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Tutela e Resistência Indígena:
Etnografia e história das relações de poder entre os Terena e o Estado
brasileiro.
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, para obtenção do título de Doutor em
Antropologia Social.
Orientador:
Professor Doutor João Pacheco de Oliveira Filho
Andrey Cordeiro Ferreira
Fevereiro de 2007
PPGAS/MN-UFRJ
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II
Tutela e Resistência Indígena:
Etnografia e história das relações de poder entre os Terena e o Estado Brasileiro.
Andrey Cordeiro Ferreira
Tese de Doutorado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social/Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de doutor.
Aprovada por:
Prof: _________________________ (Orientador)
João Pacheco de Oliveira Filho
Prof: _________________________
Joanildo Albuquerque Burity
Prof: _________________________
Sidnei Clemente Peres
Profª: _________________________
Eliane Cantarino O´Dwyer
Prof: _________________________
Moacir Gracindo Soares Palmeira
Suplentes:
Profª: _________________________
Adriana de Resende Barreto Vianna
Prof: _________________________
Stephen Baynes
Profª: _________________________
Maria Fátima Roberto Machado
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III
Dedico este trabalho:
Aos meus pais, Ilda e Jorge, por todo seu
esforço, carinho, conselhos e ensino.
À minha irmã Alba, que junto comigo superou tantas
dificuldades e com quem pude aprender bastante.
A Lucas Filipe, meu pequeno e amado sobrinho.
Aos meus amigos e companheiros de jornada,
os quais dão sentido a caminhada da vida.
Aos Povos Indígenas do Mato Grosso do Sul
pela resistência de ontem e hoje.
IV
Agradecimentos
Os agradecimentos aqui realizados remontam a minha trajetória pessoal e intelectual dentro
do universo acadêmico. Esses agradecimentos são uma forma de resgatar uma dívida com diversas
pessoas que me assistiram de diferentes maneiras ao longo de onze anos de vivencia nas ciências
sociais nos cursos de graduação e pós-graduação, das quais sete dedicados especialmente à
antropologia social, no Museu Nacional.
Não poderia aqui deixar de mencionar os amigos e companheiros que sempre me orientaram
informalmente nas discussões políticas e teóricas: Augusto da Cruz Rosa, Gil Felix, Maycon
Almeida, Selmo Nascimento e Carlos Ricardo Pereira de Sant´anna. De uma maneira ou de outra, o
trabalho aqui apresentado se tornou possível enquanto projeto acadêmico e ganhou forma teórica e
política, pelas discussões e trabalhos que realizamos em conjunto em diferentes momentos. A
leitura da tese torna isso evidente pelo menos para mim.
Tenho de mencionar também outros amigos e companheiros, como Aparecida Mercês,
Rômulo Souza, Ana Luiza, que de diferentes formas auxiliaram em algum momento e de alguma
maneira na realização das minhas atividades de pesquisa. A minha companheira Valena Ramos que
deu uma contribuição fundamental para que eu pudesse superar certas dificuldades e levar a frente à
conclusão da tese. Agradeço ao amigo Marcello Coutinho, com quem pude dialogar sobre temas
diversos ao longo de muitos anos.
Dos amigos e colegas do PPGAS/Museu Nacional, devo agradecer a algumas pessoas em
especial, especialmente em razão do diálogo durante a tese de Doutorado e processo de Pesquisa.
Fábio Mura e Alexandra, que me auxiliaram a corrigir certos rumos da pesquisa e com quem pude
aprender bastante sobre antropologia e etnografia. Agradeço também a Carlos Augusto da Rocha
Freire e José Gabriel, que sempre se dispuseram a dar conselhos e pistas de pesquisa e me ajudaram
de diversas formas. Aos demais amigos e amigas, Nora, Mércia, Sandra, Francisco e Guilherme.
Alguns professores tiveram uma particular importância na elaboração desse trabalho. Ao
professor João Pacheco de Oliveira, sempre um interlocutor critico e ao mesmo tempo motivador,
que deu todo o apoio e liberdade necessária para que o trabalho tomasse os rumos que tomou. Além
de ser, é claro, uma referencia teórica importante para a discussão da antropologia política e da
tutela. Agradecemos também aos professores Antonio Carlos de Souza Lima, que também nos deu
importantes orientações ao longo dos cursos e na banca de mestrado, assim como a professora
Eliane Cantarino. Ao professor Moacir Palmeira, que na comissão de tese, pelas suas observações
rigorosas, auxiliou na determinação dos focos teóricos da pesquisa, e a professora Antonádia
Borges, também integrante da comissão de tese, que contribuiu igualmente com sua leitura atenta e
instigante.
Agradeço também a todos os servidores do PPGAS-MN, da biblioteca e secretaria, e
instituições financiadoras (CNPq e FAPERJ) que tornam possíveis os empreendimentos de pesquisa
e estudo no cotidiano. Um agradecimento também ao corpo docente do PPGAS, com aulas sempre
enriquecedoras.
Na execução das atividades de pesquisa, contamos com diversos colaboradores. No Mato
Grosso do Sul, agradecemos a ajuda do professor Antonio Brand, Na administração executiva
regional da FUNAI, ao então administrador Wanderley e os funcionários que nos atenderam.
Também Gilberto Azanha do CTI que disponibilizou dados dessa instituição. No município de
Anastácio, um agradecimento é necessário ao cacique Flávio, que nos tratou de forma muito
acolhedora e nos apoio tanto, e também a sua toda família e parentes, com quem residi alguns dias
durante nossa pesquisa. Em Lalima, ao Chefe de Posto Evair e Nioaque a Reginaldo Cabrocha, que
nos atenderam de forma muito receptiva. No Passarinho, ao então cacique Wilson Jacobina.
E nossos agradecimentos e considerações especiais vão para os nossos amigos da aldeia
Cachoeirinha. Uma menção aqui vai para Argemiro Turíbio, Marlene Lipú, e seus filhos Argemiel,
Diego, Jean, Vianey, Narliene, seus pais e mães, irmãos, enfim suas famílias. Deram todo o apoio
ao nosso trabalho de pesquisa, abriram as portas de suas casas, mostrando uma profunda amizade, a
V
qual tenho satisfação de ser devedor. Esse trabalho é dedicado também a eles. Outras pessoas
importantes foram Sabino Albuquerque e Lourenço Muchacho, que tornaram também a pesquisa
viável e sempre se dispuseram a nos ajudar naquilo que podiam. Firmo aqui também os meus
sinceros agradecimentos. Assim como ao professor Anésio Pinto, Anilson Júlio (que nos auxiliou
com a tradução de fitas e compreensão de certos termos no idioma), Amarildo Júlio, Quintino
Pereira Mendes, os pastores Antonio Oliveira e Zacarias da Silva.
Na aldeia Argola, agradeço a João Candelário e a família de Rufino Candelário, aos
senhores Alcindo Faustino, Inácio Faustino e Adelino José. Com certeza, o resultado da pesquisa
não teria sido o mesmo sem a convivência e o apoio deles. Na Lagoinha, agradeço ao então cacique
Ramão Vieira, no Campão/Babaçu a Zacarias Rodrigues e as Famílias Roberto, Salvador e Balbino.
No Morrinho, ao agora ex-cacique Isidoro Pinto. Enfim um agradecimento a todas as pessoas com
quem conversei, entrevistei e convivi na aldeia e que fizeram do trabalho de campo um desafio e ao
mesmo tempo uma experiência de vida marcante.
VI
FERREIRA, Andrey Cordeiro
Tutela e Resistência Indígena - Andrey Cordeiro Ferreira.
Rio de Janeiro: UFRJ/MN-PPGAS, 2007.
x, 413p. il.
Tese Universidade Federal do Rio de Janeiro, MN-PPGAS.
1. Terena. 2. Política e Poder. 3. Tutela. 4. Resistência 5.
Dominação. 6. Organizações Indígenas. 7. Mudança Social.
Tese (Doutorado UFRJ/MN-PPGAS). I. Título.
VII
Índice
Introdução ...........................................................................................1
Capítulo 1 - Ordem e Anarquia na Sociologia: percepções da mudança social e luta
política.............................................................................................. 16
1.1 Resistência e Dominação: a análise das relações de poder. .........................................................................17
1.2 - Como Dominar? “colaboração de classe” e “formas cotidianas de colaboração”. ...............................19
1.3 - A Política na Antropologia e a Teleologia da Ordem.......................................................................................24
1.4 A crítica da crítica da antropologia: os conceitos de “sociedade e cultura” .........................................29
1.5 - A Guerra das Sociologias: reflexões sobre ordem e mudança social. ........................................................43
1.6 A antropologia política processualista e as ferramentas de análise.........................................................48
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena...................................... 56
2.1 A Emergência do “protagonismo étnico”.............................................................................................................56
2.2 Signos da Superioridade, Códigos do Domínio....................................................................................................62
2.3 - Política Indigenista e Regime Tutelar: construção e metamorfoses..........................................................67
2.4- Tutela e Frentes de Expansão Econômica.............................................................................................................72
2.5 Uma Morfologia da Sociedade Terena: o caso de Cachoeirinha. .................................................................75
2.7 - Terras Indígenas e Grupos Étnicos..........................................................................................................................83
2.8 - A “Retomada”: balanceamento de forças na atual situação histórica (1991-2006). .........................101
Capítulo 3 - Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional: a
acumulação colonial de poderes e capitais.................................................108
3.1 - A “Situação do Chaco”: o sistema social indígena (1543-1775).................................................................109
3.2 Conhecer e Destruir: Guaicurus, Guanás e Colonialismos no Chaco/Pantanal. ...................................113
3.3- O Cerco e o Aniquilamento: situação de diretoria e situação de cativeiro............................................119
3.4 A Situação de Reserva: o regime tutelar e as micro-revoltas indígenas (1904-1939)........................132
3.5 - “A Emancipação Indígena” a luta pelo controle político de Bananal..................................................137
3.6 Da nacionalização à crise do SPI (1940-1969)...................................................................................................144
3.7 - Mudanças no campo e arenas de relações interétnicas (1970-1990).......................................................155
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku: organização social e tradições de conhecimento
aldeãs..............................................................................................163
4.1 Organização Social e Territorial de Cachoeirinha...........................................................................................164
4.2 O Dia do Índio: nação e etnia, identidades em sobreposição.....................................................................175
4.3- O Complexo Ritual e as Tradições Culturais.......................................................................................................198
4.4 - As Tradições Culturais, Experiência Histórica e Relações de Poder. .......................................................230
Capítulo 5 - Centralização estatal/descentralização faccional: a organização política
Terena.............................................................................................236
5.1 A “luta pelo poder”: dinâmica política de Cachoeirinha.............................................................................237
5.2 As Unidades Básicas da Organização Política Terena....................................................................................247
5.3 - Empreendimentos Indigenistas e descentralização político-territorial. .................................................258
5.4 As facções e a política do óleo e da semente. .................................................................................................267
5.5 A Cisão Cruzeiro X Mangao: os conflitos de sucessão como dramas sociais..........................................270
5.6 - A Facção do Cruzeiro: genealogia e história dos “tuuti.”............................................................................285
Capítulo 6 A Co-gestão indígena e as micropolíticas de colaboração e a resistência
cotidiana. .........................................................................................304
6.1 - A formação das Associações Indígenas.................................................................................................................304
6.2 - As Facções e a “Ocupação dos Espaços”: política indígena e clientelismo...........................................317
6.3 - As formas de resistência: a Luta contra o Cacique Geral.............................................................................348
6.4 - As formas de resistência: Cisão na Argola..........................................................................................................353
6.5 - As formas de resistência: a ocupação da Fazenda Santa Vitória. .............................................................358
6.6 Co-Gestão Indígena e Poder Local: mudança e reprodução das relações de dominação.................368
Capítulo 7 -Paradoxos do protagonismo étnico.............................................375
7.1 - Os sentidos da conquista colonial: formação do Estado-Nacional e Transição Capitalista.............376
7.2 - Etnocentrismo e sub-proletarização: os fundamentos da sobre-exploração........................................385
7.3- Os múltiplos usos e faces da tutela: colonialismo interno e imperialismo.............................................389
VIII
7.4 - Os destinos do regime tutelar e da resistência indígena. ............................................................................396
Lista de Ilustrações
Mapas
Mapa 1 Terras Indígenas em Mato Grosso do Sul................................................................................................................88
Mapa 2 - Disputa Territorial no Mato Grosso........................................................................................................................117
Mapa 3 - Núcleos de Colonização - Sec XIX..........................................................................................................................124
Mapa 4 - Mapa da Aldeia Cachoeirinha - 2006....................................................................................................................166
Mapa 5 Vila Santa Cruz. .............................................................................................................................................................294
Mapa 6 Vila Cruzeiro....................................................................................................................................................................294
Figuras
Figura 1- Representação da Estratificação do Sistema do Chaco/Pantanal...........................................................118
Figura 2- Campo e Arenas de Cachoeirinha. .........................................................................................................................158
Figura 3- Esquema Genealógico de João Niceto Júlio.......................................................................................................286
Figura 4 Esquema Genealógico de Dionísio Antônio.........................................................................................................287
Figura 5 Esquema Genealógico de Alírio de Oliveira Metelo. .......................................................................................288
Figura 6- Esquema Genealógico de Argemiro Turíbio........................................................................................................289
Figura 7 Esquema Genealógico de Sabino Albuquerque. ................................................................................................298
Fotos
Foto 1- Dia do Índio - 2004- Concentração ............................................................................................................................176
Foto 2- Comunidade participa no Dia do Índio/2004.........................................................................................................178
Foto 3- Siputrena -Dança das Mulheres.................................................................................................................................184
Foto 4- Grupo Xumono..................................................................................................................................................................184
Foto 5- Dança do Bate-Pau..........................................................................................................................................................185
Foto 6- Dança do Bate-Pau..........................................................................................................................................................192
Foto 7- "100% Sukrekeono." .........................................................................................................................................................195
Foto 8- Jovem ergue a bandeira do Brasil.............................................................................................................................197
Foto 9 - Daniel (esquerda) e Afonso Pinto, Curandor ......................................................................................................204
Foto 10- Igreja Evangélica Indígena UNIEDAS......................................................................................................................212
Foto 11- Imagem sendo recebida por uma índia Terena.............................................................................................222
Foto 12- Culto na Capela com o “Bate-Pau”.......................................................................................................................224
Foto 13- Festa de Santa Cruz/2003..........................................................................................................................................227
Foto 14 - Governador Zeca ladeado pelo Cacique Lourenço e "Guerreiros" do Bate-Pau....................................319
Foto 15 - Público do Comício de Zeca.....................................................................................................................................320
Foto 16- Zeca discursa aos indígenas......................................................................................................................................321
IX
Lista de Quadros
Quadro 1 Evolução Histórica da Demarcação de Terras Indígenas...............................................................................74
Quadro 2 - Terras Indígenas e Identificadas por Delegacia Regional da FUNAI .........................................................74
Quadro 3 - Estrutura Ocupacional de CACHOEIRINHA (Fontes CTI - 1997)..................................................................79
Quadro 4- Filhos vivendo fora da reserva por localização (fonte: CTI, 1997)............................................................81
Quadro 5 -Povos Indígenas do Mato Grosso do Sul...............................................................................................................85
Quadro 6 - FUNAI - AER-Campo Grande ....................................................................................................................................85
Quadro 7- População Terena. Dados: FUNAI/AER - Campo Grande...............................................................................86
Quadro 8- Quadro - Economia Brasileira por Setor e Região 2001..............................................................................90
Quadro 9- Economia do Centro-Oeste.......................................................................................................................................90
Quadro 10- Participação no Valor Bruto da Produção Agropecuária Nacional - 2001.............................................91
Quadro 11 - Principais produtores cana-de-açúcar - Brasil..............................................................................................92
Quadro 12 - Comparativo das Produções de Cana, Açúcar e Álcool de SP e Região CS-00/01.............................93
Quadro 13 - Ranking das Unidades Produtoras - Centro/Sul - Safra 01/02 .................................................................93
Quadro 14 - Comparativo das Produções de Cana, Açúcar e Álcool de SP e Região CS-00/01 .......94
Quadro 15 - A Economia em Mato Grosso do Sul 2001. Fonte: IBGE (Cadastro Central de Empresas)..........94
Quadro 16 - Municípios e População Rural e Urbana-MS (IBGE Censo 2000)............................................................95
Quadro 17 - Estrutura Fundiária do Mato Grosso do Sul - IBGE, Censo Agropecuário 1995-1996. ......................97
Quadro 18- Quadro da produção e pessoal ocupado na agropecuária, segundo meso-regiões...........................97
Quadro 19- Terras Indígenas do Mato Grosso do Sul............................................................................................................98
Quadro 20- Renda Média por Tamanho dos Estabelecimentos .........................................................................................99
Quadro 21 - Valor da Produção (em mil reais) e Pessoal Ocupado. Miranda/MS (IBGE, 1995-1996).................99
Quadro 22 - Porcentagem da Renda Apropriada por Extratos da População, 1991 e 2000: IPEA......................100
Quadro 23- Ocupação de Terras por Índios em MS. Fonte: Movimento Nacional dos Produtores .....................103
Quadro 24 Fatos Relacionados ao Conflito Fundiário ou Reivindicação de Direitos............................................104
Quadro 25 - População da Província de Mato Grosso - 1862...........................................................................................131
Quadro 26 - População de Mato Grosso 1872-1930.........................................................................................................131
Quadro 27 - Processo de Formação das Reservas Indígenas Terena Século XX.....................................................133
Quadro 28 -Postos Indígenas Terena no Sul de Mato Grosso SPI 1910-1930........................................................135
Quadro 29 -Postos Indígenas da IR-5 (sul de Mato Grosso e São Paulo)......................................................................146
Quadro 30- PI´s Terena 1954 As Diferentes localizações sociais dos Terena.....................................................148
Quadro 31 Mudanças Sociais e Situações Históricas..........................................................................................................162
Quadro 32 - Membros do Conselho de Lourenço Muchacho. ...........................................................................................242
Quadro 33 Substitutos dos Membros do Conselho de Lourenço Muchacho.............................................................242
Quadro 34 - Organização Política Terena em Cachoeirinha 1850-2005...................................................................268
Quadro 35 - Linha de Sucessão dos Caciques Terena de Cachoeirinha (as datas são aproximadas)..............269
Quadro 36 -- Produtividade do “Projeto A grícola de Cachoeirinha” em HA cultivados...................................274
Quadro 37- TRE-MS-2004 (CD-ROM)..........................................................................................................................................328
Quadro 38 Mercado Temporário de Trabalho na Política Local..................................................................................333
Quadro 39 - Mão de Obra Empregada nos setores Fiscalizados pela Comissão Permanente de Investigação e
Fiscalização das Condições de Trabalho/SCJT Governo/MS (1996).................................................................391
X
“Por certo eu sairei, quanto a mim satisfeito
Deste mundo em que ao sonho a ação não é associada
Possa eu usar da espada e morrer pela espada!
Pedro negou Jesus e foi muito bem feito!”
Charles Baudelaire, “Revolta A Negação de São Pedro”, in Flores do Mal
“Raça de Abel, só bebe e Come/Deus te sorri tão complacente
Raça de Caim, sempre some/No lodo, miseravelmente
Raça de Abel, teu sacrifício/Doce é ao nariz do Serafim
Raça de Caim teu suplício/Será que jamais terá fim?
Raça de Abel, tuas sementes/E teu gado produzirão
Raça de Caim, sempre sentes/Uaivar-te a fome como um cão. (...)
Raça de Abel, eis teu label/Do ferro o chuço é vencedor!
Raça de Caim, sobe ao céu/E arremessa à terra o Senhor”.
Charles Baudelaire, “Revolta Abel e Caim, in Flores do Mal
Introdução
Os Objetos da Tese: regime tutelar, resistência indígena e mudança social.
Este estudo analisa as relações de dominação e resistência política estabelecidas entre os
índios Terena e o Estado-Nacional. Nosso enfoque principal é o estudo da mudança social nos
processos e relações de poder no presente etnográfico, ou seja, nos primeiros anos do século XXI,
na terra indígena Cachoeirinha, localizada no Mato Grosso do Sul.
O estudo etnográfico e das fontes históricas acerca da sociedade Terena nos levou a perceber
uma continua e forte política de resistência dos indígenas ao regime tutelar, talvez principal forma
de dominação operante em relação aos índios. As formas de luta política e resistência indígena
existentes remetem sempre (em termos simbólicos e práticos) a essa estrutura de dominação.
A problemática desta oposição entre “tutela e resistência indígena” apareceu tanto pela
análise de relações concretas quanto pelo discurso nativo. O discurso indígena aciona em algumas
circunstancias a idéia de resistência, de capacidade política dos índios, em contraponto a “tutela”
que se apresenta ainda enquanto regime político e jurídico dentro das aldeias.
A resistência indígena assumiu diferentes formas cotidianas e abertas e hoje o que parece
ser mais expressivo entre os Terena é o desenvolvimento da política de resistência cotidiana ao
regime tutelar ou a seus principais efeitos de poder. Os índios Terena hoje disputam o controle de
recursos materiais e posições de poder, tentando afirmar a capacidade política indígena de controlar
sua própria vida. Disputam também narrativas históricas e fazem a critica dos estigmas sobre o
índio (representações românticas, imagem de preguiçoso e etc) e do conjunto de mecanismos
concretos e simbólicos institucionalizados pelo regime tutelar.
Para compreender o significado desses fenômenos políticos e culturais, e sua relação com a
resistência e a dominação, é preciso compreender o conteúdo sociológico do regime tutelar. A
construção do regime tutelar acompanhou o período de “acumulação primitiva” (que implicou no
caso brasileiro, no etnocídio e na expropriação das populações indígenas), lançando as bases do
Estado-Nacional e do capitalismo brasileiros. Por isso, a oposição entre tutela e resistência indígena
se apresenta como problema empírico, que deve ser pensado em sua articulação com o problema
teórico da mudança social (transição das sociedades sem estado para as sociedades estatais e das
formas pré-capitalistas para as capitalistas), bem como da construção das relações de dominação
política e exploração econômica.
2
O regime tutelar é um dos principais produtos da política colonial e expressa um modelo de
exploração capitalista de uma força de trabalho particular, a dos povos colonizados. Nesse sentido,
a compreensão do regime tutelar exige a analise das engrenagens capitalistas e imperialistas de
exploração/dominação, e uma compreensão dos sentidos do processo histórico de colonização e
formação do capitalismo.
O regime tutelar foi problematizado e teorizado na antropologia brasileira por autores como
João Pacheco de Oliveira (1988), Antonio Carlos de Souza Lima (1995) e se concatena de maneira
muito adequada com o objeto teórico postulado pela orientação genética e dinâmica da antropologia
política, que abrange especialmente o problema da origem/formação do Estado e os processos de
mudança/reprodução dos sistemas políticos, estatais e não-estatais (ver Balandier, 1969, Gluckman,
1974).
Estas demandas teóricas exigiram uma reformulação de certas maneiras de conceber o
problema do estudo sociológico e antropológico das relações interétnicas e da mudança social. Por
isso a etnografia foi acompanhada pelo esforço de buscar quadros teóricos e políticos alternativos
de análise sociológica.
Justificativa: do contexto etnográfico a crítica teórica.
O problema da tutela e da resistência indígena se colocou para nós a partir do próprio
contexto etnográfico. Mas tivemos de passar por um revezamento contínuo entre a etnografia e
reflexão teórica para conseguir realmente entender a sua importância para a compreensão da
sociedade Terena.
Em 2001, quando iniciamos nossa pesquisa junto aos Terena no Mato Grosso do Sul, setores
da sociedade brasileira e a opinião pública internacional ainda estavam sob o impacto do que
acontecera em Porto Seguro em abril de 2000, ocasião em que o chamado “movimento indígena”
sofreu uma dura repressão policial e a imagem do índio Gildo Terena, de joelhos na estrada diante
da tropa policial de choque, correu o mundo durante meses como uma espécie de síntese imagética
das relações entre os índios e o Estado brasileiro
1
. A nossa intenção inicial, ainda sob uma
formulação genérica, era estudar o “movimento indígena”, suas formas de ação e articulação no
plano local.
Quando chegamos a Cachoeirinha nos defrontamos com uma série de dificuldades para
encaminhar a pesquisa na forma como tínhamos imaginado; pudemos logo perceber que os Terena
1
A exaltação do “índio e da teoria das três raças formadoras, todo o pesado investimento simbólico realizado pelo
Governo Fernando Henrique Cardoso, se combinou com o tratamento “policial” dispensado ao movimento indígena e
aos índios, que foram impedidos de ira até o local das cerimônias oficiais, onde estariam os chefes de Estado brasileiro
e português.
3
não apresentavam nenhum tipo de articulação orgânica com algo que se pudesse denominar
movimento indígena”; não existiam organizações e ações coletivas, assembléias (tais como
tínhamos tido a oportunidade de acompanhar em Porto Seguro, nos protestos dos 500 anos). Apesar
da UNI (União das Nações Indígenas) ter o índio Marcos Terena como um dos seus fundadores, em
Cachoeirinha sempre ouvi comentários irônicos sobre ela, “de que não peitou nem organizou nada”.
Ao contrário, quase todas as demandas passavam pela FUNAI, as organizações indígenas existentes
eram associações voltadas para a produção agropecuária, e a vida dentro da comunidade era
marcada por conflitos faccionais evidentes entre líderes indígenas que trabalhavam sempre em
colaboração com algum comerciante ou fazendeiro, reproduzindo sob muitos aspectos a forma
clientelista” de dominação.
Todas as ações dos índios pareciam voltadas para garantir a maior eficácia possível da sua
facção na obtenção de recursos materiais e poder político. Isto entrava em franca contradição com
aquela nossa intenção de estudar um movimento social organizado, com uma identidade e ações
coletivas definidas, tendo um adversário igualmente definido: o Estado. Assim, a etnografia nos
obrigou a abandonar certas teses e hipóteses, apesar de mantermos outras e os principais
pressupostos teóricos. A etnografia serviu para demolir estas primeiras intenções e reconstruí-las
num outro patamar de reflexão empírica e teórica. Entretanto foi preciso um esforço de superar
certas representações acerca dos índios e o Estado Brasileiro. Perceber como por detrás do aparente
equilíbrio e estabilidade na relação entre os Terena e agências estatais, passavam-se sutis mas
constantes lutas políticas, tanto uma luta pelo poder quanto uma luta de discursos sobre a história e
o “caráter” dos índios.
O discurso histórico (administrativo, mas às vezes acadêmico) colocava os Terena sempre
como uma espécie de coadjuvantes do SPI, como colaboradores periféricos da política pedagógica
de civilização e assimilação dos índios; a sua utilização como “índios exemplos” em São Paulo
junto aos Kaigang e em Mato Grosso do Sul junto aos Guaranis, além do seu envolvimento na
política local e na política interna da FUNAI reforçavam esta imagem. Desta maneira, a imagem do
“índio modelo” do discurso indigenista, parecia prevalecer em diversos planos (políticos e
científicos). Mas na realidade isso não explica uma grande parte dos acontecimentos e ações dos
Terena, tanto hoje como no passado.
É interessante que um dos líderes Terena, o cacique Ramão Vieira com quem tivemos a
oportunidade de conviver em Cachoeirinha, formulou uma reflexão que vai na direção da crítica
dessa representação. Na nossa última ida a campo em março de 2006, estávamos numa conversa
informal dentro de um acampamento organizado pelos índios numa fazenda que faz limites com
Cachoeirinha (ver capítulo 6), e Ramão ao falar da batalha política e judicial que eles estavam
4
travando, disse: “Os estudiosos fala que o Terena é manso, mas no dia da reintegração de posse
não tinha ninguém manso”.
Tal formulação permite que coloquemos uma série de indagações. Primeiramente ela
sinaliza a existência de representações que formam uma imagem dos Terena como “índios mansos”
e “passivos”. Ao mesmo tempo mostra a insatisfação de certos atores indígenas com tal
representação, uma contradição entre as representações engendradas pelo regime tutelar e os
processos políticos locais, nos quais os indígenas aparecem como atores com estratégias e táticas
diversificadas. Este tipo de contradição é que nos motivou a tomar como problemas/objetos a
tutela, a resistência indígena e a mudança social.
Por que a abordagem de tais problemas se justificaria? Os índios Terena foram, em certo
contexto, alvo privilegiado de diversas pesquisas e textos etnográficos (FERREIRA, 2002).
Podemos classificar a etnografia Terena em três conjuntos distintos, a partir de critérios teóricos e
temporais: os estudos de aculturação (basicamente anos 1940), nos quais situam-se os clássicos de
Herbert Baldus (1937), Kalervo Oberg (1949), Fernando Altenfelder Silva (1949), e os estudos de
assimilação e contato interétnico de Roberto Cardoso de Oliveira (1960 e 1968); os estudos
contemporâneos, com orientações teóricas distintas, como os de Edgar de Assis Carvalho (1979),
Edson Soares Diniz (1978). Estes trabalhos, cada um com suas particularidades teórico-
metodológicas privilegiaram a temática da aculturação, mudança cultural e assimilação categorias
estritamente relacionadas entre si.
Destas monografias, as que dão maior atenção à questão do comportamento político e ação
indígena são as de Roberto Cardoso de Oliveira. O autor trata apenas um dos aspectos que aqui nos
interessam, aquele relativo à inserção dos Terena nas instâncias políticas locais. Sua descrição foi
restrita, seja pelo fato do papel desempenhado naquele momento pelos Terena se resumir (segundo
Cardoso de Oliveira) ao de “eleitor”, seja em razão do rígido controle exercido pelo órgão tutelar (o
SPI), que chegou em certos momentos a proibir os índios de exercerem mesmo este papel (Cardoso
de Oliveira, 1968, p. 117-120). Em monografias posteriores, como as de Edgar de Assis Carvalho
(1979) e Fernanda Carvalho (1996), os autores não tomam como temas principais à ação política
indígena. O trabalho de Edgar de Assis Carvalho tenta desenvolver uma leitura marxista da situação
do contato interétnico, com ênfase nas relações econômicas. O de Fernanda Carvalho toma como
objeto as práticas de cura e os sistemas de crenças relacionadas.
Existem diferentes questões que nos foram suscitadas pela leitura da etnografia Terena e
com as quais dialogamos criticamente ao longo desta tese. Em primeiro lugar, podemos dizer que
quase todos os estudos a exceção do de Fernanda Carvalho, estão de uma maneira ou outra,
preocupados com o problema da mudança; para Oberg e Altenfelder Silva, a mudança cultural;
para Cardoso de Oliveira, a mudança social e identitária, para Diniz (1978) e Carvalho (1979) o
5
problema da mudança dos sistemas econômicos. O processo de mudança, entretanto sempre foi
concebido como uma “mudança” provocada pelas relações interétnicas, na qual os índios Terena
representavam um pólo determinado e não determinante. A ação e organização política indígena,
“os pontos de vista dos nativos” quanto à mudança social e cultural não foram aspectos explorados.
Tomemos um dos estudos de aculturação, o de Fernando Altenfelder Silva. Este autor
examina os diversos aspectos da vida dos Terena, apresentando sempre primeiramente uma
descrição do passado para depois analisar a situação atual: “Pretendemos examinar neste capítulo, a
vida econômica dos Terena, no passado, e a presente situação na aldeia de Bananal, procurando
evidenciar as mudanças ocorridas”. (Altenfelder Silva, op.cit, p.286). Depois passa a descrever a
organização social, seguindo o mesmo percurso (descrição do passado, descrição do presente),
apontando como mudanças mais flagrantes a substituição da família extensa pela elementar e o
desaparecimento do sistema das metades e classes. Por exemplo, quando Altenfelder Silva analisou
a organização política, assim como sua cultura e organização social, falou em termos de
“desaparecimento e desorganização”. Segundo tal perspectiva, o “sistema político tradicional” teria
sido substituído por formas exclusivamente nacional-estatais (centralizadas) de organização
(Altenfelder Silva, 1949, p. 373).
Nos anos 1960, aparecerão os estudos de Roberto Cardoso. Sua abordagem no livro
“Urbanização e Tribalismo” indica que:
‘Os Terena viram desagregar-se seu sistema político paralelamente à ocupação de suas terras
e à perda de sua autonomia; a situação de reserva constitui o resultado de seu reagrupamento
(...) A rigor, a dimensão política dos Terena atuais não apresenta aquele caráter de sistema
capaz de classificá-la, por exemplo, como fizeram Meyer Fortes e Evans Pritchard em relação
a uma representativa amostra das sociedades africanas (...) . Comentam os mencionados
autores que ´Aqueles que acham que se deve definir um Estado pela presença de instituições
governamentais considerarão o primeiro grupo Estados primitivos e o segundo sociedades sem
Estado. (...) Pode-se aceitar, mesmo à base de informações fragmentárias obtidas
bibliograficamente ou pela pesquisa de campo, que o tradicional sistema político Terena
estaria mais próximo do primeiro tipo do que do segundo”. (Cardoso de Oliveira, op.cit, 103-
104)
Esta visão de que a sociedade Terena “moderna” se apresentava em processo de
transformação, se aplica também à identidade étnica: “No momento em que esta urbanização se
soma à integração nas classes mais bem favorecidas, cujo nível de vida a elas inerente esteja bem
acima do nível desfrutado por seus patrícios citadinos é que ao que tudo indica -- terá lugar a
destribalização e os indivíduos poderão ser finalmente assimilados” (Cardoso de Oliveira, 1968,
p.196). Sua compreensão, é que a mobilidade social (integração nas “classes favorecidas”) levará a
destribalização (liquidação da identidade étnica) e assimilação.
6
No final dos anos 1970 irão aparecer os estudos sobre os Terena de São Paulo. Edgar Assis
Carvalho, partindo de uma concepção marxista, pretende formular uma análise das classes sociais.
Num artigo intitulado “Pauperização e Indianidade” (Antropologia e Indigenismo, 1981) ele afirma
que: “É fato notório que a realidade econômica do grupo indígena integrado encontra-se pautada
por conjunto de atividades agrícolas de subsistência, no interior da reserva, e pelo exercício
sazonal de relações assalariadas em fazendas”. (Carvalho, 1981, p. 7). E mais adiante: “...
progressivamente, a dimensão étnica vai sendo subordinada a dimensão de classe que passa a ser a
matriz fundamental para as práticas indígenas cada vez mais destituídas de homogeneidade
cultural e lingüística”. (Carvalho, op.cit, p.8). Estas abordagens derivam da leitura global do
contato interétnico: supondo que o contato entre os Terena e a Sociedade Nacional se processou a
partir do século XIX, supõe-se uma inserção tardia na estrutura de classes capitalista, quando na
realidade isso já acontecia desde o final da Guerra do Paraguai (como iremos demonstrar no
capítulo 3). A “proletarização” e o “acamponesamento” dos Terena é um dos pontos de partida, não
de chegada, das relações interétnicas.
Tomando um outro estudo, o de Edson Soares Diniz, que apesar de ter sido realizado nos
anos 1970 em São Paulo, oscila entre a ênfase nas “relações interétnicas” e a reafirmação das teses
dos estudos de aculturação:
“As mudanças sócio-culturais, devido ao contato interétnico, são evidentes. Ao lado de sua
própria língua, falam e entendem o português. Sua indumentária e seu modo de vida
assemelham-se aos regionais pobres, embora para estes, haja a tendência do nível de vida ser
mais elevado. Os sistemas de parentesco continuam, mas já existem confusões estruturais por
identificação com o sistema brasileiro. Usam nomes cristãos e são batizados nos rituais da
Igreja católica, religião a que dizem pertencer”. (Diniz, 1978, p.99).
Diniz, desta maneira, se mantém ainda dentro dos referenciais estabelecidos dentro da
antropologia e ciências sociais dos anos 1950/60, reafirmando tanto as imagens quanto o léxico dos
estudos de aculturação e assimilação, como podemos confirmar pelas suas conclusões no livro. É na
última frase do livro, com grande viés generalizador, que fica mais marcada esta imersão nos
pressupostos teóricos da antropologia culturalista dos anos cinqüenta e sessenta:
“Na atualidade, a imagem que as culturas indígenas nos oferecem é aquela de um condenado
algemado e amordaçado, sem condição de reação e que, consciente ou inconscientemente, a
cada passo mais se aproxima do patíbulo”. (Diniz, op.cit, p.102).
Há um modo de abordagem da sociedade Terena, que analisa todas as suas dimensões em
função da mudança provocada pelo “contato interétnico”. Assim, no plano político se supunha que a
passagem das sociedades sem estado às sociedades estatais implicava na eliminação total da
organização política indígena, supõe-se também que do ponto de vista econômico o destino dos
7
índios seria a absorção completa na estrutura de classes capitalista. Isto fica nítido nos trabalhos
mencionados.
Existe também um tipo de história nestes estudos que parte de uma estrutura dualista,
opondo um “período tradicional” (que seria anterior ao contato interétnico) ao “período moderno”
(caracterizado pelo estabelecimento das relações entre sociedade indígena e sociedade nacional). No
período tradicional existiria um tipo de organização da economia (baseada na agricultura e caça-
coleta), da cultura (baseada na cosmologia e formas mágico-religiosas) e da política (baseada na
transmissão hereditária da chefia); o período moderno seria marcado pela tendência ao
assalariamento, a integração numa “estrutura de classes”; na cultura, veríamos as transformações
significativas, com a “substituição do sistema de crenças” pelas religiões católica e protestante; do
ponto de vista político, a intervenção do Estado suplantaria por completo os chefes indígenas. A
história dos Terena aparece como determinada de fora, e se apresenta como uma “queda” de uma
idade de “ouro” para um presente de “aculturação/assimilação”, provocada pelo estabelecimento
das “relações interétnicas” (Bruner, 1986).
Cardoso de Oliveira afirma que: “A história dos Terena, ao menos em sua fase que podemos
chamar moderna, é a história da ocupação brasileira no sul de Mato Grosso”. (Cardoso de
Oliveira, 1968, p.40). E mais adiante: “E mais do que os kinikinau, os Layana e os Echoaladi, os
Terena teriam sofrido de modo bem violento a conjunção com a sociedade nacional, a partir do
momento em que foram envolvidos na luta contra os paraguaios. Até esse tempo, eles constituam
um grupo relativamente isolado, como indicam algumas das principais crônicas de Taunay sobre o
episódio da guerra com o Paraguai”. (Cardoso de Oliveira, op.cit, p.40). A caracterização da
história indígena, como indicada por Cardoso de Oliveira, está inter-relacionada com o processo de
colonização, mas em seu trabalho a reflexão sobre o século XIX ocupa pouco espaço.
Assis Carvalho dá destaque à análise histórica, ocupando dois capítulos de seu livro, num
total de seis. O autor afirma: “No primeiro capítulo reunimos dados históricos significativos à
compreensão do modo de vida Terena no Chaco, suas primeiras formas de contato com o
colonizador e as várias compulsões a que foram submetidos”. (Carvalho, 1979, p. 20). Esta ênfase
sobre o “modo de vida” e as “primeiras formas de contato” revelam uma certa fixação em marcar
ainda a distintividade cultural do passado indígena com relação a seu presente. Desta maneira,
apesar de uma maior atenção à história, ainda permanece uma pouca preocupação com a
historicidade das sociedades indígenas, seu envolvimento efetivo nos processos reais e suas
conseqüências na determinação dos destinos dos povos.
A focalização da problemática da resistência indígena e do regime tutelar permitirá a
reabilitação de uma dimensão que a etnografia Terena até o atual momento não tratou
satisfatoriamente; a das formas da ação indígena. E o reconhecimento de que os índios são
8
efetivamente sujeitos da sua própria história, de que eles são pólos ativos dos processos de mudança
social.
A relação Estado/Índio é perpassada por uma rede de interações muito complexa, tanto do
ponto de vista dos interesses envolvidos quanto das práticas e referenciais culturais. Compreender
os pontos desta rede é fundamental para a compreensão das relações interétnicas. Por outro lado,
não podemos pensar os povos indígenas como meros objetos de ações de agências externas, mas
devemos os considerar como “sujeitos” de ações políticas que elaboram suas próprias estratégias no
sentido de garantir seus interesses.
Neste sentido, a partir do caso Terena, pretendemos ver como se dão os processos de
resistência étnica diante das diversas formas de dominação que diferentes setores da sociedade
brasileira e o Estado exercem sobre os povos indígenas. A análise da relação entre as formas de
poder exercidas sobre as populações indígenas caminha assim lado a lado com a reflexão acerca das
formas de resistência construídas pelos próprios grupos indígenas como estratégia de sobrevivência
e fortalecimento. Mas também consideramos as formas de dominação operantes dentro dos próprios
grupos indígenas. Uma história Terena é necessária e também uma compreensão da história dos
pontos de vistas indígenas.
O estudo do regime tutelar e da resistência indígena entre os Terena se justifica então por
este conjunto de questões. É uma estratégia para chegar à compreensão dos processos de mudança e
reprodução social, formulando outras análises para interpretação da economia, cultura e política do
grupo. Também é uma forma de buscar uma história indígena que supere a dualidade
tradicional/moderno e a visão de que o estabelecimento das relações entre sociedade indígena e
sociedade nacional foi o ponto de partida da “desagregação das sociedades indígenas” (o que leva,
como veremos, a reificação da idéia do Estado-Protetor que “salva” e substitui os índios, sua
capacidade política e ação histórica). Assim, o estudo aqui apresentado está voltado tanto para
temas da antropologia brasileira, quanto para temas de interesse político-teórico mais amplo, se é
que faz sentido uma tal distinção.
Método e Hipóteses de Pesquisa.
Iremos aqui tecer algumas considerações com relação ao método, técnicas de pesquisa e as
hipóteses que formulamos para o nosso trabalho. Nesse sentido tentaremos retratar o mais fielmente
possível os caminhos que nos levaram a produção dos dados utilizados e hipóteses aqui
apresentadas.
Entendemos que o processo de pesquisa é sempre mediado por algumas teorias ou teses
gerais que funcionam como pressupostos e orientam tanto o método quanto as técnicas de coleta de
9
informações empregadas no trabalho de campo
2
. Sendo assim, antes de tudo cabe explicitar alguns
dos pressupostos teóricos a partir dos quais desenvolvemos nossa pesquisa.
1º) Partimos da suposição teórico-metodológica de que os grupos étnicos são formas de
organização social e que a realidade é construída através da ação e interação de atores sociais
(BARTH, 2000, Oliveira Filho, 1999). 2º) A etnografia realizada em pequenas “comunidades”
locais não está em contradição com o estudo dos processos de larga escala, podendo, ao invés,
possibilitar uma melhor compreensão de processos que operam em múltiplas escalas (ELIAS, 2000,
Revel, 1998, Marcus, 1995). 3º) Esta articulação de diferentes escalas de produção e reprodução
social, possibilitadas pela etnografia, impõe que “... uma compreensão das sociedades e culturas
indígenas não pode passar sem uma reflexão e recuperação críticas da sua dimensão histórica”.
(Oliveira Filho,1999,p.8). 4º) É indispensável pensar o conflito, a luta, a guerra, como uma
dimensão central da construção das relações sociais, de maneira a compreender a sua real
importância para a constituição da sociedade (Foucault, 1999; Gluckman, 1968).
Tivemos sempre a preocupação de manter no desenvolvimento da pesquisa e no trabalho de
produção textual da etnografia três movimentos: 1º) a articulação entre etnografia e história; 2º) a
articulação dos contextos locais com os processos de larga escala e longa duração; 3º) a articulação
entre mudança social e reprodução das relações de poder, tomando como foco os conflitos entre o
Estado e grupos sociais subalternizados, como os índios e aqui vários autores inspiraram nossa
análise (como Bakunin, Marx, Lenin, Foucault, Gluckman, Turner, Balandier).
Podemos dizer que o método utilizado nesta pesquisa foi essencialmente etnográfico.
Entretanto, em razão das múltiplas construções e des-construções da definição da etnografia, cabe
apresentarmos uma definição explicativa. Entendemos a etnografia como um processo composto
por três etapas: 1ª) experiência de interação; 2ª) a aplicação das técnicas de coleta de dados (como
as descrições de morfologia e situações sociais, aplicação de questionário e entrevistas fechadas e
abertas, as técnicas genealógicas e estatísticas etc); ) a produção textual, que transcreve essa
experiência visando submetê-la a critérios de controle e verificação cientificas, garantindo sua
objetividade. O trabalho de campo se apresenta antes como uma sistematização acadêmica da
etnografia, mas outras formas de etnografia (de viajantes, administradores, militares) se apresentam
como gêneros específicos de etnografia, que têm de ser submetidos aos processos sociológicos de
análise e controle, assim como as etnografias acadêmicas.
A etnografia nas suas diferentes modalidades historicamente encontradas está associada
fundamentalmente, mas não necessariamente, ao trabalho de campo, mas também a outras formas
de experiência de interação. A etnografia, enquanto modo de conhecimento, está ancorada em dois
2
Malinowski explicita isso na sua introdução aos “Argonautas do Pacífico Sul”: “O pesquisador de campo baseia-se
inteiramente na inspiração proporcionada pela teoria.” (Malinowski, 1979, p.45-46).
10
pilares: 1º a descrição detalhada do universo social e natural; 2º o holismo, quer dizer, a análise
desta realidade especifica como uma totalidade na qual os significados derivam das relações
concretas (Malinowski, idem, Ortner, 1995, Berreman, 1975).
Esta consideração é fundamental, porque a perspectiva histórica adotada, exige que
adotemos as descrições etnográficas como base da construção da história indígena. Por isso o uso de
descrições de militares e viajantes, além de outras fontes, na construção desta perspectiva de uma
etnografia histórica. O uso das etnografias de outros sujeitos é uma forma de dissociar a experiência
etnográfica do empirismo e auto-referencia, pois não somente a própria “experiência pessoal no
presente etnográfico” passa a ser considerada, mas também a experiência de outros sujeitos em
outros momentos históricos. Neste sentido, a etnografia, enquanto modo de conhecimento, ganha
também uma forma e um conteúdo histórico, no sentido que se torna possível usar as etnografias
como fontes históricas.
O nosso método de pesquisa então centrado na etnografia, passou também por outras etapas,
a pesquisa bibliográfica, a pesquisa documental ou arquivística, e por fim a produção textual da
tese. Lembramos que na realidade não foi um processo linear, mas sim descontinuo, com idas e
vindas a campo, arquivos e a produção textual, e seguindo esse itinerário flexível é que chegamos
onde estamos hoje. Explicitaremos a seguir as condições de realização de nossa pesquisa.
No correr do nosso trabalho de campo nas áreas Terena de Mato Grosso do Sul, pudemos
visitar três Postos Indígenas (PIN’s) no município de Miranda PIN Cachoeirinha, PIN Pilad
Rebuá, e PIN Lalima, o PIN Nioaque e duas terras indígenas, Aldeinha na cidade de Anastácio e a
Aldeia Urbana Marçal de Souza na capital Campo Grande. A maior parte de nossa pesquisa foi
realizada no município de Miranda, na terra indígena de Cachoeirinha. A cidade de Miranda fica à
oeste de Campo Grande e distante 194 km desta capital, situada na meso-região do Pantanal,
acessada pela estrada BR-262 (que liga Campo Grande à cidade de Corumbá, na fronteira com a
Bolívia). A cidade tem 23 mil habitantes, sendo a população urbana de 12, 5 mil e a rural de 10, 5
mil, segundo os dados do IBGE. A população indígena Terena está entre 5 mil e 7 mil pessoas.
Realizamos um primeiro contato com os Terena em fevereiro de 2001, quando tivemos a
oportunidade de realizar uma viagem de 30 dias à região, permanecendo cerca de 3 dias em
Cachoeirinha, visitando ainda as terras indígenas de Lalima, Pilad Rebuá e Aldeinha. Devido a
dificuldades operacionais e limitações de recursos, não conseguimos ter acesso às demais terras
indígenas Terena no estado. Em 2002 realizamos uma rápida etapa de pesquisa de 3 dias em
Cachoeirinha em abril; em Outubro voltamos para mais uma etapa de pesquisa e ficamos cerca de
20 dias.
Devido à aceitação e facilidade de negociação com as lideranças locais e comunidade, e
questões suscitadas pelas primeiras viagens, resolvemos definir Cachoeirinha como local de nossa
11
pesquisa. Em abril de 2003 voltamos e ficamos cerca de 40 dias em Cachoeirinha, saímos em maio
para ir a Campo Grande e ir a outras aldeias (sendo que conseguimos visitar Brejão em Nioaque, e
Aldeinha). Também ficamos cerca de 7 dias em Campo Grande. Em setembro de 2004
concentramos a maior parte de nossa pesquisa de campo (cerca de 60 dias), e neste período tivemos
oportunidade de conhecer a aldeia de Jaguapirú e Bororo em Dourados. Em 2006 realizamos uma
etapa de pesquisa de três semanas, entre março e abril. Totalizamos aproximadamente 170 dias de
trabalho de campo ao longo de cinco anos de pesquisa, dos quais cerca de 110 foram passados
exclusivamente na aldeia Cachoeirinha.
Durante o período de campo em que permanecemos em Cachoeirinha, nos hospedamos no
Posto da FUNAI, residindo ali com a família do então Chefe de Posto (sua esposa e filhos), o índio
Terena Argemiro Turíbio. Depois ficamos hospedados em sua casa, que fica localizada próximo ao
Posto da FUNAI. Neste sentido, a pesquisa foi construída a partir de uma relação específica com
um grupo doméstico, o que abriu certas portas, mas também fechou outras portas. Especialmente
porque este grupo doméstico cumpre um papel político importante dentro do contexto local.
Conseguimos construir relações com outras pessoas, que atuaram como nossos informantes,
servindo para contornar relativamente esta situação.
É importante mencionar que quando iniciamos a primeira etapa de pesquisa realmente
prolongada em Cachoeirinha, em 2003, existia um contexto em que as disputas faccionais estavam
relativamente atenuadas em razão dos seminários e assembléias promovidos pelo CIMI. Nessas
circunstâncias, conseguimos ter acesso direto ao conjunto de lideranças de diferentes facções, o que
possibilitou a construção de formas de comunicação para além dos grupos domésticos com que
residimos na Cachoeirinha, e ter acessos a pontos de vistas e expectativas que se demonstrariam
conflitantes pouco tempo depois. Mas é claro que estávamos o tempo todo situados dentro de um
grupo doméstico e de uma das vilas da aldeia, o que nos posicionava dentro de um universo de lutas
faccionais determinado.
É preciso observar também o contexto lingüístico da pesquisa. Nós realizamos a pesquisa
fazendo uso do idioma português, e sempre que possível colhemos entrevistas e termos no idioma
Terena para tradução. Os Terena são um povo que possui diferentes situações lingüísticas. Existem
comunidades bilíngües e algumas comunidades que falam majoritariamente o português. No
contexto da aldeia Cachoeirinha e Argola o domínio da língua Terena é generalizado na população,
com um índice de 78,4% e 83,3% respectivamente, sendo Babaçu a que apresenta uma menor
percentagem de falantes, 48% (Ladeira, 2001, p. 101). Mas de maneira geral, a população Terena
domina muito bem o português, e grande parte da comunicação dentro da aldeia é feita pelo uso dos dois
idiomas, até mesmo pela heterogeneidade de domínio da língua apontada acima.
12
Além da pesquisa de campo, realizamos também pesquisa nos arquivos do Museu Nacional,
do Museu do Índio, da Biblioteca, do Arquivo Nacional e Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro no Rio de Janeiro; nos arquivos da FUNAI em Mato Grosso do Sul, em bibliotecas
municipais em Campo Grande, onde levantamos uma documentação importante sobre os índios
Terena e os índios do Mato Grosso do Sul. Daí saiu uma massa heterogênea de relatórios, ofícios,
cartas e fotos, que estão incorporados na nossa tese.
Do processo de revezamento entre pesquisa bibliográfica, documental e a etnografia,
surgiram algumas hipóteses, que estão diretamente relacionadas às questões apresentadas na
justificativa desse trabalho. São quatro hipóteses que formulamos para nossa pesquisa:
Primeira Hipótese: está em emergência entre os Terena o que poderíamos chamar de
protagonismo étnico, fenômeno que indica uma mudança nas relações de poder entre índios e
Estado, e se expressa na passagem das formas cotidianas de resistência para a resistência aberta.
Tal constatação exige a critica dos estereótipos dos Terena como “índios-modelo” e a
percepção de sua política de resistência à tutela. Os Terena desenvolveram formas cotidianas de
resistência à relação e regime tutelar, desde que esse consolidou com a formação das Reservas do
SPI, de maneira que as teses que afirmam a “vitimização”, a “incapacidade” e a “passividade”
Terena não encontram sustentação empírica. Hoje essa resistência se desenvolveu e se apresenta sob
a forma da emergência do protagonismo étnico.
É correto afirmar que os Terena desenvolveram políticas de colaboração com as agências
estatais (aceitando relativamente às mudanças sócio-culturais impostas e formas de exercício do
poder). Paralelamente a esta colaboração, criaram ações contra certas bases do regime tutelar
(especialmente no que tange aos elementos centrais da tutela, como a idéia de incapacidade
indígena, as formas de substituição da ação indígena pela ação estatal). Logo, muitos dos atributos
empregados para construir as representações do índio (como preguiçoso, incapaz, violento,
inconstante) na realidade expressam a oscilação entre políticas de resistência e colaboração. A
abordagem da história Terena existente na antropologia brasileira, considera normalmente que o
“contato interétnico” teria sido o marco de um processo de mudança social global nas sociedades
indígenas. No nosso entendimento a “mudança” não se deu em forma e ritmos homogêneos na
economia, cultura e política indígenas, e não podemos pensar a história do grupo como uma
“queda” de uma “época tradicional” para um presente de crise, sendo o marco de início dessa queda
o estabelecimento das “relações interétnicas”.
Segunda Hipótese: Os Terena e alguns outros grupos indígenas da região do Chaco/Pantanal
foram forças de apoio essenciais à formação do Estado brasileiro, através da articulação dos modos
de organização política “não-estatais” e “estatais” em uma formação social e histórica determinada.
13
Os índios Terena não constituíam um “grupo isolado” até o século XIX e nem possuíam
uma “organização de tipo estatal”. Contrariamente ao que a literatura antropológica indica,
acreditamos que os Terena participavam de um sistema social indígena específico (com inúmeros
outros grupos étnicos e instituições coloniais) e sua organização era de tipo segmentar (ou seja,
constituíam uma “sociedade sem estado”). Logo o pressuposto do “isolamento”, que sustenta todas
formulações sobre os Terena, precisa ser submetido a uma critica histórica. Em conseqüência disso,
a transição de uma “sociedade sem estado” para uma “sociedade estatal” não se apresentou como a
substituição simples de um modo de organização política por outro, mas como choque,
superposição e transformação de diferentes sistemas sociais em que o Estado conseguiu realizar a
articulação de uma lógica centralizadora e uma lógica segmentar, manipulando essa combinação
para seus objetivos.
Terceira Hipótese: A centralização estatal imposta pelo regime tutelar teve como
contrapartida dialética à descentralização faccional, ou seja, a absorção relativa da antiga lógica
segmentar do sistema indígena dentro do Estado-Nacional (e como um fator fundamental para seu
desenvolvimento local).
A imposição aos Terena de uma “organização centralizada” pelo Estado-Nacional levou não
a eliminação da organização segmentar, mas sim a sua transformação numa organização segmentar-
faccional (Nicholas, 1966). O regime tutelar imposto pelo SPI pautava-se numa lógica de
centralização política dentro das aldeias, mas na nossa visão essa centralização longe de eliminar ou
suplantar a organização segmentar, fez com que ela se integrasse numa dinâmica faccional. Ou seja,
contrariando as interpretações que viram no estabelecimento de uma estrutura de poder centralizada
a eliminação das formas segmentares, nossa hipótese é que a centralização leva ao faccionalismo e
este a centralização, e ao invés da organização segmentar ou descentralizada se opor e desaparecer
com a incorporação dos grupos e territórios indígenas às unidades de um Sistema Político Estatal-
Capitalista, esta organização segmentar se torna um elemento fundamental para o funcionamento
das instituições estatais e conseqüentemente para a reprodução das relações de dominação no nível
local da política.
Quarta Hipótese: O regime tutelar está passando por uma transformação específica, de uma
tutela baseada na “gestão branca” (SPI) para uma tutela baseada na “co-gestão indígena” e essa
tende a diluir o aumento do poder indígena expresso pela emergência do protagonismo étnico,
através do aprofundamento das formas de dominação horizontal.
Durante décadas se estabeleceu um modelo de “gestão indireta” dos territórios indígenas,
uma gestão branca pautada na exclusão e subordinação dos índios. O regime tutelar hoje passa por
processos de liberalização de dentro para fora e transformação em conseqüência da pressão de
fora para dentro, dos índios. E essas transformações têm apontado no sentido da construção da co-
14
gestão da instituição tutelar pelos índios. Mas essa co-gestão tem como principal efeito reproduzir e
aprofundar o padrão histórico de fortalecimento das dominações horizontais induzido pelo Estado.
A organização da nossa tese reflete em sua seqüência as preocupações e hipóteses
apresentadas acima. A tese está dividida em 7 capítulos:
? o Capítulo 1 é dedicado à definição das linhas político-teóricas de abordagem dos problemas
da resistência, dominação, tutela, origem e formação do Estado e mudança social
? o Capítulo 2, realiza a descrição etnográfica e caracterização da atual situação histórica
vivenciada pelo grupo indígena, em que apontamos as relações econômicas, políticas e
culturais, formas de mobilização política e projetos de futuro dos Terena.
? o Capitulo 3 é dedicado a análise da construção do campo de relações interétnicas no Mato
Grosso do Sul e a formação do regime tutelar, bem como do processo histórico de
territorialização dos Terena (com a identificação de diferentes situações históricas);
? o Capítulo 4, é dedicado à descrição da atual organização social e cultural do grupo,
analisando como o grupo étnico se transformou e reproduziu através deste processo
histórico, e como esta historia é parte integrante e estruturante da sua atual cultura,
organização social e experiência política.
? o Capítulo 5 focaliza os conflitos faccionais e dramas de sucessão, mostrando como políticas
de colaboração e resistência coexistem dentro do contexto das aldeias Terena, e como sua
interação e revezamento levaram a mudanças no regime tutelar;
? o Capítulo 6 analisa como as mudanças nos esquemas locais de poder levam a dominações
horizontais, de facões indígenas sobre outras, em alianças com o Estado e elites locais, e
como tal política se articula com as formas cotidianas e abertas de resistência.
? o Capítulo 7 é dedicado a uma reflexão sobre o conjunto das questões, à guisa de conclusão,
tentando apresentar uma sistematização teórica e etnográfica do problema da resistência e da
tutela, da relação racismo, capitalismo e Estado-Nacional.
A última consideração que gostaríamos de realizar diz respeito aos limites desse trabalho e
da pesquisa que lhe deu origem. Entendemos que a nossa etnografia ainda se encontra relativamente
inconclusa. É uma pesquisa que terá desdobramentos, sendo esta tese a formulação feita a partir de
uma etapa de construção do acesso àquilo que Gerald Berreman (1975) chamou de “região interior”
do grupo. Por outro lado, escolhemos um objeto teórico e empírico ajustado a atual etapa da
pesquisa, de maneira que os dados produzidos e o tipo de acesso à construção social da realidade do
grupo não ficassem aquém das exigências levantadas pela problemática. Procuramos estabelecer um
15
equilíbrio entre o grau de desenvolvimento da etnografia e da produção da análise sociológica.
Movimentamos-nos sempre através da tensão entre a etnografia, história e formulação teórica.
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
16
Capítulo 1 - Ordem e Anarquia na Sociologia:
percepções da mudança social e luta política.
“... três escolas do pensamento antropológico, originárias de diferentes tradições intelectuais,
tornaram-se exemplares na atualização competente dos paradigmas racionalista, estrutural-
funcionalista e culturalista, orientadores respectivamente da École francaise de sociologie, da
Britsh School of Social Anthropology e da American Historical School of Anthropology (...)
A categoria de ordem implementa a investigação cientifica, teórica ou de campo, em todo o
espaço ocupado por essas escolas. Tal a força dessa categoria no universo dessa disciplina que
ela não apenas orienta o discurso das diferentes escolas, a gramaticalidade da linguagem
antropológica, o que constituiria a bem dizer o impensado da disciplina, como ainda manifesta-
se no centro de sua problemática, largamente explicita em todos os índices ou sumários de
quantos ensaios e monografias a antropologia conheceu em sua história”
Roberto Cardoso de Oliveira, in Sobre o Pensamento Antropológico.
O contexto da segunda metade do século XX foi marcante para a antropologia, já que um
dilema surgido com a ordem pós-colonial se impôs. Alguns antropólogos colocaram em debate
vários dos conceitos e discursos que ajudaram a definir as bases teóricas e institucionais da
antropologia, e submeteram a exame critico as grandes correntes da disciplina (como o
evolucionismo, o funcionalismo e o estruturalismo). O livro Anthropology and the colonial
encounter”, organizado por Talal Asad, é emblemático deste movimento auto-reflexivo. A
plausibilidade do empreendimento antropológico, diz ele, que parecia auto-evidente nos anos 60,
deixara de existir (Asad, 1973,p.10). Ao identificar as características principais do debate na
antropologia do pós 2º Guerra Mundial, afirma que:
“We must begin from the basic fact that the basic reality witch made pre-war social
anthropology a feasible and effective enterprise was the power relationship between dominating
(European) and dominated (non-european) cultures. We then need to ask ourselves how this
relationship has affected the practical pre-conditions of social anthropology; the uses to which
its knowledge was put; the theoretical treatment of particular topics; the mode of perceiving
and objectifying alien societies; and the anthropologist’s claim of political neutrality”. (Asad,
1973, p.17).
Assim delineia-se uma espécie de “programa” para a crítica da antropologia, que passa pela
reflexão sobre as condições práticas de desenvolvimento da disciplina, os usos do conhecimento
antropológico e por fim a análise das próprias bases epistemológicas. Este programa de (auto)
crítica da disciplina passava fundamentalmente pela (re) articulação da política com as teorias e
conhecimentos antropológicos.
A reflexão crítica dentro da antropologia conduziria a revisão das relações entre conceitos e
práticas de poder, ou seja, entre teoria e política. A crítica implicaria uma mudança dos métodos e
da própria relação entre pesquisador e pesquisado, ou pelo menos se afirmaria tal necessidade.
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
17
Logo, não se poderia processar uma crítica das relações entre antropologia e colonialismo sem uma
profunda mudança dos pressupostos teóricos e das próprias técnicas de pesquisa.
Assumindo as orientações acima, é necessário realizar uma crítica teórica e epistemológica
que permita uma abordagem diferente dos problemas da mudança social, conflito, resistência e
dominação. E ao falar de resistência tomamos em mãos fios que conduzem em diferentes direções.
Uma dessas direções é a do debate relativamente contemporâneo dentro da antropologia, história e
sociologia, sobre as “formas cotidianas de resistência”, aquelas formas localizadas, parciais e
relativamente dispersas e fragmentárias. Outra dessas direções leva a um conjunto amplo e
heterogêneo de pesquisas e monografias da antropologia política, especialmente africanista,
realizadas nos anos 1930-1950, que refletem sobre os tipos de sistema político. Um terceiro fio nos
leva ao século XIX, aos debates entre socialistas, anarquistas e comunistas, de um lado, e liberais e
conservadores de outro, sobre a luta de classes, a história e o Estado. Iremos tomar aqui estes três
fios condutores de reflexão teórica e política, porque no nosso entendimento, somente assim
fechamos uma cadeia de questões necessárias à análise das formas de luta e dominação, das
relações de poder. Iremos começar pela definição do conceito de “resistência”.
1.1 – Resistência e Dominação: a análise das relações de poder.
Uma definição da noção de resistência não poderia deixar de fazer menção à edição The
Journal of Peasant Studies, Volume 13, number 2, 1986, em que é publicado o texto de James Scott,
“Everyday forms of Peasant Resistance”, e uma série de artigos sobre formas cotidianas de
resistência”. Uma análise desse volume e dos artigos aí contidos é fundamental na busca de
definições teóricas. É preciso indicar que o volume é dedicado ao estudo do campesinato nos paises
do Sudeste Asiático, que na década anterior havia sido abalado pela Guerra do Vietnã, pela luta
armada no campo e pela descolonização.
Em primeiro lugar devemos entender as bases que fundamentaram o surgimento dos estudos
sobre resistência. Os estudos da “resistência cotidiana” surgiram a partir da insatisfação com o
estudo das revoluções/insurreições de larga escala. Scott afirma que fora destes contextos, o
campesinato não figurava nas pesquisas como ator histórico Assim, somente nos momentos
explosivos, de “situações revolucionárias” é que o campesinato figura enquanto sujeito capaz
politicamente. Por outro lado, o estudo daquilo que seria chamado formas cotidianas de resistência
surge nos estudos da escravidão, em que as revoltas abertas eram raras (Scott, 1986, p.5).
Desta maneira, a resistência cotidiana, aparece no bojo da preocupação do estudo da ação
política do campesinato nos períodos que antecedem ou sucedem as situações revolucionárias e as
explosões de revoltas. As formas cotidianas de resistência são “a prosaica mas constante a luta de
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
18
classes e requerem pouca ou nenhuma coordenação ou planejamento, elas freqüentemente
representam formas de auto-assistência, evitam qualquer confrontação simbólica com as
autoridades ou as normas das elites(Scott, op.cit, p.6)
Temos assim uma primeira e geral definição do que consistem as formas cotidianas de
resistência. A “resistência cotidiana” é uma forma de luta de classes, que exige pouca ou nenhuma
coordenação, e que se viabiliza por uma série de “técnicas”: sabotagem, dissimulação, furto e etc.
O autor sistematiza uma definição da resistência em geral, que a diferencia das formas
cotidianas de resistência.
“Lower class resistance among peasants is any act (s) by member (s) of the class that is (are)
intended either to mitigate or to deny claims (e.g. rents, taxes, deference) made on that class by
superordinate classes (e.g. landlords, the state, owners of machinery, moneylenders) or to
advance its own claims (e.g work, land, charity, respect) vis-à-vis these superordinate)
classes.” (Scott, op.cit, p. 22)
Desta maneira, a resistência abrange qualquer ação de indivíduos ou grupos que se
encontram numa mesma condição de classe, que vise barrar as demandas dos grupos ou classe
dominante, ou realizar demandas que entrem em choque com aqueles grupos dominantes. É como
Andrew Turton notou, que “o conteúdo do conceito expressa uma bidimensionalidade: ao mesmo
tempo uma oposição bem sucedida, ou tentar opor com vários graus de sucesso. (...) Resistência,
como conceito, compartilha com conceitos relacionados (insubordinação, protesto, oposição, luta,
rebelião, revolução) um significado básico de negação”. (Turton, 1986, p. 38) A resistência, em sua
essência é relacional supõe oposição a algo que lhe dá sentido. Como o autor formula; “As formas
cotidianas de resistência são desse modo em larga medida respostas às formas cotidianas de
opressão e dominação, e estas, também precisam ser examinadas”. (Turton, op.cit, p. 37) Por isso,
ele afirma que “de um ponto de vista teórico e metodológico, as formas de resistência como tais tem
menor interesse que uma análise da relação social particular e do contexto em que elas surgem
(Turton, op.cit p.41).
Na realidade, na definição de Scott, a grande tarefa é fazer a uma diferenciação entre duas
grandes modalidades de resistência: a resistência e as formas cotidianas de resistência
3
. Enquanto o
primeiro conceito se aplica aos movimentos sociais, as rebeliões e formas de luta política coletiva,
3
Scott identifica uma postura em alguns estudos sobre a escravidão, dos autores Genovese e Mullin, que tentam criar
uma oposição entre a “resistência real” e as formas de ação praticadas pelos escravos, que não poderiam ser
consideradas enquanto tais, como resistência, porque não visariam transformar o sistema de dominação. Desta maneira,
o conceito resistência teria algumas características: a) seria organizada, sistemática e cooperativa; b) seria baseada na
abnegação; c) teria conseqüências revolucionárias; d) incorporariam idéias ou intenções que negam as bases da
dominação em si. Por oposição, as formas de ação dos escravos seriam a) individuais, localizadas e descoordenadas, b)
baseadas no auto-interesse; c) não teriam efeitos revolucionários sobre o sistema de dominação; d) não faria a crítica
deste sistema em si. (Scott, op.cit, p. 23-24). Scott faz a crítica desse pressupostos, mostrando que na realidade ações
individuais e sem nenhuma coordenação poderia ter conseqüências revolucionárias, como o caso das “deserções durante
a revolução russa”; a partir do mesmo exemplo, já que não existiu contradição entre o interesse individual do soldado
em sobreviver e o efeito político revolucionário, o interesse em debilitar o Exército enquanto instituição repressiva.
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
19
que tradicionalmente prevalecem nos estudos, o segundo abrangia uma ampla variedade de fatos
que estavam sendo teoricamente descartados. (Scott, op.cit, p.24).
As formas cotidianas de resistência se apresentam normalmente como informais,
individuais e anônimas, e frequentemente se expressam em certas técnicas (como o furto, a
sabotagem, o boicote, a sabotagem, a agressão física, a dissimulação). O que permite afirmar a
existência de formas cotidianas de resistência é a emergência de padrões de ação (Scott, op.cit,
p.26) A resistência é formal, coletiva e pública e se expressa em técnicas como as ocupações de
terras e manifestações em vias públicas. Mas é importante observar que são várias as combinações
possíveis entre ações formais e informais, coletivas e individuais, públicas e anônimas, de maneira
que é possível haver ação coletiva anônima e ação individual pública, por exemplo. (Scott, op.cit, p.
p.28-29) O problema do contexto global e da conjuntura histórica especifica é fundamental para o
estudo da resistência, já que esta é determinada tanto pelos níveis de repressão, quanto pelas
condições econômico-sociais.
A resistência, enquanto ação negativa de oposição, e afirmativa de reivindicação e realização
de demandas, é caracterizada por um elemento geral: “O objetivo da resistência camponesa não é
diretamente superar ou transformar um sistema de dominação porém ao contrário é sobreviver
nele hoje, esta semana, esta estação ...”. (Scott, op.cit, p. 30)
Mas é necessário pensar a resistência sempre em relação às estruturas de poder e dominação
nas quais elas surgem. Para fazer isso adequadamente nós precisamos dar um relato das estruturas e
processos de poder, e não apenas das formas institucionais, porém também seu exercício nas
múltiplas situações e meios locais informais, o que Foucault denomina suas formas capilares,
técnicas polimorfas de subjugação, ou seja, a microfísica do poder. Ao mesmo tempo nós
"necessitaríamos relacionar as concentrações especificas de poder, sejam formalmente
institucionalizadas ou não, ao Estado, ao bloco no poder, aos grupos dominantes e etc. Em outras
palavras, não é possível um adequado estudo das formas de resistência sem um anterior e
simultâneo estudo das formas de dominação, não tendo sentido apreender as formas e estratégias de
resistência apenas como “realidades em si”. (Turton, 1986, p. 39)
1.2 - Como Dominar? “colaboração de classe” e “formas cotidianas de colaboração”.
Uma questão fundamental que surge nas reflexões sobre o estudo da resistência tal como
delineada por Scott, é o problema da definição das fronteiras entre o que pode ser considerado ou
não como resistência. Esta preocupação se expressa tanto pela consideração crítica em distinguir
que o exercício de certas técnicas de luta política contra membros da classe “baixa” de uma
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
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sociedade, que não podem ser considerados como “resistência”, quanto pela afirmação conclusiva
de seu artigo:
“One of the key questions that must be asked about any system of domination is the extent to
which it succeeds in reducing subordinate classes to purely ´beggar thy neighbour´ strategies
for survival. Certain combination of atomization, terror, repression, and pressing material
needs can indeed achieve the ultimate dream of domination; to have the dominate exploited
each other.” (Scott, op.cit, p. 30)
Aquilo que Scott chama de “as armas do fraco” (a dissimulação, a desobediência, o furto, a
sabotagem) podem ser empregadas contra diferentes sujeitos, tais “técnicas de luta” podem ser
empregadas para a resistência e para a dominação (Scott e Turton falam que tais formas de
resistência não são monopólio dos grupos dominados), ou seja, são técnicas gerais da luta política.
Na definição da resistência, o fundamental é que tais técnicas são empregadas contra os grupos
dominantes, e por isso é possível falar de uma resistência de classe.
Na realidade existe uma terceira “variável prática” entre a resistência e a dominação: é a
colaboração, que poderia ser considerada num nível geral como uma forma alternativa e antagônica
a da luta de classes, uma forma que concilia e sintetiza interesses, gera mediações, multiplica
contradições. Nas suas reflexões, Christine P.White, analisando o caso do Vietnã, mostra como os
mesmos camponeses que opunham resistência aos colonialismos, podiam servir de mão-de-obra em
empreendimentos coloniais (White, 1986,p.55). O artigo de White ainda chama a atenção para um
fator fundamental: a dinâmica da luta política, a mudança na correlação de forças provocada pela
própria “resistência”, faz com que a “colaboração” se torne uma demanda do Estado, do Governo
ou das elites dominantes. Como no trecho abaixo:
“If the peasant majority is held to play a major role in the making of history, then established
rule, however oppressive and exploitative, depends in large measure, upon their collaboration
or compliance with the system. Therefore we must add a inventory of everyday forms of peasant
collaboration to balance our list of everyday forms of peasant resistance: both exist, both are
important.” (White, 1986,op.cit, 55-56)
A emergência e a ascensão das formas de resistência, faz com que sejam valorizadas
simultaneamente as formas de “colaboração”.
É preciso buscar uma definição conceitual do que estamos chamando de “colaboração de
classe” e sua aplicabilidade a cada situação concreta. Podemos falar de colaboração de classe,
como sendo: 1) Qualquer ação por membros de uma classe dominada que, visando evitar o
confronto e a luta, cria uma convergência de objetivos e demandas com os membros da classe
dominante (incluindo os aparelhos e instituições estatais de poder) e que tem como efeito o
compartilhamento de interesses com estas classes superiores ou alguma de suas frações ou grupos
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
21
concretos. 2) Ou inversamente, qualquer ação de membros da classe dominante que siga a mesma
mecânica.
Desta maneira, a colaboração se coloca como uma forma de compartilhar interesses e
expectativas, de criar identidades entre os grupos sociais dominados e aqueles que os dominam, seja
através de idéias, seja através de empreendimentos comuns, seja pela delegação de tarefas ou
formas de reciprocidade. Da mesma maneira que a resistência se define em relação à dominação, a
colaboração só se define em relação à dominação e a resistência. As suas formas concretas são
determinadas pela dinâmica dominação/resistência e sua correlação de forças. As “técnicas” que
expressam esta colaboração podem ser múltiplas, incluindo as mesmas técnicas gerais da luta
política sinalizadas acima. Além disso, poderíamos seguindo uma mesma linha de raciocínio,
distinguir entre a colaboração firmada entre chefes e lideres políticos, associações formais ou
organizações coletivas (por meios de tratados, acordos formalmente estabelecidos) das formas
cotidianas de colaboração (submissão voluntária, adesão às ordens, delação, oferta de trabalho, etc).
A identificação da tríade dominação-resistência-colaboração, e a definição conceitual do que
é resistência e o que é colaboração, exige que alcancemos uma definição igualmente precisa do
conceito de dominação, pois somente assim estaremos alcançando um quadro mais amplo dos
mecanismos e ferramentas necessários à análise das relações de poder.
Neste sentido, a obra de Michel Foucault apresenta bases importantes. Alguns dos seus
artigos refletem sobre as bases metodológicas e teóricas do estudo das relações de poder,
especialmente “Soberania e Disciplina” e “Governamentalidade”. Aqui Foucault traça algumas
orientações específicas para o estudo das relações de poder e da dominação. A sua preocupação
principal é fugir a um “modelo jurídico” (que sublimava a dominação, ao criar a soberania, a
legitimidade das relações de comando-obediência):
“Por dominação eu não entendo o fato de uma dominação global de um sobre os outros, ou de
um grupo sobre outro, mas as múltiplas formas de dominação que podem se exercer na
sociedade. Portanto, não o rei em sua posição central, mas os súditos em suas relações
recíprocas: não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas sujeições que existem e
funcionam no interior do corpo social..”. (Foucault, 2004, p. 100)
Vemos aqui um procedimento teoricamente decisivo e controverso: a dominação deixa de ser um
fato exclusivamente coletivo (de grupos em relação outros grupos), centralizado (de um centro de
poder em relação aos múltiplos pontos da sociedade) e vertical (de grupos dominantes para os
dominados). A definição de dominação de Foucault abrange as formas individualizadas e
localizadas de dominação, descentralizadas e digamos horizontais (entre os “súditos”, ou seja, entre
aqueles que estão numa mesma posição ou linha de classe).
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
22
Tomando esta definição geral como ponto de partida, Foucault apresenta 5 precauções
metodológicas para a análise das relações de poder: 1ª) captar o poder em suas extremidades, em
suas últimas ramificações, lá onde ele se torna capilar; captar o poder nas suas formas e instituições
mais regionais e locais, principalmente no ponto em que, ultrapassando as regras de direito que o
organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra em instituições, corporifica-se em técnicas e se
mune de instrumentos de intervenção material, eventualmente violento; 2ª) “não perguntar porque
alguns querem dominar, o que procuram e qual é sua estratégia global, mas como funcionam as
coisas ao nível do processo de sujeição ou dos processos contínuos e ininterruptos que sujeitam os
corpos, dirigem os gestos, regem os comportamentos; 3ª) não tomar o poder como um fenômeno de
dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de
uma classe sobre as outras. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como
algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns,
nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas
malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de
sofrer sua ação; nunca são os alvos inertes ou consentidos do poder, são sempre centros de
transmissão. 4ª) “Deve-se fazer uma análise ascendente do poder: partir dos mecanismos
infinitesimais que têm uma história, um caminho, técnicas e táticas e depois examinar como estes
mecanismos de poder foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados, subjugados,
transformados, deslocados, desdobrados, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de
dominação global”. “Não é a dominação global que se pluraliza e repercute até embaixo. Creio que
deva ser analisada a maneira como os fenômenos, as técnicas e os procedimentos de poder atuam
nos níveis mais baixos; como estes procedimentos se deslocam, se expandem, se modificam; mas
sobretudo como são investidos e anexados por fenômenos mais globais; como poderes mais gerais
ou lucros econômicos podem inserir-se no jogo destas tecnologias de poder que são, ao mesmo
tempo, relativamente autônomas e infinitesimais”; 5ª) “Tudo isto significa que o poder, para
exercer-se nestes mecanismos sutis, é obrigado a formar, organizar e por em circulação um saber,
ou melhor, aparelhos de saber que não são construções ideológicas” (Foucault, 2004, p. 100-104).
Estas 5 orientações têm um objetivo estratégico: evitar a influência do “pré-concebido” no
estudo das relações de poder e dominação (que pode aparecer como a visão jurídico-formalista que
sublima a dominação; ou ainda a análise que ele denomina descendente (que parte do centro do
poder para as extremidades moleculares), como as formas que fazem derivar todas as formas de
dominação locais de um centro ou dos interesses de uma classe dominante). Além deste objetivo, de
evitar o pré-concebido, existe também um esforço em evitar a análise da dominação pelo discurso
de quem domina, o que leva a Foucault a afirmar a centralidade das práticas locais/localizadas. Ou
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
23
seja, busca-se a critica da análise “idealista” da dominação, que parte das idéias (discursos, metas,
representações) que as instituições que exercem a dominação produzem ou de teorias existentes.
Entretanto, fica o risco de ao promover estes deslocamentos, criar uma visão “localista” e
pulverizada dos processos de dominação e do ponto de vista metodológico, criar outras formas de
pré-concebido. Uma forma de viés empirista, que só valorizaria as experiências em si; outra forma,
de viés localista, que tentando fugir a determinação estrita do local pelo central, cria uma
“autonomia” total dos campos específicos que não se verifica no plano dos objetos reais e
concretos. Neste sentido, para evitar estas distorções metodológicas, é preciso fazer algumas
ênfases específicas sobre as orientações propostas.
Foucault não nega a existência de processos gerais de dominação. Na realidade a “análise
ascendente do poder” que procede “de baixo para cima”, obriga a remontar toda a estrutura, o
contexto global da dominação, só que num sentido inverso. E além disso, as “formas locais de
poder e dominação” (como verificadas nas instituições psiquiátricas, no controle da sexualidade e
etc) podem ser “anexadas, colonizadas pelas formas gerais e globais” apesar de não serem
meramente derivadas ou deduzidas delas. Ou seja, não se trata de negar a relação entre as formas
particulares e a estrutura geral de dominação, mas de especificar qual o tipo de relação que podem
manter entre si relações estas que variam no tempo e espaço.
Uma outra dimensão está relacionada à interação entre o que estamos chamando de
dominação vertical/dominações horizontais. A dominação vertical seria aquela exercida entre
grupos e classes derivada de uma clivagem global; as dominações horizontais, múltiplas e
polimorfas, que se engendram dentro da mesma linha ou condição de classe, nas relações
interindividuais ou diádicas dentro de grupos e instituições localizadas. Neste sentido, podemos
falar que a circularidade do poder” e o “exercício em cadeia” do poder e da dominação
dominação central que se combina e exerce através de dominações locais implicam na
combinação das formas horizontais com as formas verticais de dominação. Assim temos um quadro
complexo: quando afirmamos que todos estão em posição de “exercício do poder” não significa que
todos estão em condições de exercício do mesmo tipo de poder (tanto em termos de tecnologias,
quanto de intensidade e objeto de incidência), assim, existe uma estratificação da capacidade
política, do poder.
Duas possibilidades teóricas se abrem, e é preciso determiná-las porque elas ocuparão um
importante lugar em nossa análise: a idéia dos “sem-poder” (powerless) deixa de ter substância; a
idéia de circularidade do exercício do poder associada à noção de colaboração de classe e as formas
cotidianas de colaboração, no sentido que os poderes (sejam os globais e gerais do Estado e da
Burguesia, sejam os locais e específicos do médico do pedagogo) não são auto-suficientes; eles
demandam uma cadeia de comando, formas de compartilhar decisões, criar consenso, enfim,
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
24
engendrar colaborações. São as dominações horizontais que existindo autonomamente e
exatamente por isso, por não exigirem qualquer plano global que as tornariam inviáveis
aumentam a eficácia da dominação vertical. A multiplicidade das formas de dominação horizontais
não entra em contradição com a unidade da dominação vertical de uma classe sobre outra; na
realidade é seu complemento.
Podemos dissociar o conceito de dominação do conceito de poder; a relação de poder não se
resume à dominação, mas sim a luta, ao confronto de forças. Em toda a cadeia de dominação e de
relações de poder, não existe nenhuma posição completamente desprovida de poder; em termos
gerais podemos dizer que o poder do “dominado” é o de resistir e revoltar-se; o poder do
“dominador” é o de impor sua autoridade e/ou extrair colaboração. A relação de poder oscila assim
entre resistência, dominação e colaboração, entre formas convencionais e cotidianas ou
moleculares/capilares das três, o que expressa a sua circularidade.
Desta maneira, quando analisamos as relações de poder, estamos na realidade analisando a
luta; a luta pelo poder, a luta por recursos materiais, a luta pelo saber, enfim, a luta. Resistência,
dominação, e colaboração são variáveis dentro da luta, que se torna o eixo organizador em função
do qual as três formas anteriores tem de ser compreendidas.
Os estudos de resistência levantam um problema importante quando colocam a seguinte
questão: a resistência se dá contra efeitos da dominação ou contra a dominação em si? Responder
esta questão significa identificar os próprios limites dos efeitos da luta e da resistência: ela é capaz
ou não de provocar a mudança social, ou se inscrevem dentro dos limites da reprodução social.
Esta questão permite uma articulação com o problema da dominação exercida por “dominados
sobre dominados”, e também à problemática levantada pela antropologia política africanista sobre a
distinção entre mudanças na distribuição do poder dentro de um sistema e a mudança no próprio
sistema de poder. Todas essas abordagens remetem a uma questão mais geral: qual é o papel do
conflito e da luta, em sentido geral, e da luta de classes em particular, dentro das sociedades? Este
tema levantado pelos estudos de resistência e que remete a um problema geral da mudança e
reprodução das estruturas de dominação e dos sistemas sociais - já tinha sido postulado então de
uma outra maneira na antropologia e nas ciências sociais, de maneira que é possível fazer um
dialogo entre as diferentes abordagens. É a essa tarefa que nos dedicaremos agora.
1.3 - A Política na Antropologia e a Teleologia da Ordem.
A questão que poderíamos chamar de “mudança social” é um tema recorrente dentro da
antropologia. Nos estudos de Lewis Morgan sobre a sociedade primitiva, a noção de “evolução”
funciona como operador descritivo de um processo de mudança gradual e cumulativo, medido
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
25
especialmente pelo grau desenvolvimento técnico e econômico que se expressaria na organização
social e política. Décadas depois, autores como Radcliffe-Brown, Gluckman, Evans-Pritchard
abordariam uma problemática similar nos estudos de antropologia política dos grupos africanos.
A antropologia política foi definida pelos antropólogos como uma “sub-disciplina da
antropologia social” ou como “projeto temático-investigativo” (ver Balandier, 1969, e Vincent,
1997, Oliveira Filho, 1986). Um conjunto de estudos dedicados à política levantou uma série de
questões teóricas, criaram conceitos, tipologias e estabeleceram um campo de referências teórico-
epistemológicas. (Vincent, op.cit,p.428).
No período inicial, o evolucionismo seria a principal teoria social a interpretar o fenômeno
da política e da mudança. Os primeiros estudos sobre a “organização política” foram realizados
entre os povos nativo-americanos pelo Etnhology Bureau of the Smithonian Institution em 1879.
Herbert Spencer e Lewis Morgan forneceram a estrutura conceitual para estes estudos. Os estudos
de Morgan fixariam as bases do estudo da organização política que seguiu em parte as idéias de
Henry Maine. Estes estudos criariam uma distinção básica, que seria legada posteriormente para a
antropologia política, entre sociedades baseadas no parentesco e sociedades baseadas no território
(ver Oliveira Filho, 1988, Vincent, 1997, p. 428; Balandier, 1969, p.16-18, e Saffo, 1986 p.45).
Desta maneira, as primeiras formulações sobre as instituições e relações políticas na
antropologia estavam profundamente imbricadas nas categorias evolucionistas e sua estrutura
cognitiva, na distinção primitivo/civilizado, que marcaria a especificidade do “objeto” e da própria
disciplina. A terminologia evolucionista foi transformada e abandonada em favor de outras, pelas
novas correntes teóricas (neo-evolucionista, estrutural-funcionalista, estruturalista). Tais como pelos
norte-americanos o uso da tricotomia “sociedade igualitárias - hierarquizadas - estratificadas”, ou
entre os franceses e ingleses pela terminologia “de sociedades primitivas (ou simples ou de
pequena-escala) e avançadas ou complexas”. (Vincent, 1997, p 429).
A grande ruptura teórica, a definição e a proposta de uma antropologia política se daria nos
anos 1930, principalmente por meio dos estudos dos africanistas, da geração de antropólogos
imediatamente posterior a Malinowski e Radcliffe-Brown. A obra de referência e fundação da
antropologia política é “African Political Systems”, de E. Evans-Pritchard e Meyer Fortes. Com ela
é que surge a distinção dicotômica, agora entre sociedades com estado (states) e sociedades sem
estado (stateless). Esta distinção seria adotada, empregada, questionada e complexificada ao longo
do tempo (ver Saffo,1986). Deslocamentos teóricos viriam com os estudos de Edmund Leach
Sistemas Políticos da Alta Birmânia” e de Max Gluckman, que enfatizariam o conflito e a
dinâmica de mudança social. Nos anos 1960, este impulso seria aprofundado pelos antropólogos da
chamada “teoria da ação” e do processualismo” que dariam cada vez maior atenção ao estudo do
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
26
conflito e da competição política.(ver Balandier, 1969, Palmeira & Goldman, 1996 e Vincent,
1978).
Desta maneira a antropologia política se constitui na tensão entre um impulso tipológico-
classificatório e uma abordagem dinâmica-conflitiva, em que a ênfase é dada ao estudo de
processos políticos, conflitos e transformações. Temas/objetos como “a origem do Estado”, a
“transição de sistemas políticos sem-estado para sistemas estatais”, ou de outro lado, mudança
social, rebelião, clientelismo, faccionalismo, se colocam assim como domínios constitutivos da
antropologia política nas suas diferentes fases (ver Vincent, op.cit).
O estudo da organização política entre os povos colonizados se desenvolveu num primeiro
momento dentro de uma teoria geral da mudança da sociedade (o evolucionismo). Mas quando esta
problemática é retomada no African Political Systems (1940), ela tem um significado diferente. Em
primeiro lugar, não se supõe mais a base técnica e produtiva como critério de avaliação principal da
mudança nas sociedades. Em segundo lugar, a “teleologia” e teoria da história que tomava a noção
de “evolução” (como acúmulo de progressos) como centro também desaparece.
O texto de introdução dos “Sistemas Políticos Africanos” pode deixar transparecer uma
visão relativamente equivocada do lugar da mudança social dentro daquelas pesquisas, como se ela
não fosse considerada: “Several contributors have described the changes in the political systems
they investigated which have taken place as a result of European conquest and rule. If we do not
emphasize this side of the subject it is because all contributors are more interested in
anthropological than in administrative problems.” (Fortes & Evans-Pritchard, 1969, p.1)
No desenvolvimento da introdução dois subitens marcam a preocupação com o problema da
mudança social, o “X O Balanceamento de Forças no Sistema Político” e o “XII Diferenças nas
Respostas ao Governo Europeu”. A questão colocada é que os Sistemas Políticos Africanos estão
em “equilíbrio”, não em “estática” (Fortes & Evans-Pritchard, 1969, p.11-13).
No texto de prefácio, de Radcliffe-Brown, vemos que há uma formulação teórica muito clara
sobre a temática da mudança: “Social structure is not to be thought of as static, but as condition of
equilibrium that only persists by being continually renewed, like the chemical-physiological
homeostasis of a living organism. Events occur which disturb the equilibrium in some way, and a
social reaction follows which tends to restore it.” (Radcliffe-Brown, 1969, p. xxii). Logo não se
trata de supor que a mudança social é recusada enquanto problema, na realidade ela é definida e
inserida numa malha de pressupostos teóricos bem determinados, da qual a principal característica é
a tendência para a “ordem”, entendida como a eliminação ou resolução dos conflitos. A “mudança”
atinge somente aspectos parciais (“mudam os reis, mas mantém-se a monarquia”) e ela garante a
restauração da ordem.
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
27
Existiria também um outro enquadramento da mudança; sua transcrição numa certa relação
com as instituições do governo colonial:
“In the societies of Group A, the paramount ruler is prohibited, by the constraint of the colonial
government, from using the organized force at his command on his own responsibility. This has
everywhere resulted in diminishing his authority and generally in increasing the power and
independence of his subordinates. He no longer rules in his own right, but as the agent of the
colonial government. (…) In the societies of the Group B, European rule has had the opposite
effect. The colonial government cannot administer throughout aggregates of individuals
composing political segments, but has to employ administrative agents. For this purpose it
makes use of any persons who can be assimilated to the stereotyped notion of an African chief.
(…) This tends to lead to the whole system of mutually balancing segments collapsing and a
bureaucratic European system taken its place. An organization more like that of a centralized
states come into being.” (Fortes & Evans-Pritchard, 1969, p. 15-16
O impacto do Governo e Administração Colonial levaria também ao problema da mudança
social: só que o efeito seria o inverso à situação encontrada nos sistemas políticos antes da
conquista: no caso das sociedades estatais existiria uma tendência à relativa fragmentação das
unidades anteriormente centralizadas (pela violência imposta pelo colonizador e pelo acirramento
das contradições internas); nas sociedades sem-estado existiria uma centralização imposta pelo
colonialismo. Assim, a mudança social provocada pelo colonialismo levaria a transformação (e
extinção) dos sistemas políticos africanos (aqui é posto o problema da passagem do chamado
“Estado-Primitivo” ao “Estado Moderno”, e das Sociedades sem Estado as “Sociedades-Estatais”).
Desta maneira chegamos ao cerne de uma concepção da mudança social: ou a mudança é apenas
uma etapa na restauração da ordem e reprodução social ou ela é um estágio num processo
inexorável de desaparecimento das sociedades colonizadas.
Então podemos afirmar que a mudança social é provocada por dois tipos de conflito: nas
sociedades estatais há um conflito entre “poder central” e “poderes regionais”, e nas sociedades
sem-estado entre os diferentes “segmentos territoriais”, linhagens e clãs, que tendo interesses iguais,
tendem para o conflito e a disputa.
Dentro do conjunto das proposições levantadas pelos organizadores, o que se delineia é um
modo de percepção/concepção, de “domesticação” da mudança social, organizado a partir de certos
pontos cardinais que determinam simultaneamente o que é a mudança, seus tipos e seu lugar o que
expressa senão numa teoria, pelo menos uma concepção geral acerca da sociedade. Para entender
como operam estes pontos de referência da analítica da mudança social, é preciso entender o
conjunto da formulação sobre os sistemas políticos africanos.
Assim, não se trata de afirmar que os estudos contidos no livro “Sistemas Políticos
Africanos” carecem de uma visão da mudança e dinâmica, mas sim de fazer a crítica das bases
cognitivas, epistemológicas da concepção de mudança ali engendrada. Na realidade é preciso
perceber a sutil, mas profunda diferença entre as duas metáforas da “estática” e do “equilíbrio”; os
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
28
estudos fundadores da antropologia política não supunham que as sociedades não mudassem (ou
seja, que fossem estáticas), mas eles só consideravam que as mudanças tendiam a uma restauração
da ordem, o que supõe mudanças contínuas que seguiam sempre na mesma direção. O que é
cognitivamente recusado é a noção de luta, conflito, desordem ou anarquia.
Esta preocupação com a “ordem” se manifesta em diferentes momentos, tanto no texto de
Fortes & Evans-Pritchard,quanto de Radcliffe-Brown.
“In studying political organization, we have to deal with the maintenance or establishment of
social order, within a territorial framework, by the organized exercise of coercive authority
throughout the use, or the possibility of use, of the physical force. In well-organized states, the
police and army are the instruments by which coercion is exercised. Within the state, the social
order, whatever it may be, is maintained by punishment of these who offend against the laws
and by the armed suppression of revolt.” (Radcliffe-Brown, 1969, p. xxii).
No texto da introdução vemos também a preocupação com a noção de ordem: “Upon the
regularity and order with wich this whole body of interwoven norms is maintained depends the
stability and continuity of the structure of an African Society.(Fortes & Evans-Pritchard, op.cit, p.
20). Desta maneira, os temas e problemas colocados irão se articular sempre com este núcleo
gerador: crime, conflito, normas, remetem sempre a noção e uma concepção de “ordem”. A ordem é
ao mesmo tempo o ponto de partida e de chegada, o valor máximo que organiza e o “objetivo”
último da sociedade e da ciência. Estas são bases cognitivas que convergem com os múltiplos
discursos da dominação.
Foi com muita propriedade que Roberto Cardoso de Oliveira apontou em seu texto “A
Categoria de (Des)ordem e a pós-modernidade da antropologia” o peso da categoria ordem,
enquanto estrutura cognitiva, na sociologia e antropologia. Uma análise dos principais conceitos
dessas disciplinas mostra como estão marcados pela noção de ordem.
Se existia uma “teleologia da evolução” nos primeiros estudos da organização política,
podemos dizer que existiu também uma “teleologia da ordem”. Evolução e Ordem foram as
principais formas de codificação da mudança social. A preocupação contínua com a “restauração da
ordem” e da soberania da lei se impôs e não há um limite claro entre a descrição desta tendência e a
afirmação da necessidade dela. Encontrar a “ordem” passou a ser o objetivo da descrição analítica.
Existe, digamos, a emergência e (convergência) de uma temática “positivista” nos estudos da
antropologia política (não no sentido que eles derivem do positivismo enquanto proposta cientifica,
mas no sentido que as afirmações teóricas principais colocam como centro o problema da
restauração da ordem). Essa temática positivista da ordem foi incorporada à sociologia através das
formulações de Durkheim, fundamentadas em Comte, e depois assimiladas em certo sentido tanto
pela escola estruturalista quanto estrutural-funcionalista. Isto é conseqüência menos do
“positivismo” enquanto doutrina do que das posições de classe, profissionais e institucionais dos
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
29
antropólogos (e do lugar da antropologia enquanto saber e disciplina) no mundo colonial (as bases
materiais e posicionamentos de classe que engendraram o positivismo enquanto forma de crítica da
“desordem” eram similares aos da antropologia; ambas procuravam falar ou falavam de dentro do
Estado-Nacional).
