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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Luiz Antonio Costa
As Faces do Jaguar. Parentesco, História e Mitologia Entre os
Kanamari da Amazônia Ocidental
Rio de Janeiro
2007
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Luiz Antonio Costa
As Faces do Jaguar. Parentesco, História e Mitologia Entre os
Kanamari da Amazônia Ocidental
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2007
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As Faces do Jaguar. Parentesco, História e Mitologia entre os Kanamari da Amazônia
Ocidental
Luiz Antonio Costa
Tese submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional (PPGAS/MN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor.
Aprovada por:
- orientador
Prof. Dr. Carlos Fausto
Profa. Dra. Aparecida Vilaça
Profa. Dra. Dominique Gallois
Prof. Dr. Eduardo Viveiros de Castro
Profa. Dra. Elsje Lagrou
Rio de Janeiro
2007
Costa, Luiz Antonio.
As Faces do Jaguar. Parentesco, história e mitologia entre os
Kanamari da Amazônia ocidental/Luiz Antonio Costa.—Rio de
Janeiro: UFRJ/MN/PPGAS, 2007.
439 p. 9 mapas
Tese – Universidade Federal do Rio de Janeiro, MN/PPGAS
1. Povos Indígenas do Brasil – Parentesco, História, Mitologia
2. Kanamari-Katukina
3. Tese (Doutorado – UFRJ/MN/PPGAS). I. Título.
Para Poroya,
que previu a minha chegada em sonho.
Han paiko. Itanti inowa ankira nuk tyo.
No: the body has acquired life, it is the body that will acquire, with life, sensations and the
affections coming by sensation. Desire, then, will belong to the body, as the objects of
desire are to be enjoyed by the body. And fear, too, will belong to the body alone; for it is
the body’s doom to fail of its joys and to perish.
Plotinus, Eneads
Resumo
A tese é uma etnografia dos Kanamari, um povo falante de uma língua Katukina que habita
tradicionalmente os afluentes do médio curso do Rio Juruá. Ela detém-se, sobretudo, em
uma investigação da relação entre o contínuo e o descontínuo no parentesco, na história e
na mitologia. A primeira parte trata do processo histórico que levou alguns Kanamari que
viviam na margem esquerda do Juruá a migrarem para a bacia do Rio Itaquaí. Busca-se
descrever os efeitos desta migração e do impacto da chegada da população branca ao Juruá
na segunda metade do século IX, enfatizando as maneiras como a sociedade Kanamari se
adaptou e inovou em relação a tais mudanças. A segunda parte analisa os mitos que
fornecem as precondições para a história, mostrando que o mundo era contido numa
forma-Jaguar onipresente que fora ativamente atenuada pela ação humana, assim criando o
mundo atual. A última parte focaliza a noção de pessoa, desde a concepção do feto até a
morte, incluindo os ritos mortuários que permitem aos vivos lidarem com a perda,
enquanto fragmentam o falecido em uma parte vegetal-estável e uma outra Jaguar-
predatória.
Abstract
The thesis is an ethnography of the Kanamari, a Katukinan-speaking people of
western Amazônia, who have traditionally inhabited the tributaries of the middle Juruá
river. Its primary concern is to investigate the relationship between continuous and the
discontinuous in kinship, history and myth. The first part discusses the historical processes
through which some of the Kanamari who lived in the tributaries of the left bank of the
Juruá migrated into the Itaquaí river. It traces the effects of this move, itself framed by the
arrival of the whites to the Juruá sometime in the latter half of the nineteenth century, with
an emphasis on the ways that Kamamari social organization adapted and innovated in
relation to these. The second part analyses the myths that supply the preconditions for the
discussion of Kanamari history, showing how the world used to be contained in an
omnipresent Jaguar form that was actively attenuated as humanity created the present
world from and through it. The final part shifts its focus to a study of the concepts of the
person, beginning with conception and following her development until death and the
mortuary rituals that permit the living to cope with it while fragmenting the deceased into a
stable vegetable form and a predatory, ominous Jaguar.
Agradecimentos
Minhas atividades como aluno de doutorado no Museu Nacional/UFRJ foram
possíveis devido à bolsa do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq). O
trabalho de campo entre os Kanamari do rio Itaquaí foi financiado pelo Centro de
Trabalho Indigenista (CTI), pelo Núcleo de Transformações Indígenas (Nuti), pelo
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), pelo CNPq e pela Wenner-
Gren Foundation for Anthropological Research grant. Agradeço a estas instituições pelo
seu apoio.
Esta tese foi originalmente escrita em inglês e traduzida para o português por uma
verdadeira junta. Agradeço a Flávio Gordon, Pedro Cesarino, Arbel Griner, Carolina Pucu
Araújo, Luiza Leite e Joana Miller pela tradução.
A tese foi orientada pelo prof. Carlos Fausto a quem eu tenho a sorte de considerar
um amigo. Sua ajuda e paciência, não apenas durante a escrita desta tese mas desde que eu
ingressei no Museu Nacional, foram inesgotáveis. Agradeço a ele especialmente por sua
leitura cuidadosa dos primeiros e confusos rascunhos desta tese. É um privilégio ser seu
aluno.
O Museu Nacional é um ótimo lugar para se aprender antropologia e o apoio de
todo o corpo docente foi fundamental. Gostaria de agradecer a Bruna Franchetto, Márcio
Goldman, Lygia Sigaud, Federico Neiburg, Otávio Velho e Antônio Carlos de Souza Lima
por sua ajuda em vários momentos. Gostaria de agradecer especialmente a Aparecida
Vilaça e a Eduardo Viveiros de Castro pelos seus comentários ao meu exame de
qualificação para esta tese e por tudo o que eu aprendei com eles nos vários cursos que
assisti. Foi uma palestra dada pelo Eduardo em Oxford, em 1997 (eu acho), que me fez,
pela primeira vez, querer estudar no Museu Nacional. Agradeço também a Tânia L.
Ferreira, Carla Regina e Cristina pelo tempo e paciência que me dispensaram.
Foi durante o período que passei na Universidade de Oxford, sendo orientado por
Peter Rivière, que vim a considerar pela primeira vez a possibilidade de estudar a
antropologia das terras-baixas da América do Sul e agradeço a ele pelo incentivo. Boa parte
de minha trajetória acadêmica desde então esteve relacionada à compreensão do que ele
escreveu sobre a região.
O trabalho de campo no Vale do Javari teria sido muito mais difícil e menos
divertido se o fosse a parceria com o CTI, que permanece até hoje. Gilberto Azanha foi
o primeiro a me falar sobre os Kanamari e Maria Auxiliadora Leão me levou ao Vale do
Javari. Ambos demonstraram um interesse em meu trabalho desde então. Maria Elisa
Ladeira e Gilberto Azanha muito me incentivaram e eu agradeço a eles por confiarem em
mim para ajudar a organizar o ‘Primeiro Módulo Avançado da Escola Kanamari’, realizado
em Letícia, Colômbia, entre maio e junho de 2006. O pessoal do CTI em Tabatinga foi
extraordinário. Agradeço a Conrado Otávio e a Beatriz Matos pela a assistência que me
prestaram e, principalmente, pelos bons momentos que passamos juntos. Gostaria de
agradecer especialmente a Hilton Nascimento (Kiko) pelos muitos anos de amizade e apoio
no Ituí, em Tabatinga, em Letícia e em Atalaia do Norte. Kiko também me ajudou a
identificar certas espécies de animais e de plantas e a averiguar seus nomes em inglês.
Gostaria de agradecer também à Administração Regional da Fundação Nacional do
Índio (Funai) em Atalaia do Norte, particularmente a Gilmar Jóia e Heródoto. As pessoas
da Frente de Proteção Etno-Ambiental do Vale do Javari (FPEVJ) desempenharam um
papel importante no início do meu trabalho de campo, tais como Márcio e,
particularmente, Idinilda, uma pessoa muito querida que ajudou não apenas a mim, mas
também a maioria dos pesquisadores que foram ao campo passando por de Tabatinga.
Agradeço também o apoio do Conselho Indígena do Vale do Javari (Civaja). Agradeço a
Jorge Marubo, Clóvis Rufino Reis, Edílson Kanamari (Kihpi), Adelson Kanamari (Kora) e
André Mayoruna.
muitas pessoas para agradecer em Atalaia do Norte. Tirim e Nery me ajudaram
em diversas ocasiões e o Sr. Nonato foi extremamente atencioso no primeiro período do
trabalho de campo. Agradeço também a Gauça e à Mara por sua ajuda no campo. O Sr.
Dino, a Sra. Maria, sua filha Marquinha e seu marido Moacyr me fizeram sentir-me em casa
em mais de uma ocasião. Almério Alves Wadik (Kel) e sua mulher Francisca se tornaram
meus amigos desde a primeira vez que fui à Atalaia do Norte. Espero que eles saibam o
quanto estimo nossa amizade.
Não acho que eu teria sido capaz de permanecer no campo se não fosse a
assistência incondicional e o cuidado do chefe de posto da aldeia Kanamari em Massapê,
Micherlângelo Neves, e da sua mulher Raimunda Corrêa. Eles me acolheram no posto da
Funai durante boa parte do meu trabalho de campo, me alimentaram, me levaram para
todas as aldeias, me levaram de e para Atalaia do Norte e me ajudaram a enviar
encomendas para os Kanamari. Ainda mais importante do que isso é o fato deles prestarem
assistência aos Kanamari de uma forma que, no meu entender, é excelente, fazendo muito
mais do que é requerido de sua função. Seu conhecimento dos Kanamari também me
ajudou enormemente.
Guilherme Gitahy de Figueiredo fez cópias e me enviou os manuscritos não
publicados do Padre Constant Tastevin que estavam disponíveis na Diocese de Tefé e eu
lhe devo esse favor. Agradeço ainda aos padres do Séminaire des Missions at Chevilly-la-
Rue por me permitirem consultar os manuscritos in situ. Jean-Pierre Chaumeil e Bonnie
Chaumeil fizeram os contatos necessários para permitir o acesso aos manuscritos e eu
também agradeço a eles pela hospitalidade em Paris. Philippe Erikson teve tempo para
encontrar-se comigo em Paris e conversar sobre alguns dos meus dados, e fez isso
novamente durante um Carnaval memorável em Tabatinga. Agradeço a ele por seu
interesse.
No período que passei no Museu Nacional tive a oportunidade de conversar sobre
os Kanamari com muitas pessoas. Gostaria de agradecer a Flávio Gordon, Paulo Maia,
Pedro Cesarino e Anne-Marie Colpron, tanto pelas discussões nos encontros do Núcleo de
Transformações Indígenas como em reuniões informais. Marcela Coelho de Souza, César
Gordon e Cristiane Lasmar sempre ouviram com interesse o que eu tinha a dizer e me
ensinaram muito. Tânia Stolze Lima, Oiara Bonilla e Elizabeth Pissolato fizeram
importantes comentários a um texto que eu apresentei e agradeço a elas por isso. Jeremy
Deturche, que está realizando trabalho de campo entre os Katukina do rio Biá, manteve um
diálogo contínuo comigo e compartilhou alguns de seus dados. Elena Welper conversou
comigo sobre os Kanamari em inúmeras ocasiões, no Rio de Janeiro e em Tabatinga
(mesmo que tenha sido difícil nos encontrarmos). Mas o mais importante é que ela é uma
das melhores e mais compreensivas amigas que eu tenho. Agradeço também a Fernando
Rabossi pelos muitos anos de conversa sobre antropologia e pelo seu irredutível bom
humor.
Meus amigos no exterior Afonso, Vasco, João Lima, Ernst, Macedo, Carl,
Rosário, André, Fred, Mick e Tom e os que estão aqui Cristian e Tano foram sempre
incrivelmente importantes. Agradeço ainda a André Renaud por me ajudar com os mapas.
Joana Miller é minha amiga muitos anos, mas se tornou muito mais do que isso.
Foi uma sorte estarmos escrevendo as nossas teses ao mesmo tempo e seria muito difícil
para mim completar a tese sem ela.
Fausto, Bebel e Miguel, meus pais e irmão, estão sempre por perto, mesmo que
estejamos vivendo tão longe uns dos outros. Sem a sua ajuda, encorajamento e, sobretudo,
paciência, eu poderia nunca ter estudado antropologia. Estar próximo à minha avó, Myriam
Lino Costa, foi o melhor que aconteceu na minha mudança da Europa de volta ao Brasil,
assim como o carinho da minha família, particularmente de Têtê Lino Costa, Ana Maria
Jansen de Melo, Zeca Jansen de Melo e Paula Salles.
Viver com os Kanamari é uma experiência maravilhosa. Todos eles me ajudaram
em algum momento e mesmo aqueles que pareciam suspeitar dos motivos do meu trabalho
me trataram com dignidade e até mesmo com afeto. Ao tentar citar os nomes daqueles que
me ajudaram mais, percebi o quão injusto eu teria que ser. Mas na medida em que o meu
trabalho dependeu das conversas que tive, durante muitos meses, com alguns deles,
agradeço a Dyumi, João Pidah, Kodoh, Dyan, Inore, Wahpaka, Meran Meran, Dyanim,
Hanani, Marinawa, Paiko Nui, Wadyo, Tyomi, Apan e Iun.
Foi Poroya, no entanto, que estava esperando por mim naquela tarde de abril de
2002. Estava escurecendo e mal podíamos nos ver, mas na manhã seguinte ele viu meu
rosto mal-humorado e sonolento e sorriu, como se soubesse de tudo. Com o tempo, ele
se fez meu avô. Certa vez, lhe contei que eu cheguei aos Kanamari por acaso, que eu quase
fui viver com os seus vizinhos Marubo. Ele me explicou que eu estava enganado, pois
muito tempo atrás ele previu minha chegada em um sonho e estava esperando por mim
para que eu aprendesse as histórias dos Kanamari e as ensinasse aos brancos, de modo que
nós também pudéssemos saber um pouco sobre eles. Essa tese, que é dedicada a ele,
carrega com isso uma grande responsabilidade.
Esta tese, em versão PDF, não tem os mapas nem os diagramas.
Sumário
Inrodução 1
Parte I. Corpos Históricos
1. Mudanças de Escala 39
O Modelo de Endogamia do Subgrupo 40
O Primeiro Branco 59
O Fechamento do Juruá: a Emergência das Configurações Multi-dyapa 64
O Hori 78
A Luta de Couro de Anta 87
Comentários Finais 90
2. O Tempo da Borracha 98
Aprendendo a Trabalhar Para os Brancos 99
No Itaquaí 113
O Juruá em Fluxo 116
Tornando-se Insano: o Itaquaí em Fluxo 132
A Chegada de Sabá 141
3. O Tempo da Funai 149
O Itaquaí Hoje 151
A Questão dos Subgrupos 166
Fazendo Chefes 182
Chefes no Itaquaí 194
Parte II. Corpos Míticos
4. A Morte do Jaguar e a Queda do Céu Antigo 209
Em um Modo Jaguar 210
Fragmentando o Jaguar 224
A Questão da Anta 236
A Loucura de Piyoyom 249
5. O Tempo de Tamakori 254
Tamakori e Kirak 255
Extraindo e Separando o Mundo 263
Em Manaus 275
A Origem da História e da Morte 287
Parte III. Corpos Vivos
6. O Corpo/Dono 306
Fazendo um Corpo a Partir da Alma 306
Deitar-se 320
Crianças Ambíguas 329
A Caça e Seus Perigos 341
Considerações Finais: de Volta à Replicação 357
7. Fazendo Jaguares 360
O Xamã e o Dyohko 360
Matando, Curando, Transformando 375
A Dissolução do Corpo 384
Devir-Kohana, Devir-Jaguar 394
Epílogo 415
Bibliografia 418
Anexo A: Terminologia de Parentesco Kanamari 435
Anexo B: Os Amantes-Lontras 437
1
Introdução
Foi durante as chuvas de 1972 que os Kanamari do Rio Itaquouviram falar em
Sabá pela primeira vez. O patrão Adalberto perguntou a Poroya, não sem um tom de
deboche, se ele não iria pedir mercadorias ao Inspetor dos Índios’ que estava construindo
uma casa perto da boca do Rio Branco. Poroya não sabia nada sobre o ‘Inspetor’ e,
sempre duvidando das intenções de Adalberto, achou melhor mandar uma carta. Pediu
então à Raimunda, filha de outro patrão, que escrevesse seu recado: “Eu quero chamar
nossa pessoa. Vem aqui nos ver também”.
A carta foi levada até Sabá pelo filho de Adalberto, que estava de viagem para a
cidade de Atalaia do Norte. Depois de três dias, Poroya ouviu o som do motor de 15 HP –
um tipo de motor que mais tarde estaria indissoluvelmente associado à Sabá, como se
todos os outros motores similares fossem refrações de seu motor original. Sua chegada foi
típica de sua truculência. Um pouco desengonçado na selva, gritando com tudo e todos,
Sabá imediatamente decretou que Poroya parasse de trabalhar para os brancos, que os
Kanamari não se deixassem endividar pelos patrões, que eles não assistissem passivamente
à destruição do seu modo de vida por colonos gananciosos que não teriam direito algum à
terra que estavam ocupando. Poroya falou-lhe que eles trabalhavam para os brancos
porque seus pais, os chefes, haviam todos morrido. E, embora não tenha me dito isso, seu
pendor para a ironia tê-lo-ia feito trair um leve sorriso. Sabá, de fato, demorara muito a
chegar.
Sabá e Eu
Sabá Manso é o apelido do Sr. Sebastião Amâncio da Costa, um funcionário da
Funai que foi chefe da antiga Base Avançada do Solimões (BFSOL). Era seu trabalho
construir o Posto de Atração Marubo na boca do Rio Branco, do qual ele seria o chefe, e
sua presença no Itaquaí não tinha nada a ver com os Kanamari. Não sei dizer se eletinha
ouvido falar deles, mas seu propósito explícito era montar uma base para contatar os
Korubo que, até então, achava-se que fossem os Marubo. Os Korubo eram considerados
irredutivelmente violentos e seus ataques à população regional causava pânico na região.
Sabá tinha ido ao Itaquaí para por um fim a isso tudo e seu encontro com os Kanamari foi
um acidente, uma conseqüência de sua missão. Os brancos ainda não sabiam, mas Sabá
planejava retirá-los do rio, na esperança de garantir a terra para os Korubo. Seu encontro
2
com os Kanamari foi uma sorte: quanto mais índios ele encontrasse, mais fácil seria
convencer a Funai, em Brasília, a restringir o acesso àquela área.
Trinta anos depois eu cheguei em Massapê, a maior aldeia kanamari no rio Itaquaí,
e, embora talvez estivesse mais bem informado do que Sabá, também não sabia quase nada
sobre eles. Eu não sabia, por exemplo, que, da perspectiva dos Kanamari, a minha chegada
pôde acontecer porque Sabá havia me precedido; o sabia que o longo trecho do rio
pelo qual eu acabara de viajar estava completamente desocupado pelos brancos porque
assim Sabá o tinha feito; nem que eu, assim como Sabá, também havia chegado em cima da
hora. Mas tudo isso me foi logo explicado na manhã após a minha chegada à aldeia,
quando uma reunião foi organizada para que os Kanamari decidissem se, de fato, iriam
querer que eu morasse com eles. Nesta reunião pediram-me que explicasse exatamente o
que eu pretendia fazer e como eu iria ajudá-los. Nervoso, disse que queria viver com eles,
aprender sua língua e ouvir suas histórias. Ingênuo, achei que poderia contornar a questão
da ‘ajuda’, dizendo apenas que iria fazer o possível para que alguns brancos que nunca
tinham ouvido falar dos Kanamari soubessem alguma coisa a seu respeito.
Eu estava preparado para demandas dos chefes ou da ‘comunidade’ por algum tipo
de retribuição direta pela autorização do trabalho de campo, que isto se tornou uma
precondição de muitas pesquisas antropológicas em áreas indígenas. Suspeitava que isso
poderia tomar a forma de uma compensação financeira ou, talvez, de um papel mais
atuante nas relações que os kanamari mantém com as agências governamentais que os
assistem. Eu estava preparado para retribuir, mas não queria que isso se tornasse uma
condição sine qua non da minha estadia. É provável que eu soubesse que estava andando na
corda bamba naquela reunião inaugural e temesse que eu deveria ter pensado sobre tudo
isso com muito mais cuidado.
Mas, eu não estava, de forma alguma, preparado para a reação dos Kanamari à
minha resposta confusa. Depois de conversarem entre si, Luciano, representante dos
Kanamari junto ao ‘Conselho Indígena do Vale do Javari’ (Civaja)
1
, disse-me que estavam
todos muito contentes com a minha chegada e que há muito tempo me esperavam.
Acrescentou que ficariam felizes em me ensinar sua língua, me contar suas histórias, me
dar de comer e em permitir que eu dormisse nas casas deles. A única demanda que me
fizeram foi que eu, de fato, contasse aos brancos sobre a língua deles, suas histórias e suas
‘festas’, e que eu vivesse com eles. Nos dias que se seguiram, muitos me confidenciaram
que estavam preocupados, temendo que eu fosse embora e nunca mais voltasse para vê-
1
A Civaja é uma organização não-governamental que representa os interesses de todas os povos contatados
do Vale do Javari: os Kanamari, Marubo, Matis, Mayoruna (Matses) e Kulina (Pano).
3
los. Por mais que eu tentasse convencê-los de que isso não iria acontecer, permaneciam
incrédulos. Eu seria como Sabá, que um dia foi embora para nunca mais ser visto.
A Funai e Eu
A primeira vez que ouvi falar sobre os Kanamari foi em meados de 2001, através de
Gilberto Azanha, um dos diretores da ONG Centro de Trabalho Indigenista’ (CTI). O
CTI estava envolvido num projeto, em parceira com o Departamento de Índios Isolados
(DEII) da Funai e com a cooperação da União Européia, que visava reunir informações
sobre os Korubo, um grupo de língua Pano do qual uma pequena parcela começou a
manter contatos regulares com a Funai no final da década de 1990. A grande maioria dos
Korubo permanece isolada, provavelmente na região interfluvial do alto curso do rio
Branco. O projeto buscava estabelecer um panorama das condições socioeconômicas nas
quais os Korubo se encontravam para julgar se as medidas governamentais estavam sendo
efetivas para a manutenção de seu isolamento, caso quisessem permanecer assim. Uma
parte do projeto era dedicada à investigação de outros povos indígenas contatados que
viviam perto dos Korubo: os Kanamari do alto Rio Itaquaí, do qual o Rio Branco é um
afluente, os Marubo e os Matis do Rio Ituí, um afluente do baixo curso do Itaquaí.
O CTI solicitou ao meu orientador, Carlos Fausto, que indicasse alunos de
doutorado que estivessem interessados em realizar esta parte do projeto. Na época, eu
estava à procura de uma área para pesquisar após uma tentativa frustrada de estudar um
povo de língua Carib do norte do Brasil. Não me lembro, ao certo, se eu decidi ir para os
Kanamari ou se esta decisão fora, mais ou menos, tomada em meu beneficio, mas em abril
de 2002 estava em Brasília me preparando para viajar para a cidade de Tabatinga com Maria
Auxiliadora Leão, a diretora do CTI responsável pela coordenação do projeto.
É difícil hoje, após ter estado tantas vezes em Tabatinga, lembrar-me das minhas
primeiras impressões, mas eu me recordo de ter me sentido como se estivesse mergulhado
na parte funda de uma piscina. Participei de reuniões no escritório do DEII em Tabatinga
em que foram discutidos temas sobre os quais eu nada sabia. A geografia da região me foi
explicada, mas eu não conseguia visualizá-la. Falava-se muito sobre a ‘base’, na verdade a
Frente de Proteção Etno-Ambiental do Vale do Javari’ (FPEVJ), construída nos limites da
Terra Indígena do Vale do Javari na confluência entre os rios Itaquaí e Ituí, mas eu não
conseguia imaginar como era. Em momentos de extrema boa vontade com a minha
condição de ‘antropólogo’, foi solicitada a minha opinião, mas eu não tinha nenhuma a dar.
4
Sabia apenas que iria viver com um povo sobre o qual eu mal havia ouvido falar, fazendo
um tipo de pesquisa sobre a qual eu já tinha lido, mas que – estava claro para mim – eu não
tinha idéia de como realizá-la.
A FPEVJ fica situada a alguma distância da cidade de Atalaia do Norte, no lado
brasileiro do Rio Javari. Fiquei dois dias por antes de ser levado, por um funcionário da
Frente, Itaquaí acima. A parte do Itaquaí em que os Kanamari vivem se situa a uns 250 km
em linha reta da FPEVJ. Na minha primeira viagem, fomos num bote de alumínio com um
motor de 60 HP e, assim, fizemos a viagem em umas dezoito horas. Lembro-me de passar
os primeiros meses no campo com a ilusão de não estar tão longe da base e achando que
poderia, no caso de uma emergência, voltar com alguma rapidez. Nunca mais viajei pelo
Itaquaí com um motor tão potente. As viagens levavam uns cinco dias a montante e quatro
a jusante.
Nesta primeira viagem, passamos rapidamente por rias aldeias kanamari, mas
paramos em Massapê. Esta era e ainda é a maior aldeia no Itaquaí, onde se situa o
posto da Funai
2
. Quando chegamos havia uns sete brancos de Atalaia do Norte vivendo em
Massapê, trabalhando na construção do ‘Pólo Base’, um projeto ambicioso que visa
oferecer acesso a auxílio médico para todas as etnias do Vale do Javari, reduzindo, assim, o
fluxo de índios doentes para a cidade de Atalaia do Norte
3
. Esta aldeia era, como eu viria a
saber depois, duplamente atípica: primeiro, por haver um número maior de Kanamari do
que nas outras aldeias e, segundo, por ter brancos vivendo durante algumas partes do
ano. Isto tem implicações importantes para a sociologia do Itaquaí, mas eu o sabia na
época e escolhi permanecer em Massapê por default, pela simples razão de que fora para
esta aldeia que fui levado. Logo ao chegar, abrigaram-me no posto da Funai, onde eu
viveria a maior parte do tempo que passei em Massapê.
Às vezes, porém, eu saía do posto para dormir em outras casas e cheguei a passar
muito tempo longe de Massapê, dormindo na casa de qualquer Kanamari que me
hospedasse. Isso não impediu os Kanamari de concluir que eu trabalhava para a Funai. Eu
temia, sem conhecê-los bem , que isso pudesse acarretar problemas para o meu trabalho de
campo e tentei, em vão, convencê-los de que o era bem assim. Expliquei a eles que eu
era um ‘antropólogo’, e o que eu acho que os antropólogos fazem, e também que, se
quisessem me associar a alguma sigla, meu vínculo era com o CTI e o com a Funai. O
2
A administração regional da Funai fica em Atalaia do Norte e coordena as operações de quatro postos, cada
um em um rio diferente: um em Massapê (no rio Itaquaí), um no Ituí, um no Curuçá e um no Javari (cujo alto
curso se chama Jaquirana).
3
Veja Matos e Marubo (2006) para uma discussão do contexto político em que a construção dos Pólos Base
começou. O de Massapê, assim como o da maioria das outras aldeias, permanece inacabado.
5
problema é que os Kanamari não estavam errados. O projeto do CTI previa a participação
do DEII da Funai e, afinal, eu havia chegado em Massapê num barco que pertencia à
Funai, guiado por um homem que eles sabiam ser um funcionário do órgão indigenista.
Além disso, esta era a primeira vez que eles tinham ouvido falar sobre o CTI e não tinham
nenhuma intenção de me associar a algo que o conheciam. Assim, pelo menos nos
primeiro meses de campo, eu estava indissoluvelmente ligado à Funai e o havia nada que
eu pudesse fazer para mudar isso.
Esta situação acarretava algumas responsabilidades. Massapê era a sede do único
rádio do Itaquaí, usado para a comunicação com a cidade de Atalaia do Norte. O rádio
operava com a freqüência do Civaja,organização que, na época, era responsável pelo
serviço de saúde no Vale do Javari, através de um convênio com a Funasa. Tal convênio
previa a presença de um auxiliar de enfermagem em Massapê, mas quando eu cheguei não
havia ninguém. Foi, portanto, decidido que eu iria usar o rádio para mediar os contatos
com os funcionários da Funasa e que eu cuidaria, com a ajuda deles, da saúde dos
Kanamari. Deste modo, os primeiros dois meses do meu trabalho de campo foram quase
exclusivamente dedicados a este fim. Esta tarefa incluiu pedidos de remoção para dois
pacientes que eu não podia tratar uma grávida que estava com sangramento e um rapaz
que teve um acidente com um facão - além de rondas diárias pela aldeia, o que me obrigava
a estar sempre à disposição de qualquer um que ficasse doente. Eu também precisava ficar
escutando o rádio toda manhã e à tarde para ouvir as notícias do Vale do Javari e para
responder eventuais chamados de Atalaia do Norte .
Eu não me importava com este trabalho e ter que passar boa parte do dia ao lado
do rádio teve as suas vantagens. Os Kanamari também usam o rádio para se comunicar
com outros Kanamari em aldeias distantes. Na época, a única aldeia Kanamari que
também tinha rádio era a de São Luís, no Rio Javari, mas os Kanamari podiam conversar,
ainda, com aqueles que se encontravam em Atalaia do Norte. Enquanto alguns
conversavam, outros passavam horas ao lado do rádio e, como eu também ficava por
perto, pude participar de várias conversas e acabei por conhecer muitos Kanamari deste
jeito. Foi assim que conheci Poroya.
Como mencionei acima, Poroya teve um papel importante ao trazer Sabá para os
Kanamari. Algum tempo após a partida definitiva de Sabá, Poroya pegou sua canoa e
remou por quinze dias até Atalaia do Norte para tentar um emprego com a Funai. Ele foi
logo contratado e chegou a participar do primeiro contato que a Funai estabeleceu com os
Matis, povo de língua Pano, na segunda metade da década de 1970. Outros Kanamari
6
seguiram o exemplo de Poroya e foram empregados pelo órgão indigenista oficial, que
chegou a ter cinco funcionários Kanamari. Todos, com exceção de Poroya, pediram as
contas após pouco mais de dois anos. Poroya ainda é funcionário da Funai, apesar de ter,
atualmente, mais de sessenta anos e de ser considerado velho demais para trabalhar
diretamente para a administração regional. Sabá, veremos adiante, nomeara Poroya de ‘o
Fiscal do Índio’, um supervisor dos Kanamari, posição que ele leva muito a sério e que
tem certas ressonâncias importantes com aspectos da chefia Kanamari. Ele é, portanto, um
funcionário da Funai, que mostra com orgulho sua carteira de trabalho, mas que mantém
pouco contato direto com o administrador ou com outros funcionários do órgão, muitos
dos quais sequer sabem que ele é um colega
4
.
Foi através de Poroya que eu ouvi pela primeira vez a história de Sabá. Fiquei
surpreso com a riqueza dos detalhes da narrativa, que incluíam datas precisas e até mesmo
as horas dos eventos narrados. Inicialmente achei que esta precisão se devia ao emprego
de Poroya, mas logo descobri que todos os Kanamari que estavam vivos quando Sabá
chegou contavam a história de forma muito parecida. Durante dias, não ouvi nada a não ser
as histórias de Sabá sobre como ele chegou quando os Kanamari viviam ‘no meio dos
brancos’, como ele trouxe uma quantidade enorme de mercadorias, como ele dava ordens
aos brancos, dizendo-lhes que aquela terra não lhes pertencia e que eles tinham que partir.
Confesso que, de início, não me interessei muito pelos detalhes da história, mas ela me
permitiu abordar um outro tema: a chefia, o papel tradicional do chefe e as mudanças pelas
quais a chefia passou desde a época em que os Kanamari viviam com os brancos até o
período posterior à chegada de Sabá.
Como já disse, não permaneci todo o período do meu trabalho de campo na aldeia
de Massapê. Ao contrário, passei a maior parte do tempo em outras aldeias. Mas os
Kanamari nunca deixaram de me associar a Poroya. Como veremos a seguir, os Kanamari
dividem-se em sub-grupos que recebem o nome de um animal seguido pelo sufixo –dyapa.
Sempre que o tema da afiliação ao sub-grupo surgia, a maioria dos Kanamari dizia que eu
era Mutum-dyapa, como Poroya. Isso devia-se, em grande parte, à minha relação com ele,
mas obedecia também a uma lógica classificatória que me ligava ao Poroya e à Funai e,
assim, nós dois éramos vistos como agentes deste órgão.
Outros dois fatores também me ligavam à Funai. Primeiro, mantive uma relação
amigável com o chefe de posto da Funai em Massapê. Esta relação foi importantíssima
4
Parte da razão para isto é que, quando Poroya foi empregado pela Fuanai, não havia uma administração
regional em Atalaia do Norte e ele respondia a uma sequência de funcionários públicos em Tabatinga e
Brasília. Mesmo hoje, a administração regional o tem nada a ver com a pagamento do salário de Poroya
nem com a alocação de trabalho.
7
para o êxito do meu trabalho. Ele e sua esposa não cuidaram de mim em muitas
ocasiões, como também me ajudaram a transportar as minhas coisas de Atalaia do Norte
para a aldeia e vice-versa, além de me hospedarem em sua casa na cidade. Em segundo
lugar, eu também distribuía mercadorias que eu chamava, ingenuamente, de ‘presentes’.
Inicialmente, tentei distribuí-los através dos chefes nominais, também chamados de
‘caciques’ ou ‘tuxauas’, mas os Kanamari insistiram que eu parasse de proceder deste modo.
Eu deveria distribuir as mercadorias de casa em casa, como a Funai o fazia. Passei,
portanto, a preparar as minhas viagens separando os presentes (tecidos, linhas, agulhas,
roupas, brincos, bijuterias, anzóis e linhas de pesca etc.) em sacolas plásticas para, então,
distribuí-los em cada casa, assim que chegasse no campo. Os Kanamari nunca exigiram
presentes e, embora provavelmente eu esteja errado, gostaria de pensar que esta o era
uma condição da minha estadia junto a eles. Devo dizer também que eu nunca paguei
diretamente para obter informações e que os Kanamari jamais me pediram isso. No
entanto, optei por dar ‘presentes’ maiores e mais caros àqueles que conversavam mais
comigo e/ou cuidavam de mim caçando, pescando, cozinhando e partilhando as suas
refeições comigo.
Gostaria de pensar que, após quatro anos vivendo junto com os Kanamari, meu
estatuto de ‘Funai’ tenha dado lugar a outro: o de ‘antropólogo’ (potokoroko, na pronúncia
kanamari), alguém que quer ‘viver que nem os Kanamari’. Reconheço, no entanto, que esta
mudança nunca foi completa e que continuo sendo visto, ao menos em parte, como um
‘Funai’, mas isso o me incomoda tanto. Gow (2001, 309) notou que uma das
dificuldades com as quais os antropólogos se deparam ao tentar compreender as
concepções indígenas sobre os brancos é que, sendo majoritariamente brancos, nós,
antropólogos, partimos do princípio de que sabemos mais do que os Índios sobre o que
‘branco’ significa e que, por esta razão, poucas vezes nos detemos sobre o modo como os
brancos são vistos da perspectiva indígena. Admito ter partilhado, de certo modo, este
preconceito, pois também achei que sabia mais sobre a Funai do que a maioria dos
Kanamari. Não percebi, assim, que, ao me classificar como um agente da Funai, os
Kanamari estavam, na verdade, me conferido uma honra que agora, quando relembro, é
muito mais assustador do que qualquer receio que possa ter tido antes de conhecê-los.
Os Kanamari e Eu
8
Meus quatro anos de trabalho de campo, de abril de 2002 a junho de 2006, foram
divididos em sete viagens, tonalizando dezessete meses de permanência no campo. A
última viagem durou pouco mais de um mês e não me levou às aldeias kanamari. Fui até a
cidade colombiana de Letícia para participar do ‘Primeiro Módulo Avançado da Escola
Kanamari’, organizado pelo CTI. Este foi um curso de história e computação para os
professores das escolas kanamari
5
e contou com a presença de cinco ‘anciões’ (kidarak). A
nossa meta era desenvolver um curso de história que pudesse levar em conta as
experiências dos Kanamari e, por isso, uma grande parte do curso dedicou-se a ensinar os
Kanamari a usar os gravadores para que eles pudessem entrevistar os anciões sobre sua
própria história e, depois, apresentar esta história para a classe. Apesar desta experiência ter
sido muito diferente do resto do meu campo, foi uma oportunidade importante para
começar a processar os dados que resultaram nesta tese.
Sete viagens em quatro anos é uma soma incomum para um período de campo, e
gostaria de explicar porquê teve que ser assim. Para isso, devo mencionar as condições em
que realizei a pesquisa de campo com os Kanamari e expor o contexto da minha estadia.
Quando cheguei na área indígena pela primeira vez, os Kanamari do Itaquaí viviam
em onze aldeias e, na última visita que fiz à região, este número era de doze. Esta pequena
variação quantitativa esconde, na verdade, uma gama de arranjos que foram
experimentados durante o tempo que separou a minha primeira estadia da última um
período marcado por uma mobilidade intensa, que incluiu a fissão e a fusão de algumas
aldeias, a dissolução de outras, além de migrações para o Juruá e, de lá, para outras regiões
isso?). Passei uns seis meses em Massapê e o resto do meu tempo na maioria das outras
aldeias. Em Massapê, como já mencionei, me hospedei a maior parte do tempo no posto da
Funai, mas costumava me mudar para a casa do Poroya sempre que havia muitos brancos
na aldeia (funcionários da Funai, enfermeiro da Funasa e sua família, entre outros). Nas
outras aldeias vivi com famílias Kanamari em suas casas. Este último arranjo tinha a
desvantagem de limitar a privacidade que eu tinha em Massapê, mas também me forneceu
uma experiência muito mais rica. Lembro-me, na época, de estar longe de Massapê e de ter
saudades das tardes em que eu podia ficar sozinho no posto, dormindo ou escrevendo em
meu caderno de campo. Mas, hoje, lembro-me como sendo muito mais alegres os dias que
eu passava nas casas dos Kanamari, enquanto os momentos solitários no posto me
parecem um pouco deprimentes.
5
A construção de escolas indígenas é responsabilidade do governo municipal, mas no Itaquaí, ao menos,
nenhuma foi construída. uma única ‘escola’ em Massapê que os prórpios Kanamari construíram, mas
que, hoje, consideram inadequada. São dadas aulas nas outras aldeias, mas estas dependem da boa vontade de
algum Kanamari em ceder sua casa por uma tarde.
9
Não tinha, inicialmente, uma estratégia metodológica explícita: nenhuma entrevista
estruturada, nenhum plano de trabalho, nenhuma lista de temas que deveria explorar. Eu
tinha, como veremos, algumas metas a desenvolver, mas decidi deixar os Kanamari ditarem
a maneira como estes temas seriam explorados. A minha prioridade era aprender a língua.
A maioria dos Kanamari fala português; uns, como Poroya, falam bastante bem. Até
pouco tempo, muitos brancos viviam no Itaquaí e os Kanamari trabalhavam para eles e, às
vezes, viviam com eles. Toda a história recente dos Kanamari, aliás, é caracterizada por
uma tensão entre viver com os brancos e longe deles. Por isso, são principalmente os mais
velhos que no passado estiveram envolvidos em várias atividades extrativas, trabalhando
para os patrões locais, que, atualmente, falam melhor o português. Os mais novos, i.e,
aqueles que têm até vinte anos, geralmente falam pouco ou simplesmente não falam
português. As mulheres, de um modo geral, não falam português, ou pelo menos era assim
que me parecia. Algumas vezes vi mulheres que eu achava que falavam Kanamari, pois
se dirigiam a mim nesta língua, falarem português relativamente bem enquanto tratavam
com os brancos na cidade de Atalaia do Norte. Até mesmo aqueles Kanamari que não
falam português, no entanto, às vezes incluem palavras em português em suas conversas. O
uso destas palavras é notavelmente sistemático, com pouca variação de pessoa à pessoa,
formando, assim, um conjunto de empréstimos que se consolidou no Itaquaí.
Os Kanamari foram professores excepcionais e, durante os primeiros meses em que
estive com eles, me ensinaram e testaram o meu conhecimento, apontando para uma
variedade de coisas e me pedindo para dizer o nome delas em Kanamari. A única
experiência de trabalho de campo que os Kanamari haviam tido antes da minha chegada
era a do lingüista Francisco Queixalós e, portanto, eles presumiram que, além de ser um
agente da Funai, eu estava interessado em fazer o mesmo tipo de pesquisa que ele, o que
acabou sendo bastante vantajoso. Através deste processo de ensinamento e testes, pude
logo compilar um vocabulário extenso e os Kanamari acreditavam que eu havia
aprendido sua língua. Apesar desta avaliação generosa, levei muito tempo para manter
conversas mínimas porque, apesar do vocabulário, não compreendia a gramática. Não
existem muitos estudos da língua Kanamari, tampouco de línguas Katukina, e muitos dos
que existem não me estavam disponíveis durante os primeiros meses de pesquisa
6
.
Lembro-me de sentir uma certa ansiedade em relação ao aprendizado da língua,
mas, quando deixei de me preocupar com isso, aprendi a falar, parece-me hoje, com uma
6
Como, por exemplo, os artigos publicados por Christa Groth (p. ex. 1977; 1975; 1978), uma linguista ligada
ao Summer Institute of Linguistics. Haviam uns poucos estudos de Queixalós (p. ex. s.d.1; s.d.2) que me
ajudaram muito, como me ajudou uma lista de vocábulos que ele, gentilmente, me cedeu.
10
certa naturalidade. Não sou fluente em Kanamari e continuo cometendo muitos erros
gramaticais que os Kanamari, sempre muito educados, nunca corrigem. Por volta do
décimo mês de campo, a maior parte do meu trabalho estava sendo realizada na língua
Kanamari e eu conseguia entender quase tudo que me era dito diretamente e muito do
que os Kanamari diziam uns para os outros.
Viver com os Kanamari é muito fácil, eles são ótimos anfitriões e adoram receber
visitas. Grande parte do meu cotidiano era dedicada a visitar todas as casas e conversar
com os habitantes sobre seu dia. Às vezes, acompanhava alguns Kanamari até as roças,
mas geralmente ficava na aldeia onde, com a ausência de muitas pessoas, sempre podia
encontrar alguém disposto a conversar. Este método foi muito útil para conversar com os
Kanamari sem o barulho e o movimento típicos de uma aldeia cheia de pessoas. Os que
não iam para a roça, caçar ou pescar, muitas vezes, ficavam mais à vontade para falar e,
assim, pude manter conversas longas sobre temas variados. Poroya, por exemplo,
conversava comigo durante horas, enquanto ouvia as notícias de Atalaia do Norte pelo
rádio. Dyumi partia cedo para a roça, mas antes me dizia que estaria de volta ao meio dia
para resumirmos uma conversa que tínhamos começado outro dia e Kodoh me mandava
buscar o meu ‘gravador’, a qualquer hora, para gravar uma história.
Na minha primeira viagem, levei alguma comida mas foi a única vez que o fiz.
Tinha comigo, mais ou menos, o suficiente para um mês de rancho que, no entanto, não
durou nem uma semana. No início do meu trabalho de campo, quando a minha presença
ainda era novidade, o posto da Funai onde eu me hospedava ficava sempre cheio de gente
e eu preparava as minhas refeições rodeado pelos Kanamari que ficavam me vendo comer.
Nestas condições, preferi dar-lhes toda a minha comida. Nas viagens subseqüentes, ao
invés de levar comida, achei melhor levar anzóis e cartuchos para ajudar os Kanamari a
adquirir sua própria comida. Isso foi muito mais fácil e menos taxativo, mas também teve o
seu preço. Eu nunca me acostumei a comer carne de caça e, em todas as viagens que fiz,
entrava em uma adequação metabólica automática a esta condição, comendo muito pouco
e perdendo uma quantidade perigosa de peso. O tempo mais longo que fiquei
continuamente em campo foi quatro meses durante a minha terceira viagem, quando perdi
quase quinze quilos o que, considerando que eu nunca fora muito grande, me deixou
anêmico e com deficiência de cálcio. Na minha quarta viagem esta situação piorou quando
peguei malária longe da aldeia de Massapê, onde havia tratamento, o que me levou a passar
quase uma semana sem comer. Meu trabalho de campo era composto, portanto, de
períodos de mais ou menos três meses no Itaquaí, seguidos de vários meses de recuperação
11
no Rio de Janeiro, onde eu era submetido a uma dieta para ganhar peso e, assim, poder
preparar o meu retorno às aldeias Kanamari. Por este motivo, minha pesquisa de campo
teve que ser longa e intermitente.
É preciso enfatizar que isto não teve absolutamente nada a ver com os Kanamari.
Devo realçar este ponto porque os Kanamari são vítimas de preconceitos por parte de
muitas pessoas em Atalaia do Norte e são considerados ‘índios de segunda categoria’ até
mesmo por muitas organizações que deveriam trabalhar para eles (ver Costa 2006). No
contexto regional, onde os grupos de língua pano predominam, e no qual os Marubo
mantêm preeminência política, os Matis são considerados exóticos’ e, por isso, especiais’,
e os Matses se fazem escutar através da diligência, os tímidos Kanamari, falantes de uma
língua Katukina, são praticamente ignorados. Menosprezados sob a classificação de
‘aculturados’, ‘bêbados’ e ‘ladrões’, eles eram sempre silenciados quando falavam e
permaneceram, durante o período do meu trabalho de campo, praticamente invisíveis na
economia política da qual participavam
7
.
‘Sistemas Supra-Regionais’
Não posso dizer que escolhi ir para os Kanamari. No processo de escolher um
povo para estudar, eles surgiram como uma possibilidade, revelando algumas
particularidades etnográficas que me interessavam na época. Como disse, tive a sorte de
ser abordado pelo CTI, que me forneceu a oportunidade de trabalhar com os Kanamari.
No entanto, antes disso, me havia sido sugerido que eu trabalhasse com os Marubo,
possibilidade que considerei por algum tempo e que me levou a ler muitos trabalhos sobre
os povos de ngua Pano. Mas, por fim, acabei indo para os Kanamari. Como Sabá, eu
também tinha partido em busca dos ‘bravos’ Pano e encontrado a eles.
A Aldeia e seu Exterior
Antes de começar a minha pesquisa de campo, e antes mesmo de decidir ir para os
Kanamari, eu tinha um interesse vago e mal-definido em estudar ‘sistemas supra-regionais’.
7
Estes estereótipos são, na minha opinião, maneiras de controlar os Kanamari através da desconsideração. É
desnecessário dizer que são opiniões inverídicas ou, pelo menos, não são mais verdadeiras para os Kanamari
do que para qualquer outra coletividade. Para ser justo, há indícios de que esta situação está mudando.
Recentemente um Kanamari se tornou vice-conselheiro do Civaja e outros órgãos estão seguindo o exemplo,
envolvendo os Kanamari nas decisões que os afetam.
12
Durante muito tempo estive fascinado pela possibilidade avançada em uma nota de um
texto que hoje é fundamental para a antropologia das terras baixas da América do Sul:
“A ênfase nos sistemas regionais em que estão ou estavam inseridas as sociedades amazônicas
estudadas tradicionalmente de um ponto de vista que, ao se concentrar no grupo local,
assumia ao mesmo tempo as ideologias nativas e o resultado da situação colonial tem sido
uma nota dominante na etnografia recente. [...] É tempo de se tentar uma análise comparativa
das morfologias e processos supra-locais na Amazônia, que ponha lado a lado os conjuntos
multicomunitários yanomam (Albert), os grupos e aglomerações trio (Rivière), os madiha kulina
(Pollock), os itsofha piaroa (Overing), os nexos endógamos’ jívaro (Descola, Taylor), os ‘sub-
grupos’ parakanã (Fausto)... Minha impressão é que estas morfologias o geralmente não-
segmentares [...], mas indutivas e não-totalizáveis, de tipo ‘rede’; os grupos locais e
aglomerados regionais o condensações mais ou menos transitórias destas redes egocêntricas,
guiadas por um regime contrátil de aliança, e não por qualquer estrutura totalizável em termos
de descendência ou território. Mesmo onde temos grupos nomeados (Kulina, Pakaa-Nova,
Parakanã, a complicada situação dos nawa pano, os sibs e grupos exógamos tukano), a natureza
‘histórica’ mais que ‘estrutural’ destas unidades parece sobressair. O caráter de fluxo que se
revestem as identidades coletivas na paisagem amazônica torna problemática a aplicação da
categoria clássica de ‘tribo’ [...]. Sob este aspecto, a teoria pertinente deverá ser, para usarmos
um símile desajeitado, antes ‘ondulatória’ que ‘corpuscular’” (Viveiros de Castro 1993, 194-5, n.
5).
Uma parte do problema delineado por Viveiros de Castro originava-se da limitação
prática de realizar a pesquisa em uma única aldeia. Tal limitação se apresenta, no entanto,
como um a priori teórico, equacionando a maioria das sociedade ao grupo local. Este
obstáculo prático tinha ainda sua contrapartida em duas outras limitações ‘objetivas’: uma
histórica, resultando do fato de que muitos grupos ameríndios foram reduzidos, no
violento processo colonial, a uma única aldeia (Viveiros de Castro 2002, 333); e a outra
etnográfica, apoiada em ‘ideologias nativas’ que muitas vezes se baseavam em um
“...concentric dualism with us in the inside and them in the outside” (Rivière 1984, 70-1).
Este último ponto está ligado a uma observação recorrente sobre a ‘aversão’ ao exterior,
particularmente enfatizado nas pesquisas iniciais sobre as Guianas que mostram que, neste
contexto etnográfico, aqueles que estão situados no exterior do grupo local são
considerados perigosos e ameaçadores, sendo as vezes classificados como sub-humanos. A
aldeia surge, então, como o único local onde o trabalho de campo pode ser realizado e
como o único lugar que os Índios consideram digno de interesse.
13
Nenhum destes pontos é independente um do outro, mesmo quando o processo
histórico de de-população e o atomismo resultante permanecem como pano de fundo para
a discussão etnográfica das categorias de classificação social. O problema da oposição
nós/eles foi desenvolvido no âmbito desta última preocupação, notadamente em
discussões sobre o casamento. A etnografia da região das Guianas serviu de paradigma,
desenhando um quadro de atomismo sóciopolítico e de endogamia prescritiva como
padrões invariantes na Amazônia (ver Viveiros de Castro 1993, 157). Se, por um lado, esta
abordagem foi necessária, dado o material fragmentário ou inexistente sobre a história da
região e também à necessidade de disponibilizar descrições adequadas da terminologia de
parentesco, sua imposição à etnografia regional o se deu sem problemas. Um destes
problemas foi a redução (desta vez teórica) das sociedades amazônicas a certas
particularidades das terminologias de parentesco regionais, enfatizando assim a ‘supressão
da afinidade’ (Thomas 1978, 79) e a correspondente ‘ênfase na consangüinidade e
residência’ (Rivière 1984, 70). As sociedades foram, assim, descritas como pequenas
unidades de parentesco que, se o existiam num cuo, ao menos almejavam viver desta
forma.
É preciso, portanto, considerar um pouco mais a etnografia das Guianas,
particularmente devido ao trabalho influente de Rivière que enfatiza a autonomia da aldeia:
“The autonomous political unit is the village, but this must not be taken as a dogmatic
statement since it is obvious that, with a mobile population which assembles and disperses
again either at will or at need, the system must permit wide variations” (Rivière 1969, 229).
E também:
“The closest one can get to identifying a social group that has any sort of corporate existence is
the inhabitants of a single settlement. Even this is not entirely satisfactory, for these groups
have only a transitory presence. Settlements are short-lived, and even within their lifetime their
populations, and thus the composition of the group, undergo continual change as people come
and go. But, ephemeral as settlements are, to focus on them is an approach that allows an
initial glimpse of fleeting stability in a fluid and relative world” (Rivière 1984, 15).
Estas citações, no entanto, mostram que, a despeito de um discurso indígena sobre a
autonomia da aldeia, sua conceitualização como sendo uma unidade ‘corporativa’ depende
de certos postulados teóricos. Nossas análises devem partir, como nos diz Rivière, de ‘um
vislumbre de estabilidade fugaz’ em ‘um mundo fluido e relativo’. Num contexto onde as
14
aldeias não duram muito tempo e a população se desloca com freqüência, nós devemos
mesmo assim, nos é dito, conferir prioridade analítica à aldeia.
Foi o próprio Rivière que explicitou, pela primeira vez, as tensões inerentes a estes
tipos de contradições contradições estas que estão sugeridas nas duas citações acima.
Elas ficam mais claras, no entanto, em sua discussão dos ‘aglomerados’ dos Tiriyó, povo de
língua Carib da fronteira entre o Brasil e o Suriname. Estes aglomerados, que são, eles
mesmos, compostos de clusters de aldeias, são parte de três grandes agrupamentos de Tiriyó
(Rivière 1969, 35-7). Apesar destes agrupamentos de larga escala não receberem um
reconhecimento terminológico por parte dos Tiriyó, eles fornecem um gradiente de
relacionabilidade que distingue pessoas familiares e seguras dos Outros distantes. Rivière
discutiu este gradiente em sua análise do diálogo cerimonial dos Tiriyó (1971), na qual ele
distingue três tipos de diálogo relacionados ao grau de familiaridade entre os envolvidos e
sugere que:
“...the function of ceremonial dialogue is mediation in situations that are likely to give rise to
conflict. Such situations are most likely to arise between those who are unrelated, and this fact
is recognized by the increasing formality of the ceremonial dialogue in direct proportion to
increasing social and physical distance. The boundary of the ceremonial dialogue is
coterminous with Trio territory, and implies that its participants accept certain values and
conventions” (Rivière 1971, 178)
8
.
As observações de Rivière foram desenvolvidas por diversos autores, que investigaram o
modo como certas relações fazem a mediação entre o interior e o exterior, definindo assim
estes pólos. Isto implicou, de imediato, uma mudança no foco das análises que se seguiram,
que deixaram de enfatizar a autonomia da terminologia de parentesco e passaram a se
dedicar ao contexto político-ritual que, muitas vezes, determinam as categorias de
classificação social (Viveiros de Castro 1993, 158). Nas Guianas, foi Overing Kaplan (1975,
183-6) que mostrou, pela primeira vez, como as alianças matrimoniais estruturavam os
grupos locais e, ao mesmo tempo, os aproximava. Seu estudo foi seguido por outros que
extrapolavam a aliança matrimonial strictu sensu através de, por exemplo: uma crítica
histórica da prioridade da aldeia, explicitando a visão implícita de que estas sociedades são
o resultado da dissolução de esferas mais amplas de interação, baseadas principalmente nas
redes de troca, o que, no mínimo, exigia uma explicação a respeito de como uma visão da
autonomia da aldeia pode ter surgido (Butt-Colson 1985; Farage 1991); mostrando como
8
Sobre os diálogos cerimoniais e uma discussão do trabalho de Rivière, veja Erikson (2000), Chernela (2001)
e Surralès (2003).
15
os grupos locais são constituídos por uma relação descontínua entre a esfera local do
parentesco e o domínio político-ritual global (Albert 1985; Viveiros de Castro 1993, 157);
mostrando, ainda, como a cosmologia opera através da apropriação de elementos
estrangeiros que precisam ser, ao menos parcialmente, controlados no interior (Guss 1989,
32; Van Velthem 2003); e, finalmente, focalizando precisamente na natureza fluida e
relativa das redes que unem e situam os grupos locais (Gallois 2002, 210; 2005).
Notou-se ainda que o modelo derivado da etnografia das Guianas poderia explicar
certas características regionais, mas que, quando generalizado, não explicava tão bem outras
realidades etnográficas. Tal modelo, não se adequa, por exemplo, à observação de Lévi-
Strauss de que a relação entre cunhados transcende a “simples expressão de uma relação”
(1943). Como nota Viveiros da Castro, em um contexto etnográfico em que a afinidade
surge como sendo o idioma dominante das relações que vão além do grupo local e onde
estas relações transcendem a terminologia de parentesco - é necessário dar conta das
relações que estruturam as interações mais amplas. Nas palavras de Fausto:
“One of the most recurrent problems in Amazonian ethnology is the definition of the social
units relevant to sociological analysis. In areas where there has not yet been a complete rupture
of wider networks as a consequence of the long process of contact, conquest, and
colonization, there are relatively open social systems with loosely defined ethnic boundaries.
These systems are formed by a multiplicity of local groups that are very often unstable and
fluid. Defining ethnographic domains under these conditions implies the necessity of
distinguishing between different levels of inclusion: the local group, a network of allied groups,
a complex of groups (allied or not) speaking the same language, and so on. The definition of
any such social constellation demands that one account for the relations that structure it. In
some supralocal systems, such as the Upper Xingu or the Upper Rio Negro, peaceful
exchanges (matrimonial, ritual and economic ceremonial) articulate wider webs of sociality, as
well as individual groups. In other cases, hostile relations fulfill this role. Warfare practices,
frequently involving cannibalism and trophy hunting, emerge as mechanisms in the
structuration of certain social constellations” (Fausto 1999, 935).
Retornamos, então, ao problema expresso na nota de Viveiros de Castro, citada no início
desta seção. A ênfase desloca-se da aldeia às maneiras como estas se ligam a outras aldeias,
através de diferentes modos de se relacionar, que mantêm clusters de aldeias próximas
enquanto outras ficam distantes e outras, ainda, em inimizade.
Purus, Juruá, Javari
16
Foi a partir dessas questões, formuladas à luz dos estudos das Guianas, mas que,
com exceções notáveis (p. ex. Gallois 2005), se mantinham a sua margem, que eu pretendia
estudar as Guianas. No entanto, de certa forma, tive sorte quando o meu projeto de
pesquisa inicial teve que ser abandonado, pois pude considerar outras regiões etnográficas.
A minha atenção se deslocou, naturalmente, para a Amazônia ocidental, uma área marcada
pela predominância de ‘sub-grupos’ nomeados que parecem conferir reconhecimento
terminológico às unidades que extrapolam de ou para a aldeia (Pollock 1985, 38-40;
Vilaça 2006, 56-61). Mesmo onde estas configurações não são nomeadas os etnógrafos
foram impelidos a elaborar termos que expressassem a articulação entre os grupos locais,
tais como ‘bandos’ (Price 1987) ou ‘nexos endogâmicos’(Descola 1982).
Meu interesse se voltou, mais precisamente, àquela parte da Amazônia ocidental
entre o médio e o alto curso dos rios Juruá e Javari, uma área que permanece sendo uma
das menos conhecida da Amazônia. habitam índios que falam línguas Katukina, Pano,
Arawá e Arawak. Excetuando-se os Apurinã de língua Arawak, sobre os quais nada sei,
estes grupos têm sido objeto de grande confusão classificatória, devido, particularmente, à
proliferação de etnônimos anotados por diversos viajantes ao longo de muitos anos. Como
diz Verneau em sua revisão da literatura sobre o Juruá e o Purus:
“Ce que complique le problème, c’est que le même petit groupe a ésouvent désigné par des
appellations différents et que, d’autre part, sous un seul vocable sont parfois comprises
plusieurs tribus parlant des langues distinctes” (1921, 255)
Evidentemente, não foi apenas nesta região que estes problemas se colocaram. Em
várias partes da Amazônia, os viajantes anotaram nomes que se sobrepõe uns aos outros,
definindo coletividades que desafiam qualquer tentativa de sistematização. Tal problema,
no entanto, não pode ser atribuído apenas às anotações dos viajantes, como sugerem alguns
autores (p. ex. Neves 1996, 140). Trata-se, ao contrário, de um problema central na
etnografia das sociedades das terras baixas sul-americanas, cujos membros estão muito
menos preocupados em objetificar etnonimicamente suas próprias coletividades fluidas do
que com definir os outros (Viveiros de Castro 2002, 372).
No entanto, um aspecto da região do Juruá-Purus, incluindo também os rios que
deságuam no Javari, se sobressai. Ao longo de toda esta área, encontramos uma série de
nomes de grupos que terminam com certos sufixos recorrentes: -dyapa; -deni/-madi/-madiha;
-nawa (Rivet e Tastevin 1921; Metraux 1948). Estes sufixos estão quase sempre associados a
pessoas da mesma família lingüística: as coletividades katukina têm nomes que terminam
17
com –dyapa; povos Arawá com -deni/-madi/-madiha; e os Pano com –nawa (ver Erikson
1993).
Estes nomes ocultam, ainda, uma gama de maneiras diferentes de classificar os
Outros e de se relacionar com eles. Entre os grupos de língua Pano, por exemplo, que
estão em sua maioria circunscritos a uma área etnográfica bem-definida, sendo lingüística e
culturalmente muito parecidos (Erikson 1993, 47-9), o sufixo –nawa parece funcionar como
um meio de classificar Outros, e etnônimos como ‘Kaxinawá’ e Yaminawa’ surgem como
nomes derrogatórios, conferidos por vizinhos e/ou inimigos. Esta classificação não
implica, de forma alguma, diferenças absolutas. Às vezes, diferentes grupos locais da
mesma ‘sociedade’ também se definem por um nome que termina com –nawa e que exclui
outros grupos locais equivalentes (idem, 50). Simultaneamente, a forma não-marcada pelo
prefixo, nawa, denota uma forma particularmente distante de alteridade, como os brancos
ou os mortos (Lagrou 1998). em outros casos, o mesmo termo constitui o nome de uma
das metades que definem a sociedade, como entre os Yaminawa, por exemplo, cuja metade
dawa (nawa) é relacionada ao exterior (Townsley 1988). Isto resulta numa dificuldade
recorrente no panorama pano, que opõe “...son unité manifeste au niveau global, d’une
parte, et l’atomisation extrême qui la caractérise à l’echelle locale d’autre part” (Erikson
1993, 51).
Entre os Kulina de língua Arawá, a relação entre o –madiha prefixado e o madiha
não-marcado é diferente do que foi observado para os nawa Pano. Os Kulina se dividem
em grupos –madiha que são prefixados por um nome de um animal ou de alguma espécie
natural, cada um dos quais está, geralmente, mas não exclusivamente, ligado a uma aldeia
(Pollock 1985, 137). Estes sub-grupos eram localizados e endogâmicos, e viviam em guerra
uns com os outros, o que teria levado alguns à extinção (Lorrain 1993, 137). Os nomes dos
sub-grupos neste caso, diferentemente dos nawa Pano, são um tipo de auto-designação, de
modo que os membros de um mesmo sub-grupo os reconhecem como sendo ‘deles’,
inclusive usando-os de uma maneira análoga ao uso que fazemos dos sobrenomes (idem.,
139). Além disso, o uso do termo madiha não-marcado também designa o oposto do nawa
Pano, pois significa ‘gente’ ou ser humano’, com a construção madiha ohuaha denotando
‘outra gente’ e, geralmente, referindo-se a ‘pessoas de um outro sub-grupo –madiha(idem.,
130, 136).
Os falantes de línguas Katukina, ao menos os Kanamari, situam-se geograficamente
entre os grupos falantes destas duas famílias lingüísticas, sendo que os falantes de línguas
Pano estão ao norte e a oeste e os falantes de língua Arawá ao sul e leste. Se os Pano
18
espalham-se a partir do Javari em direção ao Juruá, e os Arawá deste último rio para o
Purus, os Katukina permanecem quase exclusivamente no Juruá e em afluentes vizinhos.
Verneau (1921, 257) supôs que eles fossem os primeiros habitantes deste rio, para o qual os
falantes de outras línguas migraram, restringindo o movimento dos Katukina a um trecho
do médio Juruá (ver também Porro 1996, 26). É deles que tratarei agora.
Os Kanamari
A família lingüística Katukina fora identificada por Rivet (1920). Tal identificação
foi posteriormente confirmada por Rivet e Tastevin (1921). No entanto, esta é ainda uma
das famílias lingüísticas mais obscuras da Amazônia (Urban 1992, 98) e, geralmente, é
dividida em quatro línguas: Kanamari, Katukina do Rio Biá, Tsohonwak-dyapa e Katawixi.
Esta última língua foi extinta e parece ter sido um dialeto distante’ das outras três (Rivet e
Tastevin 1921, 459; veja também Neves 1996, 144-5). As línguas Katukina do Rio Biá e
Kanamari são muito parecidas. Tive a oportunidade de mostrar uma fita com gravações da
língua dos Katukina do Rio Biá para os Kanamari que o tiveram dificuldade em
compreendê-la
9
. Os Tsohonwak-dyapa (Tucano-dyapa) são índios isolados que vivem na
região interfluvial entre o Jutaí e o Jandiatuba. Os Kanamari que os visitaram afirmam
que eles falam a mesma língua, e que ambos se entenderam mutuamente. Assim, é possível
que, com exceção do Katawixi, as outras três línguas Katukina possam ser consideraras
como sendo dialetos de uma mesma língua
10
.
Um grande mero de índios, muitos dos quais não têm nada em comum com os
grupos katukina, já foram chamados erroneamente de ‘Kanamari’ e de ‘Katukina’. Isto se
deve ao uso de designações atribuídas por viajantes que usaram esses termos
indiscriminadamente para designar índios que falavam línguas muito diferentes e que
tinham pouca semelhança cultural. A confusão etnonímica que se desenhou foi esclarecida,
há muito tempo, por Rivet e Tastevin (1921, 456-7, 459-61) e não pretendo retomar aqui os
seus argumentos (veja Neves 1996, 138-45). Esta tese tratará exclusivamente dos Kanamari
que falam línguas Katukina, e não dos Tupi, Pano ou Arawak que foram, ao longo da
história, chamados de ‘Katukina’, ‘Kanamari’ ou por termos derivados destes nomes.
Situando os Kanamari
9
Agradeço a Jeremy Deturche por me ceder uma fita com um mito Katukina do Rio Biá.
10
Queixalós (s.d.1) classifica Katukina do Rio Be Kanamari como uma mesma língua, que ele chama de
‘Katukina’.
19
Os Kanamari somam cerca de 1.600 indivíduos que vivem, em sua maioria, no
médio Juruá, na parte ocidental do estado do Amazonas. Alguns Kanamari se deslocaram
para longe desta área, como, por exemplo, para a região do baixo Japurá, afluente da
margem esquerda do Solimões. Mas este é um caso excepcional que resultou de migrações
recentes a partir do médio Juruá (Neves 1996, 199-201). Os Kanamari que vivem no médio
Javari também migraram recentemente, desta vez a partir do alto Itaquaí. A maioria dos
Kanamari vivem ao sul do Solimões, com seu centro sendo claramente os afluentes do
médio Juruá que ficam imediatamente a montante e a jusante da cidade de Eirunepé.
A jusante de Eirunepé encontra-se alguns grupos Kanamari que vivem na Terra
Indígena Kanamari do Juruá, nos afluentes da margem direita do Juruá. A montante de
Eirunepé outros grupos Kanamari vivendo nos afluentes da margem esquerda do Juruá,
na Terra Indígena Mawetek. Esta Terra Indígena é contígua à extensa área da Terra
Indígena do Vale do Javari, onde existem três núcleos Kanamari (veja Mapa 1) listados
abaixo:
1. O núcleo situado No alto Itaquaí, na área que começa na boca do Rio Branco,
subindo seus formadores. Estes Kanamari migraram para o Itaquaí a partir dos
afluentes da margem esquerda do Juruá, onde hoje é a Terra Indígena Mawetek, no
final da década de 1930. O alto Itaquaí, porém, fica muito perto do alto curso
destes afluentes, mais ou menos a um dia a pé, e está claro que, antes da migração
de 1930, muitos Kanamari visitavam o Itaquaí, possivelmente estabelecendo
algumas aldeias (Tastevin s.d.1, 12, 17). No entanto, a partir do fim da década de
1930, o alto Itaquaí vem sendo continuamente ocupado pelos Kanamari que
mantêm, ainda, contato com aqueles que hoje vivem na Terra Indígena Mawetek.
2. O núcleo do alto Jutaí, da aldeia Queimado até o Igarapé Naua. Desconheço os
detalhes da história desta migração, mas parece que já havia grupos Kanamari
vivendo no alto Jutaí no início do século XX. A migração para este rio
provavelmente se deu a partir do seringal Restauração (Carvalho 2002, 60-4). Após
esta migração inicial, a gradual percolação de pessoas entre o Jutaí e os afluentes do
Juruá continuou ao longo do século XX.
3. O núcleo do O médio Javari, na área que fica entre o IgaraIrari e a boca do rio
Curuçá. também uma aldeia Kanamari no baixo Curuçá, um afluente do médio
Javari. Os primeiros Kanamari a migrarem para esta região o fizeram no final da
20
21
década de 1950 e foram seguidos por uma outra onda migratória em meados da década
de 1970, desta vez articulada pela Funai. A migração para o Javari se deu a partir do
Itaquaí e a maioria, se não todos, os Kanamari que vivem atualmente no Javari viviam
no Itaquaí, ou então, afirmam que seus pais ou avós viviam neste local.
Os primeiros estudos sistemáticos sobre os Kanamari foram realizados pelo padre
francês Constant Tastevin, que viveu com eles e com outros índios do rio Juruá de forma
intermitente entre 1905 e 1926, com um pequeno intervalo durante a Primeira Guerra
Mundial (ver, p. ex., Tastevin 1919; 1920; 1918)
11
. Os trabalhos mais interessantes de
Tastevin sobre os Kanamari são manuscritos que permanecem inéditos, guardados no
Séminaire des Missions nos arredores de Paris, com cópias na Prelazia de Tefé no alto
Solimões (Tastevin s.d.1; s.d.2; s.d.3). Outros etnógrafos realizaram pesquisas recentes
entre os Kanamari. Reesink (1993) estudou sua mitologia no Jutaí; Neves (1996) estudou
sua história e as relações inter-étnicas, principalmente no Juruá; Labiak (1997) focalizou o
ritual entre os Queixada-dyapa do Rio Itucumã, na margem direita do Juruá; e Carvalho
(2002) estudou a história, o ritual e o xamanismo no Jutaí e nos afluentes da margem direita
do Juruá.
Todo o meu trabalho de campo foi realizado entre os Kanamari do Rio Itaquaí na
Terra Indígena do Vale do Javari (núcleo 1), e nunca visitei aldeias em outros rios. Estes
grupos Kanamari ainda não tinham sido estudados etnograficamente e a única referência
que encontrei acerca deles foram os breves escritos do biólogo J. Carvalho (1955). Parece
haver pequenas diferenças etnográficas entre os Kanamari de diferentes bacias
hidrográficas, mas nada que nos faça considerá-los povos distintos. Esta variabilidade pode
ser atribuída às mudanças acarretadas pela distância entre os grupos, a possível falta de
visitas entre pessoas de grupos distantes e, em alguns casos, ao fim destas visitas após a
chegada dos brancos no período do boom da borracha. Para o presente propósito é possível
abordar os Kanamari, a despeito de tais diferenças, como um ‘povo’ ou ‘grupo étnico’. No
entanto, muito de que se segue vai tratar especificamente da história do Itaquaí. Procurarei
explicitar este ponto sempre que minha análise se basear nesta condição específica, mas, em
outros momentos, quando esta condição não tiver um efeito sobre os temas em questão,
simplesmente irei me referir aos ‘Kanamari’ como um todo.
Não é a minha meta, portanto, tratar diretamente das diferenças etnográficas que
existem entre os Kanamari de regiões distintas. Os Kanamari permanecem virtualmente
11
As referência anteriores a Tastevin se limitam a breves obersvações sobre os ‘Canamarés’, ‘Anamaris’,
‘Catuquina’ e outros (veja Neves 1996, 154-6, para um apanhado destas referências).
22
desconhecidos na literatura etnográfica e não estamos, ainda, em uma posição em que
possamos sugerir razões para as eventuais discrepâncias. Farei, assim, pouco uso da
etnografia mais recente sobre eles. Há, contudo, uma questão sobre a qual todos os
etnógrafos dos Kanamari que me antecederam concordam e que, no entanto, os meus
dados contradizem. Parece existir um consenso de que antes da chegada dos brancos ao
Juruá, na segunda metade do século IX, alguns ou todos os Kanamari teriam vivido na
beira do Rio Juruá. Com a crescente presença dos brancos, eles teriam sido forçados a
migrar para os afluentes deste rio (Carvalho 2002, 39; Neves 1996, 63-70). Digo que parece
existir este consenso porque nem sempre fica claro se o uso do termo ‘Juruá’ refere-se ao
rio ou à bacia hidrográfica. De qualquer maneira, os meus dados são claros em relação a
este ponto. Os Kanamari do Itaquaí são unânimes em dizer que antes da chegada dos
brancos eles não viviam na beira do Juruá, mas sim em seus afluentes. Isto não significa
que os Kanamari não vissem o Juruá como sendo, de alguma forma, o seu rio’, como
sugerem alguns etnógrafos. Eles usavam o rio como uma via necessária, muitas vezes a
única maneira de visitar sub-grupos distantes. No entanto, o que se passou foi justamente o
contrário do que sugeriram os outros etnógrafos dos Kanamari. Foi somente após a chegada
dos brancos que alguns Kanamari, atraídos pelos barracões que pontilhavam o Juruá,
decidiram viver na beira do Juruá e até mesmo construir aldeias ao longo do leito deste rio.
Não nada surpreendente nesta constatação, que sabemos que muitos índios sempre
viveram em regiões interfluviais, longe do leito principal dos grandes rios, mesmo antes da
presença colonial (p. ex. Carneiro 1995, 62; Fausto 2001, 174).
Tukuna e –dyapa
O termo ‘Kanamari’ o é uma auto-designação e os próprios Kanamari se
chamam de tukuna, termo que significa ‘gente’, ‘pessoa’ ou ‘pessoas’
12
. Um tukuna é, antes
de mais nada, um falante de tukuna-koni, ‘língua-de-pessoa’. Isto inclui, como vimos, os
Katukina do Rio Biá e os Tucano-dyapa isolados, que falam uma língua muito parecida com
a dos Kanamari, apenas com algumas diferenças dialetais. Quando a semelhança entre
todos estes povos é enfatizada, eles geralmente dizem que todos falam tyo-koni nimbak’,
‘certamente a nossa língua’. Porém, estes grupos vivem muito distante uns dos outros e as
visitas mútuas são raras. Assim, quando os Kanamari querem realçar as diferenças entre
12
Os coletivos e plurais em Kanamari são formados pelas párticulas hinuk ou nuk. ‘Pessoas’ seria, em sentido
estreito, ‘tukuna hinuk’, mas muitos Kanamari usam a forma singular para desiganr o coletivo e/ou o plural.
23
eles, dizem que os outros falam tyo-koni nahan’, ‘mais ou menos a nossa língua’. Eles nunca
negam, no entanto, que todas estas línguas são, de certa forma, tukuna-koni.
Em um determinado nível, tukuna se refere a todos os falantes de língua Katukina
em oposição aqueles designados tukuna tu, ‘não-pessoas’. No entanto, Tukuna tu não é uma
designação definitiva nem absoluta e oculta uma miríade de relações. Inclui, por exemplo,
os brancos (kariwa), os Kulina (koru) e os povos falantes de línguas Pano (dyapa). Entre os
Kanamari com os quais trabalhei, o termo tukuna não pode ser usado para se referir a uma
categoria genérica de ‘Índios’ em contraposição aos brancos. Para fazer tal distinção, os
Kanamari podem se referir a uma coletividade anônima indígena por tukuna onahan (‘outras
pessoas’) e os opor a tukuna (‘falantes de língua Katukina’) ou a kariwa (‘brancos’). Na
expressão tukuna onhana é a palavra onahan o termo é não-marcado, uma vez que essa
coletividade anônima pode simplesmente ser chamada de onahan hinuk(‘os Outros’), mas
nunca de tukuna hinuk (‘as pessoas’).
Em sua acepção default, então, tukuna se refere exclusivamente aos falantes de
línguas Katukina. A onde eu sei, um Kanamari jamais chamará um falante de língua
Katukina de tukuna tu. A categoria tukuna, no entanto, divide-se em tukuna tam’, ‘pessoas
verdadeiras’ e oatukuna, ‘outras pessoas’ ou ‘estrangeiros’. O qualificador tam pode ser
glosado como ‘verdadeiro’ e indica propriedade e representatividade de uma classe; o que a
teoria do protótipo descreve como “...the proprerties defining the category [...] shared by all
members” (Lakoff 1987, 40; veja também Fausto 2001, 263). Isto significa que tukuna tam
é, muitas vezes, sinônimo de parente’ (-wihnim), mas também pode designar não-parentes
conhecidos e confiados (em quem se confia?), com quem contatos regulares são
mantidos
13
. O prefixo o- significa ‘um outro de um tipo’ e a- é o pronome de terceira pessoa
do singular, sendo, então, que oatukuna significa ‘outro tipo de pessoa’. Difere de tukuna
onahan por ser sempre um tukuna, ou seja, falante de língua Katukina, enquanto tukuna
onahan refere-se, geralmente, a outros que não falam a língua Katukina. Oatukuna é usado
para designar pessoas que um Ego raramente vê e que vive numa bacia hidrográfica
distante daquela do enunciante. Os Kanamari do Itaquaí, por exemplo, chamam os
Katukina do Rio Biá e os Tucano-dyapa de oatukuna.
Tukuna, é claro, é um tipo de termo altamente difundido nas terras baixas da
América do Sul. Todos os índios parecem possuir um termo que usam mais ou menos
como uma auto-designação e que significa ‘pessoa’. É geralmente enfatizado que tais
termos são relacionais e contextuais, sendo às vezes usados como sinônimos de ‘tribo’ ou
13
Tukuna tam é as vezes sinônimo de tukuna baknim, ‘pessoas boas/belas’. Estas são pessoas que um dado
Ego sabe ser moralmente corretas em seu modo de viver, ‘sábias’ (wa-tikokoknim).
24
mesmo de ‘parentes’ e, em outras ocasiões, abarcando todos os humanos e até os o-
humanos. Como mostrou Viveiros de Castro, estes tipos de termos são ‘marcadores
enunciativos’, que indicam a posição do sujeito: “por isso mesmo, as categorias indígenas
de identidade coletiva têm aquela enorme variabilidade contextual de escopo característica
dos pronomes, marcando contrastivamente desde a parentela de um Ego até todos os
humanos, ou mesmo todos os seres dotados de consciência; sua coagulação como
‘etnônimo’ parece ser, em larga medida, uma artefato produzido no contexto da interação
com o etnógrafo” (1996, 125).
Os Kanamari não diferem desta observação, e o termo tukuna às vezes designa
animais e espíritos, como veremos ao longo da tese. A questão se complica, na verdade,
quando se focaliza a possibilidade de usar este termo para designar os índios não-Katukina
e os brancos. Estas figuras parecem gravitar em torno do termo tukuna sem nunca serem
congruentes a ele, o que não significa que não se pode interagir com eles do mesmo modo
consistente com o qual se lida com os tukuna. Acredito que esta não-relação terminológica
está associada ao conhecimento de ‘língua de gente’. Enquanto espíritos e animais podem,
às vezes, falar ‘língua-de pessoa’, a vasta maioria dos brancos e de outros índios não o
podem. Eu era a única exceção inconstante e às vezes os Kanamari me diziam que eu não
era um kariwa, mas um tukuna. Eles diziam explicitamente que assim me classificavam
porque eu podia compreender ‘língua-de-pessoa’. Este potencial que me foi atribuído me
foi explicitado logo no início do meu convívio com os Kanamari, mesmo antes de eu saber
dizer frases dispersas em Kanamari. que estava para aprender ‘língua-de-pessoa’, eu
não era ainda um tukuna, mas poderia ‘devir-tukuna(tukuna-pa) ao aprendê-la. Perto do fim
do meu trabalho de campo, nenhum dos Kanamari que eu conhecia me chamava de
kariwa’.
A única divisão mais ou menos absoluta que os Kanamari reconhecem no interior
da designação genérica tukuna é a divisão em sub-grupos, cujos nomes são compostos pelo
nome de um animal seguido do sufixo –dyapa. Este é o mesmo termo que, quando não
prefixado, denota os povos que falam língua Pano (dyapa). Os Kanamari identificam todos
os falantes de línguas Katukina com ao menos um destes sub-grupos. que uma grande
parte desta tese é dedicada à investigação destes sub-grupos, vou evitar entrar em detalhes
nesta introdução. Oferecerei somente um breve comentário sobre os problemas colocados
pelos sub-grupos.
Tastevin chamava os sub-grupos de ‘clãs’. Ele acreditava que estes sub-grupos eram
unidades endogâmicas e geograficamente circunscritas, mas que, na época em que esteve
25
entre eles, estas unidades se encontravam “en pleine désorganisation” (s.d.1, 109). Com
isso, ele quis dizer que um único nome de ‘clã’ revelava, na verdade, uma gama de
identidades que resultavam de inter-casamentos realizados após o contato. Não obstante,
ele observou certas diferenças entre os clãs, incluindo pequenas variações dialetais e
diferentes padrões de desenho corporal e de tatuagem (Tastevin s.d.1, 27-47). Os Kanamari
que eu conheci concordaram no que diz respeito à variedade lingüística, mas disseram que
a mistura pós-contato servira para homogeneizar estas diferenças. Eles costumam dizer que
as variações dialetais eram análogas às diferenças entre a língua que eles falam hoje e àquela
dos Katukina do Rio Biá e que, portanto, as línguas eram mutuamente inteligíveis.
Não obtive, porém, muita informação sobre os desenhos e as tatuagens. Em sua
maioria, os Kanamari me disseram que eles todos conhecem os mesmos desenhos e
tatuagens (ambos chamados de akanaron) e que o ‘fazem’ (-bu) para ficarem ‘belos’ (bak).
Perguntei se no passado cada sub-grupo não teria tido o seu próprio repertório de
desenhos, mas eles tenderam a não concordar com esta hipótese. Parece-me que, dado o
contato esporádico que devia ocorrer entre algumas das bacias hidrográficas o que pode
ter sido exacerbado após o contato com os brancos e as dificuldades que os Kanamari
tinham em viajar pelo Juruá - provavelmente havia algumas diferenças culturais entre os
sub-grupos. Incluo aqui variações não de desenhos e tatuagens, mas também de
mitologia, música e ritual. Algumas destas diferenças continuam tendo sua pertinência,
como veremos, mas os Kanamari preferem enfatizar o que todos os sub-grupos tinham em
comum. Talvez não seja surpreendente que, se a língua é um dos índices de ‘pessoas
verdadeiras’, são estas as diferenças que eles se lembram acima de quaisquer outras.
No capítulo 1 veremos como os Kanamari acreditam que todos estes sub-grupos
eram, de fato, endogâmicos e geograficamente circunscritos aos afluentes do Juruá. Teria
sido somente após a chegada dos brancos que alguns deles começaram a co-residir. Se, no
início, esta co-residência foi modesta, o número crescente de brancos, a atração por suas
mercadorias e as ‘correrias’ que eles acabaram por promover contra os Kanamari, levou
pelo menos alguns membros destes sub-grupos a migrarem, seja em direção aos brancos,
seja para regiões inabitadas (capítulos 2 e 3).
Os Kanamari não possuem um mito que trate explicitamente da origem dos sub-
grupos. Nos capítulos 4 e 5, no entanto, vou sugerir como o modelo dos sub-grupos se
expressa em certos temas míticos recorrentes que convergem no mito de Tamakori, o herói
criador que dá forma ao mundo e situa os sub-grupos ao longo dos afluentes do Juruá.
26
Histórias
A nota ao texto de Viveiros de Castro a partir da qual comecei a considerar a
questão de ‘sistemas supra-regionais’ contém uma hipótese sobre a natureza ‘histórica,’
mais do que ‘estrutural’, dos sub-grupos que me cativou mais do que o resto. Não que eu
achasse que os sub-grupos poderiam ser descritos somente pelo processo da história, já que
me era claro que eles operavam através de certos padrões formais que estavam relacionados
à área etnográfica na qual os Kanamari se situam. O que eu imaginava, baseando-me no
trabalho de Fausto (ms.; 2001, capítulo 2), era que essas formas precisavam ser
compreendidas ‘na história’; ou seja, reconstruídas a partir da micro-história de
movimentos, casamentos, padrões de residência e daí por diante. Comprometi-me, assim, a
mapear o passado recente dos Kanamari através de sua história oral.
Parti para o campo, portanto, com um interesse em gravar histórias, mas, nos
primeiros meses, a única história que os Kanamari me contaram foi a da chegada de Sabá.
Inicialmente essa história não me interessou muito. Como disse, os eventos
transcorreram em 1972, e o era essa a história que eu estava buscando. A leitura que
tinha feito da parca bibliografia disponível sobre os Kanamari deixava claro que estes
haviam migrado para o Itaquaí, vindos do Juruá, no início do século XX (p. ex. Neves
1996) e eu estava mais interessado em compreender o processo que os levou a migrarem, e
sua história antes disso, do que as suas relações com a Funai. A história de Sabá parecia
conter informações que poderiam depois ser comparadas com documentos da Funai para
estabelecer uma cronologia relativa da presença de órgãos governamentais no Itaquaí – algo
que pudesse compor um capítulo que permaneceria, para usar a expressão de Gow (1991,
20), ‘esplendidamente isolado’ do resto da tese, que então trataria da história dos sub-
grupos. Mas, conforme fui ouvindo mais histórias e aprendendo mais a língua, ficou claro
que eu estava completamente enganado. Ao situar a história que os Kanamari chamam de
‘Quando Sabá Chegou’ ao lado de outras histórias e mitos, ela surgiu, ao contrário, como o
ponto de partida perfeito para começar a entender os sub-grupos. Neste processo, porém,
o objeto do meu estudo se dissolveu e o que me parecia ser uma questão de traçar histórias
se revelou uma manifestação particular de uma questão mais ampla.
A tese que se segue, portanto, não se preocupa tanto com os sub-grupos quanto eu
previra inicialmente. O tema continua aí, mas agora é apenas uma parte da questão, ou, na
melhor das hipóteses, uma lente através da qual um outro tema pode ser investigado. Ficou
claro que a história e a mitologia kanamari operam através de uma dialética entre formas
27
estáveis e fluidas que englobam, por assim dizer, a origem e arquitetura dos sub-grupos. No
entanto, ‘estabilidade’ e ‘fluidez’ se opõem em todos os outros aspectos da vida Kanamari e
tal oposição é, ela mesma, fluida. A mitologia kanamari narra como um mundo que era
puro fluxo-Jaguar cedeu lugar a outro que era composto de unidades estáveis na forma de
sub-grupo, alguns dos quais mantinham relações às custas dos outros. Mas esta ruptura não
resolve o problema da estabilidade e da fluidez, uma vez que o Jaguar é fluxo, mas é, ao
mesmo tempo, um Mestre de tudo e, conseqüentemente, tem uma capacidade infinita de
situar o mundo. Assim, se os sub-grupos kanamari mantêm uma forma estável, podem
fazê-la num mundo que se extraiu do Jaguar e que, por isso, sempre tem o potencial de
voltar a este estado. Em resumo, a sociedade kanamari existe como o precipitado de uma
tensão onipresente: a Jaguaritude inata do mundo e o esforço humano de produzir o
parentesco contra e através deste fundo.
Optei por apresentar estes problemas nesta tese tal qual eles me foram colocados
pelos Kanamari. Por isso, esta tese vai seguir uma série de histórias e mitos que explicitam
esta tensão. Fornecerei brevemente o contexto no qual estas histórias foram narradas para,
assim, justificar o que pode parecer um ênfase exagerada em apresentar os Kanamari
através de suas histórias.
Contando histórias
As histórias kanamari são chamadas genericamente de ankira. Deste modo, contar
histórias’ é ankira tohoki. Toda narrativa é uma ankira, não importando se os eventos
aconteceram ou não no tempo da memória coletiva. No entanto, como acontece entre
outros povos indígenas (Gallois 1994; Gow 2001, 82-4; Ireland 1988; Urban 1996, 66-98),
existem maneiras de distinguir entre o que foi contado e o que foi observado. As histórias
que ocorreram no passado distante, das quais o narrador o poderia ter participado, são
ditas terem ocorrido tyanimhan, ‘a muito tempo atrás’. Tais histórias geralmente começam
desta forma. Os verbos na narrativa são então conjugados na forma toninim, que significa
algo como ‘quando era aquela época’
14
. os eventos que ocorreram durante a vida de um
narrador são ditos terem acontecido bati nahan ti, ‘mais ou menos hoje/agora’ e os verbos
são conjugados no tempo apropriado à narrativa. Se os eventos aconteceram durante a vida
de um narrador, mas este não os observou ou não estava diretamente presente, as
14
Uma outra forma que as vezes é usada é am tobowa, que parece ter a mesma função gramatical de situar
eventos num passado remoto (veja Groth 1977 para uma discussão acerca do uso destas formas verbais no
âmbito das narrativas mitológicas).
28
narrativas sempre começam dizendo que ‘fulano me falou que foi assim’, e esta condição é
repetida ao longo da narrativa para lembrar os ouvintes. A distinção entre eventos que
ocorreram ‘há muito tempo atrás’ e os que ocorreram ‘mais ou menos hoje/agora’ não
equivale à diferença entre ‘mito’ e ‘história’, ambos chamados de ankira. As narrativas que
vamos seguir ao longo desta tese deixarão este último ponto abundantemente claro.
Não existe um contexto específico no qual as histórias são contadas. Ouvi mais
histórias sendo contadas à tarde, após um dia de trabalho, quando as pessoas estavam
alimentadas e descansadas. Mas também ouvi histórias em outras situações: durante as
viagens, no meio da noite, narradas por alguém que não conseguia dormir, de manhã cedo,
em caminhadas pela floresta, nas roças, enquanto se cozinhava, ou enquanto se trabalhava
em outras coisas, como na feitura de canoa, cocares, cestas e daí por diante. O estopim
para as narrativas tende a ser o contexto. Assim, enquanto Poroya terminava uma canoa,
ouvi a história de como o coatipuru fez a primeira; quando fui à roça com Dyumi, ele me
contou como os primeiros mamões e canas caíram do céu, muito tempo atrás. De fato,
não seria incorreto dizer que, na maioria dos casos, a história resulta mesmo do contexto.
Kodoh, quando perguntado repentinamente pelo antropólogo ansioso: “meu avô, conte-
me uma história dos seres celestiais Kohana”, me respondia que não sabia de nenhuma. No
entanto, durante três dias no ritual Kohana, ele me mandava buscar o meu gravador e me
contava não só uma, mas muitas de suas histórias.
O fato de eu ter chamado Kodoh de ‘avô’ (paiko) é significante, porque são
normalmente pessoas incluídas nessa categoria terminológica que contam histórias para
‘seus netos’ (veja também Gow 2001, 79-81). Portanto, se a ‘escolha’ da história a ser
contada parte do contexto das conversas ou dos afazeres do dia, o ambiente é quase
sempre um no qual os mais velhos contam suas histórias para os mais novos. Durante o
meu período de trabalho de campo havia quatro homens que contavam histórias
regularmente: Kodoh, de quem falei, um homem com quase setenta anos que vivia na
aldeia de Bananeira e era, unanimemente, considerado o melhor narrador,
indiscutivelmente ‘alguém que sabe bem as histórias’; o ‘cacique’ de Bananeira, Dyumi, que
tinha uns cinqüenta anos; Poroya, com sessenta e poucos anos, considerado o chefe de
Massapê quando morava por lá; e Tiowi, cacique’ do Remansinho, também com uns
cinqüenta anos. Não se pode concluir, automaticamente, que os homens mais velhos que
são ‘avôs’ de muitas pessoas sejam bons narradores. Os dois homens mais velhos do
Itaquaí, Wura e Nui, assim como outros ‘avôs’, como Makwana Kidak, não são bons
narradores. Tornar-se um bom narrador não é uma conseqüência necessária de
29
‘envelhecer’, kidak-pa. Há outras coisas que podem ser aprendidas com a velhice, em
particular as músicas de Jaguar que são contadas durante o ritual de Devir-Jaguar, e cujo
aprendizado faz de um homem Pidah nawa nohamn, ‘o cantor do Jaguar’. Makwana Kidak,
por sua vez, é um conhecido marinawa, o especialista que prepara o consumo da ayahuasca
e guia as visões por meio de canções.
Bons narradores, portanto, chamam muitas pessoas de i-pida’, ‘meu(s) neto(s)’.
Apesar da maioria dos narradores serem homens, também ouvi algumas histórias narradas
por mulheres. Muitas me pareceram versões sinópticas de histórias que me tinham sido
contadas por homens, muitas vezes com a presença de mulheres. Não quero dizer, com
isso, que as mulheres o saibam histórias; elas certamente as conhecem e não se inibem
em corrigir os narradores masculinos. Além disso, seus comentários freqüentes durante as
narrativas são parte integral do evento, muitas vezes servindo para embelezar uma história
e, às vezes, servindo com um apoio mnemônico para os narradores.
Se a maioria dos eventos de narrativa envolveram ouvintes que o narrador chama
de ‘neto’, nem sempre as narrativas os têm como público alvo. Até mesmo quando eu e o
meu gravador éramos claramente o público alvo, as narrativas visavam a todos e a maioria
dos narradores esperava a reunião de um público grande antes de começar a contar suas
histórias. Os Kanamari, como a maioria dos ameríndios, admiram a beleza das narrativas e
a habilidade do narrador em expressá-la. Um narrador é chamado de ankirak tohoki-yan,
‘aquele que conta histórias’ ou de ankira tikok-yan, ‘aquele que sabe histórias’. Narradores
talentosos, cujas narrativas nunca são questionadas, são os ankira tikokok yan, ‘aquele que
sabe muitas histórias bem’ e estes sempre contam histórias belas’ (ankira-baknim). A
maioria dos Kanamari tem uma opinião formada sobre a qualidade de uma dada narrativa,
sabendo dizer se a seqüência correta dos eventos da história foi respeitada e se o narrador
as transmitiu bem. Ao contrário do que acontece em outras sociedades das terras baixas, as
crianças e os adolescentes conhecem bem as histórias e chegaram a me narrar algumas,
embora, muitas vezes, me dissessem para perguntar aos mais velhos sobre essas histórias.
No entanto, é bastante comum um narrador ser interrompido por um adolescente que
corrige uma parte da história ou lembra-se de uma parte que o narrador excluiu. Esta
função não se limita aos mais jovens: qualquer pessoa homens e mulheres comenta ou
opina, a qualquer hora, a respeito de uma história, o que, as vezes, resultava em narrativas
com narradores múltiplos, ou em narrativas que começavam com um narrador e
terminavam com outro.
30
Foi na aldeia de Bananeira que pude presenciar a dinâmica narrativa mais
interessante. As histórias de Kodoh nunca eram questionadas: sempre ‘belas’, eram sempre
escutadas por um grande número de ouvintes. Dyumi também era um bom narrador,
embora fosse relativamente jovem. Todas as tardes, os Kanamari de Bananeira me
mandavam buscar o meu gravador, pois os dois contariam uma história. Normalmente a
aldeia inteira ou todos os presentes se preparavam para escutar, evento que podia
reunir até umas vinte pessoas. Alguns não interrompiam os seus afazeres: as mulheres
continuavam cozinhando, as crianças continuavam brincando, homens consertavam suas
espingardas. Mas todos ouviam as histórias e, quando eu achava que ninguém prestava mais
a atenção, surgia um comentário do outro lado da casa. Assim, a narrativa envolvia a todos,
mas não a despeito de outras atividades.
Kodoh normalmente decretava qual história seria contada. A maioria das histórias,
porém, era contada na casa da Dyumi, a maior da aldeia e onde todos se reuniam após o
trabalho. Dyumi oferecia mais de que comentários pontuais, e às vezes assumia uma parte
da narrativa. Nestes momentos, Kodoh ficava quieto, apenas sussurrando seu aval com um
‘hum hum’ ou ‘ka’. Dyumi começava timidamente e Kodoh o incentivava dizendo: ka
Dyumi, man tyo”, que significa algo como “vá Dyumi”, permitindo assim que Dyumi
assumisse a narrativa. Quando Kodoh notava que Dyumi estava com dificuldades, ele
retomava a narrativa do ponto onde o outro a deixara. As vezes Dyumi levava a narrativa
até o final, chegando até a corrigir o que Kodoh dizia. Este tipo de time-sharing narrativo era
exclusivo da dinâmica entre os dois e diferia dos comentários e perguntas avançados por
qualquer um.
As histórias contadas nestes contextos eram, muitas vezes, seguidas de opiniões do
tipo: “existem muitas histórias para contar, nunca poderíamos contar todas”; “é importante
que você aprenda, Luiz, porque hoje as pessoas estão esquecendo” ou “os mais novos não
sabem as histórias, mas nós sabemos”. Kodoh era a autoridadexima, mas Dyumi estava
aprendendo com ele e é claro que esta partilha de narrativas entre os dois era uma maneira
de estabelecer Dyumi como sendo “aquele que sabe muitas histórias bem”. Kodoh não
deixou dúvidas quanto a isso, me dizendo que, quando ele morresse, seria Dyumi quem iria
‘tomar conta
15
das histórias. Dyumi também me pediu que fizesse cópias das gravações
para ele estudar. Suspeito que era esta condição que estava sendo expressa nos comentários
que seguiam as narrativas, como os que transcrevi acima. Kodoh e Dyumi estavam dizendo
para os outros Kanamari que era importante que eles aprendessem bem as histórias , para
15
Esta expressão é usada muitas vezes pelos Kanamari, e sempre em português.
31
que, no futuro, houvesse outras pessoas a começar pelo Dyumi para ‘tomar conta’ das
histórias.
A minha presença alterou esta dinâmica ou, ao menos, fez ‘contar ao Luiz nossas
histórias’ um contexto enunciativo para as narrativas, pois assim que os Kanamari
perceberam que eu tinha interesse em gravá-las começaram a narrar histórias diariamente.
Alguns aachavam importante que eu gravasse todas as histórias
16
, as vezes conversando
sobre quais iriam me contar da próxima vez. Eu ouvi todo tipo de narrativa nestas
condições. Aquelas que aconteceram muito tempo atrás’ eram as mais comuns, mas foi
também nestas situações que ouvi as versões mais detalhadas da histórias de Sabá, assim
como uma série de narrativas sobre eventos que ocorreram com os avós do narrador, ou
com ancestrais nomeados com os quais eles podiam traçar laços genealógicos. As únicas
narrativas que tive que obter através de uma solicitação direta foram aquelas que versavam
sobre biografias pessoais. Estas narrativas os Kanamari nunca contavam com tanto
entusiasmo
17
.
Considero importante explicitar este fato, porque não tenho como ter certeza de
que, antes da minha estadia com os Kanamari, certas histórias eram contadas do mesmo
modo que as gravei. Isto não é simplesmente um corolário do fato de que narrativas
sempre mudam “...since we are dealing with a shifting reality, perpetually exposed to the
attacks of a past that destroys it and of a future that changes it” (Lévi-Strauss 1983, 3).
Trata-se, em vez disso, de uma questão sobre a gênese de um tipo de conhecimento em
forma de narrativa e história (ankira). Esta questão é particularmente válida para a ‘história
de Sabá’. Parece-me claro que esta história foi repetida muitas vezes porque os Kanamari
me viam como uma ‘pessoa de Sabá’, um ‘Funai’, perguntando-me se eu sabia onde e como
Sabá estava. Os contornos da história são conhecidos por quase todos, em parte por se
tratar de acontecimentos bastante recentes. Mas suspeito que os Kanamari nunca tiveram a
necessidade de ‘narrar’ (tohoki) esta história para eles mesmos e, por isso, é possível que a
origem desta história se deva à minha presença. Para esclarecer esse ponto, vou agora situar
a história de Sabá em relação ao corpus de mitos e histórias Kanamari.
O Conceito de ‘Tempos’
16
Apesar de ninguém ter dito conhecer ‘todas as histórias’.
17
Suspeito que tive culpa nessa falta de entusiasmo. Sempre considerei as histórias biográficas como
oportunidades para mapear aldeias antigas e as migrações do Juruá para o Itaquaí, assim como para
estabelecer a presença da população branca nestes rios. As gravações são, portanto, regularmente
interrompidas pelas minhas perguntas, insistindo em detalhes geográficos que detraem da narrativa. Mesmo
os narradores mais carismáticos perdiam seus ímpetus nestas condições.
32
Os Kanamari do Itaquaí dividem sua história em pelo menos três ‘tempos’ ou ‘eras’.
Estes tempos são, em ordem cronológica: o ‘Tempo de Tamakori’, o ‘Tempo da Borracha’
e o ‘Tempo da Funai’. Normalmente, os Kanamari referem-se a estes tempos em
português, mesmo quando estão falando em Kanamari. Assim, era comum que, antes de
me contar uma história, o narrador a situasse nesta armadura dizendo, por exemplo, que a
história se sucedeu ‘quando era o Tempo de Tamakori’ (Tempo de Tamakori toninim anim) e
assim por diante. Existe, ainda, um quarto tipo de histórias que não são estritamente
situadas num tempo, apesar de haver um consenso de que elas teriam ocorrido antes do
Tempo de Tamakori. Estas são as ‘Histórias do Céu Antigo’ (Kodoh Kidak nawa ankira), que
são atemporais mesmo quando narram a criação do mundo. Os Kanamari o postulam
um ‘Tempo do Céu Velho’ que seja equivalente aos outros. Sempre que me referia a estas
histórias usando esta expressão os Kanamari sabiam do que eu estava falando e não me
corrigiam, mas, eles mesmos, nunca usavam esta expressão. ‘Histórias do Céu Velho’ não
são contidas na noção de ‘tempos’ e parecem, em vez disso, narrar como surgiu um mundo
que foi dividido em tempos .
Cada um dos ‘tempos’ é inaugurado por uma figura paradigmática que sempre
representa uma síntese dos tipos de relações que cada tempo vai permitir estabelecer, como
se as interações dos Kanamari com cada uma destas figuras se prolongasse após sua
ausência, desembocando na socialidade que os sucede. Estas figuras são respectivamente:
Tamakori, o herói criador; Jarado, o primeiro branco que eles viram e Sabá, o funcionário
da Funai que eles conheceram em 1972. A importância destes personagens para as formas
sociais que se sucederam a sua presença é tal que, quando os Kanamari se referem a cada
‘tempo’ em sua língua, o fazem por referência a eles. O ‘Tempo da Borracha’, por exemplo,
é Jarado waok-dyi nim anim (‘quando Jarado chegou’) e daí por diante. Todos estes
personagens passaram algum tempo entre os Kanamari e partiram para nunca mais serem
vistos, mas eles ainda assombram as suas imaginações como paradigmas de virtualidades
sociais, como lembranças das formas que sua sociedade pode assumir na interação com
outros.
As histórias são narradas como rupturas, com cada personagem rasgando a fábrica
social que o precedeu. Existe, assim, uma ‘história’ (ankira) que explica a origem de cada
tempo e que fala das atividades de cada personagem durante sua estadia com os Kanamari..
Os detalhes destas histórias variam entre si, assim com varia a forma social que cada uma
expressa. Mas todas as histórias têm uma estrutura parecida, que envolve uma série de
33
viagens ao longo do leito de um rio e a introdução de novas categorias pela nominação.
Cada personagem interage com os Kanamari e com o mundo de diferentes maneiras e é a
natureza destas interações que prefigura a maneira como os Kanamari vão interagir entre si
e com o mundo ao seu redor. Os Kanamari podem, portanto, narrar a sua história como
uma série de rupturas entre formas sociais que se sucedem, expressas na chegada de cada
personagem, mas eles sabem que isso é um artifício do discurso. Cada forma social
permanece como um modelo ou um plano para os caminhos que eles podem seguir, e cada
uma aponta para uma direção pela qual os Kanamari podem relacionar-se entre si.
A divisão da história em ‘tempos’ é comum na Amazônia ocidental
18
. Os Piro do
Baixo Urubamba, por exemplo, dividem a sua história em uma série de tiempos que se
seguem cronologicamente:
“The first is the tiempo de los ancianos, ‘Time of the Ancient People’, which is the beginning of
native historical narration. The ancianos, ‘ancient people’ are those people, ancestral to the
present native population of the Bajo Urubamba, who lived before the arrival of white people.
The ‘Time of the Ancient People’ is succeeded by the ‘Time of Rubber’ (tiempo de caucho), when
the ancient people were enslaved by caucheros, the ‘rubber bosses’. This was followed by the
‘Time of the Hacienda(tiempo de la hacienda), when a succeeding generation lived as slaves of
bosses on the haciendas. This ‘time’ ended when native people ‘se han liberado de la esclavitud’,
liberated themselves from slavery. This led to the present period ‘these times’ (estes tiempos)”
(Gow 1991, 62).
Estes tiempos também são inaugurados por narrativas que contam sobre as relações
entre os povos nativos e o outros povos. Os anciões viviam divididos em grupos neru, cada
um com um nome diferente, como os koschichineru(‘Povo do Pássaro Pequeno’). Todos
falavam piro e não casavam-se entre si, mas somente dentro de seu próprio grupo. As
relações entre os grupos eram tensas, eles ‘lutavam entre si e se odiavam’ (Gow 1991, 63).
O ‘Tempo dos Anciões’ acabou com a chegada dos patrões da borracha, que escravizaram
os Piro por causa de seu [dos Piro] desejo pelas mercadorias” (idem). Por isso, este
período não era, ao menos inicialmente, movido pela violência: “native people do not
consider this mass enslavement of the ancient people to have been the result of capture in
warfare, but rather to have been the result of the tremendous inequality in the exchange
relations set up between them” (idém, 64-5). O ‘Tempo da Borracha’ cedeu lugar para o
‘Tempo das Haciendas’, no qual a figura de Vargas, o gran patrón de los Piro, também
conhecido como su curaca (‘seu chefe’), foi crucial.
18
Veja Bonilla (2006) para um exemplo parecido entre os Paumari, falantes de uma língua Arawá.
34
A história dos Piro narra um processo progressivo de ‘civilização’. Os antigos Piro
viviam em um mundo que era “...almost asocial, with isolated groups of people living in the
forest dedicated to drug-taking and fighting” (Gow 1991, 65). O mundo criado pelos
patrões da borracha, no entanto, permitiu a ‘expansão e a troca’: “the rubber bosses, as
civilized people from down-river and from ‘outside’, enslaved the ancient people and
initiated the exchange relations between these ‘forest peoples’ and the outside” (idém).
Posteriormente, quando Vargas escravizou os Piro, ele os agrupou em sua hacienda, onde os
Piro começaram a trabalhar para ele. Ele organizou suas vidas e atuou como o elo principal
entre eles e as cidades à jusante, de onde provinham bens valiosos (idem, 67). Os Piro
deixaram as haciendas após a morte de Vargas, em 1940 e viveram, durante um período, em
missões. Depois, estabeleceram suas próprias comunidades, onde não mais vivem com
estrangeiros poderosos, mas uns com os outros, em relação a esses estrangeiros. Agora,
vivem em ‘estes tempos’. Para os Piro, estes desdobramentos da história se manifestam
como a fabricação do parentesco, a partir do qual eles se constituem como ‘pessoas
misturadas’.
Esta revisão da etnografia piro justifica-se pela semelhança entre o modo pelo qual
eles e os Kanamari conceitualizam suas histórias. Para os Kanamari, o ‘Tempo de
Tamakori’ também se caracteriza pela existência de ‘grupos’ que vivem em áreas
geograficamente circunscritas, alguns dos quais mantêm relações hostis com os outros. A
chegada de Jarado, o primeiro branco, também é a chegada de um poderoso patrão da
borracha, vindo da cidade de Manaus, e o ‘Tempo da Borracha’ que o segue é caracterizado
por períodos em que os Kanamari trabalharam juntos. Nesse tempo, iniciaram-se os inter-
casamentos entre os sub-grupos e o acesso à mercadoria ocidental. O período dos patrões
termina com a chegada de Sabá e da Funai, considerados chefes dos Kanamari, que
instauram o processo pelo qual a mistura anterior pôde ser organizada, dando origem às
aldeias que não dependem tanto dos brancos e re-introduzindo a distância entre os núcleos
de aldeias associados aos sub-grupos.
No entanto, também diferenças importantes entre as histórias dos dois povos.
Os Kanamari não se lembram do ‘Tempo de Tamakori’ como sendo uma época em que as
pessoas eram ignorantes e brigavam constantemente, mas sim como um tempo em que as
pessoas podiam viver com seus parentes, fixadas a uma área, interagindo com outros
grupos de parentes. Estas interações não eram sempre guerreiras e muitas eram
caracterizadas como relações mais ou menos pacíficas indexadas pelos encontros rituais
conhecidos como Hori. O ‘Tempo da Borracha’, ao contrário, é visto com ambigüidade.
35
Enquanto foi possível aos Kanamari manter uma certa distância dos patrões, a presença
dos brancos acabou por fortalecer o modo de vida do ‘Tempo de Tamakori’, dando-lhes
acesso às mercadorias ocidentais, cuja distribuição acabou por estruturar as relações
internas ao sub-grupo. Posteriormente, quando a presença dos brancos se intensificou, as
formas sociais Kanamari começaram a mudar. Enquanto os chefes Kanamari ainda
existiam, no entanto, era possível manter alguma semelhança como a vida no Tempo de
Tamakori. A morte de alguns chefes, porém, resultou num período de fluxo, mobilidade e
violência que se revelou intolerável aos Kanamari. A chegada de Sabá, finalmente, freou
este processo, permitindo-lhes viver novamente sob um chefe, re-introduzindo as
diferenças entre os sub-grupos que vigoravam no Tempo de Tamakori e incorporando as
mudanças a que a história lhes tinha submetido.
A diferença entre os Kanamari e os Piro é de tal ordem que, enquanto os primeiros
avaliam positivamente o tempo anterior à chegada dos brancos, os últimos valorizam o
parentesco, cuja criação foi possibilitada pela história. De um modo mais abrangente, pode-
se dizer que uma razão principal para estas diferentes avaliações da história: a história
Kanamari traça o avesso do movimento narrado pelo mito movimento este que os
permitiu viver no Tempo de Tamakori. Este Tempo inaugural surge como o cessar de uma
série de mitos que narram como o mundo e a sociedade vieram a existir. Tamakori extrai
sua ordem de um mundo que existia em transformação perpétua, jorrando de certos
Jaguares míticos que existiam nos tempos primordiais. Ele estabelece, assim, um mundo
perfeitamente discreto que emana de um contínuo perigoso. O processo da história é,
portanto, o processo de re-instaurar o caos mítico, misturando novamente aquilo que
deveria permanecer separado. O que a chegada de Sabá permitiu foi a recuperação de
algumas das diferenças que Tamakori instaurara, mas, agora, em nova forma.
É possível que, ao contrário dos Piro, os Kanamari ainda o tenham começado a
viver em ‘estes tempos’. Eles permanecem, ainda, no Tempo da Funai, tentando recriar seu
mundo tendo o Tempo de Tamakori como modelo. As narrativas Kanamari que nós
vamos seguir exprimem esta tensão contida no movimento do contínuo ao discreto e vice-
versa. O fato destas virtualidades estarem expressas na narrativa de uma história não deve
obscurecer a sua contemporaneidade. Os mesmos movimentos narrados pela história em
uma macro-escala, são replicados, em níveis menos englobantes, no ciclo anual e ao longo
da vida. A história levou os Kanamari de um contexto onde eles, segundo dizem, viviam
com parentes em aldeias contidas por chefes que, por sua vez, eram contidas em bacias
hidrográficas, a um contexto onde as fronteiras entre estes níveis se confundem e onde eles
36
perderam, literalmente, seu norte. Mas os Kanamari estão cientes disso e se esforçam em
atuar contra este processo (ou, então, lutam contra este processo), re-introduzindo o
modelo escalar que a história lhes tirara. Assim, o movimento ao qual a história lhes
submeteu é resistido no nível local, nos pequenos movimentos sazonais e à medida que as
pessoas nascem, crescem e morrem. O problema que os Kanamari colocam ao narrar a sua
história é o mesmo que lhes atormenta a todo momento: como viver com parentes num
mundo que se encontra misturado?
A Tese
A tese está dividida em três partes. A primeira parte, chamada ‘Corpos Históricos’,
narra o movimento da continuidade estabelecida por Tamakori à descontinuidade do
Tempo da Borracha, terminando com a síntese estabelecida no Tempo da Funai. O
capítulo 1, chamado de ‘Mudanças de Escala’ começa definindo as condições da vida no
Tempo de Tamakori e a forma social que vou chamar de ‘o modelo endogâmico do sub-
grupo’. Em seguida, narra a chegada de Jarado, o primeiro branco que os Kanamari
conheceram, e o começo do ‘Tempo da Borracha’. Este é o título do segundo capítulo, no
qual mapeio as particularidades deste período, caracterizado pela migração dos Kanamari
que viviam nos afluentes da margem esquerda do dio Juruá para o Itaquaí, e o período
subseqüente de trabalho para os patrões brancos. O capítulo é concluído com a história da
chegada de Sabá e uma comparação entre ele e Jarado. O terceiro capítulo descreve o
‘Tempo da Funai’, explicitando a tensão entre o desejo de recriar o ‘modelo endogâmico do
sub-grupo’ e a assimilação do processo histórico que desfez as formas sociais anteriores.
A segunda parte chama-se ‘Corpos Míticos’ e descreve o movimento inverso do
que foi descrito na primeira parte, mostrando, assim, como surgiu o modelo endogâmico
do sub-grupo. O capítulo quatro começa com a narração dos mitos dos Jaguares, cujo fim
estabelece as precondições de vida com parentes em bacias hidrográficas. Ele termina com
a história da ‘Queda do Céu Velho’, um evento que deu ao mundo muito de sua forma
atual. O movimento se completa com o mito da Viagem, no qual Tamakori e seu irmão,
Kirak, extraem o mundo de sua multiplicidade subjacente. Este será o tema do quinto
capítulo, chamado de ‘o Tempo de Tamakori’.
Por fim, a terceira parte, chamada de Corpos Vivos’, analisa a mesma tensão entre
fluxo e estabilidade sob a ótica da pessoa. O capítulo seis descreve como os humanos são
criados contra um pano de fundo de mobilidade intensa, um processo através do qual a
37
forma é imbuída em almas Jaguares, criando assim, dentro do possível, indivíduos estáveis.
O capítulo sete fala, então, da perecibilidade destas formas, que recuperam a mobilidade
com a morte e é concluído com uma consideração acerca do destino pós-mortem das almas
e dos corpos, o que novamente nos leva a considerar a relação entre estabilidade e fluxo.
Como já disse, muito do que se segue baseia-se na análise de certas histórias chaves.
Estes histórias são apresentadas ao longo da tese de duas maneiras. Em alguns casos, elas
são inseridas ao longo do texto, transcritas e traduzidas a partir de gravações feitas por mim
em campo, e são então escritas em fonte menor, para se destacarem do resto do texto. Em
outros, preferi incluir uma versão composta da história, baseada em conversas que mantive
com vários Kanamari, que são assim apresentadas na fonte padrão, com exceção de
citações diretas de alguns informantes. Estas últimas histórias são, sem exceção, aquelas
cujas versões têm um alto grau de redundância, como as histórias de Jarado e Sabá. Os
detalhes das histórias se mantinham os mesmos, independentes dos narradores, e as
diferenças dizem mais respeito à localização do narrador nos eventos, como onde ele estava
quando Sabá chegou, ou onde estavam seus ancestrais quando Jarado chegou. Meu método
pode ser assim compreendido, se não justificado, pela minha vontade de apresentar versões
representativas de histórias que, como insinuei, podem ter surgido no contexto da minha
presença ou, ao menos, podem ter sido formuladas de modo a reiterar os mesmos detalhes
devido à necessidade de comunicá-los a mim.
38
Parte I:
Corpos Históricos
39
1
Mudanças de Escala
A história dos Kanamari começa quando o herói criador Tamakori desce o Juruá,
para além de Manaus, para nunca mais ser visto. Ele havia feito todas as pessoas do mundo
durante uma série de viagens pelo rio, dispersando-as ao longo deste de tal modo que todos
tivessem a ‘sua terra’ (mawa ityonim). Os Kanamari foram deixados no curso médio do rio,
cada subgrupo em um tributário diferente, interagindo uns com os outros de diversas
formas.
O mundo, tal qual ele é, não existiria não tivesse Tamakori empreendido essas
viagens pelo Juruá. Antes destas, tudo se encontrava em um perpétuo estado de
transformação, as formas permaneciam não fixadas e a ambivalência reinava. O criador
extraiu unidades distintas dessa multiplicidade inerente, criando tanto a fisicalidade do
mundo quanto as formas sociais que o governariam. A história após sua ausência foi, por
um longo tempo, estática, ou senão marcada por um tipo de temporalidade em que nada
demais parecia acontecer. Cada subgrupo permaneceu em seu rio, as relações entre eles
davam-se segundo um padrão fixo, e, como dizem os Kanamari, todos sabiam quem era
parente, aliado e inimigo. Essa configuração, o ‘Tempo de Tamakori’, começou a se
modificar durante a segunda metade do século XIX, quando os brancos chegaram e as
formas estáveis que Tamakori havia estabelecido começaram a ruir e a se dissolver. O que
havia sido feito estável começou a oscilar, tornando-se errático. A história Kanamari,
tanto tempo ‘fria’, estava prestes a atingir um ponto de ebulição.
Narrarei o primeiro ato dessa história, a mudança do Tempo de Tamakori para o
Tempo da Borracha e o impacto que a chegada dos brancos exerceu sobre estruturas
estáveis. As formas sociais estabelecidas em relação ao exterior e as armadilhas temporais
existentes entre estabilidade e fluxo nos situam em um terreno etnográfico familiar. A
antropologia das Terras Baixas da América do Sul e, mais especificamente, os ameríndios
descritos pela disciplina, têm revelado obsessão por esses temas, e muito já foi escrito sobre
o papel do exterior na definição da interioridade (e.g. Overing 1983-4; Albert 1985;
Viveiros de Castro 1993), sobre a organização da socialidade dentro e entre essas esferas ao
longo do tempo, (Rivière 1984; Santos-Granero 2000; Fausto 2001), sobre o impacto do
mito e da história sobre essas formas de relação (Turner 1988; Vilaça 2006; Taylor no
prelo) e sobre a relação entre ‘fixideze ‘fluidez’ no que diz respeito às concepções de
40
pessoa (Crocker 1985; Lagrou 1998), para mencionar apenas algumas áreas de interesse.
Até certo ponto, muitas dessas questões refletem a descrição de Lévi-Strauss (1983; 1995)
da(s) mudança(s) do contínuo para o descontínuo no mito e do papel deste na
interpretação da chegada dos brancos no continente americano. Minha descrição da
história Kanamari situa-se no âmbito dessas questões, mas gostaria de começar, nestes dois
primeiros capítulos, revertendo o movimento descrito por Lévi-Strauss. Mostrarei como a
história Kanamari tal qual eles a concebem se move da descontinuidade inaugurada por
Tamakori para a continuidade decorrente de Jarado e daqueles que o seguiram, passando, em
seguida, à síntese que os Kanamari estão tentando estabelecer hoje. Isso me permitirá situar
a discussão subseqüente na Parte II, em que investigaremos como o modelo de sociedade
criado por Tamakori veio a existir como um desenvolvimento particular de virtualidades
contidas em uma forma-Jaguar mítica e atemporal.
O Modelo de Endogamia do Subgrupo
No que se segue, descreverei o que doravante será denominado ‘modelo de
endogamia do subgrupo’. Trata-se de uma referência ao modo como os Kanamari dizem
ter vidido; o modo como Tamakori os deixou antes de viajar rio abaixo, para nunca mais
ser visto. Não ouvi nenhuma opinião divergente quanto às linhas gerais desse modelo.
Todos os Kanamari disseram-me que eles, de fato, viveram desse modo durante um tempo
muito prolongado, e que foi apenas na ocasião da chegada dos brancos que os contornos
desse modelo começaram a ser redefinidos. O mesmo relato foi feito a todos os etnógrafos
que trabalharam com os Kanamari, e todos eles tentaram descrever as mudanças que
marcaram a sua organização social. Como vimos na introdução, Tastevin (n.d.1, 109)
acreditou que ‘les clans katukina sont en pleine désorganisation’, sugerindo que, outrora,
eles teriam vivido deste modo. Reesink (1993, 45-8) parece concordar com a segunda
proposição, mas argumenta que atualmente os Kanamari preferem enfatizar a endogamia
da aldeia em vez daquela do subgrupo. Carvalho (2002, 87-106) e Neves (1996, 204)
também defendem a mesma posição. Labiak (1997, 31-9) é a única voz distoante, sugerindo
que os casamentos entre subgrupos sempre foram possíveis. Sua opinião é baseada na
análise de um mito em que uma ‘moça’ mítica casa-se com o Urubu Rei. No entanto, o fato
do casamento terminar tragicamente parece contradizer o argumento da autora. Também
não me parece evidente que Urubus Rei e ‘moças’ míticos equivalem aos subgrupos (ver
capítulo quatro). De qualquer modo, mesmo que os casamentos entre os subgrupos fossem
41
possíveis, isso o muda o fato dos próprios dados de Labiak mostrarem que o discurso
dos Kanamari sugere o contrário.
Duvido que os Kanamari tenham algum dia vivido exatamente como dizem tê-lo
feito, e todas as evidências históricas disponíveis apontam nesta direção. Trata-se de uma
questão interessante, mas não é esta a questão que eu coloco aqui. De certa forma, esta tese
tangencia essa questão e, se é que oferece uma resposta a ela, o faz apenas ao buscar
respostas para outra pergunta, igualmente importante: por quê os Kanamari dizem que
viviam desse modo?
Os subgrupos
Os Kanamari, como vimos na introdução, são todos denominados tukuna, mas são
divididos em subgrupos que recebem o nome de um animal seguido do sufixo –dyapa. Os
Katukina do rio Biá, para os quais subgrupos parecem ser bem menos importantes do que
são para os Kanamari, reconhecem, no seu passado, um cipó-titica-dyapa (Kori’om-dyapa) e
uma Árvore-dyapa (Omam-dyapa)
19
, mas todos os subgrupos Kanamari recebem um prefixo
que é o nome de um animal. Estes animais podem ser mamíferos que os Kanamari caçam
(p. ex. a queixada, o caititu, o macaco barrigudo, o tatu), aqueles que eles não comem (o
jaguar, o macaco parauacu), além de pássaros (o mutum, o japó), peixes e anfíbios. A
princípio, não limite para o número e variedade de subgrupos existentes. Ao perguntar
aos Kanamari sobre –dyapa hipotéticos dos quais eu nunca ouvira falar, compostos pelo
nome de qualquer animal acompanhado pelo sufixo –dyapa, eles respondiam que eles
próprios não conheciam tal povo, mas que deveria existir, provavelmente em alguma terra
distante como os rios Purus ou Pauini
20
.
Quando usado Para se referir a um subgrupo falante de língua Katukina, o termo
dyapa precisa ser prefixado pelo nome de um animal. Dyapa’, sem prefixo e não-marcado,
não se refere aos subgrupos Kanamari, mas aos grupos falantes de línguas Pano, a saber, os
Kaxinawá e os Marubo. Esses grupos são inimigos dos Kanamari, e são considerados
ferozes e violentos. Eles São, ou foram, vizinhos dos Kanamari. Os Kaxinawá vivem no
alto Juruá e os Marubo nos rios Ituí e Curuçá, a oeste do Itaquaí. Embora Dyapa possa se
referir a todos os grupos falantes de Pano, os Marubo e os Kaxinawá emergem como
19
Agradeço a Jeremy Deturche por esta informação.
20
Os Kanamari vêem os subgrupos –madiha Kulina como idênticos aos seus, e é também possível que,
quando indagados se um –dyapa específico existe, eles digam que apenas entre os Kulina. Foi este o caso
quando perguntei sobre a existência de um ‘Cachorro-dyapaou ‘Galinha-dyapa’, que, segundo eles existem
entre os Kulina do Purus.
42
exemplos prototípicos da qualidade Dyapa e, por essa razão, podem ser chamados Dyapa
tam’. Vimos na introdução que o qualificador tam denota um tipo de representatividade, ou
prototipicalidade. A expressão Dyapa tamé quase redundante quando usada para descrever
os Marubo ou os Kaxinawá, e apenas emerge no contexto de explicação ao antropólogo .
Outros grupos Pano podem ser denominados Dyapa, mas em outros momentos recebem
um nome composto, como aqueles dos subgrupos Kanamari: ‘Paca-dyapa’ (os Matis),
‘Urubu Rei-dyapa(os Kulina Pano) e ‘Jaguar-dyapa(os Korubo)
21
. No entanto, os grupos
Katukina nunca podem ser denominados apenas Dyapa; precisam ser associados a pelo
menos um subgrupo composto do nome de um animal seguido de –dyapa em sua forma de
sufixo.
Os subgrupos são descritos unanimimente como tendo sido endogâmicos e
circunscritos geograficamente. Foi apenas com a chegada dos brancos que povos de –dyapa
diferentes começaram a co-residir e, aos poucos, a se casar entre si. Os subgrupos eram
contidos e demarcados por bacias hidrográficas, das quais, diz-se, teriam sido os ‘donos’.
Todas essas bacias hidrográficas eram tributárias do rio Juruá e nenhum Kanamari viveu no
Juruá antes da chegada dos brancos
22
. A associação desses tributários com os subgrupos
dyapa é uma das características definidoras tanto dos rios quanto dos subgrupos. Diz-se que
os Mutum-dyapa, por exemplo, viviam exclusivamente no rio Komaronhu, tributário da
margem esquerda do Juruá, e seus afluentes. Desse modo, as expressões Komaronhu’ e
Bin-dyapa nawa ityonim(‘terra do Mutum-dyapa’) são modos sinônimos de se referir à área
drenada pelo rio; bem como as expressões Mutum-dyapae Komaronhu-warah’, ‘aqueles do
Komaronhu’ ou ‘corpo-Komaronhu’ uma expressão que logo será explicada – o são para
descrever o povo que residia no Komaronhu.
O subgrupo era contido pela bacia hidrográfica e, por sua vez, a definia, de modo
que as duas coisas vieram significar uma
23
. Dentro de cada bacia hidrográfica havia um
certo número de aldeias, nem todas situadas no curso principal do tributário, mas, ao
contrário, nos igarapés que desembocavam nele. O Mapa 2 é uma reconstrução de como
21
Os Korubo compartilham essa última designação com os Katukina do rio Biá.
22
É provável que dois subgrupos não residissem na bacia hidrográfica do rio Juruá. O Lontra-dyapa viveu no
rio Jutaí muito antes da chegada dos brancos, e é provável que um grupo de Om-dyapa (Om é uma espécie de
sapo não identificado) tenha vivido no rio Pedra, tributário do Itaquaí.
23
A associação entre certos rios e subgrupos é antiga e remonta pelo menos a cada de 1910. uma
coerência notável, por exemplo, nas relações entre rio e subgrupo observadas por Tastevin e naquelas sobre
as quais ouvi falar. Isso é o caso particular, embora o exclusivo, dos quarto subgrupos predominantes no
rio Itaquaí, o Mutum-, Catitu-, Macaco de Cheiro- e Japó-dyapa, todos são ditos vir dos rios Komaronhu,
Toriwa, Mucambi e Mawetek, respectivamente. O fato de os Kanamari com os quais vivi terem migrado para
longe desses rios em hipótese alguma erradica essa associação. Hoje, não Kanamari no rio Mucambi e os
outros três rios são ditos ‘misturados’, como é o Itaquaí, mas ainda assim essas classificações permanecem
pertinentes.
43
dizem ter sido o rio Komaronhu, do Mutum-dyapa, na época em que o modelo de subgrupo
vigorava. O mapa deve servir como exemplo da constituição interna de todos os outros
tributários que irei discutir, e o utilizarei para ilustrar características que o, em geral,
compartilhadas por todos os subgrupos.
44
45
Toda a bacia hidrográfica Komaronhu ‘pertencia’ ao Mutum-dyapa, mas havia uma
distância mínima estabelecida entre suas aldeias. Isso não impedia que todos os habitantes
do rio se considerassem ‘parentes’, -wihnim, mas estabelecia certas diferenças de graus de
parentesco dentro do subgrupo. As pessoas que residiam na mesma aldeia eram ditas
‘parentes verdadeiros’ (-wihnim tam), enquanto pessoas de outras aldeias no mesmo rio eram
denominadas ‘parentes distantes’ (-wihnim parara). Os Casamentos deveriam ser
endogâmicos no que se referia ao subgrupo, mas eram preferencialmente e, com
freqüência, necessariamente, exogâmicos no que se referia às aldeias que compunham o
subgrupo. A maioria das aldeias era composta de pequenos grupos de parentes próximos,
em alguns casos, provavelmente não mais do que uma família nuclear. O mapa é uma
reconstrução a partir das memórias de um homem Mutum-dyapa que afirmou ter se
baseado no que os seus avós haviam lhe dito. Portanto, este mapa não pode ser
considerado sem reservas, pois se trata da elaboração secundária de uma narrativa e não de
um evento baseado em uma experiência de primeira mão. Havia algumas contradições no
que este homem dizia e é possível que existisse mais de uma aldeia em cada tributário e, a
mesmo, grupos de aldeias relacionadas, o que faria da bacia hidrográfica Komaronhu um
caleidoscópio de pequenas aldeias temporárias com populações flutuantes. Não como
avaliar a demografia dessas bacias hidrográficas, mas disseram-me que elas continham
menos pessoas do que a do Itaquaí contém hoje. Como esse número se aproxima de
quatrocentos, é provável, dado o tamanho desses tributários, que cada um deles tenha
contido umas 200 pessoas.
A residência pós-marital parece ter sido prescritivamente uxorilocal no passado,
exceto, talvez, no caso dos casamentos dos filhos dos chefes. Isso teria feito as aldeias
mudarem de tamanho e de composição, e os casais se afastariam da casa de seus pais após
terem filhos. Logo veremos como certas mudanças sazonais de pequena escala entre as
aldeias também podem ter provocado o re-arranjo da constituição de cada uma delas. Os
Kanamari dizem que dentro da bacia hidrográfica era seguro para qualquer um mudar-se e
estabelecer residência onde quisesse, mas na prática tal mobilidade pode ter sido limitada
pelo desejo de viver perto de parentes próximos, com chefes nos quais se confiava e longe
das aldeias de parentes distantes que podiam, o obstante, ser visitados em qualquer
ocasião. De fato, essas visitas eram muito comuns e as pessoas sempre tinham caiçuma de
mandioca
24
para oferecer aos convidados.
24
Os Kanamari plantam exclusivamente a mandioca doce (tawa).
46
O que os Kanamari me enfatizaram foi que nesse passado todas as pessoas de um
dado subgrupo teriam nascido em uma área pertencente àquele subgrupo, de pais que
também ‘pertenceriam’ ao mesmo subgrupo, tornando a questão da filiação por subgrupo
mutualmente redundante. Não havia ambigüidade na identificação de uma pessoa e seu
dyapa, e quaisquer visitas de uma bacia hidrográfica para outra tinham que ser concluídas
com aqueles que visitavam um subgrupo estrangeiro retornando para a área de onde
vieram. Não era possível estabelecer residência entre pessoas de um subgrupo distinto,
tampouco convidá-los para viver junto. Diz-se que as pessoas não optavam por realizar tais
mudanças drásticas porque queriam viver junto com seus parentes, pelos quais tinham
‘afeto/afeição/carinho’ (-wu).
Assim, se as bacias hidrográficas definiam o domínio dos parentes próximos e
distantes, os subgrupos que viviam em bacias hidrográficas distintas eram ‘não-parentes’ (-
wihnim tu). Isso não significa, em hipótese alguma, uma não-relação, mas, ao contrário,
encobre uma gama de modalidades distintas de interação. O termo oatukuna, ‘outra pessoa’,
refere-se a pessoas de outro –dyapa, e pode ser traduzido como ‘estrangeiro’. Denota
aquelas pessoas que raramente ou quase nunca são vistas, situadas nos tributários do Juruá,
distantes do local onde se vive. Mas outros ‘não-parentes’ que vivem em tributários
vizinhos e que são vistos em ocasiões mais freqüentes, embora rituais. Essas pessoas são
tawari, um termo que os Kanamari traduzem como ‘amigo’ ou ‘companheiro’. –Tawari são
pessoas vistas durante os rituais Hori que reúnem os subgrupos e as bacias hidrográficas,
com os quais se realizam trocas e nos quais se pode confiar, porque os –tawari ‘conhecem’
(tikok) uns aos outros, e, portanto, sentem-se relativamente seguros visitando-se. Mas essa
familiaridade precisava ser moderada, pois os –tawari tinham que se tornar confiáveis sem
nunca virar parentes. Isso gerava uma ambigüidade em suas relações e na expressão dessas
relações nos rituais Hori, que serviam para unir pessoas de subgrupos diferentes e que iriam
desempenhar um papel importante no desaparecimento do modelo de endogamia do
subgrupo e na emergência de uma nova configuração. Mas antes de me voltar para isso,
deixarei mais explícito o modo como as aldeias dentro dos subgrupos eram organizadas.
O –warah
O termo –warah significa, ao mesmo tempo, ‘chefe’, ‘corpo’ e ‘dono’. Levei muito
tempo para entender isso no campo, e durante muitos meses usei a palavra –boroh para
dizer ‘corpo’, incapaz de imaginar uma situação em que ‘corpo’ e ‘chefe/dono’ pudessem
47
ser designados com o mesmo termo. Os Kanamari mostraram-se muito educados face ao
meu conhecimento fragmentário da língua deles, e toleravam com bom humor os meus
erros gramaticais, mas a palavra –boroh nos contextos em que eu a empregava não fazia
sentido, e eles se esforçavam para entender o significado das minhas perguntas. Poroya,
que me conhecia melhor, inclusive as minhas limitações, disse-me que as minhas perguntas
estavam erradas porque a palavra –boroh significa ‘cadáver’, e não ‘corpo’. Percebendo a
minha dificuldade em entender o significado da palavra –warah, ele me explicou em
português que ‘nosso corpo é nosso dono e nosso chefe’. A ordem dessa afirmação é
intercambiável, de modo que seria igualmente correto dizer, por exemplo, que ‘nosso chefe
é nosso dono e nosso corpo’
25
.
A palavra –warah precisa ser prefixada por um sujeito, de modo que uma pessoa
sempre será ‘chefe/corpo/dono’ em relação a alguma coisa, alguém ou algumas pessoas.
Este termo pode, portanto, se referir a qualquer corpo vivo, e um corpo humano é dito
tukuna-warah, ‘pessoa-corpo’. A palavra também pode ser empregada de um modo parecido
com o verbo ter’ em português, mas, nesse caso, indica-se que alguém é ‘dono’ de alguma
coisa. A afirmação ‘oba-warah anyan bo’, por exemplo, pode ser glosada como ‘ele tem
tabaco’, mas literalmente quer dizer algo como ‘ele é dono do tabaco’. Os chefes são
chamados de tyo-warah, ‘nosso corpo/dono’ por aqueles de quem eles são chefes. Mas por
que expressar todos esses laços por meio do mesmo termo?
O chefe/corpo/dono estabiliza aquilo que é potencialmente fluido, expresso em
seu prefixo; afirma-se como um em relação àquilo que é (potencialmente) muitos. O corpo (-
warah) das pessoas vivas é feito por meio de um processo demorado de imbuir estabilidade
sobre a matéria espiritual inconstante da qual a maioria dos seres vivos derivam. Os xamãs
tornam-se ‘chefe/corpo/dono’ dos seus espíritos familiares, chamados de dyohko, que, sem
os xamãs, vagam pela floresta. As mulheres são o ‘chefe/corpo/dono’ de seus animais de
estimação e, em alguns casos, de seus filhos. As aldeias, um grupo de pessoas, emergem
como uma unidade e como um grupo de parentes através de um chefe, que estabiliza
aqueles que, os Kanamari nos fazem crer, não poderiam de outra forma viver juntos.
Grande parte desta tese dedica-se a destrinchar como essas relações se estabelecem e as
suas implicações. Nesta seção, gostaria de focalizar principalmente a relação entre os chefes
e seus seguidores e, mais especificamente, como se acredita que essa relação se dava no
25
Com freqüência empregarei a palavra –warah como ‘corpo/chefe/dono’ ou alguma variação disso, mas em
alguns casos, em prol da clareza e da concisão, utilizarei apenas a acepção da palavra em português. O leitor
deverá manter em mente que ao empregar a palavra ‘corpo’, ‘dono’ ou ‘chefe’ quero dizer warah.
48
modelo de endogamia do subgrupo. Isso nos permitirá expor dois outros aspectos do
warah: sua auto-replicação escalar e sua assimetria.
Todos os adultos Kanamari têm corpos que contêm, dentro do possível, a alma
(ikonanim). Esses corpos humanos precisam existir em aldeias (ou ao menos viver juntos) e,
para que isso aconteça, os chefes (também um corpo) precisam fazer a aldeia existir. Esses
chefes são a condição sine qua non para o estabelecimento de uma aldeia, pois era por meio
deles – de sua iniciativa, sua habilidade de agregar – que as pessoas reuniam-se em um lugar
específico por um dado tempo durante o qual plantavam seus roçados e traziam comida
para seus chefes que, em troca, compartilhavam o alimento com todos os integrantes da
aldeia. Aquelas pessoas que viviam com um chefe chamavam-no de ‘nosso
chefe/corpo/dono’ e, elas próprias, passavam a ser conhecidas como ‘o povo dele’ (awa
tukuna). Os habitantes de uma aldeia podem, então, ser referidos pelo nome do chefe
seguido pelo termo –warah. Se tomarmos ‘X’ como o nome do chefe de uma aldeia, dizer
que determinadas pessoas são ‘X’-warah significa que elas são aqueles cujo ‘corpo’ é ‘X’. O
chefe é a razão pela qual essas pessoas vivem em um dado lugar. É a comida que ele re-
distribui que as mantém ali e a morte dele significa a dispersão da aldeia. Doravante o
designarei ‘chefe de aldeia’.
Cada subgrupo, composto pela totalidade das aldeias de uma bacia hidrográfica e
por seus chefes, também tinha um ‘chefe de subgrupo’. Ele também era chamado de
warah, mas, dentro de um dado subgrupo, esse termo era absoluto. Se o chefe de aldeia era
chamado de –warah apenas por aqueles que viviam com ele na mesma aldeia, o ‘chefe de
subgrupo’ era chamado de –warah indiscriminadamente por todas as pessoas que
integravam o subgrupo. Ele era possivelmente o homem mais velho da bacia hidrográfica,
relacionado a todos de modos diferentes. Reconhecia-se explicitamente que ele era a fonte
a partir da qual todas as outras pessoas do subgrupo vieram ou, pelo menos, a razão pela
qual todos queriam viver tão próximos uns dos outros. Por essa razão, ele também era
conhecido pelo termo –maita, uma palavra que os Kanamari glossam por meio da palavra
portuguesa ‘tronco’. O termo mais comumente usado para se referir aos troncos das
árvores é o próprio –warah, pois o ‘tronco’ é o ‘chefe/corpo/dono’ da árvore. Eu nunca
ouvi a palavra –maita empregada para descrever um tronco de árvore de fato, mas me foi
explicado que esse chefe era o ‘tronco do subgrupo’, com uma expressão como Kadyikiri-
dyapa n-a-maita, ‘o tronco do Macaco de Cheiro-dyapa’, por exemplo, sendo um modo
49
possível de expressar isso. O -maita era a pessoa a partir da qual cada aldeia e, a partir
destas, todas as pessoas ‘ramificaram-se’
26
.
Esse chefe residiria, idealmente, na única aldeia situada ao longo do curso médio do
tributário do Juruá, em vez de ao longo dos igarapés. Se voltarmos à disposição do Mutum-
dyapa no Mapa 2, a aldeia denominada Barreiro era aquela do –maita. Nas recordações de
Poroya, um velho do Mutum-dyapa, o –maita era um homem chamado Kaninana, nunca
visto por Poroya, pois quando ele nasceu, a endogamia de subgrupo se encontrava em
desordem. Kaninana viveu, portanto, antes dos anos 1940, mas ele não foi o último
‘tronco do Mutum-dyapa’, pois foi sucedido por Kadoxi, que viveu até meados dos anos
1950. Desconheço a relação entre esses dois. Poroya apenas insistiu que ambos eram –maita
do Mutum-dyapa, e que eram excepcionais no que se referia a manter as pessoas unidas’,
assegurar a felicidade de todos e fazer com que ninguém sofresse ou desejasse viver em
outro lugar.
O –warah, portanto, fracciona-se em chefes/corpos de subgrupos, em
chefes/corpos da aldeia e em chefes/corpos individuais. Cada uma dessas posições
escalares do –warah é indexada por um nome. Como afirma Wagner em seu estudo da
fractalidade na Melanésia, “...qualquer reconhecimento ou atribuição de um nome é sempre
a fixação de um ponto de referência dentro de uma gama potencialmente infinita de
relações, uma designação que é inerentemente relacional” (Wagner 1991, 164). Entre os
Kanamari, o nome não apenas fixa essa referência, mas ao fazê-lo também eclipsa as
relações que cada corpo contém. Se ignorarmos por ora o papel que os corpos individuais
desempenham, podemos imaginar uma situação em que a aldeia se torna um sinônimo do
chefe da aldeia e em que os subgrupos se tornam sinônimos do chefe de subgrupo. O chefe
de aldeia contém a gama de relações’ que existe na aldeia, enquanto o chefe do subgrupo
contém a gama de relações’ que existe entre os chefes das aldeias e, através deles, entre
todos os membros do subgrupo. Com isso em mente, podemos talvez presumir por que o
Mapa 2 apenas mostra uma aldeia em cada tributário, e por que parecia haver uma
contradição no discurso do informante que desenhou o mapa para mim. Ao dizer que em
26
Eu ouvi esse termo depois que o meu trabalho de campo estava bem avançado e, mesmo assim , ele
foi mencionado apenas por um homem para tentar me explicar o funcionamento dos subgrupos no passado.
Quando chequei essa informação com outros informantes, a maioria insistiu que o termo correto para todos
os chefes seria -warah. Foi apenas quando sugeri o termo –maita como alternativa para o chefe ‘mais velho’ ou
‘mais importante’ que eles concordaram que esse termo era, de fato, uma denominação possível para um dos
chefes. Como estamos lidando aqui com os modos como os Kanamari imaginam que sua sociedade
funcionava no período anterior à migração não-indígena para o Juruá – um período que ultrapassa a memória
dos vivos esse tipo de variação é esperada. A denominação -maita está hoje extinta, embora veremos que
movimentos discretos na direção de resgatá-la. Irei, contudo, empregar o termo como se este fosse usado
regularmente para designar o chefe de subgrupo, que isso facilitará a diferenciação entre instanciações
escalares de chefia.
50
cada igarapé havia uma aldeia, ele estava dizendo que em cada igarapé havia um chefe de
aldeia, cujo corpo continha as diferenças internas a cada uma delas. O que ele estava
expressando eram os chefes de aldeia e não a variabilidade dentro do corpo articulado pelo
chefe.
Em suma, esses corpos serão comunicados por meio de um nome que representa a
variabilidade que o nome contém. As pessoas que vivem sob o comando de um chefe de
aldeia compõem o corpo daquele chefe de aldeia, tanto que a expressão ‘X-warahdesigna
todas as pessoas que chamam X ‘meu chefe/corpo/dono’. Esses seriam então contidos em
um nível mais inclusivo pelo corpo do chefe de subgrupo. Quando Kaninana foi –maita do
Mutum-dyapa, as expressões ‘Mutum-dyapae ‘Kaninana-warahsignificavam a mesma coisa.
O subgrupo, então, existia em forma de muitas aldeias porque em uma bacia hidrográfica
havia um corpo que podia expressá-la no singular.
Padrões de Residência
Os Kanamari tinham, em linhas gerais, duas formas de moradia: uma de
aglomeração e outra de dispersão. Essas formas não eram, estrito senso, relacionadas à
variação sazonal, que cada estações era caracterizadas por dois tipos de movimento,
embora estes não fossem da mesma natureza. Durante a estação seca, os Kanamari se
dispersavam em busca de ovos de tracajá, limpando os roçados e realizando pequenas
expedições de pesca e aglomeravam-se para os rituais Kohana e Pidah. Durante a estação das
chuvas, eles se dispersavam em aldeias menores onde colhiam frutas da floresta e
aglomeravam-se em torno das capoeiras antigas, com freqüência abandonadas, para colher
pupunha (Bactris gasipaes). Os rituais Hori, reuniões que envolviam pessoas de dois ou mais
subgrupos, aconteciam em qualquer época do ano, embora a maioria dos meus dados
ateste a sua realização durante a estação das chuvas quando a pupunha está madura e a
bebida feita dela, tyo-koya (‘caiçuma de pupunha’), pode ser servida aos convidados.
Períodos de aglomeração centravam-se em torno das casas comunais, ou malocas,
denominadas hak nyanim (lit: ‘casa grande’), em torno das quais os Kanamari construíam o
dyaniohak. Estes últimos eram abrigos mais ou menos temporários feitos com folhas da
palmeira Jarina (Phytelephas aequatorialis) que abrigava uma única família, a saber, um casal e
seus filhos não casados. Filhas recém-casadas podiam estabelecer seu dyaniohak próximo
dos pais. Nunca vi uma maloca Kanamari, mas os mais velhos, que a viram, dizem que não
se vivia dentro delas. Tastevin, que viu algumas malocas Kanamari, e cuja descrição dos
51
padrões de moradia dos Kanamari confirmam em grande parte as recordações dos meus
informantes, diz que os Kanamari passavam a maior parte dos dias dentro da casa comunal,
retirando-se para o dyaniohak, que ele chamava de ‘cabanas de mosquito’, para a noite (1928,
131; ver n.d.1, 19-23)
27
. Também fui informado que era dentro da casa comunal que rituais
como Kohana-pa e Pidah-pa eram realizados.
Vale reproduzir por inteiro a descrição de Tastevin da maloca
28
. O texto que estou
citando é parcialmente escrito à quina e parcialmente à mão, e uma parte dele é ilegível.
Partes do texto podem parecer um pouco contraditórias, e o texto é repleto de frases que
estão riscadas, depois afirmadas novamente, depois riscadas mais uma vez, bem como
notas ao lado do texto questionando certas interpretações. Estas partes são provavelmente
o resultado da tentativa de Tastevin em entender a variabilidade das formas de moradia.
Espero que minha edição o tenha distorcido a compreensão do autor dos fenômenos
descritos.
“Ces huttes s’élèvent au milieu d’une ancienne plantation [...] Ces Indiens ont coutume de
construire leur demeure au milieu des primiers terrains qu’ils déffrichent lorsqu’ils s’établissent
dans une région nouvelle. Chaque année ils pratiquent de nouveaux abatis situés à une plus ou
moins grande distance de leur hutte. La clarière que s’étend autour du carbet a une surface
variable, suivant la force du clan, mais jamais inférieure à une hectare. Il y pousse des ananas et
des bananiers, seuls restes des anciennes cultures faites [...] pour les Indiens. De cette place
irradient dans toutes les directions plusiers chemins que l’on peut suivre parfois pendant une
demi-heure. [...]
Les huttes Katukina ont l’apparence d’un dôme repossant sur le sol et dont le sommet aurait
été un peut écrasé. A première vue leur plan peut passer pour circulaire, mas si on l’examine
avec attention on remarque qu’il est plutôt pentagonal, quioque Pa vrai dire, cette figure
géométrique, à l’exception de une seul côté, est fort peu distincte et se confond presque avec
un cercle. [...]
27
Quando os Kanamari se referem ao dyaniohak hoje, eles o chamam de “mosquiteiros dos Kanamari”. Os
mosquiteiros produzidos pelos brancos o hoje um objeto essencial para os Kanamari, particularmente para
os casais. Os Kanamari que viajam, e param em uma aldeia, geralmente dormem em qualquer canto. Se o
convidado é relativamente bem conhecido pelos donos da casa, e mesmo assim, às vezes, quando não é, ele é
bem-vindo para passar a noite, geralmente entre um grupo de pessoas os donos da casa e suas famílias,
outras pessoas que podem estar viajando com ele, outros que podem estar ali de visita, o antropólogo e
assim por diante. Os mosquiteiros fornecem um mínimo de distância entre as pessoas em tal situação.
Dyaniohak também é a designação para abrigos temporários construídos ao longo do Itaquaí, geralmente
distantes das aldeias, e esses podem ser usados por qualquer um que esteja viajando e queira parar para
descansar e passar a noite.
28
Esta e outras citações se referem a textos escritos por Tastevin para sua ordem religiosa e que permanecem
não publicadas. Irei, quando pertinente, reproduzi-las na íntegra, particularmente quando fizerem referência a
costumes e práticas que não testemunhei em campo.
52
La maison une fois terminée a une hauteur totale de 10 à 12 m. et une diamètre de 30m
environ. On y pénètre par deux portes de 1m. de hauteur sur 2m. de largeur qui se font face et
dont l’orientation est toujours est-ouest. [...]
De deux côtés de ce couloir, tout le long de ourtour s’alignent des hamacs de chaque familie.
[...] Chaque famille a sa place reservée. Le père tend sont hamac à côté de celui de la mère,
l’enfant suivant sont age est au-dessus d’eux ou après de sa mère s’il est encore trop petit.
Comme les hamacs d’une même famille sont fixés au même poteau intérior, ils irradient en
triangle [...]. Entre les hamac est allumé le feu de chaque famille.
Les huttes katukina abritent en moyenne 12 familles soit de 30 à 40 individus.
Le carbet/maloca n’est habitée que pendant le jour. On n’y dort jamais ce que s’explique par
la crainte qu’inspire le harcellement continue des moustiques. Quelques jeunes chiens sont les
seuls hôtes nocturnes de la maison. Chaque famille possède dans la fôret qui entoure l’éclairice
de la maloce, une petite cabane hermétiquement fermée à tout insecte et à laquelle nous
pouvons donner le nom de hutte-moustiquaire. La hauteur de ces abris n’est que de deux
metres”. (Tastevin n.d1, 20-3).
Tastevin provavelmente descreve a atividade em uma casa comunal durante um
período de aglomeração. Os Kanamari explicaram-me que cada bacia hidrográfica, e
conseqüentemente cada subgrupo, deve ter pelo menos uma maloca, que pertencia ao
maita. Era, portanto, situada no braço principal de um tributário pertencente a um
subgrupo. As aldeias nos igarapés deste tributário o precisam ter uma maloca, embora
pelo menos no caso do rio Mawetek dos Japó-dyapa pode ter havido duas casas comunais
no fim dos anos 1930.
