabilidade econômica juntamente com a garantia do excedente econômico,
que passam, relativamente, a serem partilhados, assim como o poder político, com outros
setores sociais emergentes. Orientado pela racionalidade econômica, o ethos burguês tornou
possível e aceivel a emergência de um corpo teórico gastronômico que orientasse e
legitimasse as escolhas. O aumento da interdependência e a maior distribuição do poder entre
as classes sociais refletiam uma distribuição mais igualitária da comida, assim como
diminuíam o abismo entre e a comida festiva e a cotidiana.
É neste contexto que surge a noção de regime alimentar nos círculos médicos a partir
do séc. XVIII, a preocupação com a superalimentação dos doentes, em clara sintonia ao
discurso romântico, que pregava a moderação, a frugalidade e a utilização dos alimentos
puros. Contudo tais fatos não nos permitem apontar um momento específico desta
88
transformação, do surgimento da moderação enquanto valor. O que se sabe é que
gastrônomos pioneiros como Grimod de la Reynière e Brillat-Savarin, apesar de valorizarem
a virtude epicurista tão cultivadas no meio aristocrático, não deixavam de recomendar a
necessidade do paladar seletivo. Lentamente a palavra moderação vai se vincular à noção de
saúde e de discriminação, tendo como pano de fundo a questão do sobrepeso. O medo da
obesidade se inicia no topo da escala social, onde a amplitude corporal imponente enquanto
modelo cultural é substituída pela figura ideal delgada e leve. Certamente a fragilidade
romântica em muito contribui para este ideal; Mennel (op.cit.) refere-se à prática de dietas
rigorosas recomendadas às senhoras de posse neste período. A ambição de um comensal
delicado neste período consistia na obtenção da saúde pela ciência e pela existência simples,
definindo-se um modo diferenciador urbano e sofisticado. A sensibilidade digestiva torna-se
um indicador das qualidades intelectuais dos homens de letras, na medida em que o poder
digestivo se apresentava como antagônico ao poder mental, e a atividade intelectual capaz de
desviar o poder dos fluidos da digestão. Os restaurantes, ao oferecer caldos reconfortantes,
vêm atender às preocupações com os efeitos da má digestão. Rosseau estende à mesa as
críticas à civilização, condena o sal, os condimentos, os pratos pesados. Recomenda os
laticínios e doces, alimentos puros comumente destinados a paladares delicados como o das
crianças e mulheres, se inspirando nas cozinhas das aldeias suíças, signos da pureza e
originalidade para a urbanidade européia.
Gastrônomos deste período já discutem a obesidade como uma aflição entre os
amantes do bem comer. Ao final do século XIX os mais famosos chefs apresentavam uma
comida mais leve, simples, assim como uma refeição com menor número pratos; tendência
esta, neste momento, ainda específica às elites, em oposição à massa de trabalhadores que
continuam a ser orientados a utilizarem alimentos fortes, gordurosos, substanciais. Neste
sentido a civilização incorpora agora a concepção da “boa comida”.
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Ao final do séc.XIX, as transformações ocorridas na cozinha francesa e sua
profissionalização refletem todo contexto social da sociedade européia neste período.
Personagens como Escofier, representante de uma nova geração de chefs, ilustram os
paradigmas de seu tempo. Considerado uma celebridade que exerce grande influência nas
tendências gastronômicas, ele representa a era dos hotéis internacionais, que surgem no
intuito de atender a elite em suas novas demandas. Oferecem mais suntuosidade e conforto a
uma elite que se desloca, cruza fronteiras, graças à expansão dos meios de transporte.
Deve-se a Escoffier a reorganização na economia da cozinha, em clara sintonia aos
avanços na divisão social do trabalho, visando o aumento da produtividade. Reunidas num
espaço, as diferentes etapas do processo culinário se especializam promovendo a
interdependência e a racionalização. Ciente das novas transformações sociais, ele está atento
ao fato de que seu novo blico tem os jantares como programas de desfecho de uma noite
glamourosa nos teatros parisienses; uma clientela não tão ociosa, da qual senhoras
respeitáveis fazem parte, e que não dedicam todo o seu tempo às regalias. Daí todo seu
esforço na simplificação das refeições, em relação ao estilo rebuscado aristocrático. De sua
criatividade, podemos destacar a releitura de clássicos gastronômicos assim como - e
seguindo a tendência da simplicidade sofisticada - a adaptação dos pratos camponeses para a
haute cuisine. Vale destacar aqui o processo de consolidação dos Estados nacionais em curso
em todo mundo ocidental, processo este que vai se fundamentar na construção de uma
identidade baseada nos atributos de seu povo e de seu território, onde certamente a culinária
assume papel preponderante.
Julia Csergo (cf.Flandrin, 1998) nos relata o florescimento das cozinhas regionais na
França como resultado de femenos que se intercruzam. Primeiro, a preocupação com a
questão nacional” das autoridades francesas as a Revolução; quando se buscava a
fundação da nação hisrica pela composição do diverso. Segundo, pelo desenvolvimento dos
90
meios de transporte, que permitiu a um maior número de pessoas o acesso ao território
francês. Além destes fatores, o êxodo para os grandes centros, formadores do mercado
consumidor, favorece a proliferação de restaurantes regionais nas metrópoles. Por sua função
memorial, as cozinhas regionais possibilitam ao “estrangeiro o acesso à modalidade de
percepção de uma região, aguçando uma sensibilidade particular. A haute cuisine vai
representar o amálgama de estilos acrescidos de sofisticação, que confere o seu caráter de
síntese universal, acima das fronteiras nacionais, mas que certamente traz uma grande
inflncia francesa.
2. 2.5. A construção da cozinha nacional
As reflexões em torno da “identidade étnica” têm contribuído de forma singular para a
noção de identidade, de modo que se privilegie sua natureza virtual e mutante em detrimento
de sua reificação. Devemos a Barth (1969) a crítica precursora da noção de identidade como
conteúdo, ou seja, o conjunto de padrões de comportamento e de valores de um grupo
herdados pela tradição. Para este autor, uma cultura comum, muito mais que causa, é
resultado desta organização; a auto-definição do grupo e o reconhecimento da identidade se
constroem a partir dos limites deste: a necessidade de contraposição, do contato é
fundamental para o auto-conhecimento e auto-reconhecimento de determinada coletividade. É
neste sentido que focalizamos a idéia de nação e de identidade nacional.
O surgimento da “nação” vincula-se às transformações por que passa a sociedade
européia nos séculos XVII e XVIII: a consolidação do Estado moderno e simultaneamente a
instauração do individualismo enquanto ideologia hegemônica. A nação realiza no coletivo a
moderna concepção de indivíduo, qualificando-se analogamente com atributos; ou seja,
91
espera-se que toda coletividade tenha caráter, personalidade, autonomia, vontade, memória.
Este processo de auto-definição tem como contexto a realidade internacional, que envolve
relações de poder e competição. Claro está que este intuito de busca de origens é
principalmente um exercício de resgate e reconstrução nos termos de Hobsbawm & Ranger
(1989), de invenção de tradições que ocorre num momento de crescente industrialização, e
na moderna confiança, seo crença, no progresso, na ciência, na tecnologia. Peter Burke
(1989) narra quão surpresos ficaram aqueles camponeses europeus quando, em pleno século
XVIII, viram suas casas invadidas por senhores distintamente vestidos, de palavras difíceis,
pedindo-lhes que cantassem ou narrassem histórias que ouviram na infância. Para os
intelectuais, o povo era um mistério, que passou a ser descrito e valorizado exatamente nos
termos de tudo que eles não eram. A inflncia da filosofia romântica se entrevê nesta busca
da essência das coletividades, valorizando a pureza das criações coletivas.
A idéia moderna de nação está fortemente influenciada pelo reparo romântico ao
universalismo. Frente a valores tais como liberdade e igualdade, a crença no liberalismo e na
existência de uma “humanidade”, surge a necessidade de singularização cultural. É neste
sentido que Mauss (1972) destaca como característica básica da nação o fato de ser “uma
unidade moralmente integrada”. Faz-se necessário a abolição de fronteiras simbólicas internas
– como a própria pacificação interna no processo de consolidação do Estado Nacional descrito
por Elias (1993)para serem demarcadas as fronteiras externas.
A particularização simbólica ancora-se no destaque das propriedades específicas deste
território e seus habitantes. A crença na realidade da nação seria justamente a crença na sua
autenticidade e originalidade, no valor de seu “patrimônio”, sejam os atributos da natureza de
seu território, sejam as qualidades de seu povo”. Dentre os atributos da nação, a cozinha
encontra-se como um dos bens de destaque. Um artefato “hostico”, mais ou menos baseado
na alimentação das pessoas que vivem neste sistema político. Nem sempre as fórmulas
92
culinárias emblemáticas são as mais freqüentemente utilizadas na prática cotidiana. A
construção de uma estereotipia é resultado de um complexo de negociações, não para se
decidir quais elementos se apresentam como “nacionais”, assim como qual parcela, ou grupo
desta população territorial, é eleita como portadora legítima do ethos nacional.
Stephen Mennel (op.cit.), em suas reflexões sobre o processo de civilização do apetite
no comportamento culinário ocidental, demonstra a importância do contexto potico na
formação da culinária nacional. Procura esclarecer a razão pela qual as cozinhas da França e
da Inglaterra, semelhantes na Idade Média, vão se distinguindo, a partir das diferentes
estruturas políticas destes países.
A cozinha medieval na Europa Ocidental apresentava, principalmente no que se refere à
cozinha do príncipe e da nobreza, uma semelhança que ultrapassava fronteiras espaciais,
obedecendo a critérios diferenciadores mais intra-sociais que inter-sociais. Havia um estilo
culinário internacional, relacionado à esfera de poder, comum aos dois países. Contudo, o
processo de consolidação do Estado moderno a partir do século XVI– que se efetivou de
forma diferenciada entre as duas nações - resulta em diferentes estilos culinários nacionais.
Assim, o estado absolutista francês, ao exigir a nobreza sob sua tutela como estratégia de
controle, favorece a criação da sociedade de corte, e da nobreza cortesã. Uma aristocracia sem
função aparente, a não ser atuar nos rituais de diferenciação face à emergente burguesia.
Dentre as inúmeras transformações da conduta destaca-se o comportamento à mesa e o
refinamento de sua culinária. O caso inglês se desenrola de forma diferenciada, na medida
em que sua nobreza, menos dependente do favor do monarca, permanece longe da corte,
cultivando um estilo culinário mais parecido com o das camadas subalternas, gerando um
estilo próximo ao que Mennel chamaria de country cuisine”. Enquanto a cozinha refinada, a
“haute cuisine” definiu-se como fundamental para a construção da identidade nacional
93
francesa, no caso inglês este processo baseou-se na integração das classes num contexto de
relativo isolamento de sua nobreza.
Jeffrey Pilcher (1998) é outro autor que podemos destacar, na medida em que explora a
relação da cozinha com a formação da identidade nacional mexicana. Trata particularmente
do embate entre a elite dominante, arraigada aos hábitos alimentares europeus (e ao consumo
do trigo) e a população basicamente mesta. Esta, herdeira das práticas alimentares dos
astecas e índios mesoamericanos, tinha como elemento básico de sua dieta o milho. Pilcher
destaca o papel dos autores dos livros de cozinha na unificação “dos gostos” nos séculos XIX
e XX, no período de consolidação da identidade nacional mexicana. As elites mexicanas se
mostravam ambivalentes: abraçavam a cozinha francesa, mas tinham especial devoção às
chiles, hábito este que chocava os estrangeiros; desejavam romper com a herança indígena,
mas almejavam a consolidação de uma nação independente, cuja maioria expressiva era
composta por mestiços.
Vale aqui destacar que a situação do território mexicano durante a colonização em
muito se assemelha ao caso brasileiro, na medida em que, sendo colonizados por europeus,
ambos o apresentavam condições ecológicas de se reproduzir a base alimentar cerealista,
européia, o trigo. Pilcher refere-se inclusive à hesitação dos padres em confeccionar hóstias à
base de milho. Freyre (op.cit.), por sua vez, narra as dificuldades de adaptação portuguesa ao
uso da mandioca, assim como as motivações religiosas do cultivo do trigo na Capitania de
São Vicente, utilizado na confecção de hóstias.
São questões amplas que envolvem a construção da cozinha nacional. É preciso
compreendê-la como parte de um processo histórico, intimamente relacionado à própria
consolidação do Estado Nacional; à necessidade de sua legitimação, não jurídica e
territorial, mas também no sentido (e no sentimento) de pertencimento. A construção da
estereotipia culinária é resultado de um complexo de negociações, não para decidir quais
94
elementos se apresentam como “nacionais”, assim como qual parcela, ou grupo, desta
população é eleita como portadora legítima do ethos nacional.
O nacionalismo brasileiro vem marcado por uma forte ênfase na auto-estima coletiva e na
afirmação do próprio contra o imposto, numa atitude compensatória à sua posição periférica.
Como parte do Novo Mundo, a realidade é marcada, desde sua instauração, pelo donio do
espaço geográfico, definido como processo sico de formação do Estado. A ausência de um
passado histórico remoto, como no caso europeu, revela-se como fator marcante para o
processo básico de formação do Estado (Oliveira, 1998). A debilidade da tradição é
compensada pela exuberância do espaço: o clima, rios, a fauna, a flora. A ideologia nacional
do espaço territorial teve grande êxito e mostrou-se eficaz como fornecedora de um
sentimento de pertencimento. Nesta construção do espaço se entrevê uma polaridade sica
na qual o terririo é percebido primordialmente pela diferença entre litoral e interior, o
sertão. Se no período colonial predomina a conquista do sertão hostil, que deve ser vencido,
na Primeira República verifica-se a positivação do “interior”, locus da cultura rural e da
nacionalidade autêntica. Contudo, não basta simplesmente reconhecer o sertão, é preciso
enfrentá-lo como problema. Urge então uma ação sistemática para torná-lo efetivamente
território nacional.
O movimento folclórico, resultado do engajamento de um número expressivo de
intelectuais na valorização da cultura popular e que movimentou a cena nacional na primeira
metade do século passado, contribui, mais ainda que os integrantes do Movimento
Modernista, para o reconhecimento da diversidade regional. Através da investigação
sistemática de aspectos variados da cultura popular, inclusive hábitos alimentares, buscam as
raízes autênticas deste povo, seja na transmissão oral, seja na vida comunitária de grupos que
se beneficiam do isolamento dos grandes centros. A partir de certo “colecionismo
descontrolado” (Vilhena, 1997) tem a peculiaridade, enquanto movimento, de atrair os
95
intelectuais de província”, ou seja, representantes de grupos regionais muitas vezes
marginalizados no grupo hegemônico. Neste exercício de reinvenção do Brasil, destaca-se a
consideração da cultura popular como patrimônio regional. Neste sentido, as regiões passam a
ser interessantes por si próprias, uma vez que o que se enfatiza é justamente o destaque
regional na nação unificada.Entre os atributos da nação brasileira que pontuam a eternidade
do solo, figuram as fontes alimentares.
As preferências alimentares figuram entre traços distintivos e singularizantes; e não
variam entre sociedades, grupos sociais, como pode se diferenciar internamente a estes
grupos, como comida de homem e de mulher, de criança e de adulto, de homens e de deuses.
Revela-se como campo fértil de investigação cultural a observação do modo pelo qual a
alimentação participa das intenções sociais e morais dos indivíduos, ou seja, a focalização da
comida como campo de ação, considerada como um meio através do qual outros níveis de
categorização social se manifesta. Assim, a continuidade de hábitos alimentares, a
manutenção de certa tradição é resultado da manipulação de um repertório de formas
constantemente negociado entre os atores sociais. A cozinha étnica, por exemplo, antes que
um conjunto de receitas, é muito mais uma categoria cultural; ela persiste onde o sentimento
de distinção é valorizado, onde um sentido mais amplo para ser vivenciada. Em geral, os
hábitos alimentares de grupos etnicamente distintos se diluem nos padrões alimentares mais
amplos na medida em que outras fronteiras culturais se apagam.
Grande parte da história brasileira pode ser narrada pelo esforço do poder
centralizador em converter as regiões em parte da nação, tanto em termos ecomicos e
administrativos, quanto poticos e simbólicos. Para além de algumas fórmulas nacionalizadas,
como o samba ou a umbanda as raízes do sentimento nacional ancoram-se na configuração
única de partes diversas. A diversidade ambiental reproduz-se na diversidade regional, que se
96
torna desta forma, patrimônio nacional. Pois além da definição de fronteiras territoriais e
culturais contínuas é preciso que a nação possua bens culturais.
Entre os atributos da nação brasileira que pontuam a eternidade do solo, figuram as
fontes alimentares. No caso brasileiro, dada a carga simbólica conferida à dimensão espacial,
a natureza é nossa riqueza”, incluindo-se a profusão tropical alimentar. Mais que
simplesmente a diferença, a construção das cozinhas regionais, com seus pratos emblemáticos
e combinações singulares marcam a consciência da originalidade.
“Regio” origem etmológica latina de região, ressalta em seu significado o ato de
delimitar. Uma divisão mais ou menos fundada na realidade, pois instaura uma
descontinuidade decisória na continuidade natural. É importante destacar que por detrás da
identidade regional jaz a construção de uma fronteira. Funda-se em propriedades ligadas à
origem, portando marcas duráveis. É resultado de lutas de classificação, para se impor a
divisões do mundo social pelo monopólio “de poder fazer ver e fazer crer” (Bourdieu, 1980).
O discurso regionalista é um discurso performativo cuja autoridade de definição de critérios
depende do reconhecimento e da crença de seus membros nas propriedades culturais que
possuem.
As cozinhas regionais não se reduzem a uma lista de receitas diferentes. Envolvem
ingredientes, métodos culinários, pratos, formas de sociabilidade e sistema de significados.
Ancora-se na experiência vivida, o que a torna de difícil percepção por parte dos próprios
atores; a naturalização dos hábitos alimentares traz marca profunda por sua função
constitutiva no processo de socialização. O sentido destas práticas, sua vinculação ao
pertencimentoao grupo, é fruto de reconstruções e negociações que se fazem no presente;
nem sempre o típico, o emblemático é o cotidiano, apesar de ser representado como
característico”.
97
Gilberto Freyre (1973 [1933], 1968[1936]) e Luís da mara Cascudo 1983 ([1963])
são autores que se ressaltam pelo destaque que dedicam à questão alimentar como fator
constitutivo da identidade nacional. Podemos considerá-los portadores, dentre outros, do
projeto da intelligentsia brasileira, na primeira metade do século passado, de construir a
identidade nacional valorizando o espaço regional, e o que era considerado como grande
empecilho para nossa construção como nação e para o “progresso” da sociedade brasileira: a
mistura, a mestiçagem que nos distanciava do padrão europeu de tradição, mas conferia
grande riqueza à culinária brasileira.
Sérgio Buarque de Holanda (1994 [1956])traz importante contribuição sobre o
cotidiano no universo colonial português, e as condições alimentares do Brasil colônia,
esmiuçando particularidades dos modos e padrões de vida nos sertões do planalto de
Piratininga. Caminhos e Fronteiras trata de uma civilização, a “civilização mameluca”, que
abandona formas de agir e pensar européias para incorporar uma cultura subalterna, mestiça e
inferior aos olhos da metrópole. Esta populão subsiste no mundo rural interior graças à
adoção de estratégias alimentares nativas, como utensílios de caça e pesca, remédios naturais,
técnicas de agricultura etc. Outro autor que merece ser destacado é Josué de Castro
([1946]2001) que participa deste momento de efervescência do pensamento brasileiro,
elegendo como eixo temático de sua obra a questão da fome, num tom de crítica e denúncia
das relações sociais vigentes em nossa sociedade. Castro, em sua obra, não torna pública a
existência da fome- coletiva, na maioria das vezes parcial, e oculta - como denuncia suas
causas e conseqüências, como por exemplo, os estragos cometidos pelo processo de
colonização e o conseqüente subdesenvolvimento da nação. Em perspectiva semelhante
podemos destacar ainda Silva Mello (1961) que se dedica ao estudo detalhado da nutrição da
população brasileira, com o intuito tanto de analisar os problemas advindos da desigualdade
98
social, como também aqueles que se anunciavam com a chegada do “progresso” na sociedade
brasileira.
Ainda podemos destacar o trabalho de Antônio Cândido ([1964]2001) Os parceiros do
Rio Bonito, que trata das condições de vida do caipira tradicional no interior de São Paulo, em
sintonia às propostas de estudos de comunidade. Ao destacar os meios de subsisncia desta
população, Cândido focaliza a alimentação como elemento explicativo da vida social. A
sociedade caipira em processo de mudança assistia naquele momento à perda de hábitos
alimentares tradicionais, e o seu conseqüente empobrecimento, gerando a situação de grandes
restrições alimentares.
Na perspectiva de Freyre e Cascudo, as terras brasileiras atuam como cenário,
privilegiado por sinal, em que se assiste o contato de três culturas diferentes, a ameríndia, a
africana e a portuguesa, destacando as possibilidades de enriquecimento cultural que se deu
pela via do “empréstimo” e do “acréscimo”. A confraternização da cultura na culinária resulta
na diversidade de ingredientes, temperos, combinações; que se mantêm vivas, seja pelas
receitas, pelas nominações, pelas ocasiões de uso. Gilberto Freyre, em 1926, lança em Recife,
o Manifesto Regionalista, onde defende a região como base de organização nacional e a
conservação dos valores regionais (leia-se tradicionais) do Brasil.
Trata-se de um autor que inovou a análise da cultura brasileira por valorizar dimensões
pouco reconhecidas, como os bastidores do cotidiano, entre eles os bitos alimentares e as
relações sociais neles envolvidas. Em seus termos, preocupações aparentemente femininas
em torno de assuntos docemente inofensivos” (op. cit.: LXX). Em Casa Grande & Senzala
Freyre dedica espaço privilegiado às práticas alimentares empenhando -se em inovar a leitura
deste passado da sociedade brasileira pela perspectiva de dentro”, através dos estilos de
residência, constantes de existência e normas de coexistência – definidores estes, do “caráter
do povo” brasileiro. Através de uma introspecção quase que proustiana, ele se propõe, a
99
partir de uma “aventura da sensibilidade”, a penetrar na intimidade deste passado. A casa, e o
que se passa na casa, como centro mais importante de adaptação e acomodação do português,
o negro e o ameríndio. Pois que o complexo Casa-Grande &Senzala, autarquia produtiva,
dirigida por senhores rurais, gira em torno da família como base da colonização. Uma das
grandes forças permanentes, preservando e difundindo valores. Vale ressaltar que essas
categorias “casa” e “família” não definem uma qualidade do espaço, ou da mistura
sangüínea, mas o cenário de relações interpessoais.
É a partir do mergulho nesta “petite histoire”, de preocupações aparentemente
femininas em torno de assuntos docemente inofensivos(cf. Freyre [1936] 1968: LXX) que
tocamos nos bastidores do processo histórico de transformação de uma sociedade.
Fundamental para Freyre é o uso dos sentidos para a sintonização daquele ser cultural com
seu meio e com as pessoas: não a visão, o diálogo de imagens, como o olfato, o paladar, o
tato, a audição. A percepção sensorial. Não é por acaso que o sexo e a comida permeiam
constantemente as relações, intermediada por um personagem especialmente valorizado por
Freyre, a mulher.
Freyre é de opinião de que a cunhã constituiu a base física da família brasileira. Através
dela, mais do que do índio, caçador e devastador de florestas, o europeu teve acesso à
natureza cultivada, domesticada, imprescindível para sua sobrevivência: dos frutos coletados
e das pequenas lavouras à cerâmica e tecelagem. A desvalorização da cunhã é simulnea ao
desenvolvimento da indústria do açúcar, quando surge a figura da mucama, que dominou de
forma mais intensa o ambiente doméstico. era comum em Lisboa no século XVI, como o
foi nas principais cidades brasileiras do Brasil colonial, a presença de negras na rua vendendo
os mais diversos víveres, na maioria a serviço de iaiás que preferiram se manter no
anonimato. A viria do complexo indígena da mandioca sobre o trigo merece ser relembrada:
ela tornou-se base do regime alimentar do colonizador, com exceção de alguns representantes
100
da elite portuguesa que insistiam em consumir a “farinha do reino”, dentre outros produtos.
(Mello, 2000). É também na culinária que vemos de forma evidente a infiltração da cultura
negra na nossa cultura.
De acordo com Câmara Cascudo (1983), a mulher portuguesa prestou duas
contribuições básicas à alimentação brasileira no donio do paladar: valorizou o sal
(praticamente desconhecido entre os ameríndios e pouco utilizado pelos africanos) e
introduziu o açúcar. Gilberto Freyre ainda destaca a influência árabe na culinária portuguesa
que aqui também nos tocou: a prefencia por comidas oleosas, cheias de açúcar,
condimentação afrodisíaca, vibração erótica”. Neste caldeamento cultural, apesar da rica
diversidade de ingredientes, observa-se que na sociedade brasileira em geral, a base técnica
manteve-se portuguesa, pois foram essas mulheres que ensinaram às cunhãs e mucamas a
cozinhar na casa-grande e no sobrado. Cascudo nos fala da ocorrência de uma “aculturação
compulsóriaportuguesa, utilizando as reservas amerabas e os recursos africanos. Ressalta
também que o processo de integração de raízes alimentares distintas teve caráter peculiar no
caso brasileiro, comparando-se às colônias portuguesas em terririo africano. Tal fato
revela-se como testemunho das limitações da análise freyriana quanto à eficácia do “legado
português”, ou seja, basear-se nas características do ethos português para explicar a
colonização brasileira. A colonização da África Portuguesa apresentou condições em que o
“legado português” tornou-se ineficaz. Enquanto aqui se verificou uma técnica européia
consagrando o produto nativo, no território africano observa-se a pouca influência da mulher
européia e a predominância da culinária nativa.
A doçaria brasileira, dada sua particularidade, foi objeto específico de reflexão de
Freyre. É no livro “Açúcar”([1939]1997) que ele analisa o doce brasileiro como parte de um
101
complexo cultural, expressão de um processo de interpenetração de culturas
2
; uma arte
simbiótica que reúne “gostos tradicionais europeus a sabores tropicais”.
Como podemos observar, tanto Freyre como Cascudo merecem especial destaque na
investigação das gramáticas culinárias brasileiras, e em especial das práticas tradicionais. A
ênfase na autenticidade, a busca de raízes, faz transparecer certa nostalgia quanto à
originalidade do passado, um tanto quanto agreste e tradicional, em processo de
descaracterização frente ao progresso e à urbanização. Ressaltam a cozinha como patrimônio
cultural a ser valorizado, uma arte coletiva, sem heróis individuais, que surge
espontaneamente, como árvores na natureza.
A modernidade conduziu-nos, no processo de construção da nação, à consciência de
uma especificidade regional. Contudo, apesar de todo este trabalho de construção simbólica,
pode-se dizer, juntamente com Mintz (1996), que as “comidas” de um país são, antes que
nacionais, regionais. As cozinhas ancoram-se num lugar, onde se tem alguma referência de
pessoas utilizando-se de ingredientes, métodos, receitas numa base regular de produtos. Neste
processo de tipificação das cozinhas regionais, alguns pratos se tornam especialmente
representativos, marcas de orgulho e distinção. Assim, o quadro de diversidade territorial e
cultural brasileiro apresenta pratos típicos conforme as regiões: “Arroz com Pequi”, de
Goiás; “Tutu com Lingüiça”, de Minas; “Churrasco Gaúcho”; “Tacacá e Tucupi” da rego
norte; “Baião de Dois”, do Ceará; “Acarae Vatapá”, da Bahia (Maciel, 1996). O nacional
representaria, então, o amálgama das diferentes tradições.
2
Gilberto Freyre nos fala de um paladar tropicalmente, ecologicamente condicionado a estimar, e até de abusar,
do doce. Há referências de vários depoimentos de estrangeiros sobre o fato dos doces brasileiros serem
excessivamente doces, o qual Freyre associa à influência moura na cultura portuguesa.
102
2.2.6. O desafio da amplitude
A especialização do ofício da boca como prática profissional exclusiva do mundo
masculino tem como contrapartida a consolidação da cozinha doméstica e feminina no mundo
privado, tendência esta que se anunciava com a publicação de La Cuisinière Bourgeouise.
Além de serem destinados ao público feminino, os livros de receita são, agora, escritos por
mulheres. Ao final do século XIX estes livros, mais que receitas, tratam de etiqueta, da
hierarquia dos serviçais, da disposição dos talheres à mesa, a fim de amenizar as
preocupações e a ansiedade de uma classe média ameaçada em sua posição. Afinal, ao criar
novas possibilidades de enriquecimento, a industrialização acaba por promover novos grupos
ao projeto de ascensão social.
Contudo, se para os estratos médios a uniformização alimentar, por ora em curso numa
sociedade que se industrializa rapidamente, representou o declínio (ou ameaça), para os
pobres significou a experiência da ampliação, possibilitando a renovação de uma dieta que
permanecera praticamente inalterada dos tempos medievais até meados do século XIX.
um grande investimento no projeto da ilustração, o que se pode perceber, no caso das práticas
alimentares, através do crescimento do conhecimento dietético e a conseqüente e crescente
confiança no ensino formal, em detrimento do ensino doméstico. Ao investirem na
consolidação da identidade feminina, as revistas femininas assumem a liderança na
ampliação da divulgação de receitas, democratizando imagens, sabores e combinações. A
sobriedade burguesa cede lentamente lugar ao consumo competitivo.
O deslocamento da populão para os grandes centros em busca de oportunidades na
nova ordem econômica capitalista promove grande impulso à produtividade industrial.
Todavia, traz consigo o desafio do abastecimento alimentar destas multidões: a terra, onde o
alimento é produzido, perde mão-de-obra para a cidade, onde o alimento é consumido. A
103
necessidade de suprir esta demanda implica na paulatina industrialização da comida em suas
diversas fases: a produção intensiva, a distribuição por meios de transportes rápidos e
eficientes garantindo o acesso a produtos distantes; o abastecimento, e o próprio produto
passam a ser beneficiados, atingindo-se a solução dos produtos enlatados. A manufatura dos
alimentos resulta na sua apresentação uniforme, marcada pela geometria regular, na
predicabilidade da consistência e do gosto. Tais transformações geram certa equalização da
dieta entre regiões e classes, uma das conseqüências do processo civilizador narrado por
Elias.(op.cit.)
Novas formas de diferenciação são constrdas, ante a este passo de consolidação da
sociedade de mercado. Recapitulando os momentos significativos da civilização do apetite, o
estilo do comer heróico”, presente nas elites desde o mundo antigo, o se adequava mais
aos novos tempos. A revencia ao excesso, o cultivo à abundância definiam um modelo de
comportamento, o comer muito como forma habitual de exibição. Contudo, a quantidade não
poderia continuar sendo o principal critério de distinção, não porque, de fato, a
industrialização gerou maiores oportunidades de nutrição em geral, como também a ética
burguesa protestante não se harmonizava a esta orientação. Era preciso reconciliar os ideais
do excesso com os ideais de austeridade e auto-vigilância. Esta transformação se dá,
sobretudo, através do refinamento do paladar e da conduta e o grotesco vai cedendo à
sofisticação. À quantidade se impõe a qualidade dos produtos, assim como a diversidade
racionalmente planejada dos ingredientes. O sabor assume, enfim, o efeito enobrecedor;
selecionando produtos raros, produzindo sensações inéditas a serem experimentadas
coletivamente. As preparações minuciosas e aristocráticas demarcam a fronteira dos que têm
tempo livre para o investimento hedonista no próprio prazer. As regras específicas de etiqueta,
que compunham um digo complexo de uso do corpo passam a exigir, num contexto de
maior proximidade e interdependência, o adestramento contínuo e silencioso.
104
À medida que a sociedade européia se afastava do “mundo natural”, novas
significações eram construídas sobre atividades até então o problematizadas,
particularmente aquelas que envolviam o corpo. O reparo romântico ao projeto iluminista em
expansão em todas as áreas da vida humana representa a valorização de novas sensibilidades.
Ele se revela como resultado de um novo patamar de civilidade e refinamento, além do
redimensionamento da articulação entre Natureza e Cultura. A experiência crescente da
subjetividade como experiência socialmente legítima (e até mesmo esperada), inaugura um
novo sentimento; da crueldade passa-se à compaixão. O cultivo de novos sentimentos, assim
como da sensibilidade, passa a influenciar o comer, iniciando-se a contestação de métodos
convencionais de produção de alimentos. Era preciso controlar toda expressão que
representasse a animalidade humana. É neste período que se inicia um longo e polêmico
debate sobre o que, afinal, seria uma alimentação saudável, ou adequada, aos civilizados. As
discussões sobre o vegetarianismo são resgatadas da filosofia grega, assim como cresce o
interesse pela magia do alimento curativo. Na América do Norte, o debate sobre os baixos
níveis de proteína inspirou movimentos no século XIX que, sendo parte da revolução
burguesa puritana, representaram a conexão entre boa conduta e boa saúde. A moral se une ao
comer; ao pão de farelo de Sylvester Grahan, clérigo evangelizador, seguem-se as “Cruzadas
de Flocos de Milho”. Paralelamente, a instria alimentícia dedica-se à metamorfose dos
alimentos, almejando sua praticidade. O exemplo dos extratos de carne ilustra a tentativa de
se oferecer um alimento de rápida utilização e “emocionalmente higiênica”.
No início do século XX, frente ao esvaziamento do debate sobre a proteína animal
(que aparentemente parecia ter-se esgotado...), a pureza passou a ser a grande prioridade. A
preocupação com a higiene vem fortalecer a imagem pública da indústria alimentícia. Após a
Primeira Guerra Mundial crescem as pesquisas nutricionais, dando margem à euforia pseudo-
científica das vita-aminas. A nova geração de nutricionistas científicos acena com a
105
possibilidade da mensuração da energia dos alimentos, as calorias, trazendo juntamente com
estes saberes novas idéias científicas para a melhoria da saúde e moralidade do país. Os
reformadores sociais partem para o movimento de transformação de hábitos “nocivos” ou
“irracionais” da classe operária. Baseando-se no princípio da equivalência química entre todas
as proteínas, traçam a equivalência dos benecios proporcionados pelo feijão e pelo bife,
esperando-se, assim, que os operários gastassem parte menor de seu sario com a
alimentação.
A partir de então, a dietética, a preocupação com o alimento saudável, não mais sai do
horizonte das práticas alimentares, vindo a competir com outras orientações como a
ostentação ou a conveniência.
O processo hisrico de racionalização, industrialização e funcionalização dos
alimentos tornam-se cada vez mais associados à questão dos modos de vida modificados pela
urbanização: a industrialização, a profissionalização das mulheres, a elevação do nível de vida
dos setores médios, o acesso ao lazer, às rias e às viagens. A revolução industrial, o êxodo
rural, a expansão das cidades, o triunfo da economia de mercado sobre a economia de
subsistência, local, e o desenvolvimento dos transportes e do comércio atingem diretamente
os hábitos alimentares das sociedades ocidentais. A predominância da “usina” sobre a
cozinha” marca a transição da fase artesanal e tradicional para a industrial, indicando os
avanços da indústria alimentar. A divisão mais marcante entre os mundos blico e privado,
juntamente com a “emancipação feminina”, reflete uma nova forma de utilização do tempo,
que, como produto social traduz novos valores. Os supermercados e os aparelhos domésticos
se tornam ícones da evolução humana, da eficiência das realizações do capitalismo: é diante
de uma destas cozinhas completamente “modernas” em exposição americana em Moscou, que
Nixon e Khruchtchov comparam os ritos relativos aos dois sistemas poticos antagônicos
106
que reinavam no século XX. (Levenstein, in Flandrin, op.cit.:836) A conveniência torna-se
uma prioridade.
Outro fator que se destaca é a especialização crescente do ocio da boca, da
possibilitando o acesso da população a diferentes experiências gustativas. Alguns restaurantes
se transformam em grandes templos da gastronomia enquanto outros se constituem baseando-
se em propostas mais simples como o prazer convivial e a satisfação do paladar. Tornam-se,
também, espaços objetivos de alimentação cotidiana, refletindo o exílio de muitos no mundo
do trabalho. As fórmulas bem sucedidas fórmulas rápidas, de preço barato - do fast-food e
da comida a quilo refletem o império da quantificação, da mensuração do tempo, do conteúdo,
com adequação máxima às exigências individuais (cf. Fischler in Flandrin,op.cit. e Rial, 1996,
2003)
Se encontramos, durante o período medieval, uma relação íntima entre dietética e
gastronomia, orientada por valores da medicina humoral, onde os remédios provêm da
natureza através da alquimia doméstica, o fosso se alarga no séculos XVI e XVII, ocupando a
gastronomia papel fundamental do exercício distintivo no processo civilizador da sociedade
de corte. A ética burguesa inaugura um novo padrão de sobriedade gustativa e valorização da
razão prática, que passa a conviver com orientações culinárias e práticas alimentares diversas
no mundo contemporâneo. Basicamente, podemos identificar na atualidade uma polarização
de valores que orientam as práticas alimentares que se divergem entre a sensualidade
gustativa e a preocupação com a saúde. Num certo sentido, dietética e gastronomia voltam a
se aproximar, baseando-se no discurso médico e nas advertências ao excesso: uma cozinha
que almeja a prática dos cozimentos curtos e temperos discretos. As indústrias alimentícia e
do turismo, juntamente com a dia, vêm favorecendo a mundialização do paladar,
associado a um estilo de vida padronizadamente urbano. Contudo, este movimento tem sido
107
balizado pela valorização da experiência localmente ancorada da singularidade gustativa
original representada pelas cozinhas regionais.
A revolução agroquímica, dos pesticidas e agrotóxicos aos transgênicos, representa, ao
que parece, o mais novo capítulo da revolução neolítica do desenvolvimento da agricultura. O
imperialismo alimentar, em seus diferentes estágios, produção, distribuão e consumo investe
e estimula o desenvolvimento de uma ciência da comida obcecada pela pureza e pelo prazer.
Inquietações sobre os efeitos desta modernização sobre a qualidade nutritiva dos alimentos
andam lado a lado com a angústia dos excessos fisiológicos, gerando a postura alimentar da
advertência, da lipofobia, da lógica dos produtos atenuados. Esta combinação entre saúde,
moralidade e romantismo contribui com a obsessão ao puro, promovendo a reorganização
industrial dos alimentos em função desta nova demanda. Nestes tempos de efemeridade das
formas, das interações e das pessoas, o frescor se torna o mais difícil de oferecer.
108
CAPÍTULO 3
O cultivo da relacionalidade: a multiplicidade das formas e
sentidos da família
3.1.Família e parentesco na teoria antropológica
Foi no clima de uma sociedade envolvida no projeto civilizatório de controle
progressivo do mundo que a visão evolucionista ganhou legitimidade. A emergência de uma
visão de mundo comprometida com o universalismo e o racionalismo, marcada pelo
privilégio da ordem materialista, tecnológica e secular possibilitou o desenvolvimento da
idéia de “humanidade”. Uma abstração inusitada, até então, no mundo secular, que ao
enfatizar o pertencimento comum, promovia o sentimento de compartilhamento da
experiência humana.
É possível identificar o interesse pela diferença desde a antiguidade, contudo, os
ancestrais da Antropologia se localizam no Iluminismo. A visão secular do homem inaugurou
um novo contexto de interpretação da diversidade, que inundou o Velho Mundo com a
experiência da expansão européia. Institucionalmente, podemos dizer que a Antropologia
surge da história natural, pois seu investimento faz parte de um projeto amplo de estudo deste
novo mundo. O impulso taxonômico da história natural deslocou-se das plantas e animais
para encompassar a variedade humana. Todavia, quando o gênero humano” foi incluído na
grande sistematização de Linneu do mundo natural, não havia uma diferença clara entre
taxonomia física e cultural. O estudo da linguagem, da religião, dos artefatos era mais ou
menos equivalente ao estudo da fauna e da flora, de forma que toda esta realidade exótica
109
fosse ordenada em esquemas compreensíveis. Sem dúvida, esta passagem, a do selvagem para
o primitivo, representa uma grande transformação - a perspectiva de acolhimento -, uma vez
que estes povos passaram a ser incluídos numa faixa de humanidade. Contudo, esta inclusão
inaugura um novo desafio, o de compreender, localizar e até mesmo justificar a diferença.
Impregnados com a atmosfera triunfante da filosofia evolucionista, teóricos sociais
tentavam encaixar o progresso europeu num quadro mais amplo, comparando-se modos de
subsistência, instituões sociais e religiosas dos grupos existentes, os ordenando em
seqüências de desenvolvimento”. Ante à indagação secular sobre o “origem” – do mundo, da
vida, dos homens as duas pontas desta suposta corrente histórica são definidas, restando,
então, a recomposição do processo, a investigação dos vestígios e traços que testemunhassem
a ascensão da humanidade. Fortemente ancorado no progresso material e tecnológico, na
capacidade humana de dominar a natureza, o pensamento iluminista tratava a variedade
cultural como expressão histórica da capacidade da “mente humana”. Os estágios evolutivos
definidos por Morgan como selvageria, barbárie e civilização ilustram este olhar linear e
evolutivo.
A historia da raça humana é única na sua fonte, experiência e no seu progresso”.
(Morgan, 1973: 8 ). Com estas palavras, Lewis Morgan reflete o projeto evolucionista de traçar
a história do gênero humano, ao qual aderiu ao reconstruir a história dos índios norte-
americanos, localizando suas origens a partir do modo com que classificavam seus parentes.
Para Morgan, a chave para a compreensão deste passado remoto se encontraria nas
terminologias do parentesco, dada a sua característica de pouca mutabilidade ao longo do
tempo. Apesar da ingenuidade característica dos defensores da história conjetural, observa-se
de modo precursor, no pensamento deste autor, a percepção da importância fundamental da
organização do parentesco para a vida social nas sociedades tribais; as variações
terminológicas entre os sistemas de parentesco correlacionavam-se, a seu ver, às variações na
110
estrutura social. A publicação de Ancient Law sinaliza seu amadurecimento intelectual, assim
como uma visão mais abrangente da questão do parentesco. Neste livro, Morgan consegue
estabelecer uma correlação entre a organização baseada em clãs das tribos americanas e da
sociedade greco-romana; no mundo antigo os clãs se definiriam, não simplesmente como
instituições cerimoniais, religiosas derivadas da mitologia, mas unidades fundamentais da
organização social.
Devemos também a Morgan (op.cit.) a primeira tipologia do sistema de parentesco na
hisria da Antropologia: o sistema “descritivo”, quando os termos de parentesco “descreveriam
a realidade”, ou seja, a relação biológica e genealógica entre parentes e o sistema
classificatório”, quando os termos arbitrários, que o seguem a “lógica natural”
identificariam os parentes. Este autor acreditava ter sido uma conquista de grande significação
evolucionária a passagem do sistema classificatório para o sistema descritivo, pois esta
mudança representaria o acesso humano à forma mais avançada de família, à forma mais
avançada de conhecimento. (Trautmann, 1987)
A teoria de Morgan representa um marco no desenvolvimento da ciência antropológica
por corroborar o esforço iluminista de decodificar o mundo natural e suas leis, no qual os
homens também estão incluídos. Antes do que fruto de uma vontade divina, os homens se
dividem e se organizam; o parentesco existe por si só. Contudo, ao apresentar a idéia de
consangüinidade como elemento principal, constitutivo, do parentesco em detrimento da
afinidade, Morgan assume uma postura etnocêntrica, devido ao fato desta ser a representação da
cultura ocidental.
De qualquer forma, a partir de Morgan e seus contemporâneos, como Maine e
McLennan, a Antropologia não mais deixou de refletir sobre a questão do parentesco. Além de
se constituir uma das instituições fundamentais da organização das sociedades tribais, a
111
diversidade de composição do parentesco, suas regras complexas e as terminologias
constituíam um dos aspectos que mais se exaltavam no campo do exótico.
O estudo sociológico do sistema de parentesco, na cada de 20 do século passado
encontrava-se excessivamente vinculado à preocupação com terminologias. Malinowski é um
dos autores que procura romper com esta tradição, se afastando, simultaneamente, da
perspectiva da história conjetural, que tanto alimentou o evolucionismo. Segundo este autor, a
álgebra e a geometria do parentesco” então desenvolvida - a memorização de longas listas de
palavras nativas, diagramas complicados e fórmulas distanciava os pesquisadores da grande
questão que envolvia este tema, a questão da “vida familiar”, da experiência individual desta
long and intimate life compartilhada. (Malinowski, 1930). Era preciso chegar mais próximo da
vida familiar, uma das expressões mais ativas e efetivas do relacionamento humano que se
inicia cedo, na infância, e acompanha o homem ao longo da vida. Enfatizando o indivíduo e
suas metas, a família para Maliowski se constituía uma das instituições fundamentais de
estabilidade e integração, cabendo então ao pesquisador separar os elementos e demonstrar que
tinham uma função. Muito mais do que o parentesco, a família propriamente dita é seu foco de
atenção, berço de formação deste indivíduo prático, corroborando sua teoria de que o sentido de
práticas e costumes sociais se encontraria na sua utilidade. É neste sentido que a família se
definiria como meio de manutenção da ordem sexual, de formação da personalidade, do
controle da cooperação doméstica, das vinculações emocionais pririas fundamentais como
nexo para as emoções sociais. O foco de Malinowski é a “situação inicial” familiar, a criança
que cresce na família nuclear, supostamente universal, e que gradualmente generaliza os
sentimentos de seus pais em relação ao resto dos parentes, até ser criado de novo todo o sistema
de parentela e de clã.
De acordo com Kuper (1978) é de Meyer Fortes o comentário de que, se Malinowski
prometera escrever um livro sobre parentesco nas Trobriand e nunca o fizera é porque seria
112
incapaz de conceber “um sistema de parentesco”. Sexo e Repressão na Sociedade Selvagem
(1973) ocuparia este lugar, transparecendo em sua análise social a ausência das relações de
grupo. O clã, para Malinowski, não é uma instituição doméstica, na medida em que seus
vínculos se desenvolveriam mais tarde, situando-se na esfera jurídica, econômica e social.
Esta perspectiva dicotômica, entre reivindicações naturais e exigências da sociedade
que traduz o olhar utilitário, biologicamente ancorado nos instintos universais humanos foi
considerada posteriormente, e em face aos trabalhos de Boas na América e R. Brown na
Inglaterra, uma certa “naivité” trica do pai do funcionalismo”. Contudo, vale destacar a
inflncia de Wundt e Freud norteando suas preocupações em relação ao parentesco. A
dimensão psicodinâmica, a universalidade de certas experiências da vida humana e o binômio
desenvolvimento da civilização e a repressão dos instintos vão ser posteriormente tematizados
como componentes do processo de socialização (Berger & Luckmann,1985), que tem como
cenário primordial a vida familiar.