Esta teleologia da ordem (que leva a idéia de que o principal traço da sociedade era controlar
o crime e o conflito) condena a luta de classes e o conflito a uma “condição patológica”, no sentido
que a sociedade tende sempre a corrigi-lo. Obviamente, não é possível realizar uma análise das
relações de poder nos termos definidos anteriormente sem uma profunda crítica (política e
epistemológica) desta teleologia da ordem, que implica a recusa da luta de classes ou do conflito
em geral (e das múltiplas formas que ele pode assumir) na análise cientifica.
E como indicado por Roberto Cardoso, esta teleologia ou paradigma da ordem, perpassa
tanto as temáticas quanto os próprios conceitos centrais da antropologia. Podemos falar que um
exame crítico de dois dos principais conceitos da disciplina, sociedade e cultura, é necessário
exatamente para compreender como a idéia de ordem determina suas definições, e como por outro
lado, é preciso reformular o enquadramento teórico dos conceitos para inseri-los num outro
paradigma.
1.4 – A crítica da crítica da antropologia: os conceitos de “sociedade e cultura”
Para entender as posições teóricas assumidas nos estudos de antropologia política é preciso
fazer um estudo genealógico dos próprios conceitos e temas estruturantes e geradores da
antropologia enquanto saber científico. É impossível não falar, mesmo que rapidamente da história
da antropologia e das diferentes teorias que se construíram a partir de diferentes objetos. Nesse
sentido as próprias “formas científicas de classificação” dos saberes e disciplinas podem se
constituir num ponto de partida: “...Meyer Fortes distinguiu duas tradições na antropologia sócio-
cultural: uma sociológica que ele associou com Maine, Morgan, MCLennan e seus descendentes
estruturais funcionalistas; uma cultural que ele associou com Tyler, Frazer e a escola Boasiana”.
(de Zengotita, 1984, p.10).
Dessa maneira, os conceitos de “sociedade e cultura” foram fundamentais para agregar,
mesmo a posteriori, um conjunto heterogêneo de teses, objetos e métodos oriundos de diferentes
teorias (evolucionismo, difusionismo, estrutural-funcionalismo, estruturalismo e processualismo) e
definir em termos mais amplos, identidades e linhas de descendência teóricas e metodológicas
dentro da antropologia e das ciências sociais. De uma certa maneira, estas duas grandes “formas da
antropologia” social e cultural se construíram relativamente por oposições pontuais e táticas,
tanto numa ordem conceitual geral quanto na explicação de processos específicos.
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
30
Os conceitos “sociedade e cultura” normalmente funcionavam por realizar a fusão de
“palavras e coisas”, no sentido que tendiam a ser ao mesmo tempo conceitos do pensamento
científico e realidades objetivas que eram tomadas como objetos de estudo. As críticas recíprocas
dos conceitos de “cultura” e de “sociedade” na realidade acabam por provocar um efeito de
deslocamento importante: desloca-se a atenção dos conjuntos teóricos mais amplos em que tais
conceitos se enquadram e dos contextos de formação dessas categorias (ou pelo menos do
significado que se consolidaria dentro das ciências sociais). E estes contextos explicitam alguns
pontos de convergência importantes. É esta convergência epistemológica e política que
pretendemos elucidar.
Com relação ao conceito de sociedade, trata-se menos de determinar a sua origem que a
gênese de seu sentido e de sua centralidade dentro de uma certa linha do pensamento cientifico. A
explicação que passou a recorrer à noção de sociedade, fazia parte de um movimento de
racionalização que procurava opor-se as explicações religiosas e biológicas, procurando assim
razões sociais. Podemos indicar aqui o livro “A Sociedade Antiga” de Lewis Henry Morgan como
uma matriz importante para essa reflexão4.
O conceito de sociedade e indissociavelmente ligado a ele, o de evolução (e/ou progresso)-
estrutura uma das linhas de construção da análise antropológica e sociológica. O conceito de
evolução foi para a antropologia no século XIX um centro de gravidade sobre o qual tudo mais se
apoiava, teoria e métodos de pesquisa. Sabe-se que este momento da segunda metade do século
XIX é crucial para a definição da própria antropologia enquanto ciência (Stocking Jr, 1984 e 1991).
Com uma análise do conteúdo de certos elementos do pensamento evolucionista de Morgan,
poderemos delimitar alguns problemas importantes. No prefácio do primeiro volume do livro “A
Sociedade Antiga”, o autor indica três categorias de fatos que marcariam o “desenvolvimento ou o
progresso” das sociedades pelos três diferentes períodos étnicos (selvageria, barbárie e civilização):
o Estado, a Família Monogâmica e a Propriedade. O seu livro inteiro descreve como as inovações
tecnológicas e as instituições se desenvolvem paralelamente através dos diferentes períodos étnicos,
sendo que:
“A idéia de propriedade, finalmente, formou-se lentamente no espírito humano, mantendo-se
embrionária e pouco desenvolvida durante períodos extremamente longos. Surgiu no período
do estado selvagem, mas foi necessária toda a experiência adquirida durante certo período e no
seguinte, o da barbárie, para que o germe desta idéia se desenvolvesse e o espírito humano
estivesse apto a submeter-se a sua influencia e ao seu domínio. A sua predominância como
sentimento marca o início da civilização”. (Morgan, op.cit,p. 16).
4
Sem esquecer também os estudos de Augusto Comte dos anos 1820 e Emile Durkheim dos anos 1890, que tomariam o
“social e a sociedade” como eixo de estruturação de uma prática e teoria científica. Sobre o positivismo falaremos mais
adiante.
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
31
A noção de evolução encerrava e sintetizava ao mesmo tempo uma espécie de auto-imagem
positivada e um conjunto de atributos que afirmavam a superioridade de determinadas “sociedades”
sobre outras (superioridade de conhecimento, tecnologia, organização). Logo, o conceito de
sociedade aparece como parte de um processo histórico geral que tendia a diferenciar estas
sociedades; também criava um esquema classificatório “hierarquizante” que subordinava todos os
povos as formas superiores de civilização. É como arremata Kuper:
“Primitive society was organic whole. It then split into two or more identical building blocks.
(This idea went back to Spencer). The components units of society were exogamous, corporate
descent groups. By 1880s it was generally agreed (despite Maine’s continued dissent) that these
groups were ´matriarchal´, tracing descent in the female line. (...) These social forms, no longer
extant, were preserved in the languages (especially in kinship terminologies), and in the
ceremonies of contemporary ´primitive peoples´.
It is striking how much agreement there soon was even on matters of detail. By the last decade
of the nineteenth century, almost all the new specialists would have agreed with the following
propositions.
The most primitive societies were ordered on the basis of kinship relations
Their kinship organization was based on descent groups
There descents groups were exogamous and were related by a series of marriage exchanges
Like extinct species, these primeval institutions were preserved in fossil form, ceremonies and
kinship terminologies bearing witness to long-dead practices.
Finally, with the development of the private property, the descent groups withered away and a
territorial state emerged. This was the most revolutionary change in the history of humanity. It
marked the transition from ancient to modern society. (Kuper, 1988, p.6-7).
Logo, as idéias de Estado e Propriedade Privada, com destaque para esta última, seriam os
indicadores principais da civilização entendida como evolução ou progresso das sociedades
humanas
5
. Poderíamos citar ainda o exemplo de Henry Maine, “Ancient Law”, livro que trata da
evolução noções de contrato, herança e propriedade na sociedade antiga, tomando por base o
Império Romano, e que é situado também dentro da história da antropologia
6
.
Na realidade, o conceito de “sociedade” tal como incorporado na análise evolucionista, se
confunde com o de “sociedade civil”, ou seja, “sociedade burguesa”, que é erigida em modelo e
última forma de sociedade (modelo a partir do qual as demais sociedades denominadas “primitivas”
são concebidas e hierarquizadas). O nascimento da “sociedade civil”, indicado por Morgan como
marco da “civilização” permite a formulação de um conceito de sociedade que em termos gerais
tenta reproduzir positiva ou negativamente todos os traços da sociedade civil ou burguesa
(positivamente no sentido de que estabelece como parâmetros certos traços e procura encontrá-los
5
As categorias evolução e progresso aparecem de forma eventual dentro do prefácio, mas designando sempre o
movimento de ascensão de um estágio a outro dentro do esquema classificatório de Morgan.
6
Na história da antropologia de Eduard Evans-Pritchard, Maine e Morgan ocupam lugares destacados na formação da
disciplina, junto com Eduard B.Tylor, James Frazer e Mclennan. Stocking Jr os inclui também dentro do grupo
formador da antropologia, que iriam dar a dinâmica do desenvolvimento posterior da disciplina.
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
32
nas demais sociedades; negativamente, no sentido que as sociedades podem ser definidas pela
ausência de tais traços).
Basta ver que as noções civilization, civilité, formadas a partir do século XVIII, são
derivativos modernos de conceitos da antiguidade, como civilitas (ver Elias, op.cit, p. 68). Essa
etimologia encerra em si uma profunda importância para o ordenamento simbólico-social do mundo
moderno. A “sociedade civil”, e a projeção nela de toda a superioridade do ocidente, encontra
paralelos na função material e ideológica que ela cumpriu na antiguidade e também na Idade Média:
“In the writings of the Cicero, Virgil, Livy, Polybus, Tacitus and Sallust the authors, on whom
most subsequent theoreticians of empire from Machiavelli to Adam Smith realist most heavily
the Roman Imperium constituted not merely a particular political order, but more significantly,
a distinctive kind of society, whose identity was determined by what came to be broadly
described as the civitas. (...) For the Anciens, both Greeks and Roman, cities were the only
places where virtue could be practiced. They were, crucially, communities governed by the rule
of law wich demanded adherence to a particular kind of life, that of the ´civil society´ (societas
civilis), and which were closed identified with the physical location the citizens happened to
inhabit. (…) (Pagden, 1995, p.17-18).
Da noção de civitas, derivaria tanto “sociedade civil” quanto “civilização”. Categorias e discursos
que como vimos acima estão mais relacionados do que normalmente se pensa.
A noção da sociedade primitiva e do selvagem como integrando um “tempo e um espaço
externo e inferior” ao da civilização se constrói sobre um acervo de conhecimentos históricos que
opera numa longa duração temporal (ver Fabian, 1983). Se o selvagem não cumpriu sempre a
mesma função e não foi sempre apreendido da mesma maneira, em todas as diferentes maneiras
como ele aparecia e aparece no discurso ocidental, ocupa sempre a posição de inferioridade em
relação a civitas (a sociedade civil). E o selvagem nunca fala, é sempre o personagem de um
diálogo imaginário escrito pelos europeus: “A atitude da pessoa em relação ao homem simples na
sua forma mais extrema, o selvagem é em toda parte, na segunda metade do século XVIII, um
símbolo de sua posição no debate interno, social. (Elias, op.cit, p. 55). O selvagem é um
personagem que cristaliza em si todas as qualidades negativas que a civilização/sociedade civil
recusa e supera; na luta permanente entre eles, a vitória pertence (ou tem de pertencer) aos valores
da civilização (propriedade, estado, letramento, erudição, polidez, urbanidade).
A idéia de sociedade civil (caracterizada pela existência da propriedade privada, do Estado e
do individuo) foi uma invenção de filósofos liberais do século XVII, sendo tomada como verdade
histórica por Morgan, Maine, Frazer, não sendo em nenhum momento questionada nas tradições
francesa, inglesa ou alemã dos discursos sobre a cultura. É preciso considerar criticamente este
acervo liberal das bases filosóficas da antropologia. Inclusive porque todos os grandes temas da
antropologia do século XIX e também do início do século XX, correspondem fundamentalmente às
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
33
características atribuídas ao “estado de natureza” dos filósofos liberais e os valores exaltados nas
noções de sociedade, cultura e civilização, aos atribuídos à “sociedade civil”
7
.
A busca de uma crítica e de uma formulação cientifica para o conceito e o estudo da
“sociedade” seria desenvolvida por Augusto Comte e depois pelo principal sistematizador da sua
proposta, Emile Durkheim. É importante observar que tal como concebida por Comte e Durkheim a
idéia de “sociedade” também se inscreve numa concepção geral de história na qual a idéia de
“progresso” ocuparia um lugar central.
É necessário mostrar como esta teleologia da ordem é transmitida dentro dos conceitos,
temas e teses levantados por Comte através de Durkheim, e como esta mesma teleologia surge
também dentro dos usos evolucionistas da idéia de sociedade.
Os estudos de Augusto Comte compreendem obras diversas, como “Opúsculos de filosofia
social: apreciação sumária do conjunto do passado moderno” (1820); “Prospectos dos trabalhos
científicos necessários para reorganizar a sociedade” (1822); “Considerações filosóficas sobre as
idéias e os cientistas” (1825); “Considerações sobre o poder espiritual” (1825-26) e entre 1830-
1854 as lições do Curso de Filosofia Positiva e o “Sistema de Política Positiva ou tratado de
sociologia instituindo a religião da humanidade”. Com relação ao pensamento de Comte, Raymond
Aron observou: “Mas a sociologia que Comte quer criar não é a sociologia prudente, modesta,
analítica de Montesquieu (...) Sua função é resolver a crise do mundo moderno, isto é, fornecer o
sistema de idéias cientificas que presidirá a reorganização social” (Aron, 2002, p.92).
Desta maneira, o pensamento sociológico surge com uma preocupação: a “crise”, provocada
pela transformação de uma sociedade teológico-militar em uma sociedade científico-industrial. A
idéia de uma “reorganização da sociedade” a partir da ciência faz parte da própria análise que
considera que a ciência alçou o lugar central na sociedade moderna.
Um elemento importante no pensamento de Comte, é a recusa da noção de guerra; de acordo
com sua teoria geral do conhecimento e da evolução da sociedade, a emergência da sociedade
científico-industrial tinha eliminado a importância da guerra. “A guerra tinha sido necessária para
obrigar ao trabalho regular homens naturalmente anárquicos e preguiçosos, para criar Estados de
grande extensão, para que surgisse a unidade do Império Romano, na qual se difundiu o
cristianismo e do qual surgiu finalmente o positivismo. A guerra tinha desempenhado uma dupla
função histórica: o aprendizado do trabalho e a formação dos grandes Estados”. (Aron, op.cit,
p.106).
7
Parentesco, magia, religião e totemismo, seriam características contrastantes com aquelas atribuídas as sociedades
européias: o Estado baseava-se no território, não no parentesco, como supostamente os sistemas políticos “primitivos”;
as religiões primitivas contrastariam com o monoteísmo; o pensamento mágico se oporia ao pensamento racional
científico. Por fim, a guerra das sociedades primitivas se oporia a paz e ao direito (enquanto conjunto de normas
jurídicas derivadas do contrato social) da sociedade civil.
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
34
Dois conceitos fundamentais no pensamento de Comte, e que se inscrevem na sua teoria
geral, são os de dinâmica e estática. É como comenta Aron:
“A estática social trouxe à luz a ordem essencial de toda a sociedade humana; a
dinâmica social retraça as vicissitudes pelas quais passou essa ordem fundamental,
antes de alcançar o termo final do positivismo. (...)
À dinâmica está subordinada a estática. É a partir da ordem de toda a sociedade
humana que se pode compreender a história. A estática e a dinâmica levam aos termos
de ordem e progresso (...) No ponto de partida, estática e dinâmica são simplesmente o
estudo da coexistência e da sucessão. No ponto de chegada, são o estudo da ordem
humana e social essencial, de suas transformações e de seu desenvolvimento” (Aron,
2002, p. 122)
Não é que inexista a mudança no pensamento de Comte; na realidade a dinâmica e a estática
estão conjugadas, de maneira que a alternância entre ambas expressa o progresso, que é
caracterizado pela re-instauração da ordem. A mudança é assim subordinada a ordem, num esquema
teórico-histórico, em que a guerra perde sua centralidade para a economia, e a religião para a
ciência.
Mas o que nos interessa aqui é a elevação da teleologia da ordem, presente no pensamento
de Comte, a dimensão central do pensamento sociológico, através de Emile Durkheim, e que se
difundiria em grande medida, através da antropologia social estrutural-funcionalista e estruturalista.
Nas suas obras a Divisão do Trabalho Social” (1893) O Suicídio” (1897) e As Formas
Elementares da Vida Religiosa” (1912), os temas e teses principais apontam nessa direção,
especialmente nas suas duas primeiras obras.
No texto “Da Divisão do Trabalho Social”, ele afirma: “As paixões humanas só se detêm
diante de um poder moral que respeitam. Se falta uma autoridade moral desse gênero, impera a lei
do mais forte; latente ou agudo, há um estado de guerra crônico... (Durkheim, apud in Aron, 2002,
p.457). Há então um problema, uma preocupação que perpassa o estudo da divisão do trabalho e da
sociedade: O que lhe interessa, acima de tudo, chegando ao ponto de obcecá-lo, é a crise da
sociedade moderna, definida pela desintegração social e pela debilidade dos laços que prendem o
individuo ao grupo”. (Aron. Op.cit, p.486).
Em “O Suicídio”, Durkheim desenvolve sua interpretação sociológica do fenômeno. Mas é
na tipologia e na tese que ele estabelece para explicar o suicídio que fica evidente sua concepção de
sociedade centrada numa teleologia da ordem, das normas. Quando ele considera as oscilações
verificadas nas taxas de suicídio, afirma:
“É preciso portanto que nossa organização social se tenha modificado profundamente
no curso deste século para ter determinado de tal modo a elevação da taxa de suicídio.
Ora, é impossível que uma alteração ao mesmo tempo tão grave e tão rápida não seja
mórbida, pois uma sociedade não pode mudar de estrutura com tanta rapidez. Ela só
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
35
adquire outras características mediante uma série de modificações lentas e quase
imperceptíveis e ainda sim as transformações possíveis são limitadas”. (Durkheim,
apud in Aron, 2002 p.490)
Vemos que o estudo da divisão do trabalho e do suicídio remetem ao problema da crise e da
mudança, mas se erigem ao mesmo tempo, numa barreira ao estudo da mudança social, que aparece
associada à crise e a patologia (expressa pela exacerbação das taxas de suicídio e crime, por
exemplo). A mudança social, de uma sociedade teológico-militar para uma sociedade científico-
industrial, é marcada assim pela crise. Seria necessário o re-estabelecimento de uma autoridade
moral que eliminasse as causas da patologia e re-instaurasse a ordem (as normas). A noção de
“anomia” (ausência de normas, ou conflito entre normas que “governam” os indivíduos) seria assim
o conceito que sintetiza ao mesmo tempo a descrição da crise e a sublimação da concepção da
mudança social8.
Essa concepção geral que estrutura o sentido e os usos do conceito de sociedade, estabelece-
se em torno do que estamos chamando de teleologia da ordem; uma visão que ao mesmo tempo
toma como base idéias diferentes, como a de que a mudança é patológica, ou que a mudança está
subordinada a estática e tende sempre a ordem; ou ainda que a mudança é pensada como uma
evolução do simples para o complexo, processo avaliado através da tecnologia e organização social.
Mas o que é fundamental, é que tanto na linha de pensamento que surge através de Comte, quanto
naquela de Morgan, a mudança está subordinada a ordem. Existe uma outra característica
fundamental desta teleologia da ordem: a sociedade civil burguesa é tomada como modelo, como
ponto de referência histórico; suas formas de organização é que são denominadas complexas, suas
características internas (organização político-territorial, tecnologia, padrão demográfico, economia
e valores) é que são utilizadas como critérios de avaliação e hierarquização das sociedades. Quanto
mais distante deste modelo, menor o “status” sociológico (simples, primitivo), quanto mais próximo
dele, maior o status das sociedades (complexas, modernas).
Na concepção evolucionista de Morgan, o Estado surge como uma transformação (por
evolução das condições técnicas e demográficas) que obriga a organização social a passar do
“parentesco ao território” como base do sistema político, enquanto que na linha de pensamento de
Comte, existe uma recusa da noção de guerra, no sentido que ele entende que a sociedade estava
realizando uma passagem de um estágio teológico-militar (o feudalismo) a um estágio científico-
industrial (o capitalismo); a sua teoria geral da realidade prevê assim uma composição entre uma
“dinâmica e uma estática social”, em que a ordem suplanta a mudança e possibilita o progresso; a
guerra e o conflito são recusados no esquema geral, e logo a “luta” é não somente ignorada, mas
8
Em “A Divisão do Trabalho Social” Durkheim desenvolve uma teoria das sanções e do crime, e indica que as sanções
são formas de re-estabelecer a ordem (uma reparação feita à consciência coletiva). (Aron, op.cit, p.468).
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
36
sistematicamente recusada; na concepção evolucionista o Estado aparece como uma aquisição da
civilização; na positivista, como realização da idéia de “ordem” e meio de eliminação da guerra e
do conflito. A combinação histórica entre as visões evolucionista de Morgan e positivista de
Durkheim produziriam um duplo efeito: a recusa do conflito em geral, da luta e da guerra e uma
mistificação histórica acerca da origem do Estado, que nunca é colocado como um problema
histórico concreto, levando-se assim a uma segunda negação da conquista e da dominação, da luta e
da guerra.
O conceito de cultura (que remete a noção de kultur alemã, por sua vez uma noção que se
opunha ao conceito de civilisation) também leva marcas da ordem. Adam Kuper, no livro “Cultura
a visão dos antropólogos” empreende uma análise da gênese do conceito de cultura para explicar
sua significação cientifica e seus usos sociais, e fazer sua crítica
9
. Nesse empreendimento, ele
identifica três grandes discursos nacionais sobre a “cultura”: o germânico, o inglês e o francês, que
se construíram através de oposições e composições, e profundamente vinculados aos contextos
sociais:
“Em nenhum outro lugar, o argumento contra o darwinismo foi formulado com maior
premência e intensidade que nos idos de 1880, em Berlim. O mais proeminente darwinista da
Alemanha, Ernest Haeckel, aduziu conclusões políticas da teoria darwinista que deixou o
próprio Darwin bastante apreensivo. (...)
O dogma de Haeckel espantou seu ex-professor, Rudolf Virchow, maior patologista alemão,
político proeminente de visões liberais e mentor da Sociedade de Antropologia de Berlim. Do
ponto de vista metodológico, sua objeção era quanto a uma conclusão teórica prematura. (...)
O colega de Virchow, Adolf Bastian (que em 1886 se tornou o primeiro diretor do grande
museu de etnologia de Berlim), tentou demonstrar que, assim como as raças, as culturas são
híbridas. (...)
Franz Boas, aluno de Virchow e Bastian, introduziu esta abordagem na antropologia
americana. À medida que esta se desenvolvia numa disciplina acadêmica organizada no início
do século 20, ela era definida por uma luta épica entre Boas e sua escola e a tradição
evolucionista, representada nos EUA pelos discípulos de Lewis Henry Morgan, cujas narrativas
triunfalistas de progresso utilizavam as metáforas da teoria de Darwin”. (Kuper, 2002, p.33-
35).
O conceito de cultura empregado por Boas na sua crítica do evolucionismo, de acordo com
a história da antropologia traçada por Kuper, derivava da categoria Kultur, tal como desenvolvida
9
Depois de realizar uma ampla descrição do uso da categoria cultura em sociedades de capitalismo avançado e
periférico, por empresas, intelectuais e grupos “subalternos” ele conclui: Não é preciso dizer que cultura tem um
significado bastante diferente para os pesquisadores de mercado em Londres, para um magnata Japonês, para os
habitantes da Nova Guiné e para um religioso radical em Terá, sem falar em Samuel Hutington. Há entretanto, uma
semelhança familiar entre os conceitos que eles têm em mente. Em seu sentido mais amplo, cultura é simplesmente uma
forma de falar sobre identidades coletivas.” (Kuper, 2002, p. 24) e mais adiante: “A idéia de cultura podia realmente
reforçar uma teoria racial da diferença. Cultura podia ser um eufemismo para raça, estimulando um discurso sobe
identidades raciais enquanto aparentemente abjurava o racismo. Os antropólogos podiam distinguir raça e cultura,
mas na linguagem popular cultura se referia a uma qualidade inata. A natureza de um grupo era evidente a olho nu,
expressada igualmente pela cor da pele, pelas características faciais, pelas aptidões, pelo sotaque, pelos gestos e pelas
preferências de alimentação.” (Kuper, 2002, p. 35-36).
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
37
pelos intelectuais alemães ao final do século XIX. Este conceito foi formado num processo de luta e
crítica, de uma elite de intelectuais alemã, a francofilia e a noção francesa de civilisation, como nota
Kuper:
“A noção de Kultur desenvolveu-se em tensão com o conceito de uma civilização universal
associada à França. O que os franceses consideravam civilização transnacional, na Alemanha
se considerava fonte de perigo para as culturas locais. Na própria Alemanha, a ameaça era
bastante imediata. A civilisation estabelecera-se nos centros de poder político, nas cortes
francófonas e nas cortes francófilas alemães. Num marcado contraste com intelectuais
franceses e ingleses, que se identificavam com as aspirações da classe dominante, os
intelectuais alemães se definem em oposição aos príncipes e aristocratas”. (Kuper, 2002, p.
54).
Dentro do contexto da Alemanha do século XIX, duas grandes vertentes estiveram
envolvidas na produção do discurso sobre a Kultur:
“Mais recentemente, WooddruffD.Smith aprimorou a genealogia de Ringerem Politics and
Sciences of Culturen Germany, 1840-1920. Ele extrai uma linha de reflexão acadêmica liberal
sobre cultura, uma Kulturwisenschaft distinta da Geistewissensschaften da tradição
hermenêutica. Essa maneira de pensar se aproximava mais das idéias liberais francesas e
inglesas; e Smith afirma que Herder e Humboldt eram mais solidários ao iluminismo do que
pareciam. Os acadêmicos da tradição liberal abordavam a cultura com um espírito científico,
buscando leis de desenvolvimento. (Kuper, 2002, p. 59).
Dessa maneira, o conceito de “cultura” difundido na antropologia durante o século XX, deve
ser remontado ao conflito de classe e nacional dentro e entre Alemanha e França, no qual as
categorias kultur e Civilisation
10
, respectivamente, cumpririam um papel central:
“Civilização descreve um processo ou, pelo menos, seu resultado. Diz respeito a algo que está
em movimento constante, movendo-se incessantemente para a frente. O conceito alemão de
kultur, no emprego corrente, implica uma relação diferente com o movimento. Reportam-se a
produtos humanos que são semelhantes a ´flores do campo´, a obras de arte, livros, sistemas
religiosos ou filosóficos, nos quais se expressa a individualidade de um povo. O conceito de
kultur delimita. (...)
Em contraste, o conceito alemão de kultur dá ênfase especial a diferenças nacionais e a
identidade particular de grupos. Principalmente em virtude disto o conceito adquiriu em
campos como a pesquisa etnológica e antropológica uma significação muito além da área
lingüística alemã e da situação em que se originou o conceito”. (Elias, 1994, p. 24-25)
Norbert Elias, analisando a formas de constituição e variação da noção de Kultur, indica
também a função e vinculação concreta a grupos sociais:
10
É interessante notar que Kuper observa que essa oposição não seria absoluta: “Essas ideologias contrastantes
poderiam alimentar a retórica nacionalista e suscitar emoções populares em épocas de guerra, mas até mesmo em sua
faceta mais virulenta,elas nunca foram meramente discursos nacionais. Alguns intelectuais franceses simpatizavam
com o contra-iluminismo apenas porque ele saia em defesa da religião contra a insidiosa subversão da razão. Depois
da Batalha de Sedan, em 1870 (vencida assim disseram pelos professores da Prússia), a idéia de uma cultura nacional
francesa penetrou numa França humilhada ...” Na Alemanha, havia uma antiga tradição do pensamento iluminista que
jamais submergiu completamente, embora algumas vezes assumisse formas estranhas, quase irreconhecíveis. Nietzsche
condenava seus compatriotas por sua caótica Bildung, formação cultural, corrompida por empréstimos e moda, que ele
contrastava com a Kultur orgânica da França, que por sua vez equiparava com a própria civilização. Ele optava pela
civilização...”. (Kuper, op.cit, p. 28)
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
38
“Se a antítese é expressa por estes outros conceitos, uma coisa fica sempre clara: o contraste
de características que mais tarde servem para patentear uma antítese nacional, surge aqui
principalmente como manifestação de uma antítese social. Como experiência subjacente à
formulação de pares de opostos tais como ´profundeza´, ´superficialidade´, ´honestidade´ e
´falsidade´, ´polidez de fachada´ e ´autêntica virtude´, dos quais, dentre outras coisas, brota a
antítese ente civilisation e kultur, descobrimos em uma fase particular do desenvolvimento
alemão, a tensão entre intelligentsia de classe média e a aristocracia cortesã”. (Elias, op.cit,
p. 46)
A categoria “cultura”, assim como o conceito “evolução” se formou na fricção de teorias
sociais (como o darwinismo) com ideologias políticas (como o liberalismo), como nos mostra a
história da sóciogênese destes conceitos antropológicos. Alem disso, o próprio conceito de cultura
(estamos assumindo aqui a genealogia traçada por Kuper, que remonta a Kultur), se define também
pela afirmação de um conjunto de características que expressaria a imagem de superioridade de um
determinado tipo de sociedade, assim como os conceitos de evolução e civilização; e assim como a
noção de evolução implica idéias de ordem, coerência e harmonia que expressam uma
individualidade superior
11
. Logo, uma grande parte da antropologia e das ciências sociais leva
consigo esta marca sócio-genética: estabelecidas sobre conceitos/categorias do discurso social e
político da burguesia européia, reproduzem grande parte de seu imaginário e discurso. A crítica do
evolucionismo, movida por Boas e posteriormente pela antropologia cultural, se fundamenta assim
numa categoria gerada por uma concepção política liberal conservadora.
Se o conceito de kultur no momento de sua gênese serviu para expressar a “auto-imagem”
da classe média alemã, “a essência de uma identidade”, o conceito de “cultura” depurado apenas
relativamente serviria para o mesmo fim, sendo passível de uso generalizado por qualquer grupo
social, mas sempre remetendo a idéia de uma identidade estável, essencial, o “ser” de uma entidade
coletiva. Cientificamente, o conceito de cultura teria a vantagem de contrapor-se ao etnocentrismo,
permitindo a valorização das sociedades colonizadas, que seriam colocadas num patamar de relativa
igualdade com os europeus por terem uma cultura (concebida pelos mesmos parâmetros
cognitivos).
As posteriores definições do conceito de “cultura” seriam profundamente marcadas pelos
contextos geradores, e também pela relação que os diferentes intelectuais mantinham com as
tradições de seus predecessores, de maneira que
12
:
11
Como na definição de Baldus de cultura como “expressão harmônica do modo de ser, pensar e sentir de um povo”.
12
As críticas do evolucionismo foram processadas a partir de diversas perspectivas, mas seria principalmente na virada
do século XX que elas iriam se consolidar. Uma das principais e mais difundidas críticas foi a realizada por Franz Boas,
gestada e desenvolvida nos EUA e depois assumida por diversos antropólogos. O conceito de cultura se tornaria, a
partir de então, uma categoria chave para a antropologia, tanto do ponto de vista da explicação da sociedade (que seriam
analisadas em termos de sua cultura) quanto para a auto-designação dos próprios antropólogos. Mesmo nas versões
estruturalista e estrutural-funcionalista da antropologia a noção de cultura cumpriria um papel chave (como em Lévi-
Strauss e Malinowski)
12
.
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
39
“Os argumentos modernos não recapitulam de forma precisa às controvérsias anteriores. Os
contextos da época deixam sua marca. Cada geração moderniza o idioma do debate, via de
regra, adaptando-o à terminologia cientifica do momento; evolucionismo do final do século 19,
organicismo no início do século 20, relatividade na década de 1920. Metáforas emprestadas da
genética competem, hoje em dia, com o jargão da teoria literária contemporânea. Entretanto,
mesmo que fossem expressos em termos modernos, os discursos sobre cultura não são
inventados livremente: eles remontam a determinadas tradições intelectuais que persistiram
por gerações disseminando-se da Europa para todo o mundo, impondo concepções da natureza
humana e da história ..”. (Kuper, 2002, p. 31)
Assim, o conceito de “cultura” foi definido em termos simbólicos e coletivos; apesar das
diferenças de interpretação (entre o estruturalismo de Lévi-Strauss, que buscou o modelo da
lingüística estrutural para definir a cultura enquanto sistema simbólico, ou o interpretativismo de
Geertz, que reivindicou a teoria literária e a cultura como “texto”, o conteúdo da cultura e sua
função eram similares - sistemas simbólicos que determinavam a vida e visão de mundo dos atores).
Na realidade entre o discurso científico e o discurso social generalizado sobre a definição de
cultura, existem pontos de convergência: a cultura representa as identidades, a cultura expressa
simbolicamente o “ser” dos grupos sociais - no sentido que se contrapõe ao avanço e a mudança
imposta pela “civilização” tecnológica, industrial. Este é um conteúdo comum. O que tende a
mudar é a forma como são consideradas as diferenças culturais, que no discurso científico tendem a
ser percebidas por diferentes formas de “relativismo”.
Mas mesmo nas criticas pós-modernas do conceito de cultura, se assume de forma mais ou
menos implícita que “... as pessoas vivem num mundo de símbolos. Os atores são dirigidos e a
história é moldada (talvez inconscientemente) pelas idéias”. (Kuper, 2002, p. 41). Ou seja, na base
do conceito de cultura (ou em volta dele), estão uma série de pressupostos que apontam para os
processos de significação (atribuição de sentido e construção de símbolos) como o operador central
de explicação do mundo, e sua cristalização numa identidade estável e auto-reproduzida. Se o
conceito de “cultura” se apresentou como “visão crítica” da explicação evolucionista e do
determinismo biológico, ela também se desenvolveu relativamente em oposição à explicação
“social” no sentido que tirou do conceito de sociedade o papel de “chave analítica”. Deslocamento
que implicava que a ênfase não estaria na forma como os seres humanos organizavam sua vida, mas
sim nas representações e formas de pensamento.
O paradigma da ordem é transcrito nos conceitos de sociedade e cultura, através de um
modo de percepção da mudança social. Duas formas de domesticação idéia de mudança social se
inscreveram na antropologia e sociologia através de uma bifurcação conceitual. Enquanto a idéia da
mudança social como etapa na restauração da ordem e reprodução social está associada ao conceito
de sociedade, o conteúdo do conceito de cultura levou a atualização da idéia de que a mudança é
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
40
apenas um estágio num processo inexorável de o desaparecimento das “identidades originais e o
ser” das sociedades. O conceito de “aculturação” expressa num certo sentido a fusão desta visão da
mudança como destruição inexorável de uma identidade originária como a idéia de cultura.
A sócio-gênese dos usos e sentidos antropológicos, das categorias “sociedade e cultura”,
revela que essas categorias se formaram em momentos de luta política e foram construídas por
intelectuais que tinham vinculações de classe, profissionais e políticas muito específicas. Muitos
dos trabalhos fundadores da antropologia seriam realizados por juristas
13
que ao mesmo tempo em
que estudavam o direito e a propriedade em suas origens, buscavam legitimar a propriedade
privada, o Estado e formular uma teoria científica da superioridade das sociedades ocidentais ou
“civilizadas” sobre as demais. A “crítica” ou as “críticas” formuladas pelos diferentes conjuntos de
ação teórica (difusionistas, boasinaos, durkheimianos, estrutural-funcionalistas) não se estenderiam
para estas questões. Ao contrário, ao aperfeiçoar os conceitos e definições, levantariam
involuntariamente uma cortina de fumaça em torno deles. O conceito de cultura e a idéia de
relativismo serviram para contrapor as formulações evolucionistas em relação a certos tópicos
(como a explicação pela biologia, a idéia de origem única da humanidade); o conceito de sociedade
serviu para elaborar igualmente uma crítica das explicações religiosas, psicológicas e biológicas do
social. A “crítica” foi o meio central pelo qual o próprio pensamento cientifico (sociológico e
antropológico) se desenvolveu. Entretanto é necessária uma “crítica da crítica”, no sentido de
aprofundar a crítica política e epistemológica e alcançar uma outra forma de explicação da mudança
social e das relações de poder. Visto que os estudos de antropologia política e os estudos sobre
cultura (aculturação e mudança cultural) sempre tenderam ou a ver as sociedades e as identidades
culturais como estáticas, ou quando estudavam a mudança, a concebiam como “anomias”, que
levariam as sociedades e culturas ou a destruição e desaparecimento, ou a restauração da ordem
anteriormente existente.
Não podemos ignorar que os discursos e pressupostos da antropologia são profundamente
condicionados por uma transmissão contínua de representações ideológicas de contextos históricos
e nacionais a outros. Morgan, como um dos fundadores da antropologia norte-americana, deu as
bases para formação do Bureau de Etnologia de Powell, onde seria formulado o conceito de
aculturação, para designar as relações entre sociedades indígenas e o Estado-Nacional (ver Kessing
Jr, 1986, p.19). A reformulação do conceito de aculturação (ou sua definição), por Linton, Redfield
e Herskovits em 1936, no Memorando sobre a Aculturação”, estabeleceria as bases para
antropologia cultural boasiana do pós-II guerra, que apesar das rupturas, tinha certas continuidades
com estudos evolucionistas, já que retomava conceitos e temáticas formuladas por eles. O
evolucionismo, ou os estudos e discursos que depois seriam classificados sob tal rubrica, estava
13
Este é o caso de Henry Maine, que escreveu o livro “A Lei Antiga”.
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
41
profundamente imbricado nos valores e no imaginário burguês e nacionalista. As críticas do
evolucionismo, direcionadas para a “noção de progresso e ao determinismo biológico” (ver
Stocking Jr,1984), jamais questionaram este imaginário e suas bases epistemológicas.
Sob a influência de categorias como sociedade e cultura e principalmente de um
determinado o modo de cognição que lhes é subjacente, ficamos reféns de uma determinada ótica de
interpretação da mudança e reprodução social e da própria sociedade. A noção de evolução é a
interpretação da mudança como “progresso” do inferior para o superior. O conceito de cultura pode
tender a visão da mudança como “degeneração” da diferença autêntica e “pura” para a “mistura”,
até a eliminação total de um grupo por outro pela aproximação de idéias e valores. O conceito de
cultura surge com uma marca: a da reação à mudança (no sentido da influência das idéias
estrangeiras sobre uma nação e classe determinada); estes conceitos entraram na antropologia
política encerrando em si a marca de uma concepção histórico-política.
Num certo sentido, apesar das múltiplas oposições, divergências (quanto a métodos, objetos,
modelos de referencias e teses explicativas) nas duas grandes tradições cientificas da antropologia
as organizadas a partir do conceito de cultura e aquelas a partir do conceito de sociedade, existe
uma convergência, ou pelo menos uma cumplicidade, em torno de uma teleologia da ordem e de
coordenadas de conhecimento burguesas, liberais e conservadoras, que levam a deslegitimarão da
luta, da guerra e da mudança social (tanto de seu estatuto teórico quanto político). A dificuldade em
torno do estudo da mudança social está associada, em parte, as bases cognitivas das ciências sociais,
e também as bases materiais de organização da ciência dentro da sociedade capitalista. É preciso
uma ruptura com esta teleologia para alcançar uma via para o adequado estudo da mudança social,
das relações de poder e da luta de classes.
A questão colocada é, como romper com essa teleologia da ordem? É um problema ao
mesmo tempo político e epistemológico e só pode ser resolvido por meios igualmente políticos e
epistemológicos. Roberto Cardoso, no texto mencionado “A categoria (des)ordem na antropologia”
frisa com bastante propriedade que essa teleologia abrange quase todos os domínios da ciência:
“O exame dos paradigmas sustentadores das “escolas” consolidadas nas primeiras décadas do
século permitem caracterizá-los como paradigmas da ordem, uma vez que é sobre essa
temática que os oficiantes dessa disciplina se debruçam. Poder-se-ia dizer que a categoria
ordem está explícita nas diferentes “escolas”, enquanto noção devidamente tematizada em seus
respectivos discursos. Senão vejamos: o paradigma racionalista, já em seus primeiros passos
na École francaise, aplica-se tanto na questão da organização social (solidariedade mecânica e
solidariedade orgânica) como na descoberta de formas elementares ordenadoras do
pensamento primitivo, e, em seus últimos passos, no exercício radical da categoria, já no
interior do moderno estruturalismo francês, como bem ilustra a conhecida máxima lévi-
straussinana de que “a pior ordem é melhor do que a desordem”; na questão equacionada em
termos de estrutura-social e de função social, destaca-se o paradigma estrutural-funcionalista
particularmente no que diz respeito à instituição do parentesco e aos grupos organizacionais
tão extensamente estudados na Britsh School; enquanto o paradigma culturalista, subjacente a
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
42
American Historical School of Anthropology, conduz a indagação para os processos culturais
e ao estabelecimento de padrões ou regularidades culturais. A categoria de ordem implementa
a investigação cientifica, teórica ou de campo, em todo o espaço ocupado por essas escolas.
Tal a força dessa categoria no universo dessa disciplina que ela não apenas orienta o discurso
das diferentes ´escolas´, a gramaticalidade da linguagem antropológica, o que constituiria a
bem dizer o impensado da disciplina, como ainda manifesta-se no centro de sua problemática,
largamente explicita em todos os índices ou sumários de quantos ensaios e monografias a
antropologia conheceu em sua história”. (Cardoso de Oliveira,1997,p.92-93).
Dessa maneira, não se trata de um movimento exterior ou paralelo, trata-se de fazer uma ruptura
com a própria base cognitiva. Os principais efeitos dessa concepção centrada na ordem nas diversas
correntes foi uma tendência a, senão completa exclusão, pelo menos domesticação e deslegitimarão
da “subjetividade, do individuo e da história” (Cardoso de Oliveira, op.cit, p.93).
Roberto Cardoso apontou a necessidade de introduzir certos procedimentos associados a
uma postura de dissidência, de “desordem”, no sentido da criação uma lógica de oposição aos
princípios estabelecidos dentro da antropologia. Por exemplo, a história enquanto fator seria um
marcador de “desordem”, no sentido que introduzido na “estrutura social” implicaria uma
imprevisibilidade, eventualidade. (Cardoso de Oliveira, op.cit,p.95-96). Ele aponta que o
“paradigma hermenêutico”, representado pelo movimento da chamada antropologia interpretativa
ao mesmo tempo que criticava poderia corrigir os efeitos do paradigma da ordem, e assim
incorporar algumas formulações dos chamados “pós-modernos”. Roberto Cardoso chega a dizer,
acompanhando Feyerabend, que talvez “no limite seria necessário caminhar para um “anarquismo
epistemológico” (Cardoso de Oliveira, op.cit,p. 99).
Cabe registrar que a solução apresentada por Roberto Cardoso não implica uma ruptura com
o paradigma da ordem, mas apenas uma “reforma” de seus quadros, apresentado-se como uma
solução de “compromisso”. “Para concluir gostaria de voltar à questão da ordem e da desordem e
de suas implicações com a matriz disciplinar da antropologia. Haveria alguma possibilidade do
paradigma hermenêutico compor com os paradigmas da ordem o mesmo campo epistemológico de
tensão indicado na matriz disciplinar, concorrendo assim para o enriquecimento da
antropologia?” E ainda que: “e quem sabe aguardar a emergência de uma nova ordem, como uma
progressiva domesticação da desordem (inaugurada pela introdução da intersubjetividade, da
individualidade, da história) na disciplina..”. (Cardoso de Oliveira, op.cit,p.102). Alguns dos mais
proeminentes do movimento pós-moderno, como Marcus e Fisher, admitem essa coexistência.
O movimento proposto pelos pós-modernos, pela habilitação teórica da “história, da
subjetividade e do individuo”, representa mais uma liberalização no paradigma da ordem do que
sua rejeição. E de acordo com nossa análise, o ponto principal da teleologia da ordem, o que ele
visa realmente expulsar não são esses domínios (expulsos mais por efeitos colaterais do que
intenção direta). O que a teleologia e o paradigma da ordem visam expulsar é a idéia de mudança,
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
43
de conflito, luta e guerra, na realidade é uma espécie de “pacificação cognitiva” estruturada em
torno de conceitos e teses (sobre o mundo e a natureza). E devemos lembrar também que a própria
noção de “ordem” tem uma dupla transcrição, cognitiva e científica, social e política. A idéia de
ordem está associada às estruturas de poder, a recusa da mudança nas formas de organização
política. O que o positivismo fez, num certo sentido, mas também os teóricos da soberania como
Hobbes (ver Foucault, 1999), foram recusar a idéia de guerra, de violência, de luta em nome da
ordem, e ao associarem a “mudança” à luta, expulsaram ambas do domínio da ciência. A
manutenção da ordem era a manutenção do “poder”, dos ciclos de relações, verdades e hierarquias
engendradas por ele, e ao mesmo tempo, que lhes serviam de sustentáculos. A idéia de “anarquia”
foi utilizada como “anátema” aos opositores da Monarquia e do Absolutismo, da Igreja, como
Gracco Babeuf, que no seu Jornal comentava isso. Ou seja, a idéia de anarquia estava associada à
contestação do poder, a inversão da hierarquia, a mudança social e por isso era transcrita no
discurso dominante como “desordem”.
Na realidade, se a solução pós-moderna, centrando-se numa problemática estritamente
cognitiva representa suma solução de compromisso, de conciliação com o paradigma da ordem, a
ruptura epistemológica só se torna possível pelo recurso ao pensamento revolucionário. Somente aí
é possível estabelecer realmente um “anarquismo epistemológico” que se apresenta enquanto tal
exatamente pelas suas origens sociais e políticas.
1.5 - A Guerra das Sociologias: reflexões sobre ordem e mudança social.
O século XIX, marcado pela transição de uma sociedade “teológico-militar” a uma
sociedade “científico-industrial”, testemunhou uma profunda guerra de filosofias políticas e
sociologias. Foi um momento em que, dentro das frações da classe dominante, engendrou-se de
forma cada vez mais intensa um discurso cientifico e da autoridade da ciência, em oposição à
religião, que redundaria num cientificismo autoritário. Por outro lado, o desenvolvimento da luta de
classes, produziria diferentes e contraditórios esforços de sistematizar uma “ciência da sociedade”
que servisse também como instrumento de sua transformação revolucionária, como crítica da
religião e das ciências produzidas a partir das próprias classes dominantes.
O problema da origem da Sociedade e do Estado condicionou a definição teórica destes
mesmos conceitos. É interessante observar que, nos debates fundadores da antropologia, a
preocupação com a origem e a sociedade primitiva deram os contornos gerais da formulação de
uma teoria geral da sociedade e sua evolução. Mas no momento em que apareceu o livro de Henry
Maine, “A Lei Antiga”, não devemos perder de vista que o que estava em jogo não era um exercício
especulativo, ao contrário; o livro fazia parte de uma guerra de sociologias, que disputavam no caso
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
44
a orientação administrativa a ser adotada pelo Governo Britânico na Índia Colonial. Maine
desenvolveu uma teoria da sociedade que buscava apresentar uma explicação diferente da
concepção individualista de Bentham, que postulava a reforma da administração colonial britânica
na Índia. A teoria da família patriarcal como ponto de partida da evolução e não os indivíduos
livres, tinha uma conotação essencialmente filosófico-política. Depois, a crítica feita por Mclennan
e Morgan, deslocariam a problemática para a discussão da origem da sociedade em si, formulando a
tese de que as famílias matriarcais seriam o ponto de partida da evolução e não a família patriarcal
(Kuper, 1988). Desta maneira, o ponto de partida político delimitou o conjunto de alternativas do
debate (individuo X família, origem patriarcal X matriarcal), mas o conjunto das alternativas e seus
pressupostos não foram questionados.
As linhas de pesquisa cientifica que confluiriam na formação da antropologia e da
sociologia, começam entretanto, nos grandes debates políticos e filosóficos do século XIX. E estes
debates não falavam normalmente de objetos específicos (do parentesco, do sistema político, da
religião), mas sim de uma teoria geral da sociedade e da história, da qual se desprenderiam a
posterior os objetos e debates específicos. Assim, diferentes discursos sobre a ciência surgem
dirigidos a partir de diferentes posições sociais, convergindo no aspecto da crítica da religião, mas
diferindo nas teses e explicações de problemas específicos, e também na concepção histórico-
político geral que sustentam. É necessário compreender a guerra das sociologias, que não é senão
um enfrentamento de saberes histórico-políticos que tiveram destinos muito diferentes. É por meio
da compreensão desta guerra de saberes, e pela apropriação de certas teses e teorias, de forma
similar ao projeto genealógico, que iremos fixar marcos para o estudo da mudança social
14
.
Existem vários caminhos para uma crítica da “teleologia da ordem”, mas é impossível
chegar a uma crítica efetiva senão levarmos em consideração o socialismo e o pensamento
revolucionário enquanto fenômeno político e intelectual. Os saberes críticos da sociedade, dentro do
campo socialista, ao mesmo tempo reivindicavam para si um duplo estatuto: o da cientificidade e o
caráter de classe em oposição a qualquer tipo de neutralidade. É neste acervo que iremos buscar as
referências metodológicas.
14
Segundo Foucault, o projeto genealógico consistiria em um duplo movimento: a incorporação do saberes sujeitados
no discurso científico, a crítica das relações de sujeição que marca a vida dos grupos estudados: “Por saberes sujeitados
eu entendo igualmente toda uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como
saberes insuficientemente elaborados; saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes a baixo do nível
de conhecimento ou cientificidade requeridos. E foi pelo reaparecimento desses saberes de baixo, desses saberes não
qualificados mesmo, foi pelo reaparecimento desses saberes: o do psiquiatrizado, o do doente, o do enfermeiro, o do
médico, mas paralelo e marginal em relação ao saber médico, o saber do delinqüente, etc. esse saber que
denominarei saber das pessoas (e que não é de maneira alguma um saber comum, um bom senso, mas, ao contrario um
saber particular, um saber local, regional, um saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força apenas
contundência que opõe a todos aqueles que o rodeiam) foi pelo reaparecimento destes saberes locais das pessoas,
desses saberes desqualificados, que foi feita a crítica. (...) .o acoplamento dos conhecimentos eruditos e das memórias
locais, acoplamento que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas táticas
atuais.” (Foucault, 1999, p. 12-13)
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
45
Uma teoria é o que poderíamos chamar de materialismo sociológico de Mikhail Bakunin e
que se propõe a tomar a própria mudança como elemento constitutivo da vida material, sendo a
noção de ação e de forças agentes as principais. Existe um debate político central para Bakunin: é o
problema do Estado e da Religião, que na realidade se confundem na sua formulação com a crítica
da teoria do direito divino dos reis e da relação Estado-Igreja, e com a crítica da teoria
contratualista, do liberalismo. A formulação de Bakunin se dá a partir da fusão de idéias
proudhonianas com a absorção crítica de idéias positivistas, condensadas no que ele denomina de
visão materialista.
Nesta teoria geral da realidade ele irá distinguir um mundo natural do mundo social, dentro
do conceito de natureza, que é sinônimo de universo material. É pela definição do conceito de
natureza que podemos ver sua concepção materialista:
“Podría decir que la naturaleza es la suma de todas las cosas realmente existentes. Pero eso
me daría una idea completamente muerta de la naturaleza, que se presenta a nosotros, al
contrario, toda movimiento y toda vida. Por lo demás, ¿qué es la suma de las cosas? Las cosas
que son hoy no serán mañana; mañana se habrán no perdido, sino enteramente transformado.
Me acercaré, pues, mucho más a la verdad diciendo que la naturaleza es la suma de las
transformaciones reales de las cosas que se producen y que se producirán incesantemente en su
seno; y para dar una idea un poco más determinada de lo que pueda ser esa suma o esa
totalidad, que llamo la naturaleza, enunciaré, y creo poderla establecer como un axioma, la
proposición siguiente:
Todo lo que es, los seres que constituyen el conjunto indefinido del universo, todas las cosas
existentes en el mundo, cualesquiera que sea por otra parte su naturaleza particular, tanto
desde el punto de vista de la calidad como de la cantidad, las más diferentes y las más
semejantes, grandes o pequeñas, cercanas o inmensamente alejadas, ejercen necesaria e
inconscientemente, sea por vía inmediata y directa, sea por transmisión indirecta, una acción y
una reacción perpetuas; y toda esa cantidad infinita de acciones y de reacciones particulares,
al combinarse en un movimiento general y único, produce y constituye lo que llamamos vida,
solidaridad y causalidad universal, la naturaleza”. (Bakunin, 2003, p.3)
Essa visão materialista, que parte do conceito de natureza, na realidade se estende à
interpretação e explicação da sociedade, uma vez que esta é entendida como uma extensão
particular e especifica da própria natureza.
“(5) Sigo el uso establecido, separando en cierto modo el mundo social del mundo
natural. Es evidente que la sociedad humana, considerada en toda la extensión y en toda
la amplitud de su desenvolvimiento histórico, es tan natural y está tan completamente
subordinada a todas las leyes de la historia, como el mundo animal y vegetal, por
ejemplo, de que es la última y la más alta expresión sobre la Tierra. (Bakunin, op.cit,
p.10).
Assim, o mundo social se apresenta sujeito a esta visão dinâmica: o mundo material é mundo da
contínua e permanente mudança e transformação. O pressuposto filosófico-cientifico da mudança
no mundo natural é o que dá fundamento para a crítica do teologismo e do liberalismo, de maneira
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
46
que ele formula uma teoria não apenas da relação mundo social-mundo natural, mas indivíduo-
sociedade.
“We are profoundly convinced that the entire life of men their interests, tendencies, needs,
illusions, even stupidities, as well as every bit of violence, injustice, and seemingly voluntary
activity merely represent the result of inevitable societal forces. People cannot reject the idea
of mutual independence, nor can they deny the reciprocal influence and uniformity exhibiting
the manifestations of external nature.
In nature herself, this marvelous correlation and interdependence of phenomena certainly is not
produced without struggle. On the contrary, the harmony of the forces of nature appears only as
the result of a continual struggle, which is the real condition of life and of movement. In nature,
as in society, order without struggle is death”. (Bakunin, 2005)
Esta preocupação em desenvolver uma teoria geral da realidade, que compreendesse o
mundo social e natural, tinha como objetivo a contraposição aos pressupostos teológicos e liberais,
dos republicanos, monarquistas e conservadores do século XIX. Nesse sentido, existe uma
concepção muito específica sobre o lugar do conflito e da luta na sociedade e na história:
“Olhem para a toda a história e convençam-se que em todas as épocas e em todos os
países em que há desenvolvimento e exuberância da vida, do pensamento, da ação
criadora e livre, houve divergência, luta intelectual e social, luta de partidos políticos e
é precisamente por meio dessas lutas, e graças a elas, que as nações foram mais felizes
e as mais fortes no sentido humano dessa palavra. (...) Qual foi a época mais fecunda
da história romana? Foi a da luta da plebe contra o patriciado. E que é que fez a
grandeza e a glória da Itália na Idade Média/ Certamente não foram nem o papado e
nem o Império. Foram as liberdades municipais e a luta intestina das opiniões e dos
partidos..”. (Bakunin, 1975, p. 164-165).
“Reparem que os que pregam a paz à viva força, a imolação das convicções opostas às
necessidades duma união aparente, e que lançam as suas maldições no que chama a
guerra civil, são sempre moderados, reacionários, ou pelo menos homens a quem falta
convicção, energia e fé. Uma boa guerra civil, bem franca, bem aberta, vale mil vezes
mais do que uma paz corrompida. Aliás esta paz nunca é senão aparente; sob a sua
égide enganosa, a guerra continua, mas impedida de se manifestar livremente..”.
(Bakunin, op.cit, p.165).
Neste sentido, o problema da definição conceitual da sociedade e da sua explicação ganha um
contorno completamente diferente. A idéia de “ordem”, a visão “patológica” da mudança, não
somente não está presente como é teoricamente combatida por outros pressupostos político-
cognitivos. A mudança-transformação contínua faz parte do mundo natural e social; a “luta pela
vida” que preside o mundo natural tem correspondência na luta política e de classes, no mundo
social
15.
15
A idéia da luta pela vida, de Darwin é utilizada por Bakunin como tese de explicação da do mundo natural. Ver
Considerações Filosóficas”, p. 18.
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
47
Na concepção anarquista-materialista de Bakunin, as categorias principais são as de ação,
luta e combinação; a mudança no mundo social e natural está associada ao papel que a ação
recíproca (as forças agentes e produtivas) desencadeiam pela sua combinação particular. A
mudança e a transformação não têm uma direção pré-definida, mas são relativamente caóticas,
indeterminadas; elas não se apresentam como um pré-concebido, mas como parte de funcionamento
do mundo material.
Essa discussão filosófico-política acerca da sociedade (sua origem, princípios, formas
elementares de organização e funcionamento) relacionam-se diretamente a bases da teoria
antropológica. Não somente a origem do Estado e da Sociedade; relação indivíduo x sociedade,
constituíram problemas originários da teoria social e antropológica, possuindo marcas políticas
fundamentais. A explicação evolucionista da sociedade (da origem social na família
patriarcal/matriarcal que evoluiria até o Estado) se relaciona a uma crítica das teorias contratualistas
liberais. Entretanto, a ruptura com o elemento individualista na explicação da origem da sociedade,
não representou a ruptura com a teoria da soberania, com os valores burgueses e etc. Estes
elementos permaneceram tanto nos conceitos quanto nas teses fundamentais da antropologia e das
ciências, como vimos anteriormente.
Neste sentido, não é possível buscar uma base neutra para a explicação da sociedade; todas
as teses e teorias explicativas da sociedade têm necessariamente um conteúdo filosófico-político
que não é possível ignorar sem pagar o preço da reificação das categorias e modos de cognição
atrelados as formas de dominação hegemônicas em uma sociedade. Trata-se não dos conceitos em
si, mas da seqüência, formas de organização, métodos de coleta e sistematização dos saberes e dos
seus efeitos práticos (intencionais ou não) no mundo real.
A diferença fundamental do pensamento socialista, pelo menos nos autores aqui
mencionados, é a ruptura fundamental com a teleologia da ordem no sentido em que, os
pressupostos da negação da guerra, do conflito e da luta de classes, e a visão patológica da mudança
social não se encontram presentes. Neste sentido, as formas de explicação da sociedade não se
amparam na “teoria da soberania” (ver Foucault, 1999), ou seja, não há o esforço de explicar a
Origem da Sociedade, do Estado pelas formas contratualistas.
Esta posição garante o estabelecimento de um efetivo anarquismo epistemológico, no
sentido da interiorização da mudança social, do conflito, da ação e da transformação como
determinantes do “ser” dos sujeitos e objetos do mundo real; a idéia da multi-causalidade ou da
pluralidade das forças agentes, orientará nossa abordagem das relações de poder e também da
mudança social. O conflito, a luta e a guerra como operadores centrais da organização social. Isto
implica também uma ruptura com a teoria da soberania do poder.
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
48
Por fim, retomando a discussão entre as grandes teorias sociais, entre uma concepção geral
de realidade centrada na “teologia da ordem” e uma concepção centrada numa visão da sociedade
como um processo anárquico (mais ou menos ordenado/desordenado porque em permanente
mudança), poderemos olhar para a etnografia e história das relações de poder entre os índios e o
Estado brasileiro de outra maneira. Essa perspectiva permitirá que demonstremos ao longo desse
trabalho a sociedade não é mais que um processo permanente de mudança social mudança de
grupos que exercem o poder e suas técnicas e relações com outros grupos, mudanças nas
instituições existentes, mudança no sistema geral de relações entre classes dominantes, território e
meios de produção e de poder. Nada autoriza, muito pelo contrário, a suposição que existe uma
“ordem” original que as mudanças sociais quebram e que cabe a um arbitro externo e imparcial o
Estado restaurar. Nada indica que a ordem seja o destino final da mudança já que no que diz
respeito às relações de poder, tanto a mudança social quanto a reprodução da dominação, dependem
da luta, da guerra.
1.6 – A antropologia política processualista e as ferramentas de análise.
A partir da crítica da perspectiva da teleologia da ordem, e da fixação de uma concepção
crítica de análise da mudança social e das relações, podemos tentar definir e (quando for o caso
redefinir) os conceitos principais que empregaremos ao longo desta tese como ferramenta de
análise. Dentro da antropologia, estaremos calcados na orientação dinâmica (ver Balandier, 1969) e
processualista (Palmeira & Goldman, 1996).
Os primeiros conceitos dizem respeito a uma tipologia geral, entre os sistemas sociais que
estão em mudança social e os sistemas repetitivos:
“É possível sentir a atuação das poderosas tensões que formam a vida nacional:rei e Estado
contra o povo e o povo contra o rei e o Estado; o rei aliado aos plebeus contra os seus rivais,
os irmãos-principes; a reação entre o rei e sua mãe e entre o rei e suas rainhas; e a nação
unida contra os inimigos externos, numa luta pela sobrevivência com a natureza. Essa
cerimônia não é apenas uma demonstração maciça de união, mas também uma ênfase no
conflito, uma afirmativa de rebelião e rivalidade contra o rei, com afirmações periódicas de
união com o rei e de retirada de poder do rei. A estrutura política é santificada na pessoa do
rei, por ser essa estrutura a fonte de prosperidade e força que protege a nação interna e
externamente. O rei é associado a seus ancestrais, pois a estrutura política se mantém através
das gerações, embora reis e súditos nasçam e morram. (...) mas já ficou claro que os Suazi
acreditam que a representação dramática das relações sociais,em toda a ambivalência
destas,consegue unidade e prosperidade”. (...)
“A aceitação da ordem estabelecida como certa, benéfica e mesmo sagrada parece permitir
excessos desenfreados, verdadeiros rituais de rebelião, pois a própria ordem age para manter a
rebelião dentro de seus limites. (...) Todo sistema social é um campo de tensões, cheio de
ambivalências, cooperações e lutas contrastantes. Isso é verdade tanto para sistemas sociais
relativamente estacionários que me apraz chamar repetitivos como para sistemas que
mudam e se desenvolvem. Num sistema repetitivo os conflitos são resolvidos não por alterações
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
49
na ordem dos postos, mas por substituição das pessoas que ocupam estes postos”. (Gluckman,
1974, p. 20-23).
Os conceitos de sistema repetitivo e sistemas dinâmicos aplicam-se a realidades de grande
escala (por exemplo, a comunidade branco-zulu na África do Sul), e são caracterizados por conflitos
ou clivagens que marcam o desenvolvimento destes mesmos sistemas. A idéia da distinção entre
sistemas repetitivos e dinâmicos permitirá a construção de uma tipologia dos processos de mudança
social, já que a principal característica diferenciadora dos dois sistemas não é a existência ou
inexistência de mudanças, mas sim o tipo e o grau de mudanças verificadas em cada um deles
16
.
Não estamos utilizando o conceito de sistema social como definido pela escola estrutural-
funcionalista. Estamos entendendo sistema social como uma unidade aberta e flexível, mas que
abrange realidades de larga escala, e no qual podem ser destacados campos e arenas. O conceito de
“sistema social” entendido enquanto conjunto de relações de interdependência - busca contrapor-
se a visão de que poderiam existir “grupos isolados” ou “pares de grupos isolados” de outros, e
marcar unidades sociais e territoriais globais mais amplas. Os conceitos de sistemas sociais
repetitivos e dinâmicos permitem uma caracterização do tipo de mudança social encontradas em tais
sistemas sociais.
No nosso entendimento, quando se trata do estudo das relações de poder, da sua gênese,
mudança e reprodução, não devemos esquecer que por maior que seja o caráter dinâmico das
relações e processos, os grupos sociais concretos agem para manter e ampliar seu poder. As noções
de campo e arena são fundamentais na análise e variações de escalas, entre o micro e o macro.
Principalmente porque a antropologia esteve teoricamente ligada a propostas entendidas como
micro-sociológicas, sendo importante a articulação destes contextos etnográficos com as sociedades
nacional e global (ver Revel, 1998, Oliveira Filho, 1998).
Os conceitos de “campo” e de “arena” serão aplicados para recortar conjuntos locais dentro
destes sistemas sociais globais. Referidos e intercambiáveis num certo sentido com o conceito de
situação, os conceitos de campo e arena tem suas especificidades. Usamos aqui os conceitos tal
como formulados por Marc J. Swartz, no livro “Local Level Politics”.
O autor emprega o conceito de campo para demarcar unidades de ação política, e a extensão
espacial e temporal do processo político (Swartz, 1968, p.6). Logo, o conceito de campo se
apresenta como uma ferramenta de focalização dos processos, que ao mesmo tempo realça o caráter
aberto das relações sociais e políticas e reduz o escopo da análise aos sujeitos que estão in loco.
16
“Em geral, é difícil classificar um sistema social particular como sendo repetitivo ou em transformação. As
mudanças concretas dentro de um padrão repetitivo podem acumular-se gradualmente para produzir mudanças no
padrão. Num sistema em transformação, há inúmeras mudanças repetitivas e toda uma seção de um sistema em
transformação pode parecer repetitiva.”(Gluckman, 1987, p. 310).
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
50
O “campo” seria assim definido: “Um campo é composto de atores diretamente envolvidos
no processo estudado, Seu escopo social e territorial e áreas de comportamento mudam quando
atores adicionais entram no processo ou participantes anteriores retiram-se e quando eles reúnem
novos tipos de atividades e/ou abandonam velhas na sua interação”. (Swartz, 1968). O conceito de
campo se apresenta também como tática de flexibilização analítica: “Campo é um conceito que
permite continuidade e mudança nas relações entre os participantes na política e não tem a mesma
qualidade rígida portada por termos mais comuns como sistema político e estrutura política”
(Swartz, ibdem).
A noção de “arena” aparece como conceito complementar ao “campo”. Swartz define assim
o conceito de Arena:
“A arena consistiria de indivíduos e grupos diretamente envolvidos com os que
participam do campo mas não em si mesmos envolvidos no processo em questão. O
conteúdo da arena incluiria os recursos, valores e regras dos componentes porém não
estariam em uso no campo e os relacionamentos dos membros da arena a cada um e
aos recursos seriam sua estrutura. O campo está incluído na arena e então os
participantes do campo operam em no mínimo dois conjuntos de relacionamentos, a
indivíduos e grupos e a recursos, regras e valores conectados com cada grupo”.
(Swartz,op.cit, p.13).
Dessa forma arena se apresenta como uma “ampliação do olhar sobre o campo”, abrangendo
outras relações não manifestas nele. O processo político, ainda segundo Swartz, pode ser estudado
de três maneiras: 1) considerando a organização interna do grupo; 2) a organização do campo; 3) as
relações entre campo e arena. (Swartz,op.cit, p.38).
Os conceitos de situação social (ver Max Gluckman, 1987) e situação histórica (ver
Oliveira Filho,1988) serão duas ferramentas analíticas importantes. A noção de “situação social” é
desenvolvida por Gluckman nas suas formulações a partir da etnografia Zulu.
«A partir das situações sociais e de suas inter-relações numa sociedade particular,
pode-se abstrair a estrutura social, as relações sociais, as instituições, etc., daquela
sociedade.» (Gluckman, 1988, p.228).
“Denomino estes eventos de situações sociais, pois procuro analisá-los em suas
relações com outras situações no sistema social da Zululândia. (..)Portanto, uma
situação social é o comportamento em algumas ocasiões, de indivíduos como membros
de uma comunidade, analisado e comparado com seu comportamento em outras
ocasiões. (Gluckman, op.cit, p.228).
Segundo Oliveira Filho, a noção de situação social em Gluckman:
“O sentido mais conhecido, que o autor explicita em uma definição e materializa
através de intensa discussão de um exemplo específico, é aquele que implica na
sobreposição de três elementos: a) um conjunto limitado de atores sociais (indivíduos e
grupos); b) ações e comportamentos sociais destes atores; c) um evento ou conjunto de
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
51
eventos, que referencia a situação social a um dado momento do tempo.”. (Oliveira F,
1988, p. 55).
Logo, a noção de situação social fornece uma unidade agregada mínima para análise,
diferente do fluxo contínuo e total de ações que constitui a própria realidade. Além disso, as
situações sociais têm ainda uma função: explicitar e definir certos padrões nas relações sociais, ou
dizendo de outra maneira, modos de ação-reação entre os grupos, que correspondem a dinâmicas
estruturais, ou ao que Gluckman denomina “equilíbrios”.
As “situações sociais” podem ser relacionadas a outras situações sociais, dentro do presente
etnográfico, mas também a modos de distribuição do poder, a diferentes “equilíbrios” que
expressam a diferentes temporalidades históricas. Neste sentido, a noção de “situação social” é uma
chave para a análise de certas configurações sociológicas e históricas, já que permite ver tanto a
organização dentro de uma sociedade quanto correlacioná-la a um padrão historicamente
determinado.
A noção de situação histórica, formulada por Oliveira Fº deriva teoricamente da noção
situação social, e se apresenta como um desenvolvimento teórico desta perspectiva:
“... uso aqui a expressão situação histórica, noção que não se refere a eventos isolados,
mas a modelos ou esquemas de distribuição de poder entre diversos atores sociais. (...)
O que assim se designa é o resultado de uma análise situacional, pressupondo portanto
o manuseio de situações sociais (no primeiro sentido) e da noção de campo. Trata-se de
uma construção do pesquisador, uma abstração com finalidades analíticas, compostas
dos padrões de interdependência entre os atores sociais, e das fontes e canais
institucionais de conflito”. (Oliveira Filho, op.cit, p.57).
A noção de situação histórica se apresenta assim como uma forma de constituir um padrão
de relações a partir da análise das ações concretas dos atores sociais. O “equilíbrio” indicado por
Gluckman, corresponde aqui à noção de situação histórica.
Outros conceitos construídos com base na idéia de “processo social”, são os formulados por
Victor Turner, de dramas e empreendimentos sociais. Estes conceitos “são perpassados pela
idéia de que a vida social humana é a produtora e o produto do tempo, que torna-se sua medida
(Turner, 1974,p.24). Estes conceitos se apresentam fundamentalmente como ferramentas adequadas
à análise da dinâmica social, no seu caráter essencialmente transformativo:
“Os funcionalistas da minha época na África tendiam a pensar a mudança como
“cíclica” e “repetitiva” o tempo como o tempo estrutural, não o tempo livre. Como
minha convicção sobre o caráter dinâmico das relações sociais eu vi o movimento tanto
como a estrutura, a persistência tanto quanto a mudança. Eu vi as pessoas interagindo,
e como os dias se sucediam, as conseqüências das suas interações. Eu então comecei a
perceber uma forma no processo do tempo social. Esta forma era essencialmente
dramática. Minha metáfora e modelo aqui foi uma forma estética humana, um produto
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
52
da cultura não da natureza. Uma forma cultural foi o modelo para um conceito
científico” (Turner, 1974, 32).
Enquanto “unidades processuais”, esses conceitos são definidos da seguinte maneira:
“Os dramas e empreendimentos sociais como também outros tipos de unidades
processuais representam seqüências de eventos sociais, que vistos retrospectivamente
por um observador, podem se mostrar possuidores de uma estrutura. Tal estrutura
temporal, diferente da estrutura atemporal (incluindo as estruturas conceptuais,
cognitivas e sintáticas) está organizada primariamente através de relações no tempo
em vez do espaço, embora, naturalmente, esquemas cognitivos sejam eles próprios o
resultado de um processo mental e tenham qualidades processuais”. (Turner, op.cit, p.
34-35)
Neste sentido, sendo os dramas e os empreendimentos sociais unidades processuais, é
preciso indicar que se referem a tipos de processo social distintos, que recobrem diferentes
situações.
“Entre estas unidades processuais harmônicas estariam o que eu chamo de
empreendimentos sociais primariamente econômicos em caráter, como quando um
moderno grupo Africano decide edificar uma ponte, escola ou estrada, ou quando um
grupo polinésio tradicional, como os Tikopia de Firth, decide preparar tumerico, uma
planta da família do gengibre, para tintura ritual ou outros propósitos” (Turner, op.cit,
p. 34).
Assim, o empreendimento social (social enterprise) é caracterizado basicamente pelas relações de
cooperação.
O conceito de drama social, por sua vez, recobre uma realidade distinta: “Dramas sociais,
então, são unidades de processo desarmônico ou a-harmônicos, surgindo em situações de conflito.
Tipicamente eles tem quatro fases de ação pública, acessível a observação. Estas são”: 1) Ruptura
das relações sociais de indivíduos e grupos dentro do mesmo “campo ou sistema social”; Tal
ruptura é sinalizada pela ruptura de normas de convivência. 2) ascensão da crise, com a extensão da
ruptura a outros domínios de relações sociais, de maneira coextensiva a outras clivagens existentes.
3) a das ações reparadoras, que visam conter a crise; é nesta fase que as técnicas pragmáticas e ação
simbólica alcançam sua maior expressão; 4º) reintegração do grupo social ou legitimação do
“cisma” o que pode significar a secessão de uma unidade, família ou aldeia. (Turner, 1974, 38-
71).
Neste sentido, o drama social, enquanto construto analítico, fica sempre em aberto, de
maneira que podemos, retrospectivamente, relacionar acontecimentos e processos, aparentemente
desconexos, num quadro, estrutura ou dinâmica, na qual se apresentam como seqüência ou
desdobramento, no tempo e espaço, de outros acontecimentos e processos. Assim, a realidade
etnográfica, descrita e analisada através dos “dramas e empreendimentos”, pode ser pensada como
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
53
uma seqüência contínua de transformações, de empreendimentos a dramas, de dramas a
empreendimentos. As inversões podem ser processar, e o tempo cíclico ou repetitivo se transformar
em tempo dinâmico.
Pretendemos aplicar o método do estudo de casos desdobrados a etnografia terena. Este
método consiste em: “Uma história de casos-desdobrados é a história de um grupo ou comunidade
singular através de um considerável período de tempo, coletado como uma seqüência de unidades
processuais de diferentes tipos, incluindo os dramas sociais e os empreendimentos sociais antes
mencionados”. (Turner, op.cit, p.43)
Cultura e Grupos Étnicos
É importante aqui definirmos como estamos considerando o conceito de cultura. O conceito
de cultura tem de se ajustar a esta situação especifica. Neste sentido Fredrik Barth afirma que: “o
problema conceitual na discussão do pluralismo é, identificar e separar o que ocorre numa
comunidade formada por uma pluralidade de linhas culturais, nenhuma das ênfases permite dizer o
que faz parte de uma das culturas das pluralidade do que faz parte da outra. Todo habitante de
uma comunidade plural precisa saber muito mais do que aquilo que faz parte de uma das culturas
coexistentes (Barth, 1992). Ou seja, dentro de uma localidade marcada pela pluralidade, existem
dificuldades específicas, e a principal delas, é delimitar com clareza, quando uma cultura termina e
outra começa. Além disso, uma vez dada as relações sociais, os conhecimentos que compõem as
ações simbólico-expressivas e garantem a comunicação e interação no contexto societário plural ou
multi-cultural, tem de circular entre os diferentes grupos, de maneira que cada grupo concreto
obrigatoriamente trabalha com diversas referências simbólicas.
O conceito de cultura pode ainda ser qualificado como:
“...tradições culturais, cada uma delas exibindo uma agregação empírica de certos elementos e
formando conjuntos de características coexistentes que tendem a persistir ao longo do tempo,
ainda que na vida das populações locais e regionais varias dessas correntes possam misturar-
se. (...) O principal critério é que cada tradição mostre um certo grau de coerência ao longo do
tempo, e possa ser reconhecida nos vários contextos em que coexiste com outras em diferentes
comunidades e regiões”. (Barth, 2000, p.123-124).
Neste sentido, chega-se a uma primeira definição de cultura, entendida como “tradição”, no
sentido que ela representa algo que as pessoas herdam, empregam, transformam, adicionam, e
transmitem (Barth, 1992). “Tais conceitos deveriam servir para enfatizar propriedades tanto de
separação quanto de interpretação, sugeridas talvez por correntes ou fluxos imaginários de um rio,
que está de forma distinta, poderosa a transportar objetos e criar redemoinhos de água, no entanto
somente relativo em sua distinção e efêmero em sua unidade” (Barth, ibdem). A cultura tem um
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
54
primeiro aspecto, que poderíamos chamar de processual, é mediada por ações (empregar, transmitir,
interpretar).
Logo, podemos dizer que, cada cultura ou tradição cultural, que opera enquanto fluxo ou
corrente (no sentido da metáfora de Barth), pode ser identificada e distinta das outras dentro da
situação de pluralismo pela sua capacidade de auto-reprodução através do tempo, e pelo conjunto de
saberes/conhecimentos que articula.
A análise das tradições culturais, parte do pressuposto que esta é um universo de discurso e,
a partir disso deve-se; “(i) caracterizar seus padrões mais destacados; (ii) mostrar como ela se
produz e reproduz, e como mantém suas fronteiras; (iii) ao fazê-lo, descobrir o que permite que haja
coerência, deixando em aberto para ser solucionado de maneira empírica, como e em que grau seus
conteúdos ideativos chegam a formar um sistema lógico fechado como tradição de conhecimento.
Devemos também estudar os processos sociais pelos quais essas correntes se misturam,
ocasionando pro vezes interferências, distorções e mesmo fusões”. (Barth, 2000, p.126-127).
O conjunto de recomendações de Barth para o estudo da cultura pode ser sintetizado da
seguinte maneira:
“1. O significado é uma relação entre uma configuração ou signo e um observador, e não
alguma coisa sacramentada em uma expressão cultural particular. Criar significado requer o
ato de conferi-lo (...) Para descobrir significado no mundo dos outros (...) precisamos ligar um
fragmento de cultura e um determinado ator, à constelação particular de experiências,
orientações e conhecimentos desse ator.”.
2. Em relação à população, a cultura é distributiva, compartilhada por alguns e não por outros.
(...) As estruturas mais significativas da cultura ou seja, aquelas que mais conseqüências
sistemáticas tem para os atos e relações das pessoas talvez não estejam em suas formas, mas
sim em suas distribuição e padrões de não compartilhamento”.
3. “Os atores estão (sempre essencialmente) posicionados. Nenhum relato que pretenda
apresentar a voz dos próprios atores tem validade privilegiada, pois qualquer modelo de
relação, grupo ou instituição será necessariamente uma construção antropológica”.
4. Eventos são o resultado do jogo entre causalidade material e a interação social, e
conseqüentemente sempre se distanciam das intenções dos atores individuais. Precisamos
incorporar ao nosso modelo da produção da cultura uma visão dinâmica da experiência como
resultado da interpretação de eventos por indivíduos, bem como uma visão dinâmica da
criatividade como resultado da luta dos atores para vencer a resistência do mundo”. (Barth,
op.cit, p.128-129).
Essencialmente, uma outra característica da cultura, é que ela é distributiva, ou seja, o
significado enquanto relação varia conforme variam as perspectiva e posições dos atores sociais.
Não se pode então, descrever e compreender uma cultura sem considerar os seus modos de
distribuição entre os grupos sociais concretos.
Mas podemos adicionar ainda, uma outra definição para o conceito de cultura, que
funcionará de maneira complementar as definições dadas acima. Nesta definição “...a cultura
comunica: a interconexão complexa dos fatos culturais transmite, ela própria informação aqueles
Capítulo 1 Ordem e Anarquia na Sociologia
55
que participam desses fatos. Visto isso, minha proposição é sugerir um procedimento sistemático
que o antropólogo observador participante possa utilizar para decodificar as mensagens contidas
nas complexidades que ele observa”. (Leach, 1978, p. 8)
Logo, o papel da cultura para Leach, é comunicar, é dizer algo, o que supõe
necessariamente, três elementos: o emissor, a mensagem, e o receptor. E “A comunicação humana é
alcançada através de ações expressivas que operam como sinais, signos e símbolos”.
(Leach,1978,p.15). A comunicação realizada pela cultura se dá por meio de ações expressivas,
ações que carregam significados e dizem algo para alguém. Esta posição é compatível com a
posição de Barth
17
.
O que mais nos interessa na definição de Leach, é sua forma de conceituar a cultura
enquanto um sistema simbólico, no sentido de um conjunto de signos/símbolos:
“As letras do alfabeto romano são símbolos se usadas em equações matemáticas, mas quando
usadas no contexto de uma transcrição verbal possuem valores fonéticos convencionais,
aproximadamente fixados e tornam-se signos. Neste ultimo contexto, qualquer letra particular
sozinha não têm significado, mas em combinação os subgrupos das vinte e seis letras-signos
existentes podem representar centenas de milhares de diferentes palavras das mais diversas
línguas”. (Leach, 1978, p.20).
A cultura é composta de três elementos fundamentais: o símbolo e o signo (decomposto por sua vez
em significado e significante). (Leach, op.cit, p.21).
E o que é mais importante, “... o significado depende da transformação de uma modalidade
em outra (metáfora/metonímia)...”, ou seja, o signo em símbolo e vice-versa. (Leach, op.cit,p.33).
Quer dizer, se os signos expressam formas simbólicas pré-determinadas por culturas ou sistema
simbólicos, o símbolo diz respeito à liberdade de associar estas formas à expressão a outras culturas
e sistemas, e o significado só se constrói pela transação se símbolos/signos entre diferentes
contextos culturais, de maneira que não podemos desconsiderar esta dimensão da troca e conversão
para a constituição de cada cultura ou sistema simbólico.
É com este sentido que entendemos o conceito de cultura, como sistema simbólico, ou seja,
como conjunto articulado de expressões de sentimentos/idéias através de símbolos (Leach); como
processo, especialmente no sentido da dialética ação-idéia-ação, ou seja, os símbolos e formas de
expressão simbólica, se materializam em práticas específicas, e se transformam no tempo e no
espaço; como distributiva, quer dizer, a cultura se distribui pelos diferentes segmentos componentes
de uma sociedade, particularizando-se de acordo com as localizações específicas que as formas
culturais assumirem na organização social (Barth).
17
Barth afirma que uma tradição cultural só ganha coerência na ação. (Barth, 2002).
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
56
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
“Nós, do povo Terena da Terra Indígena “Cachoeirinha”, localizada no município de Miranda-MS,
cansados de esperar pelo término do processo de demarcação de nossa terra que há mais de 06 anos
encontra-se em andamento pela FUNAI, sem nenhum encaminhamento concreto para sua conclusão,
desrespeitando todos os prazos estipulados pelo Decreto 1.775/96 bem como a Constituição Federal,
vimos pela presente, manifestar o seguinte:
Que o povo Terena, no dia 28 de novembro de 2005 retomou uma parte de sua terra tradicional chamada
Acampamento Mãe Terra” onde incide a fazenda “Santa Vitória”, na expectativa de que o Governo
Federal termine de uma vez por todas a demarcação definitiva de nossa terra”.
Carta do povo Terena da terra indígena Cachoeirinha para autoridades, Dezembro/2005.
Delinearemos neste capítulo as principais características da atual situação histórica,
focalizando especialmente os processos de territorialização dirigidos pelo Estado e aqueles dirigidos
pelos indígenas, pois esses processos materializam de forma objetiva a interação dialética entre
política indígena e política indigenista, o desenvolvimento de formas de resistência e dominação.
Iremos descrever tanto a estrutura da situação histórica, quanto à morfologia da sociedade Terena,
suas formas de inserção na estrutura econômica e ocupacional regional.
Como podemos ver pela epígrafe, este atual momento é marcado pelo desenvolvimento de
conflitos fundiários, pela constituição de demandas de acesso ou ampliação das terras indígenas. A
luta pela terra e os fatos sociais engendrados por ela, fazem parte de um certo padrão, que
expressam mudanças no balanceamento de forças entre os índios e o Estado, que se materializa
tanto em processos difusos e localizados quanto em formas políticas mais determinadas (mas sendo
resultantes também de processos de transformação macro-estruturais, tanto político quanto
econômicos).
2.1 – A Emergência do “protagonismo étnico”.
Ao percorrermos as terras indígenas Terena, com suas inúmeras aldeias e postos, e nos
relacionarmos com as pessoas que vivem nelas seu cotidiano, percebemos que elas ostentam um
certo “orgulho”, expresso numa discursividade de afirmação da sua identidade de índios Terna.
Essa discursividade manifesta-se na ostentação do fato de os seus “patrícios
18
” estarem ocupando
diversos espaços que no passado só estavam disponíveis aos purutuye” (brancos), espaços
profissionais, políticos ou administrativos.
Os Terena freqüentemente comentam com satisfação o fato de os chefes (ou encarregados)
dos Postos da FUNAI em suas terras serem índios da sua etnia, assim como muitos dos funcionários
da Administração Executiva Regional da FUNAI. Ressaltam também a importância de uma parte
18
Um dos termos pelo qual usualmente um Terena designa outro (na forma singular) ou o conjunto do grupo (na forma
plural).
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
57
significativa dos professores que lecionam nas escolas existentes nas aldeias, e em alguns casos
ainda também os funcionários dos postos de saúde, serem índios Terena.
Além disso, as Igrejas (evangélicas e católicas) que existem em grande número nos diversos
territórios Terena, também são “dirigidas” por índios (presidentes, secretários, tesoureiros), nas
organizações religiosas se manifesta também à “hegemonia” indígena. São inúmeras as
“Associações” existentes, que buscam a captação de recursos externos - todas elas fundadas e
geridas pelos próprios Terena. E a escolha do “cacique”, que foi em diversas ocasiões históricas
imposta ou muito influenciada pelo órgão tutelar, hoje é um cargo eletivo e são as próprias aldeias
Terena que definem através do voto os seus respectivos líderes. Não são poucos os que apontam a
necessidade de os índios terem “representação política” nas câmaras municipais, no sentido de
garantir seus interesses (note-se que vários Terena já se elegeram para cargos no âmbito legislativo
municipal no estado do Mato Grosso do Sul).
Acrescente-se que e isso é possível de se perceber principalmente nas falas das lideranças
Terena, como caciques, membros dos conselhos de aldeia e etc. - que a ocupação destes “espaços”
têm um caráter relativamente intencional: eles dizem, por exemplo, que é importante ter escolas
para preparar os índios para assumirem todas as tarefas possíveis que lhes dizem respeito (na
educação, na saúde, no órgão indigenista), porque, segundo entendem, seria vantajoso para eles
enquanto grupo. Ou seja, a realidade atual é explorada pelos Terena tanto a partir de projetos
individuais quanto coletivos, seguindo estratégias próprias, o que afeta substancialmente as relações
do grupo com os demais agentes (tanto no plano das representações culturais quanto dos efeitos de
poder).
Para exemplificar como os Terena empregam esse discurso afirmativo e como ele está
relacionado a uma prática, podemos citar uma situação social registrada em nosso trabalho de
campo. No dia 25/04/2003, ocorreu no PIN Cachoeirinha uma reunião entre representantes da
Administração Regional da FUNAI de Campo Grande (todos índios Terena), lideranças indígenas
locais e o Chefe do PIN Cachoeirinha (também um índio Terena de Cachoeirinha) para discutir o
Programa Pantanal (um programa de desenvolvimento regional). Uma das pessoas presentes na
reunião disse “dar “nota O” ao Programa Pantanal”. Um dos representantes da FUNAI falou que
“deveriam colocar um patrício na coordenação”. Ele comentou que haviam indicado para a
coordenação do programa um técnico, mas que, entretanto é preciso ter compromisso com a
causa
19
”. A FUNAI, assim disse seu representante, “irá encaminhar ao MPF pedido de
substituição do coordenador “branco” por um “índio”. “É impossível um índio não ter
sensibilidade à causa”, afirmou. As resoluções da reunião, que passariam a ser a posição oficial das
aldeias de Cachoeirinha sobre o tema, indicaram: considerando que os índios não foram
19
A idéia de “causa indigenista” integra o léxico utilizado pelos funcionários e administradores da FUNAI.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
58
convidados a elaboração, e que não há por isso um ajuste entre as ações do programa e a
realidade das aldeias, e que depois do fracasso da produção é o índio o estigmatizado como
preguiçoso, propõe-se a nomeação de um índio para a coordenação do programa”. Está muito
presente nessa situação social, a luta entre “afirmação identitária e estigamização do índio”, como a
“luta simbólica” está associada a “luta pelo poder”.
Outra situação social ilustrativa destas questões ocorreu durante a comemoração do Dia do
Índio em 19 de abril de 2003, poucos dias antes do fato acima mencionado. Enquanto estávamos na
aldeia Cachoeirinha, na sede do PIN, foi possível ouvir a transmissão de um programa da rádio “FM
Terena”,
20
do qual pudemos gravar alguns pronunciamentos. Era um programa comemorativo do
Dia do Índio em que participaram convidados especiais, como o administrador regional da FUNAI
de Campo Grande, na ocasião Márcio Justino Marcos, lideranças das aldeias de Miranda, e o futuro
Administrador da FUNAI, Wanderley Dias Cardoso, índio Terena da aldeia Lalima.
Wanderley, em seu pronunciamento, afirmou:
“Bom dia a todos, da aldeia Moreira e Passarinho e aos mirandenses em geral. É um prazer
estar revendo companheiros aqui, de partido e lideranças indígenas, também conhecendo esta
rádio tem como já foi dita...um instrumento da divulgação da cultura e da força que possui a
nação Terena.
Nós temos hoje uma data muito especial e eu enquanto historiador, educador, é emocionante
falar desta data, porque foi uma luta histórica dos povos indígenas da América do Sul, que
através de muita resistência estabeleceu que 19 de abril fosse chamado Dia do Índio.É um dia
que para nós é especial.
A história do nosso país ela revela um lado triste de tratamento que o sistema de governo,
digamos assim, que foi implantado no nosso país, desde a monarquia, de colonização, de
exploração, tentou dizimar as populações indígenas de todo o país. Mas nós após 503 anos de
país constituído estamos aqui provando o nosso poder de resistência, nosso poder de
organização, nosso poder de acreditar nos nossos sonhos.
Então resistimos, estamos aqui com a rádio com uma potência dessa, outro dia eu estava lá no
centro de Miranda e estava ouvindo um debate que acontecia aqui. Então isto é motivo de
orgulho. E com certeza nós estamos num momento histórico em que tá aberto o diálogo, toda
discussão concernente à questão indígena. Nós termos aqui uma nova forma de governar, está
proposto isso no nosso estado, no nosso país. Então vai valor cada vez mais nossa organização,
nossos movimentos. (Wanderley, Aldeia Moreira, MS, 19/04/2003).
Outro pronunciamento que merece destaque foi o realizado por Carlos Jacobina (que
disputaria, com Wanderley o cargo de administrador regional), irmão do cacique da aldeia
Passarinho Wilson Jacobina, e membro do Conselho estadual de Política Indigenista, que falou:
“Mas esse momento a gente tá falando dos nossos problemas, das nossas políticas, dos nossos
movimentos, Faustino eu quero parabenizar você, parabenizar a direção da rádio, (...) Nós
estamos no movimento indígena aqui no município de Miranda, bem como no estado, a gente
enfrenta dentro do movimento divergência de nossas lideranças, de nossos patrícios.
20
Rádio Comunitária que tem sua sede funcional na aldeia de Moreira, a alguns quilômetros de Cachoeirinha, também
município de Miranda.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
59
Só quero relembrar quando pessoas se colocaram contra a rádio (...) Qual a importância da
radio FM Terena no município de Miranda, a importância da radio Fm Terena para nossa
população indígena registrando a presença do administrador, do vice-prefeito, registrando a
presença da presidente do partido, das lideranças indígenas, do Néder Vedovato presidente da
Câmara dos Vereadores, a gente conversando com você ouvinte, morador aqui da aldeia, que
vive o dia a dia daqui da aldeia, vive os problemas o quanto é importante essa radio.
Eu quero fazer meu apelo da população indígena daqui da aldeia Moreira para que apóie a
FM Terena, temos que apoiar, porque é através desse veiculo que nós levamos a comunicação,
levamos a novidade, nós levamos a noticia, nós fazemos nossa proposta, nós fazemos nossas
colocações sobre a política indigenista.
Parabéns Faustino, parabéns aldeia Moreira, por ter a honra de ter uma rádio, a FM Terena,
ter uma rádio que tem um momento da cultura indígena Terena, é o momento de nossas
comunidades indígenas começar a refletir sobre nossas potencialidades, das nossas demandas,
que são os nossos professores, que sãos as nossas organizações evangélicas, são as lideranças
indígenas, os conselheiros tribais, as associações, movimentos indígenas, as rádios
comunitárias que temos nas aldeias é o momento de nós refletirmos, dizermos não a
exploração, e aonde a população indígena quer chegar. (...) (Carlos Jacobina, Aldeia Moreira,
MS, 19/04/2003).
O discurso de Wanderley fala do “poder de resistência, poder de organização” dos índios, dentro da
história brasileira (e a categoria resistência aprece em diversos momentos na composição narrativa).
O discurso de Jacobina fala de “potencialidades e demandas” ao citar um conjunto heterogêneo que
inclui professores, organizações evangélicas, lideranças e rádios comunitárias. Os dois discursos
considerados permitem indicar que dentro das aldeias Terena, existe um discurso, uma narrativa
auto-afirmativa acerca da história indígena, que evoca a idéia de “resistência” e que expressa um
posicionamento quanto ao “lugar que o índio” deve ocupar na sociedade. As identidades acionadas
(historiador, educador) mostram também as posições políticas e as bases concretas, factuais, do
discurso de afirmação identitária.
Esse discurso e essa prática se expressam em fenômenos diversificados, difusos, que se
apresentam como um campo de estudos e problemas etnográficos, teóricos e políticos. Acreditamos
que destas evidências do discurso indígena (que dado seu contexto de enunciação, são fragmentos
de ações políticas) são sintomas de um processo social-histórico de transformação das relações de
poder entre índios, grupos sociais dominantes e o Estado-Nacional. O que está na base deste
processo é a emergência do que podemos chamar de protagonismo étnico, num contraponto direto
às bases simbólicas e políticas do regime tutelar instituído em 1910 com a criação do SPI e
ratificado pelo Estatuto do Índio de 1973.
Este protagonismo étnico recobre um conjunto heterogêneo de intervenções e ações políticas
indígenas. Oliveira Filho apontou que os índios formularam diferentes práticas ou estratégias
políticas frente ao regime tutelar que lhes foi imposto:
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
60
“Frente à estrutura tutelar, os indígenas se encontram diante de três alternativas concretas. A
primeira, que para simplificar definiremos como índios funcionários, é que os índios entrem no
jogo das relações clientelistas estabelecidas com os indigenistas, encontrando ai canais de
acesso ao uso de recursos coletivos e a acumulação de bens materiais e prestigio. A segunda
que chamaremos de assembléias indígenas, se refere à mobilização por terra e assistência. A
terceira que chamaremos de organização indígena, busca criar mecanismos modernos de
gestão territorial e desenvolvimento. Há também outras alternativas que envolvem na sua
maioria formas de mobilidade individual e familiar ..”. (Oliveira Filho, 2006, p. 137)
Dessa maneira, estamos considerando diferentes possibilidades de intervenção política
indígena, mas em todas elas o regime tutelar é não somente o contexto geral, mas o próprio alvo
direto dessa intervenção. Além disso, os dados globais mostram que esse fenômeno verificado entre
os Terena é generalizado nas sociedades indígenas, e que as três formas de intervenção política têm
efeitos agregados muito importantes.
Hoje a FUNAI afirma possuir 1300 funcionários indígenas, num universo de cerca de 3000,
ou seja, mais de 40%. Com relação às assembléias indígenas, suas proposta eram encaminhadas
através de uma sucessão de encontros e reuniões realizados em escalas diversas, recobrindo desde
as aldeias até pólos regionais e das capitais, sendo iniciadas em 1974 em Mato Grosso. Tais
assembléias até o final da década de 1970 chegaram a 15; entre 1980 e 1984 foram realizados 42
encontros desse tipo (Oliveira Filho, 2006, p.137-138). Com relação às organizações indígenas,
houve também um processo importante. “Em 1991 já eram 48, em 1996 somavam 109 e em 1999
alcançaram as 290. Desse total, 195, ou seja, mais de 2/3, estavam situadas na Amazônia,
refletindo a prioridade brindada a essa região nos financiamentos internacionais”. (Oliveira Filho,
2006, p. 145)
O conceito de protagonismo étnico visa apreender esses processos difusos de mudança nas
relações e cadeias de poder (mudança que significa que as diferentes posições dentro de
instituições, comunidades, espaços de produção, estão tendo sua função e significado redefinidas).