Tastevin descreve algumas aldeias sem casas comunais, as quais ele denomina
‘maison de camps’, que ele define como arranjos temporários construídos pelos Kanamari
“que haviam se tornado nômades e ficavam durante um ou dois anos em cada endereço”
(1928, 131). Essas casas não tinham mais do que 4 metros de altura e duas de suas laterais
eram cobertas com folhas de palmeiras, as outras duas permanecendo abertas. Essas casas
raramente encontravam-se em um número. Tastevin observa que elas eram com
freqüência construídas em grupos de três, formando um triângulo. Uma delas era a ‘grand
maison’, a casa mais importante do grupo. Tais ‘maisons de camps’ tinham normalmente
sessenta pessoas morando nelas, mas este número podia chegar a oitenta. Os Kanamari
mais velhos com os quais falei discordaram da avaliação de Tastevin quanto ao status das
colocações, dizendo que muitas das aldeias construídas longe da casa comunal, nos
igarapés, eram assim, e que seus residentes iam até a casa comunal para visitar o –maita e
aqueles que moravam em sua aldeia durante o período de aglomeração, particularmente
durante a época em que a pupunha estava madura.
53
Tastevin também comenta a existência do que ele chama de ‘petites maison de
voyage’ que eram construídas em breves períodos quando os Kanamari iam caçar, pescar
ou fazer caminhadas para coletar frutos que os conduziam para longe do agrupamento da
casa comunal (1928, 131.). Estes são, sem dúvida, os agrupamentos menores dyaniohak em
quais os Kanamari moravam durante caminhadas, pesca e coleta de ovos de tracajá ou
frutas da floresta.
O que Tastevin parece estar descrevendo é a variabilidade que existia, e ainda existe,
nas formas de moradia Kanamari ao longo do ano e durante épocas diferentes. O
deslocamento ao longo da bacia hidrográfica do subgrupo de uma pessoa era considerado
seguro: as distâncias eram sempre consideradas ‘próximas’ (ino tu) e muitas das aldeias eram
ligadas por trilhas. Todos ao longo do rio eram ‘parentes’, em graus diferentes, e esses
deslocamentos eram em si oportunidades para efetuar pequenas, e ocasionalmente grandes,
modificações na constituição das aldeias. Quando as aldeias desintegravam-se por um
período a cada estação ou se mudavam para a aldeia do –maita para rituais, o havia
garantia de que a aldeia que depois se reagruparia conteria as mesmas pessoas que a
constituiam anteriormente. Os casamentos, o desejo de morar sob um novo chefe e a
procura por uma área com solo mais produtivo eram todos motivos que conspiravam para
impelir as pessoas a experimentar novos arranjos, contanto que alguém se tornasse o
‘chefe/corpo/dono’ do novo local e que não se violasse a endogamia da bacia hidrográfica.
Era comum que as pessoas que co-residiam em uma aldeia fossem parentes
próximos’, mas a aldeia não era imaginada como uma unidade autônoma’ (Rivière 1984).
Além disso, o próprio ato de co-residência, um requisito para se viver enquanto corpo
único, tornava as pessoas ‘parentes próximos’. As aldeias Kanamari são melhor descritas
como arranjos temporários dentro de um sistema baseado na endogamia e na autonomia
do subgrupo que pode, ele mesmo, ser representado pelo rio ao qual ele está associado. O
único assentamento na bacia hidrográfica que mantinha um certo grau de permanência
física, senão composicional, era a casa comunal e a área em torno dela. Por essa razão, a
maloca constituía um marco na paisagem e os Kanamari ressaltam que, em suas cercanias,
sempre havia grandes roçados que podiam alimentar a todos e capoeiras produtivas.
Podemos imaginar o resto dos padrões de moradia Kanamari como sendo composto de
diferentes disposições de colocação que orbitavam a casa comunal, com as pessoas
passando parte do ano em e em torno das ‘cabanas de mosquito’, em volta da casa e, outras
vezes, longe dela, mas sempre dentro do limite imposto pela bacia hidrográfica. São os rios,
portanto, e não as aldeias, que definem parentes.
54
A Proposito dos Rios / Sobre os Rios
O leitor i lembrar que essa variabilidade que existia dentro de uma bacia
hidrográfica também podia ser comunicada por meio do nome do rio em que o subgrupo
vivia seguido de –warah. Temos então três sinônimos para expressar toda a diferença que
constitui o funcionamento interno do subgrupo de tal modo que a variabilidade aparece
contida por um nome. Continuando com o exemplo que estamos usando, ‘Mutum-dyapa’,
‘Komaronhu-warahe X-warah’, onde ‘X’ é o nome de quem quer que ocupe o papel de
maita, todos expressam o mesmo grupo de pessoas. Cada um dos subgrupos existia,
idealmente, nos tributários do Juruá. O Mapa 3 mostra a situação de quatro desses
subgrupos, entre os quais todos ocuparam tributários na margem esquerda dodio Juruá.
Neste mapa eu ressalto apenas o braço principal de cada tributário, que de qualquer modo
conceitualmente contém a diferença interna que seus igarapés expressam.
55
56
Qualquer rio também pode ser chamado de –warah, ‘chefe/corpo/dono’, e o termo
mais uma vez expressa um modelo fractal. Quando o canal principal de um rio é chamado
de –warah, seus tributários são geralmente referidos como a-odyaranim, ‘suas pernas’
29
.
Assim, em relação ao Juruá, o Komaronhu é chamado de Wuni odyaranim’, ‘as pernas do
Juruá’. Mas o Komaronhu é em si um –warah quando uma pessoa está falando de seus
próprios tributários, como o Kiwa Kitok ou Catyinawa (ver Mapa 2). Embora seja correto
chamar de –warah qualquer rio considerado um ponto de referência contextual, é mais
comum dizer o nome do rio seguido pelo qualificador tam, que como vimos denota
prototipicalidade. O Komaronhu tam, então, é o braço principal do Komaronhu; seus
tributários são exemplos menos representativos de uma ‘qualidade Komaronhu’. Ainda são
‘Komaronhu’, uma vez que o nome os contém, mas não são Komaronhu tam. O mesmo
vale para o Juruá. O nome Kanamari para esse rio, Wuni, inclui todos os seus tributários,
enquanto Wuni tam refere-se apenas ao curso principal do Juruá.
O –maita, como vimos, geralmente vivia na única aldeia situada no corpo principal
de um tributário do Juruá, o Komaronhu, para recorrer ao exemplo anterior, em que a
maloca se chamava ‘Barreiro’ (Mapa 2). Os chefes de aldeia seriam então estabelecidos nos
igarapés que desembocam no Komaronhu e que são chamados de os membros do
Komaronhu’. Temos então uma estrutura em que um rio está para seus igarapés assim
como o chefe de subgrupo está para o chefe de aldeia. Além disso, todos esses também se
articulam por meio da imagem de uma árvore. Os troncos das árvores são chamados de
warah e seus galhos são também ‘seus membros’ (a-odyaranim) ou ‘pequena árvore/madeira’
(omam kom); o –maita é o ‘tronco’ de um –dyapa que vive no corpo principal do rio do
subgrupo ou seja, no rio que é a condição mínima de existência da bacia
hidrográfica/subgrupo, sem a qual ninguém pode situar-se em qualquer aldeia, do mesmo
modo que, sem o tronco, árvore alguma fica de pé. Podemos então esboçar a seguinte
série:
rio : tributários :: tronco de árvore : galhos :: chefe de subgrupo : chefe de aldeia
Em cada caso, o segundo termo da equação depende do primeiro termo para existir, que
torna a série assimétrica. Os chefes de aldeia podem estabelecer aldeias nos igarapés de
29
A palavra para pernas é –am. O verbo –dyara pode significar ‘passadas’ ou ‘passos’. Também é usada para
dizer que uma mulher abre suas pernas para a relação sexual. Seu uso aqui, portanto, pode sugerir que os
tributários são vistos como as ‘pernas’ ou ‘membros’ do ‘corpo’ do rio.
57
rios se um chefe de subgrupo estabeleceu uma casa comunal no rio; do mesmo modo
que o igarapé em si só pode existir por causa do rio em qual desemboca.
Um movimento ao longo da escala implica uma mudança nos modos de
sociabilidade
30
. Dentro do subgrupo todos são ‘parentes’ (-wihnim), mas, em uma aldeia,
aquelas pessoas que vivem sob um único chefe de aldeia são ‘parentes verdadeiros’ (-wihnim
tam), enquanto aqueles que vivem em diferentes aldeias do mesmo subgrupo são ‘parentes
distantes’ (-wihnim parara). A mudança de um nível menos inclusivo para um mais inclusivo
significava uma dilatação do corpo e uma redução correspondente na segurança
representada pela aldeia. A idéia de uma ‘dilatação’ do corpo é expressa em termos físicos
pelos Kanamari: chefes de subgrupo eram ‘pessoas grandes’ (tukuna nanim), tanto ‘gordas’
(tyahim) como ‘altas’ (kodoh). Seus corpos tinham que ser fisicamente grandes para conterem
tantas pessoas, mas porque ainda representavam em forma singular os limites da área onde
todos eram parentes e onde os re-arranjos residenciais explicitados acima podiam ocorrer,
eles ainda eram corpos humanos. Eles parecem, entretanto, representar os limites ao tipo
de contenção que a humanidade pode atingir.
O modelo que acabei de descrever ainda deixa a atividade associada ao próprio
Juruá sem explicação. Mencionei que os Kanamari dizem não terem vivido no Juruá no
passado distante, antes da chegada dos brancos. O Juruá, ao contrário, servia como
passagem por onde os Kanamari viajavam para visitar seus –tawari de outros subgrupos.
Não havia trilhas pela floresta que ligavam as bacias hidrográficas, pelo menos no período
descrito aqui, e as visitas Hori entre os subgrupos exigiam que o grupo visitante se
deslocasse pelo Juruá, pois não havia outro caminho. A localização dos subgrupos é
sempre descrita como ‘longe’ (ino), em oposição às localizações ‘próximas’ (ino tu) dentro da
bacia hidrográfica de cada pessoa, e as viagens até outros subgrupos nunca eram feitas por
terra’ (kirim-na), mas, ao contrário, ‘pelos rios’ (wah-wa-na). Essas viagens talvez tenham sido
antecipadas com animação, mas eram sempre perigosas e as pessoas que as empreendiam
tinham que ‘tomar cuidado’ (tohiaik), a partir do momento em que passavam pela boca do
rio que eles chamavam de casa e adentravam as águas agitadas do Juruá.
Ao mesmo tempo, o Juruá é claramente o ‘chefe/corpo/dono’ de todos os outros
rios; é aquele que articula as bacias hidrográficas e os subgrupos. Ele Constitui a principal
coordenada para os Kanamari que estão dando as direções. Mesmo as áreas que ficam para
além da hidrografia do Juruá, como o Itaquaí e o Jutaí, são referidas por meio de sua
30
Empregarei os termos ‘socialidade’ e ‘sociabilidade’ do modo como essas expressões ficaram consolidadas
na literatura. A primeira denota uma qualidade abstrata do social em geral, enquanto a segunda implica um
tipo de socialidade moralmente positiva (ver, p. ex., Fausto 2001, 146, n. 33).
58
posição em relação ao Juruá, i.e. rio acima ou abaixo de um lugar situado ao longo dele. Se
a hidrologia fluvial Kanamari reproduz a estrutura fractal da organização social, e vice-
versa, devemos então perguntar o que, em termos de organização social, equivaleria ao
Juruá?
É impossível saber se, em algum momento do passado distante, havia um –warah
humano capaz de conter, mesmo que apenas temporariamente, a surpreendente
variabilidade que os Kanamari acreditam ter existido entre os subgrupos. Eles podem ter
tido alguma coisa parecida com o ‘chefe de guerra’ Jivaro, que “...por meio de seu carisma
e inteligência estratégica, é capaz de constituir coligações militares temporárias”, baseadas
em uma autoridade ad hoc que dependia da ‘confiança’ que seus seguidores perenes lhe
confiavam para a duração da empreitada (Descola 1988, 823). Entretanto, mesmo uma
analogia desse tipo ficaria aquém do tipo de liderança implicada por um –warah capaz de
conter todos os Kanamari, que os chefes de guerra Jivaro geralmente agregavam não
mais do que umas cem pessoas de cinco a dez aldeias, que os faz mais similares a um –maita
e não a um hipotético ‘rei do Juruá’. Os Kanamari, de qualquer jeito, relembram muitas
guerras e lutas no passado, mas em todas elas com uma exceção notável (ver capítulo
dois) eles eram timas, surpreendidos em uma emboscada e cuja reação, diferente dos
Jivaro, era de fugir e dispersar, e não de se organizar em agrupamentos maiores que
buscassem vingança. foi sugerido por alguns etnógrafos dos Kanamari que os chefes
uma vez tiveram, pelo menos durante alguns momentos, seu poder questionado por um
xamã (e.g. Carvalho 2002, 207), e pode ser que, nesses momentos, o xa pudesse
incorporar, em seu corpo ltiplo e poroso
31
, as tensões existentes entre esses subgrupos,
desse modo representando-os como um único grupo. Mas os Kanamari com os quais eu
falei nem sequer sugeriam isso. Foi apenas quando o modelo de endogamia do subgrupo
começou a se dissolver que as constelações multi-dyapa podiam ser constituídas, e mesmo
assim correndo grande perigo. O Juruá, como teremos muitas oportunidades de constatar,
é o lugar do movimento, e apresenta um enigma/paradoxo: sendo, ele mesmo, o
‘corpo/dono’ de todos os tributários, é o lugar onde os corpos humanos inevitavelmente
falham. Simplesmente não um corpo grande o suficiente para os conter. Mas isso não
significa que sejam sociologicamente irrelevantes, pois a vida das aldeias e dentro das bacias
hidrográficas tinha que ser produzida em contraste com a floresta e o Juruá; locais não
adequados para se viver, mas sem os quais esse modo de viver seria impossível.
31
O corpo do xamã é saturado com a substância dyohko, que ele pode inserir no seu corpo e retirar quando
bem entender, como veremos no capítulo sete.
59
Com certeza o surpreendeu os Kanamari, portanto, que o primeiro branco que
eles viram tivesse chegado em um barco muito grande, subindo o Juruá, negociando sua
viagem pelas curvas fechadas e águas turbulentas deste rio.
O Primeiro Branco
32
Jarado chegou subindo o rio, a partir de Manaus, durante a estação da pupunha, ,
remando Juruá acima em seu grande barco, conhecido na região como batelão’. Hoje os
kariwa (brancos) têm motores, mas naqueles dias eles não os tinham. Ele foi conhecendo a
terra à medida que sua viagem progredia. Em seu caminho rio acima, ele não deu nome às
cidades, como faria mais tarde; ele apenas subiu o Juruá, conhecendo a terra enquanto
viajava.
Jarado foi recebido pelos Japó-dyapa na boca do igarapé Toriwá, que os brancos
chamam de Curumim. Os Japó-dyapa não morava ali, eles moravam nas cabeceiras. Mas se
mostraram felizes ao recebê-lo. Jarado chamou o chefe pelo seu nome: “ei, totyawa
33
Porina!”, ele chamou. Jarado entendia a língua kanamari. “Venha aqui i-tawari, venha aqui!”
os Japó-dyapa o chamou. Ele puxou a sua canoa para fora do rio e disse, “Bom dia, tawari,
bom dia”. Ele deu a eles pregos de ferro, anzóis e panelas de pressão velhas. Os ancestrais
ficaram todos muito felizes, e todos receberam presentes. “Onde está o meu brinco, meu
irmão?”, eles disseram. Ele também distribuiu roupas, mas não trouxe nenhuma espingarda
Os ancestrais ofereceram a ele carne de queixada defumada e perguntaram: “Você
está com fome? Coma um pouco. Você come anta?”. “Sim”, Jarado respondeu e comeu
um pouco. Ele também tomou bebida de mandioca. Jarado comeu e bebeu o mesmo que
os índios
34
.
Jarado deixou os Kanamari e continuou viajando rio acima. Quando a noite
chegou, ele parou na margem para dormir. Seu barco estava coberto de folhas da palmeira
jarina, do mesmo modo que os barcos Kanamari são hoje. Havia placas de madeira onde
ele podia se sentar. Ele continuou assim até Cruzeiro do Sul. Ele chegou por , onde as
margens são muito íngremes. Não havia brancos em Cruzeiro. Ele ‘começou’ a cidade ali
35
:
“é aqui que Cruzeiro ficará”, ele disse.
32
O que se segue é uma versão composta por mim de várias versões da história de Jarado. Tentei manter o
sabor da narrativa kanamari, recuperando os detalhes enfatizados por diversos narradores.
33
A pronúncia Kanamari da palavra ‘tuxaua’, que é usada por muitos brancos para designar os chefes
indígenas. Ver capítulo três para uma discussão do seu uso entre os Kanamari.
34
O narrador aqui usa o termo português índio.
35
A palavra Kanamari para ‘começar’ é makoni, que literalmente significa ‘dizer em [dado] lugar’.
60
Ele então seguiu rio abaixo e deu nome às cidades e aos barracões ao longo do
caminho. Ali ele deixou uma cidade, um pouco mais adiante outra. Niorque, Mutiri,
Retração, ele nomeou. “Aqui será Ipixuna, aqui será São Felipe
36
”. Na margem direita do
Juruá ele fez Ceará, que seria o barracão do patrão João Carioca. Ele sozinho deu nome à
medida que viajava rio abaixo. Ele seguiu até Manaus
37
.
Mais tarde ele voltou, mas os ancestrais não viram Jarado quando ele passou pela
boca do Toriwá, pois eles estavam todos rio acima. Ele conheceu os Dyapa ali perto, os
raivosos, mas ele pensou que fossem os Kanamari: “ei, totyawa Porina!”. Silêncio. Enquanto
isso, os Dyapa deixaram a sua grande canoa em uma praia e carregaram as flechas para a
terra firme. Jarado estava no meio do rio quando os dyapa começaram a atirar suas flechas.
Ele tentou proteger seu barco, mas as flechas atingiram três homens: dois remadores e o
cozinheiro. “Vamos sair daqui!”, Jarado disse. Vamos em direção a totyawa Porina, em
direção aos Kanamari. Esses são Kaxinawá!”. Ele se deu conta de que eles eram Kaxinawá.
As flechas pararam. O seu empregado, Lúcio, permaneceu no barco. Os Dyapa
apareceram na praia. Ei, Lúcio, abra uma caixa de cartucho
38
!”. Eles atiraram, Jarado,
Lúcio, o cozinheiro e os remadores. Um Dyapa escapou pulando na água e nadando. É por
causa do corpo putrefato dos Dyapa mortos por Jarado na boca do Toriwá que os kariwa
hoje chamam-no de Urubupugou
39
.
Mas o único Dyapa que escapou ainda queria pegá-los. Sua flecha passou de raspão
por Jarado. Eles correram atrás dele até que finalmente o mataram com um tiro. Eles
estavam ansiosos para ver seu –tawari novamente. Dessa vez, os Kanamari estavam
esperando por ele. “Ihh, o Kariwa está vindo de novo. Nosso patrão está subindo o rio!”.
Jarado então encontrou Paiko Koiam, Paiko Parawi, Totyawa Wadyo Kipoa, Totyawa Wiro e
Totyawa Porina. Eles todos eram Japó-dyapa, de muito tempo atrás. Dyumi continua:
“‘Vem aqui meu -tawari!’, ele [Jarado] disse aos Kanamari. ‘Ihhh, venha aqui meu -
tawari eles responderam. Não é assim? Os Kanamari o exatamente assim. ‘Tivemos que
atirar nos Kaxinawá. Mas os Kanamari não são ferozes!’”.
36
São Felipe é o antigo nome da cidade Eirunepé no médio Juruá.
37
Em outra vesão dessa história, Jarado não apenas nomeia as cidades, mas marca a terra com pedaços de
pau, omam-hak-dak, ‘delimitando a área’ (ma-tutudik mawa ityonim) das cidades futuras e barracões.
38
O narrador muda para o português no diálogo de Jarado com seu empregado: “Lúcio, abre uma caixa de
cartucho aí!”
39
Uma referência aos abutres que comeram os corpos dos Kaxinawa mortos. Pode ser que venha do
português “Urubu Pegou”.
61
Dessa vez ele trouxe espingardas. Ele também trouxe facas e machados com
lâminas finas, do tipo que não existe mais. Ele trouxe muitas roupas também. Antes de
Jarado chegar, os Kanamari o usavam roupas e apenas sabiam como usar o tyorona-ta-
dak
40
. Se ele não tivesse chegado, não teríamos essas coisas.
Os Dyapa são ferozes desde que Tamakori os criou. Eles inimizam os Kanamari e
inimizam os brancos. Mas os Kanamari não são assim. Todos eles apertaram a o de
Jarado os homens, as mulheres, todos eles. As mulheres deram-lhe bebida de mandioca.
Jarado o atirou porque os Kanamari não são ferozes. Ele apenas deu-lhes coisas, como
pontas de harpões, machados, espingardas. Os Kanamari ficaram felizes.
Aspectos de Jarado
A chegada de Jarado deu início à época que os Kanamari chamam de ‘Tempo da
Borracha’. Essa é uma definição geral para um período em que as atividades dos brancos e,
mais tarde, dos Kanamari, passaram pela extração do caucho, da borracha e da madeira. Os
Kanamari m lembranças vagas da extração do caucho, mas parecem nunca terem
participado de sua economia da mesma maneira que participaram das demais. Essas
atividades mais ou menos sucederam umas às outras. O caucho caiu em desuso cedendo
lugar à borracha; mas tarde a borracha começou a perder seu valor de mercado e a extração
de madeira tornou-se a atividade predominante. Mas um grau considerável de
sobreposição entre tais atividades e os Kanamari nunca pararam, por exemplo, de coletar
borracha, mesmo quando a extração de madeira predominou.
Jarado foi o primeiro dentre os brancos que Tamakori criou em Manaus a se
aventurar Juruá acima para conhecer os Kanamari. Ele estava a caminho de Cruzeiro do
Sul e, de acordo com alguns, estava marcando o território com estacas de pau,
estabelecendo os locais futuros das propriedades e barracões da borracha. Jarado é um
personagem que parece ter um pé no ‘Tempo de Tamakori’ e outro no ‘Tempo da
Borracha’, como é a característica de personagens que fazem a transição de uma época para
outra. Ele é um branco de Manaus que sobe o Juruá, conhecendo a terra e seu potencial
para a coleta de borracha, mas ele também conhecia a língua dos Kanamari, conhecia o
chefe do Japó-dyapa de nome e era capaz de ‘começar’ cidades por meio de suas palavras
“aqui será Ipixuna, aqui será São Felipe–, de uma maneira parecida, como veremos, com
a qual Tamakori criou a ordem a partir do caos por meio de sua fala. Ele é o vetor e a
40
Esse é o nome atribuído a um pano feito com a parte interna do buriti (Mauritia flexuosa) do qual os
Kanamari faziam tangas e saias que eles usavam para obter roupas ocidentais dos brancos.
62
transição do ‘Tempo de Tamakori’ para o ‘Tempo da Borracha’, uma criatura das duas
ordens.
Estes são os temas principais da história:
1. Jarado conhece os Japó-dyapa na boca do igarapé Toriwá. Eles não moravam aqui,
mas sim próximo às cabeceiras.
2. Ele cumprimenta os Kanamari em sua língua e é chamado de –tawari por eles. Nós
vimos que se trata de um termo que implica aliança, recebendo a expressão
máxima nas visitas para o ritual Hori entre pessoas distantes. Ele troca com eles, na
boca do Toriwá. Os Kanamari asseguram-se que ele come as mesmas comidas que
eles.
3. Ele chega em Cruzeiro, onde não havia brancos, e ‘começa’ (makoni) a cidade. À
medida que ele desce o rio, ele também nome às cidades e aos barracões que,
logo após a sua despedida, serão ocupados por brancos que o seguirão. Ele
continua a viagem até Manaus.
4. Ele retorna, mas os Kanamari não o vêem quando ele passa pela boca do Toriwá.
Ele toma os Dyapa pelos Kanamari e luta com eles, matando-os. Ele foge rio abaixo
novamente, ansioso para ver seu –tawari. Ele troca mais uma vez com os Kanamari,
contrasta a pacificidade deles com a violência dos Dyapa, e segue rio abaixo, para
nunca mais ser visto.
Jarado é chamado de –tawari e se comporta como tal. Vimos que os –tawari são
aliados que se reúnem durante os rituais Hori, e que o termo é traduzido pelos Kanamari
por ‘amigos, companheiros’. Ele não visita os Kanamari nas aldeias, mas, ao contrário, na
boca do Toriwá, no Juruá
41
; eles trocam bens e cumprimentam-se com cordialidade; e ele
inimiza e é inimizado pelos Dyapa, os quais os Kanamari acreditam ser a antítese da vida
social. Esse último ponto indica uma pré-condição mínima para se ter qualquer tipo de
relação positiva com os Kanamari, um indício de que é possível compartilhar a mesma
perspectiva da vida social e sem a qual nenhum diálogo pode acontecer. “Os Dyapa são
ferozes desde que Tamakori os criou”, como a história de Jarado deixa claro, e é necessário
negar essa ferocidade para que se estabeleça qualquer tipo de relação positiva entre aqueles
que rejeitam essa forma de socialidade. Na visão dos Kanamari, eu também tive uma
41
Logo veremos que durante os rituais Hori, aqueles que trazem o hori para a aldeia armam o acampamento
nas cercanias, onde são então visitados pelos anfitriões que servem bebida de mandioca e comida, com
freqüência carne que foi preservada com sal ou moqueada. É apenas após isso que a possibilidade dos
visitantes irem até a maloca dos anfitriões é levantada, e isso nem sempre acontece, uma vez que a
possibilidade de o Hori inteiro acontecer nos acampamentos temporários.
63
relação de inimizade com os Dyapa, particularmente devido às minhas relações com o
Conselho Indígena do Vale do Javari (Civaja), na época presidido por um homem Marubo.
Eu sempre tentei desencorajar essa opinião, negando qualquer tensão entre alguns falantes
de língua Pano do Vale do Javari e eu, mas não me deram ouvidos. Vivi com os Kanamari
e falei a sua língua, então eu também devo ver os Dyapa como inimigos.
É impossível precisara a data de quando Jarado chegou na boca do Toriwá e
mesmo ter certeza se alguém chamado ‘Jarado’, ou com nome similar, alguma vez visitou o
Juruá. Neves (1996, 72-5) sugere que os primeiros contatos entre os Kanamari e os brancos
ocorreram na última parte do século XIX, provavelmente entre os anos 1860 ou 1970, e
sua pesquisa também sugere que a reação inicial dos Kanamari foi evitar a frente
extrativista que adentrou seu território. Ele não faz, entretanto, referência alguma ao
personagem de Jarado, tampouco a qualquer pessoa de nome similar, embora os Kanamari
do Itaquaí digam que a história de Jarado é conhecida por todos’. Os Kanamari hoje
chamam os brancos de kariwa’, uma palavra derivada da palavra Tupi-Guarani para
designar os ‘brancos’, disseminada pelo Juruá do neengatu, a língua franca Tupi.
Curiosamente, entretanto, a palavra dyara/jara significa ‘branco’ na língua Katukina do rio
Biá (J. Deturche, comunicação pessoal), e não é incomum para alguns Kanamari se
referirem a Jarado como ‘Jara’
42
. Pode ser que os Kanamari, também, tenham em algum
momento chamado os brancos de ‘Jara’ ou alguma variação disso
43
. É inútil tentar discernir
se os Katukina chamam os brancos’ de dyara porque este era o nome do primeiro que eles
conheceram, ou se o primeiro branco veio a se chamar ‘Jarado’ porque este é o termo
usado para designar todos eles.
Se Jarado agiu como um –tawari, que não apenas compartilhou as condições
mínimas para estabelecer uma relação positiva, mas também trocou com eles, a mesma
coisa o pode ser dita dos brancos que vieram depois. Um dos primeiros desses patrões
foi um homem chamado Bode que começou a extrair borracha da sua propriedade no
Juruá. Os Kanamari não trabalharam para ele inicialmente, nem para os brancos que
42
‘Jara’, nas línguas Tupi-Guarani, é um sufixo que significa ‘dono’ ou ‘mestre’ de um modo similar a um dos
significados de –warah. Não tenho evidência alguma de que os Kanamari ou os Katukina entendam os termos
desse modo, mas está claro que algumas palavras do neengatu foram assimiladas pela ngua Kanamari,
inclusive aquela que designa os ‘brancos’, kariwa. Se considerarmos que talvez os Kanamari estejam cientes
desse significado do termo ‘Jara’, isso nos permite ver Jarado como uma espécie de ‘Dono dos Brancos’,
talvez o equivalente a um –maita do -dyapados brancos, que por isso se tornaram –tawari para os Japó-dyapa.
Veremos no capítulo 5 que mais evidências que apóiam essa interpretação, independente do significado
que ‘Jara’ possa ter hoje.
43
Não conheço nada a respeito da história dos Katukina do rio Biá. Hoje vivem no rio Biá, um tributário do
baixo Jutaí, mas cujas partes altas ficam próximas do Juruá, que é acessível por terra. Parece que, no passado,
o contato entre essas pessoas e os Kanamari era mais constante (Tastevin n.d.1, 110-1), embora tenha sido
menos frequente nos últimos cinqüenta anos.
64
começaram a chegar en masse, como Dica, que veio logo após Bode. Os Kanamari dizem
que se mantinham distantes, ficando nos tributários do Juruá, longe dos perigos que
haviam acabado de se multiplicar no rio principal. Alguns se lembram de seus avós dizendo
que estavam com medo do estampido das espingardas, e das vozes em altos brados e
barulhentas dos brancos. Portanto, o contato inicial entre os Kanamari e seus novos
vizinhos permaneceu esporádico e a distância física entre os barracões no Juruá e as
malocas nos seus tributários significava que pouquíssimo contato era necessário. Isto é,
exceto quando os Hori eram realizados e o Juruá tinha que ser atravessado.
O Fechamento do Juruá: a Emergência das Configurações Multi-dyapa
Os Kanamari então decidiram, talvez por default, que deveriam evitar os brancos,
pelo menos até decidirem como lidar com eles. Isso significava evitar o Juruá como ligação
com outros subgrupos, o que não deixou nenhuma escolha a cada -dyapa a não ser se abrir
para os outros se pretendesse manter alguma forma de relação com seus vizinhos. Nesta
seção irei discutir como o fechamento do Juruá, que resultou da chegada dos estrangeiros
no rio, forçou os Kanamari a inventar modos alternativos de visitar seus –tawari, um
processo que teve uma repercussão importante na constituição interna de cada subgrupo.
Os Kanamari sobre os quais me detenho são aqueles que constam no Mapa 3. O processo
é aquele através do qual o Mutum-dyapa do Komaronhu e o Macaco de Cheiro-dyapa do
Mucambi se tornaram parentes’ (-wihnim) ou ‘um tipo de parente’ (-wihnim nahan) por meio
de visitas não rituais mais freqüentes. Esse mesmo processo foi reproduzido pelo Caititu-
dyapa do Toriwá e Japó-dyapa do Mawetek. De aqui em diante vou me referir aos dois
primeiros como ‘configuração A’ e aos dois últimos como ‘configuração B’, e o objetivo
que se segue é mostrar como essas constelações emergiram. Para facilitar a minha
exposição, reproduzo o Mapa 3, abaixo, com as duas configurações marcadas:
65
66
Devo reiterar que o modelo de endogamia do subgrupo que propus acima se refere
ao modo como os Kanamari disseram-me terem vivido. Essas histórias foram, portanto,
narradas para mim como uma mudança das unidades endogâmicas para as configurações
ou constelações multi-dyapa. Mas ficaclaro que, mesmo nesse estágio, havia sempre mais
de um subgrupo vivendo em cada rio. Mesmo a história de Jarado, que situa os Japó-dyapa
no rio Toriwá, cujo dono’ teria sido os Caititu-dyapa, aponta para um cenário mais
complexo do que ideal. Mas é importante manter o espírito em que os Kanamari narraram-
me essas histórias, mesmo que, para mim, os fatos pareçam contradizer alguns aspectos do
modelo endogâmico. O meu foco sobre os quatro rios encontrados no Mapa 4 é um
corolário do meu objetivo. Como almejo mostrar como e por que alguns desses Kanamari
migraram para o Itaquaí, estou ressaltando as histórias dos quatro subgrupos do Itaquaí
hoje, que são aqueles que aparecem no mapa. As histórias que se seguem aconteceram
poucos anos antes desta migração, e eu irei descrever a situação tal qual ela era neste
período de modo que, mais à frente (capítulo 2), eu possa salientar o processo mesmo
dessa migração.
Co-residência: configuração A
Com o Juruá intransitável, ou pelo menos mais perigoso do que era antes, os
Mutum-dyapa que queriam visitar os Macaco de Cheiro-dyapa abriram trilhas ligando o
Komaronhu ao Mucambi. Esses dois rios eram muito próximos um do outro,
particularmente nas partes altas. Os subgrupos que eram geograficamente próximos
consideraravam uns aos outros -tawari seguros, com os quais teria sido possível manter um
contato regular por meio das reuniões do ritual Hori. No passado, o Hori entre esses dois
subgrupos havia seguido uma rota específica: os visitantes desciam os seus rios em canoas e
depois subiam (Mutum-dyapa) ou desciam (Macaco de Cheiro-dyapa) o Juruá aa boca do
rio do outro subgrupo. Dali em diante, eles continuavam a viagem subindo o rio no
território de seu anfitrião, fazendo soar a sua corneta hori para assegurar que os anfitriões
soubessem que eles estavam se aproximando. Mas com o Juruá fora de alcance, as trilhas
eram o meio mais seguro de interação. Pessoas antes não consideradas parentes chegavam,
às vezes sem avisar. Essas visitas se tornaram mais freqüentes, o que significa que nem
sempre era possível preparar uma recepção. Aos poucos, o aspecto ‘ritualizado’ dessas
reuniões, indexadas pelo termo de referência –tawari, deixou de ser importante.
67
Evitar o Juruá durante as visitas entre esses dois subgrupos deve ter sido um alívio.
Os Kanamari me disseram que os dois haviam sempre sido muito próximos, melhores
‘amigos’, por assim dizer. Suspeito que eles deviam estar querendo evitar o Juruá um
tempo durante as visitas que faziam entre si, pois o rio havia sempre sido associado aos
ambivalentes Kulina, aos ‘raivosos’ (nok) Kaxinawá, e a uma enorme gama de espíritos
perigosos que habitavam suas águas. A importância sociocósmica do Juruá como um
corpo/dono de todos os rios contrasta com o modo não muito afetuoso como é referido
as águas assoreadas, imprestáveis e agitadas, a grande quantidade de mosquitos e
borrachudos que afligem aqueles que o percorrem e a falta relativa de praias durante os
meses de verão
44
são características recobradas pelas pessoas do Itaquaí como um
desencorajamento definitivo para visitá-lo. Não é, com efeito, impossível que existissem
trilhas antes da ocupação do Juruá pelos brancos, mas as visitas para os rituais Hori tinham
que ser feitas através do deslocamento pelo Juruá. Creio que seja porque essas reuniões
tenham sempre sido um pouco perigosas, mesmo quando envolviam –tawari ‘seguros’, e
sempre envolviam visitas de não parentes. Enquanto os parentes podiam ser visitados por
meio das trilhas bem cuidadas que entrecruzavam a área dentro de uma bacia hidrográfica,
convidados distantes dos Hori tinham que atravessar um rio que, embora situasse todos
eles, permanecia ambivalente (um ponto que desenvolvo no capítulo quatro). Ao evitarem
o Juruá, esses dois subgrupos deixaram de realizar visitas rituais entre si, o que equivale a
dizer que eles deixaram de ser –tawari uns para os outros, e, assim, a co-residência entre
pessoas que não haviam sido anteriormente parentes se tornou possível.
Podemos apontar o início dos anos 1930 como o início desta interação mais
intensiva entre esses dois subgrupos. Nessa época, os Macaco de Cheiro-dyapa começaram
a viver dispersados na área constituída pelos rios Mucambi, Komaronhu e Mamorihi. O
Mucambi é também chamado de terra do Macaco de Cheiro-dyapa’, mas não consenso
entre os Kanamari quanto ao número exato de aldeias existentes naquele rio nessa época.
Alguns dizem que havia duas aldeias no alto Mucambi, Pelado e Morateiro, enquanto
outros situam o Morateiro nas partes altas de seu rio vizinho, o Komaronhu
45
.
Essas declarações contraditórias são o resultado direto de uma abertura dos Macaco
de Cheiro-dyapa aos Mutum-dyapa. As pessoas que residiam no Mucambi, os Macaco de
Cheiro-dyapa, haviam começado a estabelecer laços próximos com as pessoas que residiam
44
Que para os Kanamari significa a falta de ovos de tracajá. Os tracajás dos rios põem seus ovos no início do
verão em buracos que as fêmeas cavam nas praias. O período de ovos de tracajá é ansiosamente aguardado
pelos Kanamari, e constitui um período em que as aldeias dispersam-se em pequenos grupos e viajam a
procura desses ovos.
45
Esses nomes, a maioria dos quais em português, eram os únicos que os Kanamari empregavam.
68
no Komaronhu, ‘a terra dos Mutum-dyapa’, bem como com aqueles no Mamorihi
46
. Os
Mutum-dyapa, naquela época, não eram as únicas pessoas que moravam no Komaronhu e
no Mamorihi, que havia um pequeno número de pessoas de outros subgrupos, embora
estes não constituíssem aldeias, mas, ao contrário, residiam naquelas dos dois –dyapa
dominantes. Como vimos, os padrões de moradia Kanamari estabelecem uma grande área
onde se pode residir, mas dentro de tal área parece haver poucas restrições quanto ao local
onde se pode viver e por quanto tempo, com movimentos mais ou menos temporários
(incluindo aqueles sazonais) dentro de tal área sendo freqüentes. Então não parece ter
muita importância para os Kanamari onde a aldeia Morateiro se encontrava, pois, nessa
época, os Macaco de Cheiro-dyapa e os Mutum-dyapa estavam tornando-se
inextricavelmente misturados, e os rios em que viviam não eram mais (se é que haviam
sido) reservas exclusivas de um único subgrupo.
Isso não quer dizer, entretanto, que algumas distinções não fossem reconhecidas.
Se os Mutum-dyapa eram os ‘donos’ (-warah) do Komaronhu e os Macaco de Cheiro-dyapa
os ‘donos’ do Mucambi, e que este último rio é situado acima do primeiro, no percurso
do Juruá, então ainda é necessário, na memória coletiva dos Kanamari que eu conheço,
manter a posição relativa dos sub-grupos. Poroya situa a aldeia Morateiro no Komaronhu,
mas ele a localiza rio acima em relação às aldeias Mutum-dyapa. Mais precisamente, ele a
situa em uma pequena aglomeração dos Macaco de Cheiro-dyapa, pois posiciona logo a
montante de Kiwa Kitok, a aldeia de Dyori, um chefe dos Macaco de Cheiro-dyapa. A
jusante, no mesmo rio, estão as aldeias Mutum-dyapa. A aldeia Pelado, por sua vez, é
unanimemente localizada no Mucambi, e é considerada uma aldeia muito antiga,
provavelmente uma maloca.
46
Hoje há aldeias Kanamari no Mamorihi, mas eu não tenho certeza de como ele era habitado naquela época.
Houve uma maloca construída em seu curso principal, e me disseram que alguns chefes Mutum-dyapa viviam
ali. Pode ser, então, que o Mamorihi integrasse a ‘terra dos Mutum-dyapaou, alternativamente, que estes
vieram a ocupá-lo, talvez no processo de evitar o Juruá e de abrir trilhas para outras bacias hidrográficas.
69
70
Explicações aparentemente divergentes revelam, então, a mesma lógica. Aqueles
que situam a aldeia Morateiro no rio Mucambi estão dizendo que, por se tratar de uma
aldeia Macaco de Cheiro-dyapa, é onde ela deveria estar, uma vez que é a ‘terra’ deles, a
despeito de sua relação com outras aldeias. Aqueles que situam a aldeia no alto Komaronhu
estão dizendo que, naquela época, as relações entre os dois subgrupos eram muito estreitas,
mas estão, não obstante, fazendo uma distinção mínima, porque identificar alguém como
sendo Macaco de Cheiro-dyapa significa que estes devem, pelo menos, residir a montante
dos Mutum-dyapa (e vice-versa). É isso que parece ser consistentemente ressaltado e ,
assim, enfatiza-se a situação em que esses subgrupos se encontravam: co-residindo,
misturados entre si, mas mantendo ainda a ‘sua terra’ e as coordenadas a ela associadas.
Mas isso não muda o fato de que eles estavam ‘tornando-se parentes’ (-wihnim-pa)
uns dos outros, embora ainda não estivesse claro que tipo de parentes eles seriam. A área
entre o Mucambi e o Mamorihi tornou-se uma área na qual os seus residentes poderiam se
mover com relativa segurança estabelecendo suas aldeias e abrigos temporários em
qualquer parte. Diz-se, por exemplo, que um homem Macaco de Cheiro-dyapa chamado
Dyori vivia regularmente na aldeia Pelado, no Mucambi, mas também no igarapé Kiwa
Kitok, no Komaronhu. Quando perguntei a um homem Kanamari se as pessoas no
Komaronhu eram parentes de Dyori, ele respondeu que eles eram ‘mais ou menos
parentes’ (-wihnim nahan) e que, ao viver nos dois rios, Dyori seguia ‘vivendo com parentes’
(-wihnim to). A expressão –wihnim to pode ser glosada como ‘co-residir’, mas revela um
modo Kanamari de experimentar a co-residência. Já que as aldeias eram efêmeras do ponto
de vista físico e continham populações flutuantes, co-residir significava residir dentro de
uma grande área em que se podia mover livremente, habitada por pessoas a quem se pode
visitar e com as quais se pode morar por um tempo. Se para Dyori essa área abarcava, antes
da chegada dos brancos, apenas o Mucambi, agora incluía o Komaronhu e possivelmente o
Mamorihi.
A configuração A tornou-se um espaço em que a relação –tawari deixou de existir, e
onde as visitas ocorriam como se acontecessem dentro de uma única bacia hidrográfica.
Isso pode ter tido um efeito sobre o papel do chefe de subgrupo. A essa altura, uma série
de chefes do Mutum-dyapa, a saber, Kaninana e Kadoxi, e chefes do Macaco de Cheiro-
dyapa, a saber, Dyori e Hiwu, começaram a agir como o –warah múltiplo dessa
configuração. Como eu nunca obtive um consenso a respeito do uso da palavra –maita no
passado, é difícil dizer exatamente que impacto essa proliferação de chefes causou, mas a
71
ramificação dos subgrupos certamente minou o papel dos chefes de subgrupos ligados a
uma única maloca em uma bacia hidrográfica. Se as pessoas agora podiam viver em bacias
hidrográficas vizinhas, e sob muitos chefes, também se tornou mais difícil situar uma
variedade de pessoas diferentes por meio de um único termo. O papel do chefe de
subgrupo, antes exercido por uma única pessoa, começou então a dissipar-se perante a
existência de vários chefes, cada um capaz de expressar a configuração apenas parcial e
imperfeitamente.
Comentei brevemente acima que a configuração A também incluía outros
subgrupos que viviam nas aldeias pertencentes a chefes de um dos dois –dyapa
predominantes. Neves (1996, 161), por exemplo, relata que os Tatu-dyapa também eram do
Komaronhu e que, atualmente, alguns vivendo no Mamorihi. Os Kanamari que eu
conheci alegam que os Mutum-dyapa eram estreitamente relacionados aos Natok-dyapa (ver
também Tastevin n.d.1, 11), também chamados de Peixe-dyapa
47
, sendo que um deles
chegou a afirmar que esses três subgrupos eram os mesmos”. Tastevin aponta, ainda, a
existência, nesta região, de um Grilo-dyapa (ibid., 12-13; 109). Alguns Kanamari alegam que
havia Sapo Om-dyapa casados com Mutum-dyapa nessa época e um homem me disse que
havia também Japó-dyapa vivendo no Mucambi, inclusive seu pai Nohin. A presença desses
outros subgrupos pode colocar em dúvida a associação entre ‘rio’ e ‘subgrupo’ nos
primeiros anos da presença dos brancos no Juruá, mas ela não contradiz o princípio sico
de que cada rio define um subgrupo, uma concepção que persiste ainda hoje. A possível
predominância numérica dos Macaco de Cheiro-dyapa e dos Mutum-dyapa que eu não
posso assegurar, embora pareça ter sido o caso também não explica por que os
subgrupos e os rios continuaram associados a estes -dyapa em um mundo que,
progressivamente, se tornava uma mistura de pessoas que antes permaneciam separadas.
A diferença entre a situação dos dois –dyapa predominantes e dos –dyapa menores
era clara para os Kanamari que me falaram dessa época: os dois primeiros tinham –warah,
enquanto os outros, por razões diversas, não o tinham. A morte de um chefe de aldeia
causa a dispersão da aldeia, enquanto a morte de um chefe de subgrupo, quando não pode
ser minimizada por meio de um substituto apropriado, irá inevitavelmente desencadear o
fim do subgrupo. Nesse caso, não importa se essas pessoas sem chefe eram mais
numerosas do que aquelas que tinham chefe:
47
Natok é um tipo de peixe. O ‘Peixe-dyapa’ é excepcional por ser o único nome de subgrupo que eu ouvi em
que uma classe de animais, em vez de espécie, serviu como prefixo para o nome do subgrupo.
72
“Il est probable que les clans se sont débandés à la mort d’un chef [illegible], et il est
aussi possible qu’en certains cas le clan accueillant a été moins nombreux que le clan adopté
quoiqu’ayant gardé l’avantage de posséder un chef. En ces cas les anciens font figures
d’étranger parmi les nouveaux venus” (Tastevin n.d.1, 109).
O processo que se segue é um em que os –dyapa com chefes, mesmo quando
‘estrangeiros’ em relação àqueles que chegaram para viver com eles, assimilam os outros.
Todos os subgrupos que não tinham chefes, e nem aldeias, deixaram de existir e, pelo
menos na região que nos diz respeito aqui, persistem apenas na memória.
Podemos entender isso com mais clareza se compararmos a situação dos dois
dyapa predominantes com aquela desses vestígios de subgrupos sem chefe outrora
autônomos. Os primeiros foram capazes de estabelecer aldeias e manter chefes enquanto
aprendiam a co-residir uns com os outros.. Os movimentos constantes e curtos que
caracterizam o ciclo anual se tornaram uma parte integral de sua sociabilidade, agora
entrecruzando processos que ocorriam em bacias hidrográficas distintas. As relações
estabelecidas entre o Macaco de Cheiro-dyapa e o Mutum-dyapa asseguraram que esses
movimentos fossem regulares dentro da área que eles ocupavam: as suas relações criaram
um espaço, mais amplo do que o ideal, em qual era possível, e mais ou menos seguro,
mudar-se constantemente e estabelecer residência.
Quanto aos subgrupos sem chefes, eles se viram em uma situação em que foram
impelidos da estabilidade para o fluxo. O –warah serve para estabilizar esse fluxo, e por essa
razão viver através de um –warah não é uma posição dada, mas algo que é ativamente
buscado: as pessoas produzem os corpos de seus filhos e seus próprios, fazem aldeias e
chefes para que possam viver juntos, e articulam essas aldeias por meio de um chefe capaz
de situar todos dentro de uma área delimitada. Perder um corpo significa se mudar, quase
magneticamente, em direção a um novo corpo, pois as pessoas desejam viver através dos
corpos. Sem chefes, esses Kanamari não tiveram escolha a o ser mudar-se em direção a
um novo chefe/corpo (-warah), para tentar constituir a si mesmos como parentes. Ao fazê-
lo, o ‘nome’ que eles adquiriram, e que os diferenciava entre outros nomes equivalentes,
deixou de existir ou persistiu apenas na memória. O chefe, elegantemente descrito por
Wagner como um “Indigenous integrator and scale-shifter” (1991, 171), fixa a identidade
dessas pessoas naquela anteriormente considerada ‘outro’, e os conduz dos múltiplos
corpos singulares para um único corpo coletivo.
Os que restaram desses pobres subgrupos talvez tenham tido sorte, mas a um preço
alto. Sua redenção foi uma conseqüência da morte de seu subgrupo e o início de um
73
processo de parentesco em que eles não tinham escolha senão viver sob um novo corpo, e
através deste constituírem a si mesmos como um tipo diferente de gente.
Em meio aos –tawari: Configuração B
O Mapa 4 mostra que logo a jusante da configuração A havia outros Kanamari.
Estes eram principalmente os Caititu-dyapa no Toriwá e os Japó-dyapa no Mawetek. Entre
eles havia dois rios, o Kaiawa (Cayuwá) e o Bagaço, que nessa época não eram habitados
pelos Kanamari, embora alguns brancos vivessem ali trabalhando para os patrões no
barracão Deixa Falar, na boca do Toriwá. Tastevin (n.d.1, 11) se deu conta, em algum
momento entre 1910 e 1925, que esses Kanamari e aqueles que discuti na seção anterior
precisavam ser entendidos em função um do outro, sugerindo que juntos eles formavam
um ‘groupement’.
As anotações de Tastevin datam pelo menos uma década antes do período que
estou descrevendo. Mas três de suas observações confirmam o argumento que venho
desenvolvendo. Primeiro, os subgrupos que ele identificou nos tributários da margem
esquerda do Juruá são em grande parte os mesmos a respeito dos quais os Kanamari me
falaram, ressaltando que eles provavelmente estão na região desde o início do século XX
Segundo, e logo abordaremos disso, Tastevin se deu conta de que havia interações
contínuas entre os quatro rios principais que venho discutindo. E terceiro, as interações se
intensificavam entre os rios/subgrupos que constituiriam a configuração A, de um lado, e a
configuração B, de outro.
Os meus dados a respeito da história da configuração B durante o período anterior
à migração para o Itaquaí são menos detalhados do que aqueles sobre a configuração A,
mas fica claro que se trata de uma constelação similar àquela descrita acima. Havia, nos
anos 1930, pelo menos duas aldeias no Mawetek, uma das quais tinha uma maloca ligada ao
chefe de subgrupo Ioway Nyanim. Havia uma maloca no Toriwá ligada a dois chefes do
Caititu-dyapa: Arabona e Nohanim. Havia também pessoas de outros subgrupos vivendo
nesses rios, como os Macaco Cairara-dyapa, os Macaco prego-dyapa e os Macaco parauacu-
dyapa. Não tenho certeza se esses subgrupos encontravam-se em uma situação parecida
com aquela dos subgrupos sem chefe da configuração A, mas suspeito que pelo menos o
Macaco Cairara-dyapa talvez tenha tido chefes de aldeia
48
.
48
Esses três –dyapa ainda existem e desse modo não foram pelo menos não completamente assimilados
por outro subgrupo. Nenhum Kanamari sugeriu que, porque eram todos subgrupos com nomes de ‘macacos’
(bara paohnim), eles seriam mais próximos do que outros subgrupos.
74
Há, entretanto, uma diferença importante entre as duas configurações. A
configuração A assegurava relações próximas entre os subgrupos predominantes, mas os
colocava em um tipo de beco sem saída, pois nesse período o havia Kanamari vivendo
acima do rio Mucambi, tampouco no trecho do Itaquaí que fica imediatamente ao norte do
território deles. A configuração B, por outro lado, estava situada a meio caminho entre a
configuração A e os Kanamari do rio Jutaí, a norte deles (ver Mapa 4). O Jutabrigava os
Lontra-dyapa e os dois rios eram ligados por trilhas, embora houvesse tensões entre eles.
Os Lontra-dyapa eram temidos como feiticeiros, mas isso não impedia que as
pessoas da configuração B morassem ali parte do tempo. Dois homens Ja-dyapa, por
exemplo, moraram ali até ficarem doentes e retornarem ao Mawetek, acusando os Lontra-
dyapa de tê-los enfeitiçado. O Jutaí também começou a abrigar os brancos relativamente
cedo, e é possível que os Lontra-dyapa tenham vividos no meio dos brancos antes dos
demais subgrupos. Kodoh, um velho Japó-dyapa que nasceu no Mawetek, se lembra que
quando ele era muito jovem duas pessoas que ele chama pelo termo que designa avô’
(qualquer homem em G + 2) foram mortos por dois seringueiros no Juruá, provavelmente
sendo um dos primeiros casos de violência dos brancos contra os Kanamari que as pessoas
com as quais falei se lembravam. Isso não impediu que os Kanamari da configuração B
fossem para o Jutaí, e, portanto, interagissem com os Lontra-dyapa, inicialmente chamando-
os de –tawari e acabando casando-se com eles. Veremos com mais cuidado algumas
conseqüências disso no capítulo seguinte.
Essa relação ambivalente com os Lontra-dyapa e a violência dos brancos acabou
impelindo os Japó- e Caititu-dyapa para Oeste, trazendo-os para mais perto da configuração
A. Entretanto, eles nunca abriram trilhas que ligassem seus rios ao Mamorihi, ou, mais
adiante, ao Komaronhu, e por isso nunca co-residiram’ (-wihnim to). Com efeito, a relação
entre as configurações A e B não era análoga às relações dentro de cada uma delas. Se em
cada configuração começaram a surgir trilhas que ligavam os rios que as compunham, não
havia trilhas entre os rios de cada configuração. As relações –tawari que eles mantinham,
indexadas pelo ritual Hori, requeriam que eles passassem pelo Juruá para se encontrarem. A
presença dos brancos talvez tenha servido de impecílio, reduzindo a freqüência dessas
visitas, mas não as impossibilitando. Tratarei agora da relação –tawari e do Hori.
O –tawari
75
O -tawari pode ser definido como uma relação estabelecida entre homens que
vivem em bacias hidrográficas diferentes. Há um equivalente feminino dessa relação que foi
expressa pelo termo –tawaro. Não um termo de referência específico para chamar as
pessoas do sexo oposto de bacias hidrográficas diferentes. Se elas forem chamadas por
algum termo, será pelo termo que designa o primo-cruzado de sexo oposto/esposa em
potencial que, de qualquer modo, é raramente usado como vocativo, sendo substituído por
nomes próprios. O termo –tawari, assim como o termo –warah, é prefixado, de modo que
uma pessoa é sempre um –tawari em relação à outra pessoa. Entretanto, diferente da
relação designada pelo termo –warah, o termo –tawari designa uma relação simétrica que se
sobrepõe semanticamente àquela estabelecida com o primo-cruzado terminológico do
mesmo sexo. Às vezes o termo –tawari é usado como sinôminmo do termo para ‘cunhado’,
-bo (m.s.), enquanto –tawaro equivale a ‘cunhada’, tyanhwan (w.s.). Esses termos eram, às
vezes, intercambiáveis para as pessoas de bacias hidrográficas diferentes, mas o inverso não
é verdadeiro. Não se pode chamar um primo cruzado terminólogico do mesmo sexo por -
tawari/o. O termo –tawari designa, assim, uma relação de afinidade simétrica entre pessoas
do mesmo sexo de subgrupos diferentes
49
.
O termo –tawari é um exemplo do que Viveiros de Castro, seguindo Pierce, chamou
de ‘terceiros incluídos’: são soluções específicas para o problema da afinidade, sendo
posições e relações que “...não se caracterizam por uma mera exterioridade ao campo do
parentesco, mas se articulam a este campo de modo variado...” (1993, 178). É muito similar
ao termo pito dos Trio, que ...can be said to be a relationship term but not a kinship term”
e “although the Trio describe pito in a cross-cousin specification this merely reflects the
term’s affinal role” (Rivière 1969, 81). O termo –tawari o é, entretanto, aplicado a todos
os homens de outros subgrupos, mas apenas àqueles com os quais os rituais Hori são
realizados. Outros distantes, raramente ou nunca vistos, são ‘estrangeiros’ (oatukuna), com
os quais nenhum contato significativo é mantido, exceto talvez aquele da feitiçaria. Os
tawari, por outro lado, são visitados, compartilha-se comida com eles e bebe-se em
conjunto caiçuma fermentada, mesmo que apenas durante o ritual. Esse último ponto é
importante porque, segundo o modelo endogâmico de subgrupo, não se deve casar com as
irmãs dos –tawari. Eu não sei se essa ‘regra’ jamais foi observada, mas é uma violação do
imperativo endogâmico que os Kanamari postulam para o seu passado distante, em que os
–tawari devem permanecer como cristalizações de afinidade potencial ‘afins sem
49
que a maioria dos meus dados diz respeito às relações entre os homens, em ambos níveis do –tawari e do
cunhado, irei, em prol da clareza, sempre me referir a esta relação. Entretanto, tudo me leva a crer que, com
as alterações necessárias, o mesmo valeria para as relações entre –tawaro e cunhadas.
76
afinidade’ que abrem o subgrupo para o exterior durante as reuniões rituais, mas que o
devem dissolver as unidades que de início participaram dessas reuniões.
O termo para ‘cunhado’, por outro lado, é usado e ocorre dentro do subgrupo e até
da aldeia. O termo, portanto, denota as pessoas consideradas ‘parentes’. Afins
terminológicos em outras aldeias podem ser ‘parentes distantes’ (-wihnim parara), mas afins
de fato, casados com o irmão de alguém, por exemplo, são ‘parentes verdadeiros’ (-wihnim
tam). Em todos os casos, esses termos servem para abrir a aldeia ao subgrupo, dissolvendo
as aldeias umas nas outras. Isso pode ser vislumbrado no desenvolvimento do ciclo de uma
aldeia A preponderância da uxorilocalidade pós-marital assegura que o marido de uma
irmã, por exemplo, seja um homem que veio morar na aldeia de alguém, enquanto os
irmãos da mulher de alguém são aqueles com os quais se vai viver. Um noivo irá com
freqüência trabalhar para seu sogro com os irmãos de sua mulher, roçando, pescando e
caçando. Os Kanamari dizem que, inicialmente, a mudança para a aldeia de uma esposa é
uma tarefa tensa, e o noivo com freqüência tem que trabalhar mais do que todos os outros.
Se ele não consegue lidar com isso, é capaz de ‘fugir’ (-dyam) de volta para a sua aldeia,
dissolvendo o casamento. Entretanto, se ele ‘agüenta’ (kima) o período inicial de trabalho, e
se revela um bom marido, seus cunhados desenvolverão uma ‘afeição’ (-wu) por ele,
mantendo o tipo de relação jocosa que caracteriza os vínculos entre cunhados
próximos/reais. À medida que os cunhados mais novos de um noivo se casam, eles se
mudam, mas se lembram do marido de sua irmã, com o qual gostavam de viver. Isso pode
significar que, uma vez acabado o período de serviço da noiva, esses cunhados próximos
escolham iniciar uma nova aldeia juntos. duas conseqüências para esse ato: surge uma
nova aldeia a partir de uma velha e termina o período de uxorilocalidade, permitindo o
surgimento de novas configurações
50
. Essas novas aldeias eram, conforme me foi dito,
freqüentemente estabelecidas muito perto de uma aldeia antiga e de seu –warah, formando
um tipo de ‘aldeia satélite’ daquela onde alguns de seus habitantes cresceram.
Tanto a relação designada pelo termo –tawari quanto aquela designada pelo termo
cunhado abrem as unidades contidas por um corpo para outras unidades. No caso do
‘cunhado’, isso faz com que as aldeias contidas por chefes de aldeia se abram para o
subgrupo, contido pelo chefe de subgrupo. Mas no caso do –tawari, os subgrupos se abrem
50
Embora eu tenha suposto que era o vínculo de irmãs entre essas mulheres que criava e mantinha essas
aldeias, não é assim que os Kanamari pensavam. Os homens sempre diziam que queriam viver com os seus
cunhados, dos quais gostavam e com os quais podiam fazer graça. Uma vez que a existência de uma aldeia
implica, em algum momento e na maioria dos casos, tornar um desses homens um ‘chefe/corpo/dono’, deve
ser, de fato, a relação entre os homens que mantém as aldeias, que o chefe contém as similaridades ou
diferenças que existem entre elas.
77
em unidades que não são contidas por nenhuma pessoa, apenas pelos ambivalentes rio
Juruá e a floresta que os separam. Se ambos os termos expressam a mesma capacidade de
articulação, uma diferença no caráter de seu uso que é consistente com a diferença
fractal entre as unidades. Os ‘cunhados’ são relações diádicas entre diversas pessoas,
enquanto os –tawari são relações entre chefes de subgrupos. Veremos logo, na análise do
ritual Hori, que é a relação –tawari entre chefes que estabelece dois subgrupos como –tawari
uns em relação aos outros. Uma vez que o chefe é um corpo coletivo, a relação –tawari
entre os membros do subgrupo deriva da iniciativa do chefe. Eram relações coletivas
expressadas entre dois chefes, e não relações diádicas entre indivíduos.
Isso talvez explique a sobreposição semântica entre ‘cunhado’ e -tawari’. Enquanto
os Kanamari me narravam suas histórias, eles freqüentemente intercambiavam os dois
termos, explicando-me que “às vezes os chamamos de ‘cunhados’, outras vezes os
chamamos de -tawari’”. É perfeitamente possível que indivíduos Kanamari tenham
mantido relações de ‘cunhado’ com indivíduos de outros subgrupos, mas apenas o chefe
podia instanciar uma relação –tawari entre os ‘indivíduos coletivos’ que são os subgrupos.
Em suas explicações do Hori, este era o único termo que eles empregavam.
Se o modelo endogâmico de subgrupo fazia dos –tawari uma posição facilmente
definível, não acontecia assim com as configurações que começaram a delinear-se após a
chegada de Jarado. Vimos como a emergência das configurações A e B foi um processo
por meio do qual pessoas que haviam chamado umas às outras de –tawari começaram a
chamar umas às outras por meio de termos de parentesco. Esses termos eram com
freqüência, não surpreendentemente, precisamente aqueles para ‘cunhado’, mas veremos
no capítulo seguinte que outros termos vieram a ser usados, particularmente à medida que
os casamentos entre subgrupos se tornaram comuns. As pessoas dentro dessas
configurações ‘co-residiam’, e eram pessoas visitadas regularmente, em contextos não-
rituais; pessoas que se visita ‘para beber caiçuma [não-fermentada]’. É a freqüência e a
natureza desses movimentos que gradualmente fazem as pessoas se tornarem mais ou
menos seguras.
Mas se a relação dentro de cada uma das duas configurações não era mais entre
tawari, aquela entre as configurações certamente o era. uma condição sine qua non para
esses tipos de relações, a saber, que ela se entre pessoas que se frequentam durante os
Hori. Trata-se de uma definição tautológica porque os –tawari são, necessariamente, pessoas
que vivem nas bacias hidrográficas onde não parentes e com os quais os Hori são
realizados. Isso quer dizer que dentro de cada configuração, onde não havia Hori, as
78
pessoas tinham que ser transformadas em algo diferente de –tawari, algo como ‘parentes’ ou
‘meio parentes’, como no caso da relação de Dyori com os Mutum-dyapa que vimos acima.
Ao mesmo tempo, os Hori entre as configurações A e B gradualmente se tornaram
instâncias em que as pessoas podiam estabelecer novos arranjos residenciais,
ocasionalmente escolhendo se mudar para outras bacias hidrográficas. Foi este o caso de
Nohin, o homem do Japó-dyapa que morava com os Macaco de Cheiro-dyapa no Mucambi,
a uma grande distância do território de seu subgrupo. Isso o tornou, aos poucos, parente
das pessoas da configuração A com as quais ele co-residia e um –tawari para aqueles da
configuração B, que ele antes considerara como parentes.
Em vez de dizer que uma pessoa realiza reuniões rituais Hori com pessoas
chamadas de –tawari, talvez seja mais correto dizer que um Hori pode ter o efeito de fazer
dois grupos de pessoas –tawari em relação uns aos outros. Nesse sentido –tawari é uma
função de certos tipos de relações, em vez de constituir a fonte da qual essas relações
emanam. Vimos que isso pode funcionar em qualquer um dos dois contextos. As pessoas
com as quais você ‘vive’ podem se tornar –tawari por meio de um Hori, assim como podem
as pessoas que você considerava ‘outro’ (o-a-tukuna, estrangeiro, lit: ‘outras pessoas’). Esse
ponto será importate quando analisarmos a migração para o Itaquaí, pois a primeira coisa
que os Macaco de Cheiro-dyapa que se mudou para esse rio fez foi convidar os Mutum-
dyapa para um Hori, a despeito do fato de que eles vinham co-residindo, como parentes, por
pelo menos uma década.
Ao dizer que a relação entre as configurações A e B durante os anos 1930 era
primordialmente do tipo –tawari, o que equivale a dizer que eles se encontravam na maioria
das vezes durante os Hori, não estou sugerindo que outros tipos de relação entre eles
fossem impossíveis. De fato, um dos aspectos que os Kanamari mais realçam dessas
reuniões rituais Hori dos anos 1930, quando os arranjos de residência estavam sendo
renegociados, era a possibilidade de re-desenhar as unidades e de mudar aqueles com quem
se co-residia em uma escala que, antes, o modelo de endogamia do subgrupo não permitia.
Os Hori se tornaram, assim, uma máquina para criar e dissolver relações.
O Hori
De acordo com o modelo de endogamia do subgrupo, as reuniões rituais Hori
acompanhavam a maioria dos encontros entre os subgrupos, e deveriam ser concluídas
exatamente da mesma maneira que começaram, com os convidados voltando para casa e os
79
anfitriões ficando em suas aldeias. Hoje, os Kanamari do Itaquaí dizem não promover mais
o Hori, mas eles me descreveram como estes deveriam ser realizados referindo-se aos Hori
dos anos 1930, que pré-datam a migração para o Itaquaí. Este é um período em que, como
acabamos de ver, a endogamia do subgrupo estava cedendo lugar à outras configurações, e
os Hori que me foram relatados revelam tais mudanças. Mas, ao ouvir essas descrições,
achei difícil pensar que um Hori sempre teminava mantendo a separação entre convidados
e anfitriões. A razão primordial desses rituais parece-me ter sido precisamente testar os
limites dessas demarcações, experimentar a vida entre outros, e a tentação de continuar
com o experimento após o período do ritual deve ter sido sempre grande. Os Hori que irei
descrever agora revelam esse atrativo, e as tensões daí resultantes.
Como deve estar claro, Hori é o nome de uma reunião ritual. É também o nome
do pote de cerâmica usado como um instrumento de ressonância antes e durante essas
reuniões. No passado, esses instrumentos eram feitos de argila, mas hoje podem ser feitos
com garrafas de vidro sem o fundo que, quando assopradas, produzem um som grave que
pode ser ouvido a grandes distâncias
51
. A palavra para ‘vomitar’ também é hori. Entretanto,
os Kanamari negam qualquer aproximação entre os dois significados da palavra. Enquanto
enfatizaram que a palavra para reunião ritual e a buzina tocada nos rituais seja a mesma,
‘vomitar’, segundo eles, é outra coisa e nunca foi dito constituir uma parte da reunião ritual,
a despeito das grandes quantidades de cerveja consumida nessas ocasiões. A quantidade de
cerveja e de comida em si sugere que o ato de vomitar deve ter feito parte do ritual, apesar
de os Kanamari não enfatizarem isso. Neste ponto, o ritual difere de outros rituais muito
similares, como o tamara realizado entre os Wari’ do estado de Rondônia (Vilaça 2006, 108-
22). Não obstante, parece haver uma conexão entre ‘vomitar’ e as tensões que o ritual
engendra, uma conexão que se torna explícita em um Hori mítico que ocorreu entre a Paca
e a Anta. Esse mito será analisado no capítulo quatro. Irei me referir aqui à seqüência do
ritual, conforme os Kanamari me explicaram.
Organizando o ritual
O Hori me foi definido como “ir buscar pessoas para beber caiçuma fermentada”
(tukuna hina koya [passinim] ama), e o exemplo usado para me explicar o ritual foi
precisamente aquele dos Mutum-dyapa indo do Komaronhu para o Mawetek em direção
aos Ja-dyapa. O propósito principal do Hori era ver os –tawari, visitar suas aldeias e
51
Grifarei o nome do ritual com letra maiúscula (Hori) e do instrumento com minúscula (hori). Os Kanamari
traduzem a palavra hori por ‘buzina’, e respeitarei a tradução deles.
80
apaziguar possíveis ressentimentos; mas era também uma oportunidade de estabelecer
novas relações. Mesmo que casamentos não fossem realizados entre pessoas de subgrupos
diferentes no passado, todos ressaltaram que os Hori eram momentos privilegiados para
casos amorosos entre pessoas que viviam em áreas distantes. No período que nos
concerne, tais casos podiam, de fato, desencadear casamentos e relocação. Os Hori
deixavam as pessoas ‘felizes’ (nobak), um sentimento causado pela oportunidade de
encontrar-se com outros, embora os Kanamari soubessem que tais encontros podiam
acabar em violência. Grandes quantidades de caiçuma fermentada e de bebida de pupuha
eram necessárias e, por isso, o ritual precisava ocorrer durante períodos de aglomeração nas
malocas, tanto na estação seca como na estação chuvosa, mas preferencialmente na
transição de uma estação para outra (c. outubro)
52
. O grupo que se reunia em uma maloca
eram parentes (-wihnim) e decidiam que chegara a hora de realizar um Hori com seus -tawari.
que as pessoas se reuniam em torno dos chefes, era o chefe que normalmente iniciava o
Hori, dizendo às mulheres que colhessem mandioca e organizando os homens para que
viajassem até seus –tawari para notificar a intenção de realizar um Hori.
Essas missões que antecedem o Hori em si se davam de rias maneiras. Tastevin
(n.d.1, 110) explica que os convites entre os ‘clãs’ eram transmitidos ‘pela intermediação de
viajantes’, e aponta que ele próprio fora certa vez incumbido dessa tarefa, dizendo a um
chefe do Queixada-dyapa que o chefe do Jaguar-dyapa estava aguardando-o. Outras visitas
podiam ser realizadas por um homem ou grupo de homens, preferivelmente, mas nem
sempre, incluindo o chefe. Independente de quem viaja em direção à aldeia dos –tawari, o
encontro entre dois grupos se como um encontro entre dois chefes. Os convites podem
ser de dois tipos: aqueles que viajam podem convidar os outros a viajarem até a aldeias
deles, ou podem avisá-los que se preparem para receber visitas. Os Hori são eventos
recíprocos, e quem é anfitrião mais tarde será convidado.
Os convites eram importantes porque os futuros anfitriões precisavam saber com
antecedência que seriam visitados, de modo que pudessem preparar a comida e a caiçuma
em grandes quantidades
53
. Por isso o ritual em si era mais ou menos antevisto, e se sabia
quando os convidados iriam chegar. As missões eram, então, os únicos momentos em que
uma aldeia podia ser surpreendida pela visita dos –tawari, pessoas vistas apenas
52
A época do ano define em grande parte o tipo de bebida oferecida aos convidados. Durante a época das
chuvas, quando a pupunha está madura, eles sabem que a bebida de pupunha será servida, enquanto durante
o verão é a vez da mandioca. Os Kanamari, contudo, não classificam o Hori de acordo com o tipo de bebida;
ambos são referidos pelo mesmo termo.
53
Não sei se havia um método para se calcular o tempo entre uma missão e o Hori em si, mas é provável que
sim, não fosse isso, se os convidados demorassem a chegar, a bebida de mandioca passaria do ponto.
81
esporadicamente. À medida que os viajantes se faziam presentes nas proximidades de uma
aldeia, os residentes destas começavam a suspeitar de que havia a presença de outras
pessoas nas cercanias. É comum, e considerado de bom tom, que os viajantes façam soar
seus hori ao se aproximarem, para que os outros saibam que estão sendo chamados para
uma festa. A relação –tawari, como aquela entre cunhados, é caracterizada pela brincadeira,
e os viajantes podem se valer do elemento de surpresa para enganar seus –tawari ao, por
exemplo, não fazerem soar seus hori. Eles deixam pegadas onde sabem que os outros
passam e quebram ramos de mandioca nos roçados sabendo que estes serão notados, em
uma espécie de ‘esconde-esconde’ que pode durar dias. Podem também imitar (-ma-dyi)
sons, com freqüência gritos de caça ou de pássaros, mas às vezes sons mais sinistros como
o choro de crianças. Tudo isso constitui um comportamento perigoso, porque tais sinais
com freqüência indicam a presença de feiticeiros bauhi. Um homem na aldeia pode ver
esses sinais ou ouvir esses sons e dizer a sua mulher: “Não sei se são bauhi ou meus –tawari
que vieram me ver”. Ele dormirá com um olho aberto e seu arco por perto
54
.
Um dia, enquanto caça ou caminha em direção ao seu roçado, um homem esbarra
em alguns de seus –tawari, os quais ele possivelmente não faz tempo. “Ah, meus –tawari,
eram vocês”! Talvez, dependendo do quão bem ele conhece os visitantes, ele iconvidá-
los até a aldeia para tomar uma caiçuma refrescante preparada por sua mulher e onde pode
haver alguma comida. Antes de irem embora, eles deixam seus hori de cerâmica com seus
anfitriões, para ser devolvida quando estes viajarem para o ritual. Esse ato do ritual é
chamado de ityowa hori paka-, ‘deixando nosso hori
55
’.
Pode ser que os Kanamari que foram surpreendidos pelos seus –tawari decidam, se
for apropriado, retornar com os viajantes para suas aldeias. É mais comum, entretanto, que
os visitantes voltem sozinhos, e os ex-anfitriões – que logo serão convidados – se preparem
para a viagem nos dias seguintes. Os Hori irão envolver aldeias inteiras e, com freqüência,
subgrupos inteiros. Isto é, homens, mulheres e crianças viajam ‘em direção a seus –tawari
(tyo-tawari pato-na). A parte mais importante dos preparativos envolve pintar os rostos e
corpos com genipapo e urucum:
54
Em termos gerais, um Kanamari faria isso apenas com pessoas que ele chama de –tawari. Em outras
palavras, se alguém está organizando um Hori com pessoas distantes raramente vistas, na esperança de torná-
los –tawari, essas travessuras seriam impensáveis, e elas provavelmente e merecidamente, diriam os
Kanamari resultariam em mortes. É apenas quando uma relação –tawari é efetuada que se pode começar a
rir às custas dos outros.
55
A expressão requer que um sufixo dêitico seja acrescentado ao verbo paka-, ‘deixar’. Isso depende da
posição da pessoa que está falando. Paka-na então significaria ‘deixar lá’, e paka-dyi ‘deixar aqui’.
82
“Dans ces réceptions officielles, ils déploieront tout l’éclat don’t ils sont capables.
C’est ainsi qu’[?]vant de faire une visite, ils se barbouillent le visage de rouge et le décorent de
peintures. Les femmes en particulier se rendent aussi belles que possible et se couvrent de traits
noirs et rouges formant des motifs variés” (Tastevin n.d.1, 112)
56
.
Também era importante ter alguma comida para consumir durante a viagem, que
podia levar uma semana se os –tawari morassem longe. Isso requeria um certo tempo para
a realização de uma caçada. A carne de caça era então defumada ou, em tempos mais
recentes, salgada para a viagem. Os pedaços de mandioca cozida que sobram do processo
de fazer a bebida de mandioca, chamados de koya-pru, eram com freqüência levados para
acompanhar a carne, assim como a caiçuma (koya) em si. Também se levava mandioca e
pupunha cozida para incrementar o banquete dos futuros anfitriões.
A festa para a qual estão a caminho é do chefe da outra aldeia, o homem que havia
aparecido para chamá-los ou que havia enviado os viajantes. Como os Hori com freqüência
aconteciam em torno da maloca, esse homem era o chefe do subgrupo. Aqueles que agora
estão com o hori– os convidados futuros – referem-se ao instrumento como o hori do chefe.
Em um caso, por exemplo, em que o Hori era do chefe Oki dos Queixada-dyapa, o
instrumento foi referido como Oki nawa hori, ‘o hori do Oki’. A viagem que eles então
empreendem em direção à aldeia dele, em que eles levam o hori de cerâmica com eles é dita
ser ‘acompanhando o hori [do chefe] até lá’. No exemplo citado acima, eles chamariam esta
viagem de Oki nawa hori-wa-na, “acompanhando a hori do Oki até lá”.
Isso também ressalta a importância do chefe visitante no ritual. Ele é aquele que
deve seguir em direção aos seus –tawari; sem ele não banquete. Não é incomum que a
aldeia inteira empreenda a viagem, mas na maioria das vezes alguém deixa de ir junto. A
ausência de todos os integrantes de uma aldeia oferece uma oportunidade para outros
roubarem a aldeia vazia. ‘Roubar’ (obarinho) um do outro faz parte da relação –tawari, e nos
casos em que a aldeia inteira participa do Hori, seus integrantes levavam seus pertences
junto. Entretanto, nos casos em que o Hori será realizado com outros potencialmente
perigosos, seria imprudente ficar para trás, que feiticeiros podem estar à espreita. Nesses
casos, quase todos os pertences eram levados na viagem.
Aproximando-se dos anfitriões, recebendo os convidados
56
Devo acrescentar que embora Tastevin descreva uma série de Hori em ricos detalhes, ele não os chama por
esse termo nem uma vez. Eles são apenas ‘reuniões’ ou ‘visitas’. A maioria dessas reuniões descrita por
Tastevin ocorreu entre os Kanamari que vivem na margem direita do Juruá, rio abaixo do que é hoje a cidade
Eirunepé e distante da área que nos concerne, e é possível que eles empreguem um termo diferente para esses
rituais. Ou pode ser que o termo não fosse utilizado na época.
83
À medida que os viajantes aproximavam-se, o chefe convidado fazia soar o hori e as
mulheres começavam a cantar. Na aldeia, os anfitriões estariam ocupados com seus
afazeres quando ouviam o hori: “horiiiiiiiiiiii, horiiiiiiiiiiiiii”. Eles ainda teriam tempo
suficiente para se preparar: os homens afastados da aldeia apressam-se de volta; as
mulherem começam a pintar umas às outras. A essa altura eles podem ouvir o canto das
mulheres convidadas e começam, então, a encher os potes de cerâmica com bebida de
mandioca, que fora deixada fermentando em uma canoa especial chamada podak na língua
Kanamari, feita da casca de uma árvore esculpida. Os convidados chegam e armam os seus
dyaniohak nas capoeiras em torno da maloca de seus anfitriões. Os anfitriões então visitam o
acampamento dyaniohak onde as mulheres anfitriãs ‘servem’ (nodoki
57
), cantando, caiçuma de
mandioca ou bebida levemente fermentada de pupunha aos homens convidados. Depois os
homens anfitriões fazem o mesmo em relação às mulheres convidadas.
Também se serve comida e é necessário que haja quantidades enormes. Um Hori
em que a comida ou, o que é pior, em que a caiçuma acabem é uma vergonha para os
anfitriões, e os convidados vão embora jurando nunca mais voltar. Os homens devem
trazer tanta carne de caça que as mulheres não conseguem cozinhá-la e as mulheres, por
sua vez, devem ‘tornar os homens cheios’ (-ta-bu’man) com cerveja de mandioca, deixando-
os embriagados e saciados, incapazes de comerem mais. Tudo isso é acompanhado por
uma série de jogos, como o tyiri-pa, um tipo de ‘pega-pega’. Nesse jogo, um grupo de
mulheres convidadas oferece uma fruta ou um pedaço de cana-de-açúcar, chamado de
tyiri’, aos homens anfitriões. Elas desafiam os homens anfitriões a pegarem o tyiri, dizendo
“vocês nunca tirarão o tyiri da gente”! À medida que os homens se aproximam do tyiri, as
mulheres vão passando-o e arremessando-o umas para as outras, enquanto os homens se
jogam em direção às mulheres, tentando interceptar os pedaços de fruta que estão voando
pelos ares. Os homens sempre conseguem pegar o tyiri, mas as mulheres resistem e os
homens dizem que têm que ‘aguentar’ (kima) a força das mulheres
58
.
Se a relação –tawari se entre pessoas de mesmo sexo, aquela de compartilhar a
caiçuma e os ‘jogos’ se entre pessoas de sexo oposto. então um elemento do ritual
que não se dá entre -tawari/-tawaro, e que aponta para a transgressão nos procedimentos por
57
Esse verbo significa que a pessoa leva a cuia até a boca do outro, que engole o líquido sem tocar na cuia.
58
Tradicionalmente esse tyiri sempre foi um pedaço de fruta, mas hoje pode ser algum objeto ocidental.
Todos os presentes que eu levei para as mulheres Kanamari, por exemplo, tiveram que ser distribuídos por
meio de jogos tyiri-pa. Disseram-me que isso deixava a aldeia feliz, porque se eu desse um presente para uma
mulher, ela iria embora e apenas olharia para o presente em casa, enquanto no tyiri todos podiam participar e
ajudar a mulher ‘conseguir’ (man) seu presente.
84
meio da qual as ligações sexuais podem ser arranjadas. O tyiri-pa é um momento quando o
potencial sexual do Hori é explicitado, e os homens que o participam com freqüência
gritam àqueles que participam para ‘pegarem as vaginas delas’!, por exemplo. Os homens
Kanamari que me falaram a respeito desse jogo disseram que os homens se aproximam das
mulheres com as quais gostariam de ter relações sexuais durante o tyiri-pa, e vice-versa. Eles
se referiam às mulheres como a karim dos homens, que quer dizer ‘amante’.
A maior parte dos encontros do Hori ocorre no espaço entre a aldeia e a floresta,
em uma área que pode ser tanto uma ‘roça’ (baohnim) como uma ‘capoeira’ (baohnim padya,
literalmente: ‘roça vazia’). O fato de o ritual ocorrer é importante, particularmente se ele
também ocorre durante o período de transição da estação seca para a chuvosa, quando a
palmeira pupunha (Bactris gasipaes) começa a dar frutos e as frutas selvagens da floresta
abundam em torno da terra cultivada. As capoeiras são inextrincavelmente ligadas às
palmeiras, particularmente à pupunheira, mas também ao buriti (Mauritia flexuosa) e ao açaí
(Euterpe oleracea). Como acontece com os Huaorani (Rival 2002, 87), os Kanamari associam
as palmeiras com o crescimento vagaroso e a continuidade generacional, estando ligadas
aos ancestrais sem nome (-mowarahi) que morreram há muito tempo atrás e tornaram a terra
fértil. A abundância de comida que os Kanamari irão consumir durante o Hori depende
parcialmente dessa associação e, até certo ponto, é esse corpo distante e disforme informe
de inúmeros ancestrais que permite situar tanta gente em um só lugar.
Mas Esses ancestrais e as capoeiras que deixaram para trás também representam um
perigo. Para que se tornem ancestrais sem nome, os Kanamari precisam ter um cacho de
cabelo enterrado durante o ritual do ‘Devir-Jaguar’, que deve ocorrer na estação seca,
provavelmente logo antes de um Hori. Embora seja verdade que, após o enterro do cabelo,
o morto venha a ser associado à continuidade vegetativa, o fato de que isso é possível
quando os homens Kanamari se tornam ritualmente Jaguares coloca um problema. Um
deles é que o ato de transformar ancestrais em palmeiras tem, como contrapartida, a
criação de um tipo de ser grotesco conhecido como adyaba (ver capítulo seguinte). As
capoeiras são, assim, capazes de reunir os ‘corpos’ de pessoas que deveriam permanecer
separados, mas fazem isso posicionando o subgrupo num contexto onde as relações nem
sempre são seguras, impelindo-os para uma arena onde podem se reunir para celebrar a
fertilidade do mundo e a abundância dos alimentos, mas onde as tensões ficam à espreita
atrás das diversões que são visíveis na superfície.
Tastevin descreve a situação em que um grupo chega a uma aldeia apenas para
encontrá-la vazia exceto por um gardien du camp’ e sua mulher. Citarei na íntegra o
85
comentário de Tastevin a respeito desse encontro, uma vez que este revela algumas dessas
tensões latentes e sua dissipação:
“Le lendemain à leur arrivée, ils signalèrent leur approche par le chant de la perdix uru
très gai et três vif. Les hommes entrèrent les premiers, les armes à la main et entièrement nus,
mais le visage peint. Ils passèrent sans rien dire et s’en furent déposer leurs armes. Les femmes
n’arrivèrent qu’une demi-heure après elles étaient restées déposer leur fardeau de pupunha
dans un endroit secret [du autre coté] de la rivière. Elles s’etaient peint le visage et avaient
préparé une boisson avec la pulpe de pupunha. En franchissant le pont de la rivière, elles
entonnèrent des chants de bienvenue avec une belle voix, sonore, vibrante et plein d’allégresse.
Elles portaient au bout des bras au-dessus de leur tête, les calebasses pleines de la bonne
liqueur si nourissant. Comme toujours elles se suivaient à la queue […], et elles arretèrent
devant moi, toujours en chantant dans la même position. La première abaissa sa calabasse et la
porta à mes vres. J’en bus à longs traits pour lui faire plaisir. Elles passa ensuite à mes deux
compagnes et exécuta les mêmes cérémonies. Ensuite ses compagnes chacun à leur tour
l’imitèrent et nous eumes à tremper au moins nos lèvres dans toutes les calabasses” (n.d.1, 114)
Uma das características definidoras do Hori é o consumo de bebidas fermentadas
(koya passinim, lit. ‘bebida azeda’). Idealmente, bebidas fermentadas não devem ser
consumidas fora do ritual. Provocam embriaguez (pori) e com freqüência ‘raiva’ (nok) ou
‘insanidade’ (parok), condições que talvez abram precedente para atos de agressão,
perturbando então a paz precária e com freqüência elusiva que se espera da vida na
aldeia. É dito dos anfitriões que humilham seus convidados com grande quantidade de
cerveja, fazendo-os desmaiarem, que estes ‘mataram’ (-ti) seus convidados
59
. É por isso que
– de novo, idealmente apenas bebidas não fermentadas devem ser consumidas no espaço
da aldeia. Mas durante o Hori esse tipo de perigo é desejado e, como aponta Tastevin
acima, os homens chegavam armados, prontos para se arriscarem. Uma das razões pelas
quais os Kanamari bebem é precisamente para tornar-se ‘raivosos’, que é o mesmo que
dizer corajosos. Isso aumenta a tensão e a ambigüidade que caracterizam esses momentos
60
.
Nenhum dos Kanamari com os quais eu falei enfatizou a troca de presentes como
uma parte importante do Hori, exceto nas situações que envolviam o tyiri-pa, mas Tastevin
59
Pessoas excessivamente embriagadas desmaiam. A palavra para ‘desmaiar’, otyuku, significa ‘um tipo de
morte’, e a palavra para ‘matar’, -ti, significa qualquer golpe com a intenção de causar mal. Como pessoas
embriagadas vivenciam ‘um tipo de morte’, faz sentido que aqueles servindo a bebida sejam seus ‘matadores’.
Quando os Kanamari bebem cachaça com os brancos na cidade de Atalaia do Norte, eles dizem que alguém
que desmaiou ‘já morreu’ (ver capítulo sete).
60
A violência com freqüência irrompia durante os Hori e em duas ocasiões sobre as quais ouvi falar, acabaram
em morte. Em uma dessas ocasiões, a vítima era um convidado e o culpado fugiu, sendo imediatamente
seguido por homens armados do subgrupo que agia como convidado.
86
oferece, mais uma vez, uma descrição particularmente rica de como isso ocorria. Ele
observou que os anfitriões e os convidados trocavam tudo que tinham, como um ‘sinal de
amizade’: “à ce moment ils se dépouillent les uns les autres des choses qui leur sonte les
plus chers, mais ainsi l’ami garde de son ami un souvenir durable et flateur” (n.d.1, 111).
Ele escutou dois cantos que lidam com essas trocas, o primeiro envolvendo mulheres que
cantam para mulheres e o outro, homens que cantam para homens. Os cantos estão
transcritos abaixo com as traduções do próprio Tastevin:
Wa mininin (8 vezes)
Idik ti cuepi te teknin
Wamininin (8 vezes)
Ah! Nihã, nihã, i-tawaru!
“Tu n’as pas (?) des perles noires?
Ah! Que tu es avare, mon amie!
E também:
Numanuma (8 vezes)
Idekti kuciru
Numa numa
Ah, nihã, nihã, itawari
“Tu n’as pas de couteau?
Ah! Que tu es avare, mon ami!”
61
(n.d.1, 113).
No primeiro canto, observamos o uso da palavra i-tawaro, que vimos ser o
equivalente feminino da relação –tawari. Tatstevin relata que esses cantos eram de fato
cantados para os –tawaro e –tawari; isto é, eles eram cantados para outros de mesmo sexo. O
primeiro canto pede sementes pretas usadas para fazer colares, e o segundo uma faca.
Assim, ambos se referem a determinados itens associados a cada gênero. É curioso,
também, que no segundo canto é um objeto dos brancos que está sendo requerido.
Em um determinado nível, os cantos enfatizam a ausência de parentesco entre
convidados e anfitriões. Chamar alguém de ‘avarento’ (nihan) é um sinal de que o
parentesco está sendo negado ou questionado. Os parentes devem ser generosos (nihan tu)
61
Uma tradução mais exata talvez fosse: Você comprou uma faca, você comprou / você, uma faca /
Você comprou, você comprou / Ah! Avarento, meu tawari’ avarento.
87
uns com os outros. Mas Tastevin também observa que uma série de trocas de fato
acontecem, sendo improvável a ocorrência de ‘avareza’, uma ambigüidade que é típica do
Hori. As coisas estão circulando, mas as pessoas sempre se sentem lesadas. De acordo com
essa perspectiva, os cantores parecem estar provocando seus –tawari e –tawaro para que
dêem mais, e assim se comportando como parentes; eles são, assim, não-parentes que
devem se comportar como parentes, abdicando de suas coisas.
Tastevin relata que em um dos Hori que ele presenciou uma visita de um Jaguar-
dyapa aos Peccary-dyapa terminou com o primeiro indo embora e o último gritando:
“Vocês com certeza me enganaram, meus tawari” (n.d.1, 113). Esse grito se refere a mais do
que a circulação de produtos e mercadorias, pois vimos que um Hori é também uma
ocasião em que acontece uma série de casos amorosos entre homens e mulheres de
diferentes subgrupos. Esses casos se davam com freqüência entre jovens não casados, mas
casos extraconjugais também eram comuns. Os casais com freqüência planejavam seus
encontros de dia, talvez durante um tyiri-pa, e então, à noite, nos roçados, escondidos sob
os abrigos dyaniohak, eles encontravam seus amantes. Esperava-se dos homens que dessem
presentes às suas namoradas, os mais comuns sendo mercadorias ocidentais, e as mulheres
separavam os melhores pedaços de fruta para seus namorados.
Quando as reservas de comida começavam a chegar ao fim e todos estavam
cansados prontos para irem embora, o Hori terminava. Mesmo se, como os Kanamari
asseguram, no passado distante, esses rituais nunca envolvessem a possibilidade das
pessoas se mudarem para outra bacia hidrográfica, ou de esposar alguém entre as pessoas
de outro subgrupo, nos anos 1930 isso com certeza estava acontecendo, e nada podia
garantir que esses ‘grupos’ saíssem do Hori da mesma maneira que entraram. Era comum
que algumas mulheres convidadas se envolvessem com homens anfitriões e decidissem
ficar, por exemplo, e o fim de um Hori é um momento quando os homens anfitriões têm
que ser extremamente cuidadosos, porque muitas mulheres anfitriãs podem fugir com os
homens convidados
62
. No ano seguinte, tudo se repetiria, mas os anfitriões seriam os
convidados, empreendendo a viagem em direção aos seus –tawari.
A Luta de Couro de Anta
62
Os Kanamari chamam esses tipos de arranjos nupciais de dyam-dyam-nim’, ‘fugindo-fugindo’. São um jeito
engenhoso de evitar o ‘serviço da noiva’ levando uma noiva de um subgrupo que é muito distante para uma
terra que nem ela nem seus parentes conhecem muito bem. Mas eram (e são) casamentos instáveis, que
raramente duram muito tempo. São similares aos ‘casamentos selvagens’ entre os Huaorani, com ‘outras’
pessoas não relacionadas (Rival 2002, 141).
88
Alguns Hori podem resultar em uma flagelação ritual entre convidados e anfitriões
chamado de luta de couro de anta’ (mokadak) ou ‘madeira pequena’ (omamkom). Disseram-
me que essas flagelações podiam ocorrer em qualquer Hori, mas o exemplo que eu ouvia
recorrentemente dizia respeito a um Hori específico que envolveu a viagem de alguns
Kanamari até uma aldeia Kulina, situada em um tributário da margem direita do Juruá.
Esses Kulina viviam, portanto, no lado oposto do Juruá em relação aos Kanamari cuja
história estamos rastreando, e esse Hori provavelmente ocorreu nos anos 1930, quando
subgrupos estavam mesclando-se, formando as configurações definidas por mim acima.
Descreverei primeiramente a luta de couro de anta do modo como me foi explicado
antes de voltar-me para uma descrição do encontro dos Kanamari com os Kulina.
Concluirei considerando o porquê dos Kulina, um povo falante de uma língua da família
Arawá, ocuparem, em alguns momentos, a posição de –tawari. No capítulo seguinte, em
que considerarei os processos por meio dos quais os Kanamari deixaram de evitar os
brancos e começaram a trabalhar com eles, irei contrastar a posição de –tawari potencial
dos Kulina com aquela dos brancos, que eram originalmente chamados de –tawari, e os
Dyapa, que sempre permaneceram Outros irredutíveis.
Descrição do Mokdak
Mokdak é uma referência refere-se ao couro do qual é feita a correia do chicote
usado para açoitar o oponente em uma luta de couro de anta. Sua tradução literal é ‘couro
de anta’, e embora o couro usado no chicote possa ser de anta, uma tira de pele de peixe-
boi (tyopuna)
63
é mais comumente usada. O termo omamkom se refere ap pequeno pau em
cuja ponta o couro é preso. Ambos os termos podem ser usados para se referir ao chicote
em si ou à flagelação ritual. Os Kanamari costumavam amarrar o ferrão de uma arraia ou os
dentes de uma piranha na ponta do chicote para cortar seus adversários.
Tastevin descreve um Hori entre o Queixada-dyapa e o Macaco Uacari-dyapa em que
a luta de couro de anta foi um dos primeiros eventos que acorreram e aparentemente a
principal razão de ser do ritual. Ele sugere que a flagelação era uma parte importante da
maioria dos Hori, mas no Itaquaí disseram-me que esta ocorria apenas em certas ocasiões.
A sua descrição é interessante porque revela certos contrastes com o que me disseram:
63
O peixe-boi e a anta m a mesma origem mítica: a anta é um peixe-boi que deixou o rio, e o peixe-boi é
uma anta que preferiu morar no rio (ver Reesink 1993, 229). Quando os Kanamari se referem à luta de couro
de anta em português, eles chamam-na de ‘peixe-boi’.
89
En conviant les Wiri-dyapa à venir se faire fustiguer, le chef des Amöna-dyapa faisait
allusion à la cérémonie rituelle suivante: lorsqu’un clan est en visite chez un autre, ils
commencent les fêtes qu’ils sont venus lébrer ensemble par une fouettage réciproque. A cet
effet, l’homme-médecine a toujours bien enveloppé et au frais au moins une pairs de lanières
de tapir. Au bout de la lanière est attaché un os de lamentin de forme prismatique et vers le
milieu est fixé soit une queue de raie, soit une machoire de piranha, soit une autre objet de
torture. Pour l’usage la lanière est attachée a une baguette rigide et forte qui sert de manche.
L’hôte se présente aux coups, le bras tendus en croix, défiant sont adversaire et sautillant: le fo
et très souple lui faire le tour de la poitrine lui arrachant la peau et lui faisant couler le sang,
mais s’il est brave l’indien ne fuit pas et soutient deux, trois ou plus de ces assauts. Il prend en
suite sa revanche et donne les coups qu’il a recus: si l’autre ne les supporte pas, il ne pourra
évidemment pas se comparer à son adversaire. Lors de certaines fêtes tout le monde est
fouetté: les femmes se fouettent entre elles et ce ne sont souvent pas les moins acharnées. Puis
ont bat aussi les enfants, même ces qui sont à la mamelle, sans y mettre de la force évidemment
et les mamans elles-mêmes rient de la peur de les enfants. (n.d.1, 111).
Muitas das pessoas mais velhas no Itaquaí tinham cicatrizes em seus corpos,
particularmente logo abaixo das axilas, decorrentes dessas lutas de couro de anta. Poroya
explicou-me que essas brigas o eram jogos ou divertimentos; eram ‘guerra’
64
. Os
sangramentos precisavam ser tratados de modo correto, caso contrário o sangue coagularia
e prejudicaria o fluxo de sangue para o coração, possivelmente resultando em morte.
Embora as lutas de couro de anta fossem mais comuns entre os subgrupos, não ocorriam
apenas nos Hori, pois podiam também, a mando do chefe, ser usadas para aplacar certas
disputas dentro de uma bacia hidrográfica. Tais disputas normalmente ocorriam durante os
períodos em que o subgrupo aglomerava-se em torno da maloca, quando as queixas
podiam ser manifestadas e tornadas públicas na presença de um chefe –maita. As queixas
incluíam acusações de roubo, infidelidade, avareza e talvez até de feitiçaria. Em tais casos,
essas brigas eram equivalentes à negação do parentesco, mas de fato tudo o que faziam era
tornar essa negação pública, pois o roubo, a avareza, a feitiçaria ou a acusação de tais
práticas eram, em si, sinais de que alguém o estaria se comportando como parente. A
pessoa que perdia isto é, que o ‘aguentava(kima) os açoites, retraindo-se da disputa
tinha que deixar a aldeia do vencedor e estabelecer a residência em outro lugar.
64
A palavra Kanamari para ‘guerra’ é nok, a mesma palavra usada para designar para ‘raiva’. Os Kanamari
dizem que quando eles ficam com ‘raiva’ eles brigam, a não ser que a raiva seja aplacada. Farei uma exposição
de algumas das razões disso no capítulo seis. outra palavra que significa ‘brigar’, omahik. Os Kanamari
disseram que omahik se refere exclusivamente às brigas que envolvem os dardos xamânicos dyohko, mas
ouvi a palavra empregada em outros contextos.
90
Os Kanamari com os quais falei concordam com as observações de Tastevin de que
as lutas de couro de anta ocorriam entre pessoas do mesmo sexo. Não me foi fornecida
nenhuma informação sobre o papel dos xamãs ou da flagelação de crianças. Embora os
xamãs o pareçam desempenhar papéis na maioria das descrições que me foram dadas,
veremos logo adiante que os cantos ligados ao xamanismo não obstante desempenham
papéis no ritual. Os Kanamari não associam o oitamento de crianças à luta de couro de
anta, embora os homens ocasionalmente incorporem espíritos conhecidos como Kiriwino
que amendrontam as crianças e as chicoteiam com pedaços de bamboo, para deixá-las
‘fortes’ (wa-man) e ajudá-las a ‘crescer’ (tyuru), de um modo similar aos mariwin entre os
Matis (Erikson 2004)
65
.
muitas casas no Itaquaí atualmente em que se encontra, escondido entre as
folhas do telhado, um chicote, que poderá ser usado caso alguém seja desafiado, ou tenha
que desafiar alguém, a lutar. Em 2003, quando eu estava ausente do campo, ocorreu uma
dessas lutas entre duas mulheres. Disputavam um homem que era casado com uma delas e
mantinha um caso extraconjugal com a outra. A fofoca e as discussões entre as duas
estavam tornando a vida na aldeia insuportável e prejudicando a qualidade de ‘viver com
parentes’ que os Kanamari valorizam. O homem em questão foi embora por um tempo,
para a cidade Atalaia do Norte, mas as tensões permaneceram. Na ausência do homem, o
chefe da aldeia decidiu que as duas mulheres deveriam solucionar a disputa com uma luta
de couro de anta em que os chicotes foram usados. A amante perdeu, e teve que ser tratada
pela enfermeira da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que estava então presente na
aldeia, devido aos ferimentos decorrentes do açoitamento, que me disseram eram
consideráveis. A mulher nunca deixou a aldeia, mas o caso extraconjugal aparentemente
acabou, ou pelo menos não mais se tornou público.
Eu testemunhei uma variação da luta de couro de anta, que novamente irrompeu
devido a um caso extraconjugal, envolvendo uma mulher e a amante de seu marido
enquanto o homem estava ausente. É possível que a ausência do homem em ambos os
casos tenha impelido o chefe à ão, porque foi mais uma vez devido à sua iniciativa que a
briga começou. Uma das mulheres em questão era filha do chefe e a outra filha de seu
filho, respectivamente mulher e amante
66
. Certo dia, quando a aldeia inteira estava
65
Os Kiriwino, por sua vez, são uma espécie de categoria adyaba (ver capítulo dois).
66
Nessa briga a maioria da aldeia tomou partido da amante, o que presumi ser bastante raro. Isso pode dever-
se ao fato de que o casamento em questão era considerado terrivelmente errado e até incestuoso, pois o
homem e sua mulher eram relacionados como MZ/ZS. Esse foi o único caso no Itaquaí em que um
casamento entre pessoas com essa relação aconteceu, e os Kanamari não ficaram surpresos com os
problemas que daí decorreram, dizendo-me repetidamente que era um exemplo do tipo mais terrível de
91
levemente embriagada de caiçuma fermentada, o chefe foi perturbado por pessoas dizendo
que as duas mulheres estavam brigando e planejando machucar uma à outra. Ele levantou-
se imediatamente, foi até sua filha, pegou-a pelo braço e levou-a até o local onde estava sua
neta, dizendo: “então vocês querem brigar? Vocês querem tornar-nos azarados
67
? Bem,
agora vocês vão lutar! Vocês vão fazer um omamkom”! A aldeia reuniu-se em torno do
pátio, e as duas mulheres lutaram, mas com seus punhos e não com os chicotes mokdak. A
mulher do homem não foi capaz de ‘aguentar’ os socos e concedeu, virando as costas para
sua rival e deixando o pátio chorando. Durante a semana seguinte ela refugiou-se em uma
pequena cabana perto da aldeia, apenas voltando na presença de seu marido. Eles
permaneceram casados, entretanto, e o caso extraconjugal aparentemente acabou, nunca
sendo mencionado na minha presença novamente. Disseram-me que no passado o mokdak
podia também, na falta de chicotes, ser uma briga de punho e os Kanamari fabricavam uma
arma, parecida com um soco inglês, mas feita com a carapaça de um tracajá, usada nessas
situações. A luta descrita acima foi, assim, chamada de mokdak ou omamkom.
As situações que observei no campo confirmam as observações de Tastevin de que
as lutas ocorriam entre rivais do mesmo sexo. Ambos, entretanto, envolviam disputas
matrimoniais, que não eram, segundo os Kanamari, a razão principal dos mokdak no
passado. Isso aproxima o mokdak de disputas rituais similares, como as brigas de borduna,
mixita, entre os Wari’ (Vilaça 1992, 151-6)
68
. Para esse povo, as disputas matrimoniais que
também envolvem casos de infidelidade começam quando um homem acusa sua mulher de
estar traindo-o, em seguida agredindo-a. A aldeia então se divide em dois grupos: os
parentes próximos da esposa e aqueles próximos do homem, isto é, em grupos de pessoas
que são afins uns em relação aos outros. Isso abala a cognação que organiza as aldeias Wari’
na maior parte do tempo, ao revelar as tensões latentes em que o valor de uma mulher é
questionado. Mas os Wari’, que têm subgrupos similares àqueles dos Kanamari, parecem
deduzir isso das tensões existentes entre as pessoas de diferentes subgrupos no passado:
casamento que as pessoas podiam consumar, similar apenas aos cachorros. Para piorar a posição da esposa, a
amante de seu marido era a MBD dele (e BD dela), que fazia os dois primos cruzados, parceiros preferíveis de
casamento.
67
A palavra usada pelo chefe foi miori. O termo é usado para descrever o estado de uma aldeia quando
alguma coisa perturba as relações sociáveis que as pessoas tentam estabelecer, como aquelas nas mortes,
doenças e ataques de feitiçaria, bem como, potencialmente, durante os momentos quando a aldeia é posta em
perigo devido aos nascimentos e às mulheres menstruadas (particularmente na menarca) e as pessoas têm que
‘tomar cuidado’ (tohiaik) com o que fazem. Discutirei esse estado em detalhes no capítulo seis, e a minha glosa
para o termo ‘azarado’ baseia-se na explicação dos próprios Kanamari. Eles com freqüência expressam-no
por meio do termo ‘panema’, usado na região para descrever caçadores que voltam de mãos abanando, jardins
que se tornam improdutivos e pessoas sujeitas a acidentes. Todos esses infortúnios decorrem do estado de
miori.
68
Ver também as club-fights entre os Yanomami (Chagnon 1997, capítulo cinco).
92
“O interessante é que o discurso wari’ sobre o mixita do passado situa essas brigas em termos
de subgrupo. Os grupos adversários seriam, tipicamente, membros de subgrupos distintos. [...]
Um afim típico é um estrangeiro, no sentido de que é ele quem vai doar uma mulher sem valor,
ou questionar o valor da mulher doada. A afinidade, dissimulada em consubstancialidade no
dia a dia, torna-se aparente quando explicitamente hostil, e neste momento os oponentes, de
modo ‘lógico’, como estrangeiros” (Vilaça 1992, 156).
Isso se assemelha, então, às lutas de couro de anta, que também revelam
hostilidades latentes ligadas às relações de afinidade. Mas se no passado tais brigas ocorriam
entre afins em potencial que o deveriam ter trocado mulheres, hoje podem acontecer
entre afins de fato(afins efetivos?) que compartilham o mesmo parceiro. Embora isso possa
provocar a mobilização de aldeias inteiras, as lutas de couro de anta são, em sua maioria,
eventos diádicos, enquanto o mixita entre os Wari’ pode se tornar uma briga de bordunas
generalizada entre afins (Vilaça 1992, 153). Houve um caso, no entanto, em que uma luta
de couro de anta, embora não tenha se ‘generalizado’ nos moldes do mixita dos ‘Wari, se
tornou uma seqüência de lutas diádicas, uma após a outra, de um modo que jamais havia
ocorrido isso?). O que tornou essa flagelação atípica foi o fato dela opor os Kanamari
aos Kulina, que não são apenas estrangeiros paradigmáticos, mas também uma espécie de
alter-ego perturbador.
Lutando com os Kulina
A relações Hori entre as constelações A e B talvez representassem um certo grau de
perigo, revelando as tensões que podiam desencadear violência, mas eram o obstante
relativamente seguras. Essas tensões eram temporárias, e facilmente se dissipavam, de um
modo talvez similar aos casos dos mokdak recentes no Itaquaí descritos acima. Os
ressentimentos não duravam, e as configuraçãoes continuaram promovendo o Hori entre si
ao longo dos anos 1930 (e possivelmente dos anos 1940). Esse estado das coisas, em que o
Hori era promovido com regularidade, contrasta com uma reunião excepcional que ocorreu
entre os Kanamari da margem esquerda do Juruá e os Kulina que viviam no lado oposto,
nos tributários da margem direita do Juruá.
Embora os Kulina falem uma língua Arawa não relacionada às nguas Katukina, os
dois povos são muito similares e sua história revela períodos de contato intenso, embora
ambivalente. Vimos acima que os Kanamari consideram os subgrupos dos Kulina
perfeitamente análogos aos deles, mas a similaridade entre os dois povos não se resume a
93
isso. Os Kulina parecem ter aprendido a consumir caiçuma fermentada dos Kanamari
(Lorrain 1994, 132-3), chamando-a de coidsa, termo provavelmente derivado da palavra
Kanamari para caiçuma, koya. Os Kulina chamam um ritual notavelmente similar ao Hori
por esse termo, Coidsa (ibid., 53-72), e outros rituais Kulina também são comparáveis,
quando não congruentes, àqueles dos Kanamari. Ambos compartilham um complexo
xamânico idêntico, e os Kanamari admiram os xamãs Kulina ao mesmo tempo que os
temem como feiticeiros. Isso cria uma situação em que alguns Kanamari costumavam
buscar tratamento entre os xamãs Kulina, mas em que as acusações de feitiçaria quase
sempre se viravam contra eles. Os feiticeiros Kulina eram particularmente habilidosos ao
aproximarem-se das aldeias Kanamari para provocar danos inserindo projéteis xamânicos
nas pessoas, e até hoje os Kulina são sempre os suspeitos principais quando a feitiçaria
ameaça os Kanamari. Os Kulina consideram os Kanamari ‘toscos e iletrados’ (Lorrain
1994, 133) e os Kanamari consideram os Kulina traiçoeiros e avaros. Mas nada disso tem
impedido visitas ocasionais e até a participação em rituais
69
. Além disso, as relações sexuais
entre os dois povos e até casamentos ocasionais entre eles sempre ocorreram (idém). De
fato, um desses casamentos desempenhará um papel importante na história da migração
para o Itaquaí que descreverei no capítulo seguinte.
As circunstâncias em torno desse Hori, promovido nas aldeias Kulina nos anos
1930, são obscuras
70
. Parece que alguns desses Kulina tinham ido ‘levar seu hori’, que os
Kulina chamam de jojori, para um chefe dos Japó-dyapa. No ano seguinte, os Kanamari
foram até suas aldeias no Igarapé Preto, um tributário do dio Juruá. Poroya, o homem
que me contou essa história, disse que o Hori e o mokdak conseqüente ‘pertenciam’ ao
governador do Amazonas, um homem chamado Alfredo Mendes, que os supervisionava.
O Amazonas nunca teve um governador com esse nome, mas é possível que tal homem
tenha sido um patrão ou administrador local poderoso. Pode ser que os Kanamari tenham
viajado até o Igarapé Preto a pedido dos brancos, mas não foi isso que os Kanamari
disseram-me.
O fato de o Hori ter envolvido os Kanamari e os Kulina não foi a única
característica excepcional do evento. Um número significativo de homens e mulheres
Kanamari foi a o Igarapé Preto. A maioria dos homens era chefe em sua bacia
69
Parece que, no passado, os mokdak envolvendo os Kulina e os Kanamari eram mais comuns (Metraux
1948, 682).
70
Lorrain trabalhou com os Kulina que vivem na área do igarapé Baú, que fica próximo do local onde o
encontro entre os dois aconteceu. De fato, os Kulina com os quais ela falou parecem se lembrar do encontro:
Coidsa, que também é o nome de cerveja de mandioca forte no Purus, envolve a participação de rias
aldeias e aregiões. No passado, os vizinhos Kanamari também participavam: em torno dos anos 1930, eles
eram vizinhos próximos dos Kulina no igarapé Mucambi, na margem esquerda do Juruá” (1994, 53).
94
hidrográfica, incluindo um homem dos Macaco de Cheiro-dyapa, dos Mutum-dyapa e dos
Japó-dyapa que viviam no Mawetek. Segundo Poroya, esse último homem tinha ido até o
Komaronhu para convidar os seus próprios –tawari para acompanharem-no até os Kulina.
Era, portanto, uma situação excepcional, sobre a qual eu não havia escutado nada
equivalente, em que chefes, que representavam seus subgrupos, se reuniram com seus
tawari, criando uma unidade que extrapolou as duas configurações que estavam sendo
delimitadas. A presença de Alfredo Mendes, um chefe branco poderoso, pode ter feito com
que essa constelação aparentemente única se desse, opondo assim os ‘Kanamari’ aos
‘Kulina’. Desenvolverei esse ponto no capítulo quatro.
A culminância desse Hori foi uma luta de couro de anta. O restante do Hori parece
ter sido de pouca importância face a isso, porque a única informação que me foi dada a seu
respeito referia-se ao mokdak. Os Kulina eram muito mais numerosos do que os Kanamari,
que ficaram quietos observando os Kulina reunirem-se no pátio da aldeia, as mulheres
cantando e os homens segurando os seus chicotes em expectativa. Os homens Kulina
imediatamente começaram a zombar do pequeno número de Kanamari: “Ah! O que vocês,
que são tão poucos, vão fazer?!”, e as mulheres cantaram mais alto.
Os cantos desempenhavam um papel importante nos Hori, particularmente durante
as lutas de couro de anta. A palavra Kanamari para ‘canto’ é waik e para cantar, waik-pa, que
literalmente quer dizer ‘devir-canto’. Todos os rituais Kanamari, particularmente dois
chamados ‘Devir-Jaguar’ e ‘Devir-Kohana’, envolvem cantos. Além disso, ‘Jaguar’ e ‘Kohana
são duas categorias de cantos. Ao entoarem esses cantos, os Kanamari se transformam
ritualmente em Jaguares míticos e nos seres celestiais conhecidos como Kohana. Durante
essa luta de couro de anta, as mulheres Kanamari tinham entoado dois cantos muito
antigos, provenientes dos tempos míticos e transmitidos aos Kanamari, chamados ‘o canto
do boto’ e o ‘canto do jacaré’. Esses cantos o eram associados a nenhum desses dois
estilos, sendo simplesmente chamados de ‘cantos da luta de couro de anta’ (mokdak nawa
waik). Eles tinham o propósito de transformar os homens Kanamari no boto e no jacaré, o
primeiro ajudando os homens a escaparem dos açoites dos Kulina, fazendo-os mover-se
com destreza, como faz o boto; e o segundo tornando a sua pele tão dura quanto a do
jacaré, de modo que não sentissem as açoitadas.
Os Kulina também tinham seus cantos, mas neste dia não chegavam aos pés dos
Kanamari. É difícil transmitir o entusiasmo de Poroya ao exaltar a beleza dos cantos e dar
conta da vividez com a qual ele descreve as mulheres, pintadas com urucum e genipapo,
cantando o mais alto possível, o perfeitamente e com tanta força que as poucas mulheres
95
Kanamari foram capazes de sobrepujar os cantos dos Kulina. Os homens também
murmuraram os cantos para si ou os entoaram ‘em suas cabeças’ (ma-ki-naki). Enquanto o
faziam, agüentavam os açoites em seus peitos. Quando chegou sua vez de açoitar os
Kulina, os homens Kanamari fizeram-no com precisão. Um por um, os Kulina foram
‘impelidos a fugir’ (-dyam-tiki), movendo-se vagarosamente em direção aos contornos do
pátio. Durante quatro dias, a luta de couro de anta continuou até o haver mais homens
Kulina para desafiar os Kanamari.
Tal ocorrido enfureceu os Kulina e alguns deles foram pegar suas espingardas para
matar os Kanamari. O chefe Kulina, Awano, disse-lhes para acabar com essa bobagem:
“nós devemos apenas realizar a luta de couro de anta! Isso não é uma guerra!”
71
. Isso
acalmou os Kulina enquanto eles se preparavam para o mokdak das mulheres. As mulheres
Kanamari mais velhas agüentaram os açoites também, mas as mais novas sucumbiram. Os
Kanamari retornaram para casa logo depois, cada um para sua aldeia nos seus respectivos
rios. Diz-se que suposto governador do estado do Amazonas, Alfredo Mendes, ficou feliz,
assim como os Kanamari. O chefe do Mutum-dyapa chamado Kaninana, entretanto, estava
preocupado com uma reação potencialmente violenta por parte dos Kulina e proibiu Hori
futuros com eles. Este talvez o tenha sido o primeiro, mas aparentemente foi o último
mokdak entre os dois povos, e a última vez que os Kanamari viajaram coletivamente para as
aldeias Kulina.
Comentários Finais
Este capítulo começou com a descrição do modelo de endogamia do subgrupo,
narrou a chegada do primeiro branco e prosseguiu com um relato sobre a situação em que
os Kanamari encontravam-se na véspera da migração do Juruá para o Itaquaí. Vimos que o
subgrupo dependia do conceito fractal de –warah, que situava pessoas nas aldeias e as
aldeias nas bacias hidrográficas. Depois rastreamos a emergência de dois grupos’ multi-
dyapa que mantiveram relações rituais Hori um com o outro. No interior de cada ‘grupo’ as
relações eram idealmente seguras, baseadas em visitas recorrentes e em casamentos
ocasionais entre os grupos. Esse tipo de configuração social, entretanto, não era o ideal
Kanamari, baseado em subgrupos endogâmicos e geograficamente circunscritos através das
relações –warah. Pelo contrário, tal configuração foi uma conseqüência da abertura dos
71
Isso contrasta, é claro, com a posição de Poroya, citada acima, de que ele é contra as lutas de couro de anta
porque são guerra. O chefe Awano, tendo que dizer para o seu povo o pegar as espingardas porque a luta
de couro de anta ‘não é guerra’, parece apenas estar provando que Poroya está certo.
96
subgrupos e da co-residência resultante de pessoas que, de início, não se consideravam
parentes. Sendo relativamente seguro, mas não o ideal, esse tipo de configuração social
também apresentou problemas que se tornaram explícitos durante os rituais Hori que
potencialmente serviam para restabelecer as linhas dessas duas configurações. Em outras
situações, como nos Hori promovidos junto com os Kulina, os dois grupos podiam se
portar como um ‘único’ grupo durante o evento, mas uma configuração ritual desse tipo
parece ter se apoiado sobre outro –warah, um patrão branco poderoso.
Antes de eu prosseguir com uma explicação sobre como e por que alguns Kanamari
que viviam na margem esquerda do Juruá se mudaram para o Itaquaí no processo de
interação mais intenso com os brancos, vale resumir as características da constelação que
eu defini nessa história, a começar pelo nível menos inclusivo e percorrendo a escala em
direção aos níveis mais abrangentes:
1. Alguns subgrupos viram-se sem chefe e, conseqüentemente, incapazes de constituir
uma aldeia. Não tiveram escolha senão viver em aldeias cujos ‘donos’ eram pessoas
de outros subgrupos, pessoas a quem, anteriormente, eles podem ter chamado de
tawari. Nos anos 1930, os remanescentes desses subgrupos sem chefe estavam em
vias de desaparecimento.
2. Outros subgrupos tinham chefes e constituíram aldeias, acolhendo nelas alguns
remanescentes de (1). Aqueles que viviam próximos uns dos outros, em igarapés
vizinhos, começaram, após a chegada de Jarado, a compartilhar um espaço onde
co-residiam (-wihnim to). Havia duas dessas configurações multi-dyapa, que eu
denominei A e B.
3. As duas configurações mantinham relações em que chamavam uns aos outros de
tawari, um termo que no modelo de endogamia de subgrupo havia sido reservado
para pessoas de subgrupos diferentes, mas que agora expressava a relação entre
configurações A e B.
4. Em pelo menos uma instância, os chefes das configurações A e B apresentaram-se
como um grupo’ diante dos Kulina, um povo não falante de uma língua Katukina.
Nesse caso, os Kulina agiam como –tawari em relação aos Kanamari.
5. Para além dos parentes que viviam juntos, dos –tawari que interagiam no Hori e do
‘grupo’ extraordinário que visitou os Kulina, haviam Outros perigosos, com os
quais nenhuma relação, exceto a guerra, era possível. Era esse o caso, por exemplo,
dos grupos falantes de línguas Pano (Dyapa) que viviam perto dos Kanamari.
97
O item (5) foi mencionado apenas brevemente, mas será uma parte importante do
próximo capítulo, onde mostrarei como uma inflação dos inimigos e afins dentro e em
torno das aldeias Kanamari impulsionou mais modificações, dissolvendo assim a estrutura
descrita neste capítulo.
98
2
O Tempo da Borracha
A migração para o rio Itaquaí não foi um evento único e uniforme. Deu-se mais
como movimento um passo a passo do que como uma corrida, que alguns Kanamari
tornaram-se insatisfeitos com os aspectos da vida no Juruá e decidiram tentar a sorte em
um rio que conheciam muito tempo. O Itaquaí não é uma parte da bacia do rio Juruá
e deságua ao norte, no rio Javari. No mapa 5 vemos como o alto Itaquaí é próximo das
nascentes do Mucambi e do Komaronhu, rios dos Macaco-de-Cheiro-dyapa e dos Mutum-
dyapa, aos quais era ligado por trilha. O Itaquaí era visitado freqüentemente nos meses de
verão, sendo um território privilegiado para a caça e também admirado pela abundância de
tracajás, que deixavam seus ovos nas suas praias. É possível ainda, que alguns Kanamari
tenham vivido por algum tempo ou partes do ano, quando as aldeias dispersaram-se e
pequenos grupos partiram em longas jornadas para longe da maloca.
No entanto, foi somente no final da década de 1930 e no começo da de 1940 que
alguns Kanamari da margem esquerda do Juruá começaram a considerar mover-se
permanentemente para o Itaquaí. As primeiras pessoas que fizerem esse movimento foram
as da configuração A, a quem se juntaram depois seus –tawari da configuração B. a
mudança inicial foi em parte uma reação ao aumento da presença dos brancos que
começaram a construir residências nos tributários do Juruá, onde os Kanamari viviam. O
Itaquaí era um rio no qual, a princípio, o havia brancos, ainda que esta situação não
tenha durado muito. Eles rapidamente chegaram de Atalaia do Norte (então chamada de
Remate de Males) pelo rio e depois, por trilhas, pelo Juruá, restringindo as partes do Itaquaí
onde os Kanamari poderiam viver.
Ao analisar o material que compõe este capítulo, eu me surpreendi com o quanto
tudo parece acidental, contraditório e confuso. o dúvidas de que isto se deva às
insuficiências de minha parte e à natureza do período em questão, caracterizado por
inúmeras e pequenas imigrações de um lado para outro, resultantes dos encontros cada vez
mais violentos com os colonizadores brancos, do aumento das acusações de feitiçaria e das
mortes e doenças decorrentes. Mas um aspecto da memória Kanamari que, observando
os dados sobre a migração para o Itaquaí em comparação com outras narrativas, também
pode desempenhar um papel nisso. Os períodos de mistura intensa, quando os chefes eram
incapazes de situar os Kanamari em aldeias por um longo período de tempo, são lembrados
como momentos em que as linhas são borradas, quando o mundo é puro fluxo enquanto
99
os Kanamari movem-se em direção às aldeias-corpos fixas, tentando se estabelecer com
chefes para frear o caos que prevalece. Este tipo de ‘calor’ nas suas vidas pode ser
perenemente inevitável, mas é relativamente insuportável e o modo como é lembrado
reflete a quimera na qual suas vidas foram imersas: tudo era ruim, tudo era fluido, tudo era
múltiplo. Em contraste, as bem sucedidas (re)criações das aldeias com os chefes são
sempre lembradas como períodos abundantes, fartos e felizes.
Aprendendo a Trabalhar Para os Brancos
A compreensão da ocupação do Itaquaí deve começar com a história de Ioho, o
primeiro homem a fazer a mudança, e Dyaho, que logo o seguiu. O primeiro era um
homem Macaco-de-Cheiro-dyapa e o último um Mutum-dyapa, e os dois chamavam um ao
outro de ‘irmão’ (-dya). Esta relação parece ser menos genealógica que o resultado da co-
residência entre os dois subgrupos e hoje as crianças de ambos também se chamam por
termos de germanidade. Os dois eram bastante próximos desde muito novos, quase
inseparáveis e sempre eram vistos brincando juntos. Foi essa proximidade que levou os
dois a partir para uma aventura que mudaria os Kanamari de uma maneira que eles não
poderiam ter previsto.
A história que segue me foi narrada por Poroya, filho de Dyaho, e diz respeito
principalmente aos Kanamari que viviam na configuração A.
A história de Ioho e Dyaho
Quando Ioho e Dyaho eram jovens, os Macaco-de-Cheiro-dyapa e os Mutum-dyapa estavam co-
residindo na configuração A, pois Jarado havia chegado muito tempo antes e os brancos já tinham se
apoderado do Juruá. Um dia, eles foram procurar ovos de tracajá em uma praia na foz do Konaronhu, muito
próximo ao Juruá. Eles tinham enchido uma cesta inteira de ovos quando avistaram um grande barco que
pertencia a um kariwa chamado Preto Português. Os dois tinham visto brancos antes, ainda que de uma
certa distância, e não ficaram sobressaltados. Eles sabiam que os brancos tendiam a ignorá-los e que, se eles
não acenassem para eles, o barco nem mesmo pararia. Mas Preto Português olhou demoradamente para os
dois jovens e ‘teve pena’ (omahwa
72
) deles, pois estavam na praia, nus e espantados. Ele decidiu ajudar os dois
levando-os para São Felipe e colocando-os na escola. Ele parou o barco e aproximou-se dos meninos,
72
O termo omahwa que traduzi como ‘pena’ é formado pelo afixo o-’, que significa ‘outro de mesmo tipo’ e
mahwa, que significa ‘saudade’. Os Kanamari acreditam que alguém que sente falta de seus parentes inspira
piedade, chora o tempo todo e é incapaz de se engajar nas atividades produtivas e cotidianas da aldeia.
Portanto, alguém em estado de mahwafaz surgir omahwa nos outros (para um exemplo similar, ver Gow
2000, 47-52).
100
apontando para o barco e convidando-os a partir com ele. Apesar deles não falarem a língua dos brancos e
não obstante seu medo inicial, Ioho decidiu que eles deveriam viajar rio abaixo com Preto Português e
convenceu seu irmão relutante a ir com ele: “Vamos, meu irmão. Vamos rio abaixo com o kariwa”.
O barco chegou em São Felipe e os dois meninos se viram em uma cidade pela primeira vez. Mais
tarde eles contariam aos outros Kanamari como as casas pareciam estranhas a eles, muito menores que suas
próprias casas comunais, mas maiores que os abrigos dyaniohak, nos quais eles costumavam dormir. Preto
Português e sua esposa, que se chamava Maria Esther, decretaram: “vocês agora o estudar, nós vamos
colocar vocês na escola”. Nos anos seguintes eles aprenderam a língua dos brancos e a matemática. Se
quando chegaram tinham sido ingênuos e não-instruídos (wa-tikokok tunim), agora eles entendiam tudo o que
os brancos diziam. Mas eles não acreditavam inteiramente nos brancos e continuaram a falar sua própria
língua entre si, assim podiam fazer seus planos sem o conhecimento dos brancos.
Eles passaram cerca de cinco anos com Preto Português e Maria Esther, vivendo com eles em sua
casa como se fossem seus filhos. Eles haviam aprendido bastante quando a saudade os tomou e eles
decidiram voltar para a casa de seus parentes no Komaronhu. Dyaho estava de novo inseguro sobre isso,
incerto de que eles soubessem o caminho, mas seu irmão convenceu-o mais uma vez: “claro que nós
conhecemos a floresta, meu irmão, e o Komaronhu não é tão longe assim”! Houve acordo, mas primeiro eles
tinham que planejar os detalhes de sua fuga. Por muitos dias eles falaram em sua língua sobre o que eles
precisariam e roubaram comida e anzóis para a jornada. Em um sábado, bem cedo, quando Preto Português
estava fora e sua esposa dormia, eles rumaram para a margem do Juruá, onde conheceram um kariwa que ia
viajar rio acima e concordou em levá-los até a foz do Mawetek.
Do Mawetek eles seguiram por uma trilha em direção à aldeia dos Macaco-Cairara-dyapa,
encontrando dois deles ao longo do caminho. Os meninos estavam vestidos com roupas de brancos mas
falavam a língua Kanamari, o que confundiu os dois homens que encontraram. Ioho pediu-lhes ajuda: “vocês
não são nossos parentes, nós não conhecemos vocês. Nós vivíamos no Komaronhu, mas descemos o rio
com o kariwa. Nós estudamos com eles, nós aprendemos sua língua e aprendemos a ler”. Os dois homens
escutaram cuidadosamente e então lhes mostraram a trilha para a aldeia dos Caititu-dyapa. Os meninos temiam
que Preto Português os seguissem, então decidiram deixar uma carta com os dois homens Macaco-Cairara-
dyapa, dizendo a eles: “não deixem de dar esta carta ao kariwa que vem procurar por nós. Nós vamos para o
Komaronhu porque sentimos falta de nossos pais”
73
. Eles fizeram bem em deixar a carta, porque pouco
depois de sua partida Preto Português chegou em Mawetek. Ele leu a carta e entendeu que eles haviam
partido, lamentando que os meninos, de quem ele havia cuidado, tivessem partido de vez.
73
Tastevin (n.d.1, 48) fez uma observação incrível sobre os Kanamari, mas infelizmente a deixou quase en
passant. Ele notou que os Kanamari que combinavam de se encontrar em algum lugar particular, mas por
alguma razão declinavam do encontro, podiam produzir uma ‘carta geográfica’ gravada no tronco de uma
árvore para comunicar aonde eles poderiam se encontrar depois. Estas eram instruções incrivelmente
detalhadas, revelando onde se estaria, por quanto tempo se estaria, quanto tempo demorar-se-ia a chegar,
quantos rios deveriam ser cruzados e assim por diante. Além disso, os bilhetes reproduzidos por Tastevin,
exemplificando estas instruções, não se parecem com um mapa (ao menos para mim), mas sim com uma
representação abstrata destas instruções, as quais Tastevin poderia entender com a ajuda da pessoa que as
gravou (na p. 49 de seu manuscrito, no entanto, ele reproduz outro exemplo mais representacional). Os
desenhos gravados na árvore são consistentes com a categoria akanaro’, o mesmo termo para ‘desenhos’ e
‘escrita’. Tastevin só viu isso uma vez, quando uma pessoa que estava atrasada pôde seguir as instruções
exatamente como a outra pessoa as havia gravado. Eu não sei o quão generalizado era esse tipo de
conhecimento, mas trata-se de uma prática marcadamente similar ao modo como Ioho and Dyaho usaram a
escrita para mandar a mensagem para Preto Português.
101
Os meninos alcançaram os Caititu-dyapa, que sabiam que dois meninos desapareceram muitos anos
atrás porque seus pais viajaram por toda parte perguntando se alguém os teria visto. Cinco homens decidiram,
então, levar os meninos ao Komaronhu, o que implicava em viajar pelo Juruá, que não haviam trilhas do
Toriwá para o Mamorihi. Eles os levaram até a foz do Komaronhu de onde eles seguiram por si mesmos.
Eles chegaram à aldeia de Kadoxi, o chefe Mutum-dyapa, e inicialmente ninguém os reconheceu. Os meninos
não só tinham crescido, mas estavam usando chapéus e sapatos. Seus pais procuraram por eles por um longo
tempo, pensando inicialmente que eles pudessem ter sido mortos por um jacaré, até que viram as pegadas
pesadas e inconfundíveis dos brancos na praia e presumiram que eles tinham sido mortos. “Nós fomos viver
com o kariwa, meu pai. Eles não nos fizeram mal. Nós estudamos e trabalhamos com eles, nós aprendemos
como extrair a borracha e cortar madeira”.
O pai de Ioho estava no Mucambi e eles decidiram levar os meninos para lá. Uma vez que todos
estavam reunidos, eles celebraram o retorno seguro, passando vários dias na aldeia bebendo cerveja de
mandioca
74
. No final da festa, fez-se uma reunião na qual os meninos contaram aos chefes sobre suas
experiências em o Felipe. Neste encontro foi decidido que o conhecimento que Ioho e Dyaho adquiriram
seria posto em prática e que eles começariam a trabalhar para os brancos. O narrador desta história, Poroya,
reiterou que foram os jovens Ioho e Dyaho que falaram a eles desta possibilidade e que eles não haviam
trabalhado para os brancos antes porque não sabiam suprir os brancos com os bens que eles necessitavam,
nem tinham a capacidade lingüística de se comunicar com eles. Isto não os impedia de trocar seu próprio
produto caça, mandioca, canoas com os brancos, mas estas eram interações diádicas intermitentes. Agora
eles consideravam trocar com os brancos através de seus chefes.
Kadoxi, o chefe Mutum-dyapa, pensou que isso poderia ser uma boa idéia, que ele e a maioria dos
outros Kanamari não conheciam nem a língua dos brancos nem o comércio, e foi decidido que Ioho e Dyaho
os ensinariam. Eles passaram a ser chamados de tukuna bu hu yan, ‘aqueles que fazem as pessoas fazerem
[coisas]’. Deste modo, não foram os brancos que procuraram pelo trabalho Kanamari, mas eles mesmos que
se aproximaram dos brancos, uma vez que tinham adquirido o conhecimento que precisavam, buscando fazer
deles seus patrões.
Trabalhando para João Carioca e o influxo de brancos
Os Kanamari entraram tarde na economia da borracha, praticamente em seu ponto
mais baixo de estagnação. Jarado chegou ao Juruá provavelmente entre as décadas de 1860
ou 1870, no começo do boom da borracha na Amazônia ocidental, demarcando os locais
das futuras propriedades da borracha. Em 1860 o Brasil exportou aproximadamente 2662
toneladas de borracha, quantidade que em 1872 havia aumentado para 8218 toneladas.
Durante a primeira metade do século dezenove foi Belém, a capital do Pará, que exportou a
maioria da borracha do Brasil, mas no começo do século dezenove Manaus começou a
74
Apesar disto não ser chamado de um Hori, parece muito similar a um. Idealmente, não deve ter havido um
Hori entre o Komaronhu e Mucambi durante este tempo, mas parece que, com a chegada dos meninos, cada
um do dyapa predominante da área proporcionou uma ocasião na qual um Hori poderia ocorrer. Mas não
havia tensão nesta reunião e me disseram que eles estavam apenas felizes (nobak) com o retorno dos meninos.
102
competir de igual para igual. O pico da exportação de borracha foi alcançado
provavelmente por volta de 1910 quando cerca de 40.000 toneladas de borracha brasileira
foram exportadas. O período que se seguiu após a Primeira Guerra Mundial foi trágico
para a economia de borracha brasileira, em grande parte por causa do início da produção
em massa de borracha asiática, a qual em 1919 era três vezes maior que a do Brasil
(Weinstein 1983; Neves 1996, 51-63).
Como vimos, nesta época foi possível para os Kanamari evitar os brancos
mantendo-se nos afluentes do Juruá, longe das propriedades da borracha. Eles mantinham
contatos esporádicos com eles e tinham algum acesso aos bens ocidentais como facas e
roupas, mas isto não era nem sistemático nem homogêneo para todos os subgrupos.
Durante a Segunda Guerra Mundial, contudo, o Brasil experimentou um segundo e menor
boom da borracha. Em meados da década de 1930, quando os Kanamari da configuração
A começaram a extrair borracha, o impacto deste segundo boom foi insignificante e era
possível para os Kanamari extrairem borracha e continuarem vivendo, sem maiores
perturbações, em seus afluentes. Mas no final da década de 1930 e no início dos anos de
1940, estas circunstâncias começaram a mudar na medida em que mais brancos chegavam
compelidos pelo segundo boom da borracha e pelas oportunidades que a atividade
extrativa proporcionava. Foi durante este período que os brancos começaram a penetrar
nos afluentes, onde os Kanamari viviam, evitando, assim, o ir e vir do Juruá. O que havia
sido originalmente uma ‘boa idéia’ teve, por fim, o seu preço.
O primeiro chefe para quem os Kanamari trabalharam se chamava João Carioca e
possuía seu barracão no próprio Juruá, na margem oposta à foz do Komaronhu. Era para
ele que os Kanamari levavam a borracha extraída das seringueiras (Hevea brasiliensis) do
Komaronhu e do Mucambi, onde eles viviam. A borracha foi coletada inicialmente com as
facas que os meninos haviam trazido consigo de Preto Português e armazenada em vasos
de cerâmica (moro), mas logo eles receberam mais facas e panelas de metal de João Carioca.
Ioho e Dyaho parecem ter mantido um acesso privilegiado a este comércio. A borracha era
frequentemente dada aos dois que, então, a comercializavam com João Carioca. A
mercadoria que eles recebiam era, assim, redistribuída entre as pessoas que residiam
naquela área. De acordo com Poroya, os dois viraram, eles mesmos, patrões.
João Carioca é lembrado como um bom patrão, mas ele não foi o único com quem
os Kanamari comerciavam. Havia também os patrões do barracão Deixa Falar, um pouco
abaixo do rio de onde João Carioca se estabeleceu. Ali era onde a maioria dos Kanamari da
103
configuração B trocavam seus bens
75
, mas ocasionalmente Ioho e Dyaho também iam lá.
Se os patrões mantinham seus barracões no Juruá, onde eles seriam acessíveis a qualquer
um que passasse por ali e aos grandes botes de Manaus que supriam suas propriedades,
uma série de outros brancos, que também trabalhavam para os patrões, começavam a
estabelecer residência nos rios onde os Kanamari viviam. Estes brancos eram inteiramente
dependentes dos patrões, trabalhando para eles dentro do sistema de aviamento, através do
qual eram praticamente escravizados. Os patrões eram, então, donos do Juruá e sua força
de trabalho vivia nos afluentes deste rio.
Os brancos, deste modo, reproduziram fisicamente a estrutura fractal do modelo de
endogamia do subgrupo, mas situaram seus -warah, os patrões, no próprio Juruá. A
presença destes últimos implicava na existência de um mercado rio abaixo, que penetrava o
Juruá através dos regatões que traziam bens e novidades de Manaus. A estrutura da
economia de ‘aviamento’, sistema de bito e de crédito que caracterizava o comércio de
borracha por toda a Amazônia, sugeriu aos Kanamari que existiam chefes ainda mais
poderosos para além do rio. Conceitos que eram estranhos para eles como ‘governador’,
‘presidente’ e ‘cidade capital’, e que estavam de alguma forma ligados ao seu trabalho,
implicavam em níveis de inclusão que eles não haviam imaginado anteriormente, mas cuja
estrutura fractal era congruente com sua organização social (ver Gow 1996; Carneiro da
Cunha 1998). A fascinação por este poder e pelas mercadorias que emergiam dele começou
a atrair os Kanamari para um contato mais direto com os barracões. Contaram-me até que,
em algum momento no final da década de 1930, os Caititu-dyapa do rio Toriwa construíram
uma aldeia nas margens do próprio Juruá, uma possibilidade que antes nunca havia sido
considerada.
Mas se tanto poder fascinava os Kanamari, foram os degraus mais baixos da
hierarquia do ‘aviamento’ que mais os afetou. Os brancos se proliferaram, parecendo vir de
todos os lugares, enquanto novos patrões continuavam a construir barracões, comerciantes
atravessando o rio traziam bens de Manaus e levavam borracha com eles. As seringueiras
que existiam na área onde os Kanamari viviam inicialmente eram somente para que eles
explorassem, mas quando os patrões brancos perceberam o potencial daquela terra,
encorajaram seus subordinados a moverem-se para os afluentes do Juruá que pertenciam
aos Mutum e Macaco-de-Cheiro-dyapa. Estes brancos, a maioria trabalhadores pobres que
75
Disseram-me que os Kanamari da configuração B ‘aprenderam pouco antes’ a como extrair borracha e eles
provavelmente vinham fazendo isso antes de seus tawari da configuração A. Recordar-se-á do capítulo
anterior que a configuração B era muito mais próxima de onde os brancos estavam estabelecidos. Tanto no
Juruá como no Jutaí, então, é provável que eles tenham começado a trabalhar para eles algum tempo antes da
captura de Ioho e Dyaho.
104
migraram do Nordeste do Brasil para a Amazônia, vieram a ‘co-residir’ com os Kanamari,
muitos dos quais também trabalhavam para os brancos em troca de algumas poucas
mercadorias. Logo se tornou impossível manter uma relação de comércio exclusiva com
um único patrão. Alguns Kanamari começaram a interagir freqüentemente com os brancos
que eram seus vizinhos, algumas vezes vivendo com eles por um tempo - tal como nos
períodos em que as aldeias dispersavam-se - participando de suas festas de forró ou bebendo
cachaça. Outros começaram a comercializar diretamente com estes colonos, tornando mais
difícil que a mercadoria fosse redistribuída pelos chefes.
Além disso, os próprios brancos podem ter ativamente promovido o abalamento
dos chefes tradicionais. Esta era certamente a opinião de Tastevin:
“Les Brésiliens provoquent parfois dan les clans des rivalités d’ambition en nommant de leur
propre chef un cacique qui n’est pas celui que se trouve de droit a la tête de clan. C’est à la suite
d’un tel choix, que le clan des Wiri-dyapa à Samahuma se scinde en deux. Les seringueiros
n’ayant pas voulu d’Awano comme intermédiare, à cause de sa paresse plus ou moins réelle,
désgnèrent de leur prore autorité un fils de Dó, l’homme médecine du clan de Kamudya-dyapa,
comme chef de la tribu dans ses relations avec eux. Yoho[
76
] accepta et plusieurs consentirent à
travailler sous ces ordres. Mais Awano, le cacique légitime, se refusa à abdiquer et garda
quelques partisans, surtout parmi les plus agés. Dó lui même se refuse à reconnaître l’autorité
de son fils” (n.d.1, 107).
Posteriormente, o grupo renegado, cansado de trabalhar para aquele patrão particular,
retornou ao grupo Awano, mas Tastevin acredita que o papel do último em mediar as
relações com os brancos tinha sido debilitado para além do reconhecimento (ver também
Carvalho 2002, 101).
Inicialmente, foi possível para os velhos chefes manter seu povo’ no lugar.
Kadoxi, o –warah da configuração A, transformou Ioho e Dyaho em ‘aqueles que fazem as
pessoas fazerem coisas’ para ter certeza de que todos trabalhavam nas atividades extrativas
e entregavam sua produção para os dois. Estes mantinham relações com o patrão João
Carioca, que entregava bens ocidentais para o –warah que então os redistribuía entre ‘sua
gente’. A relação entre os Kanamari e os brancos foi então construída como uma relação
tawari, iniciada pelos chefes, como havia sido sua relação com Jarado. Mas com a chegada
de novos colonos, tão próximos às aldeias dos Kanamari, essa situação começou a se
deteriorar: novas relações significavam que os bens não eram exclusivamente guardados
76
Aparentemente não o Ioho que estamos discutindo até aqui, que não se estabeleceu em Samahuma e não
era um Caititu-dyapa (Wiri-dyapa).
105
pelos chefes e conseqüentemente não eram redistribuídos, levando a acusações
amplamente difundidas de ‘avareza’; a cachaça tornou as brigas entre eles mais freqüentes;
as aldeias começaram a se esvaziar e novas aldeias foram sendo criadas longe dos chefes e
perto dos brancos e, no caso dos Caititu-dyapa, até mesmo no próprio Juruá. Os corpos
múltiplos que um chefe personificava estiraram-se em direções diferentes, enquanto as
pessoas estabeleciam relações duais queo dependiam em nenhum aspecto do modelo de
endogamia do subgrupo. Os Kanamari começaram a se dispersar (inona) enquanto os
chefes perderam sua habilidade de situá-los em um lugar, sendo incapazes de manter uma
estrutura na qual os chefes eram corpos coletivos.
Os brancos tornam-se sem imprestáveis
Ioho e Dyaho inicialmente possibilitaram aos Kanamari interagir com os brancos
por causa de seu conhecimento da escrita, da matemática e do processo de extração de
borracha, o que os tornou ‘aqueles que fazem as pessoas fazerem coisas’. Este
conhecimento lhes permitiu interagir com os brancos, mas foi também através das
interações com os brancos que os Kanamari passaram a conceitualizá-los de um modo
diferente. Jarado foi um –tawari, que gostava deles e que trocava regularmente com eles,
mas estes novos brancos que se multiplicavam ameaçavam a relação –tawari. No capítulo
anterior, vimos como essa relação era expressa pelos chefes e, preferivelmente, pelos chefes
dos subgrupos, que possibilitavam reuniões nas quais aconteciam as trocas, bebedeiras e
relações sexuais. Mas quando os brancos começaram a minar a autoridade desses chefes, os
primeiros inevitavelmente deixaram de ser –tawari. Nesta sessão, quero sugerir que, em
algum ponto deste processo, os brancos deixaram de ser –tawari para se tornarem uma
figura mais sinistra, a do espírito imprestável que os Kanamari chamam de Adyaba.
A palavra Kanamari para ‘escrita’ é akanaron, a mesma palavra que eles usam para
desenhos ou pinturas geométricas e abstratas, como é comum por toda a Amazônia (e.g.
Gow 1999). A ‘onça pintada’, por exemplo, é pidah akanaronime ‘pintar’ o corpo com
urucum e jenipapo é akanaron-bu, literalmente fazer desenhos’, o mesmo termo usado para
‘escrever’. Pintar o corpo torna-o ‘bonito’ (bak), particularmente em rituais como o de
‘Devir Jaguar’ e o ‘Devir Kohana’. Nestes rituais, as mulheres pintam-se para dançar, mas as
pinturas não são um fim em si mesmas. Elas ficam bonitas para então poderem aprender as
canções do Jaguar e do Kohana, o que é equivalente a, respectivamente, obter conhecimento
do mundo mítico e celestial. Meu entendimento dos desenhos Kanamari é bastante
106
limitado, mas está claro que a parte verdadeiramente importante destes rituais é a das
músicas que as mulheres aprendem. Os Kanamari não estão preocupados com os padrões
ou com o tipo de desenho com os quais pintam seus corpos e rostos, mas eles têm
obsessão com o tipo e a beleza das músicas que aprendem no ritual
77
.
Os desenhos dos brancos parecem ser muito mais similares às músicas do que são
aos desenhos dos Kanamari, ao menos como estes são concebidos hoje. Ambos são tipos
de conhecimento adquiridos de outros (Lagrou 1996; Gow 1999). um mito
marcadamente similar à história de Ioho e Dyaho que explica como um gênero particular
de músicas foi aprendido. As músicas em questão são chamadas adyaba, que é também o
nome de um espírito canibal. Resumirei a história abaixo:
Os adyaba comedores de criança
Havia dois adyaba, o marido e sua esposa. Eles tinham fome de carne de crianças humanas e então se
aproximaram da aldeia Kanamari. Os Kanamari estavam dançando e cantando e as crianças estavam
descuidadas nos abrigos dyaniohak. Os adyaba só queriam meninos e a mulher adyaba roubou quatro deles, dois
dos quais ela imediatamente matou e dois que foram levados para viver em sua aldeia.
Os dois que foram mortos foram comidos imediatamente. Os outros dois foram criados. Os
meninos eram irmãos e os adyaba cuidaram bastante deles, alimentando-os para que pudessem ser comidos
depois. O homem foi arranjar comida para eles, enquanto a mulher cozinhava e cantava-lhes músicas. A
língua dos adyaba é similar a dos Kanamari, mas mais prolongada e lenta, e logo os meninos começaram a
entender sua língua. Um dia, a mulher decidiu que eles estavam gordos o suficiente para serem comidos e os
dois adyaba prepararam-se para matá-los.
Enquanto o homem adyaba estava fora, os meninos, que sabiam dos planos, enganaram a mulher
adyaba. Eles ficaram na frente do fogo e, quando ela correu para pegá-los, eles saíram do caminho fazendo
com que ela morresse queimada. Eles extrairam a gordura do seu corpo e colocaram-na no prato onde o
homem adyaba sempre comia. Eles então se esconderam no topo de uma árvore e, quando o homem adyaba
retornou, ele pensou que a sua esposa havia cozinhado os meninos e sentou para comer. Os meninos
gritaram para ele: “Ei adyaba, você está comendo a gordura da sua esposa”! ele ficou furioso e subiu na árvore
atrás deles. Os meninos magicamente fizeram a metade do topo da árvore crescer delgada e o adyaba caiu para
a morte.
Os meninos voltaram para casa. Eles tinham ficado fora por muitos anos. Eles acharam a trilha que
levava à sua aldeia seguindo as formigas de fogo, que são conhecidas por seguir as trilhas que os Kanamari
abrem na floresta. Quando eles chegaram em casa, seus pais não podiam acreditar. Eles procuraram por eles,
77
Os desenhos Kanamari são bem menos elaborados que aqueles de seus vizinhos de língua Pano, como os
Kaxinawá e os Marubo. Eu não ouvi histórias sobre como os desenhos surgiram e nem se eles foram obtidos
de forças estranhas no passado. Tastevin (n.d1, 27-41) mostra como certos padrões podiam estar ligados a
subgrupos diferentes, mas hoje no Itaquaí, depois da intensa mistura pela qual os Kanamari passaram, o
referência a isso. Isto contrasta com as músicas que são ligadas a outros diferentes, humanos ou não-
humanos, e para as quais os Kanamari possuem uma ampla gama de explicações intrincadas e elaboradas.
107
mas concluíram que haviam morrido. Os meninos ensinaram as músicas adyaba aos Kanamari e é assim que as
conhecemos hoje.
A história dos adyaba comedores de criança’ e a de Ioho e Dyaho são similares: em
ambas os dois irmãos são sequestrados, levados para uma terra estranha e mantidos por
muitos anos, criados por Outros de quem eles adquiriram conhecimento, escaparam,
encontraram o caminho para casa, onde foram recebidos por seus pais que achavam que
eles estavam mortos. Em ambas as histórias o conhecimento que os meninos obtiveram
enquanto estavam fora permitiram que Kanamari interagissem com aqueles que os
sequestraram. Através do aprendizado das músicas dos adyaba, eles estão aptos a executar o
ritual de ‘Devir-adyabae pela escrita que aprenderam dos brancos os Kanamari puderam
tornar-se patrões
78
.
Os adyaba são uma categoria difícil de definir e retornarei a eles em outras ocasiões.
Diz-se que eles existiram na terra desde o começo do mundo e que tomam muitas formas,
sendo descritos geralmente como espíritos canibais, monstruosos. Há muitos tipos de
adyaba, alguns dos quais vivem no subterrâneo, mas a maioria deles está ligada a velhas
capoeiras e nas palmeiras que nascem nelas. No capítulo anterior, vimos que as capoeiras
estão relacionadas à atividade passada dos ancestrais anônimos dos Kanamari, os –mowarahi
e, de fato, as capoeiras são algumas vezes chamadas por este termo. Os adyaba também
estão relacionados a estas atividades passadas, mas em seu aspecto negativo, como se
fossem personificações de memórias perdidas de vidas passadas, espectros do –mowarahi
que tomam uma forma horrível. Vimos que a atividade do –mowarahi faz a terra fértil, mas
também que, para os mortos lembrados tornarem-se anônimos –mowarahi, uma mecha de
seus cabelos precisa ser dada aos Jaguares que a enterram no ritual de Devir Jaguar. Então
uma parte da terra é tornada fértil através da relação com o Jaguar, o que parece criar, em
contrapartida, esses corpos monstruosos adyaba que podem predar os Kanamari.