A perspectiva estrutural-funcionalista de Radcliffe-Brown trouxe contribuições
significativas ao estudo do parentesco. Oportunamente, uma área que se apresentou para este
pesquisador britânico rica em inspiração à visão durkheimiana, e que foi relativamente
negligenciada pela geração do L’Anne Sociologique. Dando continuidade às técnicas
radicalmente novas de observação, inauguradas no campo europeu por Malinowski,
Radcliffe-Brown vem superá-lo apresentando um conjunto mais rigoroso de conceitos
analíticos ao aplicar a teoria sociológica francesa às descobertas etnográficas.
Visando compreender os mecanismos de manutenção da coesão social, este autor
privilegia o olhar formal, procurando observar as “leis da estática social”. A preocupação com
a estrutura social, contudo, não resulta em modelos abstratos analíticos. Atém-se à escala do
observável, compreendendo o sistema social como sistema de relações reais de
encadeamento de indivíduos que ocupam papéis sociais; as normas que regem as relações
113
explicitariam, a seu ver, a estrutura social. Através de um ajustamento mútuo de interesses, a
vida social se fundamentaria, a seu ver, na padronização da conduta, em modos aprendidos de
se comportar, sentir, de pensar.
O sistema de parentesco se manifesta, neste sentido, como instância privilegiada de
reconhecimento da conduta padronizada, tanto no comportamento quanto no sentimento. Sua
percepção do parentesco, comparada à Malinowski, é claramente estrutural, definindo-se como
um “sistema”, na medida em que reunia uma amplitude de expressões da vida social: as
terminologias, as redes de relação, o conjunto de deveres e usos associados a determinados
papéis de parentesco, as crenças e práticas rituais envolvidas na procriação e veneração dos
ancestrais.
De fato, as terminologias de parentesco voltam à tona, assim como a divisão entre
parentesco classificatório e descritivo, apesar de agora, perderem o sentido de fósseis de priscas
eras. O sistema de parentesco continua sendo interpretado baseando-se no reconhecimento de
certas relações biológicas para fins sociais. As terminologias faziam sentido em termos do
sistema contemporâneo, cristalizavam formas de tratamento, consolidavam papéis sociais.
Apesar de considerar as terminologias fundamentais à compreensão do parentesco, este se
definiria primordialmente como sistemas de relações sociais, configuradas num delicado
equilíbrio entre solidariedade e oposição.
Interessa a R.Brown a depuração da estrutura básica daquelas sociedades, as leis
sociológicas, fundando uma espécie de morfologia social. Busca a forma interna, inerente às
organizações sociais, no exercício de abstração para comparação. Seu objetivo, encontrar um
princípio universal”, mais tarde definido pela constituição de pares opostos com separação e
união simulneos.
Não devemos esquecer que o estruturalismo inglês não foi resultado de uma revisão
teórica do funcionalismo como também se apresentou como uma resposta reflexiva às
114
mudanças do contexto de pesquisa da antropologia britânica. As transformações históricas nas
décadas de 30 e 40 do culo passado exigiriam novos instrumentos de análise: o império
brinico necessitava com urgência conhecer antropologicamente seu território, no caso
particular a África, para melhor administrar e dominar. Ocorre um deslocamento da pesquisa
etnográfica do Pacífico e Oceania para a África; um deslocamento do próprio “objeto da
reflexão antropológica: de sociedades pequenas e isoladas para sociedades de grande escala,
larga ocupação territorial e complexas instituições poticas. As questões primordiais a serem
respondidas (ou indagadas) não eram mais as mesmas: no lugar de se focalizar a vida familiar,
atividades econômicas ou magia ( foco da análise funcionalista), estes antropólogos se debatiam
com questões de linhagem, religião e instituições poticas. Afinal, como sociedades espalhadas
em larga extensão territorial se mantinham enquanto tal?
Como vimos, o estruturalismo ings de R.Brown definiu-se pela preocupação com
a estrutura social a partir dos sistemas poticos e de parentesco.As obrigações recíprocas,
trocas e controles mágicos representavam pequena parte dos mecanismos governamentais
destas sociedades, razão pela qual dedicou mais atenção ao sistema político e controle social.
Esta tendência reflexiva atinge sua maturidade nas obras de Evans-Pritchard e Fortes,
com trabalhos antropológicos sobre as sociedades africanas. O maior avanço na teoria de
parentesco a partir destes seguidores diretos de R.Brown foi a separação anatica entre o
domínio potico-jurídico e o donio familiar, apresentando uma noção mais refinada de
estrutura como abstração da vida social concreta. Esta foi uma forma de se superar o enfoque
das relações interpessoais de R.Brown, identificando-se, nestas sociedades, o contexto dual
dos grupos de parentesco, um donio interno de relações intragrupais (ou familiares) e outro
externo de relações intergrupais, o domínio potico jurídico por excelência.
Lévi-Strauss inaugura uma nova fase nas reflexões sobre o parentesco, que, se de certa
forma representa uma continuidade face às preocupações de seus antecessores, de outra
115
representa uma ruptura, dada a dimensão simbólica conferida às relações humanas. Inspirada
na proposta analítica de R.Brown, sua perspectiva confere ao sistema de parentesco,
especificamente suas regras, estatuto ontológico da vida social. O foco de sua análise é a
instauração da regra como marco de passagem do estado de natureza para a cultura; de uma
regra particularmente universal, no campo da diversidade cultural, a proibição do incesto. A
regra exogâmica teria, a seu ver, função de assegurar a permanência do grupo, se definindo
como núcleo originário de todas as formas de intercâmbio. As Estruturas Elementares do
Parentesco (1976) representou a primeira tentativa de aplicação do todo estruturalista, no
qual a estrutura assume caráter abstrato, inconsciente e universal; mais do que simplesmente
um conjunto de elementos, a estrutura define-se basicamente como sistema de relações. A
investigação antropológica, portanto, não deveria se apoiar nos elementos em si, mas nas
relações recíprocas que mantêm. O caráter sistêmico de expressão da experiência humana se
apresentaria numa série de linguagens. Os sistemas através dos quais as sociedades se
organizam refletem processos de comunicação: a circulação de palavras através da
linguagem, a circulação de bens no plano econômico e a circulação de mulheres pelo sistema
de parentesco. O objetivo do sistema de parentesco, como o da ngua, seria instituir um
campo aberto de comunicação, no qual cada membro da sociedade se definiria por sua
posição em relação ao outro. Embrionariamente anunciada pela fase madura do funcionalismo
estrutural inglês - as relações de parentesco como relações entre grupos sociais -, esta
perspectiva representa uma ruptura em relação às características consideradas até então como
constitutivas do parentesco: no lugar da relação consangüínea é a relação de afinidade que o
define por excelência. A afinidade é estruturante; a relação, a instância que nos permite a
consciência do mundo social. A aliança é o lugar da sociedade, pois não nenhuma lei
natural que determine a escolha dos njuges. A percepção da família como experiência
genética se esmaece enquanto pressuposto, ressaltando-se o caráter necessário do casamento,
116
que viabiliza a reprodução social. Neste sentido, a família não é natural, o casamento não é
questão de “amore também não é assunto privado - características básicas da representação
ocidental desta união. O incesto, para Lévi-Strauss é símbolo primordial da condição da
sociabilidade possível. Sua teoria trata o parentesco como dimensão basicamente construída,
convencional, classificatória.
Chave fundamental para compreensão das sociedades tribais, esta perspectiva, no
entanto, deve ser matizada frente às sociedades complexas industriais, portadoras de forma
predominante da ideologia individualista, fundamentada na ascendência do sujeito
substantivado frente à relação. Há outras limitações que devem ser consideradas, como a ênfase
androcêntrica e o fato de que a troca social o contempla a questão das regras de
descendência. Herètier (1981), anos mais tarde, vem propor o refinamento da teoria da troca ao
chamar a atenção à preeminência constante, nestas relações, da hierarquia. Se a diferença
sexual é imprescindível para a ocorrência da troca, a desigualdade o masculino englobando o
feminino funda toda uma lógica da experiência do parentesco. Ao enfatizar a questão de
gênero dentro das famílias a hierarquia de nero Herètier nos chama a atenção para a
relação fundamental da assimetria sexual.
Poderíamos dizer que, após Lévi-Strauss, nem a Antropologia, nem a reflexão
antropológica sobre o parentesco seriam os mesmos. O sentimento de que a Antropologia
poderia imantar, catalisar todas as reflexões possíveis sobre a experiência humana cede lugar a
uma complexificação de horizontes, de multiplicação de paradigmas, o que vai refletir
diretamente na questão do parentesco.
Em texto comemorativo ao centenário de publicação de Systems of Kinship de
L.Morgan, Schneider (1972) procura rever a tradição antropológica de estudos de parentesco a
partir de uma perspectiva culturalista. De Morgan a Lévi-Strauss, a tendência predominante
desta tradição definiu-se, segundo este autor, pela análise sociológica do tema- preocupações
117
em torno da estrutura e da organização social – em detrimento de sua própria significação, das
representações nativas do que seria , afinal, o “parentesco”. Sem desqualificar as análises
institucionais, a Schneider interessa pontuar os valores subjacentes à forma societária; cada
sociedade construiria sua cosmovisão independente da questão da estrutura social, que definiria
como nível cultural.
Para ser estudado neste “nível cultural”, faltaria à tradição antropológica uma
abordagem encompassadora do parentesco, o delineamento deste sistema cultural como um
todo. As ferramentas analíticas utilizadas até então permaneciam vinculadas à cosmologia
ocidental; o parentesco”, um construto que impediria a possibilidade de investigação da
realidade do “outro”.
Neste sentido, os termos da questão continuariam balizados por nossa própria forma de
apreender, interferindo no processo de compreensão de duas maneiras. Em primeiro lugar,
devido à concepção de uma sociedade subdividida em instituições específicas, como a religião,
economia, potica e parentesco. Em segundo, devido à premissa biológica, que definiria como
vínculo legítimo de parente a comunhão da carne e do sangue, a preeminência da
consangüinidade como definidora das relações de parentesco.
É neste sentido que podemos compreender, ainda de acordo com este autor, sua
afirmativa de que a classificação de parentes não esgotaria o sistema de parentesco. Não existe
parentescono nível cultural; existe, sim, uma série de elementos nativos. É preciso, então,
reconhecer as categorias nativas, as unidades nativas de constituição de grupos e a forma com
que são simbolizadas tais unidades. O “parentesco”, enfim, como propõe Schneider, seria um
recorte de apreensão da realidade social ao qual estamos familiarizados; haveria, contudo,
outros recortes possíveis.
Apesar de identificar as limitações à forma sociológica com que Lévi-Strauss tratou o
parentesco, particularmente em As Estruturas Elementares do Parentesco, não dúvidas de
118
que este autor, particularmente no que se refere a sua fase madura, teve, e ainda continua tendo,
grande influência nas formas mais ousadas de se pensar o parentesco. Este se define como tema
que incita reflexões fundamentais, constitutivas da Antropologia, como a relação entre
natureza e cultura, assim como as “categorias de entendimento”. Lévi-Strauss teve papel
atuante no posicionamento destes temas ao colocar o universo simbólico e cosmológico como
ponto central, havendo necessidade de se superar esta dicotomia: o mundo natural também é um
símbolo para o social, fruto da elaboração cultural. Por outro lado, suas reflexões sobre o
pensamento selvagem nos chamam a atenção para as formas várias de classificação através das
quais o nativo procura, assim como nós, objetivar o mundo percebido e dar ordem ao universo
ao seu redor.
Juntamente com vi-Strauss, Schneider (op.cit.) exerce grande influência nos estudos
recentes sobre parentesco, dentre os quais podemos apresentar alguns exemplos da produção
acadêmica nesta área. Particularmente, destaca-se na reflexão atual a relativização de
pressupostos básicos na tradicional teoria do parentesco.
Conforme vimos anteriormente, desde Morgan, o parentesco tem se apresentado
como categoria analítica predominante na história da Antropologia. Contudo sua percepção, nas
diversas tentativas de alise deste fenômeno nas diferentes sociedades, é mediada fortemente
pala visão do mundo ocidental do que seja parentesco, através de um sistema analítico baseado
na grade genealógica, que pretende resumir os vínculos estabelecidos a partir da herança de
sangue. O modelo descritivo, assim, é percebido como o “verdadeiro”, capaz de traduzir o
modelo biológico e as relações sociais.
Alguns autores têm procurado encontrar formas possíveis de se escapar das
determinações da ideologia do sangue, procurando focalizar não esta dimensão biológica, mas a
questão da relacionalidade. Ao se priorizar a convivialidade, institui-se um outro patamar
interpretativo para esta realidade humana, focalizando o parentesco como sistema de valores.
119
Peter Gow (1997) propõe-se à investigação do parentesco na sociedade Piro,
abordando-o tanto como sistema “autopoiético” (sistema que gera suas próprias condições de
existência), quanto sistema de “subjetividade”: a consciência de um “eu” em meio aos outros.
Interessa a Gow a instituição da subjetivação humana, ou seja, quais são os parâmetros
cosmológicos para se nomear entes significativos. Observa-se neste exercício reflexivo a
proposta de se ultrapassar a “universalidade” de nossas representações, em preocupar-se com o
pensamento do “outro” enquanto espaço de experimentação intelectual. Tal tentativa não deixa
de ser uma revisão da perspectiva universalista de Lévi-Strauss, procurando enfatizar-se mais o
“vivido” do que o “pensado”, ou seja, a dimensão emocional e sentimental. Gow, por influência
de Christina Toren e Merleau Ponty, busca uma linha alternativa ao pensamento clássico
ocidental, procurando superar o materialismo intelectualista através da reintegração do sujeito e
objeto. Ao tratar do parentesco, Lévi-Strauss ainda prioriza a análise sociológica em
detrimento da perspectiva simbólica, enfatizando-se a troca social, sem contudo relativizar a
metáfora biológica, fruto de nossas representações. A própria oposição Natureza/Cultura é,
segundo Gow, “o verdadeiro problema” subjacente às teorias do parentesco (de Morgan a Lévi-
Strauss), pois que fenômenos tais como o parentesco são simultaneamente biológicos e sociais.
Gow irá, portanto, defender a noção de “natureza humanapara compreender a variabilidade
dos sistemas de parentesco humano.
Cristina Toren (1999 ) analisa o parentesco em Fiji a partir da perspectiva das
crianças. Novamente identificamos a ênfase na experiência vivida em detrimento dos quadros
classificatórios para se abordar esta questão, o que se ressalta neste texto pelo exercício
fenomenológico em se compreender a realidade antes de explicá-la. Ao contrário de destacar o
parentesco da sociedade seu desentranhamento é artificial -, Cristina procura considerá-lo
imerso num horizonte humano mais abrangente, priorizando, portanto o comportamento, os
motivos para ão e as atitudes. Demonstra preocupação com a dimensão ontogenética da
120
realidade humana, pois lhe interessa conhecer o processo de instituição dos seres sociais. Como
uma criança acede ao meio social? A autora percebe esta via como privilegiada para o acesso
às questões que este grupo coloca para si mesmo. Destaca o processo pelo qual as crianças vão
aparecendo como parente consangüíneo e afim- a partir de um jogo entre alteridade e
diferença. Em outras palavras, não se representa “kinship”, mas se vive kinship”. Em Fiji a
compaixão” define-se como categoria fundamental para a construção do ser parente”, ou
seja, o fato de se compartilhar os sentimentos positivos.
Através de seu trabalho de consolidação do perspectivismo ameríndio, Eduardo
Viveiros de Castro ( 2000 )vem traduzir toda uma mudança de paradigmas ocorrida na ciência
antropológica nas últimas décadas, definindo-se este momento presente pela reflexividade e
desnaturalização. Ou seja, o projeto antropológico procura não tomar a realidade como
naturalmente dada, mas como algo a se construir de diversas formas. A questão básica é
reconhecer a existência de epistemologias diferentes, de acordo com a sociedade, resultado do
processo de educação da percepção. O “parentesco” é um tema que o inspira a conclusões
mais abrangentes sobre as sociedades ameríndias, e que de alguma forma, subverte e
questiona a filosofia ocidental.
O perspectivismo coloca em questão a percepção ocidental de sujeito e substância. Há
cosmologias em que sujeitos e coisas não existem por si mesmos, mas sempre a partir da
relação em que estão inseridos, se definindo e redefinindo na medida em que estas relações se
modificam. Na tradição conceitual ocidental tomamos as substâncias como dadas” enquanto
as relações são construídas, adicionadas ao sujeito. Se para nós, ocidentais, conhecer é
relacionar as substâncias que existem, para os ameríndios a relação é universal, a partir da
qual as coisas são produzidas conceitualmente.
A questão é que, para este autor, nossa concepção de relação está fundada na idéia de
compartilhamento de algo comum; o laço social, o compartilhamento de uma semelhança
121
fundamental. No mundo indígena, todos os homens são a princípio “cunhados”, ou seja,
ligados pela diferença. O “parentesco”, como representação ocidental, é a palavra que damos
para relacionalidade; a base fundamental da socialidade humana. Paternidade, fraternidade,
patrão, padrinho, padroeiro: é do parentesco que saem grande parte das metáforas da relação
no ocidente. Assim, o cunhado para nós seria o iro de segunda instância. No mundo
indígena, por sua vez, todos os homens são cunhados, a relação torna-se fundamental não pela
semelhança, mas pela diferea. O irmão, neste sentido é o cunhado domesticado, um
cunhado no qual se esvaziou a diferença.
Eduardo Viveiros de Castro traz como proposta básica a discussão entre o “dado” e o
construído”, ou seja, as possibilidades latentes na vida social, não de se atuar de acordo
com as convenções, mas que a cada momento a exisncia exige a constante atualização da
cultura pelos sujeitos sociais, que também se tornam seus “inventores”. Neste sentido, o autor
procura focalizar o parentesco como socialmente /constantemente construído. Traz como
proposta básica a relativização da oposição Natureza/Cultura de forma a se entender o
sistema de parentesco entre os ameríndios das Terras Baixas do Amazonas. Para estes
nativos a afinidade é dada enquanto a consangüinidade instaura a possibilidade de
construção, exatamente o oposto da cosmologia ocidental que prioriza a consaninidade por
entendê-la como “natural”, dada. A afinidade é o modelo genérico da vida social, definindo-
se como campo de possibilidade: é a partir do fundo de afinidade que se fabrica o parentesco.
Enquanto a lógica ocidental define-se pela lógica da identificação, cristalizando-se
identidades, entre estes grupos não se aspira à estabilização: há metamorfoses contínuas
entre os diferentes mundos, ocorrendo um trânsito mais amplo. De acordo com Viveiros de
Castro, “no princípio jaz a diferença”, daí todo o sentido da “cunhadez” nestas sociedades que
enfatiza a estruturalidade da afinidade. A construção do parentesco é a fabricação de uma
consangüinidade, a criação pela relação, onde a convivialidade torna-se essencial.
122
As repercussões destas idéias para a reflexão antropológica são várias, mas trazem
consigo a discussão de dualismos consagrados como indivíduo e sociedade, natureza e
cultura. O “parentesco”por sua vez, faz parte de uma expressão muito maior e constitutiva,
ontológica nos termos de Schneider, que é a questão do vínculo. Domesticada no Ocidente, a
relação extrapola os limites do parentesco no pensamento indígena; de se conferir como se
deu este processo de “domesticação”, assim como reconhecer as nuances deste processo, que
de forma alguma se apresenta monotico e definitivo.
3.2. A construção social da família moderna
Sabemos que no exercício comparativo do trabalho etnográfico a sociedade do
antropólogo encontra-se inescapavelmente presente. Ao longo deste breve histórico da
relação entre antropologia e parentesco observa-se que esta questão tornou-se problematizada
somente a partir dos trabalhos de Schneider na cada de 60. O modelo de família, até então
implícito como referencial de contrapartida de identificação da diferença, é o da família
conjugal. Envolto numa aura de naturalidade e sacralidade, fundamentado na presença dos
filhos, este modelo familiar apresenta-se como se sempre existisse, moldado a partir de
representações sobre o direito natural e valores universais. Contudo, nossa própria ordenação
de família, doméstica e nuclear, é resultado de um processo histórico, relacionado à grande
formação ideológica que acomete a cultura ocidental. Vincula-se à emergência de uma visão
de mundo comprometida com o universalismo e o racionalismo.
Fenômeno historicamente engendrado a partir do séc. XVIII, o individualismo traz
como conseqüência o processo de segmentação não hierárquico do todo em donios
crescentemente autônomos. Tanto a representação quanto o valor da “totalidade” desloca-se
para o “indivíduo”, seja ele “indivíduo sujeito moralo “indivíduo coletivo”. É nesta última
123
instância que podemos incluir o grupo familiar, que tende a se atomizar e se destacar de
instâncias mais encompassadoras, ou seja, a rede de parentesco mais extensa. Esta mudança
para um “novo” modelo familiar é concomitante ao processo de fragmentação social e da
especialização de suas instituições. Ocorre um processo de intensificação moral no grupo
familiar, no sentido de controle; de estabelecimento de limites, de produção da infância
inocente, da criança que deveria ser lapidada. A família como local de expectativas de
construção do cidadão. Ariès (1978) descreve-nos a grande revolução da afetividade que
ocorre no seio familiar, quando, com a separação entre família e trabalho, instaura-se o mundo
privado, doméstico em oposição ao espaço público.
A família, na sua forma denominada “moderna”, ou seja, nuclear, nima, restrita se
define como espaço de expressão da modernidade tanto quanto o Estado e o indivíduo,
atuando como meio intermediário destas duas esferas e representando muitas vezes refúgio ao
mundo regido por condições externas, objetivas, racionais e impessoais. Ela reflete um
processo coletivo global de reagenciamento, fruto de transformações históricas que trazem
como resultado uma sociedade marcada pela urbanização, pelo desenvolvimento industrial,
pela intensificação das relações comerciais e pela complexificação das formas burocráticas de
organização. O formato de família moderna vincula-se estreitamente ao espaço simbólico e
social agora conferido ao “indivíduo”.
O mundo público, espaço da rua e do trabalho também é espaço de socialização,
promotor de uma vivência específica como a caminhada na rua, a sociabilidade provisória dos
“Cafés”, as possibilidades crescentes de indistinção, a experiência do anonimato. Benjamim (
1985 ) procura traduzir este sentimento de estar no mundo e estar na cidade moderna na
atitude do “flaneur”, o sujeito que perambula pela cidade sem destino, buscando o asilo na
multidão.
124
A vida privada como oposição a esta experiência pública mune-se de valor,
associando-se ao sentimento de família o sentimento de intimidade. A família descobre e
favorece a privacidade: o sentimento de família estaria vinculado à casa, à vida na casa. Os
valores nascidos desta coabitação e da intimidade se contrapõem e superam os valores
encompassadores das relações de parentesco. Esta intimidade não se define externamente,
como também nas relações internas, que se revelam no adensamento do quarto, na separação
da família dos animais, dos serviçais, os pais dos filhos, a filha do filho. Este novo sentimento
de família apresenta-se indissociável ao sentimento de infância. A criança representaria o
suporte decisivo para sua conformação; ela conquista um lugar junto aos pais e torna-se figura
indispensável das preocupações dos adultos, no que tange a sua educação, no que toca seu
futuro. A família se reduz à dimensão útil assumindo o papel de produtora de indivíduos.
Este processo de acolhimento e recolhimento, contudo, o se manifesta somente no
sentido espacial. Define-se como analogia de um processo de transformação que ocorre
paulatinamente na dimensão interna aos indivíduos. A realização de si , o cultivo da própria
subjetividade torna-se um valor e de certa forma um imperativo, onde a afirmação da
identidade é fruto de um exercício privado. É fundamental à eficácia dos processos
macropoticos em transformação a ênfase na consciência do sujeito, de quem se espera mais
responsabilidade e a autodisciplina; a contrapartida da sociedade da lei é o indivíduo que zela
por sua conduta.
Foucault (1977, 1979) apresenta-nos com muita propriedade como este processo de
autovigilância encontra como espaço de reprodução maior o seio familiar. O adensamento da
família se revelaria pela intensificação das relações do núcleo, seu papel de controle moral e
de educação para a disposição moral de gerenciar o corpo. A produção da sexualidade advém
do cuidado de si através de métodos de vigilância mais rigorosos no interior da casa. A
família representaria o espaço de procriação, de educação e sugestão de um tipo específico de
125
relações com o corpo. O dispositivo da sexualidade torna-se fundamental como afirmação de
si na atribuição de um corpo para ser cuidado, protegido, cultivado e preservado. Tem como
par complementar o dispositivo da aliança, que preconiza o casamento legítimo e a
fecundidade, a exclusão da união consangüínea e a prescrição da endogamia social e local.
Este processo coletivo de reagenciamento inclui a reordenação do espaço urbano
através de políticas blicas. Esta nova sociedade traz juntamente com o novo sentimento
otimista de liberdade os problemas advindos do “progresso”: a miséria, a aglomeração, a
fome, as epidemias, a poluição, a perturbação pública, os conflitos sociais, o desemprego, a
ameaça do alcoolismo, do jogo e do crime. A cidade imunda, cinzenta, confusa representa a
perda de uma ordem”, espaço que assiste a deteriorização das relações sociais: a vida
passada entre estranhos, predadores potenciais, que simbolizam simultaneamente a novidade e
a insegurança. Paralelo ao surgimento desta família moderna surge um campo de ação do
Estado sobre a sociedade, a nese do setor social, que não se confundiria com outros setores
como o judiciário e o econômico. A intervenção do Estado, no sentido de normatizar as
discrepâncias sociais, ocorre por meio do planejamento urbano e por medidas sanitaristas,
com tecnologias poticas que irão investir sobre o corpo, a saúde, as formas de se alimentar e
de morar. O higienismo toma a família como ponto de apoio; particularmente a mãe de
família, para instaurar as novas regras de limpeza social. Donzelot (1980 ) mostra-nos, no
caso da sociedade francesa, como preocupações com o cuidado da criança (a criação de um
espaço especial e reservado a ela dentro dos domicílios), a preocupação com seu abandono e
a criação de instituições de recolhimento; a figura do médico familiar, o surgimento da
filantropia, de práticas assistencialistas por parte do Estado, a preocupação de manter e
estimular o casamento nas classes populares (fazendo dele a condição para as famílias
beneficiarem-se do auxílio estatal) a importância dada à vida familiar e à vigilância constante
para que esta se mantenha (sendo objeto constante de investigação) explicitam a coneo
126
sistemática entre moral e economia, que implicaria uma vigilância contínua da família, uma
penetração integral em todos detalhes de sua vida e a relação entre a produção da riqueza e o
uso do corpo. Este é o período que se inicia de racionalização crescente do Estado, que vai
paulatinamente assumir parte da gerência desta vida familiar.
O fato é que o discurso sobre a família e a crise da família não é novo. É recorrente,
demonstrando ser uma instituição em contínua mutação. Os reformadores sociais e
pensadores católicos da Europa oitoscentista preocupam-se com o quadro físico-moral da
população, a desordem social, a fertilidade dos pobres, o ambiente de enfraquecimento da
autoridade parental: a sociedade doente adoece a família. As teorias da degeneração se aliam
ao discurso dico alertando para o perigo das doenças venéreas e da imoralidade da
juventude, reafirmando o casamento como abrigo seguro. O marxismo, baseando-se em
análises impregnadas de evolucionismo, conclui ser a família conjugal a “família burguesa”,
forma eficiente de apropriação privada, inimiga do projeto comunista. A psicanálise
acrescenta às angústias que a instituição suscita o discurso do “perigo familiar”, a ameaça
interna que atinge seus membros, como as relações neuróticas, a sufocação familiar - o
comprometimento do processo de singularização individual -, a subordinação e alienação
feminina. A consolidação do Estado Moderno, com o alargamento de seus braços na vida
social, levanta algumas inquietações sobre a pertinência e identidade desta instituição, uma
vez que o Estado passa a ocupar funções antes desempenhadas pela família como a educação
infantil, o cuidado do doente, a atenção ao idoso. As transformações sociais ocorridas ao
longo do século XX repercutem em sua forma de organização.
Podemos ainda destacar alguns autores que contribuíram de forma expressiva para a
abordagem social/cultural da família. Em contraposição à visão moralista dos reformadores
sociais, Durkheim (cf.Segalen, 1996) propõe que, como noutros campos do social, a família
pode ser objeto de generalizações científicas. Sua abordagem da família insere-se na questão
127
mais abrangente da conciliação entre individualismo e solidariedade social. O método
durkheimiano traz como inflncia decisiva aos estudos posteriores sobre família a
perspectiva comparativa. Apoiando-se nos trabalhos de Fustel de Coulanges , Bachofen,
McLennan e Morgan, investiga tipos de famílias diferentes, no intuito de elucidar as relações
entre as características de determinado tipo e as circunstâncias que o rodeiam. Apesar de se
manter numa interpretação evolucionista em sua obra La Famille Conjugale, sua grande
contribuição refere-se às representações coletivas, sua correspondência estrutural com a
organização social e a virtude imperativa do costume, que o leva à posição da norma e cujo
desrespeito é passível de sanções.
O fato é que as características de determinado tipo de família estão intimamente ligadas
às circunstâncias que o rodeiam. Alguns trabalhos se dedicaram à reflexão do parentesco na
sociedades complexas e industriais e, em particular no meio urbano. Além de uma unidade
geográfica, a cidade possui uma dimensão orgânica, viva, produto da natureza humana que
uma vez formada impõe-se a ela moldando- a. Alguns efeitos deste meio (e que moldariam o
comportamento humano) se destacam como a difusão de novas formas de comunicação, seja
o transporte ou o jornal, o fenômeno das multidões, o desenvolvimento de classes altamente
estratificadas com uma diferenciação interna, num processo de especialização crescente. O
ritmo desta nova sociedade desperta a preocupação e o interesse de se pensar sobre a cidade,
de pesquisar a cidade, já que se percebe que houve, de fato, uma transformação, mas que ela é
problemática: se por um lado o progresso trouxe novas possibilidades de exisncia coletiva,
também provoca o florescimento de novas formas de desigualdade e pobreza. A metrópole
define-se como locus por excelência de propagação e vivência de valores individualistas. Não
é o espaço de atuação do indivíduo como produz novas formas de indivíduos. A
diversidade urbana deve-se também ao fato da cidade compreender diferentes mundos sociais,
possibilitando a indivíduos e grupos a experiência de fragmentação, a possibilidade de
128
circularem entre diferentes zonas de significado, modos variados de construção social da
realidade. O livro de Znanieck, The Polish Peasant in Europe and América (1974 [1918])
define-se como um dos precursores da reflexão sobre a questão da família e da mudança
social, avaliando as relações familiares de imigrantes com sua terra natal através de sua
correspondência.
Elizabeth Bott (1986) propõe-se a estudar a família “normal” da sociedade londrina no
final da década de 50. O caráter inovador de sua pesquisa reside no fato de representar uma
reação tanto ao sociologismo que ignora e subtrai a questão da temática pessoal, quanto de
buscar superar a análise psicológica de interpretar o comportamento como fruto de escolhas
pessoais. Bott trabalha particularmente na natureza dos vínculos sociais dos grupos familiares,
que denomina por “conexidade”. Define-se pelo estudo de papéis conjugais, relacionando-os
com as características dos vínculos sociais estabelecidos - o grau de segregação da família -
e o desempenho de papéis conjugais. Bott procura enfatizar a fluidez do conceito de família
urbana, que o pode ser explicada como organização social aos moldes de um grupo de
parentesco nas sociedades tribais. Sob influência do pensamento de Gluckmann opta pela
análise de redes acreditando não ser frutífero procurar entender a organização social nas
sociedades complexas através de grupos corporativos. Nas sociedades tribais se reconhecem
pessoas como representantes de um só grupo, englobante.; a família é pública. Na vida
urbana, as relações são mais fragmentadas; não se pode reconhecer, localizar uma família por
participar de um grupo exclusivo, como a igreja, por exemplo, pois ela freqüenta e transita
entre outros grupos simultaneamente. São grupos que estabelecem vínculos diferenciados,
explorando um campo de possibilidades de composição bastante amplo.
O projeto de um estudo comparativo do parentesco entre EUA e Inglaterra resultou em
dois trabalhos, na década de 60 do século passado, de grande expressão para a compreensão
do fenômeno do parentesco na sociedade ocidental contemporânea.
129
Em American Kinship (1968), Schneider procura interpretar família e parentesco na
sociedade americana a partir de uma perspectiva cultural, conforme discutido
anteriormente. Ressalta-se neste trabalho o modo como conseguiu produzir uma incursão
peculiar da temática do parentesco na sociedade moderna, através da definição das unidades e
das regras de parentesco americanos a descrição do sistema de parentesco como um sistema
de símbolos e de significados - e não dos padrões de comportamento formulados. O livro
subdivide-se em duas partes significativas. Em primeiro lugar trata da pessoa como parente”
onde procura delinear a definição cultural dos laços de parentesco, que se baseia em duas
ordens, a ordem da natureza a presença da consangüinidade e da transmissão genética – e a
ordem da lei, o reconhecimento social da aliança em termos jurídicos e dos costumes. A
família é reconhecidamente uma unidade cultural baseada na convivialidade, formada pela
tade marido-esposa-filho(s), cujo símbolo distintivo ancora-se no intercurso sexual (seja
legítimo ou incestuoso) e no sentimento de amor (conjugal e cognático).A oposição
casa/trabalho atua como um dos critérios básicos de distinção das relações de parentesco das
demais relações. O “parente como pessoa” por sua vez, trata da cuidadosa construção dos
parentes; ou seja, não basta ser parente, mas ser reconhecido como tal, incluído no grupo
familiar a partir de seu digo de conduta. Assim, alguns tios são mais tios que outros, alguns
antepassados, mais cultuados que outros, não obedecendo necessariamente a norma do sangue
ou a norma jurídica. American Kinship é um trabalho que exerceu grande influência na análise
cultural do parentesco. Nele Schneider problematiza a contradição homem/natureza no mundo
ocidental, assim como ressalta a centralidade da reprodução sexual em nosso idioma de
relacionalidade. Trata-se do estatuto controvertido, específico da nossa tradição, da natureza
humana e todas as dificuldades classificatórias do que poderia ser a natureza humana e sua
relação com a cultura.
130
Famlies and their relatives: Kinship in a middle class sector of London (1969) é a
contraparte deste projeto de pesquisa coordenada por Raymond Firth na Inglaterra. Apesar de
o pretender grandes rupturas na clássica abordagem antropológica do parentesco,
este trabalho caracteriza-se pela cuidadosa e detalhada alise da estrutura do parentesco em
condições urbanas. Na verdade, o projeto de apresentação de um trabalho conjunto sobre o
parentesco entre populações urbanas –Chicago e Londres - de classe média foi cedendo lugar
a duas pesquisas isoladas. No decorrer do trabalho, foram se tornando tidas as profundas
diferenças tricas entre Firth e Schneider; antes que comparáveis, os estudos se fizeram, na
verdade, complementares. Schneider desvendando a natureza e a extensão do parentesco na
cultura americana, assim como as premissas ontológicas da cosmologia ocidental; Firth , o
estudo da variação funcional das relações de parentesco, atribuindo ao lar e à organização da
família uma centralidade.
Discípulo direto de Malinowski, Firth traz como característica neste estudo o interesse
pelo detalhe, o cuidadoso registro etnográfico. Interessa a este autor a questão da organização
social e como ela opera na esfera do cotidiano, na interação entre indivíduos; ingleses situados
num contexto específico, na estrutura social e no espaço da metrópole. Procura, então,
delinear as características de “ser parente” neste contexto, que a seu ver influencia a
construção das relações interpessoais. O parentesco define-se como um aspecto do
comportamento social; ao contrário do senso comum, que acredita ser o comportamento nas
relações de parentesco dependente somente do “caráter”. É preciso rever tipos de conexões
que existem entre fatores de personalidade e fatores de inserção nos setores médios,
incluindo normas de convenção e valores morais” (p.28). É preciso revelar tipos de conexões
que existem entre fatores de personalidade e fatores de modelagem social na sociedade
londrina.
131
Um ambiente de relações sociais distantes, predominantemente formais como o meio
urbano; um meio social que experimenta a mobilidade geográfica, o ethos individualista, onde
a liberdade individual assume preponderância na decisão pessoal. A Firth interessa o estudo
sociológico do parentesco, comparando os padrões de parentesco com área residencial,
ocupação, religião e valores morais; o quanto os laços de parentesco são importantes na
definição da identidade, na construção da personalidade., como ele atua como campo de
seletividade e escolhas pessoais. Em certo sentido Firth chega a conclusões similares à de
Schneider ao concluir ser a família um termo relativo, “um conceito operacional”; a
demarcação de certas categorias do parentesco tem também significado afetivo, ocorrendo a
inclusão/exclusão de parentes.
Declarando Schneider como “pai antropológicoMarilyn Strathern (1992) analisa a
questão do parentesco na Inglaterra contemporânea seguindo a linha da desconstrução do
conceito de parentesco ocidental. Nossos valores cosmológicos têm definido o parentesco
como fato “natural”, como se fosse o reconhecimento dos fatos do relacionamento biológico,
como a própria noção de “parentesco descritivo”. Particularmente centrada na análise da
cultura anglo-americana Strathern procura vincular as concepções de parentesco às dimensões
mais amplas desta cultura, ou seja, as idéias sobre o parentesco na Inglaterra estariam
relacionadas às idéias inglesas sobre outros aspectos da vida social. Se a sociedade
contemporânea aparece fragmentada, pluralista e diversificada, estas mesmas categorias
podem ser aplicadas às iias sobre o parentesco. Neste sentido as relações de parentesco
estariam sendo balizadas por noções tais como singularidade e diversidade e estremecidas
contemporaneamente pela ameaça do estereótipo, da reprodução em série. After Nature
(1992) tematiza os efeitos do desenvolvimento tecnológico nas relações humanas, e em
particular nas relações de parentesco, através do surgimento das novas tecnologias
reprodutivas, da extensão da escolha do consumo a novos domínios. O que antes era natural
132
e o parentesco era a tradução dos nculos naturais –tornou-se uma questão da escolha:
nature was enterprised up.
Se durante um período na história da antropologia os estudos sobre o parentesco
cederam espaço para o estudo de gênero, observa-se nos últimos anos o seu renascimento,
estimulado não pelas tecnologias reprodutivas como também pelo feminismo e
homossexualismo. De fato, as transformações ocorridas em nossa sociedade redefinem novos
vínculos, procurando identificar o que mais estaria incluído nas relações de parentesco além
do vínculo biológico.
Apesar de tantas possibilidades de arranjos familiares, o que tem caracterizado
tradicionalmente a família nas sociedades ocidentais seria o casamento monogâmico, o
estabelecimento do grupo em espaço distinto da família extensa (neolocalidade), as relações
afetivas entre pais e filhos. (Lévi-Strauss, 1983). Contudo, mesmo dentro desta caracterização
ampla, podemos nos aprofundar em diferenças mais sutis, relacionadas ao tempo e ao espaço.
Em outras palavras, esta mudança ou “progresso” nas relações familiares não se de forma
monotica, uniforme e muito menos concomitante. que se observar a família como um
campo de práticas, sendo moldadas por, e ao mesmo tempo, moldando relações sociais
amplas.
Dentre as diversas publicações que tratam desta questão, podemos destacar Famille
et Individualisation (2001), uma coletânea por coordenada por François de Singly, que
discute de forma abrangente diferentes facetas da questão das famílias contemporâneas
ocidentais em face de uma nova concepção de indivíduo: sua relação com grupos de
pertencimento, e em particular, com a família.
Conforme mencionado anteriormente, é no percurso histórico do período moderno-
contemporâneo que assistimos a
consolidação do individualismo; a construção do
“indivíduo” pelo desprendimento interior e exterior das formas de vida social, num processo
133
gradativo, e não linear, de conquista da independência individual e da diferença pessoal.
Nesta coletânea, autores apresentam como recurso de reflexão sobre as relações entre
indivíduo e sociedade nas sociedades contemporâneas, a distinção entre autonomia e
independência, baseada em Alain Renault (cf.Singly,2001). A autonomia refere-se ao
desenvolvimento da autoridade fundada na razão e na vontade, onde o indivíduo resgata a si a
responsabilidade sobre o próprio destino. A indepenncia associa-se à construção do
indivíduo auto-suficiente, “sem depender de ninguém”, numa atitude excessivamente auto-
centrada. Não são distinções estanques, mas momentos de um mesmo fenômeno que revelam
a complexidade e o caráter muitas vezes paradoxal do processo de individualização. A
exacerbação da independência pode gerar, em última instância, o comprometimento da
própria autonomia, ao possibilitar a existência do indivíduo “des-conectado”, do subjetivo
sem o inter-subjetivo. A própria dinâmica social, apresentada neste conjunto de pesquisas, nos
sugere que o individualismo é vivenciado através da busca do equilíbrio entre esta duas
instâncias, face ao “outro”.
Como bem se refere F. de Singly, os indivíduos das sociedades contemporâneas
ocidentais não são iguais aos das gerações precedentes, dado o imperativo de tornar-se um
indivíduo original. No entanto, o mito da interioridade, a busca do “verdadeiro eu” tem como
condição imprescindível o “olhar do outro”. A família também se modifica para produzir
estes indivíduos; apresentando dois momentos distintos, ao longo do séc.XX, neste processo
de modernização. O primeiro, situado até a década de 60, caracteriza-se pela construção da
“família feliz”. A família apresentando fortes tendências à nuclearização, seu
distanciamento da rede de parentesco, mas ainda uma unidade totalizadora, a serviço da qual
agem seus membros. tendências que se consolidam, como o aumento da coabitação, o
aumento do número de divórcios, o decréscimo de famílias numerosas, a intensificação do
trabalho assalariado feminino. A demarcação tida de papéis vem reforçar este intuito. É a
134
época do adulto a serviço do grupo familiar e das crianças missão de pai, o provedor;
missão de mãe, a educação dos filhos, o cuidar do njuge, a manutenção da ordem do lar.
Esta dedicação tem como força propulsora “... a construção de uma lógica de grupo,
centrada no amor e na afeição” (Singly, 2000: 15). O segundo momento, já datado no
decorrer das últimas décadas do século passado, traz embutido no modelo familiar uma nova
concepção dos indivíduos em relação a seu grupo de pertencimento. que como uma
exacerbação” da tendência individualizante, na medida em que os indivíduos componentes
daquele grupo o mais importantes do que seu conjunto. Relaciona-se, sobretudo, com o
“indivíduo original”, onde sua verdadeira natureza, seu “verdadeiro eu” deve ser respeitado.
Contudo, esta valorização não representa ou ambiciona a extinção do grupo familiar. A
função deste seria justamente cuidar desta “permanência do eu”; o trabalho sobre cada um
sendo assistido pelos outros se tornando o espaço privado a serviço dos indivíduos sendo
composto por gerenciadores do eu individualizado. Singly sugere ser este novo modelo
caracteristicamente autônomo e relacional. A autoridade parental se dilui na noção de respeito
à originalidade do ser, valorizando-se qualidades outras que não a obediência, como a
iniciativa e a autonomia. Desta forma, a educação no seio familiar deixa de definir-se pela
imposição de valores, substituindo-se pela negociação e pelo diálogo. Uma tensão contínua
acompanha este novo modelo, na medida em que a família torna-se simultaneamente desejada
( a vida privada como espaço do cultivo do eu) e instável, pois sua duração depende da
satisfação recíproca. Nas palavras de F. de Singly, não se trata somente de “estar juntos”,
mas “estar juntos e livres”. A liberdade constitui-se valor fundamental neste novo contexto,
marcado pela cultura psicológica. Ela é condição básica e fim último do processo de
individualização por conjugar autenticidade, independência e autonomia.
Être Soi parmi les Autres”, título do primeiro volume traduz a preocupação com os
desafios intrínsecos a tornar-se “indivíduo individualizado” no âmbito das relações sociais.
135
Diferentes situações sociais expressam o diálogo constante entre o “eu estatutário” o papel
social atribuído - e o “eu íntimoo espaço da subjetividade, constrdo pelo empenho no
aperfeiçoamento de si. A inserção do indivíduo adulto dentro da família caracteriza-se pela
ambigüidade inerente a esta instituição, por ser, simultaneamente, fator fundamental para a
individualização e obstáculo para sua efetivação. Para fazer validar seu projeto pessoal, os
indivíduos operam com uma margem de manobra, sendo necessária a adaptação do coletivo
familiar às normas que viabilizem sua autonomia. Estes autores destacam estratégias
diferenciadas de se preservar a individualidade, traçadas por um sujeito consciente, de
vontade própria, capaz de manter-se autêntico. A conjugação de momentos de integração
conjugal com os de afirmação pessoal, fundamental para a existência do grupo familiar, é
identificada em situações diversas: na construção do amor moderno, aspiração de muitos
casais franceses, que se pretende imune a processos “simbióticos” pela manutenção do
território pessoal; nas comunicações relacionais via telefone, que possibilitam a construção da
identidade pessoal distinta do casal o contato telefônico se define como espaço de expansão
do território de constrões pessoais; no retorno compulsório dos desempregados ao espaço
familiar, que precisam negociar a distância entre si próprios e o grupo para efetivarem sua
recomposição identitária; no desafio de conciliar-se a adesão e a ruptura à rotina doméstica,
no ritual das refeições, no cumprimento dos horários coletivos”, de forma que não se
comprometa a autonomia.
A busca de autonomia também pode ser viabilizada através de investimentos em
diferentes espaços exteriores à família, revelando-nos a presença de um ator social coerente
com a busca da expressão de si como pessoa: a medião das relões entre seus membros por
uma coletividade ou instituição nas férias familiares; a relativização ao pertencimento
primário de mulheres imigrantes através de sua participação em associações civis; a
mobilização familiar na trajetória profissional de filhos de imigrantes.
136
A afirmação de si como ser original não se restringe a um momento; ao contrário,
percorre todas as idades. O conhecimento de si é um processo infindável e por isto,
envelhecer não deve excluir a exploração de si. Esta busca de autenticidade, contudo, gera
contradições, uma vez que sua exacerbação potencializa a desestabilização relacional. Neste
segundo volume, Être Soi d’un Age à l’Autre, são investigados os processos da formação de si
nas diferentes fase da vida. Dedica-se à análise da construção da norma de individualização na
infância que pode ocorrer por diferentes formas como a adoção: o debate travado na
sociedade francesa pela possibilidade legal de ocultamento da origem materna (em oposição
ao direito infantil de conhecer sua origem) e a irreversibilidade da adoção, que de processo
voluntário, torna-se depois de efetivada, compulsório. Benoît Heilbrunn discute o processo de
individualização da criança em termos econômicos: o respeito à autonomia confere-lhes não
só um poder de compra como também de influência sobre o consumo familiar. Muriel
Darmon examina, a partir da literatura “psicológica” de aconselhamento aos pais, a
importância contemporânea da construção da diferença entre gêmeos do mesmo sexo.