Isso quer dizer que um símbolo, um posto administrativo ou profissão passam a ter importância
estratégica dentro dos esquemas e relações de poder, podendo representar maior acesso ao controle
de recursos ou expressar simbolicamente um aumento de status de certos sujeitos (ou a destruição
de certas representações, legitimadoras das formas de dominação). O protagonismo étnico, em
termos sociológicos, é a afirmação da capacidade política indígena, do seu caráter de sujeito e de
sua capacidade de “governo”, o que exige três elementos básicos: 1) a constituição de centros de
ação política, formais ou informais; 2) a formação de idéias ou discursos comuns que delimitam
fronteiras de oposição política e se opõem à certas idéias da estrutura de dominação; 3) o aumento
do poder dos grupos submetidos a essa estrutura. Essas características se aplicam à realidade dos
Terena enquanto grupo étnico.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
61
Mas é importante perceber que na realidade sob o protagonismo étnico, se encontram
estratégias não somente diferentes, mas contraditórias
21
. Poderíamos agrupar em duas grandes vias
de ação política, que se relacionam de forma diferentes com a estrutura de dominação, ou seja, a
política indigenista e o regime tutelar. O discurso de “Marcos Terena” deixa muito claro o
delineamento de uma dessas vias:
“Temos a plataforma de uma Secretaria Especial de Direitos Indígenas e um índio na
presidência da Funai [Fundação Nacional do Índio]. Esse trabalho o governo já sinalizou que
é possível, mas temos que construir isso de acordo com as possibilidades. Chegou o momento
do índio não só requerer direitos, mas responsabilidade, co-participação.”
Esse discurso foi pronunciado numa Conferência Regional em Brasília realizada com o
apoio da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e da Organização das
Nações Unidas. O tema do evento são os avanços e desafios do “Plano de Ação Contra o Racismo”.
Cerca de 400 representantes de 35 países participaram do encontro, que avaliou os compromissos
firmados no encontro de Durban (África do Sul) em 2001. Poderíamos denominar essa via,
apontada por Marcos Terena como a “via da co-gestão indígena”, ou seja, que visa estabelecer
mecanismos que possibilitem aos índios se tornarem co-gestores das instituições político-
administrativas do regime tutelar. Isso tem uma série de efeitos de poder e significados
sociológicos. Num certo sentido, esta via da co-gestão é sustentada por grande parte das lideranças
e população Terena, se apresentando como um projeto político compartilhado por diferentes facções
e comunidades locais. Mas essa via não esgota as alternativas, até porque as variações no campo e
nas arenas das relações interétnicas (como o conflito fundiário) possibilitam a introdução de novas
estratégias de intervenção política (como as ocupações de terra), que modificam os processos
locais.
Uma outra via, é a da “resistência aberta”, e que se opõem de forma local e concreta, aos
principais efeitos e mecanismos de poder do regime tutelar, pautada num enfrentamento político
contínuo. Mas a resistência se coloca como no documento citado na epigrafe como forma de
pressão sobre o Governo, pelo menos no seu momento inicial. Essa via se esboça hoje, e assim
como a via da co-gestão, é um desdobramento das formas cotidianas de resistência dentro das
aldeias Terena, compondo assim um quadro de alternativas complexas e contraditórias.
21
“Deixando de lado os impactos sobre a opinião publica e com relação ao reordenamento da política oficial, os
resultados desse processo foram relativamente limitados sobre a forma de organização política das aldeias e sobre o
controle dos territórios étnicos. Os mediadores indígenas que tinham uma fonte de poder externa a aldeia e de fora dos
mecanismos de controle da coletividade que pretendiam representar, se tornaram progressivamente frágeis frente ao
poder de Estado e as acometidas dos setores poderosos da sociedade. Apenas especialistas na função de intermediação
para fora, muitas das lideranças indígenas terminaram por ser capturadas nos anos seguintes pela estrutura tutelar,
transformando-se em braceros, em chefes de posto, em professores bilíngües, monitores de saúde ou ate
administradores regionais e assessores (em Brasília).” (Oliveira Filho, 2006, p. 143)
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
62
A existência e o significado da emergência deste protagonismo étnico, e as contradições
inerentes a esse processo, só podem ser compreendidas pela caracterização da estrutura de
dominação na qual este protagonismo emergiu, e mediante o entendimento dos efeitos dialéticos da
interação de ambas as vias. Por isso é impossível compreender a emergência desse protagonismo
étnico sem compreender o que é o regime tutelar. É essa tarefa que nos dedicaremos agora.
2.2 – Signos da Superioridade, Códigos do Domínio.
Em 1911 o tenente Alípio Bandeira pronunciou um discurso na sessão de instalação da
Inspetoria do SPI no Amazonas. Este discurso seria publicado com alguns outros documentos
(Memorial com um projeto de lei em que se define a situação jurídica do índio brasileiro, O
Decreto nº 5484 de 27 de Junho de 1928 que regula a situação jurídica dos índios nascidos no
território nacional, Regulamento do serviço de Proteção aos Índios e Localisação de
Trabalhadores Nacionaes) num livro intitulado “Coletânea Indígena”, editado pela tipografia do
Jornal do Comércio em 1929. Este conjunto de documentos serve para analisarmos as bases
simbólico-culturais e teóricas da política de assistência e proteção aplicada pelo Estado aos índios,
política esta que criou a relação e regime tutelar (tal como ela existiu no século XX).
O texto do discurso de Alípio Bandeira começa da seguinte maneira:
“A voz estrangulada de doze gerações de martyres brada contra nos através de quatrocentos
annos de extermínio. Voz de infortúnio e desespero (...) e fala como uma trompa apocalyptica do
sacrifício de alguns milhões de índios, que, em vez de termos chamado ao convívio da
civilização, imolamos barbaramente aos ditames da nossa ganância, da nossa fereza até- força
é dizel-o da nossa covardia. Voz de maldição e de praga, ella penetra a nossa consciência, e,
sob a forma viperina de remorsos, recorda-nos os processos tenebrosos que empregamos na
conquista da costa pelo colono..”. ” (Bandeira, 1929, p.4)
A narrativa adotada traça uma leitura histórica do processo de conquista colonial,
expressando uma espécie de “consciência culpada do branco” acerca de sua relação com os povos
indígenas; é um discurso de denúncia e ao mesmo tempo, uma confissão, como se as palavras
enunciadas por Alípio Bandeira, expressassem a “voz” da sociedade branca diante de um tribunal,
sendo o acusado e o acusador os mesmos sujeitos.
A análise da história indígena ressalta que no passado o “extermínio ou o etnocídio” se
impuseram como formas dominantes de relação entre brancos e índios; ao mesmo tempo esta
analise lançava um alerta, sobre a possibilidade de reedição deste etnocídio. É também realizada
uma apologia dos índios, da “resistência” que eles ofereceram a este processo:
“Elles resistiram: nós os intrigamos uns com os outros, para enfraquece-los. Resistiram ainda:
nós os fomos surpreender em outros pontos. Elles recuaram diante da superioridade da força e
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
63
se embrenharam pelas florestas remotas; nós os procuramos ai mesmo e, ainda pelo processo
da investida traiçoeira, destruímos impunemente o ultimo refúgio dos desgraçados”.
Nesse hediondo quadro de desolação e morte, não sei eu o que mais deva impressionar a alma
do patriota; si a resistência épica dos míseros habitantes das selvas, entregues aos seus
insignificantes recursos, reduzidos aos mais elementares meios de defesa, divididos, ludibriados,
desprotegidos, si a ignobil constância na perseguição, apesar da fraqueza da victima e,
portanto, da cobardia do feito”. (Bandeira, op.cit,p.6).
O ponto de partida da análise histórica de Bandeira é a constatação da luta de morte entre os
índios e a sociedade nacional, de maneira que a “resistência indígena” se opunha ao “extermínio
branco”. A resistência indígena é celebrada pelos militares positivistas fundadores do SPI. Mas é
fundamental observar que a resistência, tal como concebida pelos militares, está inserida em uma
série de teses e signos que dão um significado bem preciso a ela; na realidade a resistência indígena
está associada a uma “idade de ouro” das sociedades indígenas que o próprio extermínio e conquista
colonial liquidou. A resistência pertence a esta idade de ouro que desapareceu em face do avanço da
conquista e colonização do território. Existe no discurso dos militares uma visão que poderíamos
chamar de romântica e passadista, acerca da resistência indígena; romântica no sentido que essa
resistência é objeto de veneração, mas considerada ineficaz, impotente; passadista pois ela está
associada necessariamente a um passado perdido. A narrativa histórica positivista leva a
“vitimização dos índios”, entendendo a vitimização como a junção estrutural entre a denúncia do
genocídio e a afirmação sub-reptícia da incapacidade indígena.
Esta narrativa histórica visa fornecer o contexto básico para a tomada de um posicionamento
político; mas ela prepara o terreno também a enunciação de teses, digamos, acerca da natureza e do
caráter do índio. E assim é que se delineiam as bases simbólico-culturais da tutela.Vemos isso
através do discurso:
“O português que no século XVI aportou as plagas do Brazil, encontrou nesta parte da
América povos de assimilação facílima, a julgar pelo testemunho dos antigos navegadores e
viajantes.
Eram sóbrios, confiantes, dóceis e ingênuos e, como tal, amigos da festa e da alegria.
Estavam esses povos na infância da humanidade e, portanto, participavam assim dos vícios e
virtudes inherentes a essa situação.
Sendo como creanças que a educação amolda e modela à vontade e feição do educador, uma
sábia e humanitária política tel-os-ia aproveitado tanto para o desbravamento da terra como
para o concurso intellectual e moral que era licito esperar delles”. (Bandeira, op.cit,p.8)
O índio aparece como um tipo de sujeito coletivo suscetível de assimilação, de caráter “dócil
e ingênuo”. Mas o mais importante, o índio aparece como uma “criança simbólica”, ocupando um
estágio infantil na escala de evolução da humanidade. É a educação, uma relação pedagógica na
qual a sociedade nacional ocupa o papel de “professor” e as sociedades indígenas de “alunos”.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
64
“Sabe-se que não é a inntelligencia o característico predominante na raça amarella, a que
pertence o aborigenme brasileiro. Seu princvipal principal atributto é a actividade, coimo a
intelligencia o é do branco e sentimento do negro, conforme a melhor apreciação philosofica.
O índio não é, pois, um typo que se distingua pela capacidade intellectual; d´ahi, porem, a
consideral-o estúpido vai tão grande erro como iria em suppor o branco malvado por não ser o
sentimento o seu apanagio” (Bandeira, op.cit,p.14-15).
Esta tipologia de “raças” indica ao mesmo tempo uma diferenciação de aptidões e
capacidades. O índio é considerado como pouco propenso às atividades intelectuais e apto as
“atividades” (ao trabalho). O índio é considerado como possuidor de baixa capacidade intelectual.
Na realidade, toda a análise histórica de Alípio Bandeira prepara suas considerações sobre a
situação do índio no início do século XX. Ele afirma:
“Pouco differe a situação actual do indígena brazileiro da em que elle se encontrou nos tempos
coloniaes.(...)
“Esta precaríssima situação, inverso de todos os princípios de justiça e humanidade, é uma
resultante do desprezo em que os poderes publicos deixaram o mais genuíno elemento da
população nacional”. ” (Bandeira, op.cit,p.20- 21)
E aqui se coloca a conclusão principal: a situação de opressão vivenciada pelos índios era
decorrente da não intervenção do Estado enquanto mediador nas relações entre a sociedade
nacional e sociedades indígenas. Esta situação de omissão dos poderes de Estado diante da questão
indígena somente teria sido resolvida pela criação do SPI em 1910, que cumpriria a missão de
“proteção e assistência” aos povos indígenas. O papel do SPI era o de retirar o índio da situação de
degradação e colocá-lo dentro da civilização.
É esta tarefa que Alípio Bandeira entende ser definidora do SPI. Ao falar sobre o
regulamento do SPI, ele diz: “Mas o que realmente preoccupa o espírito do regulamento é a
proteção em todos os sentidos ao índio brazileiro, já fornecendo-lhe gratuitamente tudo o que
precise desde o alimento até a ferramenta de trabalho..”. (Bandeira, op.cit, p.24) Ao mesmo tempo
em que se define uma obrigação do Estado para com os Índios, estabelecesse-se um plano de
utilização para os mesmos: “E depois não seria mais nobiliante que os filhos da terra fossem os
desbravadores do seu solo, os cultivadores da gleba, os guardas da fronteira?” (Bandeira, op.cit,
p.26). A formação do “índio-trabalhador e o índio-soldado” aparece como meta e razão de ser da
política de Estado, coroando toda a análise histórica e a caracterização da natureza do índio
realizadas por Bandeira.
No outro documento componente da mesma publicação, temos um “Memorial acerca da
antiga e moderna legislação indígena com um projeto de lei apresentado ao tenente Coronel
Candido Mariano da Silva Rondon” por Alípio Bandeira e Manoel da Costa Tavares
Miranda”. Este memorial se apresenta como fundamentação histórica e teórica a proposta de
regulamentação da situação jurídica dos índios, como os autores declaram: “Dando unidade e
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
65
corpo as idéias predominantes deste memorial, no intuito de reduzil-as a um instrumento legal de
proteção aos índios, organizamos o projeto de lei que vae appenso e que, com a devida vênia,
apresentamos”. (Bandeira & Miranda, 1929, p.70-71).
Este documento apresenta uma análise da “legislação indígena” desde o século XVI até o
século XX, criando uma polarização entre os defensores da escravização e extermínio dos índios, e
aqueles da proteção e liberdade.Também tenta mostrar como a legislação era contraditória,
oscilando sempre entre estes extremos.
Algumas formulações acerca do caráter do índio são adicionadas. Exatamente porque se
visava formular uma proposta de regime político e jurídico para a administração dos índios.
Vejamos:
“Ora, sucede que ao índio, ao menos enquanto não se modificar sufficientemente a sua situação
o que só é possível pelo convívio social - não é razoável que si outorguem certos direitos e
menos ainda que se imponham outras tantas obrigações. Estas e aquelles seriam innumeras
vezes, por falta de capacidade do sujeito, inteiramente descabidos.
Deve, pois, haver não apenas restricção de regalias, mas também, e especialmente, diminuição
de responsabilidade. Evidentemente o índio que comete, por exemplo, um assassinato, não pode
ser passível das mesmas penas que se applicam em taes casos ao civilisado (...)
“Ainda quando sejam eles equiparados a menores, muito é de considerar a grande differença
que existe entre um menor creado e educado no seio da sociedade civilizada, conhecedor dos
hábitos e noções correntes no meio em que vive, e um habitante das selvas que, sobre
desconhecer estes habitos e noções, é ainda movido e dominado por costumes radicalmente
diversos”. (Bandeira & Miranda, op.cit, p. 63)
A analogia índio/criança tinha uma limitação objetiva: uma criança não indígena sempre
seria mais apta a viver e interagir na sociedade nacional que o índio. Desta maneira, o índio é
pensado como silvícola (em oposição ao civilizado), diferente culturalmente, e esta diferença e
distancia é o que o impede de ser sujeito de direitos e deveres, ou seja, politicamente capaz.
Os discursos de Bandeira e Miranda, que na realidade expressavam o discurso do SPI,
articulam por meio de uma narrativa histórica diversos signos/representações, que visam dar
significado tanto a categoria índio (e os grupos sociais que ela recobre) quanto a política de Estado
estruturada em torno dela (ao mesmo tempo justificando e apontando seus meios e objetivos).
Podemos falar de um conjunto de signos acionados pelo discurso dos militares do SPI, que
traduzem sempre uma relação de desigualdade de capacidade e de poder, composta por pares de
oposição que estruturam a idéia de tutela: a oposição “adulto/criança” (que se funda numa analogia
com os ciclos biológicos); a oposição “civilizado/primitivo” ou selvagem (tipos de sociedade, nível
social, técnico e cultural); a oposição “capaz/incapaz” e (no sentido político, mas também,
intelectual e biossocial, já que a incapacidade está associada ao “caráter fisiológico” e ao “tipo de
sociedade” do índio). Este conjunto de signos remete sempre a desigualdade, mas não através do
mesmo conteúdo simbólico, e podemos dizer que são signos porque fazem parte de um conjunto,
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
66
dentro de uma estrutura narrativa acerca da história indígena e dão sustentação as idéias de
assistência e proteção do Estado. Os índios são considerados como crianças, como estando na
“infância da humanidade”, mas estão aquém das crianças civilizadas; desta maneira a distinção
entre “civilizado e primitivo”, define uma fronteira ainda mais acentuada, e diz que infantilidade
não é suficiente para traduzir a condição do índio em face da sociedade nacional; por outro lado, a
oposição “capaz e incapaz”, é a conclusão política e societária das duas oposições anteriores. O
índio pode ser considerado como criança porque é primitivo/selvagem, mas sendo primitivo está
aquém das próprias crianças civilizadas, e sendo assim rebaixado duplamente, ele é duplamente
incapaz, no sentido de que está fora da civilização e quando se aproxima desta é colocado numa
condição de infantilidade. Este raciocínio foi fielmente traduzido na regulamentação jurídica do
regime tutelar, através da categorização dos índios.
As representações acerca da superioridade/inferioridade, infantilidade/adultidade,
capacidade/incapacidade, estão associadas ao mesmo tempo a uma interpretação da história
formulada dentro dos aparelhos de Estado e por agentes sociais como os militares, vinculados
organicamente a este mesmo Estado. É pelo fato do índio ser concebido/percebido a partir destes
signos, que se coloca a idéia de proteção e assistência como centrais. Sendo o índio incapaz, ele
precisa de um protetor, de alguém que o represente e atue como provedor. A idéia de “proteção” é
associada ao “controle”, sendo a tutela a forma concreta pela qual se estabelecem as formas de
proteção e controle do Estado sobre os índios. O papel político, a ação e pensamento indígenas são
obliterados, colocados como meramente determinados pela sociedade nacional e pelo Estado-
Protetor. No fim, o Estado aparece como o verdadeiro e único sujeito da história indígena, já que
sendo o índio incapaz, este somente existe graças ao Estado. Assim a relação e o regime tutelar,
aparecem como único meio possível de impedir o extermínio final e definitivo dos índios. O índio
não existe sem a tutela.
É interessante observar que esta tese (a de que ausência de proteção do Estado é o fator
determinante para a história indígena) acaba sendo compartilhada por muitos estudos sobre os
Terena, como por exemplos os clássicos de Kalervo Oberg, Fernando Altenfelder e Roberto
Cardoso. Partindo de teorias da “aculturação e assimilação”, normalmente fazem afirmações que
indicam que a sobrevivência dos Terena enquanto grupo étnico diferenciado, só foi possível pela
intervenção do Estado através do SPI (OBERG, 1948, p.291 e OBERG, 1949, p.35). Correntes da
antropologia e do pensamento cientifico acabavam reificando, dessa maneira, o discurso indigenista
ou estatal.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
67
2.3 - Política Indigenista e Regime Tutelar: construção e metamorfoses.
De acordo com as definições tradicionais:
“A tutela em direito civil, designa o instituto que, juntamente com o pátrio poder e a curatela,
integra o sistema legal de proteção aos incapazes. Pode ser conceituada como o ‘encargo
conferido a alguém para que dirija a pessoa e administre os bens do menor que não incide no
pátrio poder do pai ou da mãe”. (Dicionário de Ciências Sociais, FGV).
Enquanto dispositivo jurídico, se apresenta fundamentalmente como uma intervenção na relação
familiar, para regular o patrimônio ou propriedade, transmitidos através do direito de herança, em
situações em que a criança se encontra órfã ou similares (ou seja, sem o controle da família). O tutor
se apresenta como um substituto da “família”, e também como um substituto/representante da
criança em atos civis. Desta maneira, a tutela se apresenta como uma intervenção transitória e em
caráter excepcional, regulamentada pelo Estado, no direito de propriedade e na liberdade individual
(ir e vir, decidir, expressar), dentro da relação família-indivíduo.
Mas o regime tutelar nesta forma se baseia no pressuposto de que a situação de tutelado é
“transitória”, é um intervalo de tempo em que o individuo a criança cresce e adquire a
capacidade exigida para exercer seu direito de propriedade e seus direitos civis. Ela estaria então,
objetivamente limitada, pelo ciclo biológico do individuo, de maneira que escapa ao tutor,
determinar até quando o tutelado ficaria nesta condição.
A tutela é uma categoria jurídico-política que foi aplicada as relações interétnicas, mas não
sendo originaria e exclusiva deste universo. A situação dos índios no Brasil é determinada pela
relação tutelar, em que o Estado impõe uma dinâmica aos grupos étnicos, e um regime jurídico
tutelar que regula esta mesma relação. Devemos perceber entretanto a construção histórica desta
relação, e suas transformações e o significado político destas últimas. A tutela é um tipo concreto de
relação constituída entre o Estado brasileiro e os povos indígenas através de um processo histórico
de longo prazo. A forma estabelecida em 1910 representava uma mudança em comparação à tutela
orfanológica, que vigorou desde 1831. Esta relação foi o produto da conquista colonial, e sofreu
transformações importantes ao longo da história, especialmente nas transições do regime colonial
para o Império, e do Império para a República. Para entendê-la é preciso compreender suas
metamorfoses.
Podemos dizer que o regime tutelar passou por três diferentes momentos históricos. O
momento de sua gênese corresponde ao período final do regime colonial no Brasil, em que surge a
tutela orfanológica que era um dispositivo que visava garantir a disponibilização de força de
trabalho indígena, aplicando-se aos índios que se encontravam deslocados de seus respectivos
grupos. O segundo momento corresponde à extensão da tutela orfanológica aos índios em geral, por
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
68
lei imperial de 1831, que associa também os direitos territoriais, à relação tutelar. O terceiro
momento corresponde à transição da tutela orfanológica para a tutela do SPI, por decreto, em 1928,
em que a tutela seria exercida agora por uma instituição de Estado especializada. Manuela Carneiro
da Cunha indica que:
“É no entanto na transição da escravidão indígena para o trabalho assalariado que, no bojo
das reformas pombalinas implementadas a partir da década de 50 do século XVIII, podemos
localizar, com maior precisão, a gênese do conceito de tutela orfanológica”. (Carneiro da
Cunha, 1988, p. 104).
A principal providencia tomada pelo Governo Colonial para impedir uma evasão dos índios
libertos, citadinos ou a serviço dos moradores no interior da capitania foi colocá-los sob o
regimento dos órfãos”. (Carneiro da Cunha, op.cit, p.107).
Desta maneira, a tutela, na sua gênese e na primeira forma que assume, está relacionada
primeiramente, as necessidades econômicas da Coroa Portuguesa: visava garantir a
estabilidade da oferta de mão de obra indígena (...)
Na verdade o juiz de órfão foi usado em todo o século XIX para tutelar toda a mão de obra
potencialmente rebelde: ficavam sob sua jurisdição não apenas os índios, mas os escravos
alforriados e os africanos livres”. (Carneiro da Cunha, 1988, p.110).
A relação tutelar surge ainda sob regime Colonial, como um dispositivo de dominação, que
incidia simultaneamente sobre a política e sobre a economia; não era um dispositivo exclusivamente
aplicado aos indígenas, mas, aos negros africanos, ou seja, incidia sobre os grupos etnicamente
diferenciados, visando estabelecer sobre eles o controle e a disciplina que garantisse sua
participação enquanto mão de obra na economia colonial.
A relação tutelar é marcada por um impulso simultaneamente preservacionista e dominador.
Ela tem como ponto de partida a desigualdade social e econômica gerada pela guerra de conquista
colonial. Esta relação, em ultima instância, consagra esta desigualdade e lhe dá um formato
jurídico-político historicamente especifico, distinto daquelas formas anteriores, existentes durante
os séculos XVI-XVIII. A relação tutelar, desta maneira, coloca-se como forma histórica de
institucionalização da desigualdade entre grupos étnicos e outros grupos sociais, dentro do contexto
de formação do Estado-Nacional.
O regime tutelar pode ser definido como um conjunto de dispositivos político-
administrativos (calcados em signos/símbolos difusos) destinados a governamentalização
22
dos
índios. A governamentalização, tem dois objetivos: criar uma racionalidade na exploração dos
povos colonizados, aproveitando os índios enquanto população, transformando-os em mão-de-obra
para extrair-lhe o sobre-trabalho. Ao mesmo tempo é uma forma de dominação que pautando-se não
22
“Para concluir, gostaria de dizer o seguinte. O que pretendo fazer nestes próximos anos é uma história da
governamentalidade. E com esta palavra quero dizer três coisas: 1 - o conjunto constituído pelas instituições,
procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa
de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos
essenciais os dispositivos de segurança. 2 - a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante
muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros - soberania,
disciplina, etc. - e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de
saberes.” (Foucault, 2004, p. 174).
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
69
na lógica da sobrerania, mas na da gestão ou governo (ver Foucault, 2004) em que a preocupação
central é deslocada da arte de manter o poder para arte de governar, porque o poder deixa de ter
grandes ameaças internas ou externas. A introdução da “economia” ao nível do governo geral do
Estado estabeleceria o principio do controle, da vigilância, da “gerencia” dos bens e indivíduos
(como o pai de família faz dentro da sua casa). Implica um deslocamento da preocupação com o
território para a preocupação com os “homens e as coisas”, entendidas como as riquezas, os
recursos naturais (Foucault, ibdem). Ao mesmo tempo, cria-se uma “razão de estado” que não se
legitima somente pela vontade interna de manter o poder, mas pela eficácia ou “boa gestão” dos
governados, o que significa a idéia de identificação, ou internalização da própria dominação, no
sentido que a população não é mais somente alvo de políticas de conquista, mas de gestão, e que o
governo visa garantir o melhor para ela (do ponto de vista da razão de governo, mas ainda assim se
forma uma outra forma de legitimação do poder). O “príncipe” (o governante) não está mais em
relação de exterioridade, mas sim de identificação, com a população.
O regime tutelar foi instaurado a partir da ação dos sertanistas e militares positivistas no
início do século XX e tem as características que indicam a governamentalização do Estado
brasileiro. Sua arquitetura jurídico-normativa é estabelecida a partir de dois dispositivos principais,
o Decreto Nº 9214 15/12/1911, o “Regulamento do Serviço de Proteção aos Índios e Localização
dos Trabalhadores Nacionais” e o Decreto nº 5484 de 27/06/1928, tal como aprovado por
Washington Luiz, então presidente da República.
Este decreto foi baseado numa proposta de instrumento legal elaborada por Alípio Bandeira
e Manoel T. Miranda, em 21/04/1911. Ou seja, o processo de codificação jurídica foi lento e
somente se deu a posteriori da implantação do SPI enquanto instituição tutelar. A criação do regime
tutelar se deu pela ação política das redes de poder (compostas por militares positivistas,
engenheiros e outros) integrantes ou não dos quadros do SPI. O decreto de 1928, concebido dentro
do SPI:
“Em outros termos, propunha-se a incapacidade dos nativos relativamente ao grau de
civilização, que deveria ser aferido pelo SPILTN, a tutela cessando à medida em que se
transformassem em trabalhadores nacionais como tantos outros. A idéia estava pronta em
1911, antes da apresentação da emenda de Munis Freire ao Senado (publicada pelo DCN em 5
de dezembro de 1912), o texto definitivo do código civil nada mais fazendo do que consagrar o
proposto pelo SPILTN”. (Lima, 1995, p. 207).
O regime tutelar foi sendo materializado em lei ao longo 15 anos, até a aprovação do decreto
pelo Senado em 1928. Esse regime esteve diretamente relacionado aos interesses do órgão que o
concebeu e trabalhou pela sua estruturação política. Uma preocupação central seria a da
nacionalização dos índios, de maneira que: “As idéias em torno das quais se organizaria o Serviço
estariam claramente estabelecidas no regulamento aprovado pelo decreto nº 736, de 6 de abril de
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
70
1936 (...) O regulamento marcava-se pela preocupação com a nacionalização dos silvícolas, com o
fim de incorporá-los à Nação (art1º)”. (Lima, 1992, p. 165).
De uma certa maneira estes dois documentos legais é que instituem per si o regime tutelar,
impondo uma forma de “gestão indireta e branca” aos grupos indígenas. A arquitetura interna do
regime tutelar tal como descrito acima, instituída durante as atividades do SPI, se pauta pela
prescrição especifica de um conjunto de poderes (baseados na oposição primitivo/civilizado,
superior/inferior, criança/adulto). O regime tutelar se estende a múltiplas dimensões da vida dos
grupos étnicos, de forma molecular; da regulação de atos individuais relativos à troca,
documentação, e etc, até a gestão dos bens. O principal poder instituído pelo regime, é da
substituição da ação e vontade do tutelado pelo tutor, ou seja, pelo Estado. Em todos os domínios
seria garantida a gestão indireta dos bens e decisões dos índios. De outro lado, a exclusão da
possibilidade de acesso dos índios ao serviço público, fez com que essa gestão indireta assumisse a
feição de uma “gestão branca”, ou seja, os índios seriam geridos, administrados por “brancos” que
teriam a autoridade de decidir quase tudo em seu nome frente ao Estado e Sociedade Nacional. A
linha de dominação política cristalizou uma clivagem “étnica” dando-lhe outro significado. Outro
poder, é o da investidura da identidade étnica. O art. 42 deixa claro que quem atesta quem é índio e
em qual categoria se enquadra é o inspetor do SPI, ou seja, o Estado. Era um poder ao mesmo
tempo de submeter ao controle e proteção do regime tutelar ou excluir de ambos.
Entretanto cabe indicar aqui uma duplicidade de regulação, já que os índios que vivessem
em “promiscuidade” com civilizados poderiam ser submetidos a um regime diferente dos demais
índios, ou seja, à regelações externas ao regime tutelar. É o caso das exceções previstas no tocante
as penas e crimes e mesmo aos bens. A princípio, essa duplicidade seria expressa pela localização
dos índios (aqueles que viviam fora das povoações indígenas e em centros agrícolas ou em outras
comunidades rurais ou urbanas).
Fica nítido como a idéia de “isolamento” (inexistência de contatos ou contatos eventuais), é
a idéia base do próprio esquema de classificação do regime tutelar, e como as relações (contatos
permanentes) são vistas sob um prisma ambíguo, no sentido que ao mesmo tempo indicam a
aquisição de “capacidade pelo índio” e sua descaracterização enquanto índios. Observemos que o
termo “promíscuo” indica mistura caótica ou desordenada, e ainda tem a conotação “de pessoa que
se entrega sexualmente com facilidade” idéias pejorativas.
Essa arquitetura institucional perduraria até o início da década de 1970, quando da
promulgação do Estatuto do Índio. O Estatuto do Índio produziu alguma mudança no regime
tutelar?
Na verdade o Estatuto do Índio apresenta um conjunto de medidas que expressam uma
tendência a uma “liberalização” do regime tutelar, no sentido que é aberta a participação “indígena”
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
71
na gestão da política indigenista e contrariando em certa medida, as representações ideológicas
acerca da incapacidade do índio. Mas devemos observar que essa liberalização não muda os poderes
básicos que caracterizam o regime tutelar.
O poder de gestão dos bens e a propriedade das terras indígenas continuam sob controle
Estatal. O artigo 20 em seu §2º permite a “remoção permanente ou temporária de grupos indígenas
para outras áreas”. O “poder de substituição” da ação e vontade indígena também permanece, na
gestão das terras indígenas e outras instâncias societárias. Além disso, as bases simbólicas do
regime tutelar permanecem as mesmas do SPI, apesar da substituição de categorias, conceitos e
metáforas. Ainda permanece a equivalência entre “emancipação e integração”, o que reconduz a
uma dinâmica cíclica: os índios só são índios sob o regime tutelar, e se são emancipados deixam de
ser índios. Assim, o poder de investidura identitária é ainda resguardado ao Estado. No computo
geral, o regime tutelar mantém suas bases fundamentais. Mas as mudanças ocorridas teriam efeitos
importantes.
O Estatuto do Índio traz algumas alterações importantíssimas: 1) a abertura do serviço
público aos índios e o incentivo a sua especialização indigenista; 2) uma relativa abertura a
participação dos índios na administração dos “bens e renda indígena”, assegurando entretanto a
exploração do solo aos índios e do subsolo a regulação estatal; 3) definição formal de índios e
comunidades indígenas, de maneira que não é mais um Inspetor que define quem é integrado ou
não, mas sim o próprio Estatuto; 4) a introdução de uma orientação formal para os “contratos
coletivos de trabalho”.
Nos princípios e definições do Estatuto do Índio se inscrevem os marcos gerais da política
indigenista, ou seja, uma certa forma de regulação e gestão dos grupos indígenas, vinculando a
principio as idéias de “preservação e integração”. Ou seja, a tensão existente no SPI irá perpassar
também o novo enquadramento jurídico e a nova forma do regime tutelar. Isso fica visível pela
contrariedade entre a caracterização dos índios: primeiro se define que as “comunidades indígenas”
são aquelas não integradas (Art.3,II), apesar de que se reconhece que os índios integrados podem
preservar características culturais (Art. 4, III). Porém em outros momentos se assegura a
participação dos índios nos quadros de funcionários da FUNAI (art.16 § 3), mas somente de “índios
integrados”. Nesse sentido existe uma contradição evidente: enquanto que as comunidades
indígenas são definidas pela sua “não integração”, o que dá margem para o entendimento de que a
integração implica o desaparecimento das comunidades indígenas, fala-se em outros momentos de
“índios integrados”. Esta tensão é uma outra continuidade em relação ao SPI.
Assim, o “regime tutelar” sofre uma primeira liberalização, o exclusivismo da gestão branca
é relativamente atenuado (ou abre-se espaço pra isso). Nos anos 1980, a Constituição Federal no
artigo 232 irá afetar um importante dispositivo do regime tutelar, uma vez que reconhece plena
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
72
capacidade civil aos índios. Entendemos que esse fato não elimina o regime tutelar, ao contrário,
cria uma relativa contradição com o Estatuto do Índio em vigor, e mesmo assim uma contradição
relativa. Poderíamos falar de uma segunda liberalização do regime tutelar, e também de uma
hibridação das normas tutelares a partir 1988, no sentido que existe o regime tutelar enquanto
política indigenista e ao mesmo tempo com o reconhecimento da capacidade civil dos índios pela
constituição que possibilitou certas ações jurídicas dos índios. Essa hibridação pode sugerir o
“enfraquecimento” do regime tutelar, uma crise, mas não é exatamente isso que acontece, mas sim
uma mudança institucional.
2.4- Tutela e Frentes de Expansão Econômica.
A análise da estrutura geral do regime tutelar feita acima, somente, precisa ser contemplada
com as características principais de sua aplicação ao longo da história e os efeitos sociais concretos
que ele produziu sobre as sociedades indígenas. Nesse sentido, estamos considerando aqui o regime
tutelar como o produto de um conjunto articulado de ideologias e prática políticas, que podem ser
rotuladas por indigenismo e política indigenista:
“Assim, pode-se considerar indigenismo o conjunto de idéias (e ideais, aquelas elevadas à
qualidade de metas a serem atingidas em termos práticos) relativas à inserção de povos
indígenas em sociedades subsumidas a Estados Nacionais, com ênfase especial na formulação
de métodos para o tratamento das populações, operados em, em especial, segundo uma
definição do que seja índio. A expressão política indigenista designaria as medidas práticas
formuladas por distintos poderes estatizados, direta ou indiretamente incidentes sobre os povos
indígenas”. (Lima, 1995, p.14-15)
Dessa maneira, a política indigenista compreende todas as técnicas utilizadas dentro das
diferentes situações, para gerir os territórios e a mão de obra indígena, como as técnicas de atração e
pacificação, as técnicas de substituição e representação política do índio, as formas de repressão
como a “polícia indígena”, a pedagogia da nacionalização e etc (ver Lima, 1995, Oliveira Filho,
1988).
O regime tutelar seria assim a estabilização de uma determinada forma de gestão, com
regras e pressupostos determinados, formas de distribuição da autoridade e da força, na qual o órgão
tutor seria o depositário dos dispositivos legais e legítimos de controle das sociedades indígenas. A
política indigenista
23
operou através de diferentes técnicas e táticas de poder, e o regime tutelar foi
uma demanda de confirmação do exercício do poder através dessas técnicas.
23
O indigenismo é um tipo de “saber de estado” que se originou no contexto mexicano, migrando para o Brasil onde foi
reapropriado e transformado. Nesse sentido, é preciso observar que o indigenismo se combinou com outras saberes de
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
73
Podemos dizer que o regime tutelar e a política indigenista tiveram dois objetivos e efeitos
estratégicos (ver Decreto 1928, Títulos II e V; Estatuto do Índio Titulo II, cap. 4 e Titulo III): 1º) o
regime tutelar impôs padrões de territorialização aos povos indígenas; 2º) o regime tutelar produziu
uma inserção determinada dos índios na estrutura de classes. Dessa maneira é impossível pensar o
regime tutelar sem pensar os processos de territorialização e inserção especifica na estrutura de
classes imposta aos povos colonizados.
Quando falamos de territorialização, devemos entender que:
“Não se trata unicamente de enfocar as sociedades indígenas como coletivivades inseridas em
uma escala regional mais ampla, senão de explorar o fato da definição de um território como
uma chave analítica privilegiada para a compreensão dos modos de sociabilidade que
apresentam. A abordagem em termos de um processo de territorialização permite descrever e
inter-relacionar os re-ordenamentos ocorridos nos múltiplos níveis na morfologia social, nos
papeis políticos, nas tradições culturais e na construção de identidades.
O processo de territorialização não compreende unicamente as razões de Estado, mais também
expressam os conceitos indígenas sobre tempo, pessoa e natureza do mundo” (Oliveira Filho,
2006, p. 132)
Logo, os processos de “territorialização” constituem uma dimensão central que articula
política, identidade, cultura e economia.
O regime tutelar e a política indigenista em geral tiveram como uma das características
principais o desencadeamento de processos de territorialização. A construção de “povoações
indígenas”, “centros agrícolas”, “parques” e “reservas”, são a expressão desses processos de
territorialização dirigidos pelo Estado. As migrações voluntárias e criações de aldeias são formas de
territorialização dirigidas pelos próprios grupos indígenas.
Paralelamente aos processos de territorialização, se desenvolveu o projeto de inserção dos
índios dentro da estrutura de classes da sociedade capitalista, em uma posição subalterna. Tanto o
regulamento de 1928, quanto o estatuto do índio tinham medidas práticas nesse sentido: “O estatuto
do Índio enfatiza de forma bastante nítida a via camponesa como modo privilegiado de integração
das populações indígenas na sociedade brasileira”. (Oliveira Filho, 1998, p.19) e ainda: “É preciso
deixar bem clara a singularidade desse campesinato indígena face a outros tipos de campesinato.
Além do controle coletivo sobre o meio básico de produção, há que ser destacado que tal
campesinato é, por diversos meios, colocado como sendo diretamente subordinado ao Estado”.
(Oliveira Filho, op.cit, p.20).
Os índios seriam “camponeses” e “trabalhadores manuais”, de acordo com o projeto político
delineado pelo regime tutelar e pela política indigenista. Seria essa sua modalidade de inserção na
estrutura de classes. Esta política foi não somente uma orientação geral, mas moldou de forma
estado, como o sertanismo, e que o termo, em sentido estrito, só foi introduzido no Brasil nos anos 1940/50. (Lima,
2006).
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
74
concreta as interações sociais entre índios e sociedade nacional. Ou seja, o regime tutelar era ao
mesmo tempo uma forma de territorialização e de estratificação (no sentido de atribuição de lugar
na estrutura de classes).
Trata-se de observar os efeitos sociais do regime tutelar, de como e em que medida sua
política produziu e impôs dinâmicas societárias concretas aos povos indígenas. E veremos que na
realidade essa política é determinante para as sociedades indígenas no Brasil. Tomemos como eixo
os processos de territorialização dirigidos pelo Estado através do órgão e da política indigenista. O
quadro abaixo fornece dados importantes:
Quadro 1– Evolução Histórica da Demarcação de Terras Indígenas.
Elaborado a partir de dados do ISA e do “Indigenismo e Territorialização”.
SPI FUNAI
1910-1967 1968-1982 1990-2000
298, 595 mil hectares 11.966.043 mil hectares 63.389.692 mil hectares
O processo de demarcação de terras indígenas teve seu padrão profundamente alterado,
sendo que a partir de meados dos anos 1970 até hoje, verificou-se uma demarcação de terras
indígenas com maiores extensões territoriais do que todas aquelas ocorridas na primeira metade do
século XX. As áreas demarcadas pelo SPI em media tinha 5 mil hectares enquanto que as da
FUNAI 181 mil hectares. (Oliveira Filho, op.cit, p.33). Dessa forma, do ponto de vista histórico, o
“regime tutelar”, apesar de ter como meta a formação de um “campesinato indígena”, em razão do
padrão de territorialização, produziu mais uma camada de assalariados rurais, de “semi-proletários
e semi-camponeses” (Oliveira Filho, 1998, p. 34).
Não somente o padrão de intervenção do SPI e da FUNAI tiveram efeitos diferentes, ao
longo da história, como tiveram também variações regionais associadas ou não as primeiras.
Vejamos o quadro abaixo:
Quadro 2 - Terras Indígenas e Identificadas por Delegacia Regional da FUNAI
Delegacias UF Terras Indígenas
Identificadas
(1000 hectares)
Terras Indígenas
Identificadas mas não
demarcadas
(%)
Terras
Demarcadas
(%)
AM 8.518 100 -
PA-AP 10.018,4 77,0 23
BA-SE-AL-
PB-PE
122,3 89,9 10,1
PR-SC 84,6 - 100
MT 2.741,6 68 32,0
MA 1.835,8 88,0 11,9
GO-MT 577,2 81,4 18,5
AC-RO-AM-
MT
5.566,4 52,5 47,4
MS 526,9 94,1 5,8
10º RR-AM 5.297,9 84,3 15,6
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
75
11º MG-ES-BA 83,6 20,0 79,9
12º SP-PR 29,6 0,6 99,3
13º RS 50,6 - 100
AJABAG MG (MT) 1.198,4 - 100
Das 16 regiões consideradas como de colonização antiga, 10 têm índices próximos ou superiores a
80% de terras demarcadas. Das 6 regiões em que tal fato não ocorre, a região em que o índice terras
indígenas demarcado é menor, é exatamente no Mato Grosso do Sul, apesar do volume total de
terras ser reduzido quando comparado com outras regiões, e devemos levar em consideração que a
população do Mato Grosso do Sul é a segunda maior do país. Ou seja, mesmo sendo uma região de
colonização antiga, o Mato Grosso do Sul não apresenta índices de demarcação significativos. Os
efeitos da política indigenista e do regime tutelar não são homogêneos, mas são relativamente
constantes dentro dos seus objetivos gerais.
A interpretação dos dados levou Oliveira Filho as seguintes conclusões:
“As delegacias regionais da FUNAI em que estão registradas as maiores proporções de terras
demarcadas encontram-se nas áreas de colonização mais antiga, nas quais as frentes pioneiras
já passaram, atomizando as posses indígenas e incorporando a região à economia nacional.
(...)
“Por ora basta reter a hipótese de uma correlação entre avanço das frentes pioneiras (e
conseqüentemente incorporação dessa região à economia de mercado) e efetividade no
processo de demarcação das terras indígenas”. (Oliveira Filho, 1998, p. 29)
Isso significa que as frentes de expansão econômica condicionam a política indigenista e aos
processos de territorialização indígena, e também a imposição de um padrão de inserção na
estrutura de classes. O padrão do SPI implicou na semi-proletarização de muitos grupos indígenas,
mantendo assim o caráter semi-colonial das relações índios-Estado, sendo o lugar dos índios na
sociedade o de camponeses pobres e assalariados rurais.
Os dados acima permitem ver uma certa especificidade da política indigenista no Mato
Grosso do Sul, de como na realidade a territorialização dirigida pelo Estado-Nacional naquela
região seguiu certos padrões e particularidades locais. Delinearemos agora como a morfologia da
sociedade Terena foi moldada por esses processos de territorialização dirigidos pelo Estado, e
apreender as singularidades da região do Mato Grosso do Sul.
2.5 – Uma Morfologia da Sociedade Terena: o caso de Cachoeirinha.
A configuração da organização territorial das aldeias Terena e sua composição demográfica
no município de Miranda, podem ser caracterizadas pelos seguintes dados. Os dados da FUNAI
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
76
para 1999 apontam a existência de 4.000 pessoas em Cachoeirinha, 1.800 pessoas para Pilad Rebuá
(que compreende as aldeias de Passarinho e Moreira) e 1.500 pessoas para Lalima, o que
representaria um total de 7.300 indígenas no município. Os dados da FUNASA apontam para
2003, um número inferior a este: para Cachoeirinha, os dados apontam 2.683 pessoas; Pilad Rebuá
1.696 pessoas, Lalima 1.252 pessoas, o que representaria um total de 5.635 indígenas. Podemos
considerar o intervalo que vai dos 5.000 aos 7.000 habitantes indígenas como margem de variação
plausível do universo demográfico considerado.
As aldeias de Passarinho e Moreira ficam a 6 km da cidade, se apresentando como “bairros”
periféricos de uma região de transição entre as zonas urbana e rural do município. A aldeia de
Lalima fica a 45 km da cidade, em meio a fazendas, assim como a aldeia de Cachoeirinha (ou mais
especificamente, a Sede do Posto da FUNAI) que fica a 13 km da zona urbana e do núcleo
comercial e administrativo da cidade
24
.
Descreveremos a morfologia da sociedade Terena a partir de eventos específicos que
revelam as articulações entre contextos locais e globais, e entre os processos sociais
contemporâneos e de longa duração. Uma situação social auxiliará na descrição e análise da
morfologia da sociedade Terena dentro da atual situação histórica.
Durante uma de nossas visitas à terra indígena Cachoeirinha em outubro de 2002, como
fizemos desde a primeira vez, ao chegarmos, nos dirigimos ao PIN da FUNAI, onde ficaríamos
hospedados. Ao chegarmos ao local, fizemos contato com o então chefe do posto da FUNAI,
Argemiro Turíbio. Tomamos conhecimento da mudança do Cacique Geral. Sabino Albuquerque,
cacique anterior, havia sido derrotado nas eleições realizadas em maio daquele ano, dando lugar a
Lourenço Muchacho. Nesta tarde haveria também uma reunião das lideranças. Por isso estavam no
local, o então Cacique Geral, Lourenço Muchacho e outras lideranças locais da Cachoeirinha, como
o presidente do Conselho Tribal, pastor Zacarias da Silva.
Percebemos pelo lado de fora dois veículos da FUNAI (da administração regional)
estacionados no local. Pouco depois um veículo com placa do município de Sidrolândia trazendo
três homens, estacionou em frente ao PIN. Estes homens eram representantes de uma Usina de
produção de Açúcar e Álcool, e seriam responsáveis pelo recrutamento de trabalhadores. Os
homens entraram e ficaram reunidos com o Chefe do Posto.
Conversamos com Jesulino de Souza, encarregado da Usina Santa Olinda, do Grupo
Empresarial José Pessoa, que opera no município de Sidrolândia. Estavam em Cachoeirinha além
dele, um médico e uma representante do departamento de pessoal, para contratar duas turmas de 45
homens, que ficariam fora da reserva 70 dias, trabalhando nas Usinas. O Grupo José Pessoa é
proprietário ainda da Usina Debrasa no município de Bataguaçu, Abenalco (no estado de São
24
Fonte: Distrito Sanitário Especial Indígena/DSEI, Pólo Base de Miranda.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
77
Paulo), Sanagro (Minas Gerais e Sergipe) e ainda uma outra no Rio de Janeiro. Segundo Jesulino,
que trabalha neste ramo há 17 anos, a maior parte da mão obra empregada no Mato Grosso do Sul
pelas Usinas do Grupo José Pessoa é indígena, recrutada principalmente em Cachoeirinha, Pilad
Rebuá, Taunay e Buriti. A Usina trabalha com uma média de 15 grupos de 45 homens. Segundo ele
a Usina também emprega brancos, que trabalham o ano inteiro, somente os índios ficam por
contratos temporários.O Plantio de cana é feito o ano inteiro, mas a safra somente a partir de maio.
A produção é destinada a exportação.
O procedimento para o recrutamento, relatado por Jesulino e por nós observado, é o
seguinte: o responsável da Usina (o “gato”) procura os “cabeçantes” (agenciadores indígenas de
grupos de trabalhadores), que por sua vez seriam indicados pelo Cacique e pelo chefe do PI. Os
representantes da Usina fazem então exame médico e recolhem os nomes (pudemos vê-los levando
as carteiras de trabalho dos indígenas indicados). Eles esperavam o retorno do Cacique Geral, que é
quem assinaria o contrato. Pudemos ouvir um dos representantes da Usina afirmando que o Cacique
receberia sua parte depois. As turmas sairiam para o trabalho no dia 08/10/2002 e os cabeçantes
responsáveis por elas seriam Jorge Vitor e Sebastião Vitor.
Um pequeno incidente ainda aconteceu, entre um homem Terena, que ao que parece insistia
em entrar no PIN para ser colocado na lista dos indicados para o trabalho e o Cacique Lourenço,
que o retirou do local com empurrões e esbravejando bastante. Logo após os representantes da
Usina se retiraram, e o procedimento para a contratação de trabalhadores, foi encerrado.
A Organização da Política, Economia e Cultura.
Esta situação social nos permite traçar um quadro morfológico, tanto da sociedade Terena
como um todo, quanto do quadro das suas relações de interdependência com outros grupos e
instituições sociais. Este quadro de inter-relações irá abrir espaço para uma caracterização mais
precisa da atual situação histórica, e para a reflexão crítica sobre ela. Em primeiro lugar, podemos
utilizar a situação acima descrita, para fazer uma descrição das formas de organização política
entre os Terena. As terras ocupadas pelos Terena são divididas em aldeias, Cachoeirinha, por
exemplo, é subdivida em cindo aldeias.
Cada uma destas aldeias tem um cacique próprio. Entretanto, o Cacique da Sede, é o
Cacique Geral, e têm um poder político maior que os demais. Este poder está associado
fundamentalmente à situação social descrita acima, que tem uma profunda importância na
sociedade Terena como veremos ao longo deste trabalho. É o poder de regular e mediar a
contratação de trabalhadores. As aldeias Terena possuem “Conselhos Tribais”, que variam em
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
78
número de membros de caso a caso, indicado pelo Cacique, escolhido normalmente em eleições.
Este sistema é utilizado em praticamente todas as aldeias Terena.
Para compreender o funcionamento desta organização política indígena, é fundamental
compreender também a relação dos índios com as instituições estatais. Na situação social acima
descrita, vemos que a o Chefe de Posto da FUNAI, era um índio Terena. Era ele, juntamente com o
Cacique, que regulava as relações econômicas com os representantes das Usinas, assim como os
outros representantes da FUNAI, que estavam no local. Assim, o funcionamento da organização
política entre os Terena é caracterizado por esta inter-relação com as instituições de Estado.
Além desta importância local, o que é mais importante indicar, é o poder que os Terena
enquanto grupo étnico tem sobre o funcionamento da máquina da FUNAI no Mato Grosso do Sul.
Pelo menos desde meados dos anos 1980, o administrador da regional de Campo Grande da FUNAI
é um índio Terena. E mais importante que isto, os administradores da FUNAI são indicados pelos
Terena, ou mais especificamente pelos Caciques Terena de todas as aldeias do estado, que se
reúnem com certa regularidade, para tratar de assuntos relativos a FUNAI e outras questões que
afetam a vida deste grupo. Mesmo quando o Chefe do PI não é um índio Terena, já existe uma
relação de controle político que os Terena exercem sobre a administração regional da FUNAI em
Campo Grande, através de pressões variadas (que podem ir desde as contínuas visitas e solicitações
de reuniões, passando por abaixo assinados e denúncias públicas, até a ocupação do prédio da
administração regional). É por sua vez a Administração Regional da FUNAI que detém o poder de
reconhecer e legitimar as lideranças indígenas locais, ou seja, os Caciques, que negociam com ela a
aplicação de recursos (materiais e simbólicos).
A organização política entre os Terena, em termos gerais, funciona sobre estas bases. No
plano local o Cacique e o Conselho Tribal, o Chefe de Posto, regulam conjuntamente, as relações
políticas e parte das relações econômicas; no plano regional, o Conjunto dos Caciques Terena e
FUNAI/ AR Campo Grande, regulam a vida dentro dos grupos locais (compreendendo
fundamentalmente as aldeias e terras indígenas).
É importante sinalizar também, que no plano local, dentro de cada aldeia, esta organização
política se sobrepõe às formas de organização social especificas do grupo, e estamos entendo aqui
tanto as relações de parentesco, quanto às organizações formais religiosas e associativas existentes.
Em Cachoeirinha, nos referimos a Igreja Católica, da qual o Cacique Lourenço foi uma
liderança e na qual a família Turíbio também tem peso importante. Existem ainda outras Igrejas
evangélicas, mas em sua grande maioria, estas igrejas se formaram a partir de processos de fissão
dos membros da Igreja Católica. Referimos-nos também as “associações”, organizações indígenas
fundadas com o objetivo de obter recursos e organizar o trabalho e produção entre os índios.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
79
Argemiro Turíbio, Chefe do PI na situação descrita acima, foi presidente de uma das associações
criadas em Cachoeirinha.
Com relação à organização da economia, é fundamental observar que os Terena são uma
sociedade composta majoritariamente por camponeses pobres e semi-proletários. Mas a situação
social que descrevemos ilustra bem que a condição camponesa dos índios se inter-relaciona com
uma pluralidade de situações na estrutura econômico-ocupacional. O que a situação social acima
descrita permite revelar, é que a sociedade Terena se estrutura economicamente em função das suas
inter-relações no contexto regional. A observação etnográfica e dados de uma pesquisa realizada
pelo CTI permitem delinear um conjunto de ocupações pelas quais a população indígena se
distribui.
Quadro 3 - Estrutura Ocupacional de CACHOEIRINHA (Fontes CTI - 1997)
Principais ocupações
declaradas pelo dono da
casa.
SEDE
Morrinho Babaçu Lagoinha
Total de cada
segmento
Lavourista 141 26 30 15 212
Feirante 30 10 7 47
Professor (a) 2 1 2 5
Missionário/pastor 2 1 3
Tratorista 2 2
Campeiro 1 1
Marreteira 1 1
Motorista 2 2
Eletricista 1 1
Operador 1 1
Ceramista 1 1
Cabeçante 1 1 1
func. Funai 1 1
Manut. Maquinas 1 1
Segurança 1 1
Merendeira 1 1
Horticultor 1 1
Aposentado 96 13 14 123
Total 188 53 54 15 506
Vemos pelos dados acima que daqueles indivíduos identificados como “donos da casa” em
Cachoeirinha, considerando as cinco aldeias existentes, o segmento majoritário é o de lavouristas
(212), seguidos pelos aposentados (123) e feirantes (47) num total de 506 pessoas ocupadas, sendo
que somente dentro das aldeias são encontradas 18 ocupações distintas, incluindo ofícios rurais e
urbanos. Devemos levar em consideração que a pesquisa do CTI somente considera “os donos da
casa”, desta maneira não incluem ainda os ofícios dos dependentes do dono, o que ampliaria
possivelmente o número de ceramistas, lavouristas e professores, por exemplo. Além disso, outras
categorias como marreteiros e empregadas domésticas não estão presentes na tabela. Caberia
destacar algumas ocupações:
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
80
? os assalariados rurais e operários agrícolas, que trabalham em Fazendas e Usinas de Cana de
Açúcar no Estado;
? os “marreteiros”, homens que trabalham negociando produtos nas cidades.
? as ocupações ligadas ao setor de serviços que, compreendem um conjunto de heterogêneo de
funções, dentre os quais encontramos efetivamente dentro das áreas indígenas: a)
funcionários públicos federais, especialmente o Chefe de Posto da FUNAI e os demais
funcionários do posto e agentes da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde); funcionários
públicos estaduais e municipais, especialmente os professores indígenas e demais
funcionários das escolas (como merendeiras); b) empregadas domésticas nas cidades e
fazendas da região, ocupação essencialmente feminina.
Este conjunto heterogêneo de ocupações é produto e produtora da constante mobilidade
social e espacial dos índios Terena no estado do Mato Grosso do Sul. Também permite dizer que
apesar da diversificação ocupacional, 9 das 18 ocupações se relacionam diretamente as atividades
agropecuárias (como feirantes, tratorista, campeiro) o que mostra que existe uma tendência à
reprodução do modo de vida tradicional, aquilo que os Terena identificam como “kixovoku” ou
“maneira de ser” (no qual estão incluídos o trabalho na roça, por exemplo). Os lavouristas, as
ceramistas e os aposentados pela previdência rural constituem assim as mais importantes
“ocupações” dentro da aldeia, e tratoristas, mecânicos, cabeçantes são ocupações que se subordinam
às atividades agropecuárias, complementando as necessidades técnicas da produção e
comercialização. As demais ocupações são basicamente ligadas à Saúde e Educação, e aparecem
também como uma forma de integração dos índios não somente na estrutura econômica, mas
também política, do Estado (FUNAI, FUNASA e Prefeituras). Desta forma, existem indígenas
ocupados em atividades agrícolas (setor primário), agroindustriais (setor secundário
25
) e terciário
(comércio, serviços e administração pública).
A condição camponesa dos Terena assim é apenas o ponto de partida e ao mesmo tempo o
ponto de convergência de uma pluralidade de atividades econômico-ocupacionais, que ao invés de
abalar esta condição camponesa, a reforça num grande sentido.
Em Cachoeirinha, a maior parte dos grupos domésticos está dedicado aos trabalhos na
lavoura, e também com um mesmo grau de importância, ao trabalho temporário nas Usinas e
Fazendas do estado. Podemos falar que a sociedade Terena se organiza também em “fluxos” (ver
25
Note-se que registramos apenas um indígena que afirmou trabalhar na parte de processamento industrial de uma
Usina, o então recém eleito vice-cacique de Cachoeirinha no ano de 2002.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
81
Vincent,1988), já que há uma circulação estrutural de pessoas para algumas cidades e regiões
economicamente importantes.
Existe um fluxo de trabalhadores para as Usinas nas diversas regiões do estado; existe
também um fluxo de trabalhadoras (feirantes) para as Cidades, especialmente Campo Grande, onde
existe uma feira indígena. Estamos falando aqui de uma sociedade organizada em fluxos, porque
esta relação de circulação de pessoas e bens é parte da vida dos Terena enquanto grupo étnico.
A produção realizada pelos grupos domésticos no âmbito da aldeia é destinada em grande
parte à comercialização, seja no município de Miranda, seja em Campo Grande. Existem
instituições e redes de relações (a Feira, a Associação das Feirantes Indígenas de Campo Grande),
que regulam estas mesmas relações. A vida dos grupos domésticos dentro das aldeias também é
profundamente marcada pelas relações de trabalho, de maneira que grande parte dos homens acima
de 16 anos de idade insere-se no mundo das relações de trabalho, seja nas Usinas, seja nas Fazendas
e ainda em outras ocupações. Mas o trabalho nas Usinas se destaca como uma das principais formas
de interação econômica, tendo um grande impacto sobre a vida do grupo. Existem ainda as outras
ocupações dentro das aldeias, aquelas vinculadas ao serviço público, especialmente nas áreas de
educação e saúde. Estas ocupações estão associadas a um nível de escolarização maior, e são muito
valorizadas pelos Terena. Mas estão disponíveis ainda a uma parcela comparativamente menor de
pessoas que as ocupações ligadas à produção agrícola e ao trabalho manual. Além disso, quase
todos os Terena se revezam em atividades na lavoura e suas ocupações enquanto professores ou
funcionários públicos.
Existem ainda as questões ecológicas, que influenciam grandemente a dinâmica da produção
e da economia. O período entre agosto e outubro é o período de seca, enquanto entre novembro e
março, é um período de chuvas. O período da safra, geralmente se dá entre abril e julho. É claro que
isto é basicamente relativo às lavouras de arroz, feijão,mandioca e leguminosas. A lavoura da cana-
de-açúcar, segue uma outra dinâmica, de maneira que é possível para muitos índios trabalharem nas
suas lavouras e nas Usinas de açúcar, sem haver uma contradição entre as duas atividades.
O quadro abaixo serve para indicar as formas de dispersão e migração dos Terena no
contexto do Mato Grosso do Sul e mesmo outros estados.
Quadro 4- Filhos vivendo fora da reserva por localização (fonte: CTI, 1997)
Municípios Sede Morrinho Babaçu Lagoinha
Campo
Grande
61
Corumbá 4 7
Aquidauana 1 4
Miranda 2 4
Vanuíre/SP 1
São Paulo 1
Rio Verde 2
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
82
Anastácio 2
Cuiabá 2
Bonito 1
Brasília 1
Araçatuba 2
N/D 13 13
TOTAL 93 (desses 38 contribuem com a
manutenção da família na aldeia)
11 (desses 3 contribuem
com a família na aldeia)
13 4 121
A grande maioria dos egressos das aldeias de Cachoeirinha é da Sede (93), sendo que seu
principal destino é a capital sul mato-grossense Campo Grande.; Corumbá (11) é o segundo lugar a
concentrar o maior numero de “filhos” de índios Terena. Cerca de 1/3 dos migrantes, contribuem
economicamente para a manutenção da família na aldeia, o que mostra que existe uma manutenção
das obrigações sociais e vinculação dos grupos domésticos em diversos tipos de situação (aldeia e
cidade). Estes fluxos são compostos também pelos grupos de “visitantes”, aqueles que morando
definitivamente ou há muito tempo nas cidades vão a aldeia regularmente visitar parentes ou
participar de festas e rituais religiosos. Desta maneira, não podemos falar de uma morfologia da
sociedade Terena sem levar em consideração os “fluxos e os fixos”, que constroem as redes sociais
articulando diferentes territórios.
Como já foi observado pela etnografia Terena em outros momentos (ver Cardoso de
Oliveira), as reservas indígenas são antes de qualquer outra coisa, uma “reserva de mão de obra”,
que é disponibilizada hoje para as Usinas de Açúcar no Mato Grosso do Sul (lembremos que como
disse um de seus funcionários, a maior parte da mão de obra é indígena).
Com relação à organização da cultura, podemos dizer que algumas considerações sobre a
biografia dos atores individuais envolvidos na situação social mencionada, também nos permitirão
traçar as características gerais da organização da cultura entre os Terena. Argemiro e Lourenço são
ambos membros de grupos domésticos que tem uma intervenção importante nas atividades culturais
dentro de Cachoeirinha. Além disso, enquanto Chefe de Posto e Cacique respectivamente, também
jogam um papel decisivo nos rituais.
Argemiro, por exemplo, é de uma família que teve um dos mais importantes “curandores”
de Cachoeirinha, pelo menos dos últimos 40 anos. O próprio Argemiro já havia nos revelado ter
tido iniciação nas práticas xamanísticas, com Mário Lemes, um parente seu (koixomuneti conhecido
na aldeia, e falecido no ano de 2002). Lourenço seria filho de um “curandor”.
As atividades xamanísticas têm ainda uma grande importância em Cachoeirinha. Elas se
encontram articuladas com as diferentes formas que o cristianismo assume dentro das aldeias, seja
através de relações de oposição, seja de composição. O xamanismo se encontra profundamente
articulado com o catolicismo, de maneira que os grupos domésticos aos quais pertencem os
curandores, normalmente se dedicam à administração da Igreja Católica e a promoção de uma série
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
83
de ritos cristãos. Os principais ritos promovidos pelos católicos são as “festas de santo”, que variam
de acordo com as aldeias, e mesmo, com os grupos domésticos, mas a maior parte do ano, as
atividades das aldeias Terena são marcadas pela realização de rituais. As igrejas evangélicas se
caracterizam por uma dinâmica própria, mas os membros delas se relacionam de maneiras muito
diferentes com xamanismo e com o catolicismo, podendo ocorrer desde a oposição total, até formas
de participação nos ritos e festas.
Existe ainda, uma outra ordem de atividades simbólico-culturais, e que tem uma grande
importância para a identidade Terena, tal como definida no atual contexto histórico. É o “Dia do
Índio”, ritual em que são realizadas diversas atividades, mas da qual a principal é a “Dança do Bate-
Pau” (Hiokixoti-kipahe, cuja tradução literal seria “Estar Vestido de Ema”). O Dia do Índio é
celebrado em todas as aldeias Terena, e na maior parte delas, quando se pergunta sobre algo
importante para o grupo, os Terena indicam o Dia do Índio. E neste ritual, de caráter
fundamentalmente político, podemos ver que as figura do Cacique e do Chefe do Posto se colocam
como centrais, articulando toda uma serie de representações e artefatos simbólicos que dizem
respeito a reprodução das identidades nacional e étnica. No mesmo mês, tradicionalmente se realiza
também o oheokoti, ritual xamanistico realizado na “semana santa”.
Quer dizer, existe um complexo de rituais, que articulam diferentes representações
simbólicas, e que marcam a vida dos Terena enquanto grupo étnico diferenciado. Estas formas
simbólicas estão materializadas em ritos e mitos específicos do grupo, que dão significado para a
sua experiência histórica e dão algumas explicações também sobre o ordenamento social. A
organização da cultura entre os Terena se relaciona muito explicitamente com sua economia e
política, e é o produto da experiência histórica do grupo, tanto das relações de dominação, quando
das estratégias de resistência adotadas pelos indígenas.
O que aqui chamamos de sociedade Terena se compõe dos territórios indígenas, dos grupos
domésticos e indivíduos concretos que se reproduzem socialmente neles, e as redes e fluxos sociais
que estes constroem para além de seus próprios territórios.
As considerações realizadas acima, sobre a organização da política, economia e cultura, são
válidas em termos gerais, para o conjunto das comunidades-locais Terena. É claro que existem
variações (de grau de importância econômica e demográfica, de práticas culturais em cada
comunidade-local), mas estes traços são à base dos processos de socialização da maior parte dos
índios Terena. A análise detalhada da organização da cultura, da economia e da política entre os
Terena, será realizada em outros capítulos. Agora cabe ampliar a escala do local para o global e
considerar estes traços de morfologia social, no contexto regional e nacional de que fazem parte.
2.7 - Terras Indígenas e Grupos Étnicos.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
84
Os processos de territorialização e o modelo de inserção na estrutura de classes impostos
pelo regime tutelar, moldaram a sociedade Terena. Iremos agora ver como isso se deu, tanto no
contexto local como regional. Essa análise regional exige dois movimentos analíticos distintos:1º)
uma caracterização mais precisa dos territórios e grupos étnicos, de sua composição social, para que
tenhamos uma base de comparação entre Cachoeirinha e outros territórios indígenas e compreender
seu papel na sociedade regional; 2º) uma caracterização mais precisa da situação econômica e
política do estado do Mato Grosso do Sul e da cidade de Miranda, espaços sociais das arenas e
campo das relações interétnicas desta etnografia.
Os Terena se encontram localizados em três estados do Brasil: Mato Grosso do Sul (com
nove terras reservadas), São Paulo (localizados nos Postos da FUNAI de Araribá e Icatú), e no Mato
Grosso (no município de Rondonópolis).Segundo os dados do censo 2000 do IBGE, a população
total do estado do Mato Grosso do Sul é de 2.078.070 milhões de pessoas, sendo a população
urbana de 1 746.893 e a rural de 331.177 e a população indígena de 53 mil pessoas
26
. Levando em
consideração somente os dados do IBGE, os povos indígenas representariam mais de 15% da
população rural do estado.
A FUNAI no Mato Grosso do Sul, responsável pela administração da política indigenista, é
composta por duas Administrações Executivas Regionais (AER) - Campo Grande e Amambaí, e por
um Núcleo de Apoio em Dourados. A FUNAI/AER-Campo Grande tem sob sua jurisdição a
população Terena, Ofaié-Xavante, Guató, Kadiwéu, Atikum e Quiniquinau. A FUNAI/AER-
Amambaí tem 5 PIN’s, com população Guarani Kaiowá e Nhandevá. O núcleo de Dourados tem 3
PIN’s com população majoritariamente Guarani Kaiowá (há cerca de 1.000 Terenas no PIN
Dourados). Abaixo segue um quadro com as características demográficas dos povos indígenas,
número de terras e em quantos municípios eles se encontram.
São encontradas 6 etnias indígenas reconhecidas pela FUNAI (Guarani; Guató; Terena;
Kadiweú; Ofaié-Xavante; Atikum). Existem ainda povos não reconhecidos pela FUNAI, como os
kamba, ou dados como extintos, como os Quiniquináu residentes em áreas Kadiwéu e Terena. A
população indígena se encontra distribuída em 74 dos 77 municípios do Estado, nas diferentes
regiões econômicas e ecológicas, sendo que esta presença pode corresponder à existência de
reservas e terras indígenas ou, na maioria das vezes, a de indivíduos e pequenos grupos domésticos
residentes.
26
Os critérios de classificação do censo empregam cinco alternativas de designação: Branca, que indicou - 1 135 811,
Negra 71 139, Amarela - 16. 263, Parda 788.797, Indígena - 53 900, Não declarado - 12 162. Independentemente das
críticas que se possa realizar a metodologia e aos critérios de classificação, é importante indicar que o censo retrata a
diversidade étnico-racial ao mesmo tempo que permite colocar algumas questões teóricas, como o problema da
mestiçagem e do branqueamento, tão discutido na sociologia e antropologia brasileira. Existem divergências a respeito
do total da população indígena no Brasil. As estimativas do ISA, do CIMI e da FUNAI divergem das do IBGE para o
conjunto do país, mas se aproximam no que diz respeito ao Mato Grosso do Sul.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
85
Quadro 5 -Povos Indígenas do Mato Grosso do Sul
27
Etnias População Terras Municípios
Guató 382 1 1
Kadiwéu 1.592 1 2
Ofaié-Xavante 58 1 1
Terena 17.741 12 8
Guarani 25.741 10 17
Atikum, Quiniquinau, Kamba Sem informações 0 4
Os Terena estão entre as sociedades indígenas de maior escala demográfica no Brasil. No
estado do Mato Grosso do Sul, os Terena são a segunda maior população, depois da Guarani.
Existem três categorias de classificação para as áreas indígenas: 1) Terra Indígena; 2) Posto
Indígena; 3) Aldeia. A categoria Terra Indígena é usada para identificar um território ocupado por
índios seja regularizado juridicamente ou não. O PIN indica a existência de uma unidade
administrativa básica da FUNAI, ficando sediado dentro de uma terra indígena. A aldeia é uma
unidade criada pelo grupo indígena e reconhecida ou não pela FUNAI. Dessa maneira uma mesma
Terra Indígena pode ter ou não um PIN e ter ou não várias aldeias.
Abaixo apresentamos um quadro da distribuição do povo Terena no Mato Grosso do Sul. As
categorias usadas são aquelas empregadas pela FUNAI em seus documentos administrativos e
também pelo grupo:
Quadro 6 - FUNAI - AER-Campo Grande
Terra
Indígena
Aldeias PIN Município
Água Limpa Rochedo
Aldeinha
28
Anastácio
Buriti Buriti
Córrego do Meio
Água Azul
Buriti Dois Irmãos do Buriti e Sidrolândia
Buritizinho Tereré Sidrolândia
Cachoeirinha Sede
Argola
Babaçu
Morrinho
Lagoinha
29
30
Cachoeirinha Miranda
Lalima Lalima Lalima Miranda
Pilad Rebuá Moreira
Passarinho
Pilad Rebuá Miranda
Limão Verde Limão Verde
Córrego Seco
31
Limão Verde Aquidauana
27
Esta tabela foi construída com dados do livro “Aconteceu Povos Indígena 1996/2000”, do ISA.
28
Aldeinha é um dos casos em que há um funcionário da FUNAI designado e atuante como chefe de Posto, mas o
mesmo não se encontra regularizado.
29
Lagoinha não consta no documento da FUNAI, possivelmente foi uma área recentemente.
30
No documento da FUNAI o espaço do PIN Cachoeirinha está em branco.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
86
Taunay/Ipegue Bananal
Morrinho
Água Branca
Jaraguá
Imbirussú
Colônia Nova
Ipegue
Taunay
Ipegue
Aquidauana
Nioaque Brejão
Taboquinha
32
Nioaque
O quadro permite ver a existência de 10 Terras Indígenas Terena, totalizando 25 aldeias. No Mato
Grosso do Sul existe ainda população Terena em terra indígena Kadiwéu no Município de Porto
Murtinho (PIN São João
33
), no Município de Dourados (PIN Dourados) em terra Guarani e no
Município de Campo Grande (Aldeia Urbana Marçal de Souza
34
). Em Campo Grande há também
população Terena distribuída por diversos bairros da cidade, como Guanandi e Bandeirantes.
Obtivemos acesso a dois censos realizados pela FUNAI nas áreas indígenas, um
correspondente ao ano de 1995 e outro ao ano de 1999, o que nos permite ter uma idéia aproximada
da evolução demográfica. Apresentamos no quadro abaixo os dados correspondentes:
Quadro 7- População Terena. Dados: FUNAI/AER - Campo Grande.
1995 1999
Área Indígena Município População Área Indígena Município População
Buriti Sidrolândia/D
ois Irmãos do
Buriti
1.578 Buriti Sidrolândia/
Dois Irmãos
do Buriti
2.400
Cachoeirinha Miranda 2.312 Cachoeirinha Miranda 4.000
Lalima Miranda 1.007 Lalima Miranda 1.500
Pilad Rebuá Miranda 1.391 Pilad Rebuá Miranda 1.800
Taunay Aquidauana 2.708 Taunay Aquidauana 3.060
Ipegue Aquidauana 1.364 Ipegue Aquidauana 1.250
Limão Verde Aquidauana 1.456 Limão Verde Aquidauana 1.100
Aldeinha Anastácio 209 Aldeinha Anastácio 236
São João Porto
Murtinho
488
35
São João Porto
Murtinho
551
36
Tereré Sidrolândia 284 Tereré Sidrolândia 320
31
O caso de Limão Verde é similar ao de Aldeinha, como a área passou por muito tempo sem regularização.
32
No documento da FUNAI o espaço está em branco, mas existe PIN em Nioaque.
33
Os documentos da FUNAI apresentam informações contraditórias. O PIN São João aparece também como sedeado
no município de Bonito.
34
Terra que era segundo informações existentes, de propriedade da FUNAI, sendo ocupada pelos Terena em 1995.
35
Consta como população exclusivamente Terena.
36
Neste censo constam três populações: Terena, Kadiwéu e Quiniquinau
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
87
Nioaque Nioaque 953 Nioaque Nioaque 1.183
Água Limpa
(Faz. Bálsamo)
Rochedo 38 Água Limpa
(Faz. Bálsamo)
Rochedo 46
Total de Áreas com
Presença Terena
Total de
Municípios
Total de
População Terena
Total de Áreas com
presença Terena
Total de
Municípios
Total de População
Terena
12 8 13.788 12 8 17.746
A população Terena sob a jurisdição da FUNAI/AER Campo Grande cresceu 20% segundo
os dados do censo de 1999. Isso em um período de 4 anos, e os Terena representam um total de
92% da população total da AER. Segundo os dados da FUNAI, o município de Miranda, com as
TIN’s Cachoreirinha, Pilad Rebuá e Lalima é o que tem o maior volume de população Terena
aldeada, são 7.300 habitantes (41% do total de população Terena no MS). Aquidauana vem logo em
seguida com 5.410 (30% do total) habitantes. Estas duas cidades concentram dessa maneira mais de
70% da população Terena Aldeada no estado do Mato Grosso do Sul. O município de Miranda,
local de desenvolvimento da pesquisa, pode ser considerado o principal núcleo do ponto de vista da
concentração populacional. Também foi nas aldeias de Miranda que a população Terena cresceu
mais nos anos corridos entre 1995 e 1999 (aproximadamente 2.500 habitantes a mais enquanto que
em Aquidauana a população sofreu um decréscimo de 128 pessoas).
Além da população denominada “aldeada”(fixada em aldeias), existe também a população
indígena nas cidades. Em Anastácio são 600 Terena morando em bairros e ruas próximas à aldeia,
segundo informações dos próprios moradores do local. O censo indígena de Campo Grande
37
identificou 918 famílias que compreendem o total de 3.836 pessoas, destas 733 famílias (80%) são
da etnia Terena, estando 129 residindo na aldeia urbana Marçal de Souza. E os próprios
organizadores do censo admitem que a pesquisa deixou de documentar uma parte expressiva de
indígenas residentes na cidade devido a diversos fatores
38
.
É importante registrar o profundo contraste em que se encontra o Mato Grosso do Sul;
estado com grande diversidade étnica, com duas das maiores populações indígenas do país, e com
pouca disponibilidade de terras para os mesmos. De certa forma, como quase que a totalidade das
terras indígenas se encontra na Amazônia Legal, é quase que inevitável que nas demais regiões do
país o conflito pela terra seja um dos elementos que marcam a vida dos povos indígenas.
Legenda das Terras Indígenas Terena (Figura 1)
352 Água Limpa 5 Aldeinha
60 Buriti
572 Buritizinho
63 - Cachoeirinha
186 Lalima
191 Limão Verde
219 Nioaque
242 Pilad Rebuá
305 Taunay/Ipegue
37
Censo Indígena de Campo Grande- 1999. Arquidiocese de Campo Grande. Pastoral do Índio. CIMI. Prefeitura
Municipal. UCDB.
38
Ibdem p. 7.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
88
Mapa 1 – Terras Indígenas em Mato Grosso do Sul.
Fonte: Aconteceu Povos Indígenas 2000.
Além disso, os indígenas, e em especial os Terena, tem procurado em numero cada vez
maior se deslocarem para Campo Grande, principal cidade do estado. Mas esta tendência à
concentração em centro urbano não atinge somente a população indígena, já que o crescimento das
cidades se deve também a fluxos migratórios do campo, e não somente a um crescimento
vegetativo. Neste sentido, os Terena acompanham também as tendências e dinâmicas societárias
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
89
mais amplas. O papel dos grupos indígenas na região ficará completamente claro através de uma
caracterização precisa da economia e sociedade regional.
Considerando os dados demográficos de um ponto de vista histórico, podemos constatar que
as sociedades indígenas estão num novo momento, em que as taxas de declínio que alimentavam as
teses do desaparecimento indígena se atenuaram ou mesmo se reverteram. Em 1957, eram 143
etnias no Brasil, em 2000 no número era 206 grupos; a população total que estaria entre 68 mil e 99
mil em 1957, em 2000 já seria de 270 mil (dados do ISA). 325 mil (FUNAI) e 740 (IBGE); o
número de sociedades com população superiores a 2 mil pessoas em 1957 era de 6, e hoje já de 50
(ver Oliveira Filho, 2006). Logo, não se pode pensar as sociedades indígenas como compostas de
pequenas “microsociedades”. O caso do Mato Grosso do Sul exige ainda mais a ruptura com esse
modelo sociológico.
Economia e Sociedade Regional
Uma compreensão do papel econômico jogado pelo estado de Mato Grosso do Sul na
divisão territorial do trabalho no país, e por outro lado às diferenças intra-regionais, são
fundamentais para o entendimento dos efeitos do tipo de inserção dos índios na estrutura de classes,
porque esses fatores condicionam as formas de individualização e particularização dos processos
políticos. Esta configuração das relações econômicas, propiciada por condições ecológicas e
reforçadas pelas ações políticas e processos históricos, é à base da diferenciação cultural e política
vividas pelos povos indígenas.
O Estado do Mato Grosso do Sul foi instalado em 1º de janeiro de 1979, tendo sido
desmembrado de Mato Grosso por lei complementar de 11 de outubro de 1977. Ele tem como
limites, ao norte, Mato Grosso; a nordeste, Goiás e Minas Gerais; a leste São Paulo; a sudeste
Paraná; ao sul e a sudoeste, a República do Paraguai; e a oeste, a República da Bolívia. Seu clima é
tropical, e em sua área territorial de 358 158,7 km
2
destacam-se as vegetações de cerrado e o
Pantanal. Na planície pantaneira, dada a alternância entre os períodos de cheias e secas, a vegetação
é bastante diversificada, havendo espécies típicas de florestas, cerrados e campos
39
.
O estado do Mato Grosso do Sul, e a região Centro-Oeste como um todo, não estão entre as
áreas economicamente mais importantes do Brasil quando consideramos os dados macro-
econômicos agregados. Desta maneira, existe uma hierarquia territorial, tanto do ponto de vista da
concentração quanto da produção de riqueza (na indústria, comércio/serviços e agropecuária) na
economia brasileira. Vejamos o quadro abaixo que fornece alguns elementos para reflexão:
39
Com relação aos dados referentes à urbanização, cabem ponderações relativas à metodologia de classificação
empregada pelo IBGE, já que ela parte de um critério exclusivamente de densidade demográfica, desconsiderando as
atividades econômico-sociais na definição do espaço urbano.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
90
Quadro 8- Quadro - Economia Brasileira por Setor e Região 2001.
Fonte: IBGE (Cadastro Central de Empresas).
Pessoal Ocupado nas unidades locais População Total País e
Regiões
PIB a preços
correntes, 2001 (R$
milhão)
Indústria Serviços Agropecuária.
Brasil 1.198.736 4.801.611 24.461.604 429.028 172.385.826
Norte 57.026 247. 150 3.834.601 15.116 13.223.859
Nordeste 157.302 978. 773 1.386.544 96.734 48.332.163
Centro-Oeste 86.288 381.803 2.059.847,00 40.708 11.885.458
Sudeste 684.730 4.419.808 12.986.540 196.688 73.501.405
Sul 213.389 1.839. 448 4.194.072 79.782 25.442.941
Vemos pela tabela acima que a região centro-oeste é apenas a quarta em importância econômica,
quando consideramos o PIB como indicador principal, estando muito distante dos principais
núcleos de concentração da riqueza e força de trabalho.
Dentro da região Centro-Oeste, o estado do Mato Grosso do Sul ocupa também uma posição
secundária. Vejamos o quadro abaixo:
Quadro 9- Economia do Centro-Oeste.
UF PIB em milhões
(2001)
População Total Pessoal Ocupado
Industria Serviços Agropecuária total
Goiás 25.048 5.114.055 175.893 668.884 11.906 856.683
Distrito Federal 33.051 2.101.818 58.179 823.851 2.996 885.026
Mato Grosso do Sul 14.453 2.111.512 60.050 277.680 10.786 348.308
Mato Grosso 13.736 2.558.073 87.681 289.951 14.747 392.379
Os dados sobre a economia da região indicam que o estado do Mato Grosso do Sul tem o
menor PIB do centro-oeste. Sua principal área de concentração de atividades e força de trabalho
assalariada é o setor de serviços, seguido pela indústria. As atividades agropecuárias estão
ocupando a última colocação em termos de concentração de força de trabalho. Mas é preciso fazer
algumas ponderações. Apesar destes dados sugerirem uma pouca relevância do Mato Grosso do
Sul, devemos indicar alguns fatores que contrapõem esta afirmação.
Em primeiro lugar, o PIB per capta de Mato Grosso do Sul é maior que o de Goiás e de
Mato Grosso, sendo inferior somente ao do Distrito Federal Isto expressa a relação entre capacidade
econômica e população (que no Mato Grosso do Sul é inferior a dos demais estados, ver Contas
Regionais, IBGE). Em segundo lugar, o estado que se destaca na região é Goiás que tem um maior
nível de industrialização e tem um maior PIB, sendo que o Distrito Federal fica nos limites do
território deste estado. Brasília, devido a ser Capital Federal, também tem seu PIB pressionado para
cima em razão das atividades da administração pública. O Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul têm
economias parecidas, com faixas de PIB e pessoal ocupado em cada setor da economia, similares.
Em terceiro lugar, é importante também saber analisar o desempenho setorial da economia,
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
91
considerando o papel da agropecuária dentro “agro-negócio
40
”, e deste último no conjunto da
economia do país, para poder melhor compreender a dinâmica societária nos contextos regional e
local.
No Brasil, no ano de 2002, o PIB do ramo da agricultura foi de R$ 72,72 bilhões. O da
agropecuária foi de R$ 125,79 bilhões. O PIB total do agro-negócio no mesmo ano foi R$ 424,32
bilhões. Assim, a Agricultura e a Pecuária somadas foram responsáveis por R$ 198, 51 bilhões do
PIB do agronegócio de 2002, ou seja, mais de 40%
41
. Podemos concluir afirmando que a agricultura
e a pecuária gozam hoje de uma importante posição econômica, fato que vem se verificando desde
os anos 1980, confirmou-se nos 1990
42
e que parece que irá se manter como traço fundamental da
vida do país nas décadas iniciais do século XXI. Desta consideração se pode concluir tanto que a
agropecuária está hoje entre as atividades que mais concentram e fazem circular capital no Brasil,
quanto que a própria economia do país nas últimas duas décadas se define por estas atividades e sua
articulação íntima com a indústria de transformação, na cadeia mais ampla do agro-negócio.
O desempenho das grandes regiões e dos estados com relação a este setor da economia não é
homogêneo. Vejamos o quadro abaixo:
Quadro 10- Participação no Valor Bruto da Produção Agropecuária Nacional - 2001.
Unidade da Federação Participação (%)
1) São Paulo 26, 1 %.
2) Rio Grande do Sul 13, 7 %.
3) Paraná 9, 5 %.
4) Minas Gerais 8, 4 %.
5) Santa Catarina 6, 3 %.
6) Bahia 5, 4 %.
7) Mato Grosso do Sul 4, 4%.
As informações acima nos permitem afirmar que o Mato Grosso do Sul não tem uma grande
importância econômica quando consideramos a economia de maneira agregada, mas ao
considerarmos a economia setorialmente, vemos uma realidade diferente. O Mato Grosso do Sul no
40
“A cadeia de “Agro-negócios” compreende setores relacionados ao processamento de produtos agropecuários e à
fabricação de produtos utilizados nas atividades correlatas, como por exemplo fertilizantes e defensivos agrícolas e
rações e medicamentos para animais.” Relatório do Work-Shop I, Agronegócios. FIESP, 2004.
41
PIB agrícola crescerá 8% no ano, diz CNA. Gazeta Mercantil - Nacional - 19/12/2003 , in www.cna. “A
Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) estima que o Produto Interno Bruto (PIB) global do
agronegócio brasileiro fechará este ano em R$ 458,83 bilhões, com crescimento de 8% em relação aos R$ 424,32
bilhões registrados no ano passado. O PIB agrícola deverá representar algo em torno de 38% de toda a produção de
bens e serviços do País em 2003, que deverá ficar estagnada no mesmo patamar de R$ 1,2 trilhão registrado no ano
passado”.
42
“O agronegócio responde por 32% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro (cerca de US$ 250 bilhões ano), 38% da
pauta de exportações (cerca de US$ 20 bilhões/ano) e mais de 40% da população economicamente ativa).” O que está
em jogo na OMC. Folha de São Paulo, 26/10/1999, p. 1. As exportações brasileiras estão assim profundamente
vinculadas ao setor primário.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
92
ano de 2001 ocupava a sétima posição entre os estados com maior participação no valor da
produção agropecuária.
Dentro da região Centro-Oeste (que tem 12% do PIB da agropecuária), o Mato Grosso do
Sul é o estado que tem a maior participação, seguido por Goiás (4,3%), Mato Grosso (3,5%) e
Brasília (0,2%). Isto significa que o Mato Grosso do Sul tem 1/3 do valor da economia agropecuária
do centro-oeste, setor que ocupa posição estratégica na economia brasileira. Na indústria de
transformação, que tem grupos de atividades que também integram a cadeia do agro-negócio, o
Centro-Oeste tem apenas 2,5% do PIB nacional. O Mato Grosso do Sul tem 0, 5%, Mato Grosso 0,
5%, Goiás 1,2%, e Brasília 0,2%. Como havíamos dito, a diferença de PIB entre Distrito Federal e
Goiás se explicam em grande parte pela presença da administração pública e extensão do setor de
serviços.
A agropecuária também agregou em média mais valor ao PIB Nacional que a média do
conjunto da economia. No período que vai de 1998-2001 (tomando como base o ano de 1985 =
100), por exemplo, temos o seguinte quadro: em 1998 o PIB do conjunto da economia apresentou
crescimento de 138,1% enquanto que agropecuária de 143,2%; no ano de 2001 a diferença
aumentou; o conjunto do PIB cresceu 149,3% em relação ao ano base, enquanto que o PIB da
agropecuária chegou a 170, 5%
43
. O valor adicionado bruto ao PIB pelo Mato Grosso do Sul foi de
R$ 12. 302 (milhões). E ainda: “Vimos que a principais lavouras do Mato Grosso do Sul são as do
algodão, do arroz, da cana-de-açúcar, do feijão, da mandioca, do trigo, do milho e da soja com
forte predomínio, mais recentemente, das duas últimas”. (IBGE, 1996, p.35) A industria da cana-
de-açúcar tem sido uma das mais importantes do Mato Grosso do Sul nos últimos 20 anos.
A cana-de-açúcar é um importante setor no que diz respeito a pauta de exportações nacional.
O Mato Grosso do Sul é um dos estados que tem uma participação nas exportações desse produto.
O quadro abaixo mostra a produção de açúcar dos principais estados produtores do Brasil:
Quadro 11 - Principais produtores cana-de-açúcar - Brasil
UF 94/95 95/96 96/97 97/98 98/99 99/00 00/01 01/02
SP 149.112.904 151.717.203 170.424.122 181.511.031 199.521.253 194.234.474 148.226.228 176.574.250
AL 20.067.353 19.706.078 23.542.254 23.698.079 17.345.105 19.315.230 21.618.069 23.124.558
PR 15.531.183 18.461.963 22.258.512 24.874.691 24.224.519 24.351.048 19.320.856 23.075.623
PE 16.477.943 17.076.508 20.157.163 16.970.789 15.588.250 13.320.164 13.138.516 14.351.050
MG 9.485.374 8.986.524 9.906.236 11.971.312 13.483.617 13.599.488 10.634.653 12.206.260
MT 4.907.255 6.739.310 8.084.832 9.788.430 10.306.270 10.110.766 8.669.533 10.673.433
GO 5.833.635 6.329.500 8.215.687 8.192.963 8.536.430 7.162.805 7.207.646 8.782.275
MS 3.769.730 4.674.560 5.404.641 5.916.046 6.589.965 7.410.240 6.520.923 7.743.914
PB 3.239.910 3.584.115 4.742.596 5.329.824 3.888.104 3.418.496 3.423.640 4.001.051
RJ 5.479.990 5.227.817 5.437.211 4.926.275 5.191.421 4.953.176 3.934.844 3.072.603
Fonte: Informação UNICA.
De outro lado, não podemos perder de vista, que a cana integra historicamente cadeias
mercantis internacionais, sendo um dos principais produtos da agro-exportação. São 54 países de
43
IBGE, Contas Regionais, 2003.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
93
destino das exportações brasileiras das usinas de cana e álcool listados nas nossas fontes, sendo o
primeiro do ranking nos anos de 2004/2005, a Rússia, constando ainda diversos paises africanos e
do Oriente Médio como Emirados Árabes Unidos. Nigéria, Egito, Marrocos. Abaixo alguns dados
sobre as exportações brasileiras:
Fonte: Informação UNICA - Ano 6 - Nº 51 - Janeiro/Fevereiro de 2003
Quadro 12 - Comparativo das Produções de Cana, Açúcar e Álcool de SP e Região CS-00/01
Exportação Total - 2001 Exportação Total - 2002 Mês
Brasil US$ FOB Açúcar US$ FOB
Participação
(%) do
Açúcar nas
Exportações
Brasil
Brasil US$ FOB Açúcar US$ FOB
Participação
(%) do
Açúcar nas
Exportações
Brasil
Janeiro 4.537.905.000 229.618.827 5,06 3.971.828.775 148.309.343 3,73
Fevereiro 4.083.023.000 74.282.170 1,82 3.658.349.034 127.931.406 3,50
Março 5.167.500.000 116.041.631 2,25 4.260.412.206 63.761.274 1,50
Abril 4.729.698.000 71.822.001 1,52 4.641.399.729 52.996.253 1,14
Maio 5.367.054.000 78.503.793 1,46 4.441.379.547 90.329.025 2,03
Junho 5.041.980.000 163.264.621 3,24 4.078.559.856 186.919.084 4,58
Julho 4.964.485.000 239.760.286 4,83 6.223.3 34.278 229.823.044 3,69
Agosto 5.727.436.000 287.345.097 5,02 5.751.020.402 219.061.211 3,81
Setembro 4.754.965.000 292.192.709 6,15 6.491.806.837 329.861.646 5,08
Outubro 5.002.529.000 291.304.947 5,82 6.474.407.905 268.940.680 4,15
Novembro 4.500.260.000 281.727.815 6,26 5.126.951.442 183.602.649 3,58
Dezembro 4.345.808.000 151.867.191 3,49 5.242.335.956 192.100.759 3,66
Total 58.222.643.000 2.277.731.088 3,91 60.361.785.967 2.093.636.374 3,47
Os produtos derivados da cana-de-açúcar ocupam uma posição importante na pauta de
exportações brasileiras. No período 2001/2002, a participação nas exportações sempre esteve acima
de 3% do total das exportações, se equiparando a outros produtos industrializados. A cadeia
mercantil que vincula a produção do açúcar aos mercados internacionais e as formas de organização
das unidades produtivas e comunidades rurais é assim determinante para a compreensão da atual
situação histórica. Abaixo estão as principais Usinas de Mato Grosso do Sul, num, ranking de 217
posições:.
Fonte: Informação UNICA - Ano 5 - Nº 46 - Março/Abril de 2002
Quadro 13 - Ranking das Unidades Produtoras - Centro/Sul - Safra 01/02
ORD.
Unidades Produtoras Cana Moída
(ton.)
Açúcar
(sacas - 50kg)
Álcool Total
(m
3
)
62 Coopernavi (MS) 1.283.565 1.786.380 46.700
71 Debrasa (MS) 1.225.065 --- 96.222
72 Passa Tempo (MS) 1.200.438 1.936.260 24.385
89 Santa Olinda (MS) 1.030.006 735.200 52.359
94 Sonora Estância (MS) 991.689 741.100 58.433
109 Maracaju (MS) 865.283 1.358.360 24.882
145 Sta. Helena - Nova Andradina (MS) 617.540 --- 52.231
158 Novagro (MS) 530.328 --- 41.309
É possível perceber que as Usinas de Mato Grosso do Sul estão ocupando posições
intermediárias em termos de produção e lucro. As principais unidades são do estado de São Paulo.
A Usina Santa Olinda, que surgiu na situação social descrita acima, na safra 2001/2002 era a 4º em
termos de produtividade no Mato Grosso do Sul, e octogésima nona em termos nacionais.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
94
Quadro 14 - Comparativo das Produções de Cana, Açúcar e Álcool de SP e Região CS-00/01
Cana-de-açúcar Açúcar Álcool Estado
Toneladas % Toneladas % Toneladas
%
Espírito Santo 2.554.166 1,23 45.474 0,36 150.663 1,66
Goiás 7.207.646 3,48 397.440 3,15 318.431 3,51
Mato Grosso 8.669.533 4,19 369.530 2,93 464.357 5,12
Mato Grosso
do Sul
6.520.923 3,15 23.635 1,83 314.777 3,47
Minas Gerais 10.634.653 5,14 619.544 4,90 485.063 5,35
Paraná 19.320.856 9,33 989.139 7,83 799.364 8,82
Rio de Janeiro 3.934.844 1,90 307.698 2,44 92.596 1,02
São Paulo 148.226.228 71,58 9.671.388 76,58 6.439.113 71,04
Total Centro-
Sul
207.068.849 100,00 12.631.848 100,00
9.064.364 100,00
Fonte: Informação UNICA.
Apesar de estar situado no que poderíamos chamar de “base” da hierarquia da divisão
territorial do trabalho no país, localizado numa região economicamente secundária, em relação ao
Sul-Sudeste, o Mato do Grosso do Sul ocupa nas últimas décadas posição chave em certos grupos
de atividade econômica (como soja e cana de açúcar), que por sua vez são estratégicos do ponto de
vista da política de exportações e comércio exterior do país. Uma vez situada à posição do Mato
Grosso do Sul na economia nacional, podemos avançar na identificação dos principais traços da
economia dentro do próprio estado, de maneira a determinar como a economia e sociedade regional
afetam as relações interétnicas.