Talvez possamos entender melhor a relação entre os adyaba e os –mowarahi
comparando-a ao contraste que os Matis, um povo de língua Pano, vizinhos dos Kanamari,
fazem entre os maru e os espíritos mariwin. Os maru são definidos como seres a-sociais (ou
mesmo anti-sociais), malignos, invisíveis e carecas, enquanto os mariwin são sociáveis,
visíveis e cabeludos. À primeira vista, pareceria que os adyaba são a variante Kanamari dos
maru: infantis, eles parecem ser quase pré-sociais e “verge on humanity but without ever
78
Eu nunca vi este ritual, mas me forneceram explicações sobre ele e eu ouvi algumas músicas. No ritual, os
homens tornam-se adyaba e cantam as músicas que os meninos os ensinaram muito tempo. Muitas das
letras das músicas são versões abreviadas e sinópticas dos temas ticos de adyaba comedores de criança’ e
também de outros mitos dos adyaba.
108
fully attaining this position” (Erikson no prelo, 11; 2004; ver também Bidou 1999). Os
mowarahi, por outro lado, aparecem como um emblema da continuidade geracional, assim
como as capoeiras e suas palmeiras de crescimento lento, e também estão ligados aos seres
celestiais Kohana, exemplos perfeitos do que a humanidade pode ser, de uma maneira muito
similar aos mariwin.
Os Matis negam veementemente que os mariwin sejam seus parentes. Em vez disso,
eles os chamam precisamente pelo termo Katukina –tawari, que é usado por eles neste
contexto e que não parece ter cognatos conhecidos em outras línguas Pano. Eles também
os incluem na categoria de tsui, ‘espírito’ ou ‘sombra’. Erikson argumenta que os Matis
podem ter começado a usar o termo –tawari durante os contatos passados com grupos de
língua Katukina (ver abaixo), o que faria dos mariwin “descendentes dos amigos formais de
nossos ancestrais” em vez de “nossos ancestrais” (2004, 136).
Os ancestrais –mowarahi dos Kanamari, no entanto, não são espíritos; eles são
landscape (paisagem), pois são as capoeiras e as área da floresta que eles alteraram quando
estavam vivos
79
. Os –mowarahi não são exatamente afins dos Kanamari nem são
precisamente parentes: eles são ‘os antigos’, ou índices de suas atividades. Eles não são,
assim, correspondentes exatos dos mariwin dos Matis. Os adyaba, em contraste, parecem
exibir certas características dos mariwin, sendo visíveis (mesmo que algumas vezes sejam
bem pequenos), vivendo no subterrâneo ou nas queimadas e nas margens do rio (ver
Erikson 2004, 126). Da mesma forma que para os Matís os antagônicos maru e mariwin
apresentam, em algum nível, uma ‘conjunção paradoxical’, os adyaba Kanamari também
parecem sintetizar algumas das oposições entre os dois seres reconhecidos pelos Matis
(Erikson ibid., 128)
80
.
Os Kanamari podem se tornar adyaba em tempos rituais, mas eles, também, não se
tornam adyaba depois de sua morte. Mas o fato de que os adyaba estão ligados às capoeiras e
às queimadas abandonadas a atividade passada dos ancestrais anônimos e que eles
estavam aqui desde ‘o começo do mundo’ identifica-os com os tempos míticos da proto-
humanidade. Isso, no entanto, de modo algum assegura uma avaliação positiva. O sufixo
79
E são também ligados aos espíritos celestiais Kohana, que suas almas se tornam após a morte.
80
Mariwin and maru exclude, suppose and define each other one in relation to the other but not one
without the other” (Erikson no prelo, 11). O que eu estou caracterizando como uma síntese de princípios
aparentemente antagônicos pode ser uma deficiência de minha parte, que é possível que isto se refira a
espécies ou tipos diferentes de adyaba. A minha impressão é que, se tivesse que escolher, os adyaba seriam
mais similares aos maru asociais que aos mariwin, que seriam, por sua vez, equivalentes aos Kohana celestiais.
Mas certas semelhanças com os últimos que o fazem essa congruência completa. Nisto, os adyaba
podem ser algo similares aos espectros dos mortos anhang dos Tupi, “a forma impessoal e coletiva do
espectro dos mortos, seu prolongamento como ente não-querido” (Fausto 2001, 412, n. 67). Contudo, se os
Adyaba estão ligados aos mortos, eles também estão associados com os não-nascidos como veremos no
capítulo seis, o que mais uma vez os torna similares aos maru (Erikson 2004, 128).
109
dyaba significa ‘sem valor’ ou ‘imprestável’ e o a- é o prefixo pronominal da terceira
pessoa do singular, significando que adyaba pode ser glossado como ‘o imprestável’. Ao
classificar estes espíritos na categoria das coisas sem valor, os Kanamari estão dizendo que
eles são o inverso do que a humanidade deve ser, a cópia-carbono de seu próprio processo
de parentesco: seres com corpos retorcidos, canibais, avarentos e grotescos que habitam o
subterrâneo. Mas ao mesmo tempo, os adyaba são aspectos negativos de um processo
ancestral de transformação da terra, que assegura a ‘abundância natural’ (Rival 2002), que
transforma os Kanamari em parentes, mas que também se manifesta como Outros
perigosos.
É legítimo dizer que, tanto para os Kanamari como para os Matis, os Adyaba são os
afins de seus ancestrais, a contracorrente do processo pelo qual os últimos tornam a terra
fértil e o resíduo canibal de um processo que permite aos humanos fazerem-se parentes
(Viveiros de Castro 2001, 29). Eles não são Kanamari e não são ancestrais, mas são mais
exatamente a manifestação física perigosa da transformação dos corpos dos mortos na
ancestralidade anônima que assegura a continuidade produtiva das capoeiras.
No capítulo cinco veremos que os brancos foram Kanamari que, após uma briga,
viajaram rio abaixo em direção à Manaus, onde se tornaram o que são hoje. Inicialmente,
Jarado, o primeiro destes a retornar, foi chamado de –tawari, mas os brancos que o
seguiram agiram de forma avarenta e violenta, minando assim a estrutura –warah que
permitia aos Kanamari viverem nos afluentes do Juruá. Ademais, estes brancos cobiçavam
a borracha a seiva de uma árvore o que os aproximou dos Adyaba, cuja comida
preferida é pahkuru kirak, a resina da árvore da qual os Kanamari faziam tochas. Os Adyaba
fazem cozidos do pahkuru kirak, no qual eles misturam a carne das crianças Kanamari. Os
Adyaba desejam as crianças para criá-las e comê-las, enquanto os brancos também desejam
as crianças dos Kanamari para torná-las suas próprias.
Então faz sentido que, tendo sido antigos Kanamari classificados como afins
tawari, os brancos tenham sido reclassificados como espíritos imprestáveis, que agem de
modo simetricamente inverso a como os Kanamari vivem (ver capítulo cinco). Em outro
mito dos adyaba, os Kanamari queimam a casa subterrânea de um destes monstros,
matando-o. Quando eles desceram pelo buraco para ver o corpo carbonizado do adyaba,
encontraram um sortimento de panelas de o e redes de algodão, ao invés dos vasos de
cerâmica e redes de fio de tucum dos Kanamari. Eu perguntei ao homem que narrou esta
história para mim por que o Adyaba tinha panelas de aço e redes de algodão, pois neste
tempo eu supunha que os Adyaba estivessem ligados apenas aos ancestrais dos Kanamari.
110
Ele olhou para mim meio perplexo, como se eu devesse saber a resposta melhor que ele.
“Eu não sei, Luiz. Ele deve ter sido um dos brancos”.
Escrita e matemática fazem as pessoas fazerem coisas
“Ioho e Dyaho sabiam tudo”, disseram-me. O período que eles passaram em São
Felipe significou que os Kanamari nunca poderiam ser enganados. Os brancos, como
tawari e adyaba, costumavam ser traiçoeiros e eles freqüentemente tentavam ‘enganar’ (-ta-
tonu) os Kanamari, dizendo a eles que o valor da borracha que eles levavam para o barracão
era muito inferior ao que realmente era. Eles mostraram tiras de papel aos Kanamari,
‘contas’ e ‘notas’ que provavam que apesar de terem trabalhado duro, eles ainda estavam
em débito. Os Kanamari levavam estas contas para Ioho e Dyaho, que contra-
argumentavam que aqueles eram pedaços de papel cheios de mentiras. Os Kanamari que
me contaram isso riam ao me explicar como as caras brancas tornaram-se vermelhas de
raiva perante a audácia dos dois adolescentes, que possuíam um conhecimento que os
brancos supunham que eles não deveriam ter.
Seqüestrados em sua infância, Ioho e Dyaho retornaram aos Kanamari como
adolescentes que ‘sabiam tudo’. Impressionados com este conhecimento, os Kanamari
organizaram uma reunião na qual foi decidido que eles trabalhariam para os brancos, e os
dois meninos tornar-se-iam ‘aqueles que fazem as pessoas fazerem coisas’. Esta capacidade
não era exatamente coincidente com a de chefia e Poroya explicou o contraste entre as
duas da seguinte maneira: os chefes eram os ‘Federais’, uma palavra em português que é
talvez, em sua percepção, a melhor tradução para a palavra –warah. Está associada com a
Funai, a polícia, os militares e a idéia distante e sedutora de Brasília, a ‘Capital Federal’. É o
‘Federal’ que mantém os brancos juntos, do mesmo modo que os –warah localizam os
Kanamari. Ioho e Dyaho, por causa do conhecimento que adquiriram, seriam, segundo
Poroya, os delegados’ do chefe ‘Federal’, mediando a relação entre os Kanamari e os
brancos.
Ioho e Dyaho casaram-se logo depois de seu retorno e tornaram-se chefes de suas
aldeias. A designação suplementar de ‘aqueles que fazem as pessoas fazerem coisas’ que
eles receberam, pode ser articulada com a função de –warah (ver capítulo seis), mas parece
ter emergido no contexto específico da sua habilidade na interação com os brancos,
ensinando aos outros Kanamari como fazê-lo também. Poroya me disse, como eu
mencionei anteriormente, que Ioho e Dyaho tornaram-se, eles mesmos, patrões’. A
111
necessidade desta explicação e a exegese de sua função parece estar ligada à questão que
freqüentemente me atormentava no campo: Por que os Kanamari não fizeram dos patrões
brancos seus chefes (-warah)? Porque, com uma notável exceção a que chegaremos em
breve, isso parece nunca ter ocorrido e os patrões brancos nunca são lembrados como
tendo sido seus –warah enquanto eles viviam no Juruá.
A questão o é caprichosa, que na Amazônia ocidental temos um exemplo no
qual a relação patrão/cliente parece determinar todas as outras. Os Paumari, povo de língua
Arawá do rio Purus, se chamam por um termo, pamoari, que significa ‘freguês’: ...aquele
que, endividado com o patrão, tem de produzir, extrair algo para saldar a sua dívida”
(Bonilla 2005, 46). Aparentemente insatisfeitos com esta denominação, eles podem
enfatizar um nível ainda maior de comprometimento com o patrão, chamando a si
mesmos, em uma relação comercial, de ‘empregados’ (honai abono). Os empregados’
também estão endividados com o patrão, mas eles cancelam a dívida não pela troca de
bens, mas prestando serviços e trabalhando diretamente para eles. Os Paumari associam a
posição de freguês com a da ‘presa’ em uma relação ‘predador/presa’, enquanto que a
posição de empregado está ligada a de ‘xerimbabo’, como os que os Paumari criam. O
patrão, por sua vez, é um senhor que ocupa uma posição de autoridade e dominância a qual
os fregueses e empregados devem se submeter. Quando um patrão se torna excessivamente
violento e impõe sua vontade através da força, os Paumari respondem transformando a
relação patrão/freguês em uma de patrão/empregado, na qual eles se fazem de animais de
estimação de seus patrões: para Bonilla, “haveria nesta capacidade de neutralização do
perigo predatório uma potência e uma força excepcional, um poder de controle” (ibid., 59)
que impele os patrões a cuidar de seus animais de estimação e salva os Paumari da
predação
81
.
O idioma no qual os Paumari expressam sua posição em relação ao patrão seria
familiar aos Kanamari, com seus níveis corporais de ‘inclusão’, mas a generalização da
relação patrão/freguês, abrangendo outras relações, muda a direção do movimento
postulado pelos Kanamari. Neste caso, os Kanamari não eram “presas”, ou “posse” dos
patrões brancos; mas os brancos é que replicaram uma estrutura que os Kanamari podiam
entender. O conhecimento que Ioho e Dyaho adquiriram dos brancos permitiu que os
Kanamari se introduzissem em sua estrutura ou que se situassem em suas margens sem
81
Ver também Kohn (2002 e no prelo) para a relação entre brancos e os ‘Mestres da Caça’. Ver também
Fausto (2005, 405) sobre como os Guarani experimentaram uma mudança histórica de um idioma de relação
com os outros através da predação para um em que eles se situavam como as ‘presas familiarizadas’ destes
outros.
112
serem absorvidos por ela. Ao invés de aceitar os patrões brancos como seus chefes, eles
fizeram de seus próprios chefes, ou de alguns deles, patrões.
Como chefes dos brancos, os patrões mantiveram uma relação privilegiada com
Ioho e Dyaho, que se tornaram dependentes deles para obter a mercadoria que assegurava
sua própria posição, garantindo que as pessoas ‘fariam coisas’ em seu benefício. A relação
que Ioho e Dyaho mantiveram com os patrões era de troca, marcada pela familiaridade
distante, personificada pelos chefes e, como tal, era um aspecto da relação –tawari . Chefes
diferentes mas equivalentes mantendo uma relação –tawari generalizaram-na para os
Kanamari não-chefes e para as pessoas que trabalharam para os patrões. Não havia nada
aqui para arriscar as linhas gerais da estrutura que os Kanamari imaginaram para si mesmos
e a única adaptação que fizeram foi a de chamar alguns destes chefes por um nome
diferente, estendendo para eles uma função levemente distinta, baseada no conhecimento
que possuíam. Os Kanamari não chamavam os brancos de -warah’, então, porque eles
nunca cessaram de ter seus próprios –warah.
Mas esta situação mudou e os brancos que eram anteriormente –tawari começaram
a co-residir com os Kanamari. Sua crescente presença e as trocas ad hoc que eles
mantinham, ignorando os chefes, fizeram com que os brancos fossem reclassificados como
espíritos imprestáveis. Estes brancos o tinham nenhuma funçao agregadora, eles
simplesmente dissolveram as aldeias fazendo os Kanamari moverem-se em direção a eles.
A relação com os brancos não era mais representada de forma singular através do
chefe/corpo, em lugar disso tornou-se uma série múltipla de relações diádicas, sem
nenhuma síntese possível. A mudança das relações dos Kanamari com os brancos começou
a colocar os primeiros em um dilema quando, sem seus chefes, eles teriam, no fim, de
aceitar os brancos como seus –warah.
É difícil saber o que teria acontecido. É possível que, se tivesse havido tempo, os
brancos teriam se tornado o corpo/donos dos Kanamari, minando completamente as
formas tradicionais de liderança. Mas Ioho, agindo como chefe, abortou esta história e
levou os Kanamari para um rio diferente. Ele compreendeu os efeitos que os brancos
tinham sobre os Kanamari. Ele viu que as aldeias estavam se desarticulando enquanto as
pessoas moviam-se em direção aos brancos, e que os chefes estavam perdendo sua
habilidade de estabilizar o fluxo que os ‘imprestáveis’ trouxeram com eles. A vida no Juruá
estava ficando insuportável. O Alto Itaquaí, ligado ao Mucambi por trilhas, vazio de
brancos e cheio de belas praias começou a parecer uma alternativa sedutora.
113
No Itaquaí
Nesta sessão considerarei o movimento de algumas pessoas da configuração A em
direção ao Itaquaí. Apesar disto ser uma decisão consciente e mais ou menos permanente
havia sempre migrações em pequena escala entre o Itaquaí e os afluentes do Juruá e elas
continuam até o presente. Ademais, os Kanamari que se mudaram para o Itaquaí não
cessaram de extrair borracha nem de viajar para o Juruá para trocá-la, então também será
necessário entender a relação entre estas duas bacias fluviais.
Os primeiros anos no Itaquaí
Os Kanamari dizem que a causa imediata do movimento de Ioho em direção ao
Itaquaí foi uma maldade dos Kulina. Estes colocaram fogo em um dos barracões de João
Carioca e mentiram para os brancos, dizendo que tinham sido os Kanamari que o
queimaram. Como vingança, os kariwa atiraram e mataram vários Kanamari no
Komaronhu. Ioho o agüentava mais: vamos viver em algum outro lugar; vamos para
o Itaquaí”. A comparação das genealogias de pessoas do Itaquaí permite-me estimar que
este movimento provavelmente ocorreu no início da década de 1940, o que é consistente
com o período em que a presença dos brancos começava se intensificar no Juruá devido ao
segundo boom da borracha
82
.
Ioho e sua famílai foram inicialmente para o Curueira, um afluente do Alto Itaquaí,
mas logo se mudaram para a calha principal. Ioho fez um reconhecimento do rio,
baixando-o aa foz do rio Branco. Não encontrando brancos, ele decidiu ficar e construir
sua aldeia no lugar chamado Pontão, não muito longe da foz do rio Kurueira. Pontão era
inicialmente composto somente dos Macaco-de-Cheiro-dyapa, entre eles Ioho e outros
homens como Dyori e Maion. Ware’im, filho de Maion, descreveu-me o Pontão como
tendo sido uma grande aldeia com roças extensas nas quais ‘cresciam grandes mamoeiros,
grandes bananeiras e muita mandioca’. Ele se lembrou dela como uma aldeia na qual todos
trabalhavam juntos e havia pouca discórdia porque, ao menos quando foi fundada, todos
que nela viviam eram parentes. As fetsas eram comuns e ele se lembrava dos animados
rituais Pidah.
82
Tastevin acredita que pode ter havido uma maloca dos Mutum-dyapa no Itaquaí em alguma época no
passado (n.d.1, 12; 17). Eu nunca ouvi uma afirmação similar, mas é certamente possível que este possa ter
sido o caso, mesmo se agora ela não esteja mais na memória dos Kanamari.
114
Ioho conheceu, no entanto, alguns Kanamari que ele nem sabia que existiam. Estes
eram os Om-dyapa, que viviam no rio Pedra, um afluente do Itaquaí, situado à jusante de
Pontão. Eu não pude obter nenhuma informação sobre quando ou porque estes Kanamari
decidiram se estabelecer tão longe do Juruá, longe do contato com qualquer outro
Kanamari
83
. Disseram-me que o líder dos Om-dyapa também se chamava Dyori e que, nas
cabeceiras do Rio Pedra, ainda se pode ver as velhas capoeiras e os cacos de cerâmica que
atestam a sua presença.
Alguns Om-dyapa acompanharam Ioho de volta para a aldeia de Pontão e todos eles
foram então para o Komaronhu. Esta visita foi descrita para mim como um Hori, mas foi
atípico por envolver pessoas que tinham, até muito recentemente, vivido juntas. Ioho
esteve no Itaquaí não mais que um ano antes de ir visitar seu irmão, Dyaho, em sua aldeia.
O povo de Dyaho estava com receio de deixar sua terra. Lembrar-se-á que mesmo a
configuração multi-dyapa continha, dentro dela, pequenas distinções baseadas na situação de
cada subgrupo ao longo do afluente. Assim, se Ioho e Dyaho tornaram-se parentes através
da co-residência em uma área na qual ambos podiam viver e viajar à vontade, as pequenas
diferenças entre eles podiam ser ativadas quando se considerou a mudança para uma nova
bacia fluvial.
Ioho e os Om-dyapa deixaram o Komaronhu depois de alguns dias. Um ano depois,
Dyaho viajou para o Itaquaí para retribuir o Hori. Vendo que não havia brancos e
impressionado pelo tamanho das novas roças e pela abundância de tracajás, Dyaho e outros
Mutum-dyapa decidiram ficar em Pontão, provavelmente no final da década de 1940 (ver J.
Carvalho 1955, 52-3). A mudança para o Pontão também foi a causa de um aumento nos
inter-casamentos entre os Mutum-dyapa e os Macaco-de-Cheiro-dyapa. Particularmente
importante para o compreensão da demografia do Itaquaí foram os casamentos entre as
irmãs de Dyaho, mulheres Mutum-dyapa, e alguns Macaco-de-Cheiro-dyapa (ver próximo
capítulo).
Os Kanamari, no meu entendimento, nunca construíram uma maloca no Itaquaí e
todas as aldeias que eles construíram eram similares à ‘maison de camp’ descrita por
Tastevin (1928; ver primeiro capítulo). A razão para isso pode estar na continuidade de
suas relações com os afluentes do Juruá que eles havima deixado. As malocas continuaram
a existir por lá, onde ainda viviam os velhos chefes –maita como Kadoxi e Dyori. O Itaquaí
83
Eles não o, no entanto, os únicos exemplos de Kanamari que isolam a si próprios dos outros. Sabemos
que os Tucano-dyapa, que vivem nos interflúvios entre os rios Jutaí e o Jandiatuba, permaneceram isolados até
muito recentemente, quando alguns deles começaram a estabelecer contatos com os Lontra -dyapa no Jutaí.
115
deve ser visto, nesta época, como sendo algo como um posto periférico da configuração A,
cujo centro gravitacional continuou sendo Komaronhu e Mucambi.
Se a mudança para o Itaquaí foi em parte uma resposta aos aspectos mais violentos
e desagregadores das interações com os brancos, isto não significou que os Kanamari
queriam, no geral, abrir mão das relações com eles. Uma das coisas que os impressionou no
Itaquaí foram as suas seringueiras, que permaneciam inexploradas. Deste modo, todas as
aldeias antigas do Itaquaí são descritas como ‘colocações de borracha’ (seringais), mas isso
não significa que elas pertenciam aos brancos. Não havia brancos e, portanto, estes
seringais pertenciam aos Kanamari.
É difícil confirmar, com exatidão, todas as aldeias que existiam no Itaquaí durante
os primeiros anos da migração, assim como é difícil estabelecer uma cronologia relativa às
datas em que essas aldeias foram habitadas. Muitas delas podem ter sido habitadas por
curtos períodos de tempo. O Mapa 6 mostra as aldeias que os Kanamari me relataram
desde este período até a chegada da Funai em 1972. Assim, ele inclui algumas aldeias que
não eram ao menos não até a presente data associadas aos dois –dyapa que ocuparam
primeiramente o rio. O mapa cobre aproximadamente trinta anos e eu o posso assegurar
a contemporaneidade de todas as aldeias. É provável que todos estes lugares tenham sido
visitados ao menos nos primeiros anos da ocupação e alguns podem ter sido habitados de
forma intermitente. De qualquer maneira, os padrões Kanamari de residência e de
mobilidade – com flutuações sazonais e anuais significativas – tornam qualquer tentativa de
definir as aldeias com precisão insignificante. A história que eles narram focaliza mais os
tipos de relação que existiam entre os personagens centrais da migração e depois entre estes
e os brancos, do que a cronologia de ocupação das aldeias. A imposição de uma cronologia
a esta história é, portanto, de minha responsabilidade.
116
117
Ioho se torna o -warah do Itaquaí
Se muitas aldeias no Itaquaí eram ‘seringais’, pouca dúvida que Ioho e, em
menor extensão, Dyaho, eram seus ‘donos’. Isto o significa que eles e seus ‘parentes
próximos’ eram os únicos que viviam no rio, que a eles logo se juntaram outros. Na
discussão sobre o conceito de –warah no capítulo anterior, vimos que os Kanamari
procuram viver sob ‘chefes/corpos’ estáveis e isso, longe de ser uma situação que se dá por
default, é um estado efetivamente procurado, e faz com que corpos individuais e corpos
coletivos parem o fluxo do mundo.
Com a situação no Juruá levando os Kanamari de suas aldeias em direção aos
brancos, mudar-se para o Itaquaí tornou-se uma opção atraente para muitas pessoas, sendo
que nem todas eram dos subgrupos predominantes na configuração A. Este foi o caso, por
exemplo, de Nohin, um homem Japó-dyapa que se mudou para o Mucambi na década de
1930. Ele extraía borracha para Ioho, mas com o fluxo de brancos e a multiplicação das
relações entre os Kanamari e os patrões, Nohin começou a trabalhar diretamente para os
brancos, ao invés de trocar com eles através de Ioho. Quando o último se mudou para o
Itaquaí, Nohin, gravemente endividado com um patrão, ficou para trás. Depois que Dyaho
se mudou e as notícias começaram a propagar que no Itaquaí ‘todos eram felizes’ porque os
brancos ainda não viviam , Nohin também se mudou, estabelecendo-se na aldeia de
Praiano. Os Om-dyapa, também, talvez tendo ficado cansados de viver tão isolados,
estabeleceram-se na área onde Ioho vivia e pelo menos um Caititu-dyapa, um homem
chamado Nui, fez a mudança para o Itaquaí na primeira metade da década de 1950. Em
todos os casos, disseram que estes movimentos ocorreram Ioho pato-na, ‘em direção a Ioho’.
poucas opiniões unânimes entre os Kanamari, como é de se esperar de um
grupo de pessoas com histórias tão diferentes, mas um dos únicos pontos em que todos
concordam é que Ioho era um chefe excepcional. Ele viajava para o Juruá com a borracha
que os habitantes do Itaquaí lhe traziam e depois redistribuía a mercadoria obtida dos
brancos de modo que todos obtivessem uma parcela justa. Não havia reclamações de
ninguém por avareza. O fato de que todos eram felizes reduzia qualquer incentivo em
direção a outro êxodo e encorajava mais os Kanamari do Juruá, que ouviam sobre a aptidão
e bondade dos de Ioho e, posteriormente, Dyaho, a se mudarem para o Itaquaí. Quando
Ioho era chefe, disseram-me, ninguém ficava querendo nada: sal, açúcar, roupas, anzóis e
linhas, rifles e munição, tudo estava disponível prontamente. Segunda uma velha mulher
118
Macaco-de-Cheiro-dyapa, Kate: “Ioho era sempre alegre. Ele trazia para nós mercadorias
dos brancos e ele retornava do Juruá cantando lindamente, por todo o caminho, até chegar
em nossas aldeias. Todo mundo recebia alguma coisa. Quando alguém se casava, Ioho dava
tudo ao casal, até as suas redes de mosquitos. Ninguém queria ir embora.”.
No Itaquaí, Ioho o era mais um tukuna bu hu yan, aqueles que fazem as pessoas
fazerem coisas’. Na falta dos antigos chefes, ele tornou-se, ele próprio, o –warah daquele
rio. As interações com o Juruá continuaram constantes, e por isso teria sido possível para
eles continuar vendo os antigos chefes como seus –warah, e o Itaquaí continuaria, assim,
sendo um posto distante da configuração A, mas o fato é que uma das características
definidoras de um warah é sua habilidade de atrair os outros para si e mantê-los e as
pessoas constantemente rumavam em direção a Ioho. Como o relato anterior de Kate deixa
claro, as pessoas eram atraídas ao Itaquaí por causa dele e pela mesma razão ‘ninguém
queria ir embora’. Isto contrastava com a ‘dispersão’ (inona) das pessoas que começou a
ocorrer nas antigas aldeias no Juruá neste mesmo tempo, oferecendo, desta forma, uma
alternativa à vida com os brancos, longe das aldeias Kanamari.
Por Ioho ter sido o primeiro imigrante e devido a sua habilidade de situar as
pessoas e agregar outras em torno de si, o Itaquaí é hoje, geralmente, relacionado aos
Macaco-de-Cheiro-dyapa. A associação entre as bacias fluviais e um subgrupo é, como
vimos, uma das características definidoras tanto das bacias fluviais como dos subgrupos. O
fato de o Itaquaí ter sido conhecido como uma área explorada pelos Macaco-de-Cheiro-
dyapa durante o verão o tornou parte das ‘suas terras’. No entanto, durante a migração,
quando pessoas de diferentes origens começaram a co-residir nessas terras, teria sido
possível mudar o estatuto desta área e impor um nova caracterizção para o Itaquaí. Mas até
o presente dia ainda diz-se que o Itaquaí é ‘a terra dos Macaco-de-Cheiro-dyapa
84
porque
Ioho foi o primeiro a viver nela, ainda que seus residentes saibam que todos eles são
‘misturados’. apenas uma aldeia hoje no Itaquaí, aquela situada mais à montante, que é
considerada, unanimamente, como sendo uma aldeia dos ‘Macaco-de-Cheiro-dyapa’.
Embora a aldeia esteja à jusante de Pontão, seus residentes afirmam que estão nas ‘terras de
seus avós/ancestrais’ e costumam, algumas vezes, visitar as capoeiras que Ioho e sua
família deixaram para trás.
Mas em situações como esta para a qual agora nos voltaremos, em que a conexão
entre as aldeias que começaram a emergir no Itaquaí e as que estavam começando a se
84
Os Kanamari me contam que o Mucambi não é mais habitado por nenhum Kanamari e que todos os
Macaco-de-Cheiro-dyapa mudaram-se, ao longo dos anos, para o Itaquaí e daí para o Javari. O Mucambi, no
entanto, continua a ser a ‘terra dos Macaco-de-Cheiro -dyapa’.
119
desintegrar no Juruá é enfatizada, a posição do –warah pode novamente ser desviada para
os antigos chefes.
Alemanha e a Guerra com os Dyapa
O primeiro branco que os Kanamari encontraram na bacia do Itaquaí não foi visto
no próprio rio, mas no alto curso do rio Donaia, um afluente dele. Seu nome era
Alemanha.. Ele era um seringueiro que trabalhava no São Domingos, um afluente do
Donaia que, por sua vez, era um afluente do Itaquaí. Ele se mudou para esta região para
procurar novas seringueiras. Esta parte do Donaia fica próxima às nascentes dos afluentes
do Juruá e Alemanha veio por terra desde o Juruá para se estabelecer em sua nova
propriedade.
A presença de Alemanha ofereceu a Ioho uma alternativa às longas viagens ao Juruá
e eles rapidamente estabeleceram uma relação de troca. Ioho trouxe borracha e peles de
animais para Alemanha e seus homens e, alguns Kanamari passaram a caçar para eles. Em
troca, eles faziam a viagem para o Juruá para trocar as caças por bens. Mas, hoje, a presença
de Alemanha no Itaquaí é mais lembrada por um inimigo comum: os grupos Pano,
chamados Dyapa pelos Kanamari, que ocasionalmente atacavam tanto a eles quanto ao
Alemanha. A ‘propriedade’ de Alemanha tinha sido recentemente atacada e alguns de seus
homens mortos, quando ele fechou um acordo com os Kanamari: ele lhes daria vinte rifles
de calibre 44 para que acabassem com os Dyapa de uma vez por todas.
No passado, quando os Kanamari ainda viviam no Juruá, eles eram, às vezes,
atacados por seus inimigos, que matavam vários homens e fugiam com suas mulheres. Os
Kanamari dizem que eles nunca atacavam de volta. Sua estratégia consistia em evitar os
Dyapa, dispersando e movendo suas aldeias para novos lugares, como vimos. Os Kanamari
frequentemente chamam qualquer grupo considerado agressivo e incapaz de ser generoso
de noknim, ‘os furiosos’, mas este termo tornou-se um sinônimo de Dyapa. Não é o caso
que todos os grupos Pano são sempre agrupados em uma única categoria. O grupo isolado
conhecido como os ‘Flecheiros’, que vive na região do alto Igarapé São José, um afluente
do Itaquaí, é geralmente chamado de Capivara-dyapa e os Kulina Pano do Javari são
chamados de Urubu-Rei-dyapa, por exemplo. Estes nomes expressam alianças mais ou
menos efêmeras, que resultam de certas contingências. Os Kulina Pano estão hoje
reduzidos a aproximadamente 20 indivíduos e são considerados inofensivos pelos
Kanamari. Os ‘Flecheiros’ nunca são vistos e a aliança é baseada em uma visita à aldeia
120
deles que aconteceu uns trinta anos atrás e da qual nos informaremos logo. Estas são
exceções para os Kanamari, porque a maioria dos Dyapa são noknim, pessoas que só
conhecem a raiva e são uma antítese daqueles que ‘conhecem a terra’, ityonim tikok, isto é,
que sabem como viver apropriadamente.
A ênfase no caráter anti-social dos Dyapa é tal que algumas vezes as diferenças entre
os vários povos Pano tende a ser ignorada. Isto fica claro na aliança estabelecida com
Alemanha. Tal situação sugere que, se Alemanha foi realmente atacado pelos povos de
língua Pano, estes eram, provavelmente, os ‘Flecheiros’ isolados que viviam longe do seu
acampamento. No entanto,, após obterem os rifles dados por Alemanha, o foi até os
‘Flecheiros’ que os Kanamari se dirigiram, mas sim em até os Kaxinawá, seus velhos
inimigos no Juruá. Apesar de ser possível que os Kanamari tenham enganado Alemanha,
usando-o com o objetivo de adquirir armas de fogo para atacar, não os inimigos de
Alemanha, mas os seus próprios inimigos, não é isso o que eles mesmos dizem
85
. É a
agressividade dos Dyapa que estabelece sua unidade para os Kanamari, como se por serem
incapazes de se comportar propriamente todos eles se tornassem parentes por default.
Atacando os Kaxinawá eles estavam golpeando os parentes (-wihnim) dos ‘Flecheiro’ e
estavam, então, não só ajustando o próprio placar, mas também vingando Alemanha.
O rio no qual Alemanha estava estabelecido era, como vimos, muito próximo às
nascentes do Komaronhu. O ataque aos Dyapa tornou-se um projeto inter-subgrupos,
envolvendo as aldeias dos Mutum-dyapa e dos Macaco-de-Cheiro-dyapa tanto no Itaquaí
como nos afluentes Juruá. O velho Kadoxi, o chefe do subgrupo dos primeiros, estava
particularmente entusiasmado porque vira muitos dos seus parentes jovens sendo
capturados no passado. A oportunidade proporcionada pelos rifles de Alemanha fez com
que ele se lembrasse das animosidades que provavelmente tinham sido esquecidas: Deixe-
nos também atacá-los! Eles vão acabar com a gente se nós o os atacarmos”!, ele teria
dito. Se antes eles estavam relutantes em atacar um povo que era pura violência, agora, com
armas de fogo, eles começavam a conceber sua vantagem. A maioria dos homens e das
mulheres do Itaquaí partiu, com muitos de Komaronhu e de Mucambi, para atacar os
Dyapa.
Kadoxi estava verdadeiramente ansioso: “Hoje teremos nossa vingança (ohunhuk)”.
Eles circundaram a aldeia Dyapa e começaram a atirar. Seus inimigos foram pegos
despreparados e as poucas flechas que arremessaram de volta foram facilmente barradas
pelos escudos de pele de anta que os Kanamari confeccionaram. Três escaparam em
85
Veremos logo que esta hipótese é altamente provável visto que os Kanamari conheciam os Flecheiros e os
visitaram anteriormente.
121
direção à calha principal do Juruá. Eles foram seguidos pelos Kanamari que os
interceptaram enquanto eles tentavam atravessar o rio. Mas não havia necessidade de atirar
neles porque eles foram atacados por um crocodilo que matou dois; um deles sobreviveu
para contar aos outros: “agora os Kanamari vão nos pegar! Eles mataram todo mundo”!
Por dois anos os Kanamari ficaram longe mas no terceiro ano eles atacaram os
Dyapa novamente. Desta vez, no entanto, eles não atiraram neles. Eles atacaram de
emboscada um grupo e levaram uma jovem menina com eles. Eles pensaram em matá-la,
mas Nudyi apropriou-se dela e disse: “Não! Esta vai ser minha esposa”! Eles levaram-na e
chamaram-na de Wuka. Ela foi viver no Itaquaí por um tempo e a maioria dos netos dela e
de Nudyi ainda vivem naquele rio hoje. Esta foi a única instância na memória coletiva dos
Kanamari do Itaquaí em que um inimigo foi capturado e criado por eles. Os Kanamari
dizem que depois disso os Dyapa fugiram subindo o Juruá em direção à cidade de Cruzeiro
do Sul. Depois eles voltaram e foram por terra até o rio Curuçá onde eles ainda estão
estabelecidos hoje. Eles não atacaram mais os Kanamari
86
.
A presença de Alemanha e a oportunidade que seus rifles ofereciam deslocou,
assim, o –warah de volta ao Juruá. A presença do antigo chefe –maita desempenhou um
papel importante neste movimento, mas para compreender a ligação entre o Itaquaí e as
aldeias do Juruá também é preciso levar em conta a ancestralidade das terras do Juruá. O
Itaquaí acabara de ser ocupado, mas o Komaronhu e o Mucambi haviam sido habitados
por muitos anos e eram, assim, o produto da antiga atividade dos Kanamari que foram
colocados no início dos tempos, quando Tamakori criou o mundo. Era a terra de seus
mowarahi, os ancestrais anônimos que tinham deixado de ser humanos para se tornarem
landscape (paisagem). Estes ancestrais podiam incorporar o Itaquaí e os afluentes do Juruá
em um único corpo, de uma maneira muito parecida com o modo como, durante o Hori,
eles incluíam subgrupos diferentes em um espaço comum: Ioho ? Kadoxi ? -mowarahi,
todos são versões fractais da vida sob corpos. Corpos que se tornam progressivamente
mais amorfos e dilatados a cada moviemento longo da escala : do novo chefe jovem (Ioho)
ao velho chefe alto e gordo (Kadoxi), às amplas capoeiras e aldeias antigas que permeavam
os afluentes do Juruá. A guerra contra os Dyapa foi um momento no qual o parentesco, que
estava sendo fragmentado à medida que as pessoas se desagregavam devido a um estado de
fluxo e de migração, podia ser novamente celebrado, dessa vez, contra um inimigo comum.
86
Os Kanamari dizem aqui que os Kaxinado Juruá e os Marubo do Curuçá eram o mesmo povo. Alguns
até acham curioso que eles tenham mudado seu nome quando se mudaram para o Curuçá. Os Kaxinawá e os
Marubo (junto com os Korubo) são exemplos prototípicos de Dyapa, os únicos grupos que, até onde eu saiba,
nunca são referidos como possíveis –tawari ou como um subgrupo do tipo –dyapa. Então, a relação migratória
que os Kanamari estabelcem na ‘história’ parece ser mais de ordem lógica que cronológica.
122
Foi por causa disso, mais do que da vaga vingança proposta por Alemanha, que os
Kanamari foram apaixonadamente para a batalha; foi a oportunidade de se reunir como
parentes em um momento em que o parentesco estava sendo despedaçado que fez com
que Kadoxi ficasse tão ansioso para ir acabar com os Dyapa; e foi por esta razão, parece-
me, que todos, até as mulheres e as crianças, foram para a guerra
87
. No entanto, esse foi um
episódio único e nenhuma ação desse tipo jamais foi tentada novamente. A estrutura
corpórea do Juruá que o uniu ao seu posto distante no Itaquaí, funcionou mais uma vez
contra o pano de fundo de maldade e crueldade dos inimigos, congregando um povo que
possivelmente sabia que estava se separando.
O Juruá em Fluxo
Vimos que assim que alguns Kanamari começavam a se estabelecer
permanentemente no Itaquaí, outros também começaram a se mudar em direção a Ioho.
Nesta sessão eu gostaria de deixar temporariamente o Itaquaí e retornar ao Juruá, para que
possamos entender como estes outros Kanamari, incluindo aqueles da configuração B,
vieram a se mudar para o Itaquaí. Para isso, considerarei três aspectos de como a vida no
Juruá era na primeira metade da cada de 1940: o aumento das acusações de feitiçaria
entre os Kanamari, a incrível história do aprisionamento de João Dias e a relação entre os
Kanamari e os Dyapa.
Acusações de feitiçaria
A história que seguimos aaqui narrou como o aumento da presença dos brancos
nas aldeias Kanamari e em seus entornos atuou de modo a fragmentar a sua unidade,
mergulhando os Kanamari em um estado de fluxo. Mudar-se para o Itaquaí foi uma reação
a isto, uma tentativa de reagir contra os efeitos perigosos de se viver em uma sociedade
sem-corpo. Mas esta é apenas uma descrição parcial porque, de certo modo, eu ignorei as
explicações freqüentemente dadas pelos Kanamari quando são perguntados por que eles,
ou os seus pais, deixaram o Juruá para viver no Itaquaí: eles saíram porque as pessoas com
as quais eles costumavam viver não mais ‘co-residiam’ (-wihnim to) com eles e por isso se
afastaram de seus (ex-)parentes. O processo de fragmentação das aldeias é também um
processo de afinização, pois viver nas aldeias é viver como um corpo, através do(s)
87
A captura de Wuka pode surgir como uma consequência lógica. Talvez a guerra contra os Dyapa tenha
permitido a eles brevemente visualizar contextos ainda mais amplos para criação de parentesco.
123
chefe(s), o que equivale, assim, a viver com parentes. Na medida em que os chefes perdiam
sua habilidade de agregar as pessoas, mantendo-as juntas como uma unidade, elas deixavam
de ser parentes, passando a se encontrar apenas ocasionalmente. Este processo fez com
que ‘não se conhecesse’ (tikok tu) aqueles com quem se co-residia. A dissolução das aldeias,
em resumo, resultou em um afastamento que levou ao aumento das acusações de feitiçaria
entre pessoas que antes tinham sido parentes e, portanto, estavam fora de suspeita. Ao
mesmo tempo, a reconfiguração de novas aldeias fez com que as pessoas que
anteriormente eram não-parentes passassem a co-residir.
Antes, os feticeiros (baohi) costumavam vir de longe; eles eram ‘estrangeiros’
(oatukuna), Kanamaris de quem se ouvia falar ou até se via ocasionalmente, mas com quem
nenhuma relação positiva era mantida. Os Tracajá-dyapa e os Macaco-Barrigudo-dyapa eram
particularmente temidos pelas pessoas das configurações A e B. Em alguns casos os
feiticeiros eram –tawari, com quem, provavelmente, se tinha algum descontentamento ou se
mantinha um sentimento de desforra, tais como os ambivalentes Lontra-dyapa do Jutaí,
tawari ocasionais e freqüentemente ditos feiticeiros. Os Kulina, particularmente aqueles que
viviam no longínquo Purus, eram também acusados de feitiçaria, mas não os Dyapa. Isto
porque a feitiçaria Kanamari é um aspecto do xamanismo, é o seu lado oposto, por assim
dizer, como é comum em outras regiões da Amazônia (Whitehead e Wright 2004, 10). Os
xamãs (baoh) Kanamari operam pela manipulação da substância xamânica dyohko que
penetra em seus corpos, impregnando-os. O feiticeiro expele a substância de seu corpo e a
mistura com outros elementos, como vermes ou aranhas e, então, usa uma zarabatana para
atirá-la em sua vítima (ver capítulo sete). Enquanto outros grupos de língua Katukina e os
Kulina sabem como manipular a substância dyohko, os Dyapa o sabem. Eles são
conhecidos por serem especialistas em venenos e guerreiros destemidos, mas não são
feiticeiros.
Os feiticeiros podem ter uma razão para atacar, mas frequentemente eles atacam
outros Kanamari sem qualquer razão aparente. Como também é comum na Amazônia, os
xamãs Kanamari são pessoas de caráter ambivalente, que podem curar e causar mal (e.g.
Lagrou 2004). O próprio fato de terem o corpo imbuido por dyohko, uma substância
associada ao Jaguar, afeta a personalidade deles. Mas os feiticeiros precisam agir
intencionalmente e eles precisam estar fisicamente próximos da sua vítima. O dyohko impele
as pessoas a agirem de modo maldoso, mas nenhum xacom quem eu falei admitiu usar
o seu dyohko para causar algum dano, nem mesmo contra aqueles que prejudicam seus
próprios parentes.
124
Quando vigorava o modelo de endogamia do subgrupo, dizem os Kanamari, os
feiticeiros nunca vinham do interior do subgrupo. A multiplicação dos laços de –tawari, que
eram personificados na figura do chefe do subgrupo, reduzia a possibilidade de que os
feiticeiros viessem de –dyapa próximos, com quais os rituais Hori eram realizados, que as
pessoas que mantinham relações de aliança não deviam fazer mal umas às outras
88
. A
chegada de Jarado, que agiu para aproximar os subgrupos que eram anteriormente –tawari
uns para os outros, começou a dissolver estas relações, levando a um aumento inicial das
acusações de feitiçaria entre pessoas que, repentinamente, viram-se co-residindo. Na
medida em que as pessoas perderam os corpos que as situava anteriormente, elas ficaram
imersas em novas configurações, em que viviam perto de pessoas que antes chamavam de
–tawari. Não é, então, apenas a separação dos parentes, i.e, de pessoas que viviam juntas,
que estimulou as acusações de feitiçaria , mas também o fato de se ter passado a co-residir
com pessoas que aindao tinham sido feitas parentes. O abalamento gradual do papel do
chefe tornou impossível o estabelecimento de aldeias que mantivessem alguma forma de
continuidade, impedindo que as pessoas vivessem juntas por um período prolongado. Não
havia, em suma, tempo para estas novas aldeias se constituirem como um grupos de
parentes (-wihnim-pa, ‘virar parentes’). Os xamãs, portanto, sempre permaniciam como
feiticeiros em potencial.
O período imediatamente anterior à migração levou a um agravamento dos ataques
de feitiçaria e a culpa caiu sobre os xamãs que estavam próximos e, portanto, dentro da
distância de ataque, mas que o eram considerados parentes
89
. Para escapar disto, muitas
pessoas saíram para o Itaquaí, onde Ioho fazia ‘todos felizes’ e, assim, as pessoas o
tinham razão para fazerem mal umas às outras.
Em alguns casos, as acusações de feitiçaria poderiam levar a guerras, como a que
ocorreu entre os Japó-dyapa do Mawetek e os Lontra-dyapa do Jutaí. Logo depois de um
Hori no Mawetek, um homem Japó-dyapa morreu e um xamã concluiu que ele tinha sido
morto pelo dyohko de um xamã Lontra-dyapa que tinha estado presente no ritual. O Japó-
dyapa obteve um rifle de um branco que vivia na região e foi ao Jutaí para realizar sua
vingança. Na briga que se seguiu, dois homens Lontra-dyapa e um homem Japó-dyapa
morreram. Como resultado destas brigas, um homem decidiu se mover de Mawetek em
88
Os Hori poderiam, é claro, acabar mal e concluir com os envolvidos ‘inimizando’ uns aos outros, e com
isso aumentando e não diminuindo a possibilidade de acusações de feitiçaria.
89
É altamente provável que, como em todas as partes da Amazônia, o contato com os brancos tenha
introduzido e aumentado a existência de doenças infecciosas. Os Kanamari não se lembram deste período
como sendo um em que as doenças dos brancos predominaram ao menos não mais do que acontece hoje,
por exemplo. Isto pode ser porque a migração para o Itaquocorreu bem depois do ‘primeiro contato’ e,
assim, o período em questão pode ser menos marcado por estas doenças que no passado.
125
direção ao Itaquaí para viver com Ioho e, assim, evitar as possíveis represálias dos Lontra-
dyapa. Ele levou consigo os seus dois jovens filhos, que hoje são homens idosos e ainda
vivem no Itaquaí.
Esta guerra revela como os próprios Japó-dyapa estavam começando a se
fragmentar. Diferentemente da guerra entre os Dyapa que Alemanha possibilitara, esta
guerra não se deu de forma coordenada e muitos dos outros residentes do Mawetek
discordaram de tal iniciativa, dizendo que os Lontra-dyapa não poderiam ter sido
responsáveis pela morte do homem Japó-dyapa e que, portanto, não os atacariam Isto fez
com que alguns deles continuassem a manter relações próximas entre o Mawetek e o Jutaí,
o que incluía inter-casamentos. João Dias, por exemplo, um Caititu-dyapa e, portanto, um
habitante da configuração B juntamente com os Japó-dyapa, casou-se com uma mulher
Lontra-dyapa logo depois desta guerra. Ele acabou mudando-se para o Itaquaí também, mas
por uma razão diferente para a qual eu me voltarei agora.
O aprisionamento de João Dias
Muitos dos Caititu-dyapa, que compunham uma parte da configuração B, moveram-
se para o Itaquaí após a migração de pessoas da configuração A. Esta migração seguiu-se à
captura de João Dias, um evento que teve implicações importantes e provavelmente
ocorreu em meados da década de 1960. João Dias era um xamã Caititu-dyapa que era, como
vimos, casado com uma mulher Lontra-dyapa do Jutaí. Ele viajava regularmente para e
diferente de muitos dos outros Caititu-dyapa, não temia os Lontra-dyapa nem sua feitiçaria.
A história que se segue me foi contada por uma variedade de pessoas diferentes e a
versão que eu se segue é uma síntese de muitas dessas. Meu objetivo em produzir esta
versão é tornar explícito três relações que foram, e continuam sendo, importantes para os
Kanamari e que esta história articula em uma única narrativa: aquela entre eles mesmos e os
Dyapa, entre eles e os brancos e entre os Dyapa e os brancos. Ela mostra como certas
divergências com os brancos levaram os Kanamari a criar uma aliança efêmera e precária
com uma parcela dos Dyapa e como os problemas contínuos com os brancos levaram
alguns deles a se mudar para o Itaquaí.
João Dias era um dos cinco filhos de Arabona, que tinha sido um chefe do
subgrupo dos Caititu-dyapa no Toriwa. Quando João Dias se casou os Caititu-dyapa não
eram o único povo vivendo no Toriwa, pois muitos dos brancos que trabalhavam para o
patrão Luís Ferreira também fizeram suas casas por lá. Um dia, alguns homens kariwa
126
tinham ido buscar folhas de tabaco e cana-de-açúcar quando viram uma menina índia nua
não muito longe deles. O pai da menina tinha acabado de atirar em uma fêmea de macaco-
de-cheiro com sua zarabatana, fazendo-a cair ao chão. O macaco tinha acabado de dar a luz
e seu filhote ainda se agarrava à sua mãe morta. A menina tentava libertar suas mãos
quando foi vista pelos brancos. Um deles a desejou e disse: “ah, ela vai ser a minha
mulher”. Ele se esgueirou por trás dela, mas ela o viu antes que ele a agarrasse. Assustada,
ela mordeu o braço dele e tentou fugir, mas não foi rápida o suficiente e o homem teve
tempo de desembainhar sua faca e golpeá-la.
O pai da menina viu tudo escondido atrás de uma árvore. Ele queria fazer alguma
coisa, mas teve medo. Ele e sua filha eram ‘Flecheiros’, Ameríndios de língua Pano que
permaneciam isolados, sem contato com os brancos e, por isso, não tinham rifles. Ele não
teria tido tempo de matar os dois brancos, então retornou à sua aldeia onde contou aos
seus parentes o que tinha acontecido. Ele contou como sua filha tinha sido atacada e
esfaqueada por nenhuma razão. Tudo que ela queria era ficar com o filhote de macaco para
poder criá-lo na aldeia. Seus parentes ficaram furiosos com a história e quiseram sua
vingança. Eles lembraram que alguns anos atrás os brancos também tinham atirado em um
homem idoso e matado sua filha. Eles sabiam onde o homem que matou a menina vivia e
então eles foram asua casa e mataram sua esposa. O marido da mulher estava fora e o
ouviu nada, pois os Flecheiros imitaram o som de um macaco-prego para disfarçar os
gritos da mulher. Eles voltaram para a floresta, nunca tendo sido vistos por nenhum dos
brancos. Quando o homem retornou e viu o corpo de sua esposa, ele imediatamente foi
falar com seu patrão, Luís Ferreira, que vivia perto da foz do Mamorihi. Luís Ferreira não
teve dúvidas de que os Kanamari eram os responsáveis e sabia que João Dias, que estava
sempre se metendo em confusão, devia estar envolvido de alguma maneira: “Isto não pode
ser. Nós vamos lá agora e mataremos João Dias”.
No caminho eles passaram pela casa de um outro colono chamado Chico Arigó que
também conhecia João Dias. Chico viu a raiva da multidão e sabia que algo terrível estava
para acontecer. Eles falaram para Chico que iam matar todos os Kanamari. “Por que
diabos vocês fariam algo assim?”, Chico perguntou-lhes. Porque eles amaldiçoaram a
terra
90
. Foi João Dias, temos certeza disso. Luís Ferreira nos contou e por esta razão vamos
matar os Kanamari. Nós vamos acabar com todos eles”! Chico conhecia os Kanamari
estava convencido que Luís Ferreira estava errado: “Não é nada disso. Vocês não sabem
90
To-na ityonim miori tya bo. ‘ali, a terra será miori’. Vimos que miori’ é ‘falta de sorte’, resultado do rompimento
das relações de convívio. A multidão dizia que, por matar o homem branco, João Dias teria feito todos miori,
e eles precisavam obter vingança por isso.
127
como viver bem? Vocês o cometer um erro e fazer com que todos nós nos tornemos
miori! Todos, todos se tornarão miori por causa disso!”. A multidão começou a duvidar de
suas intenções. “Estaria Chico certo? Nós precisamos ter certeza disso”. Chico, vendo que
eles estavam começando a ter dúvidas, prosseguiu: “Os Kanamari não fazem essas coisas.
Eles me trazem borracha e algumas vezes eles me dão peixes. Assim é que eles são”. Deste
modo, Chico fez com que a ‘conversa acalmasse’ e os brancos raivosos retornaram para
suas casas
91
.
Alguns dias mais tarde a multidão passou pela casa de Chico novamente. Eles não
carregavam seus rifles, mas estavam acompanhados pelos oficiais da polícia e soldados.
“Ouça Chico, nós vamos falar com João Dias. s queremos saber o que aconteceu, é
isso”. Mas eles estavam mentindo. O que eles realmente queriam era prender João Dias.
Eles foram para o Toriwá e foram recebidos pelos Kanamari que lhes serviram caiçuma de
mandioca. João Dias disse que ele não sabia nada sobre a mulher morta, mas eles insistiram
que ele os acompanhasse até o Felipe onde eles escreveriam um ‘documento’ livrando-o
de todas as acusações. Os brancos pareceram felizes quando ele concordou em cooperar e
os Kanamari não viram razão para duvidar da história deles. Mas uma vez que eles
chegaram à cidade, o oficial de polícia bateu em João Dias e o jogou na cadeia
92
.
Felizmente para João Dias e infelizmente para os brancos, ele era um xamã
poderoso. Ele tirou seu Jaguar dyohko da bolsa onde ele o guardara e colocou-o em sua
barriga. Os brancos ficaram aterrorizados quendo olharam dentro da cela e não puderam
achá-lo, somente um Jaguar que falou com eles: “vocês o podem tocar em mim. Outros
Índios fizeram isso, aqueles que vivem dispersos na floresta”. Os brancos ficaram com
medo e atacaram de volta: “Nós vamos levar você para outra cidade e colocá-lo em uma
cela maior”!
João Dias decidiu escapar usando o seu Boto dyohko. Era a estação chuvosa e São
Felipe estava inundada, então ele usou o Boto para nadar de volta para Toriwá. Os oficiais
de polícia ficaram furiosos. Eles procuraram por ele usando cachorros, mas não puderam
encontrar nada. Ele viajou durante a noite enquanto a polícia continuava a sua procura.
João Dias removeu o dyohko e deixou o rio em um lugar chamado Quaricoral cedo pela
91
‘Tornar a conversa calma’ (a-koni-bak-tiki, literalmente: ‘ele tornou a linguagem/discurso bons’) estabelece
um contraste com o ‘discurso furioso’, koni nok-nim, da multidão. Fazendo com que os brancos duvidassem
de seus motivos, Chico tornou o discurso deles calmo e evitou assim o que poderia ter sido um evento
terrível. É curioso que os Kanamari reproduzam a história de um modo no qual pelo menos alguns brancos
mantém um julgamento positivo deles. Isto é de muitas formas similar à história de Jarado, que foi atacado
pelos Dyapa e que julgava os Kanamari ‘bons’, ficando feliz de estar mais uma vez entre eles.
92
A palavra que os Kanamari usam para ‘encarcerar’ é cadeiar-tiki. ‘Cadeiar’ é uma forma verbal comum na
região. O sufixo tiki conota a intencionalidade de um verbo e é geralmente anexado atodos os verbos em
português quando eles são inseridos em uma frase na língua Kanamari.
128
manhã. Ele viu a roça de alguns brancos locais na qual duas redes estavam amarradas,
roubou uma e andou até chegar ao Toriwá. Os brancos o seguiram por todo o caminho,
mas não conseguiam alcançá-lo. João Dias sabia que o único jeito de colocar um fim nisto
seria encontrando os verdadeiros culpados pela morte da mulher branca. Ele organizou
uma expedição para encontrar os Capivara-dyapa e dizer a eles que parassaem de matar os
brancos porque os Kanamari estavam sendo acusados. Umas vinte pessoas o
acompanharam.
Eles levaram oito dias por terra do Juruá até a aldeia dos Flecheiros. Eles primeiro
se aproximaram da sua roça. Os Flecheiros não tinham machados de metal, exceto o que
eles eventualmente roubavam dos brancos, mas mesmo assim sua roça era extensiva e
limpa, sem troncos de madeira à vista. Eles estavam com medo de se aproximar da aldeia,
mas perceberam que não tinham outra escolha. Os brancos os tinham inimizado (todiok) e
eles seriam mortos se não continuassem.
Eles viram o pátio central da aldeia com um tronco de árvore no seu lado mais
distante e cinco casas. Era de manhã cedo e os homens e mulheres estavam todos . Os
Kanamari esperaram em silêncio até que os homens saíram e as mulheres foram para as
roças, deixando para trás apenas algumas mulheres velhas e crianças. Eles então entraram
na aldeia, cuidadosamente. Uma velha os viu e começou a gritar, mas para sua surpresa ela
o fez na língua deles: “Aya, aya, aya, vocês são meus irmãos, meus irmãos! Não me
matem”! Os Kanamari disseram-na que eles não estavam com raiva e se aproximaram dela,
repetindo incessantemente que eles o tinham intenção de machucar e queriam falar
com ‘o povo dela’: seu povo é imprestável, minha irmã. Os brancos querem nos pegar.
Eles querem atirar em nós”.
Eles ouviram a história da velha mulher. Ela nascera uma Tucano-dyapa e fora
sequestrada pelos Flecheiros quando ainda era muito nova, mas não havia esquecido a sua
própria língua. Ela era a única das mulheres que conhecia a língua Kanamari e que, por
isso, interagiu com os Kanamari, enquando as outras mantinham-se à distância, agarrando
as crianças. “Onde está o seu marido, minha irmã”? “Ele está pescando. Eles foram todos
pescar com timbó”. Eles decidiram cantar uma música Kohana para ela, que a levou a
recordar de sua juventude, levando-a às lágrimas. Logo depois de terem cantado o Kohana,
o marido da mulher voltou com os outros homens Flecheiros. A princípio eles ficaram
furiosos e começaram seu canto de guerra: “hi, hi, hi, hi, hi, hi”. A mulher os acalmou e
começou a traduzir o que os Kanamari contaram a ela. Eles disseram que realmente
mataram um dos brancos, que esta era a sua vingança e que agora tudo estava resolvido e
129
eles não mais atacariam . O marido da mulher ficou feliz com a visita dos Kanamari e ela
lhe disse: “este é o nosso povo agora. Minha música apareceu novamente”.
A mulher raptada trouxe para os homens Kanamari bebida de pupunha: “aqui, a
bebida de pupunha do Jaguar. Vocês não estão com fome”? Ela lembrava do ritual
Kanamari de devir-Jaguar, no qual as mulheres reabastecem os Jaguares Míticos com
bebidas. Mas logo então os outros homens, os chefes, chegaram e novamente os Kanamari
ouviram o canto de guerra dos Dyapa: “hi, hi, hi, hi, hi”. Enquanto cantavam, eles
agarravam suas flechas e golpeavam o ar. A mulher imediatamente foi aeles e disse: “nós
não estamos furiosos aqui. o os golpeiem com as suas flechas”. Os homens deixaram
seus arcos de lado e correram para suas casas. Eles tocaram suas flautas enquanto as
mulheres ofereciam aos visitantes bebida de pupunha, mas os Kanamari estavam com
medo de que estivesse envenenada: “Eu não quero nada, meu tawari, eu não quero nada.
Deixe-nos conversar agora”. Mas os Dyapa cantavam e as mulheres continuavam tentando
fazê-los beber. Eles não podiam mais recusar e uma vez que os homens Dyapa beberam,
eles também o fizeram. Eles começaram a ficar com medo e disseram a seus anfitriões que
tinham que seguir o seu caminho. A velha mulher Kanamari não queria que eles fossem:
“vocês não querem cantar as músicas do Jaguar conosco”?
Eles partiram. À noite, enquanto dormiam, eles ouviram o canto de guerra Dyapa e
sabiam que estavam sendo seguidos. A luz da lua refletia nas pontas de suas lanças,
erguidas para ar. Os Kanamari decidiram não dormir e viajaram pela noite, até o Toriwá,
onde contaram aos outros Kanamari sua história. João Dias não retornou ao Toriwá. Seu
irmão, Nui, tinha se casado com Tyawe, uma Macaco-de-Cheiro -dyapa e se mudado para o
Itaquaí. Ele levou sua família e também se mudou para lá.
Os Kanamari contaram aos brancos tudo o que eles ouviram dos Flecheiros, mas
estes não ficaram imediatamente convencidos. A polícia veio procurar por João Dias
novamente e os Kanamari contaram a eles que ele tinha se mudado. Muitos anos depois,
Poroya, que vivia no Itaquaí quando João Dias chegou, foi para o Toriwá a mando de seu
patrão para trocar um tanto de borracha e de peles de animais por farinha de mandioca.
Todos eles beberam cachaça juntos. Os brancos ainda se ressentiam dos Kanamari e Luís
Ferreira se recusou até mesmo a se encontrar com ele: “Eu não que ter nada a ver com
Índios”! Eles falaram para Poroya comer, mas ele estava zangado e não quis, dizendo que
ele esperaria na clareira. Depois, quando as coisas se acalmaram um pouco, Poroya se
aproximou de Luís:
130
“Ouça, deixe-nos falar. Este é o único jeito de chegarmos num entendimento.
alguma testemunha que tenha visto os Kanamari matarem os brancos? Você tem provas? Por
que você nos inimiza? Os Kanamari penetraram na floresta e encontraram aqueles que
mataram os brancos. São eles que vocês devem chamar de inimigos. Meu pai nasceu aqui e
ajudou a fazer esta terra. O Komaronhu, o Mamorihi… mais tarde o seu pai, Chico Ferreira,
empregou o meu como lenhador, para fazer as estradas para a borracha. Meu pai trabalhou
para o seu. Estes brancos sabiam como viver. Eu nasci aqui, assim como você. Eu conheço
você, Luís, nós crescemos juntos. Naqueles dias nenhum branco morria, apesar de vocês
brancos irem nas nossas aldeias e pegarem nossas mulheres. É por isso que fomos para o
Itaquaí. É por isso que Ioho veio aqui para nos levar”.
Dyapa, Flecheiros e o sistema regional
Os Kanamari chamam seus inimigos de ityowa todioki’. Ityowa significa ‘nosso’
(exclusivo) e o verbo todiok significa inimizar’, ou ‘transformar em inimigo’. O sufixo –i
neste caso atua para nominalizar todiok
93
. Ityowa todioki, então, significa ‘aqueles que nos
fazem de inimigos’. Do ponto de vista dos Kanamari, eles mesmos são sempre as vítimas,
nunca os culpados.
Potencialmente, todas as interações dos Kanamari com Outros que eles não
conheciam coloca-os em uma posição de vítimas. Vimos acima, nas histórias dos meninos
Ioho e Dyaho e no mito do Adyaba comedor de criança ’, que, não fosse o tipo de
conhecimento adquirido pelos meninos, sua relação com estes seres poderia ter terminado
tragicamente. Porque os meninos aprenderam com sucesso a linguagem e a escrita dos
brancos e as músicas dos Adyaba, os Kanamari são capazes hoje de interagir com estes
últimos de maneira positiva ou, ao menos, pouco nociva.
Quando eles o são capazes de lidar desta maneira com inimigos que os atacam
com flechas, lanças, rifles ou dardos xamânicos, sua reação raramente tem sido a de
procurar vingança, mas sim de fugir e se dispersar. A exceção foi a guerra com os Dyapa
que Alemanha subsidiou, quando, impelidos pela possibilidade de se (re-)estabelecer em
um único corpo, as aldeias de Itaquaí e de Komaronhu-Mucambi uniram-se para ter sua
revanche e matar seus inimigos. Em outras instâncias, os ataques ou a presença de
feiticeiros feriram seus corpos coletivos, despedaçando-os, o que implica na re-instauração
da mobilidade. Quando a palavra para ‘inimizar’, todiok, é dividida em suas partes
93
Meu conhecimento da língua Kanamari sugere que a forma substantiva todiokié irregular. Os verbos são
normalmente substancializados pelo sufixo –yan, como em tukuna bu hu yan’, ‘aqueles que fazem as pessoas
fazerem [coisas]’. Mas a forma *ityowa todiok-yan parece estar errada. Os Kanamari não me corrigiam quando
eu a usava, mas eu sempre os ouvi dizerem ‘todioki’.
131
componentes, ela revela precisamente esta característica: diok refere-se a qualquer qualidade
de força ou pungência e to- é um afixo que incorpora diok e implica em intencionalidade.
Todiok, então, possui o significado geral de ‘mandar embora agressivamente’. Ele pode ser
usado, por exemplo, para afugentar um cachorro irritante: todiok wa’pa tyo’!, ‘manda o
cachorro embora [assustando-o/gritando com ele]’. Assim, ‘transformar em inimigo’ é
causar dispersão, romper a unidade, fazer com que as pessoas sigam por caminhos
diferentes.
Nenhum inimigo é mais temido que os Dyapa. Os Kulina podem agir como
feiticeiros ou se comportar maliciosamente, os Kanamari distantes podem tangenciar a
fronteira entre –tawari e estranhos e os brancos podem mudar das relações de trocas para a
guerra, de ser afins potenciais a espíritos imprestáveis, mas muito pouco que possa
transformar os Dyapa em aliados. No capítulo anterior, eu argumentei que os Dyapa
prototípicos eram os Marubo e os Kaxinawá, e outros grupos de língua Pano poderiam, de
vez em quando, receber uma designação similar àquela dos subgrupos Kanamari. Este era o
caso dos Flecheiros que eram conhecidos como os Capivara-dyapa
94
. Se excluirmos os
Dyapa prototípicos e o-marcados, com quem nenhuma aproximação poderia ocorrer,
temos então uma série de interações perenes entre os Kanamari e certos grupos de língua
Pano, e isto aponta para um sistema regional interessante no qual o evitamento e a guerra
não eram a única opção. Isto se parece com o que foi proposto por Erikson (2004; no
prelo) em sua interpretação do uso Matis do termo Kanamari –tawari para se referir aos
espíritos mariwin. Eu gostaria de apresentar brevemente algumas considerações sobre este
assunto a partir de uma perspectiva Kanamari.
Poroya não participou da expedição aos Flecheiros, mas ele sabia a história de
como João Dias tinha organizado a missão para contactá-los. Alguns anos mais tarde, no
final da década de 1970, quando ele era um funcionário da Funai envolvido no contato
com os Matis, ele cantou para um homem Matis a mesma música Kohana que João Dias e
seus companheiros haviam cantado para a velha mulher Kanamari que viveu com os
Flecheiros. O homem ficou agitado, reconhecendo a música e reivindicando-a como sua,
cantando junto com Poroya, a quem ele chamou de –tawari.
94
A narrativa torna claro que os Kanamari o conheciam os Flecheiros ou ao menos não mantinham
relações estáveis com eles. Eu suspeito que o termo ‘Capivara-dyapa’ é usado retroativamente: como a história
é narrada no presente, aqueles que narram dizem que João Dias queria ‘ir ver os Capivara-dyapa’, mas ao
mesmo tempo é muito mais provável que ele tenha dito ‘vamos ver os Dyapa’ ou ‘vamos ver nossos inimigos’.
Em outras palavras, é a história que estabelece esses Dyapa como os Capivara-dyapa, potencialmente, ainda
que relutantemente, -tawari.
132
Os Kanamari consideram os Matis como Dyapa, mas trata-se de um Dyapa de uma
variedade menos danosa a quem eles, algumas vezes, chamam afetuosamente de Paca-dyapa,
para distinguí-los dos Marubo. Os Matis vivem hoje no rio Ituí, um afluente do Itaquaí,
mas um que corre para a parte baixa deste rio e por isso é muito distante da área ocupada
pelos Kanamari. O Ituí é também o lar dos Marubo e o , compreensivamente, trilhas
que liguem os dois rios. Os Kanamari e os Matis têm contatos regulares, contudo, na
cidade de Atalaia do Norte, através do Civaja (‘Conselho Indígena do Vale do Javari’), das
ONGs Indígenas que representam ambos e também através pela Funai. O Departamento
de Índios Isolados deste último órgão construiu um Posto na confluência do Ituí e do
Itaquaí chamado de ‘Frente de Proteção Etno-Ambiental do Vale do Javari’ (FPEVJ).
Alguns Kanamari, Matis e Marubo trabalham neste posto em alguns períodos do ano,
ajudando a fiscalizar a entrada e saida da reserva.
Os Kanamari alegam que não tiveram nenhum contato com os Matis no passado.
Os Matis viveram por boa parte da primeira metade do século 20 na área entre o Itaquaí e
o Ituí, próximos ao rio Branco. Havia Om-dyapa não muito longe, no rio Pedra, e Ioho e seu
povo no Itaquaí, em Pontão. O fato de os Kanamari não se lembrarem de ter tido
qualquer contado com os Matis não é, obviamente, garantia de que ele não tenha ocorrido.
Contudo, eles lembram-se vivamente de suas experiências com os Flecheiros, relembrando,
em detalhes, cada aspecto desta experiência, incluindo a música que eles cantaram quando
estavam lá. De alguma forma, esta música também encontrou um caminho para os Maris,
que a conheciam no momento de seu contato e que chamaram Poroya de –tawari, que é
provavelmente como ele também os chamaria
95
.
Parece que, ao menos para os Kanamari, os Matis começaram a emergir como
possíveis –tawari. Se as interpretações de Erikson estão corretas, esta pode não ter sido a
primeira vez que isto ocorreu. No próximo capítulo veremos que isto não é um problema
menor porque os –tawari são hoje raros entre os Kanamari. Mas o simples fato desta
possibilidade ser considerada resulta do fato de os Kanamari distinguirem os Matis da
massa de Dyapa irredutíveis que sempre foram, e continuam sendo, o povo que ‘faz deles
inimigos’.
Tornando-se Insano: O Itaquaí em fluxo
95
O repertório das músicas Kohana é virtualmente infinito, podendo sempre haver cantos novos, ao contrário
das músicas do Jaguar. Isto torna no mínimo estranho que a mesma música seja conhecida por dois povos
diferentes. muitas possibilidades aqui: os Kanamari ensinaram-na aos Flecheiros que a ensinaram aos
Matis; ou os Kanamari encontraram-se com os Matis e os Flecheiros em diferentes épocas, mas hoje se
lembram de ter se encontrado com os Flecheiros… é impossível ir além da especulação.
133
As pessoas das duas configurações que foram delimitadas no capítulo anterior
vieram então a residir no Itaquaí. A princípio, eles tinham o rio praticamente para si
mesmos, mas esta situação logo mudou com a chegada de mais brancos na região. No
início, Ioho foi capaz de situar os Kanamari no rio, assegurando que a borracha fosse
trocada por mercadorias ocidentais e que as pessoas continuassem felizes. No entanto, dois
eventos tiveram conseqüências drásticas para os Kanamari. O primeiro diz respeito aos
brancos que chegaram ao Itaquaí em grande número, minando novamente a autoridade de
Ioho. O segundo refere-se à morte de Ioho, logo seguida pela morte de Dyaho. Ambas as
mortes deixaram os Kanamari completamente sem chefes, fazendo com que eles se
dispersassem em todas as direções.
Nesta sessão, seguirei esta história, o que nos levará dos primeiro anos da presença
Kanamari no Itaquaí até a data em que Sachegou, em 1972, pondo fim ao Tempo da
Borracha.
A chegada dos Brancos
Por volta do final da década de 1940, os Kanamari habitavam várias aldeias, cada
uma ligada a um chefe de aldeia. Começando com o Pontão, a aldeia mais a montante, e
seguindo rio abaixo havia a aldeia designada de ‘lugar do Koral’
96
; em Botim havia a aldeia
Dyumi; em Samaúma havia a aldeia Dyori; em Kumaru situava-se a aldeia Brai e em Santa
ficava a aldeia Dyaho. Também dizia-se que estas aldeias eram ‘seringais’ que
pertenciam a diferentes donos. Destes seringais se extraía a borracha para dar a Ioho para
que ele, por sua vez, a trocasse com os brancos por mercadorias ocidentais. Todos viviam
parte do ano em Pontão, onde Ioho, o dono’ do Itaquaí, contruiu sua aldeia. O Itaquaí
manteve então a aparência do modelo de endogamia do subgrupo, fazendo o próprio rio
funcionar como uma bacia fluvial do passado, apesar deste abrigar pessoas de diferentes
dyapa.
Os Kanamari estabeleceram uma aliança militar com Alemanha e trocavam
esporadicamente com ele, mas a maioria das trocas que eles mantinham com os brancos era
ainda com os patrões do Juruá e com os brancos que antes co-residiam com eles. Logo
depois da guerra com os Dyapa, no entanto, os brancos começaram a chegar em massa. O
primeiro para quem eles trabalharam foi Chico Graxa, que construiu uma casa para sua
96
Esta aldeia não tinha nenhum nome além de ‘lugar do Koral’ ou ‘no Koral’ (Koral n-a-tatam).
134
família à jusante da área em que os Kanamari viviam. Ao contrário dos brancos anteriores
que cobiçavam a borracha, Chico Graxa estava mais interssado em extrair madeira
97
. Ioho
aprendeu como extrair madeira e ele e o restante dos Kanamari começaram a trabalhar para
Chico Graxa.
Chico Graxa trabalhava para um ‘magnata’ da madeira chamado Raimundo de
Assis, que vivia na cidade de Benjamim Constant. Assim, eles vinham de áreas da parte
baixa do rio que os Kanamari o conheciam. Chico logo foi seguido por muitos brancos,
todos trabalhando na indústria da madeira e se estabelecendo por todo o Itaquaí, da sua
confluência com o Javari à área ocupada pelos Kanamari. Eventualmente, o próprio
Raimundo de Assis arrumou uma ‘colocação’ no Itaquaí, para a qual ele moveu-se com sua
família
98
.
Uma segunda onda de brancos chegou da parte alta do rio, vindo por terra pelo
Juruá e depois se espalahando pelo Itaquaí. Estes brancos trabalhavam para João Carioca
99
e continuaram trabalhando na indústria da borracha, em declínio. Inicialmente, esses
brancos se estabeleceram à montante dos Kanamari, o que os colocou em um entrave,
incapazes de situar suas aldeias em nenhum lugar acima ou abaixo da distância delimitada
por Pontão e Tracoá (ver Mapa 6 acima). A mesma situação que emergiu no Juruá, a partir
da proximidade com os brancos, começou novamente a ser delimitada, e as pessoas
começaram a estabelecer relações de trabalho diretamente com os patrões, sem passar
pelos chefes. Dyumi e Dyori, por exemplo, trabalharam com os empregados de João
Carioca, enquanto Dyaho e Ioho trabalharam para Raimundo de Assis, através de Chico
Graxa e outros.
Os brancos do Juruá não ficaram no alto curso do rio por muito tempo. As
seringueiras mais produtivas eram precisamente aquelas que estavam na região do Itaquaí
em que viviam os Kanamari e os brancos começaram a se mover para onde estavam estas
árvores. Eles ocuparam os entornos das aldeias Kanamari tão rapidamente que estes
últimos não tiveram como resistir. Mudaram-se, então, para regiões mais abaixo, deixando
Pontão e se estabelecendo perto da foz do Donaia, onde antes eles haviam conhecido
Alemanha. Os brancos logo começaram também a ocupar esta área, estabelcendo uma
97
Deve ser lembrado que o ‘Tempo da Borracha’ é também associado com o comércio de madeira. A
madeira que era extraída do Itaquaí foi levada em sua maioria para a cidade de Benjamim Constant no baixo
rio Javari.
98
Em 2005, Raimundo de Assis ainda estava vivo, aproximando-se da idade de 100 anos. Eu falei com seu
filho, Guabiraba, que também viveu no Itaquaí quando era criança e nós combinamos uma entrevista com
seu pai, a qual, infelizmente, compromissos anteriores me impediram de manter.
99
Na revisão de minhas anotações, encontrei uma sobreposição entre os nomes ‘João Carioca’ e ‘João
Herculano’ na história deste período. Tudo sugere que eles eram a mesma pessoa, mas eu não posso afirmar
isso sem dúvida.
135
aldeia chamada ‘Massapê’, que acabou por se constituir por uma população mista, com
Kanamari e brancos co-residindo no mesmo espaço
100
. E por muito tempo, disseram-me os
Kanamari, eles só podiam viver nesta região.
Impressões de um Biólogo
Em 1950, José Cândido de Melo Carvalho, um biólogo do Museu Nacional no Rio
de Janeiro, fez uma viagem pelo o Itaquaí e depois por uma trilha até o Juruá. De suas
descrições e dos mapas que desenhou, é possível ver que, neste tempo, todo o Itaquaí, de
sua foz ao início da trilha no lugar chamado Nova Vida, à montante de Pontão, estava
ocupado por brancos
101
. Tudo, quer dizer, exceto pelo trecho que os Kanamari disseram ter
sido deixado para eles. Carvalho fez a viagem em um grande barco a motor o qual ele
abandonou na foz do Rio Pedra em um barracão chamado Porto Campo Amor, onde ele
arranjou como continuar a viagem com um grupo de Kanamari em suas canoas (1955, 42).
Seguindo as notas que ele fez da foz do Pedra até o Pontão podemos vislumbrar como a
vida era para os Kanamari naquele tempo.
A primeira aldeia que eles alcançaram, no começo de junho de 1950, foi
Barracãozinho (ver Mapa 6), que consistia em cinco casas cercadas por uma roça. Ele diz
que estes Kanamari fundaram esta aldeia apenas quatro anos antes, em 1946. Os remadores
de Carvalho deixaram-no e a seus homens em Barracãozinho enquanto foram por uma
trilha para a próxima aldeia, prometendo mandar um outro grupo de remadores para pegá-
los. Estes chegaram na manhã seguinte a os levaram para a próxima aldeia. Carvalho não
nomeia esta aldeia mas pelo mapa é provavelmente Chapada. Os Kanamari disseram a ele
que o ‘chefe’ (‘tuxáua’) desta aldeia havia morrido recentemente
102
(ibid., 45-6).
100
Massapê, veremos no próximo capítulo, é o nome da maior aldeia no Itaquaí hoje. É uma aldeia diferente
da que os brancos fundaram, apesar das duas serem bastante próximas. As capoeiras que cresceram onde a
primeira Massapê estava situada é hoje chamada de ‘Velha Massapê’ (Massapê kidak) e a nova aldeia algumas
vezes é referida como ‘Nova Massapê’ para distingui-la da primeira. As duas foram contemporâneas por
algum tempo em meados da década de 1960, apesar de Nova Massapê ter sido uma aldeia Kanamari com
poucos ou nenhum branco vivendo nela.
101
Eu tive acesso a este documento depois do término do meu período de trabalho de campo e depois de
ter anotado dos Kanamari um grande número de histórias a respeito da presença não-Indígena no Itaquaí.
Devo dizer que os mapas detalhados de J. Carvalho, que traçou os locais dos barracões e ‘colocações’ dos
brancos ao longo do Itaquaí, me pegou de surpresa. Eu nunca poderia ter imaginado, pelo que os Kanamari
me contaram, exatamente quantos brancos estavam no rio. Eu supus que sempre havia tido mais Kanamari
que brancos, mas a partir das anotações de Carvalho agora me parece que, já em 1950, havia pelo menos duas
vezes mais brancos no Itaquaí do que havia Kanamari.
102
Este chefe pode ter sido Hiwu, um Macaco-de-Cheiro-dyapa, apesar da minha estimativa ter colocado sua
morte algum tempo depois, provavelmente no começo da década de 1960.
136
Eles continuaram rio acima e passaram ao lado de duas casas Kanamari antes de
alcançar a aldeia de Santa Fé, onde aproximadamente 40 pessoas viviam distribuídas em
três casas. Santa também tinha “...uma velha casa de festas”, onde os hóspedes
arrumaram seus pertences. Durante a noite os Kanamari perguntaram a ele sobre sua ‘terra’
e cantaram músicas de Pidah para ele. Carvalho e sua equipe passaram a noite em Santa Fé e
o dia seguinte procuraram por insetos com os Kanamari, que a coleção de flora e fauna
era o propósito oficial de sua viagem. Durante a noite, um grupo de Mutum -dyapa, vindos
do Juruá’, chegou para uma festa’. Esta festa, cuja descrição a faz similar a um Hori, pós-
data por pelo menos cinco anos o Hori que trouxe Dyaho para o Itaquaí, e assim pode ter
envolvido alguns Mutum-dyapa que ficaram para trás no Komaronhu
103
. A visita, nota
Carvalho, foi esperada por muitos dias:
“os Indiapás [Bin-dyapa; Curassow-dyapa] chegaram cantando e soprando suas buzinas[
104
],
espetáculo digno de ser presenciado na quietude da mata. Após grande confusão, troca de
cumprimentos e descarregamento das canoas, houve fartas comedorias e conversas em voz
alta.
Por volta da meia noite, começara as danças e os cânticos das duas tribos ali reunidas. No
meio do terreiro, um homem segurava um facho de fogo com os braços erguidos para o ar,
dando ao ambiente aspecto de primitivismo e selvageria.
Cantavam e dançavam em dois grupos, homens com homens e mulheres com mulheres. A
princípio, achamos muita graça em tudo, acompanhando os mínimos detalhes com interêsse.
Gostavam muito de um ntico denominado ‘Pidá’ (onça) e de outro, cuja letra era apenas o
seguinte: “macauê uá, macauê uê, hêêê”. Insistiram comigo para que tomasse parte nas danças,
cantando por mais de meia hora, sem interrupção, um desafinado “vem cá, doutô, vem
doutô”. o me foi possível atendê-los, porque à meia noite sofri forte acesso de malária [...]
Não era possível resistir mais tempo ao barulho feito por cêrca de setenta pessoas, cantando a
todo pulmão canções primitivas, intercaladas de esturros de onças, gemidos dos jacamins e
brados guerreiros
[...] Tive, então, a oportunidade de ver rapidamente os Indiapás, índios muito baixos, de
rosto arredondado. Alguns tinham ornamentos de penas, na cabeça ou nos braços” (J.
Carvalho 1955, 53).
103
Mas não é impossível que minhas datas estejam erradas e que esse foi, de fato, o Hori que trouxe os
Mutum-dyapa para o Itaquaí. De qualquer modo, o que os Kanamari descreveram para mim como ‘um Hori
pode ter sido muitos Hori, nos quais as pessoas consideraram a possibilidade de se mudar para o Itaquaí.
Também não necessidade de postular que o povo de Dyaho migrou como uma unidade e é mais provável
que eles tenham ido aos poucos para o Itaquaí, através de muitos Hori, passando um tempo considerável
entre os dois planos dos rios, viajando entre os dois periodicamente.
104
Nas descrições do Hori que eu obtive dos Kanamari eles reivindicam que houve um único hori com
buzinas.
137
O fato de que um ritual Pidah-pa (‘Devir-Jaguar’) foi organizado entre os dois é significante
porque isto não era necessariamente um resultado de todos os encontros Hori, mas sim
uma possibilidade daqueles encontros entre pessoas que tinham grande familiaridade umas
com as outras. No modelo da endogamia do subgrupo estes rituais ocorriam
preferencialmente mas não exclusivamente no interior de um subgrupo, em períodos
em que as pessoas se reuniam em torno da casa comunal.
Carvalho decidiu deixar Santa , mas quando ele o fez a aldeia já estava vazia.
Enquanto eles estavam saindo, os hóspedes e anfitriãos tinham decidido ir rio abaixo para
encontrar com os Kanamari que ele tinha acabado de deixar para trás. Seguinda a viagem
rio acima, eles pararam em um barracão que pertencia a João Carioca que estava sendo
administrado por Pedro Borges. Isto já era bem próximo ao Pontão, aldeia pela qual
Carvalho simplesmente passou em seu caminho na trilha da foz do rio Nova Vida.
Os Kanamari, Carvalho nos faria crer, ficaram muito impressionados com sua
generosidade e em cada aldeia eles reclamavam do modo como foram maltratados pelos
patrões locais, particularmente por João Carioca/Herculano. Por causa das poucas
mercadorias que eles receberam por seu trabalho, muito deles preferiram não trabalhar.
Carvalho nota que “...em consequência disso, [passam] por muitos apertos. Estão
práticamente nus, quase sem roupas para vestir e sem objetos de uso diário. São poucos
aqueles que possuem redes, pentes, etc., sem falar em outros objetos mais caros; possuem
poucas espingardas e a munição vai-se tornando cada vez mais difícil. Atualmente estão
sem tuchaua, e não recebem auxílio do Serviço de Proteção aos Índios. Seu número atual
oscila entre 150 e 200, espalhados por 18 casas, situadas até próximo do Pontão, bastante
acima no Itaquaí” (J. Carvalho 1955, 48).
O modo como os Kanamari eram tratados pelos patrões também o incomodou:
“Terminado os arranjos, mandei chamar os índios para lhes pagar o trabalho, em
mercadorias. Dei-lhes cortes de calças de mescla, linha, agulhas, sabão, anzóis, arame, sal,
farinha, açúcar, querosene, fósforos, tabaco e miudezas. Notei terem ficado radiantes,
enquanto os [brancos] que assistiam se admiraram com o pagamento, pois aqui quase nada
recebem pelo que fazem. Houve mesmo quem dissesse que eu estava atrapalhando futuros
negócios, de que me aproveitei para lhes fazer uma pregação a êsse respeito” (ibid., 55).
Sem Chefe
As coisas estavam prestes a ficar ainda piores para os Kanamari. No final da década
de 1950, Ioho morreu. Sua morte é envolta em mistério e até hoje os Kanamari discordam
138
sobre o quê aconteceu exatamente. O casamento de Ioho, contraído quando ele ainda era
‘aquele que faz as pessoas fazerem coisas’, foi com uma mulher Kulina
105
. Apesar de esta
mulher ter vivido com os Kanamari por um longo tempo e falar a língua deles, os contatos
que ela mantinha com os seus parentes Kulina sempre preocuparam o povo de Ioho. Ioho
morreu logo depois de uma briga com sua esposa, quando ela voltou para junto de seus
parentes no Juruá. Os Kanamari hoje reconhecem que ele deve ter morrido por causa da
feitiçaria Kulina que sua esposa encomendou nas aldeias do Baú, para onde ela se retirou
para nunca mais voltar ao Itaquaí. Ela ‘transformou Ioho em um inimigo’ (a-todiok toninim
Ioho tyo) e os Kanamari dizem que, se não fosse por sua escolha desafortunada de
casamento e por suas trágicas conseqüências, Ioho ainda estaria vivo hoje.
Sua morte deixou os Kanamari, nas palavras de Poroya, ‘insanos’ (parok), sem saber
onde e com quem viver, para quais aldeias ir, como interagir com os brancos nem para
quem se voltar. A consequência imediata disto foi que as pessoas que eram mais
fortemente associadas a Ioho, principalmente os Macaco-de-Cheiro-dyapa, decidiram
mudar-se do Itaquaí. Diferentemente de alguns Mutum-dyapa, que aproximadamente na
mesma época retornaram ao Juruá, estes Kanamari fizeram uma escolha sem precedentes:
eles aceitaram um patrão branco chamado Júlio Tavares como seu chefe (-warah) e
moveram-se com ele para o médio rio Curuçá, um lugar onde eles nunca tinham ido e que
não consideravam naquele tempo, nem podiam, como sendo parte de ‘sua terra’.
A palavra paroksignifica a perda de consciência, mas os Kanamari associam este
estado à perda do corpo
106
. Não possuindo um corpo para situá-los em um lugar, eles se
tornaram insanos, movendo-se em todas as direções, efetivamente procurando um corpo
apropriado para conter o processo de ‘dispersão’ (inona) que se sucedeu. No capítulo
anterior, vimos como os remanscentes de certos –dyapa sem-chefe fizeram precisamente
105
Eu considerei esta informação fora do comum, mas os Kanamari não. Toda vez que eu perguntei como
este casamento foi contraído, eles simplesmente me diziam que ocorreu depois que Ioho visitou os Kulina e
‘gostou’ (nakibak) de uma das mulheres de lá, tomando-a para viver com ele. Eu não sei se os pais dela
estavam vivos e os Kanamari disseram que Ioho não deixou uma irmã lá, no que teria sido a norma da troca
de irmãs’ (tyaro bahom-yan, ‘troca de mulheres’, ver capítulo três). Os Kulina parecem ter a opinião de que,
apesar dos inter-casamentos serem raros, eles e os Kanamari são “all intermixed” (Lorrain 1994, 133). Da
perspectiva dos Kanamari do Itaqusomente a primeira opinião estaria correta. Havia poucas pessoas de
casamentos misturados e os únicos que eu sabia eram de Ihnan, o único filho sobrevivente de Ioho, e o de
um menino chamado Pi’am, que se mudou para o Itaquaí muito recentemente, cujo pai tinha sido Kulina. Ele
tinha, contudo, crescido com os Kanamari, sendo fluente em ambas as línguas.
106
O conceito de parok é similar aos estados de ‘perda da consciência’, tal como são descritos em outras
sociedades ameríndias e, como nesses casos, é possivelmente um passo em direção à morte, tyuku, (ver, por
exemplo, Viveiros de Castro 1992, 196-201). Para os Kanamari isso envolve a perda do corpo: perde-se o
corpo ou para o nada ou para outro corpo que vem a manter uma relação assimétrica com ele. Aqui
focalizarei a perda dos corpos coletivos e nos capítulos seis e sete analisarei como o corpo individual é
perdido, através de processos de domesticação, de familiarização e dos efeitos dos espíritos dyohkoambos
levando a estados parok através da metamorfose corporal.
139
isto, reconstituindo a si mesmos nas aldeias e através das aldeias que ‘pertenciam’ àqueles
que antes eram considerados –tawari. Assim, eles conseguiram arranjar um lugar para viver
onde podiam permanecer estáveis, mas apenas através de um processo de se tornar outros.
Na situação em que os Kanamari do Itaquaí se encontravam, cercados por todos os lados
pelos brancos que viviam com eles em suas aldeias e desprovidos de um –warah adequado –
ou ao menos de um homem Macaco-de-Cheiro-dyapa que pudesse assumir uma posição
análoga àquela de Ioho –, a idéia de viver com um patrão e de constituir a si mesmos como
brancos parecia uma alternativa razoável.
Esta foi, não obstante, uma decisão drástica que revela o grau de ‘insanidade’ que
tomou conta dos Kanamari depois da morte de Ioho. Júlio Tavares, porém, é considerado
um -warah muito bem sucedido. Se for o papel do chefe situar os Kanamari, e se isso pode
incluir movê-los para um novo lugar e fundar novas aldeias, então Júlio Tavares pode, ao
menos ostensivamente, ter sido melhor sucedido do que Ioho. Este último levou um grupo
de Kanamari para um lugar que eles conheciam e talvez eles tenham vivido ali por algum
tempo, em uma tentativa de escapar da inflação de afins potenciais que dominaram os
afluentes do Juruá nos quais eles viviam. Mas Júlio levou-os para o Curuçá, do qual, na
melhor das hipóteses, eles tinham ouvido falar e, neste caso, saberiam que era a terra dos
Dyapa, seus inimigos. Estes estavam situados nas partes altas do Curuçá. Ware’im, que
mudou-se com os Kanamari naquele tempo, disse-me que eles viveram no Curuçá aque
‘os Dyapa chegaram’, quando, então, eles se mudaram para o médio Javari.
Júlio Tavares morreu no começo da década de 1960 e a maioria dos Kanamari
retornou ao Itaquaí depois de sua morte. Nem todos o fizeram, contudo. Parece que a
decisão de retornar ao Itaquaí foi tomada quando, logo depois da morte de Júlio, os
brancos mataram um Kanamari chamado Madawe na aldeia de Irari, no rio Javari.
Kamanyo e seu filho Ware’im retornaram para a aldeia de Santa no Itaquaí junto com
outros. Quando chegaram, a área do Itaquaí que tinha sido quase exclusivamente habitada
pelos Kanamari quando J. Carvalho empreendeu sua viagem em 1950, estava agora
ocupada também pelos brancos. Raimundo Divino, trabalhando para João Carioca,
estabelecera-se em Massapê, onde, Ware’im me contou, matou alguns Kanamari quando
estava bêbado de cachaça. Outros brancos também tinham se estabelecido na foz do rio
Prahiano.
Durante a ausência de Ware’im, Dyaho também morreu. Ele tinha ficado doente e
inicialmente pensou-se que ele era uma vítima do xamanismo Kulina, como seu irmão. Mas
como os xamãs Kanamari foram incapazes de curá-lo, alguns começaram a suspeitar de
140
veneno. Poroya, seu filho, levou-o para a cidade de Benjamim Constant para ver se os
brancos poderiam tratar dele, mas eles não puderam e ele foi enterrado naquela cidade,
entre os brancos. Poroya estava de luto e não queria voltar ao Itaquaí. Ele nem precisaria
porque, uma noite, enquanto bebia em um bar em Benjamin Constant, o patrão Nenem
Féris empregou-o para ser seu caçador pessoal na nova ‘colocação’ que ele ia construir no
Rio Branco, onde ele extrairia madeira. Poroya viveu por uns dois anos com Nenem Féris,
antes que seu irmão mais velho, Aro, viesse vê-lo. Ele estava preocupado com como os
Kanamari estavam vivendo, trabalhando perigosamente para os brancos, vivendo próximos
a eles e o em aldeias Kanamari, e ele queria que Poroya retornasse para o Itaquaí para se
tornar seu chefe. Os Kanamari tinham começado mais uma vez a estabelecer relações duais
diretas com os patrões brancos, relações que não eram mediadas pelos chefes, que estes
não existiam. Isso levou os Kanamari para fora de suas aldeias e em direção aos barracões
dos patrões, onde muitos cresceram. Nodia, por exemplo, levou sua jovem esposa para
viver com o patrão Sebastião Bezerra. Até hoje ele ainda chama o filho de Sebastião de
‘irmão’. Aro esperava que, se os outros aceitassem Poroya como seu chefe, então talvez
essa tendência pudesse ser redirecionanda.
Poroya voltou ao Itaquaí com Aro. Ele diz que foi feito chefe na aldeia de Tracoá.
Não foram os ‘Kanamari do Itaquaí’ que fizeram isso, que esta é uma categoria que teria
tido pouco significado no mundo fragmentado que eles viviam. Ele foi feito chefe da aldeia
de Tracoá, onde ele viveu com sua esposa e os dois irmãos dela que eram casados com suas
irmãs. Esta aldeia cristalizou-se na parentela mais unida do Itaquaí (ver o próximo capítulo)
e eles conseguiram, em parte, evitar o caos que estava acontecendo ao redor deles, com os
Kanamari sem saber se deveriam viver em suas aldeias, mudar-se para os barracões,
retornar ao Juruá ou ir para o Javari.
Mas ninguém era isento da ambição dos brancos, que queriam todo o rio para si
mesmos. A terra que fora deixada para os Kanamari, entre o Donaia e Pontão, estava
encolhendo rapidamente. Os patrões não mais reconheciam aquele trecho de rio como
sendo dos Kanamari. Eles começaram a argumentar que os Kanamari deviam a eles
madeira, borracha e peles de animais e que o único jeito com que eles podiam cancelar os
débitos era abrir mão da terra. As notícias começaram a espalhar que era apenas uma
questão de tempo antes que todos os Kanamari fossem exterminados. Alguns brancos
locais disseram a Poroya que ele tinha que deixar Tracoá, que era hora de retornar ao Juruá,
mas ele resistia, se recusando a deixar sua aldeia.
141
E foi assim, incapazes de viver entre parentes nas aldeias, situados literalmente ‘no
meio dos brancos’, vivendo de vez em quando nas ‘propriedades’ dos próprios brancos,
sem chefes e dispersos, que Sabá encontrou os Kanamari durante a estação chuvosa de
1972.
A Chegada de Sabá
A história que se segue é uma versão composta da história que os Kanamari
chamam de ‘Quando Sabá Chegou’. um certo grau de redundância entre as versões,
com cada contador elaborando a história do seu ângulo: da aldeia em que eles viviam, do
quê Sabá fez quando chegou onde eles estavam, dos movimentos que fizeram depois da
chegada de Sabá, do tipo de relação que mantiveram com os patrões e por vai. Eu tentei
capturar parte desta dinâmica, alternando entre as narrativas para enfatizar os diferentes
pontos de vista. Mas o grau em que as versões concordam nos mesmos pontos é notável;
elas parecem ser variações de um mesmo tema. É isso que permite, acredito, oferecer a
minha própria versão da história, baseada exclusivamente nas versões que os Kanamari me
contaram.
Pude registrar quatro versões ‘completas’ desta história. Três delas foram contadas
para mim por homens que viviam então no Rio Itaquaí: Poroya, Dyumi e Tiowi. A quarta
versão foi registrada a partir do relato de Ware’im, um homem que, como vimos, mudou-
se de volta para o Itaquaí após a morte de Júlio Tavares, retornando depois ao Javari. Os
dói primeiros narradores me contaram versões particularmente elaboradas das histórias e é
nelas que eu mais me fiarei. Contudo, muito do que eu aprendi sobre Sabá veio de
comentários feitos por qualquer um: homens, mulheres, pessoas que não viviam no Itaquaí
quando Sabá chegou e amesmo pessoas que eram muito jovens para tê-lo sequer visto
ofereceram suas impressões sobre Sae eu tentei incluir algumas delas na versão que se
segue.
Sabá Manso, vimos na introdução, é o apelido regional do Sr. Sebastião Amâncio,
um empregado da Funai que era o chefe da antiga Base Avançada do Solimões (BFSOL).
Sua presença no Itaquaí está ligada à construção do Posto de Atração Marubo em 1972, um
ano que a maioria dos Kanamari apontará como a data em que Sabá chegou para eles. A
raison d’etre do posto avançado era submeter os Korubo isolados à administração do estado.
Ele foi construído próximo à foz do Rio Branco, um afluente do médio Itaquaí. Este
último rio era, como vimos, a casa não apenas dos Kanamari, que viviam afastados rio
142
acima a partir do Rio Branco, mas também de um número significativo de colonos
brancos.
A chegada de Sabá inicia a ‘era’ que os Kanamari chamam de ‘Tempo da Funai’. É
um período que eles associam a três características principais: a chegada oficial da
Fundação Nacional do Índio (Funai); o fim do trabalho para os patrões e o cancelamento
de todas as suas dívidas; e a remoção gradual dos brancos do rio Itaquaí, reforçada e
acelerada pela construção da Frente de Proteção Etno-Ambiental (FPEVJ) na confluência
dos rios Ituí e Itaquaí, em 2000. Tudo isso assegura que os Kanamari vivam agora em uma
terra reconhecida pelo ‘governo’ como área Indígena e da qual os brancos, que a
cobiçavam, foram banidos. É inegável que eles experimentaram essa mudança como sendo
um momento em que eles deixaram de realizar trabalhos pesados para patrões que os
exploravam em troca de poucas mercadorias para um momento em que eles não tinham
mais que trabalhar para os patrões, na medida em que estes últimos perderam o direito à
terra que reivindicavam. Além disso, os Kanamari passaram a ter outros meios de acesso
aos bens ocidentais.
Apesar de tudo o que se passou depois da partida de Sabá, os Kanamari dizem que
ainda vivem no ‘Tempo da Funai’, mas temem pelo seu fim. Safoi sucedido por uma
série de chefes de posto da Funai e de administradores regionais de diferentes qualidades,
que parecem ser todos o resultado direto da curta porém importante presença de Sabá no
início da década de 1970. Embora eles saibam que o velho Sanão retornará, é desta
história que eles sempre se lembram quando perguntados sobre o quê a Funai é para eles e
como sua presença afetou as suas vidas.
Hoje o seu Dono Chegou
Quando Sabá chegou os Kanamari viviam, como eles dizem, ‘no meio dos brancos’
(Kariwa wakonaki). Estes brancos dividiram o Itaquaí em ‘propriedades’ e ‘colocações’, de
onde extraíam borracha, cortavam as árvores pela madeira, criavam animais e plantavam
suas roças. Uma placa tinha sido colocada na foz do Donaia pelos brancos, que dizia: ‘Toda
a terra à jusante daqui pretence a Raimundo de Assis. A terra à montante pertence a João
Carioca’. Os patrões possuíam, assim, o rio inteiro.
O que a placa dizia não era estritamente verdadeiro, pois havia um pequeno trecho
do rio em que os Kanamari ainda podiam viver. Eles estavam basicamente restritos a uma
área no alto do rio a partir da foz do Donaia e foram forçados a trabalhar para os patrões
143
brancos em troca de mercadorias. Pouco depois de Sabá ter construído seu posto, ele
perguntou aos brancos que viviam perto do posto se haviam outros povos indígenas
vivendo no alto curso do rio; estes mentiram e disseram-lhe que, além dos Korubo, com
quem eles mantinham contatos esporádicos e violentos, não havia mais ninguém.
Os Kanamari viviam longe de onde Sabá construíra sua Base, a uns quatro dias à
montante, vaijando com o barco a motor conhecido regionalmente como ‘peque-peque’, e
não sabiam que ele havia chegado. Mas Adalberto, um homem branco que vivia perto dos
Kanamari, e que mais tarde seria morto pelos Korubo, disse a eles que um ‘Inspetor de
Índios’ tinha chegado e que eles deveriam ir até ele para receber mercadorias. Poroya achou
melhor mandar uma carta ao Inspetor e pediu a Raimunda, a filha de Chico Teixeira, um
outro patrão, que escrevesse: “Eu quero chamar nossa pessoa. Venha ver-nos aqui
também”
(I-ohoho niwu ityowa atukuna. Adik tam katu towik-dyi kotu)
107
.
Isso foi em um sábado, enquanto Poroya estava derrubando árvores para fazer uma
canoa que ele devia para o seu patrão. Na terça-feira, ele achou melhor trabalhar em sua
roça. Na quarta-feira, quando começava a trabalhar na canoa, ele ouviu de bem longe o
barulho de voadeira, um som que ele não conhecia. Sabá apareceu e imediatamente
perguntou: “Por que você está trabalhando?” Poroya disse a ele que estava fazendo uma
canoa para Sebastião Bezerra. “E ele te paga bem”? “Não, não muito, umas cinco balas,
cinco quilos de sal, trezentos gramas de pólvora… é isso”. “Bem, hoje o seu
chefe/corpo/dono chegou. Os brancos não mais enganarão vocês. Agora é a Funai que
vai tomar conta de vocês”. Poroya disse que eles trabalhavam para os brancos porque seus
pais, os chefes, tinham todos morrido.
Sabá fica surpreso ao saber que mais índios no alto do rio. Ele pede a Poroya
que vá com ele. Este concorda, mas antes pede alguma cachaça para a viagem. Isto
enfurece Sabá: “Eu não sou este tipo de branco! Se você pedir cachaça de novo eu vou
amarrá-lo em uma árvore e deixar as formigas picarem você!”
Quando Dyumi conheceu Sabá, ele estava em Bacia, a aldeia de Noki, apesar de
viver com seu pai em Prahiano. Viajando com seu motor 40 HP, Sabá viajava muito rápido.
Dyumi era jovem, mas também estava trabalhando em uma canoa. Tudo que ele tinha era
um machado velho e gasto com o qual ele levou quatro dias para derrubar a árvore. Seu
107
Esta é a versão de Poroya da história. Dyumi reitera muitos dos mesmos pontos, mas não inclui a carta de
Poroya e atribui a trapaça especificamente a Adalberto. De acordo com Dyumi, Adalberto disse para o seu
pai, Nohin: “O Inspetor dos Índios chegou na foz do Rio Branco. até ele e pegue a sua mercadoria,
materiais, tudo”. Todos ouviram. Meu pai disse: “Isso não pode ser. Nós não temos como chegar lá. Você vai
e diga a ele”. Adalberto foi morto depois pelos furiosos [os Korubo]. Adalberto foi falar com Sabá, mas ele o
mentiu e disse que não havia índios. “Há Índios no alto do rio?” “Não, não há ninguém no alto do rio”. Ele o
enganou. “Realmente não há índios no alto do rio, somente brancos”.
144
patrão era Raimundo de Assis, que possuía todo o Itaquaí abaixo da foz do Donaia. Ele
esperava trocar a canoa por um machado novo. Sabá cehgou e distribuiu sua mercadoria.
Havia muita coisa: espelhos, panelas, anzóis, linhas de pescar, cartuchos. Ele até deu a
Dyumi um violão. Algumas pessoas não tinham ficado com nada e Sabá voltou a sua base
para trazer mais mercadorias. Ele fazia suas compras na cidade colombiana de Letícia, na
fronteira com o Brasil. Ele insistiu que tudo o que os Kanamari produziam deveria ser
trocado exclusivamente com ele. Ele teria dito: os brancos estão mentindo para vocês! Eu
vou levar a sua canoa. Somente deste modo vocês terão mercadorias!” Sabá, os Kanamari
se lembram, sempre parecia estar zangado (nok).
Na aldeia de Hiwu, as mulheres prepararam bebida de pupunha para Sabá. Eles
cantaram e dançaram haihai
108
. Sabá queria ir para as cabeceiras do Itaquaí, apesar de Poroya
ter dito a ele que não havia mais ninguém, somente os Kanamari.
Sabá fez a viagem ao longo do rio muitas vezes. Segundo Poroya:
“Ele perguntou sobre velhas capoeiras e cacos de cerâmica e levou tudo isso para
Brasília para mostrar para o nosso chefe (-warah) que é a Funai. Ele trouxe de volta muitas
mercadorias para trocar pela nossa produção. Ele viu que os Kanamari estavam dispersos por
toda parte e nomeou novos chefes: Dyumi, João Pidah, Hiwu, Dyo’o, Nohin. Eu era ativo
[como chefe], mas era o único tomando conta de todos. Então Sabá decidiu fazer de mim um
‘Fiscal do Índio’ e disse que todos os outros chefes tinham que me ajudar. Muitas mercadorias
chegaram. ‘Poroya é quase o seu pai’[
109
], Sadisse a eles. Eles não sabem essas coisas de me
ajudar”.
Uma vez, perto das cabeceiras do Itaquaí, ele viu uma casa que tinha acabado de ser
construída por uma família de brancos que se mudara do Juruá para lá. Sabá mandou-os
destruí-la e retornar para o lugar de onde vinham. Ele queria somente Índios vivendo no
rio.
Mas Sabá decidiu então que os Kanamari também não poderiam viver no Itaquaí.
Ele já sabia que também haviam Kanamari vivendo no Médio Javari. Ele estivera lá
rapidamente, mas aqueles Kanamari não o quiseram. “Nós somos brancos agora”, eles
108
Haihai é um tipo de ‘brincadeira’ que envolve cantar e dançar em círculo. Muitas de suas músicas estão na
língua Kulina, e os Kanamari dizem que aprenderam deles há muito tempo atrás (ver Labiak 1997).
109
Poroya usa a palavra para ‘pai’ (pama). Em certo sentido, os ‘pais’ o o chefe/corpo/donos de suas casas.
É possível, por exemplo, referir-se a um homem como sendo o warah de sua esposa (a recíproca não é
possível) e sua esposa como sendo a warah de seus filhos. Isto significa que o homem é o chefe/corpo/dono
de sua esposa e através dela de suas crianças. Essa acepção da palavra –warah é incomum, contudo, e eu teria
de investigá-la ainda mais no campo antes de desenvolvê-la.
145
disseram. “Nós queremos nossos motores e cachaça. Nós não queremos a Funai”
110
.
Mas o Médio Javari era próximo à cidade de Atalaia do Norte e Saqueria todos eles
reunidos lá, pois assim poderiam ficar mais perto do seu chefe. Desta forma, quase todos
os Kanamari foram viver no Javari, em uma aldeia chamada São Luís que tinha sido bem
pequena até então.
A memória deles deste tempo é ambígua. Alguns se lembram como um tempo
bom, com todos vivendo juntos e muitas danças haihai e comida para todos. Mas muitos
tiveram dificuldade tentando entender porquê exatamente Sabá os queria lá. Ele próprio
raramente os visitava e passava a maioria do seu tempo em Manaus. Outros ‘Funai’
ocasionalmente apareciam, mas eles não traziam muitas mercadorias. O que esses
Kanamari se lembram são as disputas, brigas e acusações de feitiçaria. Eles não ficaram
muito porque o próprio Sabá mudou de idéia. De fato, ele até se contradisse: “O que
vocês todos estão fazendo aqui?! Os brancos o tirar a sua terra!”. “Ouça, Dyumi”, ele
disse, “o rio vai ser bloqueado na confluência com o Ituí. Não haverá mais brancos
vivendo lá e nenhum branco vai passar”. Sabá, Dyumi se lembra, nunca gostara dos
brancos.
A maioria dos Kanamari retornou ao Itaquaí, mas alguns decidiram ficar no Javari
com aqueles que estavam lá. Sabá disse que para fechar o rio ele precisaria de ajuda de
pessoas de Brasília. Ele colocaria um soldado para assegurar que os brancos não voltassem.
Sabá disse que com o rio bloqueado para os brancos, os Kanamari deveriam ir ao Juruá e
chamar aqueles que vivem para que todos pudessem ficar juntos no Itaquaí. Levando
consigo alguns espelhos que tinham sido dados por Sabá, alguns fizeram a viagem para o
Juruá para trazer os Caititu-dyapa que ainda viviam no Toriwa. Algumas pessoas de outros
subgrupos ouviram as notícias e logo os seguiram, juntando-se àqueles que já viviam no
Itaquaí.
Sabá partiu rio abaixo depois que seu posto foi atacado pelos Korubo e os
Kanamari nunca mais o viram. Eles ouviram dizer, no entanto, que ele ainda está vivo e
também que ele está doente. Alguns dizem que ele vive em Manaus ou talvez em Brasília.
Depois de sua partida uma tragédia aconteceu. Um homem branco que tinha
bebido muita cachaça matou um Kanamari à facadas no Rio Pedra, um afluente do Itaquaí.
Depois disso os kariwa foram removidos mais rapidamente. Como Dyumi diz:
110
Deve ser lembrado que estes Kanamari viviam no Javari porque tinham aceitado lio Tavares, um chefe
branco, como seu ‘chefe/corpo/dono’. Fazendo isso, eles começaram um processo de ‘tornar-se branco’
(kariwa-pa), que se manifestou em sua completa rejeição da Funai.
146
“Não nenhum [branco] hoje. Damião se foi. E também Sebastião Bezerra, mas ele
estava relutante. Eles ofereceram a ele 4,000 Reais para ir, mas ele disse que o era suficiente.
“Você não quer dinheiro?!”, Funai perguntou a ele. “Então você vai para a delegacia!”. Ele
simplesmente não queria ir. Ele não acreditou no soldado.”
Sabá e Jarado
Os Kanamari dizem que se Sabá não tivesse chegado, todos eles teriam morrido.
Os brancos que estavam vivendo no Itaquaí haviam dito isso explicitamente. Eles queriam
que os Kanamari saíssem do Itaquaí para retornar ao Juruá, mas a maioria se recusou. Por
causa disso os brancos decidiram matar todos eles. Ware’im me disse que havia até mesmo
uma ordem do governador do Amazonas para isso e os brancos tinham marcado uma data:
“em dois meses todos os Kanamari estarão mortos”. Foi exatamente neste momento que
Sabá chegou e começou o processo de remoção dos brancos da terra dos Kanamari.
Sabá cumpriu sua promessa e hoje não nenhum branco vivendo na área do
Itaquaí que os Kanamari consideram como sua, nem na longa faixa de rio até sua
confluência com o Ituí. O último a sair foi da fato Sebastião Bezerra, como Dyumi
apontou, que partiu em 2000. O rio não ficou completamente esvaziado de brancos,
contudo. Depois que Sabá partiu, a Funai instalou um posto na aldeia de Massapê que foi
administrado por uma série de ‘chefes de posto’, que os Kanamari dizem que ‘trabalhavam
para Sabá’. Junto com o chefe de posto vinham ocasionalmente enfermeiros da Fundação
Nacional de Saúde (Funasa), dicos, e lingüistas, além de mim, um antropólogo. Na
FPEVJ funcionários da Funai, ‘soldados da Funai’, que asseguram que os brancos não
invadam a terra dos Kanamari. Algumas dessas pessoas eram das cidades vizinhas de
Atalaia do Norte, Benjamim Constant e Tabatinga, outras de lugares mais distantes, os
quais eles nunca tinham ouvido falar antes, como São Paulo, Rio de Janeiro e até França
111
.
Acreditavam que todas elas, no entanto, eram de algum modo sujeitas à ‘Capital Federal’,
Brasília, o lugar onde o ‘presidente’ vive, o –warah de todos os brancos.
Jarado, também tinha chegado subitamente muitos anos antes. Como Sabá, ele
trouxe uma série de novas pessoas e conceitos: ‘seringueiros’, ‘colocações de seringa’,
‘barracões’, ‘arigós’
112
e ‘Manaus’, por exemplo. O poder dos brancos que seguiram Jarado,
sua capacidade em ocupar o Juruá, seu acesso às mercadorias que chegavam ao longo do
111
O lingüista Francisco Queixalós é chamado de ‘Francês’ pelos Kanamari.
112
Um termo regional para pessoas que migraram para a Amazônia do Nordeste do Brasil. Apesar de muitos
desses terem eles mesmos se tornado patrões bem sucedidos, os Kanamari associam-os aos empregados e
serventes dos patrões que, por sua vez, teriam vindo de ‘Manaus’.
147
rio e seu acesso aos níveis de poder mais inclusivos de Manaus, também impressionaram os
Kanamari. Então o quê mudou da chegada de Sabá da de Jarado?
similaridades importantes entre as histórias de Jarado e Sabá. Ambos chegaram
de lugares situados à jusante ainda que não do mesmo rio –, de terras associadas a um
poder inacreditável, e a presença de cada um início a uma ‘eraou um tempo’ no qual
uma série de relações se seguem. Ambos também brigam com os Dyapa: Jarado matou
muitos deles na guerra do Urubupugou e Sateve seu posto incendiado por eles. Nós
vimos que para qualquer relação positiva ser estabelecida com os Kanamari é necessário,
minimamente, que os Dyapa sejam considerados ‘inimigos’, o que significa, na lógica
Kanamari, que os Dyapa deveriam tomar como inimigos os dois heróis. Guerreando com
os Dyapa, Jarado e Sabá cumpriram a pré-condição mínima para a interação com os
Kanamari.
Mas quando mudamos para o tipo de relação que cada figura estabelece,
diferenças significativas entre elas. Muitas dessas diferenças são condicionadas pelo modo
como cada um dos personagens encontrou os Kanamari. O poder que Jarado trouxe
parecia replicar, de muitas maneiras, a estrutura da sociedade Kanamari, permitindo-a
existir de modo tangencial ao sistema de aviamento ou, alternativamente, alojada dentro
dele, como uma boneca russa. Os Kanamari mantinham seus chefes e estes eram capazes
de interagir com os patrões. Quando a estrutura de sua sociedade foi ameaçada pela
presença dos brancos, os Kanamari foram capazes de se mover para outro rio. Os brancos
de Jarado podiam, deste modo, afetar a sociedade Kanamari, freqüentemente de maneiras
trágicas, mas ela era flexível o suficiente para se adaptar a despeito disso, para se moldar em
novas configurações, transformando os –tawari em parentes e abrindo as bacias fluviais
endogâmicas para estágios mais abrangentes de interação.
Mas esta flexibilidade tinha um limite. Quando Sabá chegou, os Kanamari estavam
‘insanos’, vivendo ‘no meio dos brancos’. Depois da morte de seus chefes, eles se
dispersaram e alguns deles fizeram a escolha sem precedentes de transformar um desses
brancos em seu próprio ‘chefe/corpo/dono’. Os demais, sem chefes, eram incapazes de
constituir aldeias, dependendo daquelas que os brancos contituíam para si mesmos. O
modelo da endogamia do subgrupo, um padrão da vida ideal que eles aspiravam ter, tinha
sido completamente minado e suas relações com os brancos se multiplicaram, dissolvendo
os Kanamari nelas. Os brancos, por sua vez, se recusavam a tolerar a presença dos
Kanamari, reclamando que eles estavam eternamente individados e incapazes de pagar suas
dívidas e que, portanto, todos deveriam ser mortos.
148
Jarado foi recebido como um –tawari, um que tinha vivido longe por muito tempo e
agora voltara para interagir com eles. Tudo o que Jarado fez foi condizente com essa
relação. Ele nunca visitou uma aldeia Kanamari, mas trocou com eles na foz do Toriwa,
recebendo comida que levou consigo em sua viagem, exatamente como faziam os –tawari
nos Hori antigos, que fixavam suas acampamentos dyaniohak nas redondezas da aldeia, em
capoeiras ou roças abandonadas, e partiam com comida na viagem de volta para casa. Os
chefes Kanamari conseguiam garantir que, inicialmente, os brancos continuassem sendo
tawari e, quando eles deixaram de agir como deveriam os –tawari e se tornaram espíritos
imprestáveis, Ioho partiu, sendo depois seguido por muitos outros.
Sabá, por outro lado, foi recebido como um ‘chefe/corpo/dono’. Ao invés de
trazer mais brancos para os Kanamari, ele os removeu; não estabeleceu relações comerciais
fora das aldeias Kanamari, mas foi a elas, bebeu caiçuma e comeu. Em lugar de trocar com
os Kanamari, Sabá distribuiu mercadorias, pedindo apenas que os Kanamari lhe dessem
qualquer parte de sua ‘produção’ excedente. Ele recusou a cachaça, a bebida que faz os
brancos violentos; e, ao invés de extrair borracha, repudiou seu comércio. Ele nomeou uma
série de novos chefes, mas, ao falar e agir como chefe, estabeleceu-se a si mesmo e, em sua
ausência, à Funai, como ‘chefe dos Kanamari’. A Funai é um chefe que não responde aos
patrões locais, mas sim ao ‘governo’ na distante ‘capital’ de Brasília, para quem os patrões,
contra a sua vontade, submetem-se. Por estas razões não foi como um –tawari que Sabá foi
recebido, mas como um –warah.
Ao invés de manter a versão fractal da sociedade que tinham, como fizeram quando
Jarado chegou, os Kanamari agora viam uma chance de reproduzir aquela sociedade outra
vez. Eles conteriam o processo de fluxo no qual estavam imersos e mais uma vez se fariam
Kanamari, através de um –warah que possuía um poder incomensurável e acesso quase
ilimitado às mercadorias ocidentais e que se situava em um lugar muito distante, como um
corpo tão dilatado e amorfo que os Kanamari veriam um precipitado de sua existência,
uma pequena parte de seu todo infinito.
149
3
O Tempo da Funai
A remoção dos brancos que viviam no Itaquaí foi parte do processo de demarcação
e a posterior homologação da Reserva Indígena do Vale do Javari. Áreas Indígenas
oficialmente homologadas por decreto governamental são fechadas, e pessoas não
autorizadas não m acesso a elas. No caso do Vale do Javari, o procedimento foi
demorado e penoso, e envolveu uma série de diferentes propostas, sendo uma das
primeiras advinda do BFSOL, de que Saera diretor. As primeiras tentativas de definição
da área de demarcação, todas, foram rejeitadas ou caíram no abismo da burocracia
governamental. Em 1985, a área foi finalmente reconhecida, apesar de sua demarcação
ter se concretizado em 2000. A proposta aceita incluía as cabeceiras dos rios Jutaí,
Jandiatuba, Itaquaí, Ituí, Curuçá e Jaquariana/Javari
113
, assim como a maior parte da
extensão desses rios, uma área total de 8.527.000 hectares (CEDI 1981, 30-4; Nascimento
2006, 1-5). A reserva indígena incluía, assim, em uma unidade federativa, os Kanamari, os
Marubo, os Matis, os Matses e os Kulina Pano, assim como uma grande diversidade de
grupos ameríndios sem contato regular com agências governamentais e que são
considerados pela Funai isolados, como os Korubo, os Flecheiros e os Tucano-dyapa. A
presença desses grupos foi decisiva, porque forçou o Departamento de Índios Isolados da
Funai (DEII) a construir a FPEVJ na confluência do Ituí com o Itaquaí, de modo a
assegurar a integridade das áreas, ao menos no que diz respeito aos dois rios.
A maior resistência enfrentada pelo processo demarcatório foi oferecida pelos
patrões e pelas indústrias da borracha e da madeira, que alegaram serem ‘proprietários’ de
partes dos rios em que praticavam suas atividades extrativistas. Isso resultou em uma série
de processos judiciais, nas esferas local e federal, que prolongaram e dificultaram a
demarcação. Os brancos não foram, assim, retirados de uma vez, como observaram os
Kanamari na história sobre Sabá. Eles começaram a se retirar de modo ad hoc no fim da
década de 1970, até que Sebastião Bezerra finalmente empacotou seus pertences e partiu
em 2000
114
. Os Kanamari, previamente restritos a um pequeno trecho de rio, gradualmente
encontraram espaço para se expandir, para tentar se reorganizar em aldeias em diferentes
partes do rio, estabelecendo um grau de distanciamento entre si.
113
Este último rio é também a fronteira entre o Brasil e o Peru, e nem toda a parte peruana da margem está
fechada para não-indígenas.
114
Meu conhecimento diz respeito exclusivamente ao rio Itaquaí. O processo de remoção dos brancos ainda
está em curso nos rios Curuçá e Jaquirana e mal teve início no rio Jutaí.
150
Inicialmente, todavia, eles não demonstraram qualquer intenção de se deslocar. Isso
preocupou a Funai, que acreditava ser necessária a ocupação de todo o Itaquaí para
assegurar que os brancos não tivessem a intenção de reocupar terras que, a seu ver,
permaneciam inexploradas e improdutivas. A Funai não deve ter se dado conta de que era
sua própria presença, manifestada fisicamente pela do Chefe de Posto baseado na aldeia de
Massapê, o que mantinha os Kanamari estáticos. Por terem vivido por tanto tempo sem
chefe, com carência de aldeias e em conflito com os brancos, eles estavam relutantes em se
dispersar novamente. E a Funai continuou, por um tempo considerável, a agir de forma
congruente com as ações que Sabá adotara: devido ao posto, a Fundação continuou
presente nas aldeias dos Kanamari e deu seguimento à redistribuição de grandes
quantidades de mercadorias ocidentais mesmo que estas jamais voltassem a atingir as
quantidades que Sabá distribuía. Então, os ameríndios permaneceram dentro e em volta de
Massapê até, no mínimo, meados da década de 1980, e todo o restante do rio manteve-se
desocupada, exceto pela presença de uma família branca que se recusara a deixar a área.
O período em que viveram todos juntos é relembrado com ambigüidade. Era bom
viver com um chefe e ter acesso a mercadorias simplesmente doadas aos Kanamari, mas a
tensão resultante da convivência entre tanta gente diferente se mostrou árdua, com
freqüentes acusações de avareza, violência, raiva, feitiçaria e roubo. Gradativamente, os
ameríndios começaram a deixar Massapê e a criar novas aldeias, em muitos casos fixando
residência em áreas outrora ocupadas pelos brancos e, assim, reintroduziram um grau de
distância entre si. Esse processo estava em curso quando cheguei a campo, em 2002, e, de
muitas formas, continuava a se dar quando fui embora pela última vez, em 2006.
Foi sempre mais fácil para mim obter informações sobre como era a vida até a
chegada de Sabá do que sobre os 30 anos que separavam a minha vinda da dele. Os
Kanamari se mostravam mais relutantes em me contar sobre suas experiências de morarem
juntos em Massapê, e sobre a gradual cisão da aldeia, do que de me informar acerca de
todos os problemas que eles haviam enfrentado até aquele dia decisivo de 1972. Isso nunca
me surpreendeu, uma vez que era claramente menos problemático discutir as armadilhas de
um processo de tentar sobreviver ‘entre os brancos’ do que refletir sobre tensões recentes,
cujas cicatrizes ainda remanesciam visíveis. Se, no passado, as dificuldades enfrentadas
pelos Kanamari em estabelecer suas aldeias podiam ser reduzidas à intensa presença dos
brancos, a partir da chegada de Sabá, elas tinham de incorporar outro sentido, em um
cenário em que os brancos, exceto por funcionários da Funai, não mais estavam presentes.
Minha chegada ao campo se deu em meio a tudo isso, e os Kanamari a viam como parte
151
dessa mudança em seu estilo de vida. No fim das contas, eu era um pesquisador da
‘Universidade Federal’, e esta palavra, ‘Federal’, é inescapavelmente associada a Sabá.
Se minhas informações acerca do período entre a chegada de Sabá e a minha são
escassas e contraditórias, acredito que esse campo nebuloso possa ser superado se
focarmos os processos que testemunhei enquanto estive em campo. Esses processos são,
claramente, um prolongamento do que ocorria antes, parte do delineamento da vida no
‘Tempo da Funai’. O objetivo do que segue é mostrar como, por meio da presença da
Funai, o Itaquaí deixou de ser um canto remoto da ‘Terra dos Kanamari’, ligado ao Juruá,
para se tornar uma área equivalente, se não idêntica, às bacias hidrográficas dos tributários
da margem esquerda do Juruá, de onde eles migraram. No primeiro capítulo eu narrei
como formas estáveis se encontravam imersas em fluxo e, no capítulo dois, como o fluxo
transformou-se em um abismo que começou a ser superado com a chegada de Sabá.
Neste capítulo quero mostrar como o ‘Tempo da Funai’ permitiu aos Kanamari recriar sua
sociedade, mesmo que um tanto diferente daquela que haviam postularado previamente.
Começarei, então, com uma descrição do Itaquaí no período entre 2002 e o
presente. Meu objetivo será mostrar como o rio se caracteriza de acordo com duas forças
conflitantes: uma centralizada na direção de Massapê, baseada em redes egocêntricas de
alianças que unem todos os habitantes do Itaquaí; e outra dispersa, baseada em
movimentos sazonais e pequenos agrupamentos de aldeias ligados às afiliações aos
subgrupos, que vai de encontro ao modelo egocêntrico. Depois de contemplar tudo isso a
partir de uma perspectiva demográfica, voltarei-me a uma análise mais profunda do
conceito de ‘parente entre os Kanamari, dos casamentos entre os sub-gupos que
acompanharam a migração rumo ao Itaquaí, e dos critérios de afiliação aos subgrupos em
um contexto em que a endogamia subgrupal o mais perdura. Finalmente, concluirei com
o retorno ao conceito de chefe/corpo/dono e questionarei como isso opera em uma
configuração multi-dyapa.
O Itaquaí Hoje
Esta seção estabelecerá as divisões abrangentes que os Kanamari reconhecem como
existentes na bacia hidrográfica do rio Itaquaí. Começarei pela discussão sobre como eles
dividem o rio em uma série de ‘terras’ relacionadas aos seus habitantes. Seguirá, então, uma
exposição de como os assentamentos Kanamari estavam disposotos às margens do Itaquaí
quando da minha chegada, em 2002. Minha preocupação principal será explicitar as razões
152
que motivam os deslocamentos dos ameríndios pelas margens do rio. A seção será
concluída com a revisão de algumas das mudanças no padrão de assentamento entre 2002 e
2006, quando deixei o campo. Meu objetivo é inserir o Itaquaí em uma questão mais ampla,
que será desenvolvida na seção seguinte: a tensão entre a co-residência que se desenvolveu
a partir do movimento em direção ao Itaquaí e o ‘modelo de endogamia do subgrupo’ que
permanece estruturando a distribuição das aldeias ao longo do rio.
As ‘terras’
Os Kanamari, hoje, consideram toda a área do rio Itaquaí, desde a foz do Rio
Branco até sua nascente, rumo ao sul, como seu território nossa terra’ (ityowa ityonim),
como costumam chamar. A área à jusante disso, da foz do Rio Branco rumo ao norte, até a
confluência do Ituí com o Itaquaí, é considerada a ‘terra dos Dyapa’. Estes incluem os
Korubo, que são um povo de língua Pano que permaecem, em sua maioria, isolados e que,
como vimos, foram a razão inicial para a vinda de Sabá. Eles não moram às margens do
Itaquaí. Em vez disso, habitam a região entre o Rio Branco e o Ituí, mas alguns são
eventualmente vistos no Itaquaí, particularmente durante a estação seca, quando procuram
por ovos de tracajá em suas praias. O mesmo território é também considerado a ‘terra dos
Capivara-dyapa’, que conhecemos da história de João Dias (capítulo 2). Eles também são
Dyapa, mas são chamados de Capivara-dyapa para que sejam diferenciados dos Korubo.
Eles habitam os territórios que vão em direção à nascente do rio São José, e nunca foram
vistos às margens do Itaquaí.
Na confluência entre o Ituí e o Itaquaí fica a FPEJV, também conhecida como ‘a
base’, que marca os limites da Terra Indígena do Vale do Javari. A confluência em si marca
uma importante divisão para os Kanamari, porque, se ao seguir Itaquaí acima se chega à
‘terra dos Kanamari’, ao seguir Ituí acima chega-se às aldeias dos Marubo e dos Matís,
Dyapa de língua Pano. A base é uma construção grande, constantemente ocupada por
funcionários da Funai, e os Kanamari a vêem como uma conseqüência direta da presença
de Sabá, uma vez que é a realização de uma de suas promessas. A partir da perspectiva dos
Kanamari, a base foi construída por dois motivos: primeiramente, para cuidar de um
pequeno grupo de Korubo, os únicos com contato regular com a Funai, que mora
relativamente próximo à construção, no rio Ituí; em segundo lugar, para prevenir brancos
de chegar aos dois rios e ameríndios de ir ou vir com certas mercadorias. Os bens que não
podem sair da Terra Indígena são madeira, caça, peixes e ovos de tracajás. A Funai não
153
deixa pessoa alguma levar esses tipos de produto à cidade vizinha de Atalaia, nem vendê-
los aos brancos locais. Os Kanamari têm autorização, todavia, para vender produtos que
tenham cultivado em suas roças ou artefatos que por eles tenham sido produzidos, como
canoas, remos, cestas, colares e cocares. Eles podem também vender porcos e galinhas que
criam na aldeia. É proibido adentrar a área do Ituí ou do Itaquaí com bebidas alcoólicas.
Para chegar a qualquer dos dois rios, as canoas são obrigadas a parar na base e serem
inspecionadas por seus funcionários, muitos dos quais são Matis, Marubo e Kanamri.
A área que começa na base, segue rio abaixo até a foz do Itaquaí, e continua até a
cidade de Atalaia do Norte, à margem do Javari, é conhecida por ‘terra dos brancos’ (kariwa
nawa itonym). Logo depois de se passar ‘a base’, surgem os primeiros assentamentos
brancos, que seguem pontuando a beira do rio até a cidade. Depois de Atalaia há as cidades
de Benjamin Constant e Tabatinga, esta última situada às margens do Rio Solimões. O
mapa 7 apresenta a divisão do sistema fluvial em ‘terras’ pertencentes a diferentes povos.
Apesar de a terra dos Kanamari abranger tudo o que se situa à jusante da foz do
Rio Branco, eles consideram que ela se prolongue e abranja também os tributários da
margem esquerda do Juruá, de onde vieram. Esses afluentes compõem, hoje, a Terra
Indígena do Mawetek, que é contígua à fronteira sul da Terra Indígena do Vale do Javari.
Nesse sentido, o alto Itaquaí, em que esses Kanamari hoje vivem, é conceitualmente e
geograficamente mais próximo ao Juruá que às áreas rio abaixo. A partir de uma
perspectiva centrada no Juruá que seria, tão somente, uma ‘perspectiva Kanamari’ sobre
seu próprio território –, poderíamos dizer, então, que o Itaquaí fica no limite final da ‘terra
dos Kanamari’, que, por sua vez, se expande a partir dos afluentes do Juruá.
Este último ponto revela as distinções que permanecem na ‘terra dos Kanamari’.
Deve-se manter em mente que a migração para o Itaquaí se deu em ondas, e que envolveu
pessoas dos quarto sub-grupos predominantes nos tributários da margem esquerda do
Juruá: os Macaco de Cheiro-dyapa, os Mutum-dyapa, os Caititu-dyapa e os Japó-dyapa
115
.
Essas pessoas, que antes moravam em bacias hidrográficas distintas, passaram, então, a
morar às margens do mesmo rio. Se eles podem se referir a essa área como nossa terra’
(ityowa ityonim), podem fazê-lo desconsiderando as diferenças que esse processo
migratório oculta, distinções que ainda conectam pessoas do Itaquaí aos tributários de onde
vieram o Mucambi, o Komaronhu, o Toriwá e o Mawetek respectivamente. O objetivo
deste capítulo é entender a tensão subjacente entre morar em uma bacia hidrográfica, em
uma
115
Estas não foram as únicos pessoas a migrar, uma vez que alguns remanescentes de -dyapa menores
também os acompanharam. Mas são esses quarto sub-grupos que continuam a ser importantes no rio Itaquaí.
154
155
‘terra’ que é comum a todos, e continuar a expressar as diferenças entre os grupos por
meio de referências à endogamia dos subgrupos.
O Itaquaí em 2002: Mobilidade
Quando cheguei ao Itaquaí, havia onze aldeias. A maior delas era, e ainda é,
Massapê, a que alguns Kanamari se referem como ‘capital’ do Itaquaí. Em 2002, um grupo
de trabalhadores brancos construíam uma estrutura de tijolos em que deveria funcionar o
‘Polo Base’, um projeto ambicioso que visava a descentralização do sistema de saúde de
Atalaia do Norte e espalhá-lo entre todas as aldeias principais do Vale do Javari. O Pólo
Base de Massapê nunca foi concluído, e as ruínas da construção continuam na aldeia até
hoje (ver Costa 2006; Matos e Marubo 2006). Apesar de inútil em grande parte, uma
pequena seção coberta da obra foi transformada em enfermaria e em abrigo para o rádio.
Esta permanece sendo a única enfermaria no Itaquaí e, até recentemente, foi abrigo do
único rádio presente em toda a área do rio. Ambos, o rádio e a enfermaria, estão ligados à
Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Este órgão é responsável por garantir que haja
sempre uma enfermeira no rio, para assegurar serviços básicos de saúde e a operação do
radio, que comunica emergências à Casa do Índio em Atalaia do Norte que, então, decide
se é ou não necessário mandar os pacientes para tratamento na cidade. Mas os Kanamari, e
todos os outros povos do Vale do Javari, também usam o dio e a freqüência da Funasa
para se comunicar com outras aldeias no caso do Itaquaí, isto incluiria os Kanamari nas
aldeias do dio Javari e aqueles que estariam, por qualquer motivo, na cidade de Atalaia
do Norte.
Massapê é também a sede do posto da Funai, onde um funcionário permanece
durante a maior parte do ano. Recentemente, também se transformou em um dos pontos
escolhidos para implantação de uma estação do Sistema de Vigilância da Amazônia
(Sivam). Massapê é, portanto, uma aldeia atípica em todos os sentidos: é maior e mais
populosa que qualquer aldeia, é o local de operação tanto da Funai quanto da Funasa no rio
Itaquaí, abriga uma estação do projeto Sivam e quase sempre conta com a presença de
residentes que o são Kanamari. Estes fatores são todos interligados, obviamente: o sub-
posto foi estabelecido em Massapê porque muitas famílias vivem na aldeia ou em seus
arredores, e Massapê permanece a aldeia mais populosa porque conta com o sub-posto,
com a enfermaria e com o rádio. O predomínio de Massapê é de tal grau que, em 2002,
muitos funcionários brancos da Funasa que nunca haviam estado no Itaquaí, mas que
156
trabalhavam com prestação de serviço de saúde para os Kanamari, achavam que essa era a
única aldeia do rio apesar de outras aldeias, como Kumaru e Remansinho, terem,
então, cerca de cinco anos.
157
158
O mapa número 8 mostra as aldeias do Itaquaí em 2002, e indica a população de
cada uma entre parênteses. A população do Itaquaí como um todo era de 387 pessoas,
espalhadas pelas onze aldeias. O número de habitantes por aldeia deve ser lido com
cuidado. Os Kanamari se deslocam constantemente ao longo do Itaquaí e, regularmente,
embora com menor constância, do Itaquaí para o Juruá e de volta. De fato, o mero 387
inclui alguns Kanamari que fui incapaz de associar a uma aldeia específica; apesar de
claramente morarem no Itaquaí, parecem preferir o deslocamento entre assentamentos e o
estabelecimento temporário em casas dispostas a recebê-los
116
. Como conseqüência desses
movimentos, as aldeias incham e praticamente desaparecem em curtos intervalos de tempo.
É impossível, então, entender a disposição das aldeias no Itaquaí sem reexaminar alguns
dos motivos que conduzem os Kanamari ao deslocamento.
As mudanças sazonais não diferem muito do que fora postulado para o modelo de
endogamia do subgrupo, exceto no que diz respeito aos Hori, que, como um todo,
desapareceram, conforme veremos logo mais. Durante a estação seca (de maio a outubro),
as aldeias tendem a dispersar-se, uma vez que as pessoas viajam em pequenas unidades
familiares para coletar ovos de tracajá. É também nesta mesma época que as aldeias se
reagrupam e as pessoas se juntam para os rituais do devir-Kohana e do devir-Jaguar, e é
quando muitos Kanamari tentam vender seu artesanato e os animais domésticos que criam
em Atalaia do Norte, geralmente perfazendo o caminho sem pressa, para coletar ovos de
tracajá. Durante os meses chuvosos (novembro a março), as aldeias costumam isolar-se,
exceto quando engendram pequenas expedições para coleta de frutas silvestres e quando se
reúnem em velhas capoeiras para colher frutos das palmeiras de pupunha, aí, e buriti;
então, membros de aldeias diferentes voltam a se encontrar. Por meio desses movimentos,
assim, estabelecem-se, ao longo das duas estações, trações centrífugas e centrípetas que
passam, aos recém-chegados ao Itaquaí, a impressão de que os deslocamentos são
irregulares e mais ou menos constantes.
Os deslocamentos são curtos, afazeres pontuais que motivam uma pessoa ou outra
a visitar parentes fora da aldeia; ou empreendimentos de caráter mais coletivo. O primeiro
tipo de movimento inclui visitas regulares para beber caiçuma com familiares. duas
palavras que os Kanamari usam para definir esse tipo de visita: parah- e nyuko-. Ambas têm
o significado genérico de “viajar para ver pessoas”. Os dois verbos quase sempre se
116
seis Kanamari que não consegui associar a uma aldeia, então os inseri no contexto das aldeias em que
costumavam passar a maior parte do tempo e/ou em que estavam quando o censo foi feito. Isto incluiu três
pessoas em Remansinho, duas em Beija Flor e duas em Kumaru.
159
complementam com os dêiticos espaciais na ou dyi; assim, parah-na, por exemplo,
significa “visitar lá”, e parah-dyi, “visitar aqui”. Os dois dêiticos podem acompanhar verbos
que não indicam movimento, para orientar acerca do motivo da visita. Uma pessoa pode,
por exemplo, viajar para koya-o-na, “beber caiçuma lá”, o que aponta a razão do
deslocamento para uma outra aldeia.
A distância entre duas aldeias torna desejável um barco a motor. Motores,
particularmente os pequenos e maneáveis HP 5.5, estão entre os itens que os Kanamari
mais cobiçam e eles geralmente constroem muitas canoas para venderem e depois
comprarem um. A gasolina costuma ser obtida em Atalaia do Norte, ou dada aos
ameríndios pelo Chefe de Posto da Funai, por funcionários da Funasa ou, durante a minha
estadia, por mim. Canoas, por sua vez, são facilmente acessíveis, e isto é tudo que se faz
necessário para manter o tráfego no Itaquaí relativamente intenso. Se os Kanamari não
tiverem acesso aos barcos a motor, não demonstrarão problema algum em remar a
qualquer aldeia no Itaquaí.
Os deslocamentos coletivos e de grande escala gravitam entre dois pólos: Massapê e
a cidade de Atalaia do Norte. Mencionei acima que os Kanamari o a Atalaia do Norte
vender os bens que produzem (canoas, remos, artesanato) ou os animais que criam (porcos
e frangos). Além disso, eles também vão à cidade quando não há brancos em Massapê. Por
exemplo, se não uma enfermeira da Funasa, viajam para obter tratamento; e se o Chefe
de Posto da Funai se ausenta por algum motivo, os Kanamari podem ir em seu encalço
para pressioná-lo a voltar. Atalaia do Norte é a sede da administração regional da Funai, e
os ameríndios às vezes também o requerer um encontro com o administrador e com o
chefe de posto. Nessas reuniões eles exigem que a Funai esteja mais presente no Itaquaí, e
que providencie maior quantidade de mercadorias. Eles demandam a distribuição de
facões, machados e gasolina, e também costumam pedir geradores e motores. Este último
tipo de deslocamento, que visa a reuniões e exigências junto à Funai, não são
deslocamentos impulsivos. São ações coordenadas que dependem de reuniões prévias entre
homens proeminentes e que quase sempre acontecem em Massapê. Isto significa que os
dois pólos direcionais são articulados e que dependem um do outro, uma vez que, em
termos gerais, os deslocamentos coletivos em direção à cidade são planejados nesses
encontros em Massapê. Essas excursões podem constituir grandes empreitadas. Certa vez,
uma agrupou cerca de setenta pessoas, que foram à cidade encontrar-se com o
administrador.
160
É razoavelmente evidente que os Kanamari consideram Massapê um equivalente
atual a uma maloca. Um Kanamari adeixou isso claro para mim ao dizer que eu deveria
chamar Massapê hak nyanim, ‘maloca’, enquanto as demais aldeias seriam “comunidades”
117
.
Apesar de ser evidente que as pessoas deslocam-se para Massapê pelos confortos que
oferece e em razão da presença dos brancos, com suas mercadorias e seus remédios,
outras particularidades atrativas ligadas a maneira como costumavam viver nos tributários
do Juruá. Massapê é ocupada mais tempo que as outras aldeias, provavelmente desde
meados da década de 1970
118
, e isto significa que é rodeada por capoeiras e roças antigas. A
única outra concentração de capoeiras fica nos pontos mais altos do Itaquaí, onde antes
ficava a aldeia Pontão, de Ioho. Estas capoeiras, todavia, são raramente visitadas. Os
Kanamari mudaram-se rio abaixo quando os brancos começaram a invadir os territórios
outrora habitados por eles, e Pontão, hoje, assim como outras aldeias, não mais constitue
os limites ocupados por eles
119
.
Os Kanamari plantam diferentes espécies de palmeiras, sobretudo buriti e pupunha,
cujas sementes espalham nas roças e nas aldeias depois de comerem os frutos. Eles o
costumam se preocupar com o cultivo das plantas, que estas crescem devagar e que,
portanto, provavelmente não beneficiarão as pessoas durante seu tempo de permanência
numa aldeia. Uma palmeira de pupunha, por exemplo, tende a demorar dez anos para dar
frutos pela primeira vez, e cerca de vinte para tornar-se madura. Uma vez que as aldeias,
tradicionalmente, não costumavam durar mais de cinco anos, e que geralmente existiam por
menos tempo ainda, as pupunhas plantadas por seus habitantes viriam a dar frutos
muito depois de elas terem sido abandonadas. que as aldeias se espalham para além de
onde se constroem as malocas, essas pequenas áreas de capoeira apenas passarão a pontuar
a paisagem, geralmente ficando bem fora do alcance das novas aldeias estabelecidas. Ou
117
O termo ‘comunidade’ é geralmente usado pelos Kanamari para se referirem a qualquer aldeia que não seja
Massapê.
118
Havia, como vimos, outra aldeia, mais antiga, de nome Massapê. Ficava um pouco rio acima da atual
Massapê. Hoje apenas capoeiras a seu redor, e os Kanamari a chamam de “Massapê Velha” (Massapê
kidak), para distingui-la da aldeia atual. De todo modo, a Massapê de hoje foi ocupada no mínimo 20 anos
antes da próxima aldeia mais antiga da região .O termo ‘comunidade’ é geralmente usado pelos Kanamari
para se referirem a qualquer aldeia que não seja Massapê.
119
A remoção dos brancos do Itaquaí deu aos Kanamari novas alternativas, uma vez que os broncos também
deixaram para trás roças em que plantaram palmeiras. Quando os não-ameríndios deixaram o rio, os
Kanamari ocuparam seus terrenos. É o caso da aldeia de Remansinho, alocada sobre um terreno que
costumava ser terra de pastagem para o gado de brancos. É ademais situada próximo à boca do rio Pedra,
onde os brancos tinham suas roças, e onde palmeiras o abundantes, sobretudo as deaí. A aldeia de Novo
Unido foi cravada onde costumava morar Sebstaião Bezerra, e a aldeia de Arara, que descreverei em breve,
foi construída onde costumava funcionar uma fazenda branca. Muitas vezes, enquanto eu subia e descia o
Itaquaí com os Kanamari, eles apontavam para essas roças abandonadas e diziam os nomes dos antigos
moradores de lá. A parte do Itaquaí que os Kanaria chamam de ‘sua terra’ é considerada como abundante em
palmeiras frutíferas, ao longo de sua extensão, mas nada que se compare à concentração de tais árvores em
Massapê.
161
seja, essas capoeiras estão localizados em partes do território que são próximas a aldeias
antigas, já extintas, e, sendo assim, serão visitadas apenas por alguns Kanamari.
Isso difere das capoeiras que cercam as malocas, que, no passado, eram a fonte
mais consistente de palmeiras, o ponto de convergência na paisagem de um sub-grupo, a
casa do maita em torno da qual todos se reuniam
120
. Capoeiras, conforme vimos, o
associados a ancestralidade e a atividades do passado, particularmente aos ancestrais
anônimos, os –mowarahi. Estes representam uma coletividade genérica de pessoas mortas às
quais o mais se presta luto, e cujos corpos e mechas de cabelo foram enterrados nas
malocas. Pessoas às quais não mais se presta luto deixam de ser percebidas como
indivíduos, e passam a se fundir à terra em que viveram. Capoeiras nunca são, desse modo,
totalmente ‘abandonadas’; elas representam, pelo contrário, traços de ancestralidade
inscritos na paisagem, concentrados majoritariamente em volta da maloca.
Se compararmos a situação no Itaquaí com o modelo de endogamia de subgrupo e
com as mudanças que este sofreu a partir da chegada de Jarado, torna-se claro que Massapê
opera como um pólo agregador, análogo a uma maloca. A maloca era também a casa do
chefe maita, e este parece ser o caso de Massapê. É que mora, durante parte do ano, o
Chefe de Posto da Funai, e é lá, também, a casa de Poroya. Vimos que Poroya foi o filho
de Dyaho, e sabemos que ele é o único Kanamari que é funcionário da Funai. Além disso,
vimos no capítulo anterior que Sabá o transformou em ‘Fiscal do Índio’, um observador
dos Kanamari, e que “todos os outros chefes deviam ajudá-lo”. Massapê é, portanto, casa
de um chefe indígena e de um chefe branco, e, porque Poroya trabalha para a Funai, essas
duas posições são parcialmente correspondentes. É o ponto de interseção de
deslocamentos do Itaquaí, de onde o movimento é coordenado
121
.
O Itaquaí em 2006: Separando Sub-Grupos
Em janeiro de 2006, a população total do Itaquaí era de 493 pessoas, distribuídas
em 12 aldeias (ver mapa 9). Em quatro anos, a população cresceu em 106 pessoas. Cerca de
120
Essa concentração de palmeiras também inclui pés de banana e mamão que continuam frutíferos. Como
nota Rival (2002, 85), jardins de palmeiras provavelmente o resistem sem alguma intervenção humana,
sendo gradualmente cobertos pela floresta. Algum grau de preservação passa a ser necessário, portanto,
quando se quer que as roças permaneçam produtivas. Este é o motivo de a única fonte consistentemente
confiável de palmeiras serem as capoeiras em volta de malocas, que sempre serão ocupadas durante visitas de
nativos que vêm cuidar das plantações.
121
Antes de Massapê, havia o Pontão, conforme vimos, que agia como a maloca do rio e, portanto, é razoável
que a outra concentração de capoeiras do Itaqugire em torno dessa antiga aldeia. Os Kanamari também
indicam que essa região do Itaquaí é cheia de moroh no ta’, ‘cacos de cerâmica’, que atestam uma ocupação
mais antiga. Ver também Rival (2002, 94), sobe os Huaorani, que estabelecem o mesmo tipo de associação.
162
um terço dessa diferença se deve a nascimentos, e o resto advém da migração de pessoas
do Juruá. Mais uma vez, esses números devem ser lidos com cautela, porque ocultam os
movimentos em curso no Itaquaí, além de uma série de arranjos temporários que se deram
nesse intervalo de tempo, entre 2002 e 2006. Além disso, ainda o está claro se todos
aqueles que vieram do Juruá escolherão fixar residência permanente no Itaquaí – se
estabelecerão novas roças e se construirão moradias. É impossível sabê-lo agora porque, de
acordo com um homem Kanamri:
“Nós discutimos com parentes e, então, nos mudamos para onde estão outros de nossos
familiares. Ali permanecemos, até que discutimos com estes também, e então regressamos aos
primeiros parentes. Ou, ainda, nos mudamos para um lugar novo.”