A individualização dos jovens em relação a seus pais ocorre em diferentes cenários. Nas
situações em que estes moram com a família, observa-se que os momentos em que os pais se
ausentam são estratégicos para a utilização do espaço coletivo como pessoal. A cerimônia de
casamento é uma das possíveis formas de se vivenciar a autonomia, quando os jovens noivos
articulam diferentes grupos de pertencimento definindo “seus convidados”. O processo de
individualização dos jovens pode ser encorajado e endossado pela própria sociedade, como é
o caso da Suécia, onde o apoio do estado para este projeto substitui o apoio familiar.
De caráter eminentemente sociológico a ênfase na dimensão das interações sociais-, este
trabalho em muito se enriqueceria caso houvesse maior preocupação comparativa. Em
primeiro lugar, relacionando individualismo com seu oposto complementar, holismo. O
individualismo enquanto ideologia da sociedade moderna pode atuar como horizonte muitas
137
vezes almejado, mas nem sempre conquistado, por diversas circunstâncias encompassadoras,
o que se verificaria pela análise do sistema de comportamento, o somente como atitudes,
mas também como valores. Em segundo lugar, a comparação com outras sociedades
ocidentais o protegeria da freqüente referência às representações de setores das camadas
dias letradas e cultivadas na Fraa como a” representação ocidental da modernidade, o
que nos causa certo estranhamento, aqui na América Latina, já acostumados à convivência
visível de formas outras, particulares, do processo de modernização.
Se esta pode ser considerada uma tendência de considerável expressão num país
europeu, como a França, ou mesmo na América do Norte, que relativizá-la, na medida em
que nos deslocamos para regiões não tão centrais da sociedade industrial contemporânea,
como, por exemplo, a América Latina.
Lommitz e Perez-Lizaur (1987) nos apresentam uma interessante leitura
antropológica da trajetória de um grupo familiar da elite mexicana durante 160 anos. Ao
analisar o sistema simbólico que orienta a família Gomes, as autoras destacam o contraste
deste sistema de parentesco em questão com o que se apresenta mais freqüentemente, tanto na
América do Norte, como na Inglaterra. No caso mexicano, observa-se que a unidade básica de
solidariedade é o grupo trigeracional (avós-filhos-netos) ou “grandfamily”, onde o laço
consangüíneo prevalece sobre o laço da afinidade; a descendência direta tem prioridade sobre
a descendência lateral. Um ambiente de proximidade social e emocional, uma vez que, se
cultiva a convivência familiar. Por outro lado, o sistema de parentesco norte-americano funda-
se no grupo bigeracional (pais e filhos). Na medida em que os filhos se casam, formam novos
grupos e se distanciam do grupo original. Neste sentido, o laço de afinidade prevalece sobre o
de consangüinidade; sendo que cada indivíduo é membro de uma família por vez. Na tradição
ocidental, em princípio, toda uma questão do desbastamento dos colaterais; o apagamento
dos colaterais é essencial para a preservação da idéia de uma ascendência ego-centrada, em
138
sintonia com as ideologias individualistas. Ainda admitimos, em geral, os primeiros
colaterais, os tios, os primos, mas tendemos a “esquecer” os colaterais mais distantes. Nesta
família mexicana específica, em função desta ideologia corporativa, ( o que nos lembra os
estudos de parentesco ingleses na África) que ela vai cultivando, surge a iia do grupo de
parentes como uma comunhão. A “família” neste sentido funciona como uma pessoa jurídica
informal; ela emprega, apadrinha, conduz, segrega, produz atos socialmente legítimos e,
portanto é uma pessoa, jurídica. A acumulação de certo capital econômico e social garante a
continuidade da convivência entre diversos ramos familiares, gerenciando recursos que
permanecem à disposição comum.
A situação brasileira apresenta semelhanças com a América Latina, demonstrando-nos, a
princípio pontos diferenciais em relação ao mundo europeu e norte-americano.
O processo histórico de formação da sociedade brasileira está, de acordo com Gilberto
Freyre (1973, 1968), profundamente marcado pelo passado histórico de seu colonizador
português, assim como pelas condições sob as quais ele aqui se instalou A localização
geográfica de Portugal contribuindo para sua definição como zona de passagem, trânsito e
migração permanente. Neste quadro das “influências” de se destacar a importância da
casa ibérica” na formação desta nova cultura: ambiente de família extensa, hierárquica,
apresentando a distinção tida de papéis. O paradigma cultural ibero-americano vai definir,
neste sentido, a construção social das formas de família, da sociabilidade e da noção de
indivíduo. A família patriarcal, “cristocêntrica”, foi a unidade civilizadora das terras
brasileiras, servindo de base para uma expansão que o Estado português fez sancionar. O
ambiente do Sobrado já é urbano, representando uma nova fase de inserção do Brasil no
capitalismo mundial. A ascenção do bacharel representa o declínio do poder do pater
familias”, assim como a perda da autoridade dos velhos. Na tentativa de ordenação da vida
social, surgem outras formas de autoridade: o médico, o chefe de pocia, o juiz, o diretor de
139
colégio. Instaura-se um novo sistema de normas, balizado pela questão da ordem blica e da
higiene, processo este semelhante às transformões mencionadas por Donzelot (op.cit.) na
sociedade francesa.
A vigência desta nova ordem social e jurídica na sociedade brasileira torna possível,
através da atividade urbana, seja no comércio, nas fábricas ou no serviço público, a ascensão
social. Representa também a consolidação de uma sociedade mestiça e variada. A
instauração aqui de um poder suprapatriarcal - Bispo, Regente, Rei, Imperador é
acompanhado pelo desenvolvimento de uma ideologia individualista, agindo através da lógica
impessoal da cidadania: o universo dos profissionais liberais e suas carreiras, que acarretam o
conflito marcante entre o projeto familiar e os projetos individuais.
Gilberto Freyre reconhece a família patriarcal e tutelar como uma das grandes forças
de constituição da sociedade brasileira, na medida em que ocupa papel de destaque na
disseminação de valores. Para o autor, o personalismo brasileiro, assim como o nepotismo,
ancora-se nesta formação patriarcal e cristã. Nossa formação é acompanhada pela
predominância de figuras senhoris e superiores; a ordem, no entanto, não é absoluta, havendo
inversões e confusões de superioridades. Muitas das atividades no mundo da rua estão
embebidas pelo u familiar de predomínio de relações pessoais.
Há, contudo que se relativizar a exclusividade do modelo patriarcal gilbertiano na
hisria brasileira, não nos esquecendo da diversidade de arranjos e modelos em toda história
colonial e moderna. Trabalhos como o de Correa (1982) resgatam a presença constante das
uniões “livres”, ou concubinagem, assim como as famílias monoparentais na época colonial e
entre as classes populares nos séculos XIX e XX.
Autores como Antonio Cândido (1951) e R.Da Matta (1985, 1987) discutem as
conseqüências deste contexto histórico que permeiam a sociedade brasileira contemporânea.
De forma semelhante ao exemplo mexicano da família mez, a família brasileira assumiu
140
no decorrer da história a forma de grupo corporado, de pessoa jurídica, constituindo a ponte
entre o mundo público e privado, evidenciando a circularidade existente na sociedade
brasileira entre a vida burocrática (constitucional) e as relações de amizade, compadrio e
parentesco. Da Matta entende que o valor da família como prestígio se estende por toda a
sociedade e que todas as variações de modelos familiares continuam tomando o modelo
clássico como referencial: o valor da família associa-se ao valor da “casa”, polaridade do
princípio ordernador da cultura brasileira que se opõe ao mundo da rua, mundo da
universalidade de direitos e da impessoalidade.
Abreu Filho (1982 ) apresenta-nos ilustrativo relato etnográfico das categorias nativas
de família de Araxá , que tanto evidencia a preeminência clássica da cosmologia ocidental da
consangüinidade sobre a afinidade, quanto sinaliza as particularidades simbólicas da realidade
social brasileira. Subjaz às nossas representações de parentesco a noção de
consubstancialidade, o ato de compartilhar que não se reduz somente ao “sangue como
substância, mas amplia à noção da partilha moral, ou seja , o sangue como valor de
qualidades morais. As categorias nativas de raça” e “nome”” m revelar o papel da família
como sistema de avaliação, enquanto “luta”manifesta o trabalho permanente da honra
individual na manutenção da ordem.Tais categorias manifestam a densidade das expectativas
vivenciadas por estes grupos familiares , habitantes de uma pequena e tradicional cidade do
interior mineiro, no cumprimento das prestações.
As décadas de 70 e 80 do século passado são particularmente ricas em estudos sobre
família e parentesco em nossa sociedade, procurando refletir sobre a modernização que se
acelera. O quadro social brasileiro se define na situação s-milagre econômico com
transformações significativas: um país que inverte a concentração da população entre meio
rural e urbano em duas décadas provocando o inchaço das grandes cidades, o crescimento das
camadas médias, a acesso de setores populacionais ao curso superior, o boom da psicanálise.
141
Sob clima epistemológico específico, inspirado nas reflexões pioneiras da Escola de Chicago,
autores como Costa ( 1988), Lins de Barros (1985), Salem( 1987) Velho ( 1981, 1986, 2001),
juntamente com Figueira (1987) vêm refletir sobre esta modernização intensa que atinge a
nossa sociedade e que o é linear, gerando mudança e permanência de padrões sócio-
culturais, configurações específicas em relação a valores tradicionais, atingindo de forma
diversa diferentes setores sociais.
Ao analisar famílias de camadas médias urbanas na perspectiva dos avós, Lins de
Barros (1985) vem contribuir para reflexão sobre a família na sociedade brasileira. Os avós
como testemunhas, espectadores, críticos e atores do processo de modernização e urbanização
de nossa sociedade. O nascimento do primeiro filho inaugura uma nova fase familiar com a
redistribuição de papéis no grupo, ocorrendo, em geral, o deslocamento do poder familiar
para os pais; os avós vão perdendo a autoridade que tinham perante seus descendentes,
cabendo-lhes o cultivo do afeto aos netos. Figuras expressivas do pacto familiar, os avós
representariam uma “dobradiça”, um elo, entre o passado e o futuro, entre o tradicional e o
moderno.
Intimamente relacionada às transformações sociais “externas”, Figueira (1987)se
propõe à reflexão da mudança social no donio da subjetividade; preocupando-se com esta
dimensão sociologicamente invisível como o imaginário, as emoções , a fantasia, o desejo
deste sujeito que é, sim, agente socializado, mas dotado de subjetividade. O processo singular
de modernização da sociedade brasileira, caracterizando principalmente pela grande
velocidade com que ocorre, gera a coexistência de antigos e novo ideais identitários, onde o
arcaico e o moderno passam a conviver. Figueira procura demonstrar os diferentes regimes
desta convivência, que se tornam tidos no campo familiar. A difusão da psicanálise ou
psicologismo tem papel ltiplo e crucial de orientação pessoal de agentes que vivenciam
esta modernização acelerada, contribuindo com a busca do ideal igualitário de família: a
142
equalização dos papéis, a consolidação das identidades idisossincráticas, a legitimação do
indivíduo com direito ao prazer e a igualdade. São transformações que muito se assemelham
às modificações apontadas por De Singly na sociedade francesa. Contudo, a família
“modernizada”, ou que persegue este ideal revela-se muitas vezes exitante e ambígua. Este é
um ambiente propício à coexistência de mapas contraditórios, e à ocorrência de um fenômeno
denominado por Figueira (1987) de “modernização reativa”: a operação de regras que
valorizam a tradição, o imaginário moral dicotômico, com conteúdo modernizante. A
incompatibilidade entre a velocidade da modernização e a inércia da subjetividade faz com
que a modernização reativa seja a única forma do sujeito conseguir ser moderno. Para
Figueira, não transição tida entre a tradicional e o moderno, não ruptura, e sim uma
tensão, não somente nas instituições, mas principalmente dentro do sujeito. Dilemas entre
mudar ou permanecer (Velho, 1981), em ser dependente ou autônomo, em pertencer ao
“mundo da aquisição” ou ao “mundo da atribuição”. Um conflito incorporado pelas
referências ao “sangue” nos termos de Abreu Filho (1987) e ao “nome de família”; e à
luta”, que representa o momento em que o indivíduo se singulariza e passa a administrar a sua
trajetória.
Se por um lado observa-se que fatores promotores da crescente impessoalidade da
vida metropolitana como a divisão social do trabalho, a industrialização, o crescimento
demográfico e novos padrões de sociabilidade contribuem de forma significativa para a perda
da importância dos laços primários, por outro, deve-se ressaltar que a diminuição do convívio
familiar não leva necessariamente ao esvaziamento afetivo e simbólico das relações de
parentesco. Antes que anulada, o que ocorre é o redimensionamento desta instituição; o
parentesco perde seu caráter englobador diante da nuclearização e dos projetos individuais.
Com a noção de projeto,Velho (op.cit.) procura enfatizar a noção de trajetórias, do indivíduo
que é percebido como potencial sujeito de sua existência, tendo na construção e
143
desenvolvimento de projetos a possibilidade de realização de sua vida. A sociedade complexa
e industrial atua como multiplicadora, ao mesmo tempo em que resultado, da proliferação de
mundos e donios sócio-culturais, onde a família e parentesco se tornam um destes
domínios, uma das alternativas possíveis de ancoragem da identidade pessoal dentre outras
como o trabalho, a política, a religião , a amizade etc.
A interpretação de que um modelo cultural relacional e hierárquico de sociabilidade
se instituiu na sociedade brasileira dos tempos coloniais e que convive no presente momento
com ethos igualitário e individualista tem se feito presente nas análises antropológicas sobre a
família brasileira contemporânea. Podemos observar aspectos holistas e relacionais nas
concepções de família, dominantes tanto entre as classes trabalhadoras - onde a família atua
como produtora de pessoas relacionais, se constituindo “unidade de identidade mínimanesse
espaço social quanto entre as elites, subordinada freqüentemente à dimensão da
corporatividade” e de “solidariedade de linhagem” (Duarte, 1995). Por outro lado, como
tem demonstrado Velho ( 1981, 1986, 1987, 2001) a ideologia individualista assume papel
preponderante entre as camadas dias, particularmente entre setores intelectuais,
psicologizados, portadores de recursos materiais e simbólicos que permitem que sua
identidade dependa menos da família e da rede de parentesco como grupo de referência
exclusivo.
A família brasileira vive dilemas comuns à nossa própria sociedade,
caracteristicamente constituída por grandes contrastes. Estes modos diferenciados em que a
família aparece como valor, entre classes altas, médias e populares são o testemunho de
transformações de nossa sociedade, capitalista e periférica, que como outros países, foram
expostos a um processo de modernização radical sem a capacidade institucional de oferecer
mecanismos de integração através do mercado, se conservando desigual, com fraca
experiência dos direitos da cidadania igualitária e individual.
144
Universal enquanto instituinte do vínculo social, a família vivencia reformulações
advindas de combinações variadas entre individualismo e hierarquia, tornando-se seu desafio,
na sociedade urbana contemporânea, viabilizar a construção de sujeitos individualizados em
seus diferentes matizes(Duarte, op.cit.). Mas que, de uma forma ou outra, vão enfrentar a
tarefa de conciliação entre estas polaridades: ora como o dilema entre a independência e o
respeito; ora entre a autonomia e a integração; ora entre o compromisso com a singularidade
e a identidade coletiva.
145
Capítulo 4
A experiência local: estilos relacionais e alimentares em três
diferentes contextos
4.1. Delimitando o território
Esta pesquisa se insere no campo dos estudos de antropologia urbana, que buscam
investigar a construção dos mapas sócio-culturais do Rio de Janeiro. Tem como proposta dois
eixos básicos de investigação, a experiência familiar e o processo culinário; como são
praticados”, vivenciados e representados no contexto urbano, e numa população específica
dentro deste universo, os representantes das camadas médias urbanas.
O foco desta pesquisa seria, então, família, rede social e hábitos alimentares. Em outras
palavras, pretendo investigar as redes sociais permeadas pelo grupo familiar, constituindo
fronteiras simbólicas em relação a outras identidades sociais. Procuro estabelecer relações entre
as visões de mundo, estilos de vida partilhados por este grupo e suas práticas/representações
alimentares. As preferências no hábito alimentar chegam a participar daquilo que Gans (1974)
define como taste cultures? Elas acompanham as diferenças nos discursos, no modo de pensar,
estilos de vida a ponto de demarcar fronteiras entre grupos de ethos
3
distintos?
Como estratégia de investigação deste universo foram selecionados três núcleos
familiares distintos, que residem em diferentes regiões da cidade. Cada grupo é constituído por
um grupo familiar nuclear, os serviçais envolvidos, e a rede de parentesco e de amigos mais
presentes, ou significativos, deste ambiente. A escolha por estes três grupos justifica-se pelo
3
Ethos: “The moral (and aesthetic) aspects of a given culture, the evaluative elements...” (Geertz, 1973: 126)
146
fato de se apresentarem como formas diferenciadas de inserção no espaço (urbano) e no tempo
(biográfico).
Minha preocupação em selecionar residentes em diferentes bairros, reconhecidamente
habitados por camadas médias visa resgatar as reflexões sobre o processo de organização
social do espaço urbano. O estudo das áreas urbanas pode-nos revelar como os diferentes
segmentos sociais usam” a cidade, a divisão interna dos ambientes urbanos e suas
especificidades; a cidade é descontínua em seu espaço, tanto geográfica como simbolicamente.
Interessa-me também verificar a elaboração dos mapas urbanos, como as pessoas navegam e
quais são suas trilhas. Conforme Velho (1973), as divisões geográficas da cidade do Rio de
Janeiro são acompanhadas por descontinuidades simbólicas e distâncias sociais, verificando-se
uma hierarquia disseminada de bairros, como a diferença entre Zona Sul, Zona Norte e
Subúrbio. A distribuição espacial pode vir a ser fundamental para definir o status dos
indivíduos, atribuindo-lhes mais ou menos privilégios e oportunidades de acesso a padrões de
consumo. Os mapas urbanos revelam-nos como as pessoas navegam na cidade, tornando o
espaço potencialmente criador de identidade. A cidade moderna e contemporânea está sempre
mudando, se transformando e junto com ela, a mobilidade espacial; trilhas e caminhos sendo
reinventados e reconstruídos.
O primeiro grupo é residente no Grajaú, na Zona Norte, cerca de 9 anos, num
apartamento de três quartos. Elisa tem pouco mais de 30 anos, é técnica administrativa do
Tribunal de Justiça vindo a morar no Rio após o casamento. Sua família é de uma pequena
cidade (aproximadamente 12 mil habitantes) no norte do Estado do Rio na divisa com o
Espírito Santo, que tem aqui o nome fictício de “Monte Belo”. Casou-se com Bernardo que,
apesar de ser carioca da Glória, sempre manteve laços de parentesco e amizade nesta mesma
cidade. Bernardo tem a mesma idade de sua esposa. Trabalha na Tijuca, dirigindo a firma de
contabilidade do tio e padrinho. Eles têm um casal de filhos, atualmente com 9 e 3 anos, cujos
147
cuidados absorvem bastante a vida dos pais. Por isto, definem-se como um casal de poucos
amigos”, apesar de fazerem parte de uma complexa rede de amigos e parentes que possuem
vínculos com a cidade natal de Elisa e que residem no Rio.
O segundo grupo reside num dos muitos condomínios horizontais da região de
Freguesia, em Jacarepaguá, na Zona Oeste. Sandra tem 52 anos, separada há aproximadamente
oito anos, mora com suas três filhas. Sandra é geógrafa, tendo lecionando durante algum tempo
no ensino médio. Atualmente ocupa um cargo potico, como assessora do diretor de um
poderoso conselho de classe do Rio de Janeiro. Descendente de imigrantes – o pai, espanhol e a
e, filha de portugueses -, Sandra nasceu em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, onde vive
até hoje sua mãe. Casou-se jovem. O marido, engenheiro, assiste uma ascensão rápida, o que
possibilitou ao casal o acesso a este estilo de moradia, uma casa ampla e confortável, onde
mora há 18 anos.
O terceiro grupo são moradores do Leblon, na Zona Sul, há mais de 30 anos. Trata-se de
um casal da terceira idade, com 50 anos de vida conjugal, cujos 5 filhos já estão na idade
adulta. Todos se encontram, no momento, casados; dois com filhos adolescentes e jovens e
três sem filhos. Walter é juiz aposentado. Apesar de bacharel em Direito, Celina nunca exerceu
a profissão, por conta dos cuidados com a família. Todavia, não abandonou os livros nem o
interesse em estar constantemente atualizada.
Apesar de considerá-los, estes três grupos familiares, de forma genérica, como
representantes das camadas médias, podemos identificar tanto semelhanças quanto diferenças
em seu estilo de vida. Três diferentes formas de inserção social e de ocupação do espaço
urbano; o que nos levaria à liberdade de indagar, “à qual Rio vocês pertencem?”. Em termos de
temporalidade, representam etapas diferentes no ciclo de desenvolvimento do grupo familiar.
São núcleos de três diferentes gerações, com filhos em fases distintas de crescimento e
independência, o que acredito, influenciam de forma decisiva as percepções de si e do mundo.
148
A escolha destes três núcleos se deu de forma aleatória, não intencional, através de
breves contatos com amigos. Como pesquisadora, tinha interesse em conhecer famílias de
outras regiões da cidade do Rio de Janeiro, além da Zona Sul; contudo, estes bairros em
especial não foram escolhidos, se apresentaram em meu caminho. Após a sondagem com estes
grupos, através de amigos em comum, da possibilidade de participarem desta pesquisa, fiz o
primeiro contato, apresentando minhas intenções, assim como a forma com que planejava
conduzir a investigação. Em virtude da delicadeza da situação - na verdade eu estava me
convidando a partilhar de certa intimidade com estes grupos - procurei estabelecer um período
extenso de investigação, de forma a atenuar a intensidade de minha presença. Assim permaneci
durante 26 meses freqüentando suas residências de forma regular, como convidada.
A primeira fase caracterizou-se basicamente pela observação e por conversas informais,
onde procurei delinear, ainda que de forma exploratória, o grupo e suas redes de relações.
Participei de compras de abastecimento mensal (ou semanal) de suas residências, refeições
solenes ou informais, reuniões de amigos e algumas celebrações, tendo o cuidado de registrar
as impressões. Todas minhas visitas eram negociadas anteriormente por telefone. Algumas
vezes, durante tais visitas, ficava sabendo de algum evento coletivo familiar, e pedia, então,
permissão para participar; outras vezes, por saberem de meu interesse, eles próprios me
convidavam. Após adquirirmos eu e eles certa familiaridade com os contatos, investi na
realização de entrevistas não-estruturadas, versando sobre temas diversos como a memória, as
trajetórias de vida, os projetos, família e parentesco, amigos, a culinária, as refeições, as
receitas, o espaço da cozinha, as preferências, as ocasiões especiais. Posteriormente solicitei o
registro do cardápio da refeição principal durante quinze dias.
Apesar de procurar estabelecer um diálogo difuso com aqueles que se mostravam
disponíveis à minha presença, tive como interlocutor primário, nos três grupos, as mulheres, o
que certamente contribuirá para o delineamento de certa perspectiva da realidade, socialmente
149
inserida. Apoiando-se na confirmação de que cada indivíduo participa diferentemente de sua
cultura, tenho consciência de que ser mulher, ser a esposa e/ou a mãe ou avó implica em
diferentes mundos e audiências, fato do qual, nem eu, enquanto pesquisadora, acredito poder
escapar.
A escolha do caminho percorrido durante a investigação certamente o foi
completamente aleatória. Encontra-se ancorada nas reflexões sobre pesquisa qualitativa (cf.
Becker, 1994, 1996), que se interessa pela singularidade dos processos sociais, priorizando
assim a experiência concreta e particular. A sensibilidade pelo caso individual procura
identificar certa normalidade - no sentido de padronização, à qual indivíduos que vivem em
situações sociais semelhantes podem estar sujeitos - sem, contudo, reduzir sua singularidade,
sua especificidade complexa, sua circunstância. Antes que tipos e conceitos abstratos, o que
tocamos na dimensão dos pequenos detalhes da vida vivida são ações coletivas coordenadas,
enfatizando-se assim a confirmação de que a produção social sempre será, num certo sentido,
local.
“A sabedoria vem de um monte de formigas”. Geertz (2002: 249) se inspira neste
provérbio africano para descrever o exercício etnográfico como a tarefa artesanal de se
identificar princípios gerais em fatos paroquiais. Reconhecidamente, este exercício tem se
definido como um dos pilares de sustentação da pesquisa antropológica desde Boas e
Malinowski; antropólogos estes que, muito mais que um todo, forjaram uma atitude, a de
viver, sentir, ouvir e falar com o “outro”. Não por que a diferença em relação a este outro se
tornaria superada, mas, ao menos, melhor compreendida. Baseando-se nos conceitos do
psicanalista Heinz Kohut (Geertz, op.cit.:.87) de “experiência-próxima e “experiência
distante”, Geertz destaca o papel de mediação exercido pelo antropólogo entre dois mundos,
que não deixa de se traduzir em dois níveis de experiência, a experiência-próxima e a
experiência-distante. Os “conceitos” de experiência-próxima são expressões, definições,
150
nominações utilizadas pelo “nativo” e seus semelhantes espontaneamente para definir aquilo
que vêem, sentem, pensam, imaginam e que eles próprios entenderiam facilmente se outros os
utilizassem da mesma forma. Os “conceitos” de experiência-distante, por sua vez, seriam
definições acadêmicas, caracterizadas por uma abstração específica ao mundo da ciência, cujo
saber o antropólogo detém. Ao antropólogo caberia, a seu ver, captar conceitos que para outras
pessoas são de experiência–próxima e fazer conexões com os conceitos de “experiência-
distante”, criados por teóricos para traduzir os elementos mais gerias da vida social, de forma
que nem a interpretação fique limitada pelos horizontes significantes do grupo pesquisado, nem
permaneça “surda às tonalidades de sua exisncia”.
É no sentido de se tentar escapar desta surdez excessivamente abstrata que se exercita a
sensibilidade para o caso particular. A ênfase no cotidiano torna-se uma estratégia de grande
eficácia para se reconhecer valores compartilhados que tornam as ações sociais possíveis. Além
disto, certo desconforto na experiência do cotidiano fundamentalmente esclarecedor para o
pesquisador, na medida em que os atores são observados “em cena”, ou seja, quando (quase)
todos os constrangimentos de sua situação ordinária operam. Eles não estão isolados das
conseqüências de suas ações, o que torna este exercício particularmente rico. É por este motivo
que Becker (1996) sugere que, além de densa, (Geertz, 1973) - ou seja, uma descrição da
realidade social que contenha os significados que os indivíduos conferem à suas ações - uma
descrição deve ter abrangência analítica, procurando o pesquisador observar, assim como
conjeturar encadeamentos possíveis nas diferentes situações com que se depara, mesmo que
sejam fatos tangenciais.
Certamente partilhar com estas pessoas de sua intimidade familiar foi um processo no
qual, não tive que superar uma série de receios e limites pessoais, como também passar por
diferentes estágios de aceitação. Para além da necessidade de se desenvolver a habilidade para
analisar seus modos de expressão, o desafio primeiro do pesquisador é conseguir com que as
151
pessoas tolerem nossa intrusão em suas vidas. Apesar de a Antropologia ter-se legitimado, na
hisria de sua constituição, através da necessidade do “cultural shock” (ou a possibilidade do
estranhamento no sentido conotativo), acredito que um dos meios de conquista da
familiaridade com estes grupos foi que estes reconheciam, por diferentes razões, em mim, certa
proximidade social com aquele mundo. Posso definir como constante o empenho, em todo este
tempo de contato, em tentar diminuir a violência simbólica exercida através de minha
presença. A este desnível das relações entre pesquisador-pesquisado muito se tem refletido,
pois de certa forma, implica numa inmoda relação de poder, muito bem definida por Viveiros
de Castro (1998) ao afirmar que, se o antropólogo usa necessariamente sua cultura, o nativo é
suficientemente usado pela sua; ou seja, na relão clássica entre o antropólogo e o nativo, o
primeiro é aquele que detém as razões que a razão do nativo desconhece...
O fato é que após este contato intermediado por terceiros, houve o contato por telefone,
explicando o objetivo de minha pesquisa, o que foi novamente exposto na primeira visita; não
objetivos minimamente detalhados, mas descritos de forma genérica. No caso das práticas e
representações envolvidas nos hábitos alimentares, tive o cuidado de ser difusa o bastante para
que minha curiosidade não suscitasse posturas excessivamente ideais, nem que se sentissem
“vigiados” nesta relação tão íntima consigo próprio, permeada que é pelas angústias
contemporâneas. Tornei-me uma visita nem tão freqüente para favorecer a saturação, nem tão
distante para ser esquecida; ou perder o fio da meada, pois dentro da informalidade deste
primeiro momento, as conversas eram constantemente resgatadas, os fatos a acontecer, e
posteriormente acontecidos, comentados. Becker (1990: 17) faz interessante menção à
estratégia de investigação que aprendeu com Lloyd Warner que me foi de grande aplicação:
Quando estiver para acontecer um evento importante no lugar
que você está estudando, primeiro pergunte a todos o que vai
152
acontecer. Então, observe o que aconteceu. Depois pergunte às
pessoas o que aconteceu.
Obviamente, não estive presente em todos os eventos que eram comentados, mas em
muitas situações, como festas e reuniões, foi possível participar do ciclo da temporalidade
antes/durante/depois. Outras vezes tive acesso ao acontecimento antes/depois, o que não
deixou de ser proveitoso para me aproximar do universo dos valores compartilhados destes
grupos, alicerces que são de um mundo social previsível, que torna possível as ações nele
inseridas.
As entrevistas foram ocorrendo ao longo de todo o período; tive o cuidado de esparsa-
las ao longo do tempo, de forma a o exigir excesso de disponibilidade. Pode-se classificá-las
como entrevistas “semi-estruturadas”; não completamente formais, mas uma situação em que
se que exigia um pouco mais de formalidade do que de um simples diálogo, pois dependia da
atenção concentrada da pessoa entrevistada, em torno de assuntos vários e com a presença do
gravador. Constituíam de um conjunto de questões norteadoras, mas em um contexto
semelhante ao de uma conversa informal, tendo eu a possibilidade de dirigir a discussão, ajudar
a recompor o contexto, caso o assunto se desviasse por demais, assim como fazer perguntas
adicionais. Quanto maior a interação, maior a troca afetiva; e mais espontâneas foram as
respostas.
Pode-se dizer que ninguém sai incólume de uma entrevista, pois o discurso, além do
exercício da auto-apresentação de si, torna-se, numa certa dimensão, oportunidade de auto-
análise. Das diferentes identidades que emergem numa entrevista, muitas são inesperadas,
tanto para o entrevistador, quanto para o entrevistado. Ao pesquisador cabe a habilidade em
conviver com sentimentos, afetos pessoais, fragilidades, e ao mesmo tempo procurar
reconhecer as estruturas invisíveis que organizam o discurso. Antes de tudo, a entrevista é um
exercício empático. É preciso deixar que as pessoas se livrem de sua verdade, possam
153
confirmá-la na retórica. Muitas vezes, porém, as palavras podem revelar o imprevisto, o papel
do acaso, e o narrador se surpreender ao reviver experiências. Assim também é preciso deixar
que determinem “o fim da hisria”, ou até onde se pretende partilhar experiências; nem tudo
que me despertou interesse e curiosidade pude conhecer satisfatoriamente.
4.2.Vivendo e relacionando na Zona Norte: a família Soares
Quando cheguei à Igreja São Francisco no entardecer daquele bado de junho, ela
estava cheia. Cerca de 100 pessoas, velhos, adultos e crianças aguardavam a solenidade. Os
músicos no altar, as flores de cor clara espalhadas pela nave. Ao som da música clássica
tocada ao violino entra D. Amália, passos medidos, um misto de simpatia e concentração de
quem está sendo o alvo de todas as atenções. Logo atrás, os cinco filhos. A missa em ação de
graças aos seus 90 anos foi cuidadosamente planejada, a seqüência de músicas, as fotografias,
as palavras do padre, a entrada triunfal, e em certo momento da liturgia, o casal de bisnetos
com um buquê de flores. Os convidados acompanham as emoções de D. Amália, expressando
ao final uma calorosa salva de palmas. Elisa e Bernardo assistem a missa praticamente em pé.
Situados à frente, mas numa posição lateral, discreta, se revezam na tarefa de segurar
Carolina ao colo. Na altura de seus dois anos, Carolina não quer ficar sentada, nem parada.
Quer explorar o espaço amplo, e por isto protesta, em alto tom, quando impedida. Os pais,
então, se conformam a segurá-la, o perdendo de todo a proximidade com Tiago, que
permanece sentado em silêncio, observando a bisavó no altar.
Ao final da cerimônia me junto à Elisa e Bernardo para irmos à recepção. De saída
me sinto um pouco intrusa; o carro vai lotado, pois além destes, as crianças e eu, se agrega
154
um casal de Belo Horizonte. Primos distantes de Bernardo, vieram cumprimentar D. Amália e
reencontrar amigos e parentes. Mas vocês moraram aqui no Rio?”, pergunto. “Não,
somos todos da mesma cidade”. Os comentários que surgiram, então, diziam respeito à
missa; a prima de Belo Horizonte não gostou do padre, opinião esta que Elisa endossou:
“Achei o padre muito fraquinho”. “Fraquinho como?”, pergunto eu. A prima não soube me
explicar direito. A conversa muda de rumo, mas retorno, agora à Elisa, com esta categoria
nativa que não conseguia entender. “Muito desanimado”, ela me responde. tempos depois
é que fui compreender completamente o sentido da crítica ao padre. Bernardo e Elisa são
católicos, participantes do movimento de Renovação Carismática, movimento este que,
dentre outras transformações, se propõe a inserir no rito católico da missa uma atitude mais
vibrante, com músicas animadas, palmas e movimento corporal.
A festa acontecia no salão de festas do prédio onde Elisa e Bernardo moram. Trata-se
de um edifício de 13 andares, cerca de 50 apartamentos, com playground e piscina. D.
Amália morava na cobertura com sua única filha mulher, Heloisa e seu genro, Arnaldo. A
filha de Heloísa, junto com marido e filho, mora no andar abaixo. Foi Arnaldo, um
empresário bem sucedido, dono de uma firma de contabilidade na Tijuca, que “patrocinou” a
vinda de Elisa e Bernardo para o prédio. Arnaldo é padrinho de Bernardo, que praticamente
dirige sozinho, hoje, sua firma. Reconhecido em seu grupo como um homem generoso, não
mediu esforços para trazer seu afilhado para perto, chegando a emprestar dinheiro ao casal
para que fosse possível a compra do imóvel. Elisa afirma que morar ali, em comparação com
sua experiência anterior num apartamento na Tijuca “é outra coisa”. Ante a minha solicitação
para definir melhor sua expressão, diz que era muito infeliz na Tijuca, que “não conhecia,
nem cumprimentava seus próprios vizinhos”. Neste prédio do Grajaú, observo que, além dos
familiares, mantém relações amistosas com vizinhos, a ponto de se encontrar com uma delas
155
no elevador, certo dia, e comentar que havia comido uma de suas tortas (a vizinha vendia
doces informalmente entre os amigos) na casa de um terceiro.
O salão de festas estava cheio, repleto de mesinhas redondas com quatro cadeiras,
forradas com tecido acetinado, pequenos arranjos florais. Apesar de o faltar lugares, as
pessoas não paravam de circular, saíam de seus lugares, sentavam em outras mesas,
conversavam em pé. A festa ocorreu em ritmo animado, com D. Amália recebendo
cumprimentos continuamente; às mais conhecidas perguntava em tom de intimidade se,
afinal, haviam gostado da cor de seu vestido. D. Amália portava um vestido de tecido fino,
em tom de vermelho próximo ao vinho, e guardou, durante os preparativos da festa, o
segredo de sua cor para todos. Ao que parece, usar vermelho naquela idade tinha um ar de
transgressão, ao que todos comentavam com Elisa e a mãe de Bernardo quando se
aproximavam de nossa mesa: “o que é que tem?”. Na altura de seus 90 anos, D. Amália
ainda descobria novas possibilidades (sociais) de ser
4
.
A festa desenvolveu de forma alegre, com crianças correndo entre as mesas, cobrindo
praticamente todas as gerações: das mães com mamadeiras e papinhas trazidas de casa, às
bengalas. Uma alta rotatividade de salgadinhos, coxinhas, empadas, cigarretes, folheados,
queijos, crepes, pizzas, casquinha de siri, empanados de peixe. Das bebidas diferenciadas,
bebidas infantis, bebidas de adultos -, iniciou-se pela “batida” e pelos refrigerantes, para
depois serem servidos cerveja e uísque. Além dos salgados oferecidos pelo garçom nas
mesas, cerca de dez tipos diferentes de tortas se distribuíam entre as mesas laterais, servidas
por um funcionário, tortas frias, coloridas, salgadas, patês, salmão defumado, camarão,
camarão com catupiry, foie gras. Na mesa principal, o bolo, peça fundamental da festa de
aniversário. Rodeado de bombons diversos, confeitos e biscoitos de chocolates, o bolo
branco, com a cobertura firme e definida do marzipan, em forma de coração. Antes do
4
Em relação à velhice na sociedade contemporânea, e particularmente no que toca ao gênero feminino, vale
destacar Lins de Barros, 1998.
156
Parabéns”, frente ao cenário florido da mesa principal, novamente os filhos em torno de D.
Amália, pausa para os retratos. D. Amália com os 5 filhos. D. Amália com os filhos e noras.
D. Amália com os netos e suas esposas. D. Amália com os bisnetos; as crianças choram, se
recusam a ficar paradas. Para mim, uma cena fundamental para conhecer a família: D.
Amália tem, afinal, uma filha, a mais velha, Heloísa, e quatro filhos homens. Os comentários
sobre como D. Amália é uma “mulher de fibra”, que passou por muitas dificuldades são
freqüentes; o filho mais novo, tanto abusou da bebida e das motocicletas que acabou
perdendo a perna; o pai de Bernardo faleceu jovem; dois filhos são separados. Alguns ao
redor, junto com Elisa, expressam a grande admiração que têm por Heloísa, que eficiente
como sempre, organizou tudo, contratou aquele serviço de bufê muito elogiado, e que
também é uma “mulher de fibra”. Heloísa é cia de uma agência de viagens no centro.
Muito dinâmica, está sempre fora, o que o a impediu de cuidar da mãe, nem de passar por
provações”, a filha que se separa do marido e engravida do namorado, o filho que se suicida.
Elisa abaixa o tom de voz para tocar neste assunto, delicado.
No momento solene, todos se juntam em torno do bolo, D. Amália posicionada atrás,
tem então a tarefa de ser o centro do caloroso Parabéns pra vocêe soprar afinal a chama
das velas. Não noventa velas, nem o número 90”, apenas algumas simbolizando os anos. O
bolo então é compartilhado, assim como os inúmeros bombons. O momento do Parabénsé
o marco definido de passagem do salgado para o doce, da entrada da água no cenário das
bandejas, assim como o início do fim da festa. Não se sai de uma festa de aniversário antes do
“Parabéns”. Elisa me explica então que no Rio, as festas de aniversário são diferentes: “as
pessoas comem o bolo, vão embora e a festa termina”.
Cerca de dois meses depois, D. Amália sofre um acidente vascular cerebral e
permanece internada, em estado de coma, por 16 meses. Sua situação tornou-se assunto
freqüente em meus encontros com Elisa, que me relatou a união dos irmãos, por se revezarem
157
durante todo este tempo, para dormir com ela como acompanhante, levando música clássica
para D. Amália escutar, contando-lhe histórias. Não se sabe ao certo se D. Amália percebia-
os, ela não andava, não se alimentava, não falava.
Dizem que a audição é a última a se perder Como tinha um plano
de saúde muito bom, ela ficou num hospital maravilhoso, que
parecia uma casa. Apesar de morar na cobertura junto com a filha,
ela ficaria muito mal acomodada em casa. Os cômodos são
pequenos, não caberiam os aparelhos. Nós, Bernardo eu e as
crianças, íamos sempre visitá-la. Durante o dia outras pessoas
também ajudavam, a nora, a empregada, a prima de seu falecido
marido.”
Poucos meses depois do acidente, o neto de Heloísa comemora junto aos pais seu
primeiro ano. A festa ocorre nos moldes semelhantes ao de D. Amália, o mesmo local, o
mesmo bufê, a mesma profusão de salgados e doces, os convidados amontoando-se entre as
mesas. A decoração com motivos específicos a mesa do bolo tinha cerca de 2 m, tomada
por uma “floresta” que continha cerca de 30 animais de pelúcia e alguns luxos infantis
diferenciavam as duas festas. Havia stands específicos para os picolés, pipocas, cachorro-
quente, um tipo de wafer banhado de chocolate servido no palito alguns dos quais
preparados na hora -, além de pula-pula, piscina de bolinhas, sessão de teatro, palhaço e um
trocador de fraldas de crianças com lenços umedecidos e toalhas descartáveis. Como estranha
neste ninho tão familiar, tive o cuidado especial de escolher um presente para Pedro. Havia
sido apresentada rapidamente à sua mãe durante a festa de D. Amália, contudo, o sendo
convidada, fui com Elisa e sua família. Qual não foi minha surpresa quando, ao invés de
entregar-lhe o presente pessoalmente, com um abraço ou palavras afetivas, fui recepcionada,
como todos os convidados, por uma funcionária da firma que coordenava o evento, que na
158
entrada solicitava os presentes e escrevia numa etiqueta quem era o presenteador, colocando-
os num grande caixote.
A festa definiu-se por um rosário de encontros de velhos amigos e parentes. Cada
pessoa que se sentava à nossa mesa, notícias de Monte Belo, de conhecidos de Monte Belo
que moravam no Rio, das novas gerações que muitos ainda não conheciam. Elisa me chama a
atenção para os parentes do pai do aniversariante, professor numa escola da Tijuca, onde
Carla, filha de Heloísa o conheceu. Visivelmente mais morenos”, de origem mais humilde,
foram, segundo Elisa, acolhidos pela família e pelo generoso tio de Bernardo sem
discriminações.
No momento solene do “Parabéns”, frente a todos reunidos, Carla, abraçada ao
marido e com Pedro ao colo, com a voz cortada pela emoção, faz uma homenagem a sua avó,
reforçando a esperança de que esta voltaria um dia para casa. Cantamos, então, o
Parabéns”. De uma caixa estilizada de cartolina, enfeitada, imitando o formato de um bolo
tradicional, foram distribuídas fatias de bolo, embrulhadas em papel laminado. A esta
altura, por volta das dez da noite Pedro não queria mais nem cantigas e nem palmas, muito
menos soprar a vela especial, chorava com sono. E conforme a observação de Elisa, após
bolo, bombons, doces e água os convidados se retiraram; não de forma completamente
aleatória, mas em ordem de intimidade. Os mais próximos se aquietam em conversas
informais, com pratinhos de doces para levar às mãos, entre a desordem das cadeiras, fazendo
as vezes da dona da festa.
Bernardo e Elisa moram em um apartamento com sacada e três quartos, decorado de
forma calculada, de modo a aproveitar ao máximo o espaço. O casal dorme na suíte e os
irmãos, desde pequenos, em seus respectivos quartos. O quarto de Thiago, por exemplo, am
da cama e armário embutido, possui uma estante, ocupada até o teto com carrinhos e outros
brinquedos mais especiais, além de um computador. O quarto de Carolina segue o mesmo
159
padrão, decorado de acordo com sua idade, em tons róseos. Cozinha e área de serviço são
ambientes contíguos; na cozinha, uma bancada desempenha as funções de uma mesa,
acompanhada de tamboretes, indicando ser aquele um local de lanches rápidos. É uma
cozinha pequena, que traz a sensação de espaço e luminosidade por ser congua a uma
pequena área. O espaço é distribuído entre armários embutidos, fogão, microondas, freezer,
geladeira; esta, coberta de enfeites e um pequeno bloco de notas. É uma casa sem livros, com
exceção dos livros infantis no quarto de Tiago, que não estão expostos, e sim guardados no
armário. Elisa me fala de sua preocupação em estimular desde cedo o hábito de leitura em
seus filhos; até Carolina, de então dois anos, folheia livros de tecido ou plástico, especiais
para sua idade.
O casal procura oferecer aos filhos um tipo de segurança afetiva e material que não
tiveram. Bernardo perdeu o pai aos nove anos, aprendeu cedo a tomar conta da irmã mais
nova para a mãe trabalhar. À época da Páscoa, se fantasiava de coelhinho nos supermercados
para ganhar uns trocados; aos quatorze foi para a firma de contabilidade do tio/padrinho e
o mais saiu, passando a conciliar os estudos e o trabalho até se formar em Administração.
Elisa é a sétima e última filha de um pequeno comerciante, que concilia uma pequena casa de
comércio com um tio em sua cidade. Elisa afirma ser desde criança “pé no chão”, se
conformando com o que os pais lhe podiam dar. Assim, por não ter tido bicicletas, patins ou
“boneca de cabelos”, brincava com os brinquedos da vizinha.
Não saía da casa dela. Toda a noite tinha sopa, feita para seu
pai. Eu tomava todos os dias. Além disso, sua mãe fazia
macarronada e pastel frito aos domingos e eu não perdia a
oportunidade”.
160
Da vida familiar lembra-se da proteção do pai e da irmã mais velha que praticamente
a criou, da mãe distante, ocupada na “venda”.
Sentia que minha mãe não gostava de mim. No Dia das Mães,
quando a professora nos dizia que tínhamos que abraçar nossa mãe
e lhe entregar uma lembrança, eu não sabia como. Não tinha
liberdade para isto”.
A infância de Elisa foi também marcada pela disputa de espaço junto às irs, a
escolha da cama, da gaveta, da hora do banho, a divisão de tarefas domésticas pelas quais
todas tinham que se responsabilizar. Sua irmã mais velha, uma adolescente de 15 anos então,
o quis vê-la quando nasceu, com vergonha da e barriguda. Apesar de crescer assistindo
a mãe cozinhar, matar frango e porco, tanto ela como as irmãs não participavam da
elaboração do alimento. Sua tarefa doméstica era arrumar a cozinha.
Como caçula Elisa me conta que foi “muito pirracenta”, fazendo questão do que hoje
acredita ser detalhes desnecessários, a ponto de sentir a severidade do pai apanhando de
currião”. Lembra-se da empregada saindo com ela para a rua à hora do almoço por causa de
choros e gritarias por querer, por exemplo, comer duas moelas de frango, sendo que, abatido,
o frango preparado só trazia uma. Elisa afirma ter sido muito chata para comer, como seu
filho Tiago. Aos 3 anos encontrou um pedaço de nata no leite que bebia e sentiu repugnância.