Estrutura Ocupacional e Estrutura Fundiária
A estrutura ocupacional no Mato Grosso do Sul apresenta concentração na área de serviços,
com pouca participação das ocupações industriais no volume total de pessoal ocupado e baixos
índices de emprego na agropecuária, apesar de existir grande quantidade de população rural, e de
grande participação deste grupo de atividades na economia do estado. A tabela abaixo mostra a
produção econômica e o pessoal ocupado no estado, dados desagregados por setor e grupo de
atividade econômica.
Quadro 15 - A Economia em Mato Grosso do Sul 2001. Fonte: IBGE (Cadastro Central de Empresas).
Grupos de Atividade sócio-Econômica.
Valor adicionado
Bruto 2001
(R$ mil)
Pessoal
Ocupado nas
Unidades
legais.
Numero de
Unidades
Legais
Agropecuária R$ 3.137.010 10.848 1.679
Industria
Extrativa
R$ 36.906
910 161
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
95
Transformação
R$ 1.439.334 41.077 4.327
Eletricidade, água e gás.
R$ 221.436.
2.356 137
Construção
R$ 1.242.302 15.707 1.460
Comércio R$ 1.156.388 91.064 32.184
Alojamento e
Alimentação
R$ 295.248.
10.439 2.903
Transportes e
armazenagem e
Comunicações
R$ 565.942
14.198
2.619
Intermediação financeira
R$ 418.268 5.532 795
Atividades imobiliárias e
serviço e prestados a
empresas.
R$ 873.442 25.570 5.471
Administração Pública. R$ 2.152.850
94.275 346
Saúde 10.446 1.130 Saúde e educação
R$ 405.996
Educação
10.635
1.157
Outros serviços coletivos R$ 307.550 15.251 5.064
Serviços
Serviços domésticos R$ 98.046
Estes dados quando contrastados permitem uma visualização mais precisa da economia regional e
de seu impacto sobre a sociedade. Em primeiro lugar, quando consideramos os grupos de atividades
de forma desagregada, vemos que agropecuária tem o maior produto econômico, sendo seguido
pela administração publica, indústria de transformação e construção civil, e comércio, que tem
mais de 1 bilhão de reais em produto. Isto significa que o caráter da sociedade no Mato Grosso do
Sul, é especialmente agrário, mas com uma tendência a “terciarização” da economia.
Poderíamos indicar a organização e situação da economia tem impactos óbvios sobre o perfil
da sociedade. A composição social e demográfica das unidades político-administrativas na região
permite determinar algumas características essenciais. Vejamos o quadro abaixo:
Quadro 16 - Municípios e População Rural e Urbana-MS (IBGE Censo 2000)
População residente Classes de tamanho
da população dos
municípios
(habitantes)
Número
de
municípios
Total Urbana Rural
Taxa
de
crescimento
1991/2000
Razão
de
dependência
Mato Grosso do Sul 77 2 078 001 1 747 106 330 895 1,7 55,4
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
96
Até 5 000 8 33 481 18 513 14 968 (-) 1,1 59,6
De 5 001 até 10 000 20 146 935 86 251 60 684 0,9 61,8
De 10 001 até 20 000 28 394 532 278 040 116 492 1,3 58,5
De 20 001 até 50 000 16 438 807 344 264 94 543 1,4 57,6
De 50 001 até 100 000 3 235 676 214 196 21 480 1,4 59,3
De 100 001 até 500 000
1 164 949 149 928 15 021 2,2 53,8
Mais de 500 000 1 663 621 655 914 7 707 2,6 49,9
O estado do Mato Grosso do Sul possui 77 municípios, sendo que apenas duas cidades têm
dimensão para serem considerados como médias ou grandes pelos atuais padrões de urbanização,
que são Dourados e Campo Grande. Cerca de 35% das cidades têm no máximo 10.000 habitantes e
outros 35% delas tem no máximo 20.000. Somente 16% das cidades têm mais de 20.000
habitantes. 70% dos municípios concentram apenas de 27% do total da população do estado
(574.948 pessoas), enquanto que as duas maiores cidades concentram cerca de 40% . Esta tendência
acompanha a dinâmica da urbanização brasileira como um todo, que é a da concentração
populacional da população nas cidades de maior porte (que centralizam as atividades econômicas e
infra-estrutura). Os dados do censo demográfico apontam assim um estado altamente “urbano” do
ponto de vista social. Mas isto não corresponde plenamente à realidade.
O censo agropecuário do IBGE de 1996 indica 200.000 mil pessoas ocupadas em
estabelecimentos agropecuários, o que significa mais de 50% do total de pessoal ocupado nas
unidades legais (que é de 348 mil). Logo, o numero de pessoas ocupadas nas zonas rurais em
atividades agrícolas é muito próxima daquelas ocupada no setor de serviços, e muito superior
àquela ocupada na indústria.
Neste sentido é preciso analisar a economia e a sociedade do Mato Grosso do Sul a partir de
um outro ângulo, já que como vimos, a análise de dados agregados pode produzir alguns equívocos
sérios. Os dados utilizados acima, provenientes do cadastro central de empresas só consideram o
pessoal ocupado nas unidades locais legais e não os estabelecimentos rurais. Os dados do censo,
partindo de critérios demográficos, classificam a população urbana e rural por vias questionáveis.
Logo, grande parte de pessoas que são ocupadas, mas não nos estabelecimentos legais, não foi
considerada. Para corrigir as distorções usaremos os dados do Censo Agropecuário (IBGE-1996),
que faz uma análise mais fina do setor agropecuário, permitindo assim uma visualização mais
precisa da economia e sociedade regional.
Vejamos o quadro abaixo, sobre a estrutura fundiária do Mato Grosso do Sul.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
97
Quadro 17 - Estrutura Fundiária do Mato Grosso do Sul - IBGE, Censo Agropecuário 1995-1996.
Valor da Produção
44
(em mil reais)
Número de
Estabelecimento
s
Pessoal
Ocupado
Total de
Hectares
Animal Vegetal
Total 49.423 202.709 30.942.772 1.462.458 719.361
Grupos de Área
Menos de 10 há 9.170 24.694 39.681 22.108 15.676
De 10 a 99 há 17.753 56.012 637.163 100.465 64.422
De 100 a 999 há 15.423 59.035 5.992.676 403.125 274.303
De 1000 a 9.999
6.493 48.949 16.677.386 778.337 248.375
Mais de 10.000 ha 409 13.516 7.595.866 156.738 114.187
Vemos pelos dados que existe uma considerável concentração fundiária. Os estabelecimentos com
menos de 100 hectares representam 54,7% do total, mas ocupam apenas 2,2% das terras
disponíveis. Os estabelecimentos com mais de 1000 hectares, em contrapartida, representam 14%
dos estabelecimentos, mas ocupam 78, 4% das terras. A concentração de terras acompanha a
concentração de riquezas. Cerca de 65% do valor adicionado na produção animal e mais de 50% da
produção vegetal, estão concentrados no grupo de mais de 1000 hectares. Ou seja, a concentração
de terras expressa também a geração e concentração de renda.
Existe também uma profunda diferença intra-regional. Cada zona econômica e ecológica
tem um desempenho e um perfil social diferenciado. A estrutura fundiária e produtiva também. O
IBGE emprega a distinção em 4 Meso-regiões para classificar diferenças intra-regionais do estado:
Sudoeste do Mato Grosso do Sul; (em que se encontra a população Guarani-Kaiowá e Terena); o
Pantanal sul-mato-grossense (com população Terena e Kadiweú); o Leste de Mato Grosso do Sul;
Centro Norte de mato Grosso do Sul (Terena, Guarani, Kadiwéu). Na região do Pantanal, que
compreende os Municípios de Miranda, Aquidauana, Dois Irmãos do Buriti e Anastácio, estão as
principais terras e reservas indígenas Terena. As terras indígenas Guarani se encontram
principalmente na região sudoeste.
Quadro 18- Quadro da produção e pessoal ocupado na agropecuária, segundo meso-regiões.
IBGE. Censo Agropecuário 1995-1996.
Meso-
regiões
Valor da Produção
(em mil reais)
Pessoal Ocupado
Animal Vegetal Numero de
estabeleci
mentos
Responsáveis
e membros
não
remunerados
Emprega
dos
permanen
Emprega
dos
Temporár
Outros Total
44
O número de informantes sobre os valores varia. Os informantes sobre a produção animal foram em numero de
47.676 e vegetal de 30.754.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
98
das famílias tes ios
Centro-
Norte do
Mato
Grosso do
Sul
277.440 152.670
8.779 16.656 14.518 4.206 1.201 36.581
Leste de
Mato
Grosso do
Sul
501.930 173.518
11.780 20.405 22.541 4.938 892 48.776
Pantanal
Sul-mato-
grossense
143.227 12.234 4.801 10.529 8.280 1.370 525 20.704
Sudoeste do
Mato
Grosso do
Sul
539.761 380.938
24.063 57.465 26.237 9.984 2.872 96.558
202.709
A região do Pantanal, em que estão concentradas as Terras Indígenas Terena, é a que
concentra menor número de estabelecimentos, e menor número de empregos permanentes e
temporários. As micro-regiões Sudoeste e Leste são as que concentram maior parte do valor da
produção agropecuária. Por outro lado, as duas maiores cidades, Campo Grande e Dourados, com
grande peso político econômico tem, em contrapartida, uma população Terena extensa.
Os povos indígenas do Mato Grosso do Sul, com seus modos específicos de utilização da
terra, se encontram nos grupos com menos de 10 hectares, o que significa que eles estão entre os
segmentos que menos conseguem agregar valor a sua produção agrícola. Vejamos os dados abaixo:
Quadro 19- Terras Indígenas do Mato Grosso do Sul
Aldeias Povo Hectares. População Hectare per capta
Município
Água Limpa Terena 0 46 Rochedo
Aldeinha Terena 4 236 0,01 Anastácio
Buriti Terena 2090 2.400 0,87
Dois Irmãos do
Buriti/Sidrolandia
Buritizinho Terena 10 320 0,03 Sidrolândia
Cachoeirinha Terena 2644
4.000
0,66 Miranda
Lalima Terena 3000
1.500
2 Miranda
Pilad Rebuá Terena 208
1.800
0,11 Miranda
Taunay/Ipegue Terena 6461
4.310
1,4 Aquidauana
Nioaque Terena 3029 1.183 2,56 Nioaque
Limão Verde Terena 4886 1.100 4, 4 Aquidauana
Elaborado a partir dos dados do ISA.
Poderíamos dizer que o crescimento demográfico das populações indígenas, combinado com
as características e tendências econômicas e sociais regionais e nacionais, estão levando a uma
redução drástica da média de terras disponíveis a reprodução econômica e cultural dos Terena
(estando muito abaixo da média histórica do SPI, de 8 hectares). Este é um dos fatores a produzir
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
99
um fluxo continuo de migração dos Terena para as principais cidades do estado.O fato das TIN
Terena estarem na região do Pantanal criam ainda uma dificuldade muito especifica: é a região que
tem menor oferta de trabalho e emprego nas atividades agropecuárias, tem menor produção no
setor, dentre todas as micro-regiões do estado. A redução proporcional das terras indígenas faz que
a atividade econômica de subsistência exercida no próprio local de moradia (as aldeias) seja
virtualmente inacessível para a totalidade da população existente. Além disso, mesmo aqueles que
estão ocupados nesta atividade econômica dificilmente conseguem tirar sua subsistência
exclusivamente dela, já que a atividade de produção em áreas de menos de 10 ha tem uma renda
média muito baixa.Vejamos o quadro abaixo, com valores válidos para o conjunto do Mato Grosso
do Sul:
Quadro 20- Renda Média por Tamanho dos Estabelecimentos
Mato Grosso do Sul - Censo Agropecuário IBGE - 1996
Área HÁ Estabelecimentos informantes. Valor Total da Produção Renda Média Anual
Menos de 1 476
R$ 2.525,00
R$ 1.500,50
1 a menos de 2 1269
R$ 3.211,00
R$ 2.240,00
2 a menos de 5 4004
R$ 13.903,00
R$ 1.870,25
5 a menos de 10 3185
R$ 18.144,00
R$ 1.870,25
Uma grande parte do povo Terena dispõe de pouca terra (menos de 1 hectare) para plantio, o
que os coloca numa posição econômica de pauperidade. A renda média obtida é muito baixa (sendo
inferior ao salário mínimo atual em todas as faixas de tamanho de estabelecimento). É neste
contexto econômico-social, em que se situam as etnias indígenas do Mato Grosso Sul, e dentre eles,
os Terena.
Quadro 21 - Valor da Produção (em mil reais) e Pessoal Ocupado. Miranda/MS (IBGE, 1995-1996).
Valor Grupos de Área Pessoal Ocupado
Produção Vegetal Produção Animal
Menos de 10 hectares 1.138 734 782
De 10 a 99 hectares 432 262 785
De 100 a 999 hectares 486 488 2.478
De 1000 a 9.999 hectares 508 1.273 7.546
Mais de 10.000 hectares 536 1.930 10.147
Com relação à cidade de Miranda, onde fica localizada a aldeia Cachoeirinha, os dos do
IBGE indica, que o seguinte: Responsáveis e Membros da Família 1733 pessoas; Empregados
Permanentes 1145 pessoas; Empregados Temporários 166. Destes empregados permanentes,
840 estão vinculados a estabelecimentos com mais de 500 há de terra. Ou seja, à concentração do
trabalho assalariado agrícola se dá também nos latifúndios da região. Cachoeirinha fica localizada
num dos municípios em que a desigualdade social é mais acentuada no Mato Grosso do Sul,
existindo um grande número de pobres e população com baixa renda.
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
100
Quadro 22 - Porcentagem da Renda Apropriada por Extratos da População, 1991 e 2000: IPEA
1991 2000
20% mais pobres 2,7 0,8
40% mais pobres 8,4 4,0
60% mais pobres 17,3 10,1
80% mais pobres 32,1 21,4
20% mais ricos 67,9 78,7
A renda per capita média do município cresceu 87,88%, passando de R$ 132,10 em 1991
para R$ 248,19 Em 2000. A pobreza (medida pela proporção de pessoas com renda domiciliar per
capita inferior a R$ 75,50, equivalente à metade do salário mínimo vigente em agosto de 2000)
diminuiu 13,84%, passando de 60,6% em 1991 para 52,2% em 2000. A desigualdade cresceu: o
Índice de Gini passou de 0,63 em 1991 para 0,80 em 2000. “Em relação aos outros municípios do
Brasil, Miranda apresenta uma situação intermediária: ocupa a 2526ª posição, sendo que 2525
municípios (45,9%) estão em situação melhor e 2981 municípios (54,1%) estão em situação pior ou
igual. Em relação aos outros municípios do Estado, Miranda apresenta uma situação
intermediária: ocupa a 51ª posição, sendo que 50 municípios (64,9%) estão em situação melhor e
26 municípios (35,1%) estão em situação pior ou igual”. (Atlas do Desenvolvimento Humano). Os
indicadores utilizados são o nível de escolarização, acesso a saúde, expectativa de vida e renda.
Poderíamos tirar algumas conclusões acerca da economia e sociedade regional. Podemos
dizer que se trata de uma economia fundamentalmente centrada na agropecuária, já que a maior
parte da produção de valores deriva deste grupo de atividades, concentrando também grande parte
da população economicamente ocupada. A maior parte da população do estado se concentra em
dois centros econômicos, Campo Grande e Dourados (40% da população), e 25% da população se
encontra em cidades pequenas, com menos de 20.000 habitantes. É um estado que segue a tendência
geral da estrutura fundiária brasileira, com grande concentração de terras. Do ponto de vista
demográfico, é um estado com uma grande quantidade de municípios pequenos, que concentram
proporcionalmente, a menor parcela da população regional, e de poucas cidades grandes. Do ponto
de vista intra-regional, temos uma hierarquia de espaços econômicos, sendo que as micro-regiões
Sul e Sudeste são aquelas com maior concentração de riquezas e produção econômica.
A posição social dos índios deriva em grande parte de sua localização territorial no quadro
geral da economia e sociedade regional. No caso de Cachoeirinha, a diversificação ocupacional
encontrada expressa tendências encontradas na sociedade regional: a centralidade das atividades
agropecuárias com uma certa diversificação concentrada principalmente na área de serviços,
acompanhando a terciarização da economia (o que dá um outro sentido para a liberalização do
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
101
regime tutelar, que permitiu a incorporação de índios, significou uma abertura de outra frente
econômica); o assalariamento em ocupações ligadas à agropecuária; as unidades produtivas de
pequeno porte (menos de 10 hectares). Também as tendências à constituição de fluxos e redes
sociais para Campo Grande e Cuiabá são compreensíveis em razão da importância econômica
destas duas cidades; os fluxos de trabalhadores para as Usinas de Açúcar são explicados pela pouca
importância econômica da micro-região do Pantanal, que se apresenta basicamente como região de
latifúndios agropecuários, com pouco pessoal ocupado em empregos permanentes e temporários
(20.704, cerca de 10% do total do estado, enquanto que a região sudoeste concentra 96.558 pessoas
ocupadas, quase 50%). A ausência da oferta de empregos, combinada com impossibilidade fixação
de todos os filhos nas terras da aldeia (e também as estratégias indígenas de diversificação
ocupacional) ajuda a entender o porquê da formação dos fluxos e sua importância para a reprodução
da sociedade Terena enquanto um tipo de campesinato étnico.
O modelo de territorialização e inserção dos índios na estrutura de classes, imposto pelo SPI
e preservado pela FUNAI, teve como efeito direto no caso do Mato Grosso do Sul, que os Terena
fossem colocados nas posições e ocupações inferiores, onde a desigualdade econômico-social é
mais marcante. As especificidades intra-regionais (ecológicas, históricas e econômicas) acentuam
ainda mais esse fenômeno no caso dos Terena e da aldeia Cachoeirinha. O regime tutelar e a
política indigenista reproduziram e agravaram a tendência a subordinação política e econômica dos
povos indígenas. Ter em mente estes dados é algo fundamental para compreender as relações
interétnicas e também, as estratégias e organização social indígena Terena, pois elas estão
profundamente vinculadas a tendências sociais e econômicas acima analisadas.
Ao mesmo tempo não se pode colocar de forma contraditória e excludente a reflexão sobre
as relações interétnicas e de classe, já que elas se encontram imbricadas. Precisamos redimensionar
a questão indígena como uma questão de classe, no sentido que envolve conflitos em torno da
propriedade privada, interesses de Estado e taxas de acumulação de capital e renda. A resistência
indígena nesse sentido, exatamente por ser uma forma de luta contra o regime tutelar, se torna uma
forma particular de luta de classes.
2.8 - A “Retomada”: balanceamento de forças na atual situação histórica (1991-2006).
Pudemos ver pelas informações acima, que a política indigenista e o regime tutelar
produziram efeitos muito concretos sobre os Terena: eles foram colocados na condição de
camponeses pobres, proletários rurais e trabalhadores urbanos; isso significou também a formação
das reservas dentro de padrões do SPI (com até 5 mil hectares em média). Só que em razão do
crescimento demográfico e processos sociais dos últimos 20 anos, o tamanho médio das terras
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
102
Terena decresceu de 8 hectares per capta para menos de 1/5 hectare per capta. É dentro dessas
condições materiais, objetivas, que devemos analisar a emergência do protagonismo étnico e buscar
seus significados. O padrão de territorialização e o modo de inserção na estrutura de classe, fez dos
Terena um grupo subalterno, tanto do ponto de vista global, quanto local. Num certo sentido, existe
no caso do Mato Grosso do Sul uma tendência ao rebaixamento dos padrões de territorialização
estabelecidos pelo SPI, e que ficam muito distantes dos padrões da FUNAI.
Mas se de um lado, os processos de territorialização dirigidos pelo Estado podem ser
tomados como base para definição das formas de intervenção do regime tutelar, as formas de
territorialização dirigidas pelos índios podem ser tomadas como formas de resistência às bases
simbólicas e políticas desse mesmo regime. E é nesse sentido que iremos considerar as técnicas de
resistência empregadas pelos índios dentro dos conflitos fundiários, que expressam o esforço
indígena no sentido de criar outras formas de territorialização (ou questionar os padrões
estabelecidos pelo Estado), como ponto de partida para a análise da interação entre resistência e
tutela. E ao tomar esses processos de territorialização desencadeados pelos indígenas, podemos
perceber como formas de resistência aberta tomam cada vez mais espaço entre os índios de Mato
Grosso do Sul em geral, e entre os Terena em particular. Os dados do Mato Grosso do Sul são
muito significativos com relação a isso. O número de terras ocupadas pelos índios e em disputa com
os proprietários rurais é muito expressivo, como podemos ver pelo quadro abaixo:
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
103
Quadro 23- Ocupação de Terras por Índios em MS. Fonte: Movimento Nacional dos Produtores
Invasão Famílias Imóvel Município Área/ha Proprietário Apoio Saída Origem/Famílias
01/11/1985 8 São Miguel Arcanjo Juti 925,00 Miguel Subtil de Oliveira Índios -------- Jarará
24/08/1998 100 Paraná Ponta Porã 400,00 Hani Taleb Índios -------- Município e Proximidades
21/12/1998 80 Fronteira Antônio João 1.400,00 Dácio Queiroz Silva Índios -------- Município e Proximidades
18/01/1999 50 Pito Aceso Ponta Porã 608,00 Amilcar Lima Índios 19/01/1999 Aldeias Próximas
28/04/1999 300 Brasília do Sul * Juti 9.345,00 Jacintho Honório S. Neto * Índios 16/10/2001 Caarapó/Guarani/Caiuás
28/08/1999 30 São Sebastião Sete Quedas 2.300,00 Agro Zoller Ltda Índios 24/12/1999 Índios da Região Tacuru
18/09/1999 100 Santa Maria Paranhos 200,00 Safranor Lopes Índios 20/09/1999 Aldeia Paraguassú -Tacuru
18/09/1999 100 Água Colorada Paranhos 200,00 Roberto Faraco Índios -------- Aldeia Jaguapire-Tacuru
07/10/1999 50 El Shadai* Ponta Porã* 303,00 Ubirajara Mello* Índios 08/10/1999 Município e Proximidades
28/10/1999 40 El Shadai** Ponta Porã** 303,00 Ubirajara Mello** Índios 28/10/1999 Município e Proximidades
16/11/1999 2 Retiro Vinte Laguna Caarapã 40.000,00 Cia. Ag. Past. Campanário Índios 18/11/1999 Município e Proximidades
03/01/2000 30 Ipuitã * Caarapó * 4.330,00 José Roberto Teixeira Índios 05/01/2000 Índios Aldeia de Caarapó
31/01/2000 40 São Miguel Amambai 152,46 Vicente J. de A. Maciel Índios 01/02/2000 Índios Aldeia Limão Verde
04/04/2000 150 Ipuitã ** Caarapó ** 4.330,00 José Roberto Teixeira** Índios 08/04/2000 Índios Aldeia de Caarapó
17/04/2000 70 Flórida Sidrolândia 370,00 Jean Franco Rossi Índios -------- Índios da Aldeia Buriti
17/04/2000 100 Estância Alegre Sidrolândia 370,00 Valéria A. Barbosa França Índios -------- Índios da Aldeia Buriti
25/04/2000 300 Furna da Estrela Dois Irmãos do Buriti 3.900,00 Haroldo Ferreira Côrrea Índios 20/11/2003 Índios Aldeias Sidrolândia
21/06/2000 30 Recanto Ponta Porã 500,00 Eneida Fuchs Índios -------- Índios da região
21/06/2000 30 Chácara Ponta Porã 30,00 Olímpio Cabreira Índios -------- Índios da região
23/01/2001 30 São Francisco Naviraí 276,60 Itrio dos S. Maciel Índios 24/01/2001 Índios Aldeia Teikuê
29/06/2001 20 Iporã Paranhos 184,00 Maxionilio Machado Dias Índios -------- Aldeia Corã
31/08/2001 14 Lote 6 qd. 21 Dourados 15,00 Valdeir Ferreira Leonel Índios -------- Índios da Aldeia Panambizinho
28/08/2002 50 Vitória em Cristo Itaporã 908,00 Associação dos Produtores de Montese Índios 03/09/2002 Caiuá/caarapó/guarani
12/01/2003 30 Brasília do Sul ** Juti 9.345,00 Jacintho Honório S. Neto ** Índios 13/01/2003 Caarapó/Caiuás/Guarani
15/01/2003 30 Brasília do Sul ** Juti 9.345,00 Jacintho Honório S. Neto ** Índios -------- Caiuá/Caarapó/Guaraní
22/02/2003 50 São Sebastião Dois Irmãos do Buriti 300,00 Jorgina Correa Moura Índios -------- Aldeia Buriti
22/02/2003 50 Recanto do Sabiá Dois Irmãos do Buriti 300,00 Justina Correa Ribeiro Índios -------- Aldeia Buriti
22/02/2003 50 N. Sra. Aparecida Dois Irmãos do Buriti 300,00 Cristina Correa Índios -------- Aldeia Buriti
22/02/2003 60 Buriti Dois Irmãos do Buriti 425,00 Waldemar Marques Rosa Índios -------- Aldeia Buriti
06/03/2003 60 Santo Antônio Sidrolândia 56,00 Moacir Franco Índios -------- Aldeia Córrego do meio
26/06/2003 50 Furna da Estrela Dois Irmãos do Buriti 3.900,00 Haroldo Ferreira Côrrea Índios -------- Aldeia Água Azul
18/08/2003 30 N. Sra. Aparecida Dois Irmãos do Buriti 1.300,00 Acelino Roberto Ferreira Índios -------- Aldeia Corrego do Meio
25/08/2003 30 Bom Jesus Sidrolândia 1.200,00 José Barbosa Coutinho (Espólio) Índios 31/08/2003 Aldeia Corrego do Meio e Lagoinha
25/08/2003 30 Querência São José Sidrolândia 300,00 Lourdes Bacha Índios 31/08/2003 Aldeia Corrego do Meio e Lagoinha
25/08/2003 30 3R Sidrolândia 300,00 Rachid Bacha Índios 31/08/2003 Aldeia Corrego do Meio e Lagoinha
25/08/2003 30 Buriti Sidrolândia 300,00 Ricardo Bacha Índios 31/08/2003 Aldeia Corrego do Meio e Lagoinha
22/12/2003 1000 São Jorge Japorã 2.000,00 Pedro Fernandes Neto Índios -------- Aldeia Porto Lindo
28/12/2003 300 Paloma Japorã 457,38 Jeadir Silvestre de Carli Índios -------- Aldeia Porto Lindo
03/01/2004 15 Guaçuri Japorã 314,60 Edson Alves Índios 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo
03/01/2004 300 Brasil 2 Japorã 314,60 Alberi Pereira de Lima Índios 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo
03/01/2004 15 São Marcos Japorã 169,40 Cícero Eugênio Índios 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo
04/01/2004 15 Guaporema Japorã 135,52 Márcio Paulo Polzin Indios 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo
05/01/2004 100 São José Japorã 532,40 José Maria Varago Índios 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo
05/01/2004 100 Chaparral Japorã 605,00 Luiz Carlos Tormena Índios 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo
06/01/2004 15 Sítio Zé Lago Japorã 35,09 José Joaquim Nascimento Indios 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo
06/01/2004 15 São Sebastião Japorã 7,00 Sebastião Pereira Indíos 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo
06/01/2004 15 São Miguel Japorã 252,00 Benedito Machado Índios 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo
06/01/2004 100 Remanso Guaçú Japorã 2.633,00 Flávio Telles de Menezes Índios -------- Aldeia Porto LIndo
06/01/2004 100 São Pedro Japorã 677,60 Joel Rodrigues Índios 24/02/2004 Aldeia Porto LIndo
07/01/2004 15 Estância Varago Japorã 121,00 José Maria Varago Índios 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
104
Pelos dados acima, podemos ver que entre 1998 e 2004 ocorrem 49 ocupações de terras
(apenas 1 foi realizada em 1985), 4359 famílias envolvidas, 44 propriedades ocupadas, das quais 29
foram despejadas e cerca de 21 permanecem nas áreas em conflitos. Das propriedades ocupadas no
quadro acima, 11 o foram pelos índios Terena das aldeias de Buriti e Sidrolândia (25% do total), e a
demais 75% pelos índios Guaranis. Deve somar-se a este numero a ocupação realizada em 2005
pelos índios Terena de Cachoeirinha. O envolvimento dos Terena nas ocupações de terras é
significativo, apesar de não ser majoritário.
Ou seja, estamos falando de um novo processo de territorialização, dirigido pelos índios,
com origem nas suas próprias demandas, materiais e simbólicas. As ocupações de terra não são
fatos isolados, mas um processo sistemático de luta política, que se aprofundou a partir do ano de
1998. O número de famílias envolvidas (mais de 4 mil) indica um envolvimento expressivo do
conjunto da população indígena, que poderia alcançar até de 20 mil pessoas (ou cerca de 50% da
população indígena oficial do estado).
Quadro 24 Fatos Relacionados ao Conflito Fundiário ou Reivindicação de Direitos
45
Reféns feitos
Pelos Índios
Propriedades Ocupadas em “Retomadas de
Terras”
Bloqueio de
Rodovias
Ocupação de Prédios
Públicos
2000 2
(funcionários
da FUNAI)
3 (Sidrolândia)
1 (FUNAI)
2001
2002 1 (repórter) 6 (BR-163,
Rondonópolis,
MT).
2003
8 (4 policiais
1 motorista, 3
proprietários
rurais)
11 (entre Sidrolândia e Dois Irmãos
do Buriti) foram invadidas onze propriedades
somando cerca de 10 mil hectares de terras. São
elas: Santa Clara, Lindóia, Cambará, Buriti, Bom
Jesus, Querência São José, Três R, Quitandinha,
Vassoura, São Sebastião, Águas Claras.
1 (FUNAI)
2004
2005 1 (produtor
rural)
1 (Fazenda Santa Vitória em Miranda)
1 (Delegacia de Polícia
Civil Miranda).
2006 2
(funcionários
da FUNASA)
2 (BR-163,
Jaguari-MS)
1 (FUNASA Pólo
Base Sidrolândia).
O processo concreto de territorialização dirigido pelos indígenas acaba expressando a
resistência aos padrões de territorialização impostos pelo regime tutelar e também as condições
econômico-sociais que derivam dele, ao mesmo tempo depende da combinação de algumas técnicas
45
Elaborados a partir de notícias de jornal e do “Aconteceu Povos Indígenas”; Folha de São Paulo 07/11/2006
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
105
de luta política, que expressam a oposição aos efeitos do regime tutelar. Nesse sentido, as
ocupações representam a superposição conflituosa de formas de regulação de diferentes grupos
sociais (indígenas e produtores rurais) sobre certos territórios e recursos naturais.
O quadro 24 mostra um levantamento das técnicas de resistência e dos conflitos concretos
envolvendo as ações de índios Terena em Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, que se relaciona
diretamente a esta oposição ao modelo de territorialização do SPI/FUNAI:
Vemos que os processos de ocupação são realizados de forma a combinar-se com outras
técnicas de luta política. Podemos dizer que o uso freqüente dessas técnicas permite que as
agrupemos em quatro grandes categorias: 1) ocupação de terras; 2) seqüestros (ou tomada de
reféns); 3) bloqueios de estradas e rodovias; 4) ocupações de prédios públicos. Essas diferentes
técnicas podem ser combinadas como vimos no quadro acima, de maneira que os índios seqüestram
carros e pessoas para realizar uma ocupação ou na seqüência de uma.
A existência de “retomadas de terras” no Mato Grosso do Sul e entre os índios Terena
expressa por si só uma mudança qualitativa nas relações de poder e na correlação local de forças
entre os índios e o Estado. As ações coletivas, públicas, organizadas em torno de um discurso
afirmativo, indicam o desenvolvimento da capacidade política indígena que se articula inclusive
com outros processos sociais difusos (como a escolarização, mobilidade social e espacial e etc).
Podemos falar que a retomada de terras é uma das técnicas da resistência política camponesa e que
o seu emprego indica que os grupos sociais construíram condições materiais, organizativas e
ideológicas, para sua utilização. A partir do momento em que grupos sociais empregam a retomada
de terras, configura-se um conflito político em que os indígenas desenvolvem uma política de
resistência a (e simbolicamente de inversão) uma situação de desigualdade gerada pela dominação
estabelecida. A retomada de terras expressa esse desenvolvimento da capacidade política indígena
através do conflito político que desencadeia novas formas de territorialização.
A utilização dessas técnicas de resistência pelos índios mostra que certas condições políticas
amadureceram a ponto de permitir a passagem de formas cotidianas de resistência para a resistência
aberta. E esse é um componente fundamental desse protagonismo indígena, calcado numa mudança
da co-relação de forças entre índios, Estado e grupos sociais dominantes.
A mudança na co-relação ou balanceamento de forças, na distribuição dos poderes na atual
situação histórica, se dá pela quebra do “monopólio” (nunca plenamente alcançado) de
representação do índio e o poder de substituição da ação indígena pelos agentes de Estado.
O objetivo das ocupações é a revisão dos limites das terras no sentido de sua ampliação, e a
demarcação das terras identificadas como indígenas. Nesse sentido ela afeta diretamente duas das
principais bases da política indigenista e do regime tutelar: o padrão de territorialização e o modo de
inserção na estrutura de classes (já que o aumento das terras e recursos permite uma alteração da
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
106
posição na estrutura de classes). Assim, as técnicas de resistência empregadas se dirigem aos efeitos
dessas bases, procuram modificá-las.
Iremos denominar aqui a atual situação histórica como “situação de retomada”, para indicar
esses processos de territorialização e mudança nas relações de poder. A semântica desta expressão
visa caracterizar os padrões de relações entre os indígenas, o Estado e outros atores sociais,
chamando a atenção para as transformações processadas no conteúdo e na forma do regime tutelar.
É uma categoria etnográfica carregada de significado político e simbólico. Primeiramente,
devemos indicar que quando usamos a categoria “retomada”, estamos empregando uma categoria
utilizada em larga medida pelos próprios indígenas e suas organizações, e também por outros atores
que se articulam politicamente com os indígenas (como o CIMI). A categoria “retomada” é
utilizada para designar a ação de entrada ou ocupação dos índios nas terras que eles reivindicam
como tradicionais. Neste sentido é uma categoria que surge do conflito fundiário e político e
também de processos de territorialização. Em Cachoeirinha, por exemplo, entrevistamos um dos
caciques que organizaram e participaram de uma ‘retomada de terras” (a ocupação de uma fazenda
limítrofe à Cachoeirinha).
“Quando nós tava fazendo reunião aldeia por aldeia, nós tava preparando para fazer essa
retomada, Lagoinha, Babaçu e Argola, quem decidiu mesmo para fazer esse retomada foi esse
três aldeia. Então até hoje tá esses três aldeias junto, três caciques junto, apesar que dois
caciques, eu e Ramão, Lindomar é um líder que lidera as pessoa que veio da Argola. Não
esperou cacique de lá, cacique de Argola por enquanto tá indeciso”. (Cacique Zacarias
Rodrigues, Março 2006).
A categoria retomada é emblemática da atual situação histórica (situação esta que se
configurou a partir da década de 1990 do século XX) e permite a caracterização de seus traços
sociológicos fundamentais.
Fazendo uma consideração geral sobre o conjunto de processos que identificamos entre os
Terena, podemos dizer que tanto a estratégia dos índios funcionários, quanto das assembléias e
organizações indígenas são empregadas de forma alternada ou combinada. Na realidade, a via da
co-gestão indígena já se consolidou regionalmente no Mato Grosso do Sul, com o controle da
regional Campo Grande FUNAI pelos Terena. A este projeto disseminado entre lideranças e facções
indígenas, está se contrapondo um outro, caracterizado pelas retomadas de terras. Mas não devemos
opor a via da “co-gestão” a via da “resistência”, pois apesar delas tenderem a se neutralizar
mutuamente, elas derivam de processos similares, que são as formas cotidianas de resistência ao
regime tutelar dentro das aldeias e comunidades locais.
Logo, a atual situação histórica, permite que formulemos uma série de problemas. Como
seria possível a eclosão de tais conflitos políticos e tais processos de territorialização e mobilização
política se os índios Terena fossem apenas pólos determinados na relação com a sociedade
Capítulo 2 Territorialização e Resistência Indígena.
107
nacional? Como seria possível a existência de retomadas se eles fossem apenas “índios mansos”,
colaboradores periféricos das agências tutelares e indigenistas? Essa resistência verificada na atual
situação histórica que expressa em termos concretos a emergência do protagonismo étnico poderia
ser precedida de um vazio total de conflitos e um completo silêncio de ações dos indígenas? Ou os
conflitos entre os Terena e o Estado se desenvolveram de forma sub-reptícia, sob a égide de uma
aparente “pax” imposta pelo regime tutelar? A nossa hipótese vai nessa direção e é isso que
demonstraremos ao longo dos próximos capítulos.
Pretendemos demonstrar como na realidade a via da co-gestão indígena na realidade aponta
para a reprodução das relações de dominação (particularmente, o regime tutelar) e como ela pode
ser entendida como uma forma histórica de atualização de uma política de colaboração dos índios
com os poderes de Estado. Essa colaboração exige o aprofundamento das formas de dominação
horizontal, viabilizada pela lógica de centralização estatal e descentralização faccional, e pela
reificação da intervenção do Estado nos conflitos internos. Esse faccionalismo por outro lado tende
a enfraquecer as ações coletivas e a própria base do poder indígena. Por outro lado pretendemos
mostrar o fenômeno de emergência do protagonismo étnico é marcado por contradições que lhe dá
um caráter relativamente imprevisível e indeterminado, tendo vários desdobramentos possíveis,
tanto o aprofundamento na co-gestão e colaboração, quanto da resistência indígena. É essa a nossa
tarefa.
Mas para isso, é preciso ver como a política indigenista, desenvolvida a partir de um
momento histórico determinado, consagrou padrões de territorialização das sociedades indígenas. E
ainda como esses padrões de territorialização foram instrumentos de construção do Estado-Nacional
e da economia capitalista, e ao mesmo tempo, como essas formas coloniais implicaram na inserção
dos índios Terena muito precocemente dentro de uma estrutura de classes capitalista. A
sociedade Terena, tal como existe hoje, é produto dessa dialética histórica, desse balanceamento de
forças continuo entres grupos indígenas, forças coloniais, classes e agencias estatais. É necessário
fazer uma etnografia histórica das relações de poder entres índios e o Estado, da dialética entre
política indigenista e política indígena e as múltiplas formas de localização e temporalização
associadas a elas, no sentido que buscaremos uma descrição detalhada, local e concreta, dessas
interações e oposições. É o que faremos ao determinar os “tempos e espaços indígenas” na
formação do Estado-Nacional.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
108
Capítulo 3 - Tempos e Espaços Indígenas na formação
do Estado-Nacional: a acumulação colonial de poderes e
capitais.
“Estes casamentos também servem de obstáculo para um aldeamento constante; porque muitos
são contrahidos em outras diversas e distantes tribus, casando-se muitas vezes os de
Albuquerque e Miranda uns com os outros, e com os Cadiuéos, e ainda em outras toldarias
vizinha dos hespanhoes, das quaes vem igualmente homens e mulheres ligar com primeiros
semelhantes allianças, que ordinariamente são de pouca dura; e como os maridos, sempre se
mudam para a morada da mulher, praticando o mesmo os chamados captiveiros, tanto por
semelhante motivo como por seguirem, e só por affecto, a seus senhores, resulta d´esta vaga
pratica um inconstante circulo de mudanças que em nenhuma parte fixa o centro de sua
residência. (...)
Como este capitulo sobre a estabilidade d´estes Indios é talvez o mais fundamental para
desvanecer a esperança de se aldearem elles de tal forma que sejam úteis á mineração,
agricultura e população portugeza, eu devo ser mais extenso em relatar alguns fatos constantes
e recentes”.
Ricardo Freire de Almeida Serra, Continuação do Parecer sobre os índios Uaicurus e Guanás,
1803
Neste capítulo iremos realizar um estudo da formação histórica do campo e arenas das
relações interétnicas no Mato Grosso do Sul, reconstruindo os processos pelos quais o regime
tutelar se constituiu e se transformou, até assumir a forma com que hoje se apresenta. É uma
história das relações de poder entre os povos indígenas, o Estado-Nacional brasileiro e outros atores
sociais, que visa apreender a gênese das relações de dominação, seus fundamentos (internos e
externos, político-econômicos e simbólicos) e sua dinâmica funcional.
Iremos descrever aqui as situações históricas pelas quais os Terena passaram desde o século
XVI. Isto significa identificar as diferentes formas de balanceamento e equilíbrio de forças entre
índios, forças coloniais e Estado e os diferentes processos de territorialização que os Terena
vivenciaram. O objetivo é compreender como a inserção dos Terena numa estrutura de classes e
seus processos de territorialização, foram construídos historicamente, percebendo também a
especificidade étnica e social dos povos que faziam parte do sistema social indígena do
Chaco/Pantanal.
As duas citações da epígrafe servem para dar o norte da nossa discussão. Em primeiro lugar,
a constatação de um modo de vida indígena marcado por uma profunda alteridade, uma relação
específica com territórios, recursos naturais e grupos sociais, marcados por uma intensa mobilidade,
que leva a constantes “mudanças sociais”; de outro a constatação de que essa alteridade de modos
de vida era impeditiva para um projeto colonial que já se delineava com clareza: a necessidade de
fixação dos índios em territórios para a exploração da sua mão de obra, seja em atividades de
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
109
mineração, seja na agricultura. Os tempos e espaços indígenas correspondem assim a diferentes
balanceamentos de poder e modos de vida.
3.1 - A “Situação do Chaco”: o sistema social indígena (1543-1775).
A etnografia Terena, ao considerar a história do grupo, menciona sua presença no “Chaco”.
Kalervo Oberg, por exemplo, afirma que “...grupos de Terena continuaram a chegar do Chaco até
a Guerra do Paraguai” (Oberg, 1948, p. 4). Neste sentido, ao descrever a história e a cultura
tradicional Terena, este autor começa a descrever a sua vida no “Chaco” (Oberg, op.cit, p. 6).
Altenfelder Silva, ao considerar a problemática da mudança cultural, diz que a principal foi
o deslocamento dos Terena do Chaco para o Brasil”. Esta mudança de ambiente teria tornado
inoperante muitos dos elementos da antiga cultura Terena. Afirma que a antiga cultura Terena não
permitia resolver os problemas causados pela mudança de ambiente, e a população brasileira
oferecia aos Terena novas formas culturais (ALTENFELDER SILVA, 1949, p.374). Este autor
também dedica uma parte de seu trabalho a considerar a cultura tradicional Terena associada
sempre a sua “presença no Chaco”.
Roberto Cardoso de Oliveira considera: “A rigor, as primeiras referências que temos sobre
os Terena são devida a Sanchez Labrador (....) Eram, até esse tempo, dos grupos Guaná, o mais
isolado. Segundo Azara (...) os Terena estariam representados por dois bandos, um ainda vivendo
no Chaco, próximo aos Kinikináu, outro a leste do rio Paraguai, sob o paralelo 21º, sobre uma
cadeia de pequenas montanhas que denominavam Echatyá” (....) Todavia não podemos saber qual
desses grupos teria recebido o missionário ou se, na época a que se referiam os informantes
Terena, ainda estariam no Chaco o que parece ser o mais provável”. (Cardoso de Oliveira,
1976,p. 58).
Existe um consenso na história dos Terena, em se indicar a sua presença no Chaco. Ao
Chaco estaria associada à vigência da “cultura tradicional”. O estabelecimento de relações
interétnicas se daria através do deslocamento migratório dos Terena do “Chaco para o território
brasileiro”, e com isto começaria a “aculturação indígena”. Vejamos que a memória indígena
confirma essa localização territorial. O “Chaco” aparece como “Exiwa” e marca os relatos de
muitos índios quando falam da história das famílias ou do grupo como um todo. Nesse sentido,
podemos falar de uma situação do Chaco e cabe interpretá-la.
A nossa hipótese é que no Chaco, os Terena não constituíam um grupo isolado, com uma
existência paralela a outros grupos isolados, mas faziam parte de um sistema social indígena, que só
pode ser compreendido a luz das relações entre os diversos povos indígenas e em interação com as
unidades locais do sistema mundial o colonialismo espanhol e português. E segundo esta hipótese
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
110
não houve uma migração do Chaco para o “Brasil, e esta migração não seria conseqüentemente o
marco zero das “relações interétnicas” e da aculturação e assimilação. Na realidade, foi graças a
articulação do sistema indígena com o sistema estatal, através de múltiplas formas de colaboração,
que tornou-se possível o empreendimento colonial e a formação do Estado-Nacional brasileiro.
Os territórios hoje ocupados pelos indígenas do Mato Grosso do Sul são apenas fragmentos
de um território indígena muito mais amplo, que foi desintegrado em meio ao processo de conquista
colonial e formação dos Estados Nacionais sul-americanos. A região em que se encontram hoje as
reservas Terena faziam parte de um território indígena e de um sistema social específico. Para falar
desta história, é preciso falar da história da colonização. Pois é em meio ao processo de colonização
e guerra de conquista que foram produzidos, progressivamente, os saberes sobre os povos indígenas
do “Chaco”. Com relação ao território do que hoje é conhecido como Pantanal:
“A imensa planície inundável situada no interior da América do Sul, hoje denominada
Pantanal, foi transformada em terras pertencentes à coroa espanhola, pelo tratado de
Tordesilhas no final do Século XV. (...) Desde então, a área inundável da bacia alto-paraguaia
passou a ser reconhecida como a fabulosa Laguna de los Xarayes. (...) Em meados do século
XVIII, a mesma região passou ser o Pantanal. A denominação foi dada pelos portugueses Del
Brasil, os monçoeiros. Estes seguindo as bandeiras paulistas,avançaram além dos limites
fixados e 1494 em Tordesilhas e, no início dos anos setecentos, fizeram daquela águas seu
caminho às terras conquistadas”. (Costa, 1999, p. 17-19).
Podemos dizer que este território foi um território de posse “indefinida” até o século XVIII,
e que as diferentes classificações (Pantanal, Laguna de Xarayes) e representações cartográficas
acerca dele, comprovam isso. Todo o território do hoje estado do Mato Grosso do Sul era no século
XVI, território da Coroa Espanhola, de acordo com o que foi acertado pelo Tratado de Tordesilhas
(1494) e território indígena de acordo com os fatos. A produção da categoria e da realidade político-
territorial “Pantanal” seria realizada pela luta entre Impérios e pela disputa com as sociedades
indígenas.
Esta informação é importante porque da mesma maneira que o que hoje é território
brasileiro, no século XVI era território indígena, o que hoje se considera o Chaco não corresponde
ao que era o Chaco no século XVI-XVIII. Na verdade, a definição do território do Chaco, assim
como das fronteiras dos Impérios Português e Espanhol, era extremamente fluída. Veremos que esta
fluidez é o produto dos processos de luta político-militar, entre impérios e povos indígenas, ao
longo de três séculos, a partir de 1540. O Mapa número 2 expressa sob forma gráfica toda a
dinâmica territorial do período.
O topônimo Chaco (do Qêchua, “Chacu”) indicava inicialmente a província de Tucúman,
passando a designar posteriormente todo o território a leste dela, numa extensão de 700 mil
quilômetros, abrangendo territórios da Bolívia, Argentina, Paraguai e Brasil (Carvalho, 1992, p.
457). A região do Chaco era caracterizada pela existência de uma grande diversidade étnico-
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
111
cultural, sendo sub-dividida em “áreas culturais”: a do Alto, Médio e Baixo Paraguai. O alto
Paraguai ou Chaco Boreal se estenderia do Porto de Candelária até o rio Jauru, abrangendo
atualmente a região de Corumbá até Cuiabá (ver Susnik, 1978, p.9). Quer dizer, o que hoje se
denomina “Pantanal”, incluindo o pantanal sul mato-grossense, estava integrado no “Chaco
Boreal.”, não constituindo um território distinto dele. Esta região, que mesmo hoje é em algumas
partes incógnitas, foi, contudo, uma das primeiras áreas a serem conquistadas. (Metraux, 146,
p.199):
A história do Chaco no século XVI não pode ser separada daquela da conquista do Rio Plata.
Assunção foi fundada em 1536 somente como uma conveniente base para a exploração do
Chaco. Os principais eventos que marcaram aquele período foram: a trágica expedição de
Juan de Ayolas, 1537-1539, que atravessou o Chaco até as terras dos Chané, porém no seu
retorno foi massacrado próximo a La Candelária pelos indios Paiaguás; a expedição de 26
dias de Domingo Martinez de Irala a partir de São Sebastião, 8 léguas sul de La Candelaria
oriental, 1540; a expedição de Alvar Nunes Cabeza de Vaca contra os Mbayá Guaicuru em
1542; a expedição de reconhecimento Domingo Martinez de Irala em 1542 a Puerto de los
Reyes...» (Metraux, 146, p.200).
O processo de colonização da bacia do alto-Paraguai, do Chaco Boreal ou Pantanal, nas suas
primeiras fases, não seguiu um plano de ocupação e povoação, pois era visto como um território de
passagem, uma rota para os Andes e Peru, onde se buscava a exploração do ouro. Foi assim que os
espanhóis a concebiam, e um projeto de ocupação e povoamento, só foi realizado pelos portugueses
no final do século XVIII (Costa, op.cit, p. 32, Metraux, op.cit, p. 199). Logo, desde muito cedo os
povos indígenas daquela região se defrontaram com as forças coloniais, primeiramente espanholas,
depois, portuguesas.
A primeira incursão colonial nesta região foi realizada pelo português Aleixo Garcia em
1520
46
, que adentrou o “Gran Chaco”, num primeiro esforço de alcançar as fronteiras das riquezas
Incas
47
. Em 1526 Sebastian Caboto, a serviço da Coroa Espanhola, organiza uma outra expedição
que adentra a região pelo rio Paraguai. Depois, a partir de 1534, uma expedição comandada pelo
espanhol Pedro de Mendonza, declarado adelantado (titulo dado aos Governadores dos territórios
espanhóis) volta a explorar a região. A partir de 1543, o processo de conquista colonial da região, se
consolidaria. O segundo adelantado, Alvar Nunez Cabeza de Vaca, impulsionaria a expansão
colonial espanhola. Assunção era a base de onde partiam as expedições através do rio Paraguai
46
Aleixo Garcia era um naufrago sobrevivente de uma expedição comandada por Juan Diaz de Solís, que em 1515
navegou no rio Paraná-Guaçu.
47
É interessante notar que Costa afirma que segundo o historiador paraguaio Manuel Dominguez, as terras que
seriam denominadas Chaco, eram inicialmente conhecidas apenas como “terras dos Mabayaes”. (ver Costa, op.cit, p.
34, nota 5).
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
112
acima. Em 1580 seria fundada Santiago de Xerez
48
, na região de Itatins, onde depois seriam
estabelecidas as missões jesuítas, no ano de 1632, (Costa, op.cit, p. 41-43).
As referências de que se dispõem acerca dos Terena, os indicam como um “subgrupo” dos
Guaná, que ocupavam a região do “Chaco Paraguaio” (Cardoso de Oliveira, 1976) Segundo
Metraux, os grupos de língua e cultura Aruak, estariam divididos em dois ramos. Os “Chané”, auto-
designação usada pelos grupos existentes ao longo do Andes e Guaná, aqueles grupos que
ocupavam a região da Bacia do Paraguai. Entretanto, é preciso notar que segundo registros de
Sanchez Labrador, no Paraguai os Guanás se auto-denominavam Chanás, e a origem do etnônimo
Guaná seria uma denominação atribuída pelos conquistadores espanhóis aos índios “Chané”
daquela região (ver Cardoso de Oliveira, op.cit, p.24).Guaná poderia ser ainda a forma pela qual os
Mbayá-Guaicurú chamariam os Chanés (Susnik, 1978). Os grupos Aruak, denominados
Guaná/Chané estariam ainda subdivididos em quatro sub-grupos: Terena, Layana, Quiniquinau e
Exoaladi. (ver Cardoso de Oliveira, 1976, p.26).
As primeiras referências aos Guaná/Chané, são do século XVI. Elas são feitas por Ulrico
Schmidl, um soldado alemão que integrou as expedições espanholas, e Alvar Nunez Cabeza de
Vaca, governador do Paraguai entre 1542-1546. Os relatos destes são utilizados por Cardoso de
Oliveira para construir sua análise histórica sobre os Terena. É interessante observar que ambos
(Cabeza de Vaca e Schmidl) participaram de expedições nos anos de 1543-45. Estas expedições
alcançaram a região do alto-Parguai, sendo aí encontrados os índios Chanés
49
.
Ou seja, os índios Terena, se localizavam no século XVI, no território do Chaco; mas este
território não está fora das fronteiras territoriais da região que hoje eles ocupam. Na verdade, as
fronteiras deste território eram relativamente móveis, já que, como veremos, estava integrado num
tipo de sistema social que exigia isso.
O início da Conquista Colonial espanhola com a formação da povoação de Assunção e do
Vice-Reino do Paraguai transformaria profundamente as relações entre os povos indígenas daquela
região da América do Sul. Em primeiro lugar, devemos dizer que se implantam novos conjuntos de
forças e atores sociais: as povoações, os fortes e portos, que instituíram novas bases de comércio e
relações políticas. Este novo conjunto de atores e instituições estabeleceu novas relações sociais; a
ideologia mercantilista da acumulação de ouro-prata criou um circuito de exploração da mão de
48
Esta cidade ficaria localizada as margens do rio Mbotetei (atual rio Aquidauana), que teria sido abandonada anos
depois. De acordo com a história regional, outra Santiago de Jerez teria existido, na região de Camapuã, fundada em
1593 (ver Campestrini & Guimarães, 2002, p. 15). .
49
“Estavam certamente no que hoje se chama Pantanal do rio Negro, nas cercanias da cidade de Corumbá. (...) Ao
falar sobres os indígenas habitantes de Los Reyes, Cabeza de Vaca cria uma imagem que, por mutações, dará a este
lugar uma mítica representação de porta de riquezas. Os Sacocies e Chaneses, já anteriormente relatados por
Irala...” (Costa, op.cit, p. 102-103). Cabeza de Vaca teria passado inclusive no foz do rio Miranda e Domingos
Martinez de Irala, que assumiria o Governo de Assunção depois dele, explorou os rios Iguatemi e Paraná, e no norte
de Corumbá, fundou em 1538 o Porto dos Reis (Campestrini & Guimarães, op.cit, p. 14-15).
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
113
obra indígena, seja nas povoações, seja nas expedições militares. Algumas parcelas dos índios
foram incorporadas como “trabalhadores-soldados” em empreendimentos coloniais. (Susnik, op.cit,
p. 80)
A cidade de Assunção no Paraguai, os fortes e portos estabelecidos criaram uma nova
dinâmica nas relações entre as sociedades indígenas. Os Guaicurus, puderam ampliar seus ataques
contra os espanhóis e demais povos indígenas. As cidades e povoações coloniais converteram-se em
espaço de “saque e troca”; os Taquiyiquis, Mbayá e outros grupos como os Paiaguás atacavam as
cidades para conseguir ferro, aço, cavalos e gado, que eram utilizados para aperfeiçoar suas
atividades de caçadores-coletores-guerreiros ou canoeiros-guerreiros, aumentando seu poder, ou
então atacavam outros grupos indígenas para buscar cativos, que seriam utilizados como
trabalhadores a seu serviço ou negociados nas cidades e povoações coloniais
50.
Logo, duas relações básicas se estabeleceram entre grupos indígenas e colonizadores: a
relação de troca-guerra e a relação de troca-aliança. Cada grupo poderia alternar estes tipos de
relação, situacionalmente. Vale a pena frisar, que o sistema social vigente dentro desta situação
histórica, já era interdependente do sistema mundial e de suas seções territoriais, as colônias
espanholas e portuguesas da América. As bases de funcionamento de suas relações de poder,
organização social e dinâmica, já eram condicionadas por este sistema mundial, através das
agências dos colonialismos português e espanhol, de maneira que é impossível compreender a
dinâmica do sistema social indígena sem compreender suas relações com os diferentes
colonialismos existentes.
3.2 – Conhecer e Destruir: Guaicurus, Guanás e Colonialismos no Chaco/Pantanal.
Para entender a dinâmica da Conquista Colonial e Resistência Indígena no sul de Mato
Grosso, é preciso compreender que um conjunto de forças sociais entrou em choque a partir do
século XVI: o colonialismo espanhol, que estabelecido na região de Assunção no Paraguai,
pretendia avançar ao norte, passando pelo sul de Mato Grosso; o colonialismo português, que partia
especialmente de São Paulo no sentido Oeste, para Mato Grosso; e os povos indígenas, que
ocupavam a região desde o período pré-colonial e que disputavam o controle dos mesmos
territórios.
Uma rápida cronologia do desenvolvimento dos colonialismos no alto-Paraguai aponta o
seguinte: Em 1538 é formada a Colônia de Maracajú, a leste do rio Paraná,por Irala; depois no
50
Os Taquiyiquis entravam nas aldeias cario-guarani da outra orla do aproveitando-se de seus cultivos, dos lugares de
boa caça e pesca, provendos-e de adolescentes para exigir abundantes resgates e obtendo também alguns scalps para
adquirir o direito ‘ao penado’ do guerreiro de prestigio ou vingar a vitimação antropofágica de algum dos seus.”
(Susnik, op.cit, p. 80)
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
114
período 1542-1543, o Porto de São Fernando (possivelmente a atual Corumbá) e o Porto dos Reis,
ao norte deste, igualmente fundados por Irala. Em 1580 forma-se Santiago de Jerez, nas margens do
Rio Aquidauana. No século XVII, a partir de 1630, formam-se reduções jesuítas conhecidas como
Província do Itatim. Ficavam limitadas ao norte pelo Rio Miranda, ao sul pelo Rio Apa, a leste pela
Serra de Maracaju e a oeste pelo Rio Paraguai. (Campestrini e Guimarães, op.cit, p. 84).
Ainda no século XVII, começam as incursões portuguesas além das linhas de fronteira
traçadas pelo Tratado de Tordesilhas, entrando na região do alto-Parguai. A partir de 1628, o
bandeirante Antonio Raposo Tavares atacaria as missões jesuítas do Guairá e o Itatim, em busca de
escravos indígenas que pudessem ser comercializados no litoral brasileiro. Desta maneira, “... no
final do século XVI, o território hoje sul-mato-grossense (vale do Iguatemi, Pantanal, a será de
Maracajú e Vacaria) era todo conhecido, principalmente pelos espanhóis; e no século seguinte, foi
percorrido por numerosas bandeiras em direção ao norte, ao Paraguai e ao Peru”. (Campestrini &
Guimarães, 2002, p. 15-17).
No século XVIII, se consolida a expansão portuguesa através das monções, que partiam do
litoral, de São Paulo, em direção ao centro-oeste
51
. A descoberta de ouro em 1718 por Pascoal
Moreira Cabral, é que desencadearia o processo. Em 8 de abril de 1719 surgiu o “arraial da
Forquilha, núcleo de povoamento minerador que daria origem a cidade de Cuiabá. Em 1719 surge a
fazenda de Camapuã, primeiro núcleo português na região do atual Mato Grosso do Sul. Em 1727, é
fundada a Vila Real de Bom Jesus do Cuiabá, iniciando-se então a colonização da região do Mato
Grosso, especialmente a região norte. Configurada estava uma disputa imperial entre Portugal e
Espanha, pelo controle efetivo dos territórios do alto Paraguai, ou do Chaco Boreal. A busca de
ouro marcaria a expansão colonial portuguesa nesta região (ver Campestrini & Guimarães, op.cit, p.
19-23).
O Tratado de Tordesilhas seria revogado em 1750, dando lugar ao Tratado de Madrid, que
estabeleceu uma comissão mista para demarcar as fronteiras, que realizaria seu trabalho nos anos
seguintes. Mas a questão só seria efetivamente resolvida, em 1801, com o Tratado de Badajoz, que
estabeleceu que os territórios da bacia do alto Paraguai seriam da Coroa Portuguesa e do Vice-
Reino do Brasil. (Costa, op.cit, p.58). Entre os séculos XVI e XVIII, então existem duas fases da
colonização na região do Chaco Boreal: a primeira, realizada por espanhóis; a segunda, pelos
bandeirantes e monçoeiros portugueses. Ambos entram na região do alto-Paraguai, denominada
pelos primeiros de “Lagoa ou Mar de Xaraés” e pelos segundos de “Pantanaes”.
Para compreender as formas de resistência e dominação estabelecidas, é preciso
compreender as características do sistema social indígena do Chaco/Pantanal, que é como
51
O termo “monções” designa as expedições que desciam e subiam rios das capitanias de SP e MT, nos sécs. XVIII e
XIX, pondo-as em comunicação.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
115
denominaremos o conjunto de relações entre grupos indígenas e forças coloniais estabelecidos entre
os séculos XV e XVIII.
As relações entre os Mbayá-Guaicurú e os Guaná/Chané foram caracterizadas pela etnologia
brasileira como de “simbiose” (ver Baldus e Cardoso de Oliveira, 1976). Esta relação remeteria ao
período pré-colonial, mas teria sido mantida no inicio da colonização espanhola (esta é uma
hipótese, ver Cardoso de Oliveira, op.cit). Entretanto a idéia de simbiose, assim como a de
isolamento, sugere uma imagem equivocada, pois desconsidera o conjunto das relações de inter-
dependência entre os diferentes grupos indígenas e as forças coloniais, considerando a relação
somente entre “dois grupos indígenas”.
Da demarcação de fronteiras acertada em 1750, sairia o relato de Félix Azara, um dos
membros da comissão responsável por estudar e demarcar os limites dos Impérios espanhol e
português. Segundo as informações de Azara:
“A época da chegada dos espanhóis, os Guanás iam, como atualmente, se reunir em bandos
aos Mbayás, para lhes obedecer, servi-los e cultivar suas terras, sem nenhum salário. Daí o
motivo dos Mbayás os chamarem sempre de escravos seus. É verdade que a escravidão é bem
doce, porque o Guaná se submete voluntariamente e renuncia quando lhe agrada. Mais ainda,
seus senhores lhes dão bem poucas ordens, não empregam jamais um tom imperativo, nem
obrigatório, e tudo dividem com os Guanás, mesmo os prazeres carnais. (Azara, apud in
Cardoso de Oliveira, op.cit, p. 31-32).
Percebemos acima a principal característica, que seria depois apontada tanto nos relatos de
militares, governadores, missionários que atuaram na região: a relação de aliança Guaicurú-Guaná.
É preciso descrever o funcionamento desta relação, pois através dela poderemos compreender a
dinâmica do sistema social do Chaco/Pantanal, e conseqüentemente, a situação histórica aqui
considerada, e também os fatores condicionantes do processo histórico posterior (de formação do
regime tutelar).
A relação de dominação e aliança Mbayá-Guaicurú com os Guaná/Chané, formou- se sobre
as demandas político-culturais indígenas e em meio ao processo de transformação das relações
sociais no Chaco por conta do processo de colonização. Esta aliança permitiu, no plano da
organização social e econômica (assim como adoção do complexo “cavalo-aço” no plano da
estratégia militar e dos modos de ação guerreira) o estabelecimento da supremacia Mbayá-Guaicurú
naquela região. No final do século XVIII, o padre Sanchez Labrador, que atuou numa Missão na
região do Chaco/Pantanal faria outro registro da relação Guaicuru-Guaná. Com relação à forma pela
qual se realizava a aliança, temos o relato de Sanchez Labrador:
“Aconteceu que os caciques Eyiguayeuis que se casaram com as mulheres Nyololas, cacicas ou
capitãs, tinham por seus os vassalos de suas esposas; desde então os reconhecem como tais.
(...) Por isso, os capitães Eyiguayeuis, somente eles tem criados: a plebe Guaicuru não
adquiriu direito sobre aquelas gentes. Daí é que os Nyololas apelidam os caciques Guaycurus e
seus parentes de nossos capitães; mas ao resto da nação e os que não se acham aparentados
com caciques chamam de nossos irmãos. (...) À véspera da partida dos Mbyas, lhes presenteiam
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
116
seus criados algum grão para a viagem; um bolo, de Nibadana, com que se pintam de
vermelho, e alguma manta de algodão, seja branca ou listrada de varias cores, que com gosto
tecem os Chanás. Aos Mbayas plebeus não lhes fazem semelhantes presentes...”. (Sanchez
Labrador, apud in Cardoso de Oliveira, op.cit, p. 32).
Logo, as relações entre os Mbayás-Guaicurús e Guanás eram efetivadas a partir de uma
categoria social especifica, a dos chefes. Apesar disto ter efeitos sobre as relações de todo o grupo,
mostra uma estratificação social interna a este sistema, de maneira que como se afirma, os Guaicuru
enquanto grupo, estavam acima dos Guanás, mas era através dos chefes e suas parentelas
principalmente, que tal sistema se articulava. E se é correto afirmar a existência de uma aliança
Mbayá-Guaicurú/Guaná é certo dizer também que ela se articulava pela “cúpula” da hierarquia
social, de camadas de chefes para camadas de chefes.
O sistema social autóctone vigente no Chaco/Pantanal” era caracterizado pela guerra e
pela dominação exercida por grupos indígenas uns sobre os outros, e eles se valiam das relações
entre si e com as agências coloniais para fortalecerem suas posições dominantes. A supremacia
Guaicuru gerou uma contradição ou clivagem entre os povos indígena. Ao mesmo tempo em que a
guerra e a divisão do trabalho dinamizava o sistema social do Chaco nestes séculos, fazia com que
os Mbayá-Guaicurú estivessem parcialmente numa relação de oposição de interesses a certos
setores das sociedades indígenas. Além disso, este sistema criou uma contradição/clivagem
secundária que se tornaria no decorrer do processo, a clivagem central e favoreceria a sua ruína: a
contradição do sistema indígena com o sistema estatal nascente. Este sistema social fez dos
Mbayás um poderoso grupo indígena, que obstruiu o avanço do colonialismo espanhol e português.
Até o final do século XVIII (principalmente entre 1775-1799) os espaços indígenas, eram espaços
de autonomia; mas esta autonomia sucumbiria, em parte pelo poder colonial, mas também pelas
contradições internas a este próprio sistema
52
. O período de 1775-1790 marcaria início do declínio
desse sistema social indígena. Até aquele momento, todas as mudanças verificadas pela presença
dos colonialismos eram de tipo repetitivo, ou seja, não alteravam a estrutura de poder e de classes,
nem a relação grupos sociais/território/recursos naturais.
52
Devemos lembrar que no sistema social do Chaco neste momento, a supremacia Guaicuru se estabelecia não
somente através das alianças, mas principalmente pela guerra e pela força. Mesmo os Guanás não eram poupados em
certas ocasiões, dos ataques realizados pelos Guaicurus, e outros grupos indígenas, por sua vez, também moviam
ataques contra os Guanás e entre si. Quando o colonialismo espanhol e português avança na região, já existiam assim
contradições econômicas e políticas entre os diferentes grupos indígenas. Sem entender isso, é impossível compreender
as bases da ação colonial na pacificação da região.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
117
Mapa 2 - Disputa Territorial no Mato Grosso.
Fonte: Arquivo Nacional. Serviço do Estado Maior.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
118
Figura 1- Representação da Estratificação do Sistema do Chaco/Pantanal.
Grupos Indígenas Componentes
1) Mbayá-Guaicurus (sub-grupos Ejueus, Cadieus e outros ; 2) Payaguás; 3) Guanás (sub-grupos Terena,
Quiniquinau e outros); 4) Guaxis; 5) Guatós; 6) Xamacocos; 7) Guaranis.
O sistema social do Chaco/Pantanal era composto assim pela inter-relação entre diferentes grupos sociais,
meio natural e material e forças coloniais. Pelo menos 7 grandes grupos indígenas e cerca de mais dez sub-
grupos participavam desse sistema, que incluía em seu funcionamento as forças coloniais. Em termos
demográficos, é possível indicar que esse sistema, já na fase final de existência, era composto por algumas
dezenas de milhares de pessoas.
Estratos ou Classes.
O esquema de estratificação acima mostra as relações de poder entre os grupos indígenas: a “soberba ou
etnocentrismo” dos Guaicurus estava relacionada a sua posição dominante. Abaixo, os demais grupos eram
considerados pelos chefes guaicurus como “cativos” e deviam prestar trabalho, como caso dos Guanás. Mas
dentro da estrutura de estratificação existia também o lugar para cativos dentro dos grupos sociais, que
seriam aqueles “capturados” pelos Guaicurus ou Guanás e submetidos e incorporados na comunidade
doméstica local. As relações eram tensas e complexas entre chefes e cativos. O cativo representava assim
duas ordens de estratificação: em relação ao conjunto dos grupos, opondo os Guaicurus aos demais; e dentro
dos grupos, marcando o status familiar e individual.
Oquilidi
(Chefes
Guaicurus)
Naati/Unati
(Chefes Guanás)
Niololas
(“designação dos Comuns” dos
Guaná)
Cativos
(segmentos de capturados a outros grupos,
como Guaranis, Guatós e Xamacocos)
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
119
3.3- O Cerco e o Aniquilamento: situação de diretoria e situação de cativeiro.
O sistema social indígena pôde ser mais bem descrito e analisado por nós a partir do século
XVIII e XIX, quando fontes mais sistemáticas são produzidas. É interessante observar que no que
tange as fontes portuguesas, elas começam a se tornar mais sistemáticas no século XVIII: relatórios
administrativos, crônicas, cartas, estudos. Conforme avançava a conquista colonial, estabelecem-se
empreendimentos cognitivos: “Existe ai um encadeamento terrível em que compreender leva a
tomar, e tomar a destruir”, ou seja, o conhecimento da alteridade era pré-condição para a expansão
colonial (Todorov, 2003, p. 183).
A nossa etnografia é marcada por esse processo; as fontes históricas que utilizamos
expressam essa tensão entre “conhecer, tomar e destruir”. Paradoxalmente, no momento em que os
colonialismos se lançam na ofensiva de destruição desse sistema indígena é que são produzidas
maiores informações sobre ele. Grande parte dos relatos é deixada por militares que cumpriam
funções na Guarda da Fronteira ou realizavam estudos cartográficos e científicos.
Alguns documentos importantes são o “Parecer Sobre o Aldeamento dos índios Uaicurus e
Guanás, com a descripção dos seus usos, , religião, estabilidade e costumes” (publicada na
Revista do IHGB, volume 7, 1845) e Continuação do Parecer sobre os índios Uaicurus e
Guanás”, estudos escritos pelo militar Ricardo de Almeida Serra, que comandou as forças militares
portuguesas na fronteira com o Paraguai e realizou estudos astronômicos e deixou essas etnografias
sobre os índios (Revista do IHGB, volume 13, 1850). Estes dois documentos fornecem descrições
dos grupos indígenas, das suas relações com as agências dos colonialismos espanhol e português na
região. Outros documentos igualmente relevantes são o “Resumo das Explorações feitas pelo
Engenheiro Luiz D´Laincourt desde o Registro de Camapuã até a Cidade de Cuyabá”, 1824
(Revista do IHGB, vol 20, 1857) e Reflexões sobre o Systema de defesa que adoptar na
Fronteira do Paraguay em Consequência da Revolta e dos Insultos Praticados Ultimamente pela
Nação dos Indios Guaicurus ou Cavalleiros”, 1826 (Revista do IHGB, vol 20, 1857).
O avanço dos colonialismos narrado acima conduz a um “cerco e aniquilamento” do sistema
social indígena do Chaco/Pantanal. Esse processo atravessa duas situações históricas: a de diretoria
(aproximadamente entre 1790-1860) e a de “cativeiro” (aproximadamente 1870-1900). São essas
duas situações históricas que analisaremos agora, momento em que se deram importantes mudanças
sociais.
Os últimos anos do século XVIII marcam o início do processo da fragmentação do território
e do sistema social indígena do Chaco/Pantanal. Fazendas de Gado, fortes e povoados, representam
a multiplicação das forças coloniais. Neste momento, o acirramento das lutas imperiais fez com que
a Coroa Portuguesa tivesse uma política de ocupação sistemática da região do Chaco/Pantanal,
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
120
depois que as monções deram início aos empreendimentos mineradores e abriram espaço para as
fazendas e povoados portugueses. Este é o processo inicial de construção do Estado Colonial
Português naquela região, ou seja, de estatização dos territórios indígenas, e da sua subordinação a
um novo esquema de distribuição do poder. Alguns dos principais indicadores desta hostilidade
foram às anulações dos tratados delimitadores de fronteiras: o Tratado de Madrid foi anulado em
1761; e em 1767 e 1777 foram feitos novos tratados (Mendonça, 1982, p.23).
O Mato Grosso foi até 1748 um território integrado na Capitania de São Paulo. Neste ano,
foi indicado seu Primeiro Governador, Antonio Rolim de Moura, que assumiu o cargo em janeiro
de 1751, permanecendo nele até 1764. É neste período que se acirram a tensões entre Portugal e
Espanha, por conta de suas disputas na América. Como quarto Governador da capitania de Mato
Grosso, Luis de Albuquerque de Melo Pereira e Cárceres assumiu o cargo com a missão recebida da
Coroa Portuguesa de assegurar os territórios “até o Rio Paraguai” (ver Campestrini & Guimarães,
op.cit,p.34).
A partir de então acelera-se a construção do Estado Colonial português: na região sul do
território, em 1767 funda-se um presídio no Iguatemi; em 1775 é fundado o Forte de Coimbra; em
1778, Vila Maria do Paraguai (hoje Cárceres); em 1778 a Povoação do Albuquerque (aonde está
localizada a atual Corumbá). Ou seja, na segunda metade do século, inicia-se uma ocupação efetiva
da região do “Alto-Paraguai”. Este processo se consolidaria no governo de João de Albuquerque de
Melo Pereira e Cárceres, irmão de Luis Albuquerque. Um fato de fundamental importância para o
processo da expansão colonial na região é o “Tratado de Paz e Amizade”, assinado pelos Mbayá-
Guaicurús com a Coroa Portuguesa em 1791, na cidade de Vila Bela. Este tratado irá possibilitar a
criação dos fortes e povoações em território indígena, de maneira que muitos grupos-locais irão se
estabelecer nas imediações das unidades militares e vilas, como anos antes o acordo com os
Mbayá-Guaicurú havia sido fundamental para derrotar os Paiaguás, e viabilizar o processo de
colonização mineradora portuguesa entre Cuiabá e São Paulo.
Em 1797 é criado o Presídio de “Miranda”. Este foi criado por sugestão de João Leme do
Prado, enviado por ordem do presidente da Província de Mato Grosso, durante o governo de
Caetano Pinto de Miranda. Junto ao presídio forma-se a “Vila Mondego” (esta Vila teria sido
construída sobre as ruínas grupos da antiga cidade “Santiago de Xerez”). Começa a se definir um
novo processo de territorialização dos indígenas.
Neste momento, a autonomia dos povos indígenas seria transformada em problema de
Estado. O contexto de disputa imperial favorecia relativamente os indígenas. A consolidação do
poder português e a formação do Estado Colonial exigia a liquidação da autonomia e do sistema
social indígena. Vejamos o relato do governador da Província de Mato Grosso:
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
121
“A maior difficuldade que eu encontro, é a do local em que vivem entre portuguezes e
hespanhoés, que, a profia pretendem atrahil-os para a sua amizade, e elles manejando estas
contrárias pretenções com bastante sagacidade, por este meio, alcançam o que querem de uns e
de outros, sem trabalho nem sujeição. Aplaine a nossa corte esta dificuldade, de sorte que elles
só fiquem dependentes de nós, e logo, Vmce experimentará uma grande mudança, assim como
mais abatido o seu orgulho, ou soberba, a qual em parte procede do modo como presentemente
são tratados, e outra parte da posse e uso de seus cavallos”.
Caetano Pinto de Miranda Montenegro, Cuiabá, 5 de Abril de 1803, Carta ao Tenente Coronel
Ricardo Franco de Almeida Serra.
As palavras do então Governador da Província de Mato Grosso, sugerem que no início do
século XIX os índios sabiam manipular também as contradições coloniais. Fica claro o
reconhecimento da capacidade política indígena. Mas a supremacia Guaicuru estava já ameaçada, e
com ela, todo o sistema social autóctone. O objetivo do Estado Colonial era criar condições para
que os índios “ficassem dependentes” somente do Estado Colonial do Brasil. Delineava-se um
projeto claro de dominação e subjugação dos povos indígenas naquela região.
Entre 1801-1803
53
, Ricardo Franco de Almeida Serra, tenente-coronel responsável pelo
presídio de Miranda, encaminhou um “Parecer sobre o aldeamento dos índios uiacurus e guanás,
com a descrição dos seus usos, religião, estabilidade e costumes”. Este documento contém uma
detalhada descrição dos diferentes grupos indígenas existentes naquela região, e das formas pelas
quais eles se inter-relacionavam com os militares ali fixados. As palavras do tenente-coronel
indicam bem como a “alteridade” étnico-cultural, se apresentava como um problema político:
“O seu systema político, e aferro a seus dados costumes e abusos, a sua vida errante e
libidinosa, as suas poucas leis arbitrarias, ou simples e mutuas convenções, mas regras fixas
com que se regulam entre si tranquilamente por uma tendência natural e herdada da tradição;
o horror que têm para o trabalho, que consideram só próprio de escravos e incompatível com
sua innata soberba, suppondo-se pela primeira e dominante nação de índios; contando todas as
outras por suas cativeiras, não se julgando inferiores aos mesmos hespenhoes e portuguezes,
gabando-se diariamente de que, apezar de sermos muito bravos, nos souberam amansar; esta
ridícula altivez e negação ao trabalho, lhes faz desprezar as fadigas da agricultura, que com
effeito nao precisam para viverem longos annos, robustos e fartos, achando no rio Paraguay, e
nos seus amplíssimos campos a sua sempre provida dispensa. (...) tudo em fim accumula uma
confusão de idéias contradictorias, que, parecendo entre si diametralmente opostas, constituem
o systema, a moral e conservação de todo o corpo dos uaicurus, formidável as mais nações
indígenas do amplissimo Paraguay, e ainda muitas vezes ao mesmo portuguezes e hespanhoes,
sobre os quais por dois séculos commetteram repetidas atrocidades, e quase sempre
impunemente.
Por tanto Illm e Exm.Sr, não deixando de tocar em alguns factos constantes que as verificam,
passarei a expor, não quanto me parece necessário para se aldearem estes índios; de tal forma
que sejam úteis a agricultura e a mineração, mas sim as dificuldades, que acho a um
estabelecimento fixo e constante, do qual se possam tirar as utilidades que se esperam, e as
quaes só o tempo poderá facilitar quando, pela nossa mais longa comunicação, se adoçarem os
seus costumes e parte dos estranhos princípios com que se governam, se acaso isso ser posa”.
(Almeida Serra, op.cit),
53
É importante mencionar o ataque espanhol descrito por Mendonça ao forte de Miranda. Ou seja, a zona de fronteira
era uma zona de guerra.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
122
Este relato é revelador de que, no final do século XVIII, quando se inicia a colonização
portuguesa do Chaco/Pantanal, o sistema social autóctone então existente, do qual os Guaicurus
eram o grupo dominante, se apresentava como obstáculo a expansão colonial. O relato do militar
responsável pelo presídio de Miranda, ao analisar “o sistema político”, destaca a importância e os
padrões de comportamento dos Guaicurus (baseadas nas atividades de caça-coleta e guerra), tanto
com relação aos demais povos indígenas quanto europeus, aos quais teriam “amansado”. Ele indica
também que nos dois séculos anteriores, os Mbayá-Guaicurú souberam construir e manter esta sua
supremacia em relação aos demais grupos indígenas e colonos espanhóis e portugueses.
Aqui podemos ver alguns traços característicos da organização social e cultura Mbayá-
Guaicurú, que afetavam todo o sistema social do Chaco. Dois elementos são importantes: 1º)
primeiro, a prática do infanticídio, com a qual se combinava uma política de assimilação de outros
grupos indígenas, de maneira que fazia dos Mbayá-Guaicurú, um grupo especialmente misturado, e
por efeito, também dos Guaná e Chamacoco, mesmo que esta hibridação se aplicasse a
comunidades-locais, e não aos Guaná e Chamacoco como um todo; 2º) a “independência e
rivalidade” política interna, que era pautada numa lógica de fissão e fusão situacional dos sub-
grupos e grupos indígenas. Segundo o relatório aqui mencionado:
“Os uaicurus se dividem em differentes tribus, e cada uma com diverso nome. A primeira é dos
uatade-os, composta por vários capitães, entre os quaes o capitão Paulo é olhado como chefe,
em poucas circunstancias. Formam a segunda tribu com o mome de ejué-os também vários
capitães, dos quaes é julgada como principal D. Catharina, por ser filha do Capitão Guaná (...)
A terceira tribu é dos cadiue-os novamente fugidos das vizinhanças de Bourbon para se
estabelecerem na mesma morada das duas primeiras; ella constta de 680 pessoas, como fica
dito, doze capitães e outras tantas donas”. (Almeida Serra, op.cit)
Pelas informações acima, tudo indica que os Mbayá-Guaicurú possuíam múltiplas lideranças locais
(os Kadiwéus possuíam doze, uma média 1 para cada 56 pessoas), e que o reconhecimento de uma
liderança centralizada era algo eventual. Indica também as relações de parentesco-aliança entre os
Mbayá-Guaicurú/Guaná-Chané, de maneira que uma das “Chefes” de sub-grupo Mbayá era
descendente de Guaná. Estas informações etnográficas confirmam as elaborações feitas pela
etnologia brasileira acerca da relação Guaicuru-Guaná, mas permite maiores detalhamentos.
Esta descrição permite ver também que, além da multiplicidade de lideranças políticas,
existia um padrão de territorialização que expressava a cultura e economia indígena; primeiramente,
as unidades de residência podiam se distanciar entre 19 km (1 légua = 6.600 m) e 42km, ou ainda
mais; se tomarmos o padrão Kadiwéu (um chefe para cada 56 pessoas, e calcularmos que este seria
o padrão de territorialização, somente este sub-grupo ocuparia uma faixa territorial de 252km desde
a serra de Albuquerque). Além disso, a cultura e economia de caçadores-coletores-guerreiros, fazia
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
123
com que os Mbayá-Guaicurú fizessem uma constante circulação dos dois lados do Rio Paraguai54.
O Sistema Social do Chaco possuía um tipo de sistema político sem-estado, com uma organização
segmentar, baseada em múltiplas lideranças políticas que se centralizavam situacionalmente, e
durante um período de tempo determinado
Com relação aos Guaná, o relatório indica algumas informações importantes. Podemos dizer
que existe uma caracterização desta sociedade como segue:
“Os 600 guanás que existiam há quatro annos, tem augmentado o seu numero com alguns
filhos e xamicocos comprados. Esta nação é certamente a que promettia um aldeamento
constante; ella tem moradia fixa nas fertillissimas terras e matos das escarpadas serras de
Albuquerque, e perto do morro d´este nome e da margem do Paraguay, lugar a que geralmente
índios e portuguezes chamam Albuquerque, dando simplesmente o nome de povoação á que
com elle se caracterisa. Os Guanás vivem dentro de grandes casas, que formam de
entrelaçados troncos e ramos”.
Notemos que, uma vez instalados os fortes, os novos atores sociais, novas relações se
estabeleceram; uma nova categoria social, também se definiu: os “portugueses”, que eram neste
primeiro momento, fundamentalmente, militares. As relações comerciais forneceram novas
possibilidades de aliança política. E as contradições internas do sistema indígena do Chaco, seriam
tão importantes para sua transformação e para a viabilização da conquista colonial quanto à força
militar e político-administrativa do colonialismo português.
54
Se considerarmos este padrão, e multiplicarmos por 3 (teríamos 2040 pessoas, um número próximo, ligeiramente
superior ao do total da população Guaicuru dependente de Coimbra. Teríamos então um padrão de ocupação
territorial, somente pelos sub-grupos e parentelas de chefes dos Guaicuru, que alcançaria 750 km de território.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
124
Mapa 3 - Núcleos de Colonização - Sec XIX.
Os traços fundamentais deste sistema permaneceram operando durante o início do século
XIX, quando foi aplicada uma política de “cerco colonial”, e perduraria até a primeira metade do
século, quando fatores nacionais e internacionais alterariam a dinâmica política do país
55
. Mas a
política do “cerco colonial” expressava a primeira fase da formação de um novo sistema social: o
Estado-Nacional (e a incorporação dos territórios do Chaco/Pantanal a este sistema
56
).
55
Temos aqui as Guerras Napoleônicas, que iriam acirrar a disputa entre Portugal (apoiada pela Inglaterra) e Espanha
(apoiada pela França), e que ocasionaria, depois de 1800, a transformação do Brasil em “Império”, e depois a
transformação da economia colonial-escravista em economia capitalista.
56
Ao mesmo tempo em que se intensificam as relações sociais, começa a se dar um movimento de produção de saberes
sobre os índios, realizados pelo aparelho administrativo do Estado Colonial. Os saberes sobre s índios são uma variável
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
125
É interessante notar que, neste momento, o cerco não realizou plenamente o domínio do
Estado sobre os povos indígenas; mas lançou certas bases para isso. A política de cerco, seria
sucedida por uma política de “aniquilamento” da autonomia, território e alteridade indígenas. Ela já
estava enunciada no inicio da colonização, inclusive com um delineamento de uma perspectiva
tutelar:
“Se eu pudesse regular as cousas ao meu arbítrio talvez que preferisse o antigo methodo de dar
os índios novamente reduzidos por administração, acautelando vigilantissimamente os abusos,
vigiando sobre o modo porque eram tratados, e reduzindo-os a um estado semelhante ao
d´aquelles, que pela sua tenra idade não são capazes de se governaram, a si mesmos, os quaes
no reino servem ate certos annos pelo comer e vestir, e ao depois por uma soldada
proporcionada por seu trabalho.
E se as circumstancias não permittissem adoptar este methodo,como não seria possível
adoptar-se com os uaicurus e goanás, n´este caso não fariam as novas povoações só de índios,
porém uma boa parte seria composta de familias pobres, laboriosas e bem morigeradas, as
quaes transmitiriam seus costumes para os índios, vindo todos com o andar do tempo, a ficar
confundidos.
Para directores e curas d´estas povoações, escolheria homens proporcionados para uma tal
empreza, animados de um verdadeiro zelo pelo serviço de Deus e do Estado, e que sem terem a
ambição jesuítica, tivessem a mesma arte e industria, com que elles ordinário ganhavam o
coração d´esta gente.”.(Caetano Pinto de Miranda Montenegro, Cuiabá, 5 de Abril de 1803,
Carta ao Tenente Coronel Ricardo Franco de Almeida Serra)
A constatação da fragilidade relativa do colonialismo português na região da fronteira,
obrigou a delimitação de uma estratégia específica de abordagem e relacionamento com os povos
indígenas. O Império Português necessitava contar com a colaboração dos índios, evitando a guerra
e resistência destes. Nesse sentido, a relação estabelecida teve de tolerar em certa medida a
alteridade étnico cultural e tentar se aproveitar dela como fosse possível. Esse modo de relação
durou cerca de um século, até a Guerra do Paraguai.
Mas quais os fatores que obrigaram os Mbayá-Guaicurus, que tinham resistido durante cerca
de dois séculos aos colonialismos espanhol e português, a combinar formas de resistência e
colaboração? Alguns acontecimentos são fundamentais: em 1791 os portugueses firmaram um
“Tratado de Paz e Amizade” com os índios Guaicurus. Esse tratado, segundo as fontes da época, era
uma necessidade tanto colonial quanto indígena. Em 1796 eles se fixaram nas proximidades de
Albuquerque e depois em 1797 Miranda. Esse deslocamento se fez em razão da ofensiva militar que
espanhóis estavam lançado contra os Guaicurus. O marco desse processo de declínio do poder dos
Guaicurus se localiza no ano de 1775:
“Até o anno de 1775 tinham os Uaicurus, cojunctamente com os Payguás, com que então
viviam em estreita aliança , e a quem devem a iintelligencia da navegação, um extenso pais
devoluto, que ocupavam; o rio Paraná limitava por Oriente; ambas as margens do Paraguay
dependente da relação dos diversos atores com os mesmos grupos indígenas. Por isso, a partir do século XIX, vários
relatos sobre os índios serão produzidos.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
126
por Occidente; pelo lao do Sul as immediações da cidade e governo hespanhol da Assumpção, e
pro Norte até perto do registo do Jaurú e de Villa Maria.
Neste vasto terreno os Uaicurus sempre de vida errante praticaram as suas repetidas incursões
e estragos, não só contra os mais índios., mas sobre os mais débeis e avançados
estabelecimentos da das respectivas fronteiras portugueza e hespanhola, auxiliados sempre
pelos seus amigos Paraguayos”. (Almeida Serra, RIHGB, 1850, p. 381).
Dessa maneira, as afirmações que havíamos apresentado para sustentar a tese da existência de um
Sistema Social indígena do Chaco/Pantanal, são aqui confirmadas e sintetizadas na idéia de um
País Guaicuru”. As bases de funcionamento de suas relações de poder, organização social e
dinâmica, já eram condicionadas por este sistema mundial. Esse sistema era composto por mais de 7
grupos indígenas, inúmeros subgrupos, um amplo território e um tipo de estratificação social
determinada (ver Figura 1). O sistema social indígena vigente dentro da situação histórica do Chaco
era interdependente do sistema mundial e de suas seções territoriais, as colônias espanholas e
portuguesas da América. Não sugerimos com isso que todos os grupos indígenas mantivessem
relações diretas com os europeus, ou relações do mesmo tipo e regularidade; mas os dados acima
citados revelam que o sistema social do qual os grupos faziam parte já era determinado por relações
diretas e indiretas com o sistema mundial e o colonialismo. Ou seja, mesmo que as unidades do
sistema (os povos indígenas) não estivessem em relação direta com o colonialismo, o sistema de
que faziam parte estava.
Se coube aos espanhóis a estratégia que destruiu a aliança Mbayá-Guaicuru/Paiguá a base
militar do sistema social indígena, coube aos portugueses a estratégia que destruiria as bases
econômicas e sociais, pela destruição da aliança Mbayá-Guaicuru/Guaná.
Mas é no documento intitulado “Reflexões sobre o Systema de Defesa” que vemos mais
claramente se delinear uma política deliberada de “destruir” a base econômico-política da aliança
Guaná-Guaicurú, e de exploração das contradições e rivalidades entre os próprios grupos indígenas.
Podemos dizer que este processo na realidade se inicia com a própria aliança entre Portugueses e
Guaicurus:
“Tratam-se com melhor fé e urbanidade os Índios Guanas das diversas tribus e aldeas, e os
Guaxis, que tiverem permanecido no nosso partido, mimoseando-se os seus principaes chefes, e
louvando-se a sua Constancia e fidelidade à amizade, e bom agasalho, que nos devem;
desafiando-se por este modo, a emulação nos Índios que se tiverem voltado contra nós,
abraçando o Partido dos Guaicurus. Comprem-se mantimentos por todas as aldeas,
introduzindo-se no pagamento algum gênero de luxo, para que os índios se acostumem a gostar
d´elle; o que nos trará as vantagens seguintes; provimentos necessários para as guarnições,
conduzirem-se os índios a praticarem plantações mais avultadas, vendo prompto o lucro de seu
trabalho, e arreigarem-se nos sítios de sua habitação.
Procure-se persuadir por todos os modos e maneiras aos Guanás das aldeas abandonadas, que
devem tornar a ellas, e á nossa amizade, fazendo-se lhes lembrar-se do que já sofreram da má
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
127
fé e orglho dos Guaicurus, e do motivo por que não se devem fiar nelles, e cahir na nossa
indignação.
Busquem-se meios de fazer chegar ao conhecimento dos capitães Guaicurus, que o
ressentimento do governo da província é somente contra o principal delles (...) Desta sorte,
semeando a divisão entre aquelles chefes, obteremos o meio mais seguro de chegar as fins que
melhor convem as nossas circunstancias”. (D´Alincourt, op.cit,. p363 ).
Assim, as relações dos colonialismos (espanhol e português) com os Guaicurus e demais
índios oscilavam rapidamente da guerra a tratados de aliança política e comercial. A guerra de
resistência e revolta poderia ser movida pelos Guaicurus contra os espanhóis com o apoio dos
portugueses ou contra os portugueses com o apoio dos espanhóis. Entretanto, a partir dá década de
1820, a política do Estado Imperial brasileiro começa a investir nos aldeamentos e no incentivo a
oposição Guaná X Guaicuru. Os tratados e a “política de colaboração” que sucedia a “política de
guerra resistência indígena” - e que estava diretamente ligada a ela, já que esta colaboração era mais
importante pelos antecedentes históricos da resistência Guaicuru e pela disputa com o colonialismo
espanhol é que viabilizou a criação das condições para o domínio português na região.
Podemos falar de uma pluralidade de formas de dominação, colaboração e resistência, que
podiam se combinar ou se alternar no tempo e no espaço. Não era somente uma oposição
“dominação/resistência” que se colocava, mas sim uma complexa triangulação entre diferentes
possibilidades de aliança, guerra e repressão. E foi graças a política de “colaboração indígena”
adotada pelos portugueses que sua dominação e a formação do Estado-Nacional se tornou possível.
É importante lembrar que os Guaicurus sabiam também manipular a colaboração de portugueses e
espanhóis, e que esta sua política foi eficaz nas primeiras fases da colonização; entretanto, foram as
contradições internas nas suas relações de dominação com outros povos indígenas, que exploradas
pelos portugueses, fizeram pender a balança em favor do colonialismo português. Os índios são
definitivamente inseridos numa nova estrutura de poder e de classes, que se misturam e confundem
em certos níveis. Os Guaicurus e a camada dos “Chefes Indígenas” é tratada com honras de Estado,
e colocada num mesmo patamar que os “senhores” ou nobreza da sociedade colonial
57
. Mas esse
tratamento é um recurso tático, já que o projeto colonial visava colocar os índios como mão-de-obra
dos empreendimentos agrícolas.
Cabe aqui introduzir um parêntese sobre as principais técnicas de luta política empregadas
por índios, militares e colonos nos séculos XVIII-XIX. O processo descrito acima mostra
exatamente a emergência de novo padrão de balanceamento de forças, que leva a destruição do
sistema do Chaco/Pantanal e fragmentação do seu território. Uma análise etnográfica do sistema
revela exatamente que certas características que depois seriam atribuídas ao “caráter” ou “natureza”
57
“Se vão a Cuiabá, ou a Villa Bella, aonde são honradissimos ao lado e mesa dos Ex. Sr. S generaes, e assaz
prendados, sempre quando voltam se lastimam de que quanto receberam foi improporcional aos seus altos
merecimentos e qualidades”. (Almeida Serra, op.cit, p. 378).
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
128
do índio fazem parte de um repertório de técnicas de luta política empregadas como táticas de
dominação ou resistência.
O “Parecer” de Ricardo Almeida Serra e alguns outros documentos servem para delinearmos
esse conjunto de técnicas e táticas. Poderíamos indicar aqui, por exemplo, um dos elementos que
compõem o Parecer: “virtude e caráter”, em que se apresentam os elementos da “instabilidade” dos
índios Guaicurus: entre os fatores estão a “dissimulação” e a facilidade com que trocavam à aliança
dos “portugueses pela dos espanhóis” e vice-versa; essa dissimulação se dava pelo uso de mentiras
ou subterfúgios como não dizer nunca a direção correta de uma viagem ou mesmo não revelar o
objetivo de alguma atividade realizada. Além disso, a “fuga”, depois desses índios serem
recrutados como militares ou trabalhadores e conviverem dentro dos fortes e presídios portugueses.
“.. Ficando aqui o capitão Guaná, detestando a retirada dos dois e a vacillante inconstância
dos mais Cadiue-os que ficavam, afirmando-me que se alguns delles se ausentavam, que os
emabraçasse (...) Enfim este solapado bárbaro que nem de noite nem de dia me deixava, e
prometia ir convidar os seus parentes, pedindo todos os dias alguma coisa, ainda em 10 do
presente mês de janeiro me pediu varias bagatellas e um porco e dando-lhe tudo e os mais
trastes que guardava no meu quartel, tudo levou essa noite ocultamente d´elle para o seu
rancho, e embarcando de madrugada a titulo que ia à pesca do jacaré, fugiu e se ausentou tao
ingrato como infiel, levando em sua companhia outro monstro de ingratidão no Guaná Luiz
Manoel (...) que todos estimávamos muito, ambos elles em uma canoa fugiram sem mais motivo
que sua inconstância natural, levando-me ainda a roupa que acharam à mão no meu quartel,
aonde viviam e entravam como em sua casa”. (Almeida Serra, op.cit, p. 378).