163
164
A migração de gente do Juruá, que permaneceu gradual e estável ao longo dos
quatro anos em questão, trouxe algumas pessoas para Massapê em si, e espalhou outras em
seus arredores, em novas aldeias. Esse movimento foi contrabalançado por outro tipo de
deslocamento, em que alguns moradores de Massapê se mudaram para aldeias localizadas
rio abaixo. É esta tensão que almejo investigar, uma vez que ela resultou em uma partilha
do alto Itaquaí em clusters ligadas aos quatro subgrupos predominantes no rio.
Em 2002, Massapê era explicitamente uma aldeia dividida, em vias de
fragmentação. Havia uma área do assentamento, mais próxima ao rio, que era mais ligada a
Poroya e, por meio dele, aos Mutum-dyapa e aos Macaco de Cheiro-dyapa. Este é, portanto,
um grupo que representa a constelação histórica que denominei “configuração A”. Vimos
no capítulo anterior que foi a relação entre Dyaho e Ioho que delineou o início do processo
de migração ao Itaquaí, e que cada um dos homens pertencia, respectivamente, a um dos
subgrupos acima citados. Foi esta aliança que se configurou fisicamente nos arredores da
casa de Poroya. A partir daí, esse cluster de pessoas tornou-se um ponto central de
distribuição de pessoas dos dois subgrupos para as regiões situadas imediatamente rio
acima e abaixo: rio acima concentraram-se principalmente alguns Macaco de Cheiro-dyapa
(Kumaru, Alzira), e logo rio abaixo, uns Mutum-dyapa (Donaia).
O restante de Massapê, reunidos em uma série de casas separadas do cluster anterior
pelo posto da Funai, eram majoritariamente Caititu-dyapa e Japó-dyapa. Correspondiam,
assim, à “configuração B”. Em 2002, essas pessoas haviam dado início a um
deslocamento rio abaixo, em direção a outras aldeias. A aldeia de Remansinho era, então,
bem estabelecida e habitada por pessoas cuja origem reside nessa segunda configuração. Os
moradores de Bananeira haviam se mudado fazia muito pouco tempo e, portanto,
enquanto aprontavam suas roças na nova aldeia, ainda residiam uma parte do tempo em
Massapê. No fim de 2002, eles estavam finalmente estabelecidos em Bananeira, e suas casas
em Massapê haviam sido abandonadas. No mais, em 2004, um outro grupo, quase todo
composto por Japó-dyapa que tinham permanecido em Massapê, fundou a aldeia de
Estreito, bastante próximo ao Remansinho.
Em 2002, em suma, Massapê era habitada por membros da configuração A e da
configuração B. Enquanto o agrupamento representativo da primeira permaneceu em
Massapê, o da segunda havia, em 2006, mudado-se, em sua maioria, rio abaixo,
estabelecendo um cluster de aldeias (Bananeira, Remansinho, Estreito) predominantemente
habitadas por Japó-dyapa e por Caititu-dyapa.
165
Todavia, se compararmos os mapas 8 e 9, veremos que a população de Massapê
aumentou em 33 habitantes entre 2002 e 2006. Também poderemos constatar que novas
aldeias (Sibélio, Três Bocas) se estabeleceram próximo a Massapê, enquanto duas outras
(Donaia, Cordeiro) desapareceram. A razão para isto deve-se a outro movimento, que
trouxe sobretudo uns Mutum-dyapa do rio Komaronhu para o Itaquaí. Alguns deles
viveram em Massapê durante um tempo, antes de estabelecer novas aldeias nas cercanias;
enquanto outros permaneceram na aldeia central, que hoje é indissociável de Poroya e ‘sua
gente’ (awa tukuna). A aldeia de Donaia, majoritariamente formada por Mutum-dyapa,
também se transferiu permanentemente para Massapê, enquanto alguns Mutum-dyapa, que
consideraram, em princípio, mudar-se para Bananeira, voltaram para as redondezas de
Massapê e fundaram um novo assentamento (Sibélio). Os Caititu-dyapa da aldeia de
Cordeiro, próximo a Massapê, acompanharam o impulso de grande parte dos elementos da
configuração B rio abaixo, e fundaram a aldeia de Arara juntamente com pessoas que
haviam vivido antes em outras aldeias (Massapê, Chôa). Finalmente, criou-se a aldeia de
Panema, composta majoritariamente por Caititu-dyapa vindos de Novo Unido e Beija
Flor
122
.
Estes movimentos resultaram em uma disposição de aldeias (Mapa 9) que os
Kanamari reconhecem explicitamente como réplica da distribuição dos subgrupos pelos
afluentes do Juruá. Durante reuniões realizadas em Massapê, os Kanamari afirmaram que
vivem, hoje, distribuídos em um grupo de Macaco de Cheiro-dyapa no ponto mais alto do
Itaquaí (Kumaru, Alzira), uma de Mutum-dyapa logo abaixo (Massapê, Três Bocas, Sibélio),
seguida pelos Caititu-dyapa (Beija-Flor, Arara, Panema) e pelos Japó-dyapa (Estreito,
Remansinho, Bananeira). Se compararmos o Itaquaí ao Juruá, repete-se a mesma posição
que os subgrupos ocupavam no passado, então divididos entre quatro afluentes que eram, a
começar pelo mais alto, o Mucambi, o Komaronhu, o Toriwá e o Mawetek.
No entanto, mesmo que alguma distância entre os subgrupos se tenha
restabelecido, isto não significa que eles tenham voltado a ser –tawari em relação um ao
outro. Isso se deve a dois motivos. O primeiro tem a ver com a hidrografia do Itaquaí, que
mais se assemelha à dos afluentes do Juruá em que viveram os Kanamari que à do Juruá em
122
ainda um movimento a se considerar, relativo à população remanescente de Novo Unido. Grande
parte dessa aldeia deslocou-se para o Javari. Isto se deu por causa de um homem que se zangou com o fato de
a base (FPEVJ) não permitir que deixasse o Itaqucom tracajás, seus ovos ou carne de pirarucu para vender
em Atalaia do Norte. Uma vez que o Javari não tinha um posto correspondente, e que a movimentação pelo
rio é relativamente fácil (apesar de ainda ilegal), o homem resolveu estabelecer residência ali, onde poderia
continuar a levar adiante seus negócios. Este tipo de movimento pode ser atípico, mas é importante, porque
explicita a atração exercida por um dos dois pólos em torno dos quais os Kanamari transitam: Massapê e
Atalaia do Norte.
166
si. Assim, não foi possível estabelecerem-se consistentemente em aldeias afastadas do
Itaquaí e usarem o rio como via para visitar uns aos outros. As aldeias estabelecidas longe
do Itaquaí (Donaia, Pedra) revelaram-se efêmeras e/ou precárias. Em razão disto,
prevaleceram os deslocamentos curtos e regulares pelo rio, tendo como ponto central
Massapê, o que torna a nova disposição similar à estrutura que se apresentava nas bacias
hidrográficas dos afluentes do Juruá no de endogamia subgrupal.
O segundo motivo é que a História que levou os Kanamari ao Itaquaí foi de co-
residência progressiva e de casamentos entre sub-grupos, o que tornou-os todos
aparentados, mesmo que isso contradiga o modelo que ainda defendem como ideal. É este
aspecto que quero enfocar agora, mostrando algumas das ambigüidades que se apresentam
quando se persiste em um modelo de endogamia de subgrupo como sendo exemplo ideal,
em um mundo caracterizado por um processo gradual de convivência em uma única bacia
hidrográfica.
A Questão dos Subgrupos
Certa vez perguntei a Poroya o que define um homem Mutum-dyapa:
- Estes Japó-dyapa, que moram aqui no Itaquaí, são seus parentes (-wihnim)?
- Eles são meus parentes em termo (i-wihnim nahan). São meus parentes distantes (i-wihnim parara).
- E aqueles Japó-dyapa que não se mudaram para o Itaquaí, os que permaneceram em Mawetek,
eles não são seus –tawari?
- Não. São apenas Japó-dyapa.
Essa opinião contrasta com a de um Japó-dyapa que me disse com todas as letras
que Poroya e os Mutum-dyapa não eram seus parentes
123
. Não é claro o quanto essa opinião
é observada em prática. Meu informante é mais velho que Poroya, e eles referem-se um ao
outro por meio de termos consangüíneos: Poroya é hiwampia do homem, uma expressão
que inclui o BS. Poroya me explicou que o homem Japó-dyapa o chama dessa forma porque
o pai de Poroya, Dyaho, chamava meu outro informante de ‘irmão’ (-dya). Não uma
relação genealógica discernível entre os dois, mas eles conviveram durante um período no
Itaquaí, antes da morte de Dyaho.
123
O que ele disse foi i-wihnim tu Poroya hinuk anim: “Poroya e seu povo não são meus parentes”. A expressão
‘Poroya hinuk’ pode ser traduzida como algo similar a “os Poroyas”, e refere-se a Poroya e seus parentes.
Neste caso, a expressão foi usada como uma maneira de designar os Mutum-dyapa como um todo.
167
O homem Japó-dyapa também dispensa a Poroya o tratamento reservado a um
parente: mora próximo a ele, viaja com ele vai com ele a Massapê. De fato, sua relação com
Poroya é melhor que a de alguns outros homens Japó-dyapa. Acho que, ao negar o
parentesco com Poroya, o homem o rejeitava o tipo de relação que mantinha com ele,
mas expressava um cálculo mais simples: Poroya não é parente porque é de um outro
subgrupo, e pessoas que não são do mesmo subgrupo não devem ser parentes,
independentemente de como se referem uma à outra e de terem ou não co-residido.
Neste contexto, o homem concluiu sua reflexão a dizer que “meus ‘verdadeiros parentes’ [-
wihnim tam] são os Japó-dyapa. Eles estão no Mawetek”.
Nesta seção, quero analisar a origem dessa divergência de opiniões. Começarei pela
discussão acerca da definição Kanamari de ‘parente’ (-wihnim), um termo que foi
perpassado nos capítulos anteriores. Mostrarei, então, como alguns dos casamentos entre
os subgrupos, junto com a existência de Mapssapê, agem de modo a transformar Itaquaí
em uma área em que todos são ‘parentes’, como sugere Poroya. Por fim, analisarei o
critério que define pertencimento a um subgrupo, revelando como a manutenção do
modelo de endogamia do subgrupo age no sentido de contradizer essa noção generalizada
de parentesco, ao fazer com que alguns, às vezes, não sejam parentes de outros, conforme a
opinião do meu informante Japó-dyapa.
Os Muitos
A terminologia de parentesco Kanamari é do tipo dravidiano, como é comum em
muitas partes das terras baixas da América do Sul (Viveiros de Castro 1993)
124
. O
casamento dá-se preferencialmente com primos cruzados bilaterais, e muitas uniões,
sobretudo os ‘primeiros casamentos’, respeitam esse padrão. Os lculos do que seriam
primos cruzados depende de relações de afinidade de mesmo sexo entre os pais de Ego e
pessoas em G + 1. Assim, para um Ego masculino, o casamento preferencial será com a
filha de um homem que seu pai chame de ‘meu cunhado’ (i-bo), ou a filha de uma mulher
que sua mãe chame de ‘minha cunhada’ (i-tyanhwan).
O termo Kanamari que eu venho traduzindo como ‘parente’ é wihnim, que sempre
exige ser precedido por um pronome: i-wihnim, por exepmlo, significa “meu parente”, e
refere-se idealmente às pessoas ligadas por laços cognáticos. A palavra wih significa
“muitos”, e o sufixo nim pode tomar forma subordinadora, que liga a palavra “muitos” ao
124
Inclui uma tabela com os termos Kanamari para o parentesco no Apêndice A.
168
pronome que a precede. Sendo assim, ‘meu parente’ significa literalmente “meus muitos”
(ver também Reesnik 1993, 60). O termo wih pode ser usado em qualquer contexto com o
significado “muito”: wih dom anim, por exemplo, quer dizer “muitos peixes”. Outro modo
de se dizer ‘há muitos peixes’ é dom ayuhtunim. A diferença entre os dois termos parece ser
que a palavra wih implica uma relação mais próxima entre os termos que agrupa. Dom wih
anim refere-se, assim, aos peixes que habitam um determinado lago, ou peixes de uma
determinada espécie. Outro exemplo é o do termo que designa “bando de queixadas”,
sempre designado por wiri-wihnim, que os Kanamari percebem como um grupo de pecaris
parentes (ver capítulo cinco). Da mesma forma, tukuna-wihnim significa ‘muitos/pessoas
ligadas pelo parentesco’, enquanto tukuna ayuhtunim significa ‘muitas pessoas’. O –wihnim,
então, é uma coletividade de seres que podem ser agrupados por meio de um pronome ou
de um nome
125
.
No modelo de endogamia de subgrupo, o conceito de wihnim é, ao menos
nominalmente, sociocêntrico, uma vez que é congruente com o subgrupo ou, para ser mais
preciso, com aquelas pessoas que o chefe do subgrupo chama seus parentes’ (a-wihnim). Se
o pronome posicionado antes do wihnim define os “muitos de alguém”, então, aqueles que
são prefixados pelo chefe do subgrupo formam um conjunto que equivale ao subgrupo.
Em outras palavras, em uma mesma bacia hidrográfica, um grupo de pessoas que qualquer
Ego designe por meus parentes / muitos”, seria o mesmo que qualquer pessoa da mesma
bacia hidrográfica chamaria pelo mesmo termo, e este esgotaria todos os parentes deles,
que corresponderiam. Era a isso que eu me referia no capítulo um, quando sugeri que são
os rio, mais que as aldeias, que estabelecem a esfera do parentesco. Mesmo hoje, a resposta
mais comum à pergunta “Quem são seus parentes?” é o nome do subgrupo com que Ego
se identifica. Isto significa que pessoas de outros subgupos são ‘não-parentes’ (-wihnim tu),
um conceito que mascara uma larga escala de categorias de relacionamento, como os
tawari, pessoas com quem se mantêm relações rituais, os oatukuna (estrangeiros), que são
raramente vistos, e os todioki (inimigos).
Esse grupo de –wihnim, no entanto, é internamente fragmentado em parentes
verdadeiros” (-wihnim tam) e em “tipo de parente” (-wihnim nahan) ou “parentes distantes” (-
wihnim parara), o que revela uma forma relacional e egocêntrica de se estabelecerem
distinções dentro do grupo. se apontou que tam é um qualificador ligado à
125
Eu conservo a tradução de wih como sendo ‘muitos’ porque é assim que os Kanamari que falam português
insistem em traduzir o termo. Na análise que Rival faz dos Huaorani, contudo, ela traduz o termo deles para
‘parentesco’, nanicabo, como sendo bando, observando que o termo “…também se usa para fazer referência a
grupos de macacos e papagaios, cardumes e peixes, ou enxames de abelhas” (2002, 98). Esta definição parece
se assemelhar muito aos significado da palavra Kanamari –wihnim.
169
prototipicalidade: -wihnim tam são, portanto, aqueles parentes que são os mais
representativos da categoria. Em outras palavras, são as pessoas com quem um Ego co-
reside nas aldeias e com quem divide a comida regularmente. Os–wihnim tam
paradigmáticos são os parentes de Ego, seus filhos e irmãos; mas isso engloba uma grande
variabilidade. De fato, no capítulo um, argumentei que, dentro de um subgrupo, “parentes
verdadeiros” seriam aqueles que moram na mesma aldeia, sob o comando de um mesmo
chefe de aldeia, e, em termos gerais, aqueles com os quais uma pessoa o se casaria,
revelando, assim, uma predileção pelo casamento exôgamico. “Parentes verdadeiros”,
portanto, é um termo que se conforma em grande parte às pessoas que moram
espacialmente próximas, que também são próximas genealogicamente ou por vias de laços
matrimoniais, como costuma ser comum em toda a Amazônia (Viveiros de Castro 2002,
122-3).
Aqueles que moram em aldeias distintas, mas em uma mesma bacia hidrográfica,
são geralmente chamados –wihnim parara, “parentes distantes” ou, talvez mais precisamente,
“parentes espalhados”. Não ouvi muitas vezes o termo parara sendo usado fora do idioma
do parentesco, mas um exemplo pode servir para elucidar seu significado. Enquanto estive
em campo, uma tempestade trouxe abaixo a casa de um homem, derrubou-a e
transformou-a em retalhos. Neste caso, disse-se que him n-a-parara(h)-tiki awa hak tyo: “A
chuva fez com que sua casa se distanciasse, se espalhasse”
126
. A idéia que isso expressa é
que a chuva fez com que uma unidade se desagregasse, que suas partes se espalhassem pela
aldeia, como me mostraram os Kanamari. A palavra parara, assim, parece sugerir que uma
unidade se fragmenta em partes componentes. Eu sugeriria que wihnim parara reproduz o
mesmo sentido, fazendo com que pessoas de uma mesma categoria abrangente de -wihnim
tornem-se ‘distantes’ ou ‘espalhadas’. O conceito de parara, todavia, é diferente do de ino na,
que também significa “espalhar-se”, mas com a acepção mais específica de “dispersar-se”.
As pessoas que ino na são aquelas que não têm chefe, ninguém que impeça ou contenha sua
mobilidade, tais quais os membros dos grupos que, como vimos, por serem desprovidos de
chefe, entendem-se forçados a viver com outros subgrupos e a se constituírem por meio
destes. Em contraste, as pessoas que se fraccionam espacial e terminologicamente dentro
da categoria wihnim podem sempre se ‘reagrupar’, por assim dizer, voltando ao nível de
parentesco mais inclusivo que os liga todos ao chefe do subgrupo. Isto torna-se
expressivamente concreto durante os períodos de aglomeração na maloca, quando todos
126
Him é o termo que designa chuva. Ele se liga a parara por meio do relacional n-a-. Tiki significa “causar a
alguém ou a algo” e hak é casa. Tyo é uma cláusula condicional final (sobre o uso desta partícula final, ver
Grroth 1988b).
170
estão na companhia do maita e rodeados pela presença física dos mowarahi nas capoeiras,
a paisagem que exprime as atividades do passado.
Reconheceu-se tempos que, na Amazônia, o gradiente próximo distante é
superposto à distinção binária entre consangüíneos e afins:
“O próximo (genealógica e espacialmente) está para o distante como a consangüinidade está
para a afinidade. Um afim efetivo é assimilado aos cognatos co-residentes é, idealmente, um
cognato co-residente –, sendo assim, antes, um consangüíneo; ao passo que um cognato
distante (classificatório, não co-residente) é classificado como um afim potencial” (Viveiros de
Castro 1993, 165).
Tem sido igualmente observado que o parentesco na Amazônia é, em grande medida,
performático, e que distinções equivalentes entre parentes ‘próximos’ e ‘distantes’
dependem de um processo de consubstanciação daqueles que co-residem. Conforme
afirma Gow, “... a construção das categorias de parentes reais e parentes distantes interage
com a definição de comunidade” (1991, 194). Esse processo manifesta-se freqüentemente
em mudanças que se dão no grupo: pessoas que comem juntas, trabalham juntas, tomam
conta umas das outras e vivem próximo umas às outras transformam-se, por meio dessas
interações, em parentes. De acordo com Vilaça, “isto implica o foco em uma diferença
radical: em contraste com nossas próprias idéias, informadas (pelo menos a partir do fim
do século XIX) por uma concepção genética de parentesco, em que a substância determina
as relações sociais, na Amazônia, relações sociais determinam a substância” (2002, 352).
Eu diria que essas últimas linhas podem nos ajudar a entender a conceitualização
Kanamari do parentesco, mas com uma ressalva: entre eles, para que haja o parentesco é
necessário que haja níveis de chefia. Estabelecida esta condição, e não havendo
impedimento, podemos enunciar que “parentes verdadeiros” são aqueles que habitam uma
aldeia, sob o comando de um chefe, e que isto se associa à ‘consangüinidade’, entendida
como forma de relação social que implica cuidar e compartilhar comida e, na maioria das
vezes, também impõe uma restrição ao casamento. “Parentes distantes” são aqueles que
residem um tanto afastados desse espaço descrito de sociabilidade, mas que mantêm
parentesco com o subgrupo de um dado Ego, todavia, por meio das relações que
estabelecem com o chefe deste. Esses ‘parentes’ são ‘afins’, geralmente de modo cognático,
e de qualquer forma vivem relativamente afastados, e encontram-se com o grupo apenas
em reuniões na maloca. A diferença entre “verdadeiros” e “distantes” não é,
evidentemente, absoluta, e as reuniões na maloca geralmente apontam para rearranjos das
171
aldeias, uma vez que as pessoas nutrem a possibilidade de viver com aqueles que outrora
eram seus parentes distantes, e que novos casamentos passam a ser levados em
consideração. Isto se torna possível porque o chefe do sub-grupo é corpo/dono de
todos que habitam uma bacia hidrográfica, enquanto o chefe da aldeia é corpo/dono de
apenas alguns deles. Para além deste espaço apenas “não parentes” (-wihnim tu), com os
quais se mantêm diferentes tipos de interação.
Voltarei à relação entre parentesco e chefia ao final deste capítulo. Por ora, quero
investigar como o processo de migração afetou essa redundância mútua entre wihnim e
subgrupo.
Casamentos entre Subgrupos
Nesta seção, mostrarei como a maioria dos habitantes do Itaquaí estão ligados por
laços matrimoniais, de forma que todos podem ser concebidos como sendo ‘parente’ (-
wihnim) uns para os outros. uma preferência explícita pela manutenção dos
casamentos
127
dentro da esfera do Itaquaí. Casamentos com pessoas de outras bacias
hidrográficas geralmente são denominadas dyam-dyam-nim, literalmente “fugindo-fugindo”, e
implicam na fuga de pessoas, sempre garotas, para outra bacia hidrográfica para se casarem
com homens com os quais geralmente mantêm um relacionamento. Estes casamentos
são sempre condenados, primeiro porque ameaçam a uxorilocalidade que se segue ao
casamento e o subseqüente período de serviço da noiva, mas, sobretudo, porque implicam
uma união com pessoas que moram distantes’ (ino). Pode haver preferência por
casamentos entre pessoas de aldeias específicas, mas geralmente e se não for com uma
pessoa terminologicamente ‘incorreta’ as uniões entre habitantes do Itaquaí são bem
vistas – ou ‘boas’ (bak).
Meu exemplo focará, primeiramente, Poroya, que, conforme demonstrarei adiante,
ocupa uma posição análoga à do chefe do subgrupo no modelo de endogamia de subgrupo.
Se retomarmos o comentário de Poroya exposto no início desta seção, constataremos que
ele sugere outra categoria de parentesco que não está listada acima: a ‘tipo de parentesco’ (-
wihnim nahan). O termo nahan pode significar ‘espécie de’, como em pawan nahan, que
significa um “tipo de frio”. A palavra nahan significa também uma “qualidade” de
determinada coisa, e “uma qualidade de frio” pode traduzir com mais propriedade a
127
Os Kanamari não têm uma palavra para designar ‘casamento’, possuem nomenclatura apenas para ‘casar-
se’, que se traduz em dois termos: ohuk e dohan. O primeiro também significa “amarrar”, e fui informado de
que fazia uma referência ao fato de que o noivo amarrava sua rede na casa dos sogros, casando-se
(amarrando-se), assim, com a filha destes.
172
expressão, assim como em “uma qualidade de parente”, onde “qualidade” quer dizer uma
espécie ou uma variedade. O termo em questão também é utilizado para compor a palvra
onahan (“Outro”), em que o-‘, conforme vimos, singifica “um outro de dado tipo”. Onahan
tem a conotação de algo como outra qualidade”, e implica o oposto do termo tukuna,
“pessoa”. Onahan não pode se traduzir por “tipo de outro”, uma vez que significa o oposto
disso
128
.
Perpassamos o conceito de “tipo de parente” quando abordamos a articulação entre
os subgupos que acabou por originar as configurações A e B. Os Kanamari se valem dessa
expressão exclusivamente quando se referem ao processo de mistura entre os subgrupos
que eles percebem como resultante da história que teve início com a chegada de Jarado. A
expressão é em parte sinônima de “parente distante” (conforme os dois usos do termo
feitos por Poroya durante minha conversa com ele), mas revela um pouco da ambigüidade
de ser “distante”, em termos de parentesco, de pessoas que, no modelo de endogamia de
subgrupo, teriam sido “não-parentes”.
Parte do problema surgiu quando descrevi as mudanças que o Itaquaí sofreu entre
2002 e 2006. vimos como a divisão entre os subgrupos se expressava topologicamente
na divisão que se apresentava no Massapê em 2002 e, a partir daí, na distribuição das
aldeias ao longo do rio. O resultado disto é que dois clusters matrimoniais, ou nexos
endogâmicos, que correspondem às históricas configurações A e B e que se situam rio
acima e rio abaixo, respectivamente. De fato, essas alianças matrimoniais geralmente
garantiam passagens seguras de migração ao Itaquaí, uma vez que os Kanamari do Juruá
sabiam que alguém de seu próprio subgrupo ali morava, e que havia se casado com um
membro do outro subgrupo, o que implicava que os membros de ambos os subgrupos não
mais representariam perigo ou falta de familiaridade um ao outro, e que, assim, poderiam se
constituir como parentes. A partir de agora mostrarei que, apesar das distinções até aqui
relacionadas, baseadas em alianças mais tradicionais, continuarem importantes, todas as
aldeias são interrelacionadas por meio de sua história de intercasamentos.
O diagrama
129
abaixo corresponde aos casamentos resultantes das interações que se
deram dentro da configuração A. Ele distingue as pessoas levando em conta sua afiliação
de subgrupo.
128
Estou seguro da tradução da palavra –nahan, mas menos certo em relação ao efeito que o prefixo o-
confere a ela e a outros termos. Opode significar, às vezes, “outro”, como em opok “outra canoa”. Mas
uma frase como mawi owa’pa’ parece significar literalmente “cachorro-qualidade-preguiça”, e pode ser usada
para fazer referência a um vira-lata peludo que se parece com uma preguiça.
129
Para garantir a legibilidade, só incluí alguns casamentos centrais no diagrama. Também excluí dos
esquemas crianças e alguns de seus recém-contratados casamentos. Distingui, ainda, entre membros de
diferentes subgrupos. O problema da filiação subgrupal de crianças de casamentos mistos será discutido em
173
breve, e eu esquematizei essas crianças como pertencentes ao subgrupo a que elas próprias julgam pertencer
e/ou a que a sabedoria transmitida as associa.
174
175
Sabemos que Dyaho (2) decidiu se mudar para o Itaquaí com sua mulher (1) depois
de ter visitado Ioho. Ele levou consigo sua irmã Hanani (3), com a qual logo se casou Wura
(4), um Macaco de Cheiro-dyapa que vivia com Ioho no Itaquaí
130
. Este casamento criou
uma espécie de efeito bola-de-neve que resultou em uma série de uniões entre os filhos de
Dyaho e de Hanani
131
. A primeira destas se deu entre Poroya (10) e Meran Meran (11), logo
seguida pela da irmã de Poroya, Neko (9), e Hakpadya (12). Esse tipo de casamento,
involvendo a troca direta de irmãs, é o predileto dos Kanamari, e se chama ityaro bahom yan,
literalmente “mulheres trocadas”
132
. A outra irmã de Poroya, Carmelita (8), casou-se com
Kawane (7), um Macaco de Cheiro-dyapa. Assim, se o casamento de Carmelita não
reproduziu a união de seus pais, reiterou a aliança entre os Mutum-dyapa e os Macaco de
Cheiro-dyapa. O matrimônio terminou em divórcio, e Kawane mudou-se para o rio Javari,
onde ainda reside. Carmelita então seguiu a estratégia matrimonial dos pais e dos irmãos,
unindo-se a Kariri (13).
Estes casamentos criaram um ‘núcleo’ de estabilidade logo depois da morte de
Dyaho e da tomada do Itaquaí pelos brancos. Depois que Poroya trabalhou para o patrão
Neném Féris, ele regressou aos Kanamari e, junto com suas cunhadas e cunhados, fundou
a aldeia de Tracoá, que ainda existia quando da chegada de Sabá. Essa aldeia, concordava a
maior parte dos Kanamari, era uma ponta de estabilidade em meio ao fluxo de mudanças
que tomaram conta do Itaquaí; o único assentamento que os brancos nem mesmo
parcialmente ocuparam, e cuja autonomia relativa frente a eles se reconhecia, mesmo que
relutantemente.
A mulher de Poroya, Meran Meran, tinha outro casal de irmãos. O irmão, Manuel
Dyaho (14), primeiramente se uniu a Sarapa (15), uma Macaco de Cheiro-dyapa, e eles
também moravam em Tracoá. A irmã, Tyawe (16), todavia, casou-se fora do núcleo
Squirrel Monkey- e Mutum-dyapa. Seu marido, Nui (5), foi o primeiro Caititu-dyapa a se
mudar para o Itaquaí. Apesar de os dois terem quase a mesma idade, são de níveis
130
Estou certo quanto à relação de Wuna com Ioho. Fui informado de que chamavam um ao outro de
“irmão”, mas não eram filhos dos mesmos pais.
131
Um único casamento parece ter desencadeado um efeito similar entre os patrigrupos dos Parakanã
Ocidentais, gerando a preferência por uniões entre duas metades exogâmicas (Fausto 2001, 176-80).
132
Recentemente, alguns Kanamari começaram a clamar que os casamentos de “mulheres trocadas” seriam
uniões ‘runis’ (bak tu). Eles dizem que se duas pessoas “se gostam(-wu), deveriam simplesmente se casar,
sem que a família do noivo tenha de ‘trocar’ uma mulher com a família da noiva para que um dos irmãos
desta também possa se casar. Esta opinião é até mesmo sustentada por alguns homens mais velhos, como
Poroya, cujos casamentos se deram de acordo com ityaro bahom yan. Acredito que esta opinião tenha a ver com
as extensões e as generalizações que se configuraram nas alianças no Itaquaí, e que o modelo de troca talvez
se adequasse melhor aos casamento subgrupais do passado. Voltarei ao assunto mais adiante, ao discutir o
conceito Kanamari de ‘troca’.
176
genealógicos diferentes, e o casamento foi considerado arriscado. Nui mudou-se para o
Itaquaí para ‘ali se casar’ (ohu-dyi), e ele tinha um relacionamento em curso com Tyawe
antes da mudança. Sua união com Tywae, assim como se deu a partir do casamento entre
Hanani e Wura nos primeiros dias de migração ao Itaquaí, abriu uma gama de novas
possibilidades. A primeira foi a migração de outros Caititu-dyapa ao Itaquaí, como o irmão
de Nui, João Dias, que veio depois de sua ousada fuga da polícia, em Eirunepé (ver
capítulo 2).
João Dias trouxe sua filha, Kawang (17). Manuel Dyaho tinha enviuvado pouco
tempo antes e decidiu também ‘casar-se com uma Caititu-dyapa(Hityam-dyapa anya n-a-katu
dohan), foi morar com João Dias, Tyawe e Nui, que então (final da década de 1960 / início
da década de 1970) trabalhavam todos para os brancos. A filha mais nova de João Dias,
Dyan (18), uniu-se a um Japó-dyapa, Dyumi (19), que nascera no Itaquaí. Seu pai, Nohin,
havia se mudado para o rio nos primeiros tempos de migração, depois do deslocamento de
Ioho.
Sendo assim, na segunda geração que se formou depois da migração ao Itaquaí,
havia uma série de casamentos que conectavam os quatro subgrupos. Essas alianças foram
reiteradas por meio de outra série de uniões na geração subseqüente. Duas das filhas de
Poroya e Meran Meran, Wahmadak (23) e Botok (24), casaram-se com os filhos de Manuel
Dyaho (25 e 26). Esses enlaces confirmavam as alianças que existiam entre os filhos de
Dyaho e Wahtepa, por um lado, e as estenderam, simultaneamente, de modo a incluir
Manuel Dyaho, que não se casou com filhas do primeiro casal
133
. Ao mesmo tempo, um
dos filhos de Hakpadya e Neko (21) seguiu uma estratégia semelhante à adotada pelos pais
ao casar-se com a filha de Carmelita (20), enquanto o outro (22) explorou a oportunidade
gerada pelo casamento de Dyaho (seu FB) e se uniu à neta de João Dias (27). Esta,
contudo, pode ocasionalmente ter sido considerada Caititu-dyapa, como sua mãe (Dyan) e
seu avô, mas ela era também, e talvez até mais, Japó-dyapa, como seu pai Dyumi.
Assim, duas séries de estratégias maritais eram seguidas na terceira geração. Havia o
ímpeto de reproduzir as primeiras alianças que os casamentos em G + 2 desencadearam e
que caracterizaram o período das primeiras migrações ao Itaquaí; e também de repetir uma
série de vínculos que se originaram em G + 1. A primeira estratégia consistia em reforçar
laços entre subgrupos da configuração A, e a segunda os estendia para incluir pessoas da
configuração B. O resultado foi que, devido à co-residência e aos intercasamentos, os
133
Manuel Dyaho tinha o mesmo nome que o MB Dyaho. Esta é uma característica típica da onomástica
Kanamari, à qual retornarei no capítulo seis.
177
subgrupos que constituíam as configurações A e B não mais eram tawari uns em relação
aos outros, conforme elucida a conversa que tive com Poroya.
As pessoas no diagrama também estão espalhadas entre muitas aldeias do Itaquaí, e
representadas em todos os clusters subgrupais. Rio acima, na área dos Macaco de Cheiro-
dyapa, na aldeia de Alzira (9, 12, 20, 21); nos arredores de Massapê, na área dos Mutum-
dyapa (8, 10, 11, 13, 24, 25); entre os Caititu-dyapa, nas aldeias de Beija-Flor (5,16) e Pedra
(14, 17); e em Bananeira, entre os Japó-dyapa (18, 19, 22, 27).
Poroya considera todas essas pessoas seus ‘parentes’. Seus ‘verdadeiros parentes’
incluem seus atuais WB, Hakpadya, Kariri, Dyaho, e sua WZ, Tyawe, bem como seus
filhos, mesmo aqueles que não se casaram com as filhas de Poroya. A mulher de Dyaho, no
entanto, Kawang (17), e o marido de Tyawe, Nui (5), são seus ‘parentes distantes’ ou ‘tipo
de parentes’. O mesmo vale para a irmã de Kawang, Dyan (18), e seu marido Japó-dyapa
(19), além da filha dos dois (27).
O Itaquaí é ocupado pelos Kanamari aproximadamente setenta anos, e alguns de
seus ancestrais no Juruá co-residiam muito antes disso, depois da chegada de Jarado, na
segunda metade do século XIX. Atualmente, o rio tornou-se uma unidade que contém
parentes divididos em ‘verdadeiros’ e distantes’/‘espécie de’, definidos por redes ego-
centradas, escalares, concêntricas e contínuas, conforme ocorre na maior parte da
Amazônia (Viveiros de Castro, 1993). Essas redes dependem da presença da Funai na
maior aldeia, em sua maloca, ao redor da qual se estabelecem. Os casamentos se dão
preferencialmente dentro da área do Itaquaí, da mesma forma que se diz que ocorriam
exclusivamente dentro da bacia hidrográfica no modelo de endogamia do subgrupo. O
problema é, todavia, que, apesar de tudo isso, os subgrupos e seu referente ideal persistem
em apontar para um passado hipotético em que a configuração corrente do Itaquaí teria
sido impossível. É a isso que lanço meu olhar agora.
Pertencimento ao Subgrupo
No passado postulado, quando os subgrupos eram geograficamente circunscritos e
endógamos, a pergunta acerca do subgrupo de pertencimento de um Kanamari era
redundante. Uma determinada pessoa nascia filha de pais de um mesmo subgrupo, em uma
área da qual esse sub-grupo era dono’ (-warah), e onde a partir de então cresceria. No
entanto, como opera essa lógica em um contexto em que o rio não é associado com
178
nenhum grupo específico, e em que os pais de uma pessoa, e às vezes aos avós, são eles
próprios frutos de casamentos entre –dyapa distintos?
O Itaquaí pode não ser associado a nenhum grupo específico hoje, mas antes o era.
O alto Itaquaí, como vimos, fica muito próximo ao alto Mucambi, a ‘terra dos Macaco de
Cheiro-dyapa’, e foi Ioho, um homem do Mucambi, quem primeiro migrou para lá. Devido
ao status de Ioho de warah do Itaquaí, o rio era considerado, no passado, parte da ‘terra
dos Macaco de Cheiro-dyapa’, uma classificação que continua pertinente quando os
Kanamari falam das antigas capoeiras que existem nos pontos mais altos do rio. Hoje,
todavia, os Kanamari não mais associam o Itaquaí, ou ao menos a parte dele que ocupam
atualmente, a subgrupo algum. É apenas a terra dos Kanamari’, uma categoria criada ao
longo do processo de co-residência e intercasamento analisado acima, e, sendo assim, não
pode determinar pertencimento a um subgrupo.
Os Kanamari têm uma solução aparentemente simples para a questão da afiliação
subgrupal das crianças de casamentos mistos: elas pertencerão ao subgrupo paterno. Os
Kanamari são unânimes em afirmar que é o esperma paterno, sozinho, que gradualmente
forma o feto (ver também Reesink 1993, 63-4). Múltiplas copulas são necessárias para que
o feto sobreviva e se fortaleça, e os homens geralmente comentam que fazer um bebê é
‘trabalho duro’, porque o feto não resulta de uma única copulação; todos os homens que
mantêm relações sexuais com uma grávida contribuem para a sua formação. Relações
extra-conjugais são comuns e diz-se dos outros homens que ajudam a formar o feto que
eles o(h)min-man (‘fizeram outra barriga nela [na grávida]’). Estas pessoas podem ser os
‘irmãos’ do marido, ou seus afins. Foi dito a mim que, no passado, as relações extra-
conjugais costumavam ser comuns durante os rituais Hori entre as configurações multi-
dyapa no Juruá. Diz-se de um homem que ajuda a formar o feto que ele ‘roubou a criança
[do pai] na barriga da e’ (a-obarinho anyan awa niama na-ta). Uma vez que ‘roubar’ era
comum e mesmo esperado entre tawari (ver capítulo três), a idéia ajuda a reforçar a
natureza ‘afim’ que a paternidade múltipla tem. No entanto, se considera ‘pai’ (pama) da
criança o homem que está casado com a mãe quando aquela nasce. A relação da criança
com os outros homens que a ‘formaram’ pode ser ignorada sobretudo se isso estiver no
interesse da mãe –, ou ela pode os chamar pelo termo que designa ‘irmão do pai’ (mon)
134
,
independentemente do indicador de relação que deveria ser usado entre ela e a pessoa que
fez em sua mãe ‘uma outra barriga’. Até mesmo este último caso, contudo, se
concretizará se a pessoa for considerada próxima, preferencialmente co-residente, e se a
134
Os termos Kanamari para ‘paie ‘irmãos do pai’, e para ‘mãee ‘irmãs da mãenão são os mesmos. Veja a
terminologia do parentesco no Anexo A.
179
relação entre os pais da criança e essa pessoa o permitir. Na maioria dos casos, relações de
paternidade múltipla são simplesmente ignoradas.
A transmissão patrilateral do pertencimento ao subgrupo nada tem, portanto, a ver
com a transmissão de substância. Afiliação e substância tendem a coincidir porque a
substância, conforme observou Vilaça (2002, 352), se consolida no curso das relações
sociais, e, nesse mesmo âmbito, é a afiliação do pai que acaba por dar a medida do
subgrupo da criança, independentemente das relações que sua e tenha mantido durante
a gravidez. Este parece ser o caso, uma vez que até mesmo as crianças que são socialmente
reconhecidas como fruto de relações correntes de uma mulher com homens que não o
marido são classificadas de acordo com o subgrupo deste: ele caçará para a criança, cuidará
dela e a criará, e, assim, será a sua identidade que importará para a criança. É este o
princípio expresso no diagrama 1, em que todas as crianças de casamentos mistos são
representadas como pertencentes ao subgrupo do pai.
Em seus limites, todavia, essa flexibilidade desafia toda a idéia de transmissão, uma
vez que, se um casamento termina, a criança passará a ser reclassificada de acordo com o
subgrupo do homem que a partir de então a criará. Era este o caso de duas crianças que, ao
nascerem, costumavam ser Japó-dyapa, como o pai. Depois da morte da e, no entanto,
passaram a ser criadas pelos avós maternos, um Caititu-dyapa e uma Macaco Paruacu-dyapa.
Hoje as crianças são tidas como pertencentes ao subgrupo do amaterno. Isso equivaleu
a reclassificar as crianças de acordo com o dyapa da mãe, por meio dos cuidados que os
pais dessa dispensaram. A mesma situação pode ocorrer quando a mãe está viva, conforme
se deu com dois proeminentes Japó-dyapa mesma classificação da mãe que perderam o
pai, um Macaco Prego-dyapa, quando ainda muito novos.
Este ultimo caso, contudo, aponta para uma outra possibilidade. Os dois meninos
foram criados pela mãe no Mawetek (‘a terra dos Japó-dyapa’), na companhia dos parentes
da e. Conforme Vilaça notou entre os subgrupos análogos dos Wari, “a identidade de
uma pessoa não é dada pelo lugar onde nasceu, mas é algo construído durante a vida, a
partir das relações que ela vai estabelecendo” (2006, 91). No contexto dos primeiros
intercasamentos, podemos acrescentar que, se o lugar de nascença deixou de ser o fator
determinante da afiliação, esta, agora, passou a se delinear de acordo com o local em que
uma pessoa cresce.
Verdade seja dita, é comum que a afiliação subgrupal permaneça indeterminada no
nascimento, sobretudo se a criança for a primeira do casal. Não pressa em se clamar a
vinculação da criança a este ou aquele subgrupo (ver também Vilaça, 2006, 92) e, de fato,
180
não seria incorreto dizer que muitas crianças o têm subgrupos. Em mais de uma ocasião
em que perguntei acerca do subgrupo de afiliação de um recém-nascido me foi respondido
simplesmente “não sabemos”. É verdade que geralmente me diziam, depois, que a criança
pertencia ao subgrupo do pai, mas os casos que acabamos de verificar mostram que isso
está sujeito a mudanças. Parece haver, então, uma inflexão da ‘regra’ patrilateral, baseada na
conjunção entre o subgrupo materno e as pessoas entre as quais uma criança cresce.
Em função disto, algumas pessoas mantêm identidades subgrupais múltiplas, e se
dizem ‘mistas’, ou que o uma mistura do subgrupo X com o Y. Eles usam a palavra
‘misturado’, em português. A palavra Kanamari ihkina significa ‘misturar’, mas parece
aplicar-se exclusivamente a gêneros alimentícios. Certa vez sugeri que um indivíduo que
clamava pertencer a certo subgrupo fosse, em verdade, ihkina com outro subgrupo, e
todos caíram na gargalhada. Eles me disseram que, a não ser que eu quisesse comer a
pessoa a que me referia, eu deveria dizer ‘misturado’. Pessoas ‘misturadas’ têm a faculdade
de se dizerem pertencentes a mais de um subgrupo, e geralmente enumeram todos os
vínculos quando perguntados de forma direta. A identidade múltipla resultante não é
necessariamente usada de forma instrumentalista, de modo que uma pessoa clame
pertencer a certo subgrupo X quando estiver entre membros deste. Isso não surtiria efeito
algum, caso a pessoa o fizesse, uma vez que é sabido que ela é ‘misturada’, e o há motivo
para que ela o negue. Conforme me disse certa vez uma mulher, enquanto eu insistia em
estabelecer uma única identidade a ela, “Eu sou muitas” (adu wih), e era isso que ela queria
enfatizar.
Se a afiliação subgrupal é mais ou menos indefinida no nascimento, e pode ser
‘misturada’ na fase adulta, pessoas mais velhas (kidarak, idosos) tendem a se identificar com
um subgrupo de forma bastante inequívoca. dois motivos para isso. Primeiro: por
serem idosos, ainda são associados aos tempos remotos da endogamia subgrupal, uma
época em que os intercasamentos eram raros ou inexistentes, e, sendo assim, as pessoas
nasciam de pais pertencentes a um único –dyapa, em uma bacia hidrográfica ocupada
exclusiva ou majoritariamente por seu subgrupo, indexada pela presença de seu chefe ou
chefes. Segundo: mesmo que seu pertencimento não seja inequivocamente associado a um
único subgrupo, a indefinição que deriva da identificação com muitos tende a se ofuscar
sob uma pertença exclusiva. Isso consiste em um processo gradual de crescer e conviver
com pessoas específicas das quais se cuida (-wu) e pelas quais se é cuidado. Com a idade,
uma pessoa se encontra enredada em situações relacionais definidas através do tempo, que
181
também passam a defini-la, e, por isso, muitas ambigüidades se resolveram ou
dissiparam.
ainda um ponto que regula o pertencimento a um subgrupo. No capítulo um,
defini os subgrupos como sendo, em grande parte, uma função do chefe do subgrupo, e
disse que subgrupos destituídos de liderança tendiam a mover-se na direção de outros,
conduzidos por um chefe, modificando então sua identidade por meio do processo de
viver através de outro corpo/dono. Este caso foi certamente o que se deu com Ioho. Se
viver no Itaquaí não extirpou identidades subgrupais prévias, não obstante, permitiu que
muitas pessoas passassem a se identificar com os Macaco de Cheiro-dyapa. O processo de
tornar-se gradativamente pertencente a outro subgrupo, por morar-se com um novo
warah, é expresso na frase ‘tornar-se X-dyapa(X-dyapa-pa), representativa do fato de que as
pessoas, com o tempo, assumem uma nova identidade dyapa baseada no subgrupo de seu
chefe. O caso de Dyumi é paradigmático dessa situação e de alguma outras acima
descritas
135
. Ele costuma dizer-se Japó-dyapa, como seu pai Nohin. Ele diz, às vezes, que é
‘misturado’ com Macaco Prego-dyapa, que era o subgrupo de sua mãe. No entanto, por ter
sido seu pai um dos primeiros Japó-dyapa a se mudarem para o Itaquaí, e por ter vivido
com Ioho, Dyumi também reivindica ser Macaco de Cheiro-dyapa, pois seu pai se tornara
um Macaco de Cheiro-dyapa (Kadyikiri-dyapa-pa) ao viver tendo Ioho como seu -warah.
A maioria dos indivíduos, sendo assim, são produtos de uma série de interações
subgrupais que podem incluir, em graus variados, os dyapa paterno e materno, os lugares
onde nasceram e cresceram. Essas relações são todas parte constituinte de uma pessoa e se
expressam dentro dela. O corpo (-warah) contém essa diferença, individualiza essa
multiplicidade, e apresenta essas relações como uma única pessoa, que pode, não obstante,
ser muitas’. Essas relações atravessam os indivíduos, estabelecendo entre eles
descontinuidades e criando um princípio de diferenciação que vai de encontro à ordem
continua e concêntrica das alianças egocêntricas acima definidas. O Itaquaí não é mais um
lugar onde as descontinuidades espaciais e sociológicas coincidem, como no modelo de
endogamia subgrupal; é, em vez disso, residência de indivíduos múltiplos que favorecem a
fusão entre distâncias sutis.
É papel do chefe do subgrupo conter essa variabilidade, apresentar a bacia
hidrográfica múltipla como sendo uma unidade. Para que este capítulo possa se concluir,
então, é necessário considerar como isso se faz.
135
Dyumi é representado pelo número 19 no diagrama 1.
182
Fazendo Chefes
A informação relativa ao funcionamento da endogamia subgrupal que me foi mais
difícil de obter envolvia as relações entre as diferentes gradações de warah. Enquanto
tornou-se claro para mim, bem cedo, que o chefe do subgrupo agia como condicionante de
aldeias menores estabelecidas distante da aldeia central, não era muito evidente o que os
habitantes desses assentamentos periféricos faziam quando iam ao encontro ao chefe, e por
que a presença deste representava uma condição sine qua non para a existência de tudo mais
na bacia hidrográfica. Nesta seção e na próxima, quero considerar esses papéis. Para fazê-
lo, começarei discutindo algumas relações que podem ter vigorado no passado, levando em
conta o que me foi contado pelos Kanamari. Na seção seguinte, considerarei algumas das
mudanças por que passou esse modelo de sociabilidade no Itaquaí. Acredito que, por meio
de uma justaposição desses debates, poderemos nos aproximar da revelação de uma
imagem de um tipo de sociabilidade centrado em diferentes escalas de liderança.
Os Kanamari me disseram três coisas acerca da maloca: primeiro, que sempre
havia fartura porque todos ajudavam a preparar comida; segundo, que a fartura também se
devia às antigas capoeiras que cercavam a maloca. Finalmente, disseram que também iam
para para participar de rituais como o Kohana-pa (‘devir-Kohana’) e o Pidah-pa (‘devir-
Jaguar’), que, por sua vez, ajudam a assegurar a continuidade da produtividade das
capoeiras. Considerarei, brevemente, essas correlações.
Trabalhando juntos
A palavra Kanamari bu significa ‘fazer’, ‘produzir’ e pode ser usada em um espectro
de contextos, a maioria dos quais envolve atividades mundanas e repetitivas. Koya-bu, por
exemplo, significa fazer caiçuma’, e implica ir à roça, trazer de volta mandioca, descascá-la,
cozinhá-la e peneirá-la. Wakwama-bu quer dizer ‘fazer vestimentas rituais’, e envolve ir à
floresta ou à roça para obter o material bruto (geralmente folhas de palmeiras), trazê-lo de
volta à aldeia, construir o tear para a confecção das vestes, e, finalmente, tecer as roupas.
Bahonim-bu quer dizer “fazer roças”, e inclui escolher um local, limpá-lo, queimar restos de
plantas, plantar, cuidar dos brotos e por em diante. Todos esses processos são atividades
coletivas que são consideradas trabalho árduo pelos Kanamari e que os cansam.
Os Kanamari dizem de todas as atividades coletivas que elas são realizadas da-
wihnim, ‘junto’. Acabamos de ver que wihnim tem o significado de ‘parente/muitos’. O
183
afixo da- indica que uma ação se realiza ou que um estado é alcançado por um curto
período de tempo, ou até que o foco da atuação de uma pessoa muda. ‘Dormir’, por
exemplo, é kitan, mas tirar um cochilo’ é da-kitan. ‘Dar’ é nuhuk, mas ‘dar antes de ir a
outro lugar’ e ‘emprestar’ é da-nuhuk (ver Groth 1985). Sendo assim, ‘junto’ literalmente
significa ‘ser parente/muitos por determinado período de tempo’, ou ‘ser parente/muitos
antes de seguir para outro lugar’, e situa a ‘unidade’, inclusive o trabalho coletivo, como um
momento de produção do parentesco. Fazer coisas da-wihnim torna as pessoas parentes
enquanto dura o ato, mas o parentesco o necessariamente se desfaz quando a ação
termina. Se as pessoas começam a apreciar a feitura de coisas em conjunto, podem optar
por fazê-lo com freqüência, talvez até passem a morar juntas e tornar-se parentes entre si.
muitas coisas que podem ser feitas em conjunto, e todas conduzem a relações
de parentesco, mas nem todas se associam com ‘trabalho’. Minha análise, no entanto,
focará exclusivamente as ações conjuntas relacionadas com trabalho. Não um termo
Kanamari geral que designe ‘trabalhar’, apesar de o verbo em português (trabalhar) ser
comumente usado. O uso da palavra portuguesa não surpreende, uma vez que muitos
Kanamari trabalharam para patrões da borracha das indústrias madeireiras, e também por
ser um termo freqüentemente empregado pela Funai. Eu sugeriria que ‘trabalhar’ sempre se
utiliza em contextos em que coisas são ‘feitas’, ‘produzidas’; ou seja, onde a expressão
Kanamari -bu, ‘fazer, produzir’, poderia ser empregada. A expressão ta’anyam-bu
‘fazer/produzir estas coisas’ costuma ser um sinônimo contextual para trabalhar’, utilizada
sempre que o tipo de atividade produtiva a se executar já tenha sido predefinido no
discurso.
Bu pode vir como sufixo de quase qualquer coisa para indicar o processo de sua
feitura. Há uma área de superposição semântica entre o conceito de bu e o de man ‘fazer’. A
expressão ta’anyman-man, por exemplo, pode significar ‘fazer estas coisas’, e pode envolver
atividades que poderiam ser expressas pela palavra bu. Talvez possa se dizer que
‘fazer/produzir’ seja uma modalidade específica de ‘fazer’, sendo a principal diferença entre
as duas que bu implica a transformação de algum material em outro por meio de uma ação
intencional e coordenada. Para se enfatizar isso, pode-se posicionar ao final da sentença a
partícula intencional hu, que acentua determinação em relação a uma coisa que precisa ser
feita. A partícula hu também pode ser usada para sinalizar intencionalidade em outros
verbos (mas não em man), mas, na maior parte das vezes, acompanha bu (ver Groth 1988,
62).
184
A partícula hu não apenas indica intencionalidade de um ato de ‘fazer/produzir’,
mas também o socializa e o coordena. Qualquer um pode fazer um cesto provisório e
descartável (tom) na roça para carregar colheitas para casa, um ato a que os Kanamari se
referem como tom-bu. Mas reunir a maioria ou a totalidade das mulheres da aldeia para
confeccionar os lindos cestos de cipó titica (tori), para vender para os brancos em Atalaia
do Norte, requer certo grau de coordenação, e, portanto, esse ato é designado por tori-bu
hu. Esses atos produtivos coletivos, executados em conjunto (‘da-wihnim’), requerem,
portanto, a intervenção de alguém que mobilize as pessoas em direção a um objetivo
específico. Idealmente, essa tarefa caberia ao chefe/corpo/dono (-warah). O chefe tem de
‘ordenar’ (nobu) que as pessoas façam alguma coisa que beneficie uma coletividade. Embora
eu careça da competência lingüística necessária para desmembrar a palavra ‘ordenar’, nobu,
em suas partes componentes, eu sugeriria que a última sílaba signifique precisamente
‘fazer/produzir’. O chefe é a pessoa que possibilita a ação em conjunto, que faz com que as
pessoas produzam coisas, e esta é uma das funções primárias que lhe são explicitamente
atribuídas. A época em que os Kanamari viviam com ‘bons chefes’, como Ioho, é
romanceada como aquela em que todos trabalhavam juntos; em que o havia brigas entre
os co-residentes e em que ninguém carecia dos bens necessários.
O chefe é alguém que faz com que as pessoas trabalhem ‘juntas’, o que equivale,
conforme vimos, a produzir o parentesco, mesmo que somente enquanto durar o ato.
Vimos também que, se a palavra -wihnim pode ser usada para designar, geralmente, grandes
números, para que assuma o significado mais específico de ‘muitos que são relacionados’,
deve ser acompanhada de um prefixo (X-wihnim). Ao direcionar e coordenar as pessoas em
suas ações tendo em vista um objetivo específico, o chefe se torna o prefixo dos muitos:
eles se tornam, então, ‘os muitos dele’ ou, como preferem os Kanamari, ‘sua gente’ (awa
tukuna). O sucesso do chefe é condicionado à sua habilidade de manter ‘sua gente’: eles
devem trabalhar, comer, brincar e executar rituais juntos (da-wihnim). Eles devem interagir
com as pessoas de outros chefes, mas nunca considerar que a vida sob o outro seja melhor
que a vida sob o seu próprio chefe. O chefe mantém seu povo estável e, assim, permite que
o parentesco se estabeleça entre eles e em relação a ele.
Comparilhando Carne
‘Parentes verdadeiros’ moram (-to), idealmente, juntos nas aldeias. O chefe da aldeia
assegura que eles permaneçam juntos, e é geralmente um homem mais velho e parente.
185
Dentro dos grupos dessa aldeia, as coisas são ‘dadas’ (nuhuk) a todos através do chefe, que
age de modo a ‘conciliar’ ou ‘reunir’ recursos em seu lar
136
. Os Kanamari foram bem
específicos em relação ao seguinte: a caça é levada à casa do chefe, onde é desmembrada
(hai-bu, ‘fazer/produzir a carne’) e ‘dada’ aos aldeões. algumas prerrogativas ligadas a
isso. Não existe, entre os Kanamari, o hábita de reservar ao chefe da aldeia certos cortes de
carne, mas ele provavelmente receberá maior quantidade da caça
137
. Os caçadores
geralmente regressam no fim da tarde, e a carne compartilhada nessas ocasiões é distribuída
e cozida privadamente nas moradias. No entanto, na manhã seguinte as pessoas se reúnem
na casa do chefe para planejar as atividades do dia e comer sobras da noite anterior, que
o chefe, por ter recebido quantidade maior de carne, tem (ver capítulo seis para uma análise
sobre as caçadas e o tratamento dispensado à carne da caça).
Quando das reuniões na maloca, o imperativo de se comer ali dentro teria sido mais
forte. Esses eram momentos turbulentos, que reuniam ‘parentes distantes’, que se viam
com pouca freqüência. Eram tempos de conversar, arranjar casamentos, e avaliar a
possibilidade de se mudar para um novo lugar. Quando uma aldeia decidia se deslocar para
a maloca, o chefe dessa aldeia fazia com que se caçasse para que houvesse ‘carne defumada’
(bara-hai-korohnim) para levar. Esta carne era classificada como ‘hak nyanim-warah-n-ama’,
‘para o corpo/dono da maloca’, e era ‘dada’ ao chefe no ato da chegada à maloca.Isso
provavelmente não se dava exatamente assim, primeiro porque o chefe do subgrupo era o
‘dono’ da maloca’ através de todos os membros do subgrupo, e vice-versa. Em outras
palavras, a carne que se levava deveria ser apreciada por todos que se reuniam, mas era o
chefe do subgrupo que possibilitava isso. No capítulo um vimos, a partir da descrição de
Tastevin acerca do que era a maloca, que cada família tinha suas redes amarradas em um
canto da construção onde fazia, também, uma pequena fogueira. Os Kanamari com os
quais conversei validaram essa versão, mas insistiram, não obstante, em que todos comiam
juntos, junto com o chefe de subgrupo. À noite, a distância mínima mantida entre as
pessoas reunidas seria retomada, à medida que os presentes se retiravam para seus abrigos
dyaniohak na vizinhança da maloca, cada aldeia reunida em pequenas agrupamentos de
abrigos.
Ao falarem dessas refeições coletivas sob o olhar do chefe do subgrupo, os
Kanamari dirão que o líder os ‘alimentava’. A expressão que designa ‘alimentar’ é ayuh man,
que significa literalmente ‘fazer sua carência’, ou ‘fazer sua necessidade’. Ayuh faz referência
136
Uso os termos ‘conciliar’ e ‘reunir’ como glossas para o conceito de poolingna obra de Marshall Sahlins
(1972, 94-5).
137
Um homem deu a entender que o chefe receberia o coração e o fígado de uma caça grande,
particularmente de uma anta, mas sua opinião não parece ter sido compartilhada por muitos.
186
a um desejo ou ânsia quase mecânicos. Ayuh dok, por exemplo, é ‘querer defecar’. É
diferente da palavra wu, ‘desejar, gostar’, que deveria caracterizar relações entre parentes.
O chefe do subgrupo provê a necessidade do grupo, como se os nutrisse de modo a
capacitá-los a se reunir em um único lugar. Isto é corolário do fato de que as pessoas
comiam a carne de caça disponível porque o chefe era seu ‘dono’. Todos os homens
caçariam, mas era na maloca, que por meio do chefe pertencia a todos eles, que as refeições
se faziam. Acredito que essa relação de alimentar’ é característica da sociabilidade nesse
deslocamento, pois nunca ouvi o temo ayuh man sendo utilizado para descrever processos
que ocorriam entre chefe de aldeias e seus co-residentes na aldeia. Uma importante
distinção entre o chefe da aldeia e o chefe do subgrupo, então, é a de que o último
alimentava os Kanamari, enquanto o primeiro permitia que eles se reunissem em um lugar
onde comida podia ser obtida. Explicitarei isto melhor em breve; agora só pretendo
enfatizar que a ‘alimentação’ de um subgrupo por seu chefe era um aspecto importante do
que se dava nos períodos de reunião na maloca.
Devo apontar aqui que uma questão que me escapou nesse processo diz respeito ao
papel da mulher do chefe do subgrupo. O único registro que tenho sobre ela é que, na
maloca, ela cozinharia a comida para todos. Parece-me muito improvável que ela o fizesse
sempre, mas a idéia sugere a importância da mulher do dono da maloca no ato de aprontar
a comida que era trazida
138
. É possível, embora seja incomum no presente, referir-se ao
marido de uma mulher como sendo seu ‘corpo/dono’ (–warah). Sendo assim, muitas
atividades que se associam com a mulher tornam-se, ao menos na fala, incluídas sob a
responsabilidade do marido. Os Kanamari, hoje, não têm nenhum termo que designe uma
‘mulher chefe’, nem parece que o tiveram no passado (ver McCallum 2001, 111-7). Pontuo
isto para evidenciar que a mulher do chefe deve ter desempenhado um papel importante
nessas reuniões, mas que os meus dados não se manifestam a esse respeito.
Uma palavra que nunca surgiu nas descrições Kanamari acerca de como era a vida
na bacia hidrográfica quando vigorava o modelo de endogamia de subgrupo é ‘troca(hom
ou bahom). Ao dizerem ‘trocar’, os Kanamari referem-se a dar algo e receber algo tido como
de mesmo valor quase imediatamente, como em ityaro bahom yan, ‘mulheres trocadas’, em
que uma mulher é dada e outra deveria ser imediatamente retribuída em seu lugar,
conforme me foi transmitido. As coisas, antigamente, não eram trocadas, eram dadas
(nuhuk) pelos aldeões ao chefe, e então redistribuídas; e dadas pelos membros do subgrupo
138
No caso de carne fresca (em vez de defumada), isso teria ficado mais marcado, uma vez que o processo de
‘produzir carne’ (-hai-bu) consiste em uma atividade sobretudo feminina, conforme veremos no capítulo seis.
187
ao chefe do subgrupo na maloca, que os alimentava. Mencionei acima que isso é similar à
modalidade de redistribuição que Sahlins denominou ‘pooling’:
“The domestic segregation constructed into production and property is completed by an
inner-directed circulation of the household product. [...] this centripetal movement of good
differentiates the household economy from the world even as it reiterates the group’s internal
solidarity. The effect is magnified where distribution takes the form of eating together, in a
daily ritual of commensality that consecrates the group as a group. Usually the household is a
consumption unit in this way. But at the least, the householding demands some pooling of
goods and services, placing at the disposition of its members what is indispensable to them.
On one hand, then, the distribution transcends the reciprocity of functions, as between man
and woman, upon which the household is established. Pooling abolishes the differentiation of
the parts in favor of the coherence of the whole; it is the constituting activity of a group”
(Sahlins 1972, 94)
139
.
Isso parece uma caracterização apropriada dos gradientes escalares do chefe. O que
contava como um ‘todo’ seria, é claro, ampliado da aldeia (‘a diferenciação das partes’) para
a maloca (‘a coerência do todo’), mas em ambos os casos, e em graus distintos, a presença
do chefe era uma parte necessária da redistribuição.
Não tenho como saber ao certo se de fato não havia ‘trocas’ durante as reuniões na
maloca. Vimos acima que o casamento prescrito entre os Kanamari, por exemplo, envolvia
uma troca de mulheres que se designava por uma expressão que destacava esse ponto: ityaro
bahom yan, ‘mulher trocada’ é como a mulher de cada um seria então denominada. Esses
casamentos, que eram exogâmicos do ponto de vista da aldeia, teriam de se dar quando
aldeias se encontravam, e, sendo assim, suponho que aqueles tempos de reunião em torno
da maloca teriam sido um momento privilegiado para essas ‘trocas’. No entanto, aisso se
menosprezava, uma vez que meus informantes relataram que um casamento não
necessariamente implicava retribuição. O noivo ia morar com a noiva e sua família na aldeia
deles, e então passava o período de serviço da noiva que seguia a uxorilocalidade pós-
139
“A segregação doméstica constituída em produção e propriedade se completa por meio de uma circulação
voltada para o centro do produto da casa. […] esse movimento centrípeto de bens diferencia a economia do
lar da economia do mundo, mesmo enquanto reitera a solidariedade interna do grupo. O efeito se amplia
onde a distribuição toma a forma de comer em conjunto, em um ritual diário de comensalidade que consagra
o grupo como grupo. Vista assim, a casa é geralmente uma unidade de consumo. Mas sua manutenção exige,
ao menos, alguma reunião de bens e serviços que deixem à disposição dos moradores o que lhes é
indispensável. De um lado, então, a distribuição parece transcender a reciprocidade de funções, como entre
homem e mulher, sobre as quais uma casa se estabelece. A conciliação abole a diferenciação das partes em
favor da coerência do todo; é a atividade constitutiva do grupo.”
188
matrimonial. “Se o garoto e a garota se gostassem, simplesmente se casavam”, disseram os
Kanamari
140
.
Havia, contudo, um momento em que a maloca se tornava o ponto central das
relações baseadas em ‘troca’. Sabemos que era durante o período de agregação que os
rituais Hori entre –tawari s
e articulavam, e que eles se davam em torno da maloca. O todo da empresa Hori, vimos no
capítulo um, envolvia estimular e provocar os tawari a agirem como parentes, ‘darem’
coisas, para depois deixar claro que os tawari são, em verdade, miseráveis (nihan) e nem
um pouco similares a parentes. Por isso, era muito melhor fazer troca’ com eles, como se
fez com Jarado quando ele lhes deu brincos e roupas e eles lhe deram carne defumada, que
os Kanamari ficaram felizes em saber que ele comia.
Fazendo roças
No caso das aldeias, terras para plantio eram limpas em seus arredores. A limpeza
requeria que um lugar adequado fosse encontrado, e isso era uma consideração central ao
se escolher onde a aldeia deveria ser estabelecida. Uma vez identificado um lugar, e prestes
a começar o trabalho de preparação dele, passava a ser chamado de roça’ (baohnim). O
local era escolhido durante o processo de ‘conhecimento da terra’ (ityonim tikok). O
conceito de ‘conhecimento da terra’ é o mesmo que os Kanamari utilizam para dizer que
alguém ‘vive bem’, é generoso com os parentes, observa as interdições ligadas ao parto e à
primeira menstruação, mantém uma disposição calma (em vez de ‘raivosa’, nok), e assim
por diante. Ou seja, saber como fazer uma roça, em terra adequada, é um aspecto do ‘viver
bem’.
Novas roças eram provavelmente preparadas anualmente. Mesmo depois de serem
aprontadas, as antigas continuavam produtivas e eram visitadas por muitos anos. Roças
antigas (baohnim kidak) são um estado importante entre roças (baohnim) e capoeiras (baohnim
padya, literalmente ‘roças vazias’). Elas marcam, dessa forma, uma transição importante
entre uma atividade passada que se deu ‘recentemente’ (bati nahan ti) em roças antigas e
outra que se deu ‘há muito tempo atrás’ (tyanimham), e cuja atividade possivelmente se situa
140
Além disso, parece-me pouco provável que as pessoas de aldeias diferentes se encontrassem na maloca.
É muito provável que se encontrassem durante períodos de dispersão das aldeias que não impunham como
conseqüência reunião imediata na maloca, como durante os meses de verão, quando se coletavam ovos de
tracajás. Não segui esta intuição enquanto em campo, e os Kanamari, de acordo com minha conduta, me
contaram acerca do que acontecia na maloca. Pode ser que, nesses encontros menos formais, sem a presença
do chefe subgrupal, outro espectro de formas de ‘dar’ e de ‘trocar’ se consolidassem.
189
além da memória coletiva dos Kanamari, em capoeiras. Os Kanamari vêem a terra em volta
de suas aldeias como áreas de plantação, de velhas roças e de capoeiras que a ocupação
sucessiva dos homens destituiu da floresta (ityonim) que as cerca.
Conforme acontece com os Kulina, a aldeia Kanamari deve ter ao menos um lote
de roça coletiva, que é limpa e plantada coletivamente por um grupo de famílias sob
liderança de um líder de aldeia, e é então subdividido” (Lorrain 1994, 198). Não tenho
certeza se a escolha do local era feita em coletividade ou se o chefe o selecionava, mas o
trabalho do último era essencial no que tange a organização do trabalho de limpeza do
terreno. Os Kanamari praticam a agricultura de coivara, em que a primeira medida consiste
em limpar a futura roça de vestígios de floresta com a ajuda de um terçado, um processo
denominado por esses ameríndios de baohnim-tokaki(cortando o roça). A prática se
geralmente em meados de maio, próximo ao fim da estação chuvosa. O passo seguinte
implica derrubar as árvores do local, ‘baohnim-tukihik(talhando o roça), então com uso de
machados
141
, um processo longo, que se estende de maio a junho. Os Kanamari então
esperam por um período considerável de seca, normalmente por algum momento entre
agosto e setembro, para ‘incendiar a roça’ (baohnim-bohi)
142
. É então que se faz a divisão
dos lotes do roça. Mas mesmo então, nas aldeias pequenas e estreitamente ligadas, não
injunção de se colher de uma parte específica da roça, contudo que novas espécies sejam
plantadas. Isso vale apenas para as pessoas que limparam um roça em conjunto. Gente de
outras aldeias que colhem de uma roça que não ajudaram a aprontar estão ‘roubando’
(obarinho).
Dessa forma, grande parte do processo de se fazer uma roça, se não ele todo, é
conduzido ‘em conjunto’ (da-wihnim) por iniciativa de um líder. Limpar um lote de roça e
montar uma aldeia eram atividades sinônimas que necessariamente deviam se dar
simultaneamente. Casas eram construídas em dado local enquanto o roça também era
preparado, e a mandioca começava a ser plantada logo depois de incendiados os campos. A
nova aldeia teria dependido, ainda, do apoio de aldeias vizinhas que tinham roças, ou talvez
da produtividade contínua das roças que foram deixadas para trás. Mais importante,
141
No passado isso se fazia com machados de pedra (tyanawa otyowi). Foi dito a mim que a fonte dessas pedras
(tyanawa) eram difíceis de se encontrar, e que os machados eram muito inefetivos. Nenhum dos meus
informantes se lembra de tê-los usado, apesar de muitos terem os visto quando jovens, espalhados pela aldeia.
142
De oitenta a noventa por cento do roça Kanamari são reservados para o plantio da mandioca doce (tawa).
As espécies mais abundantes a seguir são as bananas, das quais os Kanamari cultivam grande variedade.
Mamão, cana-de-açúcar, abacaxi, pimentas, abóbora e melancia também se cultivam. Milho também se planta,
mas em pequena quantidade. O veneno para peixe conhecido por kopina é uma espécie selvagem, mas os
Kanamari são cuidadosos no sentido de, ao limparem uma roça, não derrubar seus arbustos. Os brancos que
moravam no Itaquaí costumavam cultivar limões e goiabas, e, na maior parte das vezes, os Kanamari também
preservam essas árvores, apesar de elas geralmente remanescerem em capoeiras ou em áreas em torno da
aldeia, mais que nas roças propriamente ditas.
190
todavia, uma nova aldeia contava com as sempre produtivas ‘grandes roças’ (baohnim
nyanim) que cercavam a maloca, em direção aos quais se faziam excursões de pequena
escala. A construção de casas, a limpeza de arbustos silvestres e a providência de comida
eram, para as pessoas que se estabeleciam em um novo sítio, parte integrante e simultânea
ao processo de fazer as pessoas viverem juntas. É bastante provável que isso, por si só,
constituísse precondição suficiente para o estabelecimento de alguém como chefe, o
corpo/dono das pessoas que, por meio da coordenação do trabalho, ele fixou em uma
aldeia. O que Lorrain classifica de ‘lote coletivo’ para os Kulina (op. cit.), os Kanamari
chamariam de ‘lote do chefe’. Foi o trabalho dele que mobilizou as pessoas para o roça, e
sua presença que fez as pessoas morarem juntas. Ele era o dono (-warah) da roça, e sua
presença e atividade constante garantiam a continuidade da plantação. ‘Ser coletivo’ e ‘ser
do chefe’ devia apontar para a mesma coisa.
O cultivo de um roça gerava um pouco de apreensão. As pessoas se questionavam
se haviam escolhido o melhor terreno, e qualquer mudança inesperada no tempo as deixava
preocupadas. Se era perto do fim de julho e as chuvas ainda não tivessem cessado, os
Kanamari começariam a questionar se a estação seca de fato chegaria e se a terra
conseguiria ficar suficientemente seca para a queima da vegetação daninha. Era
particularmente importante que nenhuma sucuri fosse morta durante esse período, porque
os Kanamari dizem que a cobra engole a água vindoura, assegurando, assim, que o rio
seque na época da seca. Se uma sucuri fosse morta, ela expeliria a água que acumulou,
provocando mais chuvas e adiando a chegada dos meses de verão, e, junto com eles, a
‘queima do campo’. Mas quando finalmente se tornava possível incendiar as terras, os
moradores das aldeias ficavam ‘felizes’. A palavra que designa ‘felicidade’ é nobak, e nessas
situações geralmente vem acompanhada do afixo ta, que implica que algo aconteceu para
ou por causa de alguma coisa específica: ma-ta-nobak mawa baohnim, ‘eles estão felizes por
suas roças’. Muitos Kanamari então se pintavam com tinta de jenipapo e de urucum, e as
aldeias ficavam tranqüilas, com pessoas acordadas até tarde da noite a conversar e a contar
histórias. Uma outra colheita anual teria virtualmente se garantido, e logo, em poucas
semanas, seria tempo dos rituais Kohana-pa e Pidah-pa na maloca, onde a produtividade da
roça está assegurada.
Os sentimentos de alegria e de tranqüilidade que a feitura de uma roça
proporcionava eram indicadores de uma aldeia saudável. Mesmo sendo a época da queima
um período excepcional, quando mais coisas aconteciam em uma aldeia Kanamari do que
nos solenes meses de chuva, ainda assim era uma expressão do sucesso do cotidiano de
191
‘viver bem’ que os Kanamari denominam ‘conhecer a terra’ (ityonim tikok). O fato de ter
sido necessário tanto trabalho para se chegar a um grau mundano de bem-estar não
representa uma peculiaridade etnográfica do Itaquaí. A ênfase amazônica nas relações de
convivialidade, tão freqüentemente vistas pela perspectiva dos viajantes estrangeiros como
‘chatice’, requer trabalho. Conforme observa Gow para os Piro, “a monotonia do cotidiano
se revela absolutamente intencional, é uma conquista” (2000, 61).
Pode ser injusta a caracterização que fiz do período de queima de coivaras como
sendo ‘mundano’. Era mais um momento em que as atividades coletivas começavam a ser
retomadas e em que os rituais, durante os quais as aldeias se reuniam, eram
contemplados. Era uma época de alegria. Todavia, se os Piro preferem a ‘monotonia’
cotidiana dos ciclos diários, os Kanamari rememoram, e enfatizam, esse momento que
antecede o tumulto, o silêncio que precede a tempestade. Trabalhar em conjunto nas roças
representa um momento em que a convivialidade ruidosa da boa vida em aldeia era
alcançada, e uma vez que esse tipo de situação poderia não se reproduzir durante os meses
de seca, os Kanamari sempre o aproveitavam ao máximo.
O deslocamento em direção à maloca, que se seguia ao estabelecimento de uma
unidade de aldeia-e-roça, não era marcado pela necessidade incerta de se achar roças longe
dali. A fertilidade dos roças da maloca costumava ter fama de ‘inesgotável’ (hawak
nyohimtu
143
). De fato, era ela que propiciava a produtividade dos roças das aldeias, uma vez
que era que os Kanamari selecionavam os gêneros que plantavam nas roças de suas
aldeias. Era o que ali crescia que vinha a ser produzido, depois, nos assentamentos
Kanamari, do ‘tronco’ da maloca para os galhos das aldeias que dele ‘brotavam’. Por este
motivo, me foi dito, as roças da maloca pertenciam ao chefe do subgrupo e, por meio dele,
a todos os membros do subgrupo. Era, mais uma vez, o chefe do subgrupo que os
‘alimentava’, que os capacitava a terem uma fonte segura de comida e a obter os neros
que cultivariam e consumiriam nas aldeias. Não deveria ter havido divisões internas nos
roças da maloca, porque neste nível, em que todas as diferenças se suprimiam sob um
único corpo, não deveria haver divisões internas no subgrupo.
Devo reiterar que isso tudo se baseia, em grande medida, no que me foi contado
pelos Kanamari sobre o tipo de relações que teria prevalecido no passado. Da mesma
forma que continuo não convencido da opinião deles sobre o modelo de endogamia
subgrupal que se mantinha, também duvido que esse tipo de freeflowing sociability (Descola
1996, 108) teria caracterizado a reunião de pessoas que haviam optado por viverem longe
143
Hawak significa ‘terminar’. Nyohimtu quer dizer uma impossibilidade, algo que não pode, física ou
realmente, acontecer. Um aleijado, por exemplo é tido como ‘dyahi nyohimtu’, ‘incapaz de ficar em pé’.
192
umas das outras. Não obstante, sua pertinência como modelo de sociabilidade é
importante, e grande parte da mitologia Kanamari trata da explicação de como esse modo
de relação baseado no conceito fracionário de –warah surgiu, conforme veremos no
capítulo que segue.
Capoeiras
A produtividade da maloca não se limitava à roça; vimos que o lugar era cercado
por capoeiras, e que esta talvez tenha sido sua característica determinante. Capoeiras e
terras cultivadas abandonadas costumavam cercar a área em torno da roça, criando, assim,
um tipo de ordenação concêntrica do espaço que assim se organizava de fora para dentro:
capoeiras ? roça ? maloca. No capítulo um argumentei, tendo em vista um contexto de
discussão acerca da reuniões Hori, que essas capoeiras eram associadas com os ancestrais
sem nome, os nowarahi, que muito haviam morrido. Os mortos tornam-se nowarahi
depois do período de luto, ao terem seu cabelo ritualmente enterrado durante o ritual do
devir-Jaguar, que os associa às palmeiras, de crescimento lento. Também mostrei que
uma certa ambigüidade nisso, uma vez que o morto se torna mowarahi, mas que os vivos
precisam tornar-se jaguares para que isso se dê, e que os adyaba parecem surgir como
contrapartida ao processo de transformar o falecido em um dos ancestrais sem nome que
se fundem com a paisagem. Discutirei esse processo em pormenores no capítulo sete,
quando considerar as crenças Kanamari em relação à morte e as ambigüidades inerentes à
ancestralidade vegetal que resulta do devir-jaguar’. Por ora quero vincular o chefe do
subgrupo às capoeiras, para mostrar como é sua relação com os mowarahi que ajuda a
defini-lo como ‘dono/corpo’ de um subgrupo.
Deveria ser possível oferecer uma interpretação semântica à palavra mowarahi. A
raiz do termo é claramente warah. Não estou certo em relação ao sentido do afixo mo-’
144
.
O sufixo parece ser hi, que significa ‘líquido’. Isso pode ser uma referência aos solos
saturados em que muitas palmeiras crescem. Por exemplo, a área dos buritizais se chama
ihkira-hi, ‘líquido buriti’. Suspeito, então, que tyo-mowarahi, agora prefixado com o pronome
que designa a terceira pessoa do plural, queira remeter a algo do tipo ‘nosso corpo/dono
líquido’. Essa interpretação estaria de acordo com as opiniões Kanamari, que dizem que os
mowarahi são ligados à terra, mas que, ao mesmo tempo, são destituídos de forma, estando
144
O afixo ma-’ é um locativo que indica que uma ação ocorreu num dado lugar, definido contextualmente.
Em alguns casos, onde harmonia vocálica, esse afixo se torna mo-’, como em a-mo-hori, ‘ele vomitou [em
determinado lugar]’. Não obstante, isso não se aplicaria a mowarahi, situação em que não haveria razão
fonética para que ‘ma-fosse substituído por mo-’.
193
em harmonia com a paisagem em si. Isso pode ser expresso como um ‘corpo líquido’, que
satura a terra em torno da qual os Kanamari estabelecem suas malocas; retalhos de
ancestralidade que dão origem às palmeiras.
Vimos acima que as espécies de palmeiras, particularmente aquelas que dão frutos e
que, para os Kanamari, são primeiramente buriti (ihkira), pupunha (tyo), açaí (dyan) e patuá
(toda), crescem por terem suas sementes dispersadas nas areas em volta da aldeia e
sobretudo nos arredores da maloca. Conforme foi dito, essas espécies podem demorar até
vinte anos para alcançar maturidade. Não sei ao certo quanto tempo uma maloca Kanamari
costumava durar no passado, mas pode ter sido um período bem mais curto que esse.
Exemplos comparativos sugerem que em algumas regiões, como a do alto Rio Negro, uma
maloca dure não mais que oito ou dez anos, período depois do qual ela seria destruída
(Hugh-Jones 1979, 28). No entanto, eu não acredito que isso reduza de forma alguma a
ligação entre a maloca e a capoeira. Deve ser lembrado que, no modelo de endogamia do
subgrupo, a maloca seria o único assentamento situado em um afluente do Juruá, e não em
um córrego que neste rio deságua. A maloca deve, assim, ser localizada em uma área de rio,
que é, acima e abaixo, pontuada por capoeiras que indicam atividades passadas dos
Kanamari que habitaram o rio. Isso se expressa por meio da organização do espaço que
cerca a maloca em formato de meia-lua, o que sempre a deixaria circundada pela grande
roça’, que por sua vez seria cercada de capoeiras, e o conjunto teria o afluente do Juruá em
um de seus lados.
A relação entre palmeiras, particular mas não exclusivamente os bosques de Bactris,
e ancestralidade é uma característica difundida das relações entre vivos e mortos na
Amazônia ocidental. Talvez tenha sido Erikson o primeiro a tornar essa associação explícita
em sua etnografia sobre os Matis os vizinhos dos Kanamari a oeste –, entre os quais “...
les palmiers sont [...] réceptacle, sinon le corps transformé, de leurs ancêtres” (Erikson
1996, 189; ver também 2001). Os Yágua da Amazônia peruana também fazem uso
extensivo simbólico e prático de ambas, palmeiras de pupunha e de buriti. No que diz
respeito à palmeira da pupunha, “Os Yágua, como muitos grupos cultivadores de Bactris,
associam a árvore com a continuidade ancestral e geracional. Dada sua periodicidade
sazonal, essas palmeiras marcam e pontuam a dimensão temporal ligada aos ciclos de
reprodução dos recursos humanos e naturais...” (Chaumeil 2001, 97). Rival demonstrou
como, para os Huaroni do Equador, os bosques das palmas de pupunha representam o
crescimento lento, a continuidade das gerações e a memória dos mortos e, mais vagamente,
que “... os horticultores do noroeste da Amazônia, como os Yagua e os Matis, e os grupos
194
de forageio da mesma região, como os Makú, os Cuiva e os Huaroni, compartilham
amplamente a mesma associação simbólica entre bosques de palmeiras de pupunha,
fertilidade, abundância e continuidade” (1996, 87-8; 1993).
No capítulo um, argumentei que o chefe do subgrupo era provavelmente o homem
mais velho da bacia hidrográfica ou, pelo menos, que assim seria concebido. Ele era a fonte
que teria dado origem a todos os outros membros dos subgrupos, e a razão pela qual estes
queriam viver próximos uns aos outros. Ele era, conforme o termo maita explicita, o
‘tronco’ que mantinha todos unidos, mesmo quando, durante partes do ano, estavam
dispersados por outras aldeias. Acredito que agora possamos estender o conceito para dizer
que o que ‘constitui’ o chefe do subgrupo, como ele costumava ser, é sua posição de
dobradiça entre a ancestralidade anciã que o precede e o corpo de parentes que dele brota.
Períodos de luto não costumam durar mais de cinco anos, depois dos quais o cabelo é
enterrado. O enterro das mechas costumava acontecer na maloca, e o chefe do subgrupo
teria, assim, enterrado muitas pessoas no lugar do qual então seria o ‘corpo/dono’. Se os
ancestrais se tornavam sem nome para a maioria dos parentes mais jovens do chefe, ele os
lembraria mais que os demais. Sua propriedade sobre a maloca baseia-se nisso, mas deve
permanecer ambígua, porque as pessoas que ele enterrou são seu ‘corpo líquido’, aquilo que
sustenta sua posição e permite que ele exista como o corpo/dono dos vivos. Foi o
processo histórico de imbuir o solo com fertilidade, expresso por meio do crescimento
lento das palmeiras que significam continuidade, que tornou o chefe corpo/dono dos
vivos, aquele que os alimenta. Em breve ele também se tornará corpo líquido, e sustentará
seus parentes vivos, os nutrirá por meio das frutas que então crescerão de um tronco
puramente vegetal.
Chefes no Itaquaí
Gostaria, agora, de me voltar para algumas das mudanças que ocorreram nessa
forma de relacionamento por meio de níveis de warah após a migração para o Itaquaí,
onde o modelo de endogamia do subgrupo transmutou-se em outro, em que se chocam
redes egocêntricas e a descontinuidade da identidade ligada ao subgrupo. vimos que
Massapê opera analogamente à tradicional maloca. Ela também é cercada de capoeiras, e
seus roças são maiores que os das demais aldeias. Mesmo à medida que novas aldeias foram
criadas, muitos Kanamari mantiveram residência em Massapê, valendo-se dos recursos de
suas roças, como quando da fundação de Bananeira, que rapidamente mencionei acima.
195
Começarei com uma consideração acerca do termo warah no Itaquaí de hoje, e o
relacionarei ao conceito de tawari, que no passado articulava warah de diferentes
subgrupos. Focarei, então, as mudanças na redistribuição que se no Itaquaí. Apesar de
essa discussão dizer respeito a eventos que testemunhei no campo, talvez ajude a elucidar
alguns dos aspectos relativos ao modelo tradicional, mostrando como ‘dar’ e ‘alimentar’ na
maloca pode ter sido diferente de ‘dar’ na aldeia.
O –warah em transformação
Hoje, o único –warah que existe no Itaquaí é a Funai Os Kanamari regularmente
chamam a Funai de ‘nosso chefe/corpo/dono’, tanto nas conversas que mantêm entre si,
quanto ao falarem comigo. Em reuniões coletivas, mantidas em Atalaia do Norte, eles
costumam referir-se ao órgão como tyo-warah, uma expressão da língua Kanamari que não
tem impacto nos funcionários da Funai, que nenhum compreende a língua. Quando os
Kanarmai se comunicam diretamente em português com os servidores da Fundação, eles
usam a palavra ‘Funai’, comumente acrescentando nossa Funai’, da mesma forma que
usam –warah ao falarem em seu língua. Fica claro, assim, que ‘Funai’ tornou-se uma
tradução possível para warah. Isso não significa que funcionários da Fundação são
chamados de warah. É, em vez disso, a instituição que é ‘chefe/corpo/dona’ dos
Kanamari (e também dos funcionários). Antes de analisar melhor isso, é preciso considerar
o impacto que a Funai teve sobre a posição de chefe da aldeia.
A chegada de Sabá pôs um freio no estado de mobilidade em que os Kanamari se
encontravam, destituídos de –warah, após a morte de Ioho de de Dyaho. Uma das primeiras
ações de Sabá foi restabelecer chefes, indicando-os, mas ele não o fez por meio do conceito
de warah. Ele os designou de tuxaua’ ou de ‘cacique’, e os Kanamari não se mostram
certos em relação a que tipo de chefes são esses. Geralmente muitos deles em cada
aldeia, e uma gama de pessoas que reivindicam o posto de ‘caciques’ para si também.
Tudo o que se faz necessário para um homem potencialmente invocar sua posição de
‘cacique’ é que seja casado e tenha filhos. A aldeia de Kumaru, por exemplo, que em 2006
tinha uma população de 65 habitantes, tinha quatro caciques e dois rapazes adolescentes
que reivindicavam, para mim, que também queriam ser chamados de ‘caciques’. Esses
chefes modernos são geralmente menosprezados, tendo em vista que as pessoas me
lembravam dos warah das aldeias de outrora, que sempre tomavam conta de sua gente,
conduziam-na na direção correta, provinham-na de tudo e propiciavam a constituição das
196
aldeias como unidades de ‘verdadeiro parentesco’. Os chefes de hoje são meramente
‘caciques’, e muitos, conforme se diz, só se preocupam consigo mesmos.
Parece-me que o que os Kanamari lamentam não é o desaparecimento do –warah da
adeia, mas sim a disseminação desta posição. Ainda é possível, por exemplo, fazer
referência aos residentes de uma aldeia por meio da articulação do nome do povoado e da
partícula –warah. Os habitantes de Remansinho são os Remansinho-warah, mas não é
possível, hoje, dizer que eles são os warah de um chefe de aldeia, conforme se fazia nos
tempos da endogamia de subgrupo. Uma frase do tipo ‘Remansinho-warah tem o
significado amplo de ‘aqueles de Remansinho’, mas a utilização do conceito warah nessa
sentença dá a entender que o conceito ainda retem uma referência à aldeia. Não há, todavia,
em termos gerais, uma figura individual que possa singularizar a multiplicidade da aldeia. A
idéia de warah da aldeia foi socializada e dissipada por um conjunto de ‘caciques’ que a
desempenham de forma debilitada e limitada.
Uma mudança um pouco diferente sofreu a posição do chefe do subgrupo, que foi
em grande parte enviesada do subgrupo em direção à Funai. Vimos que a chegada de Sabá
o colocou e, em sua ausência, a Funai no lugar de warah de todos os Kanamari do
Itaquaí. Diferentemente de Jarado, Sabá agia como chefe; visitava as aldeias, comia com os
ameríndios (em vez de estabelecer trocas com eles), e cancelava as dívidas que eles tinha
com os patrões. Ele também deu início à remoção dos brancos, e permitiu, assim, que os
Kanamari reconstruíssem suas aldeias. Mais importante, ele ‘deu (nuhuk) mercadorias
ocidentais em quantidades que os Kanamari desconheciam, e de uma qualidade muito
superior à que eles costumavam obter em trocas’ (hom) com os brancos locais. Se ele não
os ‘alimentou’, conforme o teria feito um chefe de subgrupo, ele certamente os muniu de
instrumentos para que se auto-alimentassem, providenciou terçados e machados, distribuiu
rifles, munição e anzóis.
Os Kanamari dizem que essa mercadoria
145
vem de ‘Brasília’ ou do ‘Federal’, dois
conceitos importantes que vieram junto com Sabá. Eles indicam um grau de poder que os
Kanamari até então não poderiam ter imaginado: uma habilidade de manter todos os
brancos situados e realocados por meio de relações de distribuição. É isso que o Federal
faz. Provém a Funai com mercadoria que ela pode dar aos ameríndios, além de remédios,
motores e rifles para ajudar na vigilância sobre o Vale do Javari. Também mune alguns
deles de dinheiro, em forma de benefícios de bem-estar social e de aposentadorias. Além
disso, ‘o Federal’ não beneficia apenas os Kanamari, também é ‘dono’ de todos os brancos.
145
Meu uso da palavra ‘mercadoria’, em detrimento de ‘bemou ‘comodidade’ se deve ao uso que fazem os
Kanamari.
197
Os Kanamari freqüentemente citam como os brancos de Atalaia do Norte têm acesso a
benefícios, seja por serem empregados pelo Federal’, seja por receberem o mesmo tipo de
mercadorias que eles, ameríndios, recebem
146
. Mas isso tudo é novo para os Kanamari, e,
conforme me disse um deles, eles estão ‘começando’ (makoni) a conhecer esses
benefícios agora, enquanto os brancos têm sido beneficiados pelo ‘Federal’ faz muito
tempo
147
.
‘Funai’ e ‘o Federal’ são geralmente sinônimos, mas isso se quando a Funai é
mencionada no sentido que designa a muito distante e poderosa ‘administração Federal’,
em Brasília. No contexto local, a Funai se distribui entre um número fracionário de
instituições que incluem a administração local, o Chefe de Posto e a FPEVJ. Manifesta-se,
também, em Poroya, o único Kanamari que permanece funcionário da Funai e que foi
nomeado por Sabá ‘Fiscal do Índio’, aquele que tomaria conta de seus semelhantes (‘quase
o pai deles’, ele disse a Poroya). Mencionei de forma sucinta na introdução que Poroya
tornou-se funcionário da Funai depois da partida de Sabá junto com um grupo de
Kanamari, dos quais nenhum ‘resistiu’ (kima) ao trabalho e todos se demitiram. Poroya
permanece, e essa posição que ocupa tem implicações importantes no Itaquaí. ‘
O trabalho de Poroya lhe rende um salário que, em termos locais, é substancial. Ele
utiliza sua remuneração para agir de maneira análoga à da Funai, comprando, por exemplo,
roupas baratas em fardos em Atalaia do Norte que ele distribui para o máximo possível de
habitantes do Itaquaí. Ele também compra roupas caras, que ele a qualquer Kanamari
que possa estar a seu lado quando ele recolhe seu ordenado. Ele concorda em comprar’
(oma) a produção dos Kanamari a preços inflados. Certa vez, deram-lhe uma canoa velha e
desgastada que ele ‘comprou’, pagando por ela um motor novo que valia no mínimo seu
triplo. Nesse processo de compra e venda, Poroya recebe a ajuda do Chefe de Posto, que
viaja com ele até o banco, em Tabatinga, para que possa sacar seu dinheiro. Depois, o chefe
leva Poroya a todas as suas lojas preferidas na cidade, em que ele compra suas mercadorias
para levar consigo para o Itaquaí.
Muitos funcionários da Funai dizem a Poroya que esse dinheiro é dele, um
pagamento por seu trabalho, e que ele não precisa agir como age a Funai e dar coisas aos
146
A maioria dos brancos em Atalaia do Norte que têm renda regular são empregados de instituições do
‘Federal’, que incluem suas refrações locais como Municipal’. Isso inclui escolas, o distrito municipal, Funai,
Funasa, Incra e assim por diante. Devo acrescentar que recentemente os Kanamari começaram a receber
suas carteiras de identidade outra marca do ‘Federal’ e, assim, a se tornarem aptos a receber benefícios
estatais e pensões. Eles sabem, no entanto, que outros ameríndios, como os Marubo e os Tikuna, têm tido
acesso a essas benfeitorias há mais tempo.
147
Uma idéia que talvez se assemelhe a essa é a dos ameríndios da cidade indígena de Iauaretê, no alto Rio
Negro, que dizem que “... os brancos já nascem com dinheiro no banco...” (Andrello 2006, 253).
198
Kanamari. Ele deveria, em vez disso, comprar o que quer para ele e ‘sua família’. Poroya
responde que quer ajudar os Kanamari porque, do contrário, não poderão mais caçar (por
falta de munição) ou cultivar suas roças (com terçados e machados), e que, no fim das
contas, os Kanamari também o ajudam por cultivarem as roças nos arredores de Massapê e
por realizarem pequenas tarefas na aldeia. O Chefe de Posto, enquanto isso, por meio da
administração regional, também supre os Kanamari com mercadorias. A Funai, hoje, não
mais distribui roupas, como Sabá costumava fazer; apenas distribui bens que ajudam no
cotidiano da aldeia, como ferramentas para cultivo de lavoura e geradores para
processamento de farinha de mandioca
148
. Quando o Chefe de Posto está em Massapê, ele
sempre tem um grande estoque de munição para distribuir entre os Kanamari, que, por sua
vez, agem de acordo e trazem para ele carne de caça para as suas refeições. O chefe do
posto também é fonte de outros bens, como sal, açúcar e café que, conforme dizem, os
Kanamari compram’ (oma) dele, ‘pagando’ (pagar ou ohunhuk) com produtos da roça e com
artesanato.
O Chefe de Posto e Poroya são, desse modo, refrações locais da Funai, mas ,
ainda, uma série de outros fatores que os Kanamari levam em conta quando consideram
Poroya o ‘Fiscal do Índio’. Antes da chegada de Sabá, ele era uma espécie de chefe, e sua
aldeia de Tracoá era um refúgio do fluxo migratório de brancos pelo Itaquaí. Ele é
relativamente velho, está em seus sessenta, e é ligado a todos no Itaquaí por laços de
parentesco. Além disso, a aldeia de Massapê, rodeada de capoeiras, tem se tornado mais e
mais associada à sua presença. Um sinônimo para Massapê é Poroya n-a-tatam, ‘no Poroya’.
Grande parte do sucesso do chefe reside em sua habilidade de trazer gente, sobretudo os
Mutum-dyapa, do Komaronhu para viver em sua aldeia. Esta é, evidentemente, a primeira
tarefa de um chefe, ser capaz de atrair pessoas, fazer com que queiram se agrupar e
estabelecer suas aldeias à sua volta. Nada disso, entretanto, faz de Poroya um warah, e eu
nunca ouvi ninguém do Itaquaí chamá-lo assim.
Ao mesmo tempo, o papel de distribuidores da Funai e de Poroya revela que não há
continuidade entre esse tipo de relação e aquele do tempo da endogamia dos subgrupos.
Palavras como comprar’ nunca surgiam quando os Kanamari discutiam o que deveria ter
se dado numa bacia hidrográfica no passado. Nem era ‘mercadoria’ algo que se
considerasse importante no passado postulado, antes que Ioho e Dyaho tenham se tornado
148
A venda de farinha de mandioca em Atalaia do Norte é uma fonte de renda fixa para muitos Kanamari.
Eles também utilizam cestos de farinha de mandioca para ‘comprar’ coisas de Poroya, como roupas, lanternas
e pilhas. Em 2005, a Funai abasteceu cada aldeia Kanamari com um gerador a ser usado exclusivamente no
processamento de farinha de mandioca.
199
‘aqueles que fazem com que as pessoas façam as coisas’. Focarei isso em breve, mas,
primeiro, quero considerar o destino dos –tawari.
Os –tawari em transformação
Estritamente falando, não mais tawari, ou ao menos tukuna que assim sejam
chamados regularmente. Foi isso que Poroya quis dizer, na conversa acima transcrita,
quando perguntei a ele se os Japó-dyapa que ainda moravam no Mawetek eram seus –tawari,
e ele respondeu que ‘Não, eles são apenas Japó-dyapa’. Os intercasamentos entre os vários
subgrupos podem não ter acabado com as divisões, mas instalaram um gradiente de
continuidade entre diferentes dyapa que faz com que os Kanamari sintam que não podem
chamar os parentes de seus parentes de tawari. Aqueles Kanamari que vivem na margem
esquerda do Juruá e que visitam o Itaquaí não mais o fazem nas reuniões para o Hori, que a
tribo diz não mais celebrar.
Em verdade, vimos no capítulo 2 que novos tawari surgindo, como os Matis,
que os Kanamari às vezes chamam de ‘Paca-dyapa’. Aos Flecheiros designam Capivara-
dyapa, e alguns deles também chamam os Kulina Pano de ‘Urubu Rei-dyapa’. Todos esses
povos também podem ser denominados pelo termo genérico Dyapa, mesma designação
que cabe a todos os grupos Panoa, mas se distinguem dos verdadeiros dyapa’, os Marubo e
os Kaxinawá. Não foram apenas os Matis e outros grupos Pano, no entanto, que se
tornaram tawari experimentais. O fato de a presença da Funai representar um distante e
poderoso chefe tem, conforme vimos, permitido que os Kanamari restabeleçam um grau
de distanciamento entre os clusters subgrupais que, não obstante, dependem todas da
existência da mesma ‘maloca’, Massapê. Isso permitiu o surgimento de eventos que, por sua
natureza, se assemelhariam a reuniões como as do Hori e agrupariam pessoas que vivem na
mesma bacia hidrográfica.
Estive presente a três campanhas de vacinação organizadas pela Funasa em que o
médico responsável me pediu para reunir todos os Kanamari em duas aldeias, para facilitar
a missão. Inicialmente, isso foi muito divertido para os Kanamari: eles formavam fila para
irem à outras aldeias pegar mais gente, e os chefes comandaram às mulheres que
preparassem caiçuma e aos homens que caçassem para alimentar as visitas. Em uma dessas
viagens, um homem pintou o rosto com urucum e pegou uma corneta hori feita de uma
garrafa de vidro com o fundo quebrado que ele tocou ao nos aproximarmos da aldeia. Ele e
todos os demais acharam aquilo muito divertido. Hoje, com os motores que se podem
200
ouvir a longas distâncias, às vezes até uma hora antes da chegada dos visitantes, o som do
hori talvez o seja tão necessário. Mas o mais engraçado foi soar o hori para visitar pessoas
que ele via semanalmente, com quem ele estava acostumado a viveir junto e que ele
chamava de ‘parente’. Algumas das pessoas que ele vistou riram, o chamaram de i-tawarie
o abraçaram enquanto reuniam suas coisas para fazer o trajeto para a aldeia dele.
Mas quando ele levou seus ‘hóspedes’ de volta para Massapê, onde esperariam pela
equipe de vacinação, eles evidentemente não se comportaram como deveriam os tawari:
eles não estabeleceram acampamentos provisórios na vizinhança da aldeia, pendurarando,
em vez, as redes nas diversas casas do assentamento por conta própria; eles não receberam
as boas-vindas de um grupo de mulheres entoando cantos, da mesma forma que suas
mulheres também não cantaram ao chegar, demonstrando, pelo contrário, a indiferença
controlada que é comum quando um parente visita o outro; e eles não beberam, antes de
mais nada, caiçuma azeda, recebendo, em vez disso, caiçuma não-fermentada. Eles nunca
se chamava uns aos outros de tawari, o que seria um absurdo, dada sua história recente.
Os visitantes, então, foram tratados como ‘parentes’, o que não significa que
sempre se comportassem como era de se esperar de parentes. Durante sua estadia em
Massapé, eles caçaram ou pescaram atividades que os parentes visitantes costumavam
desempenhar com seus anfitriões e em benefício deles. Em vez disso, fixaram-se na aldeia,
e esperaram que aquels que os recebiam pescassem e cassassem por eles. Os anfitriões, por
sua vez, também não agiram de acordo com que prescreveria um ritual Hori. Não não
hospedaram as visitas em suas próprias casas, como também, e pelos mesmos motivos que
os visitantes, não procuravam comida. Alguns Kanamari de Massapê me contaram que
sentiam que os que vinham de outras aldeias, e que os visitavam com freqüência, também
deveriam caçar e pescar para fornecer comida a todos. Mais que isso, os anfitirões evitaram
obter comida, tanto derivados de caça quanto da lavoura, durante o período de vacinação.
Uma vez que suas visitas eram ‘parentes’, os alimentos teriam de ser compartilhados, como
é costume se fazer entre parentes, e, tendo em vista o inchaço temporário da população da
aldeia então, não teriam dado conta de alimentar suas próprias famílias. Tanto trabalho, eles
lamentavam, resultaria, no fim das contas, em pouca comida para suas crianças, enquanto
carne seria dada a pessoas que nada faziam. Um homem fez de tudo para esconder o peixe
que conseguiu durante o dia para evitar ter de reparti-lo; outro se embrenhou por um
caminho mais longo, que contorna o vilarejo por trás, a fim de que não fosse visto o
macaco-aranha que caçou. Havia uma tensão velada entre os visitante, que esperavam ser
providos de comida, como nos rituais Hori, e os anfitriões, que achavam que os
201
‘estrangeiros’ também deveriam ajudar na obtenção de comida para todos, conforme
deveria se dar quando parentes visitam uns aos outros.
Este é o problema de um Hori sem tawari. Reclama-se de que as pessoas não
procuram comida ou que não a compartilham e ambigüidade em relação às expectativas
de quem teria a obrigação primeira de buscar alimentos. O que possibilitou o
acontecimento de um Hori como esse é o fato de ter sido promovido pela Funasa. A
organização de Saúde é intimamente associada à Funai. Até 1999 era a Funai a responsável
por oferecer cuidados médicos, e, mesmo depois de então, os Kanamari tendem a associar
o Chefe de Posto com a enfermeira da Funasa, uma vez que ambos moram perto e
partilham sua comida. Para que o Hori se é preciso que haja presença de chefes, e, no
caso em questão, ficou claro que esse papel coube aos brancos ligados à Funasa e à
Funai
149
. Por esse motivo, os Kanamari reclamam (com razão, é claro) que deveriam ser os
representantes federais a trazer comida para eles, ou, no mínimo, a supri-los de munição e
anzóis para que possam, por conta própria, alimentar a hiperpopulação da aldeia durante os
encontros.
Como resultado dessas ambivalências, essas reuniões, promovidas pelos brancos,
são ansiosamente antecipadas e, em seguida, menosprezadas depois que as pessoas
retornam às suas aldeias. “Não havia comida”, “a aldeia estava suja”, “ninguém faz trabalho
algum” são reclamações comuns de se ouvir quando os Kanamari voltam para casa. “Essas
pessoas são preguiçosas”, “elas vêm aqui e roubam de nós” e “tudo o que elas fazem é falar
sobre nós à nossa reveliasão comentários sussurrados por anfitriões que ficam. Esse tipo
de opiniões maliciosas provavelmente também era comum nos Hori do passado, mas,
então, era pronunciado quando os tawari estavam distantes, e não se veriam por um
tempo. Agora, após os casamentos que ocorreram ao longo da história, eles voltarão a se
ver em breve, e então agirão como parentes entre si.
Relações escalares no Itaquaí
Para encerrar este capítulo, quero agora voltar-me para as relações entre as várias
aldeias menores do Itaquaí e Massapê, particularmente no que diz respeito ao idioma de
‘comprar’ (oma) que caracteriza as interações com a Funai em suas representações locais:
Poroya e o Chefe de Posto. Farei isso, mais uma vez, por meio da comparação das relações
149
Hori geralmente exigem dois chefes, um de cada subgrupo, e um cenário para que ocorram. Mas um chefe
era sempre o anfitrião, e o Hori era considerado como sendo ‘dele’. Vacinações, de todo modo, não eram
verdadeiros Hori, mas encenações do que essas cerimônias seriam, reuniões miméticas promovidas pelos
emissários do poderoso e distante chefe.
202
que se dão nas aldeias e das que se configuram na ‘maloca’, bem como as que se dão entre as
duas. Isso será ilustrado com a comparação entre uma aldeia, Bananeira, e o modo como
ocorre a distribuição de comida e mercadoria em relação a Massapê e dentro dela. Em
resumo, proporei que interações dentro das aldeias podem apresentar certa constância
entre modelo do passado e a realidade, mas aquelas entre aldeias e entre as aldeias e
Massapê tornaram-se enviesadas, estruturando-se em idiomas de ‘troca’ e ‘compra’ que não
deveriam caracterizar o cenário da bacia fluvial.
Minha opção por Bananeira como exemplo comparativo requer algumas
justificativas, porque é uma aldeia atípica de acordo com os padrões do Itaquaí. Pode ser o
único assentamento que tem uma única pessoa em posição análoga, senão idêntica, àquela
de chefe da aldeia no modelo tradicional. Dyumi não é chamado de warah por pessoa
alguma, por ‘cacique’, mas, contrariamente ao que acontece em outras comunidades, ele
é único e ninguém questiona seu papel. Bananeira é tida como sua aldeia, e os habitantes
dali podem ser designados de ‘os Dyumis’ (Dyumi hinuk), ou, menos freqüentemente, ‘a
gente de Dyumi’) (Dyumi nawa tukuna). Durante os quatro anos de meu trabalho de campo,
a população da aldeia permaneceu estável, entre 20 e 30 pessoas, o que a tornou grande
suficiente para ser ao menos parcialmente capaz de se reproduzir por conta própria
150
, e
pequena o suficiente para que a maioria das pessoas fossem ‘parentes verdadeiros’, ou ao
menos para que continuassem se extabalecendo como tal. Bananeira é tida como uma
aldeia em que os habitantes ‘vivem com parentes’ (wihnim to), que é o ideal para um
assentamento Kanamari. A maior parte dos habitantes tinha parentesco próximo com
Dyumi: sua mulher e os irmão s dela; sua sogra e o marido; seus filhos os maridos/esposas
deles. Enquanto Bananeira não fosse anfitriã de visitantes, a aldeia funcionava serenamente
seguindo as ordens de Dyumi.
Ele ordenava (nobu) que as pessoas caçassem, que limpassem o pátio da aldeia e
organizassem o trabalho coletivo em uma roça. As roças ao redor de Bananeira se
assemelhavam muito às que descrevi como sendo as do passado. Um grande pedaço de
terra ligado a Dyumi e subdividido em lotes menores para cada família – ao menos cinco na
época. Os caçadores sempre levavam parte ou toda a caça para a casa de Dyumi, onde os
homens tiravam o couro da carcaça e as mulheres ‘faziam / produziam carne’. Essa carne,
então, era dada crua às famílias, mas muitos optavam por comer na casa de Dyumi. Pela
150
Ser grande suficiente para se reproduzir, ao menos parcialmente, por conta própria, não significa que era
exatamente assim que funcionava. Dois dos três casamentos que ocorreram em Bananeira entre 2002 e 2006
foram contraídos com pessoas de outras aldeias; o terceiro se deu entre pessoas cujas famílias eram co-
residentes na época, mas a família do noivo, hoje, já se mudou para outro lugar, deixando-o com sua mulher e
sogros.
203
manhã, refeições coletivas em sua casa precediam as atividades cotidianas. Grande parte
das mercadorias que a aldeia obtinha, por meio da Funai e da venda de artesanato em
Atalaia do Norte, era distribuída entre todos. Havia reclamações, é claro, sobretudo de uma
família mais periférica, mas acredito que seja justo dizer que as acusações de ‘avareza’ eram
poucas em Bananeira. Ou seja, o ambiente se assemelhava muito às descrições das aldeias
tradicionais.
Massapê era diferente. Muito grande para operar como uma unidade singular, era o
lugar das inúmeras divisões internas que apartavam clusters de parentes próximos, como os
mapeados para 2002. Esses clusters tinham roças separadas, situadas a certa distância umas
das outras, e se mantinham isoladas das outras onde se fizesse possível. A casa de Poroya
próximo à margem do Itaquaí, cercada de casas de seus filhos, seus esposos, sua ZD e o
esposo dela, além da família de um Mutum-dyapa que Poroya designava pelo termo BS (-
hiwampia). Monte acima dali ficavam os Japó-dyapa, que à época incluíam Dyumi, que se
preparava para partir para Bananeira. Esses grupos se mantinham apartados de outras
formas. Trilhas de caça conduziam a direções distintas e algumas mulheres preferiam lavar
roupas e louças em partes diferentes do rio. Essas divisões durante os períodos de trabalho
ocultavam uma série de atividades que se faziam ‘em conjunto’ (da-wihnim), como jogar
futebol e conversar à tarde à beira do rio. E se o trabalho mantinha divisões, os produtos
gerados eram geralmente compartilhados, mesmo que relutantemente. Mulheres iam às
casas onde havia comida disponível para pegar sua parte da caça, e se havia fartura de
comida na casa de Poroya, as pessoas de outros clusters apareciam para serem servidos de
uma refeição preparada por sua mulher.
Essa sociabilidade e evitação nericas significam que organizar grupos de trabalho
coletivo em Massapê é tarefa desanimadora. Não havia chefe de aldeia lá, apenas Poroya e,
ocasionalmente, o Chefe de Posto da Funai. Se, em Bananeira, o trabalho era realizado ‘em
conjunto’ (da-wihnim), em Massapê era quase sempre feito ‘para Poroya’ ou ‘para a Funai’
(Poroya/Funai n-ama). Por esse motivo, Funai, Poroya ou ambos têm de ‘pagar’ os Kanamari
por seu trabalho de ajudar a limpar as grandes roças, cortar a relva que se espalha pela
aldeia ou de garantir a limpeza do local. Eles usam o termo em português ‘pagamento’ ou,
com menos freqüência, ohunhuk, em Kanamari, para expressar a contrapartida que
requerem em troca de seu trabalho. Em termos gerais, isso o difere de como era a
situação no passado imaginado. Em ambas as instâncias, o trabalho é realizado por pessoas
que se aglomeram em torno de uma maloca e redistribuição de bens. Mas no passado,
dizem os Kanamari, esse trabalho teria sido feito em nome do warah, que incluía a eles
204
todos; teria sido iniciado e coordenado pelo chefe do subgrupo em pessoa, enquanto hoje
as pessoas geralmente têm de exigir retribuição em vez de serem providas do que deveria ser
dado a elas.
Antes de analisar o relatado, vale a pena questionar se a comparação entre Massapê
e Bananeira é possível. Parece que Massapê é feita de um conglomerado de ‘Bananeiras’,
muitos clusters familiares que são como ‘aldeias’, mas que moram próximas umas às outras.
Isso não é de todo uma inverdade, e o fato em si de Bananeira ser majoritariamente
composta de pessoas que deixaram Massapê em algum momento de 2002 reforçaria essa
impressão. De todo modo, Bananeira está imersa no conjunto de aldeias Japó-dyapa que
fica rio abaixo, uma unidade comparável em tamanho a Massapê, e quando a situamos em
relação à aldeia vizinha, Remansinho, alguns pontos interessantes surgem. laços de
parentesco próximos entre Bananeira e Remansinho. Um dos ‘caciques’ desta última, João
Pidah, é casado com a WFBD de Dyumi, conseqüentemente a ‘Zde sua mulher. Não
obstante, eles chamam um ao outro pelo termo que designa ‘cunhado’ (ibo), uma vez que
não reconhecem um parentesco ‘próximo’ entre si. Visitas entre as aldeias se dão
regularmente, mas raramente são simples ou tranqüilas. Ambos se acusam mutuamente de
roubarem e de serem ávaros
151
, e menosprezam a aldeia do outro. ‘Remansinho é suja’ ou
‘Bananeira é tão cheia de mosquitos que nada conseguimos fazer’ são insultos comuns. Se
caiçuma azeda for servida quando os dois grupos se encontram, as tensões chegam ao
ponto de ebulição, e ocasionalmente brigas físicas. Mais de uma vez eu vi pessoas de
uma das duas aldeias passarem pelas outras sem parar a canoa (hiri), um sinal inequívoco de
que as relações estão azedas.
Entre Remansinho e Bananeira, poucas coisas são dadas’. Em vez disso, quando se
encontram, trocam’ (hom) mercadorias e, ocasionalmente, produtos agrícolas. Por meio
dessas condutas, as relações entre os dois geralmente assumem o contorno de interações
entre tawari, e essas acusações de avareza têm de ser entendidas a partir dessa perspectiva.
Ao mesmo tempo, habitantes de ambas as aldeias viajavam para Massapê para ‘comprar’
coisas da Funai e de Poroya. Era muito comum, enquanto morei em Massapê, que pessoas
de todas as aldeias do Itaquaí viessem até ali para ‘comprar’ tabaco ou açúcar do Chefe de
Posto. Quando permaneci em Bananeira, Arabona passou uma semana inteira à procura de
tracajás que ele levaria a Poroya para ‘comprar’ um motor, e quando deixei o campo, em
151
Remansinho existe mais tempo que Bananeira, e João Pidah disse para Dyumi que proveria sua aldeia
de gêneros alimentícios enquanto estivesse em construção. Dyumi diz que isso nunca se deu, e as pessoas das
duas aldeias dizem que os habitantes da rival passam fome. Sempre que a gente de Remansinho visitava
Bananeira, ou vice versa, me diziam que os forasteiros vinham porque estavam com fome.
205
2006, o cacique de Remansinho preparava uma canoa para que ele também a pudesse usar
para ‘comprar’ um motor.
Sugeri, acima, que essas relações, em que as coisas eram levadas aos funcionários da
Funai para se obterem outras coisas, eram análogas à forma que um subgrupo adotava para
fazer com que o chefe o ‘alimentasse’ na maloca: a comida ia de encontro ao chefe, e
mercadorias ocidentais eram dadas em retribuição. No entanto, duas diferenças óbvias
entre o que ocorre hoje e o modelo de endogamia do subgrupo. A primeira é que essas
transações não se expressam no idioma do ‘dar’, em vez disso devem ser ‘compradas’; a
segunda é que ‘comida’ que ‘preenche a necessidade pessoal’ (ayuh man) e mercadoria
ocidental parecem ser dois tipos bem distintos.
Não consegui encontrar outro significado para a palavra oma senão o de ‘comprar’.
Os Kanamari em Atalaia do Norte, por exemplo, freqüentemente me pediam dinheiro para
‘comprar’ (oma) o ou refrigerante. Quando eles compravam algo de Poroya, ele teria de
‘pagar’ pela comida ou pelo trabalho deles. vimos que ‘pagar’ se traduzia pela palavra em
português ‘pagamento’, ou por ohunhuk. Esse termo significa ‘vingar-se’, e é comum em
línguas ameríndias que haja uma superposição, senão uma congruência, entre as idéias de
‘pagar’ e de ‘vingar-se’. Além disso, conforme demonstrou Fausto (2001, 322-6), isso
implica não um cancelamento da dívida, mas antes a predominância de uma forma de
desequilíbrio que revela uma assimetria. A ‘Funai’ estava certamente a par disso. Citei,
acima, como seus funcionários tentavam convencer Poroya a não gastar seu salário
comprando coisas para os Kanamari. Mas o que mais desanimava os funcionários da Funai
era a freqüência com que Poroya comprava’ produtos a preços inflados. Certa vez, por
exemplo, ele ‘comprou’ de um Kanamari dois remos velhos e usados que nem valeriam dez
reais em Atalaia do Norte por um tocador de CD’s novo, que custou mais de R$ 200, e que
ele adquiriu gastando seu salário.
Não é somente a Funai que observa isso, os Kanamari também estão cientes desse
fato. Eles apreciam o valor monetário dos itens que eles cobiçam, e quando vão à cidade,
guardam seu dinheiro para comprar essas peças, tanto quanto isso seja possível. No
entanto, não é assim que funcionam as transações que estabelecem com a Funai. Toda vez
que o Chefe de Posto estava prestes a partir, ele avisava aos Kanamari com muitas semanas
de antecedência, para que dessem a ele tudo o que queriam vender em Atalaia do Norte, e
para que lhe dissessem o que gostariam de ‘comprar’ com seus produtos. Os Kanamari
davam ao Chefe de Posto, então, por exemplo, um cacho de bananas, que eles sabiam que
não seria comprado por mais de R$ 3,00 na cidade, e pediam que lhes fossem trazidos vinte
206
quilogramas de açúcar, que sabiam que custavam muito mais que aquilo, aproximadamente
R$ 30,00. Esses tipos de transação eram comuns, e apesar de o representante da Funai
explicar aos Kanamari que não poderia fazer a compra, não se pode dizer que é
estritamente verdade que o órgão nunca operou de acordo com os pedidos dos Kanamari,
porque Sabá dava a eles bens em troca de nada, e Poroya ‘compra’ os produtos deles por
um preço muito superior ao que valem. Os Kanamari estabeleceram, assim, uma assimetria
entre si mesmos e os chefes poderosos, ‘comprando’ mercadoria destes.
Não acho que essas transações possam ser explicadas se recorrermos à possível
ingenuidade Kanamari ou às suas tentativas de explorar os brancos que consigo trabalham.
Eles têm estado envolvidos na economia de aviamento muitos anos, e eles conhecem o
preço das coisas e sabem que precisam guardar dinheiro para obtê-las. Além disso, as
transações que engendram com brancos que o são da Funai, na cidade, costumava se dar
de um jeito diferente: eles perguntavam o preço dos bens e pagavam por eles com dinheiro,
e não com produtos vegetais, caça ou artesanato.
Em verdade, é preciso considerar a relação disso com a economia de aviamento e o
acesso a mercadorias que ela gerava. Enquanto Ioho era vivo, era ele, me disseram, quem
obtinha as mercadorias dos brancos e as distribuía. Os Kanamari, então, não ‘compravam’
produtos dos brancos; era Ioho que o fazia, juntando as coisas que recebia deles.
Argumentei nos capítulos anteriores que isso permitiu que os Kanamari vivessem em uma
tangente à economia do barracão. Apesar de isso ter certamente suscitado mudanças, a
sociedade Kanamari conseguiu se adaptar ao fazer com que Ioho singularizasse os vários
bens que lhe foram dados e os ‘trocasse’ com os brancos. Agora, todavia, Funai é o único
warah que eles têm, e é por meio da compra de produtos do warah que algumas aldeias,
como Bananeira, mantêm sua existência calma e pacífica. Seus chefes o mais os
‘alimentam’, conforme fizeram outrora os chefes dos subgrupos, mas seguem mantendo
uma relação assimétrica com os Kanamari, ao permitir que obtenham os bens que desejam.
De fato, gostaria de concluir apresentando algumas tentativas de explicar por que
os Kanamari desejam tais bens, ou, ao menos, por que esse itens teriam se tornado uma
parte tão importante dessa forma transmutada de relacionamento com o warah. Os
Kanamari têm uma palavra genérica para mercadorias ocidentais, que também inclui
gêneros alimentícios como açúcar, sal e café. Eles os chamam wara, que às vezes adquire a
pronúncia de warah. Aos meus ouvidos, essa palavra soa exatamente igual à que designa
‘chefe/corpo/dono’. Ainda não compreendi inteiramente o papel da aspiração final do
termo, mas ela não parece alterar o significado da palavra. Me parece, em vez disso, ser
207
uma função morfofonológica. Quando peço a um Kanamari para dizer ‘meu chefe’, ele dirá
ou i-warah ou i-wara, mas quando a palavra é inserida em uma sentença, sempre se torna
warah. O mesmo ocorre com ‘mercadoria’. A principal diferença entre os termos
‘chefe/corpo/dono’ e mercadoria’ reside nas construções genitivas. Enquanto
‘chefe/corpo/dono’ exige um prefixo relativo a um pronome pessoal do tipo ‘inalienável’,
(i-warah, por exemplo), ‘minha mercadoria’ é dito usando-se o pronome possessivo do tipo
‘alienável’ atya wara(h)
152
. Pode ser esta a razão para que os Kanamari negassem que as duas
palavras eram uma. Muitas vezes diziam ambas em seqüência, incorporando a cláusula
genitiva, de modo que eu pudesse ouvir a diferença. Além dessa diferenciação, não
consegui ouvir qualquer outra.
Não tenho escolha senão concordar com os Kanamari em que as palavras são
distintas. No entanto, continua sendo curioso que a palavra para ‘mercadoria’ e para
‘chefe/corpo/dono’ sejam similares. Além disso, há uma relação lógica entre a forma como
a Funai distribui mercadorias e como o chefe ‘alimentava’ seu subgrupo. Essa relação lógica
não deve, todavia, nos cegar no sentido de virar uma diferença clara. Se o chefe do
subgrupo ‘alimentava’ os Kanamari por meio de comida que eles mesmos levavam para ele
e o ajudavam a cultivar, a maior parte do que a Funai distribui vem da terra distante e
misteriosa de Brasília, onde reside o verdadeiro poder dos brancos. Encurralados entre
chefes de aldeias que se tornaram demasiadamente difundidos e personificações parciais de
um líder muito poderoso, os Kanamari acharam um espaço para se tornarem parentes
enquanto estabeleceram algumas diferenças entre si. Que isso se faça por meio do mesmo
processo que capacita os brancos a estabelecerem cidades e fazerem de si mesmos
‘parentes’ tem implicações importantes, que se esclarecerão quando considerarmos a
criação do mundo presente no mito da ‘Viagem de Tamakori’. Mas isso terá de esperar a
o capítulo cinco; por ora, focarei as precondições míticas desse mundo.
152
A relação entre as formas possessivas ‘alienável’ e ‘inalienável’, em Kanamari, podem nada ter a ver com o
que sugerem os nomes, e meu uso das duas palavras é reflexo de seu uso difundido na literatura. Queixalós
(n.d.2), em uma comparação entre Kanamari-Katukina e outras nguas, sugeriu que, a partir de uma
perspectiva lingüística, a diferença entre os dois pode ser entendida em suas relações com a valência verbal,
em vez de por meio de recurso à idéia extra-lingüística de ‘possessão’.
208
Parte II:
Corpos Míticos
209
4
A Morte do Jaguar e a Queda do Céu Antigo
No início do capítulo um, deixei explícito o fato de que a história dos Kanamari
revelaria o movimento oposto àquele narrado no mito. Subseqüentemente, vimos que os
Kanamari viviam inicialmente com corpos de parentes que eram circunscritos
geograficamente no interior das bacias dos rios, passando por uma série de migrações nas
quais esses corpos se tornaram misturados, fazendo com que eles se deslocassem de suas
aldeias em direção aos brancos, até que, finalmente, puderam se recriar numa única bacia
de rio, mesmo que agora eles tenham que viver de maneiras diversas ao ideal postulado no
passado. A História, pois, levou-os da descontinuidade entre corpos de parentes à
continuidade entre estes corpos no presente.
O presente capítulo e o seguinte vão descrever o movimento revelado no mito, que
levou os Kanamari de um mundo contínuo a um mundo descontínuo. Trata-se, assim, de
delimitar um processo que é o inverso àquele que acabei de descrever. Esta mudança de
orientação não é mera retórica expositiva, pois os mitos Kanamari narram precisamente
como o modelo da endogamia de subgrupo passou a existir. Eles o fazem situando as
precondições desse modelo dentro dos processos mesmos que criam seu entorno, o
distinguindo entre a emergência dos subgrupos e a do mundo que os contêm. Os mitos
contam como o mundo tornou-se o que é, composto de unidades discretas que incluem os
subgrupos Kanamari que ora estruturam suas vidas, através do modelo de endogamia do
subgrupo, até a chegada de Jarado.
Pretendo mostrar, em suma, de que modo, no começo do mundo, quando o u
Antigo arriou por cima da terra, tudo estava contido por uns poucos Jaguares. Uma série de
mitos procede por descrever como este contínuo-Jaguar foi destruído, fragmentando-se em
unidades menores e mais manejáveis. Tais unidades assumiram várias formas, uma das
quais a do subgrupo. O colapso do Céu Antigo destruído em um momento de
irresponsabilidade reduziu largamente a onipresença do Jaguar, dando origem a uma
configuração da qual grande parte do mundo presente foi extraída. Posteriormente, quando
o Criador Tamakori e seu irmão Kirak empreenderam uma longa viagem pelo Juruá, os
componentes finais do mundo foram estabelecidos. O que era puro fluxo, esvaindo-se dos
210
Jaguares-continentes, tornou-se estabilizado pelas ações de Tamakori, e o palco estava
assim montado para a história seguir seu curso.
A sinopse acima oculta uma característica destes mitos que deve ser explicitada
antes que eu possa prosseguir. Eu vim mostrando como os Kanamari conceitualizam sua
história por meio de uma série de tempos” ou “épocas” que se sucedem uns aos outros.
Na medida em que tentava dar sentido aos dados apresentados nesse capítulo, eu supus que
poderia situar estes mitos em um ‘tempo’ equivalente, talvez um ‘Tempo do Jaguar’ ou um
‘Tempo do Céu Antigo’. Os Kanamari, entretanto, que fazem nítidas distinções entre os
três ‘tempos históricos’ e os personagens que os possibilitaram, não sentem necessidade de
enumerar uma ‘época’ equivalente para esses mitos. Enquanto eles parecem ter ocorrido
em um passado distante, que precede a chegada de Tamakori, eles não são nem temporais
nem tampouco contêm referentes geográficos precisos. Ao invés disso, eles se situam em
um mundo que continua vindo a existir, fora da história e além do tempo.
No entanto, é também verdade, como notei no capítulo um, que a história dos
Kanamari, ou ao menos as maneiras pelas quais ela é narrada através do conceito de
‘tempos’, revela virtualidades sociais. Ao me contar suas histórias, os Kanamari me
contavam sobre o desejo de viver com os parentes e sobre a impossibilidade de fazê-lo.
Neste sentido, proponho que os mitos que eu estou para narrar fazem’, a seu modo, a
mesma coisa, ao revelar como os parentes foram criados, como eles foram estabelecidos
nas bacias dos rios e os tipos de relações que devem caracterizar a vida, tanto no interior
como através de cada corpo de parentes. No capítulo seguinte, quando analiso o mito de
Tamakori, que é também seu mito da história, o cenário estará montado para um mundo
constituído através do modelo da endogamia de subgrupo
153
.
Finalmente, esses mitos não são apenas sobre possíveis maneiras de constituir
corpos sociais, mas também sobre as maneiras pelas quais a vida humana é levada a cabo
em um mundo perenemente dividido por forças de agregação e desagregação em todos os
níveis: a pessoa, a aldeia, o subgrupo. Neste sentido, os mitos do Jaguar não se encerram na
sua narração, mas delineiam um potencial do mundo. Os mitos, em outras palavras, estão
sempre presentes.
Em um Modo Jaguar
153
O leitor deve ter em mente que, se foi possível narrar a mudança deste modelo em diferentes formas
sociais ao longo do tempo, para entender o ‘Tempo de Tamakori’ seria preciso traçar seu reverso, investigar
suas precondições. Retornarei a esse ponto no encerramento do capítulo cinco.
211
Nesta seção, definirei o que significa ‘Jaguar’ para os Kanamari. Meu primeiro passo
é delinear os contornos externos do Jaguar, aquela sua parte que penetra através da
‘qualidade diáfana do discurso’ (Urban 1996, 71). Isto vai requerer que eu extrapole o que
os Kanamari dizem sobre o Jaguar de modo a deduzir uma forma-Jaguar sobre a qual eles
não falam ou não podem falar. No entanto, eu não tenho outra opção exceto a de
recompor esse Jaguar a partir de seus fragmentos, para tentar perceber aquilo sobre o qual
os Kanamari são, em grande parte, silenciosos. Passo, em seguida, a analisar dois mitos que
lidam especificamente com personagens-Jaguar e sua morte. Finalmente, mostrarei como a
destruição desses Jaguares afetou o mundo-em-formação.
Sendo situado pelo Jaguar
Os mitos Kanamari são habitados por uma multidão de personagens-Jaguar (Pidah).
Eles podem diferenciar estes seres do felino (Panthera onça), chamando os primeiros de
‘Pidah Kidak’, ‘Jaguar Antigo’
154
. Mas isso é uma exegese, uma explicação para o
antropólogo, e na verdade é muito mais difícil confundir os dois. Eles não são congruentes
e os jaguares de hoje são pálidos reflexos dos Jaguares do passado.
dois princípios inter-relacionados que compõe os Jaguares. Em primeiro lugar,
eles representam pura força predatória raiva (nok), avareza (nihan) e solidão (padya) e
são, assim, a antítese do mundo que os Kanamari desejam para si. Todo o trato com o
Jaguar termina mal, para o Jaguar ou para aqueles que interagem com ele, porque a única
relação possível com esse tipo de ser é a guerra. Este aspecto do Jaguar faz dele um agente
de movimento. Mas, em segundo lugar, e ao mesmo tempo, o Jaguar é o ‘mestre’ (-warah)
de tudo, uma qualidade que atrai os Kanamari, ainda que também os ‘assuste’ (-yanimbu). A
maioria da mitologia Kanamari do Jaguar concerne a como, por meio de uma série de
confrontos, o Jaguar cedeu seu domínio sobre o mundo. Como numa espécie de Big-Bang,
o universo primordial emergiu comprimido no ‘corpo’ (-warah) do Jaguar e, através de
repetidos ataques a este corpo, começa a esvair-se dele, tornando-se sucessivamente menos
Jaguar (Viveiros de Castro 2001; 2004).
É importante ressaltar que o ‘Jaguar’ não apenas comunica personagens com esse
nome, mas uma qualidade do mundo que estes personagens habitam. Embora os Kanamari
possam exprimir aspectos desse mundo nos mitos que contam, aparentemente um
limite para aquilo que pode ser dito, ao menos na ‘língua Kanamari’ (tukuna koni). Na falta
154
Ao longo desta tese, sempre que eu escrever ‘jaguar’ com um ‘j’ minúsculo, estarei me referindo ao animal;
‘Jaguar’ com o ‘J’ maiúsculo fará referência aos Jaguares míticos e ao mundo que eles contêm.
212
de palavras para comunicar as particularidades desse período ou para capturar algumas
delas os Kanamari freqüentemente apelam para uma língua estrangeira. Na minha
presença, esta era, usual mas não exclusivamente, o Português. ‘Antigamente’ e ‘Primeiro’ são
como eles normalmente começam a falar desses tempos; antigamente pode ser acompanhada
do coletivizador hinuk, significando ‘aqueles de muito tempo atrás’. palavras Kanamari
que poderiam ser usadas nesses casos. O termo –mowarahi que, como vimos, refere-se a
‘ancestrais sem nome’ que morreram há muito tempo atrás, é freqüentemente um sinônimo
para ‘Antigamente hinuk’
155
; e a partícula amtoninim ou amtobowa, inserida após os verbos, situa
uma narrativa e seus personagens próximos ao mundo do Jaguar, mas os Kanamari
preferem usar palavras em Português, como se as suas fossem inadequadas para expressar o
intervalo entre a sociedade que eles pretendem criar e aquela implicada nesses mitos. Eles
também utilizam a palavra ‘cultura para se referir ao modo de vida implicado no Jaguar. “O
Jaguar era a cultura daqueles de muito tempo atrás” (Antigamente nawa cultura toninim Pidah
anim), eles me diziam
156
.
A outra ngua que eles utilizam é a ‘língua do Jaguar’ (Pidah Koni). Até onde eu sei,
esta língua não pode ser falada, devendo ser cantada
157
. Quase todos os mitos Kanamari
contêm canções, e ‘Jaguar’ também designa uma classe de canções consideradas muito
antigas, dos tempos míticos. duas situações nas quais elas aparecem durante as
narrativas: ou um personagem de um mito, Jaguar ou outro, começa a cantá-las; ou então
elas são cantadas em momentos apropriados no contexto da narração de um mito,
pontuando-a e sintetizando-a. Neste último caso, elas não precisam ser cantadas por
personagens-Jaguar, mas permanecem sendo, no entanto, chamadas de ‘cantos-Jaguar’
(Pidah nawa waik). O que os narradores freqüentemente dizem é que o canto foi
originalmente entoado por outro personagem, mas que o Jaguar o ouviu, aprendeu e
passou a cantá-lo também. Na verdade, a relação é provavelmente mais complexa, pois não
é preciso haver um personagem especificamente designado como ‘Jaguar’ no mito para
‘ouvir’ a canção. Em certa medida, todos os personagens no mito são ‘Jaguar’ ou podem
155
Os Kanamari geralmente usam o advérbio ‘antigamente’ como um nome, querendo dizer ‘alguém de
muito tempo atrás’.
156
O uso de ‘palavras estrangeiras’ não tem nada a ver com tornar a história inteligível para mim. Os
Kanamari usam essas palavras quando falam entre si, e eles não utilizam outras palavras correntes do
Português nas suas conversas comigo. O uso de uma língua estrangeira é um modo importante de tornar o
Jaguar inteligível para eles próprios, e não apenas para mim.
157
Pidah-koni é similar ao Kanamari, mas possui uma estrutura sintática diferente e ‘palavras trocadas’ (koni
banimahik), que conferem a elas sentidos diversos. Estes sentidos são, em termos gerais, acessíveis a todos os
Kanamari, e suas interpretações ou glosas não diferem, no todo, daquelas dos xamãs (baoh) ou cantores rituais
(-nohman).
213
assumir uma qualidade Jaguar, uma vez que ele não denota um ser mas, antes, uma
potência de todos os seres. Segundo Fausto:
“As a default condition, every species potentially has its own jaguar-part, sometimes
hypostasized as the species’ master. [...] Among the Wayana, for instance, the basketry pattern
‘squirrel’ is said to represent not only a squirrel (merí) but also a hyper-squirrel (merímë), which is also a
supernatural jaguar (van Velthem 2001, 315)” (Fausto no prelo 48. n. 24).
De fato, não há nem mesmo necessidade de que haja um personagem que cante, e a canção
pode simplesmente emergir, em um momento conveniente da narrativa, porque os Jaguares
permeiam o mito mesmo quando não estão diretamente implicados. Os cantos, pois, são
‘Jaguar’ e o termo normalmente designa, ao mesmo tempo, personagens e canções.
Nem os mitos nem os cantos do Jaguar formam um ‘todo coerente’
158
. Embora
todos os mitos que eu examino nesta seção mencionem um ou mais personagens
chamados ‘Jaguar’, não se deve supor que eles esgotem um corpus de ‘Mitos do Jaguar’,
nem que outros mitos, nos quais tais personagens não são referidos, não devam ser
considerados ao lado daqueles. Enquanto conjunto, os Kanamari se referem às narrativas
que estou considerando nesse capítulo como ‘mitos do Céu Antigo’ (Kodoh Kidak nawa
ankira). Mas, em certo sentido, todos esses mitos são sobre o Jaguar, uma vez que este é o
estado a partir do qual sua qualidade é derivada. O quanto este potencial é diferentemente
manifesto nos e através dos diversos personagens míticos, é um corolário do fato de que ‘o
Jaguar era a cultura daqueles de muito tempo atrás’. Mas tal afirmação deve ser entendida
em toda sua polissemia, pois em seus próprios limites esta cultura não é posta em palavras,
mas cantada.
A música pode, com efeito, ser uma das principais definições da idéia de ‘cultura’
para os Kanamari. Eu não me deparei muito com a palavra ‘cultura’ fora das discussões dos
tempos míticos. Funcionários da Funai e da Funasa freqüentemente usam a palavra ao falar
das diferenças entre os Kanamari e seus vizinhos, sobretudo os Marubo. No entanto,
exceto nestas circunstâncias, a palavra não parece ter permeado seu dia-a-dia e os Kanamari
do Itaquaí não têm uma glosa em sua língua à qual poderiam recorrer para traduzir
‘cultura’, como é o caso em outras partes da Amazônia (e. g. Gordon 2006, 90-1). Quando
perguntei explicitamente por uma, eles me ofereceram tu am adik anim”, nós somos desse
158
Os Kanamari se mostravam muito interessados em que eu gravasse tantos mitos e canções do Jaguar
quantos fossem possíveis, mas eles sempre me alertavam que estes eram ‘infinitos’ e ‘interminávei’ (hawak
nyoimtu, ‘intermináveis’) e que eu não deveria nunca esperar completar meu trabalho.
214
jeito’, apenas para, em seguida, dizer “cultura nimbak”, que pode ser traduzido por: ‘cultura,
na verdade’.
O conceito também aparece em certas reuniões com a ONG indígena Civaja, na
qual recebem a promessa de que sua ‘cultura’ será levada em conta na implementação e
desenvolvimento de projetos que possam beneficiá-los. Em todo caso, os Kanamari
explicitamente entendem ‘cultura como significando seus cantos, entre os quais os do
Jaguar
159
. Após um desses encontros na cidade de Atalaia do Norte, eles se mostraram
particularmente interessados em que eu gravasse algumas canções. Mas se essas canções
são uma parte da ‘cultura daqueles de muito tempo atrás’, e também, em alguns contextos,
‘sua cultura’, então a ‘cultura’ é, ao menos parcialmente, congruente com o Jaguar, e não
com eles próprios (i. e. os Kanamari vivos de hoje).
Ao ouvir algumas das canções do Jaguar reproduzidas em meu gravador, os
Kanamari freqüentemente comentavam: ‘é o verdadeiro corpo/dono do Jaguar’ (Pidah-
warah tam). Vimos anteriormente que não distinção conceitual entre os personagens-
Jaguar e suas canções: ambos são Pidah. Os cantos do Jaguar emergem do mundo mítico
que eles explicam. Os Jaguares morreram, veremos brevemente, mas sua morte apenas
resultou, de fato, num fracionamento de seus corpos; ela é o processo pelo qual seu
domínio sobre o mundo tornou-se difuso por meio de diversas porções de Jaguaridade.
Um dos aspectos desses corpos são os cantos-Jaguar que os Kanamari cantam durante o
ritual do ‘devir-Jaguar’ (Pidah-pa). Ao cantar tais canções e falar a língua-Jaguar, os homens
Kanamari se transformam efetivamente em Jaguares enquanto dura o ritual. As canções são
como que um resíduo mítico do mundo cantado por suas letras, e é cantando-as que os
Kanamari colapsam os eixos do Jaguar e da humanidade, fazendo com o que o Jaguar se
torne ‘sua cultura’. Isso é similar ao processo de aquisição dos cantos-jaguar que Fausto
descreve entre os Parakanã, para quem as canções se originam nos sonhos com inimigos:
“In offering a song, the enemy gives a part of himself, a jaguar-part so to speak. Now what is a jaguar-
part? As I understand it, it stands for the capacity to hold a particular perspective on a relationship;
that is, of occupying the position of a subject in a relation (see Vilaça 1992, 51). The songs therefore
are packs of agency, quanta of intentionality, that can be transferred from the enemy to the dreamer.
Of course, they are not an abstract pack of agency, which circulates as if it was some kind of generic
energy. Each song has an owner and a history that starts with the dreaming event and ends with its
ritual execution” (Fausto 2004, 164-5).
159
Eu não sei o que eles podem entender ao ter suas canções levadas em conta em projetos de
desenvolvimento. Quero apenas ressaltar que isso é o que eles entendem por ‘cultura’. Eles freqüentemente
contrastavam a variedade de estilos de música vocal que eles conhecem com o que percebem ser a escassez
destes gêneros entre os grupos de língua Pano.
215
De modo semelhante, os cantos-Jaguar Kanamari, aprendidos a partir do mito,
também têm um ‘dono’(Pidah nawa nohman; ‘cantor Jaguar’; ou simplesmente Pidah n-a-
warah, o dono do Jaguar’) que os canta durante o ritual. Sua morte, no entanto, não resulta
na execução da canção, mas antes na sua socialização, na medida em que é aprendida por
todos
160
.
É claro então que, assim como ‘nossa cultura’ é parte da ‘cultura do Jaguar’,
também o mundo Kanamari é parte do mundo do Jaguar, e uma parte de seus próprios
corpos é também vinculada ao Jaguar. Mas a coincidência entre eles deve ser parcial e
mediada. outros modos Kanamari de ser, como narram os mitos que iremos
acompanhar.
O mundo mítico é, pois, a cultura do Jaguar, e em seu limite está a música. Mas
mesmo a música é uma solução imperfeita, como se ela fosse a dimensão externa do
pensável, os aspectos do Jaguar que podem ser expressos. Vimos que quase todos os mitos
Kanamari contêm canções canções que, simultaneamente, evocam versões sinópticas dos
mitos e os livram de uma narrativa linear –, mas as letras dessas canções, senão mesmo suas
melodias
161
, restringem mais uma vez o pensamento, e o Jaguar permanece elusivo. Parece,
pois, haver um limite para aquilo que pode ser dito sobre o Jaguar – um limite que a música
e línguas estrangeiras não são capazes de ultrapassar por completo. É como se nas margens
do mito restasse um Jaguar absoluto, definitivo de tudo, mas que não pode ser
pronunciado, não por causa de alguma proibição em torno dele, mas por causa das
inadequações mesmas das línguas. A contrapartida é que o Jaguar que é falado, que pode
ser cantado, mesmo sendo o poderoso e onisciente Jaguar do tempo mítico, é uma forma
subtraída desse Jaguar primordial.
Talvez isso seja para o bem, pois o mundo do Jaguar, mesmo aquele que é
inteligível, é desalentador. O tipo de sociedade que os Kanamari imaginam através dele
antagoniza o mundo que eles tentam construir para si próprios, e, sendo assim, os mitos
160
Como vimos, este ritual age como o rito mortuário final, no qual uma mecha do cabelo do falecido é dada
aos Jaguares e enterrada. Ao mesmo tempo em que torna o morto um ‘ancestral sem nome’, e uma parte da
paisagem (capoeiras), esse ato faz também com que ele perca o domínio sobre os cantos-Jaguar que se
tornaram associados a ele. As canções passam a ser, assim, disponíveis para os vivos, particularmente para
outros homens que possam querer se tornar um cantor-Jaguar, e cantadas em ritos mortuários futuros.
161
Não possuo dados, e sobretudo competência, para analisar as melodias das canções Kanamari. Mas devo
acrescentar que a maioria dos cantos-Jaguar podem ser tocados na flauta (hono’am) ou mesmo assoviados.
Lévi-Strauss já notara a capacidade que a música tem de nos transportar dos ‘pequenos intervalos’ da
linguagem para um que, como uma máscara, confere ao indivíduo um significado mais elevado (2005, 307;
ver também 1999, capítulo 5; para não falar de todo o modelo expositivo de O Cru e o Cozido, baseado numa
analogia com a música). Para os Kanamari, contudo, são as versões com letra as preferidas, aquelas que
delimitam sua atividade ritual.
216
pretendem explicar seu fim, e o deduzir o que este mundo foi um dia. Os Kanamari
reduzem o Jaguar, eles o fazem pensável; e é extrapolando a partir dessa redução que eles o
conhecem, mesmo se eles não podem dizê-lo. O Jaguar é seu ‘zero semiótico’: “something
that ‘stands for’ what it is not” (Wagner 2001, xviii). Não saber ‘o que não é’ conforta os
Kanamari e faz com que seja possível falar dele.
Uma imagem fornecida por Wagner talvez se aproxime do que pode ser esse Jaguar
e de como, através dos mitos, sua possibilidade é conjurada. O Lorde Védico Indra, chefe
do antigo panteão da Índia, era “...a pragmatic ‘imaginer’ of world and divinity through the
net of maya (illusion) cast about the world to give it a figurative form and content” (2001,
12). Lorde Indra lançou “...his net of deception around the world in its motion, or as its
motion”. Esta rede subdetermina a terra, e é através dos buracos da rede através da
realidade trans-cósmica que podemos inferi-la: “the reality of the net comes down to the
simple fact that you can only get ‘into’ it... by trying to think your way out of it” (ibid., 14-
6). O Jaguar é este pensar, e os Kanamari, sempre subdeterminados, são pegos em sua rede.
Os Jaguares Míticos
O que tudo isso revela de fato são as contradições inerentes em uma fórmula
‘global’ de inclusão. Qualquer corpo que seja capaz de conter tudo no mundo apresenta
uma capacidade predatória insuperável. A mitologia Kanamari começa, ao contrário, com
uns poucos ‘Mestres-Jaguar’, num tempo em que o mundo ainda existia em perpétua
transformação, mas recebeu uma forma estável por meio deles. O que os mitos do Jaguar,
então, se propõem a contar é como estes corpos nefastos deram origem a outros mais
manejáveis. Dois mitos servirão como exemplos.
O Jaguar era o ‘Mestre dos Peixes’ (dom-warah) e vivia bem distante rio acima
162
. Um
dia, o Ancestral Socó-Boi (Paiko Honoru) foi pescar. O Jaguar deixou o Socó-Boi pescar,
após o quê este último fugiu, temendo que o Jaguar se voltasse contra ele. E, de fato, no
caminho para casa, ele escuta o som ‘hi, hi, hi’ do Jaguar e corre, temendo por sua vida. De
volta à aldeia, seus cunhados ficaram impressionados com o peixe que ele tinha pego e
quiseram ir também rio acima, mas ele os alertou que não fossem: “não, vocês não
162
Como é típico nos mitos de um tempo em que o mundo ainda estava sendo feito, não referência sobre
qual rio se trata, embora a direção do seu curso seja importante. Isto vai de encontro às histórias Kanamari de
tempos mais recentes como as de Jarado e Sabá que são repletas em especificações geográficas. O único
rio que às vezes é explicitamente nomeado nesses mitos é o Juruá, por razões que se tornarão brevemente
aparentes.
217
conhecem o Jaguar. Ele toma conta dos peixes e vai matar vocês”
163
. Eles aceitam, mas rio
abaixo não peixes, e eles voltam de os vazias enquanto seu cunhado, o Ancestral
Socó-Boi, sempre retorna carregado de matrinxãs. Finalmente, eles ficam fartos daquilo e
decidem ir tentar a sorte rio acima.
O Ancestral Socó-Boi desperta e pergunta sobre seus cunhados a sua irmã, que lhe
informa sobre seu paradeiro. Neste meio tempo, o Jaguar fica com raiva dos cunhados do
Socó-Boi, mata-os e come-os, pois eles não sabiam como arpoar os peixes. Socó-Boi
decide ir com os irmãos dos homens mortos para vingá-los. Socó-Boi foi na frente
negociar e argumentar com o Jaguar que, por sua vez, não demonstrava nenhum remorso
pelo que havia feito. Os irmãos dos homens mortos chegaram e imediatamente atingiram o
Jaguar com uma flecha. Assim também o fez o Ancestral Socó-Boi. Eles mataram o Jaguar
e partiram, retornando à sua aldeia. Mais tarde, o Ancestral Socó-Boi retornou rio acima
para pescar, mas o havia nenhum peixe. Seu corpo/dono havia morrido e, assim,
todos foram em direção rio abaixo. O corpo do Jaguar se tornou a seringueira, suas folhas
caíram no rio e se transformaram em peixes piau, suas sementes tornando-se peixes pacu.
O narrador encerrou o mito explicando que “é por isso que a caça (bara) gosta da
seringueira”.
Este último ponto, concernente ao desejo da caça pelo corpo transformado do
Jaguar, nos leva a outro mito no qual o Jaguar é o caçador mais bem-sucedido porque
sempre sabe onde a caça pode ser encontrada. Ele vivia entre a gente-animal em sua aldeia
e, certo dia, ele matou um homem sem nenhum motivo aparente, continuando a agir como
se nada tivesse acontecido. Saiu novamente para caçar e os filhos do homem morto
decidiram segui-lo para se vingar. No caminho, eles ouviram o pássaro kopopo, com seu
canto característico: “ayta ityagwa, atya ityagwa, atya ityagwa
164
”. Os homens tentaram
matá-lo, mas subitamente ele se revelou como sua avó, que disse: “meus netos, por que
vocês tentam me matar? Eu estou chorando por causa da morte do pai de vocês; vocês
devem vingá-lo”. Ela lhes disse para irem encontrar o pássaro makiari, que lhes deu os
ramos de um cipó com os quais eles poderiam fazer uma rede. O pica-pau então apareceu e
os levou no ar até onde o Jaguar se encontrava. Eles armaram sua armadilha e, quando o
Jaguar chegou, eles correram até ele com a rede, emaranhando-o tanto que ele ficou de
ponta-cabeça. Eles flecharam os olhos do Jaguar, matando-o, e levaram seu coração de
163
O gênero desses Jaguares não é especificado, e eu utilizarei então o pronome ‘ele’ para referi-lo.
164
O kopopo é um pequeno pássaro não identificado. Seu canto soa como o termo Kanamari para ‘meu genro’
(atya ityagwa: DH, ZS, m.s.; DH, BS, w.s.). O homem morto pelos Jaguares era o genro de kopopo que desde
então chora de saudades.