Voltou a tomar leite somente na fase adulta, quando este alimento tornou-se prático para se
nutrir rapidamente, no intervalo entre o trabalho e os estudos. Mesmo assim tem “nojo”, até
hoje, de nata. Apenas controla-o. O pão que ganhava no lanche, jogava-o fora, atrás de uma
grande arca que ficava próxima à cozinha - ao se lembrar deste detalhe diz que Tiago não
poderia saber disto... Ficava olhando para o prato, sem vontade de comer, delongando-se na
mesa. A diferença é que ninguém se preocupava com isto em sua casa. Um dia, então, sua
161
irmã mais velha, notando sua dificuldade em comer ensinou-lhe o truque de imaginar,
enquanto almoçava que estaria comendo um saboroso pedaço de pudim... Na casa de sua
madrinha, no sítio, era diferente; comia bem, até mesmo alimentos que recusava em casa, o
que procura explicar dizendo que “adorava estar lá”. A mesma madrinha que ia visitá-la em
seu aniversário, ocasião que o tinha festa, nem bolo, apenas um doce de fruta acompanhado
por queijo em homenagem à convidada. Dos momentos saudosos com as irmãs, destaca as
conversas na mesa da cozinha acompanhadas “com doce de cortar” (goiabada, bananada,
pessegada...) com queijo, além do trabalhoso, mas recompensador, processo de preparação do
doce de figo.
Apesar de muito preocupado com a educação, expressando o desejo dos filhos
completarem os estudos”, seu pai sempre foi muito ausente, e“namorador”.
Sempre foi. Todo mundo sabia, mãe também, mas ele não
assumia. Saía após o almoço para fazer compras em Itaperuna
e voltava tarde. A mãe, coitada, não separou, não tinha
condição. Como ela iria nos criar? Mais tarde, acredito que
ela se acomodou, pois se não havia se separado até então, por
que iria se separar?”.
Do único irmão vivo (perdeu um irmão aos 16 anos de acidente de carro), Elisa fala
como uma pessoa que cresceu revoltada com o pai, que perdeu a auto-estima. Elisa acredita
que a situação atual do iro, de limitação financeira e alcoolismo, é conseqüência de sua
educação:
“... o pai cobrou dele tudo que ele queria que o pai fosse e não
foi. Queria que o filho seguisse a carreira na aeronáutica no
Rio, como um primo seu, enquanto que Jorge escolheu ser
técnico agrícola. Desta forma, não ajudou Jorge a custear os
estudos e manter-se onde estudava.”
162
Filha de pais com pouca instrução - ambos o chegaram à rie do ensino
fundamental - Elisa desenvolveu cedo independência nos estudos. Como professora primária
cursou Letras em uma faculdade particular em Muriaé, fazendo peripécias para conciliar
estudo e trabalho; professora da área rural, precisou se habilitar a viajar à cavalo, motocicleta,
até finalmente comprar um fusquinha para trabalhar. Elisa acredita, hoje, que era uma jovem
acomodada”, pois, apesar de querer estudar Odontologia, acolheu a vontade do pai de não se
afastar de Monte Belo.
A história afetiva de Elisa e Bernardo iniciou-se, segundo Elisa, a partir de uma
situação de traição, quando ela, com nove anos de namoro (namorou este rapaz dos 13 aos 22
anos), “ficou” com Bernardo numa festa de Reveillion, o que foi bastante comentado por todo
Monte Belo. Elisa se diz muito sapeca” na adolescência, apesar da severidade dos pais
quanto à sua educação sexual. Gostava de sair, bebia muita cerveja, comecei a namorar
muito cedo, diferentemente de suas irmãs mais velhas. Foi também na adolesncia que
começou a “se preocupar com sua alimentação”, passando a “comer de tudo”, transformão
esta que Elisa atribui à sua preocupação constante com o excesso de peso. Elisa afirma então
que tem tendência a engordar, o que lhe faz a ter uma postura de constante vigilância.
Bernardo não era tão estranho assim da família de Elisa, passava as férias na casa dos
avós maternos naquela cidade, namorou outras garotas em Monte Belo e chegou até mesmo
namorar uma ir de Elisa. Após dois anos de relacionamento e um ano de noivado
decidiram se casar. Elisa veio então para o Rio acompanhando seu marido. Ganhou um
caderno de receitas de presente de casamento, feito pela ir mais velha, que mantém até
hoje, atualmente engrossado com variados recortes de receitas de revistas e jornais, além de
papéis avulsos com receitas anotadas em punho. Foi aos poucos colocando em prática o que
163
tinha assistido a mãe fazer. Na vida, recorria ao telefonema para Monte Belo. Acredita,
hoje, que sua comida é gostosa.
Os primeiros anos de casamento foram definidos por Elisa como uma fase de difícil
adaptação, apesar de ter conseguido transferência como professora do estado, trabalhando e
morando na Tijuca. Viajava para Monte Belo quase todos os finais de semana: “Eu não
gostava da minha casa. Sentia falta de Monte Belo, me sentia sozinha. Como sempre gostei
de fazer sobremesas, às vezes convidava minhas colegas do trabalho para comermos uma
torta”. Não comprava carne no Rio, achava que tinha um gosto diferente. Contudo, se no
princípio do casamento trazia uma série de produtos alimentícios de sua terra, aos poucos foi
se acostumando com a qualidade dos produtos do Rio.
Do encontro conjugal, a fusão de sabores familiares. Bernardo passou a “comer de
tudo”, diferentemente do que a sogra de Elisa havia lhe precavido, de que seu filho não
gostava de comer verduras. Pergunto à Elisa por que Bernardo mudou de atitude quanto às
suas preferências: “Acho que ele gosta de minha comida”. De sua parte, Elisa voltou a tomar
refrigerantes, bito que havia suspendido na juventude e adotou a Rabanada
5
como prato
oficial e imprescindível nas celebrações de Natal. Diz-me que levou a prática para Monte
Belo e, hoje, todos (familiares) adotaram a referida iguaria. “Passaram a gostar de
Rabanada”. Contudo, mesmo sendo um prato tão saboroso, na opinião de Elisa e familiares,
a rabanada continua exclusiva à época natalina.
Bernardo então, estimulou-a a “fazer um concursopara “melhorar de emprego”, no
que foi bem sucedida. O tio/padrinho de Bernardo acena-lhes então a oportunidade de
comprarem o apartamento no Grajaú.
5
Fatia de pão que se frita depois de embebida em água com açúcar ou com leite e passada em ovos batidos,
polvilhada depois com açúcar. Diz-se que nasceu de restos de pães duros que a maioria jogava fora, daí o nome
francês de “Pains perdu”. Em Portugal, ao que parece, origem deste prato, é conhecida como “Fatias de mulher
parida”, e no Nordeste brasileiro, “Fatias de parida”. (FERREIRA,A.B.H.1988.Dicionário Aurélio Básico da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira)
164
Tiago veio de surpresa, diferentemente de Carolina, que foi uma filha decidida como
desfecho da família, quando finalmente acabaram de pagar pelo imóvel. Da escolha dos
nomes, um acordo tácito, ela escolheu o nome do menino e ele, da caçula. Elisa, a princípio,
o queria ter filhos, não via possibilidade de criar uma família trabalhando fora, numa
cidade estranha. O nascimento do primeiro filho veio então acompanhado por uma forte crise
conjugal quando quase separou”.
“O Bernardo ficou completamente fora de tudo. Tivemos problemas
muito sérios que talvez um dia te conte. Fiquei muito envolvida com
Tiago, vivia para ele. que ia separar mesmo, criei o Tiago para
mim. E Bernardo também não ajudava, eu dava comida, ficava
com ele, dava banho, fazia dormir”.
O relacionamento conjugal foi sendo resgatado lentamente e Bernardo, descobrindo
qual era seu novo papel. De acordo com Elisa, ele hoje, depois de muitas crises, tenta ajudá-
la. Tiago teve problemas de adaptação na creche, adoecia freqüentemente e precisou ficar em
casa, com uma babá, até os 3 anos de idade. Seu grande problema durante toda infância, de
acordo com a mãe, foi não comer direito: a luta para Tiago comer”.
Após alguns anos de terapia, Elisa me afirma que hoje reconhece que sua preocupação
com filho era exagerada. Afirma que recebeu ajuda somente dos profissionais que buscou,
por que os de casa, não ajudavam. Ninguém queria ficar com ele, só minha irmã mais velha.
Até mesmo minha sogra. Todos diziam: este menino não come!” O médico homeopata, Dr.
Sanches ( “tudo dele é natural”) lhe confortava a ansiedade, dizia para não se preocupar, e
que não havia problema em continuar a lhe oferecer mamadeira. A psicóloga lhe “passou um
pitopelo excesso de preocupação, lembrando-a que o problema atual da humanidade era a
obesidade e não a inapetência. Nem por isto Elisa deixou de se preocupar e desenvolveu uma
série de estratégias maternas para lidar com o problema. Além de não ter apetite (“Fica horas
165
para terminar as refeições; dias em que vai à escola sem terminar de comer”), Tiago é
muito seletivo no que come: arroz, feijão, ovo, purê, macarrão. Se come fora, ou longe da
e ( como faz todos os dias de semana no almoço), torna-se ainda mais restritivo: “...o que
eu faço, ele gosta mais”. Assim, Tiago usou mamadeira, pela manhã, ainda na cama e à noite,
até os sete anos, acompanhando a irmã mais nova. Uma mamadeira reforçada com leite e
produtos infantis de engorda e crescimento. Atualmente, aos nove anos, a mamadeira foi
substituída por um copo infantil, de tampa e bico para sugar, mas a prática ainda é no leito,
em estado de sonolência. Além disso, Elisa sempre faz algo a mais no jantar, quando o
acompanha na refeição; pica a carne bem pequena e esconde na comida, mistura legumes no
feijão. Oferece aos filhos cotidianamente “vitamina”, leite batido no liquidificador com
frutas; como o próprio nome sugere, uma mistura que julga “fortificante”.
Nova crise se instaura nos meses seguintes ao nascimento de Carolina. Depois que
essa menina nasceu tudo aqui em casa piorou”, diz Tiago, na época, para sua avó paterna.
Tiago foi o primeiro neto e bisneto da família de Bernardo. D. Amália, a bisavó, o chamava
de “meu rei”. De acordo com Elisa, D.Amália custou a descobrir algo que Tiago gostasse de
comer quando ia visitá-la, até que chegou ao consenso das torradinhas. Como as torradinhas
que fazia passaram a ser reservadas para o bisneto, o genro logo protestou o privilégio. Além
de não comer direito, Tiago passa, com o nascimento da irmã, a ter uma atitude agressiva em
casa, irritando-se facilmente. Numa reunião na escola, Elisa descobre que Tiago nunca havia
falado que tinha uma irmã, e decide, então, procurar um psicólogo, para ela e para o filho.
Eu estava batendo no Tiago todos os dias”. Novamente solicitou maior presença de
Bernardo, que muito apegado à caçula, mantinha uma relação distante com o filho.
Com o segundo filho, Elisa diz que “relaxou” e, por isto, Carolina lhe preocupa
menos, até mesmo com a comida. Carolina lancha, almoça e janta na creche todos os dias da
semana. Elisa é da opinião de que a filha também não come bem, um pouco melhor do que
166
Tiago. Carolina, apesar de seus 3 anos, sempre gostou de comida “temperada”. “Ela tem
fixação por carne. Adora. Quando eu estava grávida de Carolina tive muito desejo de comer
carne, acho que é por isto”. Extrovertida, foi para a creche aos 3 meses e não mais saiu de lá.
A creche mantém uma agenda pessoal, que controla o cotidiano da criança, servindo de
instrumento de informação e comunicação com os pais. Fui algumas vezes com Elisa buscar
Carolina, por volta das 7h da noite. Logo na portaria, o cardápio semanal das refeições
afixado à parede. Novamente, estratégias para alimentação infantil: legumes batidos na sopa,
frutas batidas no suco. Junto com a criança, a mochila com as roupas usadas no dia e a
agenda que registra detalhes do cotidiano, se dormiu, se evacuou, como comeu etc.
Um dos fatores fundamentais para reconstrução do casal foi sua formação religiosa.
Bernardo e Elisa são católicos, freqüentam a missa numa igreja em Realengo, onde a mãe de
Bernardo mora atualmente. Elisa me conta que Bernardo não tinha o costume de assistir
missas, mas que havia gostado daquele “padre” de Realengo. Ela então se empenhou em
manter o bito de freqüentar missas naquela paróquia, de forma a cativá-lo na experiência
religiosa. Além do culto aos domingos à tarde, o casal passou a participar de um grupo de
casais, formado sob inspiração do movimento de Renovação Carismática, que se reúne
freqüentemente. Os participantes deste grupo o têm ligação com Monte Belo. Fazem parte
de uma outra rede de sociabilidade do casal, conquistada pelo pertencimento religioso. Duas
vezes ao ano ocorre a Roda de Pratos”, um encontro religioso entre os casais e filhos, que é
finalizado com um churrasco, onde cada casal (leia-se, a mulher) leva um prato que irá
acompanhar o churrasco, feito na hora pelos homens. um sistema de revezamento do
local do encontro entre as casas dos participantes, onde permanece por um período a imagem
da “Santinha”. Participei de um destes eventos, que ocorreu em Olaria, na resincia do casal
que dirigia o grupo. Esta foi uma reunião especial por que ocorreu a transferência da
coordenação do grupo para outro casal. Apesar de chegar com Bernardo, Elisa e filhos à casa
167
dos anfitriões, permaneci durante a reunião com as crianças, a pedido de Elisa, enquanto o
evento acontecia no quintal da casa, um local amplo e cimentado, protegido por uma frondosa
mangueira. Regadas a bolo de cenoura, pipoca e refrigerante, as crianças brincam
espontaneamente, satisfeitas que estavam em se reencontrar. Havia cerca de dez casais e
quinze crianças - de idades diferenciadas, as mais velhas carregando as pequenas ao colo. Ao
final da celebração, somos eu e todas as crianças chamadas para junto do grupo. Fizemos
então um círculo e todos fomos abençoados, passando de mãos em mãos a imagem da
Santinha”, tendo ao fundo o som de hinos de louvor. Em despedida da posição de
coordenadores, o casal anfitrião distribui lembranças, com as quais inclusive eu fui agraciada,
um pequeno crucifixo, mensagens de otimismo e “Os Dez Mandamentos para a Paz na
Família”. Ao final, então, a “Roda de Pratos”. As mulheres montam a mesa com o que
trouxeram: arroz, maionese, farofa, vinagrete dentre outros acompanhantes clássicos de um
churrasco. Os homens acendem o fogo, servem a cerveja, temperam a carne. Elisa leva um
doce para sobremesa, “Palha Italiana
6
”. O grande grupo se subdivide em conversas amenas,
lembranças e planos para o futuro.
Atualmente o cotidiano da família se inicia com Elisa saindo para o trabalho às 7h da
manhã. A empregada chega às 8h, quando o pai sai para trabalhar, levando Carolina para a
creche e Tiago para a aula de natação. Este volta para casa com a empregada, almoça e vai de
van para a escola, Tiago estuda no Colégio Pedro II em Andaraí. Bernardo vai almoçar em
casa, o que faz sozinho, pois Tiago já saiu para a escola, e volta somente em torno das 20h.
Elisa chega às 16h, quando a empregada sai do serviço, recebe Caio às 18h, e por volta das
19h busca Carolina, que chega pronta para dormir, tendo tomado banho e jantado na
creche. Aos finais de semana os pais não trabalham, reservando o sábado e domingo para as
compras e o lazer, quando Elisa leva os filhos para brincar no playground ou na piscina de
6
Doce feito à base de biscoitos de maisena leite condensado, chocolate em pó e mel, cortado em pequenos
pedaços que são polvilhados com açúcar.
168
seu prédio. Não têm o hábito de freqüentar a praia, a não ser em alto verão, quando vão à
Barra, ou então passear em Niterói. Raramente circulam pela Zona Sul. Aos domingos
visitam a mãe de Bernardo.
Bernardo e Elisa m uma vida social restrita aos ambientes que comportam seus
filhos. Freqüentam as festas familiares, onde encontram parentes e amigos de Monte Belo.
Raramente vão ao cinema ou teatro, e quando saem à noite é para tomar um chope e comer
uma pizza, sem voltar muito tarde. “Ahoje nós gostamos bem de beber, mas não tem
graça, como vou tomar conta dos filhos que não sossegam? E o dia seguinte?” Certa vez,
fui com a família às compras do mês no supermercado, numa terça-feira à noite. As compras
o deixam de ter um cunho de lazer para a família, particularmente para as crianças, pois
saem de carro para passear. Todavia, para os pais, torna-se, além de um compromisso, um
desafio, dada a dificuldade de se controlar os anseios infantis. Tiago pegava diferentes
produtos das prateleiras, querendo tudo. parou quando deixou uma garrafa de refrigerante
cair ao co. Carolina ficou acomodada no banco do carrinho de compras nos três primeiros
minutos; queria andar, e ao léu. A situação exigia esforço constante dos pais, que tinham que
simultaneamente se ocupar com os filhos e com as provisões do mês, quais produtos, quais
marcas, qual preço, qual quantidade. Ao final, Carolina ganhou um pacote de biscoito (e
depois por conta do sal ficou com sede) e foi para as costas do pai, Tiago ganhou um jogo
virtual para seu computador e Elisa cuidou das mercadorias. E depois de tudo, ainda a fila do
caixa.
Apesar de se inserirem num meio de grande apoio familiar, não têm muita liberdade
para deixar os filhos com alguém. Férias e feriados procuram passar em Monte Belo. Tiveram
uma experiência traumática com passeios mais ousados: o casal, admirador da cultura
country foi passear em Barretos, quando Tiago tinha pouco mais de um ano. Tiago adoeceu
durante o passeio, ficando internado durante 5 dias naquela cidade. Um dos apoios
169
estratégicos de Elisa em momentos de doença na família é Dr. Sanches, médico homeopata
argentino que Elisa conheceu através de sua irmã, que reside em Muriaé, cidade mineira
próxima à Monte Belo. Elisa passou conciliar o tratamento convencional, através do plano de
saúde, seu e de seus filhos, com as consultas a Dr. Sanches. Comunicam-se por telefone e,
quando ele vem atender alguns clientes no Rio ela lhe procura. Dr. Sanches veio também
ao Rio por solicitão de Elisa, prestando-lhe consulta domiciliar. Elisa tem grande respeito
pelas orientações de Dr. Sanches, que ao que parece, lhe descortinou um olhar mais holístico
da fisiologia e do ser humano em geral. Comenta comigo que certa vez queixou-se com ele
de freqüentes dores de estômago e que este, ao invés de lhe pedir exames ou prescrever
antcidos, perguntou-lhe se não estaria com problemas financeiros.
E ele acertou. Foi a época em que estávamos terminando de
pagar nosso apartamento!. Depois que compreendi a minha
situação, minhas dores acabaram...”
“Sempre fui preocupada com minha alimentação”, Elisa resgata. Conforme
mencionado, assume uma postura de cuidado constante com seu peso. Lembro-me de que
certa vez, após um período maior de minha ausência, teve o cuidado de comentar: “Você
engordou!”. Estabelece algumas posturas alimentares que acredita poder lhe garantir melhor
qualidade de vida: come mamão todas as manhãs para regularizar as funções intestinais, leva
a comida de casa para almoçar no trabalho, evita o uso cotidiano de refrigerantes.
“Não me sinto bem comendo na rua todos os dias, estou
acostumada com pouco sal e pouca gordura, uma comida mais
saudável. No meu trabalho 90% das pessoas se preocupam com o que
comem. Tenho uma colega que é vegetariana e vem influenciando os
170
colegas quando encomenda comida natural, até nossa chefa está
comendo. Outro colega gordo está de dieta. A exceção é de um colega
mais velho que come pra caramba carne de porco, lingüiça etc. Já tem
problemas de hipertensão, mas ele não liga. Acho que é por ser mais
velho, não quer mudar o que come”.
Contudo, ao lhe perguntar quando se come melhor, se no passado, atualmente ou no
futuro, não se decide completamente. Depende. A seu ver, seus pais comiam bem, comida
simples, ingredientes frescos, sem refrigerantes e exageros.
Das empregadas que teve, a confirmação de que não se consegue encontrar uma
profissional completa, umas cozinham melhor, outras são caprichosas com a limpeza da casa,
outras carinhosas com as crianças. Sobre a atual, Aparecida, uma baiana que mora numa
favela próxima ao Grajaú, Elisa afirma que é muito caprichosa, mas sua comida ... falta
alguma coisa, além de não acertar muito bem quando vai fazer uma receita.” Aparecida é
e de três filhos, que deixa com a vizinha para trabalhar. Veio da Bahia a chamado do
marido, que viera antes para se estabelecer. Tempos depois, descobriu que ele tinha duas
famílias e o largou. Ao solicitar pensão para os filhos, seu marido fugiu, fazendo-lhe uma
série de ameaças. Não tem muito “jeitocom crianças, diz Elisa, e muitas vezes reclama de
Tiago. Trabalha três anos para o casal, indicada à Elisa pelas funcionárias de um Salão de
Beleza das proximidades.
Elisa faz planos em combinar com sua empregada para dormir pelo menos uma vez
por semana em sua casa, para que possa sair com Bernardo. De vez em quando sinto uma
tristeza muito grande, chego em casa e choro”. Ante a minha indagação se teria se
arrependido deste projeto, retruca que não tem como se arrepender de um filho que já se teve,
que acha que a experiência é importante, mas que entende perfeitamente quem não quer tê-
los. Nunca me senti tão cansada”.
171
Em termos gerais, podemos afirmar ser este um grupo familiar em processo de
formação. Mantêm fortes vínculos com familiares, assim como com os “conterrâneos”, uma
vez que sua origem está associada a uma pequena cidade na divisa do Espírito Santo, Monte
Belo. Trata-se de um grupo em fase de transição recente da cidade pequena para a metrópole;
na geração anterior, no caso de Bernardo e nesta geração, no caso de Elisa. O casal trabalha
fora, possui casa própria e carro do ano. São católicos, participando do movimento de
Renovação Carismática através de um grupo de casais. Enfim, um casal relativamente jovem,
com crianças pequenas residentes num bairro da Zona Norte.
172
GRUPO DO GRAJAÚ
Residentes no Edifício Esmeralda no Grajaú
Residentes no Grajaú e Tijuca
Residentes em Realengo
Residentes em Monte Belo e adjacências D.Amália
Arnaldo Heloisa
Tereza
Carla Daniel
Jorge Lucia Bernardo Elisa
Pedro Livia
Tiago
.................Carolina
173
4.3. A experiência na Zona Oeste: a família Pinzón
Ao chegar à casa de Sandra naquela manhã de domingo não reconheci aquela pessoa
que me recebeu. Não era uma de suas irmãs, ou filhas: “Sou amiga de Sandra”. havia sido
apresentada à Jussara e à Sueli, mas naquele encontro, pude conhecer muitas outras amigas
suas, confirmando que ali se prefigurava, simbolicamente, uma república de mulheres.
O motivo da festa era o aniversário de Neide, médica homeopata, residente também
em Jacarepaguá, que se tornou membro daquele grupo por caminhos sinuosos. cerca de
dez anos atrás, trabalhando na Cidade de Deus
7
como médica, tornou-se amiga de uma
professora do ier, Leila, que atuava como voluntária no Centro Comunitário. Através de
Sueli, amiga de infância de Leila e vizinha de Sandra no condomínio Jequitibá, Neide passou
a freqüentar o condomínio, bem como atender todo aquele grupo. Aquela festa se
assemelhava a um encontro de águas, tal qual num grande rio: algumas irmãs, a mãe de
Sandra, a amiga da mãe de Sandra, alguns sobrinhos, as amigas em comum de Sandra e
Neide que organizaram a festa, as convidadas de Neide. Os convidados se espalhavam em
diferentes rodinhas pelas quais Neide circulava. Na maioria dos casos, além de amigas eram
todas, ou foram por um tempo, pacientes de Neide. As amigas se cotizaram contratando a
empregada de Sandra para preparar o almoço, que foi disposto numa bancada no jardim - de
forma que pudéssemos nos servir -, próximo à piscina, onde ficamos conversando, regados a
vinho e cerveja, até o fim da tarde. A certa altura, uma voz mais desinibida proe o
Parabéns”, o que é cantado sem grandes cerimônias. Neide conta-me um pouco de sua
trajetória, de sua vinda de Belém de Pará, de sua opção de viver sozinha, de sua religiosidade
sincrética. Neste aniversário recebeu uma missão de seu pai-de-santo, subdividida em tarefas,
7
Conjunto habitacional da Zona Oeste da cidade
174
que serviriam para se encontrar”: ler um romance policial que custou a obter, tomar banho
ao ar livre, de água corrente, e confeccionar uma boneca de pano do seu tamanho.
A certa altura Sandra pede a palavra e me introduz ao grupo, me apresentando a todos
como uma colega que estava fazendo uma pesquisa, pedindo a colaboração de todas.
Rapidamente se aproxima uma conhecida de Neide, que trabalha na Fundação Oswaldo Cruz,
procurando dividir comigo detalhes do cotidiano administrativo das instituições de pesquisa
do Rio. Conheço também Sara, amiga/paciente de Neide, uma bela descendente de judeus de
uma família tradicional de Copacabana, que me conta as diversas guinadas que deu pela
vida. A primeira foi trocar a Zona Sul por Jacarepaguá, uma mudança doída, de quem
conheceu e viveu Copacabana trinta anos atrás, mas necessária, pela decadência que o
bairro assiste
8
. A segunda, foi abandonar o ofício de designer de jóias para se dedicar às
receitas da família; Sara abriu uma loja de tortas finas e bolos num shopping na Barra e tinha
atualmente como público diferentes celebridades dos condomínios luxuosos do entorno as
tortas servidas após o almoço naquele dia foram um presente seu. A terceira, foi separar-se do
marido, assumindo então a tarefa de criar seus dois filhos, jovens, de forma independente.
Paira no ar, entre todas aquelas amigas, certa decepção com o sexo masculino.
Lembro-me que um dos assuntos partilhados foi o caso de uma jovem, moradora na Favela
do Rio das Pedras. Extremamente pobre, mas de grande beleza, esta jovem se amasiava a um
rico comerciante português residente na Freguesia, casado, com filhos. Sustentada pelo
amante que “lhe dava de tudo”, ela engravida; o comerciante a ameaça com o rompimento.
Esta jovem então procura Sueli, advogada, para solicitar uma pensão. O discurso é altamente
psicanalisado, diferentes tentativas de se compreender o desencontro masculino/feminino,
pois do caso da jovem amante, passa-se a discutir as próprias experiências.
8
Vale aqui destacar que as transformações ocorridas no bairro de Copacabana ao longo dos últimos 100 anos,
consideradas por Sara como “decadência”, já foram objeto de reflexão antropológica, demonstrando-nos a
coexistência de “mundos sociais”, resultantes da complexidade e heterogeneidade presentes no meio urbano. (cf.
Velho, 1999)
175
No início da noite os convidados foram se despedindo, marcando novos encontros
para o futuro. As reuniões entre os amigos, como pude perceber mais tarde, são de longa
duração, se aproximando mais ao convívio do que propriamente à formalidade festiva.
De fato, a natureza dos encontros que se estendem dia afora está em afinidade com a
estrutura do espaço, amplo, tranqüilo, em meio ao verde. O Condomínio Jequitibá localiza-se
na estrada Grajaú-Jacarepaguá, na região da Freguesia. A experiência de subir a serra a partir
do Graj nos traz a sensação de se cruzar fronteiras para um mundo completamente
diferente; do calor sufocante, das ruas estreitas cheias de carro e transeuntes chegamos ao
ambiente serrano de florestas, fresco, com casas esparsas, escondidas por trás da vegetação.
Ao longo da estrada, a partir do Hospital Cardoso Fontes, observa-se a existência de
inumeráveis condomínios horizontais, demonstrando ser este o estilo de moradia freqüente na
região. O Jequitibá possui 14 residências em dois patamares que se distribuem em torno de
uma grande área plana gramada, cercada de diferentes tipos de árvores, muitas das quais
frutíferas. Todos são proprietários; na sua maioria, executivos, profissionais liberais e
empresários. Sandra mora numa casa de modos amplos, protegida por circuito interno de
TV; 4 quartos, cozinha, lavanderia, quarto de empregada, uma grande sala que comporta
diferentes ambientes, a garagem que se tornou uma grande biblioteca, com muitos livros e
pilhas de revistas e jornais, piscina e sauna. A cozinha é ampla, com o fogão bem ao centro,
envolto em uma bancada de granito. Uma grande pia, freezer, geladeira, microondas, lava-
louças, armários em todas as paredes, uma mesa de granito. Na parede, um pequeno quadro
de avisos com telefones úteis, orientações para a empregada, bilhetes para os familiares. A
família, atualmente Sandra e as filhas, possui dois carros. Jussara e Sueli são duas vizinhas de
Sandra, residentes no mesmo condonio, com quem Sandra partilha grande intimidade.m
livre trânsito pela casa de Sandra, sem horários específicos ou agenciamentos prévios para
176
visitas. Promovem reuniões, festinhas, vão ao teatro, shows, palestras. Juntamente com
outras amigas, fazem uma rede de contatos que têm interesses em comum.
Ao falar de si, Sandra explica sua tenacidade, sua disposição à luta, como marca de
uma família de imigrantes, com uma história de muita dificuldade. A começar pela hisria de
vida do pai. Filho de espanhóis, nascido no Marrocos, teve irmãos de diferentes
nacionalidades, acompanhando a rota migratória de seus pais: Marrocos, Espanha, França,
Brasil, Uruguai. Durante a Guerra Civil, devido à potica espanhola de realocação dos filhos
dos soldados que lutavam na guerra, nas quais as crianças ficaram conhecidas como os
órfãos de Franco”, foi separado dos pais e levado para Bélgica. Novamente com a família,
vive na França, para desembarcar no Brasil aos 20 anos, vindo a morar em Nova Iguaçu, na
Baixada Fluminense. Conhece D. Augusta, mãe de Sandra e se casam. D.Augusta, neta de
portugueses e italianos, perde a mãe com 29 anos de tuberculose. Do segundo casamento do
pai, além dos filhos de sua segunda mulher, vieram mais 6 filhos cujos cuidados ficaram sob
a sua responsabilidade. Vindo de uma adolescência sofrida, vivida sob a autoridade de uma
madrasta severa, casa-se aos 18 anos com Pepe, que passa a ganhar a vida aqui no Brasil
como torneiro mecânico. O casal tem cinco filhos, Madeleine, Sandra, Catalina, Laura e, dez
anos depois do nascimento da última, Manoel. D. Augusta me conta das pressões sofridas por
Pepe, por parte de seus irmãos, por não ter um filho homem.
Desde cedo, apesar da pouca instrução, D.Augusta me conta de sua atenção à
alimentação, procurando seguir a relação entre boa comida e saúde. Tinha como leitura de
instrução edições do Reade’s Digest que seu marido trazia. Sandra, por exemplo, se lembra
que em criança não podia tomar café, fugindo para a casa da avó para ter esta regalia. Vizinha
de uma tia portuguesa, casada com irmão de sua mãe, Sandra guarda na memória biscoitos
variados, de nomes esquisitos, doces, pastéis, pães que lhe enchiam os olhos. Vivendo uns
próximos aos outros, tios e tias com suas famílias compravam o vinho conjuntamente,
177
armazenando-o durante o ano. Ao almoço e ao jantar, uma pequena dose se fazia
imprescindível.
Do tempo em que viveu com a sogra, quando esta voltou a viver no Brasil, D.
Augusta fala-me do aprendizado da culinária espanhola, que acompanhava os Pinn. Em sua
opinião, “uma comida muito forte, temperada, muita massa e carne”. Ao se separar da sogra,
leva consigo alguns traços da cozinha espanhola. O “Cocido” ou “Pucheroe a “Paella” aos
domingos, que vinha sempre com a máxima proferida por Pepe, ao exigir sua “paella” com
arroz escaldoso”: São as pessoas que devem esperar a paella e não a paella que deve
esperar as pessoas”. Junto com os pratos, seus temperos específicos, como o açafrão
verdadeiro, do pistilo da flor, tão precioso quanto o grama do ouro: “Se não tem açafrão, não
tem paella”, outra máxima do falecido pai de Sandra. Juntamente ao vinho, o hábito de se
comer es e queijos nas refeições, hábito este que permanece vivo na casa de Sandra. Tipos
variados de pães e queijos à mesa.
As filhas de D. Augusta, todas cozinham bem, afirma Sandra. E D. Augusta
acrescenta: Meu filho também. O pai desses meninos era tão imprestável, que eu dizia a
mim mesma que não iria criar filho machão. E ele cozinha muito bem”. Ao que Sandra
imediatamente comenta: A senhora não quis filho machão, mas criou as filhas para um
casamento machão!”. Sandra demonstra certo ressentimento com a educação da mãe, que
criou as filhas para, sobretudo, se casarem. “Mamãe dizia sempre para nós que mulher tem
que saber cozinhar, lavar, passar. E ainda frisava: Mulher que estuda demais manda no
marido! E conclui que sua e não pensa mais assim: Mamãe é uma mulher
transformadora, que soube dar a volta por cima”
Trabalhando desde a adolescência como professora particular, a vida em Nova
Iguaçu, segundo as lembranças de Sandra, não tinha grandes atrativos. Viviam num tio
herdado pela mãe, fruto do tempo em que o avô e seus irmãos aderiram ao cultivo de laranjas,
178
quando Nova Iguaçu se despontou no cenário nacional como grande produtora de tricos.
Sandra se recorda que uma das diversões de sua adolescência era trabalhar na Igreja, como
catequista de crianças e jovens. Apesar de ter se casado na Igreja, Sandra vai
progressivamente se afastando deste referencial religioso, graças à inflncia de um tio
peruano, cujos livros lhe desvendaram o mundo esotérico. Participa, cerca de vinte anos
do Movimento Rosacruz, além de ter se dedicado aos estudos, como autodidata, de
Homeopatia e Psicologia. Como suas amigas, faz análise, freqüentemente livros afins e se
utiliza, em seu discurso, de uma lógica, ora esotérica, ora psicanalisada de se explicar a
realidade, como quando apresenta os motivos de sua separação.
D. Augusta, como católica praticante, é fervorosa defensora das CEBs (Comunidades
Eclesiais de Base) apresentando uma série de críticas ao Movimento de Renovação
Carismática. Uma senhora muito conservada de aproximadamente 75 anos, de espírito jovial,
que mora sozinha separou-se do pai de Sandra após 39 anos de casamento e dirige seu
próprio carro. Foi D.Augusta que trouxe para o grupo de Sandra o estudo do Eneagrama
9
.
Quando comecei a freqüentar sua casa, Sandra e suas amigas estavam se dedicando a seu
estudo. O Eneagrama teve grande aceitação no grupo, arregimentando um número crescente
de interessadas. Atualmente Sandra e Sueli, de forma esporádica, já estão dando cursos de
Eneagrama, que têm ocorrido na região do Grande Rio, num mosteiro de carmelitas.
Sandra então se casa, tão logo consegue ingressar no curso de Geografia na UFRJ.
“Assim que entrei para a faculdade Antonio acelerou nosso casamento”. Seu marido,
também de Nova Iguaçu, vindo de uma família muito pobre, acabava de se formar em
Engenharia. Preparou seu próprio caderno de receitas para a nova vida, trazendo as
experiências da infância. Pergunto-lhe sobre as influências do marido na culinária da família:
9
Técnica de autoconheciemnto baseado no sistema de sabedoria do Mundo Antigo, que descreve como a perda
das virtudes humanas, segundo nove padrões básicos, gera paixões, vícios emocionais e fixações mentais.
179
“Coitado. Veio de uma família muito pobre. Foi criado solto
na rua. Filho mais velho, começou a trabalhar aos 12 anos
para sustentar a família, e sustenta até hoje. Sua mãe fazia
uma comida muito ruim. Ela não gostava de cozinhar.
Antonio adorava minha comida. Até hoje quando ele vem
aqui trato ele muito bem. Ele logo pergunta: ‘Tem um
feijãozinho aí? Eu ando comendo tão mal.’ Eu logo
respondo: comendo mal freqüentando jantares em
restaurantes finos?”
Do tempo de faculdade, várias provações: o desafio de se conciliar vida familiar e
estudos numa realidade conjugal em que o marido passava o dia fora e pouco se envolvia
com as necessidades da casa e com os cuidados com a prole. E uma vida acadêmica
entrecortada por pausas devido ao nascimento de suas filhas, marcada pela dificuldade de
transporte. Sandra saía às 4h20 da madrugada de casa para chegar às 7h na faculdade. Além
da disputa pelo lugar num ônibus lotado por uma população predominantemente masculina
Sandra narra inclusive a vez que levou um soco no embate pelo acesso à porta de entrada do
ônibus -, os comentários na faculdade por chegar atrasada todos os dias nas aulas. Sandra,
você não acha que seria melhor você estudar na USP? Não é mais perto para você?”, dizia
um professor, comentando a distância (que sabemos que não era somente geográfica, mas
também simbólica) entre Nova Iguaçu e a UFRJ.
Moram então alguns anos na Penha, o marido trabalhando como engenheiro em
diferentes fábricas, até que este resolve montar sua própria empresa. O casal assiste a uma
rápida ascensão social; à vista, compram a casa em Jacarepaguá. Nem a Zona Norte, nem a
Zona Sul, a terceira via: queriam um ambiente melhor que a Zona Norte para viver, mas ao
mesmo tempo, uma casa, espaço para os filhos. No caso destes condomínios horizontais
10
,
incrustados na serra, uma nova versão de progresso, sob influência romântica de uma
10
A questão dos condomínios horizontais como formas de residência tradutoras de um estilo de vida são
discutidas amplamente por Moura, 2003
180
perspectiva de integração com a natureza, de valorização das formas orgânicas, do verde, do
silêncio, da amplitude do espaço, de um investimento na qualidade de vida.
Este estilo alternativo de viver de Sandra transparece em diferentes contextos; na
forma com que procura cuidar de sua saúde (prática que influenciou toda sua família), no
estilo alimentar, nos nomes de suas filhas, na militância potica de esquerda; projeto este no
qual o autoconhecimento tem papel preponderante. Sempre teve como prática ensinar suas
empregadas a cozinhar a seu modo; não uma “comida carregada” como elas chegavam
fazendo, mas uma “comida saudável”. Comida variada, todos os legumes, todos os feijões,
todas as cores. Mais legumes que carnes, saladas. E ainda comenta que algumas de suas ex-
empregadas passaram, depois de seus ensinamentos, a trabalhar vendendo o que
cozinhavam. Quanto à obrigação das filhas na cozinha, afirma que nunca fez questão de
ensinar, “a não ser que quisessem”.
Ante a uma novidade, Sandra me diz que é de praxe seus irmãos comentarem: Lá
vem Sandra com as suas diferenças”. O primeiro livro de homeopatia, foi o de seu bisavô
materno. Hoje como estudiosa e praticante, trata de toda a família e fornece algumas gotinhas
aos vizinhos quando necessário. Falou-me algumas vezes de suas sensações sobre suas vidas
passadas; visões de si própria de roupas longas, cabelos longos, colhendo ervas nas florestas,
o que a fazia compreender seu dom curativo. Assim como a homeopatia, Sandra tem sido
responsável pela renovação constante de caminhos terapêuticos, ou de auto-ajuda, caminhos
estes que vão sendo compartilhados com os mais pximos, amigas, mãe, filhas e irmãs. “Fui
a primeira a fazer mapa astral”. Sandra tem espírito coletivo, congregante, procurando
dividir com companheiras suas descobertas. Acredita na força do pensamento positivo,
enfatizando palavras e pensamentos que lhe estimulem. Durante estes dois anos recebi
diversas mensagens enviadas por Sandra ela incluiu meu endereço eletrônico em seu grupo
- para suas amigas, com conteúdos reflexivos de valorização da existência. Interessante é que
181
além deste perfil, sua casa espaçosa favorece as reuniões entre os amigos, razão pela qual
vem herdando das irmãs as panelas de maior tamanho, que não têm mais sentido em suas
casas. A próxima comemoração em sua casa será o aniversário de Dora, uma grande amiga
que completará 90 anos.
“Minhas irmãs vão trazendo aquelas panelas grandes que ficam
ocupando o armário e que não usam. E eu não uso, como
empresto para os amigos e os vizinhos do Jequitibá. Minhas panelas
são famosas, pois rodam todo o Rio”.
Partilha com suas irs, sua mãe e amigas a experiência da separação conjugal.
Madeleine, por exemplo, começa a trabalhar muito cedo, faz curso técnico de Contabilidade e
abandona o emprego assim que se casa. Após a primeira separação, começa, nos termos de
Sandra, a cuidar de si”. Envolve-se com um movimento alternativo de revisão da prática
fisioterápica - movimento este que mantém uma publicação que infelizmente o tive
acesso, cujo nome me pareceu muito significativo, Seja”. Faz cursos paralelos dentro da
Fisioterapia e passa a aplicar massagens profissionalmente. Lembro-me de uma
comemoração do Dia das Mães que partilhei com este grupo, um almoço de domingo, quando
Madeleine ganhou de presente de seu filho um aparelho de televisão. O presente tinha certo
tom de ironia, ou peraltice do filho, uma vez que Madeleine cultiva o hábito de o assistir
TV; prática ausente em seu cotidiano pela visão crítica que tem sobre a mídia e a cultura de
massa. Dentro deste processo de “cuidar de si” e de revisão crítica de praticamente tudo,
Madeleine deixou de comer carne; de qualquer tipo, inclusive ovos. “Mas cozinha
maravilhosamente bem”, acrescenta Sandra. De fato, neste almoço do Dia dos Pais que
presenciei, Madeleine trouxe um suflê de batata, couve-flor e queijo muito saboroso. Aliás,
todos comeram, elogiaram; foi o primeiro prato a acabar. A nova geração, os sobrinhos de
Madeleine, particularmente aprovou. Catalina também tem a experiência de dois casamentos
182
interrompidos. Formada em Comunicação, trabalha atualmente com paisagismo e jardinagem
num escririo em Jacarepaguá, serviço este muito procurado naquela região, dado o estilo
das moradias. Cultiva o interesse pela cultura judaica, sendo grande estudiosa da “Cabala”;
lembro-me vagamente de algum comentário sobre sua conversão ao judaísmo. Laura, a
caçula das mulheres, segundo Sandra, tem uma forma diferente de lidar com os homens”,
o se adaptando facilmente à convivência com o sexo oposto. Mora sozinha, estudiosa de
línguas, dentre as quais o russo; trabalha como tradutora free-lancer através da Internet.
Das irmãs, é a que menos sabe cozinhar, não se interessando muito pela atividade, afirma
Sandra. Pergunto então o porquê de tal divergência. “Ela não se casou, nem teve filhos”.
Laura causou certo temor na família recentemente, quando, aos 43 anos aproximadamente,
decide ter um filho “em produção independente”, ou seja, por inseminação artificial, a partir
de um banco de men. Apesar de apoiá-la, Sandra expressou a apreensão por este projeto
(“Como é que esta criança se sentiria nesta situação?”), que feliz ou infelizmente não foi
bem sucedido. Após gastar uma boa quantia de dinheiro e de algumas tentativas frustradas,
Laura aquietou-se. Encontra-se atualmente namorando, para satisfação de Sandra, que se
preocupa com sua impaciência, seu jeito “fechado”, sua solidão. Não conheci Manoel, o
caçula dos Pinn, que mora alguns anos na Espanha, estando já estabilizado naquele
país, com emprego, esposa e filhos. O que sei dele, de acordo com suas irmãs, é que é a
grande paixão da vida de mãe”.
Sueli, sua vizinha no Jequitibá está envolvida num difícil processo de separação, após
mais de 20 anos de casamento, enfrentando a resistência de seu marido ao rompimento.
Jussara, outra vizinha, partilha de certa intimidade com o grupo de Sandra. Casou-se em
Recreio dos Bandeirantes e juntamente com o marido e os dois filhos veio para o Jequitibá.
Separou-se e passou a viver com um novo companheiro e os filhos na mesma casa. Adotaram
uma menina e tempos depois este companheiro falece. Seu primeiro marido volta então a
183
viver junto, na mesma casa, mas na condição de separado. Jussara se diferencia do grupo por
sua religiosidade, seus valores. É mãe-de-santo, porém nunca se vinculou a um terreiro;
atendia em casa, até que, segundo me disse, uma cliente trouxe à sua casa um traficante da
favela Rio das Pedras, foragido, que necessitava de uma consulta. Após esta experiência
Jussara abandonou esta prática, atendendo esporadicamente alguns conhecidos somente para
ler cartas, ou ler mãos. Não trabalha fora. Acredita que uma das qualidades femininas a se
exaltar é, justamente, ter a capacidade de colocar os homens para sustentar a casa, a família e
o ócio feminino, poder este que as mulheres conseguem exercer através de seus atributos
sexuais. Tal postura, obviamente não é bem vista no grupo, que tem como valor a conquista
feminina da individualidade, da autonomia, da autenticidade, da capacidade de cultivar-se
para a construção da relação entre duas subjetividades. Ultimamente tenho ouvido de Sandra
e de suas amigas certa insatisfação com a “maldade” e o “egoísmode Jussara. Mantém em
segredo da filha, por exemplo, o fato de ser adotiva. Gaba-se freqüentemente de sua
capacidade de sedução dos homens, sejam os ex-maridos, amigos ou companheiros das
outras. Aposto que ela nunca teve um orgasmo!”, conclui Sandra, comentando sobre sua
superficialidade. No princípio da pesquisa tentei uma aproximação maior com Jussara e
chegamos a marcar uma entrevista. Contudo o contato o teve o desfecho esperado. Certa
vez, participei de uma conversa informal na cozinha da casa de Sandra, num bado à tarde,
em torno de uma chávena de c e alguns petiscos, estando a própria e algumas de suas
amigas, dentre elas Jussara. A conversa girou em torno da afetividade, dos desafios de ser
mulher, dos filhos, das lembranças da infância e o processo de socialização feminina, dos
encontros e desencontros com o sexo masculino. Acredito que me excedi, saindo da posão
de mera ouvinte, participando ativamente, e ao que parece me colocando “do ladode suas
amigas. Jussara foi se silenciando no decorrer da tarde, e depois daquele dia passou a me
evitar: desmarcou nosso encontro particular, passando a me dirigir, a partir daí, um olhar
184
muito des-confiado. Nunca mais consegui sua confiança, fato que veio confirmar a
fragilidade desta interação entre o pesquisador com os “outros”. Ora avançamos, ora
retrocedemos, ou às vezes se avança à custa de algum preço. Se por um lado, perdi certo
espaço, por outro, o fato ocorrido me possibilitou a espontaneidade, a participação naquele
grupo. Talvez seja por este e outros momentos que Sandra me tratasse como mais que uma
conhecida”, me convidando para passar alguns dias em sua casa juntamente com meus
filhos, ou oferecendo-me hospedagem, como de fato ocorreu entre um dia e outro.