A fuga dos Guanás expressa o tipo de estratégia e relação dos índios: buscavam manter o
acessos a bens e recursos materiais, freqüentemente a informações sobre os militares para venderem
aos adversários, sem entretanto se submeter ao regime de trabalho e a fixação que se queria a eles
impor. Podemos falar que depois de 1800, as técnicas de luta política indígena passaram a assumir
formas de resistência cotidiana, em que procuravam sobreviver num contexto em que um novo
poder se instituiu. O relato de Ricardo Almeida Serra fala também de uma reunião com os capitães
Guaicurus em que se sugeriu que se casassem com os portugueses, fixassem moradia e plantassem,
e eles indagaram quantos escravos os portugueses enviariam para trabalhar na lavoura, pois eles não
eram cativos. Ou ainda, da situação em que fazendo parte de uma campanha militar dos portugueses
contra um forte espanhol, os Guaicurus “desertaram”, sendo acusados de “covardia”. Poderíamos
falar aqui de outras situações, mas os exemplos acima são suficientes. Existia um conjunto
diversificado de “Técnicas Indígenas” das quais destacamos as seguintes: 1) Dissimulação; 2)
Fuga; 3) Recusa ao Trabalho; 4) Sabotagem; 5) Deserção; 6) Correrias (assaltos aos campos
inimigos). Na realidade, as correrias passaram a ser cada vez menos freqüentes e as formas
cotidianas de resistência passaram a predominar. Nós podemos falar de formas cotidianas de
resistência porque os índios a empregavam freqüentemente para se recusar a servir aos objetivos
coloniais (a submissão desses ao trabalho, a agricultura, padrões de casamento, habitação e etc)
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
129
Mas observemos que na realidade, essas técnicas de luta política podiam ser utilizadas para
diferentes finalidades. Por exemplo, os registros coloniais falam das “correrias” que índios Guanás
de Miranda faziam contra os Caiuás, Guaxis e Chamacoco, para fazer cativos e vendê-los para as
fazendas ou trabalharem em suas plantações
58
.
Por outro lado, existiam também “Técnicas Coloniais”, voltadas para o controle e gestão
dos índios: 1) tratados; 2) empreendimentos agrícolas e de mineração; 3) trocas e brindes; 4)
recrutamento militar e/ou profissional; 5) aprisionamento; 6) bandeiras; 7) trabalhos forçados.
Essas técnicas foram aplicadas ao longo do século XIX, através de três gêneros distintos de
relação entre os grupos indígenas e os colonialismos português e espanhol. As relações de
aliança/colaboração; as relações de guerra/resistência e guerra/repressão, cada qual ilustrada por
diferentes gêneros de discurso político-jurídico e maquinário político-administrativo.
De um lado, existiam as ações guerreiras retratadas no léxico imperial regional como
Correrias indicando as ações violentas dos índios contra as agências coloniais (fazendas,
unidades militares e os próprios colonos); de outro lado existiam as “Bandeiras” assumiam o
caráter de expedições punitivas contra os índios, movidas tanto pelo Estado quanto pela sociedade -
colonos pobres e fazendeiros, as vezes com o apoio do Estado, as vezes sem este apoio, e as vezes
com o apoio de certos grupos indígenas (ver Vasconcelos, 1999); “Tratados”, que foram uma
forma importante de estabelecer relações de aliança/colaboração política entre os povos indígenas e
as instituições/agências colonial-estatais, como as unidades militares e administrativas, e também,
estabelecer relações comerciais e econômicas que garantissem a exploração dos territórios; a
política de “aldeamento, catequese e civilização”. Os “empreendimentos agrícolas” o incentivo a
produção indígena e sua compra ou comercialização nos povoados era uma forma de consolidar
formas de colaboração que afastavam os índios das antigas relações com outros povos. Também o
recrutamento para o exército e ofícios era uma técnica, baseada no principio da colaboração entre
dominantes e dominados. As técnicas de colaboração não excluíam as técnicas repressivas; ao
contrário, ou as legitimava ou complementava, no plano dos efeitos.
Neste sentido, podemos afirmar que para realizar uma análise correta da dinâmica
dominação/resistência, temos de levar consideração às contradições internas no sistema social
indígena, as diferentes estratégias que cada unidade de ação política indígena (conjuntos de ação
segmentares) poderiam estabelecer, indo desde as “correrias” aos “tratados” ou inserção em
“empreendimentos coloniais” (como bandeiras, obras, ofícios), e por outro lado também as políticas
das agencias coloniais, que iam dos “tratados” até as “bandeiras”, “prisões”, “trabalho forçado” e
58
“N´isto entrou o presente anno de 1849. A 2 de janeiro continuei a viagem, e a 3 encontrei dois índios um de nação
Layana e outros Terena, que vinham de fazer uma correria nas matas do Iguatemi, nas margens do Paraná. O fim
d´estas correrias é captivar outros, que sugeitam ou vendem, como antigamente se praticava com os infelizes índios...”
(Francisco Lopes, RIHGB, 1850, p.315).
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
130
etc. Cada uma destas variáveis dependia de uma combinação contextual complexa de interesses,
condições materiais, balanceamento de forças político-militares e referências culturais, que no
longo prazo possibilitaram a consolidação dos interesses do colonialismo português e depois do
Império do Brasil, graças à intervenção política no sentido de destruir as bases do sistema social
indígena então existente no sul de Mato Grosso. Essa dinâmica expressa a coexistência e
articulação de dois sistemas políticos, o indígena e o estatal-nacional. Sem as alianças políticas com
os povos indígenas, sem a colaboração destes (que não era contraditória em sentido imediato com as
políticas da resistência), a consolidação do colonialismo seria impossível. São nas contradições do
sistema social indígena que residem algumas das principais causas da vitória do colonialismo
português, as causas que possibilitaram a formação do Estado-Nacional brasileiro naqueles
territórios.
Da Guerra do Paraguai ao Cativeiro
Uma segunda fase do que estamos denominando “situação de diretoria” se configura entre
1850 e 1880. Nesta fase se desenvolvem os desdobramentos inevitáveis do “cerco” iniciado na
primeira metade do século; quais seja, o aniquilamento do sistema social indígena do
Chaco/Pantanal, a fragmentação de seu território, a subordinação dos grupos étnicos indígenas e a
consolidação do Estado-Nacional na sua forma colonial-escravista, integrado na economia mundial
capitalista. A promulgação do regulamento das missões e a formação de aldeamentos marcam todo
o período que vai de 1800 até 1850.
Na verdade, no período entre os anos 1800-1850, o que se dá, é um processo progressivo de
construção do Estado; estabeleceriam-se as freguesias (povoados), vilas, municípios e comarcas, ou
seja, unidades territoriais, populacionais, jurídicas e políticas. A criação desta estrutura
administrativa implicava tanto na formação de novas categorias sociais (funcionários, juizes,
militares, fazendeiros) quanto à produção de uma nova geografia, com a edificação de prédios
públicos e a infra-estrutura (vias de comunicação, portos e etc).
É interessante notar que, no ano de 1858 é criada a repartição de terras públicas, (decreto
2092 de 30/01/1858), em obediência a Lei de Terras de 1850, que começa a funcionar a partir do
ano seguinte. Isto significa que um processo de medição de terras e definição de propriedades, ou
seja, de controle fundiário, estava sendo estabelecido. No mesmo ano, o presidente da Província
afirma: “Em Miranda muito conviria fazer hum aldeamento regular disso encarreguei ao
Commandante das Armas. Porem ter elle encontrado embaraços, para os quaes muito concorre a
falta de hum sacerdote que exlusivamente se preste attrahir os índios de hum modo benévolo e
insinuante. (Relatório da Província de Mato Grosso, 1859, p.36). Quer dizer, o avanço dos
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
131
aldeamentos se dá paralelamente ao dos mecanismos de controle da terra. No ano seguinte seria
iniciada a construção da aldeia de Miranda.
Na década transcorrida, a composição social e demográfica da província se altera em traços
significativos. E isto afetará profundamente a dinâmica social e marcará o processo histórico
posterior. Vejamos os dados abaixo:
Quadro 25 - População da Província de Mato Grosso - 1862
Condição
Livres 30.486
Escravos 7.052
Indígenas 10.000 a 15.000
Total 52.538
Com a Guerra do Paraguai (1864-1869), a questão de terras “interna” dará lugar à questão
“externa”. O processo de catequese e civilização, que combinava uma estratégia econômica com
outra simbólico-cultural, seria interrompido pelo advento da Guerra. Ainda mais porque, a rota da
ocupação paraguaia do território sul da província de Mato Grosso, fez com que as freguesias de
Miranda e Corumbá/Albuquerque fossem levadas ao centro dos principais eventos da guerra.
A Guerra do Paraguai deve ser vista como um momento de interrupção temporária de certos
processos; a descontinuidade não foi absoluta. Logo após a guerra, os processos antes verificados,
foram retomados. É com o pós-guerra que teria início a configuração de uma nova situação
histórica. A política de catequese e civilização, como vimos, ainda não tinha se consolidado. Mas
ela começava a se estruturar, a Guerra a interrompeu; os principais pontos dos aldeamentos foram
destruídos. Entretanto, no pós-guerra, certos processos sociais não exatamente novos se
intensificaram.
O primeiro foi o da colonização e povoamento da província; o segundo foi à expansão
econômica, ao mesmo tempo efeito e causa da colonização. Vejamos os quadros abaixo com a
evolução da composição demográfica da Província do Mato Grosso no pós-guerra:
Quadro 26 - População de Mato Grosso 1872-1930.
1872 1890 1900 1920 1930
60.417 92.827 118.025 246.612 349.857
Nos vinte anos que se seguem a Guerra do Paraguai, a população total do Mato Grosso
cresce cerca de 130% se comparada com o ano de 1850. Nestes números não é considerada a
população indígena. Neste processo de crescimento demográfico, se insere a política de incentivo a
imigração de europeus “Desse modo, o fim da guerra do Paraguai em 1870 marcou o início de uma
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
132
fase de ampla abertura da economia de Mato Grosso ao exterior via comércio e navegação pelo rio
Paraguai”. (Borges, 2001, p.31)59.
A principal característica dessa situação histórica é o “cativeiro” dos Terena, ou seja, sua
subordinação a esquemas de escravidão e trabalho forçado nas fazendas do Mato Grosso logo após
a Guerra do Paraguai. Para usar a imagem de Karl Polany, a construção de um Mercado Auto-
regulável (através de uma política de Estado e do colonialismo interno) fez com que todos os
demais domínios da vida social se subordinassem a ele. Este Mercado regional, constituído já sob
uma lógica monopolista nos seus principais ramos (agro-exportadores), levaria também a uma
grande concentração fundiária
60
. Assim, a “política indigenista” no Mato Grosso neste contexto, por
imposição da lógica da economia capitalista, não poderia ser senão a política do capitalismo
monopolista aplicada à resolução da “questão indígena” (contradição entre os interesses dos povos
indígenas e da burguesia rural e do capital monopolista nascentes).
Nos primeiros momentos do pós-guerra do Paraguai, apesar das relações políticas dos
Terena com o Estado não terem se alterado, as condições gerais e as relações econômicas começam
a se transformar, principalmente por conta da transformação da relação homem-terra-recursos
ambientais, que a formação do mercado capitalista produziria. No período do pós-guerra, dois
períodos distintos se sucedem; o primeiro vai de 1870 a 1890; o segundo de 1891 a 1904. No
primeiro, temos ainda a tentativa de implementação de uma política de catequese e civilização, por
parte do Estado, através da Diretoria de Índios, e choques entre índios e fazendeiros, pelo controle
de terras e recursos ambientais na região do Pantanal e em todo o Mato Grosso. O segundo
momento é quando a política global de Estado na região do Pantanal vai praticamente suprimir a
política de catequese, vigorando o choque frontal entre índios, fazendeiros e colonos, do que resulta
a expropriação quase total das terras indígenas e um verdadeiro etnocídio.
3.4 – A Situação de Reserva: o regime tutelar e as micro-revoltas indígenas (1904-1939)
O processo de constituição das reservas indígenas Terena marca o início de uma nova
situação histórica: a da subordinação dos Terena a um novo tipo de regime tutelar, vinculado
diretamente ao Estado e separado das relações com os outros povos e territórios do antigo sistema
do Chaco/Pantanal. A destruição das relações de interdependência e fragmentação dos territórios é o
principal efeito das situações de diretoria e cativeiro.
59
O Governo Imperial deu alguns incentivos ao comércio na região; 1) reabertura da alfândega em Corumbá; 2) isenção
de impostos para as mercadorias que circulassem naquele Porto. Assim, estabeleceu-se as bases para uma retomada
econômico, através da abertura comercial.
60
Segundo Borges, em 1920, os estabelecimentos com menos de 100 hectares em termos de Brasil, correspondiam a
70% do total de estabelecimentos. No Mato Grosso, estes estabelecimentos de 100 hectares, correspondiam a apenas
20% do total. Em termos absolutos, eram 1525 unidades com extensões superiores a 2000 hectares, o que representava
cerca de 45% do total de estabelecimentos.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
133
A formação das Reservas Indígenas vai parcialmente de encontro aos interesses e
reivindicações dos índios, de maneira que as demarcações não são o resultado apenas de ação
normativa do Estado, mas também da ação política dos índios Terena que buscaram na Comissão de
Linhas Telegráficas aliados dentro do aparelho de Estado, para garantir pelo menos algumas
parcelas dos seus antigos territórios (Vargas, 2003).
É por isso que no período entre 1904-1905 são realizadas as demarcações de duas das
principais aldeias Terena, Cachoeirinha e Ipegue, pela intervenção direta da a Comissão de Linhas
Telegráficas, que promove a negociação com fazendeiros e faz as reuniões demarcatórias
(Vargas,op.cit,p.83). Devemos lembrar que desde 1892, se tinha iniciado em Mato Grosso, um
processo geral de regulamentação das “posses”, no qual as terras indígenas tiveram um tratamento
apenas secundário. O quadro abaixo permite uma visualização do processo de formação das
Reservas Indígenas:
Quadro 27 - Processo de Formação das Reservas Indígenas Terena Século XX
61
Reserva Indígenas. Área em Hectares Data do Decreto
Cachoeirinha 2.260 1904
Bananal-Ipegue 6.337 1904
Lalima 3600 1905
Francisco Horta 3.600 1917
Capitão Vitorino (Brejão) 2.800 1922
Moreira-Passarinho 171 1925
Buriti 2.000 1928
Limão Verde 2.500 (?)
Três aldeias têm suas áreas demarcadas até 1905, e as demais, depois do ano de 1917. O que
significa que as primeiras foram reservadas pela Comissão de Linhas Telegráficas, e as demais, pela
ação do SPILTN.
No início do século XX, algumas transformações importantes se processaram dentro do
aparelho de Estado, e repercutirão também no âmbito da política indigenista. A principal delas é a
formação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais criado por
lei de 1906, mas implantado em 1910. A partir daí, entre 1905 e 1940, irá ocorrer progressivamente,
um processo de estatização dos territórios, cultura e organização social Terena, processo este que se
dá simultaneamente e subsidiariamente ao processo mais amplo de transformação do Estado-
Nacional.
Com relação aos índios de Mato Grosso, é o momento em que o processo de pacificação dos
índios do norte do estado (Bororo, Parecis), e que os índios do sul, começam a se defrontar mais
diretamente com um novo tipo de ação do Estado, a do órgão tutelar, recentemente formado. É o
momento também de consolidação da economia agro-exportadora, de maneira que
61
Elaborado a partir de Roberto Cardoso de Oliveira, 1968.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
134
progressivamente se instalam os PI (Postos Indígenas), IR´s (Inspetorias Regionais), submetidas a
estrutura político-administrativa do SPI, por sua vez integrado no MAIC (Ministério da Agricultura,
Indústria e Comércio). A partir de então, se define claramente um novo conjunto de grupos e
instituições que irão interagir diretamente com os índios. As novas relações de interdependência
transformarão tanto a cultura quanto a organização social dos grupos indígenas, especialmente dos
Terena.
A primeira unidade de ação política do SPI, fixada junto aos Terena, é o PI de Bananal, que
é instituído no ano de 1915, ou seja, cinco anos depois da criação do SPI, apesar de neste mesmo
ano, já se indicar a existência das aldeias de Cachoeirinha e Passarinho em Miranda e Bananal e
Ipegue em Aquidauana. É somente no ano de 1920, que se estabelecerá um Posto Indígena em
Cachoeirinha. A quantidade de PI´s irá aumentar e se reduzir até 1937, mostrando ao mesmo tempo
a expansão do SPI e as dificuldades iniciais em dar um caráter estável a suas ações e estrutura.
No relatório da Inspetoria Regional nº06, do ano de 1917, temos o seguinte relato sobre PI
Bananal:
“A população india do aldeiamento é composta de 722 almas que vivem da pequena lavoura,
da creação de aves suínos e um pouco de bovinos.
É uma população ordeira e sedentária que já produz grande parte dos cereaes que se
consomem em Miranda e Aquidauana, e que uma vez concentrada nos aldeiamentos do
Bananal, Ipegue e Cachoeirinha, convenientemente auxiliada, fará rápido desenvolvimento. (...)
Este ano é pensamento desta Inspetoria dar organização definitiva ao Posto construindo casa
para o Serviço e, com a pequena verba de que dispõe, auxiliar os índios quanto for possível
para evitar-lhes as explorações de que são vítimas pelos açambarcadores e pombeiros da
região. Augmentar-lhe as roças e methodicar-lhes os serviços.
Além dos índios terenas, habitantes citadas, vivem muitos outros grupos da mesma tribu
disseminados pelos sertões e pelas fazendas dos municípios de Aquidauana, Miranda, Coxim e
Nioac, que torna-se de urgente necessidade serem reunidos em aldeiamentos afim de evitar-se-
lhes a escravização muito comum em Matto Grosso”. (Relatório IR-5, 1915, MI, microfilme
329, ft. 1093-1094).
O posto indígena de Bananal funcionou provisoriamente numa escola do estado, sendo
construída sua sede própria apenas depois de 1915. As demais aldeias Terena, apesar de já serem
conhecidas do serviço, não entraram imediatamente na sua órbita de ação.
A IR-6 começou a estruturar sua ação pelo Sul de Mato Grosso. Isto significa que, mais uma
vez, as diversas comunidades-locais Terena foram as primeiras a se defrontar com uma intervenção
sistemática do Estado-Nacional, agora através do SPI. Outros grupos indígenas teriam este contato
direto com o SPI anos mais tarde. Cabe indicar os traços fundamentais desta situação histórica que
começou a se constituir.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
135
Os relatos da Inspetoria Regional nº 06 permitem traçar algumas das características
principais deste momento da ação do SPI. Vejamos as orientações do Inspetor do SPI, acerca das
ações do encarregado de posto.
“... cumpria ao citado funccionario, convenientemente auxiliado, methodizar-lhe o trabalho de
modo que da terra houvessem a subsistência sem humilhações, e, regularizar-lhes as relações
no comércio local, evitando, desse modo, as actuaes explorações a que estão expostos.
Além desses deveres, grande sem duvida, mas perfeitamente practicos e possíveis, cumpria ao
mesmo funccionario, sem pertubar os costumes das tribus, alias já muito corrompidos pelos
maus contatos, procurar que pelo trabalho, pelos costumes, pelos bons actos, aquelles infelizes
elevem-se nos conceitos dos civilizados d´aquella região. (...)
Depois com o tempo, viriam as escolas, as oficinas, a grande e inteligente industria e o mais
que convém a civilização.
Mas como no serviço aqui, por falta de recursos, tem falhado as melhores tentativas, também
esta se não falhou de todo, não teve a execução prática que seria de desejar. (...) (Relatório da
IR-6, 1914, José Bezerra Cavalcanti, Museu do Índio Mic 379, ft -1072-73).
Desta maneira, a ação do SPI junto aos Terena, era pautada desde o início por uma
especificidade: não era um grupo em estado de guerra, logo, não cabia uma política de “atração e
pacificação”; na verdade se tratava de um grupo que já tinha um longo tempo de interação e aliança
com o Estado e com grupos sociais estabelecidos na região.
O quadro abaixo permite visualizar a evolução da ação do SPI, no que tange a fixação de
população e sua administração, gestão da mão-de-obra e produção das terras indígenas, geração de
instituições ideológico-culturais para ação junto aos povos indígenas.
Quadro 28 -Postos Indígenas Terena no Sul de Mato Grosso SPI 1910-1930
62
Aldeias 1915 1919 1920 1922 1923 1924 1925 1929
População 722 657 756 800 1130 1260 1314 1531
Produção 33 HA 150 alq
1500
cabeças
de gado
200
cavalos
90 HÁ
1430
cabeças
de gado
227
cavalos
1000
cabeças
de gado
300
cavalos
435 HA
2050
cabeças
de gado
220
cavalos
430 HA
2300
cabeças
de gado
243
cavalos
2132
cabeças
de gado
260
cavalos
2138
cabeças de
gado
410
cavalos
Bananal
Escolas 1 2 2 2 2
134
alunos
2 2 2
População 228 300 326 380 432 473 Cachoeirinha
Produção 200
cabeças
de gado
20
cavalos
223
cabeças
de gado
18
cavalos
330
cabeças
de gado
100
cavalos
174 HA
345
cabeças
de gado
75
cavalos
218 HA
385
cabeças
de gado
85
cavalos
379
cabeças
de gado
130
cavalos
471 cabeças
de gado
123
cavalos
62
Consideramos aqui somente Bananal e Cachoeirinha porque foram as aldeias indígenas mencionadas nos relatórios
desde a década de 1910, com mais freqüência.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
136
Escola e
Alunos
1 (
63
)
1 1
44
alunos
1 1
40
alunos
Os dados permitem ver que a instabilidade da ação do SPI nos primeiros anos de década de
1910 foi superada nos anos 1920. O Posto de Bananal conheceu um progressivo crescimento
populacional, e também da produção da sua lavoura e criação a partir dos anos 1920. A existência
de 2 escolas (uma estadual, depois assumida pelo SPI e outra de uma missão protestante
americana), levou a um processo crescente de escolarização dos Terena. A instalação de engenhos
para beneficiamento da mandioca e cana de açúcar, produção de farinha e rapadura, se deu a partir
do ano de 1922
64.
Em cachoeirinha a instalação do Posto e da Escola são mais tardias (em 1922),
mas a partir de então começa a se verificar um crescimento lento, mas constante, da população, da
produção e do número de estudantes65.
A ação do SPI seguiu rigorosamente as intenções declaradas em 1914, através do
estabelecimento de uma lógica de proteção pautada em pelo menos três eixos distintos: 1) um eixo
econômico, através do financiamento de ferramentas e insumos para as reservas indígenas, de
maneira que esta pudessem aumentar sua produção na lavoura, e também o controle e gestão da
força de trabalho indígena; 2) um eixo ideológico-cultural, pautado na construção de “escolas” e no
trabalho pedagógico de “ensinar” os índios a cultura nacional e a “civilização”; 3) um eixo político,
de administração das terras indígenas pelo Encarregado do Posto, que ao mesmo tempo assumiria as
tarefas econômicas e ideológico-culturais, e de regulação da vida indígena.
Se configuram os atores e relações de um novo campo de relações interétnicas. Este campo
era composto pelo SPI e seus postos e povoações indígenas; pelas então reservas “indígenas” e as
diferentes comunidades-locais indígenas (Cachoeirinha, Bananal, Passarinho, Lalima, Brejão e
outras).
Os índios Terena estavam neste momento em alta conta com os encarregados e inspetores do
SPI, seguindo assim uma linha histórica (já que também os presidentes de província os
consideravam como índios “mansos e civilizados”). Desta maneira em 1922 o relatório da IR-6
menciona: os terenos são os índios mais adiantados que conheço...(...) “Tenho esperança fazer
dos terenos, colonisadores e mestres de creação em outros postos onde devemos invial-a”. (Filme
379 fl 1491). A intenção de utilizar os índios Terena na implementação das políticas das instituições
estatais também havia ocorrido no Império, com a política de “catequese e civilização”.
63
E enviado um professor que atuaria como representante do SPI.
64
Ver Relatório da IR-6, 1922 (Filme 379 fl 1491).
65
A casa da escola foi construída em 1922, e é interessante observar o que diz o relatório do SPI a este respeito: “Esta
casa de iniciativa toda indígena estava apenas começada, pois somente haviam feito os índios sua armação medindo
301/1X8 m.” (Filme 379 ft 1349-50)
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
137
Mas se de um lado podemos dizer que os Terena absorviam com facilidade a nova relação
“econômica” com o SPI, materializada principalmente na política de doação de
ferramentas/sementes, o mesmo não acontece com a intervenção política do SPI e seu controle
molecular da vida dos índios (através das tentativas de regulação do “consumo do álcool” e da
proliferação de missões religiosas dentro das aldeias, por exemplo). Também se verificam
problemas sérios no que tange ao esforço do SPI de impor uma administração centralizada através
do Encarregado do Posto e de um único Capitão. Assim, o regime tutelar, no seu elemento
historicamente novo (em relação a situação histórica anterior), qual seja, o do controle político
direto pelo Estado, seria recusada pelos Terena. Em Bananal se daria um processo de resistência
efetiva a construção do regime tutelar, e especialmente a imposição de uma determinada estrutura
política centralizadora. A resistência a imposição do regime tutelar se deu especialmente em
meados dos anos 1920, e podemos classificá-la como a primeira tentativa de “emancipação”
indígena, só que feita pelos próprios índios.
3.5 - “A Emancipação Indígena” a luta pelo controle político de Bananal
A história da resistência indígena Terena contra o regime tutelar começa com a construção
das reservas. Esta resistência à ação estatal se manifesta no maior aldeamento Terena, no qual o SPI
depositava as maiores esperanças de progresso do processo de “civilização” dos índios. No ano de
1927 Roberto Vieira dos Santos Werneck, superintendente dos PI´s do sul de Mato Grosso, dá o
seguinte informe em seu relatório:
“Com o ensaio feito por essa Inspetoria da administração interna do Bananal passa a ser feita
pelos índios, ficou o professor Joaquim Fausto Prado accumulando a escola do Ipegue, pois
cessou sua acção administrativa do Posto. (...)
O Bananal passou a ser administrada internamente por uma junta de 3 membros desde 22 de
agosto.
Havendo graves queixas dos índios contra o capitão Marcolino Lili e da polícia por ele
organizada, essa inspetoria resolveu reorganizar a polícia que passou a ter em seu seio índios
filiados ao Capitão Manoel Pedro e Marcolino Lili e não somente a este último como era”.
(Filme 341, fl 1128-29)
As lutas internas em Bananal levaram a estabelecimento de um padrão de organização
política distinto daquele normalmente adotado pelo SPI. Ao invés de um único “capitão” ser
reconhecido oficialmente para cada aldeia indígena, foram reconhecidos “três indígenas” como
“administradores” da aldeia. Dois “capitães” e um índio indicado pelo SPI. Esta administração
indígena deveria substituir a administração do SPI, que até então era responsável politicamente,
pela gestão política da aldeia do Bananal.
Em 1918, um relatório da IR-6 nota o seguinte:
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
138
“Mantém ali a inspetoria um encarregado com a diária de dois mil reis.
Como estes índios já se acham quase emancipados esse funcionário tem o encargo de zelar pela
ordem e diminuir os conflitos que surgem diariamente com os civilisados e fazendeiros
visinhos.
Os anexos a este relatório mostram a gravidade dos conflitos ali sucedidos tendo sido
necessária para manter a ordem uma verdadeira operação militar levada a effeito pelo inspetor
em data de 19 de julho do corrente anno com a força publica do estado cedida para esse fim
pelo Inspetor Federal dr. Camillo Soares. Prova-se portanto necessário a conservação nessa
aldeia do encarregado”. (Filme 380, ft 1542).
Nota-se aqui que a representação social, que circulava no SPI acerca dos índios Terena, de
que estes índios seriam mais “civilizados”, mais “capazes” para o trabalho, levou também a
considerá-los como próximos da “emancipação”, ou seja, da retirada de suas aldeias da estrutura
político-administrativa do SPI. Vejamos pelo documento abaixo que conflito estava em causa
naquele momento:
Exmo Sr. Presidente do Estado de Mato-Grosso. Levo ao vosso conhecimento que o inspetor do
Serviço de Proteção aos Índios e localização dos trabalhadores Nacionaes Snr. Adriano
Metello, no dia 31 do mês passado na povoação do Bananal, próximo a estação Visconde de
Taunay da EFI a Corumbá, sede do 4º Disctricto municipal, sede de uma escola publica
primaria mixta creada desde 1911, sede d´uma sessão eleitoral e residência de índios da tribu
Terena, já civilisados, a titulo de proteção fez armar 15 homens da referida tribu e mandou
debaixo de chuva despejar na rua as mercadorias existentes na casa de negócios dos cidadãos
syrios Nicolau Falcão, Aurd Mustafá, Gened Hoder e Nagib Atukis porque vendiam também
aguardente (...) Não contente em tamanha violência requisitou hoje ao delegado de policia
providencias para que fizesse sair da mencionada povoação os cidadãos Honório Coutinho,
Jose Basan, Jose Teixeira, Jose de Souza Coelho, Manoel Correa, Bernardino Macedo e o
índio emancipado Adolpho Massi. Devo salientar que este índio de 30 anos de idade é não só
civilisado, mas instruído, eleitor, ahi nascido, criado e morador e todos os outros ahi moram há
annos entregues a vida laboriosa e afamiliados aos ditos índios (...) O que parecer querer o
referido inspetor é retirar desse povoado os cidadãos que não sejam indios afim de ficarem sós,
evitando assim o desaparecimento natural, lógico útil e desejado da tribu pela civilisação,
como já aconteceu neste municipio com a tribu dos Layanas e Quiniquinaus.
Relevas que assignale ainda o facto muito significativo de terem os próprios índios enviado ao
delegado de policia uma representação contra essas violências praticadas pelo inspetor
Metello, representação por 60 nomes delles. (Representação do Intendente Municipal de
Aquidauana-1918, Filme 380, Anexo ao Relatório da IR-6).
O trecho acima mostra o padrão de ação do SPI, que depois seria consolidado: constituição
de uma “polícia indígena” para; controle do acesso aos territórios indígenas; fixação de critérios de
“indianidade”, que permitiriam a exclusão como no caso acima citado de sujeitos considerados
como “´não índios” pelo SPI, das aldeias. Em 1919 ainda se mencionam conflitos em Bananal:
“De 1917, a esta parte teem se suscitado algumas questões entre estes índios e civilizados que
os procuram explorar, mas com a intervenção amigável do encarregado do Posto, teem sido as
mesmas quasi sempre resolvidas pacificamente. O pior elemento que ali tem, e que quase
sempre é o autor, de todas as queixas que surgem, é o índio emancipado Adolpho Massi, que já
por mais de uma vez tem sido posto para fora do aldeamento pelo Sr. Inspetor, como um
individuo perigoso”. (filme 379; ft 1198).
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
139
A problemática da “emancipação” dos Terena seria colocada de maneira mais efetiva, no
ano de 1922, sendo assim relatada:
“Os protestantes (índios) distinguem-se dos outros índios especialmente por não beberem, mas
ao que dizem, são um tanto pedantes, julgando-se superiores o que invita os outros. Nada disso
eu percebi por mim mesmo. Informou o sr. Roberto Werneck houverem-lhe dito que o
missionário aconselha ao Capitão Marcolino Lili, chefe de mais prestigio e protestante, a
propor ao Governo a emancipação do Posto e retirada dos funcionários do serviço, que no
dizer dele, nada tem feito pelos terenos. Poucos dias depois de empossado recebi, transmitida
pelo sr. Lindolpho Azevedo, uma carta do índio do Bananal, denunciando faltas contra a
moralidade do Posto cometidas pelo encarregado Manoel de Oliveira Cravo ” (Relatório da
IR-6, 1922, Museu do Índio, Filme 379 fl. 1439)
Os relatórios da IR-6 nos anos 1920, indicam uma série de conflitos políticos em Bananal,
atribuindo-o a ação da “União Missionária Sul-americana”, que atuava nesta aldeia. Os conflitos se
dariam dentro da aldeia de Bananal, pela divisão entre “protestantes e católicos”, e entre o SPI e a
União Missionária. Isto levando inclusive a migração de famílias de Bananal para Cachoeirinha
(Relatório da IR-6, 1922, Museu do Índio, Filme 379)
Os atritos do SPI com a União Missionária se iniciariam em 1919. No relatório referente a
este ano, Silveira Lobo escreve um item denominado “questão religiosa”:
“Entre estes índios encontrei uma forte propaganda feita por pastores da igreja anglicana afim
de induzil-os a se converterem ao protestantismo. Em meus relatórios precedentes tive o ensejo
de vos expor claramente a situação e demonstrar as razões pelas quais esta administração
acreditava necessário prohibir fosse continuada esta propaganda que estava dividindo os
índios em dois grupos. Igualmente vos fiz sciente das diversas providencias, editaes, intimações
etc, tomadas para evitar a continuação de taes fatos. Tendo esta Inspectoria expedido ordens
severas para impedir que entrassem no território sob sua fiscalização missionários de tal
propaganda promoveram estes uma collecta entre os índios seus adeptos afim de seguirem para
essa capital Federal e ahi se entenderem com essa Directoria”. (Filem 379, fl. 1346-47).
Em anexo a estes relatórios estão documentos e comunicados trocados entre a IR/SPI e a
União Missionária. O caso é levado até a Direção do SPI no Rio de Janeiro, que autoriza o trabalho
da Missão dentro da aldeia de Bananal, permitindo a construção de templo, escola e hospital (anexo
11, 14/03/1922).
Assim, existia um conflito de interesses entre a Inspetoria Regional e União Missionária
Sul-americana, pelo controle político da aldeia de Bananal. Seria a tentativa de “emancipação
indígena” uma mera estratégia de manipulação dos índios por parte da Missão? Mesmo que tenha
havido tal manipulação, como sugerem os documentos do SPI, a ação dos índios não pode ser
explicada somente por ela.
Em primeiro lugar, na substituição do encarregado de posto, acima mencionada, a petição
encaminhada pelos índios, é assinada por “católicos e protestantes”, o que significa que não
existiam somente índios da órbita de influência União Missionária envolvidos na derrubada do
encarregado. Além disso, o índio relacionado com a União Missionária era Marcolino Lili, e foi
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
140
contra o controle político exclusivo deste, questionado por outro Capitão, que é aplicada a fórmula
de uma junta composta de três membros, um indicado pelo Capitão Marcolino Lili, outro por
Manoel Pedro, e outro pelo SPI
66
.
Some-se a isto o fato de o SPI ter firmado um acordo de “convivência pacifica” com a União
Missionária, pelo menos é isto que sugere o relatório de 1923: “Já não existe contenda religiosa,
vivendo a administração do Posto e missão protestante que ali opera na melhor harmonia, a
primeira cuidando de tudo e todos e a segunda cuidando da propagação e instrução doutrinária
entre os que livremente a querem ouvir”. (Relatório da IR-6, Filme 379 fl 1467).
Ainda no ano de 1927, a IR entraria em choque com o Capitão Marcolino Lili. Nesta ocasião
ficariam explícitos os motivos. O que a documentação revela é que existia um problema que tocava
a região nevrálgica do regime tutelar: a administração do patrimônio indígena, especialmente, das
terras da aldeia. Seria o controle político deste patrimônio e de todos os meios empregados para sua
gestão e exploração (“polícia”, “engenhos”, “arrendamentos”) que seriam disputados pelos
diferentes “capitães”, e também, pelo próprio SPI, através do Encarregado de Posto. Uma série de
documentos da IR-6 de 1927 permite analisar o processo de emancipação indígena como parte de
uma primeira etapa do processo de revolta contra a tutela.
Vejamos o que o relatório da IR-6 de 1927 informa:
“O Posto do Bananal é uma verdadeira povoação indígena em vésperas de ser emancipada,
pelo adiantamento a que já attingio. A falta de cooperação por parte do governo do Estado, nos
obriga a adiar muitas providencias indispensáveis para isso; mas, vamos alli mantendo, uma
ingerência cada vez menor, hoje reduzida ao ensino da primeiras lettras, aos cuidados médicos
e auxílios referentes a construções de casa, instrumentos de lavouras, machinas de
beneficiamento, repdroductores para melhorias de rebanhos, açudes para água, cercas de
arame e matança de formiga. A administração propriamente dita passou, como sabeis, a ser
exercida por uma junta de três índios, governando sucessivamente, cada um durante um mez.
Essa providencia de que vínhamos cogitando desde algum tempo, foi precipitada pelo constante
antagonismo dos índios protestantes encabeçados pelo de nome Marcolino Lili, com os
auxiliares nomeados pela Inspetoria para dirigirem o Posto”. (Relatório da IR-6, 1927,
Estigarribia, Filme 341, fl 1011).
O relatório deixa bem claro que, apesar da questão religiosa, existia uma oposição indígena a
“administração” imposta pelo SPI nos territórios indígenas. A solução encontrada pelo SPI foi, em
agosto de 1927, instituir uma “Junta Indígena” para substituir a administração, mais
especificamente, o Encarregado do Posto, Junta esta composta por três nomes, indicados um pelo
SPI (Manoel Vitorino), um por um capitão identificado como “protestante” (Paulo Lili Marques) e
outro por um capitão identificado como “católico” (Umbelino Candido).
É importante notar que o capitão Marcolino Lili foi a princípio indicado pelo próprio SPI,
por conta da sua filiação religiosa protestante, que incentivava um ethos “ascético”, especialmente
66
O referido relatório menciona a solicitação de força policial para retirada dos Missionários do Bananal.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
141
no que tange ao não consumo de bebida alcoólica, o que facilitava o controle e manutenção da
ordem dentro das aldeias. Marcolino Lili foi consagrado capitão da aldeia de Bananal. Entretanto,
pouco tempo depois, algumas queixas começaram a ser realizadas por setores da comunidade,
denominadas pelo SPI de “católicos”, que acusavam de agressões e uso indevido do patrimônio da
comunidade. Isto levou o SPI a tentar destituir o capitão Lili, que logo desencadeou a oposição
ativa de sua facção política. Em agosto de 1927, o SPI deu início à “emancipação” dos Terena de
Bananal por que não conseguia fazer com que o encarregado de posto exercesse suas funções.
No mesmo ano de 1927, o auxiliar da IR, Roberto Vieira dos Santos Werneck, apresentou
um relatório sobre os postos do sul do estado, em que constavam alguns anexos, dentre eles um
documento endereçado aos três índios membros da junta do Bananal, composto por 26 itens, que
discriminavam detalhadamente a função da Junta Indígena e o processo de “emancipação” da
povoação do Bananal. O documento é assim formulado:
“Tendo em consideração o adiantamento a que já attingiu a povoação do Bananal e a necessidade
de estender as actividades e recursos de que dispõe esta Inspetoria a índios mais atrasados julgamos
chegada a ocasião de tentar a sua emancipação, isto é, a administração pelos seus próprios
habitantes, que será opportunamente proposta.
A titulo de experiência e preparo organisamos esta junta, procedendo a 22 do corrente, como
sabeis, e de acordo com o edital ahi affixado, a vossa escolha para constitui-la. Será um governo
para uso interno, que administrará sob as vistas da Inspetoria, tendo como principal objectivo a
manutenção da ordem dentro da povoação e o encaminhamento dos serviços de interesse geral.
Vae enumerado a seguir o que julgamos essencial para o cumprimento de sua missão:
- Evitar e cohibir desordens e desrespeito a moral, uzando para isso, quando necessário, a polícia
agora constituída;
2º Impedir que qualquer pessoa, índia ou não, seja perseguida ou enxovalhada por motivo de crença
religiosa ou modo de pensar qualquer. Dada a divergência religiosa que há dentro do Bananal, a
junta deve ter muito em vista que o Governo não dá preferência a ninguém pela religião que
professa (...)
3º Garantir aos índios a liberdade de matricular seus filhos nas escolas que preferirem, desde que
taes escolas estejam de accordo com as leis brasileiras;
4º Garantir o direito de locomoção as pessoas não criminosas e a permanência, o respeito e o uso
da palavra, dentro das terras da povoação, aos sacerdotes e crentes de quaesquer religiões que a
visitem, os quaes não poderão.
5º Não impedir os folguedos e festas religiosas ou não, que os índios ou grupos de índios queiram
fazer, desde que não conduzam a desordens ou imoralidades;
6º no caso de crimes (assassinatos, roubos, attentados violentos ao pudor), mandar effectuar a
prisão do criminoso, o arrolamento das testemunhas (...)
7º Impedir que um índio ou grupo de índios uze, em seu proveito exclusivo, qualquer das
propriedades coleticvas existentes na povoação. A) nenhum índio ou grupo de índios poderá
arrendar ou dar pastos para animaes particulares. B) nenhum índio ou grupo de índios poderá
vender lenha tirada nas mattas ou pedras de suas terras e etc. (...)
10º Ter muito em vista que na Povoação do Bananal só os índios e o Governo podem possuir
immoveis ou sementes de qualquer natureza.
11º Procurar resolver pacificamente toda as questões existentes entre índios e entre esses e as
pessoas não índias, apellando para a Inspectoria nos casos mais difficeis.
12ºO uso da polícia na repressão de qualquer caso irregular deverá ser feito moderadamente,
evitando toda violência e brutalidade.
13º Essa polícia se comporá de 12 homens escolhidos, uniformizados e armados pela Inspetoria e
terá a missão de policiar a povoação (...).
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
142
14º A polícia cumprirá ordens exclusivamente da Junta, por intermédio de um de seus membros, os
quaes sucessivamente e por um mez exercerão sua chefia imediata (...) (Antonio Martins Viana
Estigarribia N200/13, IR-6, 1927 Filme 347, filme 1172).
Vemos que o poder da Junta Indígena era constituído por três elementos fundamentais; 1º) a
investidura estatal, já que os poderes da Junta eram concedidos pelo SPI, e dependiam de sua
estrutura administrativa para serem exercidos; 2º) a polícia, ou o monopólio da violência dentro dos
limites do território da “povoação indígena”; 3º) a conciliação de interesses entre diferentes
“caciques” ou facções políticas que disputavam o controle e uso dos recursos econômicos de
Bananal.
O controle da “propriedade indígena” (incluindo ai todos os bens materiais, como engenhos
e etc, e os recursos naturais da reserva) sempre foi uma questão fundamental, mesmo numa área
territorial relativamente “pequena”, como o caso das reservas indígenas do Sul de Mato Grosso. A
questão religiosa estava associada à questão política, do controle da polícia indígena, de maneira
que expressava uma clivagem política existente dentro da aldeia. Assim, a emancipação indígena,
da qual se tratou nos anos 1920, tocava o centro mesmo do regime tutelar, dos poderes que esta
relação envolve e implica,e dos discursos e representações simbólico-culturais que produz e nas
quais se ampara. Era pelos índios Terena serem considerados pelo SPI como estando em avançado
estágio de “civilização” (o que supunha uma identificação destes com a cultura nacional/ocidental),
que se propôs a emancipação. Mas não somente por isso. Na realidade o fundamental foi a luta e
resistência política desencadeada pelos indígenas pelo controle dos territórios indígenas.
O processo de emancipação indígena foi sempre todo conduzido pelo SPI. A “Junta
Indígena”, que deveria substituir a administração do SPI, estava subordinada ainda a Inspetoria
Regional, de maneira que fazia parte de um esquema estatal. Assim, a experiência da emancipação
dos Terena não deve ser vista romanticamente como um projeto de “liberação indígena” (como
seria concebido décadas depois, pelas organizações e movimento indígena), mas sim como uma
reação do Estado as micro-revoltas desencadeadas pelos índios contra sua intervenção nos
territórios e organização social indígena.
Mas a experiência da emancipação indígena ocasionava uma mudança importante numa
esfera “micro-política”, pois provocava a luta concorrencial entre diferentes facções indígenas pelo
controle e uso monopólico da “propriedade coletiva” da aldeia. Isto fica explícito nos itens que
compõem o documento, já que seria uma das funções da Junta evitar que tal fato ocorresse. E esta é
uma mudança fundamental. Outro fato importante é que existe uma dimensão cultural-ideológica
implícita neste processo, que é o da legitimação e o da criação de fundamentos internos (ao grupo
indígena) para as relações de dominação. Isto se consolidaria depois com o processo histórico, e é o
que pretendemos analisar.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
143
Apesar da profunda vinculação da Junta Indígena ao SPI, esta não esteve em operação por
muito tempo. Não conseguimos localizar os relatórios do SPI dos anos 1928, 1930-1934, e os de
1929 não menciona nada sobre a experiência da Junta Indígena. No relatório da IR-6 de 1935, num
tópico referente a aldeia Bananal, lemos o seguinte:
“Infelizmente, tive de registrar, em agosto do anno findo, uma facto bastante desagradável
para esta Inspetoria, no que muito concorreu a grande incompatibilidade existente entre o
encarregado e a população indígena. Por intermédio daquelle, recebi um apello do prefeito de
Aquidauana, snr Manonel Alves de Arruda, e do juiz de paz da povoação de Taunay, snr
Manoel de Andrade, para permitir que o gado pertencente a esse povoado se servisse da água
existente em grande abundancia na Bahia situada dentro dos campos do posto, enquanto
perdurasse a grande seca que assolava a região. (...) considerando que a permissão equivalia a
um ato de humanidade, cujos effeitos so poderiam redundar em sympathias para o índio; e,
finalmente, considerando a abundancia d´agua, conforme declaração do próprio encarregado,
na Bahia em questão, e que portanto, não se justificaria uma negativa, dei meu consentimento.
Nunca supuz, no entanto, que dessa minha autorização, baseada unicamente na informação do
encarregado, adviessem graves distúrbios. No momento em que construíam o corredor, afim de
dar acesso ao gado à Bahia, os índios Marcolino Lilli e José Francisco, alcunha Japonez, a
frente de um grupo de índios armados, impediram com ameaças violentas o prosseguimento de
dita construção. Esse acontecimento deu causa a que o encarregado, sem mais preâmbulos,
requeresse ao comandante do 16 B.C., com sede na cidade de Aquidauana, à delegacia de
polícia o desarmamento do grupo amotinado com a prisão dos cabeças. A presença de uma
força armada fez com que muitos índios se despersassem, indo a maior parte para Aquidauana,
para cuja cadeia seguiram também presos Marcolino Lili e Japonez. Imediatamente me
transportei para essa localidade, fazendo com que os índios regressassem tranqüilos para suas
casas e providenciando a remoção de Marcolino Lili e Japonez, da cadeia publica para o Posto
de Cachoeirinha, até segunda ordem. Com a retirada definitiva de Jayme Machado do lugar de
encarregado de Bananal, autorizei a volta desses índios para seus pagos. “ (Relatório IR-6,
Filme 380, fl 1674).
Ou seja, até meados dos anos 1930, o capitão Marcolino Lili, ainda mantinha uma política
resistência à ação do SPI. Note-se que o conflito acima mencionado é um conflito armado; em
conseqüência dos “distúrbios” provocados pelo evento, o exército e a polícia intervieram na
povoação indígena. Poderíamos concebê-lo como um desdobramento do processo de resistência
iniciado ainda nos anos 1920, talvez mesmo como seu corolário.
Neste evento, o conflito está organizado em torno de dois elementos: 1) oposição liderança
indígena X encarregado do SPI; 2) controle da propriedade indígena (o acesso ao território indígena
e recursos ambientais existentes dentro dele). Exatamente os mesmos fatores existentes nos
primeiros atritos entre lideres Terena e agentes do SPI. Este acontecimento, entretanto, é marcado
por uma maior gravidade, já que resulta num processo de revolta armada dos índios contra o SPI e o
regime tutelar.O desdobramento é a repressão armada do Exercito e Polícia, acionada pelo SPI,
contra os indígenas Terena liderados por Marcolino Lili.
A série de conflitos/situações sociais verificadas entre 1927-1935, que começa com a
proclamação de uma Junta Indígena para Emancipação da Povoação de Bananal, e termina com a
intervenção do Exército e a prisão de lideranças indígenas da mesma povoação, deve ser entendida
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
144
como um processo de revolta/resistência dos índios Terena ao estabelecimento do regime tutelar.
Esta revolta assumiria diferentes formas, e não cessaria nos anos seguintes, mesmo depois do
arquivamento da idéia de “emancipação”. Na verdade, esta política de resistência a relação tutelar,
seria dotada de diferentes formas em quase todas as reservas indígenas Terena, sendo o caso de
Bananal, um caso importante e elucidativo da dinâmica societária que estava em processo de
constituição.
Esta série de conflitos se devem a verdade à combinação de alguns fatores: 1) a formação
das “reservas ou povoações indígenas”, unidades administrativas do SPI, a constituição de um novo
sentido para o regime tutelar; 2) a transformação da relação grupo étnico/território e das condições
materiais de existência e reprodução social destes; 3) a organização social e revolta/resistência
indígena aos novos esquemas de distribuição de poder que estavam se estabelecendo.
Desta maneira, a experiência de “emancipação indígena”, levada a cabo pelo SPI no Posto
de Bananal a partir de 1927, deve ser entendida como o produto da combinação das transformações
materiais da vida nas reservas indígenas, do esquema de distribuição de poder vigente no campo
das relações interétnicas e da resistência indígena contra este esquema, sendo que a resistência
indígena contra o regime tutelar, neste contexto, teve uma função preponderante em relação aos
demais fatores. Assim, no início dos anos 1940, quando o SPI se consolidaria enquanto instituição
estatal em todo o território nacional, os PI´s do sul do Mato Grosso e a IR-6, haviam promovido e
suplantado as tentativas de “emancipação indígena”, garantindo assim a consolidação da tutela.
3.6 – Da nacionalização à crise do SPI (1940-1969).
A partir do momento que a IR-6 conseguiu sufocar a micro-revolta indígena contra o regime
tutelar em Bananal, a ação do SPI junto aos Terena e estabeleceu dentro dos parâmetros do
“indigenismo real”. Isto significa que os Postos Indígenas continuaram a ser administrados pelos
encarregados, através da polícia indígena e dos “capitães” indicados por ele. Ao final dos anos
1930, a mudança na conjuntura política nacional repercutiria na política indigenista, de maneira que
a própria localização institucional do SPI se transformaria, saindo este órgão do MAIC, e passando
sucessivamente para o Ministério do Trabalho (1930-1934) e depois para o Ministério da Guerra
(1934-1939). Esta mudança se deu dentro dos processos de transformação do Estado e do Mercado
Capitalistas, que passavam naquele momento por um duplo processo: o de centralização política no
plano político, e de passagem do capitalismo monopolista ao capitalismo monopolista de Estado, no
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
145
plano econômico, em meio a processos de Guerra Civil desencadeadas por lutas intra e inter-
classes67:
“Com a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em 1930, pelo decreto nº
19433, de 26 de novembro, responsável pela relação entre capital e trabalho - frente às
necessidades que os tumultuados anos 20 imporiam, no sentido de se produzir legislação e
serviços capazes de coibir as movimentações operárias e controlar a entrada de mão de obra
estrangeira, notadamente ao crescimento do movimento operário internacional- seriam a ele
transferidas todas as atribuições relativas a indústria, comércio e imigracão-colonizacão até
então alocados no MAIC”.(Lima, 1992, p. 164).
Seria nesta conjuntura que as tarefas de edificação de uma “identidade nacional” seriam
postas com maior relevo, sendo o indigenismo concebido como um instrumento para tal política.
Desta maneira, a ação do SPI no período entre 1934-1939 (quando estava integrado no Ministério
da Guerra) foi marcada pela idéia de nacionalização
68
, e entre 1939-1955 (quando retornou para o
Ministério da Agricultura), pela de preservação e aculturação paulatina, não excludente com a
primeira:
“As idéias em torno das quais se organizaria o Serviço estariam claramente estabelecidas no
regulamento aprovado pelo decreto nº 736, de 6 de abril de 1936 (...) O regulamento marcava-
se pela preocupação com a nacionalização dos silvícolas, com o fim e incorporá-los à Nação
(art1º)”. (Lima, 1992, p. 165)
“O discurso da nacionalização continua, porém assente sobre a idéia de grupos indígenas
situados em estágios distintos da evolução humana, já que o decreto 5484, de 27/06/1928,
responsável por uma categorização relativa ao grau de contato, cerne de ação protecionista,
era ainda vigente. (...) Por exemplo, falando dos dois tipos de postos indígenas com os quais
deveria contar o SPI à época, prevê para os Postos de Atração, Vigilância e Pacificação a
tarefa de lidar com povos “imbeles, desarmados e na infância social, de modo a despertar-lhe o
desejo de compartilhar conosco o progresso que atingimos. (...) O segundo tipo de posto, os de
Assistência, Nacionalização e Educação, destinar-se-ia de acordo com o Regulamento, a uma
ou mais tribos em relações pacificas e já sedentárias e capazes de se adaptarem à criação e à
lavoura e a outras ocupações normais”. (Lima, 1992, p. 166)
A nacionalização era concebida como um processo pedagógico de educação e trabalho e
educação (técnica) para o trabalho. A partir da década de 1940, o organograma do SPI seria
reestruturado para dar conta das duas tarefas; seria incentivada a retomada da idéia do “índio como
guardião das fronteiras”. O curto período de permanência do SPI no Ministério da Guerra não
eliminaria a retomada desta estratégia, que continuaria a orientar a ação do SPI dentro do Ministério
da Agricultura e a política indigenista, durante o Estado Novo e depois de sua queda. Assim, os
67
Nos referimos aqui as 3 Guerras Civis do período: 1) a “Revolução de 1930”, que depois o presidente Arthur
Bernardes; 2) A revolução Constitucionalista de 1932; 3) a Insurreição Comunista de 1935. Todos estes
acontecimentos influenciaram no processo de reestruturação do Estado, tanto do ponto de vista ideológico-político,
quanto administrativo. Estes fatos teriam repercussão na política indigenista, afetando diretamente os Terena, como
veremos.
68
Um dos importantes acontecimentos, que afetam especificamente os índios de Mato Grosso, é a “Marcha para
Oeste”. Este foi um movimento do colonialismo interno e expansão da fronteira agrícola para a região norte do Mato
Grosso. Enquanto isso significou um maior investimento econômico na região norte,implicou uma maior estruturação
do SPI no sul, que se caracterizou pelo esforço de consolidar as reservas indígenas como reserva demão-de-obra e
intensificar os processos de transformação das tecnologias produtivas e referenciais culturais-simbólicos dos indígenas.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
146
Postos Indígenas e Inspetorias foram estruturados para atuar de acordo com estas duas orientações
gerais. Esta estrutura só sofreria propostas de alteração em 1960
69
. Vejamos como era a distribuição
dos PI´s no sul de Mato Grosso:
Quadro 29 -Postos Indígenas da IR-5 (sul de Mato Grosso e São Paulo)
PIF
Postos de Fronteira
PIN
Postos de Assistência,
Educação e
Nacionalização.
PIC
Postos de Criação
PIA
Postos de Alfabetização e
Tratamento
Vanuire (Tupã/SP) Posto Curt Nimuendajú
(Ivaí/SP)
Nabileque
(Ponta Porá/MT)
Ipegue
(Aquidauana/MT)
Fransisco Horta
(Dourados/MT)
Posto Icatú (Penápolis/SP) Capitão Vitorino
(Nioaque/MT)
José Bonifácio
(Ponta Porá/MT)
Posto Taunay
(Aquidauana/MT)
Lalima
(Mianda/MT)
Benjamin Constant
(União/MT)
Buriti
(Aquidauana/MT)
São João do Aquidavão
(Miranda /MT)
Presidente Alves de
Barros
(Miranda/MT)
Cachoeirinha
(Miranda/MT)
Os dados permitem ver que as tarefas da política indigenista no sul de Mato Grosso eram
diferentes do Norte, já que na IR-6 (Norte de Mato Grosso), eram 6 os PI´s de “atração” (num total
de 11), enquanto que no sul não existia nenhum destes, e cinco postos de “nacionalização”,dos
quais a maioria eram de índios Terena. Isto significa que neste período, o regime tutelar e a política
indigenista foram veículos do processo de nacionalização, de construção e imposição de uma
identidade nacional aos povos indígenas.
É preciso observar que devido a própria idéia estruturante do regime tutelar, os povos
indígenas se diferenciavam em categorias: para o SPI existiam diferentes categorias de povos em
diferentes situações de contato interétnico e grau de civilização, o que significava que o regime
tutelar não incidia e se materializava da mesma maneira para todos os povos indígenas. Para alguns
povos indígenas, a política seria de “atração”, para outros seria de “nacionalização”. Isto significava
que simultaneamente ao impulso de preservar e garantir uma “aculturação paulatina”, se tentava
acelerar o processo de incorporação dos índios à Nação, como trabalhadores rurais. O regime tutelar
para os Terena deste período, assumiu uma função fundamentalmente cultural-ideológica, através
da política de resgate da “cultura tradicional” aplicada pelo SPI nos anos 1940-1950. A tutela se
confundiu com a pedagogia da nacionalização, e os conteúdos político e econômicos desta
(subordinação e centralização das lideranças indígenas ao encarregado de posto) complementavam
o processo.
Assim, entre as décadas de 1940 e 1950, as aldeias Terena (ou parte delas) estavam
vivenciando um momento especial; o Estado-Nacional, através do SPI, aplicava uma política que ao
mesmo tempo incentiva a mudança e a preservação da cultura e identidade indígena. Seria nesta
69
De acordo comum plano de acordo de reorganização do SPI (ver Lima, 1995).
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
147
situação histórica que os etnólogos da Escola de Sociologia e Política e do SPI encontrariam os
índios do Sul de Mato Grosso, em especial os Terena. As monografias clássicas sobre o grupo são
produzidos neste ambiente intelectual e institucional.
O antropólogo Altenfelder Silva registra assim a ação do SPI junto aos Terena de Bananal
70
:
“Por iniciativa do Serviço de Proteção aos Índios foi restabelecida a “festa dos padres”, o
Oheokoti, celebrada agora no dia 19 de abril, Dia do Índio, juntamente com outras cerimônias
cívicas brasílico-indígenas, tais como o hasteamento do Pavilhão Brasileiro, ao som do Hino
Nacional entoado pelos índios, e a realização de danças Terena, agora reavivadas. (Altenfelder
Silva, 1949, p. 359).
O Posto Indígena, a Escola, juntamente com as Missões Religiosas, seriam assim os pilares
do processo de nacionalização (sinônimo de aculturação e assimilação, indicando o destino destes
últimos) dos índios concebido pelo SPI como a mudança de sua cultura, de seu modo de trabalho
e vida. Estas três instituições realizavam e materializavam toda a política e objetivos almejados pelo
Estado-Nacional; transformação global das sociedades indígenas em trabalhadores nacionais, em
brasileiros. Elas combinavam as funções político-econômicas (o Posto e o Encarregado, que
“encarnavam” diretamente perante os índios o regime tutelar), e também cultural-ideológicas (a
Escola e a Missão, que reproduziriam saberes/códigos culturais específicos), tal como as narrativas
acerca da nacionalidade e a cosmologia cristã. O Posto, a Escola e a Missão não somente
portavam e reproduziam as idéias e representações culturais-ideológicas fundantes do regime
tutelar, (tais como a distinção “índio selvagem”índio manso”, ou índio aculturado, numa linguagem
atualizada pelas narrativas sociológico-etnográficas), mas operacionalizavam e davam
materialidade para esta mesma relação, assim como seus conteúdos específicos, marcados por
formas de dominação, e rebaixamento dos índios perante os poderes de Estado, assim como de seus
status na sociedade. Estas instituições são, por assim dizer, a própria relação tutelar tal como ela se
manifestava perante os índios Terena.
Paralelamente a este processo de nacionalização, se deram outras transformações,
decorrentes da própria situação histórica e condição de classe dos índios Terena. Isto quer dizer que
a situação histórica de reserva, para os índios, seria marcada por algumas contradições que
desencadeariam processos sociais. A pesquisas realizadas por Roberto Cardoso de Oliveira nos anos
1950 iriam se deparar com tal situação, e chamar a atenção para as contradições e processos que se
chocavam diretamente com a expectativa do SPI de concentrar toda a população indígena dentro de
reservas economicamente auto-sustentáveis e relativamente fechadas à “sociedade nacional”.
Neste período as pesquisas antropológicas realizadas por universidades e pela seção de
estudos do SPI, indicariam com clareza como os Terena se destacavam como parte de um
70
Éinteressante ver que apesar de tais ritos serem sistematicamente registrados desde os anos 1920, fala-se aqui em
“reavivamento”.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
148
campesinato pobre
71
, tendo em razão de sua situação de classe, de desenvolver novas estratégias
enquanto grupo étnico. Assim, a migração para o trabalho (labor migration), principalmente para a
cidade de Campo Grande, principal núcleo econômico do sul de Mato Grosso (depois da construção
das estradas de ferro, especialmente a Noroestes do Brasil), ou a “urbanização” dos índios deve ser
vista como conseqüência da situação histórica de reserva, que redefiniu a relação grupo
étnico/território, mas também da própria organização social e estratégia indígena, já que muitas das
famílias que saiam das aldeias, alegavam ter feito isso em razão dos conflitos político-religiosos
(Cardoso de Oliveira, 1968,p.129). O caráter camponês, ou de campesinato étnico dos Terena,
implicava necessariamente uma articulação orgânica campo-cidade, e se o processo de
industrialização e urbanização brasileiras naquele período já começavam a afetar o conjunto do
campesinato, não poderia deixar de afetar também o próprio campesinato étnico.
Assim, apesar de em meados dos anos 1950 uma parte significativa da população Terena se
encontrar aldeada, um número significativo se encontrava ainda em localizadas em fazendas e outro
em cidades ou os núcleos urbanos de maior importância econômica sendo que já existiam
grupos domésticos de segunda geração, o que prova que a migração era relativamente antiga. O
quadro abaixo permite ver a situação global dos Terena em meados dos anos 1950:
Quadro 30- PI´s Terena 1954 As Diferentes localizações sociais dos Terena.
População
Nos PI´s
População
em Fazendas (grupos familiares)
População nas Cidades
Cachoeirinha 834 Do Negrão 4 Piqui 3 Campo
Grande
88
Bananal
Ipegue
72
1060 Conceição 2 Anhuma 2 Aquidauana 330
Lalima 256 Alvorada 3 Vargem
Alegre
6
Capitão
Vitorino
202 Taboca 6 Bonito 15
Moreira 130 Ambrosio 3 Chácara do
Salim
1
Passarinho 109 Mongolinho 1 Chácara do
Frutuoso
1
Buriti 483 S Pedro 1 Granja Chico
Antonio
1
Limão Verde 246 Leonel
Correia
2 Leblon 7
Total
(indivíduos)
3320 364
73
418
Elaborado a partir dos dados de Roberto Cardoso de Oliveira, 1976.
71
Cardoso de Oliveira relembra que nos anos 1970 “ ...os Terena sempre puderam ser referidos como “índios
camponeses” na medida em que eu conseguia recuperar minha etnografia como fonte de dados para meus alunos que
fossem ilustrativos da condição camponesa no Brasil indígena.” (Cardoso de Oliveira, 2002, p. 94)
72
Estes dados são estimativas criadas por Cardoso de Oliveira, a partir dos dados de Altenfelder Silva, ou seja, não se
baseiam em dados diretos.
73
Estimativa obtida pela multiplicação do total de famílias pelo numero de membros médio encontrado por RCO entre
os Terena no período.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
149
A localização social-geográfica dos Terena neste período mostra que um número pouco
superior a 20% da população aldeada vivia fora das reservas indígenas do SPI, ou seja, do controle
direto exercido pelo SPI. Um contingente que não deixa de ser expressivo. Note-se que apesar
disso, encontravam-se ainda redes sociais que articulavam os grupos domésticos através de
processos de interação e comunicação, baseados em relação de parentesco e vizinhança74. A
diferenciação da localização dos grupos domésticos Terena (reserva-fazenda-cidade), implicava
também uma diferença de situação econômico-ocupacional: existiam assim dentro das reservas, o
camponês; o camponês-proletário rural (que reveza as atividades de subsistência com o trabalho
assalariado); dentro das fazendas, o índios seriam o proletário rural (vaqueiro, capataz) ou
camponês sem-terra (agregado); nas cidades, diversas ocupações, desde o funcionalismo publico até
inúmeros ofícios manuais (ver Cardoso de Oliveira, 1968). Assim o regime tutelar, constituído e
estabilizado na situação de reserva, foi abalado por duas outras forças societárias: 1) as contradições
engendradas pela situação econômico-social da reserva (migração para o trabalho, conflitos
político-religiosos); 2) as estratégias e política de resistência dos próprios grupos indígenas
(oposição local ao SPI, apropriação de saberes e recursos materiais simbólicos para uso do grupo).
O diário de campo da pesquisa de Roberto Cardoso de Oliveira, então etnógrafo da seção de
estudos do SPI oferece uma visão interessante sobre a construção do regime tutelar, de sua
dimensão molecular e extensiva. É sobre sua etnografia que elaboraremos um quadro do regime
tutelar na situação de reserva, de suas características de operação e contradições que levaram a seu
processo de crise e transformação.
As nove reservas indígenas Terena existentes em meados dos anos 1950, diferentemente das
comunidades-locais de fazendas e cidades, tinham uma estrutura: o Encarregado de Posto,
representante local do SPI.era responsável pela administração política da aldeia, para a qual
indicava um Capitão e organizava uma polícia, que ficava sob as ordens de ambos. O Encarregado
do Posto possuía um poder amplo, pois em sua mão se concentrava a gestão do patrimônio indígena
(moinhos,ferramentas e a terra), determinando amplamente a forma da produção; também o poder
político, já que ele a mando da Inspetoria Regional, indicava o Capitão e a Polícia das aldeias, assim
como concedia “salvos-condutos” para entrada e saída de índios da reserva, e regulava por outro
lado a entrada de não-índios.
Com relação a extensão do poder do Encarregado de Posto (que obviamente se sustentava
sobre o poder da IR do SPI), e sobre o próprio contexto da política indigenista que marcava o
regime tutelar (Estado/Indios Terena), Cardoso de Oliveira tece algumas observações fundamentais,
de sua ação enquanto funcionário do SPI:
74
Cardoso de Oliveira observa isso com relação aos procedimentos adotados para sua pesquisa, quando conseguiu
localizar quase todos os índios em fazendas e cidades através de índios que moravam nas aldeias (Cardoso de Oliveira,
1968).
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
150
“Recordo-me que cabia a nós (a Darcy e a mim) dar a autorização para a entrada de
missionários nas áreas indígenas. O dossiê de cada missão era analisado, ouvia-se o
encarregado de posto e só então os missionários eram nominalmente autorizados (ou não) a
exercer a catequese. Naquele tempo não se ouvia as lideranças tribais. O índio não era
considerado um interlocutor: os indigenistas (dentre eles os antropólogos) falavam pelo índio.
Esse era o horizonte ideológico do indigenismo, não somente brasileiro, mas também latino-
americano”. (Margem: Cardoso de Oliveira, 2002, p. 115).
Aqui temos um elemento fundamental da caracterização do regime tutelar na situação
histórica de reserva: a tutela era marcada por uma forte exclusão, por uma lógica “substituísta”; o
indigenista, representante do poder e das instituições do Estado-Nacional, por uma metaforização
política se tornava representante do índio; agia e falava em nome dele. O ato da substituição do
índio pelo indigenista era a essência da própria relação tutelar (já que a idéia de tutela supunha a
incapacidade do índio em se representar). Assim, a estrutura institucional do SPI se pautava nesta
relação ao mesmo tempo de exclusão, substituição e rebaixamento do índio. Isto é o regime tutelar.
Este poder se exercia assim quase sempre pela exclusão. Desta maneira, no ano de 1955,
Cardoso de Oliveira registra uma decisão do SPI que exemplifica bem esses procedimentos de
exclusão:
“Nestas eleições Tomásio foi um dos poucos índios a repudiar a ordem da IR-5 de não votar no
pleito de 3 de outubro que, segundo a inspetoria, era em obediência a uma outra da diretoria
do Rio de Janeiro. Contou-me Tomásio que enquanto os seus patrícios, entre decepcionados e
revoltados, devolviam o titulo de leitor aos funcionários do SPI, ele e seu amigo Simão
recusaram-se a fazê-lo. Ficaram com seus títulos e votaram. Bem. Isso me pareceu uma
demonstração de que algo estava mudando (...) Seria uma visão moderna do Terena, voltada
para o exercício de uma autonomia mínima que a política indigenista vigente procurava
cercear?.(...) Procurei aprofundar-me sobre essa recente história das eleições a partir de
Cachoeirinha. Segundo Tomásio três partidos políticos procuraram a aldeia para angariar
eleitores: a UDN, o PSD e o PTB. Esses partidos atuaram com intensidade variável no
proselitismo político junto aos índios. (...) A UDN prometeu conduzir por meio de automóvel a
família do encarregado até Miranda e, para os índios, ofereceu um caminhão como meio de
transporte; o mesmo caminhão que trouxe o seu candidato, Nelson Ferreira Candido, por duas
vezes, a Cachoeirinha para persuadir o encarregado e os índios esses por intermédio do
Capitão Timóteo a votar no candidato do partido. (...) (Cardoso de Oliveira, 2002, p. 115).
Este exemplo é importante por duas razões:1) mostra claramente como a política do regime
tutelar, era uma política proibitória, de exclusão. O SPI dizia o que o índio poderia ou não fazer,
como no caso, se ele poderia ou não votar; 2) mostra também o esforço dos Terena de tentarem
burlar esta imposição, estabelecendo relações com outros atores sociais no caso partidos e
lideranças políticas. Este é um processo que seria muito característico da posterior critica indígena
do regime tutelar.
O regime tutelar se configura na prática por mecanismos que possibilitam, através de
procedimentos político-administrativos, a substituição do índio; o controle de suas ações. Mas além
disso, significa também uma codificação precisa, que transforma a alteridade étnico-cultural em
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
151
subalternidade político-social, muitas vezes com conotações racialistas. O regime tutelar, mesmo
frente aos índios com maior status dentro das comunidades locais, se apresentava, além do mais,
como forma de rebaixamento dos índios. É isto que Roberto Cardoso percebe, ao testemunhar a
relação entre Encarregado de Posto e o Capitão na aldeia Capitão Vitorino, no município de
Nioaque:
“E nesse sentido não posso deixar de fazer um comentário sobre o relacionamento que observei
entre Enoch e o capitão Francisco Vitorino da Silva; apesar de ser amigável, não deixa de ser
autoritário, próprio de um empregador com seu empregado. É certo que Vitorino é
praticamente um capataz do SPI (ainda que esteja há anos a espera de sua nomeação...)mas ,ao
mesmo tempo, não deixa de ser um capitão dos Terena da reserva; e é por isso que me
surpreendo quando ouço as ordens de Enoch; “arrume meu cavalo”...”vá lá a Nioaque me
comprar isso ou aquilo”....”arme minha rede na varanda”..e por aí vai... E não é só por sua
posição virtual na hierarquia de funcionários do SPI. É também pelo fato de ser índio..”.
(Cardoso de Oliveira, 2002, p.105)
Esta é uma observação fundamental; associado aos poderes do Encarregado um
funcionário subalterno na hierarquia do SPI, mas com status superior ao do “Capitão Indígena” - de
gestão dos bens, de controle político, se encontrava fundamentalmente esta codificação molecular
das relações de poder, um dito relativamente não-dito, de que em qualquer circunstância, mesmo
um líder indígena está colocado sob o comando do funcionário subalterno do SPI. Esta relação
diádica, de pessoa-pessoa, poderia ser vista como uma metáfora dos papéis do “índio e do branco”,
da própria relação Estado/Índio. O Capitão Terena era assim visto e tratado pelo Encarregado do
SPI como um empregado. A analogia utilizada por Cardoso de Oliveira (capitão/encarregado com
empregador/empregado) ilustra bem o conteúdo prático e concreto do regime tutelar, tal como
constituído e consolidado na situação histórica de reserva.
A dominação política estatal constituída através do regime tutelar, e exercida pelo SPI por
meio do complexo Encarregado/Posto/Inspetoria/Diretoria, manteve como dimensão fundamental
a gestão do patrimônio e a administração da renda indígena dentro do contexto das reservas, o que
recebeu grande ênfase no período 1950-1960 (Lima, 1995). Vimos que nos anos 1920 a
administração da terra e bens indígenas era uma questão estratégica, estando na base dos conflitos e
revolta indígena de Bananal. Cardoso de Oliveira observou com propriedade nas diversas reservas
indígena, que o papel econômico do Posto Indígena tinha muito pouco a ver com a economia
comunitária indígena, de maneira que:
“Nas aldeias em que o SPI está localizado, a impressão que se tem é de que muito pouco se
cuida da economia comunitária, i.é,dos próprios índios, preterindo-a favor do que chamaremos
de economia do posto. (...) A verdade é que existe uma preocupação muito grande sobre a
produção do Posto, i.é, daquela decorrente do trabalho financiado pelo SPI, seja no que se
refere as roças, ao tratamento do gado ou a extração de madeira ou casca de angico. Este
trabalho é normalmente realizado pelos próprios índios, especialmente pagos para isso (...)
Explicam os Encarregados que essa produção é revertida em melhoramentos para o Posto e
para a Aldeia (...) Poucas são as famílias que se beneficiam da produção do Posto, seja
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
152
recebendo sementes em quantidades apreciáveis, seja contando com reprodutores de boa raça
para melhorar seu lote de reses. (Cardoso de Oliveira, 1976, p. 95).
Poderíamos pensar aqui que a “economia do posto” se configura como uma esfera
econômica (ver Barth), que tangencia a esfera da economia comunitária indígena, mas que não se
confundia com ela, tendo objetivos e lógica relativamente próprias: uma lógica produtivista voltada
para o atendimentos dos interesses das instituições de Estado e/ou seus funcionários em cada
ocasião. Esta dimensão econômica da ação do SPI é fundamental pra compreender o regime tutelar,
a política indigenista e apolítica indígena em seu conjunto. O regime tutelar desta maneira era
composta por três elementos fundamentais: 1) o substituísmo autoritário (o índio pelo indigenista);
2) o controle proibitório, quer dizer, a tutela, exercida pelo SPI, era para o índio fundamentalmente
um “não poder” (não ser autorizado a fazer); 3) o rebaixamento do índio, frente a categoria e status
genérica de “branco ou civilizado”, especialmente aos representantes do Estado-Nacional. Estes
elementos, combinados ainda com as tarefas de gestão política e econômica exercidas pelo SPI,
fazem do regime tutelar para os Terena nesta situação histórica, uma relação especialmente
marcada pela desigualdade. Nas outras situações históricas, a tutela orfanológica não tinha chegado
afetar significativamente nem sua economia, nem sua política (primeira fase da situação de
diretório, entre 1800-1850); antes disso, no Chaco, por mais que fossem tensas as relações
Guaicurú-Guaná, estes últimos mantinham, sua autonomia política; depois, já em meados do século
XIX , mesmo perdendo suas terras e capacidade econômica, os Terena conseguiram manter uma
organização política relativamente autônoma. Agora, na situação histórica de reserva, pela primeira
vez os Terena enquanto grupo, e seus lideres (os naati) enquanto segmento, se encontravam numa
relação em que sua organização política sofria uma intervenção direta e sistemática de
atores/instituições externos ao grupo.
Mas esta situação não se estabilizaria desta maneira. Como vimos, desde os anos 1920,
micro-revoltas movidas pelos Terena foram desencadeadas; a de Bananal, estudada por nós, chegou
a precipitar uma experiência de “emancipação indígena”, que se encerrou com uma revolta armada
em 1934 e com a repressão do exército. Nos anos 1950/60, tal situação de oposição e critica sub-
reptícias ao SPI e relação tutelar continuavam, mesmo que não se estabelecesse uma revolta aberta.
Durante uma festa de santo, realizada em Cachoeirinha em 1955, Roberto Cardoso
acompanhado do então capitão Timóteo e do Encarregado Lulu, registrou o seguinte acontecimento:
“Enquanto escrevo estas linhas ouço de Lulu (encarregado) um comentário sobre o discurso
que o capitão Timóteo fez na abertura dos festejos da Santa, ocasião em que não deixou de me
apresentar mais uma vez a comunidade. Enquanto discursava, alguém dentre os presentes teria
falado em voz baixa, mas não tão baixa para que duas irmãs do capitão não deixassem de
ouvir, que os Terena não precisavam nem do encarregado, nem do doutor. Sabedor disso, logo
após o ocorrido, o capitão ficou indignado e quis punir o autor dessas impertinentes palavras
que, afinal, iam contra sua própria autoridade. A intermediação de Lulu, porém, foi
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
153
providencial em convencer o capitão a não recorrer a polícia indígena para punir o pobre
infrator”. (Cardoso de Oliveira, 2002, p. 81)
Este registro etnográfico mostra que, também de forma molecular, através da manipulação
de fofoca e discursos, se construía entre os Terena formas cotidianas de resistência ao regime
tutelar. Assim como antes havíamos visto a insatisfação com as decisões do SPI no que tangem a
participação dos índios na política municipal. Numa festa/ritual, em que o capitão e membros de sua
rede de parentesco estavam presentes, manifestam-se oposições e hostilidade aos representantes do
SPI. O então capitão tenta utilizar os mecanismos disponibilizados pela própria estrutura
institucional: a polícia indígena. A repressão direta só não se realiza, em razão da intervenção do
Encarregado. A mecânica presente, de acionamento dos índios para a defesa do regime tutelar e
seus representantes, encenada nesta situação social, dá indícios importantes dos fundamentos
internos pelos quais a dominação do Estado se constitui, e sem os quais dificilmente conseguiria
operar satisfatoriamente
75.
Observando os desdobramentos históricos podemos perceber que uma crise de gestão
política das reservas Terena se instala no final dos anos 1950, de maneira que a figura do capitão
passa a ser ao mesmo tempo questionada, e o posto de Capitão disputado, de maneira que as
indicações dos Encarregados muitas vezes não eram aceitas pelas comunidades-locais das diferentes
aldeias e reservas indígenas. Roberto Cardoso de Oliveira, enquanto etnógrafo e funcionário do
SPI, visitou todas a reservas indígenas Terena do sul de Mato Grosso, e dá um relato revelador:
“O esvaziamento da autoridade tribal,como fato corrente em todas as Reservas Terena, teria de
deslocar a tônica política (...) A nova conjuntura, desmoralizando a chefia tribal, facultava ao
Encarregado inclusive não reconhecê-lo, como soem ser atualmente as situações de
Cachoeirinha, Francisco Horta, Lalima e caminhando para isso, Buriti. A primeira não tem
capitão, mas a luta pelo poder está acesa, envolvendo algumas das personalidades indígenas
mais influentes da comunidade (...)
Em Francisco Horta, Reserva Multi-tribal, os Kayowa-Guarani e os Terena possuíam até 1958,
aproximadamente, um capitão para cada comunidade tribal (...) Nesse ano, devido a
dificuldades administrativas internas, Encarregado do Posto decidiu fosse eleito apenas um
capitão. Realizada a eleição, a vitória de um (infelizmente não conseguimos saber qual o
vencedor, informados que fomos desses fato quando estávamos em Buriti) teria naturalmente
de levar a um desequilíbrio na política interna da Reserva (...) O Candidato e ex-capitão
perdedor foi ao que parece, amparado pela opinião publica citadina, cujo jornal empreendeu
uma campanha contra o Encarregado do Posto,levando-o a licenciar-se até as coisas se
acertarem (...) Na prática , Francisco Horta ficou sem Capitão, porquanto o seu Encarregado,
pressionado pela campanha, acabou por não reconhecer o resultado da eleição. Entretanto
esses acontecimentos não iriam servir de exemplo ao mencionado Encarregado de Buriti, que
tencionava fazer igual eleição em sua Reserva, explicando que assim o desejava porque três
capitães eram demais para uma população tão reduzida. (...) Tramava-se em 1958, a
liquidação dessa chefia tríplice, com a centralização da autoridade numa só pessoa (ao que
parece, no Capitão Figueiredo, do núcleo mais antigo) capaz de ser melhor manipulada pelo
75
A polícia indígena era um dispositivo fundamental da ação do SPI. Roberto Cardoso tem um relatório criticando este
uso da policia indígena, e recomendando sua extinção.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
154
verdadeiro poder na Reserva,o Encarregado de Posto”. (Cardoso de Oliveira, 1968, p. 110-
112).
Os dados do autor citado acima indicam que no final dos anos 1950, sistematicamente se
verificavam conflitos políticos dentro das Reservas Terena, no que tange a escolha das lideranças
políticas indígenas. Ao mesmo tempo existia a política do SPI de impor os líderes e uma resistência
das comunidades indígenas em aceitar tal indicação; ou ainda, mediante a existência de uma
pluralidade de lideranças indígenas, o esforço do SPI se dava no sentido de centralizar o poder em
uma única liderança. Assim, em quase todas as reservas existia um problema político fundamental;
como escolher as lideranças indígenas e fazer tal escolha ser aceita pelas comunidades-locais? As
“eleições” para cacique surgem assim como uma fórmula encontrada pelo SPI para dar legitimidade
ao poder de indicação do Chefe de Posto. Logo, o regime tutelar passava por uma crise do exercício
da autoridade política no plano local, passava por mais uma crise, decorrente do choque da política
de centralização estatista do SPI e controle com a cultura/organização social indígena e seus
interesses políticos. Antes da adoção deste sistema eleitoral foi estabelecido um outro sistema: o do
conselho tribal, composto pelos homens mais idosos. Este sistema foi adotado antes das eleições,
também como forma de legitimar as indicações de capitães pelo SPI. As informações de Cardoso de
Oliveira remetem aproximadamente aos meados dos anos 1920, acerca de Cachoeirinha, quando da
sucessão do “Capitão Vitorino”:
Nessa intervenção, o SPI parece haver tentado interpretar o processo sucessório tendo por
base informações fragmentárias e discutíveis sobre a cultura tribal. Criou-se assim o Conselho
de Aldeia, composto pelos anciões e seus mais antigos moradores, incumbido de escolher ou
eleger o sucessor do Capitão Vitorino. (...) Contudo, não é sempre que esse conselho subsiste,
depois de criado. Em Cachoeirinha como nas demais aldeias Terena onde ele chegou a ser
instituído sua duração foi fugaz. Com a morte do capitão Timóteo, ocorrida em 1958, a
comunidade de Cachoeirinha não conseguiu chegar a um acordo sobre a sucessão. Os
remanescentes do Conselho que haviam elegido o falecido Timóteo para Capitão (seis
indivíduos, dos dez que o compunham)não foram sequer convidados pelo Encarregado do
Posto para reunidos deliberarem sobre a sucessão. Em 1960 iríamos assim, encontrar a
comunidade em plena crise da autoridade tribal; e pudemos surpreender, então, uma luta surda
em seu interior, voltada para reinstaurar, ao menos simbolicamente, o poder tribal. (Cardoso
de Oliveira, 1968, p. 110-112).
Assim, ao final da década de 1920 em Cachoeirinha teria se implantado o “Conselho”,
composto pelos homens mais velhos das aldeias (experiência estendida a outras reservas e aplicada
em outros grupos indígenas), ao mesmo tempo em que em Bananal, se teria tentado a “emancipação
indígena”. O Capitão indicado pelo Conselho teria sido o Timóteo (que pelos nossos cálculos, ficou
no cargo cerca de 30 anos, até 1958). Mas com a morte deste, teria se instaurado uma luta política
dentro de Cachoeirinha.
O que é fundamental a apreender é que a função de “capitão” era marcada por uma
instabilidade, gerada pelos conflitos políticos internos na aldeia e pela relação com o SPI; mas
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
155
também função de Encarregado de Posto dependia em grande parte da estabilidade do capitão, o
que faz com que existisse uma relação de inter-dependência entre Encarregado-Capitão na
distribuição do poder local dentro das reservas. Existia uma instabilidade recíproca nas relações e
posições do Encarregado-Capitão. O caso da aldeia Bananal é exemplar da dificuldade em se impor
a centralização política.
O processo de construção e consolidação do regime tutelar, dentro da “situação histórica de
reserva”, foi marcado pelo esforço do SPI em impor uma organização política centralizada e
unitária (com um único capitão para cada reserva), se valendo para isso primeiramente do
Conselho” e depois das “Eleições”; ambos os sistemas passando por fases de aceitação e oposição
dos índios Terena. Mas nos anos 1950/60, todas as reservas indígenas encontravam conflitos e lutas
pelo controle do poder e da função de capitão.
O período que se segue, entre 1950 e 1969, foi marcado por uma dupla crise do regime
tutelar: 1) uma “crise local”, motivada mais uma vez por uma política de resistência cotidiana
desencadeadas pelos Terena, que provocariam uma alteração na forma pela qual o SPI impunha a
liderança centralizada em cada comunidade-local ou reserva indígena e nos processos concretos de
escolha dos capitães; 2) uma “crise global” do indigenismo brasileiro que se sobreporia anterior,
iniciada com as denúncias (de corrupção, genocídio contra o SPI), e que culminaram com a
extinção do órgão em 1967 e a implantação da FUNAI em 1969. Notemos que, antes da crise global
do indigenismo e do regime tutelar e seu questionamento por diferentes setores da sociedade, já
haviam oposições locais, desencadeadas de forma descentralizada e não planejada, mas freqüentes,
dos índios Terena a esta relação.
Podemos indicar aqui que no processo de constituição das reservas, a tentativa
“emancipação indígena” em Bananal, é o produto das formas cotidianas de resistência
implementadas pelos Terena e que culminaram inclusive em formas de resistência aberta (como a
revolta armada). As diferentes técnicas de resistência, como recusa e boicote ao trabalho,
desobediência, fofocas usadas como contra-informação, eram utilizadas como formas de oposição
ao regime tutelar.
3.7 - Mudanças no campo e arenas de relações interétnicas (1970-1990).
A partir dos anos 1970, certas mudanças sociais de caráter geral provocariam rearranjos
importantes no campo e nas arenas das relações interétnicas do Mato Grosso do Sul, e
conseqüentemente em Cachoeirinha. No plano internacional, no final dos anos 1960, denúncias de
etnocídio contra os governos latino-americanos começaram a ser publicizadas. A principio, as
pressões vinham de setores da sociedade civil e do campo acadêmico. Desse movimento inicial
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
156
resultou a realização em janeiro de 1971, de um simpósio, da qual foi produzida a carta conhecida
como “Declaração de Barbados”. O documento aponta a necessidade do pleno reconhecimento da
capacidade política indígena e faz uma denúncia da ação dos governos e das missões religiosas
(Batalla, 1979, p.10). Esse e outros movimentos levaram a redefinição de políticas das Igrejas
Católica e Protestantes bem como de outros atores sociais. Paralelamente a esse processo, entre
1971 e 1977 o número e a variedade das organizações indígenas ou étnicas cresceu
consideravelmente na América Latina, exemplos são o Conselho Nacional de Povos Indígena dos
México e o CRIC (Conselho Regional Indígena de Cauca) da Colômbia. Nas pautas e estratégias
de luta estavam presentes questões como a recuperação de terras, reconhecimento dos direitos
indígenas, defesa da história, língua e costumes indígenas (Batalla, 1979, p.24 e Morales, 1979, p.
46).
No Brasil um processo similar se desenvolve, a partir da critica a política indigenista do
Estado brasileiro que alguns efeitos importantes como a formação do Conselho Indigenista
Missionário/CIMI (1972) e a redefinição da ação missionária católica frente aos povos indígenas,
que levaria a posterior política de realização de assembléias indígenas como forma de mobilização;
a criação de organizações não governamentais e grupos de apoio diversos (como as Comissões Pró-
Índio).
A conseqüência desses processos é que surgiria e se ampliaria também uma critica política
do regime tutelar da parte de diversos atores sociais, levando a entrada no campo e nas arenas
interétnicas de novas possibilidades de relações políticas, de novos objetos de conflito e novas
formas de discurso e ação simbólica. Nesse sentido, algumas alterações importantes se passam no
período de 20 anos entre 1970 e 1990, que condicionariam em parte o desenvolvimento do
protagonismo étnico, e a consolidação de um novo padrão no campo de relações interétnicas.
É preciso levar em consideração também o contexto brasileiro de luta contra a ditadura
militar que desembocou no processo de democratização da sociedade brasileira, a formação dos
movimentos sociais e do movimento sindical no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. A
redemocratização levaria a transformações importantes dentro do aparelho de Estado e também
entre os atores sociais. Na realidade, a construção do ativismo político indígena e o fenômeno do
protagonismo étnico se desenvolvem em relação a essa dinâmica política nos demais atores e
emergência de movimentos sociais, que se combinam também com mudanças nos aparelhos de
Estado
Essas mudanças, associadas às transformações localizadas nas sociedades indígenas
(demografia, territorialização), fortaleceriam as oposições ao regime tutelar, internas e externas as
sociedades indígenas. O processo de redemocratização da sociedade brasileira, levaria por sua vez a
mudanças institucionais nos aparelhos do Estado-Nacional. As diretrizes da política indigenista, e a
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
157
ação dos novos atores sociais (ONG`s, CIMI, Comissões, Movimentos Sociais) tomariam o debate
acerca dos direitos indígenas, especialmente os territoriais, como centrais, já que o problema da
defesa das sociedades indígenas caminhava passo a passo com a defesa dos seus territórios. Assim
os processos de territorialização em reservas e a situação histórica associada a ela, passou a ser
caracterizado por uma permanente luta pela efetividade das demarcações em curso naquele
momento (1970/80) e pela revisão das antigas demarcações (feitas pelo SPI) de acordo com as
necessidades dos índios e suas reivindicações.
Logo, além da antiga ação estatal e missionária, multiplicaram as organizações civis atuantes
juntos aos indígenas. Também outros organismos estatais, como o Ministério Público depois da
promulgação da constituição de 1988, que passou a intervir diretamente nas relações entre índios e
sociedade. O problema da demarcação de terras foi reativado ou readquiriu sua visibilidade, na
seqüência de uma política de colonialismo interno e expansão da fronteira Agrícola em direção a
Amazônia nos anos 1970.
As condições sociais e políticas modificaram-se profundamente nesse período, de maneira
que aquelas características da situação de reserva foram alteradas apesar do padrão de
territorialização de ser mantido. A política de oposição ao regime tutelar ganhou cada vez mais
força dentro e fora das sociedades indígenas, e nesse sentido nesse momento histórico (1970-1990),
configuram-se novas relações no campo e arenas interétnicas. Entram novos atores em interação
estratégica com os índios, complexificando as relações econômicas e políticas, e também os
discursos simbólicos que mediavam essas relações. Mais uma vez diferentes atores sociais e
institucionais entram em cena, possibilitando os processos de territorialização do final da década de
1990 no Mato Grosso do Sul (analisados no capitulo 2).
A atual configuração do campo e das arenas de relações de Cachoeirinha é o produto desse
processo histórico, bem como os conflitos e questões colocadas. Como vimos o campo é constituído
por um conjunto de atores inter-relacionados por conflitos, decorrentes da disputa política por
recursos de poder, materiais e simbólicos, e também por diferentes relações de cooperação e
conflito. A partir dos anos 1980 então a nova configuração do campo de atores sociais e
institucionais, levaria a entrada em cena de três novos conjuntos de atores sociais: 1) as
organizações indígenas; 2) as organizações da sociedade (no caso do Mato Grosso do Sul,
especialmente do CIMI e do CTI); 3) o Ministério Público. A figura abaixo apresenta uma
representação do campo e arenas de relações de Cachoeirinha no período 2001-2006.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
158
Figura 2- Campo e Arenas de Cachoeirinha.
Para além do conjunto de atores, que estão em relação direta com os Terena de
Cachoeirinha, existem outros atores que mantém relações indiretas com este campo social, seja
através de relações com alguns dos atores que integram o campo, seja por terem interesses ligados
aos elementos que são objetos de competição e conflito dentro dele. O campo (pelo menos entre
2001/2006, período da nossa pesquisa) era composto pelas comunidades indígenas de Miranda e
suas organizações; pelas organizações sociais, como o CIMI e o CTI (Centro de Trabalho
Indigenista), que tem uma atuação importante junto aos índios; pelo PI da FUNAI e demais
instituições estatais locais (Prefeitura, Câmara de Vereadores e etc), pelas Missões/Igrejas e pelo
conjunto da população e grupos sociais locais (produtores rurais, comerciantes).
Demais Comunidades Locais Terena e
outras Etnias Indígenas (Guarani,
Kadiweu, etc)
A.E.R/FUNAI, Assembléia Legislativa
Estadual, Governo Estadual e demais
instituições estatais
Produtores Rurais do estad
o,
comerciantes e suas organizações como
(a FAMASUL)
Ministério Público Federal
Instituições estatais
(PI/FUNAI, Prefeitura. Câmara de
Vereadores etc)
Missões/Igrejas
(Católicas e Protestantes)
Grupos Sociais Locais
(produtores rurais, comerciantes.,
trabalhadores rurais, sindicato rural e etc)
Indígenas de Miranda e suas
organizações
Organizações Sociais
(especialmente o CTI e o CIMI)
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
159
As arenas são compostas pela FUNAI (suas administrações executivas regionais),
Assembléia Legislativa e Governo Estadual e outras instituições estatais, com destaque para o
Ministério Público Federal; pelas demais comunidades indígenas Terena e de outras etnias e suas
organizações; pelo conjunto dos produtores rurais do estado e suas organizações sindicais. Estes
atores, organizações sociais, instituições estatais, grupos indígenas, possuem estrutura e formas de
ação bem diversificada, já que na verdade operam em diferentes níveis. Estes atores, não envolvidos
necessariamente nos conflitos do campo das relações interétnicas, estão relacionados a ele
indiretamente, podendo apoiar certos grupos sociais e conjuntos de ação local, ou mesmo
desenvolver uma intervenção situacional.
As comunidades-locais Terena têm cada uma sua história particular. Existe um fluxo de
interação entre as diversas comunidades, possibilitado tanto pelas relações étnicas e de parentesco,
já que muitos Terena se mudam de uma área para outra, quanto pelas atividades econômicas e
políticas da FUNAI quanto por atividades culturais. Os fóruns e organizações indígenas regionais
também possibilitam uma articulação entre as diversas etnias, incentivadas também por
organizações como CIMI. As etnias indígenas nas diversas regiões do estado, totalizando uma
população de cerca de 50.000 pessoas, constituem sempre um virtual circuito de interação,
mantendo conexões e comunicação com os conflitos locais. As Administrações Executivas da
FUNAI são a base regional de execução da política indigenista de Estado, sendo integradas na
estrutura federal do órgão.
A FAMASUL como outras, é uma organização de classe do empresariado; é a federação
regional dos sindicatos patronais, integrada na estrutura da CNA (Confederação Nacional da
Agricultura). O Conselho Indigenista Missionário-MS é uma organização eclesiástica, subordinada
ao CIMI/Nacional, que tem sua sede em Brasília, que por sua vez está ligada a Confederação
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O CTI é uma organização não governamental criada por
antropólogos e indigenistas em 1979, e que atua em diversas regiões do Brasil junto a diferentes
povos indígenas. Além destas agências, que operam fundamentalmente no campo das relações
interétnicas, existem ainda aquelas que atuam no plano do conflito fundiário em geral, como as
organizações dos trabalhadores rurais e seus sindicatos, o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA), órgão federal, a Assembléia Legislativa do estado, e através dela os
diversos partidos políticos existentes. O Ministério Público Federal se apresenta como organismo
integrante do aparelho da União.