218
volta à aldeia, onde então o cozinharam e comeram. No meio da noite, os homens
acordaram arrotando e se sentindo mal por causa do coração do Jaguar. Eles decidiram ir
olhar os ossos do Jaguar, no local onde eles o haviam matado. Mas chegando lá, o Jaguar
tinha virado um cana
165
.
Ambos os mitos revelam a ambivalência entre a violência do Jaguar e sua função
warah. Tal ambivalência impele a proto-humanidade a agir contra o Jaguar, eles próprios
atuando de formas violentas e destruindo os corpos assustadores do Jaguar. Os mitos
mostram como um corpo unificado se fragmenta em corpos menores que performam
versões localizadas daquilo que o Jaguar fez globalmente. No primeiro mito, o Jaguar é um
dono dos peixes que se transforma nas seringueiras em torno das quais, dizem os
Kanamari, os peixes se reúnem. A seringueira, cadáver transformado do Jaguar, perde
sementes e folhas que se tornam, respectivamente, os peixes pacu (Characidae sp.) e piau
(Anostimadae sp.). No segundo mito, o Jaguar vivia com os humanos e era o caçador mais
bem-sucedido entre eles tão bem sucedido que chega a ‘caçar’ um homem co-residente.
Os humanos então se vingam do Jaguar assassinando-o. Seu cadáver se transforma num
canamã, que é um local onde os animais de caça se reúnem. Em ambos os mitos, pois, a
função que é objetificada num único corpo se dissipa ao longo de uma série de corpos
equivalentes que executam a função com uma capacidade atenuada. Seu domínio sobre a
caça é reduzido, e eles já não são capazes de acessar e situar a caça em um único local. Eles
agora o fazem em lugares muito diversos mas homólogos (i.e. seringais e canamãs), e agora
apenas por períodos restritos, uma vez que os animais vão até eles para se alimentar e
depois se dispersam novamente. Todos os caçadores e pescadores que viajam a seus
canamãs ou áreas do rio ricas de húmus preferidos são diariamente relembrados disso, em
sua longa e incerta espera que a caça e os peixes retornem a seu corpo/dono.
Mestre(s) dos Peixes
No mito do Ancestral Socó-Boi, o Jaguar é o Mestre dos Peixes e, se certas
restrições forem observadas, é possível (mesmo que não totalmente seguro) a ele obter o
matrinxã
166
. Um detalhe aparentemente insignificante – a inabilidade dos cunhados do
165
‘Canamã’ é um termo regional, também conhecido como barreiro’ ou ‘chupador’ em outras partes do
Brasil. Eles são depósitos naturais de minério periodicamente procurados pelos animais para obtenção de sais
necessários, particularmente no auxílio à digestão.
166
O socó-boi é admirado na Amazônia por suas habilidades pesqueiras. Sua relação com o Mestre dos
Peixes não pára por aí, contudo. O Socó-Boi tende a se alimentar nos altos cursos dos rios, onde vive o
Jaguar no mito e que, veremos adiante, são associadas com o mundo mítico e atemporal. Algumas espécies de
219
Socó-Boi em obter sucesso na pesca faz com que o Jaguar os devore, empurrando essa
precária aliança em direção à guerra
167
. A morte subseqüente do Mestre dos Peixes leva à
dispersão de seus xerimbabos, como o faz a morte de qualquer corpo/dono, e agora os
peixes estão espalhados, fazendo com que seja difícil encontrá-los.
O fato de que o jaguar apareça inicialmente como ‘corpo/dono’ do matrinxã (Brycon
sp.), uma vez que são esses que o Ancestral Socó-Boi leva consigo à aldeia, revela a natureza
fractal do Jaguar–warah. Esses peixes são achados sobretudo nos principais cursos dos rios,
mais do que em córregos menores, particularmente naquelas áreas onde o rio é fundo e de
água escura mais que sedimentosa, e onde o surgem praias na estação seca. Eles são, no
entanto, conhecidos por viajar rio abaixo para desovar. Eles se alimentam de frutos e do
pequeno peixe piaba (Curimatidae sp.), que os Kanamari chamam de dom tinim (‘peixe
magro’), que abunda tanto em quantidade o peixe mais comum encontrado no Itaquaí)
quanto em qualidade (há muitos diferentes tipos de peixes similares chamados dom tinim). A
piaba vive majoritariamente na mesma área habitada pelo matrinxã, mas, ao contrário deste
último, ela viaja nos meses de inverno para áreas de água mais sedimentosa, onde colocam
os ovos, retornando posteriormente para áreas mais altas do rio, ou para pequenos
córregos. Disseram-me, em diversas ocasiões, que o matrinxã é o ‘corpo/dono’ (-warah) da
piaba, pois eles ‘vivem no mesmo lugar’.
O mito revela assim a seguinte série fractal/corporal: Jaguar ? matrinxã ? piaba.
Ele implica num movimento que vai do um ao múltiplo: há um Jaguar, há muitos matrinxãs
e há infinitas quantidades e qualidades de piaba. Além disso, eles indicam sempre esferas de
mobilidade mais extensas. O Jaguar, que situa a todos, vive imutável no alto curso. O
matrinxã nada ao redor dessas áreas e em córregos, e a piaba vive nos córregos e se desloca
ocasionalmente para o curso principal dos grandes rios, apenas para, mais tarde, retornar ao
seu corpo/dono. Temos, pois, a série homóloga: fixo no alto curso do rio ? nadando ao
longo dos principais fluxos de água ? nadando em córregos e, em seguida, nos principais
fluxos de água. Cada movimento ao longo da escala também significa uma subtração da
função predatória: partindo do Jaguar, o arqui-predador, passando pelo matrinxã, que come
a piaba, até chegar a esta última, que se alimenta principalmente de frutos e insetos
168
.
socó-boi (particularmente as variedades do socó-boi ferrugem) emitem um som similar ao de um rugido, que
os Kanamari dizem parecer com o som ‘hi hi’ dos jaguares.
167
Tu’am Pidah anim... ‘assim é o Jaguar’, diz o narrador. Presumo que com isso ele estivesse querendo dizer
que os Jaguares são predispostos à violência e matam por nenhum motivo aparente.
168
A informação sobre o comportamento desses peixes foi obtida dos Kanamari, mas é amplamente
confirmada por outros estudos (Carneiro da Cunha et al 2002, 550). A única diferença é que, ao que parece, a
piaba também come carne ou qualquer outra coisa ao alcance (ibid., 552), o que não foi o que os Kanamari
me disseram.
220
Note-se que, deixando por ora de lado a fórmula predatória, esta escala replica
aquela do modelo da endogamia de subgrupo. Os chefes de subgrupo são, em grande parte,
imutáveis, e associados à permanência da maloca, em torno da qual as aldeias gravitam.
Chefes de aldeia, por sua vez, situam suas aldeias em córregos fora do rio no qual o chefe
de subgrupo reside. As pessoas de uma aldeia são capazes de se deslocar por toda bacia do
rio, se estabelecendo, dentro de certos limites, com novos chefes.
Ainda assim, não nada nesse modelo que permita conter o mundo como faz o
Jaguar, comprimindo-o em seu corpo, situando-o em uma única área confinada
169
. Os
chefes de subgrupo vivem em um mundo repleto de outros chefes de subgrupo, diferentes
mas equivalentes, com quem mantêm Hori. O Jaguar parece viver sozinho, rio acima, não
muito interessado em receber vizinhos outros que o Ancestral Socó-Boi, e, mesmo nesse
caso, de vontade. Mas os mitos narram a morte desse corpo, que correspondia a uma
parte do mundo. Ele deve, assim, ser entendido como movimento, como o processo pelo
qual um corpo-Jaguar se torna muitas seringueiras, e um aspecto do mundo do Jaguar (um
corpo/dono de dimensões quase inimagináveis) se torna um aspecto do mundo humano
(os seringais). Conseqüentemente, é a morte do Jaguar que permite que os componentes do
seu corpo efetuem a mobilidade traçada nas séries acima. Antes de o Jaguar ser morto, não
há peixes rio abaixo e os cunhados do Ancestral Socó-Boi retornam de mãos vazias.
Depois que o Jaguar morre e se torna as seringueiras, no entanto, “... todos eles foram rio
abaixo”, pelo que eu entendo que eles ampliaram seu campo de mobilidade.
Os Kanamari dizem que os peixes gostam de se reunir nas áreas em torno das
seringueiras, se alimentando de suas folhas e sementes. De fato, o mito explica que as
sementes dessas árvores tornaram-se pacu, e as folhas piau
170
. Isto tanto reforça a
habilidade do Jaguar de situar todos os peixes quanto a relação assimétrica entre seu corpo
singular e os múltiplos corpos destes últimos. Se o Jaguar contém uma cadeia alimentar
predatória rio acima, sua morte parece generalizar as relações alimentares, ao garantir que
todos os peixes se reúnam, em dado período, em torno do seu corpo. Assim, ele não mais
mantém os peixes em uma área sobre a qual ele é o único mestre, mas em uma quantidade
de seringais, concentrações de árvores em torno das quais os peixes se alimentam. Por
causa disso, sua infinita habilidade de situar não apenas se dissipa através do mundo, mas,
169
Os Kanamari diriam que o Jaguar ‘juntou’ (-odyo) os peixes. É porque o Jaguar mantém unidos os
componentes de seu corpo que os ‘peixes são escassos rio abaixo’ e os cunhados do Ancestral Socó-Boi
precisam ir rio acima, até o Jaguar, para obtê-los.
170
uma espécie de pacu que se alimenta das sementes da seringueira, esmigalhando-as com os dentes
(Carneiro da Cunha et al 2002, 551). Os Kanamari usam essas sementes como isca quando pescam pacu. O
piau se alimenta de adubo de matéria orgânica, particularmente ao redor de árvores que tenham caído no rio
ou cujas raízes vão até dentro d’água. (ibid., 553).
221
no processo, se atenua, uma vez que os peixes vão se alimentar próximos aos seringais e,
em seguida, se afastar. O Jaguar é, pois, transformado de um Mestre dos Peixes (um
corpo), que mantém fixos os componentes de seu corpo, em árvores ao redor das quais os
peixes se reúnem e das quais gotejam.
Mestre(s) da Caça
O mito do Ancestral Socó-Boi se conclui com o narrador dizendo que, porque a
seringueira era um Jaguar, ‘os animais de caça gostam da seringueira’. Eu ouvi muitas
versões dos dois mitos resumidos acima, mas sem variação significativa entre elas. As duas
que eu usei aqui foram gravadas com informantes diferentes, em aldeias diferentes, com
um intervalo de mais de um ano entre elas. O fato de que, na observação final de uma
versão do mito em que o Jaguar é um ‘Mestre dos Peixes’, o narrador ressalte que a caça é
também atraída para seu corpo transformado, sugere a intervariabilidade da função que
cada uma performa. Se eu estou certo em enfatizar que o Jaguar era outrora o Mestre de
Tudo’ e que os Kanamari reduziram seu domínio para serem capazes de narrar seus mitos,
então essa referência cruzada de domínio sobre diferentes reinos não nos deveria
surpreender. A observação final do mito do Ancestral Socó-Boi conecta-o assim,
logicamente, ao segundo mito, do Jaguar ‘Mestre da Caça’ que se torna um canamã
171
.
Neste mito, o Jaguar vive com os humanos numa aldeia na qual ele era o melhor
caçador. Embora os Kanamari não o digam explicitamente, este fato provavelmente fazia
com que a aldeia fosse altamente dependente do Jaguar. Um dia, entretanto, ele age com
pura violência predatória, matando um co-residente. Os homens buscam vingança, sendo
ajudados por uma série de animais ao longo do caminho. Eles matam o Jaguar e, algum
tempo depois, quando retornam para olhar seu cadáver, este se tornara um canamã. Estes
são os sítios de caça preferidos pelos Kanamari
172
. Todo caçador tem ao menos um canamã
preferido, no qual pode esperar um dia inteiro até que a caça apareça. Os animais de caça
inevitavelmente retornam ao canamã, especialmente antas, queixadas, veados e caititus.
Caçar em um canamã pode requerer uma grande dose de paciência, mas é quase sempre
bem sucedida.
171
Devo acrescentar que os termos para ‘caça’ (bara) e ‘pesca’ (dom) não se sobrepõem: a pesca não é
considerada uma sub-espécie de ‘caça’, e bara se refere a animais terrestres e pássaros que os Kanamari caçam.
Ver capítulo seis sobre esse ponto.
172
Os Yagua do Peru oriental (ver Chaumeil 2000, 32) e os Achuar de língua Jívaro (Descola 1996, 236)
também emboscam a caça nos canamãs.
222
As relações entre o Jaguar e a caça neste mito são menos claras, mas consistentes
com o mito do Ancestral Socó-Boi no qual a função sintética do Jaguar torna-se
desigualmente distribuída pelo mundo. Seu movimento vai de um Jaguar que sempre
garantia que a aldeia contasse com carne de caça até os canamãs, salpicados sobre a
paisagem, aos quais a caça retorna, e assim conta como um corpo que era um mestre da
caça se transforma em muitos corpos em tornos dos quais a caça se reúne
intermitentemente.
Os Kanamari dizem que os animais de caça não viajam apenas aos canamãs, mas
também para áreas de atividade humana. Daí eles também ‘gostarem’ (-nakibak) dos
seringais
173
. Não são apenas, é claro, a caça e os peixes que se reúnem nestes ou próximos a
estes locais. Os brancos chegaram à área onde vivem os Kanamari em busca dos seringais,
corpos transformados do Jaguar, e os próprios Kanamari vieram mais tarde ver os
benefícios destes corpos – a ponto de, quando mudaram para o Itaquaí, eles se assegurarem
que suas aldeias fossem situadas próximas às concentrações de seringueiras. Canamãs são
também áreas às quais os Kanamari vão, sabendo que a caça irá retornar ao corpo/dono
transformado do Jaguar, que é seu próprio corpo/dono. Os brancos, que co-residiram com
os Kanamari por significantes períodos de tempo, também gostam de caçar nessas áreas.
A conjunção de seres tão diversos e por um curto período de tempo nessas regiões
é resultado de uma mudança de Jaguares contínuos a Jaguares descontínuos. Cada um
desses seres vive em sua própria área: os Kanamari vivem em suas aldeias nas bacias do rio,
os brancos vivem ‘na cidade’, os animais de caça vivem ‘na floresta’ (ityonim naki) e os
peixes vivem ‘no rio’ (wah naki). Na medida em que é a origem última de todos eles é a
‘cultura daqueles de muito tempo atrás’ –, o Jaguar situou tudo e todos. É do Jaguar que o
mundo verteu, como os peixes que fluem progressivamente em direção a áreas mais
inclusivas do rio a partir de seu corpo/dono. Mas, como o corpo internamente múltiplo do
Jaguar se tornou uma série de Jaguares menores e externamente múltiplos (seringais e
canamãs), as pessoas e os animais se tornaram capazes de situar a si próprios, pelo menos
por algum tempo, longe dele. Mas eles ainda dependem e são atraídos para sua origem
Jaguar; eles devem ainda deixar suas casas e retornar ao Jaguar por curtos períodos de
tempo para se alimentar e/ou para obter borracha.
A arena provida por cada um desses Jaguares fragmentados não é, de modo algum,
segura. Humanos e brancos caçam os animais neles e próximos a eles, os predadores
173
E também de capoeiras e roçados como veremos adiante.
223
atacam a caça, os brancos matam os Kanamari todos nas (e por causa das) pequenas
porções de Jaguaridade que pontilham a paisagem.
Do um ao múltiplo
Para concluir esta seção, gostaria de me focar nesse aspecto predatório do Jaguar e
nas transformações por quais ele passa em cada mito. Vimos como, no mito do Mestre dos
Peixes, o Jaguar contém uma cadeia alimentar predatória que encompassa todos os níveis
tróficos. O mito do Mestre da Caça deixa claro que o Jaguar é o melhor caçador, ‘sempre
sabendo onde encontrar a caça’. Ambos estão no topo de sua cadeia alimentar, capazes de
matar e predar todos aqueles seres que seus corpos contém ou dominam.
É quando a conjunção entre a habilidade dos Jaguares em situar aquilo que seus
corpos contêm e sua força predatória vem à tona, que a humanidade precisa agir. Em
ambos os casos, esta conjunção tem trágicas conseqüências para ‘as pessoas’. Seu desejo
por caça e peixes entra em conflito com a crueldade do Jaguar, e este mata os homens
apenas porque eles não sabiam pescar ou por ‘nenhum motivo aparente’. Como resultado,
as pessoas reagem de formas violentas, despedaçando o corpo do Jaguar em corpos que
são capazes de situar a caça e os peixes por certos períodos de tempo. Seu controle,
previamente absoluto e contínuo, é tornado agora parcial e discreto.
No entanto, tal fragmentação dos corpos dos Jaguares, seu movimento do um ao
múltiplo, os transformam de ápice da cadeia alimentar em seu produtor primário. O
matrinxã, a piaba, o pacu e o piau irão se alimentar próximos às áreas de seringueiras, e os
animais de caça terão que retornar aos canamãs. O corpo do Jaguar produz agora sustento
para todos os seres vivos, que devem periodicamente retornar a ele para obter comida. Ao
mesmo tempo, a mudança de um Jaguar em muitos seringais e canamãs libera o
movimento que o Jaguar contém, permitindo que os componentes de seu corpo circulem.
A fragmentação do Jaguar, em outras palavras, cria a paisagem, que flui a partir dele. Aquilo
que era mantido como um é agora desigualmente distribuído no múltiplo.
Para se alimentar, humanos e animais precisam se reagrupar nos e em tornos dos
corpos transformados do Jaguar, seu original corpo/dono. Estes corpos, assim, situam
todos, mas eles o podem fazer por certos períodos de tempo: aqueles humanos e
animais que sobrevivem ao encontro irão retornar às suas casas, em aldeias, cidades,
florestas ou rios. Esta habilidade dos Jaguares fragmentados dos quais os seringais e
canamãs são parte é reconhecida pelos Kanamari, que dizem que o ‘Jaguar junta todo
224
mundo’ (Bakatu Pidah-n-a-odyio-nim). A palavra Kanamari bakatu’, que eu glosei como ‘todo
mundo’, se refere a ‘todo mundo no mundo’, os Kanamari, os brancos e os animais. Ela é
diferente da palavra ‘nimbaktih’, que se refere apenas a grupos específicos dentro de bakatu’:
todos os humanos (Kanamari), ou todos os brancos, ou os pecaris, um de cada vez e assim
por diante.
Esta aglomeração de todos nos e em torno dos corpos transformados do Jaguar
cria uma arena onde a predação é novamente o idioma, mas na qual a direção da predação é
revertida. Animais e peixes se alimentam no corpo transformado do Jaguar, mas sua
dependênia em relação a este último os coloca em risco e os faz novamente possíveis
vítimas de atividade predatória, desta vez da predação humana. Isso, por sua vez, tem
implicações importantes para a humanidade. A comida que eles obtêm desses corpos-
Jaguar é duplamente próxima de sua perigosa fonte: 1) os animais que eles predam são
partes componentes dos corpos dos Jaguares míticos, fluindo destes após a humanidade ter
destruído seus corpos/donos originais, e voltando a eles para se alimentar; e 2) os animais
que os homens comem se alimentam precisamente dos próprios corpos transformados dos
primeiros. Como os protagonistas do mito do Mestre da Caça aprenderam, um preço a
pagar por comer uma comida que é ainda muito próxima ao Jaguar. Eles comem seu
coração e, mesmo depois de cozido, este ainda faz os homens se sentirem mal. Isto serve
como uma lembrança que a comida deve ser transformada, e, assim, o canibalismo
despotencializado (Fausto 2002).
A fragmentação do Jaguar, pois, libera seu movimento junto com suas partes
componentes. Ela também atenua a capacidade predatória do Jaguar, agora não mais capaz
de situar todo mundo o tempo todo em seu próprio corpo. O movimento do parentesco
Kanamari, sobre o qual eu me debruçarei agora, é precisamente o de manter esses dois
componentes separados: conquistando estabilidade em um mundo feito de fluxo e
mantendo a atividade predatória associada a esse fluxo a uma boa distância.
Fragmentando o Jaguar
O Jaguar foi fracionado em porções de paisagem em torno das quais os animais se
juntam. Na presente seção, eu mapearei as implicações disto para o modelo da endogamia
de subgrupo. Retornarei, pois, à questão dos subgrupos Kanamari e sua relação com áreas
geograficamente circunscritas, e também discutirei um assunto que, ao momento, foi
225
deixado em aberto: a relação conceitual entre os subgrupos –dyapa dos Kanamari e seus
inimigos Dyapa, os temidos grupos de língua Pano.
O Rio-Jaguar
Embora não tenha sido explicitado no capítulo um, o modelo da endogamia de
subgrupo sugere, como seu limite, uma área com esmagadora capacidade de situar e uma
igualmente horripilante propensão à violência que recorda a definição do Jaguar. Ali, eu
forneci os contornos para o que chamei de modelo de endogamia de subgrupo, em que foi
mostrado como os subgrupos eram organizados por meio de um modelo escalar baseado
no conceito de –warah.
Em termos bem reais, o subgrupo era um ‘corpo’ (-warah) de parentes, fisicamente
localizado pela presença de níveis de chefia. Os Kanamari dizem que era possível se mover
entre aldeias dentro da bacia do rio, e mesmo criar novas aldeias, mas não teria sido
possível mudar a afiliação a um subgrupo e nem se mudar permanentemente da bacia do
rio ocupada pelo seu subgrupo. Outras bacias eram consideradas perigosas, e me disseram
que não costumavam ir viver em outro rio, pois tal movimento prolongado freqüentemente
resultava em doenças e aem morte. se pode viver em seu próprio corpo/dono, o que
equivale a dizer que o nível mais abrangente de ‘corpo/dono’ para o subgrupo era o seu
tributário do Juruá, que encompassava níveis de corpo/dono baseados nos córregos que
fluíam para este tributário.
Vimos também que havia um limite de inclusividade permitida por esse modelo,
pois os tributários mesmos fluem para o Juruá, o –warah de todos os rios. No entanto, não
havia função de chefe correspondente a ele. Argumentei que, para os Kanamari, isto é
mesmo como as coisas deveriam ter acontecido, uma vez que o Juruá parecia suscitar
reações ambivalentes: respeitado e imponente, era também um rio no qual não se podia
viver, fluindo em águas barrentas, repletas de mosquitos, e povoado por perigosos povos
de ngua Pano. Mostrarei agora que o Juruá, para os Kanamari, é uma potente expressão
física dos Jaguares míticos cuja morte acompanhamos acima, e a razão pela qual este rio é
inóspito é que ele também deve ser fracionado para que a sociedade se estabeleça nele e ao
longo dele.
O Juruá é freqüentemente referido como ‘o rio do Jaguar’ (Pidah nawa wah). É o
único referente geográfico que parece pré-existir a tudo, e o único rio que é nomeado nos
mitos do Céu Antigo. No mito do Jaguar como Mestre dos Peixes, por exemplo, temos
226
coordenadas, como rio acima e rio abaixo, mas nenhuma referência a qual rio estaria
implicado. Isso contrasta com a maior parte das outras histórias que vimos até aqui, como
as de Jarado, Preto Português, a prisão de João Dias e Sabá, nas quais os Kanamari passam
boa parte do tempo obcecados com a exata localização dos eventos ocorridos. Quando
perguntei aos Kanamari a qual rio se referiam as coordenadas do mito do Mestre dos
Peixes, no entanto, eles responderam imediatamente ser o Juruá. Eu não ouvi nenhum mito
de criação do Juruá, como também não há criação do Jaguar. De fato, o único ato
associado à ‘feitura’ do Juruá deriva de seu nome, Wuniem Kanamari. Diz-se que, no
tempo mítico, o Jaguar viajou rio acima e abaixo, gemendo consigo mesmo: wuni, wuni,
wuni. Isto foi o suficiente para os Kanamari, “este será o nome do rio. O Jaguar o
nomeou”
174
.
Se não nenhum mito concernente à origem do Juruá, eu ouvi uma explicação de
como seus tributários foram formados. Tamakori, dizem, situou a si próprio no Juruá e,
com suas costas para ele, ‘soprou’ (topohman) os tributários com seu sopro mágico. Parte
significativa do que Tamakori consegue com sua presença na terra é reduzir a capacidade
predatória do Jaguar e cessar as transformações em curso que fluem de seu corpo
fragmentário. Os Kanamari não poderiam viver nesse rio-Jaguar e se estabelecem, assim,
retirando-se dele, fracionando-o. O ato de Tamakori é, pois, parte do processo de criar
descontinuidades no corpo contínuo do Jaguar, aqui representado pelo Juruá. O Juruá é o
Jaguar por ser o corpo último de todos os tributários e inerentemente perigoso, temível e
desagradável. Tal qual o Jaguar, ele sintetizava em um tanto uma capacidade predatória
quanto uma infinita habilidade em localizar.
A relação entre esta fragmentação do corpo do Jaguar e as que seguimos acima é
também expressa na circunscrição geográfica dos subgrupos. Deve-se recordar que todos
os tributários do Juruá possuem concentrações de seringueiras das quais os Kanamari
extraíam borracha. As aldeias eram freqüentemente situadas próximas a elas, e a borracha
coletada era entregue ora para o chefe de subgrupo, ora para ‘aqueles que fazem as pessoas
fazerem coisas’, de forma que ela pudesse ser trocada com os brancos que viviam no Juruá.
Os Kanamari nunca me disseram que os subgrupos tivessem reserva exclusiva de
sítios de caça em seus rios. Disseram-me, em vez disso, que qualquer um podia caçar onde
quisesse, ‘contanto que fosse Kanamari’. Parece evidente, contudo, que as pessoas
174
Há um mito envolvendo Tamakori e seu irmão Kirak que explica como o Juruá, que costumava ser um rio
de mão-dupla, correndo tanto para cima quanto para baixo, passou a correr numa única direção, assim como
a história concernente ao seu nome, mas o nenhuma referência a sua criação (mas ver Reesink 1993,
125, que aparentemente ouviu que o Juruá foi criado por Tamakori, embora aqui também haja ambivalência).
227
aprendem a caçar na área que elas possuem’, via seu subgrupo, na medida em que esta é a
terra na qual ‘vivem’ (to). Isto é parte do processo de ‘aprender como viver bem’, ityonim
tikok, literalmente ‘conhecer a terra’. Sítios de caça deveriam, pois, ser situados em uma
área onde vivem os parentes o tributário controlado por um subgrupo. Isso recebe uma
expressão nos rituais Hori entre os subgrupos, onde os convidados devem trazer carne de
caça defumada ou salgada desua terra’, mas não caçam efetivamente durante o Hori, o que
é deixado a cargo dos anfitriões que, então, estarão caçando em ‘sua terra’.
O ‘modelo de endogamia de subgrupo’ inscreve no espaço o mesmo movimento
delineado no mito. Os subgrupos se estabelecem próximos ao Juruá, ocupando os
tributários e o o seu curso principal, assim como a ‘humanidade’ começou a ser formada
contra o corpo do Jaguar. Em ambos os casos, uma unidade múltipla é fragmentada em
uma multiplicidade de unidades que mantêm a função Jaguar sob uma forma debilitada.
Em uma chave mítica, o Jaguar se despedaçou em muitos seringais e canamãs; numa chave
hidrográfica, o Juruá se despedaçou em uma série de tributários.
O Hori Revisitado
O Juruá propriamente dito era evitado pelos Kanamari, mas era impossível fazê-lo
completamente. No Hori ou, ao menos, no Hori ideal de antes do contato os membros
de um subgrupo deixavam seu tributário e viajavam ao longo do eixo do Juruá, antes de ir
aos tributários pertencentes a outros subgrupos. Tais viagens pelo Juruá eram-me descritas
como sendo muito mais difíceis do que aquelas ao longo de seus tributários. Embora os
Kanamari sejam navegadores experientes, o curso do Juruá é dito ser particularmente forte,
e assim eles precisam evitar o meio do rio. Eles sempre fazem isso quando viajam rio
acima, para evitar a resistência oferecida pela corrente, mas viagens abaixo em rios menos
violentos se beneficiam destes cursos e os Kanamari preferem negociar suas canoas ao
longo deles
175
. Isto é impossível no Juruá, onde qualquer momento de desatenção pode e
freqüentemente o faz resultar na inundação da canoa e, possivelmente, em morte
176
. Por
175
Viajar ao longo de um canal de rio reduz largamente o esforço feito pelos remadores. Tudo o que eles têm
que fazer é direcionar seus remos para que a canoa fique no curso principal e não derive em direção às
margens. Viajar ao longo de um rio deste modo é conhecido pelos brancos locais como ‘viajar de bubuia’,
expressão que os Kanamari adotaram. Em sua língua eles contrastam essa forma de viagem ‘pelo meio do rio’
(wah wakonaki-na) com ‘viajar por suas margens’ (wah notom wa-na).
176
Isto aconteceu com o irmão mais velho de Poroya, Arô, em inícios da década de 1980, enquanto ele
viajava à cidade de Eirunepé. Dyanim, que sobreviveu ao emborcamento da canoa, me contou como tudo
aconteceu muito rápido, e ele teve tempo de salvar seu filho. Arô e um outro homem morreram e seus
corpos nunca foram achados, nem mesmo mais tarde, encalhados em alguma das margens do Juruá. Dyanim
disse que assim é o Juruá, ele ‘come as pessoas’ (atukuna-pu Wuni amtunim) e elas nunca mais são vistas.
228
esta razão, eles se mantêm à margem esquerda do Juruá, próximos às bocas de seus
tributários, evitando cruzar o rio ou apressar a viagem aproveitando-se da corrente.
Devido a esse perigo, viagens pelo Juruá eram assuntos tensos e velados. Isto devia
estar em contraste com outros momentos das viagens do Hori. Enquanto as canoas eram
preparadas para o Hori, deixando suas aldeias, as pessoas gritavam de alegria diante da
perspectiva de ir visitar seus –tawari. Quando a canoa parava em outras aldeias na bacia de
rio do subgrupo, as pessoas costumavam chamar seus parentes, para que fossem buscar
seus pertences e viajar com elas. É impensável que uma canoa passe por qualquer aldeia
Kanamari sem parar e convidar as pessoas para acompanhá-la. Viagens que seriam apenas
pequenos empreendimentos inevitavelmente chegam a seu destino com as canoas
apinhadas de gente, todas elas gritando e fazendo soar suas buzinas hori para chamar as
pessoas para seguir com eles. E quando a canoa, uma vez mais, entrava em um tributário
do Juruá, aquele de seu –tawari, as pessoas se mantinham quietas, mas o som do hori rompia
o silêncio para que os anfitriões soubessem que seus convidados haviam chegado. Ao
passar por aldeias menores, eles contavam a seus –tawari que estavam indo para um Hori na
maloca. Mas o Juruá, neste ínterim, estava silencioso. o havia ninguém para ser
embarcado, uma vez que ali não havia aldeias Kanamari, apenas a possibilidade latente de
ataques dos Dyapa e, vistos a certa distância, os barracões dos patrões da borracha. Como
me disse um Kanamari, ‘nós apenas soprávamos o hori quando alcançávamos o rio de
nossos –tawari’.
Vimos no capítulo um, entretanto, que, em pelo menos uma ocasião, alguns
Kanamari dos tributários da margem esquerda do Juruá reuniram-se para uma visita Hori
aos Kulina, provavelmente em algum momento dos anos de 1930. Mesmo que esse tipo de
esforço fosse mais comum no passado, era, ainda assim, excepcional. Os Kulina que eles
visitaram viviam nos tributários da margem direita do Juruá. Cruzar o Juruá (Wuni tukuhni)
não é um empreendimento simples, nem tampouco o é visitar os Kulina. Vimos como
estes últimos funcionam como uma espécie de inquietante alter-ego dos Kanamari, outros
que, embora incrivelmente perigosos e propensos a ‘inimizá-los’, podem, no entanto,
tornar-se –tawari em certas situações. E esses Kulina específicos forneciam um reflexo
quase perfeito dos Kanamari, como se o Juruá fosse um limiar cuja ultrapassagem os
trouxe a este perigoso mundo.
A reunião destes –tawari em uma situação na qual eles visitavam outros e distantes
tawari, não poderia ser realizada pelo tipo de estrutura que viemos analisando. Se não havia,
nos anos de 1930, nenhum Kanamari que representasse tal grau de capacidade-
229
‘corpo/dono’, então esse Hori não poderia ter ocorrido através deles. E, de fato, não
ocorreu, pois é preciso lembrar que, para haver Hori, era preciso que Alfredo Mendes, o
‘Governador do Estado do Amazonas’, o supervisionasse. Os Kanamari não podiam
imaginar um chefe que fizesse por eles o que o Juruá faz em relação aos seus tributários,
nem deixariam tal papel a cargo dos maliciosos Kulina. Foi preciso que um homem branco
muito poderoso, o ‘corpo/dono’ de todos os patrões, possibilitasse tal reunião. E mesmo
assim, este Hori tendeu mais para seus aspectos antagonísticos, baseando-se quase que
exclusivamente nas lutas de couro de anta e, apenas em menor grau, no consumo de
cerveja de mandioca. Seus riscos eram tantos, que eles decidiram nunca mais fazer outro
igual.
Mas tudo isso levanta a questão da relação entre cruzar o Jaguar e viajar ao longo
dele. A parte do Juruá pela qual os Kanamari que me concernem viajavam regularmente em
expedições Hori era a que ficava entre o Mucambi, rio acima, e o Mawetek rio abaixo. É
apenas raramente que eles viajavam para visitar os Kanamari que viviam na margem direita
do Juruá, rio abaixo do que é hoje a cidade de Eirunepé. E cruzar o rio parece ter se
limitado a esse possivelmente único Hori e, ocasionalmente, para trocar com patrões cujos
barracões ficavam na margem direita do Juruá. Para além dessa região do rio do Jaguar
restam apenas, rio acima, os odiosos Dyapa e, rio abaixo, uma infinita sucessão de brancos,
até Manaus.
A Criação dos Diferentes Povos
Para os Kanamari, as pessoas que existem no mundo atual o foram, estritamente
falando, criadas a partir da proto-humanidade que as precedeu. A ‘gente-animal’ que povoa
a mitologia Kanamari tornou-se, em última instância, diferentes tipos de animais e não de
humanos. Isso não significa que as relações estabelecidas nesta fase formativa não sejam
importantes, pois são elas que vão guiar a humanidade que sucedeu a ‘gente-animal’, como
veremos brevemente.
Ao contrário, os Kulina, os Dyapa e os Kanamari foram criados por Tamakori e seu
irmão Kirak a partir das sementes ou do tronco de palmeiras, enquanto os brancos foram
criados por Tamakori em Manaus a partir de um grupo de Kanamari que viajara rio abaixo.
A criação dos brancos será tratada no capítulo cinco, mas para entender o análogo
sociológico à fragmentação do Jaguar temos agora que nos voltar para o modo pelo qual os
três primeiros povos foram criados. Minha discussão desse tema aqui requer alguma
230
justificação. Na medida em que minha exposição segue uma ordem lógica, que narra como
o mundo foi sucessivamente formado a partir de Jaguares fragmentados, o mito da criação
da humanidade deveria ser posteriormente discutido. Ele parece preceder, logicamente, a
Viagem de Tamakori, o ato final do tempo mítico que será discutido no capítulo cinco
177
.
No entanto, sem uma tal discussão aqui eu o posso prosseguir. Isto é esperado, uma vez
que o ar ‘cronológico’ da minha exposição é de minha própria responsabilidade, e
provavelmente não seria ao menos em suas especificidades reconhecida pelos
Kanamari.
Tamakori fez (-bu) os primeiros Kanamari (tukuna) da semente da palmeira jaci (poro
em Kanamari, Lat. Attalea butyracea). Ele os fez com a ajuda de seu irmão (em outras
versões ‘companheiro’) Kirak, que trepou na palmeira e atirou as sementes sobre as costas
de Tamakori. Impressionado, Kirak quis fazer igual. Então Tamakori trepou em uma
palmeira diferente, a karatyi
178
, e atirou as sementes em Kirak, que, desajeitado, se
atrapalhou e as derrubou todas no chão, sem conseguir apanhar sequer uma delas. Dessas
sementes surgiram os Kulina, e porque elas se espalharam pelo mundo, os Kulina são
numerosos e ocupam extensas porções de terra
179
. Tamakori então prosseguiu para fazer os
Ameríndios de língua Pano, os Dyapa, a partir do tronco da jaci. Porque se originaram do
tronco, e não das sementes, os Dyapa são ferozes e duros.
Se estas características distinguem os Dyapa dos Kanamari, o mito também
especifica que os primeiros se originaram da mesma palmeira jaci cujas sementes viraram os
tukuna. Ao longo da minha exposição, vimos como o conceito fractal de –warah subsume a
hidrografia, o ‘corpo’ e as árvores em uma mesma arquitetura. O termo para ‘tronco de
árvore’ é –warah porque ele é o ‘corpo/dono’ do resto da árvore, incluindo suas sementes (-
kom) e folhas (-ba). Assim, o mito de origem conclui que os Kanamari (tukuna) são as
sementes do tronco que são os Dyapa.
problemas de escala que, no entanto, permanecem. Permitam-me reproduzir a
equação fractal que estabeleci no capítulo um, na qual a estrutura interna do subgrupo era
expressa em relação a seu entorno:
rio : tributários :: tronco da árvore : galhos :: chefe de subgrupo : chefe de aldeia
177
A versão da Viagem registrada por Reesink, por exemplo, situa explicitamente tal criação como um
prenúncio a ela (1993, 524-31; 548).
178
Muito provavelmente a palmeira inajá (Maximiliana maripa). Ver Reesink (1993, 147).
179
De uma perspectiva Kanamari, é claro.
231
Ali eu mostrei, por exemplo, que o chefe de subgrupo é um ‘tronco’ em relação ao
chefe de aldeia, pois que o primeiro, baseado em um tributário do Juruá, situa o último,
baseado nos córregos que fluem para o tributário. Mas agora vimos que os Dyapa são um
‘tronco’ em relação aos Kanamari como um todo, que não são nem mesmo os ‘galhos’ do
Dyapa, mas suas sementes.
Há dois pontos que precisam ser explicitados de modo a estabelecer como a
equação ‘Dyapa : Kanamari’ se liga à série. O primeiro é que, se as séries reproduzidas acima
nos ajudaram a entender a estrutura interna ao subgrupo, esta equação engloba a equação
final da série dentro de si, de modo que: chefe de subgrupo : chefe de aldeia :: Dyapa :
Kanamari. O resultado é que, se a homologia entre ‘chefe de subgrupo : chefe de aldeia’
explica como as relações –warah são organizadas dentro do subgrupo, a oposição Dyapa :
Kanamari’ delimita a mesma relação para além dele. Isso é evidente na medida em que os
Dyapa são o tronco para todos os Kanamari (sementes), enquanto o chefe de subgrupo é
tronco apenas para alguns deles (no caso, galhos). Em outras palavras, devemos fazer um
recuo ontológico e argumentar que, neste afastamento, na alvorada dos tempos, a distinção
entre os Dyapa e os Kanamari é a pertinente, e que a distinção entre chefe de subgrupo de
chefe de aldeia segue-se, logicamente, daí. Desta perspectiva, a equação Dyapa : Kanamari’
não pode ser inserida na série; seria necessário transformar a equação em uma que
relacionasse Dyapa : -dyapa’. Mas o mito de origem não fornece distinção entre os
subgrupos, e é apenas nos mitos que seguiremos em breve que as relações necessárias para
obtê-la são delineadas.
O segundo ponto, decorrente daquele, é que o mito de origem não
concerne diretamente às coordenadas precisas do modelo de endogamia de subgrupo, mas
apenas à instanciação das distinções máximas entre os ‘povos’ e sua relação. Por isso todos
os Kanamari são ‘sementes’, duplamente, talvez triplamente, situados pelo tronco Dyapa. O
mito, pois, estabelece distâncias fractais máximas entre ‘os Dyapá e ‘os Kanamari’ sem
estipular um aspecto positivo da relação entre ‘sementes’. o nada na relação entre os
Dyapá e os Kanamari que sugira por que algumas sementes se tornam galhos (chefes de
aldeia) e, então, eles mesmos troncos (chefes de subgrupos).
Para começar a dar forma aos ‘Kanamari’, afim de que o molde do
agrupamento de sementes em unidades maiores seja traçado, precisamos nos voltar para a
criação dos Kulina. Neste recuo interpretativo, fica claro que ‘os Kulinasão uma categoria
equivalente ‘aos Kanamari’. Nisto, eles são imediatamente distintos dos Dyapá, cuja origem
sugere uma relação assimétrica com aqueles. Os Kulina e os Kanamari se originaram das
232
sementes de diferentes palmeiras, criados em movimentos inversos: os Kanamari sendo
amparados sobre as costas de Tamakori após Kirak ter lançado as sementes de jaci sobre
ele; e os Kulina sendo criados após Kirak ter falhado em amparar nas costas as sementes da
karatyi que Tamakori atirou em sua direção. Desse modo, se os dois o categorias
equivalentes (ambos sementes de palmeira), eles são espécies diferentes (jaci e karatyi
180
),
criadas por meio dos atos de heróis distintos mas relacionados (Tamakori e Kirak), através
de dois processos opostos (concentração e dispersão). Tais origens explicam porque os
Kanamari são menos numerosos e menos ‘espalhados’ que os Kulina e também, por serem
de espécies diversas, porque eles falam línguas mutuamente ininteligíveis (Reesink 1993,
147).
Elas também sugerem que eles ocupam posições equivalentes dentro de
estruturas análogas. Ambos são as sementes de troncos diversos. Não tive oportunidade de
investigar o quê ou quem os Kanamari considerariam como sendo o ‘tronco’ dos Kulina, e
não ouvi nada que pudesse sugerir o que poderia ocupar tal posição. Mas deve haver algo
que mantém uma relação assimétrica com as sementes Kulina. O fato de que os Kanamari
e os Kulina são diferentes mas equivalentes explica porque eles podem ser –tawari um para o
outro, mesmo que em circunstâncias excepcionais, enquanto que os Dyapa (ou, ao menos,
os prototípicos Dyapa tam) e os Kanamari, que são partes desiguais de um todo, não podem.
A relação entre os Kulina e os Kanamari surge como uma hipóstase da
relação entre os subgrupos dentro do modelo de endogamia de subgrupo. Em outras
palavras, a diferença entre os Dyapa e os Kanamari põe em primeiro plano as distinções
assimétricas dentro de um –warah, enquanto aquela entre os Kulina e os Kanamari põe em
primeiro plano a relação simétrica entre –tawari. Podemos talvez sugerir que o ‘modelo’
para a equação Dyapa : -dyapaestava contido em uma síntese das diferenças entre os
Kanamari e os Kulina, por um lado, e entre os Kanamari e os Dyapá, por outro, mesmo
que as particularidades de como essa relação pudesse ser realizada permaneçam ainda em
aberto. A criação dos Kulina é, pois, crucial para entendermos como as sementes podem
ter sido agrupadas ( ao serem ampliadas) em galhos, ao menos em um nível conceitual.
180
possivelmente mais sobre o relacionamento entre essas duas palmeiras do que eu estou a par. Não
estou nem mesmo seguro sobre o tipo de palmeira que é a karaty, embora pareça ser a ‘inajá’ (ver nota 27). Os
informantes de Reesink no Jutaí sugeriram que as sementes da jaci são doces, enquanto as da karatyo duras
e não-comestíveis (1993, 149). Isso talvez expresse um aspecto interessante da relação entre as duas – de uma
perspectiva Kanamari, ainda que os Kanamari do Itaquaí não pareçam concordar com os informantes de
Reesink, uma vez que eles consideram a semente de karaty comestível e, na verdade, bastante saborosa.
diferenças significativas entre o mito de origem que eu ouvi no Itaquaí e aquele contado a Reesink, que
oferece uma interpretação bastante diversa da minha (ver Reesink 1993, 146-52).
233
Dyapa e Kanamari
A relação entre os Dyapa e os Kanamari é, pois, homóloga àquela entre o
Juruá e seus tributários, ou entre o Jaguar e os seringais e canamãs. A associação dos Dyapa
com o Juruá não é apenas conceitual, mas também geográfica, uma vez que os Dyapa vivem
nos altos trechos do Juruá
181
, que é onde o Jaguar no mito do ‘Mestre dos Peixes’ continha
a cadeia alimentar predatória que compunha seu corpo.
A distinção Dyapa/-dyapa é o análogo Kanamari à similar distinção Pano entre
Nawa/-nawa. Entre esses povos, a categoria Nawa refere-se a estrangeiros por definição’,
normalmente os brancos ou as divindade celestiais Inca (Calavia Saez 2000; Erikson 1996,
77-82), e em alguns contextos, os espíritos e os animais de caça (Lagrou 1998, 155); mas a
forma prefixada, -nawa, refere-se também às coletividades de povos de língua Pano, e pode
ou o ser auto-designatória. Como vimos na introdução, o termo –nawa, mesmo se é um
etnônimo, parece sempre se referir ao ‘exterior’. Este pode receber uma série de
expressões: pode ser um aspecto do sistema Pano de metades, onde uma das duas metades
é associada ao exterior (nawa), como nos Yaminawa (Townsley 1988); ou pode surgir
quando membros de diferentes grupos Pano se apresentam como Nawa, adotando de
algum modo a perspectiva extrema de outros desconhecidos (Erikson 1996, 80). Townsley
argumenta, assim, que a ordem social interna requer a incorporação de poderes da
sociedade de outros, e Erikson generaliza esta conclusão para todos os grupos Pano,
acrescentando que “on peut toutefois aller plus loin encore, jusqu’à affirmer que l’étranger
n’est pas seulement perçu comme une sorte de réservoir de puissance brute qu’il s’agirait de
socialiser [...], mais qu’il est plus exactement défini comme le modèle, sinon la garant, des
vertus constitutives de la société. [...] Il s’agit non seulement de s’accaperer les qualités de
‘l’autre’, mais encore de s’y retrouver” (1996, 79; ver também Descola 2005, 352-3).
Para os Kanamari, os Dyapa são, atualmente, apenas grupos falantes de língua Pano.
Eles não estão, estritamente falando, interessados em ‘socializar’ qualquer aspecto dos
Dyapa. Ao contrário, os Dyapa são considerados pura força predatória, ‘os bravos’ (noknim),
com quem nenhuma outra relação que não a guerra pode ser mantida. Tais guerras, com a
única exceção do ataque promovido por Alemanha (capítulo dois), são todas unilateriais.
As histórias Kanamari sobre ataques dos Dyapa sempre envolvem uma aldeia ou maloca
181
Os Kanamari dizem que ‘os Dyapa vivem nas cabeceiras do Juruá(Wuni kihpi tom Dyapa to-nim anim), não
preocupados com a possibilidade de que os Dyapa (i. e. os Kaxinawá) possam, eles próprios, viver nos
tributários do alto Juruá. Deve-se também recordar que os Marubo, os outros exemplos prototípicos de
Dyapa’, podem atualmente viver nos altos trechos do Curuçá e do Ituí, mas, no que concerne aos Kanamari,
eles migraram para essa região a partir do Juruá.
234
Kanamari sendo cercada por inimigos vindo de todas as direções, e eles resultam sempre,
mesmo que temporariamente, na dispersão das aldeias-corpo Kanamari, assim como em
sua subtração física, decorrentes das mortes e da captura de mulheres e crianças pelos
Dyapa. Os velhos Kanamari com quem eu falava relembravam essas guerras com total
incompreensão, como se eles fossem incapazes de entender por que os Dyapa agiam
daquele jeito.
uma particularidade dos Dyapa, no entanto, que deve ser ressaltada. Os
Kanamari os consideram como sendo pura mobilidade, a antítese do parentesco que eles
tentam criar para si. Mesmo se os Dyapa são identificados ao alto curso do rio, eles vêm de
todas as direções, rodeando as aldeias Kanamari, fragmentando-as. Os Kanamari, por sua
vez, situando-se fora do Juruá, permanecem estáveis em seus tributários onde, até a
migração para o Itaquaí, “nós sempre vivemos”.
Na medida em que os subgrupos dyapa dos Kanamari e seus inimigos Pano se
originam de diferentes partes da mesma unidade original, os Kanamari são situados por um
Jaguar, ou ao menos um Jaguar em tom menor. O tronco é um corpo (-warah), que,
portanto, recebe o nome desmarcado Dyapa, enquanto os subgrupos Kanamari são
aspectos fragmentados desta unidade, que são construídos com e contra esse fundo.
Mesmo que se objete que o mito de origem o informa sobre a estabilidade das sementes,
a analogia entre as sementes Kanamari e as sementes Kulina começam por apontar nessa
direção
182
. Se os Kanamari não tentam ‘incorporar’ essa mobilidade predatória, eles,
contudo, se fazem estáveis contra ela
183
. Neste sentido, o adendo de Erikson à observação
de Townsley é crucial: os Dyapa são o modelo, senão mesmo a garantia, para as virtudes
constitutivas da sociedade.
Para concluir esta seção, gostaria de voltar a uma outra maneira pela qual a relação
Dyapa/–dyapa pode ser expressa, através da diferença entre unidades de ‘parentesco’ que
são os subgrupos e a perigosa afinidade materializada nos Dyapa. Viveiros de Castro (2000a;
2001) propôs um modelo geral para a socialidade Amazônica, relativo em primeiro lugar ao
processo de fabricação do parentesco. Seu modelo é uma reelaboração e desenvolvimento
de seu trabalho anterior, especialmente seu artigo de 1993 sobre o dravidianato na
Amazônia, no qual desenvolve uma abordagem que põe firmemente a afinidade na linha de
frente da socialidade Amazônica, englobando sua antítese, a consangüinidade, no nível
182
Deve-se lembrar também que as sementes Kanamari são ‘juntadas’ nas costas de Kanamari, enquanto as
sementes Kulina se espalham depois da gafe de Kirak.
183
Os tributários do Juruá foram literalmente feitos contra o rio: com suas costas a ele, Tamakori os ‘soprou
à existência.
235
global. No entanto, não era apenas o caso de estabelecer uma diferença entre níveis, tal que
consangüinidade : local :: afinidade : global, mas de identificar a prioridade lógica da
afinidade (potencial): “[o] vetor da estrutura dirige-se de fora para dentro” (1993, 184). O
grupo local é, pois, o produto de uma relação com o exterior e com a afinidade potencial
que este implica.
Mas o grupo local não se faz local em relação a uma hipotética noção Ameríndia de
‘sociedade global’, mas, em vez disso, em relação a ‘um fundo infinito de socialidade
virtual’:
“[l]onge de ser uma projeção metafórica, uma atenuação semântica e pragmática da
afinidade matrimonial, a afinidade potencial é a fonte da afinidade atual, e da
consangüinidade que esta gera. É assim porque relações particulares devem ser construídas
a partir de relações genéricas: elas são resultados, não origens.” (Viveiros de Castro 2000a,
16).
A afinidade potencial não é apenas a fonte da consangüinidade, ela é o valor a partir do qual
a consangüinidade é extraída. Consangüinidade a afinidade não são categorias descontínuas;
a consangüinidade não é nada mais (ou menos) do que a ausência relativa de afinidade.
Segundo Viveiros de Castro, “[o] que o parentesco mede ou calcula na socialidade
amazônica é o coeficiente de afinidade nas relações, que não chega jamais a zero, visto que
não pode haver identidade consangüínea absoluta entre duas pessoas, por mais ‘próximas’
que sejam” (2000, 17). Isso equivale a dizer que, na Amazônia, a afinidade é um dado, ao
passo que a consangüinidade deve ser construída (i. e. extraída da afinidade); de fato, a
consangüinidade é não-afinidade antes de ser qualquer coisa (ibid., 8; 20-21).
Para os Kanamari, o ‘fundo infinito de socialidade virtual’ (que, no entanto, pode
ser ‘global’) é um Jaguar. O Jaguar contém dois princípios antitéticos que o movimento do
parentesco Kanamari tenta manter separados: a habilidade de situar por meio de violência
predatória. Fragmentando um único Juruá em uma multidão de tributários, e os únicos,
móveis e predatórios Dyapa em uma multidão de corpos –dyapa de parentes estáveis e
localizados, os Kanamari são capazes de criar um espaço para o parentesco contra o fundo
de uma infinita capacidade de mobilidade predatória. O Jaguar subtraído que são os Dyapa
põe como contrapartida um sem-número de subgrupos –dyapa. No entanto, para que estas
unidades alcancem tal forma é preciso levar em conta a relação simétrica com os Kulina,
que garante as interações entre algumas dessas unidades contra o fundo Jaguar. É à maneira
236
pela qual estas relações simétricas são organizadas que eu me voltarei agora, pois a relação
dos Kanamari com os Kulina é também o modelo e a garantia na construção de relações
que mantenham o Jaguar a boa distância.
A Questão da Anta
O mito da criação dos diferentes povos continha as sementes do modelo da
endogamia de subgrupo: ele expressava uma distinção assimétrica máxima entre os Dyapa e
os Kanamari e uma distinção simétrica máxima entre os Kanamari e os Kulina. Nesta
seção, eu pretendo me deter em como esses limites máximos foram tornados diferenças
menos inclusivas dentro dos e entre os subgrupos.
Seres Míticos
Os Kanamari não parecem ter um mito que torne explícita a origem dos subgrupos.
Eu não consegui descobrir nenhum, e esta linha de pesquisa provou ser redundante porque
a maioria dos mitos conhecidos como ‘histórias do Céu Antigo’, Kodok Kidak nawa ankira,
são, em certo nível, mitos sobre os subgrupos. A razão para isso é que muitos dos
personagens nos mitos do u Antigo são eles próprios subgrupos potenciais porque as
relações que eles mantêm uns com os outros são as mesmas que devem ser mantidas entre
os subgrupos, mesmo quando os aspectos de sua composição interna são distintos.
Esses mitos delimitam um espaço-tempo no qual a animalidade e a humanidade
estão imersas em um mesmo conjunto de relações. Os seres no Kodok Kidak o o lugar da
diferença interna potencialmente infinita, expressa em forma singular: a Anta, o Veado, a
Capivara, e assim por diante, podem todos ocultar em si uma pletora de possíveis
subjetividades e relações. Nem tanto humanos, nem tanto animais, mas também
explicitamente as duas coisas; eles são relações personificadas e internalizadas, elas próprias
ligadas a outras relações reificadas equivalentes.
Se é verdade que os seres no mito freqüentemente ocultam uma maior
diferenciação interna do que imediatamente salta aos olhos, a maior parte desta recebe a
forma de uma indistinguibilidade numérica. Os personagens míticos são freqüentemente
referidos como paiko ou hwa. O primeiro termo significa ‘ancestral’ ou ‘avô’ e o segundo
‘ancestral’ (feminino) ou ‘avó’. De fato, Paiko e Hwa podem se referir, respectivamente, a
qualquer homem ou mulher da geração G + 2 ou acima. Os personagens, pois,
237
freqüentemente (mas nem sempre) recebem um nome, mais comumente o de um animal:
Paiko Bahtyi, significa, assim, ‘Ancestral Veado’. Muitos narradores Kanamari me
explicavam que atukuna toninim bahtyi anim’, significando que ‘o Veado era, então, uma
pessoa’. Uma característica comum desses mitos é se referir à forma singular do
personagem, apenas para revelar, à medida que o mito progride, que o personagem, ou o
nome, eclipsa uma série de relações entre personagens similares. Paiko Bahtyi irá, pois,
significar um Homem-Veado, sua mulher, seus irmãos, seus filhos e sua aldeia, estes
emergindo e se ocultando dentro do contexto da narrativa. Não é uma questão de que estes
outros personagens sejam introduzidos (às vezes, nomeados) conforme seu papel na
história ganhe proeminência, mas sim a de não pressupor que a um nome corresponda um
único ser – mesmo que este ser seja ontologicamente múltiplo, i. e. Humano-Veado.
Essa aparente confusão entre formas singulares e plurais não é apenas um corolário
do tempo mítico. Ao contrário, é uma conseqüência direta do conceito fractal –warah, que é
capaz de encobrir uma série de relações sob um nome. O nome de um rio seguido de
warah pode ser sinônimo de um subgrupo; o nome de um homem pode incluir sua esposa,
na medida em que ele é chamado de seu (dela) –warah; o nome da esposa desse homem
pode implicar seus filhos e xerimbabos (ela é o –warah deles). Aldeias são corpos
construídos através do chefe, ele também um corpo, que situa sua gente em si, e assim o
Ancestral Veado é simultaneamente chefe-e-seguidores, aldeia-e-residentes, marido-e-
mulher, mulher-e-filhos, corpo e alma e assim por diante
184
. Seu nome oculta tais relações e
é só quando há necessidade de torná-las explícitas, ou seja, conferir a elas um papel
agentivo, que elas são diretamente mencionadas. Indivíduos só assumem uma forma –warah
quando agem de um modo que implica na sua presença corporal, caso contrário eles são
subsumidos em um corpo que age por eles.
Mas isso não altera duas características que, se não anômalas, são ao menos
suficientemente excepcionais para que os Kanamari as comentem. A primeira delas é
precisamente que ‘o Veado era, então, uma pessoa’. Isso não significa que o Veado deixou
atualmente – em sua totalidade e em todos os momentos – de ser uma pessoa, mas
significa que seu corpo é agora produzido de modos marcadamente diferentes de como
eram produzidos nos tempos míticos. Vivendo em aldeias, visitando gente-animal não-
184
A posição –warah em relação ao marido e à mulher é necessariamente ambígua, como vimos nos capítulos
um e três. Uma razão importante para isso é sua necessária complementaridade, manifesta no fato de que
ambos são corpos-entidades ‘singulares’ que alimentam um ao outro. No entanto, eu ouvi em certas ocasiões
uma terceira parte se referir ao marido de uma mulher como sendo o –warah dela, e nunca ouvi que o
recíproco pudesse ser o caso. Ver Lorrain (1994) sobre as maneiras pelas quais, entre os Kulina, o marido é
equivalente a um chefe para sua mulher e como suas atividades econômicas encompassam as dela.
238
Veado, plantando mandioca e bebendo bebida de mandioca, participando de rituais – todas
estas são coisas que, se o Veado ainda as faz atualmente, os Kanamari o podem
perceber. É verdade que alguns dos espíritos desse Veado mítico continuam a existir no
mundo pós-mítico, na forma de dyohko (familiarizado por xamãs ou não), mas estes são
exceções notáveis. A maioria dos Veados ‘se tornou caça’ (bara(h)-pa) ou, para ser mais fiel à
língua Kanamari, ‘estão virando caça’
185
. De fato, o mito que irei analisar brevemente conta
como este processo de ‘estar virando caçase iniciou para o Veado, a Anta, a Paca e o
Jaboti.
A segunda característica diz respeito à composição interna desses indivíduos-
coletividades. Uma coisa é dizer que uma aldeia, um homem-animal, sua mulher e seus
filhos são tantas refrações de um único nome, i. e. Veado, mas no mito é por vezes possível
que este único nome inclua personagens não-Veado. Esta é uma característica associada ao
Jaguar, recorde-se, capaz de situar seres desiguais, mesmo que ao preço de manter relações
predatórias próximas de casa. No mito, era ocasionalmente possível para uma pessoa-
animal particularmente poderosa ser o –warah de pessoas distintas dela, como veremos em
breve no mito sobre ‘Por que é Difícil Pegar a Caça’, registrado por Tastevin. Neste caso, a
‘Anta’ inclui em seu nome a Paca e todos os outros animais’. Esse, como será mostrado,
era um caso extraordinário, mas revela um potencial Jaguar de alguns dos personagens não-
Jaguar no mito.
Esta última característica nos leva a um importante aspecto dessas narrativas
míticas. Se os seres eram internamente múltiplos e transformacionalmente abertos, havia
ainda uma descontinuidade que se passava entre eles. ‘Veado’, ‘Anta’ e ‘Paca’ podem ser
multiplicidades, mas eles freqüentemente possuem claras e finitas diferenças externas. As
interações que eles mantêm são aquelas que deviam ser mantidas entre os subgrupos. Em
outras palavras, eles eram multiplicidades estáveis interagindo com outras multiplicidades
estáveis diferentes, mas equivalentes, como argumentei acima. Isto o deve nos levar a
ignorar que, dentro de cada um deles, transformações estavam em curso, em velocidades e
direções diversas. É um dos objetivos dos mitos narrar como essas mútuas
interpenetrações chegaram ao fim (Viveiros de Castro 1996, 483-4). O mito que
examinaremos agora faz em parte isso, embora ele só vá alcançar seus contornos finais com
a queda do Céu Antigo, à qual me voltarei brevemente, e o mito da ‘Viagem’, analisado no
capítulo seguinte.
185
Um Kanamari me disse, em Português, sobre o macaco barrigudo que ele “está virando caça já, para a
gente comer”.
239
Um Hori Mítico
O mito seguinte é um que eu ouvi em várias ocasiões. Ele diz respeito a como
coletividades devem interagir e os perigos em não se observar esta ética.
Paca, Veado e Anta
No começo, todos eram gente. A caça também, toda era gente. Foi apenas depois, quando Tamakori
conheceu a terra, que ele nos separou. Aqueles que nós comemos foram para um lado, eles viraram caça. Nós
éramos gente. Tamakori havia anteriormente nos misturado. A caça podia falar, assim como nós. Eles eram
nossos parentes; aqueles que comemos hoje eram nossos parentes. Agora que nós os comemos, eles todos
são caça.
Antes de Tamakori nos separar, Paca vivia logo rio abaixo de seu cunhado, Veado. Ele decidiu ir
visitar este último para que pudessem tomar bebida de mandioca. Veado costumava plantar muito tabaco, e
Paca o ajudou com algumas folhas. Paca, então, se pintou com jenipapo e seguiu em frente até a casa da Anta.
Chegando lá, Anta o serviu bebida de mandioca até ele ficar cheio. Depois de algum tempo ele decidiu ir para
casa, mas disse à Anta que voltaria no dia seguinte com seu filho.
No caminho de casa, ele passou novamente pelo Veado, e contou a ele a boa estadia que tinha tido
na maloca da Anta. Ele foi para casa e dormiu. Na manhã seguinte, ele disse a sua esposa que levaria o filho
para ver a Anta. A esposa da Paca pintou o marido e o filho com jenipapo, e eles partiram.
No caminho, ele parou novamente na maloca do Veado, onde este estava trabalhando no seu roçado
de tabaco
186
. Veado disse a ele, “olha, cunhado, você vai com seu filho até a Anta tomar bebida de mandioca,
mas eu quero ver você voltar por aqui com seu filho. Não o deixe lá”. Paca permaneceu em silêncio e seguiu
viagem.
Eles chegaram na aldeia da Anta e Paca lhe perguntou: “onde estão minhas noras
187
?”. “Elas foram
no roçado pegar batata doce [para acrescentar à bebida de mandioca]. Elas voltarão em breve”. Logo em
seguida, eles viram a filha da Anta, Wahpaka, cujos seios haviam começado a crescer
188
. Ela viu que o filho da
Paca, pintado de jenipapo, estava à procura de uma esposa e os dois adolescentes ficaram frente à frente.
Anta, já revelando suas segundas intenções, disse a Paca, “olha, aqui não falta bebida de mandioca com batata
doce”. Logo depois, a filha da Anta veio e serviu bebida de mandioca a Paca e seu filho até eles ficarem
cheios até não poder beber mais.
Paca foi para casa com seu filho. Wahpaka foi com seu pai. “Eu quero casar com o filho de Paca.
Pergunte ao pai dele quando eles voltam”. “Sim, eu vou perguntar ao pai dele quando eles voltam aqui”. Anta
186
O narrador interrompe para me explicar que, primeiro, apenas o Veado sabia como plantar tabaco.
Somente ele podia ‘fazê-lo aparecer’ (a-hiki-man). Mais tarde, quando o Veado virou caça, Tamakori deu o
tabaco aos brancos, e agora eles ‘tomam conta dele’. O tabaco é um componente crucial do xamanismo
Kanamari, mas eles não o plantam, dizendo que ele é muito facilmente roubado do roçado por outros
Kanamari. Eles precisam, pois, obtê-lo dos brancos.
187
-Nomok, ‘ZD, SW, MBSD, FZSD’. Uma vez que Anta e Paca se chamam mutuamente de ‘cunhado’, -bo,
este é o termo apropriado ao último para se referir à filha do primeiro.
188
Em outras palavras, ela já estava em idade de casar.
240
estava mentindo para sua filha. Ele também tinha encarado o filho de Paca, mas apenas porque o achara
particularmente apetitivo. O Velho Anta estava com fome, e queria comer o filho de Paca.
Paca e seu filho foram ver Anta mais uma vez, e no caminho passaram novamente pela maloca do
Veado. Anta se aproximou de Paca: “meu cunhado, eu quero que seu filho seja marido da minha filha”. Paca
estava desesperado: “Eu o posso deixá-lo aqui, meu cunhado. Eu ficarei com muitas saudades dele”.
“Assim deve ser, meu cunhado”, Anta respondeu, “sua esposa, Wahpaka, o quer aqui”. Eles chegaram a um
acordo, e os dois se casaram, mas Paca disse a seu cunhado: “Eu virei aqui regularmente para conferir o bem-
estar do meu filho. Garanta que você vai cuidar dele”.
Pouco tempo depois, Paca foi visitar seu filho e viu que ele estava bem. Ele voltou outra vez, mas
seu filho estava fora. “Ai de mim! Ele está pegando batata doce no roçado”. “Vou esperar”, mas em pouco
tempo seu filho retornou e Paca foi para casa, satisfeito por seu filho estar sendo bem tratado.
No terceiro dia, Paca foi novamente. Desta vez, Anta tinha matado o filho de Paca. “Onde está meu
filho”, Paca indagou Anta. “Ah, ele foi buscar batata doce com a mulher dele. Ele vai voltar logo”. Ele
mentiu, pois havia matado o filho de Paca e o estava cozinhando na panela de cerâmica próxima a eles
189
.
Cansado de esperar, Paca disse, “estou indo embora. Meu filho não vai voltar”. Anta ofereceu a Paca a coxa
de seu filho, para que ele comesse na estrada. Paca viu as marcas de jenipapo que sua esposa havia feito e
descobriu que eram as de seu filho.
Paca voltou para sua casa, mas antes parou na casa do Veado para lhe dar as s notícias: “eles
mataram seu genro”. Veado ficou furioso: Eu te avisei que seria assim. Eu te disse que eles matariam meu
genro! Por que você lhes deu meu genro?”. Veado ralhou com Paca, e disse que eles deveriam enterrar a coxa
que Paca trazia consigo. Feito isso, Paca perguntou ao Veado: “bem, o que devemos fazer agora?”. “Vamos
nos vingar. Leva algumas folhas de tabaco com você”. Veado lhe deu apenas duas folhas. Paca pensou
consigo mesmo: ‘duas folhas! Isso não é muito. Veado é sovina”!
Ele decidiu que precisava de mais tabaco, que ele iria se vingar. Paca era um xae ele colocou o
Espírito Aranha no Veado. Enquanto o Veado estava cuidando de sua vasta plantação de tabaco, a Aranha o
mordeu e ele chorou de dor. À distância, Paca ouviu o choro do Veado e secretamente foi ao roçado, onde
roubou mais folhas de tabaco. Ele as escondeu na floresta e correu até o Veado, que se contorcia no chão,
chorando de dor. Ele sugou o Espírito Aranha, fazendo o Veado melhorar.
De volta à sua casa, Paca preparou rapé. Ele estava com raiva e preparou um pouco de rapé
misturado com a secreção do sapo wakoro
190
. Ele foi buscar o Veado e juntos eles rumaram em direção à casa
de Anta. Eles lhe ofereceram a mistura de rapé com secreção do wakoro e ele vomitou a carne do filho de
Paca.
Eles decidiram colocar seu Espírito Cobra em Anta. Enquanto Anta se banhava no rio, a Cobra se
aproximou e o mordeu: “Ai! Uma Cobra me mordeu”! Anta morreu.
189
Em algumas versões, Paca come inadvertidamente um pouco da carne de seu filho.
190
Este sapo é o Phyllomedus sp., conhecido como kampu ou alguma derivação deste pelos povos de ngua
Pano. A secreção da barriga do sapo é usada para reverter um estado de miori, ‘má sorte’, conhecido
regionalmente como ‘panema’. Os Kanamari usam uma lasca de madeira em brasa para produzir uma
queimadura nos braços sobre a qual a secreção é espalhada. A pessoa fica imediatamente vermelha, e logo se
segue uma forte dor de cabeça. Vômitos são quase sempre o resultado e, após repetidas regurgitações, os
sintomas desaparecem.
241
Eles chamaram a lacraia para ir pegar Anta, mas ela não foi capaz de fazê-lo
191
. Então, eles
chamaram as pequenas vespas. “Vão pegar nossa caça”! Eles disseram às vespas. As vespas levaram Anta rio
abaixo e o comeram.
“Ouça de novo, meu cunhado! Há outras Antas vindo!”. Eles colocaram o Espírito Cobra no
caminho onde ele mordeu as Antas mais uma vez: “Ai! A Cobra me mordeu!”. Mais duas Antas morreram.
Paca chamou as vespas novamente. Elas levaram o corpo de Anta para dentro d’água e, outra vez, o
carregaram rio abaixo. Seis Antas foram mortas, até restarem apenas duas. “Nós quase acabamos com elas”, o
Veado disse à Paca.
Então eles viram Wahpaka, a gorda filha da Anta, se banhando no rio. De tão gorda, ela não podia
andar e podia se mover dentro d’água. Para que ela se banhasse, as Antas prepararam um cercado que a
continha. Quando ela estava dentro, o Espírito Arraia, deixado por Paca, lhe deu uma ferroada e ela
morreu. Por causa disso, as Antas ficaram furiosas e decidiram virar caça. Pintaram os rostos de jenipapo
192
,
enquanto eram repreendidos por Paca: “Vocês comeram meu filho, como puderam? Eu vi a carne dele
quando vocês vomitaram”.
As Antas começaram a chorar por seus mortos, especialmente por Wahpaka. Passaram muitas noites
cantando as canções de luto, quando o Jaboti chegou. Neste tempo, o Jaboti tinha pernas muito longas e
finas. Ele queria chorar também, e se juntou às Antas, cantando seu lamento. As Antas, no entanto, pisavam
nas pernas do Jaboti, e com seus cascos elas as cortaram fora. Por isso o Jaboti agora tem somente pequenas
pernas, que não podem levá-lo muito rapidamente. Ele ficou com raiva, e repreendeu as Antas, que
começaram a fugir. Todas se espalharam: algumas se dirigiram ao Juruá, outras ao Jutaí, outras ao Itaquaí,
outras ao Gregório, outras ao Curuçá. Mais tarde, tudo o que Veado e paca puderam achar foram as pegadas
das Antas, todas elas tornadas caça e espalhadas.
Carvalho registrou uma versão do mesmo mito que conclui dizendo que ‘três dias
depois’ Veado e Paca também viraram caça e se dispersaram por diferentes rios (2002,
297).
Os Perigos do Hori
As relações mantidas por Paca, Veado e Anta no início do mito são variações
possíveis daquelas que deveriam existir entre pessoas de diferentes subgrupos. Eles viviam
endogamicamente, cada ‘gente-animal’ em seu próprio rio. Esses rios são contíguos e eles
se visitam mutuamente, mas com certa ressalva. Paca vivia ‘logo rio abaixo’ do Veado, e
tinha que passar pela aldeia do Veado toda vez que queria ir à casa da Anta. Sua relação
com o Veado é conseqüentemente mais próxima. O Veado lhe oferece de presente, mesmo
191
Esta é uma referência à lacraia Peruana (Scolopendra gigantea), a maior do gênero, que possui um veneno que
causa inchaço e febre nos humanos. ‘Chamá-la’ (ohoho) significa que a lacraia em questão é um espírito dyohko
familiarizado pelo Veado ou pela Paca.
192
Um signo de luto.
242
que por vezes de vontade, folhas de tabaco e um aviso para o casar seu filho onde
vive a Anta. Em sua primeira visita ao Veado, Paca nem mesmo se preocupa em pintar o
rosto um signo claro que pessoas distantes estão para ser visitadas –, o fazendo na
aldeia do Veado antes de ir visitar a Anta. E, é claro, é o Veado quem ajuda Paca a vingar
seu filho.
O ‘episódio do Tabaco’ do mito, no qual Paca usa o espírito familiar da Aranha
para atingir o Veado e roubar seu tabaco, é considerado como uma parte muito engraçada
da narrativa, sempre provocando risos. O presente mesquinho do Veado e o revide algo
cruel da Paca são típicos da relação jocosa que deve ser mantida entre cunhados de mesmo
sexo
193
. Isto é verdade para cunhados ‘reais’ terminológicos e/ou co-residentes –, mas
também para cunhados distantes, expressa pela relação de –tawari, ainda que aqui a
‘brincadeira’ tenda a ser mais formalizada. A reação exacerbada, quase cômica (porque
possivelmente não sincera), do Veado à morte do filho da Paca também implica
proximidade entre os dois. Mas o modo pelo qual Paca usa seu xamanismo para roubar o
Veado, enquanto o último está com dor por causa da mordida da Aranha, é também uma
típica característica da relação de –tawari, tendendo para seu pólo mais antagonístico
(mesmo que também engraçado). Eu proponho, portanto, que este episódio ‘soluciona’, a
seu modo, o problema da relação entre afins próximos e distantes para os Kanamari, ao
fazer da Paca e do Veado simultaneamente ambos um para o outro. Veado e paca são
tawari que conhecem e confiam um no outro o suficiente para brincar, para chorar a morte
de um de seus parentes e, mais tarde, para empreender conjuntamente uma guerra a um
terceiro.
A relação de Paca com o Veado contrasta com sua relação com Anta. Esta é menos
informal, e possui todas as armadilhas de uma relação entre pessoas que recentemente se
tornaram –tawari uma para a outra. Paca o chama de cunhado
194
, mas pinta o rosto de
jenipapo antes de chegar à aldeia de Anta. Ele é servido de bebida de mandioca por Anta
“até ficar cheio” e mais tarde, quando Paca retorna com o filho, eles são servidos mais uma
vez de bebida de mandioca atéficarem cheios e não poderem mais beber”. Recorde-se do
capítulo um que estas são características comuns das reuniões Hori.
Carvalho (2002, 296) ouviu uma versão do mito na qual Paca e Veado são
cunhados que vivem juntos, enquanto Anta vive com o Jaboti (ver também Reesink 1993,
193
Também é muito comum se brincar com afins cruzados próximos, como WZ e BW. Tais brincadeiras são
freqüentemente de evidente natureza sexual, e tendem para jogos de agarramento genital. Alguns desses
jogos, como o tyiri, opõem homens e mulheres de forma geral, independentemente das relações de parentesco
entre eles.
194
Vimos no capítulo um a relação entre os termos para ‘cunhado’ e –tawari.
243
320). Tal aproximação é também evidente na versão transcrita acima, onde Veado e Paca
partilham um estreita relação, mantendo Anta à distância. No fim do mito, Jaboti chora a
morte da filha de Anta, e eles cantam as ‘canções de luto’ (mahwa-nim-pa) juntos. O episódio
no qual Anta acidentalmente decepa as longas pernas do Jaboti é um exemplo adicional da
relação jocosa entre cunhados próximos, que igualmente serve para aproximar Anta e
Jaboti, excluindo Paca e Veado. Os primeiros e os últimos, portanto, formam conjuntos de
–tawari (ou cunhados) próximos que interagem com o outro conjunto, que compreende
tawari mais distantes.
Isso não impede que Paca possa ter uma ‘boa estadia’ na aldeia de Anta. Esta visita,
no entanto, resulta em uma tragédia que oVeado havia previsto: o casamento da filha de
Anta com o filho de Paca. Paca se mostra relutante em aceitá-lo, por causa da distância,
mas Anta anseia pela carne do filho do primeiro e fica entusiasmado por ver o casamento
acontecer. Ele acontece, e isto transforma o que estava se moldando como uma sólida
relação –tawari em uma na qual Paca e Anta tornam-se afins efetivos um para o outro. O
mandamento: ‘não casarás com –tawari’, sobretudo distantes, é quebrado e emergem
relações do tipo Jaguar. Anta, o sogro canibal, come o garoto, mente para Paca e tenta
dividir com ele um pedaço da coxa de seu próprio filho. O resultado desta redefinição de
alianças, que questiona relações apropriadas de –tawari, é a guerra xamânica.
O mito começa com três personagens múltiplos (i. e. três coletividades) diferentes
mas que mantêm relações de afinidade potencial (–tawari/ ‘cunhado’). Quando uma dessas
relações se torna afinidade atual por meio do casamento, ela vira uma relação predatória,
que resulta em guerra. O fato de que Anta vomita o filho de Paca pode ajudar a explicar
uma aparente anomalia que eu notara no capítulo um. Reuniões rituais são chamadas Hori
que também significa ‘vomitar’. Os Kanamari, no entanto, minimizam o papel do vômito
no Hori tradicional, dizendo que a despeito das grandes quantidades de cerveja consumidas,
ele não desempenha um papel nas reuniões. Pode ser tentativamente sugerido que isso se
porque o vômito revela o potencial predatório desses encontros, traindo a verdadeira
natureza do –tawari.
Duas variantes
Carvalho interpreta esse mito como um ‘mito de origem do xamanismo’,
argumentando que Paca, Veado e Anta foram os ‘primeiros xamãs’ (2002, 296-8). Os três
costumavam participar de ‘disputas xamânicas’ para ver qual deles era o mais poderoso.
244
Uma das versões que ouvi menciona uma dessas disputas’, entre Veado e Paca, na qual o
último subjuga o primeiro, produzindo o Espírito Cobra Jaguar, muito mais poderoso do
que o Espírito de Cobra Korama’an do Veado
195
. Que isso só possa ter ocorrido entre Paca e
Veado é revelador, porque, ainda que sempre perigosa, neste contexto ela o era muito
menos do que ter a ‘disputa’ com Anta.
Não me parece que o mito seja sobre a origem do xamanismo, ou pelo menos este
não é o ponto que eu gostaria de sublinhar. Ao contrário, Carvalho fornece uma outra
versão do mito que enfatiza os aspectos perigosos das relações entre todos os três
personagens. Anta mata alguém da ‘gente da Paca’ com um Espírito ‘Cobra’, e Paca então
se vinga. O Veado, enquanto isso, envia o Espírito Formiga de Fogo para atingir Paca, que
consegue descobrir o incidente a tempo e envia o Espírito Aranha para atingir o Veado.
Em determinado momento, Anta mata e come o filho do Veado, que então se vinga dele.
Os três xamãs viviam em ruas separadas’, mas “...a cada ataque mortal o xamã matador
partilhava a vítima com um dos três pajés não atingido pela ação, com o que parecia deixar
aberta a possibilidade de uma aliança em situação de maior risco”. Ao final do mito os três
se encontram para conversar e decidem que, se não parassem de lutar, o mundo chegaria
ao fim (Carvalho 2002, 296).
Essa versão do mito é notável por nos apresentar uma situação que parece ser
anterior, em relação à proximidade com o mundo do Jaguar, àquela que ouvi no Itaquaí.
Não –tawari próximos aqui e as alianças mudam em variações aparentemente aleatórias
entre as três coletividades-gente. É um mundo em que cada rua/rio é completamente
fechado em si mesmo e as relações com outras unidades possivelmente equivalentes são
sempre predatórias. De fato, daqui em diante eu vou me referir a essa variante do mito
como a ‘versão predatória’. Na versão que transcrevi acima, e em outras versões registradas
tanto por mim quanto por Carvalho, a proximidade entre Paca e Veado em oposição à
Anta (e ao Jaboti) é sempre ressaltada. Chamarei essas variantes de ‘versões Hori’.
Acredito que aquilo que o mito define, tanto na versão predatória quanto na versão
Hori, são distâncias contextuais mais que absolutas. De fato, o único modo em que
poderíamos ver esses mitos como sendo talvez sobre uma ‘origem’ é lendo a versão
predatória e a versão Hori nessa ordem e como um contínuo
196
. Ao final da primeira versão,
195
Korama’an é uma cobra não-venenosa, ao passo que a cobra que os Kanamari chamam de ‘cobra jaguar’
(Pidah hihpan) é do tipo conhecido regionalmente como ‘pico de jaca’ ou ‘surucucu’ (Lachesis muta), que é
extremamente venenosa.
196
Mesmo que certas correlações lógicas entre as versões serão ainda esclarecidas, o exercício de ver essas
relações como cronológicas é, no máximo, hipotético, e não deveria ser tomado literalmente. É um recurso
expositivo para tornar claras as relações entre as versões.
245
os três personagens se reúnem para decidir pôr um fim na sua luta. Podemos imaginar o
início das últimas versões como o corolário deste diálogo, que resultou numa maior
proximidade entre Veado e Paca, mas que, no entanto, posicionou Anta como –tawari. A
versão predatória pode nos situar num tempo onde os subgrupos mantinham excessiva
clausura, e no qual tudo que estivesse fora de sua jurisdição permanecia sendo de tipo
Jaguar. E o leitor pode ter notado o quão similares são as alianças nas versões Hori aos
tipos de configuração estabelecidos após a chegada de Jarado. Assim, o mito também nos
permite imaginar a relação entre Paca-e-Veado e Anta (-e-Jaboti) como equivalente àquela
entre configurações A e B (ver capítulo um). Então o Hori surge como um meio precário,
como nos alerta a história de lidar com o contínuo móvel, violento, que separa entidades
discretas, estáveis.
Mas ainda um outro mito que precisa ser analisado dentro desta ordem
(crono)lógia. Tastevin registrou uma versão diferente de ‘Paca, Veado e Anta’, à qual me
referirei daqui para frente como a ‘versão de Tastevin’.
Pourquoi il est difficile d’attraper du gibier
Autrefois nous ne mangions guère que du tapir et du pac qui est le fils du tapir. Le tapir, les pacs et
les autres animaux vivaient parqués comme des boeufs dans un enclos. Au milieux d’eux se tenait un gros
tapir, chef du tropeau et tellement gros qu’il ne pouvait presque pas marcher. On n’avait qu’à prendre dans le
tas.
Un jour le pac s’en t pêcher et il décocha une flèche que blessa une raie de la petit espèce. Il la
trouve trop petite et la laissa dans l’eau. La raie s’en fut se cacher sous un arbre qui gisait au fond de la rivière.
Sur ce, la mère du chef des Tapirs, apparut au bord de l’eau portant dans ces bras son fils trop gros pour
marcher tout seul. Celui-ci baigné de sueur s’apprêtait à prendre une [?]ain. Sa mère lui dit: “Attention aux
raies!” Il regarde dans l’eau et dit: “Il n’y a pas de raies!” Il plonge dans l’eau. A ce moment la raie sortit de sa
cachette et pour se venger du fils du tapir piqua ce dernier. Celui ci blessé à mort fit quelques pas et expira.
Depuis ce temps les animaux, privés de leur chef, se sont débandés. Chacun d’eux a choisi une
rivière (comme le font les clans Katukina). Seul le jabuti (tortue de terre) dit: “Moi je reste ici, je ne sais plus
courir”. C’est depuis de ces temps qu’il y a partout des jabutis dans le sous bois.
Maintenant les hommes sont obligés de courir beaucoup pour trouver du gibier. (Tastevin n.d.2, 7).
Nenhuma das três variantes diz que os animais míticos viraram humanos, porque
eles não viraram; antes, elas explicam como eles se tornaram animais, mas oferecem
paralelos interessantes, no entanto, com a situação dos Kanamari. A gente-animal vivia
com seu chefe Anta, que não apenas agregava todas as antas, mas também seu filho Paca e
246
sua gente e ...les autres animaux”
197
. Não melhor imagem para o papel estabilizador do
chefe do que aquela do gordo chefe Anta, incapaz de se mover, reunindo toda sua gente
‘como gado num cercado’. Quando ele vai tomar banho, ajudado por sua mãe, que é tão
gordo que não pode se mover sem ajuda, ele é aferroado por uma arraia que vinga a morte
de outra arraia pela flecha de Paca. Sua mãe o avisara, mas era tarde demais, e a ferroada
resulta na sua morte. Isso, por sua vez, resulta na dispersão dos animais sem chefe, cada
qual indo na direção de seu próprio rio e, através dessa separação, ‘virando caça’ exceção
do jaboti que é incapaz de correr e por esse motivo permanece ‘na floresta’)
198
.
Nesta versão, o arranjo dos animais tornava mais fácil aos Kanamari adquirir carne
de caça, uma vez que tudo o que tinham que fazer era ir ao cercado e obter o que queriam.
A morte da Anta gorda teve conseqüências infelizes para a humanidade, porque a caça
agora é uma tarefa difícil, que requer dos homens ‘correr’ atrás da caça. Isso, pois, retira os
homens, mesmo que, espera-se, apenas momentaneamente, do espaço do parentesco. A
morte de um corpo-chefe faz precisamente isso, mas numa escala imensa: ela remove as
pessoas da esfera do parentesco indefinidamente, que é o que ocorre com os animais no
mito acima.
Comparando Versões
Uma diferença significativa entre a versão de Tastevin e as demais é que, na
primeira, a gente-animal é caça para os humanos. De fato, o cercado parece funcionar
como o limite de um subgrupo –dyapa maximamente englobante. Da perspectiva dos
animais de caça dentro dele, no entanto, são os ‘Kanamari’ quem são os Dyapa, predando
seus cuidadosamente mantidos e situados corpos-aldeia. Limitados pelo fechamento e
contidos pelo corpo do Gordo Chefe Anta, os animais não têm meios de escapar.
Não é apenas nessa versão, entretanto, que a predação vem de fora. De fato, se
comparamos esse mito com a versão Hori podemos notar que ambos expressam meios
conflitantes de organizar as relações com o penetrante exterior. Na versão de Tastevin, o
interior é todo encompassante, definindo um ‘todo’ em relação a outros predatórios,
enquanto que, nas versões Hori, interiores múltiplos e parciais regulam este exterior. Além
197
Os Kanamari freqüentemente me diziam que as antas jovens, que são listradas, parecem pacas. À medida
que a jovem anta cresce, ela perde suas listras. Esta, no entanto, não é a única razão para tal associação, como
ficará claro em breve.
198
Mitos que narram como os jabotis se tornaram lentos e, portanto, fáceis de pegar, ocorrem em outras
partes da Amazônia (Fausto 2001, 159). Aqui parece que, se a morte do Gordo Chefe Anta causou a
dispersão de todos, os jabotis restam como uma lembrança do quão sortudos eram outrora os caçadores
Kanamari: “eu vou ficar aqui. Eu já não sei mais correr”.
247
disso, elas parecem também narrar diferentes ou complementares movimentos a/ao
encontro de tal potencial de afinidade. A versão de Tastevin narra como a afinidade
emergiu de dentro da forma contido dos animais de caça. Anta e Paca são parentes porque
residem com o mesmo chefe (uma Anta) em um cercado. A morte deste chefe faz com que
os animais se dispersem, indo embora das aldeias. Nas versões Hori, eles são afins porque
residem em rios diferentes. Em lugar de viver como parentes sob o comando de um chefe
em uma única aldeia, eles vivem como afins em múltiplas aldeias e as visitas são necessárias
para tentar aproximá-los. Na primeira, o fechamento é um dado até que o chefe morre; nas
outras, ele precisa ser ativamente buscado.
No entanto, quando consideramos a versão predatória em oposição à versão de
Tastevin, podemos reparar como a versão Hori aparece como uma síntese das duas. Em
todos os casos a questão continua sendo a de como administrar os precipitados dos
Jaguares fragmentados. A versão predatória, no entanto, parece sistematicamente inverter a
solução fornecida pela versão de Tastevin. Se na última toda ‘gente-animal’ vive junta e fica
vulnerável por causa disso, na primeira todos vivem separados, não mantendo outra relação
que não a guerra. No fim, nenhuma delas aparece como modo efetivo de dar conta da
predação; seja por deixar todos excessivamente vulneráveis àquela (a versão de Tastevin),
seja resolvendo o problema de tal vulnerabilidade, mas ao preço da paz que poderia ter sido
estabelecida dentro da aldeia englobante (a versão predatória). O resultado, em ambos os
casos, é um desequilíbrio que requer algum tipo de acordo.
Os Kanamari, em diferentes tempos e diferentes lugares postulam, pois, soluções
míticas que parecem estar quase que em fins opostos uma em relação à outra. Na tabela
seguinte, eu mapeei as três versões em relação a: (1) a situação no início do mito; (2) as
manifestações da função predatória no mito; (3) a manifestação da função estabilizadora no
mito; (4) a situação ao final; e (5) a direção do movimento que cada uma implica. Se
tomarmos o mito numa ordem lógica (senão cronológica), elas parecem operar por meio de
uma dialética, na qual a versão Hori fornece uma síntese.
248
Versão de Tastevin Versão Predatória Versão Hori
Início Os animais vivem
enclausurados em um
curral.
Cada animal vive em
ruas/rios separados.
Cada animal vive
em um rio
separado.
Função
Predatória
Os ‘Kanamari’ predam
todos os animais; a
predação provém de
uma única fonte no
‘exterior’.
Todos os animais se
predam uns aos outros.
A predação está em
muitas fontes do
‘exterior’
Alguns animais se
predam uns aos
outros. Nem tudo
do ‘extrerior’ é
igualmente
predatório.
Função
Estabilizadora
Limite-cercado contido
pelo corpo do chefe
gordo.
Cada aldeia animal em
seu próprio rio.
Nenhuma aliança
contínua é possível.
Cada aldeia animal
em seu próprio rio;
algumas alianças
seguras são
possíveis.
Final O chefe more; os
animais se dispersam,
cada qual para um rio
diferente.
As lutas cessam; as
alianças se tornam
possíveis.
As lutas causam
algumas mortes; as
alianças
permanecem.
Movimento de
mudança
De uma única aldeia
estável a animais
múltiplos; dispersão.
De muitas aldeias
estáveis em guerra às
alianças; concentração.
Estável, até que
uma aliança
distante se torna
marital, o que
resulta em todas as
coletividades
virando caça.
A primeira história postula uma forma idílica onde todos podem viver como
parentes sob o comando de um único chefe, mas o estabelecimento excessivo das pessoas
em um lugar os deixa muito vulneráveis a forças predatórias no exterior. A segunda postula
uma forma onde unidades de parentesco menores, menos vulneráveis, são criadas, mas na
qual os intervalos predatórios entre elas, caracterizados pela variação instável das alianças,
tornam a vida insuportável e ameaçam ‘acabar com o mundo’. E finalmente, a terceira
249
resolve o problema de viver em porções pequenas e seguras dentro de um exterior Jaguar
na medida do que podem os Kanamari, mantendo unidades estáveis e garantindo que
algumas delas, ao menos, mantenham alianças contra as outras
199
. É apenas quando muda
esse balanço precário, e alianças distantes se tornam matrimoniais, que o sistema colapsa, e
as três coletividades se dispersam, virando caça.
Uma comparação entre as três versões, assim, nos permite modelar como as
sementes de jaci vieram a ser organizadas, pela redução das máximas diferenças simétricas
que existiam no ato da criação entre os Kanamari e os Kulina a intervalos menores que
mantinham certos perigos à distância. Ao mesmo tempo, as ximas diferenças
assimétricas entre as sementes de jaci e seu tronco são organizadas pelo mapeamento dos
agrupamentos dessas sementes nos rios, permitindo com que alguns animais (os chefes)
dentro da espécie representassem os outros animais que co-residiam com ele (sua gente).
A Loucura de Piyoyom
Quero agora me voltar para o início do ciclo mítico cujo objetivo é explicar como o
mundo delineado no mito deu lugar ao mundo atual, focando a atenção mais sobre as
relações mantidas dentro de cada unidade/coletividade do que as mantidas entre elas. Ele
principia com a queda do Céu Antigo, e irá apenas se concluir após a viagem de Tamakori,
analisada no capítulo seguinte.
A Queda do Céu Antigo
Os Kanamari dizem que o Céu costumava ser muito baixo, logo acima da cabeça
das pessoas. Era possível se mover entre o Céu e a Terra, e alguns Kanamari dizem que
havia uma grande trepadeira pendurada desde o Céu, o que facilitava os deslocamentos
entre os dois. Não me ofereceram muitas impressões sobre a forma assumida por esse Céu,
mas Tastevin (n.d.1, 117) nos informa que ele era um bloco de pedra e que era
originalmente bem mais baixo, tendo sido ligeiramente erguido, como se fosse o teto de
sapê de uma maloca. De fato, assim como o teto de uma maloca, ele arriou em suas
199
Devo notar que, na versão de Tastevin, a Anta age como a parte estabilizadora do Jaguar, enquanto na
versão Hori ela representa sua parte predatória, canibal, e assim o faz na figura de um sogro canibal. Não
posso, entretanto, fazer mais do que essa observação por ora. Devo acrescentar que, por alguma razão, não
parece haver nenhum ‘Anta-dyapa’ entre os Kanamari, e também relembrar o leitor do papel da anta em reunir
os subgrupos por meio de uma forma de violência, nos flagelos rituais das lutas de couro de anta (ver capítulo
um).
250
extremidades, encerrando a terra em si mesmo. A despeito de ter sido algo erguido, ele
continuou a ser baixo, possibilitando que os xamãs se movessem entre o Céu e a Terra no
decorrer de uma única noite, e permitindo aos pássaros se alimentar na Terra durante o dia
e retornar ao Céu à noite (ver também Carvalho 2002, 176).
Certo dia, as crianças começaram a brincar com as estrelas, que ficavam facilmente
ao seu alcance. O sapo Piyoyom
200
os tinha avisado para não espalhar as constelações, mas
eles o ouviram: “os padrões das estrelas são feios, vamos mexer neles!”, eles gritaram.
Isso irritou profundamente Piyoyom: Olhem, crianças, se vocês continuarem bagunçando
as estrelas eu vou perfurar o céu”! As crianças, no entanto, o ignoraram, e Piyoyom
cumpriu sua ameaça. Com os chifres que crescem de sua cabeça ele perfurou o céu,
fazendo com que este se estilhaçasse em todas as direções
201
. A maior parte deste caiu
direto para baixo mas, à distância, partes dele podiam ser vistas caindo na vizinhança de
Cruzeiro do Sul (rio acima) e Manaus (rio abaixo). “Agora vamos ver se as crianças tentam
bagunçar com as estrelas”, murmurou Piyoyom e, então, começou a cantar:
[1] Adu tyanim Kodoh i-hak, i-hak. (x2)
[2] I-maro’an-pi katu. (x2)
[1] Há tempos atrás, eu perfurei o céu, eu perfurei.
[2] Com o chifre na minha cabeça
202
.
Piyoyom realizou seu desejo: as crianças não poderiam mais brincar com as
estrelas. Por trás do céu estilhaçado, que os Kanamari chamam agora de ‘Céu Antigo’
(Kodoh Kidak), havia um outro, um ‘Novo Céu’ (Kodoh Aboawa). Neste céu, que é o que fica
acima de nós atualmente, as estrelas estão, de fato, muito longe para serem alcançadas em
condições normais. Mas se Piyoyom tivesse previsto as outras conseqüências decorrentes
200
Piyoyom é o nome Kanamari para um sapo intanha (Ceratophrys cornuta). Estes são grande sapos que
ocorrem em áreas abertas de florestas, normalmente camuflados sob as folhas. Seu nome em inglês é
Amazonian horned frog e se refere aos dois chifres que ele possui logo acima dos olhos. O nome Kanamari é
uma onomatopéia.
201
De acordo com outras versões, Piyoyom atirou uma flecha no céu. Notando que Piyoyom existiu em um
tempo no qual a ‘disjunção entre humanos e não humanos ainda não tinha ocorrido’, isto é o que os
informantes de Carvalho lhe disseram sobre ele: “...é, em geral, caracterizado por sua pequena altura um
informante chegou a dizer que ele tinha o comprimento de um dedo e pelo seu gosto particular em flechar
passarinhos, tanto assim que quando se o [sic.] refere, costuma-se qualificá-lo como ‘o índio flechador’,
detentor de um arco poderoso, tal deveria ser sua habilidade nessa arte” (2002, 277).
202
A tradução de maro’an-picomo ‘chifres na minha cabeça’ é dos Kanamari, e refere-se especificamente à
anatomia do sapo-de-chifres Amazônico. A palavra –pi significa chifre (ou espinho), mas a palavra para
cabeça é –ki. Os chifres de um veado , por exemplo, são chamados ‘bahtyi-ki-pi, ‘veado-cabeça-chifre’.
251
de sua impetuosidade, ele o teria se mostrado o vaidoso nem tão sardônico. O Céu
Antigo vacilou, começou a desmoronar nas bordas e então desabou em cima de todos,
esmagando o que estava embaixo dele ou empurrando mais para baixo. A terra sobre a qual
estamos hoje são seus restos, as características naturais erráticas são um resultado de o Céu
ter caído sobre copas de árvores e casas. Ele caiu com o som do trovão, matando todos na
terra exceto Piyoyom e sua gente, que se esconderam embaixo de uma palmeira (Reesink
1993, 126-9).
algum consenso que Piyoyom seja um daqueles da ‘gente de Tamakori’: “esse
Piyoyom era próprio gente de Tamakori, pessoal dele”, o informante de Carvalho disse-lhe
em Português, antes de sugerir que o céu foi perfurado porque Tamakori assim ordenou
e que por essa razão a gente de Piyoyom foi poupada (2002, 278-9). Os informantes de
Reesink dizem que Piyoyom, junto com Matso (um Jaguar negro que iremos encontrar no
próximo capítulo), “...viraram Tamakori para rezar[
203
] o céu e fazê-lo cair” (1993, 128).
Mas parece que esse estatuto, que pode ter salvado Piyoyom (e talvez Matso), teve um
preço pois, reduzidas às únicas pessoas restantes na terra, a gente de Piyoyom precisava
casar incestuosamente para repovoá-la, e assim o fizeram. Essa proto-humanidade estava,
assim, fadada ao fracasso, uma vez que, após a viagem de Tamakori, a gente de Piyoyom
gradativamente virou intanhas, enquanto Matso, que tinha sido um cachorro muito grande
antes da queda do Céu Antigo’, “...virou onça quando Tamakori partiu dessa terra”
(Carvalho ibid., 280).
O Experimento com Adão
Kodoh me contou uma versão diferente sobre o quê aconteceu após a queda do
Céu Antigo, que assimila elementos do Livro do Gêneses
204
. O colapso do céu livrou a
terra de todos, mandando-os para o subterrâneo ou matando-os por completo, inclusive
Piyoyom. Tamakori então chegou aqui na terra, para ver o que tinha acontecido, mas o
pôde achar ninguém. Assim, ele fez (-bu) Adão e perguntou-lhe: “Adão, você vai querer
203
No Itaquaí, ao menos, ‘reza’ é associado com o xamanismo dos brancos. Os Kanamari admiram bastante
as habilidades de alguns ‘rezadores’ locais, e quando estão doentes eles por vezes viajam a Atalaia do Norte
para se consultar com eles, preferindo seus diagnósticos àqueles dos médicos locais.
204
O Itaqununca foi o local de missões de qualquer denominação. Kodoh nasceu e cresceu em torno do
rio Mawetek, próximo ao qual uma Missão Novas Tribos se estabeleceu (Neves 1996, 109-11). A maioria dos
Kanamari do Itaquaí, no entanto, traduzem regularmente Tamakori como Deus’ e, menos freqüentemente,
Kirak como ‘Satanás’. Eles também se referem regularmente à Bíblia, que me disseram conter ‘toda história
de Tamakori’. Alguns deles podem ter estado em contato com missionários Cristãos no Juruá, ou se
familiarizaram com essas idéias através dos constantes movimentos que eles e os Kanamari do Juruá
empreenderam. Além disso, os brancos que ocuparam o Itaquaí eram nominalmente Cristãos, e tais idéias
podem ter sido difundidas por meio de sua presença.
252
uma mulher”? Adão disse que sim e, de uma de suas costelas, Tamakori criou a esposa de
Adão. Logo, ele disse a Adão que ele não deveria bater nela ou esbofeteá-la em momento
nenhum.
Adão e sua esposa tiveram filhos, dois meninos e duas meninas. Quando eles
cresceram, Tamakori disse: Ouça, Adão, eu quero casar suas filhas. Elas devem casar com
seus irmãos”. Assim eles fizeram e estabeleceram casas umas próximas às outras. Tamakori
então perguntou se eles não queriam ‘parentes’
205
. Eles quiseram, pois o eram muitos, e
as filhas de Adão ficaram grávidas de seus filhos. Tamakori então lhes disse para ‘abrir’ um
roçado. Eles derrubaram madeira em uma grande área e colocaram fogo, para deixar a terra
fértil. Mas eles não tinham mudas de mandioca para plantar: “o que nós vamos plantar no
nosso roçado?”.
Tamakori ordenou que eles fossem à mata buscar pequenas e finas tiras de madeira.
Eles as trouxeram para ele, ele as examinou para decidir quais delas virariam mudas de
mandioca, e ensinou Adão a plantá-las. Após Adão ter começado a plantar, ele escutou o
som do pássaro makoko (‘macucu’ em Português). Tamakori ordenou que ele fosse à mata
ver o que era: é apenas um pássaro makoko, Tamakori”. “É mesmo? Bem, você vai
trabalhar enquanto ouvir o canto do makoko
206
”. Ele os ensinou como preparar mandioca, a
remover a raiz, descascá-la e cozinhá-la, após o que ele soprou (-topohman) sobre a
mandioca para que ela crescesse. Tamakori então tratou de fazer outro roçado: ele removeu
sua própria língua, que eles plantaram e virou banana (bari nanim); seus dentes viraram
abóboras (Kodoh me lembra como as sementes de abóbora parecem dentes); suas unhas
viraram melancias.
Nessa versão, Adão assume a ‘função Piyoyom’ do mito, sendo criado
imediatamente após o cataclismo, gerando filhos que se casam incestuosamente. Os
Kanamari não reconhecem nenhuma ancestralidade em Adão, nem ele é ancestral de
nenhum povo conhecido por eles. Ele simplesmente desapareceu e sua gente ‘acabou’
(hawane), mas seu conhecimento do roçado foi deixado na terra para uso dos Kanamari
207
.
Um Kanamari me disse que foi após Adão ter ‘acabou’ que Tamakori fez a humanidade das
sementes e tronco das palmeiras, como vimos acima.
205
O que Tamakori pergunta é wih niwu kidiki tyo?’, que também pode ser glosado como vocês querem
muitos?”.
206
Aproximadamente do amanhecer até o crepúsculo.
207
A inserção de um mito da origem da mandioca dentro de um ciclo mítico que inclui a destruição da terra
ocorre em outras partes da Amazônia (e.g. Fausto 2001, 141). Para uma versão Kanamari alternativa da
origem da mandioca e dos roçados, que envolve os feitos do Urubu-Rei, ver Reesink (1993, 294-302) e Labiak
(1997, 34-6).
253
O tipo de sociabilidade inato a cada bacia de rio o estabelecimento de roçados,
casas sendo erguidas umas próximas às outras, períodos de trabalho definidos, maridos não
violentos com as esposas é estabelecido dentro da ordem incestuosa, por irmãos que
casam entre si. Tamakori imbui o subgrupo com um conteúdo positivo a partir do
experimento com Adão, enquanto estabelece a relação entre os subgrupos a partir do
tempo mítico do Céu Antigo. O funcionamento preciso da composição interna do
subgrupo pode ter mudado à medida que Tamakori criava mais gente, e removia
(parcialmente, no máximo) o espectro do incesto de dentro do subgrupo, mas seu modelo
é fornecido pelo ‘puro interior’ implicado por Adão. Inversamente, a forma internamente
múltipla da humanidade durante o Céu Antigo é desfeita em favor de tipos mais estáveis,
mas a forma das relações que eles entretêm é mantida.
É assim que imagino que os Kanamari o imaginam: um mundo de quase pura
afinidade é suplantado por um de pura consangüinidade, antes de Tamakori começar a criar
o mundo como ele deveria ser, com a dose certa de cada. Mas o fato de que ele o pode
fazer a partir de um mundo de afinidade, que precede até ele próprio, implica que a
afinidade permanece como o modo padrão de relacionar as pessoas, o “estado fundamental
do campo relacional [a partir do qual] a consangüinidade deve ser deliberadamente
conquistada (Viveiros de Castro 2001, 26). Tamakori aprendeu esta lição do modo mais
difícil, fazendo em larga escala uma sociedade excessivamente consangüínea a partir do
mundo afinal que o precedeu; uma idéia que, embora comovente, é o descabida que os
Kanamari nem mesmo gastam seu tempo tentando explicar por que ou como ela deixou de
existir.
254
5
O Tempo de Tamakori
No capítulo anterior, eu segui o processo mítico que forneceu a base para o modelo
de endogamia de subgrupo. Vimos como o molde tanto para a sociedade quanto para o
mundo emergiu da fragmentação de Jaguares. Aspectos da paisagem fluíram de corpos-
Jaguar, e unidades estáveis foram criadas contra a mobilidade que o Jaguar implicava. Para
frear essa mobilidade, os Kanamari postularam pequenas áreas de estabilidade nos
subgrupos, algumas das quais mantiveram alianças excluindo ou indo contra as outras. Mas
se essa solução mapeou formas sociais sobre a paisagem instável, ela o fez ainda dentro de
um mundo composto por transformações em curso, onde animais e pessoas eram
misturados e as características do mundo estavam ainda em formação.
Neste capítulo, analisarei uma única história, doravante ‘A Viagem’, que marca o ato
final do tempo mítico ou, se preferirem, o primeiro ato do tempo histórico. Se, no capítulo
anterior, começamos a ver como o mundo foi formado a partir do mito, aqui analisaremos
uma crônica de como o mundo deixou de ser formado desse modo. Trata-se, pois, de um
mito de origem do mundo atual e diz respeito aos últimos feitos de Tamakori e seu irmão
Kirak. Os eventos do mito se desenrolam ao longo de uma viagem pelo rio Juruá na qual
os dois heróis interrompem a transformabilidade inerente do mundo e separa seus seres. A
Viagem é fisicamente delimitada pela extensão do que foi, por um bom tempo, o mundo
conhecido dos Kanamari: a cidade de Cruzeiro do Sul rio acima, e Manaus rio abaixo. É
durante a viagem entre esses dois pólos que as transformações finais são realizadas, e os
dois eventualmente desaparecem, alguns dizem que para sempre.
A Viagem, então, se equilibra entre a separação do ‘mito’ a partir da ‘história’,
narrando a instauração de um mundo que seria fenomenologicamente reconhecível para os
Kanamari – mesmo que também fosse muito diferente do mundo de sua memória coletiva.
Poderíamos dizer que ele narra a formação de um ‘marco zero’ mito-histórico, que põe fim
a certas transformações em curso e pavimenta o caminho para transformações futuras. Se é
verdade que todos os mitos Kanamari senão mesmo todos os mitos operam
confrontando narradores e ouvintes com “alternative worlds which are at once both alien
and familiar” (Gow 2001, 90), esta história atravessa a oposição, criando no ato mesmo de
sua narração aquilo que, dali em diante, será estranho e aquilo que será familiar.
No capítulo anterior, pois, eu analisei uma série de mitos Kanamari que passaram
de um mundo que era excessivamente de tipo-Jaguar para um mundo no qual o Jaguar se
255
tornou progressivamente atenuado. Podemos agora ver essa história como sendo uma na
qual o ‘coeficiente Jaguar’ do mundo atinge seu ponto mais baixo. Ou, para adotar a
terminologia de Viveiros de Castro, se no capítulo anterior nós narramos um movimento
contra um fundo infinito de socialidade virtual’, temos aqui um exemplo onde o mundo e
a sociedade Kanamari, aonde podem, se extraem a si próprios desse fundo (Viveiros de
Castro 2001, 24-5).
Tamakori e Kirak
Nesta seção, irei fornecer o contexto para a versão da Viagem que eu registrei e,
então, transcrever o mito, baseado na minha própria tradução. Em seus contornos gerais, o
mito foi também registrado por Tastevin (n.d.2) e Reesink (1993, 144-210 et passim).
Entretanto, o contexto do mito é importante para elucidar porque certos aspectos são
enfatizados e outros minimizados, e me limitarei principalmente, então, a uma análise da
versão que ouvi. Esta é em si mesma uma tarefa desalentadora. A Viagem parece ser o
ponto de convergência de todos os mitos, e veremos como ela resiste à totalização, sempre
apontando para temas que poderiam ser seguidos ad infinitum. É típico dos Kanamari que
eles narrem uma instanciação de um mundo discreto de uma maneira contínua, que escapa
do próprio objeto da narrativa.
Aspectos da Viagem
Seria errado passar a idéia de que uma única ‘História de Tamakori’. A história
que estou chamando de A Viagem concerne exclusivamente àqueles atos que Tamakori e
Kirak empreenderam e suas viagens de ida e vinda de Manaus, que ocorrem após eles
terem criado os Kanamari, os Kulina e os Dyapa. Isto não conta de todos os feitos de
Tamakori e Kirak, e outros atos, como a separação entre noite e dia e a fabricação da
primeira mulher, fossem sempre narrados separadamente. No capítulo anterior nós nos
deparamos com alguns de seus feitos, como de seu suposto papel na história da ‘queda do
Velho Céu’ e o experimento com Adão. outras histórias que contêm referências
passageiras a Tamakori, ou que parecem ser subprodutos de suas aventuras, como a
chegada do Padre Constantino (Tastevin) entre os Kanamari, freqüentemente explicada a
mim como uma visita do próprio Tamakori.
256
Eu pude registrar duas longas narrativas da Viagem, ambas ouvidas na aldeia de
Bananeira. Uma delas me foi contada por Dyumi após eu ter lhe pedido para ouvir a
‘história de Tamakori’ (Tamakori nawa ankira). Dyumi se desculpou, me disse que o sabia
essa história e me perguntou, em vez disso, se eu não tinha lido a Bíblia, sugerindo que eu a
conhecia melhor do que ele. Um curto silêncio então se seguiu antes que Dyumi começasse
sua narrativa. Sua versão começa com a auto-criação ex nihilo de Tamakori: “do nada ele
apareceu”. Em torno da metade da narrativa, Kodoh, considerado unanimemente o melhor
contador de histórias, sentou-se conosco e ofereceu comentários ocasionais, tomando
mesmo parte na narrativa em algum momento.
Aproximadamente um ano depois, eu estava tomando notas quando Kodoh veio
me visitar e me pediu para ligar o meu gravador. Ele começou a me contar o mito dos
amantes-Lontra, que dão peixe para as mulheres em troca de sexo, que eu tinha ouvido
muitas vezes anteriormente. Essa narrativa, então, desembocou na de Tamakori, ao que
parece naturalmente, com um mito sendo utilizado para elucidar aspectos do outro. É essa
versão que eu vou reproduzir abaixo. Fornecerei uma versão muito abreviada do ‘prelúdio
do amante-Lontra’ do mito antes de passar para a Viagem propriamente, de modo a situar
o leitor em relação às partes das narrativas que dependem umas das outras (ver Apêndice B
para a transcrição completa do prelúdio). Eu também dividi o mito em dezoito episódios
enumerados, marcados entre colchetes, e a discussão que segue a narrativa fareferência a
estes
208
.
Não provavelmente nenhum mito Kanamari que não possa ser anexado a um
episódio da Viagem. Freqüentemente me contavam mitos que não faziam nenhuma
referência a Tamakori e Kirak apenas para ouvir, em sua conclusão, que o que aconteceu
no mito ‘também’ ocorrera num dado episódio da Viagem. Parece-me, pois, que mais que
um ‘mito’, a Viagem é uma máquina de processar todos os mitos, seu ponto culminante e
também seu encerramento
209
. Seu papel de levar um estado prévio a um termo, no entanto,
a torna muito similar às histórias de Jarado e Sabá, e sabemos que, tal qual essas histórias,
ela anuncia uma nova era. Assim, eu concluirei esse capítulo comparando aspectos da
Viagem com Jarado e Sabá, situando-a no contexto das diferentes ‘épocas’. Antes de fazê-
lo, no entanto, analisarei aqueles aspectos da Viagem que resvalam nos temas que eu vim
tratando até aqui. A Viagem claramente fornece uma dobradiça entre esses temas e aqueles
208
O mito da Viagem transcrito abaixo se inicia assim (episódio 2) exatamente onde termina o Apêndice B.
209
Os mitos coletados em Tastevin (n.d.2) incluem uma série de histórias que não se encaixam na versão da
Viagem que eu registrei, mas eles são ditos terem ocorrido a Tamakori e Kirak. Eu ouvi versões quase
idênticas dessas histórias, mas nas quais nenhum dos heróis é mencionado, as histórias envolvendo, em vez
disso, gente-animal ou Jaguares. Retornarei a esse ponto mais abaixo.
257
que irei analisar na Parte III. Assim, os episódios que se referem aos últimos serão
acessados nos próximos dois capítulos.
A história de Tamakori, como me foi contada, é uma espécie de sucesso local.
Aspectos dela, senão mesmo toda ela, eram narrados regularmente, quase sempre
envolvendo uma maior multidão do que em outros eventos de narração de histórias. Os
Kanamari também me pediram, inúmeras vezes, que tocasse a minha gravação d’A Viagem
para eles ouvirem. A história era sempre pontuada com comentários risonhos e bem-
humorados e as pessoas tentavam garantir que nenhum aspecto da história se perdesse
devido ao meu pouco conhecimento da ngua Kanamari. Eu espero que minha tradução
tenha sido capaz de transmitir alguns dos aspectos lúdicos da história.
A Viagem começa após a criação das primeiras pessoas, e os Amantes-Lontra
parecem envolver eventos que ocorreram aos primeiros Kanamari. A história da criação
dos primeiros humanos me era conhecida, e talvez por isso o narrador a tenha omitido.
Mas ela continua implicada na história. Notei no capítulo quatro que uma versão da
Viagem registrada por Reesink (1993, 548) principia com a criação dos primeiros humanos
e depois se desenvolve em uma versão muito similar da história transcrita e traduzida
abaixo.
A Viagem
[1] As mulheres costumavam obter peixe das lontras, em troca de sexo. Os homens descobriram o
que elas estavam fazendo com a ajuda de um espião dyohko. Eles mataram as lontras, penduraram seus
testículos no teto da cozinha e sua gordura pingou sobre as mulheres. Os homens então surraram as mulheres
usando os galhos espinhosos da pupunheira, transformando-as e alguns de seus filhos pequenos em
queixadas. Alguns homens viraram cupins.
[2] A gente-queixada partiu para Manaus. Entre eles estava a ancestral Nona e seu filho, Hohdom.
Eles jamais retornaram. Hohdom, que era um tukuna, tomou conta de Manaus, cortando lenha para sua mãe.
Mais tarde, Tamakori veio vê-los: “quem vai tomar conta de Manaus?”.
“Eu vou”, disse Hohdom.
Tamakori, então, rabiscou algo num pedaço de papel e deu para Hohdom, que o leu.
Ele deixou Hohdom encarregado de Manaus e retornou, viajando com seu irmão Kirak novamente
rio acima, até os Kanamari e Cruzeiro do Sul.
[3] Algum tempo depois, ele decidiu voltar a Manaus. “Irmão, vamos para Manaus. Vamos ver
Hohdom”.
“O que devemos levar conosco?”, perguntou Kirak.
258
“Levaremos os cestos vazios de nossa mãe
210
”. Eles acharam alguns cestos que colocaram em sua
canoa.
“O que exatamente devemos levar agora? Vamos levar cestos novamente?”, Kirak perguntou. Logo
em seguida, eles viram dois ninhos de vespas. Eles pararam a canoa e saltaram em terra firme.
“Irmão, vamos pegar esses ninhos de vespa”, disse Kirak.
“Vá em frente”, disse Tamakori. Kirak escalou até o ninho, mas foi ferroado por vespas ao longo do
caminho, o que o fez cair no rio. Seu irmão o agarrou pelo braço e o trouxe para a terra. Eles seguiram
viagem. “O que devemos fazer agora, iremos procurar mais cestos vazios de nossa mãe?”, perguntou Kirak.
[4] Então eles viram a peneira
211
, no fundo da água. Até então, a peneira era uma arraia. “Irmão,
levanta a peneira da mãe”, disse Tamakori. Quando Kirak a tocou, a peneira ferroou seu braço.
“Ahh, a arraia ferroou meu braço”, disse Kirak. Ele a nomeou
212
. Seu nome era até então ‘peneira’,
que é como Tamakori a chamou. Kirak a nomeou ‘arraia’.
[5] Eles continuaram sua viagem. “Tamakori, o que exatamente nós iremos ver agora? É realmente o
pilão
213
da mãe que iremos ver?”. Eles acharam o pilão debaixo d’água, e Tamakori disse: “irmão, tente erguer
o pilão da e para nós”. Kirak o alcançou dentro d’água e levou um choque. “Aya, aya, o poraquê me deu
um choque
214
”. Ele nunca deu um choque em Tamakori.
[6] Eles seguiram viagem. “Irmão, o que exatamente nós vamos procurar agora?”.
“Vamos procurar a mosca. Ouça!”. Eles ouviram um zumbido distante. Ele se tornou mais próximo
e Tamakori atirou uma flecha, atingindo a mosca. Foi chamada de ‘mosca’ a partir de então. Tamakori atirou
no mutum, matando-o. Eles o colocaram na canoa.
“Irmão, o que exatamente vamos procurar agora?”.
“Vamos procurar a mosca novamente. Ouça!”. Eles ouviram o zumbido outra vez.
“Me deixa acertá-la dessa vez, meu irmão!”, disse Kirak. Eles ouviram o zumbido no outro lado do
rio, não muito distante deles. Eles foram na direção da mosca e ela pousou em um galho. Kirak se aproximou
dela com seu arco engatilhado. Mas a mosca decolou novamente e Kirak a perdeu de vista. Ele ouviu o
zumbido ir ficando mais fraco. De repente, o mutum veio até Kirak, atingindo-o com suas garras.
“Aya, aya, o mutum me atingiu!”. Kirak o nomeou e então caiu na água.
[7] Eles partiram. “Irmão, o que exatamente vamos procurar agora?”.
“Vamos ver Kanamaroho
215
. Ouça, meu irmão!”.
210
Na versão que ouvi de Dyumi, Tamakori surge ex nihilo (see also Reesink 1993, 129). Mas há um consenso
geral de que Tamakori tinha uma mãe. Muitos Kanamari me disseram que essa mãe era Maria, que, eles
prosseguem, é a mãe de Jesus.
211
A palavra Kanamari para peneira é dyan’ang. Dyan significa açaí, mas todas as peneiras recebem essa
designação.
212
A arraia é chamada de hihna em Kanamari. Eu traduzi wadik-bu como ‘nomear’. Literalmente, ele significa
‘fazer seu nome’. É o mesmo termo usado ao se nomear os filhos pequenos. Os Kanamari por vezes
expressam esse ato como um ‘batismo’.
213
Tehkom wako. Isto é, para ser mais exato, o pilão usado para moer tabaco para fazer rapé.
214
O verbo que eu traduzo por ‘dar um choque’ é –ti. Ele também significa ‘matar’ ou ‘atacar letalmente’. Ele
é, pois, diferente de bohbo, ‘atingir’. É também diferente do ataque da arraia –hak, que eu traduzi por ‘ferroar’.
–Hak implica perfuração, e é também o verbo usado para o ataque a algo ou a alguém com uma flecha.
215
Eu pergunto o que era ‘Kanamaroho’ e Kodoh me diz que é o nome de ‘um dos bravos’, explicando
depois que Kanamaroho é um Dyapa, um falante de língua Pano. Mais tarde, ele foi referido pelo nome em
Português ‘Caceteiro’, o que significa que Kanamaroho é provavelmente um Korubo.
259
Eles ouviram, à distância, “Kanamaroho, Kanamaroho. Kanamaroho, Kanamaroho. Kanamaroho,
Kanamaroho”.
“É onde Kanamaroho vive? Meu irmão, me deixe ir procurá-lo. Fique aqui. Não você bagunçar
com Kanamaroho!”, Tamakori disse-lhe. Ele se moveu lentamente e viu muitos ‘bravos’ vindo em sua
direção, todos eles carregando suas armas. Eles queriam matar Tamakori, mas ele assoprou sobre os
Caceteiros, fazendo com que eles fossem embora. Depois, faz-se silêncio. Mas Kanamaroho vai até
Tamakori: “para onde você está indo, Tamakori?”.
“Estou indo para Manaus, Kanamaroho”.
“Sim. Eu vou ficar bem aqui, Tamakori”. Tamakori então chamou seu irmão para que eles pudessem
continuar sua viagem.
“Irmão, me deixa também ir ver Kanamaroho”, Kirak pediu a Tamakori e foi na direção de
Kanamaroho. Kanamaroho sugou
216
Kirak. “Aya, aya, meu irmão, Kanamaroho está me comendo. Venha
rápido, ele vai me ingerir inteiro!”. Tamakori correu até seu irmão e o puxou. Então ele lançou dardos
xamânicos em Kanamaroho e levou Kirak para a margem do rio. Eles viram, à distância, os Caceteiros, que
queriam matar Tamakori.
[8] “Irmão, o que exatamente vamos procurar agora?”.
“Vamos tomar um pouco de caantes de continuar nossa viagem”. Eles avistaram uma fogueira.
“Lá, uma mulher branca. Vamos tomar um pouco de café com ela”. Eles pararam a canoa.
“Piu, piu, piu, piu”, fez a galinha. Seu nome era Maria. Ela era uma galinha muito tempo atrás.
Ela estava rodeada por seus pintos. Ela disse, “vai lavar prato, menino
217
”!
“Onde você está indo, Tamakori?”.
“Estou indo para Manaus”.
“Hum. Você quer um pouco de café antes de ir?”.
“Quero”.
Maria lhe deu café. O café eram suas fezes. Ela as misturou com água e Tamakori bebeu.
“Vou para Manaus, Maria”, e ele voltou para sua canoa.
“Irmão, deixa eu beber café também”, Kirak, que ficara esperando na canoa, pediu a Tamakori.
“Tudo bem. Beba um pouco”.
Mas Kirak esbarrou na galinha enquanto esta dormia. Ela acordou e assustou Kirak, fazendo com
que ele caísse no rio. Seu irmão o ergueu pelo braço, o endireitou e eles seguiram novamente seu rumo.
[9] “Irmão, o que exatamente vamos procurar agora?”.
“Vamos procurar o açaizeiro Parian
218
”.
O açaizeiro Parian era um helicóptero. Eles se aproximaram dele, enquanto suas folhas se moviam
rapidamente, e decidiram experimentá-lo. Tamakori amarrou a canoa e trepou na árvore, que o levou para
cima e para baixo em segurança.
“Eu quero tentar também, irmão”, diz Kirak.
216
Bihni, que significa, na verdade, ‘engolhir’. Os Kanamari suspeitam que uma das coisas que os Dyapa em
geral, e os Korubo em particular, fazem às pessoas é sugar seu sangue.
217
Isso é dito em português. Kodoh caçoa do jeito regional de falar, e essa é uma cena que sempre causava
muita risada.
218
Toda vez que eu perguntava o que significava Parian, diziam-me que este era apenas o nome da árvore do
açaí durante o tempo de Tamakori.
260
Tamakori ensina Kirak como ele deveria montar no aizeiro Parian. Mas Kirak faz uma grande
trapalhada e o helicóptero o atira no meio do Juruá. Seu irmão o puxa pelo braço. Kirak está tonto por ter
girado no ar. Tamakori espera que ele se recupere antes de prosseguir suas viagens.
[10] “Irmão, o que exatamente vamos procurar agora?”.
“Vamos procurar Tabocas Imprestáveis
219
”. Eles pararam numa praia onde a maior parte das
Tabocas Imprestáveis estava verde, exceto por uma.
“Irmão, eu quero pegar a taboca”, diz Tamakori. Então, ele a assoprou: shwwwww, shwwwww. Seu
sopro ergueu a taboca no ar e a trouxe até a praia, onde Tamakori a pegou.
“Irmão, eu também quero pegar a taboca”, disse Kirak a Tamakori.
“Claro, em frente”. Kirak marchou até , mas a Taboca Imprestável agarrou no pênis de Kirak e
amassou seus testículos. A Taboca Imprestável era uma Criança Imprestável
220
. Tamakori usou suas
habilidades xamânicas para mandar a Criança Imprestável embora e puxar seu irmão até si. A Criança
Imprestável apenas ficou lá, nem sequer zangada, observando enquanto eles se afastavam.
[11] “Irmão, o que exatamente vamos procurar agora?”.
“Vamos procurar o leão. Vamos pegar alguns filhotes para levar conosco”. Logo em seguida eles
ouviram o leão: how, how, how, how, howwwwwww. Ele estava faminto por Tamakori e correu de cima a
baixo pela praia, abrindo sua imensa boca.
“Vou pegar um filhote de leão, meu irmão, e então poderemos continuar nossa viagem”, Tamakori
disse a Kirak. Ele encarou o leão e seu tufo de cauda e sua juba felpuda. A leoa não estava distante, mas os
filhotes estavam do outro lado. Ela agarrou um deles furtivamente e saiu correndo.
“Irmão, me deixa ir ver o leão também”, Kirak pede a Tamakori.
“Não, irmão, nós já temos nosso filhote de leão, devemos partir”.
“Mas esse aí é seu, eu quero ir buscar um para mim”, diz Kirak.
“Muito bem, em frente”. Kirak assim o fez, mas o leão o mordeu fazendo com que ele fugisse e
pulasse na água.
“Esqueça isso, irmão, o leão vai acabar te matando. Vamos embora”. Enquanto entravam na canoa,
o leão os seguiu pela praia até Tamakori assoprá-lo para longe com seu sopro
221
.
[12] “Irmão, o que exatamente vamos procurar agora?”.
“Vamos ver Matso
222
. Ouça!”. Matsoooooooooooooo, Matsoooooooooo. Matso estava vindo para
beber água. Ele abriu a boca e mostrou seus grandes dentes. “Estou indo ver Matso, você fique aqui, meu
irmão. Não chateá-lo”, Tamakori disse a Kirak. Então ele foi aMatso e extraiu dois de seus dentes. E
levou os dentes e os enterrou. Dali cresceu uma bananeira. Os dentes de Matso eram dyohko. Ele plantou o
outro dente próximo dali, que depois se tornaria uma pupunheira.
219
A palavra para o tipo de bambu usado para fazer as flechas e a ‘flecha’ é a mesma: duruku’an. Na história
de Tamakori os bambus de flecha são chamados duruku’an-mam-dyaba. A palavra –dyaba pode significar
‘imprestável’, mas em outros contextos significa ‘espírito’, ambos os conceitos sendo relacionados.
220
Opatyn-dyaba, ou criança imprestável. Assim é como os Kanamari chamam qualquer criança nascida com
uma deformidade ou deficiência.
221
Kodoh me disse que Tamakori assoprou com tanta força, que não há atualmente mais leões no Juruá.
222
Matso é o nome do jaguar negro, Pidah Teknim.
261
[13] Eles seguiram rio abaixo até alcançarem um grande lago, que é onde Tamakori iniciou
223
a
cidade de Manaus: “Aqui é onde está Manaus, meu irmão”! Eles pularam no lago em busca de ostras, que eles
encontraram. Eles as usaram para fabricar dois arpões para arpoar peixes-boi. Eles colocaram os arpões em
suas mochilas e iniciaram a cidade. Uma vez que tudo estava terminado as casas e tudo o mais eles
reuniram todos os queixadas
224
, os colocaram no quarto de uma casa e a trancaram. Então, eles foram
procurar corda. Eles acharam um pouco de cipó-titica, quando ouviram tiros de rifle à distância. De repente,
um caçador-lobisomens
225
se aproximou deles.
“Onde você está indo, caçador?”.
“Estou indo caçar veado”.
“Não caçador, vamos dar uma volta na cidade. Caçaremos mais tarde. Apenas carregue esse cipó
para nós, por favor”. O caçador concordou e eles retornaram à casa onde os queixadas tinham sido
trancados.
“Tente abrir essa porta”, disse Tamakori ao caçador. O caçador abriu a porta e dentro estavam os
brancos. Antigamente, os brancos eram queixadas. Estavam todos tomando café.
Tamakori decidiu partir. Ele deixou Hohdom para trás para tomar conta de Manaus.
[14] “Vamos, irmão, nós vamos direto para Cruzeiro”. Eles encontraram a pupunheira com
pupunha madura no caminho
226
. Nesse tempo não havia nome para a pupunha.
“Irmão, traz um cacho delas para baixo. Vamos comer”, Tamakori disse a Kirak, que trepou na
árvore e trouxe dois cachos de pupunha.
Enquanto comiam, Kirak perguntou a seu irmão: “Tamakori, qual é o nome disso”?
“Eu não sei. Vamos apenas comer”. Logo em seguida, Tamakori deixou escapar um sonoro peido:
tyoooooooooo. “Esse vai ser o nome, meu irmão: tyo! É assim que devemos chamar isso”. Seu peido deu
nome à pupunha.
[15] Eles seguiram viagem rio acima. Eles alcançaram a área onde estavam os Kanamari. Algumas
crianças os olharam à distância e uma delas atirou seu cinto em Kirak, que caiu no rio e chorou de dor.
Tamakori diz para ele esquecer o assunto: “nossa gente ainda não é boa”.
Eles ficaram impressionados com a quantidade de pessoas, que começaram a aparecer de todas as
direções. Eles estavam todos nus à época, cobertos apenas com suas saias e tangas feitas da entrecasca de
uma árvore. Foi apenas mais tarde, gradualmente, que os Kanamari se tornaram como somos atualmente.
Nós temos vergonha agora e o andamos mais nus. Todos foram até Tamakori e apertaram suas mãos e as
de Kirak. Eles viram uma mulher e decidiram levá-la. Tamakori levou uma, Kirak levou outra. Eles
construíram suas casas, onde fizeram sexo com as mulheres. Kirak não sabia o que fazer e fez sexo no espaço
entre os dedos do da mulher. “Isso é sua vagina?”, ele se perguntou. Tamakori riu de seu irmão e pensou
consigo mesmo: ‘deixa ele fazer sexo entre os dedos do pé dela’.
223
Makoni, que significa ‘iniciar’, como em ma-makoni an Pidah tyo, ‘eles iniciaram o Pidah [um ritual]’. A
palavra pode ser segmentada em ma-, um prefixo denotando que um verbo particular ocorre em um lugar
específico e –koni, ‘fala’. ‘Iniciar’ é, pois, literalmente, ‘falar em um lugar particular’.
224
Esta é uma referência às mulheres-Queixada que foram para Manaus e o a motivação da viagem de
Tamakori (ver Appendix 2).
225
Lobisomens são um personagem comum no folclore regional. Os Kanamari com quem falei nunca haviam
visto lobos, e assim o termo tende a ser usado para denotar seres antropomórficos monstruosos. O episódio
envolvendo o caçador de lobisomens é considerado excepcionalmente engraçado.
226
A pupunheira, deve-se recordar, era um dyohko, o dente de Matso, que Tamakori plantou.
262
Tamakori, enquanto isso, fez sexo com sua esposa. Por dez dias eles ficaram em casa. Na manhã
seguinte eles começaram a viajar rio acima novamente, onde avistaram mais tukuna. Havia muitos deles e
estavam todos nus. Eles passaram mais dez dias com eles. Eles viajaram novamente e encontraram ainda mais
tukuna com quem passaram outros dez dias. Isto ocorreu mais uma vez enquanto continuavam subindo o rio
na direção de Cruzeiro.
[16] Depois, não havia mais Kanamari e eles encontraram os Kulina. Kirak fez sexo com uma jovem
garota Kulina que gritou de dor. “Por que Kirak penetrou a jovem garota Kulina?”, Tamakori se perguntou.
[17] Tamakori, então, disse: “irmão, vamos pegar algumas tabocas antes de irmos. Mas você fica
aqui, Kirak, eu mesmo vou buscar as tabocas. Eu vou buscá-las onde vivem os Dyapa”. No caminho, ele
encontrou o pássaro jacamim.
“Onde você está indo, Tamakori?”.
“Estou indo buscar algumas tabocas lá onde vivem os Dyapa”.
“Beba um pouco de café antes de ir”. O jacamim misturou sua diarréia com água: “aqui, tome, ou
então os Dyapa vão furar você com suas flechas”. Tamakori tomou. “Você não vai morrer”.
Os Dyapa se aproximaram de Tamakori: “hi, hi, hi, hi, hi, hiiiiiiiiiiiiiiiiii. Nós vamos matar Tamakori”.
Tamakori seguiu um lagarto que caiu de uma árvore. Os Dyapa se aproximaram dele furiosamente, mas
Tamakori os assoprou para longe com seu sopro mágico. Os Dyapa tendo ido embora, Tamakori pôde pegar
sua taboca, que ele levou de volta até onde estava seu irmão.
“Irmão, eu quero ir pegar um pouco também”, Kirak lhe disse.
“Não, irmão, os Dyapa vão matá-lo. Eu te trouxe uma taboca”.
“Mas eu mesmo quero ir e buscar uma”, insistiu Kirak.
“Por que você é assim? Você tem que parar no lagarto, no beija-flor e na semente patauá
227
. Escute-
os. Agora vá”, Tamakori disse a seu irmão.
No caminho ele encontrou o jacamim, que lhe perguntou: “Kirak, onde você está indo?”.
“Estou indo buscar algumas tabocas lá onde vivem os Dyapa”.
“Beba um pouco de café antes de ir”. O jacamim mais uma vez misturou sua diarréia com água.
“Eu não vou beber isso de jeito nenhum, jacamim”, disse Kirak com nojo.
“Se você não beber café aqui, quando você alcançar os Dyapa eles irão atingi-lo com suas flechas.
Beba!”, mas Kirak já havia partido.
Ele alcançou os Dyapa: “hi, hi, hi, hi, hi, hi, hiiiiiiiiii”. A semente de patauá caiu e os Dyapa atacaram.
Eles mataram Kirak e o deixaram para apodrecer.
[18] Seu irmão não foi até ele. “Os Dyapa mataram Kirak? Amanhã eu irei”. Ele enviou os lagartos
para recuperar os ossos de seu irmão. Os Dyapa tentaram atacar os lagartos pelo caminho. Eles trouxeram de
volta seus ossos, suas unhas das mãos e suas unhas dos pés, e entregaram tudo a Tamakori. Ele construiu seu
irmão novamente, usando cipó-titica para fixar os ossos. Ele usou as sementes de um korihto para fazer os
olhos. As sementes da paxiúba
228
fizeram seus testículos, e a própria paxiúba seu pênis. Quando terminou de
227
A ‘patauá’ (toda em Kanamari, Lat: Oenocarpus bataua) é um tipo de palmeira de cujas sementes é feita uma
bebida nutritiva, similar na aparência ao açaí, mas com uma consistência mais líquida que viscosa.
228
A palmeira paxiúba (Socratea exorrhiza) é comum na Amazônia e sua casca é freqüentemente usada para
fazer os assoalhos e paredes das casas.
263
refazer Kirak, Tamakori foi tomar omamdak
229
. Ele bebeu e assoprou o espírito-Dyapa para longe. Ele o
chamou e atingiu o espírito-Dyapa. Ele assim o fez até não haver mais o espírito-Dyapa e seu irmão se
levantar.
“Meu irmão, me levante pelo braço”, disse Kirak. Tamakori o ergueu pelo braço. “Eu ainda estou
cansado, meu irmão”.
“Você pensa que estava dormindo, Kirak? Vocêo estava dormindo. Você apodreceu. Os Dyapa te
mataram e eu tive que fazer você novamente!”.
“Não seja bobo, meu irmão. Eu estava dormindo. Vamos embora”.
Eles foram. Kirak não acreditou em seu irmão.
A história de Kodoh continua com um episódio sobre o peixe-boi que fez sexo
com uma mulher (a esposa de Tamakori em algumas versões) e foi arpoado pelos dois
irmãos. O narrador deixa esta parte inacabada, no entanto. Sua esposa o chama para cortar
lenha e ele para no meio da narrativa, me dizendo, enquanto sai da casa, que a história
terminou.
três momentos distintos na Viagem, coordenados pela direção da viagem, seja
rio acima ou abaixo, e um outro momento focando nos eventos que ocorrem em Manaus.
Cada movimento tem um sabor especial, indexados por certos temas que freqüentemente
ocorrem em ambos. Estes se sobrepõem na Viagem, mas, em geral, o mundo que foi
criado no caminho até Manaus existe de uma forma mais crua, mais próximo de suas pré-
condições míticas, do que aquele que foi concluído na jornada rio acima, em direção a onde
vivem os Kanamari. Na próxima seção eu analisarei algumas das transformações que
ocorrem no Juruá, tanto rio abaixo quanto rio acima, antes de me voltar aos episódios que
lidam especificamente com a criação dos brancos em Manaus.
Extraindo e Separando o Mundo
A maior parte das transformações que ocorrem durante a viagem aManaus é
efetuada pela fala de Tamakori e Kirak. Em algumas delas, fica claro que é através de suas
palavras que as transformações ocorrem (3, 4, 5, 6, 13); em outras, isto não está claro na
narração, talvez tendo sido deixado implícito (8, 9, 10, 12). Em pelo menos um outro caso,
a nomeação da pupunha (14), a fala desempenha um papel, mas opera sobre algo que
229
Literalmente, ‘casca de árvore. É o nome de uma bebida feita da infusão da casca de árvore
aparentemente qualquer casca de árvore – que é usada para assoprar para longe as ‘almas-pessoas’ que causam
mal para as crianças pequenas. A infusão é bebida, em princípio por qualquer homem adulto, que então vai
até a floresta e chama o espírito, que é atraido ao omamdak. O homem então assopra o espírito para longe,
freqüentemente identificando que tipo de ‘alma-pessoa’ estava causando mal à criança. Ver capítulo seis.
264
existia em um estado sem nome e, portanto, incompleto; e embora seja Tamakori quem
‘faça seu nome’, a inspiração para isso vem de outro agente de transformação, o ‘sopro’
nesse caso na forma de um peido, anti-sopro.
Nomeando Seres e Coisas
Nos episódios 4 e 5, Kirak, por causa de sua teimosia, tenta pegar coisas que ele
no fundo do rio. Tamakori as chama por um nome, ‘peneira’ e ‘pilão’, mas quando Kirak
tenta tocá-las ele se fere e, com dor, as chama de ‘arraia’ e ‘poraquêrespectivamente. No
episódio 6, ele vê seu irmão atirar com sucesso numa mosca, mas, quando tenta fazer o
mesmo, esta o ataca com suas garras e ele a chama de ‘mutum’. É dito, nesses três casos,
que Kirak os ‘nomeou’. A palavra Kanamari que eu traduzo por ‘nomear’ é wadik-bu,
‘fazer/produzir
230
o nome’. A palavra wadik pode ser dividida no prefixo anti-passivo wa- e
no verbo –dik, ‘encerrar, fechar’. Logo, wadik-bu significa ‘encerrar algo’: uma pessoa ou
uma coisa que os Kanamari não haviam encontrado anteriormente
231
.
Nomear é, pois, um meio de dar forma ou contorno a ‘coisas’ que, no tempo
mítico, estão em transformação perpétua. Pela nomeação, Kirak encerra uma multiplicidade
que era inerente à coisa/ser. A questão o é que uma ‘coisa’, digamos uma ‘peneira’, se
torne um ser, uma ‘arraia’. A palavra usada não é –pa, ‘se transformar em/virar’. A
narrativa diz que ‘na época, a peneira era uma arraia’, mas isto opera nos dois sentidos: ao
ser servido de uma refeição de arraia cozida eu fui informado de que ‘a arraia era
antigamente uma peneira’ (dyan’an toninim hihna anim); e quando me foi dada uma peneira
para mostrar aos ‘meus parentes’ quando eu voltasse para casa, eu fui lembrado de que a
peneira ‘era antigamente uma arraia’ (hihna toninim dyan’an anim)
232
. Não se trata, pois, de
uma questão de ‘renomear’, de tornar uma peneira em uma arraia, mas, antes, uma questão
de estabelecer dois ‘nomes’ onde havia potencialmente muitos. Esta é uma característica
dessas ‘primeiras coisas’ indefinidas, múltiplas, multiformes, elas criam uma charneira
230
outro verbo, man, que também significa ‘fazer. O verbo –bu é usado mais geralmente em casos como a
produção da bebida de mandioca (koya-bu), ra(obadim-dim), fazer a criança no útero (opatyn-bu) e casos em
que um ato é efetuado sobre as coisas por meio de esforço. A palavra –man é freqüentemente usada na forma
imperativa dos verbos. É também, curiosamente, a palavra usada para ‘dizer’, reinforçando a relação entre
‘fala’ e ‘fazer’ (ver capítulo três para uma discussão do verbo –bu).
231
A palavra wadik claramente se divide no prefixo objeto wa- e no verbo dik, mas ela difere de outras
palavras que são formadas pelo anti-passivo pelo fato de não poder ser desarticulada. Dizer que uma criança
recebeu um nome, é necessariamente dizer a-wadik-bu opatyn (‘ela/ele nomeou a criança’). A palavra criança
não pode assumir o lugar do anti-passivo wa-. A frase *a-opatyn-dik é, pois, pelo que sei, incorreta.
232
Deve ser ressaltado, tanto no tema do pilão/poraqquanto no da peneira/arraia, que a similaridade
morfológica entre cada par foi também apontada. Esta é uma parte importante da relação entre coisas na
Viagem, e eu voltarei a isso mais abaixo.
265
entre o mundo mítico e a ordem criada por Tamakori e Kirak. Nomeando-as, Kirak as
libera de sua múltipla natureza, fazendo do que era uma miríade dois espécimes
ontologicamente distintos de uma categoria mais ampla, não mais internamente múltiplos
(sem nome, representando muitas coisas em uma), eles se tornam internamente singulares,
mas externamente múltiplos (há muitas arraias e peneiras).
A peneira e o pilão são itens culturais feitos pelos Kanamari, usados para preparar
bebida (koya) e moer tabaco (obadim) respectivamente; a arraia e o poraqsão ‘habitantes
do rio’ (wah-warah; ‘corpos/dono do rio’) que ferem os Kanamari e servem de comida
(tyawaihmini). perigos inerentes aos produtos feitos por meio do uso da peneira e do
pilão. A bebida de mandioca
233
, em particular, é um vetor ambíguo de produção de
sociabilidade – a bebida prototípica para criar relações de convivialidade e hospitalidade, ela
fermenta rapidamente e, quando alcoólica (koya passinim), faz com que tensões surjam
dentro da aldeia ou as potencializa nos encontros Hori. Em sua forma não-fermentada,
bebida cotidianamente, a bebida de mandioca é um tipo de ‘comida’, que pode servir como
substituto para a carne e que é repartida entre parentes, como outros alimentos devem ser;
mas em seu estado fermentado ela é um tipo de anti-alimento, que faz parentes agirem de
forma violenta e mesquinha e que perturba a busca por alimento
234
. O raé consumido
235
,
na maior parte dos casos, quando o espaço da aldeia é abandonado, atual ou
conceitualmente: em idas ao roçado, viagens de canoa a outras aldeias, durante atividades
rituais, narrativas de histórias e assim por diante. Eles dizem que consomem rapé para ‘ficar
cuidadosos’ (tohia-dak
236
). É uma parte indispensável do xamanismo, pois é o alimento’ do
dyohko. É com rapé que o xamã alimenta o dyohko que mantém guardado em sua bolsa, e ele
233
A bebida de mandioca (tawa okoya) é a forma não-marcada do tipo de bebidas conhecido como koya.
Quando alguém diz que está indo a outra aldeia para beber koya, e a deixa lá, presume-se que ele irá tomar
bebida de mandioca. Outros tipos de koya normalmente precisam ser especificados (e.g. bari okoya, ‘bebida de
banana’). Embora a bebida de pupunha seja geralmente considerada um tipo de koya, é ela mais usualmente
chamada de tyo-hi, ‘suco de pupunha’.
234
Koya satisfaz assim como a caça ou os peixes, algo que não é dito de outras bebidas não-fermentadas
(como água ou refrigerante). A cerveja, por outro lado, torna a pessoa mais faminta, e a inebriação e a ressaca
resultantes dela freqüentemente mantêm os habitantes da aldeia em suas redes por um dia inteiro, incapazes
ou sem vontade de ir para os roçados, caçar ou pescar. Também não é incomum que os Kanamari escondam
a cerveja de mandioca, especialmente ao fim das reuniões, quando ela começa a ficar escassa. Tal tipo de
mesquinharia (nihan) é considerada um ‘comportamento imprestável’ (a-dyaba-tam), mas ele emerge dentro das
aldeias quando a bebida de mandioca é dividida. Gow (1989, 576-8) nota que, entre os Piro, a cerveja de
mandioca também perturba a busca por alimento, mas que eles consideram um ‘leve estado de embriaguez’
uma boa coisa em si mesmo, preferindo compartilhar a bebida do que bebê-la sozinhos.
235
Os Kanamari, no presente, não inalam (-hohtikik) o rapé, embora digam que o faziam antigamente. Em vez
disso, eles colocam pequenas porções no lábio inferior, entre a gengiva e os dentes, aque considerem ter se
tornado ‘fracos’ (diok tu), depois do quê eles o cospem.
236
Tohiaik é também a palavra usada para o cumprimento de restrições como a couvade, e aquelas relativas ao
homicídio e a menarca (ver capítulo seis). Tohia-dak significa que este cumprimento, que os Kanamari
freqüentemente glosam como ‘estar cuidadoso’, ocorre num movimento que parte do falante (tipicamente em
uma viagem).
266
próprio tem que se ‘alimentar’ com rapé para ativar seu próprio dyohko para extrair (ou,
no caso dos feiticeiros, introduzir) objetos patogênicos dos pacientes e também para
possibilitar o ritual Kohana (ver capítulo sete).
As quatro entidades nomeadas derivadas de duas entidades sem nome são, pois,
‘alimento’ ou ‘possibilitadores de alimento’, por assim dizer e para diferentes pessoas, e
todos elas têm um potencial para causar dano. Arraias e poraquês são peixes admirados,
mas eles podem causar danos corporais às pessoas que se banham no rio. A bebida Koya é
‘alimento’, servida quase que diariamente, mas que fermenta em cerveja, causando dano ao
corpo-parente que a consome. Rapé é ‘alimento’ para as pessoas quando elas interagem
fora do espaço da aldeia, um modo de se proteger dos perigos do dyohko, mas também o
alimento dos perigosos e o-familiarizados dyohko da floresta e dos rios, e também aquilo
que permite aos feiticeiros lançar-lhes objetos patogênicos. Como tal, ele também causa
danos a um corpo-parente.
As coisas/seres que a nomeação de Kirak criou são, pois, emblemas das
ambigüidades que o tempo mítico permitia ambigüidades que seu ato não pôde desfazer,
mas apenas tornar separadas. Neste sentido, podemos incluir o episódio (3) em que a
‘nomeação’ não é um ato explícito, mas no qual aquilo que Tamakori chama de os cestos
vazios da mãe’ se revelam, por Kirak, como ‘ninhos de vespas’, que são assim ‘cestos’
repletos de insetos danosos. Na maioria dos casos, Kirak revela o lado prejudicial das
coisas que Tamakori nomeia ou ‘vê’ como potencialmente positivas, capaz de transformar
o tabaco e a mandioca em tipos de ‘alimento’, mesmo que estes permaneçam ambíguos. A
relação entre Tamakori e Kirak é, pois, similar àquela entre Maíra e o Gambá na famosa
saga Tupi dos gêmeos (e.g. Fausto 2001, 470-82), da qual parece ser uma transformação.
Embora os Kanamari não o digam, está implícito que o mundo teria sido muito menos
ambivalente não fossem as trapalhadas de Kirak. Mas me parece que, mais importante do
que esta distinção é o ato de ‘nomear’ em si mesmo. Isso é claro quando consideramos o
episódio (6), no qual aquilo que Tamakori chama de ‘mosca’, um inseto que ‘incomoda’
(pariman) as pessoas e é considerado ‘imprestável’ (dyaba), é renomeado por Kirak de
‘mutum’, uma ‘caça voadora’ que o fere, mas que é uma fonte de alimento admirada pelos
Kanamari.
Prefigurando os Brancos I: Imprestabilidade
267
O episódio (8) da Maria/Galinha o menciona explicitamente uma ‘nomeação’.
Ele inclui dois híbridos: a mulher branca, Maria, que é também uma galinha, e o café que
ela serve, que são suas fezes misturadas com água. Os dois heróis vêem um fogo à
distância: “lá, uma mulher branca”, Tamakori aponta, mas ao se aproximar ele ouve, ‘piu,
piu, piu’ e o narrador nos conta que “seu nome era Maria. Ela era uma galinha muito
tempo atrás”.
Embora os fios temáticos sejam mais elusivos nesse episódio, a mesma relação geral
entre objetos culturais (ou, nesse caso, objetificação) e alimento pode ser discernida. Maria,
uma mulher branca, é também uma galinha, a ‘caça doméstica’ dos brancos. Os Kanamari
chamam seus xerimbabos de bara o’pu, que significa literalmente tanto ‘pequena caça’
quanto ‘filho de caça’ (para uma falante feminina)
237
. Os homens predam os animais de
caça e trazem seus filhotes para a aldeia, os quais eles convenientemente amarram e arriam
no chão da casa junto com o cadáver que caçaram, freqüentemente, no caso de um
‘macaco’ (bara paohnim), ainda agarrado em sua mãe morta. Desse momento em diante, o
homem age com forçada indiferença a tudo o que tenha trazido; isso agora é deixado a
cargo de sua esposa, e ou sogra (ver capítulo seis). Um dos processos iniciais envolve a
remoção dos dentes do xerimbabo e sua alimentação, normalmente com bebida de
mandioca (ou mingau de banana). Os Kanamari têm prazer em apontar como esses
xerimbabos se tornam progressivamente dependentes da mulher que os cria, seguindo-a
por toda parte e chorando quando ela se distancia, e eles comentam que a mulher é a ‘mãe’
do animal ou sua –warah e, ao mesmo tempo, é possível dizer da mãe de uma criança que
ela é sua –warah. Deve-se recordar que isso significa ‘corpo/dono/chefe’, e nos permite ver
por que Maria e a galinha eram outrora uma só: a galinha tinha Maria (representando as
mulheres brancas) por sua –warah. No início do episódio, esses dois ‘seres’ estão imersos
dentro de uma única multiplicidade. O narrador diz explicitamente que ‘seu nome era
Maria, ela era uma galinha muito tempo atrás’, mas Tamakori parece capaz de interagir
com ela como uma ‘mulher branca’, que lhe serve café, enquanto que quando Kirak vai até
ela, esta é dita apenas ser uma ‘galinha’. Além disso, Maria/galinha é ‘rodeada por seus
pintos’ e, desse modo, o conglomerado que Tamakori e Kirak encontram expressa três
seres relacionados fracionalmente pela alimentação: Maria ? galinha ? pintos.