As filhas de Sandra encontram-se atualmente com 25, 23 e 14 anos. Da primeira e da
última são nomes russos, sendo um inspirado no nome de uma árvore que floresce no
inverno (ou de acordo com algumas traduções significa “flor passageira”) e outro num grande
líder potico russo; da segunda, um nome em homenagem a Pablo Neruda. Sem intenções de
traduzir tais particularidades, pois são nomes com uma sonoridade claramente distinta ao
nosso padrão, utilizo nomes convencionais para identificá-las. Pergunto a Sandra se elas têm
problemas, ou alguma rejeição aos nomes, ao que me responde que elas adoram. “São nomes
únicos”. Qualquer um em Jacarepaguá sabe quem é “Tânia” ou “Claudia”.
A mais velha, Tânia, morava de forma independente da mãe quando as conheci.
Dividia um apartamento na Zona Sul com amigas e trabalhava numa ONG. Formada em
Administração, consegue uma bolsa de mestrado nos Estados Unidos, na Universidade de
Chicago para se dedicar aos estudos sobre o “Terceiro Setor”. Recentemente, ao concluir o
curso, volta para a casa da mãe, de forma temporária, já que pretende fazer o doutorado no
exterior. Tanto Sandra como seu ex-marido vêem de forma positiva o desempenho de sua
filha, que já exercita sua independência e a capacidade de se virar”, num campo profissional
ainda em consolidação em países do Terceiro Mundo. Além de uma festa familiar, com
amigos e parentes próximos para sua despedida do Brasil (Catalina, sua madrinha, fez,
inclusive, a torta preferida de Tânia), a sua formatura em Chicago teve a presença de Sandra.
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A última vez que estive com Sandra, falava-me do entusiasmo de nia com mudanças
alimentares. Disse-me que Tânia voltou dos Estados Unidos cheia de “propostas”. Abasteceu-
se de produtos orgânicos, integrais, politicamente corretos. “Percebi que ela voltou gordinha,
mas não quis comentar. Fico satisfeita com o fato de estar se preocupando com si própria”.
A segunda cursa Direito numa faculdade particular e tem bastante independência em
relação ao ritmo da casa, apesar de ainda morar com a mãe. Envolta no mundo dos amigos,
Claudia possui carro próprio e bastante liberdade de ir e vir, além de viajar com freqüência
com os amigos. Sandra contou-me apreensiva certa vez de um carnaval em que Claudia havia
sofrido a agressão de um grupo de mulheres num assalto e que mesmo assim não havia
modificado o hábito de “não ter hora para chegar”. Rosana, a caçula, freqüenta uma escola
particular em Jacarepaguá, além dos cursos de inglês, música e capoeira. Como Sandra
trabalha o dia todo, fica na maior parte do tempo , com a empregada, utilizando-se da van
escolar para ir ao colégio. Rosana tem sido objeto constante das preocupações da mãe por
conta da má alimentação. Adora carne, como seu pai, diz Sandra. Mas não come direito,
apenas petiscos teen, comida informal, lanches rápidos à frente do computador. O excesso de
horas no quarto fechado, em seu mundo de janelas eletrônicas, tem se apresentado como uma
situação problemática para Sandra, uma vez que volta para casa à noite. Na vez em que
fomos ao supermercado, juntas, eu, Sandra e Rosana, após as compras do mês, tivemos um
momento especial dedicado às escolhas de Rosana, pacotes variados de biscoitos e doces,
latinhas.
Posso afirmar, em geral, que são jovens privilegiadas, que usufruem uma boa relação
com o pai, que têm acesso ao estudo de uma segunda língua, além de terem a experiência de
viver no exterior (com exceção da caçula, que ainda não foi, mas certamente irá) através de
programas de intercâmbios culturais. Sandra me diz que o pai não mede esforços em “bajulá-
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las” com mimos e agrados, como financiar uma operação plástica de melhoria estética do
nariz, que a mais nova estava requisitando, a exemplo da irmã do meio.
Após graduar-se em Geografia, Sandra trabalhou por um período como professora,
atividade que abandonou, já residindo em Jacarepaguá, para se aventurar no mundo dos
negócios e da livre iniciativa. Conta-me que fez vários cursos de empreendedorismo e abre,
com o apoio do marido, uma loja de Delikatessen num shopping em Jacarepaguá. Sandra me
afirma que adora inventar na cozinha, que prefere usar a intuição a seguir receitas. A loja foi
uma grande oportunidade de utilizar seu talento. Trabalhava com produtos importados,
chocolates, geléias, vinhos, temperos, congelados e frutos do mar, ensinando as pessoas a
cozinhar, utilizando ingredientes exóticos, dando-lhes sugestões. Lembra-se deste período
como uma fase de muito trabalho, mas também de muitas virias, pois teve que conquistar
sua clientela. Tempos depois mudou de atividade, em face de uma série de dificuldades que
enfrentou com a atividade comercial, inclusive com a administração do shopping. Foi síndica
no condomínio, experiência esta que se não quer repetir, não deixa de reconhecer como muito
importante, pela oportunidade de crescimento pessoal. Além da tarefa de administrar
coletivamente interesses pessoais enfrentou dificuldades por ser mulher. Conta-me, então, o
caso de um morador que parou de freqüentar sua casa (costumava fazer sauna aos finais de
semana, no tempo em que Sandra era casada) e também de pagar as taxas do condomínio por
o acreditar na capacidade de uma mulher assumir a função. Fato este que Sandra só
descobriu através de sua mulher; num churrasco entre os condôminos, esta senhora, entre
uma cerveja e outra, lhe brindou com a sinceridade:
“O Ricardo sumiu daqui e parou de pagar o condomínio
por que não acredita em negócio onde mulher es
metida”.
187
Atualmente trabalha como assessora do presidente de uma entidade de classe. Como
cargo de confiança, seu emprego é instável, tendo a duração do mandato de seu chefe, que
recentemente foi reeleito. Sandra sempre falou de seu atual trabalho com grande entusiasmo,
uma atividade que, segundo a própria, que lhe exige dedicação, inovação constante,
criatividade, assim como o desenvolvimento de diferentes habilidades, como lidar com
pessoas, trabalhar em equipe, orientar seu superior, planejar, organizar viagens, eventos e
celebrações. Recentemente, porém, tem enfrentado dificuldades de relacionamento, quando a
esposa de seu chefe, advogada – que segundo Sandra, entende muito pouco daquela atividade
– passou a coordenar o trabalho dos assessores. Sente assim apreensão e insegurança quanto a
seu futuro, ao reconhecimento de sua competência.
Da experiência no casamento, o sentimento de desencontro, a necessidade de construir
e fortalecer seu próprio querer” para, enfim, separar-se. O motivo, a decepção com o marido
ao descobrir que este tinha sua secretária como amante. A infidelidade masculina também foi
o motivo da separação de seus pais. Sandra conta que sua mãe suportou durante anos esta
situação até romper com o marido. Tempos depois, acometido por um câncer, Pepe abandona
a amante e escolhe a casa de Sandra para viver. Foi Sandra quem acompanhou seu doloroso
definhamento até a morte. Das razões do seu próprio desencontro conjugal, o fato de seu ex-
marido ser um homem que vivia somente no seu próprio mundo, que não se envolvia com a
família,
...que não tinha afetividade para trocar. Antonio é uma
pessoa que não quer cuidar de si, do tipo que não se envolve.
Vivia dizendo que minha terapia, meus estudos de psicologia,
tudo isso era bobagem. Pensava que se tivesse dinheiro, estava
tudo bem”.
188
Apesar das muitas críticas ao “homem convencional”, Sandra, assim como suas
amigas têm a esperança de reconstruírem uma vida afetiva, a dois. Cita então o pensamento
de Flávio Gikovate, psicanalista paulista, afirmando que.
“...espera que um dias as relações se tornem melhores. Que
cada um viva sua vida, sua plenitude pessoal para se tornar
capaz de trocar, de não ter mais necessidade de se anular
frente ao outro.De não ter o outro como uma pessoa que vai te
preencher. Amar o outro seria possível se deixasse este outro
simplesmente ser”.
Sandra tem o projeto de vender sua casa; as filhas cresceram, o casamento desfez-se,
a casa se tornou ampla e dispendiosa por demais. Faz planos juntamente com Sueli, sua
vizinha que está se separando, Neide, a homeopata, Catalina, Dália, sua amiga inspetora da
polícia que pretende juntar-se à namorada, e outras amigas, de comprarem conjuntamente um
terreno, provavelmente pelas redondezas, e construírem casas conjugadas, com um quintal
comum. Diz então que irão construir uma “taba”...
Em termos gerais pode-se descrever este grupo familiar marcado pela direção
feminina. Observa-se neste sentido, uma visão mais flexível frente aos padrões conjugais/
familiares, onde são reconhecidos como legítimos anseios subjetivos a ruptura conjugal, a
experiência amorosa homossexual ou a utilização de novas técnicas reprodutivas para atingir-
se o objetivo da maternidade. Em termos biográficos trata-se de um grupo na fase de
desenvolvimento dos filhos, que se encontram na adolescência e juventude. Apesar de alguns
componentes desta rede feminina se localizar no mesmo bairro, ou no mesmo condomínio,
observa-se a presença de mulheres de diferentes regiões da cidade. São profissionais liberais
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em sua maioria que valorizam a educação universitária e, ao mesmo tempo, a experiência
religiosa, marcada por um forte sincretismo.
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GRUPO DE JACAREPAGUÁ
Pepe Augusta
Jussara
Sandra
Catalina Laura Manoel
Madeleine
Tânia Claudia Rosana
Sueli
Residentes da Freguesia em Jacarepaguá
Residentes no Condomínio Jequitibá
Residentes na Espanha
Residente em Nova Iguaçu
Nascidos na Espanha Nascido no Brasil
Nascidos na França Nascido no Uruguai
191
4 4. A experiência na Zona Sul: a família Prado
“Behind a great woman lays herself”. Decifro as letras tecidas em tapeçaria naquela
pequena almofada verde, que juntamente com seu par, compõe o cenário da sala de estar da
família Prado. Atualmente dois moradores, Walter e Celina, vivem naquele apartamento
amplo, reformado para dois quartos, uma sala de TV, um grande living que comporta
diferentes ambientes, cozinha, área de serviço, dependências de empregada. O prédio, numa
das avenidas movimentadas do Leblon, não é grande, mais antigo, com uma área verde aos
fundos; daqueles que oferece um apartamento no térreo para o porteiro morar. São 2 blocos
de 8 apartamentos divididos em 4 andares.
Voltando à sala de estar, alguns vasos de plantas orquídeas são as preferidas de
Celina pinturas na parede, um relógio antigo que badala as horas, uma estante até a parede
com muitos livros, coleções de literatura Jorge Amado e Machado de Assis e de História
da Arte. Alguns livros ilustrados em inglês e uma série de retratos, tamanhos diferentes,
personagens variados à frente dos livros. Os móveis chamam a atenção por serem mais
antigos, cadeiras e sofás de assento de palhinha e uma grande e imponente mesa em
jacarandá, rodeada de 6 cadeiras pesadas, juntamente com um arrio e cristaleira que
acompanham o conjunto. Este conjunto chama atenção pelo trabalho de marcenaria, todo
torneado e esculpido, sobre o qual Celina dispõe baixelas e enfeites de prata para, segundo
me diz, suavizar o ambiente. Celina tem um gosto apurado para as artes, procurando manter-
se informada: são peças do Liceu de Artes e Ocio de São Paulo, de inspiração portuguesa,
datados do princípio de século XX.
Após o almoço, descemos para a portaria e tomamos um táxi para a vea. Walter,
com 78 anos atualmente, se desfez do carro por conta da idade, circulando, o casal, hoje em
dia, de táxi. Celina havia me falado algumas vezes deste Grupo de Estudos, do qual
participa há cerca de oito anos junto com algumas amigas.
192
A iniciativa surgiu a partir de um Curso de Extensão Cultural na PUC, após o qual decidiram
convidar os professores para estes encontros, duas vezes por semana, com a duração de 4
horas cada dia. Os professores são convidados de acordo com os temas escolhidos dentro da
grande área reconhecida como “cultura geral”. Atualmente estudam Relações Internacionais
e Filosofia. Contemporânea, Celina fez questão de frisar, pois estudos sobre filosofia grega,
medieval etc. passam longe dos interesses do grupo. O local, o salão de festas de um prédio na
Gávea, onde mora uma das participantes. No ambiente, uma mesa com várias cadeiras,
quadro, uma bandeja com café, água e biscoitos. Das oito participantes duas se ausentam;
uma, por doença na família, outra devido às compras de Natal. São mulheres que se situam
em situação semelhante à de Celina, faixa etária em torno dos 65-75 anos, casadas, filhos
criados, netos, mulheres do lar, residentes na Zona Sul e que têm interesse em compreender
isto tudo que está ocorrendo por aí, quando a gente lê o jornal”. As primeiras duas horas são
dedicadas às Perspectivas para Integração no Oriente Médio”. O professor, um jovem
estudante na pós-graduação na PUC. Conversamos rapidamente, após Celina me apresentar ao
grupo, o que não o impediu de dirigir a mim perguntas investigativas, numa tentativa de me
“localizar” no mapa das relações acadêmicas da cidade do Rio de Janeiro: qual curso, se
mestrado ou doutorado, qual instituição, qual orientador. As alunas são aplicadas; umas mais
que outras; todas, porém, compraram a apostila que o professor havia preparado. Celina vai
um pouco além: mantém um pequeno caderno de anotações, que preenche no decurso da aula.
Um breve intervalo, então para a segunda parte da aula do dia. Agora, uma jovem professora,
talvez uns 23 anos, também estudante da PUC. Novamente uma apostila com as principais
idéias dos autores escolhidos. leram Foucault e Derrida; tiveram dificuldades com Deleuze.
O autor preferido de Celina nem é tão moderno’ assim: Espinoza. A aula daquele dia
dedicava-se à Wittgenstein. A professora então se envereda por algumas páginas. Apresenta
pelo menos cinco interpretações do que significaria “formas de vida" para Wittgenstein.
193
Percebo que as alunas procuram, em vão, acompanhar aquela linguagem abstrata, mas a
professora não ajuda, mantendo-se fixa no texto. Foi então que mais uma vez me excedi do
papel de observadora. Descobri naquele momento, quão poderoso instrumento reflexivo é (ou
pode ser...) a antropologia, e particularmente no que se refere à Filosofia Contemporânea, pois
a cada passo nas idéias filosóficas de Wittgenstein, afloravam-me situações da realidade que
as ilustravam. Pedi a palavra e comecei a exemplificar iias explanadas pela professora tais
como “... o sentido da linguagem é indeterminado porque a linguagem é infinita(...) os jogos
de linguagem fazem parte de uma forma de vida(...) diferenças de realidade são diferenças de
opinião...”. O primeiro exemplo, a situação das mulheres francesas que defendem o aborto,
alegando ser um direito sobre o uso do próprio corpo, enquanto setores conservadores alegam,
por outro lado, de que aquela criança também tem direito à vida. Imediatamente, uma das
senhoras apresenta sua opinião contrária ao aborto, tecendo alguns comentários. O segundo,
sobre o motivo das jovens, moradoras de favela, engravidarem precocemente (no caso, o valor
da experiência de ser mãe). Celina, com todo seu bom senso, rapidamente argumenta a
respeito do imperativo, hoje em dia, de se ter filhos mais tarde: “...o casamento hoje não tem
duração, se a mulher não estudar, não se profissionalizar, ela está perdida”. Outras vezes
Celina teria a oportunidade de expressar seu ponto de vista sobre o dilema entre
profissionalização e a experiência familiar, um dilema que esteve presente em sua vida e se
repete pelas gerações, ocorrendo o mesmo com sua neta, Marta. Naquela época, esta jovem
advogada trabalhava num escritório de advocacia, trabalho este que lhe absorvia intensamente
o tempo. Celina se preocupava (acredito que de forma discreta, sem manifestar claramente
sua opinião ao jovem casal) com o desejo do marido de sua neta de ter filhos. Como ter
filhos trabalhando o dia inteiro?”.
Tempos depois esta situação se modificaria, quando
194
Marta consegue um emprego em melhores condições – de carga horária e de salário - na Vale
do Rio Doce, e logo se engravida.
Ao final da aula, a professora me convida a retornar. Aproveito para conversar
rapidamente com algumas alunas. Pergunto à Celina se elas o terão férias, ao que ela me
responde que, de fato, aquele curso sofreria uma pausa, mas que suas colegas estavam
programando um curso de rias. Ao que parece é uma atividade vantajosa para o professor.
As alunas pagam bem, por aula/hora; sendo o valor acertado por cada aluna, ou seja, quanto
mais alunas, mais o professor recebe. Na volta, conversamos sobre a aula e Celina me
confessa não estar satisfeita com as aulas de Filosofia. Planeja, inclusive, se afastar das aulas,
alegando compromissos. “Mas você não sentifalta destas aulas?”, pergunto. “Eu já fiquei
sabendo de um outro grupo no Jardim Botânico e vou procurar me informar sobre seu
funcionamento”.
É uma fase peculiar do ciclo de vida familiar, esta, do casal Prado. Os filhos, criados e
independentes não mais ocupam o cotidiano dos dois, que é então dedicado, numa certa
intensidade, a si próprio. Digo “certa” porque, se Walter, aposentado, se dedica
exclusivamente aos passeios descompromissados pelo Leblon, às visitas meio que exageradas
ao médico, ao bate-papo como os porteiros vizinhos, com os amigos, e com os companheiros,
professores e funcionários da Academia que freqüenta, cabe à Celina a administração da
casa. Ela sente orgulho em ser eficiente; ao receber a quantia mensal do marido para as contas
e despesas, esforça-se por torná-la suficiente. Esta convivência intensa, acentuada frente aos
anos de vida conjugal - fizeram 50 anos de casados este ano – gera uma situação de
saturação. Indispõem-se por minúcias do cotidiano, como presenciei algumas vezes. Definiria
como certa impaciência frente ao outro e a confirmação, nesta altura da vida, óbvia, de que as
pessoas não se modificam facilmente. Tanto que o casal faz a maioria de suas atividades de
forma separada. Walter tem curiosidade com o mundo dos jovens, procura não se
195
envolver completamente com o mundo dos velhos, tão sisudo, de forma a o se render ao
envelhecimento. Encontrava-o sempre com roupas esportivas, de caminhada. Freqüenta,
segundo Celina, “...a Academia de Ginástica mais badalada da Zona Sul”, o que Celina
considera como exibicionismo custoso e desnecessário. Está sempre trazendo novidades para
casa, milagres restaurativos, rejuvenescedores, como uma nova vitamina, uma massagem
terapêutica, ou uma nova modalidade de aeróbica. Na opinião de sua esposa é hipocondríaco.
Está sempre fazendo regimes, preocupado em emagrecer. Antes de almoçar, segue o ritual de
tomar diferentes pílulas, vitaminas, fortificantes. Procura comer produtos atenuados, o pão, o
leite, o queijo, os biscoitos são diferentes dos que sua esposa consome. Apesar de não levá-lo
muito a sério em seu projeto, Celina tem o cuidado com suas preferências na hora das
compras, o que não deixa de ser uma forma de atenção e consideração ao parceiro. Walter
tem uma lida formação intelectual, além de praticar de forma amadora, o ocio de escritor.
Certa vez, conversamos sobre sua infância, sofrida, criado que foi pela a e tias, afastado
dos pais e irmãos. Filho mais velho, sua mãe foi acometida por um “mal” ( algo parecido com
o que hoje classificamos de depressão s-parto), e que rejeitou seu filho recém-nascido.
Seus avós maternos, temerosos pela vida do neto, pegaram a criança para criar. Sua mãe teve
outros filhos sem grandes problemas, mas mesmo assim Walter permaneceu com os avós,
escutando das tias que era um menino tão terrível, que quase havia matado a e. Walter
nunca quis falar em detalhes, nem gravar depoimentos, sempre ressabiado com minha
presença. Gostava de conversar, de uma companhia diferente ao almoço, de reclamar comigo
algum aborrecimento com a empregada, ou uma mania” da esposa, mas se recolhia frente a
qualquer inquisição mais objetiva de minha parte. O fato é que numa outra visita, posterior à
que me falou um pouco de sua vida, me mostrou um conto de sua autoria, no qual continha
algumas impressões de sua infância.
196
Celina procura se apresentar de forma pragmática, funcional e discreta. Diz que não
se presta a exibições. Sobre seu casamento, realizado em casa no interior de Minas, e não
numa igreja, diz-me que não gosta de espetáculo, nem do teatro das formalidades.
Recentemente, ao falarmos sobre suas Bodas de Ouro, e sobre as comemorações afirma sua
intenção de passar as bodas sem celebrações, planeja uma viagem pelo Chile, pois “não
acredita em alegria com data marcada...”. Não gosta de dicos, nem de se colocar como
doente”, envolvida que está constantemente com a administração dostica. Lembro-me
que certa vez, reencontrando-os após um período maior de afastamento, seu filho a
repreendeu indiretamente me perguntando: D. Celina não comentou com você que esteve
muito mal, tendo inclusive que ficar internada?”, comentário este endossado pelo marido. De
fato, ela não havia comentado. O importante aqui, porém, é perceber a situação de dupla
repreensão dos que lhe querem bem: primeiro por tentar esquecer, menosprezando a
importância deste acontecimento. Segundo, por ter adoecido. Um pilar não pode se ausentar,
muito menos falhar. O veredicto: é preciso cuidar de si, mantendo-se obviamente tudo como
está.
Faz compras, paga as contas, administra a empregada. Freqüenta uma academia de
ginástica, deveras “decadente”, como diz, “por orientação médica”, devido a problemas
cardíacos, sem grandes badalações, procurando se diferenciar do marido. Às vezes almoçam
juntos, mas os programas, fazem-nos separados. Cinema, teatro, até mesmo viagens.
“Gosto de almoçar fora, num bom restaurante, com uma boa
companhia. Às vezes saio com minhas amigas. Com o Walter não dá,
ele é muito anti-social”.
Visitam com freqüência a filha no exterior, mas cada um à sua vez. Na última viagem
à casa da filha em Washington, Celina teve como companhia a mãe do genro, sua vizinha no
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Leblon. Celina ficou cerca de um mês, enquanto que a companheira delongou-se, viúva que
é, com aquele único filho. Walter foi meses mais tarde, ficou talvez uns 40 dias e voltou,
segundo Celina, cheio de manias.
Ele voltou impressionado com as casas de carne de Washington
e agora, procura aqui no Rio algo similar. Já falei para ele que aqui
as coisas são diferentes, que as pessoas comem é churrasco.”
Walter se impacienta com as aulas de Celina, fazendo críticas constantes,
principalmente por que sua esposa tem a disciplina de estudar as anotações à noite, antes de
dormir. Acha que é perda de tempo. Certa feita, quando almoçava com o casal, Walter se
aborrece frente ao comentário de Celina sobre sua roupa. Ante a uma troca de críticas,
dizeres de como cada um suporta o outro, pergunto, talvez indevidamente, se pensaram
alguma vez em separar. “Claro que já, diversas vezes e Celina complementa: Quando me
separar de você, prometo esquecer seu nome em uma semana”. Mas, ao que parece, não
o se separar, acostumados que estão, um com o outro.
Dos netos, me conta que sempre os acompanhou de longe, o assumindo os cuidados
de avó.
“Como vim para o Rio e não tinha ninguém para me ajudar, tive que
me virar. Como cuidei dos meus filhos sozinha, acho que elas [as
filhas] tinham também que aprender.”
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De fato, a história de como este casal de mineiros, vindos de Belo Horizonte, veio a se
estabelecer no Rio de Janeiro há quase quarenta anos não deixa de ter um ar de aventura.
Celina e Walter vieram para Belo Horizonte para estudar. Celina vem de uma cidade
do oeste de Minas Gerais. Sendo a mais velha de 6 irmãos, traz muitas lembranças da
infância e da casa de seus avós. O ritmo familiar constantemente envolvido na religiosidade,
numa época em que o calendário orientava-se pelos dias santos e as festas religiosas: Celina
lembra-se de um lice de cristal, guardado em local central na sala, que era utilizado para
oferecer água ao pároco, quando a procissão lhe batia a porta. Lembra-se também do
calendário de jejuns religiosos: todas as sextas a “evitação” da carne; quarta-feira de cinzas e
sexta-feira da paixão, jejum completo dos mais velhos.
“Era uma comida muito simples, basicamente, arroz, feijão, uma
verdura de folha refogada, carne. Comíamos muito creme de milho
verde no lanche da tarde. Biscoito de polvilho, de araruta, bolo. O
rei da casa era o queijo. Mamãe também fazia requeijão e manteiga
em casa. Não me lembro de ver adultos tomando leite, era uma coisa
de criança pequena. Dormíamos muito cedo, almoçávamos às 10 da
manhã e jantávamos às 5 da tarde.”
Diferentemente de Walter, Celina teve uma trajetória na capital cheia de cuidados,
uma vez que uma “moça de família”, aos olhos de seu pai, não deveria circular em qualquer
ambiente. Assim, estudou como interna no Colégio “Sac Couer”, dirigido por uma
congregação de irmãs francesas. Celina tem lembranças amargas deste período, que se
traduziram, segundo ela, numa certa indignação com a injustiça e a hipocrisia do mundo.
Missa em latim, uniforme de gala, licença para ir ao banheiro, horário delimitado para dormir
e acordar; e uma grande injusta. Enquanto a maioria vivia sob rígidas regras da existência
frugal, as famílias influentes obtinham privilégios alimentares, inclusive - para suas filhas.
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Tanto que detesta até hoje o café com leite que era obrigado a tomar. “Tem um cheiro
insuportável que me lembra o internato”. Sobre a experiência religiosa, tanto ela como
Walter vivem afastados do mundo das missas e orações; possuem uma visão crítica ao que
julgam ser uma forma dos homens se iludirem. O que, de alguma forma, veio influenciar a
decisão religiosa dos filhos de não se casarem no religioso. Do internato Celina foi viver num
Convento para finalmente ir morar no Hotel Globo”, de família conhecida, de onde saiu para
se casar. A qualidade do ensino no tempo de internato o permitiu que Celina cursasse
Arquitetura como gostaria :
O ensino era muito fraco em Matemática, por exemplo.
Tínhamos aulas com freiras sem nenhum talento para o magistério.
As aulas de Filosofia eram ministradas pelo Monsenhor Capelão,
um velhinho de 85 anos que não escutava direito... As freiras
eram exigentes quanto à etiqueta. Preocupavam-se com mesuras
francesas, como exigir que comêssemos banana e laranja no
prato”.
Celina insistiu em o aceitar intromissões familiares quanto à escolha do cônjuge. E
enfrentou desafios. Além de casar-se com um “estranho(de família “desconhecida” ) não
voltaria a viver em sua terra natal. De qualquer forma, o futuro esposo era um bacharel,
homem da cidade. Celina me explica que seu pai, comerciante de algodão, apesar de ser
proprietário de terras, nunca deixou que os filhos se aproximassem da realidade rural.
Papai acreditava que a terra embrutecia os homens. Ele fazia
questão que todos estudássemos. Tanto que quando me casei não
sabia nem coar café. Lembro-me que na primeira visita que meu
sogro nos fez, ele foi à cozinha me ajudar. Minha mãe mandou então
uma velha empregada, do tempo de minha infância, para ficar
200
comigo. Era uma empregada muito boa, mas bebia. Fui aprendendo
aos poucos com ela. Nem caderno de receitas eu tinha”.
“A família de Walter não era muito voltada para cozinha, logo,
acho que o estilo de minha casa dominou. Passamos a comer angu,
que não estava acostumada, mas que meu marido fazia questão.
Outra coisa que estranhei foi o hábito de Walter comer bife no café
da manhã. E o tamanho do bife também. Ele gostava que fosse bem
grande, e me dizia, “Celina, quero o bife do tamanho daquelas
placas de ponto de ônibus da rua, redondo e grande’”.
Em certo momento da vida conjugal, estabelecidos em Belo Horizonte, Walter vê-
se em dificuldades financeiras; cansado da advocacia, sem sucesso na atividade comercial na
qual havia se arriscado, lança-se ao Rio de Janeiro em busca de uma oportunidade: a solução
de um momento desorientado, a tentativa de recuperar o Direito. Foi assim que a família
desembarcou em Ipanema, um ano depois do marido. Walter faz concurso para juiz e se
estabiliza na cidade.
“Saímos do Santo Antonio, um bairro montanhoso de Belo
Horizonte, que não tinha nada, para morar em Ipanema. A praia,
tudo plano, a praça para as crianças, fizeram com que eu me
adaptasse rapidamente. Se tivesse ido para Tijuca ou Vila Isabel
talvez tivesse estranhado”.
Circularam em diferentes apartamentos: Botafogo, Copacabana, Laranjeiras e
finalmente Leblon. Nós sempre vivemos no que é nosso”. Sempre no movimento de
tornarem-se proprietários, e depois venderem para adquirir imóvel melhor. “Daqui,
iremos para Jacarepaguá”. Celina está se referindo ao plano funerário de um cemitério
naquela região.
201
Celina não janta, hábito que perdeu, como toda a família, logo depois que veio de
Belo Horizonte, quando ficou sem a empregada que havia trazido consigo da cidade mineira.
Outras transformações alimentares ocorreram com a mudança:
“Passei a comer coisas que no meu tempo de infância não
comíamos, como bucho, língua, vísceras, pedaços não nobres, que
eram distribuídos para os necessitados no matadouro de nossa
cidade. Imagino meu pai vendo-me comer estas coisas! Aprendi a
comer com amigas, empregadas e em restaurantes. Lembro-me que
o bucho conheci na forma de “Dobradinha ao estilo português”, que
Walter me levou para experimentar em um restaurante da Lapa.
Outro hábito que adotamos foi o de comer feijoada, assim como
comer feijão preto.Na época eu só via feijoada por aqui, depois, este
prato começou a ficar mais comum em minha cidade e também em
Belo Horizonte. Assim também aprendi a comer diferentes tipos de
peixe. Estávamos acostumados a comer somente frango,leitão,
lombo e pernil. Os doces também se modificaram. Dos doces de
frutas, o único que ainda faço é o de goiaba em calda. Doces
complicados como Doce de cidra e Doce de laranja da terra, como
bastante quando tenho oportunidade. Mato a saudade, mas não
faço. Aprendi a fazer os doces daqui, coisas com creme, sorvete,
tortas .”
O casal tem cinco filhos, todos casados, cinco netos, uma bisneta. A maioria reside no
Rio de Janeiro, nas proximidades do Leblon. Lúcia Helena tem o nome das respectivas avós.
Casou-se jovem com um italiano e aos dezenove anos já era mãe. Apesar de ser graduada em
Estudos Sociais numa faculdade particular dedica-se ao gerenciamento do Salão de
Cabeleireiros do marido. Recentemente recebeu o convite de gerenciar a parte financeira de
um outro salão, de um ex-sócio do marido, construindo assim lentamente uma possibilidade
profissional. Tem 3 filhos, a primeira, advogada, casada e com uma filha; o segundo,
formado em Arquitetura, mora atualmente na Itália, com o objetivo de lá desenvolver sua
carreira, e o terceiro ainda estudante do ensino médio vive com os pais. Lúcia visita
freqüentemente os pais, visitas breves, no meio do dia, entre uma coisa e outra; segundo
Celina, é a filha que mais olha pelo casal. O segundo filho, Paulo Roberto tem o nome dos
202
avós. É casado, sem filhos, vivendo atualmente em Minas Gerais por conta do trabalho; Paulo
é fiscal da Receita Estadual naquele estado. Celina o define como “expansivo” por demais e
“irrequieto”. Certa vez disse-me que Paulo era ótimo para os amigos, mas nem tão bom para
os pais, pois lhes causava muita preocupação. Paulo paquerava as empregadas, pintou
camisetas para vender na feira, quis montar uma Escola de Dança. Da experiência de um ano
nos Estados Unidos em intercâmbio cultural, Celina acha que o prejudicou, pois “ficou
largado”, fazendo amizade com alguns “hippies”. Custou a definir-se profissionalmente,
abandonando o curso de Engenharia Civil na PUC, sentindo grande identificação com a
experiência artística e o discurso contestatório. Graduou-se por fim em Matemática na UERJ
e, com o incentivo dos pais, passou a preparar-se para um concurso público. Presenciei a
descontração” de Paulo num almoço em comemoração ao dia dos pais, no qual estiveram
presentes os filhos homens, com suas respectivas esposas. Antes do almoç
o,
estávamos aguardando a presença de todos quando Paulo faz o seguinte comentário com a
e: “Mãe, a senhora está toda arrumada assim porque a Rogéria está aqui?”
Walter, o terceiro filho, carrega o nome do pai, que segundo Celina, por ser muito
orgulhoso, quis um filho com seu nome. Economista, com mestrado e doutorado pela USP,
Walter trabalha há muitos anos no BNDS. Casado 18 anos o tem filhos. Celina o
compara ao irmão mais velho: “Alguns filhos vêm mais fáceis para compensar os mais
difíceis”.
O nome de Carmen foi uma escolha pessoal de Celina, numa decisão conjugal da
mulher nomear as filhas, e o homem, os filhos Não gostaria de passar pela situação de ver
Walter homenagear uma ex-namorada colocando seu nome numa filha minha”. Estudou
Belas Artes na UFRJ, casando-se com um economista do BNDES. Este casal tem larga
experiência de vida no exterior, morando primeiramente em Londres, para depois de uma
temporada no Brasil, se fixar nos Estados Unidos, onde o marido trabalha no BIRD. Celina
203
o acredita que voltem a morar aqui, uma vez que se estabeleceram em Washington. Dois
filhos que quase já não falam mais o português, casa própria, emprego para ambos. Lembro-
me de Walter comentar a última vez em que seus netos “americanos” ( foram pequenos para
) vieram ao Brasil. Disse-me de uma forma que não tinha tanta intimidade enquanto avô,
que são muito mal educados, “impossíveis". E que o programa preferido dos netos no Rio
era comer pastéis.
Quando voltou de sua viagem a Washington Celina me contou algumas
particularidades do novo padrão alimentar da família de sua filha, como eles estão cada vez
mais sintonizados com o “American Way of Life”. Coisas tipo: uma comida muito sem sabor,
feita em grandes quantidades. O genro compra carnes para o consumo de 15 dias, a filha faz
comida para 3 dias seguidos, os doces são basicamente sorvetes. As crianças passaram por
uma adaptação alimentar devido à escola. O neto mais velho come macarrão, puro, sendo
este inclusive o lanche que leva à escola, o que causa bastante estranhamento aos colegas
americanos. Atualmente, a apaterna, que viajou com Celina e tem o costume de ficar uma
temporada maior com eles, tem tido algumas conquistas: agora o neto já aceita polvilhar um
pouco de queijo em cima do macarrão...
Fernando, o caçula, tem sido o foco de preocupações atuais de Celina. Gradua-se em
Economia por insistência dos pais, pois como músico que é, dizia aos pais que “não
acreditava em dados...”. Morou com os pais por mais tempo, dando aulas de guitarra para se
sustentar. Juntou-se então à sua namorada e foram morar num apartamento dos pais em
Copacabana, vivendo atualmente de mesada. Neste meio tempo graduou-se e pós-graduou-se
em Direito, não conseguindo ainda encontrar, segundo Celina, um caminho”, pois não quer
fazer concursos... Digo a ele que se não se adaptar, vai ter que ir para Chapecó [local de
origem de sua namorada] plantar morangos com a família dela”. Sinto em Celina a
preocupação em ver os filhos “encaminhados”, dentro de certa segurança social. E se ele
204
cursasse Música na universidade, trabalhando posteriormente com ensino?”, pergunto eu.
“Ah, até lá eu já embarquei”.
Celina orgulha-se em me dizer que faz lingüiças caseiras. Explica-me o modo de
fazer, o segredo para não estragar e o quanto sua família aprecia. “Paulo gosta de brincar
com a namorada, dizendo que só se casa se ele aprender a fazer lingüiça comigo”.
As refeições são acompanhadas somente por água. As bebidas alcoólicas, abolidas,
com exceção de uma garrafa de vinho, em homenagem aos filhos, aberta no Natal. Tal
restrição deve-se ao passado alclico de Walter, que, ao que parece trouxe muitos problemas
ao casal.
“Teve uma época que Walter bebia muito. Era nojento. Não sei
exatamente o porquê, talvez seja genético. Vivia aprontando,
criando situações que não posso lhe falar. Só sei que tive agüentar e
criar os filhos, procurando minimizar as conseqüências. Atualmente
ele não bebe, e por isto não sirvo bebida, para não despertar o
desejo. Eu particularmente não gosto de cerveja. Não uso
refrigerante, nem bebo chá. Trago a idéia dos antigos de que chá é
coisa de gente doente. Aqui bebemos suco. Vinho eu acho chic, de
bom gosto, bom tom, mas quando tomo, começo a tossir. O médico
me disse que talvez tenha alergia ao quinino”.
A paraibana Luzia trabalha para a família há 32 anos como empregada doméstica.
Casada em sua cidade natal, seu marido veio para o Rio deixando-a com um filho de colo. O
marido retorna após o pai de Luzia morrer na esperança de se apropriar de parte da herança.
Ela engravida novamente e ele desaparece. O irmão, então, já residente no Rio, vai buscar
Luzia, os sobrinhos e a mãe. A primeira vez que conversei com Luzia, ela disse-me que
morava atualmente no Recreio dos Bandeirantes, mas que morou durante muito tempo em
205
Botafogo, no Morro de Santa Marta. Luzia ajudou Celina a criar seus filhos, tem bastante
intimidade com todos, assim como os filhos de Celina com ela. Contudo, há limites e
insatisfações na opinião de seus pates. Walter se impacienta freqüentemente com ela,
principalmente com seu jeito descontraído de sair da cozinha, pano de prato ao ombro,
participar de uma conversa ou outra na sala. Celina, por sua vez, diz não ter maiores
expectativas:
“É empregada, continua empregada e será sempre empregada. Ela
não tem iniciativa. É daquelas pessoas que varre o sujo para debaixo
do tapete, não limpa debaixo dos veis, faz de boba. Tem o
temperamento ótimo. Entende o Walter com aquele gênio terrível. É
bem humorada. Mas não tem interesse. Como pessoa é ótima, mas
como profissional, zero. Tenho a preocupação de ter sempre todos os
temperos na cozinha e quando deixo por sua conta temperar a carne,
ela usa alho e sal. Tem dias que sua comida está tão insossa que
brinco com ela: ‘Luzia esta comida que você fez está igual a da sua
mãe’. A mãe dela tem sérios problemas de hipertensão e Luzia tem
que preparar para ela uma comida específica, quase sem sal”.
Celina tem seguraa na crítica que faz à Luzia por ter já passado por outras
experiências com empregadas. Em termos de cozinha traz como exemplo de competência
uma cozinheira free-lancer, “banqueteira” que tinha como hábito contratar em grandes
eventos, quando recebia um número maior de convidados.
“Quem me indicou foi uma amiga que utilizava seus serviços. Ela
era ótima, daquelas que mexia seis panelas ao mesmo tempo.
Rápida e eficiente. Parece-me que trabalhou durante muitos anos
para uma família de muito requinte, e por isto, não sabia fazer
muitos pratos com também dava sugestões. Eu aprendi muito com
ela”.
206
Atualmente o casal não tem se reunido com todos os filhos ao mesmo tempo. Visitam-
nos cada um à sua vez, alguns freqüentemente, outros de forma esporádica, e a filha que
mora no exterior, raramente. Celina me explica que tem evitado organizar eventos solenes,
pois Walter se aborrece com a casa cheia.
“São os filhos, as namoradas, os netos, as namoradas dos netos, a
neta com o esposo, a mãe do genro que vai passar o dia sozinha,
alguns amigos íntimos dos filhos, enfim, você sabe como é. Sinto-me
frustrada por que gostaria que os filhos se encontrassem.
Antigamente recebíamos todos para o almoço de sábado. Mas como
Walter não quer a casa cheia, não falo nada, fico quieta e deixo
como está.”
Podemos destacar alguns tros gerais característicos a este grupo familiar, como a
fase de afastamento dos filhos do núcleo doméstico para a formação de novos grupos
familiares e a presença de gerações posteriores aos filhos, como netos e bisneta. É um grupo
que traz consigo a hisria da migração regional, de uma capital para outra mais central.
Apesar da família ampliada, o casal vive em sua própria residência, não tendo projetos de
passar a viver com os filhos. Mantém relações formais com os vizinhos, e seletivas com
parentes. Os amigos são frutos de composições ao longo do tempo, que residem em
diferentes bairros da zona sul. Trata-se de um grupo que valoriza a educação superior,
intelectualizado, que apresenta restrições à experiência religiosa e que circula com maior
freqüência pelo exterior.
Uma pessoa é resultado de conflncias; e os estilos de vida, expressões de campos
específicos de ação. Precisamos reconhecer que as pessoas vivem suas vidas tendo em vista
207
horizontes limitados que se sobrepõem. Longe de pretender esgotar uma realidade,
demonstrar sua complexidade me parece o primeiro passo.
GRUPO DO LEBLON
Celina Walter
Lucia
Roberto
Fernando
Carmem
Walter Residentes em Belo Horizonte
Marta Residentes do Leblon
Residentes na Zona Sul
Residente na Z. Sul, de origem italiana
Residente na Itália
Residente em Minas Gerais
Residente nos Estados Unidos
209
CAPÍTULO 5
Teias humanas, urbanas: interdependência, autolimitação e
incorporação
5.1. Das camadas médias
Não existe um momento definido que demarcasse a passagem da Alta Idade Média e
o Renascimento; podemos identificar um processo, lento e contínuo de transformações.
Bowsma (1990: 158) refere-se a esta passagem como “a transmissão de séculos claramente
medievais para aqueles que quase o o são”. Outro mundo está despontando, definindo-se
um quadro de incertezas onde a suma teológica e a catedral deixam de ser modelos de
referência. A sociedade européia sente-se - o que podemos constatar através de depoimentos,
registros literários - caminhando para um mundo mais perigoso e individualista. Esta situação
traz consigo um conjunto de emoções fortemente vivenciadas, caracterizado como
ansiedade”: a angústia e a perplexidade diante de um mundo em transformação, uma
mudança sociocultural que possibilita novas experiências.
A retomada do contato comercial das cidades italianas com o Oriente, favorecida
pelas Cruzadas, cria condições de florescimento de uma mentalidade burguesa mercantil, uma
nova cultura que, ao invés de submeter-se à hierarquia medieval de valores, é constituída
num contexto de viagens, deslocamentos, feiras, mercados. Um contexto de vida efervescente,
em que as experiências se misturam e se relativizam, onde nada é delimitado. Este novo estilo
210
de vida tem como lócus por excelência a cidade, que já neste período vem assistindo ao
crescimento acelerado, provocado principalmente pelo intenso movimento migratório advindo
da zona rural. A cidade é vista, a princípio, e com grande dose de nostalgia, como um espaço
de corrupção do mundo agrário. A cidade imunda, cinzenta, confusa representa a “perda de
uma ordem”, espaço que assiste a deterioração das relações sociais: a vida passada entre
estranhos, predadores potenciais, que simbolizam simultaneamente a novidade e a
insegurança. A acumulação de mudanças sociais excedeu à flexibilidade do arcabouço
cultural vigente; a intensa mobilidade espacial e as novas possibilidades de mobilidade social
o gerar, por exemplo, a proliferação de grupos sociais ambíguos, inexistentes na hierarquia
medieval.
O tempo, por sua vez, passa a ser medido e administrado; exercendo-se o controle do
fluxo temporal através do relógio. Tal mudança significa estar o homem renascentista não
mais submetido ao ritmo da natureza e sim à vontade humana. O futuro depende da ação
humana, sendo por isto cada vez mais incerto. Instaura-se um tipo de individualismo no
mundo cristão que apresenta o humanismo como valor. Uma nova percepção orientada pela
discussão moral e potica de uma vida ativa, balizada pelo exercício do livre artrio.
A ansiedade, neste sentido advém da angústia e perplexidade diante do mundo, diante
da incerteza do futuro que se apresenta muitas vezes através de uma obsessiva preocupação
com a morte, com o julgamento final. A cultura medieval, que até então havia servido como
mapa de orientação à sociedade euroia, estabelecia uma ordenação do universo claramente
delimitado: o sagrado distinto do profano, a virtude do vício, o corpo da alma. A ansiedade
decorre do medo de se transgredir estes limites, que por sua vez já são insuficientes para
operar a realidade de forma plausível e prativel. A mudança, assim, passa a ser percebida
como quase insuportável, e mais que a mudança em si, a falta de habilidade em lidar com ela.
A nova cultura, renascentista, reinstala a possibilidade de se perceber o mundo como
211
criação do homem; melhor dizendo, dos homens, uma vez que traz consigo a relatividade da
realidade social. Consolida-se a mentalidade do registro, a confiança na mensuração. A nova
ciência da probabilidade surge como base das escolhas, uma forma matetica de se lidar
com o indeterminado, com o infinito. Antes que fronteiras externas, surge um novo grupo de
limites ordenadores da vida social, baseados no autocontrole, na vigilância, na auto-
definição.
Resultado da expansão interna da sociedade, com a criação de novos óros e
instituições sociais, a diferenciação do trabalho é testemunha da consolidação de meios de
troca móveis e unificados. Na medida em que promove a integração de grandes áreas, o
dinheiro ou em outros termos, a interdependência econômica se torna símbolo da
formação de cadeias humanas cada vez mais sofisticadas, diferentemente da imobilidade da
riqueza feudal nas mãos da Igreja e dos senhores territoriais seculares. Elias (op.cit.) fala-nos
de momentos do período carolíngeo quando o rei era obrigado a viajar com a corte de um
palácio imperial a outro, a fim de consumir no local o produto de suas propriedades. Além
disso, fica evidente neste período o sentimento de desconfiança pelo dinheiro, expresso aqui
por um representante da baixa nobreza (p.71):
Mauprat não pedia dinheiro. Valores monetários eram
o que os camponeses dessas terras obtinham com grande dificuldade
e, alguns deles, com a maior relutância. “O dinheiro é caro”, era
um de seus provérbios, porque o dinheiro representava para ele
alguma coisa outra que não o trabalho físico. É um comércio com
coisas e pessoas de fora, um esforço de previsão e cautela, uma
espécie de luta intelectual’ que o arrancava violentamente de seus
hábitos, em uma palavra um esforço mental e, para ele, isso era
mais doloroso e perturbador que tudo.