Vemos assim que as agências que compõem a arena indicam a verticalização dos processos
políticos; a distância hierárquica interna aos organismos (por exemplo, da Administração Regional
da FUNAI para a sua Presidência em Brasília) corresponde a uma distância espaço-temporal do
local concreto do conflito, revelando assim a articulação do nível local da política com a dinâmica
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
160
geral do país. A maior parte destas agências, no entanto, mantém somente relações indiretas com os
atores componentes do campo das relações interétnicas. A noção de arena nos ajuda assim a ver a
diferenciação interna das instituições e organizações políticas, determinando as diferentes instâncias
que operam em cada caso, mas sem perder de vista a totalidade e a hierarquia na qual estas
instâncias organizativas se integram. Existe uma dinâmica campo/arenas que é fundamental para o
estudo tanto das relações interétnicas. As relações existentes dentro do campo não operam por si só,
pois os próprios atores inclusive os indígenas - são vinculados aos atores com ação trans-local que
compõem as arenas, correspondendo a escalas de articulação regional e nacional. A intervenção dos
atores que integram a arena de forma mais direta no campo depende de eventos e acontecimentos
específicos. Mas os acontecimentos do campo se desenvolvem sempre em função da dinâmica
campo-arena, sendo por isso necessário estar atento às escalas local, regional e nacional.
Dentro deste campo e arenas existem alguns fatores estruturantes das relações de
competição, cooperação e conflito entre os grupos étnicos e demais segmentos componentes do
campo: 1º) recursos materiais, como dinheiro, postos de trabalho, e financiamentos, existentes no
Mercado; 2º) posições políticas no aparelho de Estado (no legislativo e executivo) e cargos na
administração pública (secretarias e organismos públicos); 3º) recursos públicos, como orçamento
do Município, da FUNAI e investimentos do Governo Estadual; 4º) terras e recursos ambientais.
As mudanças processadas na dinâmica campo-arena, também levou no final da década de
1990 ao agravamento do conflito fundiário indígena no Mato Grosso do Sul. Anteriormente, a
negociação e os conflitos se davam prioritariamente por recursos materiais e espaços de
representação política. Mas de 1998 em diante, o movimento de ocupação de terras desencadeado
pelos Guaranis afetaria as demais comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul. No caso de
Cachoeirinha, a realização dos trabalhos do GT da FUNAI responsável pelos estudos de revisão de
terras em 1999-2001, são o marco do aprofundamento da importância de tal questão dentro daquela
comunidade indígena. Assim, as questões que perpassam as relações e conflitos inerentes ao
campo/arenas, remetem diretamente ao processo de colonização do sul de Mato Grosso e sua
especificidade. O padrão de territorialização estabelecido pelo SPI e mantido pela FUNAI, a
história indígena local, são fatores que perpassam as atuais relações e sem as quais não é possível
compreender plenamente a atual situação histórica.
As situações históricas descritas aqui permitiram a visualização do processo de
transformação do balanceamento de forças entre índios, Estado e grupos sociais. A análise da
cultura e organização social indígena é fundamental para compreender os processos verificados no
campo. Os próximos capítulos serão dedicados à descrição do funcionamento da dinâmica campo-
arena na atual situação histórica, dos grupos domésticos e sua forma de organização, assim como
suas estratégias de reprodução social e resistência contra as relações de dominação impostas pelos
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
161
Estados e outros grupos sociais, são fundamentais. Inicialmente faremos uma descrição das formas
de organização social dentro da aldeia, bem como das tradições culturais ou de conhecimento, para
depois analisar os processos políticos.
Capítulo 3 Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.
162
1543-1775
Situação do
Chaco
1776-1849
Situação de
Diretoria
O Cerco
1850-1870
Situação de
Diretoria
O Aniquilamento
1880-1904
Situação de
“Cativeiro”
1905-1990
Situação de
Reserva
1990-2006
Situação de
“Retomada”
Existência de um
território
“livre”
Redução do
território indígena
pela ocupação
colonial através
de fortes e
presídios.
Dissolução da
aliança Paiag-
Guaicuru.
Guerra do
Paraguai.
Início da
fragmentação
território indígena
e subordinação
econômica através
das fazendas.
Extinção das
aldeias e
expropriação dos
territórios
indígenas pelas
fazendas.
Criação das
Reservas
Federais e
reorganização
das aldeias em
parcelas dos
antigos
territórios.
Criação de
“acampamentos”
Indígenas em
fazendas, eclosão
de conflitos
fundiários.
Existência de um
Sistema Social
Indígena, baseado
numa organização
segmentar ou
acéfala
Mudanças Sociais
de Tipo Cíclico
ou Institucional.
Articulação e
Absorção de
unidades sociais
indígenas
(territórios e
grupos) dentro do
regime colonial
Mudanças
Estruturais
somam-se às
mudanças cíclicas
e institucionais
(os índios são
encapsulados pelo
Estado-Nacional).
Desarticulçação
relativa da aliança
Guaicuru-Gauná.
Consolidação das
Aldeias
controladas pelo
Estado.
Manutenção de
autonomia política
relativa pelos
grupos indígenas
dentro das aldeias.
Aniquilamento das
relações e
autonomia política
indígena.
Os índios perdem
o “status” de
guardiões da
fronteira em razão
do fim das
hostilidades com o
Paraguai.
Intervenção
direta do
SPI/FUNAI na
organização
política indígena
através dos
caciques e
chefes de posto.
Luta e oposição
dos índios a
estrutura
centralizada da
FUNAI no nível
local e reprodução
da sua autoridade
no nível regional e
nacional.
Relações de
Produção
Indígenas
(baseado na caça-
coleta e relações
de troca-guerra)
articulado com as
forças coloniais.
Co-existência e
articulação do
modo de produção
ameríndio com o
modo de produção
colonial-
escravista. Índios
são empregados
nos
empreendimentos
militares,
comerciais e
agrícolas.
Co-existência e
articulação das
relações de
produção
indígenas com o
modo de produção
colonial-
escravista. Índios
são empregados
nos
empreendimentos
militares,
comerciais e
agrícolas
Instauração de
regime de
repressão da força
de trabalho com a
escravidão
indígena nas
fazendas por meio
de regime de
barracão.
Formação de
reservas de mão-
de-obra barata
para
atendimento da
demanda
regional.
Inserção dos
índios na
economia rural e
urbana.
Aumento dos
fluxos migratórios
para cidade e
retorno de
migrantes de outras
gerações para as
aldeias.
Forças Coloniais
ocupando a
periferia do
Sistema Indígena
Forças Coloniais
tornam-se
centrais no
Sistema Indígena
Estabelecimento
de a uma
autoridade estatal
controlando
indiretamente os
índios através dos
chefes indígenas.
Formação do
Capital
Monopolista e da
Plantation Agro-
exportadora.
Consolidação
definitiva e
fechamento da
“fronteira” no
sul de Mato
Grosso.
Ocupação e
povoamento.
Desenvolvimento
de novas
Plantations Agro-
exportadoras
(especialmente
soja)
Hegemonia
Mbayá-Guaicurú
sobre os povos
indígenas e sobre
os europeus. Os
Terena ocupam
uma posição
intermediária no
Sistema Indígena.
Declínio da
Hegemonia
político-militar
Mbayá-Guaicurú
e disputa de
hegemonia entre
portugueses e
espanhóis.
Acirramento da
disputa pelo
hegemonia e
controle territorial
da região entres
brasileiros e
paraguaios.
Eliminação da
ameaça externa e
consolidação do
Estado brasileiro
em Mato Grosso.
Estabelecimento
de relações
fragmentadas
dos grupos
locais Terena
com o
SPI/FUNAI.
Novas alianças
políticas entre os
Terena e outras
comunidades
indígenas, além de
movimentos
sociais e ONG´S.
Quadro 31 Mudanças Sociais e Situações Históricas.
Mudanças Sociais e Situações Históricas da Socie
dade Terena.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
163
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku: organização social e
tradições de conhecimento aldeãs.
“... encontramos um Terena Evangélico vindo da aldeia União, também conhecida no local por
Aldeinha. Ia para Miranda e estava apenas passando por Moreira. Conversamos rapidamente e
ele contou que havia feito um curso de evangelho em Minas Gerais, durante três anos! Deduzi
que era mais do que um simples ´crente´, mas alguém preparado para se tornar um pastor.Para
alimentar um bom dialogo, disse-lhe que com toda sinceridade o que pensava sobre a divisão
deles entre católicos e protestantes. Que eles, os Terena, não eram responsáveis por isso, mas a
própria civilização, que os fez esquecer a religião indígena. Olhou-me um pouco perplexo como
a perguntar se eu estaria falando sério... Percebi que ele estava irremediavelmente enredado no
mundo dos crentes e religião talvez fosse um termo não muito apropriado para se referir a
entidades tais como ´koixomuneti´, Hoipihapati (espíritos), ou aos gêmeos míticos
Yurikoyuvakai e Taipuyukê. Estaria havendo entre nós um semantical gap? Muito
provavelmente ...”
Roberto Cardoso de Oliveira in Os Diários e suas Margens
Os índios Terena foram inseridos pelo trabalho dos intelectuais produtores da literatura
etnográfica e sociológica da primeira metade do século XX num esquema teórico determinado que
os colocava sempre em processo de “aculturação/assimilação”, de “perda” (identitária,
organizativa). Esta marca seria transformada pelos intercâmbios verificados entre o campo
intelectual e a política indigenista, numa linguagem social pela qual os Terena seriam concebidos e
percebidos, forma de desqualificação e estigmatização destes índios que por serem imaginados
como em “processo de aculturação e assimilação”, em certos casos passaram a ter sua própria
condição indígena negada ou rebaixada em face da imagem do “índio” da consciência romântica
76
.
Isto, de forma sub-reptícia, permanece até hoje
77
. Nunca é demais ressaltar o quanto a problemática
da afirmação (ou negação) da identidade indígena, tem efeitos políticos importantes, principalmente
no sentido da exclusão de grupos e indivíduos do acesso a direitos, sociais e territoriais
78
.
76
É o tipo de consciência que se estrutura em torno de estereótipos sobre o índio, normalmente “bom, criança grande”,
associada a uma postura paternalista, que identifica o índio em termos culturais e tecnológicos com o passado colonial,
de maneira que é este passado invocado sempre com a função de distanciar o índio do “presente sociológico”.
77
No estudo de Maria Elisa Ladeira, fica nítida a preocupação em contrapor este imaginário que cerca os índios Terena:
“Esta epígrafe se justifica pela inversão do senso comum que aponta os Terena, via de regra, como um dos grupos
indígenas mais “aculturados” do país, sendo freqüente a citação de que eles não são mais falantes da língua Terena.”
(Ladeira, 2001, p.1)
78
A FUNAI em 1978 e 1981 levantou a problemática da necessidade da “emancipação indígena”, e para isso começou a
tentar desenvolver “critérios de indianidade: O presidente da FUNAI vem manifestando há longos meses uma
inquietação persistente de saber afinal quem é e quem não é índio (...) Como a modificação anunciada permite resolver
por decreto ´quem é e quem não é´, dando a FUNAI a iniciativa (...) trata-se, isto sim, segundo tudo indica, da tentativa
de eliminar índios incômodos ...” (ver Cunha, 1986, p.109-110). Este artifício, pensado para ser empregado em larga
escala pela FUNAI, foi empregado nos anos 1920 em Bananal pela IR-5, quando se levantava a suspeição sobre a
“indianidade” de um índio Terena: “De 1917, a esta parte teem se suscitado algumas questões entre estes índios e
civilizados que os procuram explorar, mas com a intervenção amigável do encarregado do Posto, teem sido as mesmas
quasi sempre resolvidas pacificamente. O pior elemento que ali tem, e que quase sempre é o autor, de todas as queixas
que surgem, é o índio emancipado Adolpho Massi, que já por mais de uma vez tem sido posto para fora do aldeamento
pelo Sr. Inspetor, como um individuo perigoso.” (filme 379; ft 1198).
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
164
O estudo da sociedade Terena, na etnografia brasileira clássica, então, foi marcada por dois
posicionamentos: um tipo de antropologia cultural, preocupada em determinar e reconstruir a
cultura e da sociedade Terena no passado colonial (nesta categoria se encontram os estudos de
Kalervo Oberg e Altenfelder Silva); os outros estudos (de Roberto Cardoso de Oliveira) se
enquadram num tipo antropologia social, em que a ênfase é dada não mais na cultura tradicional
(apesar desta ser também abordada), mas nas relações entre a “sociedade indígena” e a “sociedade
nacional”. Assim, temos duas abordagens com direções distintas mas com um traço comum, que é o
de tratar a “cultura Terena”, tal como configurada na “situação histórica de reserva”, de maneira
extremamente periférica
79
. Estes estudos levam as marcas da teleologia da ordem, no sentido que
vêem a mudança social e cultural como um distúrbio, contornado somente pela intervenção do
Estado.
Neste sentido, mesmo quando descritas as idéias e práticas culturais (ritos, mitos e festas
indígenas) não se analisou o significado disso em termos de processo social, nem se correlacionou à
cultura e organização social com a situação histórica e o sistema social global, de maneira que não
temos a análise da ação simbólica dos Terena em relação a sua situação política e social dentro do
Estado-Nacional. Para preencher as lacunas existentes nesse plano, dedicaremos esse capítulo à
descrição e análise das tradições culturais/de conhecimento e organização social Terena, tal como
se apresentam nos dias de hoje. O principal objetivo é mostrar as condições internas de
funcionamento da sociedade Terena, e como sua organização oferece condições singulares para as
formas de “ação/reação” entre a política indígena e a política indigenista e para a dinâmica
dominação/resistência.
4.1 – Organização Social e Territorial de Cachoeirinha.
Ao chegarmos na Terra Indígena de Cachoeirinha, pela entrada principal, podemos ver as
roças que se distribuem dos dois lados da estrada de terra, que conduz até a Sede (ou Mbokooti),
um dos cinco setores ou aldeias (forma pela qual a população local os denomina) que constituem a
terra indígena de Cachoeirinha. Os demais setores são Argola (ou Argulla), Capão/Babaçu,
Morrinho (Murrinho), e Lagoinha (ou Lauana).
Os setores têm dimensão muito variada e ficam localizados em diferentes pontos da reserva.
A Sede conta, segundo os dados da FUNASA, com 1.347 habitantes e 263 casas; Babaçu com 517
79
Roberto Cardoso lembrando criticamente os seus trabalho sobre os Terena, indicou o seu procedimento teórico: “E o
conceito de cultura, minado na época pela hegemonia das teorias da aculturação, contra as quais alguns de nós nos
rebelávamos, não deixava muito espaço para uma reflexão crítica que incluísse esse mesmo sociologismo. Para mim, a
perspectiva aberta pela antropologia social, de origem britânica, a seu modo também reducionista, fornecia as bases
para escapar as armadilhas da perspectiva culturalista.(...) Vejo com muita clareza que ao abandonar o conceito de
cultura para não reproduzir o culturalismo então vigente na antropologia que se fazia no Brasil, cai em uma outra
armadilha!” (Cardoso de Oliveira, 2002, p. 123)
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
165
pessoas e 88 casas, Morrinho com 243 pessoas e 49 casas e Argola com 500 pessoas e 110 casas,
Lagoinha com 22 casas.
Dentro do setor Sede ou Mbokooti, se destacam a primeira vista a composição e o padrão de
ocupação territorial. As casas se distribuem nos diversos setores em torno do centro da aldeia, onde
ficam as edificações das instituições sociais, como igrejas e escolas. A Sede é cortada por uma
longa rua de terra, chamada “vila ou avenida principal”. Nesta avenida principal ficam localizados
a Capela de Santa Cruz, a Escola Coronel Nicolau Horta Barbosa, a Igreja Católica Nossa
Senhora do Perpetuo Socorro, a Sede do Posto Indígena da FUNAI, uma quadra de esportes e um
campo de futebol, um Armazém que serve para estocagem da produção da lavoura, o Centro
Comunitário e ao final da avenida a sede da AITECA (uma das muitas associações indígenas
existentes em Cachoeirinha, mas a única que tem uma sede específica para suas atividades).
Existem quatro ruas paralelas e quatro perpendiculares que se entrecruzam e terminam de
configurar a organização territorial local. Observando o mapa nº 4 podemos ver como o território é
sub-dividido em quadras, cada quadra sendo entrecortada pelos arruamentos da aldeia e como cada
sub-divisão territorial é composta por uma série de pequenos aglomerados de unidades residenciais,
indicado por cada “quadrado” no mapa. Estas diversas divisões compreendem conjuntos
residenciais que são chamados pelos moradores de “vilas” (Vila Serradinho, Vila Cruzeiro, Vila
América, Vila Principal, Vila Santa Cruz, Vila Rio Branco, Vila Nova Zelândia, Vila Nova
80
,
Vila Terra Vermelha, Vila União São João ou RDE -Recanto dos Evangélicos-, Vila Sol
Nascente). No mapa as vilas são representadas pelos círculos e números em vermelho. O mesmo
padrão se encontra nas demais aldeias, apesar de não existirem “vilas” no sentido que existem na
Sede. Nas aldeias Argola, Babaçu e Morrinho, as unidades residenciais se concentram num ponto (a
área central) e raramente existem unidades residenciais isoladas, quase sempre são formados
conjuntos de três, quatro ou cinco casas, e os conjuntos fixados muitos próximos uns dos outros.
80
Uma estrada, na saída de Vila Nova leva ate o Distrito Rural de Agachi.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
166
Mapa 4 - Mapa da Aldeia Cachoeirinha - 2006.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
167
Autor: Quintino Pereira Mendes, morador da Cachoeirinha.
1 Posto Indígena Cachoeirinha
2 Escola Municipal Pólo Indígena Coronel Nicolau
Horta Barbosa
3 Quadra Esportiva
4- Posto de Saúde
5- Escola Manuel José Caetano Pinto
6 Igreja Católica Nossa Senhora do Perpetuo Socorro
7 Sede da AITECA
8 Igreja Evangélica Missão Indígena Uniedas
9 - Igreja Evangélica Assembléia de Deus Madureira
10 Santa Cruz
11 Depósito de Cereais
12 Estádio Capitão Timóteo
13 Estádio Alcides Elias
14 Bomba d´água
15 Estádio Vila Nova
16 Sede da AMITECA
17 Caixa d´água
18 - Caixa D´água
19 Igreja Assembléia de Deus Emanoel
20 Igreja Luterana
21 Igreja Fonte de Água Viva
22 Açude Água Salgada
23 - Açude Água Doce
24 Estrada para o Setor/Aldeia Morrinho
25 Estrada da São João para a Agrosul
26 Estrada que vai para a roça da AITECA
27 Estrada que vai para Setor/Aldeia Argola
28 Estrada que vai para Setor/Aldeia Lagoinha
29 Centro Comunitário/OCA
30 Estrada que vai para a Cidade de Miranda
31 Pé de Mangas
32 Estrada para o Cemitério
33 Bebedor de Cavalo
Limite das Vilas
1 Vila Serradinho
2- Vila Cruzeiro
3- Vila Nova
4 Vila Santa Cruz
5 - Vila União São João
6- Vila Rio Branco
7 Vila América
8 Amigos da Avenida
9 Vila Nova Esperança
10 Vila Nova Cachoeirinha
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
168
Os Terena distinguem algumas unidades sociais e territoriais básicas, a Ovokuti (casa) ou
Vovoku “nossa casa, lugar onde moramos”, no sentido que um indivíduo se refere à casa da sua
família nuclear, e que no mapa são representados pelos pequenos círculos. “Noneovokuti, que é
mencionado por Oberg como sendo “as praças centrais”, pode ser traduzido como “frente da casa”,
sendo empregado com o sentido de “rua” pelos Terena. A outra unidade básica desta morfologia
social é Ipuxovoku, que é traduzido também por “comunidade”, conjunto de casas, ou Vipuxovoku,
lugar onde moramos (no sentido de grupo de casas), “nossa comunidade ou aldeia”. O termo
Ipuxovoku designa assim a idéia de “aldeia” ou “comunidade”, em termos gerais, e é usado um por
índio para referir-se a uma outra aldeia especifica, que não a sua; o termo Vipuxovoku designa uma
relação de pertencimento, a idéia da “nossa aldeia”, “lugar onde moramos”. Ou seja, dentro das
terras indígenas Terena existem diversas “Ipuxovoku”, e estas correspondem às “aldeias”. As
Vilas” correspondem a uma terceira unidade desta morfologia, e são muito enfatizadas pelos
Terena; elas são compostas por grupos de parentesco inter-relacionados, às vezes duas, três ou mais
famílias extensas que agregam outros indivíduos ou famílias. Não identificamos um termo
especifico para “vila” no idioma Terena/Aruak (as palavras encontradas para designá-la geralmente
tinham o sentido de pedaço”, “parte”, por exemplo Ihaxákoku mas não são conceitos
convencionais, apenas associações realizadas mediante alguma indagação). Entretanto, segundo
algumas pessoas com quem conversamos, o termo Ipuxovoku ou Vipuxovoku poderia ser aplicado
também aos espaços dos grupos domésticos ou das vilas, quer dizer, Vipuxovoku seria aplicado
para qualquer grupo de casas, no sentido de uma comunidade residencial e parentesco. Uma última
e importante unidade desta morfologia é a “roça” ou “kavané”, as áreas de plantio dos Terena e que
constituem uma parte muito importante da sua identidade.
Podemos considerar estas “vilas” como denominações locais indígenas para aquilo que a
antropologia brasileira denominou de “grupos vicinais”, considerados aqui especialmente como
produtos da ação de um líder que consegue manter junto a ele, através da influência política e
prestigio, sua parentela (ver Oliveira Filho, 1977, p. 145-146). As aldeias Terena internamente são
compostas e divididas por esses grupos vicinais, que em certos momentos, assume essa expressão
territorial de vilas ou bairros e se apresentam como importantes conjuntos de ação política,
delimitando fronteiras internas e conexões externas. Esses grupos vicinais (padrão que as demais
aldeias de Cachoeirinha como Argola, Babaçu, Morrinho e Lagoinha também seguem) operam e
regulam quase todas as dimensões da vida do grupo, e se relacionam ao que parece, sempre a linhas
de descendência de tipo segmentar, ou seja, remetem a um antepassado comum, normalmente um
naati, um cacique ou líder importante, descendência em torno da qual tais grupos vicinais
estruturam suas identidades e regras de pertencimento. As terras indígenas ou reservas são
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
169
constituídas assim por redes de “grupos vicinais” que remetem a linhas de descendência de naatis
determinados.
O território “aldeão” é composto por diversas vilas, que agrupam por sua vez diversas
ovokuti, e que correspondem aos espaços de diferentes grupos domésticos, que se estruturam em
função de suas atividades nas kavané. Estas unidades territoriais e de parentesco é que caracterizam
a dinâmica social e política da vida do grupo.
Existe também um fluxo constante de famílias que se mudam para outras aldeias ou cidades
e pessoas que vem de fora para fixar residência em Cachoeirinha. As casas são construídas com
diferentes tipos de técnica, e muitas vezes combinam padrões diversos (alvenaria, sapê). As casas
possuem extensões (normalmente pequenas coberturas com palha que são usadas para receber
visitas, fazer rodas para tomar tereré, realizar festas), pequenos banheiros que ficam localizados a
certa distancia da casa. É incomum receber as visitas na parte interna. O espaço das visitas é
externo. Dentro das casas circulam sempre os moradores e seus parentes mais próximos ou co-
residentes. É comum a parte externa das casas serem ocupadas por árvores (usualmente frutíferas),
debaixo das quais se colocam bancos de madeira. A roupa é lavada na parte externa da casa,
algumas possuem maquinas de lavar, e existe abastecimento de água encanada na área.
Dentro da área, também existem residências que usam seus espaços para determinados tipos
de atividade econômica. Existem pelo menos duas “bicicletarias” (oficinas para bicicletas) na Vila
América (uma delas pertence ao então cacique Lourenço Muchacho). Existem também alguns
"bares" e mercearias (os chamados “bolichos”) dentro da área, que reúnem jovens, adolescentes e
também adultos que os freqüentam para beber, jogar sinuca e conversar.
Além da Igreja Católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, existe a Capela de Santa
Cruz, integrantes de um complexo ritual local que mobiliza parcela expressiva da comunidade
indígena por ocasião das Festas de Santo. O Posto da FUNAI e a Escola representam, dentro do
contexto local, espaços de mobilidade social e espaços de poder, implicando formas de estatização
do território e também da identidade e cultura indígena.
Esta morfologia do espaço aldeão é um bom ponto de partida para a compreensão da
dinâmica das relações interétnicas. O Posto, a Escola e as Igrejas representam cada uma a sua
maneira, alternativas concretas de interação social-simbólica, assim como os diferentes grupos
domésticos e grupos vicinais. São estas instituições que integram o circuito concreto através do qual
diferentes tradições culturais operam. No centro da aldeia de Cachoeirinha, em torno do Posto da
FUNAI, da Escola e da Igreja Católica, residem alguns grupos domésticos. É preciso notar que a
presença destes grupos domésticos não é fortuita: muitos deles pertencem às redes familiares de
naati ou caciques, e estão fixadas em torno deste núcleo principal por um processo histórico-
político determinado.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
170
Além dos espaços dos grupos domésticos e das instituições estatais e religiosas, existem
também os espaços de uso comunitário, coletivo, como a mata, campos de futebol e centros
comunitários, e os espaços de trabalho e produção, as roças. Há diferenças na estruturação e
experiência deste espaço de produção.I sto porque a distribuição das roças pelo território de
Cachoeirinha como um todo é irregular. A Sede, por exemplo, que possui o maior numero de casas,
não tem em seus limites áreas apropriadas para lavoura. Assim, a Sede se constitui num espaço
residencial e administrativo, e seus moradores trabalham nas áreas de roça localizadas a alguns
quilômetros dali. Existem diversas áreas de roça, que tem também suas próprias denominações:
Chacrinha, Capão, Quarenta, Agrosul, AITECA e outras que não pude identificar os nomes.
Chacrinha, Agrosul e AITECA são nomes de associações, que dão nomes também as áreas de
roçado. Os moradores da Sede e também da Argola, desta maneira moram longe de suas roças,
enquanto que os moradores de Babaçu, Morrinho e Lagoinha, moram próxima delas, muitas vezes
as roças ficando ao lado das casas. Isto significa que existem diferentes tipos de territorialização dos
grupos domésticos dentro da terra indígena Cachoeirinha. Sobre isso falaremos mais à frente.
Para compreender o processo de construção do território de Cachoeirinha, é necessário
observar a forma de organização social do grupo étnico, como dimensão integrada numa rede
complexa de relações políticas, simbólicas e econômicas. A seguir, trataremos de abordar a temática
da construção social do território a partir de três diferentes ângulos: o da organização social, o da
cultura e da política-economia.
Família, Parentesco e Grupos Domésticos.
Pelos dados que levantamos (por entrevistas, questionários e genealogias), somados aqueles
advindos por meio de observação direta ou fontes informais, pudemos identificar que existem
alguns princípios que regem a territorialização dos grupos domésticos e unidades residenciais,
assim como para as redes familiares que constituem as relações comunitárias.
Segundo algumas etnografias (Cardoso de Oliveira, 1968, Ladeira, 2001) os Terena seguem
uma preferência matrilocal nos matrimônios. Pelos dados que levantamos, esta preferência é
parcialmente confirmada, tanto pelo discurso (eles comentam do costume dos homens irem residir
com os sogros) quanto pela prática dos Terena (o fato disso acontecer em boa parte dos casos).
Claro que a dinâmica territorial não se reduz ou imobiliza nesta preferência, mas ela é um dos
fatores a operar na organização social do grupo. Além desta preferência matrilocal, existe também
uma regra patrilateral de transmissão de descendência e também de direitos sobre o território e
sobre a identidade. É fácil identificar esta regra patrilateral, por exemplo, pela transmissão dos
sobrenomes: na grande maioria dos casos, os filhos herdam o sobrenome do Pai e não da mãe. Isto
reflete em parte a forma pela qual os Terena concebem a descendência e a identidade étnica; os
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
171
filhos de mãe Terena e Pai “Não Índio” (purutuye), tende- se a não reconhecê-los como índios (do
ponto de vista formal).
Conversando com Elias Antonio, morador da Vila América, um senhor de 73 anos, ele
explicou o que é “xumono” e o “sukrekeono”, dizendo:
“Era nação, era brincadeira, eu sou xumono, minha esposa é sukrekeono, é outro tipo.
Quando a gente casa o meu contaram que eu sou xumono, o vô do meu esposa contaram
que era sukrekeono. No dia do casamento é que eles falaram. Não pode casar xumono,
xumono, é o contrário. Meus filhos é xumono, meu sangue, sangue da minha esposa não
tem, nessa criança”.(Outubro/2004).
Esta frase indica de forma precisa que pela idéia de concepção e descendência Terena, o
sangue” da esposa não está presente no filho, somente o sangue” do pai. Desta maneira, a
descendência e identidade familiar é transmitida patrilateralmente, e também as características de
“personalidade e ritual”, como a identidade “xumono”, indicada por Elias. É interessante notar que
Valdecir Antonio, seu filho, que dança o bate-pau, ocupa um lugar na “coluna vermelha”, que
representa o xumono, marcando a operatividade desta distinção.
Podemos ainda adicionar outros elementos para demonstrar esta forma de construção das
relações sociais. Iremos analisar aqui a composição de uma das vilas existentes em Cachoeirinha,
para indicar estas tendências na atual situação histórica. Consideramos a atual “Vila Cruzeiro” que
compreende um conjunto de residências de famílias inter-relacionadas por parentesco, como as
famílias Pedro, Antonio, Turíbio e Júlio.
Matrilocal Patrilocal Neo-local Outros
12 (ou 40%)
5 (ou 19%)
0 13 (ou 41%)
(João Niceto Júlio e
Leda Pedro, Ademar
Turíbio, Temiz Arruda;
Rosa, Cecílio e
Bernardino, Luiz
Antonio, Simão da
Silva, Tomás Balbino,
Mariza Candelário,
Tereza Salvador,
Ielmiro).
Nas 30 casas existentes na Vila Cruzeiro, como o quadro acima revela, em pelo menos 40%
dos casos os locais de residência após o primeiro casamento foram na casa dos sogros dos homens,
o que confirma esta preferência matrilocal. Os 19% de casos de patrilocalidade, compreendem os
filhos de Lino de Oliveira Metelo (Alírio, Alinor, sendo que a esposa do primeiro é da aldeia
Bananal) e de um de seus netos Elcio de Oliveira, que moram em lotes que pertenciam ao Lino
(sendo que o sogro do Élcio de Oliveira reside na casa vizinha à sua).
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
172
Se analisarmos as diferentes famílias residentes no local, veremos que a transmissão da
descendência segue a orientação patrilinear. Iremos analisar aqui algumas genealogias para ilustrar
esta forma de transmissão da descendência e identidade familiar. Iremos considerar o caso da
família de Alírio de Oliveira Metelo, considerando as três gerações que abrange, perpassando cerca
de um século de história indígena. Seu pai é Lino de Oliveira Metelo e sua mãe é Benedita
Rodrigues; seus irmãos são Marcos de Oliveira Metelo, Adão de Oliveira Metelo, Alinor de
Oliveira Metelo, Ariano de Oliveira Metelo, Arino de Oliveira Metelo, Ari de Oliveira Metelo e sua
irmã (por parte de mãe é Agripina Júlio, filha de Benedita Rodrigues, num primeiro casamento, com
Ciriaco Júlio), seus filhos são Ginaldo de Oliveira Metelo, Evandir de Oliveira Metelo, Renaldo de
Oliveira Metelo, Wanda. de Oliveira Metelo, Regina de Oliveira Metelo, Creuza de Oliveira
Metelo, Cleide de Oliveira Metelo, Cleonice de Oliveira Metelo. Na primeira geração ascendente de
ego, o sobrenome transmitido é o “Oliveira Metelo”, que é passado para os filhos de Lino, um
grupo de siblings; a meia irmã de Alírio, Agripina Júlio, herdou o sobrenome de seu pai (Ciriaco
Júlio), a geração descendente de ego, seus filhos e também sobrinhos herdaram o sobrenome
Oliveira. Este padrão se reproduz nos demais casos; uma das sobrinhas de Alírio (Silvia Regina
Oliveira) que se casou com Élcio Albuquerque teve filhos e estes herdaram o sobrenome
Albuquerque e não Oliveira.
Os filhos de Agripina Júlio, casada com Gilberto Turíbio, herdam o sobrenome Turíbio:
Argemiro Turíbio, Ademir Turíbio, Milton Turíbio (falecido), Ademar Turíbio, Adirce Turíbio,
Maria Helenice Turíbio, Maria Darcy Turíbio. Argemiro Turíbio é casado com Marlene Lipú
Gonçalves, e seus filhos chama-se Vianey Gonçalves Lipú Turíbio; Argemiel Gonçalves Lipú
Turíbio; Narliene Gonçalves Lipú Turíbio; Jean Gonçalves Lipú Turíbio e Diego Gonçalves Lipú
Turíbio. Os pais de Marlene são Lúcio Gonçalves e Aracy Lipú, e é interessante observar que seu
avô paterno é Batista Gonçalves, um índio Kadiwéu; na transmissão dos nomes e descendência os o
dois nomes permaneceram, constituindo assim o sobrenome “Lipú Gonvalves”. O que parece estar
em jogo neste caso é o problema da transmissão da identidade Terena e da legitimidade o
pertencimento ao grupo. A incorporação dos dois sobrenomes pode ser uma maneira de manter a
linha de transmissão da identidade Terena, criando assim uma forma bilateral de transmissão da
descendência familiar. É interessante notar que segundo algumas informações que levantamos, a
família Lipú seria uma das mais antigas de Cachoeirinha
81
. Uma situação similar encontra-se na
família de Alírio de Oliveira Metelo, já que seu avô paterno João Metelo, era Laiano. O seu pai,
Lino, herdou os sobrenomes paterno (Metelo) e materno (Oliveira). Assim, a transmissão
81
Segundo Adolfo Pedro, um ancião morador de Babaçu, ex-caacique daquele setor, dentre as “oito primeiras” famílias
moradoras da Cachoeirinha (no imediato pós-guerra do Paraguai, estariam a família de Kiriú (seria antepassado da
família Lipú).
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
173
patrilateral dos sobrenomes pode se combinar com formas bilaterais em certas situações, e ao que
parece, a ascendência étnica externa (Layana, Kadiwéu) do pai é uma destas situações.
Existe também uma regra de residência, que os Terena chamam de “Lei do Índio
82
”, pela
qual um homem Terena que casa com uma mulher não índia pode trazê-la para residir na aldeia,
enquanto que uma mulher Terena, se casar com um homem não índio, tem de ir morar fora da
aldeia. É importante notar que existem casos que contrariam esta regra, e os Terena muitas vezes
falam desta “Lei do Índio” quase sempre como uma alusão ao passado. Sabemos que existem casos
de casamentos interétnicos, mas o número destes que tomamos conhecimento é reduzido em relação
ao número de residentes na área. Identificamos por exemplo, na Sede, apenas uma mulher não
indígena residente, de nome Lola, esposa de um funcionário da escola. Na Argola tomamos
conhecimento de três casamentos interétnicos, entre mulheres Terena e homens não Terena, e
conversamos com um purutuye, nascido em Minas Gerais, que sendo casado com uma índia, mora
em Cachoeirinha, e que trabalha fazendo “marreta” (pequeno comércio de produtos das lavouras e
outros gêneros na cidade e vilas próximas de aldeia e dentro dela). O fato é que o número de
matrimônios interétnicos é reduzido e o acesso à identidade e ao território indígena, termina por se
fazer de forma muito controlada pelo grupo como um todo
Além desta dimensão, de acesso ao direito de residência dentro da aldeia, esta regra
patrilateral também regula a transmissão dos direitos de exploração da terra, de uso desta para o
trabalho agrícola. A terra explorada por um homem, é transmitida e repartida entre seus filhos
homens, enquanto que as filhas mulheres não teriam este direito
83
. O grupo doméstico Terena desta
maneira se constituiria na seguinte dinâmica: o matrimônio tende a gerar duas forças contraditórias,
dentro da aldeia, nas relações internas, sobre o grupo doméstico : 1) a dispersão dos filhos homens,
que vão residir nas casas de seus sogros, passando a trabalhar com eles; 2) a concentração das filhas
e genros, que são incorporados no grupo doméstico. Desta maneira, a residência de um indivíduo
homem pode variar muito durante sua vida, enquanto mantém uma propensão a manutenção de uma
relação estável com sua roça, com sua terra de trabalho. As mulheres por sua vez, tendem a manter
uma relação mais estável com a unidade residencial, com a casa em que residiam seus pais. Assim,
os filhos de um casal Terena mantêm uma relação diferenciada com sua descendência e identidade
familiar. Estes padrões mudam para os segundos casamentos, que não podem ser desconsiderados
dentro da aldeia, e também quando consideramos as alianças matrimoniais realizadas com grupos
familiares (ver Ladeira, 2001).
82
Essa era uma norma informal imposta pelo SPI dentro das reservas indígenas.
83
O que também tem de ser relativizado, porque ao entrevistarmos o índio Lindomar Ferreira, presidente do Conselho
da Aldeia Argola, ele informou que sua mãe adquiriu o direito de ter uma terra para residência e roçado, por ter sido
esta terra de seu pai. É importante lembrar que o Posto Indígena também interfere nestes assuntos.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
174
Os grupos domésticos, como já afirmamos, se estruturam de formas diferentes dentro da
terra de Cachoeirinha; enquanto a Sede e também na Argola os grupos domésticos ocupam áreas
descontínuas em relação às roças, ficando distante às vezes um ou dois quilômetros das mesmas, no
Morrinho, na Lagoinha e no Babaçu, os grupos domésticos ocupam normalmente áreas contínuas
em relação as roças, ou ficam muito mais próximas do que nos outros casos citados.
O grupo doméstico básico pelo que observamos é composto por uma família extensa. Em
Cachoeirinha existem alguns agrupamentos de casas, às vezes duas, três ou mais, muito próximas
uma das outras. Em cada casa normalmente mora uma família nuclear, mas nas outras casas
moram os avós, pais e/ou filhos desta mesma família. Estes grupos domésticos se constituem como
uma unidade de produção/consumo e também de socialização. Isto porque o trabalho nas roças é
feito normalmente no âmbito da família nuclear, os filhos homens casados trabalham na sua própria
roça, mas normalmente em uma parcela da terra cedida ou pertencente a seu pai; eventualmente
trocam trabalho,compartilham sementes e óleo, parte da sua produção ou alimentos adquiridos por
outra maneira (caça, pesca, compra); as filhas casadas, tendem a fixar residência junto ao seu pai, e
desta maneira o genro passa a ajudar o sogro nos trabalhos da roça
84
(ver para isso, Cardoso de
Oliveira, 1968). Além desta dimensão econômica, existe também uma dimensão simbólica, que dá
ao grupo doméstico uma importante função de socialização já que atividades religiosas (sejam
xamanísticas, sejam cristãs), são realizadas também no espaço destas unidades residenciais. Sobre
esta dimensão, falaremos mais à frente.
Esta organização interna do grupo étnico, com base em regras específicas, fornece um
contexto primário e indispensável para a dinâmica das relações interétnicas. Isto porque as relações
com as instituições estatais e religiosas se dão com base nesta organização social, combinando-se e
dando novos formatos e funções concretas para estas relações. As “associações” e igrejas existentes
dentro de Cachoeirinha funcionam normalmente em terrenos de residência de grupos domésticos,
de maneira que se encontram diretamente associados a eles. Mais à frente, falaremos deste aspecto.
São estes grupos domésticos que constituem também as bases primárias de mobilização política,
que se articulam de forma extremamente complexa por processos de fissão e fusão facciosa,
intervenção de forças estatais e econômicas.
Num certo sentido, um primeiro olhar sobre a aldeia, pode deixar a impressão de que as
comunidades-locais são extremamente “homogeneizadas” pelas tradições culturais ocidentais e que
a vida da aldeia gira quase que exclusivamente em torno da divisão entre “católicos e protestantes”,
como já foi sugerido pela literatura científica. Por isso é fundamental analisar com cuidado as
tradições culturais existentes e o significado de certas práticas, inclusive para compreender o
processo político e as relações interétnicas. Para visualizarmos a forma de articulação entre as
84
O “Pagamento da Noiva”, em que se indica este padrão de relações sociais.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
175
diferentes tradições culturais e sua relação com a organização social indígena, tomaremos como
ponto de partida a descrição e análise de um dos rituais praticados dentro da aldeia.
Em todas as aldeias indígenas Terena que conhecemos, o Dia do índio é indicado como um
importante evento na vida do grupo. E na realidade acaba sendo uma situação chave, que permite
que elucidemos algumas relações sociais e padrões culturais. Permite também a compreensão da
“história-memória” que este grupo construiu, e como sua cultura e sociedade se reproduz, sob
formas de oposição e composição às instituições estatais e tutelares, tanto do ponto de vista
simbólico quanto político.
4.2 – O Dia do Índio: nação e etnia, identidades em sobreposição.
A palavra “Mohikená” é traduzida por brincadeira no idioma Terena. E quando os índios
Terena falam sobre “brincadeiras” eles agrupam numa mesma categoria, uma série de atividades,
como rituais mágico-religiosos, danças e festas. Assim, fala-se da brincadeira do “bate-pau”, do
“oheokoti” e da “dança do cavalinho”. Também os “bailes” de música regional são todos
enquadrados na idéia de ‘brincadeiras”. Ou seja, a brincadeira designa uma forma de percepção
flexível dos fatos culturais. “Brincadeira” designa o ato de brincar, uma interação que visa
compartilhar laços de solidariedade de forma lúdica. E essa metáfora da brincadeira pode nos
auxiliar a compreender como são articuladas diferentes tradições culturais, e colocados em ação e
comunicação diferentes símbolos.
Poderíamos falar que esta caracterização das atividades rituais (sagradas e profanas) remonta
a própria cosmologia do grupo, já que segundo o mito de origem, o índio “Yurikoiuvakai” tinha
como característica ser “brincalhão”, de forma que segundo uma de suas versões, ele é dividido ao
meio, para dar origem a seu irmão. Além disso, as duas metades ou nações que aparecem nas
práticas rituais Terena, “gente brava e gente mansa”, são caracterizadas por disputas rituais
marcadas pelas “brincadeiras”, pelo “chiste”.
Iremos descrever aqui as situações sociais por nós vivenciadas na aldeia indígena
Cachoeirinha no ano de 2004, durante a “semana do índio”. Normalmente a semana do índio
começa sete dias antes do dia 19 de abril, “dia do índio”, e nela se realizam rituais políticos e rituais
de caráter e mágico-religioso, além de atividades diversas, organizadas principalmente em torno do
Posto Indígena e das Escolas. Os professores e alunos indígenas se dão a execução de tarefas,
trabalhos sobre a história indígena são realizados com as turmas e a comunidade, e seus diferentes
grupos domésticos se mobilizam para realizar o Dia do Índio. Nos dias que antecedem a festa,
podemos ver nas casas as famílias preparando as vestimentas dos filhos para participarem da “dança
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
176
do bate-pau”, as mulheres preparando artesanato para a venda e os homens dedicados a preparação
do churrasco comunitário. Iremos descrever agora esta situação social.
Dia 19-04-2004, segunda-feira, às 5:30 h da manhã, uma banda composta de 3 rapazes e
quatro moças, faziam a “alvorada’, tocando marchas em tambores e se deslocando pela vila
principal de Cachoeirinha. As 6:30 h aproximadamente, um carro de som divulgava uma mensagem
gravada pela própria prefeita Beth Almeida, revezando-a com a música “parabéns para você.”A
comunidade já estava começando a se mobilizar para as atividades do dia do índio, que se
iniciariam logo depois. O dia amanheceu nublado, mas sem chuva.
Às 7h já era possível ver os dançarinos do Bate-Pau fazendo os seus preparativos (vestindo
as “fantasias”, fazendo pinturas no corpo) em baixo de uma grande árvore, localizada num lote da
família Timóteo. Os alunos já se concentravam na escola, tomando o café por volta das 7:30h. As
mulheres realizam seus preparativos no centro comunitário. Os membros do bate-pau (pude ver a
distância, pois me encontrava neste momento em frente ao posto indígena), saíram realizando
alguns passos da dança, deram uma volta pela Vila América, e depois se concentram ao final da
Vila Principal, formando duas longas filas. A banda ou “fanfarra” ficou posicionada logo à frente
deles. As mulheres então saíram em direção aos homens. Três meninas seguravam uma faixa à
frente das duas equipes do bate-pau, com a frase “A mobilização dos Povos Indígenas não é caso de
polícia, mas é caso de consciência”. As mulheres, depois de se juntarem a eles, ficaram ao final das
longas filas.
Foto 1- Dia do Índio - 2004- Concentração
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
177
Eram fundamentalmente os professores indígenas que coordenavam todo o processo.
Encontramos o professor Anésio, o professor Amarildo Julio, além de Cirilo Pinto, vice-cacique e
também coordenador da Dança do Bate-Pau. Estavam reunidos ali homens, mulheres, crianças e a
banda à frente de todos. As mulheres seguravam uma faixa da AMITECA (Associação das
Mulheres Indígenas Terena de Cachoeirinha), e cartazes em papel verde com a inscrição
“Sukrekeono” e em vermelho “Xumono”, que correspondiam cada uma as “equipes” de dança,
posicionados em filas separadas
85
.
Os índios saíram em passeata com a banda à frente tocando os tambores. Durante o trajeto
muitas brincadeiras eram realizadas, os indígenas, principalmente as mulheres ficavam trocando
provocações que resultavam sempre em gargalhadas e sorrisos de todos que estavam próximos. Os
professores ao lado das filas, auxiliavam e coordenavam. Isto se deu ao longo de todo o trajeto,
realizado através da longa avenida denominada Vila Principal, até a Escola Nicolau Horta
Barbosa
86
.
A composição chegou em frente à quadra poliesportiva, ao lado da Escola Nicolau Horta
Barbosa, local de realização da cerimônia do Dia do Índio. As faixas ficaram a frente dos grupos de
homens e mulheres. A banda ficou posicionada na lateral das equipes. Algumas faixas estavam
fixadas entre as vigas de sustentação. Uma faixa tinha a inscrição, “O Vereador Dr.Pedro Toledo
85
Neste ano é que ficou mais explicita a associação do bate-pau as categorias xumono/sukrekeono. Foi a festa com
maior participação comunitária que as de 2002/2003 e maior ação da escola.
86
Nicolau Horta Barbosa é um a das figuras históricas do SPI, assim como Candido Mariano da Silva Rondon. As
“Escolas” nas aldeias Terena quase sempre levam o nome desses personagens históricos, especialmente de militares; em
Bananal, a escola Pólo leva o nome de Rondon, e entre outras aldeiqas de outros generais e militares.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
178
Filho saúda o Dia do Índio”. Outras faixas estavam fixadas nas cercas da escola e também na grade
de proteção da quadra. Numa destas faixas estava escrito “Quem luta por uma causa não tem tempo
de pensar em si, mas por seu povo. Marçal de Souza.”
Foto 2- Comunidade participa no Dia do Índio/2004.
Passou-se a realização da abertura oficial da cerimônia do Dia do Índio (com os alunos
tocando instrumentos, bumbo, surdo e pandeiros), coordenada pelo professor Amarildo Julio.
AMARILDO JULIO: “...representando a cultura. Preservando a cultura (trecho em idioma ...)
alunos (trecho em idioma ...). (...) nós queremos dar o início as nossas festividades neste dia 19
de abril de 2004. E queríamos antes de cantar hino nacional (trecho em idioma ...) já contamos
com a presença da excelentíssima prefeita Beth Paula de Almeida. (trecho em idioma...)
Roberto, agradecemos a ele pela presença, e as demais autoridades presentes aqui de manhã.
Queremos convidar a excelentíssima prefeita, dona Beth, para hastear bandeira do município,
pode subir no palanque, também queremos convidar o chefe de posto da FUNAI senhor
Argemiro Turíbio, para hastear a bandeira da Funai e também queremos convidar o cacique
Lourenço para a bandeira do estado e também o professor Genésio (trecho em idioma ...)
bandeira nacional. (trecho em idioma ...).
A cerimônia começou com o hasteamento da bandeira e a entoação simultânea do hino
nacional. A prefeita Beth Almeida hasteou a bandeira do município; Argemiro Turíbio, o chefe do
posto, a Bandeira da FUNAI.o cacique Lourenço Muchacho a bandeira do Mato Grosso do Sul e o
professor Genésio, diretor interino da escola, a bandeira do Brasil.
Depois de realizado o hasteamento da bandeira e entoamento do hino, a professora Lurdes
conduziu os alunos na interpretação da Canção do Índio. Primeiramente cantado no idioma Terena e
em seguida cantado em português. Terminada a interpretação, teve início o que os próprios índios
chamam de “palestras das autoridades”.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
179
O professor Celinho Belisário subiu ao palanque, muito aplaudido pelos alunos e pelos os
demais presentes. Existiam alguns visitantes, e também um índio pelo menos, Genival Muchacho,
com filmadora registrando o evento. Neste momento, alguns jovens indígenas erguem uma faixa
com o seguinte texto: “Queremos educação de qualidade, não politicagem na educação”, bem em
frente ao palanque em que estavam as autoridades.
Celinho Primeiramente cumprimento a todos vocês que são meus patrícios. A excelentíssima
prefeita bom dia e as demais autoridades. Neste dia eu gostaria de fazer um pequeno preleção
a respeito do chamado vida do índio; para nós hoje o que fica é o começo de uma nova história
em maneiras muito antagônicos as questão dos direitos do índio, porque eu queria fazer essa
pequena questão principalmente nós que somos pessoas que lidam com educação indígena aqui
na nossa comunidade . Eu quero me apresentar para quem não me conhece ainda eu trabalho
aqui na escola pólo coronel Nicolau Horta Barbosa, eu sou professor de Miranda, eu sou
também acadêmico da UEMS onde eu estudo com os demais patrícios.
Eu creio que falta hoje falar da vida dos patrícios que começou a ser contada no século XV de
1500 para cá onde a partir dali nós começamos a ser em palavras mais martirizada ... nós
começamos a ser manipulado, ou seja a partir do momento que o Brasil foi invadido pelos
europeus, naquele dia perdemos a nossa vida, perdemos o nosso modo de viver, perdemos
muitos coisas, perdemos as nossas terras, perdemos os nossos costumes, perdemos muitas
tribos, porque segundo a historia na chegada dos portugueses em 1500 nós éramos entre 6
milhões a 10 milhões de indígenas se comparamos com o dia de hoje somos apenas em torno de
280, 300 mil índios. Se comparamos a quantidade que éramos em 1500 e nos dias de hoje faz
com que nós professores e alunos também , que a gente faça uma reflexão sobre a convivência
que agente tem, nessa sociedade em que agente está inserido neste século XX. A nossa
sobrevivência, a nossa existência para o futuro depende muito da nossa iniciativa, da nossa
luta, dia de amanhã depende muito de nós, nós os indígenas, os próprios moradores de cada
comunidade, que somos as pessoas que vivem do dia a dia, em cada comunidade que está
inseridos neste território nacional chamado Brasil.
Hoje a gente dá pra falar, hoje as nossas escolas já começa a caminhar, apenas tá começando
a caminhar com suas próprias pernas, que começou a ser concretizada de 1988 para cá com a
formulação da LDB de 1993, 94 e 1996 que passou de 1999 para cá com a criação das escolas
indígenas em território nacional. E em 1999 e 2000 nós professores daqui de Miranda
começamos a participar do curso oferecido pela UEMS na gestão passada só que nós não
conseguimos concluir naquela época, porque o político na época o adversário de vocês não fez
com que a gente concluísse tanto é que no inicio da gestão da prefeita em 2000, 2001, no dia 2
de janeiro, no primeiro dia de gestão da prefeita sentamos com a secretaria Maria Célia em
Miranda para gente conversar que tínhamos esse projeto na UEMS e hoje, hoje o sonho tá
concretizado porque conseguimos um convenio com a prefeitura de Miranda para continuar
esse curso que a gente tá concluindo neste momento. E esse contrapartida a gente cita que a
prefeitura exerce na questão do professor, porque a lei fala claramente que a partir do
momento que a escola indígena tão em funcionamento o professor indígena tem ter condição,
pro professor se aperfeiçoar, e hoje eu digo com toda certeza que nós já começou esse trabalho
com o executivo. Mas falta coisas, mas falta coisas ainda ser concretizado.
Porque podemos dizer na frente da excelentíssima prefeita que hoje a Cachoeirinha e os demais
setores atravessa um novo contexto para discutir sua política interna já deixou de ser
responsabilidade do cacique, hoje os professores e os demais representantes locais estão se
reunindo para a gente discutir essa questão, e hoje nós estamos passando por uma luta que
aqui é chamado de a luta política. Hoje é (...) com a secretaria essa luta que a gente tem na
questão da escola indígena. Porque nós tem preocupação o que pode acontecer amanhã. Então
esse ano eu quero falar daqui da comunidade de Cachoeirinha demais comunidades um
momento para gente parar para refletir, como é que a gente tá vivenciando hoje porque
acredito eu que a partir do momento que a gente falar, manifestar, a partir do momento que a
gente ter a nossa representatividade no município de Miranda teremos assim possibilidade de
tocarmos esse trabalho para frente, ..., hoje na comunidade de cachoeirinha nos demais setores
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
180
a gente pensa já em eleger um vereador cremos que é uma coisa assim que pode ser
concretizado, há essas dificuldades que agente atravessa, mas acredito eu que nós estaremos
trabalhando em cima isso para que a gente possa chegar a esse objetivo que diz respeito a
nosso interesse. E outro mais que eu queria expressar com questão da educação escolar
Indígena. Hoje nós temos alunos, em torno de 600 a 800 alunos, o trabalho do governo
municipal hoje é batalhar para que seja construída mais escolas, ou seja, seja construída uma
escola indígena aqui na unidade de Cachoeirinha. Porque hoje no momento a gente tem apenas
salas de aula e as demais são emprestadas. A gente não pode falar que nós temos salas de aula
porque são salas emprestadas e a gente não sabe o que pode acontecer amanhã.. E hoje aqui
na comunidade de Cachoeirinha já começamos a trabalhar com ensino médio primeiro e
segundo ano sabemos que são sala emprestada. Mas fica bem claro que a partir do momento
que a escola indígena ta aqui na cachoeirinha porque não abranger o ensino médio?. E
futuramente porque não uma universidade estadual ou talvez federal para atender os
indígenas?
São fatos assim que (...) Pensar o que pode acontecer amanhã.(...) Qual o acordo que agente
pode fazer hoje para que amanhã (...) para nossa comunidade principalmente para as graves.
São coisas assim que deixa agente motivado enfim para fazer algo (...) .E as minhas poucas
palavras seria isso, seria isso. Eu quero que Deus dê um pouco de motivação. Eu queria fazer
pequena leitura aqui nesta questão. “Caros amigos patrícios eu peço muita atenção. Porque a
historia que se aprende a partir de 1500 que diz que foi nesse ano quando na verdade antes da
chegada dos europeus no século XV aqui já existia o chamado ser indígena. E hoje
continua..Porque que continua hoje? (...)Sempre estamos lutando, batalhando.A gente continua
resistindo. Muito obrigado. (aplausos).
Depois da palestra do professor Celinho, sobe para falar o chefe de posto Argemiro Turíbio,
também aplaudido.
Argemiro - . Unati, nesta manhã de hoje 19 de abril quero saudar a prefeita municipal
professora Beth Almeida, agente está muito contente pela sua presença participando junto
conosco dessa festividade .Este dia de hoje ,meus parentes, esse dia é todo especial para nós
porque hoje essa história da nossa comunidade indígena no Brasil desde 1500. E esse povo
sofrido vem buscando conquista dos seus direitos. Em 1988 quando a comunidade indígena do
Brasil fez um movimento pela garantia dos seus direitos na constituição. Os nossos direitos não
foi conquistado por acaso mas é resultado de uma luta de uma união dos povos, dos nossos
irmãos, (trecho em idioma) os Pataxó, os Gaviões, os Xucuramaes, todas essas nações a tribo
Terena, fizemos um grande movimento lá em Brasília. Esse direito que agente tem (...) é pela
força da união do povo indígena do Brasil. Não é porque deputado o senador quis colocar no
papel para que nós pudéssemos ter esse direito, como foi falado aqui. O povo indígena lutou,
acampou, pressionou o deputado, senador que fazem as leis para que nos fossem reconhecido.
E temos essa liberdade, para que nosso direito, nossa vivência seja respeitado. Nós
enfrentamos muitas coisas ainda, e o papel da FUNAI, desde a época do SPI de 1910,
extinguiu-se o SPI e criou-se a FUNAI em 1967, a FUNAI continua acompanhando o
desenvolvimento da comunidade indígena. (trecho em idioma). Porque nós continuamos
sofrendo ainda. Talvez os Terena nós não sofremos tanto. Mas os nossos irmãos Caiuá-Guarani
que estão lutando pelos seus direitos, lutando pelas suas terras, às vezes não são
compreendidos, pelas terras que eles perderam. (trecho em idioma). Também hoje nós estamos
passando nesta fase. (trecho em idioma)
Às vezes as pessoas não tem consciência, não consegue entender a nossa vivencia, a nossa
tradição, o nosso costume (trecho em idioma) e nós estamos partindo para resgatá-los (trecho
em idioma) nós estamos caminhando, eu quero ressaltar para vocês esses dias eu fiquei muito,
muito contente e muito esperançoso, porque eu vi nos jornais que fala de um índio Terena que
está caminhando em busca de seus conhecimentos na defesa da causa indígena. Nosso irmão
Rogério da Silva que começou desde pequenininho aqui nessa terra, ele está caminhando
(trecho em idioma). Eu fico com esse orgulho tão grande de ver esse patrício hoje e amanhã
estará sendo homenageado na ALEMS em Campo Grande, por isso que eu fico muito
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
181
emocionado (trecho em idioma) É isso que nós queremos. Nós temos os professores que estão
recebendo o apoio do executivo municipal, vamos aproveitar. E o indígena no caso do Rogério,
(trecho em idioma), recebendo essa homenagem quase concluindo o doutorado. (trecho em
idioma). É isso que nós queremos. (trecho em idioma) Queremos nossa escola, queremos outra
escola porque nós somos deficientes, nós precisamos disso. (aplausos) Precisamos porque nós
temos que aprender cada vez mais. Porque nós temos que caminhar. Precisamos de médico,
precisamos de enfermeira, hoje nós não temos. Temos vários órgãos que os índios precisa
avançar, precisa ocupar os espaço. Só falta as oportunidades (trecho em idioma). Também
quero homenagear, falar em nome do Rogério, está aqui a copia do noticiário que está saindo
em nosso estado. Um dia ele será alguém na comunidade, e a comunidade estará de braços
abertos para recebê-lo na defesa de nossos direitos. (trecho em idioma). Este dia Terena,
(trecho em idioma) com apoio de alguns aliado dentro do executivo que estão preocupado em
nos ajudar. No caso da prefeita Beth está preocupada com a gente. Está nos permitindo ocupar
os espaços. Ela quer ver o crescimento da comunidade. (trecho em idioma). Por outro lado
ainda fica um pouco triste, porque a gente ainda assiste cenas (trecho em idioma), também
quero lembrar (trecho em idioma) o que aconteceu com nosso irmão lá em Brasília, (trecho em
idioma), o Galdino Pataxó, queimado. Como se fosse um animal. Como fizeram com Marco
Veron, assassinado, como fizeram com Marçal de Souza, hoje tá na historia do povo Guarani.
Como fizeram também com Chicão Pataxó quando ele estava lutando, gritando em nome de seu
povo. E hoje nós temos essa fita gravada pela sua luta, parece que ele já adivinhava pela sua
luta, pela sua batalha, que um dia ele teria que partir pela sua declaração, avisando seu povo.
Nós estamos caminhando, a liderança caminha junto com os professores, junto com as nossas
crianças. Nós temos um grande sonho ainda. (trecho em idioma).Caminha conosco porque nós
queremos consciência, queremos respeito em nossa comunidade. E nós temos que voltar eleger
nosso representante esse ano para ocupar a câmara de vereadores porque nós já tivemos e nós
perdemos, temos que conquistar novamente (trecho em idioma), vamos conquistar novamente.
(trecho em idioma). Mais uma vez quero agradecer a colaboração da prefeita Beth Almeida,(...)
que a gente agradece como parceiro da gente, comunidade, ta sempre consciente daquilo que
ela tá podendo fazer em nossa comunidade . Muito obrigado. (Aplausos e fogos).
Em seguida, sob ao palanque para discursar, o cacique Lourenço Muchacho. Muito
aplaudido antes de começar a falar. Ele toma a palavra, sempre usando da expressão gestual,
movimentando as mãos no ar. Durante sua fala, foi aplaudido em vários momentos.
Lourenço (trecho em idioma). Bom primeiro lugar eu quero agradecer a excelentíssima
Prefeita por sua presença na comunidade, o Paulinho Silvio, o Henrique, os demais presentes,
o Roberto, muito obrigado por visitar nossa comunidade. Primeiro lugar eu queria
complementar o que chefe de posto acabou de citar. (trecho em idioma). Mas a esperança que
nós vamos ter que ter, a exigência que nós temos que ter, para buscar o que é nosso, o que é
direito, nós temos direito como povo indígena. Hoje eu fico feliz por saber que hoje alguns de
nossos parentes hoje estão trazendo faixa mobilizando que ele disse “nós queremos educação
de qualidade”, nós queremos educação de qualidade para os nossos filhos e nosso futuro.
Buscar também o que é direito, porque hoje temos, no mundo de globalização que nós estamos
vivendo, é um grande desafio, é uma ameaça para esse povo sofrido, e eu enquanto cacique
daqui da aldeia Cachoeirinha, eu não vou encurvar para ninguém não, porque eu vou buscar o
direito do meu povo, esse eu vou buscar (aplausos) nós vamos buscar, pela educação, pela
política, com grande respeito, com grande luta, porque nós temos grande preocupação, como
representante desse povo.
Eu quero repassar para os senhores o que um advogado, um grande advogado do Ministério
em Brasília ele disse para mim porque eu estava fazendo discursos contra senadores, contra
deputado federal, contra ministro da justiça. Ele disse cacique ‘você tem que pensar três coisas
cacique, pense na sua família, pensa na sua comunidade e pense em você mesmo’.(...) Se você
se tiver a oportunidade você pensa em si. Vocês sabem o que significam essa palavra? É uma
ameaça, ameaça de um grande estudioso. Me ameaça com essa palavra. Mas eu não tenho
medo.Porque nós vamos derramar esse sangue em busca de nossos direitos.(aplausos) Nós não
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
182
queremos tirar nada de ninguém. Só queremos que nossos direitos seja devolvido para nós.
Povo de aldeia Cachoeirinha, senhores visitantes. Eu vou fazer um desabafo novamente.
Porque eu não seguro, porque o que meu povo sofre, o problema do meu povo também é meu
problema, a dificuldade do meu povo, é a minha maior dificuldade, se meu povo morrer eu
tenho que morrer por ele também. Porque hoje esse povo, eu gosto desse povo, eu amo esse
povo por isso que hoje e daqui para frente (trecho em idioma). Hoje me sinto nessa
oportunidade, nessa grande mobilização que nós fizemos (trecho em idioma) um diretor da
FUNASA dizia, foi negociar com grandes advogados, ele disse no jornal. Eu cheguei na frente
da FUNASA eu disse para funcionário acessa para mim Internet, eu quero resposta. Na mesma
hora saiu. Foi escrito ‘Um Diretor da FUNASA negocia com Polícia Federal para que povo
indígena que está acampado no prédio da FUNASA que seja retirado imediatamente’. Ele disse
isso, veja bem como esse povo nos massacra, veja vem como esta entidade nos massacra.
Eu disse para ele quando chegou o momento da gente discutir, eu disse senhor diretor, doutor
Ricardo Rocha, a mobilização desse povo não é caso de policia é caso de consciência, senhor
doutor (aplausos e gritos do público), é caso de consciência, eu falei para ele, senhor doutor
Ricardo Rocha o senhor tem que lembrar, tem que respeitar por que todo o pão que está na
sua mesa que o senhor tá comendo é em nome desse povo indígena. Porque todas as entidades,
todos os órgãos é feito para o branco porque o índios não tem vez , (...) Nós temos que buscar,
temos que ter espaço para poder construir algo para esse povo. Eu sempre cobrei isso. (trecho
em idioma), ALEMS em Campo Grande quando nós fizemos reunião. E por outro lado (trecho
em idioma) Senhores guerreiros, vocês têm coragem, senhoras guerreira vocês têm coragem.
(trecho em idioma) Eu sei que vocês vão lutar por mim. Porque nós estamos ameaçado, com
líder ameaçado. Porque?Já recebi várias ligações anônimas no meu celular, quatro ligação
anônima, uma ameaça, ameaça de quem? Dos políticos porque a gente está brigando,
buscando o que é nosso, a gente não quer entrar com a violência, a gente tem respeito, e ao
mesmo tempo nós temos essa coragem de buscar o que é nosso. 4 ligações anônimas. Ele disse
o seguinte, primeiro, você tem que tomar cuidado. Toma cuidado. (trecho em idioma) Se
acontecer alguma coisa eu creio que vocês vão levantar e vocês vão a luta. (trecho em idioma),
seja forte, seja corajoso. Queremos educação de qualidade e não politicagem na educação.
Quem escreveu isso foi esses guerreiros, não é palavra de cacique. Mas é palavra é pedido de
um povo. (trecho em idioma) Quero agradecer os professores mais uma vez, quero agradecer
de todo o coração de a gente buscar essa parceria juntamente com o presidente da associação
AITECA, com a presidente da associação AMITECA, hoje nós estamos unidos. (trecho em
idioma). (Aplausos).
Depois a palavra foi passada para a prefeita Beth Almeida.
Beth Almeida Excelentíssimo cacique, Excelentíssimo chefe de posto dessa área, demais
autoridades presentes, lideranças, associação das mulheres indígenas, muito bom dia, senhores
guerreiros, bom dia, crianças. Meus amigos, minhas amigas, primeiramente eu quero
transmitir um recado antes que eu me esqueça no decorrer das minhas palavras. Estava
entrando na área e recebi um telefonema do nosso governador que não pode se fazer
presente.mas pedindo que eu enviasse um abraço ao cacique e as demais lideranças de todas
áreas indígenas porque hoje ele está indo para Corumbá para fazer a assinatura do início dos
trabalhos do trem do pantanal que beneficia muito a nossa área. Mas recebam do nosso
governador o abraço carinhoso que ele envia a todos vocês.
Primeiramente eu tenho de dar parabéns a todos, não pelo dia do índio, não por vocês estarem
comemorando o Dia do Índio, mas por vocês estarem comemorando a união, a organização e
as muitas vitórias conquistadas por vocês. Eu fiquei orgulhosa quando cheguei aqui e vi essa
faixa “A mobilização dos povos indígenas não e caso de policia, mas sim caso de consciência”.
Como disse o nosso cacique, conversando lá no gabinete, porque no dia do índio eu não espero
que vocês venham até mim, nesses 4 anos eu chamei as lideranças para nós decidirmos como
nós íamos fazer, e nesse dia ele me contava a historia que ele passou aqui dizendo desse caso
de policia, e que ele muito inteligentemente colocou que o povo indígena não era caso de
policia, mas caso de consciência. Falei cacique, isto tem que estar registrado numa faixa, por
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
183
que isso o povo indígena não pode perder de vista. Porque as lutas de vocês, é um caso
consciência, de união de vocês e consciência do branco.
A outra faixa ‘Queremos educação de qualidade não politicagem na educação’.(aplausos) Isso
daí e de sentir muito orgulhosa porque eu vi que o trabalho desenvolvido nestes três anos
resultou nesta consciência. Porque hoje vocês escolhem os diretores indígenas. Hoje a
APROTEM faz a lotação dos professores. E Hoje falta às salas de aula, é porque está no
orçamento de 2004 uma sala, uma escola com oito salas de aula, para que vocês tenham um
atendimento digno da forma que vocês merecem. Lembrem bem desta faixa, pensem nela. Para
que realmente a politicagem nunca mais volte para educação como era antigamente Porque
hoje vocês têm liberdade, hoje vocês tem o direito na educação, hoje vocês escolhem os seus
dirigentes, vocês escolhem os livros didáticos, vocês escolhem a matéria que vocês vão
lecionar. Agora a escola sim, a escola é uma coisa que está realmente incomodando a todos
nós, mas já está colocado no orçamento e vocês terão essa escola digna que vocês querem. Mas
não deixem mesmo nunca mais a politicagem voltar para a educação, da mesma forma que o
cacique Lourenço não tem deixado ingerir aqui na área, ele não tem deixado de lutar pelas
causas indígenas. Juntamente com o Argemiro o chefe de posto. Queremos colocar
representantes na câmara municipal. Tenham consciência que vocês precisam de um
representante lá no legislativo. Quero deixar aqui um grande abraço, deixar meus parabéns a
cada um de vocês. (...) Que Deus abençoe a todos vocês.
Depois de sua fala encerraram-se as palestras, mas foi concedido um tempo ao professor
Genésio Farias falar em nome da Escola:
Genésio Farias E m nome da escola como diretor interino eu quero agradecer a
excelentíssima prefeita Beth Almeida as demais autoridades que estão aqui conosco neste
momento.. A nossa ... é a Escola indígena que nós temos hoje em 2002, está caminhando, a
escola tem um ensino e diferenciado, de qualidade, intercultural. nós tamos vendo o resultado
da nossa escola, fruto da organização (...) é um caminhar, nós tamos caminhando para
organizar, tem muitas coisas... grandes avanços já foram conseguidos disso. O qual tem agora
a associação de pais e mestres eu queria falar também um pouco desta associação, que o
objetivo da associação de pais e mestres é ajudar o processo de aprendizado da escola Pólo.
Este ano vai fazer um grande trabalho, o trabalho dessa associação de Pais e Mestres (...)
evento do qual coordenador Amarildo Julio, a dona Lola, o Cirilo, que foi formado para
coordenar este evento. Então nós podemos dizer que esta organização tem conseguido o
objetivo da escola indígena, porque a escola indígena é gestão democrática, ela é participativa
aonde a escola é aberta para a comunidade e nesta abertura nós estamos conseguindo nesse
ano, com a liderança, com os caciques, com os pais, os valores da comunidade, valores
culturais. Porque isto aconteceu? Devido esta organização da escola. É essa a escola
indígena.
Eu creio que daqui para frente nós vamos caminhar. Porque a comunidade agora ensina as
crianças, eles estão aprendendo, vendo estas manifestação...As mulheres, as meninas, os
homens. Então esta é a escola indígena. Queria agradecer muita pela participação dos
guerreiros, das mulheres, das crianças. Esta é nossa escola, esta é a escola indígena,
administrada pela própria comunidade. É uma escola que vai caminhar, daqui para frente,
junto com as lideranças. Aonde vai ser construído o projeto de futuro dessa comunidade, Nós
ouvimos na fala das lideranças, da prefeita, isso é o projeto nosso de futuro. Nós vamos
conseguir, nós vamos caminhar. Que Deus abençoe a todos.
Em seguida, por volta das 9h da manhã, teve início a apresentação cultural. Depois
AMARILDO JULIO convida a todos para formar um círculo, o que é feito. Ao se iniciar as danças
indígenas, havia um grande círculo de pessoas, e os participantes do evento estavam em cerca de
400 ou 500 pessoas. O professor Anésio Pinto, neste momento, começa a animar a festa, com
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
184
microfone na mão, fica fazendo brincadeiras com o público. Uma de suas firmações foi nós
estamos resgatando nossa cultura
87
”.
Foto 3- Siputrena -Dança das Mulheres.
Inicia-se então a dança das mulheres, chamada Siputrena. Duas filas são formadas, uma
composta pelas mulheres com vestimentas verdes (Sukrekeono) e outra formada pelas que vestiam
as vestimentas vermelhas (xumono), uma de frente para outra. O público, pelo menos grande parte
dele estava de posse de bandeirinhas verdes e vermelhas, compondo duas ‘torcidas” diferentes.
Estas bandeirinhas eram feitas com papel crepom e material escolar. Durante a execução dos
passos, as mulheres trocavam muitas provocações em seu idioma, o que fazia com que o público
risse bastante. Por volta das 9:30 h o céu ficou nublado e começou a chover. Mesmo assim
ninguém foi embora e a festa não foi interrompida.
A Siputrena seguiu os seguintes passos: as mulheres agitavam os lenços, na parte diagonal
inferior do lado direito, e depois da diagonal inferior esquerda, avançando primeiramente em
conjunto a fila de dançarinas, e depois recuando, fazendo o mesmo movimento. No meio da dança
os professores procuravam explicar o significado do que estava sendo feito. Falaram que Xumono é
gente mansa e calma e Sukrekeono é gente brava
88
. Ao final da dança Siputrena, a chuva se
intensifica e o público e os dançarinos se concentram todos na quadra de futebol. Muitos fogos de
artifício eram detonados a todo o momento.
Foto 4- Grupo Xumono.
87
Anésio disse “Mostrar para nosso torcida(Xumonó), vamos torcer, não é divisão, é apenas o resgate da nossa
identidade”.
88
Éexatamente o significado inverso do que foi registrado na literatura. Esta inversão foi questionada por Elias Antonio,
falando que os professores e responsáveis da escola fizeram errado a festa.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
185
Começa então a dança do bate-pau. Reproduz-se a mesma divisão entre xumono e
sukrekeono. Os “guerreiros” da dança, assim como as “guerreiras” tinham seu corpo pintado. Os
instrumentos musicais, a flauta e o tambor, eram tocados pelo mais velhos, como Elias Antonio. Os
guerreiros usavam pintura preta feita com Genipabu, e pintura colorida de verde, vermelho e às
vezes outras cores, com tinta escolar. Os homens tinham às vezes frases escritas em seu chapéu ou
mesmo pintadas no corpo, tais como “Deus é Fiel”, “100 % Terena”. Continuam as brincadeiras de
provocação na quadra. As mulheres que tinham acabado de dançar ficavam dando voltas em torno
da quadra, brincando e caçoando uma das outras. Simulam brigas.Os professores não indígenas do
local também tomam parte na brincadeira.
Depois de realizado os primeiros passos da dança do bate-pau, ela é interrompida para o
batismo, que o Cirilo Pinto diz ser “a introdução aos valores do homem”. O batismo consiste na
formação de duas filas, com os jovens a serem batizados posicionados a frente, que ouvem os
dizeres do cacique da dança e do organizador, e depois os outros guerreiros o “batizam” com
pipoca, doces e balas, despejadas sobre ele. O sukrekeono têm mais um guerreiro, diz alguém. O
público se agita, grita, assobia e aplaude muito e a dança é retomada.
Foto 5- Dança do Bate-Pau.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
186
Os bastões do bate-pau são trocados por pequenas réplicas de arco e flecha. Duas filas
paralelas se formam, caminham para frente e para trás, depois começam a “atirar” as flechas, que
amarradas com barbante quando batem no arco fazem um estalo, que compõe o conjunto da
coreografia. Fazem este movimento repetidas vezes, caminhando para frente atirando a flecha na
diagonal inferior direita e depois na diagonal inferior esquerda e para trás, repetindo esta seqüência.
Depois as filas foram formadas em círculo, caminhando em sentido contrário, e os guerreiros
provocavam as torcidas rivais quando passavam em frente delas. O público ovaciona seus
respectivos “times”. Algumas mulheres tomam o microfone para provocar as rivais (jovens e
senhoras). Chovia muito intensamente e ventava também, mas o grande publico se mantinha
concentrado na quadra poliesportiva que parecia pequena dada a quantidade de pessoas que
abrigava.
A dança do bate-pau entra em outro passo. Os bastões são retomados pelos guerreiros. Duas
filas, agora uma de frente para outra, os bastões são cruzados um por cima do outro, cada um
segurando em uma extremidade, e começam a bater os bastões, movendo-se em passos laterais
curtos para direita e para a esquerda. Depois os bastões são cruzados em cima, formado um tipo de
corredor e, em duplas, os guerreiros passam por dentro dele. Ao terminar este passo, passa-se a fase
final da dança, quando os participantes formam um círculo, os bastões são cruzados, e um guerreiro
é erguido, e este solta um grito. O primeiro guerreiro erguido, um jovem dos sukrekeono, tinha na
mão uma bandeira do Brasil. Descruzam os bastões, formam novamente as filas e voltam abater os
bastões. Vão depois para o lado contrário da quadra e levantam um jovem xumono, que portava um
lenço vermelho na mão. Cirilo, coordenador da dança, fala enquanto a dança é retomada.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
187
Novamente formam um círculo e cruzam os bastões, desta vez levantam uma jovem mulher,
Darlene, com um lenço verde na mão. Desfazem o círculo e voltam ao passo de bater os bastões.
Vão para o lado contrário, forma o círculo e levantam desta outra jovem, Marta Tânia, filha do vice-
cacique Cirilo, com lenço vermelho, desfazem o círculo e voltam ao bate-pau. Em seguida, os
homens e mulheres param e ouvem Cirilo falar. As brincadeiras continuam, com provocações de
lado a lado. Homens e mulheres então se misturam e dançam juntos, os homens pegando os lenços
das mulheres e acenam com eles em.
Neste momento o microfone servia as lideranças, que faziam comentários sobre a festa, a
importância da cultura e as “brincadeiras”. O público havia se dividido em dois blocos, xumono e
sukrekeono, e trocavam provocações e brincadeiras. Algumas senhoras bem idosas pegam o
microfone e começam a cantar com voz rouca e trêmula, músicas no idioma Terena, que alguns
afirmaram ser “hinos” do xumono e sukrekeono
89
. Pelo menos três senhoras falaram e cantaram a
frente, muito aplaudidas pelos indígenas.
Ao final, o público se concentrou para ver a votação de quem havia ganhado a disputa da
festa. O chefe do posto, Argemiro, Genésio, Cirilo e outros coordenavam esta parte final. Até o
antropólogo foi intimado a votar, e o deu o voto de desempate. Neste momento o sukrekeono
comemorou bastante. Às 11:20, aproximadamente, a festa se encerrou. Ao meio dia o churrasco foi
servido, no centro comunitário, longas filas se formaram, algumas pessoas comiam ali mesmo no
local, outras levavam a carne para casa. As 14h um baile começou na quadra de esportes, reunindo
poucas pessoas. Apenas alguns jovens e crianças dançavam ou observavam. A chuva continuou
intermitentemente durante todo o dia. No campo, atrás da Igreja de Nossa Senhora do Perpetuo
Socorro, eram realizados os torneios de futebol do dia do índio, o que durou até o fim do dia.
Durante a noite, o baile continuava. Assim se encerra o dia e a semana do índio.
4.3 – Eventos, Significados: produção e reprodução de uma mito-história.
Iremos tratar aqui o Dia do Índio como uma situação social, como um conjunto de ritos que
encenam mitos, que servem como espaço para a enunciação de discursos políticos de lideranças
indígenas e grupos políticos regionais. Neste sentido, cabe fazer aqui algumas considerações com
relação à definição de rito e mito por nós, adotada. Podemos dizer que, fundamentalmente
consideramos a conversibilidade do rito e do mito, que “O mito, (...) é a contrapartida do ritual;
mito implica ritual, ritual implica mito, ambos são um só e a mesma coisa. (...) o mito encarado
como uma afirmação em palavras diz a mesma coisa que o ritual encarado como uma afirmação
em ação. Indagar sobre o conteúdo da crença que não está contido no conteúdo do ritual é um
89
Não conseguimos explorar mais detalhadamente tal informação, nem vimos na litaratura menção a existência de tais
cantos, sendo assim uma lacuna a preencher.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
188
contra-senso”. (Leach, 1995, p. 76). O mito é uma tradução do significado do rito para o discurso, e
o rito é a transposição para o plano da ação, do significado contido no mito. Desta maneira, mito e
rito pela articulação de signos/símbolos, tem uma mesma função expressiva/comunicativa.
Entendemos que o conjunto rito (ação simbólico-expressiva) e mito (tipo de narrativa/discurso
sobre o passado), possui ainda outras dimensões, e especialmente “O ritual serve para expressar o
status do individuo enquanto pessoa social no sistema estrutural em que ele se encontra
temporariamente. (Leach, op.cit, p.74) e “Em suma, portanto, minha opinião aqui é que a ação
ritual e crença devem ser entendidas como formas de afirmação simbólica sobre a ordem
social.(...) o ritual torna explicita a estrutura social”. (Leach, op.cit, p.77-78).
Assim, analisaremos o Dia do Índio, enquanto um ritual porque sua finalidade principal é de
caráter simbólico-cultural. Mas através desta ação simbólico-cultural, expressa-se o status dos
grupos sociais e muitas relações políticas entre estes as instituições de Estado. Poderíamos dizer
que, o ritual expressa a estrutura da “situação histórica”, o status dos grupos dentro desta, e ainda,
as formas pelas quais os grupos sociais atribuem significado a sua experiência, passada, presente e
futura
90
.
Uma história do Dia do Índio se faz necessária. É uma data oficial do Estado Brasileiro,
instituído por decreto presidencial no ano de 1943:
“Decreto-Lei Nº 5.540 de 02 de Junho, Considera Dia do Índio a data de 19 de Abril. O
Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o artigo 180 da Constituição, e
tendo em vista que o Primeiro Congresso Indigenista Interamericano reunido no México, em
1940, propôs aos países da América a adoção da data de 19 de abril para o Dia do Índio,
decreta:Art. 1º É considerado Dia do Índio a data 19 de abril“ (CNPI, 1946, p.1).
O decreto foi assinado por Getúlio Vargas, Apolônio Sales e Osvaldo Aranha. A proposição
desta data como Dia do Índio foi realizada em um encontro indigenista inter-americano. Poderíamos
dizer que o Dia do Índio surgiu de um processo de internacionalização das ideologias e atividades
indigenistas no Sistema Mundial. A data de 19 de abril é, coincidentemente, no momento em que é
criada o “Dia do Exército” e também o Dia do Aniversário de Getúlio Vargas. Nos anos 1940, a
realização de grandes rituais estatais, estava na ordem do dia, como parte de um processo de
imposição/construção de uma identidade nacional (ver Gomes, 1994)
91
.
O ritual do Dia do Índio não foi inventado pelos próprios indígenas; ele procede de campos
sociais (nacionais e internacionais) outrora inacessíveis a eles, mas nos quais se tomavam decisões
que interferiam diretamente nas realidades das aldeias. O Dia do Índio foi utilizado pelo Estado-
Nacional, como ferramenta localizada da sua auto-construção. O projeto de “nacionalização do
90
Podemos ainda lembrar que Leach desvincula o sentido do conjunto mito/rito do elemento mágico-religioso, de
maneira que o ritual expressa relações sociológicas (Leach, op.cit, p. 76). .
91
O livro “A Invenção do Trabalhismo” , especialmente o capitulo V, “O Redescobrimento do Brasil”, indica de
maneira clara os processos ideológico-culturais na construção do Estado e o papel dos grandes rituais estatais.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
189
índio” (tal como concebido dentro do SPI e analisada no capítulo 3) se utilizou esta data para
implementar um ritual que encenasse o mito de origem da nação, de maneira que o indigenismo foi
também parte da política global nacional-desenvolvimentista utilizada pelo Estado Novo, para
construir uma identidade nacional. Em que consiste o ritual do Dia do Índio, do ponto de vista da
ação simbólica, ou melhor, político-simbólica, dos agentes representantes do Estado, através do
SPI/FUNAI? Para compreender o conteúdo de tal rito, é preciso descrever e analisar sua estrutura.
Poderíamos falar que o Dia do Índio se divide em duas partes inter-dependentes, em que
diversos símbolos/signos são acionados dentro de fluxos de narrativa/discurso. A primeira parte:
consiste na reunião de índios em torno da área central da aldeia (ou seja, próximo ao Posto
Indígena) e na apresentação dos indivíduos/representantes dos poderes do Estado-Nacional: o Chefe
de Posto, o diretor da Escola, o Cacique e eventualmente outras autoridades. Estas ficam
posicionadas num pequeno “palanque”, pouco acima do solo. A própria categoria “autoridades”,
usada pelos índios para se referir aos palestrantes (os que tomam a palavra, que tem o poder do
discurso neste ritual), designa com bastante propriedade o status diferencial destes. Neste momento,
os representantes do Posto, da Escola e o Cacique, cumprem os procedimentos básicos da
ritualização da identidade nacional: fazem o hasteamento das bandeiras (das unidades
administrativas estatais: município, estado e nação) e entoam o hino nacional; além disso, entoam
também a “canção do índio”, que enuncia um tipo de discurso que segue os parâmetros de um tipo
de consciência que poderíamos chamar de romântico-nacionalista
92
. A segunda parte: é feita a
abertura do discurso para os índios (sejam estes estudantes ou outros), que adicionam seu discurso a
este contexto; depois, os índios acrescentam o seu próprio ritual, através das danças ou da
manifestação de sua “cultura” (categoria hoje utilizada pelos próprios índios para designar os ritos
como a dança do bate-pau). Então, entram em ação os índios, que através do seu rito, constroem um
circuito de discurso que funciona de forma paralela ao discurso estatal, se entrecruzando com ele,
entretanto, em diversos aspectos, como poderemos ver adiante.
Logo, no centro do processo de ritualização do Dia do Índio, está a expressão do status dos
representantes dos poderes do Estado-Nacional e a apologia da identidade nacional, de outro, está a
enunciação do mito de origem deste mesmo Estado, que através do discurso, legitima e corrobora
aquele status. A função pedagógica e reguladora da tutela, e de seus agentes locais concretos, fica
manifesta. Agrega-se a estes elementos, um espaço que é previsto para a intervenção indígena,
através da expressão de sua “cultura”, que é assim “valorizada” dentro do ritual, mostrando o status
do “índio”, enquanto conceito genérico aplicado a realidade local Terena; a manifestação da
“cultura” seria assim o espaço específico reservado para os índios dentro deste ritual, como forma
92
Usamos aqui no sentido da fusão da imagem do “índio como bom selvagem” pelo discurso nacionalista, que passa a
invocar o índio como brasileiro pretérito.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
190
de indicar a “sobrevivência” da “tradição indígena”, específica e distinta da própria cultura
nacional, com a qual “contribui”.
Faremos aqui a análise da “Canção do Índio”, tratada aqui enquanto uma versão do mito de
origem do Estado-Nacional. Esta se insere dentro de um conjunto de símbolos/signos que são o
resultado do processo de produção simbólico-cultural. Vejamos a estrutura deste mito:
Canção do Índio
Versão Cantada em 2004
Nós somos os índios bravos
De tribos velhas
De nossa terra
Quando for para defendê-la
Com nosso ardor que o peito encerra
Lutaremos destemidos
A liberdade tão retumbante
Do nosso Brasil amado
Idolatrado, por ti gigante
O índio luta sem temor
Na paz trabalha com amor
Lembrando a nossa historia
Guardaremos a memória
Somos índios de valor
E o berço onde eu nasci
Pois dizemos com orgulho
Somos índios do Brasil
E neste posto grande gentil
No coração está o Brasil
Bravos índios Brasileiros
Grandes guerreiros honraram a história
Cunhambebe Potiguara
Araribóia na Guanabara
Para não sermos escravos,
heróis batavos
Venceu Potí,
Com sua gente valorosa
Lutando orgulhosa
Brasil por ti!”
Podemos perceber claramente aqui uma formulação discursiva baseada num conjunto de
idéias/signos, que se articulam: a primeira é idéia é a da valorização da categoria Índio”, e
conseqüentemente, dos grupos sociais assim categorizados. O Índio, enquanto conceito/signo
aparece sob forma positivada: a segunda idéia, meio pelo qual se justifica tal valorização, é a idéia
de “imemorialidade” dos índios (“tribus velhas de nossa terra”, o acionar constante da “história”); a
terceira idéia é da associação índio/nação, derivada das primeiras. Desta maneira surge a expressão
“índio brasileiro”, aquele valorizado pela nação, e que valoriza e luta por esta mesma nação (“com
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
191
sua gente valorosa, lutando orgulhosa Brasil por ti!”). Desta maneira, existe uma associação
fundamental, entre índio e nação. Esta foi uma associação criada deliberadamente em diversos
momentos do debate acerca da identidade nacional, inclusive dentro do SPI, o discurso que
colocava o índio como“cidadão da nação” anterior à mesma. A quarta idéia resume assim o “valor”
do índio brasileiro. O índio brasileiro é o “guardião da nação” (“quando for para defendê-la”), e é
nesta condição que é resumido o seu papel frente à nação. O valor do índio para a nação, não deixa
de ser um valor-de-uso, no sentido com que a economia política clássica empregou o termo. A idéia
a que é associada o conceito/signo “índio brasileiro” é a do soldado-aliado (em tempos de guerra,
tanto que os índios citados são índios que lutaram com os portugueses como Araribóia). De certa
maneira, o que este mito irá narrar, de forma resumida e unilateral, é a história das relações
interétnicas, ou a forma como o Estado concebeu e instrumentalizou, para sua política, os diferentes
grupos indígenas. Estas idéias/signos inseridas dentro do mito de origem do Estado-Nacional
brasileiro, sendo apenas uma variação e forma especifica de contá-lo para os povos indígenas. Na
versão cantada pelos índios de Cachoeirinha, pouco se altera, mas a estrutura interna de signos se
mantém, tal como acima indicado.
Vendo o “dia do índio” em seu conjunto, enquanto ritual estatal, e a mitologia que aciona,
acerca da história e origem dos povos indígenas, expresso na “canção do índio”, devemos chamar
atenção que esta estrutura está integrada na primeira parte; na segunda parte é dramatizado um rito
indígena, através da “dança do bate-pau”. Devemos analisar este rito para poder compreender todos
os significados expressos pelo ritual em seu conjunto. Isto porque, certos signos serão selecionados
do contexto da ideologia nacionalista implícita na política indigenista que gerou o ritual do dia do
índio, sendo inseridos e re-significados enquanto símbolos dentro do contexto da cultura local
Terena. E este processo de transformação de signos em símbolos indígenas, materializa um contra-
discurso indígena, que destoa em aspectos importantes, do discurso da mitologia do Estado-
Nacional.
Hiokixoti-Kipahê
Hiokixoti-Kipahê, é uma das designações em língua indígena para a “dança do bate-pau”.
Esta expressão é traduzida como “Dança da Ema”, (Kipahê = Ema
93
). O rito da “dança do bate-
pau” ou a “dança da ema”, consiste na execução de uma série de “peças” ou passos, executadas por
duas colunas de homens, uma delas designada Hononoiti, termo que designa verde ou azul, ou
também pelo termo Sukrekeono e a outra Harara-Íiti, vermelho ou Xumono. Cada uma das
“danças” ou etapas representa um significado dentro da lógica do rito. O número de homens em
93
Segundo Fernanda Carvalho (1996), a expressão seria traduzida como “aquele que vestem saias de pena de ema”.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
192
cada coluna pode variar, mas no ano de 2004, na situação acima descrita, existiam 32, 16 em cada
coluna. A dança reúne homens, jovens e crianças (que podem se juntar ao grupo a partir dos 8 anos
de idade). A dança do dia do índio normalmente é executada pelos homens e jovens (em outras
ocasiões podem ser formadas equipes somente de crianças). Cada uma das colunas tem um
“cacique” da dança, que coordena os passos. Os caciques da dança neste ano eram Leocádio
Antônio (Verde) Florêncio Muchacho (Vermelho). Veremos que na verdade estes caciques não
somente desempenham funções na execução do Hiokixoti-Kipahê, mas guardam a tarefa de
reproduzir os mitos/ritos do grupo e uma parte importante da cultura indígena local, acumulando
muitas vezes este papel, com outros, como o de curador ou rezador.
Foto 6- Dança do Bate-Pau.
O Hiokixoti-Kipahê pode ser dividido em três grandes etapas: 1º O início da dança do bate-
pau, que consiste numa aproximação lenta das duas colunas que se dispõem paralelamente,
realizado sob o toque do tambor e flauta, fazendo meia volta: outros passos são realizados, com os
membros de cada coluna realizando um toque com o bastão no solo e outro toque no bastão do
companheiro da coluna contrária. 2º depois dos primeiros passos, é realizado o “batismo” dos
jovens que estão se iniciando na dança do bate pau. 3º depois da paralisação para o batismo, a dança
do bate-pau é retomada, sendo realizados os passos finais. Na ultima etapa da dança, os bastões são
abandonados, sendo substituídos por lenços que são acenados, e neste momento as mulheres e
crianças se juntam ao grupo.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
193
Estas três etapas da dança têm significados específicos. Para indicar quais são estes
significados, iremos citar aqui algumas informações colhidas em entrevista. As informações usadas
abaixo foram fornecidas por Laurindo da Silva, morador da aldeia Argola, e um dos “condutores”
do bate-pau naquela aldeia (ele toca o tambor da dança). Ele é um “za´a”
94
(pai de família, homem
de idade ou mais velho):
“ A historia dos mais antigos se originou durante a guerra do Paraguai. Depois da guerra do
Paraguai começaram a dançar essa dança, depois conseguimos esse pequeno pedaço de terra.
Depois do final das brigas dos povos mais antigos que surgiu a dança. Até os dias atuais agente
não, nunca vai esquecer. E dos povos mais antigos que descobriu com a vovó e o vovô. (...)
Antigamente, mas os meus avós e meus pais faleceram, acabaram somente nós três irmãos que
ficou, que está vivo. Foi assim que os povos mais antigos relataram essa brincadeira.
A Miranda se fosse tomada não teria onde agente fazer as compras. Durante as conquistas os
povos foram de novo para as brigas, pois os Paraguaios já estavam tomando, conquistando
Miranda... As pessoas que residiam na cidade são todos paraguaios. Durante a noite os povos
foram atacar com flechas.
Naquele tempo nossa arma era madeira da árvore onde eles atiravam, foi assim que os povos
antigos falavam ou relatavam... Depois que os povos conquistaram Miranda, ai surgiu essa
brincadeira, senão fosse o povo a cidade não existia. (Laurindo da Silva, Outubro/2004).
Ou seja, o relato indica que a dança (ou brincadeira, termo pelo qual os Terena designam
uma série de atividades, incluindo danças e outros), teria surgido após a Guerra do Paraguai. Dois
fatos importantes estão profundamente associados: a Guerra do Paraguai, o direito aos territórios
ocupados pelos Terena. A participação dos Terena na Guerra do Paraguai, e sua importância na
vitória militar na região, teria dado ou confirmado, segundo os índios, o direito dos Terena a terra
que ocupavam e que depois perderam. A dança do bate-pau teria surgido neste contexto, pelas
informações que são reproduzidas no âmbito da famílias extensas (o fato de serem os “avós” a
narrarem e reproduzirem a memória da guerra, indica este circuito). Isto nós podemos ver abaixo de
maneira mais nítida:
“Naquele tempo os povos era comandados por Kali Sini. Foi ele que comandava as pessoas
dentro da mata. Ele foi longe, conseguia ver as coisas que o restante dos companheiros não
conseguia enxergar. Esse Kali Sini era Pajé. Ele era grande Pajé (hanaiti koexomuneti).
Observa os inimigos de longe e via os inimigos depois se retiravam, ficava mudando de lugar,
para lugar onde eles conseguiam acabar com os inimigos. Por isso que existiu e ganhou os
povos esses pedaços de terra aqui, na Cachoeirinha.por isso que existiu essa Aldeia (Ipoxuvoku
Xane).
Por isso que o povo ficou revoltado tentando recuperar as terras que os povos ganharam
naqueles tempos. Onde nossa área está ficando pequena, cada vez menor.
Nós estamos brigando um pelo outro para que pudesse plantar, por isso que surgiu a dança do
bate-pau. Na dança do bate-pau o vermelho tem o exemplo de sangue. A cor verde existe no
meio por causa dos purutuye. Pois eles estavam ganhando comemorando sua vitória. Foi por
isso que tem essa cor verde e amarelo...a cor preta simboliza as pinturas dos povos antigos
quando morre alguns parentes esse seria o significado da cor preta no meio do vestimento.
(Laurindo da Silva, Outubro/2004).
94
É o termo equivalente a “Pai” na terminologia de parentesco Terena. Essa terminologia foi levantada por Oberg
(1949) e Cardoso de Oliveira (1968), e os confirmados pelo nosso levantamento em Cachoeirinha.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
194
Vemos nitidamente no discurso de Laurindo a associação entre participação dos índios na
Guerra-Direito a Terra- Dança do Bate-Pau. Neste sentido, segundo a narrativa de Laurindo, os
significados do bate pau, são o seguinte:
“Se aproximando do inimigo. Depois que começa a dança, eles começam a bater com os paus e
começam a brigar com seus inimigos.