237
Por ‘xerimbabos’ eu me refiro apenas aos animais selvagens que são criados pelos Kanamari em suas
aldeias, e não aos animais domésticos dos brancos (porcos, patos, cachorros e galinhas) que eles também
criam, mas para diferentes finalidades. Xerimbabos também podem ser chamados de tyuru-tiki-yan, ‘aqueles
que fizemos crescer’. O capítulo seis inclui uma discussão dos xerimbabos entre os Kanamari. Os animais
domésticos dos brancos são freqüentemente chamados Kariwa nawa bara o’pu (‘a caça doméstica dos
brancos’), estabelecendo uma correlação entre seus ‘xerimbabos’ e os animais dos brancos.
268
O problema conceitual com a série acima, de uma perspectiva Kanamari, são os
contra-fluxos que ela contém. Os brancos criam um tipo peculiar de ‘xerimbabo’, ou ao
menos desenvolvem uma relação estranhamente predatória com eles, porque eles comem
suas galinhas, ‘o alimento dos brancos’ (kariwa nawa tyawaihmini). Neste percurso, eles criam
um curto-circuito a relação fractal de alimentação implícita acima, mudando uma relação de
alimentação em uma relação predatória. Os Kanamari, por outro lado, nunca comem seus
xerimbabos
238
. Eles não podem fazê-lo, porque sua sociedade se cria a si própria pelo
estabelecimento de subgrupos estáveis em bacias de rio que mantêm a predação à distância.
Essas unidades estáveis (multiplicidades singulares) são também baseadas em relações de
‘alimentação’, predicada na redistribuição de alimento e mercadoria de chefes de subgrupo
a chefes de aldeia e daí para as famílias. Em todos esses casos, os produtos eram idealmente
‘reunidos’ dentro de níveis ainda mais englobantes de chefatura e, então, redistribuídos de
modo a deixar todos ‘contentes’ e assegurar que eles ficassem vivendo com os chefes (ver
capítulo três).
A fractalidade em curto-circuito de Maria pode recordar o Jaguar. A habilidade
de situar aquilo que as pessoas comem, de se alimentar de componentes dos próprios
corpos das pessoas, é o que faz o Jaguar: ele estabelece uma cadeia alimentar predatória que
mantém junto a seu próprio corpo e que se torna generalizada após sua morte,
irregularmente expressa em partes da paisagem. Maria/galinha era simultaneamente seu
próprio xerimbabo e seu próprio alimento, e isso expressa ambos os aspectos do Jaguar.
Isto é, em parte, típico dos ‘mestres da caça’ que “...são ao mesmo tempo os caçadores e os
guardiões do animais que caçam. Eles se comportam em relação aos animais selvagens do
mesmo modo que os humanos em relação a seus animais domésticos” (Descola 1994, 258).
A primeira afirmação aproxima os brancos e os ‘mestres da caça’, mas a segunda inverte
sua relação, pois os brancos se comportam com sua ‘caça doméstica’ do mesmo modo que
os humanos em relação aos ‘animais selvagens’. Em outras palavras, enquanto os Kanamari
caçam seus alimentos, os brancos comem seus xerimbabos. E embora as trapalhadas de
Kirak retirem dois seres ontologicamente distintos dessa obscura multiplicidade, ele não
poderia ter feito nada a respeito de sua confusão alimentar.
Essa não é a primeira vez que cruzamos com uma conjunção entre os brancos e o
Jaguar. No capítulo dois, nós vimos como, através da história de Ioho e Dyaho, os brancos
foram classificados de Adyaba, ‘os imprestáveis’. Tais seres, eu argumentei, são o espectro
238
É possível que eles troquem xerimbabos com os brancos para que estes os comam, como fez certa vez
uma mulher que criava um queixada. Eles também não comem, normalmente, os xerimbabos dos brancos
(i.e. galinhas e porcos) que eles criam para trocar nas cidades vizinhas por mercadorias que cobiçam.
269
de ancestrais muito mortos, a contrapartida negativa de um processo de fazer a terra
fértil via os rituais-Jaguar. No mito dos ‘Comedores de Crianças Adyaba vimos
precisamente o mesmo tipo de confusão lógica no Adyaba, que cria ‘suas crianças’, raptadas
dos Kanamari, apenas para engordá-las para que se tornassem alimento. Aqui, também, era
um Adyaba fêmea responsável pela gordura das crianças, cuidando delas ao mesmo tempo
em que deseja sua carne, assim como Maria é ao mesmo tempo a ‘mãe’ da galinha da qual
se alimenta e seu predador. Logo, os brancos emergem, nesses mitos, como aspectos
residuais do Jaguar materializações de sua ancestralidade que os tornam parentes ao
conjugar a predação e a vida de aldeia, ao invés de mantê-las separadas.
Maria servindo café/fezes para Tamakori é um corolário disto. Os Kanamari
chamam o café de koya teknim’, que significa literalmente ‘caiçúma negra’, e eles fazem uma
associação explícita entre os dois, freqüentemente me dizendo que eles servem koya a seus
convidados do mesmo modo que os brancos servem café para os seus. O modo pelo qual
o narrador imita a sonora e imperativa fala dos brancos, dizendo ‘ei, menino, vai lavar os
pratos’, situa o café/fezes de Maria firmemente do lado dos brancos, através de sua
inserção num modo de socialidade que é bem conhecido pelos Kanamari: a relação entre
patrões e empregados. A koya prototípica, como vimos, é a bebida de mandioca, feita de
um produto do roçado, cozida e servida pelas mulheres; Maria/galinha serve a Tamakori
seus próprios dejetos, misturados com água. Esta pareceria ser a conseqüência lógica de um
ser que confunde reinos e processos que os Kanamari tentam manter separados: os
brancos bebem o excremento de sua própria ‘caça doméstica’ em vez de uma bebida feita
de uma raiz plantada pelas mulheres num roçado aberto pelos homens. Isto acontece
porque os brancos não distinguem as relações predatórias do espaço de sociabilidade,
criando sua caça e comendo seus ‘filhos’.
Prefigurando os Brancos II: Xamanismo
O episódio 9, com o açaizeiro/helicóptero, novamente reforça o vínculo entre os
brancos e o Adyaba, mas também revela a propensão daqueles ao xamanismo. Os
Kanamari do Itaquaí são visitados por um helicóptero cerca de uma vez por ano, quando a
Fundação Nacional de Saúde (Funasa) empreende seu programa de vacinação,
normalmente por volta do mês de Julho. A chegada do helicóptero é um evento em si
mesmo. Para facilitar a logística da missão, a Funasa pede para que todos os Kanamari do
Itaquaí, atualmente espalhados por 12 aldeias, se reúnam em duas delas (ver discussão
270
sobre tais reuniões no capítulo três). A aldeia está, pois, inflada de gente quando o
helicóptero chega gente que grita de entusiasmo quando ele pousa, corre até ele, tenta
tocar em cada parte dele, fica fascinada com o piloto
239
, mas que, em sua maior parte, não
chega nunca a realmente dar uma volta. É difícil saber até que ponto isso é imposto a eles –
o piloto sempre diz que o está autorizado a transportar ninguém exceto a equipe de
vacinação, mas a maioria dos Kanamari me diz que eles não chegariam realmente a voar no
helicóptero. À exceção de alguns destemidos (e imprudentes) adolescentes que dizem
querer voar, todos os Kanamari são cautelosos em relação a isso, porque os brancos ‘viram
Kohana no Céu Interior’ quando eles voam. Os Kanamari, por outro lado, apenas se tornam
Kohana através da ajuda de um xamã e seus espíritos familiares durante o ritual Kohana-pa.
Os Kohana são seres celestiais vinculados ao destino post-mortem da alma. Seus
corpos na terra são feitos de buriti (Mauritia flexuosa) e eles passam todos os seus dias
cantando as canções celestiais que também são chamadas de Kohana
240
. Os Kanamari
realizam um ritual, chamado Kohana-pa (‘Devir-Kohana’), no qual, por meio da ajuda de um
espírito familiar dyohko, eles são capazes de virar Kohana e cantas suas canções celestiais.
Para que os humanos aprendam as canções celestiais em vida, eles devem, pois, usar os
dyohko familiares (ver capítulo sete). Isso tem sido sempre assim, desde Dyanim, o primeiro
xamã a ter visto o Kohana. Ele inseriu um dyohko de uma arara vermelha em seu corpo, o
que o permitiu voar para muito além dos limites do Céu e até o Céu Interior
241
, onde ele viu
Kohana e ensinou aos Kanamari como fazer o ritual.
O açaí (Euterpe sp.), como todas as palmeiras, está associado com a ancestralidade e
com o poder transformativo do xamanismo: é a partir de um dyohko que a primeira
pupunheira cresceu (episódio 12); é a partir das sementes de duas palmeiras diferentes (jaci
e karohtyi) que Tamakori e Kirak fizeram os Kanamari e os Kulina; das folhas do buriti são
feitas as vestimentas para o ritual Kohana-pa; e, mais geralmente, as palmeiras são associadas
a aldeias abandonadas e representam áreas onde pessoas de diferentes aldeias se reúnem
para celebrar a regeneração ritual da floresta, geralmente de Maio a Junho, quando os
diversos frutos de palmeira estão maduros. O açaí propriamente é mais especificamente
vinculado a um ritual que os Kanamari dizem ainda praticar, mas que eu nunca vi, chamado
de Adyaba-pa, Devir-Adyaba’. Disseram-me que as vestimentas do Adyaba no ritual eram
239
A Funasa normalmente contrata esses helicópteros da Força Aérea Brasileira, e assim o piloto é
freqüentemente um ‘soldado’, ou ao menos é assim que os Kanamari se referem a ele. Ver a História de Sabá
no capítulo 2 para uma visão nativa do soldado.
240
As canções também podem ser chamadas de ‘Kohana nawa waik’, ‘canção de Kohana.
241
Como vimos no capítulo quatro, os colapso do Céu Antigo revelou, por detrás dele, um ‘Céu Novo’
(Kodoh Aboawa). É dentro desse u, no Céu Interior (Kodoh Naki), que vivem os Kohana e para onde vai a
alma da maioria dos mortos.
271
feitas das folhas do açaí. Isto vincula o aos Adyaba, que são, por sua vez, por vezes
vinculados aos brancos, como vimos.
A relação mítica entre o açaí e o helicóptero se origina, pois, de uma série de
correlações: a associação ubíqua entre palmeiras, xamanismo e transformação; o vínculo
específico entre o açaí, os Adyaba e os brancos; o fato de que a chegada do helicóptero
permite um movimento no qual as aldeias se reúnem, assim como elas fazem nas capoeiras
onde o açaí (e outras palmeiras) abunda; a coincidência entre a época em que o fruto do
açaí se torna abundante e na qual o helicóptero chega (Junho-Julho); e, por fim mas não
por último, a óbvia similaridade entre as folhas do açaí e as hélices do helicóptero. O
último ponto é de fato crucial porque nos remete a outro aspecto do conhecimento
xamânico dos brancos. As folhas do açaí tendem a se concentrar no alto da árvore e não
arqueiam tanto quanto as folhas de outras palmeiras. Isso levou os Kanamari que estão
aprendendo a ler e escrever a chamar a letra maiúscula ‘T’ pela palavra para ‘açaizeiro’
(dyan-(o)mam), fazendo uma associação entre a arquitetura das folhas da árvore e a forma da
letra. vimos a importância da escrita como uma tecnologia mediadora nas
transformações pelas quais passou a sociedade Kanamari, inclusive na Viagem onde o
documento de Tamakori autoriza Hohdom a ‘cuidar’ de Manaus (episódio 2).
A época em que o açaí madura é também quando uma série de pássaros são
considerados ‘gordos’ (tyahim)
(Mendes 2002, 200). Entre estes pássaros estão tucanos,
papagaios, mutuns, anuns, japós e araras, os espíritos dyohko dos quais permitiram outrora a
Dyanim subir ao Ceú Interior e se tornar Kohana em vida, assim como o helicóptero
permite aos brancos fazerem o mesmo. Tal associação é tornada explícita em outro nome
para o Arara-dyohko: ‘helicóptero de Dyanim’. Os brancos, que não sabem como manipular
o dyohko, constroem helicópteros para virarem Kohana e, ainda que os Kanamari temam
os tipos de mediação que os dyohko permitem, eles são talvez menos perigosos (e
manipulados por pessoas mais confiáveis) do que estas máquinas xamânicas vivas.
Separando Povos
Uma parte significativa da Viagem concerne às relações que Tamakori e Kirak
estabeleceram com os Kanamari, os Kulina, os Dyapa e os brancos. aqui uma leve e
imperfeita mudança de ênfase na direção da Viagem. Se o mundo parece ser
majoritariamente extraído de sua multiplicidade enquanto os heróis viajam rio abaixo, a
separação dos povos e suas futuras relações são delineadas enquanto eles viajam rio acima,
272
em direção a Cruzeiro do Sul. A linha divisória é claramente o período em Manaus onde os
brancos, que foram antecipados nos episódios que acabamos de analisar, são criados. Na
próxima seção eu examinarei especificamente o período em Manaus, e pretendo aqui me
focar nas interações com outros povos que ocorrem na maior parte, mas o
exclusivamente, após o interlúdio em Manaus.
Vimos no capítulo quatro de que modo Tamakori e Kirak criaram os Kanamari e os
Kulina a partir de sementes e os Dyapa a partir do tronco da palmeira jaci. Tais criações
ocorrem no médio Juruá, locação que é dada no contexto da narrativa do mito. O afixo
Kanamari –ma– indica que uma ação ocorre em um dado lugar, contextualmente
predefinido. Em uma das versões da criação desses povos que eu ouvi, o narrador inicia o
mito situando os eventos ‘próximos a Eirunepé’ (i. e. no médio Juruá) e depois diz que
Tamakori n-a-ma-bu tukuna’, ‘Tamakori fez os Kanamari aqui’. Na versão de Reesink,
referida acima, é depois desse ato que Tamakori e Kirak começam a viajar rio abaixo,
deixando suas criações para trás.
Ainda no episódio 7, enquanto seguem em direção a Manaus, eles correm até
Kanamaronho, que parece ser uma espécie de ‘Mestre dos Caceteiros’. Os próprios
Caceteiros são muitos’ e ‘vêm de todas as direções’, como é típico dos Dyapa. Eles podem
querer matar Tamakori, mas eles o o atacam enquanto ele fala com Kanamaronho.
Tamakori diz que está indo para Manaus e Kanamaronho responde que ‘vai ficar bem
aqui’. Kirak, no entanto, também quer falar com Kanamaronho, que então começa a
devorá-lo. Tamakori é forçado a perfurar Kanamaronho com dardos dyohko para salvar seu
irmão. Não é claro se estes dardos matam ou não o ‘Mestre dos Caceteiros’, mas eles
deixam os Caceteiros na outra margem do rio, ainda aguardando para matar Tamakori.
A relação entre Tamakori e Kanamaronho, indexada por uma visita, parece ser
similar àquela entre dois chefes –tawari numa reunião de tipo Hori. O primeiro sabe que
Kanamaronho e sua gente são perigosos e alerta o irmão sobre isso, mas seu encontro
parecer ocorrer sem problemas. Além disso, ele se conclui com os Dyapa imobilizados,
enquanto Tamakori decide retomar suas viagens. Tudo se passa como a impetuosidade de
Kirak, mais uma vez, fizesse com que essa precária aliança mudasse de uma relação
simétrica entre chefes para uma relação assimétrica de predação. Isso pode ou não resultar
na morte de Kanamaronho, mas parece fazer os Dyapa se espalharem porque, no episódio
17, os irmãos lutam com eles no alto Juruá, se aproximando de Cruzeiro do Sul. Esta é,
claro, a área identificada aos Dyapa até hoje.
273
Após o episódio em Manaus, quando Tamakori e Kirak mais uma vez alcançam o
trecho do médio Juruá onde eles haviam deixados os Kanamari, eles se surpreendem ao
descobrir que as pessoas tinham se multiplicado (episódio 15). Os Kanamari, entretanto,
‘ainda não eram bons’ e uma das crianças atira seu cinto
242
em Kirak, novamente fazendo
com que ele caia no rio. Mas a maioria dos Kanamari parece feliz e aperta a mão de
Tamakori, dando-lhe boas vindas. Ambos os heróis adquirem esposas e constroem suas
casas próximas aos Kanamari. Tamakori sabe como fazer sexo com sua esposa, mas Kirak
tenta o intercurso sexual por entre os dedos dos pés de sua esposa
243
. Eles permanecem por
dez dias em casa, antes de se partirem sucessivamente rio acima, onde, em quatro ocasiões,
eles encontram mais Kanamari.
O narrador que me contou essa história se referia a esses Kanamari simplesmente
como tukuna, não distinguindo entre os diferentes subgrupos. Certas versões desse episódio
transcritas por Tastevin, no entanto, sugerem que Tamakori, através de seu movimento,
pode ter estabelecido diferentes grupos de Kanamari em diferentes rios, estabelecendo
assim o referente geográfico dos subgrupos (n.d.2, 20-1). Os mitos analisados por Tastevin
são notáveis por revelar a possibilidade de diferentes origens para os subgrupos, que teriam
se espalhado a partir de diferentes tipos de sementes
244
. Mas o estabelecimento de cada um
ocorre à medida que Tamakori se desloca pelo Juruá, de uma maneira que recorda suas
242
Observando-se que isso ocorre quando os Kanamari viviam ‘todos nus, este cinto provavelmente se refere
aos cintos rituais feitos de conchas de madre-pérola.
243
O incidente não é desenvolvido nessa narrativa, mas uma comparação com a versão registrada por
Reesink pode ajudar a elucidá-lo. Em sua versão, há apenas uma ‘esposa’ entre os dois e ela não é ‘Kanamari’,
mas sim feita por Tamakori a partir do âmago de um tronco de árvore no qual ele ‘assopra’ (topohman) vida.
Ele alerta seu irmão para não fazer sexo com ela, mas ele ignora o aviso e procede para penetrar sua vagina. A
mulher ri e sua vagina se torna dura (feito a madeira) apertando e amputando o pênis de Kirak. Tamakori
então faz um novo nis para Kirak a partir da paxiúba (Reesink 1993, 225). Embora essa variante seja
significativamente diferente da que me foi contada na Viagem, similaridades suficientes para situar esse
episódio como sendo sobre a origem das mulheres e do intercurso sexual’. Se, em uma delas, Kirak não sabe
como fazer sexo, fazendo Tamakori rir às suas custas, na versão de Reesink, Kirak desobedece a seu irmão
(revelando uma falta de conhecimento e moderação que é típica sua), fazendo com que a mulher risse e seu
pênis fosse amputado. Este episódio, pois, situa esta parte da Viagem dentro dos mitos de ‘origem das
mulheres’ analisados por Lévi-Strauss (1983, 112-33), os quais ele estabelece dentro do esquema da ‘origem
dos porcos-do-mato’ (ibid. 117), um evento que era importante no episódio um e que será discutido
brevemente, quando o episódio 13 for investigado.
244
É possível que essas diferentes explicações para a origem dos subgrupos estejam relacionadas a diferentes
tradições míticas entre os subgrupos. De fato, a versão que eu ouvi (analisada no capítulo quatro) parece ser
uma variante dos Mutum-dyapa (Tastevin n.d.2, 20). No Itaquaí, entretanto, essa era a versão
consistentemente contada a mim, não havendo variação de acordo com informantes de diferentes subgrupos.
Pode haver duas razões relacionadas para isso: (1) a mistura gradual de pessoas apagou a variabilidade entre as
versões; (2) não seria do interesse dos Kanamari do Itaquaí enfatizar origens separadas para os subgrupos,
posto que, em certo nível, eles eram ‘todos parentes’ (capítulo três). Este último ponto é consistente com os
momentos em que Tastevin e eu encontramos os Kanamari. O primeiro os encontrou de 1910-20, quando a
mistura dos subgrupos estava começando, e assim as pessoas podem ter retido a memória de diferentes
origens. Eu os encontrei quando o período de trabalho para os brancos e a mistura tinha dado lugar ao
‘Tempo da Funai’, e eles estavam lentamente re-instaurando um grau de distância espacial entre eles. Eles
podem, pois, ter minimizado uma distinção ‘mítica’ de modo a substituí-la gradualmente, mais uma vez, por
uma distinção geográfica.
274
curtas estadias com os tukuna, quando viajou rio acima no episódio 15. É como se o
movimento gradual de Tamakori Juruá acima o fizesse ora viver com diferentes subgrupos
Kanamari, ou, se levarmos em conta a versão de Tastevin, estabelecê-los ao longo de
diferentes bacias de rios.
O episódio subseqüente (16), onde Kirak mantém um intercurso sexual com uma
garota Kulina, fazendo-a gritar de dor, parece ser um dos temas que a versão de Kodoh da
Viagem deixa sem desenvolvimento. Ele o parece concernir a uma injunção contra o
casamento com os Kulina, uma vez que este é não-recomendado, mas não impossível
245
.
Pode talvez, no entanto, ser um alerta contra o casamento com garotas ‘jovens’ (i. e. pré-
púberes), o que seria confirmado pela réplica de Tamakori: ‘por que Kirak penetrou a
jovem garota’? De fato, os episódios 15 e 16 parecem estabelecer ou reforçar modos
adequados de sociabilidade entre homens e mulheres: casamento, ter intercurso sexual do
jeito correto, construir casas e apenas adquirir noivas em idade de casar. Se é mesmo assim,
então é apropriado que sua ocorrência se distribua por aquela parte do Juruá habitada pelos
Kanamari-Kulina, o par simétrico de sementes cuja relação serve de paradigma para a
relação de –tawari entre os subgrupos. Deste modo, eles ressaltariam a possibilidade de
interações entre os dois – um espaço ético compartilhado, por assim dizer – que os
aproxima à exclusão dos Dyapa, com quem a guerra é a norma, mesmo que ela permaneça
latente, como durante a tensa paz entre Tamakori e Kanamaronho e os bravos’, que
ficavam à espreita, ansiosos por matar Tamakori. Os Kanamari deixam isto extremamente
claro para mim toda vez que falam sobre os Kulina, que são ‘traiçoeiros’ mas ‘quase iguais
aos Kanamari’, partilhando com eles uma divisão em subgrupos, um complexo xamânico e
mantendo a possibilidade de inter-casamento. Tudo isso é consistente com as histórias que
viemos seguindo, que colocam os Kulina como possíveis, mesmo que relutantes, -tawari.
Eles podem, por vezes, dividir um ‘espaço ético’, mas os Kulina são, no entanto,
encontrados rio acima, ‘onde não havia mais Kanamari’
246
.
Nos episódios 17 e 18, as violentas interações com os Dyapa são retomadas.
Tamakori e Kirak vão, por sua vez, buscar tabocas rio acima, onde vivem os Dyapa, e são
atacados por eles. Nesse tempo, os Dyapa estão firmemente situados na parte do Juruá à
qual são associados, e Tamakori ainda os ‘assopra’ para mais acima no rio, fazendo com
245
Deve-se lembrar que foi a trapalhada de Kirak que resultou na criação dos Kulina, que são por esse
motivo chamados às vezes de ‘gente de Kirak’. Dessa perspectiva, não haveria, em princípio, nenhuma
proibição no casamento de Kirak com uma Kulina, assim como ele e Tamakori desposam mulheres
Kanamari.
246
Esta referência geográfica é correta, da perspectiva dos Kanamari do Itaquaí. Os Kulina do tributário do
Baú estão através do Juruá e logo rio acima de Mucambi e Komaronhu, a extensão do Juruá conhecida pelos
Kanamari do Itaquaí.
275
que eles se desloquem a uma grande distância de onde estão os Kanamari e os Kulina. A
Viagem, pois, estabelece e reitera distâncias espaciais entre povos e algumas das formas que
as relações entre eles vão ter, delineando um importante aspecto de todas as histórias que
acompanhamos na Parte I. Eu estabelecerei outras implicações adicionais mais abaixo, mas
antes devemos observar como Tamakori criou os brancos em Manaus.
Em Manaus
Os episódios 8 e 9 mostram algumas das associações entre os brancos e os Adyaba,
mas bem antes que os brancos fossem aproximados aos Adyaba, eles eram chamados de
tawari. No capítulo dois eu discuti esse ponto por meio de uma comparação entre os
modos pelos quais Jarado e Sabá agiram e foram recebidos pelos Kanamari. Aqui eu
pretendo focar no episódio 13 da narrativa, que torna essa relação ainda mais explícita ao
narrar como Tamakori fez os brancos.
Hohdom
Poderíamos dizer que o ponto alto da narrativa é a criação dos brancos em Manaus
(13), a única transformação (-pa) explícita em toda a história; o único caso em que uma
forma (‘queixada’) vira uma outra (‘branco’), e que é ele próprio predicado em um devir
prévio (no qual mulheres e crianças viram queixadas; 1 e Apêndice B). Isto é diferente dos
casos que venho analisando, onde dois seres ontologicamente distintos são extraídos’ ou
‘feitos’ de um ser híbrido e múltiplo. A transformação dos queixadas em brancos, que pode
ou não ter sido intencional, retomam outras transformações que ocorreram antes da
Viagem, notadamente aquela na qual Tamakori e Kirak fazem os Kanamari e os Kulina das
sementes de diferentes palmeiras e os Dyapa do tronco de uma jaci (capítulo quatro). Em
todas essas transformações, a locação onde elas ocorrem é crucial. Os Kanamari, Kulina e
Dyapa foram criados no médio Juruá e os brancos em Manaus. Por essa razão, Manaus é
considerada a terra dos brancos’ (Kariwa nawa ityonim), ao passo que o médio e alto Juruá é
dividido entre os três povos Ameríndios.
Embora Manaus seja a ‘terra dos brancos’, os últimos eram queixadas que
antigamente eram Kanamari e foram deixados para viver sob comando do chefe Hohdom,
que é um tukuna. Kodoh deixou isso explícito para mim dizendo que Manaus é ‘a terra dos
brancos’, mas que antigamente era terra dos Kanamari também (tukuna nawa ityonim Manaus
276
toninim anim kotu). dois fatores que garantem que os brancos eram eles próprios
Kanamari: eles se originaram dos Kanamari que viajaram rio abaixo e que se estabeleceram
em Manaus, e o fato de que Manaus foi deixada, por Tamakori, sob os cuidados de
Hohdom. Como vimos, viver sob o comando de um chefe faz com que todos sejam
parentes.
Hohdom é a pronúncia Kanamari para o nome ‘Rondon’, uma referência ao
Marechal Cândido Rondon, que fundou o Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Isso só ficou
claro para mim ao conversar com os Kanamari, porque Hohdom é também o nome de um
tipo de peixe, conhecido como ‘bocão’ no Português regional, e muitos nomes Kanamari
são simplesmente nomes de animais. No entanto, as conversas revelaram que Hohdom era
realmente um ‘velho Funai’ (Funai kidak) e que era do exército. Durante um curso de
capacitação para professores realizado com os Kanamari em Letícia, no qual lhes foram
ensinados alguns dos feitos de Rondon, eles me disseram explicitamente que era Hohdom
o ‘filho da Ancestral Nona’, o –warah dos primeiros brancos. Essa ambigüidade entre os
nomes, baseada numa similaridade fonológica entre ‘Rondon’ e o nome Kanamari
Hohdom, pode ter sido acidental, mas foi, no entanto, feliz. Hohdom nunca é apresentado
como sendo branco, ele foi sempre um tukuna, mas ele se torna o chefe (-warah) dos
brancos. Essa parte do mito é, assim, a variante Kanamari da tão difundida crença em uma
origem Ameríndia dos brancos
247
e é predicada sobre o estabelecimento de Hohdom como
o ‘Mestre dos brancos-queixadas’. Esses últimos eram originalmente mulheres e crianças
Kanamari, que foram ‘inimizadas’ (todiok) pelos homens por obter peixes das lontras em
troca de favores sexuais. As crianças não são ditas terem sido especificamente ‘inimizadas’
pelos homens, apesar de sua cumplicidade nos atos, mas sua inimização ocorre por
procuração: uma vez que as mulheres são os ‘corpos/dono’ de seus filhos, estes não têm
escolha exceto a de serem inimizados junto com aquelas
248
. O ponto é importante porque o
próprio Hohdom era um menino, o filho da Ancestral Nona. Ele emerge, assim, como
Mestre de uma coletividade anônima de mulheres e crianças, um homem (tukuna) que
singulariza os brancos-queixadas que ele ‘possui’. Uma parte desse poder se origina de seu
247
Ver, para exemplos, DaMatta (1970), Lévi-Strauss (1995, 54-64), Fausto (2001, 470-82), Lima (2005, 45-7)
e Vilaça (2006, 269-83).
248
Todo divórcio resulta em crianças sendo criadas por suas es e, se estas são indisponíveis, por uma MZ
ou MM. Em quase todos os casos de divórcio, o resultado é um gradual estranhamento entre pai e filho, em
que a maior parte dos homens nem mesmo tratam essas crianças como suas. Os homens freqüentemente
assumem residência em diferentes aldeias, e filhos de casamentos passados e extintos são ocasionalmente
omitidos das genealogias. Na Amazônia, parentes e co-residentes tendem a se sobrepor, e mesmo que a
existência dos subgrupos Kanamari torne a presente situação um pouco mais ambígua, nesse caso fica claro
que as crianças, particularmente as pequenas e não-desmamadas, são ‘de’ suas mães.
277
conhecimento da escrita, uma habilidade xamânica dos brancos (Gow 1990), que lhe o
direito de ‘cuidar de Manaus’.
O fato de que Hohdom ‘possui’ os brancos-queixadas sem nunca deixar de ser um
tukuna é uma característica da distinção entre um ‘mestre’ e seus ‘xerimbabos’ (Fausto no
prelo 48, n.24). De fato, Gow (2001, 69) argumenta que essa relação, que ele descreve
como sendo de criação e cuidado’, pode ocorrer entre seres de condições ontológicas
distintas. O mesmo tipo de relação entre humanos geraria o parentesco. Entre os
Kanamari, no entanto, as relações estabelecidas por ‘corpos-donos’, baseadas na habilidade
de situar pessoas, ‘criar e cuidar’ delas, são precisamente aquelas que criam o parentesco e,
sendo assim, a distinção, que pode ser real para os Piro, o se sustenta. A ‘condição
ontológica’ dos xerimbabos de Hohdom, mesmo assim, está longe de nítida, afinal eles
eram mulheres e crianças (Kanamari) que viraram queixadas e, em seguida, brancos, após o
quê Hohdom passa a ‘cuidar’ deles. Todas essas diferenças são contidas por Hohdom e
atenuadas por meio dele. Assim, a relação entre Hohdom e os brancos-queixadas pode ou
não implicar diferenças ontológicas, mas me parece que, mais importante, elas são relações
de fractalidade e não de espécie. A relação entre Hohdom e os brancos-queixadas é
essencial para entender por que alguns atos ocorrem a Hohdom e outros a seus
‘xerimbabos’. Retornarei a esse ponto em breve, mas antes devemos entender a relação
entre esses três seres ontologicamente diferentes.
Inimização
O ato de inimização, após o qual as mulheres e crianças viajam rio abaixo, é um
tema comum nesse tipo de narrativa, onde as diferenças entre os brancos e os Ameríndios
é freqüentemente aquela de dois irmãos (ou povos) que seguem caminhos separados se
tornando estranhos uns aos outros. O mito Wari’ de Oropixi revela alguns paralelos
interessantes com a versão Kanamari
249
. Oropixi era uma criança capaz de se tornar um
homem para fazer sexo com a esposa de seu irmão mais velho e, em seguida, se tornar
criança novamente. O irmão de Oropixi descobriu o caso e Oropixi fugiu, após o quê seu
irmão queimou todas suas coisas de bebê. Oropixi levara a água consigo, e seu irmão, cuja
raiva de Oropixi tinha passado, decidiu tentar descobrir para onde seu irmão betinha
249
O mito Wari’ de Oropixi, um ‘mestre da água’ que envia tempestades e enchentes aos Wari’ ou alerta-os
sobre isso, é também notavelmente similar ao mito Kanamari de Yakwari, que curiosamente se desenvolve
em uma história envolvendo Noé e sua Arca. Infelizmente eu terei que adiar uma análise desse mito para uma
outra ocasião. Mas ver Reesink (1993, 302-8) que também propõe alguns vínculos entre a história de Yakwari
e a Viagem.
278
ido. Após uma expedição fracassada, eles finalmente encontraram sua aldeia, se pintaram
com urucum e conversaram. Oropixi diz que foi embora por que os outros não gostavam
dele, e convidou seu irmão mais velho e os outros para ficar com ele durante um tempo.
Mais tarde, o irmão mais velho se mudou com sua família para a aldeia de Oropixi, e este e
casou com a mulher com a qual costumava fazer sexo. Os Wari’ que não se mudaram para
lá, costumavam visitar a gente de Oropixi nas festas, e notaram como, com o tempo, estes
começaram a vestir roupas de branco e a usar rifles. Gradualmente, eles se tornaram
‘inimigos’ dos Wari e se multiplicaram. Eventualmente, os Wari’ se esqueceram deles
(Vilaça 2006, 269-72).
No mito de Oropixi, o protagonista vai embora porque lhe recusam uma mulher
(uma das esposas de seu irmão), enquanto no mito Kanamari ‘todas as mulheres’ vão
embora após terem recusado os homens (em troca das lontras) que, então, batem nelas. No
caso Wari’, a ruptura envolve um ‘par mínimo’, dois irmãos; no mito Kanamari, a ruptura
divide a sociedade em duas, ao separá-la em seu ‘par máximo’, a divisão entre homens e
mulheres (ver Lorrain 1994). Isto talvez nos permita interpretar uma diferença entre esses
dois mitos, a saber que, na versão Wari’, a gente de Oropixi se torna gradualmente inimiga,
mas na versão Kanamari eles se tornam gradualmente –tawari, que é como Jarado foi
chamado quando os Kanamari o encontraram novamente (ver capítulo 2)
250
.
A diferença entre os dois mitos pode ser resumida como se segue:
250
A relação de –tawari deve se dar através dos chefes (ver capítulo um) e, enquanto tal, ela situa Hohdom
como –tawari dos ‘Kanamari’. Deve-se recordar que os tawari não podem ser cruzados, e assim a relação
entre ‘os Kanamari’ e a coletividade brancos-queixadas, feita de mulheres e crianças, não poderia ter ocorrido
através de mais ninguém. O fato de que, muitos anos depois, Jarado conheça os chefes do Japó-dyapa pelo
nome, e pergunte por eles, sugere que ele próprio pode ter sido algo como um chefe dos brancos, talvez uma
outra instanciação desta figura que Hohdom representa no mito. Mas em ambos os casos, Hohdom e
Tamakori são ditos serem tukuna.
279
Mito Wari’ dos Brancos Mito Kanamari dos Brancos
Um irmão mais velho inimiza seu irmão
mais novo, Oropixi.
Os homens inimizam as mulheres e seus
filhos, incluindo Hohdom.
Oropixi vai embora, se tornando um
estrangeiro.
As mulheres vão embora depois de virarem
queixadas e levam seus filhos.
A reaproximação entre os Wari’ e Oropixi é
possível nas festas.
Tamakori visita os queixadas e os
transforma em brancos, os quais deixa aos
cuidados de Hohdom.
Os Wari’ e Oropixi se visitam até o
momento em que a gente de Oropixi não é
mais reconhecível.
Os brancos ficam em Manaus e os
Kanamari ficam no médio Juruá. Eles
apenas se reencontram quando Jarado visita
os Kanamari.
Os brancos se tornam inimigos. Os brancos se tornam aliados.
Tanto no mito de Oropixi quanto na Viagem, a mudança dos Ameríndios em
brancos passa por fases intermediárias. Oropixi foi inimizado antes que uma reaproximação
o tornasse um ‘estrangeiro’, depois do quê ele e sua gente se tornam inimigos novamente
251
;
as mulheres (e crianças) Kanamari foram inimizadas (todiok), viraram queixadas e, em
seguida, se tornaram, potencialmente, –tawari para os Kanamari.
Os Queixadas
A única exegese Kanamari que eu pude obter sobre a ‘fase queixada’ foi a de que
porque eram queixadas que os brancos possuem barbas o que, dada a importância da
similaridade morfológica em outras partes da Viagem (e.g. 4, 5, 9), o é pouca coisa
252
.
Mas as ressonâncias simbólicas do queixada na Amazônia me induzem a considerar
algumas possibilidades adicionais. Como Fausto sintetizou, os queixadas na Amazônia são
freqüentemente ambivalentes precisamente por serem:
251
Segundo Vilaça, “... afinidade é, para os Wari’, alteridade, tensão. O afim típico é um estrangeiro, membro
de outro subgrupo. E é estrangeiro que Oropixi se torna antes de virar branco. Considerando as diferentes
versões do mito e as evidências etnográficas, fica patente que o estrangeiro é o lugar do movimento: pode ser
incorporado como conterrâneo e consangüíneo, ou pode virar inimigo” (2006, 283). Este ultimo ponto é
equivalente à posição –tawari dos Kanamari, mas ele não altera o fato de que os Wari’ fazem dos brancos
estrangeiros e, em seguida, inimigos, ao passo que os Kanamari fazem deles queixadas e, em seguida, aliados
potenciais.
252
As barbas humanas podem derivar das cerdas dos queixadas, mas essas últimas, por sua vez, foram
derivadas do espinho das folhas da pupunha com as quais os homens atingem as mulheres (1, Apêndice B).
280
“... um modelo da própria condição humana genérica: eles não são pura capacidade predatória,
mas antes mortais a serem predados, que se defendem bravamente, vivem em grupo, comem
mandioca e têm um chefe. Eles se aproximam dos humanos pelo gregarismo (conotando sua
capacidade de produzir parentesco), pela organização social da vara (conotando o
reconhecimento de outras relações assimétricas do que a devoração) e pela sua condição
ambivalente, a meio caminho entre presa e predador” (2002, 25).
Os Kanamari chamam o bando de queixadas de wiri-wihnim, que significa ‘muitos
queixadas’ mas também ‘parentes-queixadas’, ressaltando precisamente essa capacidade de
produzir parentesco. A presença dos chefes é condição sine qua non do parentesco, e os
queixadas têm um chefe que é também um xamã. Enquanto alguns animais podem ser
espíritos dyohko, os chefes-xamãs do queixada são os únicos dos grandes animais que
possuem dyohko familiarizados, que o caçador Kanamari extrai de suas entranhas após ele
ter sido morto. Esses dyohko são, então, utilizados pelo xapara atrair os queixadas a
certas capoeiras ou canamãs. Os queixadas são atraídos pelos dyohko porque eles são seus
parentes e eles sentem saudades (omahwa). Os bandos de queixadas também se movem
incessantemente, mas sempre com um chefe ou em direção ao dyohko de um chefe morto.
Em suma, os queixadas, como os Kanamari, são móveis, mas eles sempre se movem com
ou na direção de um ‘corpo/dono’
253
.
Nenhuma caça causa tanto excitamento e medo aos Kanamari quanto os queixadas.
Durante viagens pelo rio, os homens estão sempre alertas para a possibilidade de pegadas
nas margens lamacentas do rio, particularmente as de queixadas, que deixam grandes
manchas de barro quando atravessam os rios. Assim como estão de olhos abertos, eles
também ficam alertas aos odores da floresta em torno deles, e captar o fedor característico
dos queixadas significa necessariamente parar a canoa e enviar uma expedição de caça até
eles. A mera possibilidade de queixadas é suficiente para que uma canoa pare, mesmo que o
fedor indique um bando que tenha passado a algum tempo atrás. Certa vez eu fui feliz o
bastante de estar em uma canoa que passou bem em frente a um bando de queixadas
cruzando o rio um evento que muitos Kanamari nunca presenciaram, embora
freqüentemente sonhem com isso e o frenesi com o qual os Kanamari começaram a
253
Esse dyohko se parece com uma pedra relativamente grande e é provavelmente algo que os queixadas
acidentalmente comem. Apenas o chefe do bando possui tal dyohko. Os xamãs freqüentemente deixam-no em
sítios de caça durante a noite, para que, no dia seguinte, os caçadores encontrem os queixadas atraídos por
ele. Após a caça, o xamã recupera seu dyohko. Um xamã certa vez deixou seu queixada-dyohko em um canamã,
mas o pôde encontrá-lo no dia seguinte. Ele viu as pegadas dos queixadas, no entanto, e concluiu que eles
haviam estado ali e levado ‘seu parente’ (ma-wihnim) com eles.
281
remar até a caça e carregar seus rifles estava em nítido contraste com a paciência de um
caçador que espera para emboscar sua presa em seu canamã preferido. Doze queixadas
foram caçados nesse evento, e muitas pessoas lamentaram que alguns do bando fugiram,
mesmo que nós tivéssemos tanta carne a ponto de, nos próximos dias, parte dela ter
apodrecido e sido jogada fora algo que, em outro contexto, seria impensável aos
Kanamari.
Essa característica da caça aos queixadas contrasta com o medo que os queixadas
inspiram quando se supõe que eles estejam perto das aldeias Kanamari. Se o seu fedor é
sentido em um aldeia, os homens geralmente irão organizar uma expedição coletiva para
encontrá-los, mas as mulheres irão agarrar seus filhos e entrar nas casas, permanecendo em
silêncio enquanto esperam os homens retornar. E embora um bando de queixadas
atravessando uma aldeia ou próximo a ela seja obviamente razão suficiente para tais
precauções, parece-me que isso tem mais a ver com o fato de que os queixadas são
“...demasiadamente comida e demasiadamente humanos” (Fausto 2002, 25) do que com a
realidade da ameaça. Outros animais perigosos nem sempre inspiram o mesmo grau de
precaução. Poroya, por exemplo, decidiu manter por algum tempo uma jibóia adulta que
havia vagado até a aldeia sob uma caixa no pátio, onde as crianças freqüentemente
brincavam de zombar dela. A presença de duas pidah-hihpan (lit. ‘cobra jaguar’, ‘pico de jaca’
em Português) próximas à área do rio onde os Kanamari se banhavam, me apavorou, mas
crianças pequenas não tiveram problemas em matá-las, amarrando barbantes em seu
pescoço e desfilando-as pela aldeia. Finalmente, em uma ocasião o fedor de queixadas foi
sentido enquanto as mulheres estavam juntando mandioca, e as pessoas começaram a gritar
pelo roçado, alertando que eles estavam se dirigindo para lá. Apenas um homem estava
presente exceção do antropólogo inepto) e todos começaram a correr em direção ao rio,
uma mulher em um tal estado de pânico que deixou para trás sua filha bebê soluçando.
É como se para os Kanamari, como em outras partes da Amazônia, os queixadas
representem uma humanidade ambivalente, particularmente quando, como no mito, eles
são ‘gente-queixada’, os ex-parentes dos Kanamari (mulheres e crianças que foram
inimizados) que são capazes de se estabelecer enquanto parentes via Hohdom, seu –warah.
A presença de Hohdom é essencial porque permite que os queixadas sejam estrangeiros’
ou –tawari para os Kanamari. Eles são parentes que se mudaram e pararam de visitá-los;
seres que são similares a eles, mas que possuem diferentes corpos, produzidos por relações
de parentesco feitas ‘na floresta’ (ityonim naki), e cuja presença nas aldeias Kanamari, o lugar
dos parentes e não dos –tawari, é perturbadora para a vida na aldeia. Disseram-me certa vez
282
que sonhar com um bando de queixadas vagando majestosamente pela floresta é um claro
sinal que –tawari estão chegando em breve para visita. É apropriado, portanto, que quando
Jarado, um desses gente-queixada, retornou, ele seja tratado como –tawari, seja parceiro de
trocas, receba cerveja de mandioca e carne de caça defumada.
Fazendo os Brancos
Tamakori tranca os queixadas no quarto de uma casa, do qual, quando emergem,
eles são brancos. Tal transformação é predicada sobre aquela das mulheres Kanamari em
queixadas em primeiro lugar, no mito dos Amantes-Lontra. Esses episódios da Viagem
parecem, pois, intercalar dois episódios que nem sempre são tratados dentro de uma
mesma narrativa entre outros povos Ameríndios: a origem dos queixadas e a origem dos
brancos. Além disso, eles o fazem transformando os queixadas em brancos através de um
método (confinamento) que é, em primeiro lugar, mais freqüentemente associado com a
transformação de humanos (i. e. Ameríndios) em queixadas. Lévi-Strauss (1983, 85-7)
mostrou a difusão Amazônica de mitos que narram como os humanos se tornaram
queixadas dentro de um cercado
254
. Ele sugere que esses mitos podem apontar para “a
memória de uma técnica de caça não mais praticada e que consistia em direcionar os
queixadas para cercados onde eram mantidos e alimentados antes de serem mortos”,
estabelecendo desse modo um contraste entre os queixadas como ‘semi-humanos’ no nível
mítico e como semi-domesticados’ no nível da atividade tecnico-econômica (ibid.). Mas o
mito Kanamari põe um problema diferente, ainda que utilize motivos similares. As
mulheres viram queixadas em uma aldeia Kanamari, e estes, em seguida, se tornam afins
brancos ao serem trancafiados em uma casa. Estes episódios da Viagem sugerem assim
como ‘mitos da origem dos queixadas’ e ‘mitos da origem dos brancos’ podem estar
relacionados, uma vez que parecem criar uma charneira entre as duas séries.
Acredito que podemos elucidar isso um pouco mais situando a Viagem junto a
outro mito que, assim como Oropixi, explica a origem dos brancos, e também colocando o
episódio da criação dos brancos dentro do contexto da etnografia Kanamari. Vilaça mesmo
comparou o mito de Oropixi com o famoso mito de Auké, que é ele próprio, como a
Viagem, uma transformação do mito Tupi de Maíra Monan (Lévi-Strauss (1995, 54-7). É
útil reproduzir esse mito, tal qual resumido por Lévi-Strauss:
254
Os exemplos de Lévi-Strauss vêm dos Mundurucu e dos Kayapó (ver também Murphy 1958, 70-3).
283
“A woman [...] is pregnant with a child who, while still in her womb, talks with her or even
leaves and returns to the maternal body at will. During his excursions or after his birth,
according to different versions, the child named Auké shows he possesses magical powers: he
transforms himself into persons of various ages or, again, into often-frightening animals. The
terrified villagers and, more prominently, the maternal grandfather or uncle of the child
make him die on a pyre. When the mother goes to collect the ashes, she discovers that her son
is quite alive and has come into possession of all the treasures of the Whites. He offers to share
these with the inhabitants of the village. According to different versions, they either refuse
him, whence the superiority of the Whites, or they become gradually civilized in the company
of Auké. Two versions identify Auké with the emperor of Brazil, Pedro II (1831-89)” (Lévi-
Strauss 1995, 54).
uma série de similaridades entre Oropixi, Auké e Hohdom. Oropixi e Auké são,
ambos, bebês mágicos que crescem quando bem entendem. Hohdom era também um be
quando partiu com sua mãe, pois ela era sua –warah e foi isso que permitiu que ele seguisse
com ela em vez de ficar para trás com os homens. Ele também é mágico, ainda que sua
magia seja diferente do tipo de magia de Oropixi e Auké: Hohdom é capaz de ler, e isso o
permite entender o ‘documento’ produzido por Tamakori para deixá-lo responsável por
Manaus. Se a mágica de Auké o permite sair e entrar no útero de sua mãe, e a mágica de
Oropixi permite que ele mude de tamanho à vontade, a mágica de Hohdom o possibilita
guiar a separação entre os Kanamari e os brancos, permitindo que ele se torne um mestre
desses últimos.
Tanto Oropixi quanto Aupassam por uma forma de morte simbólica. Auké tem
seu corpo queimado numa pira e Vilaça mostra que a queima das coisas de bebê de Oropixi
por parte de seu irmão mais velho é uma forma de morte, pois os Wari’ apenas queimam os
pertences de um bebê após ele ter morrido e seu cadáver ter sido assado para o consumo.
O episódio Kanamari da transformação da gente-queixada em brancos lida
simultaneamente com esse tema e a questão do útero do qual Auké, em algumas versões,
sai e entra à vontade. Para entender isso, é necessário explicitar certas ressonâncias
simbólicas entre ‘quartos’ e ‘úteros’. Até recentemente em inícios da década de 1990, as
casas Kanamari não eram internamente divididas por paredes, a única distinção sendo um
forno em uma das extremidades. Muitas casas ainda são assim. Se mais de uma família
reside em uma dessas casas, os mosquiteiros fornecem a privacidade necessária, de um
modo que recorda os abrigos temporários dyaniohak. Mas nos últimos quinze anos mais ou
menos, eles começaram a dividir suas casas à maneira dos brancos locais, e algumas delas
são completamente entabuadas e internamente divididas por paredes feitas da casca da
284
paxiúba (Lat. Socratea exorrhiza). Esses ‘quartos’ o chamados de hak-mi
255
. Mi se refere,
mais geralmente, a qualquer cavidade, tais como buracos cavados no solo, incluindo covas,
e o útero.
Os Kanamari chamam tanto o útero quanto a barriga de -mi’ ou min’; ‘engravidar’ é
ityaro-mi-bu, ‘fazer/produzir a cavidade da mulher’ e o ato de fazer a criança no útero é
explicitamente dito ser um ato de ‘fazer o corpo da criança’ (opatyn-warah-bu). Para se referir
ao feto, diz-se simplesmente a-mi-naki, ‘na barriga/útero dela’. A associação entre o ‘útero’
e o ‘quarto’ é reforçada pelo fato de que, se uma casa contém um quarto, o nascimento
sempre irá acontecer nele e, assim, sob o mosquiteiro dentro dele.
Os sepulcros, originalmente marcados por uma choupana de madeira construída
sobre eles e atualmente por vezes com uma cruz, são chamados de kimarak, mas covas
podem ser chamadas de hom-mi, ‘buraco-terra’. Este último termo pode também se referir
ao pequeno buraco cavado na terra no qual o cabelo de uma pessoa morta é enterrado nas
últimas etapas dos ritos funerários. Esse buraco é mais especificamente chamado de
mahwanim hom-mi, ‘o buraco-terra do luto’ ou, na fala-Jaguar, bora. Uma vez que a pessoa
morre, particularmente adultos e idosos, ela é enterrada (dahmahik) e os parentes dele ou
dela entram em um período de luto (mahwa). O período imediatamente após uma morte é
um de miori, ‘má sorte’, e uma série de precauções deve ser observada. Esse período
usualmente dura por um punhado de dias e chega ao fim esgotando-se por si mesmo,
quando as atividades da aldeia começam a ser retomadas. Mas o período de luto, que é
também o período em que a alma da pessoa morta permanece sem corpo, presa entre seu
‘corpo terreno’ (Ityonim-warah) inicial e seu futuro ‘corpo celestial’ (Kodoh-warah), pode durar
meses ou mesmo anos no caso dos idosos, chefes e xamãs. Antes de o cadáver ser
enterrado uma mecha de cabelo é cortada e guardada por parentes próximos, co-residentes
e consangüíneos. Esse cabelo é enterrado ao fim do período de luto pelos Jaguares em um
ritual do devir-Jaguar, mais especificamente no tipo de ritual conhecido como ‘Grande
Jaguar’ (Pidah Nyanim). Como eu já deixei claro, tal ato tem importantes conseqüências para
a regeneração do mundo e da floresta, que é dependente da devolução do cadáver do
morto ao Jaguar de onde ele, e tudo o mais, veio. O corpo da pessoa morta, feita através de
atos humanos de parentesco, se torna então uma parte do ‘corpo da floresta’ (ityonim-warah).
255
Deve-se lembrar que, pelas informações que colhi, os Kanamari não dormiam normalmente em suas
malocas, mas nos abrigos temporários dyaniohak construídos em torno delas. Não me parece que hak-mi seja o
nome para o interior das malocas, mas eu posso estar equivocado quanto a isso. Sempre que os Kanamari se
referem ao seu interior, eles dizem hak nyanim naki’, ‘dentro da maloca’. ‘Dentro do quarto’ é, em vez disso,
hak-mi naki’ ou ‘a-mi naki’, ‘dentro de seu quarto’. Hak-mi pode, portanto, ser um neologismo.
285
A relação entre morte e regeneração é um tema recorrent na Amazônia, assim
como em outras áreas etnográficas (Hugh-Jones 1979, 214-26; Bloch and Parry 1982), e eu
analisarei as idéias Kanamari da concepção de da morte brevemente (capítulos seis e sete).
O que eu quero ressaltar aqui é que o confinamento da gente-queixada no quarto de uma
casa e a conseqüente abertura desse quarto podem ser interpretados como um
‘nascimento’, se entendemos que nascimento refere-se tanto ao nascimento da criança
quanto o do cadáver do falecido que é renascido como um ‘corpo da floresta’. Nesse
sentido, a gente-queixada é ao mesmo tempo não-nascida e morta durante o período em
que está trancada na casa, o que é similar tanto ao estatuto ‘não-nascido’ de Auké no início
do mito Jê quanto à sua ‘morte’, após ser queimado na pira funerária. O período liminar na
casa é também um no qual aqueles que inicialmente são gente-queixada e, em seguida,
futuros brancos, estão sem-corpo. Os fetos no útero são também sem corpo, seus corpos
sendo feitos através de repetidos intercursos sexuais – um processo que não se conclui com
o nascimento. Da mesma forma, no período entre a morte do corpo humano e o
renascimento tanto como corpo celestial e corpo da floresta, as pessoas são duplamente
sem corpo: as almas estão presas entre o corpo terreno que eram e o corpo celestial que se
tornarão; e o corpo se torna um cadáver (boroh) que não é um corpo humano vivo
(tukuna-warah), mas que irá, após o enterro do cabelo e o fim do período de luto, regenerar
a floresta ao se tornar ele próprio uma parte do ‘corpo da floresta’. As pessoas em buracos,
pois, não possuem corpos.
Além disso, se nos lembrarmos que a idéia de que durante a gravidez o útero da
mulher ‘cozinha’ ou, por outra, transforma o esperma masculino em uma criança é
difundida na Amazônia, notadamente na região entre o Javari e o Purus no meio da qual
estão os Kanamari (e.g. Lorrain 1994, 105-6; McCallum 2001, 17), então o fogo, ou ao
menos o calor que desempenha um papel importante tanto em Auké quanto em Oropixi
pode não estar de todo ausente do mito Kanamari
256
. No mito Jê, esse fogo faz com que
Auké tome posse dos ‘tesouros dos brancos’, o que equivale a dizer que ele virou branco;
no mito Kanamari, talvez seja o ‘cozimento’ metafórico da gente-queixada que a
transforma nos brancos. Os brancos emergem não como ‘inimigos’ de Tamakori, mas
como ‘amigos’ ex-parentes que foram inimizados e, em seguida, re-aproximados que
saem do quarto/útero e imediatamente convidam Tamakori para beber café, que vimos
256
Deve-se recordar também que Hohdom é encontrado cortando lenha para sua mãe (2). O episódio 13 da
Viagem parece ter uma série de motivos que restam apenas parcialmente elaborados, eu retornarei a isso mais
abaixo.
286
ser a caiçúma dos brancos. É na condição de ‘aliados’ que os brancos permanecem quando
finalmente retornam para visitar seus –tawari no médio Juruá.
uma aparente ambigüidade no mito entre os atos que ocorrem com Hohdom e
aqueles que se referem à gente-queixada, mas esta pode ser vista como um corolário da
fractalidade do –warah. Não é dito explicitamente que Hohdom é trancafiado na casa.
Embora ele fosse uma pessoa-queixada, ele parece nunca ter deixado de ser um tukuna. Isto
leva a um fracionamento dos temas míticos encontrados em Auké e Oropixi, porque alguns
deles concernem a Hohdom, como seu estatuto de ‘criança mágica’, e outros à gente-
queixada em geral, como seu ‘incêndio’ e renascimento como brancos. Mas tal distinção
apenas se torna problemática se nós dividimos o corpo de Hohdom em suas partes
constituintes. Logo no início do mito, Hohdom é deixado como ‘responsável’ por Manaus,
e após os brancos terem sido criados ele continua a ser seu mestre. Se o –warah possibilita
que o parentesco seja criado através de sua presença física, as pessoas de uma aldeia ou
cidade se fazem parentes em relação a ele e com ele. Hohdom, um tukuna, pode assim
representar uma ‘Kanamaridade’ residual aos brancos, e talvez explique porque ao menos o
primeiro branco fosse capaz de se comunicar com eles na língua Kanamari. É por essa
razão que a ‘diferença ontológica’ que Gow argumenta existir entre ‘mestres’ e ‘xerimbabos’
se aplica aos Kanamari se considerarmos essas diferenças como sendo uma questão de
escala. Os brancos-queixadas nunca deixam completamente de ser tukuna porque Hohdom
é seu mestre.
muitos aspectos da história, e sua relação com outros mitos, que vão
permanecer o-analisados
257
. O lobisomem, uma figura do folclore branco local, aparece
apenas como um exemplo do tipo de ser que vive na vizinhança da terra dos brancos, e não
parece desempenhar nenhum papel no desenvolvimento do mito. No entanto, podemos
vê-lo ser parte do desenvolvimento de um outro mito cujos contornos são estabelecidos no
257
Particularmente as curiosas ressonâncias mitológicas entre o mito da origem dos queixadas e o da origem
dos brancos, que eu mencionei brevemente acima e que demandaria uma consideração mais minuciosa. O
mito Kanamari da origem dos queixadas fornece uma possibilidade que não estava acessível a Lévi-Strauss em
sua análise de mitos similares. Lévi-Strauss mostrou a posição deles em um meta-sistema no qual os queixadas
emergem como pessoas malevolentes: “os ancestrais dos queixadas foram seres humanos que se mostraram
como sendo eles próprios ‘inumanos’” e, mais especificamente, como cunhados “que recusam alimento, ou o
oferecem em certas condições, ou o dão de maneira insolente” (1983, 86; 91). A versão Bororo do mito (ibid.,
94-5) é notavelmente similar ao mito Kanamari dos amantes-lontra, mas seus fins são simetricamente
inversos. Na versão Bororo, as mulheres buscam vingar a morte de seus amantes animais servindo aos
homens uma bebida de pequi cujos caroços estão cobertos de espinhos, fazendo com que os homens
engasguem e virem queixadas. Na versão Kanamari, os homens, não contentes em apenas matar os amantes
das mulheres, também batem nelas com as espinhosas folhas da pupunheira, transformando-as em queixadas.
São, pois, as mulheres que servem alimento aos homens de ‘maneira insolente’ (i.e. peixe que foi obtido por
meio do sexo com as lontras), mas os homens que se comportam de maneira ‘inumana’ ao bater nas mulheres
até elas virarem caça e partirem rio abaixo.
287
episódio 13, mas que o narrador apenas resume ao fim da Viagem: aquele do peixe-boi,
iniciado pelo narrador antes que ele fosse chamado ao trabalho por sua esposa. A
fabricação de arpões com as conchas de madre-pérola, que são ditas explicitamente para
matar peixe-boi, a situação de Manaus próximo a um lago e os cipós-titica sugerem que a
história do peixe-boi deveria ter ocorrido aqui. Nessa outra história, Tamakori e Kirak
tomam esposas, que começam a ter casos extraconjugais com um peixe-boi. Os peixes-boi
vivem em um lago que possui água de sua metade até a superfície, pois da metade até o
fundo é o lar da ‘gente-peixe-boi’, onde é possível respirar. Tamakori, ajudado por seu
inconstante irmão, mata o peixe-boi (daí os arpões) e, de acordo com algumas versões,
serve a carne a sua esposa. Voltamos novamente, pois, ao tema das mulheres infiéis e das
punições cruéis para o adultério encontrado nos ‘Amantes-Lontra’ ao qual, de fato, é
notavelmente similar, reproduzindo no ‘código Tamakori’ aquilo que os Amantes-Lontra’
fazem no código da proto-humanidade. O tema da troca de perspectivas através da troca
de corpos está também presente nos ‘Amantes-Lontra’ e no mito do peixe-boi, como no
quarto que transforma a gente-queixada em brancos e o lago sob o qual é possível respirar.
Estes são parte da tendência da Viagem a formar blocos míticos que facilmente se
desenvolvem em outros temas, aparentemente ad infinitum. Uma vez que a Viagem cria o
mundo, ela necessariamente suprime uma riqueza de detalhes que, pela simples menção de
alguns de seus aspectos, seriam reconhecidos por qualquer Kanamari.
A Origem da História e da Morte
A extração de seres ontologicamente distintos a partir de categorias fluidas através
da nomeação, a separação de povos e a criação dos brancos põem o palco para a história
que traçamos na Parte I. Nesta seção, eu quero analisar como a Viagem se relaciona àquela
história e reconsiderar os modos pelos quais os Kanamari conceitualizam os brancos.
Começarei comparando a Viagem com as histórias de Jarado e Sabá e, em seguida,
considerarei seus dois episódios finais, que parecem apontar para a questão da mortalidade
humana.
O Mito da História
Na medida em que o mito concerne à desfeitura do mundo mítico e à instauração
do mundo atual, a Viagem é, para tomar de empréstimo a expressão de Gow, o mito da
288
história’ Kanamari. Em An Amazonian Myth and its History, Gow analisa um mito Piro
chamado ‘Tsla engolido por um Jaú’, que concerne a alguns feitos de Tsla, um
“transformador miraculoso” que emergiu do útero de sua e após sua morte juntamente
com seus irmãos, os muchkajine, que significa literalmente ‘os brancos de antigamente’
(2001, 92-5; ver também Gow 1997). Nessa narrativa, Tsla e seus irmãos trabalham para o
cunhado de Tsla nos trechos mais altos do território Piro, o Pongo de Mainique. Eles então
viajam rio abaixo, além das aldeias dos Conibo, os ‘limites à montante do mundo vivido
Piro’. O narrador do mito imediatamente o prosseguiu com uma sinopse da história Piro,
particularmente de suas relações com os brancos que vieram até eles precisamente do baixo
curso do rio, na direção do qual os muchkajine, que são a “origem mítica dos históricos e
contemporâneos brancos”, foram vistos por último. E como Gow (1991) mostrou
amplamente, a história Piro é a formação de suas relações contemporâneas de parentesco
através de diferentes tipos de brancos: “this myth, by dealing with the spatial limit of the
lived world of the ‘ancient Piro people’, deals with the pre-conditions of Piro people’s
relationships to white people in general” (2001, 94).
A Viagem, também, é ‘sobre’ os brancos, sua origem e comportamento. Ela
também marca o primeiro ‘tempo histórico’ dos Kanamari, o ‘Tempo de Tamakori’, no
qual, argumenta-se, eles viviam de acordo com o modelo de endogamia de subgrupo. A
conquista dessa forma social começa no passado primordial, na fragmentação de certos
Jaguares ticos e nos modos pelos quais as pessoas administraram as unidades discretas
resultantes. Se o molde para as relações foi desenvolvido nesses mitos, a instanciação das
relações atuais entre os humanos (tukuna) através destes termos poderia ser alcançada
após a Viagem e o término de certas transformações residuais e em curso que restaram
após o colapso do Céu Antigo. Podemos ver, nesse sentido, como a viagem de Tamakori
não marca uma ‘ruptura’ com aquilo que a precedeu. De fato, como nos mitos que
analisamos no capítulo anterior, ela parece operar via uma sintonia fina de formas instáveis.
Se a estabilidade não pode ser alcançada em grande escala, logo, é necessário ao menos
extrair os aspectos positivos daqueles danosos de realidades híbridas, e separá-los ao longo
do rio que une a todos.
O mundo que Tamakori deixou para os Kanamari foi predicado sobre a distinção
entre duas formas de relacionar: as relações entre os –warah humanos, singularizações
fractais de diversas pluralidades que mantinham relações de distribuição e alimentação,
criando o parentesco por meio de uma despotencialização do Jaguar; e aquelas baseadas na
predação, o código incivilizado e obsceno do Jaguar absoluto, um Mestre de tudo via a
289
predação, que desfaz o parentesco. Os subgrupos Kanamari eram internamente
estruturados pela primeira forma. Eles domesticaram aspectos do Jaguar mantendo
relações de –tawari com alguns outros subgrupos, e mantiveram as pessoas com quem não
podiam se relacionar à distância, longe de suas aldeias.
O mundo descontínuo começou a desmoronar com a chegada de Jarado. o
precisaria ter sido assim, pois Jarado foi recebido como um –tawari e inicialmente os
Kanamari adaptaram seu mundo à presença dos brancos. Mas os Kanamari não poderiam
ter previsto que os brancos seriam tantos que eles seriam incapazes de manter chefes,
tendo que migrar e viver com os brancos longe de suas próprias aldeias. Unidades discretas
começaram a co-residir, tornando-se contínuas; os –tawari brancos que viviam com eles em
suas aldeias solaparam a forma –warah de relação e os mataram, trazendo a predação para
perto de casa; e acusações de feitiçaria emergiram dentro de grupos de pessoas que
deveriam ter vivido como parentes. O –warah desapareceu e com ele a estrutura fractal do
subgrupo que Tamakori tinha extraído da fragmentação dos Jaguares. O –tawari também
desapareceu, na medida em que os brancos se tornaram espíritos ‘imprestáveis’ e que
prévios –tawari passaram a viver juntos, resultando no fim das reuniões Hori e na falta de
mediação entre ‘parentes’ e ‘inimigos’. Foi somente com a chegada de Sabá, o chefe de
todos os Kanamari, que uma síntese entre a estabilidade do ‘Tempo de Tamakori’ e o fluxo
do ‘Tempo da Borracha’ começou a ser delineada.
As alterações entre essas formas dependem de atos de ‘nomeação’. Deve estar
evidente que as histórias de Tamakori, Jarado e Sabá possuem estruturas similares: todas
elas envolvem pessoas que chegaram até os Kanamari vindo de rio abaixo, da ‘terra dos
brancos’, e que mantêm relações hostis com os Dyapa
258
. Mas a similaridade mais marcante
pode estar no fato de que cada um deles nomeia ou re-nomeia coisas que estabelecem os
tipos de relações sociais que guiarão os Kanamari após cada um ter ido embora. Tamakori
e Kirak extraem múltiplas singularidades de multiplicidades singulares através da nomeação,
estabelecendo os contornos do mundo. Jarado nomeou as cidades e os barracões,
emoldurando como a vida seria sob o comando dos patrões: “aqui será Ipixúna; aqui será
São Felipe”. Assim, ele alterou a paisagem com sua fala, de um modo similar a Tamakori.
Sabá introduz novos conceitos como ‘Funai’, o ‘posto avançado’, o ‘Fiscal dos Povos
Indígenas’. Estes permitiram aos Kanamari adaptar os termos fractais que regulam as
258
Vimos pouco que Tamakori lutou com o ‘Mestre dos Caceteiros’, Kanamaronho, em seu caminho até
Manaus e, em seguida, novamente na direção de Cruzeiro do Sul. Jarado equivocadamente pensou que os
Dyapa fossem Kanamari e como resultado lutou com eles e os matou no lugar conhecido como Urubupugo.
E Sabá estabeleceu o ‘Posto de Atração Marubo’ procurando os isolados Korubo. Ele nunca os encontrou,
mas seu posto foi atacado e incendiado por eles.
290
relações dentro do –warah, ampliando-os, por assim dizer. Eles todos poderiam viver numa
única bacia de rio porque seu chefe era a Funai, que era muito poderoso e possuía todos
eles.
Para entender a mudança entre cada um desses ‘tempos’, no entanto, é necessário
considerar certas diferenças entre eles. É evidente que o movimento da história,
particularmente do ‘Tempo de Tamakori’ até o Tempo da Borracha’, vira a sociedade
Kanamari ao avesso. Os Kanamari estavam a caminho do discreto ao contínuo mais uma
vez, revertendo o movimento do mito. Se Sabá não tivesse chegado, eles teriam vivido mais
uma vez através dos Jaguares, incapazes de criar um parentesco positivamente valorizado.
Isto é diferente de sua avaliação da mudança do ‘Tempo da Borracha’ ao ‘Tempo da Funai’.
Sabá, deve-se recordar, quase que literalmente os salvou, pois os brancos haviam decidido
que todos os Kanamari morreriam. Depois de Sabá, eles foram capazes de recuperar o
‘Tempo de Tamakori’ através dos processos que ocorreram no ‘Tempo da Borracha’. Hoje
em dia, eles permanecem vivendo sob influência da Funai, como parte do todo que ela
representa.
No entanto, isto foi necessário porque a história desfez o mundo que Tamakori
criou para eles. O fato de que inter-casamentos ocorram e que pessoas co-residam não é
nunca visto como sendo ideal e, como vimos, as pessoas ainda enfatizam os subgrupos,
que assim resistem a transformar todos eles em parentes. A síntese conquistada no ‘Tempo
da Funai’ é um (afortunado) resultado da história, o melhor que poderiam fazer com o que
tinham em mão. Nisso, sua avaliação da história é o reverso da dos Piro, para quem, como
mostrou Gow (1991), história é parentesco. Em seus tiempos de los ancianos, os Piro viviam
em grupos endógamos que ‘brigavam e odiavam uns aos outros’. A chegada dos patrões da
borracha e a subseqüente escravização no tiempo de caucho abriram esses grupos uns aos
outros, permitindo inter-casamentos, co-residência e trocas pacíficas. O tiempo de la hacienda
lhes permitiu viver sob comando do patrão Vargas, o ‘chefe de todos os Piro’, resultando,
finalmente, n’esses tiempos, ‘tempos atuais’, onde os Piro vivem em ‘aldeias de verdade’
organizadas pela legalmente reconhecida comunidad nativa, com acesso aos ‘bens’ que eles
desejam (ibid., 62-72). Como indica Gow (1991, 30), essa narrativa é um relato mítico da
origem de sua sociedade’, que explica por que eles são todos ‘of mixed blood’. A história
Piro é a história do parentesco.
A divisão de uma parcela da história Kanamari em ‘tempos’ parece fazer o oposto
daquilo que faz para os Piro. Poderíamos dizer talvez, parafraseando Gow, que é um ‘relato
mítico da desintegração de sua sociedade’. Para eles, a história não é parentesco, é o
291
desfazer das unidades de parentesco e a dissolução das relações apropriadas entre os
subgrupos. Ou talvez eu deva refraseá-lo, pois formas contínuas e ilimitadas de relação
criaram sim uma forma generalizada de parentesco, mas elas o fizeram de maneiras
negativas, violentas e de tipo Jaguar através do egoísmo e feitiçaria, por exemplo. É, ao
contrário, o tipo de parentesco interno ao subgrupo isolado, que, no entanto, permanece
aberto às interações com seus –tawari, que é o ideal. No caso Piro, talvez fosse
precisamente essa relação positiva para além do grupo local que estivesse faltando, ou, ao
menos, não emergisse em seus relatos do passado. Para os Kanamari, a face interna do
subgrupo garantia o parentesco, ao passo que sua face externa poderia garantir as relações
de –tawari para além dele, e é isso que constituiu o mundo.
Embora haja diferenças etnográficas significativas entre os Kanamari e os Piro que
podem contar para essas visões divergentes do parentesco
259
, um outro fator que deve
ser considerado. A história do contato Kanamari com os brancos parece ser mais recente
que a dos Piro, que provavelmente mantiveram contatos ao menos esporádicos com os
brancos desde o século 18. Os últimos parecem também ter sido afetados pela economia da
borracha em seu apogeu, diferentemente dos Kanamari, que começaram realmente a
interagir com os brancos em meados da década de 1930, o período que separa o primeiro
do segundo, este menor, boom da borracha. Vimos que, atualmente, os Piro vivem ‘nesses
tempos’, um período que sucede o ‘Tempo das Haciendas’, quando eles viviam com o patrão
Vargas, o ‘chefe de todos os Piro’ (1991, 67). Este modo de se referir a Vargas é muito
similar a como os Kanamari se referem à Funai e a Sabá, e como vimos no capítulo três,
viver sob influência da Funai permite aos Kanamari re-instaurar novamente uma forma
positiva de parentesco, via os brancos. Pode ser, pois, que os Kanamari ainda não vivam
em algo equivalente a ‘esses tempos’; eles ainda não se extraíram de um mestre branco e
começaram a estabelecer parentesco de um modo independente deles
260
.
259
Uma das quais eu acabei de sugerir, e parece ser o fato de que os grupos endógamos Piro podem ter,
como disseram os Piro a Gow (1991, 63), “sempre lutado e odiado uns aos outros”, ou, ao menos, mais do
que o fizeram os Kanamari. Os Piro são parte de um conjunto Aruak-Pano no Peru oriental, mas eles diferem
de seus vizinhos Aruak por terem partilhado muitos traços com os grupos Pano ao norte deles, notadamente
os Conibo: “Like the Conibo, the Piro were great warriors and pirates, navigating in large flotillas of canoes
along the Urubamba, Tambo and Ucayali, to trade with or steal from their Panoan and Arawakan inhabitants.
They took war captives and lived in big riverine settlements under the rule of influential war-trading leaders.
According to at least one source, Piro warriors drank the blood and ate the flesh of enemies killed in war...”
(Santos-Granero 2002, 32; ver também Gow 2002 para a relação entre os Piro e seus vizinhos). De uma
perspectiva Kanamari, os Piro seriam provavelmente muito similares aos Dyapa e, então, a dissolução desse
‘modo de vidaapareceria (para os Kanamari) como desejável. Ninguém, diriam eles, pode fazer parentesco
desse jeito.
260
Nem tampouco os Piro, para ser preciso, que em o reconhecimento legal da comunidad nativa como uma
defesa contra a exploração (Gow 1991, 205-28). Mas ‘esses tempos’ implicam um maior grau de autonomia
em relação aos brancos do que o ‘Tempo da Funai’ para os Kanamari.
292
razões para sugerir, entretanto, que eles talvez não queiram nunca separar-se da
Funai e viver em uma época equivalente ao ‘esses tempos’ dos Piro. De fato, os Kanamari
freqüentemente me confiavam seu medo de que a Funai terminasse, e a simples ausência
do chefe de posto da Funai do Itaquaí, por qualquer razão, é o suficiente para que eles
comecem a se desesperar. Em duas ocasiões, uma missão foi enviada à cidade de Atalaia do
Norte para tentar pressioná-lo a retornar ao Itaquaí. Eles o estão, pois, interessados em
ver o ‘Tempo da Funai’ dar lugar a alguma outra coisa. Por ora, pelo menos, sua existência
depende dos brancos e é importante considerar mais profundamente esse ponto.
A Disseminação de Tamakori e Kirak
Antes de lidar especificamente com o tema dos brancos, é necessário considerar o
que aconteceu com Tamakori e Kirak. A Viagem, tal qual eu a ouvi, não diz nada sobre
seus destinos finais. um consenso geral que Tamakori partiu rio abaixo para além de
Manaus, onde ele finalmente se instalou no ‘Outro u’ (Okodoh), além do Céu Interior
(Kodoh Naki) onde vivem os Kohana. Kirak, dizem alguns, permaneceu neste mundo,
assumindo alguns de seus aspectos danosos que ele ajudou a revelar. Tais destinos estão
articulados dentro de um sistema de classificação de tudo no mundo através dos dois
heróis. Os Kanamari freqüentemente dirão de algo, alguém ou, mais normalmente, de
alguma ação ou comportamento que eles são Tamakori nahan (‘de tipo Tamakori’) ou
Kirak nahan’ (‘de tipo Kirak’). Também pode ser dito que algo ‘é de’ um dos dois heróis.
Este modo de distinguir comportamentos e coisas através de dois heróis forma um
esquema simples e não-elaborado para dar sentido ao mundo por meio da Viagem. Em tal
esquema, Tamakori está vinculado ao destino post-mortem da alma, o eterno e a
permanência; Kirak, por outro lado, está vinculado com a perecibilidade, mortalidade e
coisas ou atos danosos. Devo ressaltar que essas associações não formam um conjunto
coerente, nem são imutáveis. Coisas e seres que são classificados como ‘de tipo Kirak’ em
certas ocasiões podem ser classificadas como ‘de tipo Tamakori’ em outras e vice-versa. O
sistema parece existir em abstrato, quase como uma maneira abreviada de classificar
aspectos do mundo em certos pontos, e qualquer tentativa de enquadrá-lo em uma lógica
fechada era contrariada pelos Kanamari, que freqüentemente insistiam, contra minha
persistência, que era impossível dividir consistentemente o mundo em ‘Tamakori’ e ‘Kirak’.
Essa classificação, no entanto, remete-nos de volta à Viagem, e às características de cada
personagem. Antes de deixar isso explícito, no entanto, é válido fazer um leve desvio
comparativo.
293
Um sistema frouxamente estruturado de classificação de pessoas e do mundo em
partes eternas e perecíveis é comum na Amazônia, particularmente entre os grupos de
língua Pano. Os Kaxinawá, por exemplo, mantêm “...um contraste conceitual entre a o-
permanência corpórea e a permanência não-corpórea, entre eternidade não-corporal e
transitividade corporal” (McCallum 2001, 26). Lagrou segue mostrando a relação desses
princípios com as duas metades Kaxinawá. A metade dua (Brilho) é ligada à ancestralidade
yube (lua) e também a ‘maciez e maleabilidade, a potencialidades da forma assim como tudo
aquilo que é perecível’, enquanto que a metade inu (Jaguar) é ligada ao Inka (sol), mestre do
céu, dono do ouro, das miçangas, do metal, do fogo, da rocha, do gelo, “...aquilo que
sustenta a qualidade de dureza e o que é imperecível” (Lagrou 1998, 130).
Ainda que essas distinções permaneçam conceituais, na vida as pessoas estão
imersas em um universo onde se tornam interdependentes, dependendo da necessidade de
mistura constante (Lagrou 1998, 148). A alma de uma pessoa, o yuxin do olho’, é ligada à
metade inu e ao Inka, e é o que vida ao corpo. Os ossos, também, que dão estrutura ao
corpo, são associados ao Inka (ibid., 141). O sangue e a pele, porém, são ligados ao
domínio do Yube. Ao mesmo tempo, o corpo é curado e ganha agência através de remédios
que também estão associados a esse dualismo, o remédio doce’ (dau bata) do jaguar e o
‘remédio amargo’ (dau muka) do Yube. Os modos pelos quais agem no corpo, no entanto,
invertem os princípios que os compõem:
“o medicamento amargo de Yube cura os ‘olhos’ e as doenças espirituais associadas aos olhos
(pesadelos, a freqüente vizualização de yuxin etc.), enquanto o medicamento doce cura doenças
da pele, causadas por uma variedade de picadas de insetos (veículos da atividade de yuxin e do
veneno), infestação de vermes, picada de cobra e doenças ligadas ao domínio de Yube. O
medicamento doce, inu, é ligado à pele, intestinos e ao yuxin do corpo, e é ‘feito’ da matéria de
Yube, enquanto o medicamento amargo, dua, está associado ao olho e ao seu yuxin, ‘feito’ da
matéria do Inka” (Lagrou 1998, 146).
Os Yaminawa, por sua vez, postulam um esquema tripartite que torna congruentes
os componentes da pessoa e da sociedade: o corpo (yora) é ligado à consangüinidade ‘de
carne e osso’ que origem aos aparentados bi-laterais (chamados de ‘corpo’); a
consciência e a volição (diawaka) estão relacionadas aos nomes e às relações de homonímia
que fornecem aos Yaminawatidas identidades sociais e de parentesco; e a essência eterna
ou princípio vital (wëreyoshi) se relaciona ao seu sistema de metades que organiza “a grande
classificação dual social e cósmica com base nas idéias sobre as características eternas dos
espíritos e os modos pelos quais esses são passados patrilinearmente aos humanos”
294
(Townsley 1988, 123). Embora esses princípios sirvam como modelos conceituais para
organizar a sociedade e o mundo, eles o são analiticamente precisos (Townsley 1988,
120). Parte da razão para isso é que tais princípios, particularmente aqueles que relacionam
o princípio vital ao corpo, estão interpenetrados na composição da pessoa, que por sua vez
é introduzida numa paisagem composta por outras subjetividades:
“In life, the body – yora is suffused with spirit. For instance, witchcraft, the destruction of a
person’s wëreyoshi, uses any bodily product urine, vomit, blood, faeces, hair or nails as a
token of that person’s spirit and through these has impact on the wëreyoshi. Equally, the
rationale for food prohibitions lies in the assumed presence of an animal’s yoshi, its essential
characteristics in its flesh. Thus to eat its flesh when in a vulnerable condition caused by
proximity to birth or death is to expose oneself to the effects of its yoshi. [...] Flesh is always a
potential vehicle for spirit and spirit powers. Although thought to be inextricably intermingled
in reality, they are clearly distinguished conceptually, as yora and wëreyoshi. [...] One could say
that all ritual action is aimed at regulating this highly ambiguous and problematic relation
between spirit and flesh, in the different ways appropriate to different situations” (Townsley
1988, 122).
A classificação Kanamari não está predicada sobre categorias amplas, mas antes
sobre certos princípios revelados na Viagem. ‘Tamakori’ e ‘Kirak’ não são ‘coisas’, mas
certos modos de comportamento e ação. Nesse sentido, o esquema Kanamari é diferente
ao dos Pano em alguns pontos. Primeiro, ele não é ligado a um sistema dual abrangente,
como aquele das metades Kaxinawá e Yaminawa. Os Kanamari não mostram interesse, por
exemplo, na classificação das espécies animais nessa linha de maneira sistemática, como
fazem os Kaxinawá (Lagrou 1998, 147). O que lhes concerne é que para algo, alguém ou
um grupo de pessoas ser ‘de tipo Tamakori’ eles devem agir de forma moderada,
instanciando relações adequadas; enquanto ser ‘de tipo Kiraké agir com impetuosidade,
falhar em prestar atenção a um bom conselho e transformar relações apropriadas em
relações impróprias.
Por essa razão, os Kanamari se consideram regularmente como sendo ‘gente de
Tamakori’ enquanto os Kulina são ‘gente de Kirak’. boas razões míticas para tanto: se
nos lembramos do capítulo quatro, os Kanamari foram criados de sementes de jaci que
foram amparadas nas costas de Tamakori, ao passo que os Kulina emergiram de sementes
de karahtyi que Kirak deixou cair, e que se espalharam pela terra. Os Kulina são ditos ser
‘gente de Kirak’ porque são traiçoeiros, dispostos a ‘inimizar’ (todiok) os Kanamari e
enfeitiçá-los. Mas em outros contextos, é perfeitamente possível utilizar a mesma dicotomia
295
para enfatizar diferenças internas aos Kanamari. No Itaquaí, por exemplo, eu ouvi
freqüentemente pessoas dizendo que aqueles de certa aldeia eram ‘gente de Tamakori’,
enquanto que os habitantes avarentos e inconstantes de uma outra aldeia eram ‘gente de
Kirak’. Um homem chegou mesmo a usar a oposição para explicar porque sua aldeia tinha
menos mosquitos do que outras: Tamakori tinha peidado sobre suas aldeias, enquanto que
sobre as outras foi Kirak quem peidou. Logo, a oposição parece se referir mais a um modo
de marcar a distinção entre ‘mesmo’ e ‘outro’, assumindo os aspectos positivos e
apropriados para si e reservando os aspectos imoderados para outros.
Dito isso, certas coisas são certamente vistas como sendo mais de tipo-Kirak do
que outras. Arraias e poraquês, como podemos inferir da Viagem, são seres associados a
Kirak, posto que seu meio primário de interação com os Kanamari é feri-los. Lagartos são
chamados de kadyohkirak em Kanamari, que significa ‘jacaré-Kirak’
261
. Aranhas (botyan) e
cobras venenosas (hihpan) são também relacionadas a Kirak, como também certas partes do
corpo, particularmente aquelas que parecem estragadas ou denotam uma qualidade
escamosa. A palavra para ‘caspa’, por exemplo, é kirak’, e uma despigmentação da pele é
também chamada por esse termo. As unhas das mãos e dos pés são chamadas ba-kom-kirak
e ih-kom-kirak respectivamente, significando ‘dedos da mão-kirak’ e ‘dedos do pé-kirak’.
Estas são algumas das partes corporais de Kirak que foram trazidas de volta por Tamakori
no episódio 18 da Viagem, e as quais ele ‘juntou’ para reviver Kirak
262
.
Mas seria uma descaracterização grosseira do esquema conceitual Kanamari dizer
que ‘a alma’ está ligada a Tamakori enquanto ‘o corpo’ está ligado a Kirak porque a alma é
eterna e o corpo perece. Ao que parece, trata-se do oposto: corpos (-warah) vivos e
saudáveis, compostos de alma (ikonanim) e carne (-hai) estão ligados a Tamakori, ao passo
que almas incorpóreas estão ligadas a Kirak. A razão para isto é que o corpo, como todo
warah, oferece estabilidade, desta vez para a alma, que é de outro modo nômade. Logo, ele
permite à alma entrar em relações humanas e próprias de parentesco. Desencorporadas, as
almas vagam, anexando-se a corpos vivos. Isto é parte de um princípio geral Kanamari que
acompanhamos na Parte I, no qual a perda de um corpo/dono implica um estado de
‘insanidade’ (parok) e faz com que a entidade incorpórea se mova na direção de outros
corpos. Tal processo, no entanto, é longe de inócuo, e faz com que os corpos vivos
261
Isso pode ser explicado pelo episódio 18 da Viagem, em que Tamakori manda lagartos (kadyohkirak) para
recuperar os ossos de seu irmão. Voltarei a esse ponto brevemente.
262
Assim como seus ossos. Ossos são chamados de am padya, que literalmente significa ‘está vazio’. Eu não
sei se os ossos estão ligados a Kirak. Entre os Kaxinawá eles são relacionados à permanência’, como vimos
acima, e parece, pois, estar mais próximo à sociabilidade ‘apropriada’ de Tamakori do que à escamosa
impermanência de Kirak.
296
cresçam doentes, decaiam e, se não tratados, pereçam. Logo, ‘almas sem corpos’ estão
relacionadas a Kirak, enquanto os corpos vivos estão ligados a Tamakori. Almas sem corpo
são ‘de tipo Kirak’ porque elas causam dano, mesmo que não intencionalmente, ao passo
que corpos vivos são ‘de tipo Tamakori’, capazes de entrar em relações não-predatórias
com outros
263
.
De fato, parece que ser ‘de tipo Tamakori’ é cumprir os trabalhos próprios de um
subgrupo, se relacionar através de um ‘corpo/dono’. Além disso, é também manter
relações polidas de tipo –tawari com os outros, como fez Tamakori com Kanamaronho,
Maria/Galinha e Hohdom. Ser de tipo Kirak’, por outro lado, é se comportar com a
despropositada obstinação que lhe é típica, ao se relacionar com aqueles mesmos
personagens. O episódio 10, concernente ao ser híbrido taboca imprestável/criança
imprestável
264
, serve como bom exemplo da diferença entre esses modos de
comportamento. Aqui, Kirak se recusou a ouvir seu irmão ou ficar satisfeito com o sucesso
de Tamakori. Tamakori é capaz de usar seu sopro mágico para trazer a única taboca
madura até ele, ao passo que Kirak marcha na direção das tabocas, se apossando delas, o
que faz com elas se revelem como uma criança imprestável que agarra os testículos de
Kirak e os esmagam. Finalmente, Kirak age com ansiedade e ganância, tentando se apossar
de tabocas não-maduras que não servem para nada. O contraste entre essas duas formas de
comportamento é a diferença entre relações que são conducentes ao e típicas do
parentesco e aquelas que não são. Trata-se, pois, da mesma diferença que aquela entre os
dois princípios que compõem o mundo Kanamari: as relações estáveis do –warah e as
relações predatórias, ambas as quais contidas no onipresente Jaguar mítico.
Não deveria, pois, ser surpresa que a morte e a periodicidade da vida estejam ligadas
a Kirak. Se ele está associado a almas sem corpos’, ele também está ligado a ‘corpos sem
alma’, ou cadáveres (boroh). A razão para isso, os Kanamari deixam claro, é que foi a
inabilidade de Kirak em reviver a si próprio que levou a perda da imortalidade aos
humanos. Este tema é sugerido no episódio 18, mas aqui Tamakori traz Kirak de volta à
vida. Parece ser um daqueles casos em que a Viagem deixa que um tema permaneça não
desenvolvido, ou implicado, e uma comparação com um outro mito pode nos ajudar a
entendê-lo. Este é o mito Kanamari da ‘origem da mortalidadeque se sustenta na relação
263
A ênfase aqui deve ser em ‘almas desencorporadas’ sendo ‘de tipo Kirak’. O estágio final do ritual
mortuário torna essas almas nômades em corpos Kohana, feitos de buriti, que existem no Céu Interior e que
são, pois, ‘de tipo Tamakori’. Discutirei isso no capítulo sete.
264
Ambos os seres são classificados como Adyaba’, que vimos no capítulo dois ser o nome de um ‘espírito
imprestável’. O que eu traduzo como ‘taboca imprestável’ é duruku’am-mam-dyaba. A ‘criança imprestável’ é
opatyn adyaba, um conceito que será mais bem analisado no capítulo seis, no qual eu retorno a esse episódio.
297
entre os dois irmãos. Nesse mito, Tamakori morre e Kirak o enterra. Tamakori, no entanto,
revive a si próprio ‘pela oração’. Kirak pergunta onde ele estava e Tamakori responde que
estava apenas dormindo. Kirak não acredita, e então seu irmão diz que irá fazer o mesmo
com ele. Tudo que Kirak precisa fazer é igualmente ‘orar’ a si próprio de volta à vida, e
assim eles voltariam a se reunir. Tamakori mata Kirak e o enterra, e espera que Kirak
retorne. Kirak nunca retornou, ele apenas morreu e foi para o céu. Por causa disso, quando
agora nós morremos, não mais retornamos à vida (Reesink 1993, 609; 331-3)
265
. Este
mitema guarda um paralelo com a saga Tupi-Guarani dos gêmeos, da qual a Viagem é uma
transformação. Nesse mito, os dois garotos m a mesma mãe, mas diferentes pais, um
sendo o filho de Maíra, o grande xamã, o outro do Gambá, o signo da morte e da
decomposição. Sua mãe morre, e o filho de Maíra tenta ressuscitá-la, mas é distraído por
seu irmão, fazendo o processo falhar, e assegurando que dali em diante todos morrerão
(ver Fausto 2002).
Para os Parakanã, a narrativa concernente à origem dos brancos é uma
transformação deste episódio. Este povo afirma que:
“the white-to-be dances around his mother’s grave, while blowing the smoke of his cigar. He
raises the skeleton and dances with it. The boy’s grandmother, however, disturbs him and the
revivified dead escapes to the forest as a big rodent. Later on, having become a full white, he
brings his mother back and takes his new kin out of the earth” (Fausto 2002, 672-3).
Resta-nos discutir as reverberações de Tamakori e Kirak dentro daqueles episódios
da Viagem que dizem respeito aos brancos.
Os Tesouros dos Brancos
Qualquer americanista diante da minha análise da criação dos brancos em Manaus
certamente terá notado a aparente ausência de um tema comum a essas narrativas em
outras sociedades: a questão dos ‘tesouros dos brancos’. Vimos no resumo de Lévi-Strauss
do mito de Auké que, após ter sido incendiado, o herói emerge das chamas na posse
desses tesouros. No mito Wari’, a gradual distância estabelecida entre a gente de Oropixi e
aqueles que ficaram para trás é expressa no fato de que a gente de Oropixi veio
gradualmente a usar as roupas dos brancos e adquirir rifles. Este tema é espalhado pela
265
Eu ouvi esse mito Kanamari sobre ‘a perda da imortalidade’ no campo, mas eu nunca o gravei. A versão
que estou sumarizando é, portanto, aquela de Reesink (1993, 609).
298
Amazônia: o gradual distanciamento entre pessoas ou irmãos é indexada pela aquisição de
bens ocidentais por parte daqueles que irão se tornar brancos, um ato que pode ocorrer
depois ou antes do distanciamento, mas que garante a quem quer que os adquira virar
branco. A aquisição dos tesouros dos brancos é freqüentemente delimitada por uma
escolha fatídica que torna aquele a ter escolhido os tesouros mais poderoso do que aquele
que os recusou. Num exemplo famoso, aqueles que escolhem o rifle se tornam brancos,
enquanto aqueles que escolhem o arco permaneceram Ameríndios (Hugh-Jones 1988).
Além disso, tais mitos estão freqüentemente encaixados naqueles que contam como os
homens perderam sua imortalidade (Viveiros de Castro 2000b).
Uma leitura mais cuidadosa da Viagem, no entanto, revela que nem os tesouros dos
brancos nem a escolha fatídica estão totalmente ausentes do mito. No episódio 13, os
brancos que emergem do quarto da casa estão bebendo café, e Maria/Galinha no episódio
8 o oferece a Tamakori e Kirak, como faz o jacamim no episódio 17. Nos últimos dois
casos, o café é algo repugnante, fezes misturadas com água, que vimos, na análise do
episódio 8, ser um corolário dos tipos de relação que os brancos estabelecem com seus
‘xerimbabos’. O café é, pois, a versão dos brancos da caiçúma dos Kanamari: é a única
caiçúma que as pessoas que misturam relações de predação com relações de alimentação
podem produzir. Mas parece haver um aspecto positivo em beber café. Quando
Maria/Galinha oferece café a Tamakori, ele aceita, bebe e a deixa. Quando seu irmão vai
bebê-lo, ele é atacado por Maria/Galinha e cai no rio. Quando o jacamim oferece café a
Tamakori, mais uma vez suas fezes misturadas com água, Tamakori aceita e está, portanto,
apto a derrotar os Dyapa. Kirak, no entanto, fica enojado com o café e o recusa, ainda que
o jacamim o alerte: “se você não beber o café aqui, quando você alcançar os Dyapa eles irão
acertá-lo com suas flechas”. E, claro, os Dyapa não apenas atacam Kirak como o matam.
Nos mitos que envolvem a aquisição dos tesouros do branco, e que os ligam à
oposição mortalidade/imortalidade, aqueles que aceitam as dádivas geralmente se tornam
brancos e permanecem imortais, enquanto aqueles que as recusam permanecem
Ameríndios e se tornam mortais. Vimos que, em um nível, Hohdom nunca deixou de ser
tukuna mesmo sendo um Mestre dos Brancos’; o fato de ele ser tukuna me incitou a sugerir
que ele representava uma Kanamaridade residual para os próprios brancos. Mas não é
Hohdom quem aceita a dádiva de café, é Tamakori. Tamakori, acabamos de ver, é
vagamente associado aos Kanamari, de quem ele parece ser uma espécie de per–warah, o
princípio ético sobre o qual seus corpos e a estrutura de seus subgrupos repousam. Mas,
aceitando a dádiva, ele também vira branco? Seria Tamakori parte de uma certa
299
‘branquidade’ dos Kanamari, desta vez talvez não residual, mas suplementar? E, ao mesmo
tempo, os Kanamari seriam, em relação aos brancos, ‘de tipo Kirak’? Para responder essas
questões, devemos novamente extrair certas implicações da Viagem e relacioná-las à
história dos Kanamari.
A Viagem, na medida em que estabelece os limites e a forma do mundo Kanamari,
é curiosa por colocar os brancos desde o início. De fato, o episódio 13, em Manaus, parece
ser o pináculo da narrativa, seu pivô, à medida que explica o mundo explicando como os
brancos vieram a estar nele. Esta é uma lição crucial do mito. Vimos que os brancos, na
virada do ‘Tempo de Tamakori’ para o ‘Tempo da Borracha’, eram classificados e re-
classificados como diferentes categorias de alteridade, indexados através de relações de
afinidade potencial (Viveiros de Castro 1993). A Viagem revela como, desde o início, eles
eram –tawari para os Kanamari, e explica porque Jarado, o primeiro branco, pode ter sido
recebido enquanto tal. Esses brancos primevos, que participavam da economia de
aviamento baseada na distribuição da mercadoria vinda de Manaus, subindo o Juruá aos
barracões e daí para os patrões da borracha e seringueiros, eram ‘de tipo Tamakori’, se
organizando através de uma estrutura fractal que era congruente ao princípio de
organização –warah. Os feitos de Kirak em Manaus são inexistentes e ele nem mesmo é
nomeado diretamente no episódio. O narrador menciona Tamakori, o caçador-
lobisomen, Hohdom e a gente-queixada. Kirak pode estar implícito, e ser referido
indiretamente, mas esses primeiros brancos não eram sua gente.
Com o influxo dos brancos, e sua propensão para a violência e habilidade para
desafiar o modelo que articulava o –warah ao –tawari, eles vieram a ser re-classificados
como Adyaba, ‘espíritos imprestáveis’, durante o ‘Tempo da Borracha’. Tal característica
potencial dos brancos está também contida nos mitos, no episódio envolvendo
Maria/Galinha e o helicóptero/açaizeiro Parian, onde ela prefigura sua criação em Manaus:
a primeira revelando sua obscura maneira de se relacionar uns com os outros, e o segundo
sua ciência xamânica. Diferentemente dos eventos em Manaus, nestes episódios o papel de
Kirak é crucial. Ele parece ser incapaz de interagir com Maria/Galinha, ou notar sua
ambivalência. Quando ele vai até ela, ela age apenas como Galinha, fazendo com que ele
caia no rio. No episódio do helicóptero/açaizeiro, é somente Tamakori quem vê essa
multiplicidade; quando Kirak dá um passeio, ela é dita apenas ser um helicóptero. A
reclassificação dos brancos na virada de um tempo histórico ao outro parece ter feito os
brancos passarem de ser ‘de tipo Tamakori’ a ser ‘de tipo Kirak’, pois vimos acima que
esses modos ‘imprestáveis’ de comportamento são uma característica do irmão de
300
Tamakori. De fato, a relação entre Kirak e o Adyaba é também deixada explícita no
episódio 10, onde seu desejo por tabocas imprestáveis revela a criança imprestável. Reesink
(1993, 60) também registra que, entre os Kanamari do Jutaí, a distinção entre a ‘gente de
Tamakori’ e a ‘gente de Adyabaparece desempenhar uma função similar àquela entre ‘de
tipo Tamakori’ e ‘de tipo Kirak’ no Itaquaí.
É curioso, no entanto, que a classificação dos brancos como Adyaba de tipo Kirak
não contra-ponha os Kanamari como de tipo Tamakori. Se houve um estágio em sua
história em que eles próprios eram de tipo Kirak, ele era justamente este: o tecido inteiro de
sua sociedade foi dissolvido pelos brancos, o modelo fractal do subgrupo se encerrou e as
aldeias foram minguando. Se os brancos eram Adyaba, eles estavam atraindo os Kanamari
para essa Adyaba-nidade junto com eles.
Mas no Tempo da Funai’, Sabá instala uma outra relação entre os brancos e os
Kanamari. Agora esses novos brancos são eles próprios –warah, e são –warah incrivelmente
poderosos. Tal mudança classificatória deve ter sido uma grande transformação para os
Kanamari, porque não mais situava os brancos em categorias de afinidade potencial, mas,
antes, fez deles as precondições para a criação do parentesco nas aldeias Kanamari.
Retornarei a isso brevemente, mas devemos primeiro perguntar: o que, na Viagem, sugere
esse potencial dos brancos, a habilidade para se tornar esse tipo de –warah, ‘Mestres dos
Kanamari’?
um outro episódio no qual os brancos estão implicados, aquele do jacamim
(Psophia leucoptera), que oferece café aos dois irmãos (17). As conexões entre esse episódio
do mito e os brancos me escaparam durante o campo. Eu estava provavelmente tão
aturdido com a riqueza da Viagem, que eu não achei peculiar que o jacamim (sipo em
Kanamari) pudesse ter café a oferecer. Mas está claro que o jacamim está ligado aos
brancos, e não apenas porque ele dispensa café. Uma nota de campo minha diz que um
homem Kanamari me explicou que o jacamim era uma galinha de caça’ (takara obara), e
que era como uma galinha, mas selvagem, do ‘corpo-floresta’ (ityonim-warah). O jacamim,
como sugere seu nome em inglês (‘trumpeter’), é conhecido por seus gritos altos, que
recordam talvez o modo ruidoso de falar de Maria/Galinha, e dos brancos em geral.
Segundo Mendes et alli (2002, 522), os seringueiros locais e os Kaxinawá que, como os
Kanamari, mantém o jacamim como um xerimbabo, dizem que “na mata o jacamin é
‘brabo’ e foge das pessoas, mas muitos seringueiros e Kaxinawá o criam no terreiro: ele não
fica manso, como passa a defender galinhas e patos e domina a criação”. Logo, pode
não ser disparatado sugerir, mesmo que tentativamente, que o jacamim é o equivalente
301
selvagem de um dos animais de caça dos brancos; uma variante ‘corpo-floresta’ de seus
xerimbabos. E, mais do que isso, o mestre deles, como o é Maria.
Uma das características de Tamakori é que ele o fica impressionado ou com nojo
de nada que os brancos tenham ou lhe ofereçam, ao passo que seu irmão é completamente
inepto ao lidar com os brancos. Tamakori é capaz de pilotar o açaizeiro/helicóptero e ele
bebe o café/fezes que Maria/Galinha a ele. Kirak falha em pilotar o
açaizeiro/helicóptero e nunca se dispõe a beber o café/fezes. Mais importante, Tamakori
aceita o café que o jacamim oferece e torna-se, portanto, capaz de derrotar os Dyapa.
Tamkori o está nem um pouco preocupado que tal café seja fezes misturadas com água;
de fato, ele parece sequer se dar conta disso. O narrador diz-me a mim, a única pessoa a
ouvir, que o café é fezes misturadas com água’, para que eu posso sabê-lo, mas Tamakori
mesmo não faz nenhuma menção a isso. Kirak, no entanto, como o narrador (e ao
contrário de mim e Tamakori) o café como fezes e não o bebe. O mito, pois, faz uma
clara correlação entre os Kanamari e Kirak, que vêem o café como fezes de pássaro, e
Tamakori e os brancos, que vêem fezes de pássaro como café. Ao beber o café, Tamakori
não é prejudicado pelos brancos, do mesmo jeito que a Funai é capaz de trazer os Dyapa a
uma submissão administrativa. Ao recusar as fezes de pássaro, Kirak, tal qual os Kanamari,
é uma vítima da violência dos Dyapa.
Podemos, pois, sugerir que a Viagem também prefigura a relação de tipo –warah
entre os Kanamari e os brancos que é instanciada no Tempo da Funai’. Ela assim o faz
fazendo com que os Kanamari permaneçam ‘Kirak’, enquanto Tamakori se torna, ao
menos parcialmente, congruente aos brancos. Como dizem alguns, ele foi visto por último
se dirigindo rio abaixo além de Manaus, e um Kanamari, que estava aprendendo a história
da colonização Européia das Américas, me disse que Tamakori cruzou o oceano e foi para
a Europa
266
.
Esse tipo de relação, no entanto, é diferente daquela do –tawari ou do Adyaba
porque já não mais ocorre numa tangente ao parentesco. O –warah é, em vez, o vetor para a
criação dos laços de parentesco, e sua relação com os componentes de seu corpo é
assimétrica: é o um que supervisiona seus muitos. Isso estabelece os brancos/Funai como
‘Tamakori’ em relação ao ‘Kirak’ dos Kanamari, fazendo os dois formarem uma espécie de
todo. Entretanto, agora que as relações não são mais simétricas, mas que formam em vez
266
Tastevin (n.d.3, 27-8) observa que: ‘Baway, l’homme-médecine des Wiri-dyapa [Peccary-dyapa] est allez au
ciel plus d’une fois. Il y avait parlé avec le père celeste [Tamakori, segundo Tastevin] que parle comme les
Cariyá [whites]’. Além disso, o ‘pai celestial, vestido como um homem branco, oferece a Baway carne de
porco e galinha, e café.
302
disso a precondição de um novo tipo de parentesco a ser alcançado, os brancos, enquanto
chefes, são capazes de arrastar os Kanamari em sua Tamakorinidade.
Não se trata tanto, pois, do fato de que Tamakori esteja associado aos brancos,
mas, antes, do fato de que tanto os brancos quanto os Kanamari podem ser ‘de tipo
Tamakori’, estabelecendo modos de relação que os encompassem. Além disso, isso ocorre
novamente em um contexto que postula uma equivalência entre os Kanamari e os brancos,
como o fez em tempos antigos, mas o faz em um movimento que eleva o caos do Tempo
da Borracha: os Kanamari estão tornando a si próprios um povo que é ‘de tipo Tamakori’
porque os brancos são também agora de tipo Tamakori’. Os Kanamari precisam dos
brancos para conseguir isso porque eles mesmos eram ‘de tipo Kirak’ antes da chegada de
Sabá. Isso está claro no episódio 17, que mostra a disparidade entre os dois tornando os
Kanamari em Kirak e os brancos em Tamakori. Este episódio, e suas associações,
codificam o momento da chegada de Sabá, expressando a oposição complementar entre
eles. A história, no entanto, redimiu os Kanamari, que podem agora, via esses brancos,
novamente se tornar ‘de tipo Tamakori’. Isto implica, é claro, um tipo diferente de
equivalência: se no ‘Tempo da Borracha’ eles eram simetricamente equivalentes, e os
Kanamari estavam virando branco quase que por carência, através de formas predatórias e
imprestáveis que os des-relacionavam a eles próprios e aos brancos, sua equivalência é
agora, no ‘Tempo da Funai’, fractal. Eles estão virando brancos ao situar esses últimos
como seus patrões, e, logo, o fazem através de relações estáveis e seguras.
Isto talvez explique porque os Kanamari não avaliem toda sua história de forma tão
positiva quanto fazem os Piro (ver também Carvalho 2002, 63). Não é uma narrativa de um
movimento contínuo de transformar todos em parentes, nem tampouco ‘transformar todos
em parentes’ é o que eles procuram fazer. Os Kanamari estabelecem algumas pessoas como
parentes mantendo o senso de escala. Deve-se recordar que a história que eles narram
foi possível por causa de duas coincidências: a morte de certos chefes na década de 1950 e
a chegada de Saquando eles estavam sem chefe. Os brancos sempre tiveram modos
fractais de relação, mesmo os patrões da borracha com seu sistema hierárquico de
aviamento, mas na medida em que os Kanamari também tinham seus próprios subgrupos
fractais, os brancos podiam ser mais um tipo de –tawari. Quando os subgrupos Kanamari
foram desfeitos, tanto os Kanamari quanto os brancos se tornaram ambos imprestáveis’.
Com nenhum Kanamari para singularizar sua crescente multiplicidade e diversidade, a
posição estava disponível para Sabá se fazer chefe e, em sua esteira, fazer de outros
Kanamari caciques e tuxauas. Poroya sintetizou isto ricamente na sua narrativa da história
303
de Sabá. Quando este último lhe perguntou por que ele trabalhava para os brancos, ele
respondeu: “nós trabalhamos para os brancos porque nossos pais, os chefes, morreram
todos”. Com Sabá, tornou-se novamente possível re-instituir um chefe poderoso, uma
instanciação de Tamakori que pôde mais uma vez torná-los também ‘de tipo Tamakori’.
Tal informação pode ser aproximadamente resumida na tabela seguinte:
Tempo de Tamakori Tempo da Borracha Tempo da Funai
Classificação
dos brancos e
dos Kanamari
em relação
uns aos outros
-tawari adyaba -warah/‘minha
gente’ (atya tukuna)
Relação com
os brancos
Distância mínima, os
brancos são parceiros de
troca com uma estrutura
fractal equivalente aos
Kanamari.
Evitação. Os brancos
são violentos e
solapam o modo
Kanamari de relação.
Proximidade. Os
brancos são líderes
poderosos, que
‘alimentam’ os
Kanamari e
distribuem
mercadoria.
Movimento de
parentesco em
relação aos
brancos
Estável e simétrico. Os
Kanamari mantêm sua
hierarquia de parentesco
enquanto mantêm suas
relações com os brancos.
Negativo e instável.
Os Kanamari estão
virando brancos ao se
relacionar com eles de
maneiras
‘imprestáveis’.
Positiva e
assimétrica. Os
Kanamari estão
virando brancos e
no processo
virando Kanamari
novamente via a
estrutura fractal
que os brancos
lhes permitem.
Relação com a
Viagem
Os Kanamari são ‘de tipo
Tamakori’ e os brancos são
‘de tipo Tamakori’.
Os Kanamari e os
brancos são ‘de tipo
Kirak’.
Os Kanamari são
‘de tipo Kirak’ e
os brancos são ‘de
tipo Tamakori’.
Por meio dos
brancos, os
Kanamari
começam a
restabelecer a si
próprios como
‘de tipo Tamakori’
através de uma
sociabilidade
fractal que coloca
os brancos como
chefes.
Episódios da
Viagem nos
quais a relação
está
codificada
Episódio 13. Episódios 8, 9 e 10. Episódio 17.
304
Os brancos, em suma, eram –tawari para os Kanamari durante o ‘Tempo de
Tamakori’, e os Kanamari podiam continuar a se tornar parentes via relações simétricas
com os brancos. No ‘Tempo da Borracha’, os brancos se tornaram espíritos imprestáveis,
canibais e predadores, e os Kanamari, estando por acaso sem chefes, passaram por um
processo de devir-Adyaba com eles. Finalmente, hoje em dia, no ‘Tempo da Funai’, os
brancos são chefes warah em uma escala maciça e os Kanamari estão novamente em
condição de se fazer parentes, desta feita através de relações assimétricas com os brancos.
A Viagem, a origem da história, revela a virtualidade de todas estas relações.
305
Parte III:
Corpos Vivos
306
6
O Corpo/Dono
Na Parte II, perseguimos o movimento narrado pelo mito até a emanação da
história a partir dele. Mostramos como o mundo surgiu dos Jaguares míticos que o
situavam via relações de predação, bem como de que maneira os Kanamari desenvolveram
maneiras de manter separados estes dois aspectos de Jaguar, imbuindo a estabilidade de um
conteúdo positivo indexado pela relação –warah e cercando os aspectos predatórios dos
Jaguares. O mito da Viagem de Tamakori e Kirak narrou o modo pelo qual as contínuas
transformações do mundo foram detidas, extraindo o positivo a partir dos aspectos
ameaçadores das múltiplas ‘coisas’ (e vice-versa) e separando as pessoas ao longo do rio
Juruá. Finalmente, ele postulava os brancos como uma condição para esta história,
organizando-os em cidades e colocações de seringa, bem como prefigurando as maneiras
pelas quais os Kanamari iriam interagir com eles.
A parte três passará da investigação da instanciação e dissolução dos corpos
coletivos para o foco nos processos que constituem a pessoa (individual). O capítulo seis
investiga a criação da pessoa, explorando a ‘concepção’ e os cuidados que envolvem a
criança recém-nascida. Veremos que a criança é composta de uma alma ‘dada’ e de um
corpo incipiente que precisa ser desenvolvido (Taylor 1996, 205; Viveiros de Castro 2001).
Serão discutidos alguns dos perigos que a criança e, através dela, toda a aldeia enfrenta,
assim como a aquisição de carne de caça e sua influência sobre a criança. No capítulo
seguinte, discutirei o xamanismo e a morte, de modo que a construção e destruição de
corpos possam ser situadas no interior do mesmo problema com o qual lidávamos: a
relação entre formas estáveis e fluidas, expressas como comensalidade e predação.
Fazendo um Corpo a Partir da Alma
Para os Kanamari, os corpos vivos precisam ser feitos de uma matéria-alma
genérica. A maioria dos seres viventes é feita da mesma matéria-alma, e o processo do
parentesco humano deve, portanto, ser aquele de construir tal alma em um corpo humano,
produzido nas aldeias. O fato de a alma ser, no nascimento, excessivamente inespecífica
coloca uma série de problemas para os humanos, que devem assegurar-se de que, via uma
série de precauções, a alma ganhe a forma de um corpo humano (veja Vilaça 2002; 2005).
Parte do problema para os Kanamari é o de ser o corpo um continente imperfeito para a
307
alma, que está sempre inclinada a escapar dele. Isso é particularmente notável no
nascimento, mas também em muitos outros momentos da vida, como veremos.
Nesta seção, discutirei os processos que levam à construção de um corpo e o fazem
ser revelado para uma aldeia. Começarei por discutir algumas das particularidades da
relação entre a alma e o corpo, a fim de situar o que sigo discutindo. Vou então tratar do
processo de ‘fazer o feto’. Concluirei esta parte discutindo o ato do nascimento, de modo
que possamos nos aproximar das prescrições que o envolvem.
A Alma e o Corpo
Os Kanamari tem uma ‘alma’ (-ikonanim) e um corpo’ (-warah). Não estão muito
preocupados com a origem da alma e todas as questões sobre sua proveniência são
encaradas com perplexidade: “está aí”, ou então “foi Tamakori que colocou aí”. A
palavra –ikonanim provavelmente significa ‘olho grande’ (-iko nanim
267
). A despeito de tal
possibilidade semântica, não encontrei nenhum Kanamari que me dissesse que a alma está
no olho, ou que tenha alguma relação privilegiada com o órgão
268
.
A alma, de toda forma, possui uma relação estreita com o sangue (-mimi), que é sua
manifestação física. Dizer que a alma está ‘apenas aí’ é o mesmo que dizer que o sangue
está aí. Reesink (1193, 63-4) observa que “os Kanamari afirmam que uma criança recebe o
sangue, uma substância vital na concepção, tanto do pai quanto da mãe”. Não ouvi
nenhuma explicação similar acerca do que faz o sangue, tampouco qualquer opinião
referente a seu papel na concepção. “Está apenas aí”, diziam-me, “em nossas veias” (tyo-tyin
pru naki). Um homem, respondendo à minha questão mal formulada para ‘o que é o
sangue?’, disse-me que ‘ele é realmente a nossa alma’ (tyo-ikonanim nimbak). Trata-se,
portanto, de algo que está presente no nascimento, que possui implicações importantes
para o parto, particularmente no que concerne ao papel das restrições pós-parto, como
veremos em breve. Não sei se o ‘sangue novo’ (mimi aboawa) presente no recém-nascido
possui alguma relação privilegiada com os pais da criança, como propõe Reesink, mas
suspeito de que não, ao menos no que se refere a vincular a criança a seus pais através de
substância. Isso porque ‘a alma’ é o denominador comum de todos os seres vivos, e não
267
A palavra iko significa ‘olho’. No Itaquaí, a palavra nyanim é mais utilizada para significar ‘grande’ do que a
palavra nanim. Mas o Itaquaí é composto de pessoas oriundas de muitos sub-grupos distintos, que falam
dialetos levemente diferentes da ‘língua-gente’ (tukuna-koni). A palavra nanim é usada por algumas pessoas em
alguns contextos e quase sempre para descrever os ‘grande chefes’ do passado, que eram referidos como
tukuna nanim. O ino começo da palavra, vale sublinhar, não é o pronome de primeira pessoa singular. Para
dizer ‘meu olho’, diz-se ‘i-iko’ ‘minha alma’ é ‘i-ikonanim’.
268
Carvalho (2002, 290) notou a mesma falta de especificidade relativa à localização da alma no corpo.
308
diferença entre o sangue de uma criança recém-nascida e o sangue de, digamos, um animal
recém-nascido.
Uma vez que tudo o que podemos saber da alma de um corpo humano é que ela
“está simplesmente aí”, precisamos analisar aqueles contextos nos quais ela o está aí. A
morte dos humanos e dos animais liberta as suas almas e certas precauções precisam ser
tomadas, a fim de que ela não cause danos aos viventes. Para saber qual espécie de alma
está presente em uma aldeia, um homem adulto deve tomar uma infusão conhecida como
omamdak, ‘casca de árvore’, a fim de que possa ‘ver’ (-hik) e, assim, identificá-la. Discutirei
abaixo os métodos utilizados pelos Kanamari para se assegurar da origem de uma alma, de
modo que saibam, sem dúvidas, qual alma os aflige. De toda forma, antes que se conheçam
as especificidades da alma, isto é, antes que alguém tenha obtido e bebido a ‘casca de
árvore’, todas as almas são genericamente chamadas de ‘alma-gente’ (tukuna-ikonanim) (veja
também Carvalho 2002, 294). Isso porque ‘alma-gente’ é o estado-padrão de ‘alma’, a
especificação mais abrangente do termo ‘-ikonanim’. O último termo, assim como o termo -
warah, requer um pronome para ser nele afixado. Os Kanamari não dizem ‘a alma veio nos
ameaçar’: eles precisam especificá-la ainda mais e a maneira mais indefinida e abrangente de
fazê-lo é dizer ‘alma-gente veio nos ameaçar’ (tukuna-ikonanim n-a-ma-dyi adik).
Uma vez que se consumiu ‘casca de árvore’ e as pessoas sabem se a alma saiu de
um corpo humano ou animal, torna-se então possível avançar na especificação, dando a ela
uma forma relativa a seu ‘dono/corpo’ de origem. Se for sabido que uma alma específica é,
por exemplo, a alma de um ‘animal de caça’, pode-se chamá-la de bara-ikonanim’, ‘alma-
caça’. Se houver certeza de que se trata, digamos, de uma ‘alma-queixada’, então ela poderá
ser especificada como ‘alma-queixada’ (wiri-ikonanim). É possível amostrar que a ‘alma-
queixada’ em questão é a de uma certa queixada que alguém matou recentemente,
adicionando o prefixo relacional n-’, seguido do prefixo pronominal da terceira pessoa do
singular a-. Desta maneira, wiri-n-a-ikonanim significará algo como ‘a alma daquela queixada’,
uma vez que se conhece a queixada à qual se refere
269
. Não são apenas as almas-animais que
ameaçam os viventes. As almas das pessoas mortas podem também causar aflição, e por
várias razões. Estas almas são também genericamente chamadas de tukuna-ikonanim, ‘alma-
gente’, mas, de novo, uma vez que se sabe que a ‘alma-gente’ em questão é aquela de um
certo homem ou mulher, então o nome de tal pessoa pode ser especificado: X-n-a-
ikonanim’. A mesma regra se aplica para a alma de povos não falantes de línguas Katukina,
que podem ser chamadas de ‘alma-Dyapa(Dyapa-ikonanim), alma-branco’ (kariwa-ikonanim),
269
Veja Queixalós n.d. 1, 3, sobre o uso do prefixo relacional.
309
‘alma-Kulina’ (koru-ikonanim) e assim por diante, e também pelo nome de uma pessoa
específica conhecida.
Todas essas especificações da alma, que dependem da habilidade de vê-las’,
indicam a forma que a alma possui em seu estado corporal, anterior ao seu desagregamento
do corpo. Isso porque o corpo forma à alma. No nascimento, todos têm o mesmo
tukuna-ikonanim, e é o corpo, continuamente feito antes e depois do nascimento de um
bebê a partir da matéria-alma genérica, que faz a diferença entre as espécies. Se o sangue é a
manifestação física da alma, então, a mim não parece que, no nascimento, o sangue dos
humanos seja diferente do sangue dos animais
270
.
Não é apenas ‘forma’ que o corpo à alma, mas também afetos, memória e
desejo. É isso que permite uma alma retornar à aldeia, para que possa ver os viventes e
tentar interagir com eles. Isso significa que a alma, do nascimento à morte, atravessa dois
estágios distintos: é pré-social no nascimento, genérica, amorfa e não-relacionada aos vivos;
na morte, possui uma forma, ditada por aquilo que o seu corpo possuía e pelas memórias
do que foi feito a ele. O que jaz entre isso é o processo do parentesco.
Muito do que os Kanamari atribuem ao corpo, outros povos ameríndios atribuem a
uma alma. Para evidenciar isso, é útil, mais uma vez, comparar os Kanamari aos Kaxinawá,
seus vizinhos no Juruá. Os Kaxinawá, diferentemente dos Kanamari, possuem mais de uma
alma. As duas enumeradas mais consistentemente são a ‘alma olho’ (bedu yuxin),
frequentemente chamada de ‘alma verdadeira’ (yuxin kuin), e a ‘alma corpo’ (yuda yuxin)
271
. A
alma do olho é visível na pupila e tem uma origem (assim como um destino) celestial, ao
passo que a alma corpo cresce com o corpo e é visível como a sombra que o corpo produz.
desacordos acerca do destino desta última, que alguns Kaxinawá dizem que ela segue
a alma olho até o seu destino celestial, ao passo que outros dizem que ela permanece nesta
terra, tomando a forma de um monstro cabeludo (Lagrou 1998, 118; 113-6).
Mesmo que a alma do olho Kaxinawá se revele na pupila, sua presença é também
verificada pelos batimentos cardíacos: “o verdadeiro yuxin é como uma semente divina
(bedu) ou uma luz plantada no coração e visível nos olhos. A semente é o yuxin e o coração
270
Que, na Amazônia, a alma una e o corpo diferencie é atualmente uma proposição bem estabelecida
(Viveiros de Castro 1996; Vilaça 2005), tal como o é a relação entre sangue e alma, muito embora a ênfase
seja frequentemente colocada sobre o sangue da vítima de um homicídio (Viveiros de Castro 2002b; Vilaça
2006, 176-82). Tenho a impressão de que, para os Kanamari, o sangue não é um ‘veículo’ para a alma (Fausto
2001, 310; Lima 1995, 203), mas antes que ele é a alma ou o seu aspecto visível. O fato de que esta
alma/sangue seja comum a muitos seres vivos não significa, evidentemente, que a alma de um outro seja
segura. A presença do sangue exógeno é, veremos em breve, suficiente para que uma aldeia suspenda todas as
suas atividades.
271
desacordos entre os etnógrafos dos Kaxinawá com relação a quantas almas uma pessoa realmente
possui, mas parece haver um consenso geral de que, diferentemente de outras possibilidades, estas duas são
“as mais importantes” (Kensinger 1995, 232).
310
é seu invólucro, o que a nutre” (Lagrou 1998, 113). Enquanto o feto está sendo feito, esta
semente se enraíza progressivamente no coração, fazendo a criança crescer, ganhar peso e
força, criando ímpeto para fazer da criança um adulto. Mas esse entrelaçamento da alma do
olho com o coração não previne a primeira de abandonar o corpo em certas circunstâncias,
tal como no sonho, mas visões de ayahuasca e nos períodos de doença. A alma do corpo,
por outro lado, é um yuxin social de origem terrestre’, intimamente atada ao corpo. Com
ela, acumulam-se memórias, emoções e experiências e, tal como a sombra que é sua
projeção, ela é inseparável do corpo (ibid, 118).
O ikonanim Kanamari é muito similar à alma do olho Kaxinawá. Como disse, ela
não parece estar localizada no olho, mas também ela tem uma relação privilegiada com o
coração. Os Kanamari disseram-me que alma é sangue, e que é no coração (diwahkom) que
o sangue mora’ (to), muito embora ele se mova por nossas veias (-tyin pru)
272
. O coração é
às vezes dito ser o mesmo que a alma e, na morte, alguns Kanamari dizem que ele vai para
o Céu Interior.
273
Carvalho (2002, 289) disse que o coração Kanamari é um princípio vital
ou uma força. Esta parece-me ser uma boa caracterização, uma vez que ele bombeia
sangue/alma através do corpo. Para os Kanamari, assim como para os Kaxinawá, é o
sangue/alma que faz a pessoa crescer. O –ikonanim é também propenso a deixar o corpo
durante os mesmos estados em que a alma do olho Kaxinawá. Sonhos (tanei) são
momentos nos quais a alma deixa o corpo e, em alguns casos, chega mesmo a viajar para o
Céu Interior, onde encontra seus parentes mortos. As visões de ayahuasca e os períodos de
doença são momentos em que a alma perambula, visitando outras aldeias e vendo lugares
distantes. Qualquer sinal ominoso na aldeia, tal como a calma que antecede a uma
tempestade ou a chegada das friagens, podem ser considerados pelos Kanamari como um
indício de que almas estrangeiras estão presentes nas suas aldeias. o frequentemente
seguidos por conversações em que procuram identificar a alma. Em muitas destas,
sugeriam nomes de pessoas que eu sabia estarem ainda vivas. Quando eu os perguntava o
motivo, eles diziam que estar vivo não era garantia de que uma alma permanecesse detida a
um corpo. Poderia se tratar de um sinal de que a pessoa em questão estava doente, ou de
que andava bebendo ayahuasca.
272
Muitas sociedades ameríndias vêem o corpo como um ‘envelope’ ou um ‘continente’ da alma. A palavra
pirahã para ‘corpo’, por exemplo, significa literalmente ‘invólucro de sangue’ (Gonçalves 2003, 226), ao passo
que os Yagua o chamam de um ‘envelope’ (Chaumeil 2000, 88-9). O corpo Kanamari, em todas as suas
acpções, é claramente um continente, mas eu sugeriria que o corpo saudável é de alguma maneira feito contra
a matéria-alma, reduzindo a sua volatilidade.
273
Ainda que distingam entre o coração como um princípio e o coração que ‘apodrece aqui na terra’.
311
A palavra –ikonanim designa também uma imagem, incluindo a sombra que, para os
Kaxinawá, é associada à ‘alma do corpo’
274
. Uma fotografia o especificada, uma sombra,
um reflexo no espelho ou na água são simplesmente chamados de –ikonanim. De toda
forma, quando uma pessoa conhecida e identificada projeta esta imagem, ela não é mais
chamada pelo termo genérico –ikonanim, mas sim por –warah, ‘corpo’. Assim, ainda que
fotografias, por exemplo, sejam chamadas de –ikonanim, a fotografia de uma pessoa é
chamada de o corpo dele/dela’, possivelmente sendo ainda seguida pelo qualificador tam,
‘verdadeiro’. Quando vêem fotografias de pessoas, os Kanamari exclamam ‘é o corpo
verdadeiro dela’ (a-warah tam). Não deve surpreender que os Kanamari chamem as
‘imagens’ por um termo que também significa ‘alma’, na medida em que esta é uma
característica quase universal das línguas ameríndias ainda assim, eles insistem na
individualização da alma em casos concretos. A inabilidade em individuá-la faz com que ela
seja considerada como princípio genérico, desvinculada de um corpo que um dia a poderia
ter contido
275
.
Isso nos ajuda a entender como as próprias almas são particularizadas como ‘alma
de caça’ ou ‘alma de alguém’. Se alma e corpo são dados no nascimento, e se referem a uma
capacidade que não é restrita aos humanos, então o processo de fazer o corpo é o de
transformar esta alma/sangue em corpos específicos, feitos através de atos de parentesco
em aldeias para os humanos, ‘na floresta’ (ityonim naki) para os animais de caça. No
primeiro caso, isso envolve imbuir a alma de memórias e desejo, fazendo com que se
comporte pelos modos adequados, sendo ‘generosa’ (nihan tu), pacífica (nok tu) e bela (bak).
Para que isso seja conquistado, as almas precisam se estabilizar através de seu ‘dono’ (-
warah). A morte de seu dono liberta a alma, mas ela não é mais um princípio genérico, pois
se refere ao seu corpo. O mesmo vale para as ‘imagens’, que são identificadas ao corpo que
as projeta. Isso parece confirmar a observação de Fausto (no prelo, nota 22) de que a alma
é construída junto com a biografia de uma pessoa: “como uma virtualidade de existência
geral e indeterminada, a ‘alma’ é um dado, mas o seu destino é se tornar inextricavelmente
ligada ao que alguém se tornou durante a vida, através do embodiemnte de conhecimentos e
capacidades” (ver também Viveiros de Castro 2001).
274
Os desenhos geométricos dos Kanamari, assim como a escrita, são chamados de akanaro, mas os desenhos
de pessoas ou de espécies animais são chamados ikonanim.
275
Os Araweté parecem postular uma relação semelhante entre o ta’o we, o espectro, e ‘a pessoa’, hiro: “o que
define o ta’o we é o fato de ele ser uma coisa real, e não uma imagem (i). Hiro, tal como i?, possui um sentido
posicional. Uma pessoa vivente é um hiro por oposição a um espectro; um espectro é um hiro por oposição a
uma imagem i?; e uma imagem é um hiro por oposição àquilo que não possui nem forma nem causa, ao que é
subjetivo” (Viveiros de Castro 1992, 203). O corpo é um –warah em relação ao -ikonanim e–ikonanim
individuadas são –warah com relação ao ikonanim genérico. A questão para os Kanamari, de toda forma, é
que este –ikonanim genérico vem ocupar a forma do warah, que ele faz crescer.
312
A alma não é apenas a condição por default de todos os seres viventes, ela é
também aquilo que os une com as suas origens míticas. A ‘alma-gente’ genérica é o único
aspecto que os Kanamari de hoje partilham com o vago povo-animal anterior à viagem de
Tamakori. Apenas este fato é o suficiente para aproximar a alma Kanamari aos princípios
do Jaguar, cuja fragmentação nós acompanhamos nos capítulos precedentes. Tal como em
outras partes da Amazônia, a alma é “...o potencial para adotar um número indefinido de
formas” (Vilaça 2005, 453) e é precisamente a forma que o corpo toma que os Kanamari
consideram como sendo o resultado do processo de parentesco. Nunca me disseram
especificamente que a criança, quando é feita, ‘não é humana’ (tukuna tu). Esta expressão,
no entanto, teria pouco sentido em um contexto onde todos os seres vivos possuem ‘alma
de gente’. Se um nascimento impele os Piro a fazer a questão ‘é humano?’ sobre a criança
(Gow 1997, 47-8), a questão que ouço mais frequentemente entre os Kanamari é ‘será um
Adyaba?’, mostrando preocupação pelo possível nascimento de uma monstruosa criança-
espírito
276
. Curiosamente, tais questões eram quase sempre retóricas, permaneciam sem
resposta ou seguidas de um tenso silêncio. Tratava-se de matéria-alma e, ainda que
parecesse humana, não havia garantia de que o fosse, ao menos durante algum tempo.
O sangue, a manifestação física da alma, é importante neste processo de fazer o
corpo. Os Kanamari dizem que o sangue dos recém-nascidos (mimi aboawa, ‘sangue novo’)
é ‘não-maduro’ (parah tu) sendo, portanto, causa de grande preocupação, particularmente
porque ainda não foi individualizado. A idéia de almas não especificadas é perturbadora
para os Kanamari. Sangue/alma está sempre prestes a deixar o corpo em momentos
diversos, sendo particularmente perigoso quando esta alma não possui ainda conhecimento
e memórias. Pensa-se que os recém-nascidos são mais propensos a perder sangue, pois seus
corpos são incipientes e imperfeitos eles ainda são essencialmente seres de sangue. O
papel do ‘corpo/dono’ é o de estabilizar e frear esta mobilidade, para especificar e situar a
alma.
Estou ciente de que outras sociedades ameríndias acentuem o oposto disso, ao
dizer que a alma instabilidade ao corpo, um potencial para transformar que deve, na
maior parte das ocasiões, ser controlado (Vilaça 2005, 452-3). Os Kanamari, de toda forma,
preferem dizer que, sem o corpo, a alma está em mobilidade constante, mas, ‘quando está
conosco, nossa alma não passeia’ (parah tu tyo-ikonanim tyo-katu ni anim). Esta sentença
276
No capítulo dois, discuti a relação entre o adyaba e dois seres-espírito conhecidos pelos Matis, o maru e o
mariwin. Erikson observa que os maru o como ‘crianças que ainda não receberam um corpo’, notando que os
Matis por vezes comparam o recém-nascido a estes espíritos a-sociais. Os Kanamari parecem considerar as
crianças em geral como sendo primariamente ‘espírito’ e apenas algumas delas parecem ser adyaba, aquelas
que são excessivamente ‘espírito’, como argumentarei abaixo (veja Erikson 2004, 128).
313
significa que, quando um corpo é saudável e situado, feito nas aldeias através dos atos de
comensalidade, a alma não sairá e não assumirá seu potencial nomádico. Claro, dizer que a
alma instabilidade ao corpo e que o corpo estabilidade à alma pode, em última
instância, significar a mesma coisa, mas, não obstante, a ênfase conferida a cada movimento
terá implicações importantes (ver Viveiros de Castro 2001, 37-8). Examinarei agora
algumas das maneiras pelas quais se tal instabilidade, começando pelo processo de fazer
a criança.
Esperma e Caiçuma
‘Fazer-criança’ (opatyn-bu) é compreendido pela categoria das ‘atividades produtivas’,
indexada pelo verbo –bu, fazer, produzir’. No capítulo três, discuti este verbo no tocante
aos empreendimentos coletivos, frequentemente caracterizados por atividades mundanas e
repetitivas, levadas a cabo nos contextos de trabalhar junto’ (da-wihnim). Vimos também
que os Kanamari são unânimes no reconhecimento de que a criança é produzida apenas a
partir do esperma paterno, através de repetidas relações sexuais (dyoro ou pok)
277
. A
expressão opatyn-bu, ‘fazer/ produzir a criança’, pode ser usada para se referir a este
processo. Estes atos fazem com que a barriga da mulher cresça progressivamente. A
expressão a-mi(n)-bu, ‘fazer a barriga/útero dela’, pode também ser utilizada
278
. Para dizer
que uma mulher está grávida, pode-se então simplesmente fazer referência a ‘sua barriga’
(a-min), ou ainda dizer que ela está opahoron. Os Kanamari o são exceção ao desinteresse
geral amazônico pelas teorias da concepção. Vilaça mostrou que não existe uma ‘falha’ em
tal ausência de reflexão: trata-se, antes, de apontar para a contínua fabricação da pessoa
como parente, para a qual a concepção não é um ato preciso e a criança não é
necessariamente tornada humana no instante do nascimento (2002, 353-4).
O esperma faz o corpo da criança no útero de sua mãe. Uma criança recém-nascida
ou ainda engatinhando pode, aliás, ser chamada de ‘o esperma de seu pai’ (awa pama n-a-bi/
birak). O esperma é frequentemente chamado de bi, mas pode ser mais especificamente
chamado de birak. Bi é uma substância que apenas os homens possuem e que os fazem
engordar
279
. Seu gasto, ao contrário, torna os homens magros. Birak e bi o são
277
A única versão diferente para a concepção que eu escutei era a de uma mulher que disse não serem os
homens que, de todo, ‘fazem o corpo da criança em nosso útero’, sendo antes Tamakori quem ali a coloca.
278
A expressão kadyohdak anki pode também ser utilizada para se referir especificamente ao útero. Anki
literalmente significa ‘joelho’, e kadyohdak anki seria então ‘o joelho da placenta’.
279
E talvez também ficar alto. Um homem Kanamari me contou sobre certo homem branco alto que nuca
deveria ter feito sexo para ficar daquele tamanho.
314
exatamente sinônimos: birak, ao que tudo indica, é uma modalidade particular de bi. O
último, em sua acepção maior, parece se referir a uma substância branca que se desenvolve
nos corpos dos homens e que pode se manifestar, não apenas como esperma (birak), mas
também como pus (chamado simplesmente de bi). Estritamente falando, bi não é
compreendido pela categoria dos ‘líquidos’ (hi). Sua consistência viscosa e sua presença no
interior do corpo o distingue dos ‘verdadeiros líquidos’ (-hi tam)
280
, tais como água, gasolina,
sucos de frutas, leite, suor e refrigerantes. Os Kanamari dizem não saber o que produz bi
no corpo dos homens, muito embora façam uma série de relações metafóricas entre bi e os
diferentes tipos de caiçuma, principalmente a de mandioca. Tais associações não me
autorizam a concluir que a bebida de mandioca produzida pelas mulheres torna-se bi nos
corpos masculinos, mas mostra o quanto ambos preenchem funções análogas.
A distinção entre hi e bi é encontrada não apenas naquela entre líquidos e semi-
líquidos nos humanos, mas também no processo de produção de bebida. No caso da
bebida de mandioca, por exemplo, esta própria é chamada de koya-hi, ‘caiçuma-líquido’, e a
polpa coada resultante de seu processamento, fibrosa e empapada, é chamada de koya-bi
281
.
Isso o é lixo, entretanto: os resíduos da mandioca são um complemento valorizado para
os pratos de carnes e peixes, particularmente nas viagens, em que as travessas de koya-bi são
uma reserva segura de alimentos para os trajetos incertos.
A bebida de mandioca é quase sempre presente nas aldeias Kanamari, e não
praticamente um dia em que as mulheres não estejam envolvidas em alguma etapa de sua
produção: pegar mandioca nos roçados, fervê-la e coá-la. Uma aldeia que consegue se fazer
parente deve beber exclusivamente caiçuma não-fermentada, chamada de ‘caiçuma nova’
(koya aboawa). Ao menos nos dias de hoje, os Kanamari não mascam a mandioca para
desencadear o processo de fermentação, ainda que, em não mais do que três dias, ela
comece a fermentar, espumar e se tornar azeda. Chamar-se-á então koya passinim (‘caiçuma
azeda’) e deverá ser servida apenas nos encontro entre aldeias do tipo Hori
282
. Isso não
significa que não seja consumida no dia-a-dia das aldeias. Quase sempre um pouco de
280
Também o sangue não é jamais referido como líquido, muito embora também não seja bi.
281
O termo koya designa em geral a própria bebida, a expressão koya-hi sendo utilizada apenas para distingui-
la dos resíduos, koya-bi.
282
Os Kanamari reconhecem apenas estes dois estados da caiçuma: nova e azeda. A caiçuma azeda pode ser
ainda dividida em ‘forte’ (diok-nim) e ‘fraca’ (diok tu-nim), ou mesmo em ‘um pouco forte’ (diok nahan ti). A
palavra passinim parece ser uma variante de pahtyi-nim, ‘azedo’. A pronúncia distinta é utilizada apenas para
descrever uma qualidade de koya. O desencadeamento do processo de fermentação, quando as bolhas
começam a aparecer e a bebida começa a escurecer, pode fazer com que a caiçuma seja descrita como pahtyi.
Existe um curto período, no qual o processo de fermentação começou, a caiçuma está azedando, mas a
gradação alcoólica ainda está baixa, em que a bebida é melhor descrita como pahtyi, ao invés de passinim. Na
verdade, este é o estado mais apreciado pelos Kanamari, mas é um momento perigoso, pois deve ser bebida
rapidamente para que o processo de fermentação não se complete.
315
caiçuma nova é deixada de lado para fermentar, mas seu consumo fora dos eventos do tipo
Hori é sempre condenado pelos Kanamari, que dizem se tratar de uma atividade ‘inútil’ (a-
dyaba), que torna os homens ‘insanos’ (parok) pela ‘bebedeira’ (pori), causando possíveis
danos à sua parentela. Ela dá também ressaca e dor de cabeça, fazendo com que os
Kanamari não se empenhem em suas tarefas diárias de obtenção de alimentos (veja Gow
1989, 577). Ao invés de fazer o parentesco, ela o coloca em xeque.
A caiçuma nova, por outro lado, é muito valorizada por engordar os homens e os
deixar ‘saciados’ (pohan), prontos para um dia de trabalho. Normalmente, uma mulher
oferece uma cuia de caiçuma para um homem, que a termina e entrega de volta. Ela
repetirá o processo até que todos os homens presentes estejam servidos. Em seguida, as
mulheres servirão a si mesmas, de uma maneira mais informal e menos sistemática. Mas,
para os Kanamari, o é bem o consumo de bebida de mandioca que deixa as mulheres
gorduchas, assim como ficam os homens. Os Kanamari acham particularmente atrativas as
meninas púberes que começaram a desenvolver os seios e a engordar, dizendo que elas são
‘realmente belas’ (a-baknim tam). Eles dizem que estas mulheres estão ganhando peso por
serem sexualmente ativas, e seus corpos estão sendo ‘saciados’ (pohan) com esperma. Os
homens Kanamari acreditam que essas mulheres possuem um apetite sexual quase infinito
e que elas ‘desejam esperma’ (birak-wu). São coletivamente chamadas pela versão pluralizada
da palavra portuguesa ‘doido’, doido hinuk (‘as doidas’), pois procuram pelo sexo que os
homens e rapazes precisam satisfazer. Ainda que os rapazes obviamente desfrutem desta
atividade, sempre procurando pelas garotas que atingem a puberdade, consideram-na como
extremamente cansativa, uma vez que envolve o dispêndio de grandes quantidades de birak,
demandando que se alimentem bem e, especialmente, que bebam muita caiçuma para
compensar.
O corpo masculino retém então o semi-líquido, bi, cuja fonte e renovamento
constante nos corpos masculinos é relacionada à caiçuma mesmo que sua origem
permaneça obscura e cuja liberação tem consequências importantes. Os homens que não
fazem sexo correm o risco de adoecer. Diz-se deles que ‘o esperma os pegou’ (birak n-a-
man) ou que ‘o esperma os matou’ (birak n-a-ti
283
), e as suas barrigas incham ao ponto de
arrebentar. Não liberar birak é geralmente considerado como insalubre e o birak
envelhecido que permanece no corpo pode causar febre e dores de estômago. Os homens
283
O verbo –ti significa ‘matar’, mas é também utilizado para qualquer forma de violência, ou quando alguém
golpeia um outro com má intenção. As expressões relacionadas aos males que podem derivar do não gasto de
birak são sempre feitas em tom humoroso e jocoso. Isso possivelmente por ser bem improvável que alguém
fique na verdade doente por excesso de birak, uma vez que os rapazers, que mais produzem birak, fazem sexo
com frequência.
316
precisam, portanto, liberar frequentemente birak, que eles chamam de birak kuhmahik’,
(‘limpando o esperma’), liberando o esperma envelhecido de seus corpos e permitindo que
o novo possa ser gerado pelo consumo de caiçuma. Os homens Kanamari que são
separados de suas esposas frequentemente explicam as suas ‘saudades’ (mahwa) pela
referência ao seu birak, dizendo que, se não reatarem com suas esposas, o birak envelhecido
em seus corpos os matará (birak kidak n-a-tyuku-tiki adik wa bo).
Falta de sexo, assim, torna os homens gordos, mas fazem as mulheres magras, ao
passo que a atividade sexual faz os homens magros, mas engorda as mulheres. Ao mesmo
tempo, retenção excessiva de birak também adoece os homens. O consumo de cerveja de
mandioca, fluindo das mulheres para os homens, contrabalanceia isso, fazendo com que os
homens fiquem gordos enquanto gastam birak, assim produzindo novas crianças. Estar
cheio de bebida de mandioca, assim como engordar pela relação sexual torna,
respectivamente, os homens e as mulheres pohan, saciados.
Poroya era um dos Kanamari mais gordos no Itaquaí. Sua esposa havia
envelhecido, passado da menopausa,
284
e era sabido que eles não faziam muito sexo.
Morando no Massapê, onde ele estava cercado por suas filhas e seus respectivos maridos,
sua casa nunca estava desprovida de bebida de mandioca, que sua esposa fazia em
abundância. Ele tinha portanto um bom influxo de bebida de mandioca, e baixa saída de
birak, o que o tornava gordo. Em meados de 2005, Poroya se mudou para a aldeia de Irari
no rio Javari, onde se casou com sua amante, uma garota jovem com a qual ele tinha um
filho. Toda vez que encontravam Poroya em Atalaia do Norte depois disso, os Kanamari
do Itaquaí ficavam sempre impressionados com o seu emagrecimento. Sugeri a alguém que,
talvez, as mulheres do Irari não fizessem muita caiçuma, assim como antes faziam a sua ex-
mulher e filhas. Concordaram com isso, mas o era suficiente. Era óbvio que, com uma
garota jovem que parecia ter grande apetite sexual, Poroya estava também gastando muito
mais birak, o que era considerado particularmente perigoso para sua saúde, uma vez que os
homens mais velhos produzem muito menos birak do que os adolescentes.
Suspeito que, do mesmo modo que se costuma dizer do conceito de alma entre
outros povos ameríndios, que ele apenas existe ou se manifesta quando o corpo está frágil,
doente ou ausente (Vilaça 1992, 56), também o idioma da substância emerge apenas
284
Uma mulher que passou da menopausa é dita ser tyuram, ‘seca’. Não porém restrições
correspondentes a nenhuma atividade: elas ainda fazem cerveja de mandioca, de tabaco, trabalham nos
roçados e assim por diante. Na verdade, elas são as melhores candidatas para fazer a bebida de mandioca,
pois as mulheres menstruadas devem se abster de fazer a caiçuma sob o risco de poluir os homens, que se
tornam miori e azarados na caça. Acredita-se que as mulheres na menopausa perdem algo de seu desejo por
sexo, deixando de ‘querer esperma’ (birak-wu). Por esta razão, mulheres mais velhas tornam-se magras e
progressivamente fracas.
317
quando seu gasto e consumo ocorrem de maneira pouco saudável. Se as aldeias procedem
do modo que os Kanamari acham que deveriam proceder, se áreas da floresta são
transformadas pelos homens em roçados que produzem mandioca para serem processadas
pelas mulheres para alimentá-los e se os homens consomem quantidades significativas de
caiçuma nova e liberam os seus birak nos corpos das mulheres para fazer crianças, então os
fluxos de substância atingem uma harmonia capaz de estabelecer o corpo da aldeia como
corpo de parentes. É apenas quando as coisas se tornam desarmônicas que a substância
começa a ser discutida: a cerveja de mandioca está deixando os homens bêbados, dão-se
brigas e o alimento deixa de ser buscado; mulheres não produzem bebida de mandioca,
homens e mulheres emagrecem e as aldeias decaem. Uma boa aldeia não tem substância ou,
ao menos, necessidade de discutir os fluxos de substância que a constituem.
Mas as boas aldeias são inconstantes, existem realmente apenas na imaginação dos
Kanamari. O grande dilema é que constituir uma aldeia não é algo da alçada apenas de seu
chefe e das pessoas que ali habitam. Aldeias não existem no vazio, mas em um mundo que
foi precariamente extraído de suas origens Jaguar. Discutirei as consequências disso em
breve, mas antes precisamos compreender alguns dos perigos do processo de nascimento.
Nascimento
A palavra para ‘nascer’ é warah, que é provavelmente a mesma palavra que designa o
‘chefe/corpo/dono’. razões para crer, de toda forma, que as duas palavras possuem
campos semânticos ligeiramente distintos. A palavra para ‘nascer’ não é necessariamente
afixada por um sujeito. Warah opatyn significa que ‘uma criança nasceu’ e a expressão a-
warah hikian’, ‘o corpo dele aparece’, é sua sinônima. A expressão ‘*a-warah-warah’, ‘o corpo
dele nasceu’ é provavelmente incorreta, e, de qualquer forma, soa estranha aos Kanamari.
Um homem me disse explicitamente que ‘ter nascido’ e ‘corpo’ são palavras diferentes, e as
disse seguidamente, de modo que eu pude escutar suas distintas pronúncias. Não pude, mas
talvez haja ainda uma outra razão para concordar com ele. Diz-se dos natimortos e dos
abortos que ‘a-boroh-warah’, ‘seu cadáver nasceu’, e esta expressão não pode ser traduzida
como ‘*seu cadáver é corpo’. Como veremos, a relação entre os conceitos de –boroh e
warah é complexa, mas, em termos gerais, os dos são mutuamente exclusivos. Onde um
cadáver, o pode haver corpo, e isso sugere que é possível para algo diferente de um
‘corpo’, humano ou o que for, nascer.
318
Dize-se de uma mulher em trabalho de parto que ela é odiok. A raiz da palavra é -
diok, que significa ‘forte/pungente/doloroso’. Quando afixada por to-, implicando
intencionalidade, ela forma a palavra to-diok, ‘inimizar’, que os Kanamari por vezes glosam
como mandar embora com dor’. Pode ser utilizada também para significar diversos tipos
de dor, as características de pimentas particularmente fortes ou as características de dyohko
familiares especialmente antigos e poderosos. O afixo o- é usado para significar ‘outro de
um tipo’, tal como em o ityaro’, ‘outra mulher’. Pode também significar algo que é como
alguma outra coisa. A palavra Kanamari para ‘parto’, então, significa um ‘tipo/qualidade de
dor’, enfatizando mais as angústias do nascimento do que o trabalho da mulher para tal.
Diferentemente dos Kulina, que dizem que dar à luz é ‘trabalho muito pesado’ (Lorrain
1994, 107), para os Kanamari é apenas a dor e é o ‘fazer a criança’ (opatyn-bu) que se
considera como trabalho cansativo.
A dor não é um traço apenas do parto, caracterizando antes toda a gravidez. Uma
mulher disse que as dores da gravidez ocorrem e ‘grita-se de dor porque a criança é um
outro que tomou conta [de nós]’ (Opatyn o drim n-a-man tyo. Wiwiok’am). As mulheres
grávidas são ditas nunca terem fome e, por comerem muito pouco, ficam frequentemente
magras. Para evitar isso, eles se apóiam largamente nos suplementos vitamínicos fornecidos
pela FUNASA. Entrar em trabalho de parto surge, portanto, como a culminação de uma
dor progressiva causada pela presença de uma substância estrangeira no corpo que, assim
como todas as substâncias estrangeiras, deve ser expelida. Isso ocorre quando a dor atinge
seu nível máximo e insuportável. O nascimento segue naturalmente a partir desta dor.
O nascimento é cercado de uma série de precauções que paralizam as atividades
regulares de uma aldeia. Quando o nascimento é iminente e a bolsa se rompe
285
, o pai deve
ir para a rede. A mulher se sentará no chão inclinando suas costas contra a sua própria rede
sob o mosquiteiro, que será colocado ao lado daquele sob o qual está deitado o seu marido.
A maioria dos homens que não o marido vai normalmente deixar a casa em que uma
mulher está dando à luz, ainda que isso não seja obrigatório. As aldeias frequentemente
possuem uma ‘parteira’ (opatyn-warah-tiki-yan, lit: ‘aquela que faz a criança nascer’), em geral
uma mulher velha que passou da menopausa e que não precisa ter laços de parentesco
muito próximos com a mulher em trabalho de parto. A parteira é a única pessoa que fica
sob o mosquiteiro com a mãe, e ela frequentemente solicita aos presentes que a ajudem
trazendo cobertores, água e tesouras para cortar o cordão umbilical. Em geral, a atmosfera
que envolve o nascimento é informal, pontuada por risadas e comentários altos, mesmo
285
Ikobri warah denota que a bolsa se rompeu. Warah é a palavra para ‘nascimento’, mas não posso traduzir
ikobri.