Se por um lado a cidade representava a insegurança do desconhecido, por outro
212
oferecia a promessa de liberdade. A cidade se torna cenário de novas formas de assentamento
e integração, formas estas que requerem cada vez mais a ampliação do espaço mental além do
presente, como o exercício da previsão. Neste novo cerio acelera-se a circulação social de
grupos e indivíduos.
A ascensão da burguesia ocorre concomitante ao deslocamento do centro de gravidade
política e social para as várias sociedades burguesas nacionais, quando os laços entre as
sociedades aristocráticas da corte de diferentes nações são lentamente afrouxados. Tal
empreendimento se tornou possível graças ao monopólio da força física e da tributação,
exercido pelo processo hisrico de ascensão desta nova classe ao poder. O intuito final,
restringir a livre competição a meios não violentos, que passa a ser expresso, então, pela
concorrência por oportunidades econômicas.
O movimento contínuo de monopolização a abertura de novos setores enquanto
outros se fecham -, aliado aos diferentes níveis de desenvolvimento das regiões
interdependentes são, de acordo com Elias (op.cit.), fatores cruciais para a elasticidade da
sociedade industrial. A prova eliminatória deste processo define-se pela livre competição,
perfazendo-se um ciclo que se repete continuamente: uma luta entre muitos por recursos ainda
o monopolizados até que estes se tornem coletivos, e os meios de luta, refinados. As
oportunidades proporcionadas pelo monopólio passam a ser distribuídas cada vez menos por
um favor pessoal e interesses de indivíduos e cada vez mais em conformidade com um plano
mais impessoal e exato. A luta pelo monopólio define-se não mais pela destruição, mas pelo
controle dos ganhos e perdas, divididos por toda cadeia envolvida. O controle é decidido,
assim, por provas de eliminação que se repetem, sem o uso de armas, através do
preenchimento de posições decisivas reguladas pela “máquina social”. Aos personagens
deste processo cabem novos desafios para conquista do espaço social. Este novo modelo, não
promove diferentes meios de seleção, como produz tipos humanos específicos. Estes se
213
utilizam de ferramentas abstratas, como o desenvolvimento de habilidades administrativas,
para a ocupação de posições intermediárias nesta cadeia humana, com o desempenho de
funções cada vez mais especializadas.
O surgimento da classe média veio desmentir as previsões do pensamento social de um
mundo dividido entre “monopolistas exclusivos” e a maioria excluída, ou de empresários e
assalariados. De definição difusa, observa-se certa dificuldade em se estabelecer critérios
marcadores de constituição destes grupos, que se traduz no uso do plural, classes médias ou
camadas médias. Mills (1976) utiliza o termo “nova classe média”, ou os “colarinhos
brancos”, para tratar deste setor social que tem se mostrado central para a vida cultural e
material da sociedade contemporânea. Diferentemente do início do séc.XIX quando a maioria
da população ativa nos países capitalistas do primeiro mundo era composta por pequenos
empresários independentes, este novo setor social, de grande expansão durante todo o século
XX, define-se basicamente por trabalhadores assalariados que vêm ocupar posições
intermediárias na sociedade industrial. Ele representa a ascensão do “homem modesto- nem
tão independente quanto o agricultor, nem tão confiante em suas oportunidades quanto o
homem de negócios que vai ocupar os espaços oferecidos pelo movimento de
burocratização e racionalidade da sociedade moderna. Trata-se de espaços proporcionados
pela dinâmica interna das sociedades industriais, onde a divisão social do trabalho leva à
especialização de competências e a exigência cada vez maior da manipulação de símbolos de
forma abstrata, sejam papéis, dinheiro ou pessoas. O fato crucial é que a oportunidade de
receber uma renda, exercer um poder, gozar de prestígio, de adquirir habilidades são
determinadas principalmente pelo mercado de trabalho e não simplesmente pelo controle de
uma propriedade. Mills ainda os definiria como “auxiliares da autoridade”, dada sua posição
intermediária, mas imprescindível, nas cadeias de interdependência econômica.
A investigação destes setores implica na composão de matrizes analíticas, na
214
medida em que sua inserção na sociedade fundamenta-se em arenas outras que não somente o
trabalho. A associação da perspectiva estrutural que analisa estes setores de acordo com sua
posição no sistema produtivo com a perspectiva da estratificação que esmiúça as grandes
divisões através das nuances de status e prestígio - visa abarcar as descontinuidades de ethos e
visões de mundo presentes nestes setores. De natureza heterogênea, ou seja, altamente
diferenciada internamente, as camadas médias apresentam ainda como característica a
instabilidade, dada a grande mobilidade espacial e social a que se sujeitam. Esta sua posição
intermediária, instável, na estrutura social lhe proporciona traços específicos que certamente
influencia sua visão de mundo. Ante tal situação de “diversidade e “indefinição” de limites,
a estratégia que se faz mais efetiva para localização dos setores dios baseia-se muitas
vezes na auto-representação destes segmentos, ou seja, na observação dos critérios utilizados
por estes grupos na demarcação de suas fronteiras culturais.
O contexto de uma sociedade urbana industrial de localização destes setores estimula
questões como as possíveis relações entre as camadas médias e a ideologia moderna. A
questão da modernidade apresenta-se como tema presente no pensamento social, seja pela
diversificação de papéis estudada por Durkheim, seja através da burocratização da vida
cotidiana, descrita por Weber. São reflexões que tratam da realidade (aparentemente)
paradoxal das sociedades complexas industriais caracterizadas pela despersonalização e
liberdade crescentes no meio social.
Na verdade, antes que paradoxais são fenômenos complementares, diferentes facetas do
individualismo. Formas diferenciadas do processo de “libertação” das amarras sociais, estes
tipos de individualismo são, como formas predominantes, historicamente localizados
(Simmel, 1971, 1979). O individualismo quantitativo, baseado na igualdade natural do
homem em geral, se contextualiza no século XVIII, expressando os ideais da Revolução
Francesa. Era a igualdade que libertava os homens, o princípio da universalidade que rege o
215
sistema político moderno. o individualismo qualitativo apresenta-se como forma
predominante do século XIX, enfatizando a particularidade, a substituição da igualdade pela
diferença, onde cada indivíduo é resultado de uma configuração única. Era preciso libertar-se
da homogeneidade aparente; se o Romantismo vem expressar essa guinada no plano
imaginário, a divisão social do trabalho a confirma no plano prático.
Ao focalizar-se na relação existente entre o ambiente da metrópole e o comportamento
individual, Simmel (op.cit.) identifica o espaço urbano da sociedade moderna como lócus
privilegiado desta tensão. Vista sob o ângulo das interações, ela se encena entre o princípio
da universalidade e a singularidade de cada um. Enquanto o primeiro se manifesta pela
padronização e homogeneização inerente à sociedade de massas, estimulados pela economia
monetária, o segundo se evidencia na busca da singularidade, na independência e autonomia,
nas relações sociais difusas.
Autores que se dedicam à temática do individualismo baseando-se na experiência
etnográfica com camadas médias (Abreu, 1987; Heilborn, 1984; Lins de Barros, 1987;
Salem, 1987; Velho, 1973, 1981, 1986, 1998) ressaltam as modificações ocorridas neste setor
frente ao acelerado processo de modernização que se instalou na sociedade brasileira a partir
da metade do século XX. Se em países europeus, como a França, a classe média têm como
marcas a estabilidade e profundidade geracional, em países de Terceiro Mundo, como o
Brasil, sua emergência é relativamente recente, configurando-se uma pequena parcela da
população, sofrendo grande instabilidade. Muitas vezes a classe média brasileira foi descrita
como conservadora e sem autonomia; como grupo legitimador do Golpe Militar de 1964, que
se beneficiou do período do Milagre Brasileiro. São camadas que se formam em oposição à
classe trabalhadora apresentando a oposição entre trabalho manual e trabalho intelectual
enquanto valor -, compostas por trabalhadores assalariados em profissão técnicas e liberais.
Sua ascensão à posição intermediária da estrutura social, quando ocorreu nas gerações
216
passadas, deve-se freqüentemente à atividade comercial e ao emprego público, que vem
favorecer a educação e profissionalização da geração seguinte.
No caso das famílias estudadas podemos afirmar que pertencem aos estratos médios
da sociedade carioca, baseando-se em diferentes critérios. A renda familiar, que varia entre 4
e 15 mil reais ao mês, e o tipo de ocupação, profissionais liberais, empresários, professores,
funcionários blicos de nível médio e superior, o dados significativos. Associada
diretamente a tais fatores encontra-se a sua localização no terririo urbano; são moradores de
bairros reconhecidos como de classe média, confirmando a existência de uma cartografia
econômico-simbólica na cidade do Rio de Janeiro. Para Mills (op.cit.) o white collar traz
consigo o imperativo de estar sempre adiante”, competindo basicamente em duas frentes de
status, o local do trabalho (a ocupação) e o local de residência.
Todos os três grupos assistem ao longo de suas histórias a ascensão social,
acompanhada pela mobilidade espacial. Sandra Pinzón casa-se em Nova Iguaçu, reside em
Bonsucesso, na Penha até se instalar em Jacarepaguá, com a marca definitiva da casa própria.
Atualmente, ante a instabilidade de sua situação, seja devido ao tipo de ocupação, seja devido
à condição conjugal prepara-se para uma nova mudança de moradia, permanecendo, porém,
na mesma região, e com o intuito de se instalar em casa própria. A história de suas casas, a
conquista da casa própria é, por sinal, ponto de destaque em todas as narrativas. Nós sempre
moramos no que é nosso” diz Celina Prado. A família Soares traz fortemente nesta, ou nas
gerações anteriores de Bernardo, a situação do êxodo do interior do estado para a capital, além
de se mudar da Tijuca para o Grajaú, novamente como o desfecho de uma história de busca de
estabilidade, no emprego e na casa própria. A família Prado, por sua vez, traz a marca das
desigualdades regionais, quando se decide, em busca de melhores perspectivas (ou nos termos
de Elias, de espaços de conquista de monopólios), se estabelecer na cidade carioca.
Certamente a possibilidade deste espaço social acolher a inserção, ou o trânsito, destes grupos
217
deve-se à complexidade da vida econômica da grande metrópole com a sofisticação da divisão
social do trabalho e da especialização. De fato, vemos em cada grupo diferentes profissões, o
que nos remete à Park (1979) ao afirmar que o espaço urbano possibilita o desenvolvimento
de talentos individuais, tendo condições de abarcar do filósofo ao porteiro.
É também comum a estes três grupos a busca constante de uma situação estável, na
figura do emprego fixo, carteira assinada, ou emprego público. As categorias empregado/
desempregado são significativas neste meio, a ponto de não se mencionar abertamente a
situação do desemprego. Não ter uma profissão, ou não estar inserido no mundo do trabalho
representa muito mais que ausência de um salário, na medida em que significa uma situação
de anomia para estes setores, associada freqüentemente ao sentimento de exclusão, de
humilhação, de invalidez e de fracasso. Celina ao narrar os motivos da vinda de Walter para
o Rio apenas tangencia a situação do marido no início da vida conjugal ele não queria mais a
advocacia, tentou o comércio, mas não tinha o perfil, ele não estava se dando com nada”.
Num ambiente de alta competição e trânsito, o emprego fixo, ou a estabilidade, representa a
possibilidade do progresso, uma vez que é a esperança cotidiana e disciplinada na
acumulação que vai gerar conquistas materiais significativas. Por conta da necessidade de um
fluxo monetário crescente, as estratégias de manutenção do padrão de vida assumem
diferentes formas, como a execução de horas extras, ou o trabalho por conta própria.
aquelas que vendem tortas para os conhecidos, como a vizinha de Elisa, ou aquelas que
ministram cursos e workshops nos finais de semana, como Sandra com o Curso de
Eneagrama. A micro-empresa, por exemplo, vem representar as aventuras do trabalho
independente e, muitas vezes informal, da classe média.
A estagnação social é fator gerador de angústias, provocando a sensação de não “se
estar indo a lugar nenhum” ou na linguagem coloquial, de “estar [somente] se virando”.
Torna-se um imperativo mudar, ou, melhorar de condição. Um dos motivos da mudança de
218
perspectivas de Sandra, quando desistiu de sua atividade comercial num shopping em
Jacarepaguá, foi exatamente a sensação de muito trabalho e pouco retorno, dado as exigências
tributárias de se pertencer ao shopping. Mudança esta não feita por Sandra, mas também
por outros comerciantes. Lembro-me de Eduardo, um colega seu dos tempos de comércio, que
também abriu o desta atividade para se tornar agente da Pocia Federal. Sandra tamm
pressente dificuldades para a vida profissional da filha mais velha, “a área social é uma área
muito difícil”, apesar de se orgulhar de sua ousadia pela opção de se dedicar ao Terceiro
Setor”. Celina, por sua vez, tem o desafio de conduzir as incertezas do caçula; anseia em
partir” tendo todos os filhos já bem “instalados”. Se o trabalho, na sociedade contemporânea,
é signo representativo da emancipação feminina, ele também é cenário das crescentes
pressões e frustrações tanto para homens quanto para mulheres. profissões em crise, como
a dos bancários, e outras em queda de prestígio, como a dos professores, o que gera angústias
pela situação de insegurança, ou subemprego, uma vez que a degradação das ocupações afeta
o status e a honra.
O significado do trabalho depreende-se não só da renda que gera, como também dos
significados que lhe são atribuídos que, na história das sociedades ocidentais m se
polarizado entre duas vertentes básicas. Como instrumento ou meio de se atingir a um fim,
algo penoso, mas necessário e compulsório; e em seu significado intrínseco, onde a satisfação
do trabalho não decorre da renda, “da salvação”, do status ou do poder, mas do trabalho
como arte, de potencial criador e humanizador. Acredito que a primeira concepção aparece
visível na Família Soares, onde o trabalho se torna um exercício disciplinado e sacrificante de
conquista. Tanto Elisa quanto Bernardo não falam de seu trabalho, nãom muito o que dizer;
apenas das exigências do cumprimento do horário feito pela juíza novata, ou o comentário de
que Bernardo trabalha muito, de que não tem hora para chegar. Sandra e suas amigas
procuram, por outro lado, cultivar a experiência do trabalho no sentido de realização pessoal:
219
“Eu amo meu trabalho”. Sandra tem o seu trabalho como forma exuberante de si própria. Ao
que parece trata-se de um valor disseminado por sua rede. Madeleine, sua irmã, se torna
massoterapeuta por vias alternativas e Laura, uma tradutora que trabalha de forma
independente. Apesar da ausência de trabalho gerar o sentimento de culpa e exclusão, para
Mills (op.cit.), o evangelho do trabalho, ou o sentido de sua obrigação moral, tem sido
substituído na sociedade contemporânea pela ética do lazer, ou as oportunidades do consumo
do lazer. O ócio dá ao trabalho muitas vezes o seu significado. Em contraste à classe
trabalhadora, é esperado das classe média o usufruto do tempo como lazer, seja através das
compras, dos passeios na praia ou no campo, nas viagens internacionais.
A educação para os setores médios ocupa papel significativamente marcador de sua
identidade. Não somente aspiram à educação – através dela se tem acesso às ocupações, ou ao
emprego estável como também acreditam que o capital educacional, cultural e simbólico
seja essencial para sua continuidade. A educação representa a possibilidade do auto-cultivo,
referência fundamental para um grupo que tem a autoconstrução como imperativo social de
permanência. Através do estudo ampliam-se horizontes, aprofunda-se a compreensão,
legitima-se a escolha vocacional, ou a possibilidade do trabalho enquanto espaço de
autolapidação. A educação muitas vezes vem atuar como mediadora da dicotomia entre
interesses e emoções; ao traduzir possibilidades de se vivenciar caminhos sociais pode
possibilitar a inclusão objetiva e o reconhecimento formal de uma atividade inerentemente
artística e criadora. Algo como a situação de Carmem Prado que do estudo de Artes em
Londres, passa para o design e hoje trabalha em Washington em design gráfico.
Muitas vezes, a educação, por se definir como processo de empreendimento sobretudo
individual, se revela como a grande oportunidade de ampliação do campo de possibilidades
socialmente dado. As camadas médias diferenciam-se por uma postura moral superior frente
ao projeto de ilustração, baseando-se na priorização da educação e cultura, dado o valor
220
conferido ao espaço da individualidade. Como conduta organizada para atingir finalidades
específicas, os projetos (cf. Velho, 1973, 1981, 1988), ao representarem a escolha de um
caminho específico, revelam que as sociedades complexas industriais oferecem uma margem
de manobras aos indivíduos, dentro de um campo de possibilidades. Esta construção da
própria trajetória a partir da elaboração de projetos, cada vez mais sustentada pela formação
profissional, testemunha o papel decisivo da noção de biografia para os setores mais expostos
à ideologia individualista, assim como representa a auto-percepção da própria singularidade.
O’Dougherty (1997), em pesquisa realizada com a classe média paulistana, afirma
como característica destes setores a autorefencia como privilegiados, demonstrando a
consciência de sua localização no cenário social. Tal percepção pode ser identificada tanto
pelo cuidado que têm com as formalidades no trato das relações sociais, como pelas
diferentes estratégias de isolamento e segregação no espaço público: casas muradas e prédios
com porteiros, escola privada para os filhos, uso do transporte próprio, prática de freqüentar
shoppings. A educação dos pais e a ocupação dos vizinhos se apresentam também como
critérios definidores de fronteiras.
O consumo, apesar de se constituir um dos sustentáculos do pertencimento, possui
status ambivalente. Faz parte do imaginário das camadas médias se tornarem modernos
através das práticas de consumo, apresentando uma relação particular, dialética, entre mundo
subjetivo e cultura material (Lima, 2005). Tanto que um dos indicadores sociais de progresso
e estabilidade de uma “nação modernasão exatamente os níveis de consumo destes setores.
Contudo, falam do consumismo e não se incluem. uma “outra” classe média,
estereotipada, reconhecida pela falta de projeto, pelos valores pobres, pelo consumo fútil,
revelando-nos certa postura ascética frente aos sinais de extravagância.
Quem mais senão os camadas dias admirariam os ricos por sua simplicidade? Esta
realidade aparentemente paradoxal nos remete à questão dos grupos de status, da marcação de
221
critérios de distinção, que significam o acesso a instâncias privilegiadas, à educação e à
ilustração. Para Bourdieu (1979), classe e status estão interligados, seja em tempos de
estabilidade social ou não. Se as camadas populares orientam-se pela escolha necessária, os
estratos médios operam ogosto”, atenuados que são dos constrangimentos econômicos.
Bourdieu acredita ser este mecanismo um instrumento de perversa dominação, na medida em
que não permite aos privilegiados se verem como tal e sim como resultado de méritos e
talentos que faltariam aos outros. Um sentimento que vem fortalecer o ethos, comum aos
setores médios, da autoconstrução, do sucesso, da mobilidade social como fruto do esforço
individual.
5.2. Os repertórios familiares
No contexto metropolitano de grande fragmentação da vida social, as camadas
dias se apresentam como um dos setores mais expostos às ideologias de modernização.
Dumont (1985) indica a sociedade moderna ocidental como lócus prioritário do
individualismo enquanto ideologia. Conforme discutido anteriormente, o individualismo
refere-se a um processo de segmentação não-hierárquico do todo (no caso, a sociedade) em
domínios crescentemente autônomos, ocorrendo a valorização do indivíduo, ou seja, da parte,
em detrimento da totalidade. Este ‘indivíduo’ pode ser compreendido tanto como agente
empírico, sujeito moral e psicológico, como indivíduo coletivo’, grupos que procuram se
destacar de instâncias mais abrangentes.
O movimento feminista, por exemplo, vem testemunhar o processo de hegemonia da
ideologia individualista entre os setores médios, uma vez que é este público que se torna mais
suscetível à renovação das relações de nero. Sob esta nova ótica torna-se legítima a
reivindicação feminina do direito de regularem a si próprias, como indivíduos. No âmbito
222
familiar, a independência feminina se reflete pela não sujeição da sexualidade feminina à
reprodução, à redefinição do papel de mulher, esposa e e, não necessariamente vinculado
ao espaço doméstico. O questionamento da divisão tradicional de papéis representa a
tendência à destotalizaação, a demarcação de donios, na medida em que se substitui a
relação hierárquica da integração para a igualitária da associação, o que certamente se refletirá
na esfera familiar.
Sob o impacto da ideologia capitalista modernizante há uma tendência para as famílias
de setores médios passarem por um processo de “individualização” enquanto grupo, buscando
o desprendimento de instâncias sociais mais abrangentes, das redes de parentesco mais
extensas. Estas transformações não ocorrem como resposta à adequação às novas
condições de vida urbana, como se definem como valor. A nuclearização da família reflete a
construção de um projeto de vida que objetiva, além da ascensão social, a busca de maior
autonomia de seus membros em delinear suas trajetórias, a possibilidade de sua circulação em
diferentes donios sociais.
Os estudos sobre os setores médios brasileiros, referidos anteriormente, têm
demonstrado a ocorrência da redefinição de um modelo familiar herdado da tradição,
conforme já discutido anteriormente, a partir de composições variadas. A “família igualitária”
passa a representar uma forma alternativa de organização do grupo doméstico (Figueira,
1987), em oposição à “família hierárquica”, sendo esta fundada na distinção marcante de
papéis, tomada como refencia de definão da pessoa. A “família igualitária”, por sua vez,
busca a atenuação de distinções, sejam de gênero, sejam geracionais. Antes que papéis são as
opções subjetivas a vida pessoal, os projetos e trajetórias que se legitimam como critérios
definidores da pessoa. Estes dois modelos, antes que formas rígidas, tornam-se referenciais de
um continuum de diferentes matizes, uma vez que os círculos de parentesco perdem de formas
diversas a capacidade hegemônica de fixar as pessoas em nossa sociedade. Situar o indivíduo
223
socialmente passa a ser uma tarefa um tanto quanto complexa, uma vez que sua (auto)
referência é múltipla. Observar como o parentesco se manifesta na vida cotidiana requer a
percepção de que, se a experiência urbana não dissolve a referência familiar, por outro, ela a
relativiza, na medida em que esta passa a competir com outras instâncias. Novas combinações
são criadas, grupos de referência, grupos ocasionais. Às interações móveis, ao infinito,
podemos definir como redes sociais.
O conceito de redes sociais, que tem como campo fértil de sua aplicação na análise
social o campo intelectual britânico, surge de forma sistemática a partir de John Barnes em
sua pesquisa sobre uma aldeia de pescadores na Noruega. Ele se apresenta como alternativa às
formas clássicas de análise e classificação social, como classes e estratos, denunciando certo
esgotamento analítico da interpretação estrutural/funcional. Sua utilização se difunde
rapidamente como forma de ordenar um material de pesquisa qualitativamente diferenciado
da clássica experiência de vida social de uma sociedade tribal: o estudo de sociedades
complexas, em rápida transformação, ambiente de mudança social, variação, instabilidade e
conflito, a situação de permanente trânsito de indivíduos, a possibilidade de escolha. Um dos
autores que se destaca como fonte de inspiração deste novo olhar antropológico é Max
Gluckman, que se utiliza da noção de situação social para interpretar a sociedade zululandeza
(cf. Mitchell, 1969). Ao atentar-se para a dinâmica das relações sociais, o equilíbrio de forças
transitório, este autor nos oferece uma visão mais complexa, capaz de dar conta das
transformações sociais que a África colonizada, e em processo de modernização, estava
sofrendo. O uso de networks vem complementar a análise sociológica/antropológica
convencional onde a abordagem estrutural/funcionalista se baseia numa sociedade de pequena
escala, em situação de maior previsibilidade e estabilidade. Gluckman abre novas perspectivas
ao introduzir a noção de ambigüidade num ambiente onde os papéis sociais não são rígidos.
Era preciso aprender a lidar com a questão da multiplicidade de situações e a possibilidade de
224
escolha dentro de um repertório.
Pode-se dizer que o conceito de redes encontrou campo fértil de aplicação entre os
pesquisadores da Escola de Manchester e do Rhodes Livingstone Institute. São pesquisadores
(cf. Mitchell, op.cit.) que atuam particularmente na região do Copperbelt, que assiste ao
desenvolvimento de novas cidades africanas – em ritmo de rápido crescimento e que
surgem da implantação de um novo tipo de sociedade: uma sociedade estratificada composta
por uma elite dominante européia, uma classe média em formação e a classe trabalhadora
composta por negros africanos de diferentes etnias. Tal como Chicago no princípio do século
XX, uma área de enorme tensão social. Estes pesquisadores se utilizam de networks como
instrumento analítico, não só pelo fato de favorecer a visualização de contatos que atravessam
classes, como também por possibilitar a apreensão da realidade de indivíduos com maior
espaço de atuação, certa margem de manobras, fugindo de explicações deterministas.
Mitchell (1969) procura esclarecer que objetiva o uso analítico e não metafórico de
network, definindo-a como um conjunto específico de vínculos entre um grupo definido de
pessoas, sendo que as características destes vínculos podem ser utilizadas para interpretar o
comportamento social destas pessoas. Inspirada na teoria dos gráficos, rede social define-se
como uma rede com valores, com muitos elos em cada direção. Focalizam-se não os atributos
pessoais nas redes, mas a natureza de seus vínculos, as características de suas ligações como
meio de explicar a conduta. Estabelecendo-se uma relação entre tipos de vínculos e
comportamento, estes estudos requerem uma meticulosa descrição do processo da interação
social. Os nculos podem se diferenciar tanto morfologicamente, quanto por seu conteúdo,
podendo atuar como canais de transmissão de informações, julgamentos e opiniões; muitas
vezes têm conteúdo normativo. Outra questão que se destaca é o significado que as pessoas
atribuem a estes vínculos, seu propósito e os interesses nele envolvidos, revelando-nos a
225
realidade social como um mundo de relações muitas vezes intencionais, um ambiente de
negociação de diferentes interesses.
O uso de networks como instrumento analítico requer a clara delimitação e num certo
sentido, arbitrária, do universo pesquisado, de forma que se esclareça não o repertório
potencial de vínculos de um indivíduo, como a estratégia de recrutamento utilizada para
composição de suas redes de interação; cada rede, de certa forma, sempre será única.
Associada a este conceito está a noção de papel social, definido a partir das expectativas de
desempenho; destaca-se aqui a marcante diferença entre as sociedades simples, onde ocorre a
sobreposição de papéis sociais e as sociedades complexas, onde ocorre o fenômeno da difusão
de papéis, dada a menor integração institucional e social deste contexto.
É a partir da noção de redes sociais que podemos reconhecer a fluidez do conceito de
“família” nos exemplos estudados. No ambiente urbano de relações sociais fragmentadas, não
se localiza socialmente os membros de uma “família” a partir do pertencimento a um grupo
exclusivo. Os relacionamentos sociais formam mais uma rede do que um grupo organizado.
Enquanto no grupo os indivíduos formam um todo social mais abrangente, com objetivos
comuns, papéis interdependentes e subcultura peculiar, na rede somente alguns, e não todos
os indivíduos componentes têm relações sociais uns com os outros. São formadas a partir de
grupos que estabelecem vínculos diferenciados, explorando um campo de possibilidades de
composição ampla. Da natureza dos vínculos sociais dos grupos familiares, ou seja, de sua
conexidade”, observamos diferentes composões. Eles se alocam de forma variada dentro
do continuum proposto por Bott (op.cit.) entre “rede de malha estreita” e a “rede de malha
frouxa”, o que refletirá na variação do desempenho de papéis conjugais. A rede de malha
estreita” é uma rede na qual existem relações intensas entre as unidades componentes.
Verifica-se neste tipo de rede a presença próxima de parentes dos cônjuges ou amigos de
longa data, de tal modo que além de íntimos são também vizinhos da família. Os parentes são
226
freqüentemente os amigos dos cônjuges e, em certas áreas, são também seus companheiros de
trabalho. Quanto maior a rede de parentes com quem se convive, maior a segregação de
papéis, a formação de grupos unissexuais que atuam complementarmente. Uma rede de malha
estreita tende à maior segregação entre pais e filhos, à formação de um todo social mais
abrangente, com objetivos comuns, papéis interdependentes e subcultura peculiar. Nas redes
de malha frouxa”, as relações se dispersam em intensidade, tornando-se muitas vezes casuais,
esporádicas. Os parentes e a vizinhança não ocupam papel preponderante, o que a define é
uma composição diversa sustentada pelo múltiplo pertencimento de seus membros. A
organização das atividades familiares, antes que complementares, se definem como conjuntas.
No âmbito familiar, identifica-se como valor no desempenho de papéis a co-participação
quase total, onde marido e esposa se consideram como iguais; as decisões importantes são
tomadas em comum acordo, assim como os assuntos menores da casa.
Dos grupos familiares pesquisados observa-se que a família Soares é a que mais se
aproxima de uma situação de rede de malha estreita, dado o papel envolvente da rede de
parentesco, da vizinhança (que se sobrepõe à parentela), da forte ligação ao pertencimento
comum (às vezes ancestral, como é o caso de Bernardo) e da manutenção de grupos estáveis,
como é o caso do grupo de casais. Contudo, a questão geracional, associada ao contexto
cultural de uma grande metrópole, contribuem para uma orientação de organização familiar
distinta da divisão de papéis rígida. As crises conjugais passaram necessariamente por uma
revisão destes papéis, onde Elisa, alimentada por valores igualitários e pela situação de
independência financeira, passa a reivindicar a maior colaboração de Bernardo.
A família Pinzón possui a peculiaridade de se inserir, prioritariamente, numa rede
feminina, onde a experiência da ruptura aos moldes tradicionais se faz presente. São
mulheres que vivenciam o projeto da autoconstrução de si, do auto-cultivo, da descoberta de
seu próprio valor. Em coerência a este projeto, tornam-se independentes financeiramente,
227
rompem relacionamentos conjugais que não correspondem a seus anseios, para construir uma
rede diversificada, cujos componentes vão se agregando, e se separando, ao longo do tempo.
Contudo, Sandra vivencia fortemente a ligação da fratria feminina, resultando numa rede
composta de amigas, amigas de amigas, irmãs e amigas das irmãs, que se localizam em
diferentes regiões da cidade. Ressalta-se o fato de que, se numa primeira instância se observa
o rompimento ao ambiente comunitário tradicional, ele é almejado, dentro de uma nova
proposta de comunidade, de estabelecimento de laços primários, seja pela opção de se viver
no condomínio, seja pelo projeto de construírem uma taba”. Como fenômeno recente na
hisria da urbanização no Brasil, os condomínios horizontais representam os anseios de
certos setores médios e superiores da sociedade em se refugiarem em comunidades muradas,
as “ilhas de tranilidade” (cf. Moura, 2002). São setores sociais que procuram a positividade
das relações sociais em função dos aspectos negativos da urbanização como o aumento dos
índices de violência, a formação de ruas corredores e a degeneração do espaço público.
Através dos condonios ocorre uma atualização das utopias urbanas da amplitude de
espaço, da proximidade da natureza, da vida comunitária; a visão de um “paraíso” que
sintetiza o ethos e a visão de mundo destes setores. Refletem o ideal moderno de vida urbana,
com espaços multifuncionais e livre circulação de pessoas, ao mesmo tempo em que
reforçam os anseios de um estilo de vida mais voltado para intimidade e para a intensificação
da vivência familiar. Trata-se de uma composição de elementos individualistas-modernizantes
com ideologias holistas-hierarquizantes, ou seja, a experiência da “aldeia” combinada ao
conforto da modernidade urbanística e da manutenção da privacidade.
Além disso, os Pinzón vêm paulatinamente, resgatando os elos com sua origem
espanhola, participando de uma das rotas mais expressivas do fluxo migratório do final do
século XX, que é o retorno de emigrantes que se aventuraram no Novo Mundo, através de
seus descendentes, à “metrópole”. A Espanha tem sido para a família Pinzón um horizonte.
228
Eduardo, aquele ex-companheiro de negócios de Sandra no shopping que também vendeu sua
loja e hoje é agente da Pocia Federal, contava-nos certa vez, sobre sua mudança em breve do
Rio para Florianópolis, por conta da violência na cidade. Como profissional da área, enfatizou
por diversas vezes que a cidade do Rio de Janeiro estava fora de controle das forças de
segurança e que, ficar, significaria se submeter a um grande risco. Sandra finalizou o diálogo
com um longo suspiro, frente à angústia de viver em meio à violência (e do depoimento de
quem conhece melhor os bastidores desta realidade), sinalizando um fio de esperaa. “Se as
coisas piorarem demais, eu vou é para a Espanha”.
A história da família Prado é marcada pelo afastamento relativo da rede de parentesco
devido à mudança. Walter se desconecta completamente da parentela – seu processo de
criação nunca havia lhe possibilitado grande intimidade com os irmãos enquanto Celina,
que ainda tem mãe, residente em Belo Horizonte com uma filha, mantém contatos, sejam
visitas esporádicas, seja pelo telefonema semanal. Contudo, o grupo de parentesco deixou de
influenciar seus passos. Nunca manteve contatos sólidos com a vizinhança; sua vida na cidade
carioca foi marcada, nos primeiros anos, pela constante mudança de uma residência à outra.
Atualmente mantém com os vizinhos relações formais, estabelecendo conversas impessoais
com os mais antigos no elevador; conhece, porém, suas profissões: um é desembargador,
outra, cineasta etc. O grande elemento de mediação entre os moradores são os porteiros, que
atualizam as novidades com quem se dispõe a estar com eles. A experiência de viver no
Leblon para este casal resume-se na sensação de se estar numa grande vitrine. Encontram-se
freqüentemente com artistas e cantores famosos na lida cotidiana -, porém, continuam
anônimos, o que é vivenciado como liberdade. Apresentam uma composição peculiar em sua
rede de interações, ora tros da rede de malha de estreita, ora de malha de malha frouxa. Os
conhecidos são esporádicos; os amigos, de longa data, mas advêm de pertencimentos
diferenciados; afora os comuns, cada cônjuge possui sua rede. Participam também da rede dos
229
filhos, seja porque no passado freqüentaram sua casa, seja porque os amigos, as namoradas e
esposas dos filhos arejam as possibilidades de contato, assim como as oportunidades, na
grande cidade do Rio de Janeiro. Dos netos residentes no Brasil mantêm relações esporádicas,
até mesmo pela faixa etária. São jovens, já envolvidos com suas próprias vidas. Pergunto à
Celina se sua neta a visita: Muito pouco, mas eu a entendo. Trabalha de segunda à sexta,
chega tarde, e final de semana organiza a casa, curte o marido. Ela não tem tempo.” Dos
netos residentes no exterior, a visita anual e a progressiva perda de intimidade e controle.
Sobre o passeio que deu pela cidade com os netos, durante a última vinda ao Brasil, Walter
comenta: A Carmem que me desculpe, mas os seus filhos são muito mal educados. Eu não
saio mais com eles!” Celina sempre fez questão de frisar a necessidade de cada filho
desenvolver a autonomia de se responsabilizar pelos seus problemas. Ajuda-os
financeiramente em caso de necessidade, como apoio a algum grande projeto afirma
inclusive sentir muito orgulho em poder ajudar. Contudo, espera que tenham independência
quanto à criação dos filhos. Acredita que filhos é assunto da privacidade do casal; por isto,
apesar de desconfiar que seu filho Walter e esposa, casados dezoito anos e sem filhos,
têm problemas de infertilidade, mantém a discrição ao não tocar no assunto. Em sua sala de
estar, através da exposão de fotos em porta-retratos, Celina apresenta a narrativa de sua rede
de parentesco, muito ilustrativa das questões colocadas por Firth (op.cit.) e Schneider
(op.cit.), pois apresenta a demarcação de certas categorias de parentesco a partir de um
significado afetivo, com a inclusão/exclusão de parentes. uma foto de Walter com os
filhos homens, quando crianças; uma foto de Celina e Walter no tempo de namoro e outra foto
do casal em passeio a Londres; uma foto com os avós paternos de Celina e outra com seus
pais; uma foto de sua mãe na adolesncia; duas fotos dos netos quando crianças. Uma foto
de Walter na infância, que de acordo com Celina, foi selecionada como testemunho de que
ele, afinal, era uma criança gorducha e muito bem cuidada, diferentemente da forma como ele
230
apresenta sua infância, triste, como uma época em que ficou “jogado”e sem atenção. E
finalmente, uma foto do primo do pai de Celina, uma pessoa muito querida”, amigo da
família de Celina, que freqüentou a casa de seus pais “a vida toda”. Esta última foto foi
selecionada, de acordo com Celina, por simbolizar a importância dos amigos.
É preciso ressaltar que os três grupos familiares encontram-se em estágios distintos do
ciclo de desenvolvimento doméstico, o que certamente influencia não suas percepções e
impressões existenciais/conjugais, como também repercute na caracterização de suas redes de
interação. Analisar as questões referentes aos ciclos de vida é uma forma de abordar o fator
tempo na estrutura social. Um sistema social tem uma vida, que é perpetuada através da
manutenção e substituão de seus membros. O processo de reposição/ reprodução é fator
crucial à sua sobrevivência, que o organismo humano tem tempo limitado de duração. Em
todas as sociedades humanas, apesar de formas distintas, o lócus primário da reprodução
social tem sido o grupo doméstico. Este grupo deve permanecer em operação o tempo
suficiente para levar a prole ao estágio de reprodução física e social. Obviamente, existem
casais que optam simplesmente pela experiência conjugal, e não paterna, como os filhos de
Celina, fenômeno este que acompanha o processo de modernização e afirmação da ideologia
individualista nas sociedades complexas industriais. Por ora, porém, tratamos da questão da
família como espaço da reprodução social.
Baseando-se nas reflexões de Meyer Fortes (cf. Goody, 1962), podemos verificar que
as famílias Soares e Pinzón estão localizadas na “fase de expansão” do grupo doméstico, que
se inicia com o matrimônio e se estende até completar a criação dos filhos, até então
dependentes dos pais. A família Prado, por sua vez, se insere ao final da “fase da dispersão”,
que se inicia com o casamento do primogênito e termina com o casamento do caçula.
Bernardo e Elisa vivem praticamente em função do cuidado com os filhos; com exceção das
atividades laborais se envolvem somente em redes de interações capazes de incluí-los.
231
Sandra vivencia a adolescência e juventude dos filhos, uma fase de transição, cuidados com a
caçula e propulo da mais velha, não para uma nova composição familiar, mas para a
conquista da independência, da realização dos projetos individuais. Participa de um universo
de interações composto, em que as irmãs, (e em eventos em sua casa, seus respectivos filhos)
são incluídos no grupo de amigas. Já Walter e Celina vivenciam a experiência do ocaso social.
Sua condição de velhos ativos torna-se um desafio numa sociedade onde a velhice é
simbolizada como desvio da norma, num contexto de prevalência da ambição da juventude
permanente e da saúde ilimitada. O afastamento do mundo produtivo, para Walter, exigiu a
recomposição de sua rede, que agora passa a ser composta principalmente por amigos casuais
de encontros pelas ruas do Leblon, porteiros dos prédios vizinhos, amigos de longa data e
toda a rede de apoio a sua “saúde” como médicos, clínicas, academias, nutricionistas etc..
Celina ainda se ocupa da administração doméstica, o que lhe exige atenção cotidiana aos
insumos necessários, desenvolvendo, de forma paralela, contatos com parentes em Minas;
além disso, esaberta a alguma novidade aceitável, sugerida pelos filhos como o grupo de
estudos, cursos de dança de salão ou aulas de natação e programas culturais com velhas
amigas.
Um dos fenômenos característicos desta sociedade complexa e industrial é a perda de
prestígio e reconhecimento social desta fase da vida, a velhice. A experiência dos
representantes da terceira idade nestas redes de interação estudadas – D. Amália, D. Augusta,
Celina e Walter - refletem a situação contemporânea de exisncia de alguns redutos possíveis
de prestígio e reconhecimento social: a religião, onde muitas vezes senhoras mais velhas
estabelecem uma ligação entre projeto individual e projeto social de ajuda comunitária; e o
trabalho intelectual, como os grupos de estudos e o exercício amador da literatura. A
celebração do aniversário de D. Amália, cuidadosamente preparada por seus familiares
Trecho sobre Espinoza, escolhido por Celina, para representar seu filósofo predileto... A exploração de si não tem idade.
233
define-se pelo reconhecimento coletivo do respeito de seus descendentes aos seus noventa
anos, à sua memória, ao seu “testemunho de vida” (cf. Lins de Barros, 1987, 1998).
Apesar da atenuação das relações de autoridade, o casal Walter/Celina representa
ainda eixo de referência, testemunho de um passado; ou a certificação necessária para os
filhos da existência da “família Prado”. O tempo biográfico familiar traz uma transformação,
a realocação de papéis com o nascimento dos netos/avós. Dos avós, no lugar da autoridade,
espera-se o afeto. É na fase de afastamento dos filhos do núcleo doméstico que se percebe
mais claramente a realidade paradoxal (ou provisória) da família. Sua formação, enquanto
família nuclear, depende da ruptura com os núcleos de origem dos njuges. Uma fissão que
promove uma nova fusão, que, no sentido da realização última da reprodução social, passará
por este mesmo processo de fissão.
Contudo, se podemos destacar a importância da rede de interações de seus membros
para a realidade familiar, um outro lado, igualmente fundamental da vivência em família,
expresso pelas relações internas entre seus membros. Faz parte do repertório de reflexões
sobre o casamento, pelo menos desde Durkheim, a iia de que este atua como proteção à
anomia. Em termos gerais, podemos definir o casamento como um acordo social, seja entre
grupos socais, ou modernamente entre indivíduos, capaz de criar um tipo de ordenação, um
marco simbólico, na biografia individual. A expectativa da reprodução social, anunciada pela
experiência do matrimônio, define-se como um dos critérios de relevância social desta
instituição mais enfatizados em diferentes culturas, fato este igualmente destacado em nossa
sociedade. A convivência dos cônjuges é orientada por valores que reforçam a permanência
dos laços, principalmente em sociedades tradicionais onde a família, e seu processo de
constituição, é assunto público, fruto da aliança de dois grupos sociais. Nas sociedades
modernas, a experiência do indivíduo como parte relevante em relação à coletividade tem se
234
refletido na vida conjugal, conforme discutimos anteriormente. De Singly (op.cit.) em suas
pesquisas na sociedade francesa tem demonstrado como o laço conjugal tem convivido com
os anseios do “eu íntimo”, que muitas vezes contribuem para sua instabilidade. A vida a dois
condiciona-se à felicidade de cada um, principalmente entre setores médios, portadores da
ideologia individualista, onde prevalece o imperativo da busca da autenticidade, ou seja, da
conquista da independência individual e da diferença pessoal. Neste sentido o casamento é
vivenciado muitas vezes como ato dramático, uma ruptura nômica, nos termos de Berger &
Kellner (1980), no qual dois “estranhos” passam a dividir a existência, redefinindo a si
próprios a partir da atualização de suas expectativas (diga-se de passagem, expectativas
socialmente construídas), seja da auto-descoberta ou da auto-realização pelo amor e pela
sexualidade.
As dificuldades objetivas na convivência conjugal são mais facilmente percebidas,
traduzidas, na forma de tensões imediatas com parentes, amigos anteriores ou diferenças
religiosas. Celina Prado, por exemplo, resguardou o si o direito de escolher o nome de suas
filhas de forma a evitar que Walter homenageasse alguma ex-namorada; o que, por outro lado,
ocorreu com a irmã de Sandra Pinzón, cujo nome Madeleine foi dado em homenagem ao
passado amoroso francês de Pero Pinzón. Muitas vezes a busca do “indivíduo original”, leva à
ruptura com o parceiro. Sandra apresenta em sua narrativa, sobre o seu passado e o de suas
amigas, a experiência do desencontro nas formas de se lidar com si. Frente à ameaça de
ruptura, os grupos são chamados para a contribuição da co-definição desta realidade
consolidada. Grupos de amigos, religiosos, de parentesco, de vizinhos auxiliam no momento
de crise de objetivação da realidade. Acredito que o grupo de casais do qual Elisa e Bernardo
participam foi fundamental para a superação da crise conjugal , do resgate da estabilidade
simbólica, vivenciada no momento do nascimento do primeiro filho.
235
Grupo de Casais: uma rede de apoio na superação da crise conjugal de Elisa e Bernardo
236
O lado subjetivo das dificuldades, contudo, encontram caminhos diversos de
resolução, tendo-se em vista o indivíduo como entidade em processo contínuo de formação.
Na vida conjugal torna-se imprescindível a construção do espaço da familiaridade, tanto de si
para fora, como de fora para si (cf. Berger et alii, 1980,1985). A vida partilhada exige,
necessariamente, um processo de estabilização da auto-imagem: o casado terá que construir
sua projeção de acordo com a individualidade definida conjugalmente, uma vez que sua
autodefinição perante o parceiro diminui suas possibilidades de ser diferente. Desta forma, os
esforços de continuidade da vida a dois passam, de formas e graus variados, pela incorporação
dos automatismos, aonde os cônjuges vão lentamente se abandonando ao conforto da
rotinização e a coisificação do cotidiano. Celina e Walter Prado, apesar de uma série de
diferenças, já estão muito acostumados com o cotidiano partilhado, onde os gestos do “outro”
tornam-se marcos do reconhecimento de si. Conseqüentemente, uma série de comportamentos
e comentários - como o de Celina sobre a roupa com que Walter saiu - tornam-se
“implicâncias”. A impaciência frente à conduta do outro traz a marca da intranqüilidade, que
o está fora, mas alocada no conforto dos padrões internos já estabelecidos; todas as vezes
que o outro se afasta dos parâmetros (expectativas) da conduta, ocorre a acusação do desvio
da rotina. Se o casamento representa o compartilhamento de horizontes, assinala, por outro
lado, o estreitamento de projetos de cada parte.
Apesar de todo ideário igualitário disseminado pelo individualismo, que atinge
predominante as camadas médias, os representantes do sexo masculino m apresentado a
interiorização da vida conjugal em diferente intensidade da feminina. Os conflitos conjugais
muitas vezes advêm da resistência à divisão de tarefas, da insistência masculina em criar
possibilidades de ausência desta realidade partilhada, em garantir um espaço aparte, enquanto
a esposa se manm à disposição do ritmo familiar. A autonomia assume, assim, formas
diferentes quanto ao sexo. Talvez seja por isto que D. Augusta referiu-se ao ex-marido como
237
“imprestável”. de se relevar que casos de infidelidade masculina apareceram em
diferentes momentos da pesquisa, sendo um dos principais motivos das rupturas conjugais
entre o grupo de Jacarepaguá. Nos outros grupos, a “traição”, muitas vezes velada, foi
superada, ou suportada em função da permanência conjugal. As relações (assimétricas) de
gênero, no espaço íntimo conjugal, vêm confirmar a natureza ideológica do individualismo,
pois que seus valores igualitários, antes que uma realidade instalada, se manifestam muito
mais como um horizonte desejado, que alimenta os percalços da realidade cotidiana.