Quanto a peça dessa dança,são em sete peças. O início seria quando eles aproxima do
inimigo.Outra peça dessa dança é quando um se encosta o pedaço dessa bambu um pelo outro
que significa a acordar o inimigo. Outra peça é quando eles brigavam aqui e também eles
davam paulada na cabeça do inimigo... Outra quando eles começa a brigar trocando porrada
como diz os povos antigos. Outra quando eles começa a dar outra paulada na costa do
inimigo, um tipo sinal da cruz. (kioxo´ihoti kuruhu vemouke) significa cruz no nosso idioma.
Aí vem a flecha mais conhecida como Xekiye onde eles começam a atacar o inimigo.
Procurando como matar, por isso que existe, relembrando como aconteceu o ataque, matando
por isso que existe uma arma conhecido como “bodoke” pelos indígenas. Arma para matar.
Quando eles começam a subir significa homenageia o Kali Sini. Ele subiu para poder observar
o que está longe, por isso que ele subiu. Quando eles se aproximavam do inimigo ele pareciam
está andando a costa, parecia que eles estavam se retirando.
Assim que nossos patrícios e nossos anciãos contam essa história (yenoxapa voxunoêkene).
Depois os inimigos buscaram outro caminho para alcançarem eles. Ai não conseguiram
encontrar ou achar onde os inimigos perderam ele.Pois eles sabiam ou são esperto pois o pajé
estava com eles.Pois ele era grande pajé. Laurindo da Silva, Outubro/2004).
A versão de Laurindo na sua estrutura fundamental, é a versão mais conhecida e difundida
entre os Terena: o Hiokixoti-Kipahê é um dança que ritualiza a participação dos Terena na Guerra
do Paraguai. Cada coluna representa as partes em Guerra, e ao mesmo tempo, a participação Terena
nesta Guerra. A última peça da dança (o acenar dos lenços representa o retorno para casa e o
reencontro dos índios com as famílias, por isso a participação das mulheres e crianças), pelo que
nos contaram diversos moradores de Cachoeirinha. Assim, segundo as narrativas entre os Terena,
existe uma simbologia específica inerente à dança do bate-pau, e também uma narrativa que ela
encena. Esta narrativa é sobre a participação dos Terena na Guerra do Paraguai, sobre o valor do
índio, sua relação com a terra e sua importância na história.
É interessante notar que esta narrativa é similar à reproduzida em outra terra indígena Terena
do Mato Grosso do Sul, o posto de Bananal,. Nos anos 1940: “Afirmam os Terena que um
koixomuneti, durante uma de suas invocações xamanísticas, caiu em transe e em sonhos visitou
uma floresta na qual assistiu ao hiokixoti-kipahe; ao acordar, recordando-se do que sonhara,
ensinou a dança aos Terena que desde então passaram a executá-la”. (Altenfelder Silva, 1949, p.
367). Informações similares sobre a origem mística foram recolhidas por Carvalho “Os Terena
dizem que elas lhes foi revelada pelos espíritos da floresta, através do sonho de um xamã, e foi
dançada pela primeira vez para celebrar o fim da guerra do Paraguai”. (Carvalho, 1996, p. 48).
Existem pontos fundamentais de articulação entre o rito indígena, que encena um mito sobre
a participação indígena na guerra do Paraguai, e o próprio “mito de origem do Estado-Nacional”
(baseado na narrativa das três raças formadoras). Na verdade, a própria simbologia nacionalista é
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
195
retirada de seu contexto original e resignificada dentro do espaço local das comunidades indígenas
Terena de acordo com suas próprias demandas identitárias e políticas. Vejamos a imagem abaixo, e
o que pode informar sobre tal contexto:
Foto 7- "100% Sukrekeono."
A imagem é uma foto registrada no dia do índio de 2004. Ao centro estão os membros do
“sukrekeono”, uma das colunas Hiokixoti-Kipahê. Ao centro o jovem Jean, filho do chefe do posto,
segurando uma bandeira com a inscrição “100% sukrekeono”
95
, e ao lado dele outro jovem, segura
a bandeira do Brasil. À direita na imagem, agachado vestido com a camisa social está o vice-
cacique Cirilo Pinto. Esta fotografia foi registrada na quadra poliesportiva de Cachoeirinha.
Podemos dizer que a imagem expressa o tipo associação de signos nacionais, transformados
em símbolos indígenas, e também de signos da cultura Terena de outras situações históricas,
convertidos em símbolos dentro de uma outra situação. As categorias “xumono” e “sukrekeono”
que segundo a literatura etnográfica estariam associadas no passado à divisão da sociedade Terena
em metades endogâmicas, e fundamentalmente a um ritual o Moótó em que os índios se dividiam
em metades para executar uma luta ritual (ver Cardoso de Oliveira, 1976). Na verdade, e veremos
isto abaixo, o uso das categorias “xumono/sukrekeono”
96
hoje está relacionada a afirmação
identitária, dentro de uma dinâmica própria da situação histórica de reserva, em que a idéia de
95
Éimportante notar que boa parte da juventude Terena usa camisas com a expressão “100% Terena (que remonta a
ideologia nacionalista do “100% americana”, depois utilizada pelos movimentos de ação afirmativa como 100%
negro”), e que indicam o processo de construção de uma auto-imagem positivada.
96
Os termos são usados pelos Terena para descrever, pelo que presenciamos, traços de “personalidade”.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
196
“preservação da cultura indígena” sempre conviveu com elementos difusos da teoria da
“aculturação”. Desta maneira veremos que os Terena falam sempre da afirmação da sua cultura e
identidade, em certos momentos, e em outros, afirmam que esta cultura estaria “perdida” ou
“acabada”. A interação dos índios com a política indigenista se faz na base da apropriação e
reprodução de fragmentos dos discursos políticos e científicos, e sem considerá-los, é impossível
compreender o significado de certas práticas e discursos indígenas.
A bandeira do “Brasil” também não é um elemento secundário. Como vimos
anteriormente, Cachoeirinha foi durante os anos 1940/1980 um PI de “nacionalização”, e a
ideologia nacionalista, o esforço de transformação dos índios em “brasileiros” fazia parte da política
aplicada pelo Estado, localmente, através do SPI. A reativação “da cultura tradicional” em torno do
Dia do Índio, registrada por alguns antropólogos (Altenfelder Silva, Cardoso de Oliveira) não pode
ser considerada como um elemento periférico. Na verdade era parte de uma estratégia do Estado
para criar as bases internas da legitimação das relações de dominação, na qual a categoria “Nação”
se apresentaria como o centro articulador da lealdade indígena para com o Estado Capitalista.
Podemos dizer que esta estratégia no caso dos Terena teve uma eficácia relativa. Isto porque
os índios Terena se valeram de certas idéias/signo componentes desta política simbólica do Estado-
Nacional que foi fundamental para a construção do regime tutelar tal como hoje existente - para
criar um espaço próprio de afirmação simbólico-cultural (através da ativação de uma memória
indígena, de uma versão indígena para a Guerra do Paraguai e para a construção da Nação, na qual
os Terena aparecem como protagonistas fundamentais) e política (em conseqüência desta narrativa
acerca da historia indígena, estes aparecem como sujeitos capazes politicamente, determinantes e
não somente determinados, como portadores de direitos, hoje interpretados fundamentalmente como
o direito a terra pela qual teriam lutado
97
).
Assim, a bandeira do Brasil e a simbologia que ela carrega, marca todo o rito do bate-pau.
Por exemplo, Inácio Faustino, morador da aldeia Argola, presidente da AITRE (Associação
Indígena Terena Reviver), que segundo outros moradores da aldeia é aprendiz de koixomuneti, e
além disso genro de um “ex-cacique do bate-pau” da Sede, falou que todas as cores usadas na dança
têm um significado. Na pintura corporal usada pelos índios, o vermelho representaria o “sangue”
dos mortos na guerra, e o preto o luto da comunidade indígena. O “verde e o amarelo”, o “azul e o
branco” empregados pelos sukrekeono ou hononoiti, representariam o “verde, a mata, o azul o céu,
o amarelo as riquezas e o branco as estrelas”. Segundo Inácio Faustino, estas informações lhe foram
passadas por Leocádio Antonio, “cacique da dança do bate-pau” na Sede e (segundo nos informou o
97
É interessante observar que desde 2003, depois que o GT da FUNAI fez o trabalho de identificação das terras
indígenas de Cachoeirinha, a temática da terra, do território tradicional, tornou-se muito presente em todos os aspectos
da vida do grupo, de maneira que isto se reflete de maneira especifica, na articulação e interpretação contextual que se
faz do bate-pau, apesar de que este mesmo discurso, ser empregado pelas lideranças indígenas desde os anos 1950.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
197
cacique Lourenço Muchacho), também koixomuneti. A simbologia da dança do bate-pau, desta
versão de Inácio, que é a reprodução da versão de Leocádio, indicaria uma associação de símbolos
componentes do rito indígena com a simbologia da própria nação (já que o verde, o amarelo, o azul
e o branco são invenções do nacionalismo, em que o Brasil é representado de forma naturalista).
Não acreditamos ser útil e necessário fazer generalizações quanto a isto. O fato de uma rede de
parentesco e alguns dos homens envolvidos no rito e na reprodução dos conhecimentos associados a
ele já torna o fato importante. Até porque a bandeira do Brasil é um importante o símbolo usado em
diversos momentos do rito, como em um dos mais importantes, ilustrado pela imagem abaixo. A
imagem mostra uma das “peças” de encerramento do bate-pau, em que os homens são erguidos, em
que se dá um viva “ao chefe” (ver Carvalho, 1996).
Foto 8- Jovem ergue a bandeira do Brasil.
Fundamentalmente, podemos dizer que um elemento central da cultura Terena na situação
histórica atual, é a transformação de signos retirados da cultura produzida pelo Estado-Nacional em
símbolos do grupo étnico.
Num diálogo realizado em 2002, com um grupo de jovens indígenas, algumas informações
sobre suas estratégias pessoais e visão de mundo foram colhidas. Um destes jovens era Lauzequino
Elias Muchacho. Na conversa, discutindo a temática da cultura indígena, vemos o seguinte:
Ha muito tempo que você dança?
Desde criança, desde a infância.
Hoje você dançou?
“Eu dancei. A gente não pode acabar nossa cultura. (...)
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
198
O que você sente?
Eu sinto orgulho de ser índio. É a cultura nossa que o índio não pode negar, não pode acabar
aquilo lá. (Cachoeirinha, Abril/2002).
Ou seja, um discurso auto-afirmativo está associado diretamente aos rituais indígenas, tal
como hoje são encontrados.
Estes signos da nacionalização dos índios foram concebidos para servir como mecanismo de
controle político e ideológico dos grupos indígenas. De certa maneira, se acreditava que a
“nacionalização” implicava a disciplinarização dos grupos étnicos, e a eliminação de conflitos entre
índios e o Estado ou grupos sociais regionais. A tutela (que se pauta na afirmação da incapacidade
indígena) se valeu deste sistema simbólico-cultural para construir um lugar de subalternidade para
os povos indígenas, enquanto que o discurso indigenista, através de uma narrativa romântico-
nacionalista, fazia a apologia do índio pelos critérios acima indicados, ao mesmo tempo em que
exercia o seu controle político e a gestão de sua mão-de-obra.
Mas este conjunto de signos seriam utilizados pelos Terena como símbolos para expressar
sua própria narrativa e criar sua interpretação alternativa para a experiência histórica,
principalmente para legitimar e traduzir em discurso a política de resistência cotidiana ao regime
tutelar. Os Terena interiorizaram a idéia de preservação cultural e identitária (e também da perda,
contra a qual se deveria opor a preservação), de valorização do “índio”, contida em parte do
discurso e política indigenista, e o inseriram dentro de seus próprios mitos/ritos, para servir como
legitimação cultural para sua estratégia política de “co-gestão”, de expandir seus espaços de
influência sobre as instituições estatais e outros espaços de poder. O “rebaixamento” imposto pela
tutela, foi transformado numa narrativa mito-histórica auto-afirmativa.
4.3- O Complexo Ritual e as Tradições Culturais.
Tendo em vista os dados oriundos de nosso trabalho de campo, pretendemos aqui traçar
algumas linhas de interpretação teórica do material etnográfico disponível. Em primeiro lugar
iremos definir o que chamamos aqui de “complexo ritual” como um conjunto de ritos procedentes
de diferentes tradições culturais (indígenas e nacionais) que são inter-relacionados e possuem
especial importância nas relações comunitárias étnicas dentro das aldeias Terena em Cachoeirinha
1) Festas de Santo; 2) Oheokoti (ou pajelança); 3) Dia do Índio; 4) Cultos Evangélicos. O Dia do
Índio, assim, não é um evento isolado, mas faz parte de um circuito regular de rituais, que guardam
várias articulações. O Oheokoti é realizado também na semana da do índio, e apesar de ser indicado
que isto se deve a uma intervenção do SPI, na realidade (ver Oberg, 1949, Cardoso de Oliveira,
1976) o Oheokoti era tradicionalmente realizado no mês de abril.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
199
Podemos distinguir aqui duas tradições culturais, no sentido que representam diferentes
interpretações da experiência indígena local, o xamanismo católico e o protestantismo indígena,
expressando ambas formas locais de combinação entre uma tradição e cosmologia indígena
Guaná/Terena e uma tradição religiosa ocidental. Realizaremos agora uma descrição da estrutura
interna e das formas das práticas de cada uma destas tradições culturais dentro de Cachoeirinha,
bem como sua história e seu conteúdo simbólico.
O Xamanismo
Uma tradição cultural existente em Cachoeirinha é o xamanismo. O correto é falar de um
«xamanismo católico» porque as formas de reprodução dos ritos e mitos xamânicos estão
associadas a ritos católicos e a organização social desta tradição cultural. Separar o catolicismo
enquanto sub-tradição cristã do xamanismo seria um movimento enganoso e superficial, como
poderemos ver pela descrição etnográfica.
Muitos dos atuais e antigos “dirigentes” das Igrejas Católicas, responsáveis pelas festas de
santo e atividades cristãs diversas, são aprendizes de koixomuneti ou benzedores, ou de famílias que
pertencem a elas. Na Igreja Católica da Sede, o a atual dirigente Nilo Pereira é conhecido como
benzedor, Lourenço Muchacho foi dirigente da Igreja e é filho de um curandor, assim como
Agripina Júlio, que durante muitos anos foi dirigente da Igreja Católica sendo neta de um dos mais
conhecidos curandores de Cachoeirinha, o Xuri (Antonio Júlio). Na aldeia Argola, o mesmo
acontece. Aldo da Silva, é dirigente da Igreja Nossa Senhora Aparecida, é sobrinho de Quintino
Pereira da Silva koixomuneti (irmão de Laurindo da Silva, nosso informante sobre a dança do bate-
pau). Um antigo dirigente desta mesma Igreja, João Felipe, é conhecido como koixomuneti, e um de
seus filhos, Felipe Neto, é dirigente da Igreja Católica da Lagoinha e aprendiz de “benzedor”,
segundo nos disse. Assim, o controle dos rituais cristão dentro da Igreja católica, é exercido também
por indivíduos ou redes familiares que estão inseridos diretamente na tradição cultural do
xamanismo
Algumas categorias são fundamentais para compreender o universo do xamanismo Terena.
A primeira delas é “koixomuneti”. Esta categoria às vezes é traduzida como “curandor” ou “pajé”
(no passado era comum a designação de “padre”), e designa a pessoa que realiza curas e tem
poderes mágico-religiosos. Em Cachoeirinha é muito comum que, ao perguntarmos para as pessoas
sobre os pajé ou koixomuneti, elas respondam que estes estão se acabando, que não tem “mais
nenhum” na área. Foi isto que ocorreu na nossa primeira visita em fevereiro de 2001, quando
perguntamos ao chefe do Posto da FUNAI, Argemiro Turíbio, sobre este tema e ao cacique, Sabino
Albuquerque. Naquela ocasião, conhecemos quem seria o “último” koixomuneti de Cachoeirinha,
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
200
Mário Lemes, que na época que conversamos se mostrou completamente refratário em relação ao
pesquisador, o “purutuye”, de maneira que não nos falou absolutamente nada (numa situação de
total distanciamento do pesquisador para com o contexto local, momento da primeira visita). As
únicas informações que tivemos a respeito dele vieram do Terena, Antônio Lemes, seu parente que
trabalhava como nosso assistente.
Na nossa segunda visita, em abril-maio de 2003, Mário Lemes havia falecido há pouco.
Conversando com algumas outras pessoas, fiquei sabendo da existência de mais um ou dois
indivíduos que seriam Koixomuneti. Durante uma conversa informal com Antonio Lemes e
Argemiro Turíbio realizada no Posto Indígena, perguntamos sobre este tema, e eles me
responderam: “ah, mais o pessoal que tem hoje não é mais como antigamente, que levantava até
defunto. Estes já acabaram”.
Vejamos um outro trecho da entrevista que realizamos com Laurindo da Silva, que pode
ilustrar isso:
“Tem outro tipo de brincadeira que os povos tiveram além da dança do bate-pau conhecida
como Oheokoti. Rodava, mexia purunga, praticava pajelança que os indígenas praticavam e
estudavam durante a semana santa. Era lindo antigamente, o praticante se pintava e a mesma
coisa que a dança do bate-pau. Eles pintava também durante ao amanhecer da semana santa.
Hoje em dia já está se desaparecendo. Presenciei, observei e assisti. Também existe uma outra
dança chamada Ikatakoti Kaino) onde também está se acabando quase ninguém faz. Também é
lindo todos que dançavam também são enfeitados. Se chamava dança do cavalinho, não existe
mais nós perdemos ela. Enquanto que a pajelança ainda existe. Aos poucos podemos falar que
ainda existe, enquanto que a dança do cavalinho aos poucos está sumindo ou desaparecendo.”
Num certo sentido, isto reflete uma postura muito comum dos Terena com relação a esta
questão. É comum que os índios narrem alguma experiência relacionada a cura pelos koixomuneti,
ou que já teriam presenciado o “oheokoti”, mas isso não impede que quase sempre falam desse
assunto em termos de “desaparecimento dos pajés”, que estes estão “acabando”. Existe também
uma relativa política do segredo, em torno das práticas mágico-religiosas dos curadores, manejada
de acordo com as circunstâncias não se falando tão explicitamente disso para qualquer um.
No último período de pesquisa de campo (2004), pudemos identificar um conjunto de
pessoas que seriam ou “Koixomuneti/curandores” ou “benzedores/rezadores”, e que indicam, ao
contrário deste pretenso desaparecimento de práticas mágico-religiosas, uma ampla difusão delas
entre os Terena.
Dentre os “curandores”, existe uma diferença e uma hierarquia de saberes e poderes
mágicos/religiosos. Segundo o cacique Lourenço Muchacho, filho de um curador, o trabalho
xamanistico funciona da seguinte forma:
“Mas só que meu pai não é um curandor forte não, chacoalha purunga só para cantar mesmo.
Tem alguns purungueiros que chama os espírito dos purungueiro antigo, falecido. E essas
pessoas hoje é diferente. Agora os purungueiro forte mesmo já faleceram. Tem o Guilherme
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
201
Antonio, o Quintino da Silva, o Afonso Pinto, Halita Polidório, Nilo Pereira, Margarida
Gonçalves.
Meu pai falava para mim, tudo que eu tenho eu não vou poder repassar para você. Ai eu fico
perguntando. Porque. O que eu tenho você não sabe. Se eu puder repassar para você, tudo vai
depender do seu comportamento. Se você tiver um bom comportamento eu vou repassar para
você, se você não tiver eu não posso. A gente já começa a ver essa dificuldade é que eu não sei
o que é esse bom comportamento, só ele que vai saber. Se eu chegar lá e ficar conversando,
agora eu não sei o que é esse tipo de bom comportamento que eles fala. O que meu pai tem
agora é desde o inicio, do pai dele, da mãe dele. Então antigamente essas família era forte. (...)
Segundo ele só ele que vê. Agente não consegue ver, não consegue entender isso.”
O Koixomuneti” aciona os espíritos dos mortos, que ele invoca para colocá-lo sob
possessão; tem conhecimentos sobre plantas e ervas medicinais e sabe também controlar os animais
e seus espíritos, tanto que os atrai durante suas atividades rituais. Os Benzedores utilizam-se
principalmente de imagens de santo, do penacho e orações para curar e também sabe administrar
“remédios do mato”. A distinção entre “purungueiros fortes” e os demais, como feita por Lourenço
é extremamente difícil de estabelecer, porque a própria aquisição de conhecimentos pode fazer com
que estes mudem de status. Por exemplo, em conversa com Marlene Lipú esta afirmou que existem
curandores que são procurados (como o Hilário Júlio, Arlindo Júlio e Afonso Pinto), e outros que
dançam e cantam mas não são procurados para realizarem cura (como o Antonio Muchacho).
O curandor, segundo os Terena, tem um conjunto de poderes, de cura, de morte, poderes
visionários (ele pode ver através do tempo e do espaço) e o poder de se transformar em outros
animais (urubu, onça, cobra e etc). Este poder é obtido através da relação que o curador estabelece
com um guia”, ou seja, para designar uma entidade sobrenatural que auxilia o xamã nas suas
atividades de cura
98
, mas que por outro lado exige a realização de trabalhos (mágico-religiosos).. O
curador usa alguns objetos mágico-religiosos: 1) “Kipahê’ ou Penacho, 2) “Itaaká” ou purunga
(palavra de origem Quíchua designa um vaso de barro, mas entre os Terena indica o chocalho de
cabaça), tão importante que os curadores são chamados também de “purungueiros”. A purunga é
que serve como espaço de materialização da relação do “guia” com o “curandor”; o espírito entra na
“purunga”, fala para o curador o que ele quer saber, mostra o que ele quer ver; 3) imagens de santos
católicos. A relação do curador com seus pacientes, assim como do curador com o seu “guia”, é
uma relação de troca, simbólica e material. O paciente tem de levar alguns objetos para a consulta
(que é sempre realizada a noite), como velas e cigarros; tem de dar dinheiro para o curador; e por
fim, tem de dar festas para o santo ou participar delas como forma de “pagar” pelas curas recebidas.
O circuito das práticas mágico-religiosas se estrutura em torno do grupo doméstico, onde
reside o curador e/ou o benzedor. Ai ele recebe seus “pacientes”, promove os ritos de cura, “benze”
pessoas e animais. São nas unidades residenciais dos grupos domésticos também que são realizadas
98
Guia e Encosto são palavras empregadas respectivamente na umbanda e espiritismo; a primeira designa uma
entidade que através da possessão orienta um médium; a segundo espíritos bons ou maus que prejudicam ou protegem
os vivos.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
202
as “festas de santo”, promovidas pelos curandores ou famílias. É importante destacar também que
os curandores atuam em grupo, de acordo com as formas de organização social e política. O
Oheokoti é um ritual que reúne diversos curandores dentro da aldeia. Só que a articulação destes
não é aleatória, mas segue e reforça do ponto de vista cultural, as clivagens políticas baseadas no
parentesco e residência. Por exemplo, o Oheokoti realizado na antiga vila Cruzeiro, era promovido
por um grupo especifico de curandores do qual faziam parte Lino de Oliveira Metelo, grande pajé e
o principal articulador político e ritual; Afonso Pinto, morador da Vila Cruzeiro, Guilherme
Antônio, morador da Vila Cruzeiro, Gilberto Turíbio, morador da vila Cruzeiro e Quintino da Silva,
morador do Babaçu. Os 4 primeiros estavam integrados em redes de parentesco e ação política que
estudaremos adiante. O ritual ou a brincadeira do Oheokoti não pode ser compreendida
isoladamente, seja porque se assenta na organização social e política, seja porque sua dinâmica
interna o exige. E a sua não realização, por exemplo, numa vila como a Cruzeiro em Cachoeirinha
pode se dar em razão da morte “do cabeça” do ritual, que ao mesmo tempo desestrutura a atividade
e pode desmotivar seus parceiros (como Afonso Pinto comentou, que depois da morte do Lino e
como ele, o Guilherme e o Gilberto estão velhos, não realizam mais o Oheokoti).
As práticas religiosas se estruturam fundamentalmente em torno das famílias extensas, que
participam das redes rituais e mágico-religiosas. Podemos citar por exemplo, um caso bem
concreto, o da família do Cacique da Sede Lourenço Muchacho. Ele reside num conjunto
residencial, em que moram seus pais, seus irmãos e os filhos de seus irmãos. O seu pai Antonio
Muchacho, é um curandor como vimos acima e tem um espaço reservado para seus trabalhos na sua
casa. É o caso também de Afonso Pinto, outro curador, e que também reside num conjunto de
unidades residenciais de uma família extensa (onde moram ele, dois de seus filhos e seus netos). Ele
possui também um espaço em sua casa (um cômodo) em que recebe seus pacientes, e que visitamos
uma vez, ocasião em que pudemos conversar sobre este tema.
Nós pudemos acompanhar as atividades de “benzedor” de Afonso Pinto, em sua casa. Mas
antes de descrevê-la é interessante ver a narrativa de como ele adquiriu seus conhecimentos para se
tornar um curandor/benzedor.
“nada me ensinou. deus que deu para mim. quando eu morava aqui no Morrinho ai nos estava
sentado tomando cerveja cedo 8 horas assim. Aí apareceu a dona trazendo a criança que não
tava mais viva tá querendo morrer, nós tava sentado tomando mate, chimarrão, aí apareceu a
dona com a criança no braço. Aí nós perguntemos onde é que ela ia, ai ela falou, aqui mesmo.
Ué, fazer o que, quem que falou pra senhora que sabe fazer trabalho? Não, cê podia fazer pra
mim? De que jeito que faz livrar as crianças de doença ... (trecho não compreendido?).Ai
fiquei pensando, meu pai disse que não dá. Que jeito que eu vou fazer trabalho com essas
crianças? Não dá? Não procura outro? Não.
Aí pensei. cê sabe rezar. Então tá. Ai fiquei rezando para ele, ai o pessoal já benzeu tudo as
crianças que já tá morto. Acendeu vela em roda em cima da mesa. Ai a criança levantou e
chamou a mãe dele e ai apagou as velas todinha, ai eu benzi e lembrar o nome de Deus se
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
203
podia me ajudar a livrar as crianças na vida. E eu não sei nada mas eu posso rezar. Ai
levantou. Deu remédio, foi melhorando.Ai depois chegou outro.
Nós conseguimos isso ai (...). ninguém me deu. deus que me deu aquilo. eu tava rezando só,
tinha algumas crianças que ensinar para ele, mas pra frente e não aprendeu. Eu trabalho em
conjunto com o velho aqui o Guilherme. Me chamou para ajudar a fazer trabalho. Pajé que
agente fala. Então é isso que a gente faz. Apesar de que ... para benzer o corpo, tirar maldade,
chega aqui em casa. Agora a gente que não agüenta mais andar me chama mas tem que me
levar com o carro pra lá.
Já fui pra... Morrinho, Argola, Campo Grande... aquele para chegar espírito na purunguinha.
quando chega tempo de semana santa. Fizemos lá na casa do Guilherme. Cê sabe que nós
comecemos 5 horas da tarde na casa do Guilherme ai nós paremos, porque ficamos com medo
por que gurizada daqui um monte bêbado. (...) (Afonso Pinto. Abril/2003).
Nesta narrativa de como Afonso Pinto teria se tornado curandor, vemos que ele próprio
realiza uma descrição: a mãe levando uma criança quase morta para que ele rezasse e a benzesse; a
referência a utilização das velas, que sinalizam (quando se apagam, a transição da morte novamente
para a vida); também a descrição do “trabalho em conjunto” com o Guilherme Antonio, e a menção
a “semana santa”, ocasião em que fizeram descer espírito na “purunguinha”. Quer dizer, ele
enquanto “rezador” também atua nos trabalhos de “pajelança”, do Oheokoti. O penacho que Afonso
Pinto possui, inclusive, foi um presente dado por Lino de Oliveira Metelo.
Estes “benzedores” são freqüentemente procurados dentro de Cachoeirinha. Para ilustrar
isso, podemos citar uma situação vivenciada em março de 2006. Estávamos na casa de Argemiro
Turíbio conversando, no meio de nossa conversa um homem chegou e falou com Argemiro no
idioma Terena. Logo Depois ele interrompeu a conversa, dizendo que teria que levar uma mulher
num “curandor”. Perguntei qual e ele disse, Afonso Pinto (depois saberia que a mulher era sua
prima). Foi então buscá-la de carro. Depois de seu retorno perguntei o que havia ocorrido, e ele
afirmou que era “encosto”, mas que a mulher já estava melhor que o “curandor” havia receitado
algumas ervas para ela. Durante uma noite, pudemos acompanhar os trabalhos de Afonso Pinto em
sua casa.
Às 17h aproximadamente fomos ver o trabalho de Afonso Pinto, realizado numa sala de sua
casa com um pequeno altar, Com a imagem de São Sebastião, com velas acesas em volta dela e um
Penacho sobre a mesa. Em trinta minutos menos vimos pelo menos 6 pessoas serem atendidas, a
maioria mulheres com crianças de colo e um adolescente. Afonso as recebia e as colocava em frente
ao altar; rezava em português em tom acelerado, passando o penacho sobre o corpo que era girado
(ficava de lado, de costas e de frente para Afonso Pinto). Todo o processo de benzeção demorava
certa de 5 minutos.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
204
Foto 9 - Daniel (esquerda) e Afonso Pinto, Curandor .
A seqüência do tratamento do rezador, a realização de orações e a benção dada no corpo do
paciente com o “penacho” são procedimentos sistemáticos desta forma de cura, como vemos pela
própria explicação de Afonso Pinto:
“Então, só abençoar, aí nos tiremos nome aí é abençoado. Tá certo melhorou bem aí
procuramos remédio com azeite e raizinho do mato para sarar, ai tem que falar qual é o
sentimento na vida dele. Ai nós procura raizinho do mato para curar com ele. (...) Abençoa
primeiro depois procura remédio. Sem saber eu não posso dá remédio a toa. (...) Tem que fazer
oração primeiro para ele para procurar qual o sentimento e qual a raiz do mato. Nós tá
começando de fazer trabalho, por isso que cada pessoa tem que ter o penacho E eu fui fazer
encontro, fazer trabalho para lá de ...Cuiabá. (Afonso Pinto. Abril/2003).
Quer dizer, a “oração” é uma forma de comunicação, uma forma de buscar a orientação para
a intervenção do curandor, que irá escolher qual a “raiz do mato” será adequada ao tratamento de
cada paciente. Foi esta seqüência de fatos verificadas nos casos citados acima (tanto da prima de
Argemiro quanto no das pessoas que pude ver serem benzidas por Afonso Pinto).
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
205
A transmissão do conhecimento dos “benzedores” se dá por mecanismos similares aos dos
curandores em geral. Perguntamos para o Afonso:
Como o senhor ensina para outros?
«Tem de descubrir, tem de vontade pra saber se gostava do trabalho ai tem de fazer parte no
corpo dele, nós ensina. Ficar com nós saber como agente faz é muito trabalho. Xavante não é
como nos, é outro raça (...) agente ensina outro como se trabalha não pode, tira todo o santo de
quem faz o trabalho, mas se tem praticamente já ai tem que ensinar.
Podemos ver que na realidade, assim como o “pajé” tem a habilidade da possessão e passa
por um processo de “aprendizado” (ver Cardoso de Oliveira, 2002), o benzedor também passa por
um processo similar e também tem uma relação sobrenatural, já que é preciso identificar se o
candidato tem já o “santo” e aí um benzedor faz “parte no corpo dele”. Logo, a distinção entre um
benzedor e um curandor (e as categorias se misturam, os benzedores são chamados de curandores,
pajés e purungueiros em certas circunstâncias), indicando a fluidez destas distinções, apesar da
persistência de uma forma especifica de intervenção e cura, que se vale das imagens e da oração,
seguindo um ritual distinto daquele realizado pelos koixomuneti.
As informações colhidas com um filho de um curandor que “chacoalha a purunga” (como os
Terena dizem), Amarildo Júlio, dirigente da UNIEDAS e genro de Anésio Pinto podem esclarecer
bastante a diferença do ritual realizado pelos curandores daquele dos benzedores.
“Koipihapati, seria uma pessoa que morreu e voltou para assustar a pessoas. (...) A pessoa
morreu e o espírito volta na aldeia e começa a se apresentar para uma pessoa. Na forma de
uma pessoa. Meu irmão já morreu faz tempo. Mas se um dia ele aparecer na minha frente, seria
um koipihapati.
O curandor mexe com koipihapati, mas esse ai é outro assunto. Koipihapati seria um espírito
de Diabo. Por exemplo, meu pai é curandor, um pajé. Ele invoca espírito de uma cobra.
Quando uma criança vai na casa dele pra benzer ele começa a chacoalhar, concentrar, daqui a
pouco começa a mudar a língua dele. Porque é espírito de cobra, koipihapati. Mas hoje ele não
mexe mais com isso, porque ele não tem mais força. Porque para mexer tem que ter energia,
saúde bem forte.
Ai o meu pai começa a usar o seu aparelho de Chocalho. Vai lá três vezes, começa hoje,
amanhã e no outro dia. Ai quando a criança não fica curado durante esses três dias, ai o
trabalho tem que ser feito de madrugada. Ai só chacoalha esse coisa dele. Ai usa pinga para
molhar assim na cabeça. Meu pai aprendeu com outro curandor que chama Xuri, só que eu
não sei essa história. (...) Pode morrer, o médico não, se levar pro médico não vai achar que
tipo de doença ele ta passando, só os pajé que pode ver”. (Amarildo Júlio, Março/2006).
No trabalho do pajé que chacoalha a purunga, este invoca seu koipihapati no caso acima “a
cobra” e é sob possessão que o pajé realiza as curas de seus pacientes. O xamã cuida das doenças
provocadas pelos koipihapati, que os médicos não tem poder para tratar. Este procedimento é
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
206
similar ao descrito por Cardoso de Oliveira, quando o antropólogo se submeteu a uma sessão de
cura com o xamã Gonçalo Roberto nos anos 1950.
A descrição que Anésio Pinto realiza das atividades de seu pai, indicando de forma bem
nítida a combinação de símbolos cristãos com signos indígenas:
“É gozado por causa que os pajé ele tem muito respeito em Deus, apesar de que ele tem os guia
dele. É um tipo de Santo que eles invocam. (...)
Porque às vezes tem a guia dele como koipihapati, as vezes tem o santo aquele invoca dentro da
casa, como São Sebastião. Dizem que é guia, e tem esse koipihapati. (...) Tanto como Deus,
tanto como Santo, depois ai veio as guia. Ai eu ouvia ele dizer, que o Deus dele mesmo era
Itukooviti, mas apesar de Itukooviti, tinha o santo dele que ficava dentro da casa. Mas quando
ele começa a fazer trabalho ele invoca o guia dele, koipihapati. Acho que deve ser espírito das
pessoas que ajudaram, deve ser parente dele, aquele mais amado. Por exemplo minha irmã
mesmo quando faz trabalho, meu pai mesmo incorpora nela. (...) Ela faz aqui na casa dela.
Ela, sua irmã, aprendeu com quem?
Aprendeu com meu pai, antes de meu pai morrer passou tudo pra ela, ele queria que eu
pegasse, mas eu acho que eu não tinha aquela dom de receber isso aí, apesar que eu sou favor,
sou a favor, por que eu nasci num berço que praticava essa pajelança desde lá do Ipegue, isso
daí é uma cultura que não deve acabar. Eu falo pra minha irmã, se quiser continuar, continua,
só que eu não vou mais lá quando ela faz trabalho, a Igreja proíbe, a gente de se misturar. (..)
Em mês de janeiro ela festa, reza, baile.... Aí a pessoa vai lá, faz promessa, Festa de Santo que
tá dentro da casa dela. (...) É uma espécie de promessa, ou de vitória, eu sei que meu pai
sempre fazia festa aqui no mês de janeiro, oferecia reza para o santo, depois dançava... Os
promesseiros dava as coisas..”. (Anésio Pinto,Março/2006).
Assim, o guia pode ser um koipihapati (espírito de um parente falecido, como um pai) ou de
um animal (como uma cobra), ou ainda um “Santo Católico”. A Festa do Santo, reúne o festeiro que
muitas vezes é um xamã e os “promesseiros”, que são aqueles que estão buscando curas ou
agradecendo por elas. A transmissão dos conhecimentos se faz também dentro da linha familiar,
para os filhos do curandor que podem assumir os trabalhos de seu pai ou mãe.
Os “Koipihapati”: a cosmologia Terena e a “comunidade dos vivos e dos mortos”.
Uma outra categoria é fundamental para compreender a dinâmica social e simbólico-cultural
dentro das aldeias Terena é koipihapati. O termo é às vezes substituído pela palavra da língua
portuguesa “encosto”, como havia sido no caso da prima de Argemiro citado acima. Sem entender a
crença nos koipihapati, e que na realidade faz parte de uma cosmovisão Terena, é impossível
entender o real significado do complexo ritual, já que as Festas de Santo se relacionam diretamente
aos espíritos, e que mesmo os benzedores tem de saber cuidar de doenças provocadas por encosto
ou koipihapati.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
207
A crença nos koipihapati é fundamental, já que estes têm um poder próprio que incide sobre
o corpo e a saúde, explicando certos deslocamentos, a existência de redes sociais aldeia/metrópole,
conflitos internos e atividades (como festas de santo, rezas e cultos).
Iremos relatar as informações obtidas sobre a morte de um índio Terena, que teria falecido
em razão do koipihapati:
Fale sobre a morte de Leocádio Antonio?
Segundo grande curandeiro falecido, ele sempre falava, porque antigamente os índios mais
antigo, ele falava, ele conversava com os filhos, na boca de noite você não pode andar. De
madrugada, 5 horas você não pode andar. Então as pessoas respeitava aquilo lá. Então porque
que o curandeiro antigamente falava isso segundo ele tem curandeiro que mexe lá com pessoas
morto e traz para poder ajudar ele no trabalho, tem o que sabe chamar e mandar embora, tem
o que chama e não sabe mandar embora. O que se torna esse espírito, esses mau espírito que a
gente fala. Quando um curandeiro não gosta daquilo, ele vai buscar o pessoal que morreu
muito tempo, esse espírito dessa pessoa, entra no corpo daquela pessoa, e começa a se sentir
mau, doente, se chama encosto Isso mata mais rápido, se não tiver tratamento e senão tiver
também curandor que sabe mexer com isso, para poder tirar do corpo do próprio paciente dele.
Então tem espírito bom e espírito mau, segundo informa eles que mau espírito mata. O encosto
que a gente fala é isso aí. Tem que ser tirado por próprio outro curandeiro, pra poder se livrar
de tudo. O que gera isso? Quando pega gente isso ai, cresce barriga, dor de cabeça, vômito, às
vezes dá febre, ou então as vezes pessoa parece doido, corre... então dá tudo isso.
Porque a gente já sabe como é que é. Quando o patrício morre, o pessoal fica em volta. Junta o
povão. O corpo nunca é abandoado, até que saia de dentro da casa da família, ai que o povo
deixa o corpo. Então as pessoas que tem prática, já sabe como é que é, quando as pessoas
morre de doença o corpo é de outra forma, mas quando morre por outras coisa parece que
aquele pessoal levou uma porrada, fica tudo inchado, então doença mata o corpo não acontece
nada, mas quando é mau espírito começa a ficar muita coisa.(...)
Segundo informação que eu recebi da família, foi mais pela noite, ele tinha sonho, mas sabe
como é que o pessoal de idade, fala...ah... para ele não é problema. O importante é morrer,
segundo eles. Aí, foi para apanhar lenha, a esposa dele mandou apanhar lenha mais ou menos
cinco hora da tarde, Aí na ida pra lá ele já tava sentindo que pra ele não tava bem. Que
alguma coisa pode acontecer. Porque ele também foi curandeiro. Ele é curandeiro também. Ele
chacoalha a purunga.Ele sabia o que ia acontecer lá. Porque quando ele chegou lá, segundo
ele, sentiu que ... no corpo, alguém teve alguém chamando ele, alguém bateu nele lá mas não
via alguém. Então voltou para casa, ai noite tava tudo tranqüilo, só sentia dor de cabeça
aquela coisa, e quando amanheceu, faleceu. Só dormiu na casa dele uma noite e no outro dia
faleceu. Porque se tivesse tratamento na hora poderia se salvar ainda, mas passou mais de 24
horas não tem mais jeito. Porque eu acho que o que ele recebeu foi muito forte, se fosse mais
uma coisa leve poderia até agüentar, eu acho que ele chegou de ver assim de perto... segundo
curandeiro fala quando a gente vê espírito de perto, morre na hora, mas quando é longe...
agente guenta, fala isso. Porque aparece mesmo, aparece assim na visão da pessoa. (Lourenço
Muchacho, 2004).
Os sintomas das doenças e da morte provocadas por “koipihapati ou encosto” são distintos
dos de uma morte natural. Dor de cabeça, inchaço, deformação do corpo pós-morte, tais sintomas e
a doença só pode ser tratado pelo trabalho de um “curandeiro”, já que tais doenças são causadas
pelo seu trabalho, direto ou indireto. O caso acima relata isso. E a morte de Leocádio se deu,
segundo a versão acima, pelo fato dele não ter tido o “tratamento” adequado, ou seja, o auxílio de
outro curandeiro.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
208
Os espíritos circulam ou aparecem na aldeia nos horários em que os curandores estão
trabalhando. O encontro dos vivos com estes espíritos faz com que eles sofram de “encosto”. Logo,
o tempo entre o crepúsculo e a alvorada (de 5 da tarde a 5 da manhã) é o tempo em que os espíritos
têm maior liberdade e poder de ação sobre a comunidade indígena. As prescrições para as crianças e
as pessoas em geral não andarem nesse horário se dá em razão disso. Note-se que no caso de
Leocádio, ele foi “pegar lenha” exatamente neste horário.
Marlene Lipú, esposa de Argemiro, relatou-nos em março de 2006, um pouco da sua visão
experiência pessoal relativa a este tema. É interessante notar que ela gosta de freqüentar, com
alguns de seus filhos e irmãos, a Igreja Evangélica Indígena UNIEDAS. Quando perguntei de
koipihapati ela falou que esta palavra indica o “espírito dos mortos”, e que filho mais novo, Diego,
de 10 anos, quando era menor tinha muito medo deles. Quando morria uma pessoa na aldeia, ele
evitava sair de casa a noite para não encontrar o koipihapati; ela comentou que todo mundo na
aldeia acredita nisso (que especialmente seu marido Argemiro “acredita muito nisso”), e que
quando a pessoa fica doente, ao invés de ir ao médico procura “curandor” pensando que é encosto.
Ela falou que “não acredita, mas tem medo”. Falou também que seu tio Sabino Lipú teve um
derrame. Ele demorou para procurar auxilio médico porque acreditava ser “encosto” a causa de sua
enfermidade. Só foi ao médico quando uma de suas filhas o convenceu a fazer isso.
Marlene explicou ainda que as imagens de Santos que ficam nas salas das casas de muitos
moradores da aldeia, normalmente de frente para as portas principais, têm a função de “proteger a
casa dos maus espíritos” (Anésio Pinto disse: “Os Santos eles falam que é guarda da casa”). Esta é
uma prática generalizada dentro da aldeia, ter um altar com imagens de santos dentro da casa. Outra
prática explicada em razão da crença nos koipihapati, é da de “desmanchar” as casas de familiares
mortos. Uma vez quando fui realizar uma conversa na Argola, com Alcindo Faustino, seus filhos
estavam desmanchando a casa de um de seus parentes que falecera há pouco.
Desta maneira, podemos falar que a crença nos koipihapati é a crença de que os espíritos
fazem parte de uma mesma comunidade que reúne vivos e mortos, e além, os animais como onças,
cobras, aves e também seres míticos da cosmologia Guaná/Terena, como Voropi (Cobra d´Água) e
Yurikoyuvakai.
Por exemplo, na conversa com Anésio Pinto, morador da vila Rio Branco e membro da
Igreja UNIEDAS (que pelo sistema de parentesco Terena é sobrinho de Afonso Pinto), perguntei
sobre Yurikovakai, e depois de consultar sua esposa respondeu:
“É uma lenda dos povos Terena, agora eu não se essa lenda é real ou é inventada. Yurikovakai
era um homem que puxava os Terenos, diz a lenda que os Terena vinha de um buraco. Ai um
passarinho bem-te-vi, cantou vendo aquele monte de gente dentro do buraco, ai o bem-te-vi
cantou, cantou,cantou, ai de repente o Yurikovakai tava andando no mundo e ele ouviu aquele
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
209
passaro cantar e aí foi lá ver e viu a etnia Terena, e o que ele fez? Ele pegou esses Terena um
por um, isso ai era lá no Chaco, lá no Paraguai. Era um homem, não sei como dizer.
Como você aprendeu isso?
É contado pelos antepassados, nós temos um livro sobre isso daí. É com meu pai, e depois
colocamos isso no livro. Mas só que nossos pais já contava isso daí. Depois do Yurikovakai
teve o Kali Sini. Kali Sini. Era um dos lideranças dos povos Terena e ele atravessou todos os
Terena do Rio Paraguai para cá para o Brasil. Ai ele é um dos lideranças muito temível a ele,
porque ele era um espírito, aliás dos pajelança que fazia mal a todos que eles odiavam. Ai esse
Yurikovakai nasceu lá do lado do Paraguai e historia do Kali Sini .é para cá, dentro do Brasil
já. Nós juntemos a história do Yurikovakai com Kali Sini .
O pessoal conta essas histórias?
Se você pergunta para as pessoas mais antigas, se vai ouvir a historia deles. Eu conto na minha
sala de aula, eu conto, a história do Yurikovakai, a gurizada gosta, eu faço personagem dele,
dos índios terena, do pássaro, os meninos assobia como bem-te-vi, eu não sei se era espírito
Yurikovakai, eu sei que era uma pessoa ...
Neste sentido, podemos falar que dois elementos são importantes nesta afirmação e que
merecem destaque. Em primeiro lugar, vemos que existe uma lógica de reprodução, de transmissão
dos mitos a partir de uma cadeia especifica, dos “mais velhos” e dos koixomuneti, para os “mais
novos” (especialmente dentro de seu grupo de parentesco). Isto porque o pai de Anésio Pinto era
um curandor ou pajé, como veremos abaixo. Esta cadeia de transmissão oral dos mitos Terena,
intergeracional e de xamãs para a comunidade, na verdade hoje foi combinada com outras formas
de transmissão, baseadas na escrita. A produção de um livro de “lendas” e sua utilização no espaço
escolar, assim como a narração dos mitos dentro da escola diretamente pelos professores indígena,
adiciona o elemento da transmissão do mito e da cosmologia através da escrita. Assim, a “Escola”,
enquanto instituição social, é utilizada em parte para a reprodução de certos mitos indígenas, sendo
que os “professores indígenas” e os “textos” (ao invés do xamã e da narrativa oral) passam a
destacar-se como forma de transmissão e reprodução de mitos e aspectos da cosmologia indígena. É
importante lembrar que em Cachoeirinha, a Escola (compreendendo o ensino fundamental e médio,
atende mais de 800 crianças, numero que corresponde a cerca de 20% da população total de
Cachoeirinha). Diego Turíbio, filho de Argemiro, uma vez nos contou meio desconfiado, a “lenda
da mandioca” que aprendera na Escola com sua professora (que enfatizou que os “Purutuye” não
acreditam). Outro fator importante, a fusão do mito com a história indígena, já que Yurikoyuvakai é
colocado ao lado de um personagem histórico, kali Sini (um “cacique” que era um xamã) que
realizou uma das travessias do Rio Paraguai, conduzindo os Terena a sua margem ocidental. A
temática da Guerra do Paraguai, da experiência histórica indígena, se junta com os mitos de origem
Terena, como o de Yurikoyuvakai, que retirou os Terena de um “buraco” tempo em que estes se
encontravam no Chaco ou no Paraguai. Assim como a narrativa do “bate-pau” evoca em sua
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
210
principal versão a “Guerra do Paraguai”, uma experiência histórica que dá o significado a uma série
de elementos da cosmologia Terena no atual contexto. A dança do bate-pau, o mito que ela
ritualiza, na verdade se articula com estas idéias sobre a origem dos Terena e também sobre Kali
Sini , que surge ao mesmo tempo como personagem histórico que torna-se um espírito e passa atuar,
a ser incorporado na própria cosmologia, ao lado de Yurikoyuvakai. Assim, os acontecimentos
relativos a Guerra do Paraguai e a experiência colonial do século XIX, se fundem em termos de
importância na memória Terena de Cachoeirinha, com o próprio mito de origem.
Oheokoti: uma “luta mágico-religiosa
O Oheokoti é uma das “brincadeiras” citadas pelos Terena e consiste num ritual realizado na
semana santa. Segundo a literatura etnográfica no século XIX, era realizado em relação as plêiades
no mês de abril. Uma descrição do Oheokoti é feita por Carvalho (1996) em Bananal. Em
Cachoeirinha não conseguimos acompanhar a realização de um Oheokoti. Iremos tentar compor
aqui uma descrição a partir das experiências de alguns índios que participaram das atividades
xamanísticas e é importante lembrar que os participantes do ritual são uma parte tão importante
quanto os especialistas, como os xamãs (ver Lévi-Strauss).
Em março de 2006, em uma conversa informal com o professor Anésio Pinto, morador da
Vila Santa Cruz, e filho do falecido pajé, Ricardo Pinto (primo/irmão, como os índios dizem, ou
irmão classificatório de Afonso Pinto), ele falou um pouco sobre sua experiência pessoal e familiar
e explicou a relação dos koipihapati com os vivos. Ele me contou que seu pai morreu “devido a
outro pajé, que disputavam quem tinha mais força”, outros alegam que ele tinha diabetes. Ele disse
acreditar que foi um pouco de cada coisa. “Tinha um pajé que não gostava de nossa família e
ameaçava meu pai e que dizia que matou ele”. “Os pajés colocavam doença um no outro para ver
quem era capaz de curar, para ver quem tinha mais força”. Seu pai aprendeu seus conhecimentos
no Ipegue, com sua avó, lá eles tinham uma casa de pajelança. Disse que quando as pessoas
duvidam de seu poder, o “pajé faz o mal” para fazê-los acreditar nos seus poderes.
Em outubro de 2004, conversamos com Adelino José, morador da Aldeia Argola que falou
de diversos assuntos, política, religião e etc. Disse que muitas pessoas procuram ainda os curadores
existentes. Falou que estes não são mais tão poderosos como os de antigamente. Disse que assistiu
a um Oheokoti uma vez quando era pequeno, e que os pajés se reuniam e ficavam lançando desafios
um para o outro; um fechava a mão e aparecia um “peixe pequenininho” e desafia algum outro a
engoli-lo sem morrer, para provar que tinha poder”. Falou que quando morre um pajé, aparece
uma estrela no céu, fica três dias e depois ele morre. Falou que no dia de São João, o João Felipe,
curandor, faz festa e toda a comunidade vai lá “pagar promessa” ao Santo. Ele contou que também
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
211
os curandores “tem sua doutrina”: não podem dormir com mulher durante três dias quando vão
fazer cura; tem de fazer jejum. Ele disse que os Pajés invocam os espíritos de outros pajés mortos.
Falou que os curadores tratam doenças causadas por assombração, por exemplo, quando uma
pessoa está andando de noite e ouve um assobio, ou chamar seu nome sem ter ninguém. Tudo isso é
somente pajé que cuida.
Estes dois depoimentos indicam um fator que não se pode perder de vista; assim como existe
uma relação de poder entre os koipihapati e os vivos (que podem ser perseguidos, sofrer pela ação
dos primeiros), existe também uma relação de poder entre os koixomuneti/curandores entre si. Uma
luta se estabelece, uma luta, uma medição de força, de poder mágico-religioso e Oheokoti se
apresenta assim ou se apresentou - como uma luta, uma disputa de poder entre os curandores. Este
ritual pode se inserir num contexto de lutas reais entre curandores, baseada em relações de
inimizade que podem começar ou se estender para o domínio mágico-religioso, como é o caso do
pai do professor Anésio Pinto, citado acima, que teria morrido “por trabalho” de outro pajé, inimigo
de sua família. O Oheokoti, que era realizado em grupo segundo as informações recolhidas na
antiga Vila Cruzeiro, poderia assumir o caráter de uma disputa de grupos “de curandores”
(constituídos na base de relações de parentesco e residência, como acima indicamos), já que os
grupos poderiam se visitar entre si para promoverem tal disputa. Esta dinâmica de oposição
koipihapati x vivos, xamã x xamã, é fundamental para compreender as relações comunitárias
étnicas.
O protestantismo indígena
Quando o cristianismo na forma de sub-tradição católica se estabeleceu definitivamente nas
comunidades Terena através dos missionários no século XIX , existia uma cosmologia indígena
específica, organizada através dos koixomuneti que eram também líderes políticos. A introdução de
ação missionária e da sub-tradição protestante se fez somente a partir do início do século XX, e
encontrou já um xamanismo articulado com o cristianismo católico. As disputas políticas analisadas
no capítulo 3, a luta entre Missão Protestante e SPI, e a oposição dos índios ao regime tutelar
ajudam a explicar a difusão do protestantismo enquanto sub-tradição cristã dentro das comunidades
Terena do ponto de vista político. Mas na realidade existem razões mágico-religiosas que precisam
ser consideradas para entender o fenômeno do protestantismo entre os Terena, seu lugar e
significado. É isto que tentaremos fazer agora.
Podemos falar de um “protestantismo indígena” porque a sub-tradição protestante se
desenvolveu sob uma forma organizativa indígena (hoje existem diferentes igrejas que se
autodenominam indígenas, como a Igreja Evangélica Indígena UNIEDAS, talvez a mais importante
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
212
do tipo no Mato Grosso do Sul). Mas é uma tradição local, indígena, do cristianismo, não somente
do ponto de vista da organização social, mas também da dos significados simbólico-culturais
associados a práticas evangélicas, como veremos abaixo.
Em Cachoeirinha, uma das primeiras coisas a saltar aos olhos aos visitantes, são as Igrejas.
Nos centros de todas as aldeias, sempre existem Igrejas Católicas, e também distribuídas de forma
mais dispersa, as edificações das Igrejas Evangélicas. Descrever a diversidade destas instituições, é
um passo inicial necessário para a compreensão da experiência cultural do grupo como um todo.
Partiremos desta dimensão mais tangível da experiência religiosa, para fazer nossa descrição e
análise.
Foto 10- Igreja Evangélica Indígena UNIEDAS.
Como já dissemos, em Cachoeirinha existe uma diversidade de Igrejas. Na Sede, por
exemplo existem cinco igrejas: a Igreja Católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a Igreja
UNIEDAS (União das Igrejas Evangélicas da América do Sul), a Assembléia de Deus do Mato
Grosso, Assembléia de Deus Emanoel e a Assembléia de Deus Missões. Na Argola, existe a Igreja
Católica Nossa Senhora Aparecida, a Igreja UNIEDAS, a Igreja Assembléia de Deus Indígena e
Assembléia de Deus-Missões. No Morrinho, existem duas Igrejas: a Igreja Católica Cristo
Redentor e a Assembléia de Deus-Emanoel. Na Babaçu, existem três Igrejas: a Católica Nossa
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
213
Senhora da Conceição, a Igreja Presbiteriana Renovada; na Lagoinha existe apenas uma Igreja,
a Católica Santíssima Trindade.
O cristianismo é assim uma tradição cultural presente em Cachoeirinha, dividida em
catolicismo e protestantismo/evangelismo, e ainda diversificada e particularizada na multiplicidade
das denominações religiosas existentes. No entanto, devemos observar que existem algumas
diferenças significativas entre as igrejas católicas e evangélicas.
Com relação às Igrejas ainda é importante notar como elas surgem e ocupam diferentes
lugares territoriais. Normalmente as Igrejas aparecem como tendas anexas às casas das famílias, e
as que dispõem de construções, como a UNIEDAS, a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a
Assembléia de Deus, normalmente também estão estruturadas em torno de certas famílias e grupos
vicinais. Desta maneira existe a sobreposição da dimensão religiosa-ritual com o domínio do grupo
doméstico, no qual se situam as atividades religiosas.
Na Sede, por exemplo, a Igreja Católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, fica localizada
no centro da vila principal, em um espaço que poderíamos dizer comunitário, próximo do campo de
futebol. No Babaçu, no Morrinho e na Lagoinha o mesmo fato ocorre. Na Argola, isto acontece
tanto com a Igreja Católica quanto com a UNIEDAS.
Com a maioria das Igrejas Evangélicas, no entanto, isto não acontece. Por exemplo, na Sede
a Igreja Evangélica Assembléia de Deus - Mato Grosso, foi construída num terreno de uma família:
a do seu Pastor, Zacarias da Silva. A Igreja UNIEDAS foi construída num terreno do Posto da
FUNAI, cedido nos anos 1980. Mas a maior parte dos dirigentes da Igreja pertencem a uma rede de
grupos domésticos interligados por parentesco que residem em torno da Igreja; a Assembléia de
Deus Emanoel, tem sua sede na residência de Rafael Albuquerque, dirigente responsável pela
Igreja.
Desta maneira, podemos falar que existe uma diferenciação na acomodação das Igrejas, por
conta do próprio processo histórico de colonialismo interno na região do Pantanal do Mato Grosso
do Sul. As Missões Católicas foram as primeiras a se estabelecerem, e as primeiras a intervirem
diretamente junto aos Terena, em todo o estado do Mato Grosso ainda no século XIX, e com os
Terena em particular. O catolicismo foi à primeira tradição cultural cristã a se fixar dentro do
território Terena de Cachoeirinha, devido à relação Igreja-Estado.
Em Cachoeirinha, especificamente, a construção da primeira igreja data da década de 30 do
século XX. Vejamos o que um documento extraído das crônicas da Paróquia Nossa Senhora do
Carmo em Miranda:
“Dia 11 de Agosto de 1931, Padre Affonso e José (Branco) com o Arquiteto Dr.Arlindo Jorge
foram para Cachoeirinha para ver o que podia ser feito quanto a uma capela para os índios.
Eles tem um lugar muito lindo para a capela, diretamente em frente à casa do inspetor. Eles
também já tem 15.000 tijolos para a capela e os índios são muito alegres e tem muito
entusiasmo.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
214
Dia 20 de setembro de 1931: Domingo. Padres Affonso e João foram para Cachoeirinha para a
colocação da pedra fundamental da capela nova. Padre João realizou a missa dentro das
paredes da capela nova. 98 índios assistiram a missa.
Dia 01 de novembro de 1931: Padres Affonso e Frederico foram para Cachoeirinha para a
inauguração solene da nova capela. Esta é a primeira capela em Mato Grosso a ser dedicada a
Nossa Senhora com o titulo Nossa Senhora do Perpetuo Socorro. Padre Affonso deu a benção
solene da capela. Esta é a primeira capela. Padre Frederico celebrou a primeira missa na nova
Capela. Durante houve recitação do terço com cânticos. Muitas pessoas vieram de Miranda,
até de Bela Vista, Brasil.
Três touros foram doados a festa com cerveja e vinho. Houve uma grande festa e todos
gostaram imensamente. Os índios ofereceram também a musica e uma dança típicas. Houve 08
batismos e dois casamentos. Os índios contudo não foram beber as bebidas alcoólicas”.
A Igreja Católica de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro foi a primeira a ser construída em
Cachoeirinha. No dia da inauguração da Igreja, 98 índios estavam presentes. Isto corresponde a
aproximadamente, 25% da população de Cachoeirinha no início da década de 1930, que era de 507
pessoas. (Cardoso de Oliveira, 1976, p.72, citando censo do SPI de 1927, indica tal número). Pelo
que indica o documento, a Missa foi acompanhada também por uma festa e por “danças típicas”.
Esta estrutura ritual se mantém até hoje, como poderemos ver mais à frente.
Até os anos cinqüenta, os católicos seriam os únicos a estar organizados em Cachoeirinha.
Vejamos como Cardoso de Oliveira descreve a situação naquele momento: “A única Igreja de
Cachoeirinha é Católica, dos padres norte-americanos da Ordem dos Redentoristas e sediados em
Miranda e Aquidauana, donde percorrem as aldeias Terena. A comunidade é caracterizada por sua
resistência a entrada de missionários protestantes, e seus componentes se dizem católicos, mais por
auto-definição. Contam-se apenas duas famílias protestantes, ambas vindas do Bananal”. (Cardoso
de Oliveira, op.cit, p. 89).
A introdução de uma nova denominação religiosa em Cachoeirinha se daria através da
Inland South-American Missionary Union, que primeiro se fixaram na aldeia do Bananal, e como
indica Cardoso de Oliveira teria sua influência aberta por estas duas famílias. A União Missionária
protestante cresceria em Bananal através de um conflito político com o SPI, graças a figura de um
“capitão”, o Marcolino Wolilly. A difusão do protestantismo esteve desde o início diretamente
associada ao faccionalismo político. A sua difusão pelas demais aldeias Terena reproduziria esta
tendência.
Pelo que levantamos através de entrevistas e conversas informais, a formação de uma Igreja
Evangélica em Cachoeirinha somente se daria nos anos setenta, depois inclusive da retirada dos
missionários americanos, e a formação de uma Igreja Especificamente Indígena, a UNIEDAS, em
Bananal. Vejamos um pequeno histórico da UNIEDAS contido nos estatutos desta Igreja:
“No início do século XX, na providência de Deus, o Rev, Joseph A. Davis, chegou a entender a
necessidade de uma efetiva distribuição do evangelho nos campos missionários da América do
Sul. A fim de realizar sua visão, o jovem pastor adotou o seguinte programa: a) o cumprir
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
215
literal da grande comissão do nosso senhor Jesus Cristo, na proclamação do evangelho,
principalmente entre povos indígenas do vasto interior da América do Sul; b) estabelecer das
igrejas evangélicas nacional; c) preparar um ministério nativo do país onde se encontra o
obreiro missionário. (...) Em 1912, os primeiros missionários, revs. João Hay e Henrique
Whittington, começaram seu trabalho no Brasil entre os índios Terena , na aldeia do Bananal,
distrito de Taunay, Estado de Mato Grosso. Os primeiros crentes sendo Georgina Lili, Honório
Massi, Henrique Pereira, eram batizados no dia 31 de dezembro de 1916. No mês de janeiro de
1971, o senhor diretor da South American Indian Mission Inc , enviou dos EUA, o seu
representante Rev. Roberto Anderson que, acompanhado pelos Revs. David Snyder, então
representante da “Missão” no Brasil, Raymond E. Rosse Gordon Dudley Kinsman, transmitiu
aos representantes da Igreja reunidos em Taunay, a sugestão do senhor Diretor para
nacionalizar o trabalho evangélico fundado pela missão, no propósito de estendê-lo a todo o
território nacional. Em abril de 1972, no sul do Estado de Mato Grosso, as Igrejas Evangélicas
criadas pela South American Indian Mission inc, decidiram fundar uma união, que toma o
nome de União das Igrejas Evangélicas da América do Sul, com administração, governo e
nome próprio”. (Estatutos. P. 2)
A primeira congregação da UNIEDAS em Cachoeirinha seria formada logo depois, em
meados dos anos setenta, na aldeia Argola. Uma das famílias que criou esta igreja é a do professor
Genésio Farias, que participou da fundação da UNIEDAS em 1972 em Bananal, e se mudou para
Cachoeirinha. A partir de então, ficaram estabelecidos o protestantismo e o catolicismo como
variações do cristianismo enquanto tradição cultural, dentro de Cachoeirinha.
Os fundadores da Uniedas na Sede foram Raul e Felix Antônio. Conseguiram o terreno para
construir a Igreja na época em que o cacique era Dionísio Antônio. O Félix Antônio era o presidente
do Conselho Tribal nesta mesma época. Félix e Raul se converteram em 1983 e a principio a Igreja
ficava no seu próprio lote. As demais Igrejas iriam surgir por processos de fissão faccional, sendo
difícil separar as questões religiosas das políticas. A maior parte dos dirigentes de igreja UNIEDAS
foram membros da Igreja Católica, e as demais Igrejas evangélicas tiveram um surgimento mais
recente, especialmente a partir dos anos 1990.
A igreja tem como dirigentes: Antônio Oliveira, vice-pastor: Martins Lemes, casado com
Eunice Elias e mora no Rio Branco; Missionário: Rogério Lemes, filho de Martins Lemes - mora no
rio branco; Diácono - Amarildo Júlio; secretário: Walter de Oliveira, irmão de Antônio, solteiro,
mora com seu pai, Secretário: Adilson Felipe, casado com Adenice Júlio, irmã do Amarildo e mora
na vila Serradinho. Ancião: Firmino Augusto, casado com Lídia Samuel (mora na vila Serradinho),
Celestino Gregório, casado com Brautília Antônio e morador da vila Rio Branco - do outro lado do
campo de futebol. O Pastor Antonio Oliveira é genro de Anésio Pinto, e faz parte do grupo vicinal
da “vila rio branco”, um das vilas que se formou dentro da antiga “Cruzeiro”, por meio da ação de
Felix Antonio, que atuava com Dionísio Antonio, um dos lideres políticos residente na vila santa
cruz, também pertencente a antiga cruzeiro. É uma Igreja que surgiu dentro de um conjunto de
grupos vicinais que se destacaram de uma antiga vila.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
216
Entretanto, por hora queremos registrar dois fatores fundamentais para os desdobramentos
da pesquisa: 1) a distribuição concreta do cristianismo enquanto tradição cultural entre os Terena se
dá tanto pelos canais específicos desta própria tradição (ou seja, pela instituição igreja), quanto pela
organização social do grupo. Ou seja, ao que nos parece, as igrejas existentes se superpõem as
famílias extensas e grupos domésticos, sendo na verdade atividades de socialização incorporadas
pelo grupo étnico através das suas unidades sociais específicas; 2) o aparecimento das diversas
igrejas, e a particularização da tradição cultural cristã em múltiplas igrejas, acompanha também
uma dinâmica política interna, sendo difícil separar a questão religiosa da questão política. Desta
maneira, as Igrejas se formam por processos de luta política, que envolvem freqüentemente disputa
por recursos e posições de poder (cargos políticos como o de cacique, empregos e etc.).
Mas a importância do estamos chamando de “protestantismo indígena” não deriva somente
do papel político das Igrejas e líderes religiosos, mas existe também uma luta mágico-religiosa, que
coloca no centro das questões, a eficácia da cura dos xamãs e dos benzedores em geral e luta contra
eles e seus poderes.
Com relação ao cristianismo das diferentes igrejas evangélicas, podemos dizer que existe
também uma disputa pelo poder da “cura”. Em conversa com Adelino (ex-pastor da Assembléia de
Deus Indígena Argola) e também com Ademar Polidório (Pastor da Assembléia de Deus Missões),
eles me falaram que em suas respectivas Igrejas muitas pessoas foram “curadas”, através das
sessões de oração.
As Igrejas Evangélicas se estruturam, em parte, no combate ao “espiritismo” (forma pela
qual os koixomuneti e o xamanismo são classificados), e também pela prescrição de um código de
conduta determinado (especialmente a proibição do consumo de álcool e participação em bailes e
jogos). Alguns outros casos nos foram relatados, por membros de outras Igrejas Evangélicas, como
a UNIEDAS.
Um desses casos foi relatado por Amarildo Júlio, diácono da UNIEDAS, quando
conversávamos sobre koipihapati e religião em Cachoeirinha.
E se acontecer com um membro de uma Igreja?
Ai, é outra coisa, ai ele vai e procura o pastor ou o grupo de oração que agente chama, já
aconteceu várias vezes ai, na Igreja. Tem uma menina que mora aqui na Vila Nova, mas não é
que viu o koipihapati. De repente dentro da Igreja mesmo os irmãos começa a orar aquela
oração bem forte, ai começa a manifestar esse tipo de koipihapati no corpo da menina, o
espírito mau no corpo menina, dentro da própria Igreja, aí cai no chão começa a gritar
palavras que a gente não entende. Ai o Pastor chama o grupo da oração e quando é uma
menina aí que tem ser mulheres, quando é rapaz, aí é os homens. (...)
Oração pedindo pra libertar. Nós que somos cristãos, segundo a bíblia, o espírito maligno está
ao nosso redor. Por exemplo, aqui agente tá conversando, o diabo fica ao redor da pessoa, pra
destruir, pra amaldiçoar essa pessoa. (...) Mais ou menos aconteceu com essa menina. Chama
Jéssica Polidório. Aí o espírito mau com ela começou a manifestar. Aí as mulheres foram lá,
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
217
levaram no púlpito, porque é como se fosse o altar de Deus, começaram a orar a favor dela, e
ela começou a brigar, é forte e, a menina não é forte, mas quando o espírito mau começou
manifestar na vida dela, começo chutar, bater... Ai quando as irmãs começaram a orar a favor
dela, ai começou essa luta dela. Mais ou menos uns 15 ou 20 minutos de oração, aí começa a se
libertar. Quando o espírito do Diabo manifesta na vida de uma pessoa ele pede mais a água,
porque diz que aquele lugar onde levou o espírito daquela menina, diz que era bem quente, tipo
inferno que a bíblia fala, ela finge que foi embora, finge que já saiu do corpo da menina, mas é
mentira.... Só que o pastor foi lá pegar essa água, ai começou a ungir essa água através do
espírito santo, ai esse diabo não bebeu, porque quando pastor ungiu é como se fosse um sangue
de cristo, ai não conseguiu beber. Começou a falar que queria água de outro tipo. Ai oraram
novamente, até que libertasse. Ai começou falar, vou embora não agüento mais vocês.Ai
oraram, oraram, ai a menina ficou curada, ficou sã.
Aí começaram a fazer pergunta pra ela. Ai começou testemunhar o que aconteceu com ela. Eu
já vi vários ai na Igreja. Essa menina contou que tava num lugar bem longe daqui, e era um
tipo um lugar bem quente, um sol bem quente, aí amarraram o braço dela, o perna, o cabelo
assim amarrado
99
. (Amarildo Júlio, Março/2006).
Ou seja, o Diabo é associado ao koipihapati, a possessão; o “espírito mau” que possuiu a
jovem Jéssica Polidório e provocava certas doenças foi expulso graças a intervenção do grupo de
“oração” da Igreja e ao poder ritual do pastor (que administrou a água “ungida pelo espírito santo”).
Assim, as Igrejas Evangélicas atuam e disputam a cura com os “xamãs e benzedores”, através dos
cultos de oração, e o pastor da Igreja tem também um poder mágico-religioso que se exerce sobre os
koipihapati. A pauta de obrigações das igrejas evangélicas acaba sendo organizada em função da
disputa pela eficácia do “poder” de cura manifesto nela. As igrejas evangélicas entram no circuito
disputando “a cura” (pela oração), e o fato de ser “crente” não isenta um individuo ou família se ser
atacada por uma doença causada por um feitiço ou espírito, ou seja, ela continua sobre a esfera de
ação de um koixomuneti.
Quintino Mendes, que é tesoureiro da UNIEDAS da Argola, mas morador da SEDE,
também deu informações sobre os “maus espíritos”. Contou que iriam fazer campanha de oração
(na terça 28/03/2006), na Argola. Falou que as pessoas vão a Igreja, assistem aos cultos e palavras
de oração, e ao final fazem uma corrente e quem está com o “espírito mau” ali mesmo manifesta e o
pessoal tira o “bicho” do corpo da pessoa (analogia para indicar o diabo ou o mau espírito
100
). Falou
que os mais vulneráveis são as criancinhas principalmente as meninas de 11, 12 e 13 anos e falou
que o mau espírito entra e se instala no corpo das pessoas (também os velhos, são alvos destes
espíritos). É comum que as Igrejas Evangélicas se dediquem ao “culto de oração” com a finalidade
de combater os “maus espíritos”.
Esta é uma preocupação tão fundamental que em certa ocasião em março de 2006 estávamos
na aldeia Babaçu conversando e pudemos ouvir no programa de rádio, uma pregação realizada por
Eliseu Lindolfo Sebastião (da Igreja UNIEAS), que falava da necessidade de apoio ao
99
Esse caso se assemelha em muito aos casos de “roubo de alma”, descritos por Oberg como consitutivos da
cosmnologia Terena, e que aparecem também nos relatos de Almeida Serra.
100
O pajé também retirava animais do corpo que seriam a causa das doenças.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
218
acampamento “mãe terra” e também sobre as “casas que eram afetadas por forças sobrenaturais e
que somente com oração era possível trazer a solução para esses problemas”.
Pudemos acompanhar um “culto de libertação” em 2006. Às 19 h fomos à tenda da Igreja
Missionária Tabernáculo de Jesus, localizada na Vila Nova Esperança. Com cerca de 30 m2, fraca
iluminação de lâmpadas, e ficando a tenda na parte da aldeia mais isolada da vila principal e muito
escura. O culto foi conduzido pelo pastor Atanásio, contando com a participação de um evangelista
de nome Álvaro, e o pastor Luis, seu pai, ambos de Campo Grande. Atanásio conduziu o culto,
sempre alternando o português e o Terena/Aruak. Mencionou a presença do purutuye e de outros
visitantes. Cerca de 30 pessoas estavam na tenda. Duas filas de banco de madeiras serviam como
assentos; os da esquerda eram ocupados pelos homens e meninos e os da direita pelas mulheres e
meninas. Depois da apresentação Atanásio chamou as mulheres para apresentarem “corinhos”
(cantarem hinos evangélicos), depois os homens e as crianças foram convidados a fazer o mesmo. A
música era sempre cantada em volume muito alto (um amplificador garantia isso, acompanhadas de
palmas, e gritos e murmúrios de aleluia. Então o evangelista Álvaro tomou a palavra e falou que
aquele era uma primeira noite de 3 dias de culto de cura e libertação “para livrar de macumba e
exu”. Depois o pasto Luis fez uma pregação abordando o tema da “cura dos cegos por Jesus”,
fazendo uma analogia com a cegueira para com a religião.
Ao final Lourenço Muchacho fez uma oração e o pastor Atanásio tomou a palavra e chamou
a frente aqueles que precisavam de oração e benção para as famílias, para recebê-las, pedindo que
levassem pedaço de “roupa ou foto”; seis mulheres, algumas delas chorando, foram a frente
segurando roupas e pedaços de toalha. Álvaro, sempre falando muito alto, foi caminhando e ficando
frente a frente com cada uma das mulheres colocava a mão em suas testas e pedia a cura e a
libertação e a benção de suas famílias. Depois disso o pastor deu mais algumas palavras e culto foi
encerrado.
O importante a observar neste culto é como os “objetos” de uso pessoal são utilizados de
forma “simpática” para realizar pedidos de “cura” neste culto. Assim, o “culto de libertação”, as
orações se apresentam como alternativa de “cura” para males de ordem sobrenatural. Cabe destacar
a presença no culto de Lourenço Muchacho, que serviu como nosso informante para diversas
questões. A sua história de vida é bem ilustrativa de como existe uma cosmologia indígena que
serve contexto simbólico-cultural na qual se inscreve a tradição do protestantismo indígena.
Vejamos a história de vida de Lourenço Muchacho. Ele nasceu em 10/08/1965 na aldeia
Cachoeirinha, sendo filho de Antonio Muchacho (conhecido também como Gato Preto) e Margarida
Candelário. Trabalhou na lavoura dentro de Cachoeirinha, e também como assalariado nas turmas
que iam para o canavial. Tornou-se cabeçante durante algum tempo, e também atuou nas
comunidades eclesiais de base da Igreja Católica, chegando a participar de um Encontro das CEB´s
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
219
no Rio de Janeiro no final dos anos 1980. Atuava dentro da Igreja Católica, sendo também seu
dirigente. Elegeu-se cacique em 2002, permanecendo no cargo até agosto de 2005
aproximadamente, quando renunciou sobre pressões dentro da comunidade. Neste mesmo contexto
ele abandonou a Igreja Católica e se integrou na Igreja Evangélica Tabernáculo de Jesus. Numa
conversa com Lourenço perguntamos:
Agora você ta atuando com o que?
Eu estou na Igreja Missionária Tabernáculo de Jesus, Pentecostal. Agora é que chegou
Ministério. (...) É o pastor Atanásio Valério.
Você era da Igreja Católica? Porque você foi pra essa Igreja?
Eu era da Católica.Ai passei para o Igreja Evangélica. Houve muita dificuldade, muito
problema, muito perseguição. Muito perseguição. Também por outro lado eu pensei muito
tempo, que na Igreja Católica eu fui coordenação, ai o pessoal me nomearam para ser primeiro
dirigente da Igreja Católica, ai fiquei pensando, pensando bastante, estudando analisando o
que eu fiz, Ai chegou na minha cabeça eu fui pregador, preguei bastante na Igreja Católica,
mas só que eu não levava em prática, eu pensava comigo eu tô enganando pessoa e ao mesmo
tempo eu tô enganando a mim, porque eu saia pra fora e se lá na frente se eu quisesse beber eu
bebia. Então eu bebia com meu próprio irmão da Igreja, então dessa forma eu estou perdendo
o respeito. Eu estou mentido para essa pessoa, quer dizer mentindo para mim mesmo. .
Minha esposa passou por uma grande dificuldade, uma provação muito grande. Eu tenho um
irmão lá em Campo Grande que trabalha no Centro. Aí levei minha esposa para lá, sabe que
ele me chamou, “leva pra lá que eu vou tratar ela”, ai chego lá, fico lá uma semana, ele muda
a versão das coisas. Trabalhou, trabalhou bastante, a minha esposa foi piorando, piorando,
piorando, ai quando ele viu que não ia dar conta daquela enfermidade que ela sentia... Quando
entrou esse 2005, ele falou para mim esse ano seu pai vai morrer. Ele falou pra mim. Eu fiquei
meio chateado, porque ele chamou para tratar minha esposa e chego lá ele falou de outra
coisa. Desse jeito aí você tá me ofendendo. Mas enquanto Deus existir, porque o mau desejo
que você tem contra meu pai isso não vai acontecer. Hoje meu pai tem 92 anos. Passou 2005,
entrou 2006 e vai continuar ainda.
Aí dessa forma comecei a desacreditar tudo. Desacreditar de mim mesmo fui colocando esse
defeito comigo mesmo. Ai falei sabe de uma coisa vou virar evangélico. Isso tem um ano.Ai por
isso que eu deixei o cargo de cacique. Vou renunciar o cargo de Cacique e vou para Igreja,
cheguei lá fiquei um mês, ai me deram um cargo e ocupei cargo de diácono lá agora. Hoje tô
firme lá graças a Deus, eu acho que Deus fez um grande livramento na minha vida, porque
passei uma fase muito difícil, muito difícil mesmo, eu já não conseguia ficar tranqüilo, porque
era muito perseguição, perseguição do meu próprio patrício.
Sua esposa melhorou?
Ela fez tratamento, também fez muita oração. A gente tá na campanha toda noite. Melhorou
bastante.
Você levou ela em Campo Grande para tratar com quem?
Com um macumbeiro, era o meu primo/irmão, que trabalha no Centro Espírita, Benjamim. Ele
só mexe com Purunga e Centro. Aí comecei a perder a confiança que eu tinha com ele, se ele
não falasse isso pra mim, o mau desejo dele não aconteceu. Por isso que eu sai fora.
Depois que o tratamento dela não deu certo vocês fizeram o quê?
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
220
Voltamos pra cá, Aí falei com ela, vamos parar com isso. Vamos logo para a Igreja. Ai
melhorou, e o estado dela agora é normal. Só que ela é diabética.
E o que ela tinha?
É o seguinte, o povo indígena quando irmão do meu pai agente sempre seguia o que ele falava.
Ele sempre explicava, esse aqui não presta, isso aqui serve, aquilo lá não presta, porque eles
acreditava mais na natureza, acredita no espírito mau porque eles são purungeiro, eles
entendem isso, eles conhece, crianças não pode brincar lá pras 5 horas. 6 horas porque o
espírito mau começa andar. Então que acontecia com minha esposa, ela era muito perturbada,
depois que o pai dela faleceu começou uma grande perturbação. Então começou essa
perseguição, todo curandeiro que a gente ia, “foi o fulano que fez isso”, quem fez isso foi o
fulano, foi o fulano, ele mostrava quem era pessoa mas ao mesmo tempo ele pedia, não mexe
não, deixa ele”. Falei, como? Tá prejudicando minha esposa como é que eu posso deixar ele
assim, livre à vontade. Deixa ele, porque quem sabe nesse mês ai ele vai morrer. Até agora o
homem que eles fala que tá judiando da minha esposa o homem tá firme, tá saozinho (risos),
bem firme, aí eu falei, isso que é desengano. Falei larga mão, vou para a Igreja.
E a Igreja resolveu, como é que o pessoal faz?
Porque na Igreja Evangélica, tem varias igrejas evangélicas aqui, tem um que tem doutrina,
tem o que não tem doutrina. Então a nossa aqui nós temos a campanha de 7 noites. Essa
campanha tem a tema dela na bíblia, quando é noite, ai quando é madrugada, a gente costuma
orar 7 madrugada.Quando é meio dia, é meio dia. Ai todas a coisas que quer nos prejudicar a
gente já percebe que aquela coisas não vai dar certo, a gente é avisado né. Hoje eu acredito
muito na visão dos grandes pastores. Porque eles falaram para nós. (...) Me deram uma
instrução. Para o cristão ser forte na presença de Deus tem que orar, têm que ofertar, tem que
jejuar. Eu falei tá bom.
Como é que é o trabalho que o pessoal faz?
Essas coisas assim vêm através do sonho da pessoa. Quando a pessoa é fraca de espírito,
quando o espírito sai fora de nós, ai vê a nossa fraqueza, vê aquele medo, aquele depressão
muito grande. Quando esse fracasso do nosso próprio espírito, a gente começa a ficar ligado
naquilo que a gente tá sonhando e o próprio sonho prejudica a gente. (Lourenço
Muchacho,Março/2006).
A história de vida Lourenço Muchacho ilustra bastante bem o tipo de circuito que as crenças
xamanísticas estabelecem: a esposa de Lourenço, Luzia Albuquerque, começou a sofrer
“perturbação” após a morte de seu pai. Lembremos que um dos sintomas das doenças provocadas
pelos “koipihapati” é a “loucura” (“fica doido”, ele disse). A partir do momento que tais sintomas
foram identificados por ele e sua família, eles seguiram as orientações que as crenças associadas ao
xamanismo exigem:procuraram um “curandor” de renome em Campo Grande, Benjamim
Muchacho primo/irmão de Lourenço, e que mora na capital há mais de 50 anos, e que possui um
Centro Espírita na sua casa, onde trabalha com “umbanda” e “pajelança”. O tratamento da sua
esposa levou mais de uma semana e não teve resultados, e ainda, Lourenço se desentendeu com
Benjamim, por conta da previsão de morte de seu pai. Então outros “curandores” foram procurados,
e o tratamento não conseguiu dar resultados, apesar de vários deles terem identificado que na
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
221
verdade a doença da esposa de Lourenço foi causada pelo trabalho, pelo feitiço de um outro
“curandeiro”. A descrença de Lourenço para com o catolicismo e o xamanismo, se deram num
mesmo movimento, pois como vimos, sua participação no catolicismo em nenhum momento é vista
como entrando em contradição com o xamanismo. Na realidade, foi a incapacidade dos curandores
ou purungueiros em efetivar a cura, a persistência da doença e a necessidade de proteção contra o
trabalho de um curandor que estava tentando prejudicá-lo, que o levou a romper relativamente com
suas relações anteriores e aderir a Igreja Tabernáculo de Jesus. Esta Igreja fica localizada numa área
pertencente a antiga Vila Mangao, e próxima a residência de Lourenço.
Depois de sua entrada na Igreja Evangélica, a “oração e os cultos” fizeram algum efeito, e
sua permanência na Igreja está associada a eficácia mágico-religiosa encontrada nela. Assim, a
“conversão” para a Igreja Evangélica, a ruptura com Igreja Católica, não representa de forma
alguma a ruptura com as crenças indígenas e as práticas xamanísticas, ao contrário; é pela
reafirmação da crença nos koipihapati e no poder dos “curandores”, já que antes de ir para a Igreja,
Lourenço percorreu todos as etapas exigidas pela concepção do processo de cura Terena. A ação do
cristianismo evangélico indígena se dá para combater os males sobrenaturais provocados pelos
maus espíritos, mas se coloca dentro da mesma cosmologia, na mesma concepção simbólico-
cultural que distingue dois tipos de doença: aquelas que derivam dos espíritos e precisam ser
tratadas por mecanismos mágico-religiosos (seja a sessão de cura dos pajés, seja a sessões de oração
nas Igrejas), das que são de origem humana, e são tratadas por médicos.
As Festas de Santo: Nossa Senhora Aparecida.
As Festas de Santo são realizadas ao longo do ano. Existem festas de padroeiros de aldeia,
padroeiros de família, que fazem com que durante o ano, múltiplas festas sejam realizadas. Existem
diversas “Festas de Santo” na aldeia Cachoeirinha. Na Sede, são comemoradas as datas de “Santa
Cruz” (02/05) e Nossa “Senhora do Perpétuo Socorro” (27/06). Cada setor ou aldeia possui seu
“santo padroeiro ou padroeira”: Argola é Nossa Senhora Aparecida (12/12): Morrinho é Cristo
Redentor (23/11); de Lagoinha é a Santíssima Trindade (02/06) e de Babaçu é Imaculada Conceição
(08/12). Além das festas dos padroeiros das aldeias, existem também as festas promovidas pelos
diferentes grupos domésticos, que escolhem cada um os santos de sua preferência para a realização
de cultos. São estas festas que compõem o complexo ritual.
Iremos agora descrever uma situação social que auxiliará na composição da nossa
etnografia. É a descrição de uma festa de santo, realizada na aldeia Argola. A festa de santo
começou com uma novena, ou seja, um rito católico que dura, nove dias. A novena culmina com a
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
222
festa de santo, neste caso, realizada no dia 12/10, dia de Nossa Senhora Aparecida, santa padroeira
da aldeia Argola. No total, foram 11 dias de atividades rituais.
No dia 02, às 19:30h pude acompanhar o início da novena. Chovia nesta noite. Ela consistiu
na concentração na Capela de Nossa Senhora Aparecida. Quem conduzia a cerimônia, foi Aldo da
Silva, morador da Argola, dirigente da Igreja Católica. A princípio foi feita à leitura da bíblia;
depois foi realizada uma procissão até uma casa (de um irmão de Alcindo Faustino, pastor da Igreja
Assembléia de Deus Indígena). Na procissão, se cantavam algumas músicas cristãs e eram recitadas
algumas orações. A imagem da Santa era conduzida na frente, encabeçando a procissão. Ao se
chegar a casa, a imagem da Santa foi colocada na sala sobre uma mesa, e a algumas pessoas
entraram, outras ficaram pelo lado de fora. Lá foram rezadas algumas orações, as mesmas feitas
durante o trajeto da procissão (de aproximadamente 500 metros, da Igreja até aquela residência).
Depois da distribuição de pão e refrigerante, o grupo de cerca de 30 pessoas ficou ainda
conversando um pouco, e em seguida se dispersou.
Este primeiro dia de novena apresenta a lógica de funcionamento do evento como um todo.
A Festa do Santo começa com a circulação da imagem dos santos pelas casas, pelas unidades
residenciais familiares. A imagem da Santa, no primeiro dia, sai da Igreja em direção a uma casa;
depois a procissão tem início na casa em que imagem fica guardada e vai para outra casa, até
completarem-se nove dias.
Foto 11- Imagem sendo recebida por uma índia Terena.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
223
Ou seja, a procissão se repete nos demais dias da novena. Pudemos acompanhar também o quinto
dia da novena. Esta consistiu continuação da procissão, que iniciou-se na casa de Teresa Barbosa, e
terminou na casa de outro membro a igreja. A procissão teve inicio com a reza do terço, a leitura da
bíblia; depois as cerca de 35 pessoas, seguiram carregando as imagens e vela, e rezando e cantando
até chegar na casa. Lá a imagem foi levada para dentro, rezou-se uma ave Maria e Pai Nosso;
depois o grupo fez um círculo pelo lado de fora, foi servido pão e refrigerante e lida a bíblia, por
Nério José, um dos diretores da Igreja. Depois foi encerrada a atividade daquele dia.
No dia seguinte, às 19:30 h participamos da novena novamente. Ela teve inicio na casa de
Teresa (não consegui identificar o sobrenome), onde havia terminado no dia anterior; o rito foi o
mesmo, oração, leitura da bíblia e saída em procissão até a casa agora de Rufino Candelário (um ex-
cacique, membro de uma das famílias mais importantes da Argola). Chegando lá uma mulher pegou
a imagem da Santa e a colocou num pequeno altar dentro da casa; foram rezadas a ave Maria e Pai
Nosso, seguiu-se à leitura da bíblia e a palavra de alguns dirigentes da Igreja Católica. No dia
seguinte a procissão sairia dali, da casa de Rufino Candelário para a de Mauricio Candelário. No
último dia da novena, que não pudemos acompanhar (porque o horário foi mudado sem que
tomássemos conhecimento) a procissão sairia da casa de uma das famílias e retornaria a Capela de
Nossa Senhora Aparecida, um dia antes da festa da santa.
O Dia do Santo
O início da festa se deu logo pela manhã. Ao mesmo tempo em que se comemoraria a festa
da Santa, se comemorava a festa do “dia das crianças”, neste dia 12 de outubro. Por isso, na
programação da festa, a primeira atividade do dia seria a dança do bate-pau, mas com um grupo
exclusivamente composto por crianças. A concentração se deu na casa de Laurindo da Silva, pai de
Aldo da Silva, as 8:50h aproximadamente. Começaram a chegar às crianças que dançariam o bate-
pau. Eram 20 crianças, dez em cada coluna, azul e vermelha (xumono e sukrekeono). Saem
andando em formação pela aldeia: 2 colunas paralelas, cada um deles dava um toque no chão com
seu bastão e uma batida no bastão do companheiro da fila contrária. O destino seria também as
casas dos moradores locais. É feita uma primeira parada na casa do ex-cacique Tomás Martins, lá
eles dançam e recebem bolo e refrigerante. Depois saem e vão para a casa de outro ex-cacique, o
Rufino Candelário. Também dançam e é distribuído refrigerante e bolo para as crianças, em seguida
o grupo saiu e voltou para a Igreja Nossa Senhora Aparecida. O corpo de uma senhora, que morrera
no dia anterior, estava sendo velado e foi retirado para sepultamento naquela hora. Logo após teve
inicio o culto/missa, conduzidos por Estrogildo e sua Esposa, dirigentes da capela nossa senhora do
Perpétuo Socorro, da Sede.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
224
As crianças do bate-pau entraram e ficaram sentadas nas primeiras fileiras de bancos. Um
grupo de três jovens tocava musica e foi feita a leitura da bíblia e pregação. As 10:3h, mais ou
menos, foi encerrado o culto e reiniciado o bate-pau pela aldeia, o grupo retorna a casa de Rufino
Candelário, e ganham doces e refrigerantes. Saem e vão para a OCA (espaço do centro comunitário,
construído dias antes da festa), lá dançam os demais passos (o torneio de futebol já estava sendo
realizado paralelamente, com jogos acontecendo no campo ao lado da OCA). Cerca de 80 pessoas
assistiam a festa da Santa neste momento. O grupo sai novamente e vai para a casa de Carlito
Antonio, ao lado da Igreja Assembléia de Deus Missões. Dançam e recebem bolo e refrigerante e
doces. Voltam para a OCA e fazem alguns dos demais passos da dança do bate-pau; é feito o
batismo das crianças que dançam pela primeira vez. A dança se encerra com o "acenar dos lenços".
Ás 17:30h o grupo volta a casa de Laurindo da Silva, dançam, ouvem palestra dele (que tocava o
tambor) e é feito o encerramento.
Foto 12- Culto na Capela com o “Bate-Pau”.
Durante à tarde, foi realizado um torneio de futebol, reunindo times de Argola, dos demais
setores de Cachoeirinha e também de Campo Grande, vindo várias pessoas da Aldeia Urbana
Marçal de Souza para participarem da festa do Santo. Ás 19h, foi realizada uma procissão, sendo a
imagem da Santa Nossa Senhora Aparecida retirada da Capela, e levada até a “OCA”, que acabara
de ser construída. Cheguei por volta das 20h e a imagem de Nossa Senhora Aparecida já estava
fixada sobre uma mesa ao lado da OCA, numa casinha que faz parte do centro comunitário. Um
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
225
grupo de cerca de 30 pessoas estava reunido em torno da imagem da Santa. Os coordenadores da
Igreja Católica, Nério José e Aldo da Silva falaram. Também falou o ex-cacique Rufino Candelário.
As pessoas se aproximaram e acenderam velas aos pés da imagem encerrando-se a cerimônia
religiosa.
A noite aconteceria ainda um baile, com dança de quadrilha e música regional. Os bailes são
atividades esperadas. Mais de 40 pessoas dançavam nos grupos de quadrilha, ao som de música de
uma banda contratada em Aquidauana. Cerca de 80 pessoas se reuniram para assistir a quadrilha
(pessoas de Igrejas Evangélicas também estavam presentes, como da Igreja Assembléia de Deus
Missões e Indígena) assistindo e participando da festa. Depois de encerrada a dança de quadrilha,
teve inicio o baile, que vai até às 5h da manhã.
A Estrutura do Ritual da Festa de Santo.
Estamos chamando aqui de estrutura do ritual, o ordenamento das atividades (partes
componentes e seqüência de execução) e as relações entre elas, realizadas ao longo de vários dias, e
que se encerrou no dia 12/10, com a festa de santo. Podemos dizer que as “festas de santo” em
Cachoeirinha (e isto é válido para todos os setores), são compostas por um núcleo mínimo, com
seguintes atividades/ações: 1) novena, conjunto de ritos cristãos, realizados na fase que antecede o
dia do santo; 2) dança do bate-pau (hyokixoti-kipahê), realizada na manhã do dia da santa padroeira;
3) culto, realizado na igreja; 4) torneio de futebol, realizado na parte da tarde do dia do santo; 5)
procissão, realizada na noite do dia do santo, e imediatamente antes da ultima atividade; 6) as
danças (incluindo dança de quadrilha e baile com música regional). Nas festas participam os
“festeiros” (que promovem a festa, pagando suas despesas) e os “promesseiros”, que são aqueles
que fazem as promessas ao santo.
Estas atividades integram, de acordo com entendimento que estamos fazendo dos dados, um
determinado complexo ritual. Elas não devem ser vistas isoladamente, mas sim em seu conjunto.
Podemos dizer que, seguindo o que foi indicado por Cardoso de Oliveira, os Terena tem uma
cultura que articula dinamicamente as dimensões do sagrado-profano. Mas para além desta
distinção, que tem também um valor analítico real no caso Terena, e que poderíamos dizer ajuda a
classificar as atividades do ritual da festa de santo, na verdade no interessa mais identificar a
articulação concreta possibilitada por estes ritos, entre diferentes tradições culturais, no caso o
cristianismo e o xamanismo, e também a articulação de redes sociais e de parentesco, que vinculam
a dimensão mágico-religiosa a dimensão política da vida do grupo.
No caso da Argola, é importante registrar a história da própria festa. Pelo que pudemos
levantar, a festa da padroeira local teria tido início em 1973, quando a imagem de Nossa Senhora
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
226
Aparecida foi doada para a comunidade local. Nesta ocasião, o dirigente da Igreja Católica era João
Felipe, hoje um conhecido curandor/koixomuneti, que reside em Argola. As festas de Santo dos
Padroeiros da comunidade são festas tradicionais dos Terena. Mas não são somente as festas de
padroeiro que são realizadas ao longo do ano. Na verdade, a festa de santo da Comunidade,
acompanham festas dos santos preferidos das famílias, ou mesmo, dos curandores, que as
promovem com regularidade ao longo do ano. As festas de santo são promovidas como
“pagamento” pelas curas realizadas pelos koixomuneti, e como forma de manter a relação de troca
e proteção deste com o santo, e também com o curador/koixomuneti ou benzedor.
Ou seja, as festas de santo, não são apenas uma festa cristã, tal como vivenciadas na
experiência das relações comunitárias Terena. O rito, cristão-católico, se articula com as práticas e
crenças xamanísticas, especificas do grupo étnico. A incorporação das festas de santo se faz não
pela supressão automática das práticas e crenças mágico-religiosas relacionadas ao xamanismo, mas
ao contrário, se processam também através da mediação do xamã, o curandor/koixomuneti. Com
relação a este tópico, é interessante observar, por exemplo, a origem da festa de santa cruz.