319
quando o trabalho de parto é particularmente difícil. Todas as mulheres que chegam vem
trazendo suas crianças, e elas são encorajadas a ficar pela casa brincando umas com as
outras. As parteiras o aproveitar a oportunidade para lembrar a mãe que sofre e os
demais presentes de outros nascimentos nos quais ela esteve envolvida, possivelmente
indicando uma ou outra criança presente que ela ajudou a nascer. um ambiente um
pouco artificial na casa, e as risadas podem servir para abafar os gritos da e, ainda que
sejam também nervosas. Em um nascimento que testemunhei no Massapê, quase todas as
mulheres presentes na aldeia foram para a casa e começaram a socializar de uma maneira
que nenhuma delas faria normalmente, uma vez que, no cotidiano, evitam-se umas às
outras. É evidente que, ao exagerar um clima de convívio, as mulheres tentam desviar a
atenção da futura mãe de suas dores.
A parteira conhece diversas massagens e pressiona o ventre e a cintura da mãe para
ajudar a aliviar a dor. A criança nasce nas mãos da parteira, que a entrega à sua mãe. O
cordão umbilical é cortado apenas depois que a placenta (kadyohdak
286
) surgiu. Até que isso
aconteça, os Kanamari dizem que a criança espera’ (taikubat) pela placenta. A placenta
pode ter um de dois destinos: alguns Kanamari dizem que a enterram e a esquecem; outros,
que é levada para uma capoeira e colocada no topo de um açaizeiro. Diz-se que a última
prática ajuda a criança a crescer, ao estabelecer uma relação metonímica entre ela e a altura
pós-parto da placenta. Mas, mais importante, as duas soluções colocam a placenta fora de
vista e longe da aldeia. Não pude obter muito dos Kanamari acerca da relação exata entre a
criança e a placenta, mas a impressão que tenho é a de que se trata de um elemento
estrangeiro que necessita ser removido. Seja o que for a placenta, ela não é humana e não
pertence à aldeia. Seu destino é similar àquele de outra substância estrangeira que também
se faz presente no nascimento: o sangue que escorre da mãe. Desincorporado, este sangue
é considerado perigoso e todos os seus traços devem ser removidos da aldeia, sendo assim
motivo para uma série de precauções.
Sempre que o sangue se faz presente na aldeia, as pessoas têm que ‘deitar’ (opikam).
Este deitar é a intensificação de uma série atos de to-hiaik (‘ser muito cuidadoso’). O verbo
–hia(ik) significa ‘ser cuidadoso’ e to- é o prefixo que conota a intencionalidade de um
verbo. Tohiaiki significa então ‘ser muito cuidadoso’ por alguma razão específica. A palavra
pode ser usada em um sentido cotidiano, tal como ao dizer para alguém que seja cuidadoso
286
Kadyohdak pode ser segmentado em ‘kadyo(h)’, ‘jacaré’, e –dak, ‘pele’. Não consegui obter informações
sobre o porquê deste nome para a placenta, nem mesmo se os Kanamari concordariam com a glosa ‘pele de
jacaré’ para ‘placenta’. Eles estão mais preocupados, como veremos em breve, com a hemorragia que se segue
ao nascimento do que com a placenta.
320
ao ir viajar. Em certa medida, os Kanamari sempre precisam ser cuidadosos acerca de
determinados atos, tais como matar grandes animais (sejam ou não de caça), que podem
repercutir nos viventes. Mas períodos nos quais transformações estão em curso, tal como o
nascimento, morte e menarca, são marcados por uma intensificação de tais preocupações
(Fausto 2002, 19). Ainda que estes sejam também períodos nos quais os Kanamari tohiaik,
eles frequentemente acrescentam que ser muito cuidadoso o é suficiente e, por esta
razão, eles permanecem opikam, ‘deitados’.
Deitar-se
Nesta seção, vou discutir os momentos de tohiaik e de opikam. Para tal, não posso
me limitar à descrição dos períodos de ‘deitar-se’ após o nascimento. Toda vez que tentava
discutir estas proibições referindo-me especialmente ao nascimento, os Kanamari
rapidamente mudavam para descrições de outros momentos nos quais as pessoas ‘deitam-
se’, particularmente aqueles da menarca e da reclusão pós-homicídio. Todos estes períodos
são momentos nos quais o sangue torna-se excessivamente presente, eclipsando corpos, e a
atividade da aldeia precisa então acontecer em passos reduzidos. Começarei assim com uma
discussão de práticas relacionadas ao nascimento, antes de mudar para certas preocupações
referentes ao cabelo, um poderoso índice da forma do corpo. Concluirei discutindo a
menarca e os homicídios, enfatizando a relação entre todos estes momentos, tal como tem
sido abundantemente observado em outras partes da Amazônia (por exemplo, Albert 1985,
604; Conklin 2001; Fausto 1999, 952; Menget 1993; Seeger 1981, 167; Taylor 1994, 82;
Viveiros de Castro 1992, 238-41).
Abstinência
Tohiaik acontece geralmente a qualquer momento no qual seres ou substâncias
estrangeiras estão presentes dentro do espaço da aldeia ou quando as pessoas deixam a
aldeia, tal como na caça ou em viagens. É necessário estar atento para os arredores, atento
para as pessoas que o se conhece muito bem, cuidadoso com aquilo que se come. Casais
que esperam uma criança, e particularmente quando a barriga da mulher está grande (min
nya), devem tohiaik. Uma parte importante disso é comer muitas frutas azedas, incluindo o
caju, certos frutos selvagens e uma fruta doméstica muito ácida chamada kaimaron (‘cubio’
no português regional). Alimentos azedos são considerados como remédio (horonim) contra
ataques xamânicos. Azedo’ (pahtyi) se contrapõe a ‘amargo’ (pan), que é associado aos
321
dyohko dos xamãs
287
. Da mesma maneira, os casais podem beber caiçuma, idealmente
alguma que tenha começado a azedar, mas que não tenha ainda atingido uma gradação
alcoólica elevada (isto é, koya passinim, que não é ‘forte’, diok tunim). Assim eles tornam os
seus corpos azedos e protegem a si mesmos e às suas crianças contra os ataques dos
feiticeiros. Este é um dos papéis dos remédios, que tendem a atuar mais como profiláticos
do que como tratamentos para a cura.
Se tohiaik é uma precaução que pode acompanhar quase qualquer atividade, ‘deitar-
se’ é sempre dito ser feito mimi tom, ‘sobre o sangue’ ou ‘por causa do sangue’. No caso
específico do nascimento, os pais deitam-se opatyn-mimi tom’. Isso pode também ser
chamado de a-mimi aboawa tom’, ‘por causa do novo sangue dele/dela’. Trata-se de uma
referência ao sangue novo que entra no espaço da aldeia junto com a criança e, mais
especificamente, à hemorragia que acompanha o nascimento. O sangue que sai da criança é
explicitamente dito ser o sangue da criança e não, tal como em nossa concepção, o sangue
da mãe. Isso é importante pois acentua o objetivo fundamental das práticas opikam: expelir
qualidades e substâncias estrangeiras do espaço da aldeia, assim prevenindo a possibilidade
de transformações indesejadas. O sangue da criança é descrito como sendo sangue forte,
doloroso’ (mimi-dioknim) e sua presença, que é, como vimos, a manifestação visível da alma,
é pretexto para frear toda ou a maioria das atividades da aldeia aque dele não haja mais
nenhum traço. O sangue que há na criança, sua alma, é também uma substância estrangeira,
mas uma que se torna progressivamente familiarizada através de processos realizados no
corpo da criança. É o sangue que escapa dele no nascimento que precisa ser removido para
que a criança entre nos domínios do parentesco humano.
Os períodos de ‘deitar-se’ podem também ser veiculados, não pela inatividade, mas
pelas precações específicas que são tomadas. Isso é expresso na noção de nohianim, que
pode ser glosada como ‘abstinência’ (ver Viveiros de Castro 1992, 191). A raiz do verbo, -
hia, é a mesma de ‘ser cuidadoso’. Aqui, ela se refere explicitamente ao que alguém deve
fazer: o tipo de dieta que deve ser seguida, privando-se da relação sexual, da caça, das idas
aos roçados e assim por diante. O período em que nohianim é observado deve ir do
nascimento até o momento que o umbigo seca e cai, alguns dias após o nascimento. O
término do período é chamado de nodyabu’nim e, em seguida, as atividades começam a
287
Para dizer que um feiticeiro introduziu dardos em uma vítima, pode-se dizer a-pan-tiki atukuna, ‘fazer com
que uma pessoa fique amarga’. Aprendizes de xaprecisam também se abster de comer alimentos azedos,
sob o risco de que fujam dele os dyohko que estão sendo cuidadosamente introduzidos em seu corpo. Por
razões similares, espera-se de um xamã cuja esposa está grávida que evite atividades xamânicas durante a
gestação e nos meses seguintes ao parto.
322
voltar ao normal. É ainda importante ‘ser muito cuidadoso’, de toda forma, com certas
coisas, ao menos até que a criança comece a mover as pernas ensaiando passos
288
.
Entretanto, enquanto o sangue da criança está ainda visível fora de seu corpo,
mesmo que em quantidades muito pequenas, os parentes devem deitar em reclusão. Após o
nascimento, eles se juntam sob um único mosquiteiro, onde passam todo o dia. O homem
não pode caçar ou tocar quaisquer de seus equipamentos de caça. Diz-se que, se ele atirar
com sua espingarda, seu filho morre como se tivesse sido varado por uma bala. Terçados e
machados, se empunhados, também batem no recém-nascido, causando sangramento
interno. A mãe precisa ficar distante de todas as suas atividades: as tesouras usadas para
cortar o cordão umbilical o podem ser tocadas em nenhuma circunstância, assim como
suas agulhas e novelos, tudo isso podendo causar males ao bebê, frequentemente
manifestados como diarréia. A infiltração gradual de sangue através da hemorragia provoca
dores no ventre da mulher conhecidas como mimi-dya, ‘dores de sangue’, e a impede de se
mover pelos arredores. Os pais não podem manter nenhuma relação sexual enquanto
houver qualquer traço do sangue da criança escorrendo da mulher. Se eles assim fizerem, a
abertura da uretra do homem começaria a escamar e seu pênis poderia ‘apodrecer’ (paha).
Enquanto estão ‘deitados’, é mesmo melhor que os pais o comam praticamente
nada. Se precisarem comer, devem comer apenas pedaços bem pequenos de mandioca
cozida, ou então um cozido feito de dom tinim, piabas
289
. Esses peixes possuem muito pouca
carne e precisam ser pescados em grande quantidade para fazer uma refeição. ‘Peixes
magros’ são virtualmente inofensivos aos humanos, e nunca interditos ainda que seja
aconselhável às mulheres que acabaram de dar à luz não comerem muito deles, mas apenas
beber o seu caldo (a-hi-parara) e se abster de comer qualquer pequena porção de carne que
encontrarem. o possuindo alma, ou nenhuma capacidade de afetar os humanos, eles são
virtualmente uma comida vegetal
290
.
Retirar um casal das atividades cotidiânas tem consequências importantes para
aldeias pequenas e médias, tais como Bananeira (ver capítulo três). Eu estava presente
288
Os Kanamari chamam isso de tyak ni anim, ‘quando a criança está dando passos’. Isso não se refere, de
toda forma, aos primeiros passos, mas sim aos movimentos feitos pelas pernas de uma criança quando ela é
levantada por suas axilas, fazendo com que ela pareça estar andando. Os Kanamari explicam que neste estágio
a criança ‘quer andar’ e o período de ‘ser cuidadoso’ terminou.
289
‘Piaba’ é um termo que cobre uma ampla variedade de pequenos peixes escamosos da família Curimatidae.
nos deparamos com ele enquanto menor elo da cadeia alimentícia envolvida no mito de Jaguar como
‘Mestre do Peixe’ (capítulo quatro).
290
Para uma concepção similar entre os Miraña, ver Karadimas (1997, 577-83). Veja também Fausto (2002,
14-9).
323
quando a filha mais nova de Dyumi deu à luz a um menino. O cunhado de Dyumi havia
viajado com muitos dos outros homens da aldeia para vender uma canoa em Atalaia do
Norte. Grande parte do alimento para a aldeia estava sendo suprida graças ao esforço deste
seu cunhado. Como o pai estava recolhido por três dias, confinado em sua rede sob o
mosquiteiro, não havia praticamente nenhuma carne para nós, os poucos que haviam
permanecido na aldeia. Dyumi andara por seus roçados mas, para suprir a carência de
carne, voltou a caçar, assim como o fez Kodoh, um velho homem que, antes, raramente
caçava. O resultado, não obstante, era alimento insuficiente para os poucos homens,
mulheres e crianças que haviam ficado para trás, mesmo para o casal que havia deixado de
comer. A situação era similar àquela observada por Gow entre os Piro:
“...um aspecto crucial desta proibições é que elas proíbem a maior parte dos comportamentos físicos
referentes ao casamento. Assim, um homem o pode caçar, pescar ou limpar os roçados, ao passo
que a mulher não pode cozinhar, lavar roupas e fazer cerveja de mandioca. Tampouco podem manter
relações sexuais, entre si ou com qualquer outra pessoa. Realizar alguma destas atividades proibidas
pode fazer com que a atividade repercuta na criança” (Gow 1989, 577).
Tudo isso vale para os Kanamari, embora não seja apenas a criança que se afeta, mas
também os seus pais. Foi a criança que trouxe consigo o sangue estrangeiro, e é este sangue
que faz com que a aldeia pare, fechando-se tanto em si mesma que chega a correr o risco
de passar fome e deixar de todo de funcionar. A aldeia pára até que este sangue estrangeiro
e desincorporado se remova, muito embora não seja ainda o momento para que se
retomem as atividades rotineiras. ainda sangue com a criança, e isso segue sendo um
perigo que pode ser suprimido fazendo humana a criança enquanto se protege a aldeia
dos perigos que este sangue atrai. É a estes, bem como às maneiras de superá-los, que me
voltarei agora.
Cabelo
Se uma criança é praticamente apenas puro sangue/alma, então seu corpo precisa
ser criado. As pessoas, vale lembrar, não sabem de imediato se a criança é humana ou se é
um espírito Adyaba, sendo então necessário assegurar-se constantemente de que a criança
se tornou humana. O cabelo’ (ki-pui
291
) é um índice do estado geral de um corpo sendo,
portanto, importante ter a garantia de que a criança vá crescer para ter uma cabeça
abundante em espessos cabelos humanos (tukuna-ki-pui). A presença excessiva de sangue
291
Ki significa ‘cabeça’ e pui significa cabelo. Para referir-se aos pêlos pubianos, por exemplo, diz-se pada-kom-
pui, ‘cabelo dos testículos’, e noko-poran-pui para barba, isto é, ‘cabelo do queixo’.
324
ainda põe o corpo de todos em risco e os pais também precisam se assegurar de que o
estão ficando carecas ou grisalhos. Isso acontece, não apenas após um nascimento, mas
também em outros momentos em que o sangue se faz presente.
Um recém-nascido ou é ‘careca’ (ki poa) ou ‘tem cabelos ralos’ (ki-pui tinim ti), tal
como se esperaria de alguém cujo corpo, indexado pelo cabelo, ainda não foi feito. Por esta
razão, os pais devem comer muito macaco-aranha enquanto a mãe estiver grávida, para que
o cabelo da criança torne-se tão negro quanto a pele do macaco. Meninas e meninos
pequenos, cujos cabelos estão começando a crescerem espessos e bonitos, devem ficar
distantes de mulheres grávidas. A criança no útero é quase incorpórea, mas ‘deseja cabelo’
(ki-pui-wu), pois necessita de um corpo
292
. Diz-se então que o feto no útero ‘puxa o cabelo’
(a-ki-pui-nikikman) da criança pequena para si. É por isso que algumas crianças nascem com
pouco cabelo, fazendo com que as crianças viventes corram o risco de perder todos os seus
cabelos para aquela não-nascida.
Os macacos-aranha, de toda forma, são os únicos entre os grandes mamíferos
recomendados para a gravidez
293
e outros animais, tais como a cotia, são proibidos por que
fazem como que o cabelo da criança (ou de seus pais) cresça branco. ‘Cabelo branco’ é
chamado ki-hu e, para dizer que o cabelo de alguém ficou branco, diz-se ki-hu n-a-man
anyan’, ‘o cabelo branco pegou ele/ela’
294
. Uma das prescrições mais importantes referentes
ao nascimento é que os pais não devem tocar ou pentear os próprios cabelos. Eles devem,
idealmente, cortá-los por inteiro nos últimos estágios da gravidez, muito embora eu não
tenha testemunhado tal coisa. Se precisam coçar a cabeça, devem fazê-lo apenas com um
graveto, sob o risco de que todo o seu cabelo caia de uma vez e não cresça de novo.
Isso, tal como as proibições referentes a deitar-se’, é dito acontecer ‘por causa do sangue
da criança’ (opatyn-mimi tom). Esse ponto tem maiores ressonâncias: uma vez que o cabelo
bonito é um índice do corpo saudável, nos períodos em que muito sangue/alma está
292
Mostrarei abaixo como as almas, mesmo as almas genéricas, sempre se dirigem aos corpos. Elas querem
corpos porque querem a estabilidade que eles oferecem. Este é um corolário dos princípios que analisamos
no capítulo anterior, quando, na morte de um ‘chefe/corpo/dono’, as pessoas se moviam em direção a um
outro novo, para refrear o processo de sua própria mobilidade e fazer parentesco.
293
Quando o sangue da criança ainda está visível no corpo da mãe, também esta carne é proibida. Este é um
bom exemplo da diferença entre ‘ser cuidadoso’ (tohiaik) e ‘deitar-se’ (opikam), em que certos alimentos são
proibidos para o primeiro, mas por vezes aceitáveis para o segundo.
294
Os Kanamari estão sempre procurando vestígios de cabelos brancos, que eles arrancam de suas próprias
cabeças ou das dos outros. Ainda que seja um pouco indelicado indicar que o cabelo de alguém está ficando
branco, isso é muito comum entre os parentes próximos, particularmente entre casais que ficam catando
piolhos entre si. Recentemente, as mulheres em especial começaram a pedir para mim e para os empregados
da Funai para comprar tinturas pretas, de modo que pudessem disfarçar os cabelos que o se tornando
grisalhos. Na mesma direção, o único homem careca no Itaquaí nunca era visto sem seu boné.
325
presente o cabelo se torna objeto de rigorosos tabus. No caso de um recém-nascido, teme-
se que o sangue da criança contamine completamente o corpo dos adultos (representado
pelo cabelo), fazendo com que a pessoa fique condenada a uma vida ruim. Isso é
expressado pelo estado de miori, ‘azar’, que se apossa do pai imprudente. Ainda que os
estados de miori tendam a terminar aos poucos, a pessoa que não é cuidadosa quando o
sangue novo se faz visível terá este estado inscrito em seu corpo, através de sua falta de
cabelo ou de seu aspecto grisalho.
Calvície e cabelos brancos, então, são sinais de que a pessoa levou uma vida
excessivamente próxima das propriedades da alma. Almas são distintas de corpos na
medida em que possuem modos avarentos e raivosos característicos dos Jaguares, e a
emergência de tais estados na humanidade são um indício de que o corpo se tornou
instável. Por serem as crianças praticamente pura alma, elas são frequentemente
consideradas como raivosas, o tempo todo chorando e batendo em seus pais, e avaras, ao
demandar uma fatia desproporcional do tempo deles. A palavra para ‘bravo’ ou ‘raivoso’ é
nok e para ‘avaro’ é nihan, ao passo que as palavras para ‘pacífico’ e ‘generoso’ são a forma
negativa e marcada destes termos, nok tu e nihan tu, respectivamente. ‘Raivoso’ (nok) e
‘avaro’ (nihan) são, então, as formas o-marcadas de ‘pacífico’ e ‘generoso’. Assim, ser
‘generoso’, por exemplo, é ser, antes de tudo, ‘não-avaro’. Uma cabeça repleta de belos
cabelos é um sinal de que a pessoa não é avara e raivosa, ao passo que a calvície e o aspecto
grisalho indicam que a pessoa tem levado uma vida ruim, frequentemente expressada como
ityonim tikok tu, eles o ‘conheceram o tempo/terra’, querendo dizer que eles não viveram
bem, como parentes em aldeias.
As crianças podem porém ter todo o seu cabelo raspado (ki-poa bu, produzir a
calvície’) para auxiliar no crescimento (tyuru), uma vez que sangue/alma é um agente
importante para que o corpo cresça em altura. O cabelo, por ser uma parte do corpo
ativamente feita pelos humanos, detém o seu crescimento, fazendo com que seja
‘impossível para a criança crescer’ (tyuru nyoimtu opatyn). Mas os pais devem ‘ser muito
cuidadosos’ (tohiaik) com as crianças que são carecas, observando se elas não estão se
comportando de modo impróprio. Nos meses seguintes, eles observarão atentamente os
sinais de que o cabelo está crescendo corretamente preto e forte –, fruto bom
comportamento da criança.
Os Kanamari vêem a emergência de períodos de comportamentos anti-sociais
como razoavelmente inevitáveis, um corolário da origem da humanidade na matéria-alma
326
genérica, relacionado ao Jaguar mítico. Independentemente de quanto trabalho cuidadoso é
desempenhado na produção do corpo a partir das relações de parentesco que constituem a
aldeia, há sempre uma parte residual da pessoa que permanece Jaguar. Quando estes
estados se fazem presentes, a pessoa não quer comer e começa a se afastar das atividades
da aldeia. Isso se torna fisicamente visível quando uma pessoa emagrece, começa a
perambular à noite e passa a maior parte dos dias na rede, escondida sob o mosquiteiro
295
.
É de toda forma possível tornar claro publicamente que se está bravo ou avaro e que este é
um estado temporário, cortando-se todo o cabelo. Mais uma vez, isso garante que um novo
cabelo crescerá no lugar daquele que foi maculado pelos sentimentos anti-sociais. É quando
isso não é seguido que as pessoas começam a se preocupar, pois, se este cabelo não foi
cortado, o que crescerá pode consigo levar a marca da raiva e da avareza, crescendo fino e
frágil. Não cortar o cabelo pode ser visto como uma inabilidade em admitir que uma
pessoa está brava, resultando numa incapacidade em reconhecer o parentes e numa
propensão para lhes fazer mal. A pessoa está, enfim, tornando-se um não-parente insano
(parok) que pode, no limite, optar por ‘correr para dentro da floresta’ (ityonim man) e nunca
mais ser vista.
Um homem, por exemplo, estava excepcionalmente bravo com a sua filha que
havia deixado seu marido e casado com um outro homem que ele desaprovava. Ela havia
fugido com este homem para a cidade de Atalaia do Norte e seu pai decidiu ir atrás deles.
As pessoas ficaram preocupadas com a possibilidade de ele fazer alguma besteira e, embora
muitos concordassem que algo devia ser feito a respeito da filha fugitiva, ficaram
horrorizados com as suas ‘palavras duras’ (koni diokim). Disseram temer que ele pudesse
matar a sua filha e/ou o novo marido e, então, sair correndo para o mato’
296
. De toda
forma, antes de viajar ele cortou todo o seu cabelo, o que, se não acalmou completamente
os Kanamari, ao menos apontou para a possibilidade de que estava ciente da raiva que o
havia tomado.
A menarca e as prescrições pós-homicidas
As discussões sobre as restrições pós-parto fluíam facilmente para aquelas de outros
momentos de opikam, tais como a menarca e os ritos pós-homicídio. Em todos os três
295
Um menino que se tornou excessivamente bravo comia, mas começou a comer sabão industrial, sozinho
sob seu mosquiteiro. Isso horrorizou os Kanamari, pois, para uma configuração social na qual a distribuição
de alimento e a satisfação do desejo por certos alimentos é uma preocupação social, comer sabão pode ser
visto como a negação das relações de parentesco (veja também Gow 1989, 578-81).
296
Tal como entre os Kaxinawá (ver Lagrou 2000, 162), um estado de ‘saudade’ (mahwa) pelos mortos ou
parentes distantes também pode levar as pessoas a vagar pela floresta, separando-se de seus parentes.
327
casos, acentuava-se a presença de sangue e a necessidade de expelir ou reduzir as suas
capacidades ameaçadoras. Irei me dedicar agora a estes aspectos, que também levarão em
consideração as preocupações referentes ao cabelo e à necessidade de mantê-lo negro e
belo, ao invés de feio e quebradiço.
Os Kanamari não consideram matar outra pessoa como algo positivo. Isso é dito
ser um ato ‘inútil’ (-dyaba). Matadores são frequentemente chamados de ‘pessoas raivosas’
(tukuna noknim) e são normalmente barrados no Céu Interior (ver próximo capítulo). Diz-
se, ao contrário, que eles permanecem aqui nesta terra, tornando-se ‘de tipo Kirak’,
transformando-se em coisas ameaçadoras que predam os humanos, assim como faziam
quando estavam vivos. Todas as histórias que escutei sobre um Kanamari que havia
matado outra pessoa foram ditas ser sobre alguém que morava muito longe’, ou então
sobre um homem que não era parente deles. Nas histórias de tais pessoas a mim narradas,
os Kanamari eram as vitimas da violência das outras gentes.
Parte do problema em matar um outro consiste em ser esta uma maneira de se
trazer sangue estrangeiro para o espaço do parentesco. O sangue/alma da vítima preenche
o corpo do matador, fazendo com que sua barriga inche. O homem que traz o sangue do
homem morto para a aldeia deve imediatamente ‘deitar-se’ e observar as mesmas espécies
de proibições que valem para os pais no período pós-parto. Na verdade, diz-se
explicitamente que o homem ‘deita por causa do sangue do homem morto’ (opikam paiko n-
a-mimi tom), de modo análogo à maneira pela qual os pais se deitam ‘por causa do sangue da
criança’. O matador precisa evitar comer veados e caetitus, animais que são ditos possuírem
‘sangue forte’ (mimi dioknim), capazes de fazer com que a barriga dos matadores inche ainda
mais, até que praticamente se rompa, causando a sua morte. O sangue na barriga continua a
crescer, mesmo se nada é comido, e é necessário expeli-lo pelo vômito. O vômito é então
provocado pela introdução de um cipó titica na garganta do homicida até que atinja a
barriga. O vômito, porém, não se segue imediatamente. Quando o cipó é removido, vê-se
primeiro uma mancha de sangue em sua ponta. Este é o sangue do homem morto, e não
aquele do matador. Diz-se que o cipó ‘ata o sangue do morto’ (kori’om mimi dukmahik
297
) e
eles procuram então em seguida confirmar se é uma alma estrangeira que está a causar o
inchaço. Se este for o caso, o processo será repetido até que todo o sangue seja vomitado.
297
Isso se faz similar a um dos efeitos dos ataques dos espíritos às crianças. Contaram-me uma vez que, se
um homem mata uma cobra enquanto sua mulher está grávida, o espírito da cobra busca vingança ‘atrelando-
se’ ao feto. O espírito precisa ser então assoprado depois que se bebe omamdak, sob o risco de a mulher dar à
luz a um natimorto.
328
Isso não deve ser feito na aldeia, onde o sangue estrangeiro seria perigoso, mas distante, na
floresta. O fracasso em expelir o sangue faz com que ‘a barriga do matador se rompa’ (a-
min-baki), causando a sua morte.
Não nada a ser apropriado da alma/sangue da vítima, e o fracasso em expulsá-la
do espaço do parentesco resulta na morte do matador e das crianças pequenas. O matador
corre também o risco de ‘ficar louco por conta do sangue estrangeiro’ (parok, o-n-a-mimi tom)
e tornar-se excessivamente propenso à raiva, significando que os matadores precisam
‘fazer-se carecas’ (-ki-poa-bu) e jogar fora o ‘cabelo velho’ (ki-pui-kidak) para permitir que o
‘cabelo novo (ki-pui aboawa) cresça. Lembrarão então que isso é feito quando as pessoas
estão excessivamente bravas (nok), e que cortar o cabelo é uma maneira de purificar o
sangue desta raiva, assegurando que o cabelo novo crescerá quando a raiva findar. Os
Kanamari temem o matador, por estar infundido de sangue estrangeiro. O cabelo que está
maculado por este sangue deve ser removido para que o novo cabelo cresça através de
relações adequadas de parentesco, e não pela familiarização de matéria-sangue estrangeira.
Sem cabelo e saturado de sangue estrangeiro, o matador é ‘pura alma’ e a aldeia se paralisa
até que ele seja refeito como parente
298
.
A menarca (bodyaki) é também um momento em que um corpo, desta vez o de uma
mulher, é tomado pela matéria-alma, sendo colocado em suspensão. Aqui, mais do que em
outros casos, é o corpo inteiro, ao invés de apenas o cabelo, que se torna objeto de
precauções. A preocupação está em assegurar que ela não ‘envelheça logo’ (kidak-pa
ninkiman) e que não corra o risco de ter o seu futuro corpo feito de uma maneira não-
humana. Para evitar isso, a menina deve comer apenas pequenos peixes e mandioca cozida.
Ela não pode cantar, fazer bebida de mandioca, cozinhar ou lavar roupas. É na verdade
melhor que permaneça ‘deitada por causa de seu sangue’ (a-mimi-tom-opikam) e se pinte com
jenipapo para se proteger das influências estrangeiras. Se estas proibições não forem
observadas, sua pele pode enrugar (a-dak dihdihan). Ela não deve andar depois do escurecer,
298
A atitude Kanamari com relação ao assassinato é assim similar à dos Huaorani, para quem “nada deve ser
tomado do inimigo, nem mesmo as lanças usadas para matá-lo, que agora formam parte integral do corpo da
vítima. Não aqui nenhum pedaço de nada pertencente ao inimigo: nenhuma parte do corpo, tais como as
cabeças Jívaro ou os dentes Yagua; nenhuma aquisição de posses simbólicas, tais como nomes, cantos ou
outras espécies de propriedades rituais, como entre os grupos Tupi-Guarani, e nenhuma mulher ou criança,
tal como ocorre em tantas sociedades amazônicas” (Rival 2002, 55). Para situações em que certos aspectos
imateriais do inimigo são adquiridos, veja Fausto (2001), Gonçalves (1993), Sterpin (1993) e Viveiros de
Castro (1992, 238-45).
329
pois o seu corpo poderia ficar coberto de tumores (porem) causados pela paca
299
. Por razões
similares, ela deve também cobrir as orelhas quando as araras gritarem, uma vez que escutá-
las faria com que seus olhos se enrugassem assim como os da ave. Seu corpo também
precisa ser regularmente massageado por outra mulher, a fim de que não fique mole ou
caído. A massagem conhecida como ‘levantar os seios’ (nia huhmahik) previne a flacidez dos
mesmos. As proibições Kanamari garantem que, num momento em que a garota é mais
sangue do que corpo, ela não corra o risco de seu corpo pós-liminar surgir como algo
distinto do humano.
Esse estado de ter o corpo tomado pelo fluxo de sangue é também, mais uma vez,
causa para o corte de cabelo. Se uma mulher não cortar seu cabelo na menarca, ele crescerá
grisalho e frágil. As mulheres que tem cabelo grisalho, um sinal de que não vivem bem,
costumam gastar parte do dinheiro que ganham vendendo cestas e braceletes para comprar
tintura preta de cabelo, pois tem vergonha (ityi) de seu fracasso em seguir as prescrições da
menarca. Uma mulher perguntou a mim se eu podia comprar a tintura sem contar a
ninguém, nem mesmo a seu marido.
A presença do sangue da menina deixa qualquer um na aldeia ‘azarado’ (miori), e a
comida é escassa enquanto ela está deitada. O mesmo vale para os períodos de reclusões
pós-homicidas. A atividade da aldeia, se não é suspensa, é ao menos desacelerada. Caçar é
considerado quase inútil, uma vez que se espera mesmo que os caçadores retornem de
mãos vazias. A presença de sangue/alma fora de seu corpo é então um perigo para toda a
aldeia, e não apenas para as pessoas que passam pelas transformações. Ele deve desaparecer
para que a vida da aldeia recomece. Todas as prescrições tendo sido observadas e o sangue
tendo desaparecido, o estado de miori é superado e as atividades começam a ser retomadas.
Este último ponto faz a menarca e a reclusão pós-homicida distintos dos momentos
de nascimento, para os quais a remoção do sangue desincorporado não livra a aldeia da
matéria-alma estrangeira, pois ainda resta sangue na criança.
Crianças Ambíguas
Sustentei que a criança é virtualmente puro sangue, o resultado de uma conjunção
entre o ‘fazer criança’ humano e uma alma genérica. Esta presença da matéria-alma é uma
299
Esses tumores, chamados de porem, referem-se ao tecido crescido de forma anormal e são distintos dos
tumores tykuro, inflamações causadas pela penetração de um objeto alienígena na carne, normalmente um
projétil xamânico.
330
condição perturbadora para os Kanamari vimos algumas das maneiras pelas quais eles a
transformam em corpos, tornando-a parente, ou então expelindo essa substância dos
corpos individuais e da aldeia.
Volto-me agora para certas ambigüidades que envolvem a criança. Os Kanamari
são talvez únicos no panorama das terras baixas da América do Sul em sua notável
ambivalência referente ao desejo de ter filhos. É frequentemente dito sobre os ameríndios
que nada os deixa mais felizes do que estar rodeado de parentes e, particularmente, de
crianças. Isso não apenas os fazem felizes, mas, efetivamente, faz da aldeia um grupo de
parentesco. Gow, por exemplo, diz que, para os Piro, “...a educação das crianças não é algo
que exista no exterior das relações sociais do povo nativo, uma vez que constitui o idioma
central dos elos de parentesco”, e isso porque “a memória do cuidado recebido na infância
irá organizar toda a vida adulta” (1991, 121). Belaunde observa o mesmo para os Airo Pai,
falantes de tukano-ocidental. Este povo possui uma palavra para formação’, ai deoye, que
significa ‘transformar no belo e bom’. Muito deste processo implica em fazer a criança
‘aprender a pensar’, superando assim a sua raiva (2000, 211-2). Este é um problema, pois os
Airo Pai, tal como muitos povos amazônicos, consideram a raiva como uma emoção
desumanizadora: “uma pessoa brava simplesmente não é uma pessoa de verdade ou um
parente, mas um inimigo, um monstro, um predador que falha em reconhecer seus
próprios parentes, tratando-os consequentemente como se fossem presas” (ibid., 209; veja
também 2001, 101-22).
Também os Kanamari valorizam viver com seus parentes em aldeias e são muito
apegados às crianças. Mas nem todos o são da mesma maneira, em todos os momentos de
suas vidas. Poroya me disse uma vez que nada o deixava mais feliz do que ver uma aldeia
cheia de crianças que, um dia, tomarão conta dele e de outros Kanamari que envelhecerem.
Ele é considerado um ‘ancião’ (kidarak) e está na larga categoria de paiko hinuk (‘os
ancestrais/ avós’) para a maioria das crianças no Itacoaí. As mulheres anciãs são chamadas
de hwa (‘as ancestrais/avós’) pela maioria das crianças. O que os torna ‘anciãos/velhos’ e os
distingue das pessoas mais novas que podem também por ventura ser chamados de paiko e
hwa por algumas crianças é o uso sistemático destes termos através das categorias de idade.
Isso faz com que as opiniões sobre as crianças sejam excepcionais. Esse ponto é
importante porque, como penso, a sociedade Kanamari se divide em dois conjuntos: os
jovens e os velhos de um lado, os homens adultos e as mulheres do outro. Esta divisão tem
a ver com certas características do ciclo de vida que unem os velhos aos jovens nos
331
extremos cronológicos de um período da vida humana. Crianças são substância estrangeira,
matéria-alma derivada do mundo primordial que teve de ser feita humana através do
cuidado e do crescimento. Os velhos são, de diversos modos, antigos humanos, que
vislumbram as próprias mortes. Nesse sentido, ambos são excessivamente Jaguar – crianças
são Jaguares que ainda não se tornaram humanas e os velhos foram humanos a
recentemente, estando a caminho de se tornarem Jaguar novamente após a morte. Isso os
une em uma relação de cuidado e afeição que estabelece um contraste com os homens e
mulheres adultos, quase como se os dois grupos formassem visões irreconciliáveis do viver.
É apenas entendendo esta relação que podemos explicar a acentuada ambigüidade que os
adultos mantém com relação às crianças.
Começarei pelo último ponto, enfocando os métodos de contracepção e aborto.
Mostrarei então a potencialização destas preocupações que cercam as crianças através da
análise do nascimento de crianças-espírito adyaba, os ‘imprestáveis’. Por final, voltar-me-ei à
relação entre crianças e avós.
Abortos e contraceptivos
Crianças ou, para ser mais específico, o desejo de ter crianças, traz à tona emoções
conflituosas entre os adultos. Os Kanamari, claro, amam suas crianças e, tal como em
diversas sociedades ameríndias, aldeias sem crianças são impensáveis e simplesmente não
valeriam a pena ser vividas. Ter filhos é em si mesmo uma parte importante para o
estabelecimento do casal como uma unidade, que irá cuidar deles assim como, mais adiante,
de seus netos. Mas este amor pelas crianças ocorre, para a maioria, após o fato. É apenas
depois de a criança ter nascido, após terem crescido um pouco e começarem a mostrar que
podem adquirir consciência e conhecimento e que, portanto, revelam-se como adultos em
potenciais, que este amor se torna incondicional. O que quero enfocar aqui é a
ambiguidade que envolve ter filhos.
mostrei que o ato de dar à luz é chamado de odiok, o que quer dizer ‘dor’. As
mulheres Kanamari dizem ‘temer’ (ya) esta dor e há mesmo um ímpeto na tentativa de adiar
o nascimento. Os Kanamari conhecem um contraceptivo xamânico chamado mahu que é
utilizado para este fim. Este é apenas o nome dado para a substância dyohko existente no
corpo do xamã homem quando é expelida deste e inserida em uma mulher
300
. Os xamãs
300
A única diferença significativa entre o mahu que eu vi e outros dyohko é que este primeiro tende a ser muito
menor.
332
sabem como inserir dyohko em qualquer parte do corpo de uma pessoa: um conhecimento
essencial do aprendizado xamânico. Uma vez colocado no útero de uma mulher, ela ficará
infértil enquanto o mahu estiver dentro dela. Será necessário que um xamã o extraia para
que ela engravide. De fato, a palavra mahu possui também o sentido de ‘infertilidade’. Uma
mulher pode solicitar ao xamã a remoção ou a inserção do mahu de dentro de seu corpo em
diversos estágios de sua vida, libertando-a para relações pré ou extra-conjugais. Aqueles
Kanamari que conhecem melhor os costumes dos brancos chamam o mahu de ‘camisinha
do Kanamari’
301
.
O uso de um mahu permite que as mulheres que passaram da menarca possam ter
relações sexuais antes de se fixarem com um parceiro de casamento. Esse é um período
importante, pois é que as mulheres enchem seus corpos de birak masculino, tornando-se
gorduchas e ‘belas’ (bak), sem o risco da gravidez. De fato, o mahu é por si mesmo dito
engordar as mulheres, e algumas delas dizem que querem ter mahu em seus corpos de modo
que possam parecer belas. Os primeiros casamentos são instáveis, podendo ser arranjados
pelos pais de um casal. Neste caso, o mahu faz com que o casamento possa ser
experimentado antes que o casal tenha um filho e, assim, tenha depois dificuldades em se
separar. Os mahu são também ocasionalmente usados por casais que se envolvem em casos
extraconjugais, assim como por casais que escolheram não mais ter filhos. Disseram-me
que nenhum xamã negaria o pedido de uma mulher para inserir ou remover o mahu de seu
corpo, mas ouvi falar de um caso em que o recurso anticoncepcional foi inserido em uma
mulher a despeito de sua vontade. Essa mulher era casada com um xamã que suspeitara de
sua infidelidade. Por esta razão, ele introduziu o mahu em seu corpo enquanto ela dormia.
De alguma maneira, a mulher sabia sobre este mahu e pediu para que um outro xamã o
removesse, fazendo com que seu marido repetisse outra vez a operação, que ela em seguida
desfez, resultando em um conflito contínuo que divertiu muito os outros Kanamari.
Se estes eventos podem ser vistos não como uma negação de ter filhos, mas como
uma maneira de ter filhos no tempo certo, há um caso em que o mahu serve para fazer com
que uma mulher jamais tenha filhos. Um mahu pode ser inserido no cérebro (kidamin) de
uma ‘menina bêbê’ (ityaro o’pu) através da fontanela anterior (chamada ki-diwahkom, ‘o
coração da cabeça’), assim deixando a menina estéril para sempre. O mahu precisa ser
aplicado antes que se feche a moleira. Ainda que seja inserida no cérebro, ele segue para o
301
Não pude obter qualquer informação sobre os mecanismos que permitem ao mahu evitar a gravidez.
Sabendo que, em outros contextos, o dyohko ‘come’ (-pu) a carne de suas vítimas, perguntei uma vez se os
mahu ‘comiam’ o esperma, mas não obtive resposta.
333
coração, onde o poderá ser extraído por um xamã no futuro, tornando a mulher infértil
para sempre. Os Kanamari dizem às vezes, em Português, que estas mulheres ‘estão
curadas’, ou que elas foram ‘operadas’
302
. três mulheres no Itaquaí que se submeteram a
isso e, em todos os casos, a operação foi feita a pedido de seus pais. Disseram que os pais,
por terem sofrido as privações que caracterizam os períodos de deitar-se’ e as dores do
parto, sentiram pena (omahwa) da menina e decidiram que ela não deveria passar pela
mesma coisa. As mulheres que passaram pela operação costumam se casar e o
frequentemente desejadas como parceiras de casamento, particularmente, mas não apenas,
por homens mais velhos que já tenham filhos
303
.
Mesmo quando a gravidez ocorre, os abortos são comuns. Eles são chamados de
‘matar a criança na barriga da e’ (-ti opatyn awa niama n-a-mi naki
304
). Os Kanamari não
conhecem nenhum abortivo natural e é necessário reunir um grupo de pessoas para que se
realize um aborto. As pessoas pressionam a barriga da mulher grávida, bem abaixo das
costelas, forçando a saída do feto. A barriga da mulher precisa então ser esfregada, para
garantir que todo o feto tenha sido expelido. Os Kanamari chamam isso de ‘amassar a
barriga’ (a-min omirik-mirik). As mulheres Kanamari me contaram que apenas elas sabem
provocar um aborto e que, quando precisam, pedem ajuda das outras mulheres. Alguns
homens, entretanto, disseram-me secretamente que eles também conhecem a técnica e
fizeram abortos em suas esposas e filhas.
O ‘nascimento’ do feto é chamado a-boroh warah, ‘o cadáver nasceu’, a mesma
expressão usada para qualquer natimorto. Os abortos costumam acontecer longe da aldeia,
provavelmente em um roçado. O feto e a placenta são enterrados sem cerimônia onde quer
que tenha ocorrido o aborto. algum interesse em descobrir o sexo do feto, se isso for
possível, o que será então dito no futuro perfeito condicional: poderia ter sido um menino
ou uma menina. Isso acentua a humanidade embrionária do feto, stricto sensu ainda
incorporal, no ponto em que a distinção corporal elementar, aquela entre os sexos – a que é
302
Para os Kulina, Pollock sugeriu que o semelhante awabono causa infertilidade ao bloquear a passagem do
sêmen para o útero e o fluxo de sangue menstrual para fora dele. Trata-se então “...de uma espécie de
inversão da doença normal: doença é uma incorporação imprópria de uma substância masculina [dori, o dyohko
Kulina], ao passo que a infertilidade é um fracasso em incorporar uma substância masculina” (1992, 39). Não
estou certo de que o mahu Kanamari funcione de maneira similar, mas é curiosa a idéia de uma ‘cura’ possível
através da incorporação de uma substância que, de outra maneira, causaria doença.
303
Uma mulher casou-se com um homem que jamais tivera filhos. Quando casaram, ele disse que não queria
filhos, pois tudo o que eles fazem é sujar e bagunçar tudo, e que seria melhor se ficassem apenas os dois,
sozinhos. Este casamento permaneceu estável por cinco anos, até que o homem decidiu deixar sua esposa por
uma amante. Muitos Kanamari dizem que ele assim o fez porque queria ter filhos no final das contas, que sua
esposa não podia produzir. Em janeiro de 2006, os dois reataram.
304
Pode-se dizer também ‘matar a criança na cintura da mãe’, -ti opatyn awa niama n-a-min-ta-n-a-ta.
334
observada no instante do nascimento – não está ainda (completamente) desenvolvida.
Minhas perguntas sobre em que medida o feto era uma ‘pessoa’, tukuna, eram encaradas
com perplexidade e respostas do tipo ‘nós não sabemos’. Suponho que ele poderia ter se
tornado uma pessoa, mas não haveria como se assegurar disso ainda naquele estágio. O
feto abortado é um ‘cadáver’ (-boroh), sem que tenha chegado a ser um corpo (-warah) e,
jamais tendo sido um corpo, é impossível saber exatamente que espécie de corpo ele
poderia ser.
Como se poderia imaginar é impossível enumerar quantos abortos ocorreram de
fato no Itaquaí. Devo entretanto acentuar que muitas das mulheres adultas admitem
regularmente terem abortado, de modo que não se trata de matéria apenas para fofocas e
acusações. Certa vez, eu estava com um grupo de homens e mulheres quando uma mulher
começou a apontar para várias outras, dizendo-me quais haviam abortado. Fiquei sem jeito,
muito embora não parecesse que as outras pessoas tenham se incomodado com isso. Por
não poderem ser eventos solitários, os abortos envolvem um grupo de mulheres, que de
pronto admitirão terem participado em abortos alheios, e que conversam entre si e com
seus maridos sobre o assunto. Os abortos tornam-se portanto assuntos públicos.
Poroya frequentemente tenta desencorajar as pessoas a abortarem. Certa vez,
confrontou publicamente um homem que estava de visita no Massapê, acusando-o de
participar diversas vezes dos abortos de sua filha casada. Poroya acentuou que este era um
comportamento ‘realmente imprestável’ (-dyaba tam) e que era importante que os Kanamari
tivessem muitos filhos, para que aumentassem e tornassem suas aldeias felizes. O homem
respondeu dizendo que havia feito tal coisa em sua aldeia, com suas filhas, e que se tratava
de problema seu e de mais ninguém. A opinião de Poroya era uma exceção, provavelmente
a de um ‘Fiscal de Índio’, reiterando a ênfase dada pela Funai para o povoamento do
Itaquaí, bem como da Funasa, que condena tais práticas. Muitos abortos são considerados
prejudiciais por conta da perda de sangue, mas a maior parte das pessoas o confrontaria
alguém por fazê-los e tampouco rejeitariam o direito de escolha.
O caso acima, no qual o aborto foi dito ter sido iniciado por um homem, foi
excepcional. Todos os outros abortos de que ouvi falar foram iniciados por mulheres, que
o fizeram, disseram-me, por ‘temerem’ (ya) ter filhos. Isso envolve, o apenas medo das
dores e privações do parto, mas um medo genuíno da criança: como disse acima, uma
mulher formulou que ‘é um outro que nos toma’. Isso implica em um medo genuíno da
natureza potencialmente inumana da criança. O fato de, mesmo após o aborto e depois que
335
o cadáver nasceu, as pessoas ainda respeitarem as restrições da couvade, mostra que o
medo se refere à natureza da criança e à dor que ela traz, mais do que às proibições que a
acompanham. Uma vez que não há criança, ou nenhum novo corpo (-warah) vivente
(mesmo que rudimentar) presente, o período de deitar-se que se segue a um aborto ocorre
exclusivamente opatyn- mimi tom, por causa do sangue da criança’, isto é, por causa do
sangue que escorre daquela que quase fora uma e. O fracasso em seguir as restrições
pode contaminar os parentes com este sangue, fazendo com que seus corpos definhem,
que suas peles se enruguem e que seus cabelos caiam. Por si só, a remoção do feto não é
suficiente para extrair o sangue estrangeiro que qualquer criança traz para o espaço da
aldeia.
Crianças-Espírito
O nascimento de crianças-espírito, opatyn adyaba
305
, é também seguido de um
período de ‘deitar-se’, pelas mesmas razões. Passamos pelo conceito de crianças-espírito no
capítulo cinco, na Viagem de Tamakori e Kirak, onde a taboca imprestável revela-se como
uma criança-imprestável (episódio 10). Voltarei a este episódio, que permaneceu não
analisado no capítulo anterior, na medida em que concentra grande parte das preocupações
que envolvem os opatyn adyaba.
Qualquer criança nascida com deformidades físicas visíveis é considerada como
‘criança-espírito’. Isso inclui os bios leporinos, as pernas atrofiadas ou deformadas e
algumas feições grotescas que os Kanamari me relataram, tais como crianças de um olho só
ou com chifres nas cabeças
306
. Em alguns casos, não se sabeimediatamente que a criança
é um espírito. Tal é o caso de um menino mudo de seis anos, apenas recentemente
considerado pelos Kanamari como um opatyn adyaba. Quando as feições adyaba da criança
são imediatamente reconhecidas, decide-se rapidamente que a criança deve ser enterrada
viva, muito embora os Kanamari reconheçam que esta prática não seja mais de todo
realizada.
305
A expressão literalmente significa ‘criança imprestável’. Para a maior parte de minha pesquisa de campo,
considerei que a maneira correta de dizer isso seria opatyn-dyaba, na medida em que a palavra ‘opatyn’, ‘criança’,
toma o lugar do prefixo da terceira pessoa do singular, a-. Parece-me que a maioria dos Kanamari de fato diz
‘opatyn-dyabamas, na única ocasião em que este termo me foi explicado, disseram-me que a maneira correta
seria ‘opatyn adyaba’, de modo que é esta a expressão por mim adotado.
306
Os gêmeos, por outro lado, não causam preocupações aos Kanamari. Eles são simplesmente chamados de
obowa warah-nim, ‘dois nasceram’ ou ‘dois corpos’.
336
Disse acima que os Kanamari consideram que algum grau de comportamento avaro
ou sovina seja inevitável. As pessoas que são essencialmente raivosas, avaras e anti-sociais,
de toda forma, são mais propensas a ter crianças-espírito. Quando eu estava no Itaquaí, por
exemplo, uma criança com lábios leporinos nasceu e decidiu-se, após muita discussão, que
ela não seria enterrada. O nascimento da criança-espírito não era uma surpresa, pois todos
se lembravam do quanto seus pais foram avaros com os alimentos. Mantinham para si
próprios a carne de caça, retirando-se para seus mosquiteiros onde escondiam comida sob
os cobertores. Comportando-se como Jaguares, eles só poderiam gerar uma criança que era
puro espírito, sem qualquer conteúdo humano. Se crianças são matéria-alma a ser moldada
pela humanidade e cuidada pelos pais e avós, as crianças-espírito são criaturas inumanas
pelas quais os Kanamari nada podem fazer.
Crianças-espírito, vale lembrar, são também ‘imprestáveis’, significado literal de
adyaba, e é o comportamento imprestável que leva aos seus nascimentos, assim como foi o
comportamento imprestável de Kirak que transformou a taboca imprestável em uma
criança imprestável (capítulo cinco). Na Viagem, Tamakori e Kirak passaram por tabocas
imprestáveis. Utilizado seu sopro mágico, Tamakori faz com que o único caniço
amadurecido venha a ele. Kirak o quer para si, mesmo que não estejam todos
amadurecidos, e seu irmão concede, dizendo a ele que siga adiante e pegue um. Ele avança
e o tenta agarrar, mas a taboca então se revela como uma criança-espírito que agarra os
seus testículos. Tamakori, entretanto, salva seu irmão através de sua habilidade xamânica e
eles seguem a jornada.
três aspectos do comportamento de Kirak que o qualificam como adyaba. Em
primeiro lugar, a sua recusa recorrente em ouvir seu irmão e em aceitar o sucesso de
Tamakori. Por tentar sempre imitar os atos de seu irmão, a despeito de seus fracassos
inevitáveis, a teimosia de Kirak é simultaneamente tola e engraçada. Em segundo lugar, o
sopro mágico de Tamakori permite que ele traga tranquilamente o caniço para si. Kirak,
por sua vez, avança em direção aos caniços de flecha, tentado agarrá-los, fazendo com que
a flecha-espírito revele-se como uma criança-espírito que agarra seu nis e testículos. A
impetuosidade e falta de moderação, demonstradas por Kirak, são características das
histórias adyaba. Em terceiro lugar, Tamakori traz para si o único caniço que não estava
verde e, portanto, poderia ser usado. Kirak move-se em direção a um dos caniços de flecha
ainda verdes, demonstrando avidez e impaciência, que não condizem às relações de
337
parentesco na aldeia. Tamakori mais uma vez demonstra maestria ao utilizar suas
habilidades xamânicas para consertar o que Kirak insistentemente estraga.
O comportamento adyaba de Kirak resulta no laceramento de seus genitais pela
criança-espírito que é, por sua vez, o produto ou resultado destas espécies de
comportamento. Ele tenta obter um caniço ainda verde, demonstrando falta de
conhecimento e de moderação e, consequentemente, tem seus testículos tornados ‘não-
maduros’, passíveis de produzir apenas espíritos ‘imprestáveis’. Opatyn adyaba são
‘verdadeiramente imprestáveis’ (-dyaba tam) para os Kanamari eles não tem utilidade,
motivo pelo qual os Kanamari, até recentemente, os enterravam vivos. O episódio 10 diz
então explicitamente que, por se comportar de modo Adyaba, negando assim a ‘vida boa’
que pode ser levada entre parentes, torna-se não-parente, produzindo crianças monstruosas
que são ‘imprestáveis’, ou seja, inúteis para os desígnios do parentesco.
Crianças e Velhice
Ainda que os possíveis nascimentos de crianças-espírito assustem a todos, uma
diferença no temor dos adultos pelo nascimento em geral e o desejo dos ‘velhos’ (kidarak)
por netos. Uma pessoa é considerada um velho através da conjunção de uma série de
características. Mulheres velhas normalmente passaram da menopausa e homens velhos
alcançaram uma idade em que seus corpos produzem menos birak. Em ambos os casos, o
resultado é um enfraquecimento do corpo, um ‘envelhecer’ (kidak-pa, ‘tornar-se velho’),
resultando em contínuo ‘cansaço’ (-haiotyuku). Esse cansaço não deve se manifestar como
inatividade, e os velhos são alguns dos participantes mais ávidos das atividades nas aldeias.
É apenas e somente apenas – se as pessoas atingem o status de atyinani, que os Kanamari
glosam como ‘estar velho e inútil, jogado para um canto da casa’, que as atividades cessam.
Este é um estado realmente trágico e as pessoas atyinani são tratadas com desdém. Não se
trata de algo natural ou inevitável, mas sim do resultado da inobservância das precauções
necessárias, de ‘não ser cuidadoso’ quando o corpo começa a entrar em perigo. Os velhos
que foram cuidadosos, por outro lado, são considerados ‘sábios’ (wa-tikokok-yan, ‘aqueles
que tem conhecimento’) e frequentemente conhecerão muitas histórias sobre o u
Antigo. Muitos conhecerão inclusive diversos cantos do Kohana e do Pidah, e serão os
principais cantadores nos rituais, os nohman. Os velhos possuem uma habilidade notável
para se lembrar de todos os seus parentes e de reaçar as relações entre eles.
338
A parte mais importante no processo de se envelhecer talvez esteja em passar o
próprio nome para um certo número de crianças. O sistema de nominação Kanamari é
muito similar ao dos Kulina (Lorrain 1994, 142-7) e tem com preocupação central a
transmissão do nome de um velho para uma criança. Vimos na análise da Jornada de
Tamakori que os nomes (wadik) ‘selam’ uma pessoa ou coisa, freiando assim uma série de
transformações contínuas ou potenciais (capítulo cinco). Por esta razão, as crianças são
idealmente nomeadas apenas após começarem a demonstrar consciência ou conhecimento
(wa-tikok), e o nome por sua vez garante que a criança ‘conheça a terra’ (ityonim tikok), o que
significa ter uma boa vida. Um homem velho pode tomar uma criança por seu homônimo,
dizendo que irá ‘nomeá-la’ (wadik-bu) após o seu nascimento. Seus pais podem também
escolher uma pessoa de G + 1 ou G + 2 com relação à criança.
De fato, ao menos uma diferença significativa entre os Kulina e os Kanamari no
sistema de transmissão de nomes. Enquanto o primeiro parece estar preocupado
principalmente como a transmissão do nome dos mais velhos (em G + 2) para a criança, os
Kanamari terão ao menos um de seus nomes provenientes seja de uma MB, seja de um FZ.
Isso cria uma relação diádica de transmissão de nomes, onde o nomeador mais novo chama
o mais velho de i-kidak, ‘meu velho’, e o nomeador mais velho chama ou mais novo de i-
doko, ‘meu caçula’. Mas os Kanamari devem, idealmente, possuir mais de um nome, e os
outros virão de pessoas claramente consideradas velhas, até mesmo daqueles que morreram
recentemente. Os Kanamari preocupam-se com a possibilidade de que um nome tenda ao
esquecimento, e mortes frequentemente resultarão em crianças novas recebendo os nomes
dos falecidos. Quando cresce uma pessoa e novas crianças nascem, a relação diádica de
nominação torna-se progressivamente socializada, de modo que se torna possível para um
velho homem Kanamari referir-se a todos os meninos na aldeia como i-doko piya, ‘meus
pequenos homens’, ao passo que uma mulher refere-se às meninas como ‘minhas pequenas
mulheres’
307
. Apenas as pessoas ‘velhas’ podem chamar as crianças por estes termos, e o
307
Essa é uma relação vocativa não-reciprocal, pois aqueles que são chamados de ‘meus novos’ não podem
responder, não sabendo ainda falar. Uma discussão aprofundada no sistema de nominação Kanamari me
levaria para longe de meu presente objetivo, mas algumas particularidades devem ser observadas. O primeiro
homônimo caçula de uma pessoa será estabelecido depois que ele ou ela seja considerado como um(a)
‘velho(a)’, e será alguém na posição ZS ou BD. Esta é, de fato, uma importante parte do processo de fazer de
alguém um velho, ao criar uma relação diádica que progressivamente lugar a uma outra genérica, em que
todas as pessoas velhas chamam de ‘crianças’ os seus doko. Ter muitas pessoas que o ‘jovens de alguém’ é
uma situação desejável, vinculando adultos a crianças em relações afetuosas de nominação. É por isso que
muitas pessoas solicitarão os recém-nascidos para seus homônimos, no que se chama de doko odyio, ‘juntar
caçulas’. A inflexão Kariera, tão típica dos povos falantes de Pano, em um sistema de nominação que, em
outros aspectos, é similar aos Kulina Arawak, é curiosa e, de alguma forma, típica das instituições Kanamari, a
meio caminho que estão entre os povos Pano e Arawak.
339
significado geral é que elas portam os seus nomes e irão, após a morte, garantir que não
sejam esquecidos.
Este último ponto configura uma outra particularidade do envelhecer: a capacidade
de antever a própria morte. Quanto mais se envelhece, mais é sentida a falta daqueles que
morreram. Envelhecer é o processo de perder parentesco nas gerações terminologicamente
ascendentes. Neste sentido, considera-se que os verdadeiramente velhos tornaram-se sem
parentes, não apenas porque se transformam nos poucos que sobraram de seu nível
genealógico, mas também porque progressivamente transformam-se em avós para qualquer
um. A condição da velhice encontra paralelo com aquela das crianças, que são ‘sem
parentes’, pois não fizeram parentesco com os vivos e não tem o conhecimento para
distinguir parente de não-parente (ver Gow 2000). Na falta de parentes em gerações
ascendentes, os velhos começam a sonhar com aqueles que morreram. Ambos são, de
modos distintos, ‘lamentados’ (omahwa) pelos adultos.
O termo para ‘avô’ é paiko e, para avó, é hwa. Estes são também os termos usados
para descrever personagens específicos no mito e possuem o significado geral de ‘ancestral’,
como eu havia observado. As pessoas chamadas de avós são assim ancestrais vivos para
aqueles que eles chamam de ‘netos’. Há um só termo para qualquer um, de ambos os sexos,
na G- 2: -pida(h), o mesmo termo para ‘jaguar’
308
. Isso forma o par recíproco: paiko + hwa /
-pida
309
. No próximo capítulo, vou detalhar as implicações disso para o ritual funerário, mas
um aspecto precisa ainda ser frisado aqui. Vimos no capítulo cinco que, na morte, depois
de a alma ter deixado o corpo, uma mecha de cabelo aquela parte do corpo que é
cuidadosamente moldada como humana é cortada e, após um período de luto, enterrada
pelos homens que se tornam Jaguares míticos no ritual de Devir-Jaguar. No caso dos
homens e mulheres velhos, são principalmente estas pessoas que eles chamam de meus
netos/ meus jaguares’ que se tornarão jaguares míticos e enterrarão seus cabelos, fazendo
com que, de ancestrais cujos nomes são lembrados, transformem-se em ancestrais
anônimos, -mowarahi, cuja presença vincula os Kanamari à terra e garante a sua
produtividade.
308
Em kanamari, a aspiração final da palavra parece ser uma função da sintaxe, não possuindo efeito no
significado da palavra (ver capítulo 3 sobre wara[h]). Quando a palavra para neto é colocada em uma frase, ao
invés de ser dita pelo antropólogo para estabelecer a terminologia de parentesco, ela frequentemente leva a
aspiração: i-pidah n-a-wu atya moro kom, ‘meu neto/jaguar quer meu vaso de cerâmica”. A única diferença entre
‘jaguar’ e ‘neto’ se refere ao uso do prefixo pronominal, que transforma –pida(h) em termo de parentesco.
309
Ainda que haja um sentido geral no qual as pessoas mantém relações afetivas com qualquer um na G -2,
quero aqui enfocar os casos mais específicos dos SS ou DD, ou aquelas pessoas na G -2 que carregam o
nome de alguém, onde as relações são particularmente próximas.
340
Isso une netos e avós nos extremos opostos de um continuum Jaguar: crianças
estão ainda muito próximas de suas origens Jaguar e tem ainda de ser moldadas como
humanas, ao passo que, quanto mais velho se fica, mas se aproxima de tornar-se
novamente Jaguar, ao ter um emblema de seu corpo entregue aos Jaguares míticos e, desta
maneira, ajudar a garantir a regeneração da terra. E são precisamente os avós que, mais do
que qualquer outra pessoa, participam na moldagem da humanidade de uma criança. As
crianças são, de fato, literalmente moldadas ou feitas logo após o nascimento, quando as
pessoas na segunda geração ascendente com relação à criança a massageiam, alisando as
formas de seus corpos. Isso é chamado de ‘tornar a criança bela(bak-tiki) e implica em
alisar seu peito em direção às extremidades (a-tyon-tyini, ‘alargar o seu peito’) e suas degas
(a-po-hai-bu, ‘fazer suas nádegas’). Em muitos casos, são os avós que ensinam aos netos as
tarefas sicas, tais como caçar, fazer bebida de mandioca e tecer cestos. Os avós enchem
seus netos de presentes e os protegem do rigor de seus pais.
Pode ainda ter existido mais um aspecto da relação netos/avós que desempenhava
um papel importante no passado, provavelmente no contexto de ‘tornar a criança bela’:
aquele do ornamento corporal. Os Kanamari fazem ainda braceletes de fibra de tucum e
colares de sementes e dentes de animais
310
, mas poucas pessoas realmente os vestem por
algum tempo considerável. No passado, todos os Kanamari tinham o septo nasal
perfurado, no qual inseriam um ornamento semilunar chamado tyiro pru. Disseram me que
era feito de madrepérola coletada em lagos, mas Carvalho (2002, 153) observa que eles
poderiam ser feitos de madeira de pupunheira. Não pude obter muitas informações sobre
estes ornamentos (ao menos não enquanto usados pelos viventes), nem sobre o uso dos
colares no passado. Disseram-me, entretanto, que estes ornamentos eram ‘dados’ (nuhuk)
pelos avós para seus netos do mesmo sexo. Eles faziam isso para que os corpos de seus
netos ficassem belos e porque se importavam (-wu) com eles, provavelmente em uma
maneira similar àquela pela qual lhes atribuem os nomes
311
.
É muito comum que os netos escolham viver com seus avós. Isso ocorre
frequentemente após o divórcio, quando a mãe arranja um novo marido. Certa vez, um
310
Os dentes animais mais comuns são os de macaco, particularmente do macaco barrigudo (Lagothrix
lagotricha). Uma vez vi porém um bracelete feito de dentes de jaguar.
311
Minha etnografia dos ornamentos corporais Kanamari é muito insatisfatória. Talvez eu tenha me deixado
iludir pela falta de tal ornamentação nos dias de hoje. Esse descuido é ainda mais incômodo porque os
Kanamari se encontram em uma área na qual a ornamentação corporal é constitutiva da pessoa. Entre os
Matis, por exemplo, uma criança nasce quase invisível e o os ornamentos que tornam visível o seu corpo,
gradualmente tornando-a humana (Erikson 1996). Sobre a relação entre ornamentação corporal e a noção de
pessoa em outros contextos ameríndios, ver Turner (1971) e Miller (2006).
341
casal decidiu se mudar do Itaquaí de volta para o Mawetek no rio Juruá, e seus filhos novos
decidiram ficar no Remansinho com a sua avó. Em dois casos, isso ocorreu mesmo quando
os pais das crianças e os avós moravam em distintas casas em uma mesma aldeia. A mim
simplesmente explicavam que as crianças em questão, em ambos os casos entre as idades
de cinco e oito anos, ‘queriam’ (-wu) viver com seus avós. Isso ocorre a despeito do fato da
mãe, disseram-me, ser o –warah da criança
312
.
O termo que estou glosando como ‘querer’ é wu, que significa ‘desejar/preocupar-
se/amar’ e é um emblema da relação netos-avós. Espera-se que os avós lembrem-se de seus
netos, mesmo quando estão distantes. A palavra para ‘lembrar-se’ é owunimdak; quando
prefixada, como em i-owunimdak, significa literalmente meu desejo continua a durar’. O
sufixo –dak quer dizer que uma ação ou estado é estendido, normalmente em uma certa
direção ou tempo a partir do local do falante. Assim, ‘lembrar-se’ significa continuar
desejando no futuro ou em direção a um alvo, que faz do lembrar em si mesmo um estado
relativo, predicado em uma orientação mutável. Como Gow mostrou, o desejo na
Amazônia está longe de ser uma idiossincrasia pessoal; trata-se de uma preocupação social
e sua satisfação é “simultaneamente a criação de relações sociais” (1989, 581). ‘Eu esqueço’,
por outro lado, é i-owunimtyuku, ‘meu desejo morreu’. O que alguém esqueceu é aquilo que
está agora além da experiência do parentesco, lembrando que estes conceitos são relativos e
reversíveis.
Ainda que os parentes devam ser sempre lembrados, são os avós que mais se
recordam das crianças, e de cujo cuidado estas se lembram na fase adulta. Todas as pessoas
que me contaram mitos disseram tê-los aprendidos de seus paiko e é destes que elas irão se
lembrar e sentir saudades quando elas próprias se tornarem avós. O próprio processo de
envelhecer, a aquisição de homônimos caçulas e netos, é o de reconhecer, reviver e
valorizar o cuidado que os avós dedicaram a seus netos. E é também o reconhecimento de
que a pessoa será cuidada na própria velhice, e de que haverá pessoas para tornarem-se
Jaguares Míticos e enterrarem seus cabelos na aldeia. Ser um velho é acreditar, como fez
Poroya, que nada deve fazer alguém mais feliz do que viver em aldeias cheias de crianças.
A Caça e seus Perigos
312
Não sei se esse arranjo altera o esquema, de modo que a avó se torne o warah de suas crianças. Suspeito
que este possa ser o caso, considerando a relação entre warah e as relações de alimentação. Diferentemente
do que ocorre em outras partes da Amazônia, de toda forma, em nenhum caso isso levou a uma alteração na
terminologia de parentesco utilizada: avós e netos continuaram a se chamarem enquanto tais, assim como pais
e filhos (ver Gow 1991, 160-1, para um caso no qual essa espécie de arranjo levou a uma mudança na
classificação terminológica).
342
Tendo passado pelas preocupações dos Kanamari relativas às crianças e ao
nascimento, vou agora enfocar mais uma maneira pela qual as crianças são feitas parentes
para e com seus co-residentes. Nesta seção, vou discutir alguns dos problemas que os
Kanamari encontram para transformar animais de caça em alimentos, bem como revisar
algumas das maneiras pelas quais eles lidam com isso.
A Caça
Animais de caça (bara
313
) são corpos (-warah) feitos através de processos estranhos
aos Kanamari. Vimos no capítulo quatro que animais vem do mesmo mundo pré-Viagem
que os humanos, e também que seus corpos compunham os corpos dos Jaguares míticos.
Após o fim destes Jaguares, os animais se libertaram deles mas retornam periodicamente
para alimentarem-se do Jaguar transformado. Os animais são portanto duplamente
perigosos, pois são componentes do Jaguar e se alimentam de seu corpo transformado. No
mito do Jaguar como Mestre da Caça, vimos alguns dos perigos disso para a humanidade,
que comeu o coração cru do Jaguar e começou a se adoeçer. Para que os humanos
consumam carne de caça, eles devem, pois, antes transformá-la em alimento (Fausto 2002).
Por serem ambos corpos, os animais de caça e os Kanamari são seres análogos e, a
despeito de terem corpos com trajetórias distintas, eles ainda assim possuem alguma
similaridade, na medida em que são, simultaneamente, construídos a partir e contra um
mundo que emana dos antigos Jaguares. É bom para os Kanamari que os animais
dependam dos corpos fragmentados dos Jaguares míticos, pois isso leva os animais aos
canamãs, às capoeiras e aos seringais. Em muitas situações, também os Kanamari
costumam ser atraídos para estes lugares, particularmente para os canamãs, por conta da
presença das caças. Esses bolsões onde a caça se reúne são corpos-Jaguar e, portanto,
antitéticos ao tipo de sociabilidade criada na aldeia. Ainda assim, as aldeias precisam se abrir
para chegar até estes corpos-Jaguar, a fim de obter alimento. Vimos a habilidade do Jaguar
em situar tudo através da violência predatória. Mesmo em formas atenuadas, enquanto
seringais e canamãs, eles emergem como uma arena onde todos se reúnem (ainda que por
um curto intervalo de tempo) e a morte acontece.
313
Os Kanamari não tem algo equivalente para a nossa palavra ‘animal’. O termo bara, por si próprio, significa
‘animal de caça’. Portanto, ele exclui os predadores que os Kanamari não consomem, tais como o jaguar, a
anaconda e as serpentes em geral, bem como animais tabu, tais como a preguiça e o tamanduá. O termo
kiwadyo pode ser traduzido como ‘ave’ e kiwadyo obara significa ‘aves de caça’, tais como os mutuns e japós. Os
macacos são também chamados de bara, mas podem ser ainda classificados como bara paohnim.
343
A discussão que segue se refere à destruição dos corpos animais através da ação
humana. Mas, sendo análogos, muitos dos processos que descrevem a destruição dos
corpos animais também se aplicariam aos corpos humanos, com algumas ressalvas que irei
indicar. As particularidades do trato com a morte humana serão consideradas no capítulo
seguinte.
Todos os corpos vivos são designados por –warah. Corpos de animais são feitos ‘na
floresta’ (ityonim naki), através de processos de parentesco exclusivos às espécies animais em
questão. Devemos lembrar, a partir da história de ‘Paca, Veado e Anta’ (capítulo quatro),
que um dos traçõs deste processo é a solidão que se segue à guerra, que leva cada espécia
de animal-pessoa a seguir caminhos separados, rompendo assim as relações que mantinham
com outras espécies equivalentes de animais-pessoas. Abandonados à própria sorte,
distantes das inter-relações que os unia, eles progressivamente ‘tornam-se caça’ (bara-pa):
gente Anta torna-se anta, gente Veado torna-se veado e assim por diante. No começo deste
mito, Dyumi explicou-me que “Caça podia falar, assim como s podemos. Eles eram
nossos parentes; estes que nós comemos agora eram antes nossos parentes. Agora que os
comemos, eles são todos caça”. Não mais parentes dos Kanamari, eles desenvolveram
corpos-caça e podem agora ser alimento.
Ainda assim, isso não afasta completamente o fantasma do canibalismo do
consumo de animais. Eles ainda tem corpos, mesmo que distintos, e todos tem também
potencialmente ‘almas-gente (tukuna-ikonanim), mesmo que estas tenham sido
transformadas pelo viver na floresta’. É necessário agir sobre estes corpos animais, e agir
apropriadamente com relação a eles, para garantir que aquilo que se come é alimento capaz
de produzir parentesco nas aldeias, ao invés de (e este é o perigo) submetê-las a processos
de alteração que as dissolveriam. A separação entre comensalidade e canibalismo é um
importante vetor amazônico para a distinção entre os processos que fazem o parentesco e
aqueles que fazem do parentesco uma outra coisa:
“Há [...] uma concepção difundida de que comer como e com alguém inicia ou completa um
processo de transformação que conduz à identificação com este alguém. O problema
complexifica-se, no entanto, pelo fato de que é igualmente difundida a noção de que comer
alguém desencadeia outro processo de transformação, que conduz à identificação entre o
predador e a presa uma identificação que, como sabemos, é ambivalente, pois não se dá em
uma única direção” (Fausto 2002, 16).
344
Com exceção de certas especificidades da caça de queixadas (ver capítulo quatro), os
processos que os Kanamari usam para distinguir entre as duas modalidades de comer
são, simultaneamente, verbais, comportamentais e contextuais.
Para se referir a um veado, por exemplo, e para garantir que o ouvinte saiba
que o veado está vivo, o falante dirá bahtyi-n-a-warah ou bahtyi-warah
314
, podendo
também adicionar o qualificador tam, o corpo verdadeiro de veado’. Quando um
caçador mata um animal, diz-se que o animal boko-pa e, para dizer que um veado foi
caçado com sucesso, diz-se boko-pa bahtyi. Alguns Kanamari usam a expressão boroh-
pa como um sinônimo de boko-pa, mas outros insistem que boko-pa é o correto. A
incerteza que cerca esta expressão é compreensível, pois mesmo que boko-pa seja o
correto, quer-se com isso dizer boroh-pa. –Boroh é o termo para ‘cadáver’ e o sufixo -pa
implica uma transformação entre estados. O ato de boko-pa faz portanto um corpo (-
warah) transformar-se em cadáver (-boroh)
315
.
O termo boroh pode se referir a qualquer parte do corpo inativa e imóvel. A
barriga excessivamente gorda de alguém, por exemplo, é chamada –boroh nak, ‘grande
cadáver’, e alguns Kanamari dizem mesmo com desprezo que os obesos devem ter
suas barrigas gordas cheias de vermes. Assim, é como se a parte morta de um corpo
um cadáver estivesse anexada a um corpo de resto vivo. Na morte, o corpo
torna-se completamente cadáver, mas há uma série de outros estados mórbidos
capazes de indicar que um cadáver, ao invés de ser antitético ao corpo, é antes uma
característica deste. A palavra para ‘inchar’, por exemplo, é borohtyok’am, que
literalmente significa ‘o cadáver apareceu’. ‘Inchar’ pode ocorrer por uma série de
razões, tais como pelas torções e contusões em geral, ou pelos tumores (tyikuro)
resultantes da presença dos dyohko de um feiticeiro no corpo de alguém. A distensão
e dilatação de partes do corpo são vistas pelos Kanamari como um processo
metonímico do devir-cadáver’, que afeta uma parte do corpo e não o corpo inteiro.
É necessário mitigar o inchaço, pressionando ou aplicando remédios (horonim) na
parte inchada do corpo, ou fazendo com que um xaextraia o projétil estrangeiro
enfiado em uma parte do corpo. Isso significa que o movimento de –warah ? –boroh
não é necessariamente de o única ou irreversível, e também que o corpo vivo
314
Para o uso do prefixo relacional, veja acima. Se vidas sobre se um animal está vivo ou não, dois
traços o em geral apontados para mostrar que o animal ainda está vivo, sendo então um –warah e não um
morto, e portanto um boroh. Pode-se dizer que o animal está ‘respirando’ (huhanim) ou que seu coração está
batendo (a-diwahkom bikam).
315
O termo boko-pa pode ser utilizado para se referir à morte de animais e humanos por meios violentos,
sendo então uma modalidade de tyuku, ‘morrer’, como veremos no próximo capítulo. Boroh pode também ser
utilizado para estados mórbidos de árvores: árvores caídas e pútridas são ditas omam-boroh, ‘cadáver de árvore’.
345
contém o cadáver, nele difundido. O cadáver emana do próprio corpo quando
ocorrem estados mórbidos, colocando a estabilidade do corpo em risco. Se nada é
feito para aliviar estes estados, o –warah dará brecha para o –boroh, e a pessoa ou
animal se tornará um ‘cadáver’, -boroh.
É impossível dizer, em Kanamari, que alguém quer comer o -warah de um
animal específico. O –warah não está acessível para os Kanamari como alimento
316
.
Tampouco está o –boroh. Para que o cadáver se transforme em alimento ou ao
menos para que se aproxime do alimento é necessário que se submeta a mais um
processo: desmembramento, que, tal como vimos no capítulo 3, os Kanamari
chamam de -hai-bu. -Hai significa ‘carne’ e -bu é ‘fazer/produzir’. O termo
literalmente significa ‘transformar em carne’ e refere explicitamente ao
desmembramento do cadáver da caça. Mais ainda, ele se refere principalmente ao
processo executado nas casas. O caçador pode desarticular as partes do animal a fim
de facilitar o transporte para a aldeia, fazendo com que caiba em uma cesta de carga
(tom) improvisada. Se assim o fizer, porém, ele não removeantecipadamente toda a
sua pele. -Dak-puni, literalmente ‘remover pele’, é feito pelos homens na aldeia, na
casa para a qual o caçador trouxe a presa. Ela é então deixada ali até que as mulheres
iniciem o processo de transformar em carne, -hai-bu, isto é, desmembrá-la.
A carne de caça é, de um modo geral, chamada de bara-hai e a carne humana
de tukuna-hai. A última formulação, de toda forma, é raramente escutada, exceto
quando se discute algumas das supostas práticas desumanas atribuídas a outros
ameríndios, particularmente aos Korubo, dos quais dizem que comem humanos, isto
é, os Kanamari. Dizem também que eles comem brancos e, neste caso, comem
kariwa-hai. O termo -hai é, de toda forma, aplicado para os humanos viventes em
algumas situações. Uma ferida em uma parte específica do corpo que revela a carne
receberá o nome daquele corpo seguido de -hai: assim, um ferimento em um dedo
pode ser referido como i-ih-kom-hai, ‘a carne de meu dedo’
317
. Em geral, as referências
à fisicalidade do corpo se utilizarão de -hai: tyo-hai significa ‘nossa carne’. Isso aparece
também durante algumas patologias, particularmente naquelas causadas pelos dardos
xamânicos dyohko. Um dos métodos preferidos pelos feiticeiros para causar
ferimentos é bityi-odyohko, dardo-verme. Ele cria um tumor cheio de pus, conforme o
316
Veja, em contraste, o termo Wari’ para ‘corpo’, -kwere, que quer dizer “uma maneira de ser” mas também
“carne como substância corporal”, de modo que um Wari’ pode dizer que ele ou ela quer comer o –kwere de
um animal de caça específico (Vilaça 2005, 449-50).
317
A palavra genérica para ferida é ohon. Construções com a palavra –hai referem-se a uma ferida numa parte
corporal específica.
346
verme vai comendo a carne (-hai) de sua vítima. Vimos que isso termina em inchaço,
borohtyokam, a emergência de uma parte-cadáver através do corpo vivo. O dardo
precisa ser sugado por um xamã, sob o risco de morte da vítima.
Os processos que ocorrem no corpo do animal são expressados verbalmente,
mas também implicam em movimento contrário e em direção à aldeia. Os homens
deixam as aldeias e vão para seus locais de caça preferidos, onde eles ‘encontram’
(tomtam) o -warah de animais de caça. Eles matarão estes animais transformando-os
em ‘cadáveres’, -boroh. O caçador carrega então este cadáver de volta para a aldeia.
Ele pode desmembrar partes dele para facilitar a viagem e, em caso de caça grande,
tal como uma anta ou um bando de queixadas, ele deixará algo/alguns do(s)
cadáver(es) na floresta, preferivelmente sob a água para que fique preservado, de
modo que possa depois retornar para pegá-lo. Seja qual for o processo adotado, o
cadáver chegará na aldeia em forma reconhecível, com partes de sua pele, de modo
que mulheres e crianças, assistindo de longe, o reconheçam e gritem, por exemplo,
boko-pa mok, ‘a anta morreu!’. As mulheres se assegurarão de que seus fogos estejam
acesos e as crianças cercarão o caçador em um frenesi brincalhão, cutucando o
animal morto carregado pelo caçador, arremessando flechas com seus arcos de
brinquedo e dizendo a parte do animal que vão comer.
“As crianças fazem assim”, disseram-me, “porque elas não são têm
conhecimento” (wa-tikok tunim drim). O comportamento delas contrasta com o dos
adultos, particularmente com o caçador taciturno e sua esposa apreensiva. Os
caçadores vão atravessar o pátio da aldeia e levar o cadáver para uma casa para a
casa do chefe em caso de aldeias pequenas, mas ocasionalmente também para as suas
próprias, se não coincidirem com a do chefe. O caçador a carregará pela a casa e a
deixará cair, com indiferença, no chão próximo ao fogão. As crianças podem se
amontoar em volta do corpo, mas homens e mulheres nem mesmo olharão para a
caça. O caçador dará as costas e se sentará longe da carcaça solitária. Ninguém falará
com ele, ou o fará apenas em sussurros. Alguns homens, quase sempre aqueles que
não estavam presentes na caça, começarão a remover a pele (-dak-puni). Isso
acontecerá algum tempo antes de as mulheres, conduzidas pela esposa do chefe,
iniciarem o desmembramento da carcaça, -hai-bu.
uma ambiguidade no tratamento verbal que a carcaça recebe antes do
desmembramento. É o cadáver do animal (-boroh) que é trazido para a aldeia, mas
uma vez tendo sido colocado no chão da casa, algumas pessoas, se o fizerem de todo,
347
a ele se referirão pelo termo bara-hai, carne de caça’, mesmo antes que se inicie o
processo de retalhamento da carne. Parece haver um limite espacial para a extensão
conceitual de um ‘cadáver’: ele pode existir em aldeias, mas o em casas. Neste
estágio, é claro que as pessoas vão consumir o animal, mas ele ainda o foi
transformado em carne, ainda não tendo sido portanto partilhado em contextos de
produção de parentesco. Esta é uma das razões pelas quais é preferível que o se
faça nenhuma referência a ele. uma área cinzenta na qual o movimento -boroh ?
-hai ainda não se consolidou e que expressa a preocupação pelos cadáveres que
estão diante da fogueira esperando para serem tratados, por mais que não devessem
existir dentro das casas.
Acredito que uma parte significativa dessa ambiguidade se refira à pele do
animal. O termo para carne, -hai, refere-se à parte interna da maioria das coisas, em
contraste com seu envelope externo (-dak). No caso de animais e humanos, -dak é
também parte de duas palavras Kanamari para as roupas dos brancos: tyamahdak
(‘pele de algodão’) e kariwadak (‘pele de branco’)
318
. O processo de ‘fazer carne’
começa apenas depois que a pele foi removida, e a desconfortável ‘área cinzenta’
espaço para uma atmosfera de convívio, na qual as mulheres trabalham juntas para
retalhar a carcaça animal. A pele é frequentemente arremessada no rio
319
, enquanto a
carne, -hai, resultante desse processo começa a circular na esfera do parentesco. As
mulheres aparecerão na casa onde a carne está sendo produzida e se sentarão,
esperando receber a sua parte pela mulher ou mulheres encarregadas do
retalhamento. Muitas receberão e retornarão às suas casas, onde a carne será
cozinhada.
Antes de ser cozinhada ou tratada, a carne é crua’ (-oni) e pode circular entre
as moradias, de modo a ser preparada em casas diferentes da mesma aldeia, uma das
318
A distinção entre –dak/-hai e sua relação com a vestimenta parece apontar para ressonâncias simbólicas
mais abrangentes, em um contexto etnográfico onde, muito frequentemente, ‘a vestimenta é um corpo’: “we
are dealing with societies which inscribe efficacious meanings onto the skin, and which use animal masks (or
at least know their principle) endowed with the power metaphysically to transform the identities of those who
wear them [...]. To put on mask-clothing is not so much to conceal a human essence beneath an animal
appearance, but rather to activate the powers of a different body” (Viveiros de Castro 1996, 482; veja também
Fausto 2002, 14-9; Gow 2001, 103-29, 200-2; Lagrou 1998, 159-208; Vilaça 1999). Parece-me, portanto, que a
pele é aqui um índice da agência potencial do animal morto, que ainda precisa ser feito carne para o consumo.
Como diz Fausto, “... o corpo zoomórfico não é uma unidade monolítica, um substrato mecânico habitado
por uma essência humanóide. Cada uma das suas partes é, em medidas distintas, um edifício de ‘múltiplas
almas’ (no prelo, 39; ver também Hugh-Jones 1996). No próximo capítulo, discutirei algumas
transformações sofridas pelos dyohko familiares que operam na pele.
319
Até recentemente, os Kanamari secariam o couro das caças no sol e o venderiam para os brancos,
particularmente os de queixadas e caetitus. No presente, porém, a FPEVJ o permite que os Kanamari
levem os couros para Atalaia do Norte.
348
menores distinções espaciais reconhecidas pelos Kanamari. um conjunto de
tratamentos culinários aos quais pode ser submetida a carne, tais como assar (-bok-),
cozinhar (-wahak-), defumar (-koroh-) ou salgar (-pety-). Os dois primeiros a deixam
pronta para o consumo, os dois últimos a preparam para o armazenamento
320
, ainda
que o termo utilizado para ‘cozinhar’, wahak, seja usado para designar os processos
culinários de um modo geral. A carne que recebeu alguma forma de tratamento
culinário não deve circular entre as casas em uma aldeia, mas ser comida na casa em
que foi preparada ou, caso seja salgada, cozinhada depois, possivelmente em viagens.
Seu consumo em uma casa não será limitado às pessoas que nela dormem
regularmente: ela será servida a qualquer pessoa da aldeia que estiver presente,
particularmente aos homens, que circulam mais entre as casas do que as mulheres.
Isso é especialmente verdadeiro para a casa do chefe, que frequentemente terá mais
carne, que grande parte dela é levada para lá, sendo assim um lugar onde qualquer
um pode ir em busca de uma refeição. Como vimos no capítulo três, de manhã, antes
que as atividades diárias tenham sido decididas, aldeias inteiras podem se agrupar na
casa do chefe para comer os restos do dia anterior.
Toda a carne que sofreu tratamento culinário é dita ser ‘não crua’ (-oni tu) e é
considerada ‘comida’ (tyawaihmini). Isso nos permite estabelecer a seguinte série
referentes ao tratamento verbal ao qual a caça é submetida, bem como aos processos
que afetam os termos da série:
-warah ? -boroh ? -hai ? tyawahmini
boko-pa hai-bu wahak
A série representa o movimento dos corpos animais feitos na floresta até o
alimento produzido nas casas Kanamari. Trata-se de uma simplificação,
evidentemente, e sempre o risco, alguns dos quais mencionados, de que cada
processo tenha sido insuficiente para a movimentação através das posições da série.
A série permite também enxergar as dificuldades desencadeadas pela presença
de corpos de caças vivos na aldeia. Não maneira de a caça existir com segurança
na aldeia, exceto como cadáver e no processo de se tornar carne. Viver entre
320
Outro destino possível para a carne é o apodrecimento (-paha-). Este é sempre indesejável, mas ocorre às
vezes com partes da carne que não foram devidamente salgadas ou, nos casos mais raros, principalmente
durante as viagens, quando não sal suficiente para preservar toda a carne resultante de uma grande caçada.
Os Kanamari não deixarão de comer a carne que está ‘um pouco podre’ (paha-nahan), mas não se trata de algo
de que se orgulhem. Associam explicitamente tal prática aos Dyapa, principalmente aos Marubo.
349
parentes é viver com pessoas que tiveram seus corpos fabricados por maneiras
similares, no caso dos humanos sob um corpo-chefe. Outras comunidades, bacias
hidrográficas e sub-grupos tem seus corpos fabricados de maneira distintas, mas
análogas. A caça, entretanto, não pode jamais existir em uma aldeia no seu estado -
warah. Os Kanamari criam como xerimbabos os filhotes de virtualmente todos os
animais de caça. No processo de tornar-se xerimbabo, entretanto, eles perdem seus
corpos para a pessoa que os cria, normalmente uma mulher. Esta pessoa cria então o
animal, removendo seus dentes e garras, o alimentando e protegendo
321
, tornando-se
então o –warah, ‘corpo/dono’ daquele animal. Como xerimbabos, eles não podem ser
caça, isto é, não podem ser comidos. É apenas perdendo seus corpos, seja
entregando-o a um corpo humano ou tornando-se cadáver, que os animais podem
entrar no espaço da aldeia, espera-se, sem ameaçar os viventes
322
.
Quando questionados sobre cada um dos processos envolvidos nas séries, os
Kanamari respondiam que eles precisavam ‘ser cuidadosos’ (to-hia-dak), pois ‘a caça
era gente no passado’ (atukuna toninim bara anim), e que Tamakori é quem os havia
transformado para que os Kanamari pudessem caçá-los. O termo tohia(ik), como
vimos, é o termo genérico para proibições, que são acentuadas durante o período de
‘deitar-se’. Toda carne de caça é perigosa e requer cuidado, pois possuem ‘alma-
gente’. Vou agora me voltar a algumas das consequências disso.
Caça e alma-gente
Todos os animais tem uma alma. Alguns animais, particularmente os bem
pequenos, podem possuir uma alma completamente inofensiva, facilmente
‘assoprada’ (topohman) por qualquer um que os matar. Esse é, por exemplo, o caso da
piaba, que pode ser comida pelas pessoas que ‘estão deitadas’ em reclusão. Assopra-
se simplesmente no ar e a sua alma se vai, jamais causando qualquer mal aos viventes.
Os peixes, em geral, tem almas frágeis, e nunca testemunhei qualquer caso de um
peixe que tenha causado mal aos viventes. Outros animais aquáticos tais como o
boto e peixe-boi são, entretanto, uma exceção a isso
323
.
321
Outro método usado pelas mulheres é passar o filhote na fumaça de suas fogueiras, para que cresça
acostumado com a casa e se torne incapaz de deixá-la.
322
Sterpin (1993, 56-60) sustentou que os animais ‘corretos’ são aqueles conscientes do que são, mostrando
ferocidade e selvageria. Animais cativos, por outro lado, perdem sua consciência e, nas palavras de Fausto
(2001, 537), “um sujeito inconsciente é um sujeito alienado, incapaz de fazer prevalecer sua perspectiva...”.
323
Os Kanamari consideram ‘peixe com pele’ (-dak ho-nim), particularmente as variedades grandes, como mais
perigosos do que os peixes com escamas. Alguns deles são proibidos durante os períodos de ‘ser cuidadoso’
350
Outros animais que possuem alma podem causar males aos humanos, se não
forem tomadas as precauções necessárias que cercam a caça. Frequentemente, estas
não são suficientes e, mesmo que o tratamento verbal referente à caça seja seguido, a
sua alma pode causar mal às crianças pequenas. De fato, não é sequer necessário que
a caça seja morta: a morte natural de um animal considerado capaz de causar males
nas proximidades da aldeia é suficiente para que seus residentes estejam ameaçados.
vimos que a alma genérica é uma ‘alma-gente’, tukuna ikonanim. Sendo
assim, qualquer alma pode ameaçar os viventes e não se saberá, de imediato, qual
forma a alma tinha quando existia em seu estado –warah. As pessoas podem tentar
adivinhar, baseando-se em eventos recentes. Se uma pessoa morreu recentemente,
pode se sugerir que esta sua alma é a que anda assombrando os viventes. A pessoa
que morreu não precisa ter sido em vida um co-residente. Se é sabido que uma
pessoa de longe – digamos, no Javari ou nas aldeias do Juruá – morreu recentemente,
sua alma pode ser aquela presente na aldeia. Pode-se também observar que fulano
matou um animal, caso em que a alma poderá ser referida como bara-ikonanim, ‘alma-
caça’. De toda forma, é sempre impossível saber a princípio exatamente que forma
tem uma determinada alma. Alguns métodos se fazem então necessários para
assegurar-se de sua proveniência.
Diz-se que as almas ‘vem pegar’ (hu-dyi) a alma das crianças, especialmente
durante a noite, fazendo com que ela chore. Qualquer choro de criança é motivo de
preocupação, mas quando uma criança chora durante uma noite toda é porque uma
alma a veio buscar. Os Kanamari normalmente acordam em vários momentos
durante a madrugada, imediatamente despertando os outros a fim de conversar. Em
geral, eles o dormem por mais de duas horas consecutivas e uma noite de sono
será sempre pontuada por conversas, nas quais as pessoas, deitadas em suas redes,
falam e através da casa e, ocasionalmente, através da aldeia com outras pessoas em
suas redes. Algumas vezes, as pessoas acordam e começam a cantar. Outros que
também estiverem despertos escutarão os cantos e os comentarão. Numa noite em
que chora uma criança, entretanto, ninguém dorme e ninguém fala ou canta. Ficam
deitados despertos, prestando atenção na criança e esperando que seu choro acabe.
Na manhã após tal noite, decide-se sempre que alguém irá buscar omamdak,
‘casca de árvore’, para preparar a ‘infusão de casca de árvore’ (omamdak-hi) usada para
‘assoprar a alma’ (-ikonanim topohma’-na). Os Kanamari explicaram-me que omandak é a
(tohiaik). estão incluídos todos os peixes da família Pimelodidae, dentre os quais o jundiá, o surubim e o
caparari são os mais comumente pescados.
351
casca de qualquer árvore grande e, quando as vi, pareciam haver variações nos tipos
de casca utilizados para fazer a infusão. Na maioria dos casos, a casca e a infusão
possuíam uma coloração avermelhada, mas, em outros, a casca era muito escura,
ainda que a bebida derivada tendesse a ser mais clara. Os Kanamari o muito
cuidadosos em distinguir variedades de árvores e suas propriedades, de modo que me
confundiu um pouco esta ‘casca de árvore’ indefinida. De toda forma, eles
garantiram que se tratava da casca de qualquer árvore, com apenas uma precaução: a
casca deve ser obtida ‘na floresta’ (ityonim naki), não podendo ser extraída de árvores
que estejam próximas à aldeia. Por consequência, de manhã bem cedo qualquer
homem mas frequentemente aquele vai beber a infusão vai procurar a casca de
árvore, partindo em sua canoa e retornando algumas horas mais tarde.
Ele traz omamdak suficiente apenas para a infusão, que a casca precisa estar
sempre fresca. O homem que a beberá prepara então o fogo na fogueira, se é que
alguém não acendeu para ele, e mistura as tiras de casca com água em uma panela.
Ele deixa a água quase no ponto de fervura, em seguida removendo-a do fogo e
mexendo. Deixa com que esfrie um pouco, toma um gole e então assopra na criança,
particularmente em seus ouvidos, boca, nariz e coração. Enquanto assopra, gotas da
infusão omamdak são também assopradas no corpo da criança. Diz-se que o homem
está ‘chamando’ (hokam) nestas partes do corpo: ‘a-matyadak hokam’, ‘chamando em
seu ouvido’, por exemplo. Ele está chamando a alma que causou mal à criança
durante a madrugada na aldeia, assoprando omamdak nas partes do corpo mais
frequentemente atacadas por elas. Ainda que a alma ande assustando a criança à
noite, durante o dia ela pode ter ido embora e, para que seja permanentemente
assoprada, é necessário primeiro que ela se faça presente na aldeia.
O bebedor de omamdak leva então a panela com a infusão para uma área
próxima do exterior da aldeia. Em Bananeira, era sempre na mata próxima ao
caminho que levava ao igarapé onde as pessoas tomavam banho e lavavam suas
coisas. Esta área é dita não ser mais na aldeia sendo, para os presentes propósitos,
considerada como ‘na floresta’, ityonim naki. Ele bebe a infusão de novo e começa a
murumurar alto e demoradamente, ‘uuuuuuuuhhhhhhh’. Diz-se agora que o homem
‘está uh’ (uh’am), tentando ‘ver a alma’ (a-ikonanim hiknim) que ameaça a criança e que
se manifestou nas proximidades da aldeia, sendo assim identificada. Uma vez que
ela foi avistada, ele a assopra cuspindo um pouco da infusão omamdak que ainda está
em sua boca na direção da alma. Ele retorna então para aonde está a criança, bebe o
352
que restou do omamdak-hi, suga nas mesmas partes do corpo em que antes assoprou e
então, voltando sua cabeça para longe da criança, assopra no ar. Ele está agora
extraindo a alma que aflige a criança e a assoprando, tal como fez quando estava ‘uh’
na floresta. Em muitos casos, apenas isso é necessário e a alma parte, sendo
assoprada em direção ao Céu Interior, aonde vai permanecer. Ela não causa mais mal
à criança, que está então curada.
O consumo de omamdak foi ensinado aos Kanamari muito tempo pela
jaguatirica. Certos Jaguares foram mortos pela gente-animal, terminando de uma vez
por todas com o reinado de Jaguar na terra. Os poucos últimos recusaram-se a partir.
Jaguatirica ensinou então aos humanos como fazer a infusão de omamdak para
assoprar os últimos Jaguares. É por isso, dizem os Kanamari, que não Jaguares
míticos nesta terra, ainda que o destino final destes últimos Jaguares permaneça não
especificada
324
. É por isso que os Kanamari algumas vezes se referem ao omamdak
como ‘a casca de árvore da jaguatirica’ (kawahiri nawa omamdak).
Os Kanamari dizem que o uso de omamdak é algo acessível a qualquer
homem adulto ou mais velho. Ainda assim, os velhos são os mais hábeis nisso e na
identificação correta da alma inconveniente, assoprando-a então para sempre. Isso se
tornou claro em dois casos nos quais omamdak foi bebido na aldeia de Bananeira.
Kodoh, o homem mais velho, era considerado um excelente bebedor de omamdak.
Uma noite, uma menina pequena chorou continuamente porque seu corpo estava
‘inchado’ (borohtyokam), um estado mórbido que pode terminar em morte, sinalizando
a emergência de um cadáver onde deveria haver um corpo, mesmo que incipiente, no
caso da criança. No dia seguinte, Kodoh foi buscar casca de árvore e bebeu a infusão.
Ele o apenas assoprou com sucesso a alma para seu destino, mas a identificou
corretamente como duas ‘almas-caça’, a de um jaboti que eles haviam acabado de
comer e a de um macaco-aranha que eles haviam comido já há algum tempo.
Ressaltaram que, quando comeram o macaco, a mãe da criança riu de suas feições, o
que deixou com raiva a alma do macaco-aranha. Por conta disso, ela buscou vingança
(ohunhuk) dos viventes. As duas almas foram assopradas com sucesso e a criança
curada.
Noutro caso em que uma criança chorou por toda a noite, Kodoh não estava
presente e Mado, um homem com cerca de trinta e cinco anos, bebeu a infusão
324
Estes últimos Jaguares eram os inteiros e poderosos, e o os jaguares diminuidos que existem hoje.
Alguns Kanamari dizem que, após terem sido assoprados, eles se transformaram em um tipo abominável e
agressivo de abelha chamado de pidah munya, ‘abelha-jaguar’ (‘aruanã no português regional).
353
omamdak que ele mesmo havia buscado e fervido. Não havia diferença significativa na
maneira como ele havia bebido e cuidado da criança e o modo como havia feito
Kodoh. A criança foi curada com sucesso, mas Mado não pôde dizer às pessoas da
aldeia que forma tinha a alma que afligia a criança. Ele disse apenas que se tratava de
uma ‘alma-gente’ (tukuna ikonanim), deixando o agressor em um estado genérico. Isso
não foi considerado como suficiente pelos Kanamari, que passaram o resto do dia
tentando se lembrar do que haviam comido nas últimas semanas que poderia ter
causado mal. Procuravam também se lembrar das mortes recentes de pessoas
Kanamari, para que se assegurassem do tipo de alma em questão.
Toda caça cuja alma pode ameaçar os viventes são chamadas de bara adyaba,
pelo menos quando agem desta maneira. Vimos que adyaba são espíritos imprestáveis
associados à alma dos mortos há muito tempo (ancestrais sem nome, portanto).
Contaram-me que “bara adyaba é como chamamos a alma deles; a alma dos animais
mortos é adyaba. É possível subdividir bara adyaba em três tipos. O primeiro
compreende qualquer animal grande, mais frequentemente os mamíferos, que são
comidos pelos Kanamari: são ditos animais com patas’
325
. Os caetitus, por exemplo,
tem a reputação de comer o coração das pessoas, enquanto as cotias tornam
rapidamente grisalhos os cabelos. O segundo tipo compreende os animais dos
brancos criados nas aldeias, particularmente porcos e cachorros. Estes animais
raramente são mortos pelos Kanamari. Cachorros são mantidos para as caçadas e
para proteger a aldeia dos feiticeiros; porcos são vendidos para os brancos. Suas
mortes são quase sempre devidas a causas naturais, acentuando o fato de que a
presença de almas estrangeiras está para além da agência dos Kanamari. Os cadáveres
de cachorros mortos são frequentemente jogados no rio ou na floresta, longe da
aldeia. O terceiro tipo compreende os animais que não tem numa parte-alimento,
sendo portanto puro espírito, dos quais três são prototípicos: o jaguar, a anaconda e
o jacaré açú. Estes últimos são os únicos animais chamados de bara adyaba em vida,
sendo pura matéria-alma. A agência a que a maioria dos animais atinge quando eles
deixam seus corpos físicos está presente nos bara adyaba viventes, que são assim
particularmente perigosos. Sua morte nas proximidades de uma aldeia é um mau
agouro e, se alguém mata algum deles, precisará ‘ser cuidadoso’ (tohiaik), de
preferência se distanciando da maioria das atividades e mesmo ‘deitando-se’, se
325
duas exceções significativas a isso. Disseram-me que a alma dos queixadas nunca atacam os viventes.
Isso talvez porque eles foram outrora Kanamari (ver capítulo cinco) que foram inimizados, e
consequentemente atacam os Kanamari em vida. A anta é o outro animal que parece ser seguro, muito
embora eu não tenha obtido explicações para isso.
354
houver crianças pequenas presentes. Vê-los é causa suficiente para preocupação;
matá-los é considerado como uma insensatez.
Os Kanamari, portanto, parecem distinguir animais de maneira similar aos
Kaxinawá: aqueles, como as pequenas piabas, que não tem virtualmente nenhum
aspecto alma; aqueles que são feitos da mesma ‘pessoa-alma’ que os Kanamari (bara);
e aqueles que são pura alma, os bara adyaba (ver Lagrou 1998, 58-61; Fausto 2002).
Estes últimos animais, no entanto, são também relacionados às ‘almas-gente’, ou a
um tukuna-ikonanim predador. Isso ficará claro na exposição do destino pós-morte do
corpo e da alma no próximo capítulo, mas devo dizer que as pessoas que atuam de
maneiras ‘imprestáveis’ enquanto estão vivas aqueles que são sovinas e bravos e
matam gente não o para o Céu Interior, mas retornam para a floresta (ityonim),
onde frequentemente se transformam em bara adyaba, continuando a causar males aos
viventes. Todo tukuna-ikonanim que causa mal às pessoas atua de um modo adyaba,
mas a maioria não tem a intenção de causa mal. Eles assim o fazem quase que por
default: como todo ser incorpóreo, eles são atraídos para os corpos, que eles
‘desejam’ (-wu) e de quem ‘se lembram’ (-wunimdak), neste processo fazendo com que
o corpo definhe por sobrecarregá-lo de matéria-alma. Estas almas irão eventualmente
encontrar seu caminho para o Céu Interior, onde deixarão de causar males aos
viventes. Mas aqueles que foram predadores em vida tornam-se novamente
predadores após a morte e ficam por aqui, para sempre.
Diferentemente de outros grupos ameríndios, almas, mesmo aquelas que
tiveram corpos animais, aparentemente não procuram fazer dos viventes ‘seus
parentes’ (Fausto 2002, 13). Vilaça, por exemplo, diz que os Wari’ consideram “... a
agência animal como parte do processo da doença, uma vez que algumas doenças
que afetam as crianças se originam no desejo do animal de tomá-la para si a fim de
que vivam como parente” (2002, 357). A primeira parte da afirmação é verdade para
os Kanamari, mas a segunda é um pouco diferente. Os Kanamari dizem que a alma
de um animal morto vai em direção do corpo dos viventes e que, em alguns casos,
isso faz com que o corpo morra e sua alma se desprenda, embora o processo pelo
qual esta alma passará seja exatamente o mesmo que, de qualquer maneira, se segue à
morte. É possível que a criança ou pessoa afetada tome algum dos atributos da
espécie agressora, mas o processo de tornar a pessoa parente do animal se é que
existe de todo – é abortado na inevitável morte da pessoa. Em um caso, disseram-me
que uma criança, ainda no útero de sua mãe, fora afetada por um bara adyaba e suas
355
mãos se atrofiaram, começando a parecer com as patas de um jaguar. A criança
nasceu e morreu logo em seguida. Não se tornou entretanto jaguar, tendo antes
partido em direção ao Céu Interior para viver com humanos.
Isso pode ser explicado pelo fato de que caça, assim como gente, seguem
para o mesmo lugar. Animais não-bara adyaba que morrem e tem suas almas
assopradas vão para o Céu Interior, onde eventualmente recebem um novo corpo,
um corpo que é uma réplica exata daquele tinham na terra. Desta forma, cotias
tornam-se cotias celestes, macacos-aranha tornam-se macacos-aranhas celestes. No
céu, eles se tornam a caça dos Kohana. As pessoas que as almas-caça matam e levam
consigo para o Céu Interior recebem eventualmente seu próprio corpo Kohana, tal
como ocorre na morte. Aqueles animais que são bara adyaba em vida, entretanto, não
vão para o u Interior, pois é dito que os Kohana não os querem por lá. Ao invés
disso, eles eventualmente crescem em novos corpos aqui na terra; corpos que,
novamente, possuem a mesma forma que eles tinham antes. As crianças por eles
mortas seguem para o Céu Interior. As doenças, assim, são causadas pelo desejo de
vingança de um animal sobre os viventes e, se não forem evitadas, resultam em
morte, que segue então o seu trajeto normal tal como na morte por outras causas (ver
o próximo capítulo). Assim como para os Kaxinawá, a doença para os Kanamari é
um processo de ‘tornar-se outro’ (Lagrou 1998, 56-8), mas seu resultado final é a
aquisição de um corpo celestial Kohana, e o a transformação em outra espécie
animal, aqui ou no outro mundo.
Ainda que haja afirmações contrárias, as almas em sua maioria afligem as
crianças
326
. A única razão que me foi dada para tal é a de que as crianças são ‘sangue
novo’ (-mimi aboawa), o que eu também entendo como querendo dizer que elas são
quase puro sangue, isto é, pura alma. Como vimos, as almas das crianças ‘não são
maduras’ (para tu), o que significa que elas o foram feitas em um corpo –warah.
Lima argumentou que uma característica dos espíritos é a de verem apenas uma parte
específica dos humanos: “se um espírito me vê, aquilo que de mim eu própria
não posso ver: minha alma, a qual representa todo o meu corpo para ele, toda a
minha pessoa” (2002, 12). Isso pode ser verdade para os Kanamari no que concerne
326
Isso não é inteiramente verdadeiro, pois uma alma que aflige o corpo da criança faz com que toda a aldeia
fique miori, azarada. A alma deve então ser removida para que a aldeia deixe de ficar miori. O único caso que
testemunhei, no qual uma alma fora diretamente responsável pelo mal causado a um adulto, referia-se a uma
mulher que pisou acidentalmente no sangue de uma cobra surucucu morta por seu marido. A surucucu é
qualificada como bara adyaba. Tal contato direto com o sangue de um animal que é ainda pura alma deixou a
mulher com febre e dores de cabeça. Ela chegou a ir a Atalaia do Norte para se tratar.
356
aos espíritos dyohko, mas o problema é ligeiramente diferente para as almas
desincorporadas. Ela são aptas apenas para ver outras almas, motivo pelo qual
podem ver crianças, mas não corpos adultos feitos pelas modalidades humanas do
parentesco. Fazer corpos significa colocar o corpo no primeiro plano com relação à
alma. Pelas mesmas razões, mas por outra perspectiva, os velhos são capazes de ver
estas almas, após beberem omamdak, e descrever a sua forma para a aldeia. Os adultos
não as podem ver, ou apenas as vêem vagamente, fazem apenas suposições sobre sua
forma. Dada a associação entre as crianças e os velhos, ambos estando nos dois
extremos temporais da humanidade (e, portanto, mais próximos de Jaguar), não
surpreende que os dois tenham acesso privilegiado às almas que eles foram ou nas
quais irão mais uma vez se tornar, ao menos até que possam obter um corpo Kohana
no Céu Interior.
Quando os Kanamari consideram as razões pelas quais as almas assombram
os viventes, eles forjam uma distinção entre ‘almas-caça’ e as almas de pessoas
específicas e nomeadas que morreram recentemente. As almas-caça buscam
vingança, como sugerem as histórias acima, numa situação que ocorre quando
uma falha no processo de transformação dos corpos-caça em alimento. As crianças
que, como me disseram, ‘não são têm conhecimento’, têm a tendência de fazerem
algazarra perto dos cadáveres das caças e de atiçá-las com seus dedos e flechas, atos
que podem instilar um desejo de vingança. Adultos e velhos sabem disso, mas não
podem repreender atos infantis. Ao invés disso, eles tentam permanecer o mais
quieto possível, em especial o caçador que viu o corpo da caça e a matou. Todo ato
de caça requer que os Kanamari ‘sejam cuidadosos’ (tohiaik) no que fazem. Uma falha
nisso, tal como no caso da mulher que riu das feições do macaco-aranha que ela
comia, pode resultar no adoecimento da criança através da vingança.
As almas de pessoas específicas ao menos daquelas que não foram
assassinadas ou daqueles que foram eles próprios os assassinos muito raramente
buscam vingança. Ao invés disso, são vítimas das mesmas espécies de
constrangimentos que um Kanamari vivo: na falta de um corpo, tornam-se nômades
e, tal como acontece em todos os casos de mobilidade intensificada, tentam
contornar essa mobilidade indo em direção a corpos/donos (-warah). Eles o têm a
intenção de causar mal, pois, se fossem parentes, desejariam (wu) os viventes, ainda
que sua atração pelos corpos cause inevitavelmente doenças, isto é, a desestabilização
de um determinado corpo. Os Kanamari contaram-me que as almas das pessoas,
357
assim como a das caças, podem fazer mal apenas às crianças. Assim como no caso
das almas de caças, a infusão de casca de árvore é bebida, a alma é assoprada e faz
sua viagem para o Céu Interior.
Considerações Finais: de Volta à Replicação
Neste capítulo, meu objetivo foi o de mostrar algumas das maneiras pelas
quais os Kanamari transformam o corpo incipiente de uma criança em um capaz de
atingir a maturidade, protegendo-o dos arredores incertos e ameaçadores. Preocupei-
me também com algumas das maneiras pelas quais a presença da criança, e a
presença da matéria-alma manifestada frequentemente como sangue, atua para
arruinar ou colocar em cheque os corpos adultos. Visto que meu tema tem sido o
corpo individual, gostaria de concluir considerando as suas relações com os corpos
coletivos que eu andei discutindo nos capítulos precedentes.
Vimos na Parte I como o modelo de endogamia do sub-grupo dependia da
existência de um chefe de sub-grupo, que vivia no povoado que continha a maloca,
ao redor do qual gravitavam uma série de aldeias, indexadas pelo chefe da aldeia.
Sustentei que as relações internas a uma aldeia eram caracterizadas pela partilha, ao
passo que aquelas entre chefes de aldeias e o chefe do sub-grupo poderiam, ao
menos no passado recente, ser caracterizadas como ‘pagamentos’ (ohunhuk). Propus
que o chefe de sub-grupo poderia, seguindo Sahlins (1972, 94-5), ser visto como
alguém que angariava (pool) recursos em um rio mantinha grandes roçados, tinha
maior acesso às mercadorias, sendo aquele para quem a carne de caça defumada e
salgada era levada antes das reuniões Hori –, motivo pelo qual as aldeias se dirigiam a
ele. Devido a isso, ele ‘alimentava’ (ayuh-man) as pessoas em sua bacia hidrográfica, ou
as supria com mercadorias ocidentais, de modo que pudessem trabalhar em suas
aldeias e trazer para ele a sua ‘produção’. Finalmente, mostrei como a situação no
Itaquaí oferece hoje uma analogia parcial com isso, acentuando o acesso de Poroya e
da Funai para as mercadorias ocidentais e a maneira pela qual estas circulam no rio.
A produção de corpos individuais ocorre nas aldeias, situada pelos chefes de
aldeia. Ainda assim, não deveríamos tomar isso por ‘uma’ aldeia, dado o padrão
Kanamari de intensa mobilidade entre bacias hidrográficas, bem como a tendência de
se moverem entre aldeias distintas e de se afastarem e se aproximarem das malocas.
Mas a aldeia deve entretanto acontecer no interior de um contínuo entre estes
358
movimentos, em uma esfera humana de interação na qual os produtos são
partilhados. É numa aldeia que as crianças nascem; são os moradores da aldeia (ou
alguns deles) que ‘serão cuidadosos’ e se ‘deitarão’ para evitar os perigos de seu
sangue desincorporado; são eles que irão se tornar ‘azarados’ por causa da presença
do sangue e das ‘almas de gente’ que vão em direção das crianças, algumas das quais
zombam de animais de caça mortos; e é a carne que eles trazem e produzem nas
aldeias, obtida ‘na floresta’, que irá alimentá-las quando elas desmamarem. Se as
aldeias se desmancharem, ou se aqueles que cuidam das crianças se mudarem para
outra parte, a criança irá acompanhar um grupo de pessoas (na maioria parentes e/ou
avós) que continuarão a cuidá-la no ambiente de um aldeia. É portanto essencial para
o bem-estar de uma criança, que seu corpo seja feito nas aldeias, com um grupo de
pessoas que partilham alimento e mercadorias ocidentais.
Ainda assim, vimos que estas aldeias eram dependentes das relações com a
maloca, para a qual eles se dirigiam em várias ocasiões. A presença da maloca e do
chefe de sub-grupo permitia as reuniões Hori entre sub-grupos –dyapa, garantindo a
manutenção de relações –tawari entre eles e assim reduzindo as ameaças exteriores
sobre as aldeias. O chefe da maloca tinha o maior dos roçados, feito durante
períodos nos quais as pessoas de aldeias distintas ‘trabalhavam juntas’. Ele ‘nos
alimentava’ (a-ayuh-man adik), garantindo disponibilidade de tempo para que novas
aldeias plantassem roçados produtivos para as pessoas que se encontravam vivendo
nas proximidades da casa comunal. Em períodos mais recentes, foi o acesso do chefe
do sub-grupo à mercadoria ocidental, sua decisão de estabelecer dois homens como
‘aqueles que fazem as pessoas fazerem coisas’, que permitiu a interação dos
Kanamari com os brancos, enquanto ela foi possível. Com isso, pretendia-se obter
machados e facões dos quais eles haviam se tornado dependentes para fazer os
roçados, bem como conseguir redes nas quais dormiam, além de obter roupas, que
agora eles têm ‘vergonha’ (ityi) de fazer de outra maneira.
Assim, a estabilidade que o corpo incipiente da criança recebe é dependente
da aldeia, que é por sua vez dependente da estabilidade garantida pelo sub-grupo,
contra as ameaças que vem de fora. O modo –warah de aparentar, vinculado a
Tamakori, permite que corpos humanos corretos sejam criados e mantidos em
segurança. Estas relações são indexadas pela ‘alimentação’ (ayuh-man) e pela circulação
de mercadorias ocidentais, que faz de coresidentes parentes (próximo ou distante) em
uma bacia hidrográfica, incluindo as crianças. Não é portanto surpreendente que,
359
durante os períodos mais negros do ‘Tempo da Borracha’, quando não haviam
aldeias e chefes, eles tenham se tornado ‘insanos’ (parok) e ‘se espalhado’ (inona),
incapazes de se fazerem parentes, que o modo –warah de aparentar havia
desaparecido. A condição sob a qual o parentesco permanecia era indeterminada e
eles estavam a caminho de se transformarem em outra coisa.
Ao discutir o corpo individual, enfoquei de início as crianças e o modo de
fazê-las junto das aldeias. Isso me levou a uma comparação entre os períodos de
‘deitar-se’ após o nascimento e em outras situações – uma comparação que os
Kanamari tornaram explícitas em suas conversas comigo. É surpreendente, e por isso
mesmo significativo, o fato de eu ter obtido pouca informação referente aos adultos,
exceto no que concerne ao seu papel de garantir o bem estar das crianças e o seu
próprio em relação a elas. Recuar na série –warah significava falar de situações nas
quais o –warah se encontrava em perigo. Como notei acima, é apenas a possível
desarmonia destes corpos que leva à erupção de substância, ou ao menos de seu
idioma, dentro da aldeia.
Mas, mesmo dentro do modelo fractal do sub-grupo, havia ainda aquelas
pessoas cujos corpos eram feitos de uma maneira distinta e, muitas vezes, conflitante
com relação à da maioria, mas que eram de toda forma essencial para o bem-estar da
bacia hidrográfica: os xamãs, cujos corpos eram intencionalmente impregnados com
substâncias dyohko, um precipitado dos Jaguares ticos fragmentados. Volto-me
agora para este papel, considerando-o junto com a morte e o destino pós-morte dos
Kanamari, que novamente expressa o antagonismo entre a estabilidade comensal e o
fluxo predatório.
360
7
Fazendo Jaguares
No capítulo anterior, apontei alguns dos modos como o indivíduo –warah é
estabilizado em meio ao fluxo que permeia o mundo Kanamari. Argumentei que a alma
genérica é móvel e, imbuindo-a de estabilidade, os Kanamari fazem o corpo. Discuti
algumas precauções que precisam ser tomadas pela aldeia para atenuar as características
perigosas da alma, manifestadas como ‘sangue novo’, através dos processos de ‘deitar-se’.
Depois argumentei que, a despeito dessas precauções, há sempre alguma instabilidade
residual que permanece no sangue contido no corpo incipiente das crianças, resultando em
uma certa ambivalência no que diz respeito às relações dos adultos com elas,
conseqüentemente, ligando as crianças aos idosos. Para concluir, mostrei algumas das
medidas que os Kanamari tomam para alimentarem-se e as crianças com carne de caça.
Como os animais estão demasiadamente próximos do Jaguar, os Kanamari precisam
assegurar a transformação destes em comida, e, mesmo assim, a comida ingerida põe em
risco os corpos de suas crianças.
Este capítulo terá por foco o modo como o Jaguar emerge dentro desse corpo.
Mostrarei que este é ao mesmo tempo feito ativamente, como alguns corpos o são com
uma substância Jaguar dyohko, e na morte, quando o corpo fragmenta-se em suas partes
constituintes. Depois discutirei o xamanismo e o dyohko, a substância xamânica por
excelência e sua habilidade de transformar. Em seguida, analisarei alguns dos efeitos que a
morte exerce sobre os viventes antes de voltar-me para os efeitos que esta exerce sobre os
mortos.
O xamã e o Dyohko
Os Kanamari reconhecem dois xamãs: o marinawa, um especialista em remédios do
mato cuja tarefa primordial é preparar ayahuasca e entoar os cantos de ayahuasca que
guiam as visões dos participantes; e o baoh, xamã que manipula a substância dyohko
327
. Não
tratarei nesta tese do papel do marinawa, xamã de ayahuasca. O aprendizado do consumo de
ayahuasca é relativamente recente entre os Kanamari, e mesmo que sua relação com
aspectos mais “tradicionais” da cultura Kanamari seja interessante, sua descrição não é
327
Vale acrescentar que uma terceira modalidade de xamanismo, que envolve a ingestão de omamdak,
acessível a todos os homens adultos, que foi descrita no capítulo anterior.
361
essencial para o argumento que pretendo desenvolver neste capítulo. Por essa razão, deter-
me-ei sobre o baoh e o dyohko, que mais uma vez demandam que consideremos a relação
entre humanos e Jaguares.
Dyohko
O mundo do Jaguar, estilhaçado pela proto-humanidade, precipitou-se sobre a terra
no processo de sua fragmentação. Bolsões desse mundo ainda existem na forma de
canamãs e seringais. Mas o Jaguar também se transformou em dyohko, uma substância que
existe em um estado amorfo em certos seres, mas que assume a forma de uma pedra
resinosa uma vez expulsa dos corpos. Os corpos dos xamãs baoh são saturados dessa
substância. A sua presença nos corpos dos xamãs permite-os curar outros que foram
afligidos com dyohko e preparar os dardos xamânicos, também chamados de dyohko, que
podem ser utilizados para fazer mal aos outros. Os xamãs m a capacidade de ver e
interagir com a substância primordial de modos potencialmente positivos. também
dyohko não contidos por corpos e que m volição própria, perambulando pelo mundo e
afligindo os viventes. Esses dyohko podem assumir formas animais ou humanas e um xamã,
por ser composto de dyohko, poderá detectar e domesticá-los, reduzindo-os ao tamanho de
uma pedra resinosa.
O termo dyohko, portanto, abrange um vasto campo semântico, e é importante
distinguir seus diversos significados. O termo refere-se a uma série de fenômenos
terminológicos distintos, mesmo quando relacionados, entre outros grupos ameríndios.
Mas essa distinção deve ser considerada apenas um recurso, um dispositivo para facilitar a
exposição, e mostrarei como esses significados relacionam-se uma vez que derivam dos
resquícios do tempo do Céu Antigo, que constituíram o mundo presente:
1. O dyohko é uma substância que existe dentro de alguns corpos. Os corpos dos
xamãs são repletos de dyohko, bem como os corpos de algumas queixadas (os chefes
das manadas) e também de algumas árvores, conhecidas como dyohko-omam.
Qualquer ser vivo pode potencialmente manipular a substância dyohko, e ter seus
corpos repletos dela. Essa substância existe em um estado viscoso quando é
contida pelo corpo, mas parece uma pedra resinosa fora dele. Esse tipo de dyohko é
com freqüência chamado de dyohko verdadeiro’ (dyohko tam) para distingui-lo da
acepção 3 (abaixo);
362
2. O dyohko verdadeiro pode ser usado pelos feiticeiros para fazer dardos xamânicos,
também chamados de dyohko. A feitiçaria e o xamanismo são na verdade dois lados
de uma mesma moeda, e uma questão de perspectiva: o xamã de uma pessoa é o
feiticeiro de outra. O dyohko verdadeiro é misturado com partes de animais ou
outros itens para criar os dardos que serão arremessados contra a vítima;
3. Enquanto alguns seres m dyohko e manipulam-no, outros são espíritos dyohko que
estão aqui desde os primórdios do mundo. Esses espíritos são potencialidades
canibais, provenientes de um tempo quando tudo era espírito e os corpos
incipientes. Em sua capacidade de agentes, são conhecidos por sua habilidade de
assumir uma gama de formas. Esses dyohko podem ser familiarizados por xamãs
humanos, que os reduzem a uma pedra resinosa, maior que as pedras que um xamã
extrai do seu corpo. Embora todos esses espíritos tenham a mesma origem
primordial, ainda outra distinção pode ser feita entre os dois:
i. dyohko que são espíritos muito velhos, que moram na floresta
ou no rio. Eles podem causar mal aos viventes pela mera
proximidade ou ao arremessar dardos dyohko em sua direção;
ii. Alguns destes foram familiarizados por um xamã, tornando-se
seus espíritos auxiliares. Após a morte do xamã, o dyohko recobra
a volição e outro xamã precisa familiarizá-lo, caso contrário, ele
causará mal aos viventes. O dyohko verdadeiro’, que viveu dentro
de um xamã humano, assume algumas das características do seu
mestre, incluindo a forma da pessoa. Os Kanamari dizem que o
dyohko é a alma do xamã, e no processo de familiarização e de
recobrar a volição ad infinitum esses dyohko representam uma
grande cadeia de xamãs mortos. Esses dyohko são, com freqüência,
chamados de dyohko grande’ (dyohko Nyanim), ‘coração de Jaguar’
(Pidah diwahkom) ou Kohana
328
.
Todos os dyohko têm em comum o fato de originarem-se no mundo do u Antigo
e, conseqüentemente, estarem relacionados ao Jaguar. Todos os dyohko são partículas
328
Entre os Kanamari do Jutaí, o termo tukurimi é usado para designar os espíritos que deixam de ser
familiarizados ao abandonarem o corpo do xamã após sua morte (Carvalho 2002, 295). Essa é a pronúncia
Kanamari da palavra Kulina tokorime, que é como esse povo chama os espíritos da floresta que possuem/são
dori, seu equivalente para o dyohko (Pollock 1985, 123). Os Kanamari do Itaquconheciam a palavra, mas
diziam que se tratava dos dyohko dos Kulina’, e que eles o faziam distinção terminológica entre os dyohko
familiarizados e não-familiarizados.
363
daqueles Jaguares míticos que criaram o mundo presente. No capítulo quatro, vimos que o
Jaguar era inerente à tessitura do universo, capaz de manifestar-se de diversas formas; e no
capítulo cinco, vimos que o primeiro dyohko foi os dentes de Matso, um desses Jaguares
míticos. De fato, ao invés de reificarmos o Jaguar, vimos como os Kanamari associam-no a
uma combinação potente de formas sociais: a habilidade de situar por meio de violência
predatória. Ao usar o mesmo termo para designar todos os conceitos acima, os Kanamari
estão, com efeito, expressando essa origem e condição ontológica em comum. Eles são
todos dyohko porque são vestígios contundentes de um tempo em que o Jaguar era a única
via de relação com os outros.
Fazendo Xamãs
A relação entre as diversas acepções de dyohko deve ser entendida por meio de uma
compreensão de como uma pessoa torna-se xamã. A decisão de transformar uma criança
em xamã é tomada pelos pais quando a criança é pequena, um piya o’pu, ‘menino pequeno’,
entre as idades de quatro e seis. O processo é chamado de baoh-bu, ‘fazer/produzir xamã’, e
requer que o pai do menino requisite formalmente a pelo menos um xamã que faça da
criança seu aprendiz. Em muitos casos, mais de um xamã tutor, e eles ensinarão um
grupo de meninos
329
ao mesmo tempo. A relação entre os pais dos meninos e o xamã não
deve importar; em um caso, um homem pediu tanto ao ‘irmão’ como a um ‘cunhado’ para
fazerem de seu filho um xamã. A única preocupação é assegurar que o xamã não seja um
feiticeiro que fará mal aos meninos. Os Kanamari acreditam que o aprendizado xamânico
é bem sucedido quando iniciado nessa idade bem jovem, embora não nada que
impeça alguém de aprender como manipular o dyohko mais tarde. Três fatores fazem do
aprendizado precoce preferível. Primeiro, a criança ainda está ligada à qualidade genérica
da alma de onde vêm todos os seres, e assim, seu corpo pode crescer impregnado da
substância dyohko. Segundo, e relacionado ao fator anterior, o processo de se tornar um
xamã requer que a pessoa tenha um corpo acostumado a ter dyohko, e o método mais
potente de realizar isso é por meio do crescimento, uma vez que é também um processo
demorado, que depende de repetidas tentativas. Terceiro, é imperativo que, durante um
aprendizado que pode levar muitos anos, o aprendiz abstenha-se de qualquer relação
sexual. Isso deve acontecer pelo menos até o corpo do aprendiz acostumar-se com o dyohko
329
Alguns meninos parecem iniciar seu aprendizado, interrompendo-o, ou talvez o suspendendo, para
retomá-lo em uma data posterior. Pollock (1992, 26) comenta que no passado todos os homens Kulina eram
xamãs, e que todos os meninos assimilavam pelo menos parte do aprendizado.
364
e o haver mais risco deste deixar o corpo pelo pênis durante a ejaculação. Os homens
sexualmente ativos têm muito mais dificuldade de respeitar essa restrição, que não é
problemática para os meninos ainda pequenos. Por essas razões, os Kanamari desconfiam
dos xamãs que não foram aprendizes quando muito jovens
330
.
Permear um corpo com dyohko não é um processo imediato e tampouco
homogêneo; requer paciência e o envolvimento ativo do xamã que progressivamente
introduz mais dyohko no aprendiz
331
. Inicialmente, o xamã tutor expulsa (hahman)
quantidades mínimas de dyohko verdadeiro’ de seu próprio corpo para ‘inseri-las’ (bohni
332
)
nas partes do corpo do aprendiz menos passíveis de serem prejudicadas, como os lóbulos
da orelha, mãos e pés. O corpo da criança com freqüência expelirá o dyohko nas primeiras
tentativas, por meio de vômitos (hori) involuntários. O processo é repetido até o dyohko
‘desejar’ (-wu) ficar na criança, acostumando-se com seu corpo. Então, permanecerá nas
partes em que foi introduzido, de modo que outros xamãs, ao tocarem a criança, saberão
que a substância está ali, dizendo, por exemplo, “há dyohko nas mãos dele” (tatam dyohko a-
ba-naki). A habilidade de reconhecer o dyohko no corpo das pessoas é chamada de dyohko-
tikok’, ‘conhecer dyohko’, e é importante na cura, por exemplo, uma vez que o primeiro
passo envolve apalpar o corpo do paciente com a mão para descobrir onde o dyohko o
afligiu.
O dyohko que está sendo introduzido no menino ainda não é uma parte integrada ao
corpo. o risco constante de que o dyohko fuja (dyam) do corpo, voltando para o seu
‘corpo/dono’, isto é, para o xamã tutor. Isso invariavelmente ocorrerá durante a relação
sexual. É importante que o menino ‘tenha cuidado’ (tohiaik) e evite comer qualquer carne
de caça e beber cerveja de mandioca, uma vez que a ingestão desses alimentos também
pode provocar a fuga do dyohko. O menino deve apenas consumir caiçuma não fermentada
e comer ‘peixes pequenos’, que não afetarão o desejo do dyohko de permanecer em seu
corpo. Também é importante que o aprendiz deixe de ingerir frutas doces, especialmente o
mamão. Um dos Jaguares míticos antigos, Itiya, ainda vive na entrada do Céu Interior,
330
Isso é bastante similar ao aprendizado xamânico entre os Kulina, embora estes reconheçam dois tipos de
dori no aprendizado precoce: o noma, que ajuda o iniciante a aprender e protege-o dos efeitos danosos do dori;
e o koronaha, que ajuda o iniciante a cantar bem (Pollock 1992, 27). Para os Kanamari, cantar não é uma parte
importante do aprendizado xamânico, e é apenas durante o Kohana-pa que os xamãs tornam-se
‘possibilitadores de cantos’, como veremos.
331
A impregnação gradual de dyohko em um corpo é descrita como um processo de ‘tornar amargo’ (-pan-tiki).
Dyohko é considerado uma substância amarga e as vítimas do dyohko o, com freqüência, descritas como
tendo sido tornados amargos. Entretanto, parece-me, que a questão do ‘tornar amaro’ é bem menos
prevalecente entre os Kanamari do que entre os grupos falantes de línguas Pano, entre os quais a oposição
doce/amargo define tipos diferentes de xamãs (Erikson 1996; Lagrou 1998, 106-12).
332
O verbo bohni significa ‘inserir’, mas é diferente do verbo usado para indicar as atividades de um feiticeiro,
que ‘perfura’ (hak) suas vítimas com dardos dyohko.
365
onde come a alma das pessoas que não sabem viver bem nesse mundo. Muito tempo atrás,
Itiya comeu uma mulher cuja vagina caiu no pátio de uma aldeia, tornando-se o primeiro
mamão. Ao comer o mamão, o aprendiz de xamã também perde todos os seus dyohko, que
voltam para o xamã que estava treinando-o, uma conseqüência relacionada a essa origem
mítica.
Se as prescrições são observadas, o menino deve ser capaz de manter o dyohko em
seu corpo. E o xamã tutor poderá dar continuidade ao processo de fazer da criança um
xamã. Ele pode introduzir o dyohko na barriga, nas pernas e, por fim, no coração. O
coração, como vimos no capítulo anterior, é onde o sangue ‘habita’ (to), e dyohko será
encontrado no coração apenas após ocupar o resto do corpo da pessoa. Nesse estágio o
menino, a essa altura um adolescente, terá seu corpo todo imbuído de dyohko e não mais
precisará de aprendizado. Ele agora é um xamã capaz de expelir (hahman) a substância
dyohko pela boca, e depois introduzi-la de volta em seu corpo.
Para fazer isso, é importante inalar rapé (oba dim
333
). Sem o tabaco, o dyohko
permanece latente e inativo no corpo do xamã, que fica sem poder. Tabaco é a ‘comida’
(tyawaihmini) do dyohko, e diz-se que este ‘come’ (-pu) o tabaco que o xamã inala
334
. Parte do
processo de treinamento inclui aprender a ativar o dyohko por meio da inalação de rapé, um
ato que às vezes é descrito como ‘despertar’ (wura-dyi) a substância. Uma vez que o dyohko
foi despertado, o aprendiz de xamã expele-o pela boca em uma folha de palmeira de modo
que seu progresso possa ser averiguado pelo tutor. O número de dyohko que ele expele, pelo
menos na fase inicial de treinamento, será o mesmo número que foi inserido nele. Ele
próprio deve inseri-los em seu corpo novamente, começando pelas partes acostumadas
com a substância. À medida que ele cresce, e que seu treinamento progride, o dyohko cresce
dentro dele (tyuru naki-dyi), multiplicando-se e espalhando-se até ocupar o corpo inteiro.
Uma vez que ele se acostuma com a substância, diz-se que ‘o dyohko gosta de sua carne’
(dyohko n-a-nakibak a-hai), e o xamã facilmente expelirá qualquer número de dyohko, que ele
333
Oba é a palavra para ‘tabaco’ e dim significa qualquer pó. Rapé é feito pelas mulheres Kanamari, que
tostam o tabaco com casca de cacau selvagem (dapu) ou, na ausência desta, com casca de banana, e depois
moem com um pilão até obter um fino. Diz-se que o cacau ou a banana tornam o rapé ‘mais forte’ (diok).
Embora as mulheres que normalmente preparem o rapé, os homens são totalmente capazes de prepará-lo e,
na ausência das mulheres eles próprios se encarregam disso.
334
O Jaguar, o tabaco e o sangue formam uma trindade xamânica em muitas regiões da Amazônia. Como
Fausto (2004, 167-8) aponta, os jaguares e o tabaco são com freqüência relacionados e entre os Toba-Pilaga a
primeira planta de tabaco emergiu de um jaguar incinerado. Em uma revisão dos mitos analisados em O Cru e
o Cozido ele também reitera um tema recorrente nos mitos que começam com a contaminação sangüínea e
terminam com a origem do tabaco. Entre os Kanamari, os três estão intimamente ligados: ser xamã é ter o
corpo impregnado de uma substância Jaguar, que precisa ser alimentada com um de tabaco e que percorre
o caminho até o coração do xamã, onde mora o sangue.
366
mais tarde inserirá de novo, normalmente em sua barriga, embora ele possa inseri-la em
qualquer parte do seu corpo.
Um xamã explicou o processo de o dyohko acostumando-se ao corpo de uma
pessoa, e gostando dele, por meio de uma analogia: o dyohko “habita [dentro], como sexo,
como um casamento” (to na katu tyo bo nim, pok kotu tyo, dohan kotu tyo). A despeito de eu ter
conversado com muitos xamãs, essa foi a única ocasião em que uma explicação baseada no
casamento foi-me fornecida para o processo de se tornar xamã. Esse tema é incomum na
Amazônia, geralmente restringindo-se à região sub-andina (ver Fausto 2001b, 21-2), e não
acho que podemos levar a analogia mais longe do que isso, uma vez que o dyohko, tanto
aquele que habita dentro do xamã, quanto aquele que vive sem corpo, como espíritos, são
substâncias inerentemente ligadas à masculinidade (ver também Pollock 1992). Todos os
espíritos dyohko sobre os quais me falaram eram ditos machos, exceto um ‘queixada-dyohko’,
que foi retirado dos intestinos de um queixada dita mea
335
. A ênfase dos Kanamari parece
recair muito mais sobre o ‘fazer’ (-bu) uma pessoa ter uma parte espírito por meio da
impregnação do corpo com substância espiritual e também da domesticação de espíritos
selvagens através da redução do que sobre o estabelecimento de uma união comensal ou
recíproca entre os dois.
O dyohko é, ao contrário, um tipo de xerimbabo capaz de auto-reproduzir-se dentro
do corpo do xamã. Essa auto-reprodução é similar ao movimento amebiano, por meio do
qual a substância viscosa dyohko gradualmente espalha-se até permear o corpo do xamã.
Nisso eles podem ser aproximados aos õpi-wan entre os Wayãpi chamados de ‘xerimbabos’
(-rima) e alimentados com tabaco, tornando-se consubstanciais ao xamã, localizados em seu
corpo e amarrado a ele com fios chamados de tupãsã (Gallois 1988, 302-5; 1996, 46-7); ou
ao xaIkpeng, um mestre anômalo de uma micro-população que mora dentro de seu
corpo e que ele deve alimentar, caso contrário morrerá (Rodgers 2002, 115; 2004, 10).
Fazer de alguém um xamã é um processo de manipulação de uma substância fisicamente
inerente ao mundo, emanando de suas origens, e de fazer corpos humanos fundirem-se
com essa substância ao mesmo tempo em que se mantém o controle sobre ela ao
estabelecer uma relação de alimentação (ayuh man).
Uma vez que o dyohko começa a gostar de seu novo corpo, o aprendiz é um xamã
(baoh) capaz de curar pessoas que foram afligidas com o dyohko. A substância não fugirá
mais de seu corpo, e o xamã poderá comer qualquer alimento e ter relações sexuais com a
mesma freqüência que qualquer pessoa. Agora ele é capaz de ‘conhecer’ (tikok) o dyohko,
335
Vi muitos queixada-dyohko no campo e esse foi o único explicitamente classificado como um dyohko
‘fêmea’, embora tivesse saído dos intestinos de um macho.
367
tanto nos corpos, na forma de substância xamânica ou dardos de feiticeiros, quanto na
floresta, mesmo que o dyohko assuma uma forma animal. Ao ver um jaguar, por exemplo, o
xamã saberá se é um animal ou um Jaguar-dyohko, que ele começará a familiarizar. Esse
último ponto é crucial, pois se por um lado ter dyohko no corpo faz de uma pessoa um
xamã, por outro, é apenas após familiarizar um Jaguar-dyohko que o xamã torna-se um
‘xamã verdadeiro’ (baoh tam), capaz de realizar rituais Kohana-pa. Mas para compreendermos
a familiarização de um Jaguar-dyohko, devemos antes entender o que acontece a um xamã
após sua morte.
O Jaguar de Dentro
O dyohko que habita o xaé sua parte Jaguar, pois se trata de uma substância que
existe no mundo presente devido aos vestígios do Jaguar mítico, e que foi literalmente
moldada ao corpo do xamã. Por causa disso, diz-se que o xamã tem um ‘coração de Jaguar’
(Pidah-diwahkom). Vimos no capítulo anterior a relação entre o ‘coração’ e a ‘alma’, os dois
sendo com freqüência empregados como sinônimos
336
. O coração do Jaguar é, portanto,
sua alma-Jaguar, que o permite fazer mal aos outros por meio de projéteis, ver e familiarizar
espíritos o encorporados, e curar. Enquanto o xaestiver vivo, a alma-Jaguar é parte
dele potencialmente perigosa, mas supostamente sob controle. O corpo do xamã contém
o Jaguar, pois ele é, literalmente, o ‘corpo/dono’ do Jaguar.
Mas quando o xamã morre, e o corpo/dono torna-se um cadáver, a alma-Jaguar
deixa o corpo. Na maioria dos casos, ela se separa do defunto com um estrondo (que os
Kanamari chamam de parihan), assumindo a forma de jaguar e fugindo para a floresta. No
caso de xamãs muito poderosos, completamente imbuídos da substância dyohko, o corpo
talvez nem venha tornar-se um cadáver. Poroya disse-me que quando seu pai era muito
jovem os brancos organizaram um massacre em que almejaram matar todos os Kanamari
de uma aldeia situada em algum lugar do Juruá. Havia um xamã muito velho na aldeia,
famoso em toda região. Os brancos atiraram nele várias vezes, mesmo à queima-roupa, e
ele permaneceu intocado. Após os brancos terem gasto toda a munição, o xamã
simplesmente tornou-se um Jaguar diante de todos, e calmamente adentrou a floresta.
Os xamãs Kanamari, como os xamãs em todo lugar, são personagens ambivalentes.
O dyohko em seu corpo pode fazer com que ele, em vida, prejudique seus parentes,
336
Para referirem-se ao ‘coração do Jaguar’, os Kanamari com freqüência dizem ser um Pidah-diwahkom, mas
eles também costumam chamá-lo de Pidah-ikonanim, ‘alma-Jaguar’, e em certa ocasião, até foi chamado de
Pidah-diwahkom n-a-ikonanim, ‘alma do coração do Jaguar’.
368
passando a ser visto como inimigo. A questão depende da confiança depositada pelos
Kanamari na habilidade do xamã de manter o dyohko latente em seu corpo, e de direcionar
o seu poder em benefício de seus parentes. As ambigüidades derivadas dessa situação
afetaram um xado Itaquaí, que, a despeito de ser muito conhecido pelos Kanamari e
‘parente’ deles, mesmo que distante, não foi capaz de estabelecer residência em nenhum
lugar. Em duas aldeias ele foi inimizado’ (todiok, que também significa ‘ser mandado
embora com raiva’), à medida que muitas pessoas tornaram-se desconfiadas da origem das
doenças que as afligiam. Embora a maioria das pessoas diga que os feiticeiros venham de
longe, outros me confidenciaram que eram com freqüência os xamãs de dentro do Itaquaí
que os atacavam. O xamã é sempre potencialmente perigoso porque seu poder deriva do
fato dele conter uma parte-Jaguar (Fausto 2002, 28-9). É essa parte que assume uma forma
Jaguar após a morte do xamã
337
. Após ser expulso de algumas aldeias, o xaque não
podia viver em lugar nenhum acabou decidindo mudar-se para o rio Javari.
uma certa falta de consenso quanto ao número de almas que um xamã
Kanamari de fato possui. Alguns Kanamari dizem que essa alma-Jaguar, que assume um
corpo-Jaguar após a morte de um xamã, é sua única alma e que, diferente dos não-xamãs,
esta nunca vai para o Céu Interior. Outros acreditam que o xamã tem duas almas, uma que
vai para o Céu Interior com todas as outras almas e outra que fica na terra como Jaguar.
Para fins comparativos, os Kulina acreditam que a alma de um xamã permanece na
terra:
“...onde perambula por muitos dias ‘procurando sua rede’ (i.e. por um enterro apropriado) ou
por tintura facial de urucum (um sinal de liminaridade e transformação), representando uma
ameaça temporária aos membros da aldeia que podem até abandonar a área com medo. Após
alguns dias, a alma é ingerida por um espírito de jaguar, transformando-a em um jaguar”
(Pollock 1992, 37).
As únicas almas Kanamari ingeridas por um Jaguar são aquelas de pessoas que levaram
vidas moralmente ambivalentes, sejam xamãs ou não, e um jaguar (agora um felino de fato,
e não um jaguar poderoso suplementar) é apenas uma das formas que essas almas podem
assumir (ver abaixo). As almas tornam-se ‘espirito-caça’, bara adyaba, que também inclui
jacarés, anacondas, lacraias, aranhas e assim por diante. O xamã Kanamari, por outro lado,
caso tenha levado uma vida distinta, ascenderia, de acordo com alguns, até o u Interior
337
Poroya disse-me que o Jaguar havia se tornado acostumado a fazer mal aos outros com dyohko quando seu
corpo/dono estava vivo, e por causa disso continua agindo do mesmo modo após a morte, que agora não
discerne mais os ‘parentes’ e faz mal a todos indiscriminadamente.
369
junto com as almas de todas as pessoas honradas. Entretanto, os Kanamari desconfiam da
habilidade dos xamãs de levarem uma vida distinta, e parte da ambigüidade pode ser um
resultado disso. Sua alma, ou almas, nunca serão encontradas no Céu Interior.
Creio que a falta de consenso em relação ao número de almas que o xamã possui
fala dessa ambigüidade inerente a eleque tem simultaneamente um corpo feito humano e
feito Jaguar. Como argumentei no capítulo anterior, todas as ‘almas-gente’ são semelhantes
ao Jaguar móveis, raivosas, avaras e o processo de parentesco humano é aquele de
sobrepor o –warah a isso, mas o xamã tem o seu –warah feito de uma substância Jaguar
suplementar, o dyohko. Todos os Kanamari concordam que o xamã tem uma alma-dyohko
que é Jaguar, e o faz xamã. Aqueles que dizem ter outra alma também, similar àquela de
outros humanos, asseguram que esta alma cumpre o destino comum a todas as almas após
a morte. Deter-me-ei aqui, portanto, apenas sobre a alma Jaguar dos xamãs sobre a qual
todos estão de acordo.
Após a morte, o dyohko assume um corpo Jaguar apenas para os não-xamãs, pois os
xamãs ainda são capazes de vê-lo na forma do seu corpo/dono anterior, e este talvez não
saiba ainda que está desincorporado. Isso acontece porque uma janela, após a morte do
xamã, em que o dyohko não sabe que o seu corpo/dono morreu, e diz-se que fica confuso
(wa-tikok tu, lit: ‘não sabe disso’). Durante esse período, o dyohko procura os seus ex-
parentes, pensando que ainda são seus parentes, mas ele apenas os como ‘outros’
(onahan). Por essa razão, ele os ‘inimiza’ (todiok), afligindo-os com dardos de dyohko. O xamã
vivo é capaz de ver esse dyohko, que irá alternar a forma de seu ex-corpo/dono com aquela
de um Jaguar. O dyohko é capaz de ver o xamã vivo e apenas um xamã como parente
em vez de vê-lo como um outro inimigo. Diz-se que isso ocorre devido ao dyohko no corpo
do xavivo: se o xamã morto é dyohko puro, o vivo é pelo menos parte dyohko e é essa
parte que o xamã morto e porque se trata de uma parte feita da mesma ‘substância’ da
qual ele próprio é feito, ele vê o xamã vivo como parente (ver Lima 2002)
338
.
É essencial que, com a morte de um xamã, outro xamã tente encontrar o dyohko e
familiarize-o, para conter sua violência antes dele perder toda referência à humanidade que
a continha. Isso deve, portanto, ocorrer idealmente logo após a morte do xamã, quando o
dyohko ainda está confuso. Primeiro, o xamã prepara uma bolsa de dyohko verdadeiro’, que
ele expele de seu corpo, e adentra a floresta sozinho. Ele então se encontra com o Jaguar,
338
Isso pode ser bem mais ambíguo do que a minha descrição a entender. Certa vez perguntei a um xamã
se o que ele via era um Jaguar e ele respondeu: “Vejo uma alma-pessoa, que é um Jaguar’. A despeito da
associação entre almas-pessoa e Jaguar em geral, nesse caso ele estava se referindo explicitamente à alma do
xamã, que pode ser a sua única ‘alma-pessoa’, um Jaguar.
370
vendo-o como humano, e fala com ele. Uma entre duas coisas pode então acontecer: o
xamã tem uma ‘luta xamanica’ (omahik) com o Jaguar, projetando o seu dyohko dentro dele,
ou o Jaguar pede rapé ao xamã e, ao oferecê-lo, o xamã familiariza o Jaguar. Neste último
caso, ele pode o segurar a pedra resinosa o tempo todo, deixando o dyohko viver ‘na
floresta’, mas chamando-o até ele ao ofertar presentes como o rapé. Ambos os processos
reduzem o espírito a uma pedra preciosa. O espírito é agora o xerimbabo do xamã vivo.
Os Kanamari têm uma palavra para ‘familiarizar’, hu’man. Trata-se de uma palavra
que os Kanamari ocasionalmente glosam com a palavra em português ‘pegar’, mas que
significa ‘pegar por meios xamânicos/mágicos’, e também implica uma habilidade de
controlar, mesmo que precariamente, aquilo que é obtido. Não apenas dyohko são
familiarizados. Os cantos Kohana e Jaguar também são familiarizados no processo de
aprendizado. Familiarizar um dyohko é estabelecê-lo como auxiliar, e implica a habilidade de
reduzi-lo a uma pedra que possa ser seguramente guardada, por pelo menos parte do
tempo. Se o xamã controla ou tenta controlar o dyohko, é o Jaguar que acaba fazendo-o
xamã. Os Kanamari ressaltam essa ambivalência, dizendo que embora o xamã ‘familiarize’
o dyohko, o ‘Jaguar faz o xamã’ (pidah n-a-baoh-bu).
O xamã Dyumi contou-me como familiarizou a alma-Jaguar de seu sogro após sua
morte. Seu sogro era João Dias, cuja habilidade xamânica vimos no capítulo dois:
Familiarizei (hu’man) a alma do meu sogro. Um dyohko. Ele morreu, João Dias morreu. Ele
virou Jaguar. Eu a vi então, a alma do meu sogro, um Jaguar muito grande. Fui sozinho, por
uma trilha que saía do igarapé Sibélio. Fui com meu facão, cortando o mato da floresta. Bem
no meio da floresta eu vi o dyohko, o coração do meu sogro João Dias. Eu segui pela trilha um
pouco mais e cheguei ao Jaguar. Primeiro eu falei com ele. Eu chamei: “ei, sogro”! Silêncio.