A experiência dos filhos na convivência cotidiana é fator de intensificação da
necessidade de se recriar novos sentidos e expectativas, principalmente por que os pais,
imbuídos na obrigação da condução da prole ao estatuto de indivíduos autônomos, passam
pelo processo de redefinição interna: divisão do espaço, da privacidade, do tempo, da atenção
do parceiro. A família, então, se envolve num processo de nova gestão de convivência,
principalmente na sua situação moderna, onde, nuclearizada, traz como norma a capacidade
de auto-gestão. A emergência do alongamento da socialização, dos encargos dos pais com os
estudos superiores da prole, assim como o processo de estabilização da inserção profissional,
exige do casal uma vivência de pais que eles mesmos não tiveram em sua experiência
enquanto filhos. D. Augusta comenta que suas filhas começaram a trabalhar cedo, e
entregavam a maior parte do salário aos pais, ao contrário dos jovens de hoje. Por outro lado,
se conduzir os filhos até se encontrarempode delongar os cuidados paternos, pior ainda é
ver o filho permanecer “dependente”, se tornar aquele que “não deu em nada”. Tal situação é
vivenciada, na maioria das vezes, pelos estratos médios, como ferida identitária, sentida como
fracasso pedagógico na condução dos filhos. Celina, por exemplo, fez a ressalva, quando
narrava a situação do filho caçula, de que este conseguiu o assentimento do pai em morar
no apartamento da família em Copacabana, assim como receber mesada, por que ela não
estava presente. Em sua opinião, Walter se afastou da firmeza necessária para a preparação do
238
filho para a “vida”; o conforto familiar não deve ofuscar a necessidade da conquista da
autonomia necessária para a sobrevivência competitiva “lá fora”. Outra situação ilustrativa
desta questão refere-se ao caso do irmão de Elisa, que “não deu em nada”; sua situação atual
de alcoólatra é interpretada pela própria como um erro de educação, onde a vontade do pai
prevaleceu exageradamente sobre os anseios do filho.
A coexistência de conflitos e entendimentos nas relações familiares se manifesta
através das queixas e aprovações. Na verdade, o laço filial apresenta natureza ambivalente,
representando simultaneamente as qualidades de ligação e de obrigação. O modelo familiar
em que se cultiva a idéia do espaço privado como espaço de aperfeiçoamento da identidade de
si torna legítimos os anseios, tanto de pais quanto de filhos, em o se reduzirem ao papel
social que ocupam dentro do grupo familiar: os pais não desejam ser provedores, enquanto
os filhos se recusam a se deixar reduzir a pais exclusivamente instrumentais. Quando
Sandra passou a dividir a responsabilidade das compras semanais de abastecimento doméstico
com Cláudia, sua filha do meio, esta logo protestou contra a função ordinária, alegando que
sua mãe a estava fazendo se passar por sua empregada.
Como vetores da ideologia individualista, os setores médios apresentam mais
freqüentemente modelos familiares em afinidade aos ideais liberais e igualitários, onde o “eu
íntimo” tem espaço legitimado frente ao “eu estatutário” (cf. Singly, op.cit.). A “família
tradicional” que tem como valores constituintes a ascendência e a hierarquia é vivenciada
como “sufocante” dado seu caráter englobador; um obstáculo ao indivíduo que se percebe
como potencial sujeito de sua existência, que tem na construção e desenvolvimento de
projetos a possibilidade de realização de sua vida (cf. Velho 2001). Nas sociedades complexas
industriais e sua multiplicidade de níveis sociais, a família se apresenta como uma das
alternativas deste repertório. Uma das expressões da liberdade individual é exatamente a
diversidade de composição da rede de interações, quando esta apresenta, por exemplo, uma
239
proporção elevada de indivíduos com quem não se tem laços de sangue. Os arranjos pessoais
seguem a lógica da coerência interna, da composição da singularidade de cada um. Amplia-se
e diversifica-se a rede social, com a valorização das amizades, onde a dimensão da escolha
individual aparece com mais nitidez.
Nos últimos 50 anos, observa-se que a separação conjugal, não só assiste um aumento
expressivo, como também sofre uma mudança de significado. A felicidade individual se
desvincula do compromisso conjugal vitalício e a dimensão afetivo-sexual passa a ter um
papel cada vez mais proeminente no ideário das camadas médias urbanas. Este processo é
acompanhado pela laicização destes setores, da diversificação de opções religiosas, difusão de
tipos variados de conhecimento e perspectivas como a psicologia e a psicanálise e a
independência feminina. O casamento, e sua ruptura, perdem, então, o estatuto de assunto
familiar, da rede de parentesco, para se tornar um fato social de âmbito restrito à ade, onde
as questões subjetivas e psicológicas passam a predominar. Tais transformações, contudo, não
representam de forma alguma o fim das alianças, mas a mudança de sua natureza e qualidade,
pois estas ainda se fazem necessárias, dado o imperativo de tornar-se um indivíduo original.
O mito da interioridade, a busca do “verdadeiro eu” tem como condição imprescindível o
olhar do outro”.
Há ainda que se contextualizar tais transformações. Conforme discutido anteriormente,
sabemos que a realidade social brasileira apresenta diferentes matizes do processo da
modernização, onde este modelo familiar mínimo convive com traços hierarquizantes.
Verifica-se a presença, nestes grupos familiares, de traços comuns às famílias latinas, como a
presença das “mulheres centralizadoras” descritas por Lomnitz & Perez-Lizaur (op.cit.), a
relevância da solidariedade trigeracional, a prevalência da consangüinidade frente à afinidade.
também indícios do pertencimento familiar como consubstancialidade, de uma partilha
moral representadas pela raça” ou “nome” de família. Sandra Pinzón, por exemplo, atribui
240
sua disposão à “luta” em fuão de um “sangue” espanhol (cf. Abreu, 1987). Presta a
homenagem ao fundador de sua linhagem através do quadro pintado em sua sala de estar,
figurando o pai no tempo da juventude, como soldado de Franco. Tal coexistência, do
moderno e do tradicional, vem se manifestar no embate constante entre o “herdado”, ou as
marcas da herança familiar, e o “adquirido”, o desafio de construir a própria trajetória.
Os grupos familiares pesquisados apresentam-se configurações únicas de uma fusão
de tendências, de continuidade e de ruptura. A narrativa de seus arranjos, rotinas, redes,
trajetórias e projetos dão vida e cor a todas estas reflexões, revelando-nos o precioso papel da
realidade para traduzir a complexidade de ser social, da crucialidade do nculo em suas
diferentes significações.
5.3. Das práticas e estilos alimentares.
Certamente, podemos considerar o consumo como caminho privilegiado para a
compreensão da sociedade contemporânea. No caso das práticas alimentares, o consumo se
torna particularmente significativo, uma vez que dentre as transformações ocorridas com a
modernização está o afastamento da maioria dos indivíduos da esfera de produção e
elaboração do que come se tornando eminentemente consumidor de produtos alimentícios.
Apesar de uma visão utlitarista e materialista permanecer hegemônica entre as ciências
econômicas, alguns antropólogos (cf.Douglas& Isherwood, 2004; Miller, 2005; Sahlins,
1978) têm feito contribuições significativas para a desnaturalização do consumo como busca
racional de satisfação de necessidades básicas, procurando inseri-lo no contexto socialmente
construído. O objetivo do consumidor é construir um universo inteligível com os bens que
escolhe; os códigos desta linguagem, quem fornece, é a cultura.
241
É neste sentido que Rocha & Barros (2003) o considera como fato social , nos termos
durkheimianos, na medida em que apresenta-se coercitivo, extenso e externo ao indivíduo.
Apesar de, aparentemente, ser uma experiência individual, é socialmente orientado através de
um sistema de representações coletivas. O consumo pode ser compreendido se
observarmos que, para além da compra enquanto realização individual, ele é um fenômeno
cuja lógica relaciona-se aos significados que são compartilhados no plano coletivo.
Mais do que simples conseqüência do processo de produção, o consumo ocupa papel
central no processo de acumulação. Os bens são investidos de valores socialmente utilizados
para expressar categorias, cultivar iias, fixar e sustentar estilos de vida, traduzir relações
sociais, enfrentar mudanças, criar permanências. Atuam como comunicadores num sistema
vivo de informação. Como atitudes no cotidiano, os detalhes do consumo além de revelar a
posição de classe, a produz e reproduz. No diálogo sobre o valor embutido no consumo, os
bens apresentam um conjunto de significados mais ou menos coerentes, mais ou menos
intencionais, que devem ser lidos por aqueles que conhecem o digo e os esquadrinham em
busca de informações. O consumo atua também como forma de renovação; muitas vezes,
através do consumo se restabelece o acesso a ideais de outra forma inatingíveis.
O poder dos bens, porém, o se reduz à capacidade de acumulação de posses
materiais. Na verdade, a posse de bens é causa/resultado de uma articulação mais ampla das
relações sociais. A medida correta da pobreza não é simplesmente a quantidade de posses,
mas o envolvimento social, que possibilita seu acesso. Padrões de consumo em pequena
escala refletem, em geral, ligações curtas, frágeis, com a sociedade mais ampla. Padrões de
consumo em larga escala indicam gastos pesados em informação, de um tipo ou de outro. (cf.
Douglas & Isherwood, op.cit.). Os bens revelam as condições de acesso a uma rede de
relações mais ampla, possibilitam a reciprocidade, conservando o potencial de ganhos sociais.
242
Na verdade, há uma íntima relação entre o consumo compartilhado e amplas fontes de
informação, dado seu papel mediador.
Se nas sociedades de mercado, o consumo atua como bametro do progresso e
estabilidade de uma nação, as camadas médias em particular, na luta pela estabilidade
ascendente na hierarquia social, muitas vezes atingem o ideal (perseguido) de modernidade
através das práticas de consumo. Esta tendência, contudo, se acentua nas sociedades
periféricas, pois numa sociedade instável como a nossa, o consumo se apresenta como meio
primário de moldar identidades.
O consumo define-se como processo central para auto-definição das camadas médias
brasileiras. A sua situação instável as faz construir marcos identitários a partir de bens, que
vêm naturalizar a hierarquia. O’Dougherty (1997) destaca como instâncias fundamentais de
modulação da identidade da classe dia, o trabalho, o consumo, a auto-apresentação. A casa
própria – e seus desdobramentos como o tamanho da casa e os serviçais -, o carro -
principalmente, o carro zero-, as viagens ao exterior e os investimentos são bens indicadores
de uma situação social “beneficiada”. A imprensa escrita fornece o apoio necessário: protege
investimentos, divulga métodos de compra, sugestões de aquisição, estórias de declínio social,
escândalos. O consumo de elementos o-locais, não-nacionais, assim como as viagens
internacionais, o domínio de outra ngua são elementos que confirmam/propiciam o olhar de
longo alcance, a seleção deliberada de pares. Os obstáculos ao padrão de consumo de larga
escala não são somente uma questão de renda, pois a intensa competição para se atingir bens
de informação gera altas barreiras de admissão, atuando como eficiente técnicas de exclusão.
A educação, no sentido amplo do termo, vem auxiliar os aspirantes ao acesso, promovendo
fontes informais e formais de informação, expresso pelo interesse destes setores por todo tipo
de aulas. Da pintura, passando por técnicas fisioterápicas às aulas de dança, de forma que
243
contribuam para o desenvolvimento do encanto pessoal. No mercado mais competitivo, o
prêmio é para maior originalidade e singularidade.
O uso do tempo e a sua disponibilidade podem ser vistos como eficiente teste de
conexão; quanto maior o envolvimento social das relações sociais mantidas pelo consumo
compartilhado, mais ocupado se torna o tempo. Para Maurice Halbwachs (cf. Douglas &
Isherwood, op.cit) os usos do tempo podem fornecer critérios definidores de classe social.
Parece que os pobres sempre têm tempo a mais nas mãos e menos coisas para fazer com ele
do que os ricos”. O fato de o estarem plenamente envolvidos no processo de produção
explica a grande quantidade de tempo que os pobres dispõem, situação esta reforçada pela sua
condição de relativa marginalidade do processo de consumo. A idéia diferenciada do tempo
associa-se aos variados tipos de atividade de consumo, no sentido amplo do termo. Daí a
importância da periodicidade e da sincronização das responsabilidades, expressa, por
exemplo, por meio das agendas.
Uma das grandes contribuições para a reflexão sobre o consumo é de T. Veblen
(1974[1899]), exatamente por destacar, já naquela época, o significado cultural dos produtos,
e não somente sua utilidade. Para Veblen, o consumo funciona como operador distintivo
numa sociedade em que a riqueza e o ócio são indícios de privilégio. Se o ócio marca a
existência das elites desde o Mundo Antigo, na modernidade ele se associa, ou até mesmo é
superado, pelo consumo como modo preferencial para exibão do status. O valor das
reflexões de Veblen mais se ressalta frente à sua atualidade, sendo capaz de traduzir as
transformações de uma sociedade moderna complexa industrial. Um ambiente de ênfase
simbólica na atitude individual, no qual as linhas de demarcação social tornam-se vagas e
transitórias. Para Veblen, o consumidor está ativamente engajado na criação de suas
“necessidades” e lida constantemente com a necessidade de ascensão social e manutenção do
244
status. Seu comportamento, porém, não é somente coerente consigo mesmo, mas afetado pelo
comportamento dos outros, destacando a emulação como mecanismo básico de ascensão.
Campbell (1995), por sua vez, vem complementar a visão de Veblen, na medida em
que explora as dimensões subjetivas, mas socialmente definidas, do consumo, que colocaria
como orientado pelo hedonismo moderno. Afinal, muito se escreveu sobre a “explosãoda
capacidade produtiva com a revolução industrial, mas a contraparte deste fenômeno, a
demanda, ficou naturalizada, adormecida nas entranhas de explicações lineares da utilidade.
Este autor acredita estar o consumo associado a transformações mais amplas, não
relacionado à mudança tecnológica, como ao surgimento do indivíduo enquanto valor. Se nas
sociedades tradicionais o consumo é governado pela tradição, limitado pelo imperativo das
necessidades sicas (cf. Foster, 1967), e onde a busca individual pelo prazer é tida como
blasfêmia, o consumo, nas sociedades complexo-industriais, ancora-se na habilidade moderna
de relacionar a consciência da objetividade do mundo e da subjetividade de si. A escolha
assume, assim, papel simbolicamente preponderante, pois representa a consciência como
mediadora entre a possibilidade objetiva e a experiência subjetiva.
A atividade central do consumo (e largamente explorada pela mídia) não é a seleção
real, compra e uso de produtos, mas a busca imaginatória de prazer, a qual a imagem do
produto a empresta. A representação do produto é mais importante que os produtos em si.
Desta forma, o novo sempre se encobre de um significado: o consumidor moderno desejará o
novo ao invés do familiar porque o possibilita a acreditar que sua aquisição poderá suprir
experiências e atrelar algum de seu prazer sonhado no produto.
Alguns autores podem ser destacados nas reflexões sobre o consumo alimentar. Bourdieu
(1979) oferece-nos um trabalho minucioso sobre o consumo alimentar como operador
distintivo, em muito se aproximando das reflexões do consumo conscuo de Veblen. Visando
a análise dos elementos do “gosto”, Bourdieu focaliza sua observação em três aspectos, que
245
considera relevantes na definição destas estratégias: a cultura erudita, a decoração da moradia
e o consumo alimentar. No que se refere a este último aspecto este autor observa que a
escolha está ligada a fatores que extrapolam a questão da renda para reforçar grupos de status
e sua localização dentro de uma mesma classe. Ao contrário das classes populares,
preocupadas com o alimento que lhes proporcione “força”, os setores médios preferem
produtos que lhes proporcione “forma”, ou seja, leves, bons para saúde ou que não engordam.
Sahlins (1979) vem desnaturalizar a própria “sociedade de mercado”, demonstrando-
nos a centralidade da esfera produtiva nas representações das sociedades ocidentais, onde
impera a razão prática. Neste intuito, analisa o comportamento alimentar da sociedade norte-
americana, cujos hábitos são orientados, sobretudo, por uma lógica cultural, onde as regras
econômicas, racionais do mercado, tais como a escassez e abundância pouco atuam na
definição de alimentos mais valorizados.
Ao focalizar a comida como valor distintivo, Sahlins compara o consumo das partes
nobres da carne bovina com as vísceras, demonstrando-nos que o fator que confere mais valor
ao “filé” do que a “língua” seria cultural e não simplesmente uma questão de oferta/procura:
as sociedades ocidentais trazem, em geral, o sentimento de aversão às vísceras animais,
mesmo dos animais comestíveis, o que vai se refletir no seu valor de mercado. Uma
lembrança incômoda da proximidade da vida animal à vida humana que atingirá de forma
predominante os estratos superiores da sociedade, cujo apetite sensível, se configura muito
mais pela qualidade do que pela quantidade. As vísceras, contudo, definem-se como alimento
comestível para os estratos inferiores, como negros e imigrantes na sociedade americana. Na
sociedade brasileira tal distinção é testemunhada pela “feijoada”, tida originalmente como
comida de senzala”. Freqüentemente, fazem parte do cardápio dos estratos inferiores pratos
envolvendo vísceras, que engordam o cozido com legumes e feijões; o que vem a confirmar o
sentido democrático” do cozido em relação ao assado, já destacado por Lévi-Strauss (op.cit.,
246
1964). O caso de Celina Prado, filha de uma família tradicional do interior de Minas, vir se
aventurar em comer “bucho” no Rio de Janeiro é particularmente enriquecedor. “Se papai me
visse comendo estas coisas...”. Demonstra a mudança de valores que assiste em sua trajetória
pessoal, associada a sua vinda para uma grande metrópole, um ambiente mais tolerante à
diversidade. Ela, de fato, diz que “aprendeu” a comer vísceras e partes que em sua cidade
natal eram doadas aos mais pobres nos matadouros”, através de suas relações sociais,
primeiro com uma empregada , e depois “num restaurante português na Lapa”. Bucho, então
se transformou em “Dobradinha à portuguesa”, mudando o sinal negativo do alimento, que
traz assim uma conotação da relatividade de um elemento o-local”.
No sentido da estrutura profunda definidora da “humanidade”, este comportamento
vem confirmar as discussões sobre padrões de comestibilidade nas sociedades humanas,
endossando a proposta de Leach (op.cit.) de que a comestibilidade se situa a meio caminho
entre o próximo e o distante, o semelhante e o diferente, entre mais como eu e o menos como
eu. Entre os grupos ameríndios estudados por Viveiros de Castro, Arhem, dentre outros
(op.cit.), o papel fundamental do xa é produzir, ora a semelhança, ora a diferença,
conforme o objetivo da incorporação do alimento. A diferença entre a caça e a criação de
animais fundamenta-se em princípios de “comestibilidade” opostos. Senra (1996), por
exemplo, faz referências à surpresa dos Kagwahiv quando descobriram que os ocidentais
tinham o hábito de criar animais para comê-los (ou comiam os animais que criavam...), como
as galinhas.
Apesar de uma metpole como o Rio de Janeiro comportar diferentes formas e locais
de alimentação, tais como restaurantes (de diferentes tipos), pizzarias, lanchonetes, barracas,
etc., os três grupos pesquisados têm como local principal de consumo alimentar a própria
casa. Conforme mencionado no capítulo anterior, “comer fora” representa a oportunidade de
encontrar com amigos, de fugir da rotina, hábito este que não se associa ao cotidiano. Sandra
247
e Elisa, por exemplo, preferem levar sua comida de casa para o trabalho, a comer nos
restaurantes da região central. A gente enjoa de comer na rua, sente falta de uma comida
melhor”.
No âmbito familiar, o processo culinário que ordena o cotidiano das famílias se
inicia no momento do (re)abastecimento no “mercado”, quer seja nas feiras-livres, nos
pequenos mercados e mercearias ou nos supermercados. As compras caracterizam-se por sua
inserção no domínio público, contrastando ao momento que lhe complementa, ou seja, a
elaboração do alimento. Enquanto a primeira atividade envolve situações de contato social, a
segunda se define, na ordenação cotidiana, como uma atividade inerente ao domínio privado.
O’Dougherty (op.cit.) descreve uma série de estratégias de otimização adotadas pelas
camadas dias, de forma a ampliar seu potencial de compras, o que certamente também se
fará presente nas compras de abastecimento alimentar. A presença das listas dos itens
necessários, a pesquisa de preço em diferentes locais, a prática de estoque de produtos em
promoção, o uso do cheque pré-datado, demonstrando-nos que a capacidade de ordenação e
planejamento do gasto mensal define-se como eixo ordenador do cotidiano para os setores
dios. Há compras diárias, semanais e mensais, de acordo com a qualidade (se perecíveis ou
o ) dos produtos. Dos grupos familiares pesquisados, Sandra Pinn utiliza freqüentemente
o supermercado, uma vez que a região onde mora, nas proximidades de seu condonio, é
destituída de qualquer tipo de comércio. Faz compras, geralmente, acompanhada por sua
caçula. Elisa, por sua vez, associa compras semanais no pequeno comércio do Graj a
compras mensais em supermercados, sendo estas, conforme mencionado anteriormente,
eventos familiares com a co-participação de Bernardo e seus filhos. Apenas Celina Prado se
envolve no ritual cotidiano das compras, uma prática solitária, e desdobrada em pequenas idas
e vindas ao comércio do Leblon, já que evita o excesso de peso.
248
Conforme discutido anteriormente sabemos que em nossa sociedade os objetos de
consumo ganham seu significado de acordo com sua capacidade de objetivar valores pessoais
e sociais. É neste sentido que Daniel Miller (2005) destaca a existência de uma moralidade
inscrita no ato de compras, na medida em que este expressa o cuidado com o outro. Os objetos
de devoção têm mudado ao longo da história das sociedades ocidentais, onde a devoção
religiosa, após o processo de secularização, é substituída pelo ideal de amor romântico. Na
atualidade, ainda de acordo com Miller, a devoção feminina vem se deslocando da figura
masculina para o culto à criança. Como rito devocional, as compras de rotina, de
abastecimento do lar, expressam o constante monitoramento sobre os desejos e preferências
dos membros da família. Neste ato de “amoras pessoas se sentem moralmente superiores ao
praticar uma atividade edificante, expressando o cuidado pela lembrança das particularidades
de cada um. Apesar da relação conjugal permeada por “implicâncias”, Celina não se esquece
das prefencias de Walter em suas compras: “Tudo dele é diferente, o pão, o queijo, o leite,
além de outros produtos”. O propósito de comprar vai além de comprar as coisas que as
pessoas querem, pois significa a intenção em continuar se relacionando com os sujeitos que
querem estas coisas. No caso da família Soares, a dedicação às crianças no processo de
compras é visível, pois os produtos são na sua grande maioria escolhidos visando supri-las,
sejam suas preferências ou suas necessidades. Em afinidade ao processo de transformação da
família moderna, o crescimento da autonomia infantil traz reflexos também na alimentação.
Convertida em sujeito, a criança, tem sido apontada como inflncia decisiva no consumo
familiar. Além de mais suscetíveis aos apelos da mídia, as crianças ainda vivenciam de forma
mais presente a influência dos colegas no embate da exibição competitiva, o que vai gerar
novas e inusitadas demandas dentro da família. François de Singly (2001) caracteriza este
fenômeno como parte do processo de socialização invertida, quando as gerações posteriores
o ganhando força de influência entre seus antecessores.
249
A comida participa de forma constante (e apresentação variada) dos momentos
centrais de convivência familiar, da família com a rede de parentesco, amigos e vizinhos.
Atua como mediadora de rios níveis de troca e rios níveis de relação, como direitos e
deveres, confiança, inclusão e exclusão, hierarquia, diferenciação (cf. Medick & Sabean,
1988). O código relacional usa a alimentação para expressar vínculos, afirmar publicamente a
inclusão daquele a quem se oferece naquele grupo. Vale ressaltar que se trata do alimento
cozido”, previamente digerido pela cultura familiar: na preparação do alimento e em sua
distribuição está embutido um digo particular do grupo que rege as formas de se fazer, o
que fazer, quem faz, quem oferece, quem consome. É neste sentido que vemos nas trajetórias
de Elisa, Sandra e Celina o processo de adaptação/fusão de paladares e estilos culinários no
momento do casamento.
Não duvidas de que a festa familiar representa uma das formas possíveis de
atualização do parentesco, assim como de confirmação da rede de interações. Tanto pode ser
uma arena de poder e ostentação como espaço de solidariedade. Estar “incluídorequer uma
estratégia de organizar a troca de serviços de marcação, de modo a não ficar de fora das
civilidades partilhadas, drinques, comidas. No caso da festa de aniversário de Pedro, as tias e
tios, os avós, a sobrinha, a priminha, todos incorporam o “nós estamos recebendo os
convidados”, definindo-se em relação ao “outro”, os de fora. Seja cuidando para que os
convidados estejam fartamente servidos, seja contribuindo com alguma conversa agradável.
A festa de aniversário, como outros rituais familiares, é claramente um ritual secular,
o deixando, entretanto, de contribuir, como os rituais em geral, como promessa de
continuidade”: reforça o senso de pertencimento ao grupo, fortalece o intercâmbio de seus
membros, revigora o “consensus” coletivo, valoriza a experiência partilhada. Os retratos,
insistentes, sobressaltando todos com a luminosidade dos “flashes” são mais uma das formas
de se solenizar aquele momento, registrar aquelas pessoas, aquela reunião. Por uma
250
necessidade de reproduzir e fixar a experiência vivida, contribuem para construir a imagem
que a família, ou o grupo, quer manter de si mesma.
Cada ocasião festiva está associada a uma forma estilizada de comportamento, de
símbolos, pratos, bebidas, que traduzem certo grau de formalidade ou informalidade. O
importante é que as peculiaridades da experiência familiar sejam narradas e vivenciadas em
rituais, demonstrando-nos como este grupo de solidariedade duradoura e difusa”, (Schneider,
1968) pode-se articular, de forma a conferir autoridade e legitimidade a sua existência. O
indivíduo precisa de companheiros para tornar seu universo mais inteligível, operando o
julgamento da escolha que faz dos itens alimentares para celebrar ocasiões particulares.
Assim, procura dizer alguma coisa sobre si mesmo, sua família, sua localidade, estabelecendo
marcos de rotação dos deveres, precedências para registrar intervalos.
A estrutura alimentar destes grupos consiste na composição de ocorrências alimentares
mais estruturadas, reconhecidas como refeições - como o almoço, ainda, a refeição principal
em todos os grupos e outras menos estruturadas, como o lanche. A gramática culinária se
traduz no critério valorativo de ordenação: alimentos, fórmulas culinárias, temperos, e o tipo
de acompanhamento de bebidas são definidos de acordo com o tipo de ocorrência alimentar.
Enquanto os lanches apresentam maior flexibilidade quanto ao conteúdo, as refeições seguem
com maior freqüência as convenções. A organização da mesa, a disposição de pratos, a
reunião do grupo, a ordem dos sabores, dos calores. Observa-se uma constante
hierarquização de significantes; os ingredientes, e receitas variam de acordo com o período do
dia, da semana, do ano, assim como os vasilhames e utensílios se diferenciam, de uso diário,
de fim de semana, das festividades.
“Cada hábito alimentar compõe um minúsculo cruzamento de histórias”. Luce Giard
(Certeau & Giard,1996:234) nos apresenta a dimensão invisível do cotidiano que envolve o
ato de se nutrir. Hábitos adquiridos, construídos ao longo da trajetória pessoal, ou então,
251
herdados, provenientes da tradição familiar ou regional. Constantemente o diálogo entre estas
duas dimensões resultando em combinações particulares, às vezes imperceptíveis, pois que
naturalizadas, entre seus praticantes. Possíveis no contexto das sociedades complexas
industriais, no espaço urbano, que o agrega grupos heterogêneos, como também os
produz. Enquanto alguns setores priorizam os vínculos com a tradição mais abrangente, no
sentido de manutenção dos hábitos culturalmente herdados; outros têm a alimentação como
alternativa individualizadora, apresentando maior predisposição à inovação e à ampliação do
universo gustativo. Apesar de observarmos certas tendências que marcam esta separação, vale
lembrar que a realidade é extremamente dinâmica e muitas vezes contraditória, não existindo
marcação nítida entre o tradicional” e o “moderno”, nem a associação automática entre estes
valores e certos grupos sociais. De qualquer forma, os grupos não existem no vácuo cultural
sofrendo constantemente influências, seja da mídia, da hisria familiar ou das redes de
interações.
Câmara Cascudo (1983) nos chama a atenção para a “inalterabilidade” do regime
alimentar popular em oposição às classes altas, abertas a todo sopro de modificação
elegante”. A seu ver, o “povo”, para aprovar alguma alteração em seu hábito necessita de um
longo período experimental. Apesar de ser necessário certo cuidado com generalizações
fáceis, as reflexões de Bourdieu (op.cit.) confirmam de alguma forma esta diferença. A
questão do “gosto”, longe de se definir somente como espaço das singularidades individuais,
ancora-se profundamente na vida social. O gosto como operador da transformação das coisas,
no caso, as preferências alimentares, em signos distintos e distintivos. Os gostos de luxo,
tipicamente burgueses”, que se baseiam na liberdade de escolha, em oposição aos gostos de
necessidade, modestos em sua limitação econômica. Como se a uma parcela da sociedade
coubesse a existência constante da dimensão “extraordináriae festiva, e outra se prendesse
principalmente à ordinariedade do cotidiano. O fato é que hábitos alimentares reproduzem a
252
amplitude da rede ao qual se está conectado. Enquanto na mesa dos menos favorecidos
observa-se o carboidrato barato predominando em todas as refeições, na medida em que se
ascende na estrutura social, maior a variedade de componentes alimentares. Ao ponto de ser
difícil a identificação de um alimento básico; pães, batatas, feijões, arroz, figuram ao lado de
carnes, peixes, legumes, frutas em variedade contínua.
O caderno de receitas está presente, como fonte de registro das fórmulas culinárias, em
todos os três grupos familiares, apresentando, contudo, histórias e significados diferenciados.
Elisa Soares ganhou seu caderno como presente de casamento de sua ir mais velha,
preenchido com receitas “aprovadas”(ou será digeridas?) na experiência daquele grupo
familiar. Apesar de afirmar gostar de cozinha, (“Minha comida é boa!” “O Bernardo gosta de
minha comida”) tem estado afastada deste universo. Seu caderno de receitas anda por
completar, carregado de recortes de jornais e revistas com boas iias culinárias. Na
confraternização do Grupo de Casais que participei, a famosa “Roda de Pratos”, Elisa levou
uma sobremesa, “Palha Italiana”. Acredito que seja uma receita emblemática de sua relação
com o mundo da culinária, assim como do estilo alimentar de seu grupo. A padronização do
paladar na sociedade de mercado tem sido responsável pela divulgação de “fórmulas prontas”
de sabor, como a mistura leite condensado e o chocolate. Este, um ingrediente que explode
como prazer gustativo cada vez mais obrigatório na medida em que foi descendo os degraus
sociais. Trata-se de um doce seco feito à base de ingredientes pré-fabricados, populares no
consumo alimentar da sociedade moderna, numa combinação de biscoito, leite condensado e
chocolate. Modulado pela “praticidade”, é um doce de fácil preparação, exigindo pouco
tempo disponível, ingredientes acessíveis ( não pelo preço, mas por serem daqueles que
toda dona de casa tem guardado em sua dispensa), e poucas habilidades manuais.
O caderno de Sandra Pinzón fez parte de seu enxoval de casamento, cuidadosamente
preparado para anunciar tempos melhores, de maior fartura e diversidade. A trajetória de
253
Sandra é, contudo, de afastamento desta forma “rígida” de cozinhar. Sua mudança de estilo
faz com que valorize hoje, a inspiração e a criatividade. Eu não me ligo muito a receitas.
Gosto de inventar”. Sandra é afoita a temperos variados, exóticos, assim como chás
compostos, às vezes com três, quatro ervas. E já tem uma herdeira; Cudia, sua filha do meio,
na sua opinião, é aquela que tem mais talento na cozinha, pois também gosta de improvisar.
A primeira vez que fui à sua casa, Sandra me ofereceu um “Creme de Abacate com Hortelã”,
uma receita, acredito eu, sintetizadora de seu estilo próximo da “natureza”, dos alimentos
integrais, chás e ervas; com um detalhe, os abacates foram colhidos no próprio condomínio.
Da qualidade desta receita, destacaria a “simplicidade” das formas orgânicas.
Por fim, Celina, que se casou sem saber ao menos “passar um café”. A vida de esposa
foi-lhe exigindo o aprendizado da cozinha, o para ela própria faze-lo, mas para coordenar
suas ajudantes. Do caderno preenchido ao longo dos anos passou para uma colão de receitas
digitadas pela nora, que compilou as preferidas da família; de omeletes contei cerca de 25
receitas diferentes. um certo cosmopolitismo no estilo culinário dos Prado, a utilização de
grande variedade de ingredientes, muitos dos quais pouco conhecidos para grande maioria dos
brasileiros, mas, contudo, encontrados no Leblon. Além disso, as refeições são compostas por
entradas”, pratos principais e sobremesa. Lembro-me de uma sobremesa muito apreciada por
Celina, de acordo com a mesma, “conhecida em todos os restaurantes do Leblon” identificada
como “Creme de Papaya com Cassis”. Trata-se de um doce de textura cremosa, fina, à base de
sorvete e mamão, regado com Licor de Cassis, que acredito traduzir um pouco do estilo
clássico e reservado dos Prado.
Conforme mencionei anteriormente, parte do trabalho etnográfico consistiu em
recolher amostras das refeições principais dos três núcleos, como forma de ilustração dos
traços que delineiam as práticas e estilos alimentares.
254
Família Soares: amostragem da refeição principal
Dia da
semana
Dia da
semana
Segunda
arroz -filé de frango grelhado
feijão - batata doce frita
-agrião refogado
Doce: Ambrosia
Segunda
arroz - bife de boi
feijão - brócolis
- batata doce
Terça arroz - omelete de queijo com presunto
feijão - salada de vagem com cenoura
Terça arroz com brócolis - frango
- salada de alface com tomate
Quarta arroz - torta de espinafre
feijão - bife de boi
-salada de alface e tomate
Suco de maracujá
Quarta arroz - peixe frito (pescada)
feijão - batata gratinada
Quinta arroz - filé de frango à milanesa
feijão - beterraba
-quiabo
Quinta arroz - bife de boi
feijão - salada de chuchu, cenoura e batata
Sexta arroz - bife de panela
feijão - purê de batata
-salada de vagem com cenoura
Sexta - macarrão com sardinha e milho verde
- carne moída com cenoura
Sábado - lasanha de presunto com molho à bolonhesa
- salada de alface e tomate
Doce: Ambrosia
Sábado Aproveitamento da comida do dia anterior
Domingo
Macarrão gratinado com creme de leite e presunto Domingo Almoço em restaurante. Comida nordestina, na Feira
de São Cristóvão
255
Família Pinzón: amostragem da refeição principal
Dia da
Semana
Dia da
Semana
Segunda arroz selvagem - purê de abóbora com salsa
feijão mulatinho - berinjela à milanesa
Segunda arroz - purê de abóbora
feijão branco - salada de alface crespa com ervas
Terça Macarrão com manjericão, alecrim e queijo parmesão
Terça arroz selvagem - empadão de palmito
feijão mulatinho - salada de agrião e ervas
- suco de maracujá
Quarta arroz - berinjela à milanesa
feijão manteiga - carne assada
Quarta Batata ao forno com manteiga, salsa, requeijão e bacon
frito
Quinta arroz com quinoa - abobrinha ao forno
feijão preto - bife à milanesa
- salada de alface, rúcula e hortelã
Quinta Arroz - couve-flor
- purê de batatas com queijo
- salada de verduras mistas
Sexta arroz com lentilhas - carne moída com molho de tomate
- jiló frito
Sexta “Cocido” ( grão de bico, paio, lombinho salgado, lingüiça,
inhame, batata e repolho)
Suco de uva
Sábado Lasanha de queijo
Suco de abacaxi com laranja e hortelã
Sábado arroz -
bolo salgado ( batata, inhame,
feijão preto queijo, couve-flor)
-
salada de alface e beterraba
cozida com açúcar mascavo
- suco de manga com maracu
Domingo
-
peixe ao forno com batata e molho de camarão com
catupiry
- salada de alface, rúcula, pepino,cenoura
- suco de morango com maracu
Domingo
Yakisoba de carne com cenoura e shiitake
256
Família Prado: amostragem da refeição principal
Dia da
semana
Dia da
semana
Segunda arroz - salada de broto de feijão
feijão - batatas cozidas
Morangos -carne bovina frita
Segunda Arroz -peixe (robalo) ao molho de camarão
-brócolis
Terça arroz - salada de alface, tomate, cenoura, pepino,
feijão rabanete e berinjela em conserva
-frango refogado
Melancia -chuchu
Terça arroz -lingüiça de frango feita em casa
feijão -farofa com couve
-salada de rabanete, pepino, tomate, alface,
palmito, manga e kiwi
Quarta Arroz com shiitake - peixe (congro) grelhado
-salada de rúcula, alface, peino,
pimenta, alho poro, azeitona, hortelã ao molho de ricota e
tomate cereja empanado no requeijão e castanha de caju
Docinhos secos de coco, mamão, laranja
Quarta Espaguete ao molho de tomate
Tabule
Peito de frango
Goiabada com queijo
Quinta arroz - salada de alface, tomate, rúcula,
feijão broto de feijão
-peito de frango
-abobrinha
-banana frita
Quinta Arroz - tabule
- salmão
- abobrinha com brócolis
Sorvete
Sexta Arroz - peixe (cação) ao molho de camarões
- salada de alface, tomate, rúcula, broto
de feijão, manga, petit-pois e azeitonas
Peras
Sexta arroz - músculo cozido
feijão - salada variada
- purê de batata
- ervilha
Sábado arroz - rosbife
feijão - farofa de cenoura
- petit –pois com legumes
Gelatina de coco
Sábado Arroz com bacalhau, maçã, azeitona e passas
Salada variada
Banana frita da terra
Creme de Papaya com Cassis
Domingo Arroz com brócolis - salada Consuelo*
- creme de palmito
- carne bovina
Pudim de leite condensado
Domingo Talharim com shiitake e champignon
Salada de alface americana, cenoura, kani e passas
Gelatina de coco
*alface, agrião, muzzarela de búfala, berinjela em conserva, tomate seco, nozes, passas brancas
257
Como representantes dos setores médios de nossa sociedade, podemos observar que os três
diferentes grupos trazem consigo as marcas de uma sociedade que se industrializa
rapidamente, tais como, o afastamento da esfera doméstica, a utilização de produtos pré-
fabricados e a conseqüente padronização alimentar, o “comer sóbrio expresso pela
preocupação com a saúde, com a utilização de produtos magros e ligeiros. A busca do
alimento saudável”, por diferentes significados que possa ter, passa a ser um dos referenciais
de orientação das práticas alimentares, juntamente com os anseios da distinção, ou o peso da
conveniência. Uma cozinha que almeja a prática dos cozimentos curtos e temperos discretos,
que passa a priorizar certos processos culinários, assim como produtos específicos, em
detrimento de outros. O tetraedro tridimensional proposto por Adrianne Lehrer (cf. Goody,
1982) , inspirado no triângulo culinário de Lévi-Strauss e discutido no capítulo 1, pode nos ser
útil para algumas reflexões. Conforme referido anteriormente, a autora elege como pontos de
avaliação não os lexemas, mas práticas operacionais, o uso de materiais e técnicas de cozinha.
Entre o grelhar, assar, defumar, fritar, ferver, ou cozer no vapor, temos algumas técnicas mais
propriamente associadas ao “comer saudável”, na produção de alimentos leves. O leve oe-
se ao pesado, o magro ao gordo, o limpo ao “sujo”, o frio ao quente. Opta-se pelo grelhado no
lugar do frito. A fritura traz uma marca fortemente associada ao excesso, seja pela presença
mais forte da “gordura”, seja pela contaminação pegajosa ao ambiente, o odor, a limpeza
difícil. Assim também vemos a ausência da carne de porco, reconhecida como gorda” e
pesada”. Opta-se também pelo assar no lugar do ferver, assim como o cozimento ligeiro,
suado, de forma a se guardar a originalidade dos sabores. Pelo cozimento ao vapor uma
nova fórmula de praticidade e leveza - no lugar do defumar. Pelo cru no lugar do cozido, no
encontro mítico das formas originais do mundo natural. As saladas, neste sentido, são
emblemáticas, trazendo a idéia da “natureza na sua mesa”.
258
Saúde e Natureza no Leblon: as saladas como novas composições do “cru”. Diversidade de ingredientes e combinações.
259
No aniversário de Neide, amiga de Sandra, comemorado com um almoço entre amigos, uma
grande gamela, com diferentes tons de verdes, na forma de pequenos galhos, representava o
contraponto do mundo das panelas, da natureza em contraponto à cultura. também a
articulação entre estados de temperaturas; alguns alimentos são consumidos somente quentes,
como o feijão, ou (ainda) as sopas; outros na temperatura ambiente, como as saladas; e outros
na sua forma gelada, como as bebidas, ou a sobremesa. Sinônimo da modernidade, a água
gelada define-se como exemplo ilustrativo da naturalização das formas culturais, pois sua
baixa temperatura é condição de sua adequação ao consumo. Água que não gelada, cabe aos
velhos e adoentados consumirem.
A razão prática, dos produtos pré-fabricados e padronizados, contudo, convive com o
cosmopolitismo das opções, de ingredientes, de temperos, e de locais que oferecem a
experiência de sabores diversos e exóticos. Assim como os Soares vão comemorar o
aniversário de Bernardo na feira de São Cristóo, no almoço de domingo, Walter busca
reproduzir no Rio de Janeiro a experiência com as casas de carne que teve em Washington.
Tais possibilidades, todavia, são apropriadas de forma diferenciada entre os três
grupos. Observa-se na amostragem do cardápio da família Soares a predominância do cozido
em relação ao cru, o que vai caracterizar uma cozinha mais próxima da cozinha brasileira
interiorana, associada em nossas representações à “cozinha mineira”, assim como a utilização
de produtos mais populares como batata-doce e chuchu. A base alimentar freqüente é
arroz/feijão, binômio este que vai se tornando menos freqüente em comparação aos grupos de
Jacarepaguá e do Leblon, o que nos leva a relacionar variedade de fontes de nutrição e
amplitude da rede de interações e experiências sociais. também a predominância da carne
bovina em relação a outras fontes de proteína. Na amostragem do cardápio da família Pinzón
observa-se a presença de produtos integrais, tais como arroz selvagem, quinoa, ervas
aromáticas, patês, açúcar mascavo. O hábito de comer pães às refeições, assim como
260
diferentes tipos de queijo são, de acordo com Sandra, influência de suas raízes espanholas;
raízes que se transparecem também no gosto por diferentes tipos de feijões e na presença do
cocido”. ainda indícios de elementos não-locais, como Yakisoba e shiitake, assim como a
maior freqüência das saladas. O uso das ervas na cozinha de Sandra Pinzón não está
dissociado de suas opções de vivência religiosa, próximo ao sincretismo do movimento Nova
Era (Amaral, 2000), inspirado (também) emseitas pagãs” de valorização das forças da
natureza. Vale lembrar como os galhos de alecrim na carne foram sendo banidos das mesas
inglesas com o advento da Reforma (Thomas, op.cit.). Sandra, por sua vez, afirma ter uma
grande intimidade com as ervas, trazendo na memória de vidas passadas a imagem de se ver
colhendo ervas no campo, com roupas de camponesa. O sincretismo religioso presente na
rede de interações que permeia a família Pinzón vem nos demonstrar como este fenômeno, no
Brasil, não é exclusivo das camadas populares, sendo freqüente também em camadas dias.
(cf. Amaral, 2000; Cavalcanti, 1983; Maggie, 1975; Velho, 1991 e Vilhena, 1990)
Contudo, é no cardápio da família Prado que identificamos a presença difusa de uma
base alimentar fixa, a variedade internas das saladas, que são servidas sempre como entradas,
temperadas com vinagre balsâmico e azeite “extra-virgem”. Conservas, peixes diversos e
produtos não-locais como kani e broto de feijão resultam de uma composição orquestrada por
Celina, fruto de sua longa trajeria. Há, contudo, composições inusitadas, pois ao mesmo
tempo em que ela lança mão de pignoles, tâmaras secas, nirá, não abre mão da lingüiça
caseira que faz desde os tempos de Belo Horizonte.
ainda que se mencionar o personagem central dos bastidores do mundo culinário
das famílias de camadas médias, no caso, presente em todos os três grupos, a empregada
doméstica. Trata-se de um elemento fundamental na manutenção da ordem doméstica, assim
como decisivo na possibilidade da emancipação feminina, seja pelo mundo do trabalho no
qual Elisa e Sandra se embrenharam, seja pelos diferentes cursos de aperfeiçoamento de
261
Celina. São mulheres que, por um momento de ruptura conjugal assumem a tarefa de
sustentar seus filhos através do trabalho doméstico. Suas trajetórias testemunham uma das
rotas migratórias nacionais mais expressivas, do sertão nordestino para as grandes metrópoles
da região sudeste, em busca de melhores condições de vida. Como toda função, a condição de
doméstica se situa no campo da divisão social do trabalho, fundamentando-se em processos
de interação social. Fruto do encadeamento contínuo de ações que geram posições/ocupações
sociais específicas, não é, contudo, visto como “profissão”, um termo em geral de uso restrito
a ocupações de conhecimento específico e prestígio. Alguns tipos de trabalho são
considerados mais responsáveis” e “puros”, envolvendo conhecimento e habilidades
especializadas, enquanto outros representam o lado obscuro de uma hierarquia de funções. É o
caso do valor socialmente conferido à atividade de “doméstica”, ou cozinheira”, como
inferior, ou nos termos de Hughes (1971), dirty work”. Hughes chama a atenção ao fato de
que toda profissão pressupõe a existência de um público, sendo, por isto, o trabalho, fator
determinante para a construção da identidade.
O desempenho de papéis na sociedade é acompanhado por processos ambíguos,
distorções sutis do papel e função, parte que é de um sistema de interações. Entre patrões e
empregadas circulam diferentes concepções do que esta relação de trabalho deveria ser,
concepções estas formadas em parte pela experiência, parte pelo estereótipo social, parte
idealizada. As domésticas, por exemplo, não aceitam completamente definições de papéis
vindas de cima; constroem um ethos”, um sistema de racionalização do que seu
comportamento deveria ser a partir de diferentes referenciais. Muitas vezes entram em
conflito com as crianças da casa por agirem como es e não como empregadas, o que gera
uma série frustrações de expectativas no exercício da autoridade. Elisa por exemplo vivencia
atualmente conflitos entre Aparecida e Tiago, por conta deste não lhe obedecer.
