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Após o episódio em Manaus, quando Tamakori e Kirak mais uma vez alcançam o
trecho do médio Juruá onde eles haviam deixados os Kanamari, eles se surpreendem ao
descobrir que as pessoas tinham se multiplicado (episódio 15). Os Kanamari, entretanto,
‘ainda não eram bons’ e uma das crianças atira seu cinto
242
em Kirak, novamente fazendo
com que ele caia no rio. Mas a maioria dos Kanamari parece feliz e aperta a mão de
Tamakori, dando-lhe boas vindas. Ambos os heróis adquirem esposas e constroem suas
casas próximas aos Kanamari. Tamakori sabe como fazer sexo com sua esposa, mas Kirak
tenta o intercurso sexual por entre os dedos dos pés de sua esposa
243
. Eles permanecem por
dez dias em casa, antes de se partirem sucessivamente rio acima, onde, em quatro ocasiões,
eles encontram mais Kanamari.
O narrador que me contou essa história se referia a esses Kanamari simplesmente
como tukuna, não distinguindo entre os diferentes subgrupos. Certas versões desse episódio
transcritas por Tastevin, no entanto, sugerem que Tamakori, através de seu movimento,
pode ter estabelecido diferentes grupos de Kanamari em diferentes rios, estabelecendo
assim o referente geográfico dos subgrupos (n.d.2, 20-1). Os mitos analisados por Tastevin
são notáveis por revelar a possibilidade de diferentes origens para os subgrupos, que teriam
se espalhado a partir de diferentes tipos de sementes
244
. Mas o estabelecimento de cada um
ocorre à medida que Tamakori se desloca pelo Juruá, de uma maneira que recorda suas
242
Observando-se que isso ocorre quando os Kanamari viviam ‘todos nus, este cinto provavelmente se refere
aos cintos rituais feitos de conchas de madre-pérola.
243
O incidente não é desenvolvido nessa narrativa, mas uma comparação com a versão registrada por
Reesink pode ajudar a elucidá-lo. Em sua versão, há apenas uma ‘esposa’ entre os dois e ela não é ‘Kanamari’,
mas sim feita por Tamakori a partir do âmago de um tronco de árvore no qual ele ‘assopra’ (topohman) vida.
Ele alerta seu irmão para não fazer sexo com ela, mas ele ignora o aviso e procede para penetrar sua vagina. A
mulher ri e sua vagina se torna dura (feito a madeira) apertando e amputando o pênis de Kirak. Tamakori
então faz um novo pênis para Kirak a partir da paxiúba (Reesink 1993, 225). Embora essa variante seja
significativamente diferente da que me foi contada na Viagem, há similaridades suficientes para situar esse
episódio como sendo sobre a ‘origem das mulheres e do intercurso sexual’. Se, em uma delas, Kirak não sabe
como fazer sexo, fazendo Tamakori rir às suas custas, na versão de Reesink, Kirak desobedece a seu irmão
(revelando uma falta de conhecimento e moderação que é típica sua), fazendo com que a mulher risse e seu
pênis fosse amputado. Este episódio, pois, situa esta parte da Viagem dentro dos mitos de ‘origem das
mulheres’ analisados por Lévi-Strauss (1983, 112-33), os quais ele estabelece dentro do esquema da ‘origem
dos porcos-do-mato’ (ibid. 117), um evento que era importante no episódio um e que será discutido
brevemente, quando o episódio 13 for investigado.
244
É possível que essas diferentes explicações para a origem dos subgrupos estejam relacionadas a diferentes
tradições míticas entre os subgrupos. De fato, a versão que eu ouvi (analisada no capítulo quatro) parece ser
uma variante dos Mutum-dyapa (Tastevin n.d.2, 20). No Itaquaí, entretanto, essa era a versão
consistentemente contada a mim, não havendo variação de acordo com informantes de diferentes subgrupos.
Pode haver duas razões relacionadas para isso: (1) a mistura gradual de pessoas apagou a variabilidade entre as
versões; (2) não seria do interesse dos Kanamari do Itaquaí enfatizar origens separadas para os subgrupos,
posto que, em certo nível, eles eram ‘todos parentes’ (capítulo três). Este último ponto é consistente com os
momentos em que Tastevin e eu encontramos os Kanamari. O primeiro os encontrou de 1910-20, quando a
mistura dos subgrupos estava começando, e assim as pessoas podem ter retido a memória de diferentes
origens. Eu os encontrei quando o período de trabalho para os brancos e a mistura tinha dado lugar ao
‘Tempo da Funai’, e eles estavam lentamente re-instaurando um grau de distância espacial entre eles. Eles
podem, pois, ter minimizado uma distinção ‘mítica’ de modo a substituí-la gradualmente, mais uma vez, por
uma distinção geográfica.