Eu o chamei de novo. Silêncio de novo. O Jaguar me encarou, e eu encarei de volta e também
a floresta atrás dele. Ele virou uma pessoa (tukuna). Uma pessoa verdadeira. Eu encarei de
novo e era o próprio João Dias. O seu corpo verdadeiro (a-warah tam). Eu disse: “vem aqui,
sogro”.
“Onde está Nui”?, ele perguntou pelo seu irmão. Ele se lembrava.
“Ele está rio abaixo, sogro”, eu disse a ele.
“Eu quero ir até ele, eu quero ver Nui”, ele me disse. Peguei a minha bolsa, que eu tinha
enchido de dyohko, e comecei a furá-lo (hak). Uma vez, duas vezes... muitas vezes eu o furei,
mas eu não conseguia familiarizá-lo (hu’man).
“Você inimizou-me (todiok) Dyumi”, ele disse. “Você realmente inimizou-me”. Ele brigou
comigo. Ele não sabia [que ele tinha morrido]. Ele disse de novo “Vou ver Nui”.
Mas eu continuei a furá-lo com dyohko. Ele virou Jaguar de novo. Então eu o familiarizei
(hu’man). Ele estava fazendo mal às pessoas, Luiz. Ele estava furando as pessoas com dyohko.”
371
A história de Dyumi mostra como a alma de João Dias tornou-se um Jaguar antes
de revelar-se como o ‘corpo verdadeiro’ de João Dias ao xamã
339
. Ele então fala com o
xamã, chamando-o pelo nome que ele consegue reconhecê-lo devido ao dyohko no corpo
de Dyumi. Mas ele pergunta pelo seu irmão, que ele não tem visto. Ele está perdido,
confuso, sem saber que morreu e que está fazendo mal àqueles que ele havia considerado
parentes. Quando Dyumi arremessa dyohko em sua direção, ele permanece confuso, se
perguntando porque Dyumi está inimizando-o’. Mas o sucesso de Dyumi possibilitou-lhe
reduzir João Dias a uma pedra preciosa grande. Ele é agora um Pidah-odyohko, ‘Jaguar-
dyohko’ e Dyumi é seu mestre; seu corpo/dono.
A alma de João Dias tornou-se um grande Jaguar pintado (Pidah akanaronim), mas
essa não é a forma que todas as almas dos xamãs assumem. Algumas delas assumem outras
formas, como aquela de um jacaré açú, de uma anaconda, de uma jaguatirica, de um puma,
de um jaguar negro, de um jaguar aquático
340
, de um falcão, de um macaco prego, de um
cavalo marinho
341
e de um veado. Essa lista o é exaustiva, mas alguns animais, como a
anta, o esquilo e a irara, eram sempre excluídos, sendo dito para mim explicitamente que
não havia dyohko em nenhuma dessas espécies. É provável que listas compiladas por xamãs
diferentes pudessem revelar divergências quanto a esse ponto. Eu nunca consegui entender
por que alguns xamãs tornavam-se um animal-dyohko específico e o outro. Pode ser que
tenha alguma relação com o tipo de atividade desempenhada por cada xamã durante sua
vida. Diz-se de João Dias, por exemplo, que foi particularmente violento, matando
inimigos, e portanto, sua alma assumio a forma de Jaguar, ao invés daquela de um cavalo-
marinho, por exemplo. O cavalo-marinho dyohko, embora também o ‘coração do Jaguar’ de
um xamã, era na maior parte do tempo inócuo, e usado principalmente como espião. A
despeito de que forma o dyohko do xamã morto assume, diz-se sempre que é seu ‘coração
do Jaguar’, uma vez que todo dyohko relaciona-se com os Jaguares.
339
Vale lembrar que os Kanamari explicam qualquer imagem específica genericamente chamada de alma
por meio do termo corpo, uma vez que se trata de uma pessoa reconhecida por alguém.
340
Diz-se que os Jaguares aquáticos (Pidah a-hi-to-yan, lit: ‘Jaguar que habita o fundo do líquido’) vivem nas
partes mais profundas do rio. o relacionados aos peixes surubim e caparari, devido às suas listras, esses
últimos sendo até chamados de ‘peixe-jaguar’ (pidah-dom). Mas Jaguares aquáticos que não têm relação
direta com esses peixes. A maioria vive nas pedras (kwa) encontradas no fundo dos rios, que um Kanamari
disse-me ser os resquícios do Céu Antigo que se estilhaçou e caiu sobre a terra. São criaturas muito velhas,
mas o coração de um xamã que morreu em torno de 2000, Kamanyo, também assumiu a forma de um Jaguar
aquático.
341
Havia um dyohko chamado de kavarim que mais tarde descobri ser a pronúncia Kanamari de‘cavalo
marinho’. Também me disseram que no passado havia muitos cavalos marinhos no Itaquaí, mas que hoje são
muito raros. A onde eu sei, não nenhuma área de água salobra na bacia hidrográfica do Itaquaí, e
síngnatos não vivem tão longe da costa, então não conheço nenhum animal similar a um cavalo marinho que
talvez tenha existido no Itaquaí.
372
Esses dyohko existem como as espécies animais selvagens. Um xamã saberá, ao ver
um animal, se é ‘apenas um animal’ ou um dyohko’. Encontrar um dyohko na floresta pode
ser perigoso, pois eles podem perfurar os caçadores com dyohko, ou podem ser xerimbabos
de feiticeiros inimigos e distantes, que os enviaram para fazer mal ou espionar os Kanamari
do Itaquaí. Mas o problema em matar seu corpo e comer sua carne. Se, digamos, um
veado-dyohko é encontrado, o caçador pode matá-lo e levar a carne para comer na aldeia.
Disseram-me que o dyohko foge de volta para o xamã que é seu corpo/dono e deixa a carne
de veado para trás. Perguntei a Dyumi se esse dyohko não era parente dos veados e se ele
não buscaria vingança pela morte do seu corpo, ou talvez pela morte de outros veados
342
.
Ele respondeu:
Ele é parente deles, mas ele não busca vingança. Essa caça não nos pega. É assim: sua carne
fica, o coração vai embora. É um veado, um veado-dyohko. Comemos sua carne. É assim
também com o jaguar. O jaguar morre, sua carne fica para trás apodrecendo na floresta, mas
seu coração vai embora, em direção ao xamã. São assim os dyohko.
É possível, entretanto, para um xamã familiarizar o dyohko encontrado na floresta,
impedindo que ele retorne para o seu corpo/dono. Dessa forma, um xamã acaba
controlando mais de um coração do Jaguar. Isso também acontece, às vezes, no momento
em que um coração do Jaguar é obtido, pois a morte de um xamã liberta não apenas o
dyohko de dentro de seu corpo, mas também aqueles guardados em sua bolsa de dyohko.
Dyumi, por exemplo, quando familiarizou seu sogro também assumiu o coração de Pima,
que era uma jaguatirica. Este era um dos dyohko de João Dias, que estava dentro dele
quando Dyumi conseguiu familiarizá-lo. Mais tarde ele também obteve o cavalo-marinho-
dyohko, que o tornou corpo/dono de três dyohko.
Isso enfatiza como a familizarização do dyohko situa o xamã em uma cadeia de
xamãs anteriores cujas alma-Jaguar recobraram a volição e que, por um período, vagaram
na terra mais uma vez. A associação entre o xamã e o dyohko que ele possui os une de tal
maneira que é possível se referir a um xamã vivo por meio do nome da alma-Jaguar que ele
familiarizou. O xamã Wayura, por exemplo, era com freqüência chamado de paiko Powuh,
‘Powu ancestral’, o nome de seu Jaguar auxiliar. O dyohko então une os vivos aos mortos
em uma seqüência que remonta ao tempo mítico do qual os dyohko emergiram. Essa
342
Devo acrescentar que se fazia uma distinção entre os veados-dyohko e as ‘almas veado’ (bahtyi-ikonanim).
Todos os veados têm alma, que podem fazer mal às crianças após o animal ter sido morto, mas os veados-
dyohko são capazes de abandonar seus corpos físicos quando feridos, permanecendo veados-dyohko.
373
ambigüidade entre a ancestralidade e a inimizade, e particularmente a atribuição de um
nome, tem conseqüências importantes, como logo veremos.
Esse movimento do dyohko, de auxiliares a agentes ad infinitum, nunca dará conta dos
inúmeros dyohko que podem ainda existir nas profundezas da floresta e dos rios. Como os
Kanamari fazem a sua terra no processo de conhecê-la, ao transformar a floresta em aldeia
e os roçados em capoeiras; e ao assegurar que a terra em que vivem é terra que eles
ocuparam no passado e por meio da sucessão, os Kanamari tentam fazer com que não haja
dyohkoo-familiarizados. Mas isso não é uma ciência exata, e eles sempre temem que mais
espíritos estejam à espreita nas cercanias de suas colocações. Com efeito, a ocupação
relativamente longa do Itaquaí inclui uma longa cadeia de xamãs mortos que as pessoas
podem relembrar vagamente, mas cujos espíritos elas não podem situar. Ware’im, um
homem velho que se mudou para o Javari logo após a partida de Sabá, disse-me que nunca
mais poderia voltar ao Itaquaí, porque ele sabia que havia muitos dyohko traiçoeiros nas
áreas entre as aldeias.
Alimentando o Dyohko
A maioria dos xamãs é incapaz de manter esses espíritos familiares poderosos em
seus corpos, pelo menos o por muito tempo, uma vez que o risco de perder a volição
deles para o Jaguar-dyohko, e então eles guardam esses espíritos em uma bolsa, que
escondem fora do alcance de crianças curiosas. Eles precisam alimentar os dyohko
regularmente com rapé, uma maneira de manter os dyohko subordinados a eles. ‘Alimentar’,
ayuh-man, como vimos, significa ‘suprir a necessidade de alguém’, e implica a dependência
do que é alimentado de quem o alimenta. As crianças são alimentadas pelos pais, e as
pessoas da aldeia são alimentadas pelos chefes, que redestribuem a carne. A alimentação faz
parte de um processo assimétrico de fazer parentesco, e é o parentesco que está implicado
entre o dyohko e o xamã. Enquanto está sob o controle do xamã, o dyohko falará com o
xamã, referindo-se a ele como i-warah, ‘meu chefe/corpo/dono’
343
, enquanto o xamã irá
simplesmente chamá-lo de ‘dyohko’.
Isso aproxima a familiarização xamânica de espíritos e a criação de xerimbabos
selvagens, um fato que tem ressonâncias amazônicas mais amplas (e.g. Descola 1992;
Erikson 1987; Fausto 1999; 2001). Vimos no capítulo anterior que para animais selvagens
existirem em uma aldeia é necessário que eles percam seus corpos para as pessoas
343
Ou, com menos freqüência, ‘pai’ (pama).
374
normalmente uma mulher que cuidam dele. Depois disso, a mulher também será
chamada de corpo/dono’ (-warah) do animal, e a presença de animais que retêm sua
volição, sendo seus próprios corpos/donos, dentro do espaço da aldeia é um perigo. Como
acontece com os dyohko, a alimentação é uma parte essencial na domesticação de animais,
tornando-os acostumados com a mulher e incapazes de ir embora. Mas embora o processo
de domesticação de filhotes de animais seja análogo àquele da familiarização dos espíritos
dyohko, há, não obstante, uma distinção terminológica. ‘Familiarizar’ (hu’man) um espírito
exige a intervenção xamânica e a manipulação do dyohko pelos homens, enquanto criar’
(tyuru-tiki) filhotes é um processo realizado por meio da alimentação na aldeia, fazendo os
animais de estimação se acostumarem com isso. A criação de um filhote de animal parece
replicar na esfera dos animais o que o xamanismo faz na esfera dos espíritos animais
poderosos: ambos sujeitam um corpo estrangeiro às pessoas da aldeia, mas embora a
criação de xerimbabos animais é uma atividade relativamente inofensiva e corriqueira, a
familiarização de espíritos é essencial para o bem-estar da aldeia (ver Fausto 2001, 413-8).
A relação mediada pela alimentação assegura que o dyohko fique sujeito ao xamã que
o alimenta. Dyumi alimentou João Dias por um longo tempo, mas em 2004 um menino
aprendiz de xamâ que vivia no Javari visitou o Itaquaí e durante a sua estada roubou
(obarinho) a bolsa de dyohko de Dyumi do compartimento secreto onde ficava guardada.
Dyumi não percebeu imediatamente e não tinha razão para achar que seu dyohko havia sido
roubado. Foi apenas bem depois, quando o menino estava de volta ao Javari, que Dyumi
se deu conta do que tinha acontecido. Ele tentou chamar seu dyohko de volta, com
promessas de rapé, mas o dyohko não ouviu. Dyumi reconheceu que o menino era sagaz e
estava mantendo João Dias bem alimentado com rapé, tornando-se seu corpo/dono.
Dyumi perdeu seu Jaguar-dyohko dessa forma, mas o deixou de ser um xamã, pois seu
corpo ainda estava saturado com seu próprio dyohko verdadeiro’. Após esse episódio, ele
passou a ficar atento à presença de qualquer Jaguar-dyohko o-familiarizado nas cercanias
de Bananeira, a aldeia em qual vivia, para poder familiarizá-lo e novamente ter um
xerimbabo
344
.
Manter o dyohko como um auxiliar se da mesma forma que o parentesco é feito
em outras situações: por meio de relações de alimentação que mantêm a pessoa ou o dyohko
344
Essa história também ressalta a importância, para uma aldeia, de ter essas almas-Jaguar familiarizadas por
xamãs confiáveis. Enquanto Dyumi era dono de João Dias, a aldeia de Bananeira não tinha nenhuma razão
para temê-lo. Mas depois que João Dias foi levado para o Javari, o povo de Bananeira, particularmente a
viúva de João Dias, passaram a temê-lo. Ela tem receio de que o menino perdeo controle sobre o Jaguar-
dyohko e este virá atrás dela, lembrando-se do tempo em que eram casados, mas incapaz de reconhecê-la,
acabará fazendo-a mal.
375
situados. O processo de familiarização é, portanto, um modo de se atravessar esferas
relacionais antagônicas. O dyohko move-se da relação com as pessoas por meios predatórios
similares àqueles do Jaguar, para tornar-se um componente de um corpo humano, situado
por meio da alimentação. Isso de forma alguma anula a qualidade Jaguar do dyohko, pois o
xamã é em si um jaguar dentro da aldeia, que também deve ser situado por chefes, da
melhor maneira possível. E os xamãs são capazes de voltar-se contra seus parentes, de
tornar-se vítimas de acusações de feitiçaria, com vimos acima. Como observou Fausto:
“A relação entre mestre e xerimbabo selvagem é sempre ambivalente, que não se pode
neutralizar inteiramente a potência subjetiva do outro. Em sua ambigüidade, essa relação
projeta o espectro da predação para o interior: se o outro é inteiramente controlado,
completamente alienado, então não serve para nada”. (1999, 949)
Matando, Curando, Transformando
Nesta seção pretendo investigar como os xamãs usam o dyohko, focando sobre três
aspectos: seu uso por feiticeiros, a habilidade de curar e a possibilidade de ‘inserir’ um
espírito auxiliar dyohko em um o-xamã. Esse último ponto nos conduzirá para a próxima
seção, para uma discussão sobre a morte e sobre o destino da alma, em quais o dyohko
também desempenha um papel importante.
Feitiçaria
Uma pessoa cujo corpo está impregnado de dyohko verdadeiro’ pode causar danos
com projéteis e curar. Todos os xamãs com os quais falei, negaram usar dyohko para
feitiçaria, mas os não-xamãs tinham uma opinião diferente. Embora os feiticeiros
tendessem a ser classificados como pessoas que viviam longe os Kulina, os Coatipuru-
dyapa, o Lontra-dyapa e o Macaco barrigudo-dyapa sendo os acusados mais comuns havia
sempre o potencial de que o vizinho de alguém também se tornasse maléfico, como
acabamos de ver. Começarei discutindo o uso do dyohko verdadeiro, contido no corpo de
cada xamã, para feitiçaria e cura. Depois discutirei alguns dos usos dos espíritos auxiliares
familiarizados ‘na floresta’, em muitos casos a partir dos xamãs mortos.
A evidência mais clara de que feiticeiros por perto é a presença de doenças
causadas por dardos xamânicos. Os feiticeiros não podem causar mal de muito longe e
precisam estar fisicamente próximos aos Kanamari aos quais desejam fazer mal. Eles
376
geralmente viajam até as aldeias de seus inimigos, sozinhos ou em pequenos grupos, e
arremessam o dyohko na direção de suas vítimas por meio do uso de um pequeno canudo
de bambu (maripu) ou de um bodoque. Os feiticeiros têm a habilidade de misturar o dyohko
com outras substâncias que o tornam ainda mais mortal
345
. O dyohko pode afetar as vítimas
de dois modos que dependerão do que estiver misturado à substância. Pode agir
diretamente sobre o corpo (-warah) da vítima causando doenças, que uma vez não tratadas
causam morte, ou podem fazer com que a vítima sujeite-se a um ‘acidente’ que poderá
matá-la. O dyohko mais comum do primeiro tipo são aqueles misturados com partes de uma
larva chamada bityi
346
. Essas podem afetar o corpo da vítima em qualquer lugar, ao
penetrarem no corpo, ‘tornam-se larva em nossa carne’ (bityi-pa tyo-hai naki) e causam o
desenvolvimento de um tumor. O tumor que resulta de um bityi odyohko é chamado de
tyikuro em Kanamari e tem uma pequena abertura por onde saem pus (bi) e sangue (mimi).
Essa abertura se torna progressivamente mais larga à medida que a larva penetra no corpo
da vítima, ‘comendo a carne enquanto se move’ (tyo-hai-pu-dak). A larva deve ser removida
por um xamã, que suga o tumor até a larva sair. Se ele não fizer isso, a larva aos poucos
devora a vítima, um processo fatal que os Kanamari chamam de ‘acabando com a nossa
carne’ (tyo-hai hawane).
O outro tipo de dyohko, aquele que provoca ‘acidentes’, causam danos externos em
vez de internos à vítima. O dyohko é misturado com partes de uma aranha, cobra ou pedaço
de chumbo. A pessoa que é afetada não perceberá qualquer mudança em seu corpo. Um
dia, a caminho do roçado, por exemplo, a pessoa será mordida por uma aranha ou cobra ou
cortar-se-á ‘acidentalmente’ com o facão (ou será ferida por uma bala perdida). Esses dyohko
podem às vezes ser vistos pelos xamãs sob a influência de rapé. O dyohko precisa ser
identificado a tempo e removido para o ‘acidente’ ser evitado. Ao remover o dyohko de
qualquer um desses tipos, o xacom freqüência reconhecede onde veio, dizendo à
vítima curada a origem do baohi que a atacou.
Há outras maneiras que os baohi fazem-se conhecer. Qualquer indício suspeito
encontrado na área em torno da aldeia pode ser um sinal. Pegadas em lugares inesperados,
345
Esse processo de misturar o dyohko com substâncias estrangeiras é chamado de dyohko hihanhowam. Após
expelir o dyohko do seu corpo, o feiticeiro deve então derreter a resina, acrescentar ao líquido os itens
estrangeiros e deixar solidificar mais uma vez. Por alguma razão, os feiticeiros tendem a preferir usar o dyohko
presente em um tipo de árvore conhecida como dyohko-omam (‘dyohko-árvore’), mas em todos os casos, a
substância dura precisa ser liquefeita por meio do fogo. Sinais de fogo na floresta são, portanto, um sinal de
que feiticeiros podem estar rondando.
346
Outro dyohko que age diretamente sobre a vítima é misturado ao cabelo humano. O xamã Mako uma vez
tratou um homem que havia sido vítima de um dyohko com cabelo Kulina e como conseqüência estava com
febre. Mako sugou o cabelo do corpo e queimou-o de modo que não prejudicasse mais ninguém. Uma vez
me disseram que o espinho de uma pupunheira também pode ser misturado à substância dyohko.
377
uma cápsula de bala pendurada em uma árvore por uma corda, galhos quebrados, pedaços
de madeira esculpida, porcos misteriosamente encontrados mortos todos esses sinais
foram interpretados como provas da presença de baohi. São raramente vistos dentro da
aldeia em si, preferindo principalmente os roçados e as cercanias.
Muitos dos incidentes envolvendo feiticeiros durante o meu trabalho de campo
ocorreram no roçado. Um deles revela outra faceta dos feiticeiros, que é o fato de que eles
não apenas causam danos por meio de projéteis xamânicos, mas também raptam as pessoas
e matam-nas de outras formas. Kadyo Paranim estava recolhendo mandioca com seu
marido, mas se sentindo cansada, ficou para trás. Ela ouviu alguém chamá-la na língua
Kanamari, dizendo: “venha aqui, não farei mal a você”. Quando ela aproximou-se, um
homem a agarrou, mas seus gritos alertaram seu marido, que veio correndo em direção
dela. O baohi havia fugido, e quando o marido chegou, sua mulher havia desmaiado devido
ao episódio. De volta à aldeia Massapé, ela despertou e explicou que havia dois homens de
cabelos compridos e faces pintadas com tintura de urucum. Alguns homens foram atrás
deles, encontraram um colar de miçangas e pegadas onde haviam esperado Kadyo Paranim
distrair-se. Massapê não se dispersou, mas durante muitos dias nenhuma mulher foi para o
roçado. Os homens passaram muitas noites em vigília, com fogos acesos e ocasionalmente
organizaram pequenas expedições até o roçado para tentar encontrar os feiticeiros. Eles
não foram vistos novamente, e, aos poucos, retomou-se a vida na aldeia
347
.
A presença de feiticeiros nas cercanias da aldeia torna todos os seus residentes
miori, ‘azarados’. Os caçadores voltam com as mãos abanando, os roçados ficam
improdutivos, as pessoas machucam-se sem razão aparente, acidentalmente cortando-se
com facões ou sendo feridos por galhos que caem das árvores, por exemplo. Toda
atividade ritual é suspensa e as mulheres param de preparar bebida de mandioca. Em suma,
a vida na aldeia pára e, a não ser que a causa do estado de miori seja aniquilada matando
os feiticeiros
348
ou fazendo-os fugir, por exemplo as aldeias dispersam-se. Isso pode ser
temporário, com as pessoas indo viver durante certo tempo em outras aldeias, ou
permanente.
347
Logo antes de eu começar o meu trabalho de campo, Manah Manah, uma menina de dez anos, fora
raptada por baohi quando temporariamente perdeu seu pai de vista no roçado. Esses baohi também falavam a
língua Kanamari e mantiveram-na prisioneira durante mais ou menos uma semana. Todos pararam suas
atividades para procurar por ela, mas nada encontraram. A menina conseguiu fugir enquanto dois baohi
começaram a discutir e momentaneamente se descuidaram dela. Alguns Kanamari contaram-me essa história,
mas a menina em si não estava disposta a falar sobre o acontecido.
348
Quando desconfiados, os Kanamari iriam com freqüência armados até as cercanias do roçado dizendo que
eles pretendiam matar os baohi. Entretanto, eles também me disseram que matar os baohi nas cercanias de uma
aldeia seria uma idéia, pois o espírito do baohi ficaria nas cercanias continuando a fazer mal aos viventes,
agora como Jaguar.
378
A presença de um xamã em uma aldeia, ou perto desta, é, portanto, fundamental
para sua segurança. O xamã deve sempre estar atento aos sinais que atestam a presença dos
baohi e sua opinião sobre a questão será definitiva. Certa vez, um menino aparentemente
cometeu suicídio no roçado, mas os Kanamari começaram a duvidar se era mesmo este o
caso, e começaram a procurar sinais dos baohi nas cercanias da aldeia. As opiniões eram
conflitantes até o momento em que o xamã retornou de uma expedição à área do roçado e
disse haver pegadas e galhos quebrados que confirmavam a presença dos baohi. Essa
avaliação deixou a aldeia em polvorosa, ninguém dormiu durante dois dias e o barulho foi
minimizado até que se decidiu abandonar a aldeia e ir para Massapê, durante um tempo
suficiente para que os baohi fossem embora.
A doença que resulta do dyohko é diferente dos males resultantes da atividade das
‘espíritos-caça’ bara adyaba, que na maioria das vezes causam danos às crianças pequenas,
que então podem ser curadas por meio de infusões de casca de árvores. Em termos gerais,
então, o mundo anímico dos Kanamari não postula uma ão letal não-humana, pelo
menos não aquela capaz de afetar os adultos recorrentemente. A única exceção são os
dyohko não-familiarizados, que são espíritos predatórios ou ex-xamãs/feiticeiros. O dyohko,
então, é a substância nociva do mundo, os resquícios dos Jaguares míticos que se
precipitaram sobre a terra, e felizmente alguns Kanamari são capazes de tornar-se eles
próprios Jaguares para controlar essa substância com habilidade.
Curando
Quando as pessoas estão mal dispostas ou sentem dores agudas em certas partes do
corpo elas perguntarão um xamã para examiná-las. Ele saberá se elas têm dyohko em seus
corpos ao inalar rapé (obadim hohtikik, tyo-ohpak-mi naki
349
). Em emergências, quando não
rapé disponível uma ocasião rara, que quase sempre pode-se enrolar um cigarro.
Durante o processo de ‘conhecer o dyohko’, o xamã passa as mãos sobre as partes do corpo
onde o paciente sente dor e as massageia. Caso esteja fumando um cigarro, ele pode soprar
(-po) fumaça sobre tais partes ‘para tornar o dyohko visível’. Se houver dyohko presente, o
xamã irá familiarizá-lo por sucção (bikman). O paciente normalmente permanecerá deitado
enquanto o xamã suga, e após cada rodada, o xamã ficará de , afastar-se-á de seu
349
Hohtikik é o verbo usado para a inalação de rapé. No passado, os Kanamari tinham um inalador de ossos
de mutum, que agora caiu em desuso. Esse inalador era chamado de hono’am, a mesma palavra usada para
‘flauta’. Hoje, eles apenas pegam uma pequena quantidade de rapé entre os dedos e põem perto das narinas (-
ohpak-mi), inalando profundamente uma única vez.
379
paciente, e tentaregurgitar qualquer dyohko que possa ter sido removido. Esse processo é
repetido muitas vezes porque pode haver mais de um dyohko ou porque este pode estar
profundamente inserido no corpo, em uma área de difícil acesso para o xamã. Os dyohko
penetram a carne, e quanto mais permanecem no corpo de uma pessoa antes do
tratamento, mais profundo penetrará. Os tratamentos podem, portanto, levar mais de um
dia, às vezes envolvendo mais de um xa e é até possível que um grupo de xamãs
ocasionalmente tratem de um único paciente.
Qualquer dyohko que um xaremova terá sido familiarizado por ele, e o processo
de remoção dos projéteis é em si chamado de ‘familiarização’ (hu’man). Diferente dos
espíritos dyohko que moram na floresta, esses projéteis são inseridos nos corpos dos xamãs,
portanto tornando-se parte do dyohko em seus próprios corpos. Segundo o xamã Dyumi:
Os dyohko não voltaram [para seus donos]. Eles são nossos. Nós os sugamos de dentro das
pessoas. Não saem mais, ficam dentro de nós. A pessoa então é curada. O dyohko é meu.
Apenas os outros tipos, os dyohko grandes, guardamos em uma bolsa.
Os dyohko grandes, quando existem não-familiarizados na floresta, também agem
como feiticeiros furando com dyohko aqueles que em como inimigos, como no caso de
João Dias que estava fazendo mal às pessoas antes de tornar-se xerimbabo de Dyumi.
Alguns desses dyohko foram familiarizados e são xerimbabos de xamãs distantes, que os
enviam em direção aos seus inimigos. Nesse último caso, o dyohko deve ser ativado
modificado de seu estado de pedra guardada na bolsa de seu mestre para um espírito que
assume o ‘corpo verdadeiro’ (-warah tam) de um animal. Esses dyohko podem ser usados
para causar danos ao assumirem a forma animal e atacarem os inimigos de seu mestre.
Alterando corpos
Talvez até mais assustador seja o processo de alteração que uma pessoa pode sofrer
se um dos espíritos dyohko poderosos, em vez de um projétil, for inserido nela. Estes,
parece-me, não podem ser arremessados, e o xamã/feiticeiro precisa de alguma forma
enganar sua vítima para que ela se aproxime dele, para então, o dyohko ser inserido sem ela
perceber. O processo, em não-xamãs pelo menos, é aquele em que a vontade do dyohko
impõe-se sobre aquele da tima, fazendo a pessoa tornar-se o xerimbabo do espírito. O
poder desses dyohko é de tal ordem que mesmo os grandes xamãs do passado precisavam
380
guardar esses dyohko em bolsas
350
, não sendo capazes de controlar a vontade deles caso
estivessem dentro de seus próprios corpos: em não mais do que um ano’, sentenciou
Poroya, e o dyohko inverteria o processo de familiarização e reduziria o xa a um
xerimbabo.
A tima nem sempre sente o dyohko sendo inserido em sua carne. Logo depois, a
vítima encontrará um Jaguar na floresta que, segundo alguns, apenas a vítima poderá ver.
Ela verá o Jaguar em sua forma de jaguar, mas este conseguirá convencê-la que não é um
inimigo, mas parente. A história do ancestral Kano, a mim narrada por Kodoh na aldeia
Bananeira, revela um dos modos como o Jaguar impõe-se sobre suas presas. Diz-se dessa
história que ocorreu quando o pai Kodoh era jovem, provavelmente nos anos 1910.
Ancestral Kano
“Pai, vou me encontrar com o xamã”. Paiko Kano deixa seu pai e vai até a aldeia de outros,
que o vêem de longe. Ele aproxima-se da aldeia e chama o xamã: “Estou aqui meu velho
351
.
Vim consultar-me com o xamã”.
“Sim, meu caçula. Descanse. Nós vamos cuidar disso mais tarde”.
Kano havia trazido um pouco de cerveja de mandioca com ele, mas na viagem ela havia
sedimentado. Ele oferece a cerveja ao xamã, que não a aprecia e por essa razão insere dyohko
nas costas dele, perto das omoplatas. Kano, que não sabia disso, passa a noite na aldeia.
Na manhã seguinte ele vai embora, em direção à sua aldeia. Naqueles dias, Kano ainda era
uma pessoa (tukuna). Na trilha, o Jaguar o do alto de uma árvore. Kano pára, joga seu
machado e sua rede no chão e sobe numa árvore. O Jaguar, que estava deitado, fica de pé e diz:
“desça, meu irmão. Não me mate, meu irmão. Não sou um Jaguar, sou uma pessoa também”,
o Jaguar diz a Kano e ambos descem.
“Está vendo? Eu não te matei. Sou teu amigo
352
”, o Jaguar diz a paiko Kano
353
. “De agora em
diante, o seu nome será Mapicaru”. O Jaguar mudou o seu nome. “O seu nome se
Mapicaru”, ele diz à Kano. “Não será mais Kano. Será Mapicaru. Eu chamarei a mim mesmo
Kano”, o Jaguar diz a paiko
354
.
350
Ou, no passado bem distante, em vasos pequenos de cerâmica chamados de moro kom.
351
I-kidak, ‘homônimo mais velho’ (ver capítulo seis).
352
O narrador diz a palavra ‘amigo’ em português.
353
Nesse momento, o narrador me diz: “está realmente dentro dele. O seu homônimo mais velho inseriu
dyohko nele. Um Jaguar-dyohko”.
354
Mapicaru é um nome Kanamari comum que significa boto. O narrador primeiro diz que o Jaguar ‘mudou
o nome de Kano’ (a-wadik-baniman Kano) e depois que o Jaguar ‘fez o nome de Mapicaru’ (a-wadik-bu
Mapicaru). Vale ressaltar que, desse ponto em diante da história, quando o narrador refere-se à ‘Kano’ ele
quer dizer ‘Jaguar’ e tanto ‘Jaguar’ quanto ‘Kano’ o empregados de modo intercambiável. ‘Mapicaru’ refere-
se à pessoa cujo nome era Kano, mas que o teve modificado pelo Jaguar. Os termos ‘Mapicaru’ e paiko
(‘ancestral’) são empregados de modo intercambiável.
381
“Tudo bem”, diz paiko. Kano vai na frente e Mapicaru atrás dele. Mapicaru então diz a Kano:
“Irmão, estou com muita fome, Vamos encontrar caça”.
Eles matam uma cotia. O Jaguar tira as tripas de dentro do animal e o gado para
Mapicaru. Ele fica com a carne de cotia para si e a come crua. Eles seguem caminho, em
direção à casa no outro lado do rio Jutaí. Eles nadam até o outro lado do rio e aproximam-se
da casa, mas Kano pára e apenas Mapicaru segue: “Você vai até eles, meu irmão. Eu ficarei
aqui”, ele diz a Mapicaru.
“Ok”, ele chega na casa dos outros. “Olá!”
“Você é o Kano?”, eles perguntam.
“Não, meu nome não é Kano. É Mapicaru”, ele diz às pessoas.
“É mesmo?”
“Sim. pegar as folhas de buriti para mim. Vamos dançar e cantar a noite toda”, ele diz
para todo mundo. Eles vão pegar as folhas e confeccionam as roupas para a dança. Mapicaru
amarra-as na cabeça e em torno da cintura. Ele começa a cantar:
Nok tu, owiyo, i-naki i-pahi-ni, i-naki i-pahi-ni
355
Então se ouve o Jaguar no pátio: Hiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, hi, hi, hi, hi, hi
356
. As pessoas correm para
casa, com medo do Jaguar e chorando: o Jaguar hi hi está aqui
357
!”. Mas Kano junta-se a
Mapicaru e eles continuam a entoar o mesmo canto.
Os humanos perguntam a Mapicaru: ‘de quem é esse Jaguar? Em quem ele pôs sua fala?”
Mapicaru responde: “não é nada disso. Você acabou de chegar e nenhum Jaguar te pegou. O
Jaguar apenas grita, e depois segue o seu caminho” ele diz para os donos da casa. Nesse
momento, um dos xamãs tornou-se ciente de que um Jaguar-dyohko fora introjetado em paiko.
De manhã, Mapicaru vai embora com o Jaguar. Eles viajam rio abaixo. Eles matam um
caititu o qual comem cru. Outros se aproximam deles e ficam olhando à distância: “é Kano?”,
eles sussurram. Eles sabem que Kano tem apenas um nome, então se perguntarem seu nome,
eles saberão se é Kano ou não
358
. Eles se aproximam dele: “qual é o seu nome”?
“É Mapicaru. pegar folhas de buriti para a gente dançar e cantar a noite inteira. Eles o
fazem e novamente Mapicaru começa a cantar:
Nok tu, owiyo, i-naki i-pahi-ni, i-naki i-pahi-ni
355
O trecho em itálico é o canto. Cantos Kohana são com freqüência sujeitos a formas gramaticais que
diferem da fala regular e são repletos de metáforas e imagens difíceis de entender sem a exegese de um xamã,
mesmo quando o significado é acessível a todos. Uma tradução aproximada, baseada na explicação do
narrador, poderia ser algo assim: “Não raivoso, jacaré açú, estou dentro, estou nadando.” Disseram-me que o
canto é uma referência ao fato de Mapicaru ter cruzado o Jutaí, e ele está dizendo aos outros que os jacarés
não estavam raivosos, ou não estavam com raiva dele.
356
Os Kanamari chamam o som que o jaguar faz de Pidah hi hi, ‘jaguar hi hi’, uma onomatopéia.
357
Os humanos ouvem o som do Jaguar, mas eles não o vêem, pois apenas em Kano, e não o espírito que
está com/dentro dele.
358
No capítulo seis, vimos que muitos Kanamari têm mais do que um nome, que é passado adiante por mais
de uma pessoa mais velha. Porque esses ‘outros’ sabem que Kano não tem outros nomes, eles logicamente
concluem que se perguntarem seu nome e ele oferecer qualquer reposta diferente de ‘Kano’, algo deve estar
errado.
382
Kadyo pararanim, ma-pu tu tyanim adu
I-naki i-pahi-ni
359
.
Eles ouvem o som do Jaguar. “Lá vem o Jaguar!”. Eles escondem-se, mas Mapicaru continua
cantando. Ele canta até de manhã e depois viaja rio abaixo. A essa altura, ele é um Jaguar
pintado. À medida que ele desce o rio, as manchas estão visíveis. O Jaguar pegou-o, por
causa do dyohko dentro dele. Ele vai até o rio Solimões.
Os outros vão até a aldeia de seu pai: “onde está o seu filho?”, eles perguntam.
“Ele foi visitar o xamã, seu homônimo mais velho. Foi isso que ele me disse”.
“Nao é verdade. Ele passou a noite cantando e dançando. Vimos seu filho”.
Nesse momento, paiko chega na aldeia de seu pai. Ele e o Jaguar.
“Olá pai”.
“Hu. Onde você esteve, meu filho”?
“Rio abaixo”.
“É mesmo?”
“Pai, quero folhas de buriti. Vamos cantar e dançar a noite inteira!”
Eles juntam folhas, preparam as roupas e cantam. As manchas estão visíveis no seu corpo.
Quando ele acaba de cantar, ouve-se o som ‘hi, hi’ do Jaguar de novo. Os outros se voltam
para o pai: “está vendo agora? Não estávamos mentindo”.
“Sim, agora eu entendo. Todos vocês agarrem-no quando ele não estiver olhando”.
Eles vão até Mapicaru e dançam com ele. Mapicaru fica desconfiado e começa a desviar-se
deles, movendo-se para as bordas do pátio. Mas eles finalmente agarram-no e amarram-no. O
pai dele se aproxima: “filho, deixe-os procurarem o dyohko. Deixe seus cunhados te
examinarem”. Os homens da outra aldeia, que eram xamãs, passam as mãos sobre o coração
dele, mas o dyohko ainda não está lá. Eles examinam as suas costas, perto das omoplatas, e
encontram-no. Eles se alternam, sugando o dyohko e finalmente conseguem. É um dyohko
360
grande. Paiko está curado, e as manchas desapareceram. Ele estivera insano (parok).
Essa história mostra como uma deficiência da parte de Kano causou um xamã de
furá-lo sub-repticiamente com um Jaguar-dyohko. Isso levou Kano a ver um Jaguar no topo
de uma árvore, embora o narrador enfatize que o dyohko estava dentro dele. O Jaguar
convence-o de que são ‘irmãos’ ou ‘amigos’ e consegue mudar o nome dele. Nesse estágio,
o Jaguar impôs sua vontade sobre Kano, agora chamado de Mapicaru, assumindo o
nome de Kano para si. O fato de, à medida que viajam, o Jaguar ‘ir na frente’ e Mapicaru
atrás é um sinal de que Mapicaru perdeu seu –warah para o Jaguar, uma vez que este é o
359
Os novos versos do canto são mais ou menos estes: “Jacaré-branco, muito tempo atrás eles não me
comeram, dentro de mim mesmo estou nadando.”
360
Pergunto ao narrador se é um coração do Jaguar e ele diz que não, que é apenas um Jaguar-dyohko.
Suspeito que ao dizer isso ele esteja sugerindo que o dyohko é um espírito Jaguar velho, mas não a alma de um
xamã morto.
383
‘chefe/corpo/dono’ que ‘vai na frente’. Quando se aproximam da aldeia, o Jaguar
convence Mapicaru a seguir sem ele. Esse momento provavelmente enfatiza o processo de
familiarização que está acontecendo: os dois o são duas entidades, mesmo se Mapicaru
ainda não sabe disso e na verdade entram na aldeia juntos. Embora Kano ainda veja a si e
ao Jaguar como dois, para as outras pessoas da aldeia, eles parecem um só.
Os outros’ desconfiam de Kano/Mapicaru, porque eles o conhecem e seu nome
mudou. O fato de o ‘hi hi do Jaguar’ não incomodar Mapicaru, que diz tratarem-se apenas
de sons e que nenhum mal decorrerá deles, faz o xamã tornar-se ciente de que Kano foi
familiarizado. O ‘hi hi’, disseram-me mais tarde, vem do próprio paiko, mas para as pessoas
da aldeia, parece vir da floresta que circunda a aldeia. A imposição do nome Mapicaru
sobre Kano é um emblema da natureza ambivalente de todo dyohko. Acima mencionei
como às vezes os xamãs em si vêm a ser chamados pelo nome de um de seus familiares.
Embora isso ocorra em quase um tom de zombaria, um certo grau de seriedade nisso,
pois se o xamã começa a responder pelo nome de seu familiar e deixa de reconhecer o seu
próprio, é sinal de que a direção da familiarização mudou, e o xaperde o que tem de
humano para o dyohko.
Após deixar a aldeia, os ‘dois’ comem caititu cru, que é um modo ‘jaguar’ de comer
caça. ‘Outros’ aproximam-se deles novamente. Não me é claro se esses são os mesmos
‘outros’ que eles acabaram de deixar e os seguiram ou se são outros outros’. De qualquer
modo, eles decidem descobrir de uma vez por todas o que aconteceu com Kano/Mapicaru
ao testar sua condição perguntando por seu nome. Quando ele responde com um nome
que eles sabem não ser dele, e de novo começa a entoar o mesmo canto
361
, eles ficam
definitivamente convencidos e decidem ir até o pai de Kano/Mapicaru que, ao testemunhar
a mesma coisa, entende o que aconteceu. Eles conseguem salvar Kano porque o Jaguar-
dyohko ainda não pegou seu coração. Eles tiram o coração do seu corpo, reduzindo-o a uma
grande pedra.
O narrador conclui dizendo que Kano estivera ‘insano’ (parok) enquanto esteve sob
a influência do Jaguar. Vimos em muitas ocasiões que a ‘insanidade’ implica a perda de um
corpo. No exemplo de Kano, vimos isso acontecer no nível do corpo humano, ao invés de
nos níveis mais abrangentes de chefia. Isso também mostra como a perda do corpo,
quando não resistida, é o primeiro estágio de um processo de alteração, em que um novo
corpo é assumido, um corpo que pode ser não-humano. O idioma de insanidade’ liga a
condição de Kano ao canto que ele entoa. Embora o narrador não explicite isso, fica claro
361
Não sou capaz de interpretar os novos versos do canto, mas dizem ser o mesmo. O narrador explicou-me
que esse era o único canto que Mapicaru/Kano queria entoar.
384
que o ritual realizado por Kano/Mapicaru é um Kohana-pa. Os corpos dos Kohana são
folhas de buriti (Mauritia flexuosa), e os humanos confeccionam as roupas para o ritual com
essas folhas. O ritual depende da habilidade do xamã de ter familiarizado um dyohko grande,
idealmente a alma de um xamã morto, que então canta através dos corpos dos viventes em
um processo ritual de alteração que não deve resultar no tipo de infortúnio que recaiu
sobre Kano. Logo tratarei do Kohana, mas primeiro pretendo discutir o processo da morte.
A Dissolução do Corpo
Nesta seção pretendo enfocar a morte e como os viventes lidam com ela. Analisarei
as circunstâncias em torno da morte e o período de luto, enfatizando mais aquilo que diz
respeito ao tema desta tese: a relação entre a estabilidade do corpo vivo e a mobilidade da
alma. Na seção seguinte, analisarei a morte segundo a perspectiva dos mortos, cuja alma
deixou o corpo terreno e que, na maioria dos casos, inicia uma longa viagem até receber o
seu novo corpo celestial.
Morrer
A morte decorre mais comumente de doenças (konama). três tipos principais de
doenças. Uma é a ‘doença dos brancos’ (Kariwa nawa konamanim), que inclui a malaria e a
hepatite
362
, que precisa ser tratada com os ‘medicamentos dos brancos’ (kariwa nawa horonim)
ministrados por uma enfermeira ou médico. também aquelas doenças causadas pela
‘floresta’, simplesmente chamadas de konama, como a proximidade da alma de um animal
morto. Essas são tratadas por alguém que sopra ‘casca de árvore’ (omamdak) ou por um
especialista de ayahuasca marinawa, que bebe ayahuasca e também ‘sopra’ os males para
longe. Por fim, há aquelas doenças causadas por dyohko, que um xamã precisa tratar. Outras
mortes podem decorrer de atos violentos como brigas, por exemplo. Os Kanamari não
parecem compartilhar a crença ameríndia comum na falta de ‘causas naturais’ de morte (ver
Taylor 1996), pois é possível para alguém morrer após tornar-se atyinani, ‘velho e
imprestável, jogado no canto da casa’. Entretanto, como uma pessoa torna-se atyinani
apenas devido a uma incapacidade de viver bem e observar as prescrições necessárias de
362
As mortes devido à malaria são quase não existentes hoje, como a Fundação Nacional de Saúde supre a
medicação contra essa doença para a maioria das aldeias, mas os Kanamari dizem que era bem freqüente no
passado recente. A hepatite, particularmente devido ao vírus delta (hepatite D), é a causa de muitas mortes
recentes na Reserva Indígena Vale do Javari (Matos e Marubo 2006; Welper e Cesarino 2006).
385
‘deitar-se’ nas horas certas, essas mortes não são propriamente ‘naturais’, mas, ao contrário,
o resultado de uma vida ociosa.
Há dois verbos Kanamari que significam morrer: tyohni e tyuku. O primeiro refere-se
principalmente às pessoas que morreram muito tempo e cujas almas desincorporadas
pararam de assombrar os vivos, enquanto o segundo termo refere-se à morte, mas também
a uma gama de processos que conduzem à morte, e, portanto, é um estado potencialmente
reversível. Um Kanamari explicou-me que tyohni significa ‘muitas pessoas que morrem’ e
tyuku é ‘apenas um’. Creio que essa maneira de formular a diferença entre os dois termos é
um jeito tipicamente Kanamari de dizer o que mencionei acima: as pessoas que tyohni são
‘muitas’, cujas almas foram firmemente situadas no Céu Interior e cujos corpos foram
enterrados, tornando-se ‘ancestrais sem nome’ (-mowarahi); enquanto tyuku refere-se a
pessoas que ainda têm nome e são individuadas, e cujas almas permanecem, possivelmente,
entre os viventes. Em outras palavras, aqueles que tyohni não são mais lamentados
(mahwanim), enquanto aqueles que tyuku estão sendo lamentados ou logo serão
363
. Tratarei
da última, para podermos entender como alguém vem a se tornar um ancestral sem nome
em primeiro lugar.
uma pequena diferença semântica entre ‘morrer’, tyuku, e ‘perder a consciência’,
otyuku. O afixo o-, como vimos em outras ocasiões, designa um outro de um tipo ou
qualidade. Então ‘perder a consciência’ é um ‘tipo de morte’, e isso inclui ‘desmaiar’ ou
‘tornar-se inconsciente’, mas também pode se referir a estados extremos de doença em
geral, como ‘tremores’ (owiwik) e ‘sentir frio’ (opawan). O o-no início das palavras é o
mesmo afixo de otyuku, implicando uma qualidade desses estados, particularmente quando
não se sabe exatamente o que está causando o mal estar. Se o estado não pode ser
eliminado, a pessoa morrerá, tyuku
Com efeito, muitas das características de tyuku e otyuku sobrepõem-se à categoria de
‘insanidade’ (parok) que vimos em diferentes pontos ao longo desta tese. Venho
descrevendo parok como um estado de ‘perda de corpo’: a morte de chefes faz as pessoas
enlouquecerem e os processos de transformação, entendidos como metamorfoses
corporais, tornam uma pessoa parok, incapaz de reconhecer os parentes e empreender o
caminho para tornar-se um espírito. Outros estados conferem a uma pessoa uma ‘qualidade
de alma’ aguçada, como ‘estar embriagado’, ‘estar sob os efeitos de rapé’ e ‘alucinar após
beber ayahuasca’ também tornam uma pessoa parok. Em todos os casos de estar parok a
pessoa deve ser capaz de ‘agüentar’ (kima) os efeitos da substância ingerida, os efeitos da
363
Vimos no capítulo anterior como a palavra boko-pa se refere à morte por meios violentos, como tiros ou
facadas. Pode-se especificar, então que a pessoa boko-pa, mas também é pode-se dizer que ela tyuku.
386
substância estranha (dyohko) que está no corpo da pessoa, ou a conseqüência de ficar sem
chefe e dispersa. A incapacidade de agüentar pode conduzir a estados mórbidos de otyuku
ou amesmo de ‘quase morte’ (tyuku niwuti). No consumo de ayahuasca, por exemplo, se
o ayahuasca assoberba quem o ingeriu, a pessoa pode desmaiar, e se com a morte do chefe
as pessoas não conseguem viver nas aldeias, elas ‘ganham a floresta’ (ityonim-man),
tornando-se progressivamente não-humanas.
A insanidade também marca o período imediatamente após a morte. A pessoa
morre quando a alma deixa o corpo permanentemente, e o corpo (-warah) se torna um
cadáver (-boroh). O cadáver, como sabemos, é associado aos estados de imobilidade e
permanece sem vida onde a pessoa morreu. Sem corpo, a alma, que foi cuidadosamente
eclipsada por meio da construção do –warah, ‘levanta-se’ (dadyahian), não mais contida pelo
corpo. A alma então se torna parok, sem saber que morreu, e, portanto, é capaz de fazer
mal aos vivos.
As mortes não apenas fazem a alma do morto tornar-se parok, pois os que
coresidiam que ele também correm o mesmo risco. Antes de tratar especificamente do
destino da alma, eu gostaria de considerar o exemplo de uma morte ocorrida durante a
minha estadia em campo. Por meio desse exemplo, explicitarei algumas atitudes em torno
da morte e do tratamento do cadáver. Essa morte, entretanto, foi excepcional, e eu não
tenho certeza se essas atitudes seriam as mesmas com relação à morte de qualquer outro
adulto.
Quem matou Kaina?
364
A única morte de um ‘homem adulto’ (piya) que ocorreu enquanto eu estava no
campo foi a de Kaina, que provavelmente tinha em torno de dezessete anos, casara-se
recentemente com sua FZD e tinha uma filha ainda bebê.
365
Sua morte, à qual rapidamente
fiz referência acima, foi excepcional uma vez que ele provavelmente cometeu suicídio,
embora os Kanamari tivessem passado um tempo em certeza disso. Os Kanamari não têm
uma palavra para ‘suicídio’ que seja independente do modo como este é realizado. Se
364
Discutirei um caso de suicídio nesta seção. O assunto é excepcionalmente perturbador para os Kanamari
e com freqüência usado para diminuí-los no contexto político local. Portanto, modifiquei o nome da vítima e
inventei nomes para a aldeia onde o incidente ocorreu e para as pessoas envolvidas.
365
Enquanto eu estava em campo, morreram duas crianças muito pequenas, uma delas com menos de um
ano. Elas foram enterradas sem muita cerimônia perto da aldeia de modo que não ficassem muito longe de
suas mães. De acordo com Tastevin (n.d.3, 11, 33), as crianças pequenas eram enterradas dentro de casa,
entre as redes de seus pais, e uma fogueira era acesa em cima de seus túmulos para manter suas almas
aquecidas.
387
enforcar, por exemplo, é wuru kom duk-duki, literalmente ‘amarrar o pescoço’ e ‘atirar em si
mesmo’ é to-ta-tohmahik
366
.
Não vejo razão para os suicídios além das explicações que os Kanamari me deram.
Eles disseram que o ímpeto das pessoas de ser matarem decorria deles estarem raivosos’
(nok) e, portanto, ‘querem morrer’ (tyuku-wu). A maior parte dos suicídios envolvia homens
e mulheres jovens, a maioria com menos de vinte anos de idade. Vimos no capítulo
anterior como a ‘raivaé associada à alma e a falta de habilidade de controlá-la é o fracasso
do corpo. Isso pode nos ajudar a entender por que a maioria dos suicidas era jovem, sem
filhos e, portanto, ainda residualmente ligados à sua origem ‘raivosa’. A maioria dos adultos
deve ser capaz de dissipar esses impulsos violentos ao, por exemplo, cortar seus cabelos de
modo que a raiva não venha a ser inscrita em sua fisionomia. Eram os homens e as
mulheres adultas que mais ficavam horrorizados diante do aumento de suicídios. Embora
não tenham me dito isso explicitamente, a sua perplexidade diante do suicídio era um
indício de fracasso pessoal: era porque algo não ia bem no modo como os corpos estavam
sendo produzidos da matéria-alma que as propriedades da alma pré-social não estavam
sendo eclipsadas. Conseqüentemente, foi após uma séria de suicídios e tentativas de
suicídios que eu ouvi a maioria das reclamações de que as pessoas não estavam respeitando
os períodos de ‘deitar-se’ e da abstenção.
As brigas conjugais impulsionavam a maioria dos suicídios: uma jovem mulher se
enforcou porque seu marido tinha uma amante, e outra, que não tinha mais do que quinze
anos, porque seus pais desaprovavam o rapaz com quem ela queria se casar, dizendo que
ele o trabalhava e que passava o dia inteiro deitado em sua rede. Nesses casos, disseram-
me que o suicídio decorrera da raiva do rapaz ou da moça. Entre as outras razões,
figuravam uma briga entre duas irmãs que resultou na tentativa de suicídio de uma delas, e
o caso de um jovem ‘saudoso’ (mahwa) do amigo que acabara de morrer.
A última razão, ‘saudades’, é provavelmente o que resultou no suicídio de Kaina. O
episódio ocorreu na pequena aldeia Samaúma, com uma população de vinte e duas pessoas.
Os pais de Kaina não moravam ali, porque ele havia se mudado para a aldeia de sua sogra.
366
De 2002 até o início de 2005, teria sido impossível considerar o suicídio um pico de pesquisa, uma vez
que eu não tinha razão para suspeitar que essa prática era comum entre os Kanamari, como ninguém
mencionava isso. É não obstante uma prática comum entre os Sorowaha, povo falante de Arawa (Dal Poz
2000) e também foi relatado entre outros povos amazônicos como os Aguaruna (Brown 1986) e os Tikuna
(Erthal 2001). Entretanto, quando cheguei no campo na segunda metade de 2005, disseram-me que dois
suicídios haviam ocorrido em minha ausência e ouvi histórias de muitos outros. Houve também um número
significativo de tentativas de suicídio e um mero ainda maior de ameaças, então até o fim do meu trabalho
de campo, em maio de 2006, o suicídio tornou-se um tema comum de conversação. No total, contei, dentro
do Itaquaí, seis suicídios e dez tentativas. Durante um período de mais ou menos um s, houve tantas
ameaças, a maioria sem fundamento, que fui incapaz de contá-las.
388
Ele havia estado infeliz no casamento, e em relação à maioria das coisas, por algum tempo.
No ano anterior, seu irmão havia falecido devido à hepatite e Kaina estivera letárgico,
comendo pouco e passando tempo demais sozinho. Certo dia em janeiro de 2006, ele foi
para o roçado e não voltou à noite. Os outros moradores da aldeia assumiram que ele havia
fugido para a aldeia de seu pai e foram dormir, embora perturbados diante da disposição
introspectiva do rapaz.
Na manhã seguinte, um homem mais velho foi para o roçado. Sua ausência mal foi
percebida quando começamos a ouvir seus lamentos: “meu neto, meu neto, meu neto”!
Alguns dos homens correram pela trilha que levava ao roçado, enquanto outros esperaram
na aldeia. A notícia logo veio de que Kaina havia cometido suicídio usando o cordão de
náilon de seus shorts para atar seu pescoço a um galho de árvore na trilha que ligava a
aldeia ao roçado. Todos na aldeia começaram a lamentar-se e a chorar, dizendo que Kaina
não ‘conhecia a terra’ (ityonim-tikok tu), recordando minuciosamente todos os momentos
em que ele havia agido de modo taciturno e infeliz.
Não cantos ou lamentos, e o único ato prolongado e ritualístico de lamentação é
a repetição por parte de todos do termo de parentesco usado para se referir à vítima
enquanto ele estivera vivo. Em meio a esse pranto contínuo, algumas pessoas começam a
comentar o comportamento do morto e as circunstâncias de sua morte. Enquanto os
outros choram, alguns irão dizer “ele gostava de se sentar aqui, na beira da casa” ou “ele
seguia essa trilha em direção ao rio para banhar-se”. Outros ainda irão comentar os dias
que antecederam a morte, e no caso de Kaina, farão referência ao seu comportamento nas
últimas semanas: “por que ele não queria comer? Sempre demos comida boa a ele”, e “por
que ele estava tão quieto? Ele não conhecia a terra”? Ninguém pára quieto, e as pessoas
andam de para na aldeia, indo até os lugares onde Kaina passava a maior parte de seu
tempo, e finalmente vão até os limites do roçado, esperar por aqueles que haviam ido
resgatar o corpo.
O uso repetido dos termos de parentesco, a reconstituição minuciosa dos percursos
diários de Kaina, e até a incredulidade diante das circunstâncias de sua morte asseguram ‘a
alma de Kaina’ (Kaina n-a-ikonanim) que seus parentes estão ‘de luto’, mahwa, e, portanto,
que ‘não estão com raiva’ (nok tu) dele. O período imediatamente após a morte deixa a
aldeia inteira, quando não a bacia hidrográfica, em um estado de miori, ‘azar’. Todas as
atividades devem parar enquanto as pessoas cuidam do corpo. Eles fazem isso porque
‘gostam do/desejam’ (-wu) o morto e ‘lembram-se’ (-wunimdak) dele, o que também quer
dizer, literalmente, que o ‘desejo deles prossegue’. Os Kanamari, entretanto, reconhecem
389
que o luto é uma faca de dois gumes, porque ao fazerem com que a alma do morto saiba
como eles estão tristes, eles continuam amarrando-a à aldeia, impedindo sua viagem em
direção ao Céu Interior. Essa tensão sentida pela alma, presa entre a aldeia que ela deixou e
o u Interior, é uma parte contínua do ‘luto’ e a este corresponde uma série de eventos
que acometem ao mesmo tempo a alma e a aldeia, como ficará claro logo adiante
367
.
À medida que os homens traziam o corpo de Kaina de volta para a aldeia, as
opiniões a respeito de sua morte começaram a mudar. Ambos Mapiri-ro e Noki haviam
acabado de cometer suicídio por enforcamento, e em nenhum deles o sangue saíra pela
boca como aconteceu a Kaina. Além disso, um dos lados de seu corpo estava seriamente
ferido o que eles consideraram incongruente com o modo como Kaina morrera. Os
homens, que haviam começado a retornar do roçado, relataram a presença de pegadas
sugestivas na área em que o corpo fora encontrado. Não fora suicídio no fim das contas,
mas a atividade de ‘feiticeiros’, baohi. Nessa noite, ninguém dormiu. Acenderam uma
fogueira e os homens ficaram de vigília com suas espingardas carregadas. Eu estivera
dormindo em uma casa abandonada nos limites da aldeia, mas me disseram para levar a
minha rede para a casa onde todos estavam reunidos, pois provavelmente havia feiticeiros
rondando. O corpo estava no chão em uma casa vazia próxima, envolto na rede velha de
Kaina.
Uma das primeiras coisas que a viúva de Kaina fez, assim que o corpo chegou na
aldeia, foi juntar todos os pertences dele. Sua rede e mosquiteiro foram usados para
envolver o corpo, e o facão, que ele acabara de ganhar da Funai, foi posto ao lado dele.
Mesmo os presentes que eu havia dado a ele não mais do que uns dias antes de sua morte,
e que ainda estavam novos, foram postos ao lado do cadáver, e suas roupas foram
empilhadas ao lado dele. O cadáver permaneceu na casa com todos os seus pertences
antigos por perto, e com uma tocha acesa ao lado durante a noite (‘para que ele saiba que
gostamos dele’).
“Kaina está insano, ele está confuso” (parok Kaina amtunim, wa-tikokok tunim drim),
disseram-me. Se todas as mortes fazem a alma sair do corpo e, desincorporada, perambula,
perdida por algum lugar entre a terra e o Céu Interior, a morte de Kaina apresentava ainda
outro problema: seria ele vítima ou culpado? Teria sido ele morto por feiticeiros ou teria ele
se matado? Cometer suicídio é um comportamento imprestável’ (adyaba) que tem
367
A idéia de que, após a morte, a alma fica dividida entre a vida após a morte e os parentes é comum na
Amazônia. Os Wari’, por exemplo, queimam todas as lembranças do falecido para evitar seu retorno como
fantasma (Conklin 2001, 159; Vilaça 1992, 228). Os Araweté acreditam que o espectro do morto apenas
desprende-se dos vivos após a decomposição do cadáver, após a qual ele volta para sua aldeia natal (Viveiros
de Castro 1992, 207).
390
conseqüências decisivas para o destino pós-mortem da alma, que será ‘arremessada para
baixo’ (waikma-dyi) do Céu Interior e mantida na terra por toda a eternidade. Os Kanamari
não sabiam se eles estavam de luto por uma alma que os faria mal apenas devido ao seu
esforço bem-intencionado de reunir-se aos ex-parentes, ou se, sendo um espírito
impretsável, este poderia fazer mal a eles de outros modos.
Como aponta Viveiros de Castro, “a morte dispersa: tanto a sociedade, que
abandona a aldeia, quanto a pessoa, que se fragmenta” (1992, 201). Antes de investigar as
formas que a fragmentação da pessoa assume, eu gostaria de continuar com a história da
morte de Kaina, para mostrar que o é apenas a sua alma, mas a aldeia toda, que se
dispersa.
Enterro, Insanidade e Dispersão
Logo após o cadáver ser posto na casa, um menino foi de canoa até a aldeia de
Ioway e Kapayo, pai e mãe de Kaina, para contar as notícias terríveis. Na manhã seguinte
eles chegaram de em um barco com motor de popa. Todos estavam com medo que o pai
ficasse ‘insano’, uma vez que a morte de um filho pode tornar uma pessoa excessivamente
raivosa, e mais próximo das propriedades da alma do que do corpo. À medida que ele se
aproximou da aldeia, e o som do motor podia ser ouvido, as mulheres foram até suas redes,
escondendo-se sob o mosquiteiro. A jovem viúva de Kaina pediu para esconder-se na
minha rede porque temia que, em sua ‘insanidade’, Ioway a mataria. Todos os homens de
Samaúma esconderam seus rifles por perto de modo que ficassem ao alcance, caso
necessário. Ioway chegou, lamentando “meu Kaina, meu Kaina, meu Kaina”
368
! A primeira
coisa que ele fez foi ir aa rede de sua própria mãe e começar a bater nela. Os homens,
que haviam escondido os rostos quando Ioway chegou, ignorando-o e deixando-o
lamentar-se, imediatamente foram até a mulher para impedir que seu filho a matasse. Um
homem pegou-o por trás enquanto outro falou com ele: “não fizemos isso. Também
gostávamos de Kaina, Kaina era nosso parente” (tyo-man tu ta’anyam. Tyo-wu-nim Kaina kotu
tyo, tyo-wihnim Kaina anim kotu tyo).
Eles acalmaram-no, e tiraram-lhe de perto de sua mãe, que ficou na rede, chorando.
Enquanto a nora dela a assistia, Ioway e Kapayo continuaram a lamentarem-se sentados ao
lado do cadáver de seu filho. Novamente, ninguém dormiu, as mulheres ficaram
conversando em torno de um fogo ao lado do casal que chorava, e os homens seguraram
368
Exceto o pai de Kaina, todos, mesmo sua mãe, choravam o morto chamando-o pelo termo de parentesco
apropriado.
391
seus rifles enquanto olhavam para a floresta. Na manhã seguinte, os moradores de
Samaúma convenceram Ioway, por meio de uma explicação detalhada das circunstâncias
em quais seu corpo foi encontrado, que seu filho havia sido morto por feiticeiros. Eles
mostraram a parte ferida do corpo do filho, e explicaram que tinham visto pegadas
estranhas nas cercanias do roçado. Sugeriu-se que os feiticeiros mataram Kaina
espancando-o, torcendo seu pescoço, e simularam um suicídio para impedir que as pessoas
fossem atrás deles. Em torno de meia noite, ouviram-se sons estranhos vindos da floresta e
um homem disparou uma bala para assustar os feiticeiros. Decidiu-se que, na manhã
seguinte, uma expedição seria organizada para tentar encontrar os culpados.
Essas expedições foram realizadas ao longo dos três dias seguintes. Qualquer sinal
nas cercanias da aldeia funcionava como um apelo centrífugo, enviando os homens em
direção à selva atrás dos feiticeiros e as mulheres para o lado oposto ao dos homens, para
longe do perigo. A aldeia permaneceu vazia uma vez que as pessoas deixavam-na por
períodos de tempo. Em certa ocasião, eu cochilei, pois havia algumas noites que o
dormia, e despertei, encontrando a aldeia completamente vazia, algo que eu nunca
presenciara em qualquer aldeia Kanamari durante os quatro anos que eu os conhecera
369
. A
aldeia, pareceu-me, estava se dissolvendo.
Embora parte da compulsão de adentrar a floresta decorresse das particularidades
da morte de Kaina, e da necessidade de evitar danos futuros assustando os feiticeiros, os
Kanamari sabem que esse movimento é um dos perigos que segue qualquer morte. O
intenso sentimento de tristeza e saudades que se apodera das pessoas as faz querer fugir de
seus parentes, adentrar a floresta e perder-se. A expressão usada para designar essa
compulsão é ityonim man, ‘ganhar a floresta’. No capítulo anterior, vimos que isso resulta de
estados de raiva excessiva, quando as pessoas reportam-se às propriedades pré-sociais da
alma. Os estados de luto também podem levar uma pessoa a romper suas relações com
parentes, tornando-se parecida com o ikonanim e desaparecendo, vagando pela noite
370
.
369
Embora eu não tenha passado mais do que meia hora sozinho, a experiência foi bastante perturbadora.
Isso se deveu em grande parte às circunstâncias em torno do evento uma morte acontecida de um modo
tão violento, a lamentação sem fim, o choro, o medo. Mas sinto que possa ter havido outro motivo para meu
desconforto. Qualquer um que tenha passado tempo em uma aldeia ameríndia sabe que talvez o maior
‘choque cultural’ seja a falta de privacidade, o fato de que se é com freqüência rodeado de gente em todas as
horas do dia. Eu ansiara muitas vezes por um pouco de privacidade – talvez, ironicamente, apenas meia hora–
mas naquele momento, acho que compreendi alguns dos perigos de ‘ficar insano’, de ter o corpo da aldeia
repentinamente afastado, e de se ver sozinho. Os Kanamari voltaram e confortaram-me, dizendo que haviam
tentado me acordar, mas que tiveram que correr e que eu não deveria ter medo porque os feiticeiros o
fariam mal aos brancos.
370
Uma idéia que os Kaxinawá expressam com elegância: “aquele que não sente falta de seus parentes do
mesmo modo que se deseja água quando sedento, não é uma pessoa, mas um yuxin”. Lagrou define yuxin
como “seres que flutuam livremente sem forma ou moradia fixas” (2000, 159).
392
Conseqüentemente, todos os olhos pousavam sobre Ioway e Kapayo, aos quais era preciso
dizer que estavam rodeados de parentes que não queriam causar danos a eles ou ao filho
deles (como aconteceu após Ioway bater em sua mãe) ou conversar ao lado deles, com um
fogo aceso para afastar a noite (como na ocasião em que passaram a noite inteira
conversando).
Em meio a esses movimentos em direção à floresta e de retorno desta, uns dois dias
após a morte do rapaz, o corpo foi enterrado. Um caixão foi improvisado em qual o corpo
foi colocado junto com todos os pertences de Kaina. O cemitério de Samaúma não fica
muito longe a aldeia, o que é atípico e provavelmente resulta do fato de que até aquele dia
apenas uma criança bem pequena havia morrido ali, que foi enterrada perto da aldeia como
era de costume. O ‘túmulo’ de Kaina (bo-mi ou simplesmente mi) foi cavado ao lado do
caixão e este foi colocado lá dentro por quatro homens. havia ali uma sepultura
assinalando o túmulo da criança, sob um abrigo de madeira com um teto trançado de
folhas de palmeira que os Kanamari chamam de kimarak. Essa era a prática que Tastevin
(n.d.2, 33) observou, e ele descreveu o enterro da seguinte forma: “les pieds et les mains du
mort sont attachés au corps. La fosse que l’on ménage pour le cadavre est ronde”. Hoje,
em vez de um kimarak, alguns Kanamari põem cruzes sobre o túmulo, encorajados pelos
empregados da Funai e da Funasa, mas assim que o período de luto termina, eles com
freqüência removem a cruz para usarem-na como lenha.
O enterro de Kaina fez com que todo mundo abandonasse a aldeia. Makuna, o
‘cacique’ local, decidiu que deveríamos ir para Massapê. Todos juntaram seus pertences e
fomos embora em duas canoas. Como é típico nas viagens Kanamari, paramos em cada
aldeia, e em todas elas a história foi repetida com detalhes. Toda vez, sem exceção, as
pessoas das aldeias por onde passávamos diziam que eles também haviam visto ou ouvido
sinais sinistros, as marcas dos baohi. Os pais de Kaina continuavam chorando, agora
indignados: “por que eles nos inimizam? Não fizemos nada a eles”!
Luto
Os Kanamari, como vimos, costumavam abandonar as aldeias quando os chefes de
aldeia morriam. Se o chefe de subgrupo morresse, a situação ficava até pior, pois podia
acarretar a dispersão do subgrupo todo, espalhando-se (inona) e gravitando em direção a
outro chefe com o qual pudesse se viver e, portanto, tornando-se um povo de outro
subgrupo. A morte dos não-chefes, como Kaina, não causaria, disseram-me, a dispersão de
393
uma aldeia. Contudo, a reação a qualquer morte em uma aldeia era fazer as pessoas irem
hak nyanim pato-na’, ‘em direção à maloca’. Eles fariam isso para ‘deixar nosso luto lá’ (ityowa
mahwanim paka-na), esquecer o morto e dar o tempo necessário para a alma deste encontrar
o seu caminho em direção ao Céu Interior. A família imediata da pessoa morta, entretanto,
talvez considerasse impossível retornar à aldeia e escolheria estabelecer residência em outro
local. Eles faziam isso porque ‘a terra [lá] não é boa para a gente’ (bak tu ityonim tyo-ama)
371
.
Entre os Araweté, “uma morte provoca a fuga e a dispersão imediata dos
integrantes da aldeia em direção à floresta, de onde eles não voltarão até pelo menos um
mês ter passado” (Viveiros de Castro 1992, 199). Os Kanamari, por outro lado, tentam
impedir exatamente isso ao subirem ao longo da escala –warah, em direção à aldeia do chefe
do subgrupo. Se incursões ocasionais na floresta são inevitáveis particularmente quando
os feiticeiros estão presentes é essencial que a aldeia consiga conter esses movimentos, e
o modo mais apropriado de fazer isso é pegar os pertences e sair em direção ao chefe que
contem a aldeia inteira como parte dele. Além disso, o estado de miori, ‘azarento’, que segue
todas as mortes cessa a atividade na aldeia as pessoas deixam de caçar, pescar, ir para o
roçado ou fazer bebida de mandioca. Elas fazem isso por precaução, pois o estado miori
não apenas torna as pessoas infelizes em suas atividades (o roçados tornam-se
improdutivos, os caçadores voltam com as mãos vazias), como também podem causar
danos aos viventes: uma pessoa pode topar com o dedão do pé enquanto caminha na selva,
cortar-se com um facão ou ser picado por uma cobra a caminho do roçado. Isso significa
que, sozinhas, as pessoas passam fome, e para evitar isso, elas precisam da segurança
oferecida pelas pessoas que vêm e vão da maloca, dos grandes roçados e das capoeiras em
torno destes.
Os residentes de Samaúma, ‘azarentos’ e com medo (ya), fugiram para Massapê, o
equivalente a maloca no Itaquaí. Ficaram durante aproximadamente duas semanas, e
quando não havia mais sinais de feiticeiros rondando, eles novamente começaram a
considerar que Kaina cometera suicídio. O estado de azar que os Kanamari chamam de
miori tende a dissipar-se (wukam, ‘ir até o fim’) algumas semanas após a morte, e a aldeia
pode reagrupar e começar a retomar suas atividades. Mas o término de um período de azar
não conclui aquele do luto. O termo para luto é mahwa, que, como vimos, também significa
371
Isso aconteceu uma vez no Itaquaí, após a morte de um menino de quatro anos em um acidente de canoa
perto da aldeia Alzira. Essa aldeia era composta essencialmente de um velho casal, suas filhas e genros. Os
pais jovens do menino descobriram que não conseguiam mais viver em Alzira e mudaram-se para outra
aldeia. O restante da aldeia, inclusive os avós do menino, expressaram o seu desejo de mudar-se também e a
última informação que eu tive sugere que a aldeia está hoje completamente vazia.
394
‘saudade’ ou ‘pena’
372
. ‘Estar de luto’ é referido como –mahwanim, um estado que se estende
da morte até o enterro do cabelo.
Para discutirmos esse último ponto, precisamos deixar de lado a história da morte
de Kaina, porque, uma vez que aconteceu sob circunstâncias difíceis, o cortaram o
cabelo dele. Mais tarde perguntei aos Kanamari o porquê disso e a resposta deles foi que
não cortam o cabelo de pessoas que cometem suicídio. Isso é consistente com o destino da
alma após a morte, como veremos abaixo, mas foi uma explicação post hoc, já que na ocasião
do enterro de Kaina eles achavam que ele fora uma vítima de inimigos.
A maioria dos enterros é precedida pelo ‘cortar do cabelo’ (ki-pui tukmahik). Os
Kanamari não especificam quem corta o cabelo, mas este deve ser guardado por um
‘parente verdadeiro’ (-wihnim tam). Nos dois casos que eu sabia que o cabelo estava sendo
‘cuidado’ (tokodo), este foi guardado por mulheres (uma mãe e uma viúva), mas isso não
parece ser uma prescrição e disseram-me que os homens também guardavam o cabelo se
fossem eles os que mais tinham saudades do falecido. O cabelo é amarrado em um
chumaço com uma fibra de tucum e envolvido em um pano, guardado fora de alcance.
Pode de agora em diante ser chamado de ‘cabelo’ (ki-pui) ou de ‘saudade/luto’ (mahwa), e às
vezes, quando a pessoa que está guardando o cabelo está submersa em tristeza, ela pode
pegar o cabelo para olhá-lo: ‘o cabelo do morto é o nosso luto’, dizem os Kanamari, e
embora olhar para o cabelo compulsivamente constitua um comportamento patológico, é
esperado daqueles que estão de luto que olhem com freqüência para o cabelo enquanto este
ainda estiver presente na aldeia. Fora isso, o cabelo será resgatado apenas durante o ritual
do Grande Jaguar em que o cabelo, o ‘luto’, é finalmente enterrado e o morto esquecido.
Devir-Kohana, Devir-Jaguar
O enterro do cabelo é um sinal definitivo da irreversibilidade da morte, e
corresponde a uma série de eventos que acontece à alma. Uma vez que o ‘luto’ está debaixo
da terra e fora de vista, as pessoas estão felizes, e a alma da pessoa falecida não mais se fará
presente na aldeia. Isso marca o momento em que a alma recebe finalmente e seu corpo
celestial. O cabelo, enquanto isso, é dado aos Jaguares que o enterra, apagando a memória
do falecido, que agora será lembrado não como um indivíduo, mas como um –mowarahi,
ancestral sem nome. O enterro do cabelo, ao mesmo tempo que garante uma nova morada
372
Eles com freqüência traduzem mahwa com o termo ‘saudade’. A palavra para ter pena’ é omahwa, ‘um tipo
de anseio’.
395
para a alma, também fertiliza a terra, regenerando-a para as gerações sucessivas e,
conseqüentemente, atando os Kanamari à terra na qual o cabelo está enterrado.
Enquanto os viventes ficam divididos entre uma dispersão quase que automática e
um impulso de contê-la, a alma vê-se em um dilema similar. No que se segue, irei percorrer
o destino da alma até o seu destino final e depois retornar ao ritual do Grande Jaguar que
assegura a sua transformação em Kohana. Devo alertar o leitor que uma discussão detalhada
disso e dos rituais ‘Devir Kohanaultrapassam o escopo desta tese. Pretendo enfocar aqui
como a fragmentação da pessoa após a morte replica a tensão entre estabilidade e
mobilidade, ligando-a ao céu e à paisagem.
O Destino da Alma
O Céu Antigo (Kodoh Kidak) despencou após a insensatez de Piyoyom e hoje
vivemos sobre suas ruínas. À medida que caía, o Céu empurrou para baixo a terra que o
antecedia, revelando atrás dele o Céu Novo’ (Kodoh Aboawa). Mas esse Céu Novo não era
como o Céu Antigo, pois não havia muitos viventes ali: ‘apenas pássaros, estrelas e nuvens’,
de acordo com alguns Kanamari. Mas dentro daquele u ficava o u Interior (Kodoh
Naki), invisível o olho nu, dentro do qual Tamakori pôs os Kohana. Os Kohana são seres
míticos que representam um paradigma da humanidade sempre jovem, com roçados
grandes e férteis, e constantemente dançando e entoando seus cantos em rituais. Eles e
seus cantos são também chamados coletivamente de Kodoh-warah, corpo/donos celestiais’.
Alguns Kanamari também dizem que atrás do Céu Interior há ainda mais um céu, chamado
de Outro Céu(Okodoh), onde Tamakori agora vive. Mas a maioria dos Kanamari apenas
diz que ele viajou rio abaixo, para além de Manaus, onde ainda mora.
Os ‘primeiros Kohanaou ‘velhos Kohana(Kohana Kidak), que foram postos no u
Interior por Tamakori, são muitos, e os Kanamari o conseguem nomeá-los
373
. uma
vasta gama, tanto masculinos quanto femininos. Um é chamado Ihnan Karia, que faz um
som semelhante a um morcego (ihnan é a palavra Kanamari para morcego), outro é Hudya
Waraiyah (hudya é a palavra para macaco-aranha) e outro é Kariwa Ikonanim (‘alma-
branca’). também um Kohana conhecido como Notyiri Odyan, mas alguns me disseram
373
Do mesmo modo como falam do Jaguar, quando os Kanamari referem-se aos Kohana, eles com freqüência
empregam o português. Esses Kohana são então às vezes chamados de ‘Primeiro Kohana toninim’, que significa
‘primeiros Kohana de um tempão atrás’. Suspeito que ‘primeiro’ em português seja redundante e que a
expressão Kohana toninim provavelmente referir-se-ia aos mesmos seres. Novamente, esse emprego da palavra
‘primeiro’ não ocorre apenas quando eles estão falando comigo, mas também é usado quando eles falam
sobre os Kohana entre si.
396
que esse era a ‘caça’ dos Kohana
374
. A relação entre esses seres e suas contrapartes terrenas e
seus epônimos, não me é clara. Perguntei se Ihnan Karia era um tipo de morcego e
disseram-me que era apenas Kohana. Os Kariwa Ikonanim podem ser uma referência mais
direta às almas dos brancos que, como veremos, também se tornam Kohana. Junto com o
primeiro Kohana há uma série de outros Kohana que são as almas transformadas dos
Kanamari. Antes de falar de como são os Kohana, descreverei o que faz uma ‘pessoa-alma
tornar-se um Kohana.
Quando a pessoa-alma deixa o corpo, diz-se que dadyahian
375
. Isso ocorre durante
todos os ‘tipos de morte’ (otyuku). Assim que a alma e o cadáver separam-se, os Kohana vêm
para a terra, de acordo com a maioria dos Kanamari, em grupos de pelo menos dois, para
resgatar a alma, ‘pegando-a pelos braços’ (a-pam-dyoroman). Os Kohana então levam a alma na
longa viagem até o Céu Interior, seguindo a trilha de arco-íris (mapiri nanim, ‘grande
anaconda’)
376
. Todos no Céu Interior são adultos, nem muito jovens nem velhos demais.
Um Kanamari disse-me que recém-nascidos que morrem ficam na terra, perto de seus pais.
Carvalho (2002, 284) ouviu uma versão diferente. As crianças que morrem muito cedo
acabam indo para a lua (wadya) onde vivem por um tempo antes de crescer um pouco e
empreender a viagem até o sol (tyam), porque as crianças têm que ser um pouco mais velhas
para agüentar o calor do sol. Quando saem em direção ao sol, elas são substituídas pela
alma de outras crianças muito novas que morreram desde então. Quando estão mais
crescidas ainda, elas deixam o sol e vão tomar conta das estrelas (tyiriko) e de Vênus
(waiwai). Depois disso, o informante de Carvalho prossegue, “aí vai cantar, brincando
mesmo com o pessoal, recebe a alma da pessoa que morreu, fica o tempo todo na porta”.
Esse último momento o ‘pessoal’ é certamente uma referência ao Céu Interior e aos
Kohana, que estariam esperando as crianças crescerem para que pudessem ir para o u
Interior. E isso sugere, como Carvalho aponta, que as crianças desenvolvem a parte
abortada do ciclo de suas vidas no cosmos. O que fica claro em todas as opiniões é que
todos no Céu Interior são adultos, a idade que os Kanamari consideram ‘mais humana’, por
assim dizer, e, portanto, nem muito jovens nem velhos demais
377
.
374
Tyiri é o nome do jogo entre homens e mulheres nas reuniões Hori (ver capítulo um). Odyan é um termo
inespecífico para coisa ou objeto.
375
A palavra literalmente significa ‘ficar de pé antes de partir [em direção ao Céu Interior]’.
376
Um Kanamari discordou da idéia de que os Kohana conduzem a alma por um arco-íris. Ele diz que há, ao
contrário disso, uma trilha muito bonita na cabeceira do Juruá, pela qual os Kohana guiam nossas almas.
377
Há um (ou muitos) Kohana chamados de Kohana o’pu, significando ‘Kohana filho (w.s.)’ ou ‘pequeno Kohana’,
mas o parece haver nenhuma relação que eu possa estabelecer entre esses Kohana e crianças. Diz-se deles
simplesmente que são ‘de fato Kohana’ (Kohana nimbak).
397
A viagem em direção ao Céu Interior é cansativa, e uma vez que a pessoa-alma
chega com os Kohana sua rede já está esperando por ela, em meio a uma profusão de outras
redes. Ela deve então descansar e ficar por um tempo. Enquanto isso, os Kohana mostram-
se alegres, dizendo “agora nossa pessoa chegou aqui, por isso estamos felizes” (panim waok-
dyi ityowa tukuna am tyo bo, tyo-ta-nobak am tyo). Muitos desses Kohana são ex-parentes dela,
agora corpos celestiais, que estavam aguardando a chegada dela para que a casa deles ficasse
muito mais feliz. Os Kohana, que estão sempre entoando seus cantos e dançando, começam
a cantar em torno dela. Mas ela permanece ‘deitada em sua rede’ (opikam, awa homo naki) por
pelo menos cinco dias, segundo um Kanamari.
No caso de morte de pessoas mais velhas, os kidarak (‘anciões’), é enquanto eles
deitam-se em suas redes que eles rejuvenescem. Diz-se do processo que constitui uma
‘cura’, bakna. Enquanto a pessoa falecida está em sua rede, ela está ‘deitada’ (opikam), como
se estivesse observando as restrições em torno dos períodos de tohiaik, ‘tendo cuidado’.
Vale lembrar que ‘deitar-se’ enquanto na terra é feito para impedir que a pessoa tanto
aquela que está deitada quanto aquela de crianças pequenas envelheça rapidamente, fique
cheia de rugas e grisalha. ‘Deitar-se’ no Céu Interior é, portanto, algo parecido com um
hiper-opikam que em vez de impedir a doença, reverte-a. Os Kanamari também dizem que
se a pessoa more por causa de uma doença (konama), ela torna-se curada em sua rede, de
modo que quando finalmente fica de pé ela está jovem e forte (wa-man).
Parece haver, embora eu tenha dúvidas a respeito disso, um tipo de defasagem não-
linear do tempo entre o Céu Interior e esse mundo. Os ‘cinco dias’ do ‘deitar-se’ na rede no
Céu Interior ocorrem ao longo de mais ou menos um mês de tempo na terra. Quando a
pessoa ‘levanta-se’ (hiram) da rede, o período de miori já terá acabado e as pessoas estarão de
luto. Os eventos que sucedem o ‘levantar-se’ ocorrem dentro dos próximos cinco dias no
Céu Interior, mas na terra pode levar quase um ano. Essa dissonância temporal é
importante porque os eventos no Céu Interior correm paralelos aos eventos na terra. Os
eventos que acontecem no Céu Interior são, portanto, sincrônicos com os eventos que
acontecem na terra, mas são emoldurados por temporalidades distintas.
Ao mesmo tempo que os Kohana estão felizes e cantando em torno da pessoa-alma
que acabou de chegar, eles também estão tentando convencê-la de que está morta: “Você é
a nossa pessoa agora. Você não vai voltar. Você é aquela da qual cuidamos (ityiwa
tokodoik
378
)”. É crucial convencer o falecido disso porque a pessoa-alma ainda está ligada
aos seus parentes aqui na terra, e pode deixar a sua rede e vir perambular entre os vivos.
378
Este foi o único caso em que ouvi essa palavra. Foi explicado a mim como sendo uma forma nominal do
verbo tokodo, ‘cuidar de, armazenar’, como acontece com o cabelo cortado antes do enterro.
398
Vimos no capítulo anterior como esse perambular da alma, com freqüência ingênuo, é às
vezes bem intencionado uma tentativa desesperada de uma pessoa-alma ‘insana’ de ficar
próxima dos viventes, mas que traz conseqüências desastrosas para estes últimos,
particularmente as crianças pequenas, cujos corpos tornam-se saturados de alma’ e,
portanto, começam a definhar. À medida que os Kohana tentam convencer uma alma
recém-chegada, eles começam a produzir transformações no corpo dela, em um processo
gradual de torná-la igual a um Kohana, aniquilando assim a sua ‘memória’ dos vivos,
certificando-se que o ‘desejo por eles morreu’ (-wunimtyuku) e ela não mais os como
parentes.
Uma das primeiras medidas que os Kohana tomam é ‘cobrir o corpo dela com
genipapo’ (tim-tiki) assim que ela levanta-se da rede. São os Kohana anya, Kohana fêmea’, que
a pintam. Na terra, a trovoada assinala aos Kanamari que isso está acontecendo. São
também as mulheres que, no caso dos homens, inserem o ornamento nasal celestial, o tyuru
pru, que é mais bonito e maior do que aqueles que os Kanamari usavam na terra
379
.
Inteiramente pintada, adornada, jovem e bela, a alma é ‘quase Kohana(Kohana nahan). O
estágio final da transformação é fazer o morto tomar uma cuia de vômito do ‘urubu rei
caçula’ (kodak padya abwawa). Esse personagem existe no Céu Interior, e por isso é
sempre ‘novo’. Ele é similar ao seu ‘homônimo mais velho’ (-kidak) o urubu rei que, por
permanecer na terra, envelhece, morre e come coisas putrefatas. O urubu rei caçula, que
vive em um mundo onde as coisas não apodrecem, regurgita tudo que ele come e permite a
conclusão da transformação da pessoa-alma em Kohana. certamente um paralelo, senão
uma congruência direta, entre as atividades dos urubu reis terrenos e celestiais. Os
Kanamari ficam atentos às atividades do velho urubu rei perto de túmulos, como sinal de
que o corpo está decompondo-se. Não sei se, idealmente, a decomposição do corpo
corresponde à ingestão do vômito do urubu rei caçula, mas hoje pelo menos o luto por
algumas pessoas prolonga-se por muitos anos, e disseram-me que o vômito do urubu rei
caçula corresponde ao fim do período de luto na terra, novamente ressaltando as
temporalidades dissonantes dos eventos celestiais e terrenos.
Diz-se do vômito do urubu rei caçula que é ‘a caiçuma do Kohana(Kohana nawa
koya). A caiçuma é bebida enquanto a alma, que se levantou de sua rede, pintada e
adornada, começa a dançar com os Kohana, que agora dizem a ela: “você é nosso parente’
379
O ornamento nasal celestial é chamado de tyuru pru padya. A palavra padya normalmente significa ‘sozinho’,
‘vazio’ ou ‘osso’. Os Kanamari com os quais falei, entretanto, discordaram que o tyuru pru padya era feito de
osso. A palavra padyatambém é parte do termo para ‘urubu rei’ (kodak padya), que desempenha um papel
importante em fazer a alma tornar-se Kohana. Entretanto, não sou capaz de encontrar outra tradução para
kodak padya’ que não seja ‘urubu rei’.
399
(tyo-wihnim). Você não vai voltar. Nós estamos felizes”. Esse ato de comensalidade finaliza a
transformação da alma. Agora ela é completamente Kohana, um ‘corpo celestial’ (kodoh-
warah), transformada em uma forma bela, perfeita e eterna. Diz-se do Kohana que é ‘quase
Tamakori’, vivendo ao lado do criador em um mundo onde as pessoas não envelhecem ou
adoecem e onde a dança e o canto ocorrem todos os dias. Esta alma não retorna mais à
terra (exceto em ocasiões rituais) e não assombra os viventes. De fato, os viventes
esqueceram-na porque a transformação em um corpo celestial depende de um ato
intencional de esquecimento (Taylor 1993), manifestado no enterro da única parte do
corpo que permanece na terra, o cabelo.
A despeito dessa última particularidade, os Kanamari acreditam que todas as
pessoas podem ir para o Céu Interior e tornar-se Kohana. Isso inclui não apenas os falantes
de Katukina, mas também os brancos, os Kulina e potencialmente até os Dyapa. Ao
tornarem-se Kohana, todos se tornam ‘corpos celestiais’ (kodoh-warah), e vivem juntos em
uma mesma morada celestial. As diferenças entre os subgrupos também são erradicadas, e
as pessoas que não eram parentes na terra tornam-se ‘parentes’ no Céu Interior
380
, onde
vivem juntos. A vida no Céu Interior é pacífica e farta: as frutas são bem maiores do que
na terra, os roçados são abundantes e caça é facilmente encontrada, porque os Kohana são
caçadores exímios
381
. Ninguém briga ou discute, e tudo é ‘perfeito’ (wa-baknim ti). Isso
levou um Kanamari a sugerir para mim que essa terra onde vivemos não é de fato a ‘nossa
terra’ (ityowa ityonim); o Céu Interior é a ‘nossa terra’.
Entretanto, apenas as pessoas que viveram bem (ityonim tikok) conseguem entrar no
Céu Interior. Os Kohana não ‘querem’ pessoas que tiveram uma vida ruim. Os Kanamari
incluem nessa categoria: as pessoas que mataram outras pessoas, particularmente aquelas
que mataram muitas pessoas (que eles à vezes chamavam pelo termo em português
‘criminoso’); as pessoas avaras e gananciosas; as pessoas excessivamente raivosas; os
380
Isso parece ter sido diferente no passado. De acordo com Tastevin (n.d.3, 5-6), a alma do morto seria
recebida por pessoas do seu subgrupo, e a vida no Céu Interior era organizada como a vida na terra, com o
morto de cada subgrupo morando na versão celestial da mesma bacia hidrográfica na terra. Os Kanamari com
os quais falei disseram que a geografia do Céu Interior replicava aquela desse mundo, mas eram unânimes ao
dizerem que todos moravam em uma única ‘grande comunidade’ (comunidade nyanim), cuja localização celestial
não fui capaz de determinar.
381
Vale lembrar que os animais de caça que os Kohana caçam são as almas dos animais de caça mortas pelos
viventes. Essas ascendem até o Céu Interior onde recebem corpos celestiais que são, pelo que pude apurar,
fisicamente idênticos aos seus na terra. Não consegui fazer com que a maioria dos Kanamari sugerisse o que
acontecia a esses animais após serem mortos, mas um homem disse que eles foram para o ‘outro céu’
(Okodoh), para morar perto de Tamakori, onde deixariam de ser caçados. alguns animais, entretanto, que
apenas existem no Céu Interior, como um macaco grande conhecido como wunawuna. Poroya disse-me que
era ‘parecido com um orangotango’, mas não faço idéia como ele chegou a essa conclusão.
400
feiticeiros; as pessoas que bebem cerveja de mandioca fora das reuniões Hori; e as pessoas
que são sempre preguiçosas e não trabalham.
As almas dessas pessoas são levadas para o Céu Interior pelos Kohana, como todas
as outras almas, mas porque agiram mal, elas o conseguirão passar por um jaguar grande
que vive diante da porta’ (ono, ‘tipo de boca’) do Céu Interior. Esse Jaguar é chamado Itiya
e é capaz de reconhecer pessoas malévolas. Os Kanamari dizem que Itiya esfrega a sua mão
sobre a cabeça da alma do morto, e se esta fica limpa de terra, isso significa que a pessoa foi
enterrada. O enterro é um sinal de que a pessoa continua a ser cuidada pelos viventes, e,
portanto, de que levou uma boa vida
382
. Se Itiya sabe que a alma levou uma vida ruim, ele
irá devorar a pessoa e seus restos mortais cairão de volta sobre a terra, tornando-se
espécies de bara adyaba, onde irão continuar a alimentar-se dos vivos, agora em forma
animal. Elas tornam-se, explicou Poroya, ‘quase Kirak’.
Após a alma receber o seu corpo celestial, ela deixa de ser nômade, não mais dada a
perambular entre os vivos e fazer mal a eles. A alma agora é completamente Kohana e os
Kanamari dizem que cada Kohana é um chefe, perfeito e estável. Alguns dizem que agora
eles apenas virão para a terra durante o ritual ‘Devir Kohana’ (Kohana-pa). Esse último ponto,
está longe de ser consensual entre os Kanamari, e isso expressa uma certa ambigüidade a
respeito do status ontológico dos Kohana, o qual retomarei, após descrever o ritual em
linhas gerais.
O Devir Kohana
Kohana não diz respeito apenas aos seres celestiais perfeitos e hiper-humanos que
Tamakori situou no Céu Interior e nos quais as almas dos Kanamari mortos tornaram-se.
Também é um estilo de cantos que são constantemente renovados no Céu Interior e
ensinados aos viventes pelos Kohana durante o ritual, além de ser um dos nomes atribuídos
ao dyohko que também é conhecido como ‘coração do Jaguar’, as almas suplementares dos
xamãs Kanamari. O último significado de Kohana é crucial, pois se apresenta aos Kanamari
como uma ironia perversa, que faz com que eles possam relacionar-se com esses seres
imaculados por meio de um precipitado do Jaguar, que se alimenta das pessoas aqui na
terra.
Presenciei muitos Kohana-pa em diferentes momentos e de durações variadas. É o
‘dono’ do ritual que decide quanto tempo vai durar, e em muitas ocasiões durou apenas
382
Os Kanamari também dizem que as pessoas que mataram muitas outras usando rifles viajam até o Céu
Interior levando a arma, e Itiya imediatamente saberá que a pessoa fora malévola durante sua vida.
401
uma noite, seguido da caça ritual na manhã seguinte. O Kohana-pa mais longo que presenciei
foi na aldeia, atualmente extinta, Donaia, que se estendeu por sete dias e noites, e a maior
parte da minha descrição será feita a partir desse caso. Entretanto, eu presenciei muitos
Kohana-pa na aldeia Bananeira, cujos residentes ofereceram-me a exegese mais interessante
do ritual, e parte da minha descrição basear-se-á nesses últimos. Donaia ficava muito
próxima de Massapê, então muitas pessoas destsa aldeia faziam o percurso até lá, por meio
de trilhas que ligam as duas
383
. Com efeito, o xadono do Kohana-pa era Marawi, que
morava na aldeia Massapê. Esse ritual era, portanto, referido como Marawi nawa Kohana
(‘Kohana do Marawi’).
O ritual Kohana-pa ocorre na maioria das vezes na estação seca, quando a ‘terra não
está molhada’ devido às chuvas e o pátio está em boas condições para a dança. A estação
seca também é um tempo quando os roçados são particularmente produtivos, uma vez que
qualquer aldeia que promova um Kohana-pa precisa prover grandes quantidades de comida
para os convidados. Os Kanamari dizem que os Kohana devem ocorrer durante o ‘poru’, que
significa a ‘seca’ do rio, mas é também o nome de uma série de períodos curtos de frio,
conhecidos como ‘friagem’, que realçam a mudança entre as duas estações. Mas o
nenhuma restrição contra a realização de rituais Kohana em outros momentos, e Kohana
menores foram promovidos na estação das chuvas na época da pupunha. Nessas ocasiões,
era dito explicitamente que os Kohana ocorreram tyo-hi tom”, ‘por causa da bebida de
pupunha’, ressaltando que o imperativo é a profusão de comida.
O ritual começa por meio da iniciativa do xamã. É necessário que ele sejadono’ de
um dyohko grande, um ‘coração do Jaguar’. Durante todo o ritual, o xaé referido como
amiari, que me disseram ser o nome dado ao ‘dono de um Kohana-pa’. Ele tornará pública
sua intenção de realizar o ritual, e notícia deste espalhar-se-á pelo Itaquaí, de modo que
pessoas de outras aldeias venham participar se quiserem. O ritual será referido como
‘pertencendo’ tanto ao xamã quanto à aldeia em que ocorre.
O local de realização do ritual é o pátio da aldeia. Os homens vão pegar folhas de
buriti a pedido do xamã. Essas são chamadas de ihkira-ba-noko, literalmente ‘língua de folha
de palmeira de buriti’, uma referência à bainha tubular na base das folhas que eles trazem
inteiras para a aldeia. Enquanto estão longe, outros homens começam a limpar o que será o
Kohana nawa ahokanim, ‘o [lugar de] chamar para os Kohana’. Este é sempre armado em
algum lugar nos limites do pátio, preferivelmente, em algum lugar mais para dentro da
383
No passado, o ritual Kohana-pa (e o Devir Jaguar) teria sempre acontecido na maloca. Hoje, esses rituais
raramente ocorrem no Massapê, o equivalente à maloca, sendo, ao contrário, uma ocasião envolvendo aldeias
menores e seus vizinhos.
402
floresta e fora da vista de qualquer pessoa de pé no centro da aldeia. O Kohana nawa hokanim
consiste de estacas grandes de madeira fincadas na terra de modo que redes possam ser
amarradas a elas, um pequeno fogo para o aquecimento à noite e, mais importante, o tear
onde as roupas rituais serão confeccionadas. O tear consiste de dois paus fincados na terra,
na altura da cintura, conectados por meio de fibras de tucum’. Durante todo o ritual, a
maioria dos homens mover-se-á para o Kohana nawa hokanim, dormindo e em geral fazendo
as refeições ali. A entrada no Kohana nawa hokanim é proibida às mulheres, embora os
homens circulem livremente por todas as partes da aldeia.
A roupa ritual (wakwama) consiste de duas partes: ‘a cabeçae ‘a cintura’. Algumas
wakwama, ligadas a sujeitos específicas que são nomeadas, têm leves variações. A wakwama
do Kohana conhecida como Hudya Waraiya, por exemplo, têm um longo chife (-ki-pi
tyaihnim) no topo da cabeça, feito de folhas de buriti enroladas. Junto com a wakwama
também folhas de arbusto que são presas às cabeças e aos braços. Essas são chamadas
de horonim, ‘medicamentos’, e são o equivalente terreno das kodoh-kipom, ‘flores celestiais’
que os Kohana usam no Céu Interior. Não parece haver nenhum horonim específico, e folhas
de qualquer arbusto são consideradas adequadas. Qualquer homem adulto pode usar
qualquer wakwama, mas isso não faz com que ‘tornem-se Kohana. Para isso, é necessário
que o xamã possua um Kohana dyohko. A maioria dos Kanamari diz que o xamã ‘insere’
(bohni) esses dyohko nas pessoas que vão cantar, então o número de Kohana participando de
fato dependerá do número de Kohana dyohko que o xamã, seu dono, e seus auxiliares têm.
Enquanto o wakwama está sendo preparado, as pessoas soam o hori. Este é ouvido
ao longo do dia, pontuando os sons da aldeia, atravessando os sons da floresta. Esse hori,
que durante o ritual Hori serve para chamar os –tawari, aqui tem a função de chamar a
atenção do Kohana celestiais que ouvem lá do Céu Interior. Diz-se que o hori ‘chama’ (ohoho)
os Kohana que vêm averiguar que balbúrdia será essa. O xamã depois alimenta o dyohko com
rapé, para ‘acordá-lo, e insere-o nas pessoas que estão adornadas com a wakwama,
permitindo que o dyohko cante através delas. Assim que o dyohko é inserido no cantador, ele
perde a consciência e torna-se parok, ‘insano’. Agora é dito que o dyohkopegou-o’ e que ele
‘se tornou Kohana’, sendo capaz de agüentar uma noite inteira de cantoria e dança. Um
Kanamari disse-me que o processo de ‘tornar-se Kohana’ éo traumático que é melhor que
os xamãs não ‘insiram’ dyohko nas pessoas. Segundo ele, é suficiente que os participantes
segurem o dyohko em suas mãos para efetuarem a transformação.
A experiência de ter Kohana no corpo é como um ‘desmaio’, similar ao que
aconteceu ao ‘ancestral Kano’. Mas o Kohana-dyohko nunca deve guiar o receptor pelo
403
processo confuso e perigoso de alteração por qual passou Kano, e o xamã está sempre ali
para assegurar que, no raiar do dia, o dyohko seja guardado com segurança em sua bolsa. Os
Kanamari dizem que eles desmaiam quando o primeiro dyohko é introduzido e depois, de
repente, os cantos dos Kohana começam a aparecer para eles, “em nossas cabeças” (tyo-ki
naki). Seus corpos, que antes estavam calmos, começam a ficar ativos e o Kohana flexiona
os joelhos constantemente, nunca ficando parado. Suas vozes cedem à fala Kohana (Kohana-
koni), um canto em falsete. A fala Kohana é repleta de metáforas e construções gramaticais
diferentes e estilizadas, que não obstante são geralmente compreensíveis a todos. Logo
após os homens serem ‘introjetados’ com o dyohko, ou após conterem a substância, os
Kohana começam a emitir uns gritos altos que os caracterizam, e as mulheres sabem que
eles logo aparecerão no pátio.
O processo todo – pegar as folhas de buriti, limpar o espaço que será o Kohana nawa
hokanim, fazer o tear, fazer a wakwama e preparar o Kohana-dyohko para o ritual apenas é
concluído perto da meia-noite. Enquanto isso, as mulheres estão ocupadas. No Kohana-pa
da aldeia Donaia, as mulheres que chegaram do Massapê tinham os rostos pintados com
urucum e jenipapo para parecerem ‘belas’ aos Kohana. Os integrantes de Donaia
começaram a fazer o mesmo. Elas se certificaram de que havia comida o suficiente para a
noite longa adiante, e prepararam um fogo nos limites do pátio no lado oposto ao do
Kohana nawa hokanim. Embora sejam proibidas de ir para a clareira onde fica o Kohana nawa
hokanim pois isso despertaria a raiva dos Kohana, que então não se fariam presentes na
aldeia as mulheres começam a cantar assim que os homens retornam com as folhas de
buriti. Os cantos entoados pelas mulheres são cantos Kohana que elas aprenderam em
Kohana-pa anteriores, e os quais elas recordam, por terem cantado-os em voz alta ou dentro
de suas cabeças por um longo tempo. A cantoria começa quando as mulheres organizam-
se no tio. Duas delas, normalmente as mulheres mais velhas, ficarão lado a lado de
braços dados nos limites do pátio cantando de frente para os Kohana nawa hokanim que está
situado no outro lado. Os cantos serão pontuados por comentários gritados que atravessam
a aldeia até os homens que preparam a wakwama: “Não demorem muito, pois ficaremos
cansadas”, ou, provocando-os diretamente, seremos capazes de resistir a noite toda, mas
vocês homens são muito preguiçosos”!
As mulheres cantarão sozinhas no pátio desde o entardecer até o momento em que
os Kohana estão prontos para aparecer. Os Kohana então adentram o pátio e, também lado a
lado, começam a rodear as mulheres, que continuam cantando os velhos cantos Kohana. Os
Kohana então se posicionam do lado oposto ao das mulheres, de modo que compõem duas
404
fileiras se encarando, e começam a entoar os cantos Kohana enquanto as mulheres vão se
calando. Os cantos que os Kohana começam a entoar são, a princípio, novos, que o dyohko
ensinou-os ‘em suas cabeças’. Esses cantos devem então ser aprendidos pelas mulheres.
Por essa razão, elas permanecem quietas enquanto os Kohana entoam seus cantos.
Há uma leve função didática no modo como os versos são dispostos. A maioria dos
versos é composta de três a quatro estrofes. A primeira estrofe será repetida muitas vezes,
o mesmo ocorrendo com cada nova estrofe de um verso. Quando o verso inteiro foi
entoado e as mulheres parecem tê-lo aprendido, os Kohana irão emitir gritos agudos e
retornar para o Kohana nawa hokanim. Enquanto isso, as mulheres ficarão no pátio cantando
as estrofes do verso que elas acabaram de aprender. Os Kohana ficarão afastados por uns
dez minutos, ocasionalmente pontuando a cantoria das mulheres com gritos agudos. Ao
retornarem, eles cantam novamente o verso que eles cantaram na ocasião anterior, o qual a
essa altura as mulheres já aprenderam. O processo de acertar um verso pode levar auma
hora, uma vez que os Kohana saem e retornam muitas vezes enquanto o mesmo verso está
sendo cantado. Apenas quando isso acontece os Kohana retornarão com um verso novo
para começar o processo novamente.
Embora os cantos apareçam nas cabeças de todos os homens que estão parok
devido ao Kohana-dyohko, um líder de canto (Kohana nawa nohman) que os iniciará, sendo
acompanhado pelos outros Kohana. O nohman será quase sempre o xamã que é ‘dono’ do
ritual, que os Kohana chamam de amiari. O nohman apenas conhece os cantos Kohana devido
ao dyohko. Vale lembrar que esses cantos são ‘corpos celestiais’ (Kodoh-warah), e, portanto,
existem no Céu Interior. O dyohko, um agente que transcende as distinções estabelecidas
entre a Terra e o Céu Interior, o Jaguar e a humanidade, permite aos viventes que
aprendam esses cantos ao trazerem os Kohana para a terra. O xamã, por ser dono de um
dyohko, é capaz de aprender cantos e transmiti-los aos viventes. As mulheres então os
aprendem em benefício destes últimos. O Kohana-pa, como todos os rituais Kanamari, não
envolve homens estritamente falando: apenas envolve aqueles homens que estão
‘tornando-se Kohana’, e, portanto, não são mais homens. Conseqüentemente, apenas as
mulheres representam os viventes
384
.
Os Kohana vêm para a aldeia porque o xamã os chama, quando eles olham e vêem o
xamã e as mulheres dançando, eles têm pena dos esforços destes. Um dos Kohana-pa que
384
Pode-se encontrar a mesma idéia de que os humanos viventes sejam ‘femininos’, em oposição aos ‘deuses
masculinos’, em outras partes da Amâzonia. Por exemplo, entre os Kaxina(McCallum 1996, 51) e os
Araweté (Viveiros de Castro 1992, 256-8).
405
presenciei narra a abertura do ritual na perspectiva dos Kohana. A transcrição abaixo na
verdade inclui dois versos que juntos contam uma história
385
.
1. Ityaro pa ni am, na-ama, na-ama
Essas são as mulheres cantando, para eles, para eles.
2. Konionhim-nim i-wa-dyi, adu timhi, timhi
Eu vim com a celebração
386
, eu aterrizei, eu aterrizei.
3. dapoka-dyi tu niwu adu anim, adu anim
Eu não queria ter caído aqui.
4. i-o-mahwa na-wa-na, hohohokanim, hohohokanim
Senti pena no caminho para baixo, o chamado, o chamado.
5. i-to-hi’na amiari na-wa ahokanim wa bo
Vou ver o amiari no seu pátio.
6. i-okadyan-dyi, i-man kana idik
Eu estava olhando e foi você quem eu vi.
7. dapoka-dyi niwu tu Kohana anim, Kohana anim
Não querendo cair aqui estava o Kohana, estava o Kohana
387
.
O ‘eu’ dos cantos são os Kohana e os versos narram a estrutura do ritual. Começa
(1) com as mulheres cantando no pátio, como fazem enquanto os homens preparam a
wakwama. O pronome ‘eles’ no canto é ambíguo. Este provavelmente se refere aos homens,
que logo se tornarão Kohana. Os corpos celestiais então dizem que eles vieram quando eles
ouviram a celebração, quando viram as mulheres cantando. Um homem explicou-me que o
verso 4, que diz que os Kohana sentiram pena das mulheres, significa que eles perceberam o
quão belas as mulheres estavam, e o quão perfeitamente estavam cantando e por isso
decidiram ‘aterrizar’. Não foi apenas pelas mulheres que eles vieram, entretanto, porque
eles também estão presentes devido ao ‘dono’ dos Kohana, os amiari, que eles vieram ver.
Vimos acima que os Kohana apenas de fato interagem com as mulheres, que cantam
e dançam com eles. Os homens ou estão ‘tornando-se-Kohana’, ou não participam do ritual.
385
A tradução destes versos é minha e, portanto, severamente limitada pela minha falta de familiaridade com
as construções gramaticais empregadas durante o Kohana. Em alguns casos, os versos foram explicados a mim
pelos homens e mulheres Kanamari que estavam presentes.
386
O termo konionhim refere-se às celebrações rituais, como o Kohana-pa. Alguns Kanamari pronunciam o
termo koni-wihnim, que literalmente significa ‘muitas vozes/línguas’. Isso enfatiza o aspecto fundamental
desses rituais que é o canto de ‘muitas vozes’ unificadas, em uma língua que difere ligeiramente daquela falada
pelos Kanamari.
387
Um homem disse-me que essa estrofe significaria que o Kohana era preguiçoso.
406
Até onde eu sei, os Kohana nunca se dirigem aos homens, exceto pelos amiari. Os homens,
entretanto, quando falam deles, os chamam de Kohanaou, com menos freqüência, de -
tawari. Está claro não obstante que é por meio do último termo que os Kohana são
entendidos e que o ritual inteiro é um Hori entre os viventes e os mortos. Isso é expresso
por meio de um dos índices principais das reuniões Hori: as mulheres ‘servem’ (nodoki)
cerveja de mandioca aos Kohana, e nunca bebida de mandioca. Mesmo nas instâncias em
que se serve bebida de pupunha, esta é posta para fermentar um pouco. Isso também
significa que, em rituais, os Kohana representam uma coletividade de homens mortos. Com
efeito, um Kanamari disse-me explicitamente que apenas os Kohana masculinos fazem-se
presentes no pátio.
Os Kohana chamam as mulheres de mion’, ‘irmã’ ou ‘ityaro-pi ni am’, ‘essas são as
mulheres cantando’, como no verso 1, acima. De fato, disseram-me que esse termo é o
modo correto para os Kohana referirem-se às mulheres. De qualquer forma, é a afinidade
entre os corpos/donos celestes e os viventes, particularmente os homens, que é enfatizada.
Vale lembrar que não nenhum termo simétrico para se referir a pessoas de sexo oposto
de subgrupos diferentes. Considerando a sobreposição entre os termos –tawari e –bo,
‘cunhado’, parece que ‘irmã’ é um modo possível de se referir a elas, assim como o coletivo
ityaro hinuk’, ‘as mulheres’.
O ritual, então, parece ser de um tipo comum na Amazônia, que ocorre ...entre a
comunidade dos vivos e dos mortos, ligadas-separadas por laços de afinidade (Viveiros de
Castro 1993, 208, n. 29). No caso dos Kanamari, esse laço de afinidade é simétrico e do
tipo que liga as pessoas vivas de subgrupos diferentes. Agora, entretanto, essa afinidade
concerne uma coletividade de homens mortos e uma de homens vivos, ou, mais
exatamente, de homens mortos relacionando-se com suas irmãs vivas, por meio dos corpos
de seus cunhados vivos. , o obstante, uma diferença crucial entre isso e o Hori. No
Hori, a cantoria em sua maioria ocorre em situações de mesmo sexo. É verdade que a
cerveja de mandioca e alguns dos jogos que acontecem se o entre pessoas de sexo
oposto, mas os cantos que analisamos no capítulo um ocorreram entre o tawari e –tawaro.
No Devir Kohana, entretanto, os homens não estão disponíveis para o ritual, porque eles
receberam um Jaguar em seus corpos para tornar-se Kohana, e, assim, o papel de
representar a humanidade
388
recai sobre as mulheres. As mulheres, então, existem entre
uma coletividade masculina e outra morta, que não obstante é o modelo de humanidade
388
Ao mesmo tempo, os homens transformados em Kohana podem ser vistos como um “enunciador ritual
complexo” no sentido dado por Severi (2004), de um modo parecido com o executor de ritual Parakanã, que
é ao mesmo tempo matador e vítima, encorporando uma relação em vez de uma única personagem (ver
Fausto 2001:431-440).
407
para todos
389
. Elas ligam os homens que ainda retêm um resíduo Jaguar àqueles que agora
são puros, a perfeição sem Jaguar.
Os Kanamari podem aprender os cantos celestiais e promover esse Hori
transcendental porque um xamã vivo familiariza a parte Jaguar de um xamã morto. Isso
revela um aspecto do Devir Kohana que sempre me pareceu paradoxal: é a parte dos xamãs
que não vai para o Céu Interior que permite aos homens tornarem-se Kohana aqui na terra,
ligando-os ao Céu Interior. Isso é a tal ponto verdade que permitiu a um dos meus
informantes dizer, de fato, que os Kohana que cantam no ritual o são aqueles do Céu
Interior, que não retornam à terra, mas apenas a parte Jaguar dos xamãs mortos, que
sempre esteve aqui. De qualquer modo, o ritual é firmado sobre a habilidade de um xamã
de controlar esses dyohko, e de controlar as transformações que estes efetuam. Se os Hori
envolvem relações –tawari entre –warah, o Devir Kohana situa o xamã como um chefe
‘humano’ em contra distinção a um certo número de chefes celestiais. Isso é explicitado no
verso cinco do canto acima, em que os Kohana dizem que é o xamã amiari que eles o ver.
O dyohko, reverberações físicas do Big Bang mítico, produz xamãs, cria uma linhagem de
xamãs estabelecidos por meio de relações de predação e familiarização, e permite aos
corpos humanos tornarem-se corpos celestiais ao longo do ritual. Se fora do ritual é
necessário que um chefe –warah situe o xamã, que em troca situa o dyohko, durante o Devir
Kohana, é o xamã que assume o papel de –warah para toda a humanidade, imbuindo seus
corpos com dyohko e transformando-os em outra coisa. Ao fazer isso, ele temporariamente
oblitera a posição de chefe, que não desempenha um papel específico nos rituais.
Ao mesmo tempo, os Kohana não são apenas afins, mas também as almas
transformadas dos mortos, que agora não têm nome, os ancestrais –mowarahi. Isso ajuda a
explicar, segundo os Kanamari, a razão primordial da realização do ritual: ‘pegar caça’ (bara
hikna ama). O Kohana-pa, como vimos acima, é estruturado a partir de uma sucessão de
noites de dança seguidas de uma caça coletiva de manhã. Assim que o sol nasce, os Kohana
retornam uma última vez ao ‘lugar de chamamento dos Kohana’. Os homens, que haviam
descansado ali, re-emergem no pátio e imediatamente deixam-no para caçar. Esses grandes
grupos sempre retornam com enormes quantidades de caça e peixe, que os Kohana
disponibilizaram. Os Kanamari dizem que os Kohana ‘familiarizam’ (hu’man) os animais,
facilitando a caça, e depois ‘dá a caça’ (to-bara-nuhuk) para as mulheres que dançaram com
389
A posição das mulheres no ritual e escatologia Kanamari é similar, em linhas gerais, à posição das
mulheres no ‘modelo geral’ triádico desenvolvido por Viveiros de Castro (1992, 258) para os Tupi-Guarani.
408
eles
390
. Além disso, a performance continuada do ritual, através do espaço e do tempo,
garante a regeneração da caça, assegurando a sua profusão na floresta (wih bara anim ityonim
naki). Por essa razão, os Kanamari dizem que os Kohana não necessariamente familiarizam a
caça para eles imediatamente, já que podem fazê-lo mais tarde.
O Kohana-pa pode, portanto, ser visto como um increase ritual, mas um que subsume
a ancestralidade, a continuidade e a fertilidade sob o idioma da afinidade simétrica. Com
efeito, os Kohana são geralmente associados ao que Rival descreve como ‘abundância
natural’, um conceito que capta “a representação indígena da relação entre as pessoas vivas,
a floresta e as gerações passadas” (2002, 88). É claro, por exemplo, que os Kohana estão
intimamente associados às capoeiras e palmeiras: se o corpo dos Kohana no u Interior é
um corpo humano perfeito, na terra é um corpo de buriti que faz os Kohana parecerem
‘palmeiras ambulantes’ (Chaumeil 2001, 96). As capoeiras, como sabemos, são ligadas à
continuidade das gerações e ao crescimento. Mas ao mesmo tempo, as palmeiras que
crescem nelas o índex dessa ancestralidade genérica também são ligadas ao Jaguar.
Vimos, por exemplo, na Viagem de Tamakori, que a primeira pupunheira era um dyohko, o
dente do Jaguar negro Matso; e também sabemos que o processo de fazer essas capoeiras
sugere, como contraparte, a reprodução dos espíritos canibais adyaba. Para concluir este
capítulo é, portanto, necessário considerar o ritual que garante a obliteração do morto na
terra, permitindo a sua alma a beber o vômito do Urubu Rei caçula e tornar-se, para
sempre, um corpo celestial.
Devir Jaguar
‘Devir Jaguar’ (Pidah-pa) resume uma série de rituais que podem ser realizados ao
longo do ano, mas que na maioria das vezes ocorrem na estação seca, na mesma época do
Devir Kohana. Não pretendo nesta seção discutir a seqüência dos rituais
391
Jaguar, tampouco
a variabilidade entre diferentes modalidades. Deter-me-ei apenas sobre certos aspectos de
um dos rituais de Jaguar, a saber, o enterro do cabelo durante o Jaguar Grande (Pidah
Nyanim)
392
. Esse ritual marca o estágio final do luto, cortando as ligações entre os viventes e
390
Alguns Kanamari dizem que a caça ‘familiarizadapelos Kohana é um ‘pagamento’ para as mulheres que
dançaram e cantaram com eles.
391
A seqüência do ritual é praticamente a mesma que aquela do Devir Kohana. Os homens, vestidos com as
roupas rituais de Jaguar, dançam diante de um fila de mulheres, que cantam com eles ao longo da noite.
392
Brevemente: o Jaguar Grande pode ser realizado fora do período de luto, contanto que alguém que
conheça os cantos do Jaguar esteja disposto a ser o anfitrião. pelo menos dois outros rituais de Jaguar: o
‘Jaguar Despelado’ (Pidah poa) e o ‘Jaguar em Cima’ (Pidah Kodohyan). O primeiro é uma referência ao
Jaguar que foi morto e despelado, e o último refere-se a um Jaguar que está descansando no galho de uma
409
a alma do morto. Trata-se do equivalente terrestre do momento quando a alma, pintada e
adornada no Céu Interior, aceita o vômito do Urubu Rei caçula e torna-se um Kohana
completamente. Na terra, o indivíduo é esquecido, juntando-se à condição dos ancestrais
sem nome –mowarahi.
Vimos no capítulo quatro que os cantos de Jaguar emanam dos mitos, com
freqüência sintetizando-os. De fato, se é que eu compreendi os cantos-Jaguar, isso sempre
dependeu do conhecimento que eu tinha do mito em questão. Em alguns casos, o canto
não significava nada para mim até mais tarde, quando eu ouvia um mito que desenvolvia os
temas condensados no canto. Quando o canto era entoado durante a narrativa de um mito,
a compreensão de seu significado dava-se de forma mais direta. Embora nos rituais de
Devir Jaguar apenas o canto é entoado, é essencial considerá-los dentro da narrativa de
onde emergem e a qual sintetizam, uma vez que isso revela certas particularidades do canto
que possibilitam aos homens tornarem-se Jaguares ao fundir o presente com o continuum
do Jaguar.
Como exemplo, podemos avaliar o mito do ancestral Parawi, que dizem ter sido um
tukuna que brigou com seus cunhados e deixou a aldeia, indo viver sozinho
393
. Ao construir
sua casa, ele viu algumas araras e matou-as, mas quando ele se aproximou delas, só
encontrou pegadas de Jaguar. Ele não sabia disso, mas Kaiapuruna, um Jaguar fêmea, filha
do Jaguar Rui’ai, havia roubado as araras. Assim que o narrador revela esse ponto, ele
começa a cantar o seguinte canto de Grande Jaguar, que é chamado de ‘canto de
Kaiapuruna’ (Kaiapuruna nawa waik):
1. Au, au, au, au, au, au, au, au. (x2)
(Sons de Jaguar). (x2)
2. Atya pama am tobowa Ru’iai, tyanim, tyanim. (x2)
Meu pai era Ru’iai, muito tempo atrás, muito tempo atrás. (x2)
3. To-Arawia-tya nokopuru owiro owiro nyundak-dyi. (x2)
As penas do rabo da Arara[
394
] sedenta, balançando, balançando enquanto vêm em
minha direção. (x2)
4. Pidah n-a-ma’am katu idik wa bo, Kanore. (x2)
árvore. Ambos referem-se a episódios míticos específicos. São considerados menos importantes do que o
Jaguar Grande, e pelo menos o ‘Jaguar em cima’ parece ter sido exclusivo do Mutum-dyapa no passado. Em
alguns casos, esses rituais precediam a festa do ‘Jaguar Grande’.
393
Embora eu não seja capaz de desenvolvê-lo aqui, esse mito é também o mito de origem do ritual Devir
Jaguar, e o mito da morte dos últimos Jaguares que haviam permanecido na terra.
394
A palavra Kanamari para ‘arara’ é kawang. Arawia é ‘arara’ na ‘Língua do Jaguar’.
410
O Jaguar também vai te pegar, Kanore. (x2)
O canto opera simultaneamente por meio de dois registros: aquele do evento sobre
o qual fala a narrativa no tempo do Jaguar e aquele do contexto de sua entoação no
presente. O verso 1, em qual os sons do Jaguar são emitidos no canto, e 2, em que a
descendência desde Ru’iai, um dos primeiros Jaguares, é estabelecida, asseguram que o
enunciador é um Jaguar. A partícula am tobowa no verso 2 é usada apenas em narrativas
míticas para designar um horizonte que ultrapassa a memória coletiva dos Kanamari de
hoje, e cujo ensinamento foi, portanto, transmitido a eles. Am tobowa é usado, portanto,
em narrativas no presente para designar um passado longínquo. Essa distância é ainda mais
acentuada, por meio da redundância, pela palavra tyanim, ‘no passado; muito tempo atrás’.
Seu uso nesses dois versos é, no entanto, paradoxal, pois o enunciador Jaguar se situa no
passado. Os versos, portanto, ancoram-se tanto no tempo mítico do Jaguar quanto no
presente, o canto desfaz a diferença entre os Kanamari-cantores e o Jaguar-enunciador. Em
suma, o canto é entoado pelos Kanamari no presente, e também por um Jaguar no mundo
mítico que é a razão de seu enunciador ser tanto um Jaguar aqui e agora cantando num
mundo em que o Jaguar está no passado, am tobowa.
Mas, em relação ao mito, o canto é entoado em uma parte da seqüência da narrativa
que prevê eventos ainda por vir e que, supostamente, Kaiapuruna não teria como saber
(mas que o narrador do mito sabe de antemão). O verso 3 menciona as penas do rabo da
arara que Kaiapuruna acaba de roubar do Ancestral Parawi e os cocares que ela está
fazendo (e, portanto, ocorre no presente, vis-à-vis Kaiapuruna), mas também situa o seu
uso em um ritual de Devir Jaguar, que ainda não aconteceu na narrativa. A referência à sede
do Jaguar é parte do seu desejo pelas ‘bebidas’ (koya) diferentes que os humanos servem
durante o ritual, e o ‘balançar, balançar’ das penas do rabo é uma imagem de como os
cocares (tuwuhnim) parecerão enquanto os Jaguares dançam no pátio da aldeia. Ademais,
uma inspeção mais cuidadosa revelará que o canto de Kaiapuruna aqui muda de
enunciador, do Jaguar para os humanos: as penas da arara, usadas pelos Jaguares, balançam
em ‘minha direção’. O sufixo –dyi em Kanamari significa que uma ação está ocorrendo ‘em
direção ao cenário espacial’ (Groth 1977, 204), e, portanto, em direção ao seu enunciador.
Já que os cocares de penas de arara estão sendo usados pelos Jaguares, são os humanos que
os verão ‘balançando, balançando’.
O verso final reverte para a perspectiva do Jaguar e faz uma previsão de que dado
evento ritual futuro terá um desenrolar desastroso. Kanore é o nome de uma mulher
411
humana, e o canto está dizendo que o Jaguar fará mal a ela. Isso mais uma vez antecipa o
que virá: a partícula wa marca o tempo futuro, “o Jaguar também vai te pegar, Kanore”. O
canto então prevê uma conseqüência trágica para o ritual de Devir Jaguar que ainda não
ocorreu, e de fato, o narrador acaba o canto e continua o mito, desenvolvendo-o,
precisamente, para efetivar aquilo que Kaiapuruna previu.
É importante distinguir analiticamente dois registros diferentes no canto, aquele dos
eventos da narrativa em que o canto emerge, e aquele do contexto de narração (e da
entoação do canto). Mas o objetivo do canto Jaguar é, justamente, a fusão desses dois
registros. Com relação à narrativa, o canto prefigura-a ao prever eventos futuros. Quanto
ao contexto, o canto dissolve as diferenças entre o narrador-cantor e o enunciador Jaguar.
O canto oscila entre as perspectivas do ‘passado’ e do ‘presente’, mas também entre as
perspectivas humanas e do Jaguar, fazendo então sincronicamente (no contexto da
narração) o que é feito diacronicamente (dentro da narrativa). Em suma, o canto
transforma os humanos aqui e agora em Jaguares do tempo do Jaguar.
Os homens que conhecem uma grande quantidade de cantos do Jaguar são
chamados de Pidah nawa nohman, ‘cantor do Jaguar’, e esses homens são essenciais nos
rituais de Devir Jaguar. São também chamados de Pidah n-a-warah, ‘dono do Jaguar’, ou
simplesmente Pidah-warah, ‘dono-Jaguar’. Embora os humanos apenas reconheçam alguns
homens como ‘cantores do Jaguar’, para o Jaguar todos os homens são chamados de atya
nohman, ‘meu cantor
395
. No ritual, então, todos os homens são nohman, enquanto fora dele,
apenas alguns o são. Com efeito, a participação continuada no ritual faz de um homem
nohman. Diferente do Devir Kohana, não dyohko no ritual Devir Jaguar e os cantos do
Jaguar são ‘terrestes’ (ityonim-warah), passíveis de ser aprendidos por qualquer um que os
‘estuda’ (estudar-tiki). Basta que os homens, usando as roupas rituais chamadas de
wakwama
396
, entoem esses cantos, liderados pelo nohman. Esse tipo de justaposição que os
cantos operam, como vimos, faz com que os homens tornem-se Jaguares.
Após muitas noites entoando cantos do Jaguar, o nohman decide que chegou o
tempo de ‘enterrar o cabelo’ (ki-pui dahmahik), ponto de culminância de uma festa do Jaguar
395
Os Jaguares chamam todas a mulheres, a despeito da idade, de wadyo anya, ‘mulheres macaco prego’. Esse
termo apenas existe durante o ritual do Jaguar, e disseram-me que da mesma maneira que os Kohana chamam
as mulheres ‘essas são as mulheres cantando’, o Jaguar também deve chamá-las de ‘mulheres macaco prego’.
396
Eu nunca vi essas roupas, mas os Kanamari disseram que eram feitas da casca de uma árvore ‘envieira’ que
eles chamam de porto-kodak-bi. Na ausência das roupas adequadas, os homens que estão tornando-se Jaguar
tendem a cobrir suas faces com camisas ou pedaços de pano. Ocasionalmente, como no canto que logo
analisaremos, o Jaguar também chamará os homens de ‘roupa de macaco prego’, wadyo kwama. Supeito que o
termo comum para ‘roupa ritual’, tanto do Jaguar como do Kohana, wakwama, seja uma contração de wadyo
kwama, mas não ouvi nenhuma explicação que confirmasse isso. Isso estabelece uma ligação entre as
mulheres, que são ‘mulheres macaco prego’ para o Jaguar, e os homens, que são ‘roupa de macaco prego’.
412
Grande. O cabelo foi ‘guardado/cuidado’ (tokodo) por alguém próximo do falecido, que, em
algum momento durante o ritual, passa-o para o nohman. Na noite em que o cabelo é
enterrado, todas as mulheres precisam ficar quietas, dentro de suas casas e de costas para o
pátio, onde se encontram os Jaguares. Disseram-me que se elas olhassem em direção ao
pátio, o Jaguar as tornaria ‘azaradas’ (miori), e elas morreriam De preferência, o cabelo deve
ser enterrado na presença de muitos Jaguares, ‘acima de vinte’, segundo um Kanamari. O
nohman estará longe do pátio, na floresta, onde amarrará o cacho de cabelo a um ‘graveto’
(omamkom). Enquanto isso, os Jaguares formam um círculo no pátio. O nohman aproxima-se
do pátio, vindo da floresta, atravessando o círculo e entoando um ‘canto de luto’ (mahwanim
owaik)
397
. Esse é o canto do Jaguar Grande que, segundo a maioria dos Kanamari, eles
invariavelmente cantam quando vão enterrar o cabelo de alguém. Eu transcrevi-o abaixo
com uma tradução livre:
1. Bora, Bora, Bora, Bora
Buraco na terra do luto (4x)
2. Bora, Bora, ma-dyi, Bora, Bora
Buraco na terra do luto (2x), faça-o aqui, buraco na terra do luto (2x)
3. Panim o-dyi Wadyo kwama ho’ik ho’ik ti kotu ba
Agora beba aqui roupa macaco prego carregue, carregue também
4. Am tu ni nim atya nohman tyo, atya nohman tyo
Deixou de ser, meu cantor, meu cantor
5. Awa nohman ho tu Pidah tyo, Pidah tyo
Deixou de ter seu cantor, o Jaguar, o Jaguar
Embora eu seja incapaz de analisar esse canto adequadamente, seu significado é
claro. O termo ‘bora’ designa ‘buraco na terra do luto’ (mahwanim hom-mi) na língua Jaguar
398
.
Os dois primeiros versos estabelecem a existência desse buraco, que deve ser cavado
enquanto os versos são entoados. O Jaguar nohman, carregando o cabelo, põe-se no meio
do pátio e começa a cavar um buraco na terra com uma das pontas do graveto, de modo
que o cabelo fique pendurado da outra ponta. O nohman então põe uma tocha ao lado do
cabelo e outro Jaguar vem para o centro do pátio ajudar a cavar o buraco, logo abaixo do
397
No passado, o cabelo era sempre enterrado dentro da maloca. Os Jaguares então cantavam dentro da
maloca, enquanto o Jaguar nohman vinha do lado de fora, carregando o cabelo amarrado ao omamkom.
398
O buraco também pode ser chamado de ‘túmulo’ (bo-mi or mi).
413
cacho de cabelo. Uma vez que o buraco está fundo o suficiente, o nohman enfia o graveto
dentro do buraco e o outro Jaguar, que está ajudando-o, preenche o buraco com terra
399
.
O canto de luto prossegue. Não tenho certeza do significado do verso 3. É entoado
na perspectiva dos Jaguares, que chamam o morto de ‘roupa de macaco prego’, e dizem
que irão ‘carregá-lo’. Como me disseram que o cacho de cabelo é dado ao Jaguar, que o
enterra, presumo que é esta a transação aqui expressada. A bebida pode ser uma referência
ao vômito do Urubu Rei que a alma bebe no Céu Interior, ou, quem sabe, refere-se às
bebidas refrescantes servidas aos Jaguares durante o ritual
400
. Os versos 4 e 5 funcionam de
um modo similar ao canto de Kaiapuruna. O verso 4 confirma o fim do luto na perspectiva
do Jaguar, dizendo que o cantador ‘não existe mais’, enquanto o verso 5 faz o mesmo de
uma perspectiva humana, dizendo que ‘o Jaguar deixou de ter seu cantador’.
Uma vez que o cabelo é enterrado e o canto de luto foi entoado, diz-se que ‘o
luto acabou’ (bapo mahwanim). As mulheres, que haviam ficado reclusas nas casas, retornam
ao pátio e o ritual estende-se por muitos dias. De agora em diante, o cabelo da pessoa, um
índex de seu corpo, faz parte do continuum do Jaguar, e o morto existe apenas como um
mowarahi. Sabemos que isso os liga à atividade humana passada, particularmente à casa
comunal e às capoeiras em torno. Os Kanamari explicitam isso ao dizerem que o
mowarahi plantou as palmeiras, que agora rodeiam as suas aldeias. Mas, assim como os
Kohana, o Devir Jaguar é também um increase ritual. Kodoh uma vez disse-me que se não
enterrassem o cabelo, o Jaguar inimizar-se-iam e não haveria caça para eles comerem.
O cabelo, como vimos no capítulo anterior, inscreve a temporalidade e biografia de
uma pessoa. Ao longo de suas vidas, os Kanamari preocupam-se com os estados do cabelo,
assegurando que não seja contaminado pela raiva e pela avareza. O seu enterro converte
esse aspecto da pessoa em continuidade tanto da caça o macaco prego é uma caça
estimada pelos jaguares quanto vegetal. É como se a pessoa morta fosse mais uma vez
sujeita à fragmentação ou talvez a reiteração da cisão inicial entre corpo e alma. Se o cabelo,
como uma parte específica do corpo, aponta para a posição mortal e de caça dos humanos,
seu enterro transforma-o em algo permanente e duradouro: as palmeiras, também um índex
da perfeição ancestral dos Kohana. Pois os mortos apenas alcançam essa perfeição, vale
399
Nunca presenciei um ‘enterro do cabelo’, então minha descrição baseia-se nas explicações que os
Kanamari deram-me. Não sei, por exemplo, o quão grande ou profundo é o buraco, nem como o nohman põe
o graveto dentro dele. Segundo um homem, o buraco tem que ser muito profundo, porque os Jaguares iriam,
caso o morto fosse um homem, quebrar seu rifle e por os pedaços dentro. Entretanto, a maioria das
pessoas disse que o rifle já teria sido enterrado com o corpo.
400
Diferente dos Kohana, o Jaguar só gosta de bebidas não fermentadas.
414
lembrar, uma vez que a parte de seus corpos à qual os vivos apegam-se é entregue ao
Jaguar, que é ainda outra forma ancestral ameaçadora.
415
Epílogo
Os Kanamari sempre viveram num mundo circunscrito pelo Jaguar onipresente.
Simultaneamente sintetizando a estabilidade e fluxo, seu domínio sobre o mundo foi
ativamente atenuado pelos Kanamari, que separaram a estabilidade do movimento através
de diversos processos: criando um corpo a partir da alma; partilhando o Juruá em afluentes;
quebrando os odiosos Dyapa em unidades que eles podiam habitar; e fazendo com que
alguns dos seus corpos sejam híper-corpos, mestres destas unidades. Os Kanamari mantêm
estas separações através da desarticularão das formas relacionais comprimidas no corpo do
Jaguar, relacionando-se uns com os outros através do –warah, da alimentação e da partilha
enquanto afastam o fluxo e a predação para o exterior.
No entanto, vimos ao longo desta tese que o Jaguar é inerente a essas formas, e
como ele constantemente emerge no seio de unidades estáveis. A feitiçaria, os dyohko, o
comportamento imprestável e a violência não podem ser eliminados de todo. Cientes disto,
os Kanamari estabelecem relações simétricas entre essas unidades, fazendo com que alguns
dos subgrupos e os mortos sejam –tawari, reduzindo assim o perigo no qual os seus corpos
estão imersos. Estas relações simétricas são, elas mesmas, predicadas na existência de
corpos (–warah): de chefes e xamãs que podem ser Mestres humanos capazes de estabilizar
coletividades e as expandir para além do grupo local, partindo da bacia hidrográfica para as
bacias vizinha e além delas.
Na primeira parte, seguimos as mudanças históricas a partir do mito. Vimos como,
após a chegada dos brancos, a mobilidade Kanamari se exacerbou, levando-os a co-residir e
casar-se fora das bacias hidrográficas, alterando assim o modelo de endogamia do subgrupo
que eles garantem ter existido no passado. Isso os levou do Tempo de Tamakori até o
Tempo da Borracha, abrindo as unidades endogâmicas para o exterior. Enquanto os
Kanamari mantinham o seu modo fractal de relação enquanto interagiam com os brancos,
podiam reorganizar estas unidades e ao mesmo tempo manter os brancos como –tawari.
Mas os brancos, que de início se organizavam por uma estrutura fractal e hierárquica
análoga àquela dos Kanamari, começaram a se multiplicar, e acabaram por serem
associados aos espíritos imprestáveis adyaba. Foi contra o caos que se segui que o chefe
Ioho levou alguns Kanamari para o Itaquaí. Após a morte de Ioho, no entanto, o –warah
fractal deu lugar ao fluxo contínuo do Jaguar, levando os Kanamari a relacionarem-se uns
com os outros e com os brancos através de formas imprestáveis.
416
Foi então que chegou Sabá, dando início ao Tempo da Funai. Sem chefes e salvos
pelo ‘Mestre dos Índios’, os Kanamari puderem frear a mobilidade através da reinstauração
de certas diferenças entre eles, contidas agora pelo corpo de um chefe único e absoluto.
Através da Funai, e sua ligação com as cidades longínquas e poderosas, os Kanamari
puderam criar pequenas ilhas de sub-grupos no Itaquaí, estabelecendo assim uma síntese
das relações assimétricas do –warah e as relações simétricas de –tawari.
Na segunda parte, tracei o avesso deste movimento, narrando a maneira como os
Kanamari estabelecem a descontinuidade do modelo de endogamia do subgrupo. Vimos
como eles postulam a existência de um número indefinido de Jaguares míticos que
mantinham domínio sobre o mundo através de violência predatória. Os mitos que falam
destes Jaguares mostram como uma humanidade incipiente reagiu a essa ferocidade
estabilizante, fragmentando-a e, neste processo, criando o mundo, que então jorrou dos
Jaguares. A dissolução daqueles corpos resultou em bolsos de Jaguaricidade, que
mantinham a função-Jaguar de forma diluída. Mostrei que o mesmo princípio regulava a
partição do Juruá, o Rio-Jaguar, explicando, deste modo, porquê os Kanamari não podiam
viver ao longo dele, em vez disso estabelecendo-se em seus afluentes. Os espaços
descontínuos formados pelos afluentes eram ocupadas por grupos de Kanamari que, por
sua vez, eram ‘sementes’ do mesmo tronco do qual provinha os Dyapa, seus inimigos e
habitantes do Juruá. Ao mesmo tempo, essas sementes mantinham relações simétricas com
os Kulina, sementes de outra árvore. A relação assimétrica entre os Dyapa e os Kanamari,
por um lado, e a relação simétrica entre os Kanamari e os Kulina, por outro, fornece as
distinções máximas das diferentes formas relacionais, aquelas do –warah e do –tawari.
O mito de ‘Paca, Veado e Anta’ mostrou assim algumas das maneiras pelas quais os
Kanamari conceitualizam a redução destas distinções máximas, agrupando-se em unidades
que as fracionam, mitigando desta forma os perigos que tais distinções oferecem. A ‘Queda
do Céu Velho’ resultou na extinção deste mundo mítico e na emergência do mundo
incestuoso de Adão, que se esgotou. Foi após a passagem de Adão por este mundo que
Tamakori e seu irmão, Kirak, viajaram pelo Juruá.
A Viagem, o mito da história, forma ao mundo, nomeando-o e extraindo-o de
sua multiplicidade contínua. Tamakori cria os brancos em Manaus, pré-figurando a relação
de –tawari que estes manterão com os Kanamari. Mas a Viagem também pré-figura as
outras maneiras pelas quais os brancos vão ser classificados, mostrando seu potencial Kirak
de imprestabilidade e seu potencial Tamakori, assim indicando as relações assimétricas que
estes vão estabelecer com os Kanamari durante o Tempo da Funai.
417
Na terceira parte, passei dos corpos coletivos para os corpos individuais. Mostrei
que a criança nasce demasiadamente próxima às propriedades da alma e como os Kanamari
fabricam o corpo a partir dela. Eu argumentei que lhes é necessário produzir estes corpos
em aldeias, situadas em bacias hidrográficas, estabilizadas por chefes, para assegurar a
humanidade da criança. Finalmente, mostrei que algumas destas crianças são feitas Jaguar,
tendo seus corpos imbuídos de uma substância Jaguar que, por sua vez, os permitirá
familiarizar outros Jaguares. Após a morte, esta substância Jaguar recupera sua
subjetividade e ataca os humanos, caso o seja anexada ao corpo de um xamã humano
este também situado em aldeias e bacias hidrográficas.
A morte dos não-xamãs também fragmenta a pessoa em: uma alma, que viaja ao
Céu Interior; um cadáver, que é enterrado; e o cabelo, que é guardado por parentes
próximos. O cabelo é posteriormente enterrado por Jaguares míticos no ritual de Devir
Jaguar, que mantém a fertilidade do mundo, criando novas bolsas de Jaguaricidade nas
capoeiras e garantindo a abundância da terra. Ao mesmo tempo, o ritual permite à alma
ganhar um corpo celestial perfeito, provocando o esquecimento dos mortos pelos vivos. A
partir de então, os mortos só visitam os vivos nos rituais de Devir-Kohana, para os quais um
dyohko, que é um precipitado do Jaguar primordial, precisa ter sido previamente
familiarizado por um xamã. Os Kanamari, assim, se tornam Jaguares para finalmente
enterrar seus mortos e transformá-los em ancestrais sem nomes e precisam de um Jaguar-
dyohko para interagir com a humanidade celestial que é o destino da maioria das almas.
Novamente, a estabilidade almejada pelos Kanamari encontra-se confinada e englobada
pelo Jaguar, e é contra e por meio das muitas faces deste Jaguar que a humanidade resiste.
418
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435
Apêndice A:
Terminologia de Parentesco Kanamari
A tabela abaixo inclui os termos vocativos para um Ego masculino. Só inclui os kin
typesgeneológicos, que são apenas algumas das posições que estes termos implicam. Não
obstante, essas posições geneológicas são aquelas para as quais o uso dos termos é regular e
consistente. Há, ainda, um termo de referência para Z, puhanya.
Terminologia de Parentesco, Ego Masculino
1 Paiko Todos os homens de G + 2
2 Hwa Todas as mulheres de G + 2
3 Pama F
4 Niama M
5 Mon FB, MZH
6 Anya MZ, FBW
7 -to MB, FZH, WF
8 Tyotyo FZ, MBW, WM
9 -dya B, FBS, MZS
10 mion Z, FBD, MZD
11 -bo ZH, WB, FZS, MBS
12 -wamok BW, FZD, MBD
13 -pia S
14 -tyo D
15 -hiwampia BS
16 -hiwamtyo BD
17 -ityakwa ZS
18 -inomok ZD
19 -pida Todos de G - 2
20 -obatyawa W
436
Terminologia de Parentesco para Ego Feminino
Os termos 1-8, 14 e 19 são iguais para Ego masculino e feminino. Os termos 16, 17
e 18 são iguais, mais os kin typessão diferentes e, por isso, os repito abaixo. ainda um
termo de referência para B, -pompia.
21 ya B, FBS, MZS
22 -udya Z
23 -tyanhwan HZ, BW, FZD, MBD
24 -‘obim MBS, FZS, HB
25 -o’pu S
26 -hiwao’pu
401
ZS, BDH
27 -hiwamtyo ZD, BSW
28. -tyakwa BS, DH, ZDH
29. -nomok BD, SW, ZSW
30. -owabara H
401
Algumas mulheres chamam as pessoas na posição de -hiwao’pu’ pelo termo –o’pu (25).
437
Apêndice B (em inglês):
The Otter Lovers
At first the women were kneading manioc. Once this was done they took the
manioc to the river to wash it. There they found some watyo
402
fruit and brought it back to
the village. They prepared manioc drink. This was all that the Kanamari ate at the time, and
the women were very hungry. The men went far downriver to cut the poi’rim tree.
The women went to the river and called out: “Otter, I want fish, Ooooootter!”. The
Otters then came towards them carrying fish. The Giant Otter also came and brought
along bodó fish. They brought these fish in their mouths and the women grabbed it from
them. The Giant Otter then had sex with the woman, and the Otters had sex with her
daughters. Then the Otters returned.
“If you tell your father, he will know how we got fish”.
“Yes mother, we will not tell him any of these things.”
They returned to the village and stewed their fish. The men returned and saw the
women: “are you cooking?” “Yes, we are. Here is your fish”. The woman’s son asked her if
she would make manioc drink again. She said she would, but she had left her grater upriver.
The women went upriver again and called the Otters. This time they brough caparari fish
and had sex with the women. They then took the fish back to their village and began to
stew it. Late in the afternoon the men returned and the women served them their fish. The
men did not know anything.
Early next morning the men drank manioc drink: “My son, try to see what the old
women are up to. Follow them to the river”.
The boy went but could not find the women. “Where are the women getting these
fish? Try placing your Korama’an dyohko
403
!” The boy removes the dyohko from his body. He
takes the snake to the port and tells it: “climb!”. The men leave and the snake-dyohko
remains to spy on the women, who soon afterwards say they are going to the gardens to get
manioc. The snake follows them as they cross a small stream. The women paint themselves
with anatto and begin to call out for their Otter lovers: “Otter, we want fish, Ooooootter!”.
The Otter then approach and begin throwing all manner of fish towards the
women. They then have sex with the women. When the Otter leave the Korama’an snake
402
A type of wild fruit found primarily near lakes. It is a favoured food of the tapir and falls under the general
category of warapikom, ‘uncultivated fruits’.
403
Korama’an is a type of non-poisonous snake that climbs onto the branches of trees. The man’s son is a
shaman and the korama’an is one of his familiars, used as a spy.
438
falls from the tree. The women then know that the men were spying on them. The snake
leaves quickly, before the women can gather themselves, shouting: “Father, the Otter are
having sex with my mothers!”.
Korama’an tells the men what happened. They know where the fish came from. The
women arrive but the men remain silent. The women decide to say nothing. They prepare
the fish and serve the men, who by this stage are truly angered.
Next morining the women leave to get manioc. The men travel to a different
garden to prepare mayako traps
404
. Once this is done they paint themselves with anatto.
They then pull their penises and testicles back towards their anuses and tie them there, thus
disguising themselves as women.
They approach the place that the snake had told them, set their traps and began to
shout: “Otter, we want fish, Oooootter!”.
“Oiaaaaaaa, oiaaaaaaaa, oiaaaaaaaa”. The men heard the Otters approaching. They
hid logs under the water, keeping them there with their feet. The Otter throw their fish at
the transvestied men. As they did this they went into the mayako traps. The men raised the
traps and killed the Otter and the Giant Otter. The men told the boys to disguise their
tracks, to make it seem they had been hunting peccaries near the stream. They returned to
the village where they cut off the Otter’s testicles and tie them near the kitchen ceiling,
where it was left dangling.
The women return, carrying manioc. They go towards the stream and see the
peccary footprints that the men had made. “Mother, father has hunted peccaries! Look, the
broken arrows”! The girl’s mother is supsicious. Were the men lying? “Come daughter, let
us call the Otter”. They did so, but the Otter did not come because they had all been killed.
They went back to the village carrying their baskets filled with manioc. The men
had stuck chonta palm thorns on the soles of their feet and they complained to the women,
asking them: come try and remove the thorns from our feet!”. They made sure that the
women sat down directly under the testicles of their Otter lovers. The fat from the severed
testicles began to drip onto the women’s backs.
“You have been having sex with the Otter!”, and the men hit the women with the
thorny leaves of the chonta palm. The women fled. To disguise themselves they tied the
leaves of a taroba, close to their tailfeather. They ran, across the river, towards the land of
the angry ones
405
. There were three women, a small girl and a small boy, called Hohdom,
404
These traps are normally used for catching fish. When fish enter it to get food the trap closes in on them,
preventing their exit. Poroya describes them as a “corral”.
405
A reference to Panoan-speaking groups.
439
which fled with them. The women were all older, excpet for one which had recently gone
through the restrictions associated with the menarche. They went along jumping from
fallen tree trunk to fallen tree trunk, all the way cursing the men in their anger.
The two children lagged behind and began to cry: “mother, come get us mother,
please!”. The women did not stop. The children stayed behind, but they knew the land as
well. “My sister, later our mothers will come for us. I am going to get fans”. He went back
to the village were the men were and got four fans to take back to his sister. They tied the
fans to their arms and flew, one at a time, onto a tree.
Meanwhile, the men were sleeping back in the village. They woke up early and
heard sound coming from the jungle: “my brother, there is game coming this way!”. They
went towards the garden, and there they began to cry: why did we hit our wives with the
chonta palm branches, my brother?”
“It was father who decided to do these things. He wanted to enemise the women,
but we still loved them. The women fled from us”.
Just then they saw peccaries coming their way, eating the manioc from their
gardens. These peccaries were the women. They became peccaries. They broke the ceramic
pots where they used to make manioc drink. They then went looking for the men and,
seeing their footprints heading for the gardens, followed: “let us get them!”
The men heard them: “listen, my brother. Is it some kind of Other
406
heading our
way?”
“No. These are peccaries, my brother! They are peccaries!”. The men then climbed
papaya trees and banana trees, to flee from the angry peccaries. The peccary managed to
get one, and threw him into the air. Some men hid in the holes of fallen tree trunks. These
men became termites
407
.
The women then left downriver, following its flow and singing:
[1] Daidobo, daidobo, daidobo
408
.
406
Onahan. A catch-all term meaning any non-Katukina other, human or not.
407
This aspect of the myth recieves no further comment, but there is a part of the ritual linked to the first
menarche that plays on this theme. The pubescent girl lies in her hammock while her female kin burn a
termite mound underneath her. The smoke from this fire burns her and she is supposed to endure it
unflinchingly. This ritual is no longer performed, but I was told that if the girl withstood the heat, she was the
ready for marriage. I was told that this was precisely because some men had become termites.
408
I was not given an explanation for this song, nor do I know what it means. It is probably not in the
Kanamari language, but in peaccry-language, and its meaning may have been lost to the Kanamari.
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