262
A situação de se ter (ou ser) um “estranho” no espaço da intimidade resulta no relacionamento
singular, às vezes conflituoso, entre patroa e empregada. Como um stranger” (cf. Schutz,
1979), a empregada doméstica apresenta uma adesão desigual ao grupo, percebendo a mesma
realidade de forma diferenciada. Ocorre então a necessidade de “familiarização” deste
profissional, ou seja, o processo de adequação de seu comportamento, aparência, hábitos
alimentares ao universo da casa. Sandra, por exemplo, ensina todas a cozinhar “a seu modo”.
Acredito que um dos sinais mais objetivos desta familiarização é quando a empregada
consegue, da matéria prima da geladeira, elaborar o almoço, sem sugestões específicas da
patroa. Elisa, por exemplo, diariamente deixa os produtos a serem utilizados no preparo da
refeição separados na pia, antes de sair para o trabalho; por exemplo, vagem, cenoura,
mandioca etc. Aparecida, então, os transforma em comestíveis. Ela domina o espectro de
formas e sabores daquele grupo, pois que se infinitas maneiras de se preparar cenouras, os
Soares as ingerem em determinadas formas, em determinadas combinações.
O conflito entre este estranho que partilha da intimidade de seus pates se faz mais
aparente e incisivo nas situações em que grande convivência entre patrões e empregada,
quando a disputa pelo território de atuação se faz presente. Tal é a diversidade de fuões de
uma empregada do lar que se torna difícil a definição de uma profissional completa; Elisa em
certo momento de sua hisria abriu mão de uma profissional que soubesse cozinhar bem para
ficar com uma que fosse carinhosa com seus filhos. As empregadas são mediadoras de
mundos sociais distintos, fazendo a ponte necessária de circulação de idéias, crenças, produtos
(cf. Coelho, 2001). Através deste personagem as famílias dos estratos médios têm acesso à
dinâmica e aos problemas sociais relativos à desigualdade social. Suas histórias trazem a
marca, muitas vezes, da violência, discriminação e desigualdade de oportunidades.
263
“Rotinas” de autoria de Sandra Pinzón. Folha afixada no quadro de aviso, na cozinha de sua casa.
Para Todos>
Para Todos>Para Todos>
Para Todos>
Fazer feira toda sexta- feira ou na quinta-feira.
Manter sempre uma boa alimentação.
Usar diariamente bastante legumes.
Panela de vidro.
Sal grosso.
Menos carne no feijão.
Menos gordura no arroz e outros.
Utilizar sempre os alimentos do freezer.
Examinar todos os dias a geladeira. Aproveitar sempre os alimentos
Examinar todos os dias a geladeira. Aproveitar sempre os alimentos Examinar todos os dias a geladeira. Aproveitar sempre os alimentos
Examinar todos os dias a geladeira. Aproveitar sempre os alimentos
existentes. Incrementá
existentes. Incrementáexistentes. Incrementá
existentes. Incrementá-
--
-los com um novo elemento para dar nova cara.
los com um novo elemento para dar nova cara.los com um novo elemento para dar nova cara.
los com um novo elemento para dar nova cara.
Rosana deve sempre que possível levar merenda adequada para uma moça que
quer ficar bonita e saudável.
Rosana deve estar sempre com o uniforme e o corpo bem tratados. A primeira
coisa que se estabelece entre os seres humanos é o cheirinho bom.
Quando colocar a louça na máquina retirar bem todos os resíduos.
As roupas finas e de cor devem ser lavadas sempre à mão. Enxaguadas com
vinagre e postas na sombra para secar. A máquina destrói a roupa
rapidamente e, está muito cara roupa de bom nível.
Uma vez por mês os armários necessitam serem limpos.
Todos nesta casa são responsáveis pela segurança das nossas vidas, pela
conservação de todos os objetos, pela economia constante e pela promoção de
boas idéias. Quando estamos zelosos e prestativos, garantimos também a
nossa satisfação. Lembre_se: tudo na vida é troca.
Se você hoje não acordou bem, aqui vai uma receita:
Se você hoje não acordou bem, aqui vai uma receita:Se você hoje não acordou bem, aqui vai uma receita:
Se você hoje não acordou bem, aqui vai uma receita:
- Beba um copo de água.
- Olhe para o sol e Agradeça por estar vivo e com saúde.
- Coloque uma boa música no rádio e bem alta.
- Pense que: se este momento entrou, ele vai ter que sair. Adote um novo e
bom pensamento. E diga: Sou especial, posso mudar, transformar para um
novo estado o que estou vivendo. Tudo tem uma, ou duas, ou três saídas. A
vida é boa porque temos todos os dias desafios para viver e mudar.
A única coisa constante na vida é a mudança”.
A única coisa constante na vida é a mudança”.A única coisa constante na vida é a mudança”.
A única coisa constante na vida é a mudança”.
Tenham todos um bom dia.
Tenham todos um bom dia. Tenham todos um bom dia.
Tenham todos um bom dia.
264
Celina, por exemplo, tem no seu repertório de experiências com empregadas no Rio de
Janeiro, o caso de uma funcionária, que após um aborto feito “lá pelas bandas de Niterói”,
sangrava copiosamente em sua casa.
Trata-se de uma ocupação que tem seguido a tendência do mercado da alta
rotatividade. Luzia, empregada de Celina 25 anos é exceção. Luzia conquistou certa
autoridade no ambiente; apesar de usar uniforme e sofrer com os surtos de impaciência de
Walter, já se considera de casa”. Dos três grupos, foi com Sandra e suas amigas que mais
ouvi comentários sobre empregadas, assim como sua alta rotatividade. A situação geográfica
do condomínio gera dificuldades ao acesso dos serviçais, exigindo de muitas morarem com os
patrões; por outro lado, o tamanho das casas as faz necessárias. Maria de Fátima, empregada
de Sandra, dormia em sua casa durante a semana. Maranhense, mãe solteira, entregou o filho
à avó para criar, de forma que pudesse vir para o Rio trabalhar. A última vez que estive com
Sandra, ela havia trocado Maria por uma diarista. Além de sua inconstância, Maria trazia a
dor da separação do filho, inconformada ainda com seu destino.
Quando a casa é o corpo
Apesar de origens heterogêneas, as camadas médias não são desprovidas da
consciência de sua posição na escala social. Antes que discursos políticos inflamados,
identifica-se esta consciência através de manifestações não verbais de classe. As
demonstrações, redundantes, se apresentam sob variados aspectos, dentre os quais podemos
destacar a importância da casa e do corpo. Assim como a privacidade da casa, a privacidade
do corpo, o desenvolvimento do compromisso da auto-gestão, a preocupação com a auto-
apresentação vão se manifestar em diferentes âmbitos. Dentre as nuances do “cuidar de si” se
265
insere a preocupação com a alimentação, cuja aprendizagem faz parte do processo global do
desenvolvimento do indivíduo em sua cultura.
Sabemos que o processo de socialização é muito mais que um processo cognoscitivo,
ocorrendo em circunstâncias carregadas de alto grau de emoção. A criança identifica-se com
os outros por uma multiplicidade de modos emocionais. Ao se identificar com os “outros”
significativos, identifica a si mesma, adquirindo uma identidade coerente e plausível. A
socialização implica seqüências de aprendizado socialmente definidas, cada etapa deve
acarretar certo reconhecimento social do crescimento e diferenciação biológicos. A comida e
o comer ocupam papel fundamental neste processo de adaptação, definindo-se como um
poderoso instrumento de moldagem social. Pois que se temos fome por necessidade natural, a
forma de saciá-la insere-se no campo da cultura (se é que podemos desdobrar a realidade
neste sentido...). Assim, temos em nossa cultura expectativas de que a criança
paulatinamente conquistando o domínio da atividade do comer dentro de certos padrões. O
babador, a colher torta, o prato com divisões internas que se adere à mesa, o copo com tampa
e sugador são instrumentos disciplinadores da conduta “adequada”, que todos devemos ter
diante da comida. Não sujar-se, não derramar, não misturar, não tocar, ser destro, ser
autônomo, não deixar sobrar, não gritar, não mastigar com boca aberta, comer de tudo são
imperativos/expectativas que vencemos nas etapas do crescimento. Este processo, porém, é
permeado por conflitos, pois além de sinuoso, com idas e vindas, é povoado por aprovações e
reprovações dos adultos. Grande parte das preocupações cotidianas de Elisa com seus filhos
se insere neste processo de construção de um indivíduo apto a comer em sociedade. A
pequena Carolina, envolvida em pratos e copos derramados, que não se senta à mesa, e
Tiago,que não come de tudo”. As dificuldades de Tiago no comer são amenizadas pelo afeto.
“O que eu faço ele come melhor”,comenta a mãe. Por outro lado, sua resistência traz
complicações sociais aos pais, como o fato de ninguém querer ficar cuidando dele, nem a avó:
266
Através da Agenda da Creche os pais acompanham o cotidiano, inclusive fisiológico, de
Carolina.
267
“Mas esse menino não come nada!” Para quem não come, maiores são as dificuldades de
relacionamentos, principalmente quando se trata de crianças, das quais os adultos se investem
de responsabilidade moral de “tratar”. “Comer de tudo certamente é uma categoria
significativa em nossa cultura denotando crianças maleáveis e adultos saudáveis, pois que o
comer bem” implica a diversidade. Sem falar do apelo moral que está embutido na
sobriedade necessária da ética burguesa. A festa, como potlatch gastronômico, vem a ser a
exceção que confirma a regra, a festa infantil, como a de Pedro, termina povoada por um sem
número de copos semi-cheios, bolos no guardanapo, salgados esquecidos.
Assim, não só o paladar vai se construindo por esta experiência cotidiana, local,
familiar, como também se torna instrumento potencial da memória. O passado vem marcado
de sabores, seja como experiência de prazer ou de insatisfação. Celina, por exemplo, nunca
mais tomou café com leite, depois que saiu do internato. Curiosamente, conseguiu
convencer seus pais de que não iria continuar a estudar nesta instituição a partir de uma greve
de fome. “Eu parei de comer. As irmãs começaram a escrever para meus pais, até que me
tiraram de lá”. Se a lembrança é a sobrevivência do passado na consciência dos homens, ela
o se apresenta, contudo, como fenômeno exclusivamente subjetivo, na medida em que o
grupo social assume participação determinante na reconstrução das lembranças. (Halbwachs,
1976). A família, em particular, assume sua importância neste processo de memorização, na
medida em que é simultaneamente objeto de recordações e cenário de lembranças. O caráter
livre e espontâneo da memória constitui-se aspecto complementar, pois lembrar não é
simplesmente reviver, é refazer, reconstruir as experiências do passado sob a ótica do
presente. Assim, a relação com o passado vai ser qualificada pela visão do presente; não se
sabe ao certo se comer no passado era comer melhor que no presente, pois que existem
muitas variáveis que se polarizam no “passado com alimentos puros, mas restrito no acesso e
268
na diversidade”. A própria percepção do passado varia. Sandra fala-me em imagens de vidas
anteriores, colhendo ervas no campo, enquanto Walter sentencia o quão foi mal cuidado na
infância, mesclando escassez sentimental com escassez alimentar - o que é negado, de acordo
com Celina, pelo retrato do menino gorducho de dois anos de idade exposto na estante.
Conforme discutido anteriormente, o processo civilizador narrado por Elias tem papel
determinante das formas da apresentação de si, assim como traz desdobramentos à forma de
se lidar com o comer e a comida. A questão do uso moderno do tempo, por exemplo, orienta
práticas e escolhas no campo da alimentação.
O aumento da diferenciação e integração das funções sociais significou muitas e
longas correntes de interdependência, requerendo uma consciência constante do tempo em
coordenar numerosas atividades. A crescente estrutura complexa da interdependência social
acompanhou o desenvolvimento de um sistema complexo de auto-regulão e uma
sensibilidade individual aguda com relação ao tempo. A compulsão social, externa, do tempo
é representada por calendários, relógios, agendas definindo-se como uma delicada rede de
restrições, moderadas, não violentas, mas inescapáveis. Quanto mais densa a rede de
interdependência unindo pessoas entre si, mais estrito se torna o regime do relógio.
Um elemento essencial na concepção de Elias neste processo é a contenção de si,
onde as redes de interdependência se tornam mais densas e extensivas. uma mudança no
controle externo e interno por uma necessidade de coordenação de mais e mais seqüências
complicadas de atividades. Assim também ocorre a pressão para capacidade de previsão que
se traduz no desenvolvimento de artefatos de se lidar com o presente e o futuro próximo,
como a racionalização, psicologização, a vergonha, o embaraço. Por conta das redes de
interdependência que se espalham e democratizam, aumenta o controle recíproco, a
consideração com as conseqüências de suas ações e maior vigilância na transgressão.
269
O sentimento crescente de refinamento e delicadeza, ou seja, a civilização do gosto é
paralela à civilização do apetite. Assim, vimos através da história o imperativo do maior
controle do apetite se difundir entre setores burgueses ansiosos por demarcação de fronteiras.
O embaraço causado pelas forças internas da natureza, ou seja, a necessidade de controle do
apetite, ou da voracidade, redunda em diversas instâncias. Os salgadinhos e docinhos de
festa, pequeninos, a serem ingeridos por mordidas delicadas; o comer silencioso e
entrecortado pelo diálogo, e até mesmo aquele último petisco na bandeja, cercado por
numerosos tabus civilizados ninguém quer ser o responsável por ter sido afinal o “guloso”.
Lembro-me de uma das amigas de Sandra, numa daquelas reuniões, que exclamava, todas as
vezes que se aproximava da mesa de petiscos: Deus me livre! estou eu com fome de
novo!”.
O refinamento das condutas traz seu contraponto, ou seja, o sentimento de repugnância
e evitação de certos alimentos. A repugnância é conseqüência do desenvolvimento do que
seja comida ou um gosto “pobre”, como é o caso das vísceras discutidas anteriormente.
uma escassez silenciosa de receitas, entre livros, revistas ou cadernos que versam sobre
fígado, rins, ngua, cérebro, tripas, testículos, olhos. Uma repugnância paralela, talvez, às
funções corporais que passam a ser acompanhadas por um crescente sentimento de vergonha e
embaraço. O processo de formulação do que é refinado traz conjuntamente a racionalização
dos desgostos e evitações dos quais podemos destacar alguns fatores desencadeantes.
As restrições alimentares podem advir, em primeiro lugar, de uma incapacidade
treinada em apreciar certos tipos de alimento, ou seja, o padrão culturalmente moldado do
paladar, o que promove, frente a determinados alimentos sinais de insatisfação e
aborrecimento. As crianças sofrem o processo de adaptação cultural muitas vezes trazendo
fortes sentimentos de repugnância a certos alimentos, que aos olhos adultos não fazem
sentido. É clássica a afirmativa de que antes mesmo de provarem, já não gostam. Não gostam
270
da cor, do cheiro, da textura, ou da idéia de comer “aquilo”. também sentimentos de
embaraço social frente à ingestão de alimentos o condizentes à posão social, como os
alimentos usuais de populações marginalizadas como pobres, negros, migrantes. Celina
precisou aprender a comer “bucho” por que além da aversão “natural”, era um alimento doado
aos carentes pelos matadouros. também as situações sociais que promovem maior
tolerância a hábitos cercados de fronteiras geracionais. Diferentes estudiosos sobre a
alimentação (cf. Montanari & Flandrin, 1996) têm demonstrado a tolerância moderna quanto
ao fato dos adultos cada vez mais se afeiçoarem a paladares e texturas infantis. Conforme
depoimento de Celina, leite, para “os antigos” era um alimento infantil. Outras vezes, as
pressões por distinção impelem a domesticação do paladar frente a alimentos exóticos”, mas
preciosos, como apreciar o caviar, mesmo ciente de ser ovas de esturjão, ou degustar sashimi
e o se sentir “canibal” por ingerir carne crua. Os critérios de definão do que é comestível
são muito amplos, pois além da natureza e do sabor do alimento aversões à cor, ou ao
aspecto. Os produtos integrais, por exemplo, são investidos por uma série de suspeitas por sua
apresentação como a textura e a cor escura. Quando a maciez indica o refinamento quanto
mais solene a refeição, maior o número de pratos cremosos fica suprimida das regras do
refinamento dos modos uma série de condutas necessárias para a ingestão de um alimento
consistente, como a mastigação contínua, que provoca rdos. Das tonalidades dos alimentos,
podemos dizer que o “branco”, associado à pureza, é uma cor desejada, a ponto do açúcar ou
do pão integrais, de cores levemente amarronzadas serem denominados de “pão pretoou
açúcar “preto”. O refinamento dos alimentos, para além do discurso higienista e econômico,
traz as marcas da pureza das formas exigidas pela civilidade. também receios em relação
aos alimentos prontos, um sentimento de suspeita em relação à sua verdadeira composição,
pois que sabores, texturas e cores misteriosas podem acarretar em alguma transgressão de
padrões de comestibilidade; o caso dos hambúrgueres das cadeias globais de lanches rápidos
271
(Fast Foods), de serem preparados a partir de minhocas no lugar da carne bovina, é exemplar
dos fantasmas que povoam o imaginário do consumidor.
O medo dos efeitos s-ingestão vai das indigeses propriamente ditas às
conseqüências posteriores. Tais temores tratam dos efeitos nocivos dos aditivos químicos, a
desconfiança da comida beneficiada em promover doenças incompreendidas como o câncer e
as alergias
11
; e também tratam do medo à obesidade. Se no passado, assim como em outras
culturas, a gordura pessoal representou prosperidade, atualmente, em nossa sociedade, ela
traz indícios de indisciplina, desleixo ou decadência. O obeso vive a ansiedade de antecipar o
embaraço social de sua condição de excesso das formas, da auto-complacência, do apetite, da
ocupação indevida do espaço. Palavras como colesterol e calorias se tornam fantasmas para
consumidores inseguros; é comum o destaque no rótulo de certos produtos comercializados,
como os óleos de cozinha a frase “Sem colesterol”, sendo que se trata de alimentos que
naturalmente não têm colesterol. Uma redundância necessária à ansiedade obtusa. Por outro
lado, outras palavras tranqüilizam, como as “vitaminas” que Elisa prepara para os filhos,
misturando leite com frutas.
Neste contexto de exigência da sensibilidade às nuances sociais, torna-se fundamental
ser reconhecido por comer determinados alimentos e não outros. O significado atribuído aos
alimentos, contudo, não são estáticos, variando ao longo do tempo; muitos observam a
circulação entre os diferentes estratos da sociedade. A aristocracia euroia desdenhou
durante bom tempo os vegetais, consumidos pelos camponeses; atualmente, as elites
identificam a comida saudável com vegetais, desde que sejam crus, desdenhando certos
tubérculos, legumes cozidos ou certos tipos de carboidratos mais populares. As dietas
emagrecedoras, milagrosas, como a de Bervely Hills”, trazem freqüentemente traços
elitizantes, como reduzir as refeições a carnes grelhadas e saladas. As batatas, outro exemplo,
11
Há de se ressaltar que, se por um lado os temores se dfundem, por outro é intenso o processo de medicalização
da vida contemporânea.
272
de uma solução à fome dos pobres, se espalharam por todos os estratos da sociedade
européia. Por fim temos o exemplo do pão; nos tempos medievais, como em Roma, o o
branco era atributo dos paladares delicados da nobreza, que alegava não ter esmago para
digerir o pão escuro. Quanto mais baixo o estrato social, mais escuro o pão. Como o açúcar,
assim que o pão branco foi tornando-se acessível, os ricos redescobrem o integral. Nos
últimos 50 anos, vemos, assim, a associação cada vez mais fácil entre o refinamento social e
o consumo do pão integral, tradutor de uma série de valores e condutas. São as elites e os
estratos dios os consumidores potenciais do pão preto”, portadores da capacidade
econômica e ideológica de digeri-lo. inclusive, diferentes matizes de “pão integral” para
atender os diferentes anseios em obtê-lo; na casa de Elisa, de Sandra, e de Walter, todos
integrais, mas diferentes entre si, convivendo com pães brancos, de acordo com a ocasião.
ainda as razões morais para a aversão, ou restrição de certos tipos de alimentos. A
gordura, como vimos, é fator de restrição dado os apelos atuais da boa saúde. Elisa, por
exemplo, superou a aversão ao leite, mas não o “nojo” da nata. A carne, em suas diferentes
versões é um capítulo à parte na história do Ocidente, uma vez que sua evitação foi, em
diversos momentos históricos, balizada por razões morais. Em primeiro lugar, nem todas as
carnes são comestíveis; quando o são, nunca são comidas cruas; e carnes e carnes, a mais
vermelha, mais carne, a de peixe nem carne é, visto que pode ser ingerida nos dias santos de
abstinência, demonstrando-nos ainda, como substrato vivo em nossa cultura, a crea residual
e inconsciente do sangue. O tro mais importante que a qualifica, simbolicamente, é que
representa o controle humano do mundo natural. Consumir sculos é afirmativo de nosso
poder supremo. Na estrutura social, quanto maior a renda, maior seu consumo, assim como a
nobreza medieval se caracterizava pela abundância de carne. Conforme vimos anteriormente,
na história do homem ocidental em suas relações com o mundo natural (Thomas, op.cit.), a
ética
da supremacia humana foi constantemente evocada para justificar o crescente poder da
273
civilização industrial. O sentimento de envolvimento e intimidade com o ambiente natural foi
diminuindo e a divisão conceitual entre natureza/cultura aumentando. Na Grande Cadeia dos
Seres, todas as coisas materiais existiam para graça dos humanos. Contudo, a ascensão da
Hisria Natural, assim como outros fatores já discutidos anteriormente, vem minar a visão
antropocêntrica, hegemônica até então. A observação sistemática do mundo natural, e dos
animais, vem demonstrar que os animais não eram assim tão diferentes dos humanos em sua
capacidade de sofrer. O séc.XIX assiste então ao recrudescimento de correntes de pensamento
inspiradas na filosofia grega de abstinência da carne. Assim como o consumo de carne
representa o controle sobre a natureza, sua abstinência representa a ruptura simbólica da
hierarquia da Grande Cadeia dos Seres, substituída por uma relação horizontal, de integração
e holismo. O que ameaça os humanos, sob esta ótica moderna não é mais o mundo selvagem,
mas a civilização cientifico - industrial. Madeleine, por exemplo, no processo de renovação e
descoberta de si, optou pela abstinência de carne, assim como Tânia, filha de Sandra que volta
dos Estados Unidos, “cheia de propostas”, como diz sua mãe. Em todos os grupos, contudo,
identificam-se temores quanto ao excesso de carne vermelha, a restrição ao uso da carne de
porco e a preferência por carnes “mais leves”. o temores que circulam entre a crueldade, o
poder intoxicante de produtos químicos e hormônios que as acompanham, mas que conflitam
frente ao prazer/vigor prometido em sua ingestão. Walter combina preocupações extremas
com sua saúde (ou seu peso) com bifes do tamanho de placas de ônibus.
A outra forma em que se reveste a restrição se pelo consumo de produtos
atenuados, como os produtos lights”. A palavra lightrepresenta a quantidade reduzida de
ingredientes percebidos como negativos em diversos produtos, sejam cigarros, café, cerveja
dentre outros produtos industrializados. Dentre as razões do sucesso destes produtos
atenuados está a associão entre “leveza” e saúde”. Na verdade, os produtos light
traduzem temas do movimento de contracultura, que atinge o Ocidente na segunda metade do
274
século XX, em variantes mais contidas. Fruto da contracultura, a “contracozinhasofreu um
processo de adequação ao sistema que questionava para se transformar numa cozinha
enxuta”. Esta estratégia não difere de outras; faz parte da história de movimentos
potencialmente questionadores, dilacerantes, que são desviados para vias conservadoras e
comercializáveis, como virá ocorrer posteriormente com o movimento ecológico. Inserida no
mercado de produtos alimentícios, as conotações mais radicais do movimento da
contracozinha” foram minadas, e as preocupações do consumidor, direcionadas para áreas
mais tratáveis” como o controle de peso. Se a “contracozinha” implicava numa mudança
radical de estilo de vida, sua versão comercializada insere o “lightnuma categoria estéril,
dietética, no estilo de vida ocupado. Assim, seu consumidor não deveria se preocupar com as
árvores derrubadas para confecção de embalagens, com a produção de carne que tirava os
grãos que alimentava a grande população mundial, ou com a química que ameaçava a vida
selvagem... Light” viria significar estritamente bem-estar, e formas limitadas de atingi-lo.
Faz-se uma conciliação, alguns perigos o reconhecidos enquanto propostas radicais e
soluções amplas, colocadas em dúvida. Afinal, a ciência aplicada poderia fazer melhor o
serviço de alimentar a humanidade do que a mãe natureza... Focaliza-se, então, os perigos
mais definidos com soluções especializadas como cortar o sal e o colesterol, diminuir as
calorias; tais medidas se apresentaram como mais eficientes, com resultados visíveis para o
ideal da figura delgada. Os produtos lightforam incorporados pela indústria por extensão
segura de produtos já conhecidos e aceitos, oferecendo ainda a sensação ao consumidor de
exercer a “livre escolha”, ao disponibilizar a linha tradicional, e a “linha light”.
O consumo alimentar segue ainda as angústias do processo civilizador de Elias, no que
toca a crescente inclusão e conseqüente necessidade de diferenciação. O desenvolvimento das
redes de interdependência leva à inserção crescente do número de pessoas envolvidas nas
redes. O progresso industrial, juntamente com o aumento da segurança alimentar, traz como
275
conseqüência a diminuição de contrastes, seja entre classes, estações, entre a festa e a rotina,
entre a cidade e o campo. Conforme vimos anteriormente, um dos desafios que se apresentam
ante à democratização é a compatibilização da quantidade com a qualidade. Mennel (op.cit.)
traz proveitosa aplicação das reflexões de Adorno sobre a música na análise da comida e da
cozinha na sociedade industrial. Como na música, ou em termos amplos, na obra de arte, o
caráter fetichista da comida na indústria alimentar consiste na exisncia de forças que tendem
à padronização de um repertório limitado de pratos. O consumo de massa, a padronização
inerente à produção industrial não deixa de trazer semelhanças com a unidade culinária
medieval, que dividida entre nobres e camponeses, atravessava fronteiras. De fato a
equalização relativa das práticas alimentares é paralela ao decnio da ostentação e
superficialidade da cozinha, do desenvolvimento de certo desconforto com a luxúria. As
campanhas por uma comida mais “saudável”, avalizadas pelo saber científico, ecoam por
todos os estratos sociais, estimulando o autocontrole e a seletividade no comer.
Ainda conforme Elias, a diminuição de contrastes compele à multiplicação da
diversidade interna social. O sabor do pluralismo culinário define-se pela perda de um estilo
gastronômico que seja hegemônico. Sob certo ponto de vista, a cozinha continua rigidamente
segmentada. Curnonski, inspirado na classificação dos partidos poticos (cf. Mennel, op.cit.:
328) apresenta-nos um mapeamento sugestivo das correntes culinárias na sociedade euroia,
um pluralismo culinário que se delineou ao longo do século XX. A Extrema Direita define-se
pela Grande Cozinha, a cozinha estudada, pesquisada, complexa, que requer um grande chefe
e materiais da mais alta qualidade. Trata-se da cozinha dos palácios de governo, das
embaixadas e numa certa dimensão reproduzida em hotéis de luxo. A Direita caracteriza-se
pela Cozinha Tradicional, aquela feita em casa, com pratos lentamente cozidos sob os
cuidados de uma velha cozinheira que serve a família cerca de 30 anos. também os
centristas gastronômicos, aqueles que estão felizes por perceberem que ainda se pode comer
276
bem em um restaurante. São os guardiões dos pratos regionais que acreditam que os sabores
dos alimentos o devem ser adulterados. A Esquerda se caracteriza por uma cozinha sem
“frescuras” ou “exigências”. Caracterizada pelos lanches rápidos, faz-se o possível com o
mínimo de tempo, com o que se tem nas mãos. Ficam contentes com um omelete, um chopp,
um bife, ou qualquer comida enlatada. Restaurantes modestos em que o dono é o cozinheiro
fazem parte deste grupo. Por fim a Extrema Esquerda. Excêntrica, incansável, são os
inovadores. Estão em busca de novos prazeres, sensações não experimentadas; curiosos,
gostam de inventar pratos.
Assim como na arte, não mais uma unidade estilística gastronômica, e sim uma
diversidade de gostos co-existindo e competindo, continuamente, de forma mais igualitária,
numa rápida sucessão de modas e estilos. As ondas dos modismos são cada vez mais breves,
mas não desaparecem completamente, coexistem. Não mais também um estilo dominante
de cozinha doméstica, altamente diferenciado da cozinha profissional. Apesar de relacionar-se
com renda e ocupação, comer fora é parte da experiência de uma população cada vez maior,
tendo, portanto acesso à diversidade de estilos disponíveis. A crescente variedade ainda
apresenta como fator desencadeante a crescente diversidade da motivação. Para além de
responder a própria necessidade, para alguns, cozinhar se torna também oportunidade de
lazer, parte da experiência da ruptura da rotina.
O corpo como casa também simboliza a morada do “eu íntimo”. Em outros termos, o
“self”, esta dimensão interior, humana, cuja identidade se torna um dos grandes problemas da
modernidade (Giddens, 1994). Trata-se da idéia, já discutida anteriormente, de que todo
indivíduo, além de possuir caráter único, traz consigo potencialidades especiais. O que fazer,
como agir, quem ser, são questões existenciais que devem ser respondidas, seja através do
discurso, seja através do comportamento social cotidiano, atingindo de forma especial as
camadas médias intelectualizadas. Giddens falaria de uma “autoterapia”, o trabalho sobre si
277
baseado na auto-observação contínua. O corpo não é somente algo físico que se possui, é um
sistema de ação, um modo de prática. Apresenta-se como um dos componentes fundamentais
para construção e expressão do “self”, tanto pela aparência - a auto-apresentação de si-,
quanto pelo comportamento.
Este, ao representar a mobilização do corpo às convenções deve ser capaz de sustentar
a “aparência normal” e ao mesmo tempo possibilitar continuidade pessoal ao longo do
espaço/tempo. É preciso ouvir o corpo; nos tornando-se cada um, assim, responsáveis pelo
design de seus próprios corpos. Sabemos que o ritmo alimentar sofreu, ao longo da história,
interferências de diferentes fatores, sejam eles religiosos, ou “morais”. O jejum, por exemplo,
foi importante recurso da prática religiosa medieval, fundamental para se alcançar a graça
espiritual, enquanto a dieta, enquanto exercício de purificação dos fluidos corporais, inspirada
na medicina hipocrática, teve grande repercussão no apelo setecentista à sobriedade
burguesa. Estar de dieta” é uma categoria substancial das representações e condutas atuais
perante “o corpo”, testemunhando a mudança de valores sobre sua aparência. Para além da
purificação da alma, dos fluidos, purificam-se as formas. Trata-se de uma versão particular de
um fenômeno mais geral, ou seja, o cultivo dos regimes corporais como meio de avalizar o
projeto do self. Em suas versões extremas, tanto a anorexia nervosa quanto a bulimia são
acidentes da necessidade e responsabilidade do indivíduo em criar e manter a própria
identidade. Assim como a histeria o foi na Europa oitocentista, estas patologias do auto-
controle, fruto da obsessão extremada com a aparência corporal e magreza, têm como
contexto predominante de ocorrência uma localização social específica: adolescentes e jovens
do sexo feminino representantes de estratos superiores da sociedade moderna. Na verdade são
resultados de toda uma configuração de constrangimentos e conflitos a que os estratos médios
são submetidos em face aos valores partilhados.
278
Ser & Comer: novos sentidos do comer na sociedade moderna
Nossa experiência subjetiva da cultura contribui de forma decisiva para a simbolização
deste corpo, assim como a forma de cuidá-lo. Em Sweetness and Power, Sidney Mintz
(op.cit.)lança as raízes de uma reflexão que Marshall Sahlins (2000) i complementar,
sugerindo-nos a interpretação de hábitos alimentares a partir das representações sobre o corpo
e de valores presentes na cosmologia ocidental. Ao analisar o capitalismo como sistema
cultural, Mintz demonstra-nos como o uso do açúcar na sociedade européia sofreu uma
explosão de consumo, concomitante ao processo de industrialização e submissão das massas
frente ao ritmo exploratório do trabalho. Trata-se de uma reinterpretação do consumo de
víveres e das sensações por eles provocadas sob outra matriz cultural. Nenhuma das bebidas
quentes, chá, café ou chocolate eram adoçados em seus países de origem. Contudo, na Europa
estes excitantes, acompanhados pelo açúcar, se tornam o vício necessário frente ao imperativo
de tornar a Revolução Industrial, ao menos, tolerável. Como se o paladar adoçado pudesse
produzir no registro dos sentidos uma espécie de mudança moral que as pessoas desejassem
em sua exisncia terrena. O esboço de tal ordenação encontra-se profundamente enraizado na
cosmologia ocidental, onde a realidade se triparte entre natureza, natureza humana e
sobrenatureza. Foi o cristianismo, inspirado seus antecedentes judaicos, que primeiro
desencantou a natureza, colocando-a simplesmente como objeto para humanidade.
Materialidade pura, a natureza se define pela ausência de Deus, de espírito e de pessoas não
humanas, tendo como fim último nossa satisfação. Delineia-se, portanto, uma arquitetura
estratificada: meio anjo, meio animal, o homem não é dúbio, mas também condenado à
perpétua guerra interna entre o espírito e a carne. Sua natureza é a da imperfeição, da
incompletude. Sua exisncia, a escravidão das próprias necessidades, o inferno dos
constrangimentos da matéria. Na estrutura cultural nativa ocidental a vida define-se pela
busca de satisfação, do preenchimento, de forma a amenizar nossas dores da falta, que se
280
inscrevem de sobremaneira no corpo. Em oposição à perfeição da alma, a fraqueza de um
corpo dependente de satisfação e prazer. Daí o sentido profundo das substâncias que agradam
ao corpo e suavizam a existência; a busca do bom e a fuga do que machuca. O progresso
humano é representado pela liberação da humanidade dos constrangimentos da matéria, onde
o consumo é o pecado e a autonegação é a virtude. O comer representa o diálogo necessário
com esta natureza que se possui, mas que tem vontades próprias, às vezes incompreendidas ou
distintas da razão. Os temores da comida são os temores da fala do corpo que se apresenta
estranho à consciência, pois que regido por regras aquém do mundo dos homens. Antes que
responsabilidade, vivencia-se a culpa ante aos apelos do prazer gustativo.
Os caminhos da sensibilidade ocidental, ao longo do período contemporâneo, têm se
caracterizado, sobretudo, pela intensidade da experiência. A busca pela intensidade, a
exacerbação da sensibilidade, do refinamento acarretam a incitação à sensação, ou ao sentir,
no sentido amplo do termo. Dentre as possibilidades de intensificação do prazer se encontra o
consumo generalizado de alimentos e das “drogas”, citas ou ilícitas, inaláveis e comestíveis,
como recursos do prazer, de excitação dos sentidos de modo geral. Inspirando-se nas
reflexões sobre o hedonismo moderno, Duarte (1999) propõe que a experiência culturalmente
orientada do prazer no Ocidente contemporâneo é permeada por uma tensão latente entre a
maximização da vida - o cuidado com o corpo e sua duração -, e a otimização do corpo - a
concentração/ intensificação do prazer. Trata-se de um conflito presente nas escolhas
alimentares, que atinge particularmente aos setores que se beneficiam da ilustração e do
acesso a redes mais amplas de informação. A alimentação traz o duplo valor, nutre/ resguarda
o corpo e possibilita a intensificação do prazer.
Apesar de todo o projeto de dessacralização do mundo, comer não é neutro.
Compreender hábitos e estilos alimentares nos exige considerar a alimentação como via real
de acesso ao pensamento mágico. A frugalidade, por exemplo, se não é mais um imperativo
281
religioso que orienta o calendário dos jejuns, torna-se atualmente uma necessidade científica.
Comer é mágico (Fischler, 2001). Consumir o alimento não é somente destruí-lo, mas fazê-lo
penetrar, tornar parte de si, nos deixarmos penetrar na mais profunda intimidade corporal. É
por isto que socialmente o consideramos com prudência, nos envolvendo com toda forma de
precaução e rituais. Quando incorporamos o alimento incorporamos características
imaginárias a ele associadas. A incorporação é fundadora da identidade coletiva e
conseqüentemente da auto-percepção. A partilha do alimento, ao mesmo tempo em que nos
incorpora no grupo, nos sintoniza com o universo.
A alimentação industrial nos coloca um problema de identidade radical: como saber
quem sou, se sou o que como e ignoro o que como, do que é feito? Cercados estamos por
objetos comestíveis não identificados, por produtos de fora, produtos sem história. A
ansiedade nos exige respostas mágicas que orientam as escolhas. A indústria alimentar, por
outro lado, responde à inquietude multiplicando etiquetas e descrições detalhadas dos
produtos, enquanto a publicidade investe na retórica do pensamento mágico e da
incorporação, ou do day-dream descrito por Campbell(op.cit.) Ao final, consome-se o
alimento por confiança.
Em franca sintonia ao “comer mágico” (ou se participativo?), observa-se mais
recentemente o crescimento de novos movimentos sociais associados à politização da vida
cotidiana. Estamos adentrando a era, pelo menos no que toca aos representantes da classe
dia, do comércio justo e do consumidor cidadão. A dinâmica do sistema agroalimentar
tem sido impelida a orientar-se cada vez mais pela demanda e não a partir da estrutura da
produção. Uma demanda que se orienta para além da “razão prática”, ou do comer neutro”;
insiste nos valores incorporados nos produtos, valores ditos “intangíveis”, “bens de crea”
envolvidos em toda a cadeia de produção, ou seja, antes, durante e depois do consumo: saúde,
ambiente, bem-estar social, violência contra animais etc. Ante ao recolhimento do Estado, o
282
mercado tem se tornado lugar privilegiado de reivindicações sociais. Sua difusão pelo tecido
social baseia-se numa complexa rede interpessoal; redes alternativas, ONGs, que possibilitam
por exemplo, uma fazenda em Minas Gerais vender seus produtos diretamente para quio.
Tratam-se de circuitos paralelos, cultos (ou cultivados), que visam a aproximação dos
produtos ao consumidor - como o comércio de produtos orgânicos ou o movimento do “Slow
Food”- e que têm como características marcantes a contestação das regras (impessoais) do
jogo do sistema produtivo/comercial e a conseqüente proposta de co-gestão do mercado.
Comer também se tornou um ato político.
Em algumas sociedades, onde o universo é concebido como uma teia cósmica, tecida
pela interação de seres, humanos e o humanos, a dimensão mágica do comer, através da
incorporação, fundamenta o pacto (necessário) da existência. (cf. Ahrem, Fausto, Viveiros de
Castro, op.cit.). Contudo, nas sociedades ocidentais e industrializadas, dada a ruptura radical
entre natureza e cultura e a suposta independência dos humanos dos o-humanos, o comer
se apresenta envolto por uma névoa de dualidades. O pensamento mágico coexiste com o
pensamento racional, ocorrendo então a angústia de se optar entre crença e incredulidade,
curiosidade e medo. Se como onívaros já trazemos a angústia ontológica da escolha, como
ocidentais contemporâneos vivenciamos duplamente a ansiedade do imperativo da escolha. E
com um detalhe: ao que parece, a era do luxo da livre escolha ameaça a se findar, pois que,
cada vez mais, tudo tem um custo social.
283
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao refletir sobre a dimensão social das práticas e estilos alimentares, este trabalho
procurou se nortear pela tentativa de mapeamento dos campos subterrâneos da escolha, de se
debruçar sobre as formas menores de civilidade e pequenas predileções nesta rede humana
interdependente de uma sociedade industrializada. Neste contexto cultural, a liberdade (ou
obrigação ) de escolher num incomparável leque de opções se estabelece como forma típica
de auto-expressão e autocriação. Os estilos alimentares traduzem a busca de algo novo,
genuíno, “mais simplespor uma classe dia urbana e educada que vem desenvolvendo, em
diferentes intensidades, uma postura curiosa e cosmopolita.
Quais são os critérios de escolha alimentar quando as referências da tradição se
atenuam? Vivemos no ambiente das coexistências, certo número de universais alimentares, a
comodidade da utilização, o apelo a sensações infantis, regressões, transgressões, o desprezo
pelo local, a desvalorização da monotonia e uma nova moral alimentar. A ansiedade das
incertezas contemporâneas busca o sentido nas respostas mágicas, seja na astrologia, na
loteria ou na dietética. O fato é que a moral alimentar em grande parte se laicizou e se
medicalizou, construindo-se um discurso que opõe freqüentemente saúde e prazer, regra e
transgressão, substância e gosto, nutrição e sensação. Ante ao conflito entre sobriedade
burguesa e hedonismo moderno, o comer justo se torna imperativo, ou horizonte desejado.
As pressões surgidas pelo entrelaçamento social atuam como força motriz da
mudança da auto-orientação individual, da conduta e dos sentimentos. O processo civilizador
tem se revelado como um movimento contínuo, espiralado e, ao que parece, irreversível. As
284
ondas de expansão dos padrões de conduta civilizada traduzem o esforço imenso que a
ascensão social do indivíduo exige, através da constante ameaça dos processos cíclicos de
igualação e diferenciação. Medo da perda de emprego, da vulnerabilidade imprevisível, da
degradação social, da redução de posses, da diminuição da independência, do presgio e
status, da perda de oportunidades, das possibilidades reduzidas de “vencer na vida”. Os medos
internalizados, enraizados pela educação sob a forma de ansiedades internas nos revelam a
necessidade de adaptação a novas exigências institucionais, a novos grupos de prazeres.
Presos a certo padrão de embaraço, Elias (op.cit.) nos fala que os setores em ascensão social
trazem a marca da autenticidade comprometida, na medida em que sua expressão vem
modelada ao código vigente de conduta aspirado.
As camadas médias, enquanto funcionários ideológicos da cultura moderna, assumem,
então, para si, novas exigências em acordo a suas finalidades na vida. No que toca ao comer,
Fischler (1993) os denomina como os mandamentos da nova moral alimentar, em clara
referência a uma norma implícita que rege a conduta. “Se o bom não é sempre considerado
como são, o são é quase necessariamente santo”. Alguns deveres devem ser cumpridos para
se atingir a uma alimentação ideal. O primeiro, o Dever do Equilíbrio, que se expressa pela
variedade no “comer de tudo”; o segundo, o Dever da Atenção e Esforço, de resistir à
tentação da facilidade, de se consagrar tempo à alimentação, à escolha, à compra, à
preparação e consumão, assim como à qualidade dos produtos. O terceiro, o Dever da
Restrição, que é ter controle sobre os sentidos e sobre si próprio, frente a certos alimentos
tentadores e perniciosos, evitando, ao mesmo tempo rigores excessivos; o quarto, o Dever da
Racionalidade, ou seja, exercer as escolhas esclarecidas, construindo uma alimentação
personalizada e, por último, o Dever da Gratificação que é o de não esquecer o prazer, da
comida como veículo de intensificação dos desejos. Os contínuos aproximações e
afastamentos deste ideal se orientam pelo constante temor à perda do controle de si.
285
Voltamos novamente à noção de imperfeição humana, à percepção da vida como busca de
satisfação, presentes em nossas concepções nativas de existência. Imperfeitos porque
destacados do todo original, afastados de uma perfeição absoluta; a fraqueza humana nos faz
corporalmente dispostos ao pecado e à culpa. A escolha dos alimentos tem se orientado o
simplesmente para permanecermos vivos, mas para permanecermos melhores.
De fato, tanto a esfera da produção e manutenção dos indivíduos, através da nutrição,
como a de sua reprodução, a família, estão revestidos, em nossas representações, do processo
de naturalização, seguindo a premissa de que a cultura se constrói de acordo com a natureza, e
o o contrário. Sob a ótica da consubstancialidade, as relações de parentesco são
“literalizadas”, retraçam os vínculos naturais. Observamos também uma série de
inquietações a respeito do formato da família na sociedade moderna. A família nuclear,
mínima, é uma família que traz consigo a tarefa de gerir indivíduos, de provê-los de
autonomia e singularidade, lhes oferecendo as condições para serem únicos. Contudo, o
processo de constituição destes indivíduos continua sendo relacional, o que lhe traz sentidos
ambivalentes: produzir indivíduos e manter a estrutura hierarquizante, a inevivel e
estratégica mediação para atender o valor. A modernidade, ao instituir a família neste
formato, não consegue se realizar sem a idéia de hierarquia. Ante sua multiplicidade de
formas, permanece família pelo entrelaçamento contínuo; a experiência do parentesco
comporta tanto inclusão como exclusão, continuidade e descontinuidade na gestão de
distribuir o afeto social. A relacionalidade, o sentido mais amplo da produção de vínculos, em
diferentes direções e intensidades, se define por vários componentes, viver junto, procriação,
emoção, comer junto, partilhar de expectativas, de lembranças e projetos, o que a faz um
dispositivo mais amplo que inclui as malhas de inserção social.
Habitar uma cidade não é simplesmente ter nela sua residência. A abordagem
qualitativa e sensível aos espaços urbanos se define como crucial para a compreensão do
286
sentido e da pertinência do modo como estes habitantes vão usá-los. Mais que morar, muitas
vezes é mudar; e a mobilidade, seja a espacial ou a social, a medida das relações sociais
envolvidas, do grau de acessibilidade mútua, das formas de vizinhança no espaço da
residência e das formas de co-presença no espaço público. Os modos de vida urbanos se
caracterizam pela composição diversa, criativa, aprendida, entre distância e proximidade,
socialização e dessocialização, apego e desapego. Este é o ambiente de predominância da
aceleração e superficialidade das trocas nas relações pessoais, dos vínculos fracos e
transitórios, do retraimento. A cidade em ação, ou interação, requer a atenção a fenômenos de
recomposição social, de hibridação das formas e integração da economia que une diferentes
regiões, das mais abastadas às menos favorecidas. As situações de encontro dos indivíduos,
ou sua conexão em redes, se revelam como férteis para análise sobre as formas de acordo
estabelecidas no constante processo de constituição do “nós”, no caso, a cidade do Rio de
Janeiro.
A coexisncia de diferentes tradições culturais, confluência de indivíduos e grupos
sociais de origens diversas resulta em um contexto basicamente heterogêneo, possibilitando a
metpole a atuar como laboratório de diferentes modos de humanidade. Quando Barth (1989)
propõe a revio do conceito de cultura, está enfatizando justamente este dinamismo cultural
tão particular ao meio urbano. Uma visão de cultura como processo, de caráter distributivo,
que existe em escalas diferenciadas e simulneas, concorrentes e entrelaçadas. As correntes
de cultura traduzem diferentes sistemas de referências por onde as pessoas transitam: um
indivíduo, ou grupo social, é resultado de confluências e composições.
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