Em certa ocasião, ouvimos uma narrativa de Elias Antonio, morador da vila América, ex-
diretor da Igreja Católica da Sede, que a festa de santa cruz teria sido motivada, por uma tragédia.
Uma epidemia atingiu Cachoeirinha, e várias pessoas teriam morrido.
E a data de Santa Cruz, por exemplo. Por que comemora Santa Cruz?
A Santa Cruz, antigamente morre muita gente, né. Enquanto não tem a Santa Cruz, morre
muito, criança, idoso. Aí tem um velho, pajé, então viram esse movimento daqui, aí entrou na
igreja, aí ele viu que não nada aqui na igreja. Então saiu na rua, ele viu que tá faltando a Santa
Cruz. Por isso que a juventude, os velhos, a gente morre. Porque não tem Santa Cruz, por isso.
Então chegou, assim, em casa, conversou comigo. Eu morava lá em cima ainda, chegou lá e
mandou fazer essa Santa Cruz. Aí levantei, conversei com comunidade, velho, idoso né, aí
concordou. Então, por isso, levantei a Santa Cruz. Fui eu que levantei. Eu que mandei.
Qual era o nome do pajé que procurou o sr lá na Igreja?
Gonçalo, que chama.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
227
Foto 13- Festa de Santa Cruz/2003.
O koixomuneti era Gonçalo Roberto, reconhecido como maior pajé de Cachoeirinha nos
anos 1950. Ele teria feito um trabalho, “chacoalhando” a purunga para ver as causas daquela doença
ter atingido de forma tão trágica o grupo. Ele teria descoberto que aquela doença teria atingido o
grupo por eles terem “descuidado” de dar a festa de santa cruz. A solução apontada pelo
koixomuneti foi construir uma capela de santa cruz, como forma de retomar a relação com o santo e
eliminar a “causa” das doenças e mortes, que não estavam no mundo material, e não se deviam a
condições médico-sanitárias, mas sim mágico-religiosas. É importante observar que “Santa Cruz” é
uma festa importante para todo o município de Miranda, não somente Cachoeirinha, mas que é
assim re-significada dentro do espaço aldeão, a partir da mediação do xamã e da cosmologia
indígena.
Além desta articulação entre diferentes tradições culturais, através da festa de santos, temos
também a articulação de variações de uma mesma tradição cultural, no caso o protestantismo, com a
festa. Como afirmamos em outro momento, as Igrejas Evangélicas se localizam na maior parte dos
casos, nas unidades domésticas. E uma das casas em que o “bate-pau” fez passagem, foi a de Carlito
Antonio, um dos dirigentes da Igreja Assembléia de Deus Missões. Outro elemento importante é a
participação dos membros das igrejas evangélicas na festa, principalmente nas atividades profanas,
como baile e dança de quadrilha. Esta postura deve ser observada em contraste com a própria
construção das igrejas evangélicas; normalmente a sua identidade se marca por uma série de
proibições adotadas como regras de conduta, e que fixam um tabu em relação a estas atividades
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
228
(tanto mágico-religiosas quanto profanas). Cremos que este é um ponto importante de se observar,
porque o recrutamento das Igrejas Evangélicas se faz a princípio com base nesta regras, mas depois
estas mesmas regras se tornam motivos para crises e rupturas dentro delas, e freqüentemente são
abandonadas pelas próprias Igrejas101. Cremos também que é preciso correlacionar este fenômeno
com o contexto sócio-cultural do grupo dentro da situação histórica, com o conjunto de
acontecimentos históricos e tradições culturais que se territorializam nos espaços de circulação do
grupo étnico.
As Festas de Santo possibilitam a visualização de uma articulação social, entre famílias e
indivíduos que residem fora das reservas, principalmente na capital do estado, Campo Grande, e as
relações comunitárias aldeãs e o complexo-ritual local. Esta participação é um fato regular, e tem de
ser observada com toda a atenção. Os indivíduos e famílias migrantes (ao contrário do que a visão
dos estudos de aculturação/assimilação indicavam), não perdem necessariamente seus laços e suas
obrigações para com o grupo. Isto porque a “distância concreta” destas famílias para com o
território do grupo, é muito reduzida (considerando a relação Campo Grande/Miranda ou Pantanal).
Desta maneira, se existem fluxos aldeia/metrópole, a princípio por motivação econômica, existem
também fluxos regulares metrópole/aldeia por motivação sócio-cultural, que são as visitas e a
participação regular no complexo-ritual local (como festas de santo, dia do índio e oheokoti).
Tivemos a oportunidade de conversar informalmente com uma mulher, nascida e criada em
Cachoeirinha, e que hoje mora em Campo Grande com seu marido, um purutuye (branco), e filhos.
Esta mulher é irmã de Luis Carlos Antonio, e foi na casa deste durante um jantar, que pudemos
conversar com ela e sua família. Ela disse que mora em Campo Grande há 30 anos, inicialmente
trabalhou como empregada doméstica. Disse ainda que não acostuma mais de morar na aldeia, que
só fica uns poucos dias, mas que sempre vai para lá com os filhos nos dias de festa, como aquele.
No meio da conversa, surgiu uma história sobre um “lobisomem” que estaria aterrorizando a aldeia
e sobre o perigo de circular a noite na aldeia e uma mulher, parente do seu marido (que é um
branco) que a estava acompanhando questionou “se isto existe mesmo”. A Terena afirmou com toda
a convicção a existência de tal ser, e que as estórias eram realmente verdadeiras.
Devemos observar que, de acordo com as crenças xamanísticas Terena, o
curandor/koixomuneti, tem o poder de se transformar em animais. Não foi a primeira vez que
ouvimos estórias sobre lobisomem em Cachoeirinha. Altenfelder Silva considerou isso como uma
demonstração da “mudança cultural”: “Os índios Terena de Bananal as suas antigas crenças
101
Isto é o caso da Assembléia de Deus Indígena. Conversando com Evanildo Faustino, músico da igreja, filho do
Pastor Alcindo Faustino, ele comentava em tom irônico, sobre as regras indumentárias rígidas de usar calças longas e
roupas largas para cobrir o corpo, e disse : “se deus quisesse que eu usasse calça, não mandava um esse calor de 40º”.
Isto mostra como estas regras são manipuladas e subvertidas para este contexto local. Outro exemplo, é o de Fernando
Pereira, vice-cacique da aldeia Morrinho, e que seria segundo informações um curador (ou benzdedor). Ele se converteu
a Igreja Assembléia de Deus Emanoel, liderada por um primo e adversário do cacique Isidoro Pinto do Morrinho, mas
apesar disso, nos disse Isidoro, continua atendendo e realizando “curas” quando procurado pela população local.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
229
substituídas em parte pelas crenças bíblicas e pelos mitos caboclos. Em Bananal poucos índios
serão capazes, de explicar quem eram Yurikoyuvakai, Voropi,Vanuno ou Hihiai-uné. Em
compensação quase a totalidade conhece casos de assombração causados pelo lobisomem ou pela
mula sem cabeça” (Altenfelder Silva, 1949, p. 359).
Durante esta etapa de campo, ouvimos várias vezes narrativas sobre isto. Podemos citar
uma, para marcar a relação desta narrativa em relação às crenças mágico-religiosas:
Morreu, o culpado, foi aquele que eu falei, um fulano da Cachoeirinha. Você não conhece o
finado Belinho?. Morreu aquele rapaz, um homem forte, não tem nada para sentir, morreu, mas
a família dele sabe que ele foi matado, quem que matou o curandor, O Leocádio foi isso
também. Não sei por que não tem coragem aquele família, não sei porque, por isso que ele
acostumou aquele cara, acostumou ninguém mexer ele (...) Ali no mata-burro de repente,
apareceu um bicho, ali, lobisomem, diz que lobisomem eu não sei o que é, a noite né ...na
primeira, ele veio assim oito hora, um bicho grande, para cerca ele na estrada, não quer
passar, cercou um rapaz, voltou, não foi embora os que quando foi de dia ele falou para nos...
no outro dia o meu filho ele trabalha para FUNASA, o meu filho encontrou o bicho...mas ele
tem coragem, ele parou, parou para enfrentar ... ai o bicho ...quando ele tem coragem,pulou
para fora de estrada... e dali acabou (...) ai aquele morador perto de mata-burro, viu ele ali no
pé de caju ali.(...) E o bicho ali, o lobisomem,e quando ele buscou um pau e jogou, ai pulo no
mato e aí acabou ...Aí outro meu filho aqui, meu pai vamos a no mata-burro ali a noite, vamos
cuidar dele, vamos esperar.(...) Aquele fulano sabe o que você ta ideiando aqui (...) o meu filho
queria esperar lá perto de Cachoeirinha, porque nós tamos sabendo vem de lá, de lá da
Cachoeirinha, quando escurecer vamos lá, assim que ele falou . Mas aquele bicho já sabe o
que nós tamos ideiando aqui. Diz que ele falou, óia aquele família eu não vou facilitar, eu não
vou mais ir lá, é algum pessoal que fala para nós ... é verdade que parou mesmo...O meu filho
falou para mim, se fosse a gente mesmo, eu não quero saber, eu ia atirar ele, mas diz que ele ta
sabendo, o curandor ele sabe para olhar aquele frente ...(Isidoro Pinto, Morrinho, Setembro de
2004).
Vemos no depoimento, que o “lobisomem” é um curandor que age dentro da aldeia. Conversamos
filho de Laurindo da Silva, que também mora em Campo Grande onde trabalha como carregador, e
que estava ali para participar da festa do santo. Ele diz que sua família inteira morou em Campo
Grande. No entanto, sua família voltou para Cachoeirinha porque sua irmã ficou doente precisava se
tratar com um "curador". Segundo ele o tratamento deu certo, “pois ela está aí até hoje", disse.
Estes casos servem para ilustrar como se mantém uma participação importante de parte das
famílias migrantes para a metrópole Campo Grande, através disto que estamos chamando de
complexo ritual local. Este complexo seria composto por um conjunto de festas: as Festas de Santo
(incluindo os padroeiros das aldeias, e as festas de santo familiares), a Festa do Dia do Índio, e a
Festa do Oheokoti. Mesmo nas festas de santo, é ritualizado o hiokixoti kipahê, de maneira que o
mito da guerra do Paraguai está sempre presente.
Além destas duas articulações, devemos chamar a atenção também para a articulação ritual-
política. As atividades das festas de santo servem também para ilustrar esta relação. A presença de
um ex-cacique, e importante liderança política na condução do rito da festa, especialmente na
procissão final da festa de Nossa Senhora Aparecida, não é ocasional. Na verdade, ao que nos
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
230
parece, tanto as atividades rituais religiosas podem ser uma base para a ascensão política das
lideranças (e são também uma forma de liderança política), quanto às atividades políticas se apóiam
ou exigem uma participação nestas atividades rituais. Além do caso de Rufino Candelário, ex-
cacique e líder de uma família extensa importante em Argola, a família Candelário. Podemos citar
também o caso de Argemiro Turíbio, que também conduziu uma festa de santo, a Festa de Santa
Cruz, no ano de 2003.
Argemiro é neto de Lino de Oliveira Metelo, um ex-cacique e “grande”
curador/koixomuneti, de Cachoeirinha, segundo o depoimento de diversas pessoas. Segundo as
informações que dispomos, e que abaixo poderemos sistematizar, os “caciques” são sempre
lideranças religiosas ou tem em suas redes de parentesco relações diretas com xamãs ou com as
igrejas. Existem indícios que nos levam a crer que o status religioso é um dos fatores, mas não o
único, a servir como base de legitimação política de um líder.
Desta atividade concreta, a festa de santo, podemos destacar estes três elementos: 1) a
articulação de diferentes tradições culturais (ritos e mitos), dentro da vida aldeã Terena; 2) a
articulação social entre os indivíduos e famílias em situação de “diáspora urbana”, com as relações
comunitárias étnicas, o que indica uma profunda vinculação sócio-cultural do grupo étnico em
diferentes situações de territorialização, através de redes de parentesco ; 3) a articulação ritual
(religião)/política, como uma das características fundamentais da organização social e cultura
Terena.
O complexo ritual cria um circuito de trocas permanente ao longo do ano: as festas de santo
em que são realizadas “trocas” entre os grupos domésticos e os santos, através da mediação das
igrejas e curadores (ou seja, há uma permanente troca de símbolos e signos); o Dia do Índio se
apresenta como outro destes momentos, mas não o único. Além disso, o rito do hiokixoti-kipahê é
encenado em todas as ocasiões importantes, o que faz que isto ocorra várias vezes no ano. Este
complexo ritual expressa também algumas das relações e características estruturais da atual situação
histórica, de forma que as ações expressivas e o discurso indígena só fazem sentido a luz desta
mesma situação.
4.4 - As Tradições Culturais, Experiência Histórica e Relações de Poder.
O funcionamento das tradições culturais e organização social Terena na atual conjuntura
histórica mostra que não podemos separar a sociedade Terena da experiência da mudança social e
histórica, pois essa sociedade é produto e soma de tais mudanças. Nesse sentido, a interpretação da
cultura e organização social, não pode ser dissociada da análise das relações de poder e das
condições materiais de experiência das coletividades.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
231
A reconstrução da “cultura Terena no tempo do Chaco”, feita a partir da ótica das teorias da
aculturação/assimilação, ignorou uma série de elementos importantes, e levou a uma interpretação
equivocada dessas relações. Supô-se que as relações entre sociedade indígenas e sociedade
nacional, desde que foram estabelecidas, iniciaram um ciclo de declínio sócio-cultural dos povos
indígenas, quando a análise da história Terena mostra que isso não é verdade. Na realidade,
devemos observar primeiramente que a cultura (certos rituais simbólico-expressivos e formas de
organização social) estavam associadas ao tipo de balanceamento de forças no sistema social
indígena, ao tipo de equilíbrio de poder estabelecidos entre índios e forças coloniais, o que
implicava em modos históricos de acesso aos territórios e recursos naturais. Ou seja, a cultura e
organização social eram interdependentes das relações de poder e condições materiais de existência.
Duas teses foram apresentadas para interpretar, por exemplo, a organização social Terena. A
de Altenfelder Silva, sugere uma organização dos Terena em “quatro classes”: os “naati”, os
“wharé-chané”, os “cauti” e os chuna-axeti (Altenfelder Silva,1949,p.286). Cardoso de Oliveira faz
uma crítica desta interpretação, levantando a hipótese de que na verdade a organização social
Terena teria uma divisão “tríplice e assimétrica” (naati”, os “wharé-chané”, os “cauti”) baseada no
status político, e uma “dual e simétrica” baseada em regras rituais; os chuna-axeti não constituiriam
uma camada de status, mas sim um segmento dos “naati”.
O que nos interessa é discutir os pressupostos sobre os quais são estabelecidas as
interpretações acima. Supõe-se, ou parece que supõe-se (mesmo que implicitamente) que esta
organização social se definiu por si própria, quando na verdade, não podemos compreender esta
organização social sem levar em conta todo sistema e dinâmica de relações existente dentro do
Chaco/Pantanal. Isto porque os “cauti” eram uma categoria do sistema do Chaco Pantanal, e não de
um grupo específico. “Cativo” era a designação que os Mbayá-Guaicurú atribuíam aos “Terena”, e
sua posição social e simbólica dentro do sistema do Chaco Pantanal. Outros povos também eram
periodicamente vitimas de ataques Mbayá que visavam adquirir “cativos”, seja para realizarem
trabalhos para eles, seja para serem negociados nas povoações espanholas e portuguesas.
Quando o sistema indígena é desarticulado e é estabelecido um maior controle sobre a sua
força de trabalho, inevitavelmente essa estrutura é modificada, mas isso se dá somente nas últimas
duas décadas do século XIX. Durante cerca de 80 anos, existiu um padrão de inter-dependência
entres os índios e as forças coloniais em que o Estado tolerava a autonomia relativa dos índios e
coexistia com a alteridade étnico-cultural. A figura dos “cativos” desaparecem progressivamente
enquanto categoria social de trabalhadores agregados com o desaparecimento do poder de guerra
dos índios. Com relação à divisão da sociedade e Terena em duas “metades” (xumono), as
evidências empíricas nunca foram suficientemente fortes para comprovar sua operatividade na
regulação do matrimônio e organização social. Os dados revelam sim que ela esteve associada a um
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
232
ritual, o “mootó”, que consistia numa briga coletiva perpetrada pelos Terena. Os relatos de Ricardo
Almeida Serra descrevem um ritual idêntico entre os Guaicurus, e que estaria associado as festas e
as atividades guerreiras. Nesse sentido, o ritual estava associado às “correrias”, à “captura”, às
“festas”, de maneira que a divisão “cerimonial” também expressava uma dinâmica e uma
experiência histórica particular. O desaparecimento desse ritual, já que o último teria acontecido em
1910 (ver Cardoso de Oliveira, 1976), se deu no momento de formação das reservas e na
consolidação da subjugação dos índios Terena, privados de qualquer possibilidade de práticas
guerreiras.
Ao mesmo tempo, no final do século XIX (no ano de 1898) o comerciante J Bach visitou
várias aldeias de Miranda, e descreveu a existência do Oheokoti (festa das plêiades que coincidia
com a “semana santa”) e também uma dança, realizada por homens e mulheres, comandada por
“dois caciques” e que consistia em “bater taquaras”. Também narra a figura do “koixomuneti ou
cacique”, como “chefe hereditário”. No final do século XIX, já existia uma “reelaboração da cultura
e organização social em curso, que se consolidaria na situação de reserva. Ao contrário da situação
de “eminente perda de cultura” elemento do discurso indigenista e das teorias da
aculturação/assimilação o que vemos é que na realidade, seria uma hipótese plausível indicar que
depois da destruição do sistema indígena do Chaco com a mudança no balanceamento de forças
entre índios e Estado-Nacional, e das formas de acesso ao território e recursos naturais a cultura e
organização social do grupo passou por um processo de mudança e adaptação aos novos padrões
históricos das estruturas de poder e condições materiais de existência. E mais, como essas condições
pouco se alteraram no último século, as mudanças culturais verificadas são muito reduzidas, de
maneira que expressam a combinação de tradições culturais e estratégias políticas indígenas
(através da difusão de sub-tradições como protestantismo indígena e a re-interpretação de símbolos
e signos nacionalistas).
A etnografia de Cachoeirinha na atual situação histórica permite ver a coexistência de duas
tradições culturais que se articulam a partir de uma cosmologia comum, que fornece os elementos
mínimos de significação e simbolização. A cosmologia Terena, centrada na concepção de que os
vivos e os mortos estão num mesmo plano, numa mesma comunidade, de que existem espíritos
(koipihapati) bons e maus, tanto de seres humanos quanto de animais, e que estes podem se
comunicar e interagir com índios, através de curandores, benzedores e pastores. A crença nestes
espíritos explica tanto certas atividades mágico-religiosas dos xamãs, quanto das Igrejas Católicas e
Evangélicas. Neste sentido, podemos falar que pela concepção Terena de cura e doença, existem
dois planos que não entram em contradição: o das doenças que são provocadas por espíritos
(encosto), e as doenças provocadas por causas naturais. Os tratamentos não se chocam, os saberes e
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
233
os poderes não se excluem (ver Carvalho, 1996)
102
. Assim é possível trabalhar simultaneamente
com uma pluralidade de referências culturais (cosmologia cristã, cosmologia Terena) e processos de
cura (mágicos, médicos) sem que isto implique em uma abdicação permanente de alguma das
referências. Existe uma crença comum, para católicos e evangélicos, de que os “espíritos”causam
doenças e que os “pajés” curam, de maneira que elas intervém oferecendo uma alternativa de
proteção e cura dentro da comunidade.
O elemento fundamental do modo de distribuição do conhecimento e materiais do
xamanismo, enquanto tradição cultural, é que ele se dá num circuito relativamente fechado,
marcado pelo segredo, e suas formas de transmissão obedecem a regras que o próprio koixomuneti
estabelece. Mas os parentes de um koixomuneti podem herdar tais conhecimentos e materiais, que
se adquire também pelo exercício como “ajudante”. Além disso, um espírito de um morto pode
exigir que seu familiar retome seu trabalho, e continue sua tradição, de maneira a perseguir os vivos
para realizar trabalhos com “a purunga”. Isto em tese significa que pode haver hiatos geracionais na
reprodução desta tradição, de maneira que uma geração pode ficar sem koixomuneti, e eles
ressurgirem, seja porque um descendente decide reativar estes conhecimentos e ritos invocando o
espírito de um morto, seja porque o próprio espírito obriga os vivos a fazerem isso. As
características do koixomuneti normalmente se manifestam nos homens e mulheres idosos, o que
significa também que ao longo da trajetória de um individuo, ele pode ser estudante, trabalhador
rural, evangélico e só manifestar as características de um xamã, depois de passar por estas
experiências diversificadas e multi-culturais. A inadequação da teoria da aculturação se mostra por
completo quando consideramos estes elementos.
Isto tem também uma outra conseqüência importante. Significa que o xamanismo Terena
tem uma organização estratificada: de um lado, estão os koixomuneti, que comandam o processo de
cura e realizam a comunicação com os espíritos; de outro estão os pacientes, que usam os saberes e
poderes destes. A diferença da distribuição do conhecimento destes é expressiva. Os conhecimentos
de um curador sobre o xamanismo são muito maiores do que o da média da população indígena.
Resulta disso também que a relação com curador, se dá pelo poder de cura que este detém.
As Igrejas Evangélicas se moldam em grande parte dentro da cosmologia Terena, das
crenças nos koipihapati, que implicam na aceitação de uma cosmovisão especifica, forjada pelos
ritos e praticas xamanísticas. O fato das Igrejas Evangélicas terem se constituído em grande parte
pela cisão faccional da Igreja Católica, faz com que muitos dos pastores ou dirigentes de Igrejas
Evangélicas tenham algum conhecimento do xamanismo, quando não são profundos conhecedores.
Como no caso de Anésio Pinto, mesmo sendo um dirigente da Igreja UNIEDAS, tem algum
102
A autora analisando as práticas de cura entre os Terena de Bananal, chega à conclusão de que eles operam em dois
sistemas distintos, dois tipos de doença que demandam intervenções diferentes; as doenças naturais e sobrenaturais,
sendo que os tratamentos podem ser mesmo complementares.
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
234
conhecimento sobre o xamanismo por ser filho de um pajé, e manifesta respeito para com estes. Ou
ainda o próprio Lourenço Muchacho, que recentemente aderiu a uma Igreja Evangélica, tornando-se
inclusive seu dirigente.
Entendemos que se por um lado não devemos entender a proliferação do protestantismo e do
cristianismo em geral, como uma forma de supressão do xamanismo, tão pouco correto seria
considerar o cristianismo como uma forma “externa” ao grupo. Na realidade estamos considerando
aqui tanto o xamanismo como o cristianismo, como formas simbólico-culturais que só existem por
processos concretos de combinação (de símbolos e significados). Os Terena estudam a bíblia,
ouvem durante quase todo o dia rádios com músicas e programas evangélicos, participam de
encontros, estudam em seminários e cursos de teologia, enfim, estão profundamente inseridos na
simbologia e nas práticas cristãs, tanto quanto qualquer comunidade do campo ou da cidade,
naquela região do Mato Grosso do Sul. Eles entram em choque em muitas vezes com os caciques
para poder ter o direito de construir tendas ou templos das Igrejas, dedicam-se a articulações
políticas que visam angariar recursos para melhorar as edificações destas igrejas (transformando-as
de tendas de palha em construções de alvenaria), e dedicam uma parte importante de seu tempo
semanal as atividades das igrejas (cultos, vigílias, grupos de oração e etc). Muitos inclusive já
viajaram para trabalhar como Missionários junto a outros povos indígenas, como é o caso de
Quintino Mendes, que morou alguns meses com os Xavante, em Mato Grosso, com o objetivo de
desenvolver o trabalho missionário da Igreja Evangélica Indígena UNIEDAS. Logo, os Terena são
efetivamente cristãos, já que eles adotam ritos e mitos oriundos desta cosmologia, e a empregam e
reproduzem. Entendemos que a interpretação que mais se aproxima da realidade empírica é aquela
que considera a coexistência de duas tradições culturais, o xamanismo católico que é a forma que
a experiência histórica da conquista colonial e das reações político-culturais indígenas deram ao
xamanismo Terena- e o protestantismo indígena, já que tanto a organização social quanto os
significados simbólico-culturais dependem da prática indígena como se verifica no contexto local.
Poderíamos dizer que a grande tradição” o cristianismo se implantou dentro de
Cachoeirinha, sob a forma de duas sub-tradições. Mas ambas as sub-tradições foram submetidas a
um processo de interiorização e resignificação dentro do contexto aldeão, de maneira que se
subordinam em aspectos muito importantes a conceitos/signos chave da “pequena tradição”. A
“pequena tradição” predomina no contexto local, no processo de construção social do significado da
experiência, já que mesmo as Igrejas Evangélicas precisam atuar no combate a doenças
sobrenaturais e aos espíritos dos mortos e da natureza. A grande e a pequena tradição não se
encontram separadas de forma nítida, ao contrário; tanto a organização social indígena é veículo de
transmissão e reprodução da “grande tradição”, quanto às instituições (como as Igrejas e seus
símbolos) podem ser meios de reprodução e comunicação das crenças xamanísticas. Essa
Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku
235
sobreposição de identidades e territórios (étnicos e nacionais), articulação experiências e estruturas
de poder, intercambio de símbolos e signos, tem um profundo impacto político.
Um outro elemento importante é a percepção da operatividade das unidades sociais (os
grupos domésticos e os grupos vicinais) na construção das relações sociais e culturais dentro da
aldeia. Os mesmos critérios de diferenciação irão operar dentro da dinâmica política como
poderemos ver, expressando-se inclusive sob formas simbólico-culturais, e explicando em parte a
articulação e conflito entre as diferentes tradições. Dessa maneira, vários pontos de conexão
estabelecem-se entre cultura e política, tradições de conhecimento e faccionalismo.
Estas questões são ainda mais importantes quando consideramos a dimensão política da ação
simbólica. Com relação aos significados e narrativas atribuídos pelos indígenas à dança do bate pau,
podemos dizer que realizam a articulação de duas expressões simbólicas, uma nacional-estatal e
outra indígena, dentro do ritual do Dia do Índio. A identidade étnica se sobrepõe à identidade
nacional, mas por meio de uma interpretação indígena, que estabelece um status privilegiado para
os Terena na construção da Nação. Ao mesmo tempo em que se afirma à idéia de “resistência” se
delineia um projeto de colaboração política com as agencias estatais. Ao mesmo tempo em que os
índios invertem a idéia de “incapacidade” estruturante da tutela, assimilam as narrativas triunfalistas
do Estado-Nacional. Essas contradições não somente expressam a dinâmica política, mas fazem
parte dela. Os discursos indígenas, do cacique, chefe de posto e professor (e notemos que antes o
papel de professor e de chefe eram a materialização da “sociedade nacional” frente aos índios como
elemento superior e exterior) apontam para a afirmação da capacidade política indígena, do
protagonismo étnico.
Essa noção de protagonismo étnico se desdobra em dois movimentos distintos; a formulação
de uma narrativa que toma a noção de “resistência” como um operador central para a construção da
memória e história indígena, mas vejamos, uma noção de resistência “romântica”, derivada da
concepção sertanista do antigo SPI; e a defesa de um projeto político, o da “ocupação de espaços
dentro dos órgãos de Estado - a transformação dos índios em funcionários, ou seja, uma das muitas
expressões locais para designar o que estamos chamando de “co-gestão” indígena. Ao mesmo
tempo, essa narrativa não se cristaliza somente nos discursos das lideranças, mas também na própria
organização do “bate-pau”, na mito-história interna da dança que evoca ao mesmo tempo elementos
históricos a experiência indígena da colonização e míticos já que personagens como Kali Sini ,
representam não somente pessoas históricas, mas entidades sobrenaturais. É por isso que uma
análise etnográfica que não dê atenção devida para estes elementos, pode não conseguir superar o
semantical gap”, que Roberto Cardoso de Oliveira detectou na sua comunicação pessoal com os
Terena nos anos 1950.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
236
Capítulo 5 - Centralização estatal/descentralização
faccional: a organização política Terena.
Para concluir, quero deichar meu parecer: em resumo, de que ouvi durante a reunião e
posterior na reunião em Campo Grande, na Delegacia Regional, FUNAI ficou bem claro/que os
indígenas estão numa individualidade tensa e uma grande procura do poder e status, não se
preocupando nem mesmo com seus compatriotas, e que teremos daqui pra frente uma dura
batalha para terminar, ou melhor para acompanhar com muita habilidade, vista tentar não
deichar estravasar os limites.
Acho eu os indígenas, particularmente os nossos Terena, estão muito politisados, cada um
fasendo seu jogo/disendo que está coesos, juntos, na realidade, isto só aparente/na verdade é
um passando “seu” o outro para traz defendendo o seu interesse próprio, acredito piamente,
não ser de sua própria cultura, mas sim de uma política divercificada de várias entidades
política, religiosa e outras que vem causando esta individualidade como já disse; em outras
palavras, o índio não sabe mais a quem acreditar, são tantos os donos da verdade?
Relatório do Encarregado do Posto Cachoeirinha, 1982.
Neste capítulo iremos focalizar a dinâmica da organização política Terena, e mostrar como
esta organização se moldou e transformou a partir da “oposição a” e “composição com” as
instituições estatais ao longo do processo histórico de formação do Estado-Nacional, e ao mesmo
tempo, como seu funcionamento hoje é profundamente interdependente dos contextos e processos
societários nacionais e mundiais. Pretendemos mostrar como, de um lado repressão/colaboração, e
de outro, as formas cotidianas de resistência, consistem em estratégias políticas componentes de
uma totalidade e que suas interações concretas constituem a dinâmica política básica inerente ao
regime tutelar.
Iremos isolar aqui dois conjuntos de processos sociais relativos à diferentes relações
políticas e sociais dentro de Cachoeirinha: 1º) os “dramas” ou conflitos de sucessão dos caciques
ou capitães Terena, num período de aproximadamente cinqüenta anos (1960-2006); 2º) os
empreendimentos indigenistas e dramas de cisão que levaram a formação de múltiplas aldeias
dentro de Cachoeirinha, e que expressam a tendência de descentralização e segmentação política
deste grupo indígena. A análise destes conjuntos de processos sociais, permitirá a visualização da
dinâmica política faccional e de como as formas da resistência contra a tutela expressam a fricção
da organização e política indígena com a política indigenista, ou seja, a adaptação de uma política
de um Sistema Estatal a realidade local das aldeias Terena.
No final dos anos 1950 em Cachoeirinha, a morte de um “capitão” deu início a uma “luta
pelo poder”, uma disputa para ver quem ocuparia o Posto de Cacique; isto estaria expressando “o
esvaziamento da autoridade tribal, que não mais seria levada em consideração pelo SPI (ver
Cardoso de Oliveira, 1968, p. 110). Mas esta luta pelo poder não se encerrou; ao contrário, se
institucionalizou, e demonstrou ser um fator estrutural componente do regime tutelar. Na verdade,
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
237
este conflito de sucessão se constituiu apenas num dos “atos” de “dramas sociais” de longa duração.
A luta pela “sucessão” do Cacique se mostra como um fator contínuo na história de Cachoeirinha e
outras reservas indígenas Terena, e expressam as disputas entre facções políticas e grupos
domésticos pelo poder local. Os conflitos entre algumas facções políticas existentes hoje em
Cachoeirinha, organizadas e lideradas por homens como Alírio de Oliveira Metelo, Sabino
Albuquerque e Esídio Albuquerque, remontam diretamente aos acontecimentos verificados nos
anos 1950.
Analisaremos os processos de luta pelo poder na aldeia Sede, tomada como caso exemplar
para análise das formas de ação/reação entre a política indigenista e política indígena.
Demonstraremos que o desaparecimento das antigas formas de organização política não foi
completo e o que se deu a partir dos anos 1950, com a consolidação da situação histórica de reserva,
foi à transformação das categorias sociais e da organização política indígena (em função do regime
tutelar e política indigenista, mas também das estratégias dos grupos domésticos, facções políticas e
lideranças indígenas), num processo dialético em que a centralização estatal combinou-se com a
lógica segmentar e transformando-a numa descentralização faccional.
Os principais conflitos políticos do presente etnográfico, bem como dos últimos 50 anos da
história local de Cachoeirinha só podem ser compreendidos a luz dessa dialética, da interação entre
política indigenista e política indígena e da dinâmica do campo e arenas das relações interétnicas. O
principal objetivo da política indigenista era a imposição da centralização política; os Terena, apesar
de serem sempre vistos como colaboradores do Estado, desenvolveram políticas de resistência
cotidiana a esta centralização.
5.1 – A “luta pelo poder”: dinâmica política de Cachoeirinha.
Em Cachoeirinha, no ano de 2004, existia também uma luta política pelo poder. O cacique
da Sede, Lourenço Muchacho estava enfrentando um movimento de oposição, encabeçado segundo
ele, por uma “associação” existente em Cachoeirinha. O Cacique Lourenço estava travando uma
luta surda com o Chefe do Posto, Argemiro Turíbio, e esse por sua vez fazia várias críticas ao
Cacique e seu desempenho político e administrativo. Cabe registrar que o ano de 2004 era um ano
de eleições municipais e para as câmaras de vereadores e prefeituras. As disputas políticas estavam
profundamente acirradas também por conta das situações sociais verificadas dentro dos campos e
arenas das relações interétnicas. As possíveis alianças com partidos e lideranças políticas do
município afetavam a vida dentro da aldeia.
Pudemos perceber esta situação de maneira indireta, pelos comentários que alguns índios
faziam sobre a necessidade de “tirar o cacique”, pelas conversas e movimentações dentro do Posto
Indígena, onde estávamos hospedados na ocasião. Em certos momentos alguns índios (como Tomás
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
238
Balbino, morador da Vila Cruzeiro) nos chamavam para conversar e colocavam reclamações sobre
o cacique, sobre a possibilidade dele “sair do cargo” antes do fim do seu mandato. A crise estava
tão acentuada, que mesmo as reuniões do “conselho tribal” não estavam sendo realizadas.
Sabendo desse fato procuramos o cacique Lourenço Muchacho, na sua casa para conversar.
Ele narrou os acontecimentos daquele período. Perguntamos: “E com relação à política indígena
aqui na Cachoeirinha, como é que tem sido sua gestão, tem tido problema”?
“Tem, tem esse atrito, tem essa divisão, divisão da associação, não quer se aproximar com a
liderança, às vezes tem uma Igreja ai não quer se aproximar com a liderança... tem uma
comunidade ai que não são associado não quer se aproximar com a liderança... acho que no
meio de tudo isso a gente não tem como se oferecer, isso dependeria mais dele para chegar
mais perto, participar do reunião para saber o que tá acontecendo, as vezes as pessoas nos
critica nessa parte o seguinte ...que a gente não tem feito nada, claro que eu vejo assim que eu
não fiz nada assim de obra, reformar trator, reforma de viatura, a dificuldade é muito grande,
isso ai que afastou a comunidade, associação, essas outras igreja, um pouco de comunidade,
por isso que eles se afastou de mim, por não ter visto nada que eu fiz para eles poder trabalhar,
então e por isso que eles se afastaram no meio de tudo isso a gente reivindica ...
FUNAI principalmente fala que não tem recurso, chega mais ou menos trinta reivindicações
para esse conserto nunca foi executado nenhum .... Principalmente município, estado, segundo
o estado, a gente tem reivindicado isso pra eles também, mas a gente reivindica esse trator que
eles reconhece que é patrimônio do Governo Federal, da FUNAI, as viaturas eles sabe que é
patrimônio da FUNAI... Só que a maior dificuldade para nós são essas Administração lá em
Campo Grande, porque eles não tem aproximação com o Estado, segundo o pessoal do
Governo do Estado eles fala isso ... se o ex-administrador tivesse um dialogo com o estado o
Estado poderia ajudar FUNAI para poder levantar isso... Mas não tem como, o cara não tem
essa aproximação então dificultou para nós também que somos comunidade ... Então para nós
tem essa dificuldade. Então foi isso que afastou comunidade. (Lourenço Muchacho,
Cachoeirinha, Setembro 2004).
As “associações”, as “igrejas”, são mencionadas diretamente como os vetores deste
“afastamento” das comunidades indígena da “liderança”. O conflito se daria entre os grupos
religiosos, associações, de um lado, e o cacique, de outro. A motivação seria o descontentamento
com a gestão dos recursos materiais que deveriam ser transmitidos pelo Estado (nas esferas federal,
estadual e municipal). O cacique, entretanto aponta como problema a escassez de recursos da
FUNAI, que não repassa verbas para investimento nas aldeias indígenas. Mas a responsabilidade
pela não obtenção de recursos, segundo a análise de Lourenço, é atribuída pela comunidade ao
cacique. Daí a crise política instaurada em Cachoeirinha.
Na verdade, isto constitui apenas um dos lados do problema. Na própria entrevista o cacique
Lourenço mencionou outros fatos importantes. Perguntamos:
“E por que isso aconteceu?
Pois é... Uma divisão muito grande, deixa eu me lembrar o que aconteceu daquela vez... quem
criou mais essa cabeça daquela vez foi a Associação do Alírio, foi o Pastor Zacarias, o Vitorino
Paulino, quem criou essa briga foi eles, eras as minhas lideranças. Eu chamei eles para
trabalhar juntamente com agente na liderança.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
239
Era a queixa de uma moça, uma mulher, que é a esposa do meu sobrinho, foi lá na casa do
Zacarias, que na época era presidente do Conselho, inventou um montão de coisa, disse que eu
tava perseguindo ela, aí me chamaram, ai o Presidente do Conselho me chamou para sentar
com as lideranças e conversar sobre isso. De primeira eu não fui, eu mandei a comissão minha,
ai a comissão foro lá, e a comissão diz mas eles não aceitaram, você tem que ir lá, ai num dia
de sábado eu fui lá, cheguei lá tava uma dona, o esposo dela, sentado tudo junto, então quem
primeiro começou a conversa foi presidente do conselho, ai passou para dona, ai a dona falou
para mim que eu tava perseguindo ela, faz tempo... Ai eu tenho um irmão que mora aqui, que
falou assim, eu acho que isso ai tá errado. Onde já se viu que uma mulher que tem caso com
outra pessoa contar para o seu próprio marido. Isso é um papo furado. Ai eu vi que as coisas
tava tudo errado mesmo e ai eu falei para ela no meio de todo mundo, eu nunca tive caso com
você. Mas isso foi armação política deles porque eles queriam me tirar de todo o jeito”.
(Lourenço Muchacho, Cachoeirinha, Setembro 2004).
O que havia acontecido, era a formulação de uma acusação contra o “cacique”, de estar
envolvido numa relação “extra-conjugal”, sendo tal queixa apresentada ao Conselho Tribal, e
poderia implicar diretamente na deposição de Lourenço do seu cargo de Cacique. Assim, o
presidente do Conselho, na ocasião Zacarias da Silva, Pastor da Igreja Assembléia de Deus, recebeu
a denúncia dirigida contra o Cacique, que foi apresentada pela esposa de um de seus sobrinhos e a
partir daí, as lideranças que integravam o conselho tribal começaram a fazer uma oposição
sistemática ao cacique.
Estes acontecimentos, na realidade, se inserem dentro de um processo, ou seja, de uma série
de acontecimentos ou situações sociais, que dizem respeito à luta pelo poder local dentro da aldeia.
O próprio Lourenço, em outro momento da resposta à pergunta que formulamos, comenta sobre o
conteúdo político da disputa e real causa das acusações em questão:
“Mas a questão daquela vez, o motivo mesmo, eu tava mexendo com o Chefe, então por isso
que essas pessoas se cresceram, eu tava mexendo com o Chefe do Posto da FUNAI, eu queria
trocar o Argemiro, porque é cargo de confiança, não é um funcionário eletivo não, então o
motivo mesmo que eles cresceram é por causa disso. Hoje eu fico admirado, o cacique Ramão,
o Cacique Zacarias são tudo contra o Argemiro agora. Agora eles vão procurar minha ajuda
de novo, mas só que eu não vou entrar nesse papo, Agora eu tô ouvindo outra conversa aí de
que eles vão querer eleição agora nesse mês de dezembro, nesse ano agora, eu tô disposto para
ouvir, desde que eles venham de frente, se eles vir por detrás acho que eu não posso aceitar se
eles vir por detrás, posso aceitar se eles opinar se eles vier pela porta bem certinha, ai agente
pode ter um diálogo, dependendo da conversa eu posso até entregar no mês de dezembro, sair
mais tranqüilo, do que agente ficar quebrando a cabeça. Então para mim esse aí não é a
questão. Agora eu não vou permitir ser empurrado, ano passado porque eles vieram por detrás.
Então como é que eu vou aceitar ser esfaqueado por detrás?Então eu fiquei pensando esses
caras não tem organização, porque se eles tivesse organização eles teria que sentar comigo e
conversar, tô sabendo disso, que os cabeça são Alírio, Dionísio, Tomás, então se eles passarem
pela porta, pode haver eleição, porque meu mandato mesmo por escrito é até em dezembro de
2005, mas se eles quiserem, tranqüilo. Será entregue, de boa vontade, agente não tem nada que
brigar. Então a posição, é isso.”. (Lourenço Muchacho, Cachoeirinha, Setembro 2004).
Quer dizer, na realidade, o que estava acontecendo era um processo de luta política: o
Cacique Lourenço havia realizado uma tentativa para “trocar” o Chefe de Posto da FUNAI,
Argemiro Turíbio. A “associação” do Alírio de Oliveira Metelo, somadas a algumas lideranças
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
240
políticas integrantes do Conselho Tribal, e contando com o apoio dos caciques dos setores, Ramão
Vieira e Zacarias Rodrigues responderam, tentando derrubar Lourenço do posto de Cacique. O
esforço de derrubar Argemiro Turíbio da posição de Chefe de Posto teve como contrapartida a
tentativa da derrubada do Cacique pela “Associação”. As duas posições de poder (profundamente
interdependentes no contexto local), foram o objeto da disputa: quem controlaria efetivamente estas
posições? Eis o problema
Porque a tentativa do Cacique Lourenço Muchacho de derrubar o chefe de posto, teve uma
reação forte da sua própria liderança do Conselho Tribal? Porque os demais caciques a princípio,
deram apoio político ao Chefe do Posto e depois (segundo Lourenço) iriam querer derrubá-lo?
Porque as lideranças políticas de Cachoeirinha questionam a gestão dos recursos econômicos da
aldeia pelo cacique? Qual o papel das Igrejas e Associações (mencionadas de forma enfática e
direta pelo Cacique ao narrar estes acontecimentos) na luta pelo poder local?
É interessante notar que os que tentavam derrubar o cacique Lourenço Muchacho, como ele
próprio observa, eram aqueles que até pouco tempo antes se constituíam na sua base de sustentação
política: a sua própria “liderança”. Um ano antes, o cacique Lourenço Muchacho e os demais
Caciques dos setores, viviam em um acordo político relativamente estável, atuando juntos
principalmente no que tange a reivindicação da demarcação de terras. Lourenço havia sido eleito
em 2002, derrotando cinco outros candidatos (Sabino Albuquerque, Mário Albuquerque, Vitorino
Paulino, Adilson Julio e Pedro Alcântara) sendo que Sabino Albuquerque havia sido cacique entre
1998 e 2002 e um dos lideres da mais importante “associação” de Cachoeirinha, a AITECA.
Lourenço já havia sido candidato nas eleições de 1998 e havia sido derrotado por Sabino
Albuquerque.
A história da ascensão de Lourenço até o posto de cacique é a seguinte:
Primeiro eu queria que você um falasse da sua história, até chegar a posição de cacique aqui
na aldeia.
Bom, de primeira eu, eu falava a idade mesmo, francamente, eu só comecei no meio de muitas
amizades, trabalhar muito pra fora, canavial, depois eu tive essa vontade, o espírito de
freqüentar a igreja católica, aí freqüentei, trabalhei, trabalhei como catequista da primeira
eucaristia e da crisma, né. Aí, terminei sete anos, passei pra ser dirigente da igreja, depois eu
fui coordenador da igreja. Aí essa luta foi indo, foi indo, foi indo... eu fui conversando com o
pessoal, juventude, da maioria do patriciado conversando sobre a candidatura, né. ..
E. Você foi coordenador de igreja em que ano?
Foi em 89, parece.
Aí conversamos com os amigos, primeiro com a tentativa de ser candidato a cacique eu
concorria com três candidatos àquela época. Há uns quatro anos atrás, então foi três
candidatos, quem ganhou foi o Sabino, àquela época foi com 412, o companheiro que era
segundo candidato, ele ficou com 100 votos, eu fiquei com 400 votos naquela época. Então eu
perdi por 12 naquela vez, né. Aí, hoje, eu me candidatei novamente, com seis candidatos, eu tive
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
241
voto maioria, 301 votos. Aí foi conversando muito, diálogo, no meio dos companheiros, e foi
tocando isso também, né, aí cheguei de ser cacique. Hoje, eu estou aqui ainda, trabalhando
pouco a pouco, se sabe que as dificuldades estão de mais, né. Não tem recurso, não tem nada.
Então agente tá aí.
L. Tá certo. Durante quatro anos atrás, eu tinha trabalhado pra ele. Foi a primeira campanha
do... quatro anos atrás. Aí, esse ano trabalhei novamente, mas hoje, eu saí com peso ainda, né.
Porque eu fiz documento de reivindicação a pessoa dele para que pudesse a gente conseguir
alguma coisa através dessa luta. Então a gente tá aí, por enquanto tá meio parado ainda, a
gente já conversou tanto com ele, mas eu já fiz o documento, já coloquei um tipo de projeto aí
de pedido de um trator, complemento, tudo, né. No valor de mais ou menos R$40.000,00. Então
esse documento vai entrar no mês de julho, por aí, na seção, pra ser debatido. Isso aí vai ser
emenda do governo do Estado, então, se eu conseguir isso, pra mim eu acho que a comunidade
vai ser tão satisfeita ainda, se eu conseguir isso. Mas creio que eu vou conseguir, vou ter que
lutar em cima disso. Que você sabe como é que é política, né, política... Ele é bom, ele é um bom
deputado, mas o quem estraga são os assessores, sabe. Se for conversar diretamente com ele
você é atendido, mas se pegou conversar com assessor, aí é complicado, sempre para no meio.
Sempre para um documento engavetado, aí não vai pra frente. Agora, se a gente cobrar
diretamente da pessoa dele, eu acho que a gente pode conseguir alguma coisa. (Lourenço
Muchacho, Maio/2003)
A trajetória de Lourenço é similar a de várias outras lideranças: atuou como “cabeçante” nas
turmas que iam realizar trabalho em fazendas ou usinas da região; atuou como líder em certas
atividades religiosas da Igreja Católica; estabeleceu relações com líderes de partidos políticos e
parlamentares, visando conseguir “benefícios” para seu grupo, ou seja, operando como um
mediador entre a comunidade indígena e as elites dirigentes locais e regionais. Em 1998 lançou-se
candidato a cacique e foi derrotado.
O processo de formação do seu grupo político dentro de Cachoeirinha em 2002 se deu da
seguinte maneira:
“Essa intenção de ser cacique foi formado por 35 pessoas, 35 pessoas iniciaram isso, e essas 35
pessoas se tornou comissão e eles andaram bastante, discutindo sobre isso e levando nosso
nome pra a comunidade. (...)
Quem fazia parte desta comissão?
Felix Canali, Enilson Belisário e Edno da Silva. Era três cabeças que sempre discutia isso com
a gente. Agente aceitou a proposta e nós saímos. Na primeira tentativa a gente tinha perdido, ai
na segunda agente ganhou como cacique. Durante esses tempo faltou, faltou mais apoio
político, fizemos projeto nenhum delas foi aprovado.
Ai tava, mais pessoas; Quintino Mendes, Porfírio Martins e Florentino Martins (Vila Nova),
Laércio Albuquerque (Vila Nova), Paulo Matias (União São João), Bartolino da Silva , João
Miguel, Jorge Vitor, Sebastião Vitor (todos São João) Natalício Joaquim (Vila Principal), Hélio
Albuquerque (sogro), Estrogildo Miguel, Valdecir Antonio (Vila América), Luis Martins, Felix
Candido Antonio, Cecílio Lipú (Vila Nova). Então esse grupo ai foi formando, foi chegando
outras pessoas. (Lourenço Muchacho, Março/2006)
Os membros da comissão eram todos eles das vilas que antigamente faziam parte do
“Mangao” (exceção importante é Enilson Belisário, morador da vila Santa Cruz. Dentre eles,
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
242
estavam o sogro e um cunhado de Lourenço (Hélio e Laércio Albuquerque, respectivamente), e
algumas lideranças da Igreja Católica, como Estrogildo Miguel.
Deste grupo inicial, é que foram indicados os primeiros “Conselheiros” de Lourenço
Muchacho, como podemos ver pelo quadro abaixo:
Quadro 32 - Membros do Conselho de Lourenço Muchacho.
Conselho Tribal Cachoeirinha - 2002
Adilson Júlio
(vice-cacique)
Felix Candido Antonio Temiz
Arruda (Anciãos)
Marcolino Joaquim e Quintino
Mendes (1º e 2º tesoureiros).
Pedro Alcântara
(Presidente do Conselho)
Hélio Albuquerque (vice-presidente)
Membros:
Jorge Vitor, Edno da Silva,
Natalício Joaquim, Laudelino de
Oliveira, Odir Antonio, Miguel
Antonio, João Miguel Porfírio e
Florentino Martins, Agnaldo
Martins, Milton Raimundo,
O processo político interno levou entretanto a alterações desta composição. Vejamos como
isso se deu:
Quantas vezes esse conselho foi mudado?
Esses conselhos foi mudado uma vez só. (mudei porque alguns não participava mais da reunião)
e houve uma confusão também, política interna mesmo. Como cacique naquela vez eu tinha
autonomia pra... Porque por exemplo, se agente chama a pessoa numa luta porque é nossa
confiança. Ai quando acontece uma briga contra a nossa pessoa que nós indicamos.... A pessoa
que foi chamado para fazer parte do Conselho são nomeado, digamos. Então quem nomeia se
achar por bem que o membro do conselho não tá servindo como deveria servir a comunidade, ai
o cacique tem como fazer novo emenda para fazer troca dos novo membro.
Quem você substituiu, quem você indicou?
Primeiro perguntei pras lideranças que permaneceu se caberia convocar pessoas pra preencher
o cargo. Então quando eles deram o resultado que poderia, chamei as pessoas para preencher o
cargo de novo. (...) Eu coloquei o Alírio de Oliveira Metelo, Tomás Balbino, Mário
Albuquerque, Lírio Lemes, Milton Pires.
Vejamos o quadro abaixo, com a indicação da composição dos membros do Conselho
Tribal.
Quadro 33 Substitutos dos Membros do Conselho de Lourenço Muchacho.
Presidente do Conselho Vice-cacique Conselheiros
Zacarias da Silva Cirilo Raimundo Alírio de Oliveira Metelo
Virotino Paulino
Tomás Balbino, Mário
Albuquerque, Lírio Lemes
Vemos que algumas mudanças são importantes: primeiramente, o Presidente do Conselho
Tribal e o Vice-Cacique foram mudados; saíram Adilson Júlio e Pedro Alcântara, e entraram
Zacarias da Silva e Cirilo Raimundo. No Conselho entraram Alírio, Vitorino, Tomás, Lírio e Mário
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
243
Albuquerque (este na época presidente da AITECA). Assim, já existia um precedente de mudanças
no Conselho Tribal, quando o conflito eclodiu em 2004.
A situação que estava colocada, de luta entre o Cacique e a sua liderança, representava a
dissolução de uma aliança política que inclusive possibilitou a sua vitória nas eleições para cacique.
Mas como a acusação não foi à frente, e não ocorreu um movimento mais sistemático da
comunidade para derrubar o cacique, esta situação se resolveu com a “dissolução” do Conselho
Tribal, por ordem de Lourenço. Quando estávamos em Cachoeirinha no período de setembro-
novembro, o Conselho não se reunia, por estar em processo de reformulação. O cacique estava
então indicando novos membros para a composição deste Conselho. As antigas lideranças seriam
substituídas por novas.
Porque aconteceu a oposição da sua liderança?
Houve um problema naquele época sobre a troca do Chefe do Posto, Argemiro... ai nasceu uma
confusão no meio de tudo isso e eu fui chamado por liderança pra esclarecer se realmente eu
tive caso com uma mulher assim. Ai eu fui lá, me presenciei, houve um discussão. Só que
naquela vez ali não saiu mais na cabeça dos outros pessoal. Quando aconteceu isso já queria
me tirar fora. Mas na verdade eu não tinha relação com essa pessoa. Então foi um política, essa
dona foi usada para que pudesse me tirar desse cargo. Só que no momento eu não me entreguei,
ai começaram uma política interna, conversaram daqui, começaram dali, até que chegaram
num momento que queriam me tirar do cargo. Ai como não foi verdade aquela conversa, não me
entreguei.
Ai eu tive que afastar as pessoas, tive que afastar o Alírio, tive que afastar o Tomás, tive que
afastar o seu Lírio, Sabino Lipú tive que afastar ele, que geraram confusão no meio da
liderança, por isso que houve esse troca. Quando eu fiz essa troca eu não convoquei eles, deixei
de fora. (...)
Entretanto, de fato, o Vice-Cacique e o Conselho não abdicaram do poder, criando uma
situação de dualidade. Podemos mencionar isso, por ocasião de uma reunião realizada com um
representante do Idaterra
103
, no dia 26/10/2004 às 15:30h,. Acompanhamos esta reunião, realizada
no centro comunitário. O representante do IDATERRA, de nome Paulo, que apresentou uma
proposta de comercialização de produtos, e também levantou as demandas locais que foram
apresentadas especialmente como sendo de sementes, combustível e maquinário para o plantio.
Estavam presentes o vice-cacique Cirilo, o cacique Isidoro Pinto do Morrinho, o Cacique João
Candelário, da Argola, o vice-cacique João Leôncio do Babaçu, o chefe de Posto Argemiro Turíbio,
Alírio de Oliveira Metelo e algumas outras pessoas que não conhecíamos. Foram feitos acertos
relativos a distribuição de sementes e óleo diesel entre os diferentes setores, e todas as lideranças se
pronunciaram.
Esta reunião explicita que o cacique Lourenço se viu relativamente isolado de sua liderança,
e que esta assumiu as funções políticas de representação da comunidade-local Terena nas relações
103
Instituto estadual para de execução de política agrícola.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
244
com os representantes das instituições estatais e no controle efetivo dos recursos materiais e
produtivos destinado para as aldeias. A presença de Alírio de Oliveira Metelo, de Argemiro Turíbio
e do vice-cacique Cirilo Raimundo mostram que o esquema de poder local se manteve, e que na luta
entre Lourenço Muchacho e a “Associação do Alírio”, esta última, pelo menos num primeiro
momento, saiu fortalecida.
Porém, a situação ainda sofreria mais uma reviravolta. As disputas se acirraram tanto, que
quando um dos antigos candidatos e ex-vice cacique retornou, se aliou politicamente com os grupos
opositores e:
Ai naquela vez o Adilson, que abandou o cargo e foi pra destilaria, ai ele chegou no final do
mês, achou essa briga, entrou no meio e foram para Campo Grande, e correu o risco de haver
naquele época dois caciques. Mas também nós vencemos a luta, não foi pra briga, foi no
conversa, a gente resolvemos a questão. Conseguimos derrubar lá no FUNAI a documentação...
O que atrapalhou nossos companheiro naquela vez era essa confusão que teve, porque não teve
diálogo entre as lideranças. Só houve conversa... lá fora.
O pessoal foi levar documento pedindo o que?
Pedindo que o Adilson entrasse no meu lugar como cacique. Só que naquele época nós tinha
documento justificativo. Porque que ele não ficou. Porque se ele tivesse avisado agente quando
ele saiu para destilaria fosse tudo por escrito daquela vez ele conseguiria ficar no meu lugar,
mas como ele não avisou agente, não falou nada, pra nós não foi nada escrito, aí nós
consideramos ele no documento como abandonou o cargo, nós colocamos na ata que ele
abandonou o cargo. Ai ficou na cabeça do pessoal, “não ele abandonou o cargo, ele não pode
permanecer, não pode ficar como cacique”. Por isso que não chegou de ser cacique. E hoje
tentou novamente e não ganhou, ficou muito longe. Depois que a pessoa vê o nosso defeito aí a
pessoa não confia mais. (Lourenço Muchacho, Março/2006).
Quando a força do movimento local não foi suficiente para derrubar o Cacique que haviam
se dirigido as instancias locais, como o Conselho Tribal - os grupos opositores partiram para
“Campo Grande”, para a instância estatal hierarquicamente superior, solicitando sua intervenção
política no contexto dos conflitos aldeãos. A apresentação de uma “documentação” como indicada
por Lourenço, visava fundamentar a solicitação da sua substituição como Cacique da Cachoeirinha.
O início deste conflito estava, como o próprio Lourenço afirmou, na tentativa feita por ele de
derrubar o Chefe de Posto. Assim ele descreve suas razões:
Porque você queria trocar o chefe de posto?
É o seguinte, a primeira luta que eu fiz pra querer tirar ele eu fui assim na força eu fiz
documento com meu próprio punho, porque tava havendo muita conversa, muita pessoa
reclamando por ele, só que essa pessoa não tinha coragem de chegar e cobrar ele, essas me
cobrava, sempre cobrava a mim.
Se eu tivesse naquele época uma visão política assim ampla, acho que eu poderia chamar ele e
conversar, ó tem esse pessoal aqui reclamando. Eu não consegui tirar ele. Ai permaneceu mas
tempo, ai quando entrou outro administrador, aí por competência dele retirou. Ele mesmo falou
pra mim. Isso aqui é minha competência, como novo administrador, eu tenho como colocar a
minha confiança lá dentro, ai todos os caciques concordaram.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
245
Segundo outras versões, existiam ainda outras questões. Na Argola, conversarmos com
Inácio Faustino, presidente da AITRE. Perguntei a ele sobre a questão da tentativa de derrubada do
Lourenço, ocorrida naquele ano. Ele explicou que tudo foi motivado pela “questão dos contratos
com as Usinas. Disse que o pessoal não estava satisfeito com o fato de ter maquinário parado,
esperando concerto e o dinheiro que entra para o “Caixa Comunitário” não ser usado para isso”.
Disse que o negócio ferveu de vez quando o Lourenço “cantou” uma mulher e aí que eles quiseram
tirá-lo de vez. Depois o Lourenço tentou tirar o Argemiro, quando as acusações começaram e o
chefe não ficou do lado dele. Então, sozinho, fez um ofício para a administração regional em
Campo Grande, mas na época o Márcio Justino se recusou a exonerar o Argemiro, argumentando
que não faria isso sem haver o apoio de toda a “comunidade”.
No final das contas, o Cacique e o Chefe de Posto permaneceram em seus cargos naquele
momento. Mas como Lourenço indicou, o Chefe de Posto, Argemiro Turíbio, foi exonerado do seu
cargo no primeiro trimestre de 2005, por decisão do recém empossado Administrador Wanderley
(pelo soubemos existia uma diferença de alinhamento político partidário, já que Wanderlei era
alinhado com o PT e o Governo Estadual, enquanto que o chefe de Posto era aliado no município
com Ivan Paz Bossay, opositor da prefeita Beth Almeida, do PT. Além disso, um grupo de Terena
de Miranda tinha apoiado a candidatura de Wilson Jacobina, da aldeia Passarinho, e não Wanderlei,
nas eleições internas da FUNAI, que escolheram o administrador, meses antes).
Lourenço Muchacho,entretanto, também não chegou a concluir o seu mandato. Ele abdicou
da função, como nos disse:
Como foi o final da sua gestão e porque resolveu entregar o cargo?
Fiquei mais ou menos 7 meses. Faltava mais ou menos 3 mês para o encerramento do cargo, ai
entreguei o cargo para o pastor Zacarias. Ai o pastor Zacarias continuou.
É porque eu tava vendo que não tinha mais saída, porque não tinha mais projeto. Também o
pessoal me perseguia muito. Porque eu cobrava muito sobre venda de bebida alcoólica, o
pessoal já tava me ameaçando, então tá bom se o pessoal quer beber, então continua bebendo.
Então eu pensei melhor, já tava sendo pior pro meu lado, falei antes que alguma coisa aconteça
é melhor entregar. Ai continuou o trabalho. (Lourenço Muchacho, Março/2006).
As causas para sua renúncia estavam associadas tanto as questões acima indicadas, quanto a
outras que estão associadas diretamente aos poderes do cacique e a forma como a comunidade
indígena reage ao seu exercício. Lourenço narra assim a sua situação antes de abdicar do cargo:
“...eu já não conseguia ficar tranqüilo, porque era muito perseguição, perseguição do meu
próprio patrício. (...) Ameaça, Porque durante o tempo que eu fiquei de cacique, eu mexia mais
com esse venda de bebida, prendia o pessoal para Miranda, tomava arma, quando eu era
cacique desarmei 10 pessoas de arma de fogo. Então esse pessoal ficava na mente dele “esse
cara vai ter que me pagar”, um dia eu vou pegar ele.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
246
Acontece aqui, foi uma plena noite, parece que foi dia de Sábado, chegou oito pessoa aqui
querendo me bater naquela noite, eu não clamei em alta voz, mas eu disse para Deus que podia
me livrar naquele momento mas como Deus é grande. Eu não conseguia andar desarmado,
Porque a minha intenção era muito...eu tava muito revoltado, se um dia algum patrício me
encostar a mão eu vou matar. Então fiquei armado 6 meses. Olha aqui onde fui me meter. (...)
Essa perseguição que eu tinha antigamente não tem mais”. (Lourenço Muchacho, Março/2006).
Lourenço também avalia que sua gestão sofreu tantas críticas e movimentos de oposição, por
conta das dificuldades encontradas em conseguir recursos para a comunidade, de maneira que o fato
de não ter sido feliz em estabelecer as alianças políticas (na FUNAI, na Prefeitura e Governo
Estadual) é que teria dado abertura para a insatisfação.
“Essas 35 pessoas tinham esperança, tinha, grande esperança de que a luta andasse bem. Mas
como sempre falo, houve barreira e a gente, só que eu sempre falava, se a gente não dá o braço
a torcer digamos para o político, ai agente não consegue nada, político tentava me manipular e
eu não aceitava isso. E eu corria de outro para outro. Então por isso que eu não teve ajuda.
Mas uma parte andou bem, foi a parte da demarcação da terra. Nós fomos para Brasília, fomos
para Campo Grande pra discutir sobre isso. E teve um andamento maior Enquanto agora o
processo tá parado. Acho que precisa remexer de novo. Conversar novamente com o pessoal da
FUNAI. A gente então mexeu mais por esse lado.... A parte da lavoura não tinha recurso, a
FUNAI não tinha recurso para tentar se consertar, agora que o trator saiu. Entrou no
orçamento do ano passado, ficou mais ou menos 8 meses na oficina e agora que saiu nesse ano
e tá começando a trabalhar. Então pra mim foi uma grande barreira na luta não conseguir
nada”. (Lourenço Muchacho, Março/2006).
Ou seja, os conflitos e a luta pelo poder, envolvem diretamente a problemática dos recursos
materiais e das alianças políticas que os viabilizam, e que vão atender as pautas sócio-culturais dos
diferentes segmentos componentes das comunidades indígenas. A ascensão e queda do Cacique
Lourenço Muchacho se deu em razão destes fatores. A dinâmica política de Cachoeirinha se
estabelece em função dos diversos fatores e elementos descritos acima.
Em dezembro de 2005, foi realizada a eleição para o Cacique da Sede. Nesta eleição foram
candidatos seis homens: Cirilo Raimundo, Sabino Albuquerque, Vitorino Paulino, Mário
Albuquerque, Adilson Júlio e Antônio Gonçalves. Cirilo teria recebido 300 votos, Sabino (apoiado
por Lourenço) 150 votos e Antonio Gonçalves (apoiado por Argemiro) ficou em terceiro lugar na
disputa. Assim, o antigo vice-Cacique conseguiu tornar-se Cacique, e logo o início da sua gestão foi
marcado também por conflitos políticos, desta vez envolvendo os Caciques das aldeia Babaçu,
Lagoinha e as lideranças da aldeia Argola, em razão dos encaminhamentos relativos a luta pela
demarcação da terra. Por outro lado, muitas pessoas da aldeia elogiavam o trabalho do novo
Cacique por estar conseguindo trazer benefícios para a comunidade, como “cascalhamento das
estradas” (junto à prefeitura), reforma do trator da FUNAI (junto a Administração Regional da
FUNAI) e recursos como óleo e sementes.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
247
Os contornos gerais da situação social descrita acima, e a luta pelo poder que ela expressam,
podem sugerir a confirmação das teses dos estudos de aculturação e assimilação; os conflitos
políticos derivariam das clivagens introduzidas pelo cristianismo e pelas igrejas, e pelas formas de
organização social nacional-ocidentais (como as associações formais, as eleições para Cacique e
etc), de maneira que a organização social indígena teria sido completamente desagregada. Na
realidade não é exatamente isto que acontece.
Esta “luta pelo poder” que se expressou numa série de situações sociais como aquelas
descritas acima (denúncias apresentadas contra o Cacique no Conselho Tribal; requisição de
mudança do Chefe de Posto, por parte do Cacique e etc) na realidade está ancorada numa
dinâmica estrutural, gerada pela consolidação do regime tutelar, dentro da situação histórica de
reserva, e que se tornou base de formação das novas situações históricas. Para interpretá-la e
compreendê-la corretamente, é necessário entender o funcionamento da atual organização política
Terena, dentro da situação histórica de “retomada”. É preciso compreender as unidades básicas da
organização político-territorial indígena, suas relações com as instituições estatais e a política
indigenista.
5.2 – As Unidades Básicas da Organização Política Terena.
A dinâmica estabelecida no contexto da aldeia pode ser qualificada da seguinte maneira: 1º)
a mobilização política faccional que toma por base múltiplos critérios de recrutamento (relações de
parentesco, co-residência, e alianças situacionais mesmo entre adversários), organizada
especialmente em torno da disputa do “cargo de cacique”; 2º) o Cacique se mantém em seu cargo,
graças a gestão que realiza dos recursos materiais e dos poderes de que dispõe, o que depende tanto
das alianças e composições internas com líderes das facções existentes, quanto externas, com
administradores e líderes políticos municipais e regionais; 3º) as facções políticas descontentes
mantém sempre uma luta contínua pelo poder, luta esta às vezes discreta, às vezes aberta, o que
confere uma grande instabilidade a dinâmica política aldeã; 4º) a resolução para os conflitos
políticos é quase sempre buscada no apelo a intervenção dos poderes estatais (soluções de cima pra
baixo), especialmente pela solicitação de intervenção da FUNAI, que exerce assim uma espécie de
“poder moderador” (legitimado e demandado pelos índios), que visa gerar um equilíbrio ou
desequilíbrio de poder favorável a esta ou aquela facção, a esta ou aquela liderança indígena que
não esteja satisfeita com os encaminhamentos adotados dentro da própria comunidade. Esta
dinâmica é gerada pela existência de um conjunto de papéis e instituições políticas inter-
relacionados, que constituem as unidades básicas da organização política Terena; 5º) em casos
limites, é possível que as disputas resultem numa “dualidade” local de poderes, com a consolidação
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
248
de dois Caciques que disputam o poder legal e legitimo de representar os índios, situação que
“quase aconteceu” em 2004 (segundo as palavras de Lourenço Muchacho).
Precisamos descrever as unidades básicas desta organização. O caso da terra indígena
Cachoeirinha se apresenta como tipo exemplar desta organização. A organização e dinâmica das
relações políticas entre os Terena, se dá por meio de uma série de instituições e papéis sociais que
se distribuem de maneira hierárquica. A descrição das unidades básicas da organização política
Terena permitirá demonstrar isso.
Dentro da organização política entre os Terena, nós podemos distinguir uma estrutura
piramidal: o topo é uma posição de poder individual, representada pelo papel social e posto político
do Cacique. Abaixo, tanto do ponto de vista do poder decisório, quanto no sentido de ser a “base”
de sustentação estão o Vice-Cacique e o “Conselho Tribal”, que é escolhido pelo próprio Cacique.
O Conselho pode variar de dimensão em cada setor/aldeia, mas ele tem uma distribuição
interna de papéis que é relativamente constante. O Conselho é composto pelo Vice-Cacique, pelo
Presidente do Conselho, pelo Ancião, 1º e 2º Secretários, 1º e 2º Tesoureiros e pelos
Conselheiros.
Do ponto de vista formal, o Cacique Centraliza o pode decisório, na sua presença o que vale
é sua decisão. O Vice-Cacique e o Presidente do Conselho substituem o Cacique quando este não
se encontra na Aldeia, tendo as funções de regular a entrada e saída de pessoas, negociar com
autoridades e etc. Além disso, o Conselho tem a função de regular e fiscalizar a ação do Cacique,
tendo também o poder de destituir o Cacique do cargo. Desta maneira, as relações entre Cacique e
Conselho são baseadas nesta tensão estrutural, em que o cacique tem o poder de indicar e destituir o
Conselho, e por outro lado, o Conselho tem autoridade formal de fiscalizar e destituir o Cacique.
Veremos que esta tensão se manifesta em diferentes ocasiões através da luta entre facções políticas.
Em tese, existem reuniões regulares do Conselho com Cacique para administrar as atividades da
aldeia.
Atualmente, o Cacique é escolhido por eleições. Há um prazo de 4 anos para cada mandato
de Cacique. Antes de cada eleição para cacique, existe um período para “campanha” eleitoral em
que os candidatos a Cacique fazem suas articulações. As regras válidas para a eleição dentro das
áreas indígenas é similar as existentes no processo eleitoral democrático-burguês, definidas pela
Justiça Eleitoral.
A autoridade formal do Cacique pode ser classificada em três áreas de incidência: 1) as
relações pessoais e familiares dentro da aldeia. Quer dizer, o poder do cacique é uma forma de
controle sobre as atividades dos indivíduos com relação especialmente ao uso de bebidas alcoólicas,
fixação de residência (quando indígenas vêem de fora, de outra aldeia) e conduta “criminal” dos
indivíduos, se eles cumprem ou não a lei; 2) as relações interétnicas, é uma forma de controle das
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
249
relações entre os membros do grupo com indivíduos e grupos não indígenas ou outros grupos
étnicos, implicando controle do acesso (entrada/saída) da área indígena e ao poder de representação
formal do grupo perante as instituições e grupos sociais; 3) é uma forma de controle das relações
econômicas e bens “coletivos” do grupo, que dizem respeito ao controle exercido pelo Cacique
sobre os contratos de trabalho assinados pelos índios com empresas, atualmente, com as Usinas de
Cana de Açúcar, sobre os veículos (trator, caminhonetes, caminhões) que porventura existam, e
também os armazéns e recursos e implementos agrícolas que o grupo receba, seja do Governo
Federal, seja do Governo Estadual ou Municipal, ou ainda, por meio de projetos de organizações
não governamentais.
Neste sentido, o poder do Cacique é um poder ao mesmo tempo de controle social,
representação política e gestão econômica. A figura do Cacique se apresenta como vértice de uma
estrutura centralizadora, que no plano local abrange praticamente todos os domínios da vida social.
No entanto, esta estrutura só pode ser compreendida a luz da estrutura global de poder na qual está
integrado, que é o Sistema Político Estatal.
Em vários grupos indígenas já se indicou que tanto a categoria discursiva quanto a função
concreta do “Cacique” são produtos da situação colonial, são imposições do Estado aos diferentes
grupos étnicos, implicando uma primeira forma de homogeneização (ver Oliveira Filho, 1988).
Com os Terena não aconteceu nada de diferente. O Cacique foi a princípio um representante do
Chefe do Posto perante aos índios, um papel social integrante do sistema estatal, vinculado mais
diretamente ao SPI/FUNAI. Mas tornou-se também uma categoria integrante e fundamental da
organização e relações políticas do grupo étnico considerado
104
. A figura do Cacique ou Capitão,
juntamente com a figura do Chefe do Posto, comporá o conjunto de papéis individuais e locais
manejados para a aplicação/execução da política indigenista e de controle do Estado sobre os
índios.
Entretanto, a distinção entre Chefe de Posto e Cacique foi fundamentada na concepção de
uma dualidade básica: o Cacique seria um “aliado” interno, um membro do próprio grupo indígena
e atuaria em conjunto com o Chefe de Posto, funcionário público e representante da “sociedade
nacional”. Esta distinção hoje pode parecer sem sentido, devido à inversão de papeis produzida
pelas próprias estratégias indígenas, mas é preciso tê-la em mente para dimensionar corretamente a
correlação de forças existente entre índios e Estado. Porque apesar de “relaxada”, tal dualidade
ainda se mantém.
Chefe de Posto e Cacique são dois papéis sociais determinantes para as relações políticas no
espaço aldeão Terena. O Chefe de Posto, assim como o Cacique, possui uma série de atribuições
104
Como a categoria “Tuxaua” - gerada pelas relações com o “barracão” tornou-se estruturante da organização social
e política dos Macuxi.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
250
formais que conferem também um poder determinado sobre o grupo. O Chefe de Posto compartilha
em certa medida o poder com Cacique. Em outras situações históricas, o Chefe de Posto era a
autoridade máxima da área indígena, tendo o poder de indicar o Cacique e comandar as relações de
trabalho dos índios. Hoje, seu poder é mais restrito, equilibrando-se em certa medida com o poder
do Cacique. Existe um poder de controle social, um poder de representação, e um poder de gestão
econômica, mas também burocrática. O Chefe do Posto faz a intermediação entre o Posto e a
Administração Regional da FUNAI. Ele controla os requerimentos encaminhados ao órgão, e
também controla, junto com o Cacique, os contratos de trabalho. Ele controla também os bens da
FUNAI juntamente com o Cacique. Desta maneira, da mesma forma que existe uma tensão
potencial estrutural entre o Cacique e o Conselho, existe uma tensão entre o Cacique o Chefe de
Posto.
Entretanto, existem diferenças substanciais entre a função de Cacique e a função de Chefe
de Posto. Primeiramente, o cargo de Chefe é, em última instancia, um emprego público, com
remuneração fixa, bem acima da média de renda que os lavradores Terena têm. Além disso, existe
pelo menos idealmente, um conjunto de saberes técnicos que o Chefe domina, que são distintos dos
saberes da média da população indígena, sendo exigido uma formação escolar determinada
105
.
Desta maneira, o Chefe de Posto enquanto funcionário público possui um status diferenciado, que
implica um diferencial de prestigio e saber, que está associado também à renda. O Chefe de Posto,
por mais que tenha tido sua força reduzida frente à ascensão dos caciques e comunidades indígenas,
manteve estes elementos como importantes de sua atribuição.
Dessa maneira, podemos falar que a luta pelo poder dentro das aldeias, é uma luta pela
exercício da “co-gestão” dentro do regime tutelar; isso significa, a luta pela legitimidade, autoridade
e força para gerir tanto os contratos de trabalho, quanto as decisões relativas a alocação de recursos
materiais e relações de mediação política. As posições de Cacique e de Chefe de Posto concentram
os poderes, estruturados pelo regime tutelar, de exercer o controle da “mão-de-obra indígena” e do
“fundo” gerado pelas relações de trabalho gerenciadas pela FUNAI com as Usinas do Mato Grosso
do Sul. A estrutura de poder se estende assim, desde as plantations agroexportadoras até as
comunidades indígenas, sendo o órgão tutelar um instrumento de mediação e gestão dessas
relações. A co-gestão indígena no plano local se apresenta antes de tudo, como a gestão da mão-de-
obra indígena, do “fundo” gerado por ela, e de sua aplicação. Mas vejamos, os índios lutam para
compartilhar o poder com as estruturais estatais e gerenciá-las de acordo com seus interesses. Ao
mesmo tempo lutam para combater os efeitos da dominação imposta por esta estrutura política.
Esta estrutura organizacional opera em todas as aldeias dentro de Cachoeirinha. Existem
então cinco caciques dentro da terra indígena Cachoeirinha, cinco conselhos tribais, um para cada
105
No caso, a conclusão do ensino médio.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
251
aldeia. Entretanto, existe uma hierarquia de poder entre as aldeias Terena, ou melhor dizendo, entre
os caciques das diferentes aldeias. A aldeia Sede funciona na verdade como centro político e
administrativo da terra indígena Cachoeirinha. Assim, os Caciques dos setores ficam subordinados
ao Cacique Geral, que é o Cacique da Sede. Quais as bases desta hierarquia de poder entre os
caciques, e quais suas conseqüências para a dinâmica política nas comunidades-indígenas? Qual a
razão da “Sede” ser este centro político-administrativo?
O nível local da dominação: política indígena e economia regional
A hierarquia de poder entre os Caciques dentro das aldeias tem como base o sistema político
e econômico dos quais os territórios indígenas, enquanto unidades sociais fazem parte. Ou seja, a
base da diferenciação está na localização destas instituições locais dentro do campo e arenas das
relações interétnicas, e é através destas relações, que se define tal diferenciação dentro das
comunidades-locais indígenas.
A organização política dos Terena tem uma base econômica que é fundamental: é o
chamado “Caixa Comunitário”. Este Caixa Comunitário é um fundo composto por recursos
advindos da taxação dos contratos de trabalho. Este dinheiro é da “comunidade indígena”, mas
quem tem o poder, na prática, de administrá-lo, é o “Cacique Geral”. O percentual cobrado é de
10% sobre o valor do rendimento de cada trabalhador que sai para as Usinas, sendo 5% descontado
do salário do trabalhador e 5% pago pelas Usinas de Cana de Açúcar.
Esta é uma base fundamental do poder do Cacique Geral. Esta é uma das bases da hierarquia
e conflito político local. Apesar dos trabalhadores serem recrutados dentro de cada uma das aldeias
existentes, o dinheiro do Caixa Comunitário é destinado a Sede, onde fica sob o controle do
Cacique Geral e só é repassado para estas aldeias caso seja decidido pelo Cacique.
Além desta diferenciação, existe uma outra que é fundamental: a investidura estatal. Os
caciques das aldeias Terena tem uma legitimidade própria, se reúnem inclusive num grande
encontro para indicarem o Administrador Regional da FUNAI, e decidirem questões de grande
importância para o grupo
106
. Cada aldeia/setor, como dissemos, possui uma estrutura de liderança
própria, seu Cacique e seu Conselho. Mas existe uma hierarquia interna entre os próprios Caciques.
Ao mesmo tempo em que o Cacique de cada setor tem um poder real de mobilização, ele não tem o
mesmo poder de representação, já que esta depende de uma investidura estatal e do
reconhecimento externo para se validar. Conseqüentemente, o poder do cacique local se vê
106
Por exemplo, na ocasião da construção do Gasoduto Brasil-Bolívia, que passou na região do Pantanal, as lideranças
Terena se reuniram para discutir o que fazer com o dinheiro de indenização pago pela Petrobrás as comunidades
indígenas.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
252
inferiorizado em face da existência do Cacique Geral, que em casos de disputa, pode suprimir
temporariamente, mas em questões fundamentais, o poder dos demais Caciques.
Logo, podemos dizer que a organização política Terena de Cachoeirinha, em forma
piramidal, na base é composta pelos Caciques e Conselhos das comunidades-locais e se fecha no
topo com o Cacique Geral e o Conselho Tribal da Sede. Existem os Caciques Locais (de Morrinho,
Argola, Babaçu e Lagoinha), que tem um certo poder sobre suas comunidades locais, mas que tem
seu poder limitado nas relações supra-aldeãs que são partes constitutivas da função de Cacique.
Somente o Cacique Geral tem poder sobre o “Caixa Comunitário”, e este poder marca uma
diferença crucial para os demais Caciques.
A organização política dos Terena em Cachoeirinha revela dois aspectos antinômicos: uma
tendência descentralizadora expressa pela existência de uma pluralidade de lideranças políticas
locais, e uma tendência centralizadora, dada pela hierarquização entre os Caciques Locais e o
Cacique Geral.
Esta tendência contraditória da organização política Terena é fruto dos fundamentos
materiais desta organização, que faz com que sua organização e relações políticas sejam um nível
local do sistema capitalista de dominação, não no sentido que seja uma parte em coerência
funcional com tal sistema, mas que as relações ali constituídas são interdependentes de outras
instituições e atores sociais.
O Caixa Comunitário, que como veremos é um fator fundamental para a compreensão dos
conflitos faccionais entre os Terena é um “fundo” gerado pela articulação entre Estado (através da
política e instituições indigenistas) e Empresários e Unidades Produtivas Capitalistas, para a
exploração do trabalho indígena. Num certo sentido, é uma técnica de governamentalização dos
índios, já que trata-se de um dispositivo ao mesmo tempo voltado para uma racionalidade
econômica (de exploração do trabalho e geração de riquezas) e que prevê uma medida de “retorno”,
de reciprocidade em relação aos governados a geração de fundo para o beneficio “coletivo”,
“comunitário”. Os contratos coletivos são o meio principal dessa governamentalização dos índios.
Ao mesmo tempo, é a base fundamental para a constituição do poder do Cacique Geral, e a
utilização destes recursos abaliza e dá legitimidade para as lideranças. Assim, mesmo existindo um
movimento local e autônomo que descentralizou a posição do Cacique, o reconhecimento da
legitimidade deste pela FUNAI,enquanto instituição estatal é fundamental. A FUNAI tem o poder
de reconhecer, não reconhecer e às vezes indicar ou retirar Caciques.
O poder dos Caciques, Locais e Geral, compartilhado e rivalizado como Chefe de Posto, se
dá assim sobre a mediação das relações de trabalho e administração da propriedade indígena, e está
fundamentado nas relações existentes entre estes instituições do Estado e Mercado Capitalistas e as
instituições indígenas. Se não considerarmos as relações e situação de classe dos índios Terena, é
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
253
impossível entender a exata configuração de sua organização política. A política indígena se
encontra diretamente subordinada à dinâmica da economia regional e nacional, e ainda, ao Estado,
através do regime tutelar.
Além das instituições estatais locais, existe a Administração Regional da FUNAI, que na
prática empreende uma função de arbitragem dos conflitos e da vida política dentro de cada terra e
comunidade indígena existente, apesar de que sua intervenção quase sempre depende da solicitação
ou demanda local. A FUNAI assim funciona como instancia decisória final para os processos e
conflitos políticos desencadeados no âmbito da aldeia.
Naati e Tuuti: organização política em processo
A organização política indígena se baseia também nas formas de organização social e
cultural. É importante compreender que o ponto de partida histórico da atual forma de organização
política Terena. A etnografia brasileira se ateve muito pouco as características desta organização
política, dando maior ênfase às distinções “estruturais” entre os “naati” (camada dos chefes) e os
“wharê-xané”, sem se preocupar com descrição da formação das comunidades/aldeias indígenas,
seus princípios e com os padrões de ação política e territorialização dentro das aldeias. Quando
falamos com os Terena e perguntamos o significado da palavra naati, ela é traduzida como
sinônimo de “Cacique”. Na descrição que J.Bach realizou das comunidades Terena de Miranda no
final do século XIX, ele descreve “koixomuneti” como sendo o cacique, o líder político das aldeias
Terena. Assim, existem divergências na etnografia quanto à caracterização do líder ou chefe Terena,
e conseqüentemente, acerca de sua organização política, de maneira que é preciso aprofundar tal
discussão e esclarecer certos aspectos.
É preciso compreender a organização política Terena nas situações históricas do Chaco e do
Diretório, para podermos caracterizar de forma mais precisa a sua atual dinâmica e organização
política. É preciso compreender a diferenciação entre os “naati” e “wharê-chané”, e as formas de
ação política dos “chefes indígenas”, assim como os padrões de distribuição e transmissão do poder
dentro das diferentes comunidades indígenas Terena existentes . Iremos agora tentar delinear os
traços fundamentais da organização política Terena nas situações históricas que antecederam a
situação histórica de reserva, pois estes trações são fundamentais para compreender o caráter das
transformações decorrentes do processo de formação do Estado-Nacional, bem como do regime
tutelar e do campo das relações interétnicas.
As informações levantadas por Baldus, Altenfelder Silva e Cardoso de Oliveira, tem pontos
comum. Primeiramente, concordam com a hierarquização na organização social dos Terena, seja na
Situação do Chaco, em que mantinham relações de aliança e simbiose com Mbaya-Guaicuru no
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
254
século XVIII, seja na Situação de Diretório, ou seja, aquela dada pela localização dos Terena em
territórios administrados pelo Império do Brasil, no século XIX.
O problema é que as informações reconstituídas pela memória dos informantes Terena, não
foram submetidas a uma maior contextualização dos informantes (se lugar interno), e nem se
especificou a que momento da vida do grupo elas se aplicavam. Neste sentido, uma reconstrução
histórica da organização social e política Terena tem de ser considerada com muito cuidado.
As principais fontes para o século XIX são de Francis Castelneau (anos 1840) e Affonso E.
Taunay (anos 1860), que forneceram descrições relativas a organização dos Terena. Bach fornece
algumas informações ainda sobre o final deste (anos 1890). Estes autores fornecem algumas
descrições sobre a organização e vida dos índios Terena, de maneira que se constituíram em
algumas das bases importantes para escrever a história indígena da região.
Duas teses foram formuladas para interpretar a organização política Terena: a de Altenfelder
Silva, que classificou esta organização em quatro “classes”: “Unati-aché, os chefes do povo ou do
conselho; os wharê-chané, “gente feia”; cauti, cativos; e chuna-axeti, chefes guerreiros (Altenfelder
Silva, 1949, p. 319); e a tese de Cardoso de Oliveira, que distingue três “camadas”: naati, wharê-
chané e cauti (para ele, os guerreiros não constituíam uma camada, mas eram uma posição
especifica da organização militar). Entretanto, na elaboração deste esquema, não se leva em
consideração dois fatores fundamentais: 1) a situação histórica em que, em tese, esta organização
social “tradicional” operou; 2) as relações interétnicas como fator determinante para a definição
desta organização social e política, de maneira que não se pode considerá-la em “separado” das
relações com outros grupos e instituições sociais.
Quer dizer, é preciso considerar os dois tipos de sistema social no qual os Terena, enquanto
sub-grupo Guaná/Chané, estiveram inseridos em cada situação histórica para poder compreender
esta organização e suas posteriores transformações sociais. Dois eventos históricos iriam alterar
profundamente as condições sociais sob as quais vivia a população Terena e sob as quais esta
organização social existiu e se desenvolveu. Primeiramente, a conquista e partilha dos territórios do
Chaco (como era denominada a região no Império Espanhol) ou Pantanal (no Império Português e
depois do Brasil), ou ainda Exiwa, como é chamada pelos índios Guaná e Terena (ver Azanha,
2002). Esta conquista implicou uma série de deslocamentos dos grupos étnicos ali existentes,
provocando novos processos de territorialização indígena, afetando conseqüentemente as relações
sociais entre os Mbya-Guaicuru e os Guaná e todos os povos indígenas da região.
No entanto, os Terena no século XIX seriam inseridos numa situação histórica distinta
daquela na qual a sua organização social “tradicional” (segundo a literatura existente) havia
prevalecido. A colonização da região sudoeste da então Província de Mato Grosso foi uma das
principais preocupações do Governo Imperial do Brasil. A relação entre os aparelhos de Estado
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
255
imperiais e os diversos grupos indígenas passaram a se intensificar. Neste sentido, uma certa
autonomia territorial e organizativa indígena correspondia a um período de transição entre
diferentes situações históricas.
A aliança com os Guaicurus, aos quais os Terena prestavam tributos em uma relação
comparada com a “vassalagem”, foi rompida. No século XIX, a autonomia de movimentação
territorial e capacidade bélica dos Guaicurus foi desmantelada, de maneira que as condições sobre
as quais se assentava a “relação de simbiose” foram desfeitas devido ao avanço do colonialismo
português e espanhol.
Os “Oquilidi-Naati” e os “Bairros-Cacicatos”.
Em primeiro lugar devemos indicar que a organização política dos Guaná/Chané, e seus sub-
grupos como os Terena, era definida pela sua posição concreta e variável, no sistema social
indígena do Chaco Pantanal. Neste sentido, não podemos falar da “organização política tradicional
Terena”, somente considerando os fatores internos (cultura modo de vida agricultor, tecnologia
neolítica), mas também os fatores externos, como o padrão de suas relações com e as formas de
ação dos outros grupos indígenas sobre os Guaná, e também do colonialismo português e espanhol
na região do Chaco/Pantanal.
Assim sendo, quando se fala de uma categoria como os “cativos” (cauti) na organização
política Terena, não se pode esquecer que esta era uma categoria do sistema social indígena. Os
grupos agiam e se organizavam em função da captura destes cativos, que poderiam tanto ser
absorvidos na sua economia e grupo, quanto comercializados nas cidades coloniais, como Assunção
no Paraguai. Os “cativos” incluíam uma ampla gama de povos indígenas da região, o que revela o
caráter estrutural da sua posição. Os próprios Guanás eram chamados de “cativos” ou “cativeiros”
pelos Guaicurus e marca a existência de relações estruturais entre estes dois povos indígenas, dentro
desta situação histórica. Além disso, a existência de “cativos” enquanto categoria social se dava
dentro de uma Economia colonial-escravista, encontrando paralelos na organização do Estado-
Nacional. A categoria social de “cativos” era assim não uma categoria de um ou outro grupo
indígena tomado isoladamente, mas sim uma categoria do sistema social indígena do
Chaco/Pantanal. Logo, o desaparecimento deste sistema deveria provocar necessariamente, o
desaparecimento de tal categoria social.
Com relação às demais categorias sociais, é preciso indicar as suas características
fundamentais, e demonstrar como não se pode considerá-las isoladamente, mas sim dentro do
sistema total de relações existente no Chaco/Pantanal. As descrições dos anos 1760, do Padre
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
256
Sanchez Labrador, que atuou como missionário junto aos Guaná, fornecem alguns destes
elementos:
“.. tem os Guaicurus, de uma a outra margem do rio Paraguai, criados ou tributários que há
tempo lhes fazem pequenos oferecimentos. Até onde pude indagar sobre a origem deste seu
direito sobre os Nyololas, como eles chamam a toda a nação, tudo vai baseado no parentesco,
sem que pelas armas ou conquistas pretendam este domínio (...) Alguns caciques ou grupos
Eyguaeyegis se casaram a seu modo com cacicas ou capitãs Guanás. Os vassalos destas,
mortas elas permaneceram num perpétuo feudo aos descendentes do maridos de suas senhoras.
(...)
Visitam-nos cada ano e recebem - o preito-homenagem de seus criados. Quando vão a suas
povoações, se detém em cada uma no máximo três dias, seja por não lhes permitir mais tempo a
falta de pastos para seus cavalos, seja pelo costumes de muitos anos. A particularidade que
existe neste ponto é que cada capitão Eyguaeyegi se aloja em casa de seus criados, sem que
outro Mbayá se hospede na mesma casa. Observam esta prática com tantas precisão que, se a
capitã Mbayá tem distintos criados que o de seu marido, se separam aqueles dias e cada um
vive com os seus, sem o menor sentimento”. (Sanchez Labrador, apund in Cardoso de Oliveira,
1976 p. 32-33)
A organização política dos Mbayá-Guaicuru distinguia os Oquilidi, os chefes denominados
nas formas de comunicação do sistema colonial de “capitães”. Este grupo é que mantinha relações
diretas com os Guaná/Chané e seus subgrupos, através de outra categoria social, os naati/ unati
107
,
chefes ou capitães. A relações sociais Guaciuru-Guaná se davam pela cúpula, baseadas em relações
econômicas e de parentesco. Na realidade, os grupos de naati e oquilidi, tinham profundas
características exogâmicas, pelo que os dados dos relatos de militares e missionários permitem
indicar. Como vimos anteriormente, os Mbayá-Guaicurus eram um grupo profundamente mestiçado
do ponto de vista étnico-cultural no final do século XVIII, tanto na “base”, pela incorporação de
cativos Xamacocos, Guatós e Guanás, quanto cúpula pelas, alianças matrimoniais com sub-grupos
Guaná através da categoria dos chefes.
As visitas dos Oquilidis Guaicuru nas aldeias Guaná, como indicam os dados acima, eram
direcionadas para os grupos domésticos específicos, aqueles diretamente relacionados por trocas ou
alianças matrimoniais. Estas visitas obedeciam, em tese a certas regras, e seu descumprimento
poderia ser a causa de tensões inter-indígenas.
Os naati ou chefes Guaná e dentre eles os Terena, tinham assim a possibilidade de
estabelecer relações de aliança com um grupo indígena dominante dentro do sistema social do
Chaco/Pantanal, e a forma de interação entre cada sub-grupo poderia variar, mas em termos gerais,
esta aliança política baseada em trocas matrimoniais, econômicas e acordos militares, se colocou
como um padrão de interação entre os dois povos indígenas. Os Layana e os Chavaraná teriam
mantido uma relação mais conflituosa com os Guaicurus, enquanto os Terena por terem adotado o
107
Unati, é a designação indicada por Altenfelder Silva e por Susnik, enquanto que naati é a designação utilizada por
Cardoso de Oliveira, que indica que esta palavra é derivada etimologicamente de “unati” que quer dizer “bom” em
Trena-Aruak.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
257
cavalo e se lançado a práticas guerreiras, conseguiram uma relação de maior equilíbrio de forças
com os Guaicurus, de forma a serem tratados mais como aliados do que como “cativos”.
De toda maneira, existia a possibilidade de uma aliança vertical, ou seja, dos Terena (que
enquanto Guanás eram “nyololas”ou cativos, e por isso com status inferior em relação aos
Guaicuru e devedores de tributos) para com o grupo dominante. Os naati/unati, capitães ou chefes
Terena, eram uma categoria social que se formou sob a marca da aliança política com grupos
sociais dominantes, de status e poder relativamente superior, e que em conseqüência disso, podiam
compartilhar a tradição cultural destes grupos, se desvinculando da lealdade para com a totalidade
dos grupos locais Terena, que poderiam se apresentar não do ponto de vista da divisão “étnica”
(Guaicuru X Guaná), mas sim “chefes” (oquilidi/naati) e cativos ou “comuns”.
A “exogamia étnica” da categoria social dos naati ou chefes, dentro da situação histórica do
Chaco/Pantanal e também do Diretório, pelo menos na sua primeira fase, faz com que a experiência
da “chefia” e organização política Terena fosse extremamente complexa, caracterizada pela
dispersão das mulheres “naati” e a vinculação de diferentes grupos-locais Terena a grupos de alta
mobilidade territorial Guaicurus, aos quais muitas vezes se aliavam em empreendimentos diversos,
como ações militares e migrações.
É preciso dizer que, o padrão de territorialização e organização política Guaná era muito
distinto dos Guaicuru; enquanto os primeiros eram preferencialmente sedentários e agricultores, os
segundos eram nômades e caçadores-coletores. As aldeias (no sentido indígena, e não estatal
administrativo) podiam variar em sua composição demográfico-social entre 500 e 1500 pessoas (ver
Susnik). Estas unidades sociais e territoriais, entretanto, não coincidiam com as unidades de ação
política, de maneira que não se pode imputar formas extremamente totalizadoras a elas. As aldeias
mantinham uma unidade cerimonial e simbólico-cultural, sendo um espaço de socialização e
conflito, eventuais relações de cooperação e concorrência econômica, mas não constituíam, por
conseqüência automática, unidades políticas. As informações que dispomos acerca da organização
social dos Terena na situação do Chaco, são principalmente dadas por Felix Azara e Sanchez
Labrador, e segundo este, as aldeias Terena eram formadas: “em ruas divididas em quadras e no
meio, uma praça grande...”, e dividiam-se também em bairros capitanias, podendo cada um
compor-se de 15 ou mais casas comunais..”. (Sanchez Labrador apud in Susnik, op.cit, p. 112).
Isto pode ser demonstrado através das próprias formas de interação Oquilidi-Naati, como
indica Susnik:
“A dependência se fundamentava nas relações matrimoniais. (...) Desta maneira, diferentes
bairros-cacicatos que compunham as aldeias Chanés, podiam reconhecer a um determinado
capitão Mbayá, quem era o verdadeiro “oquilidi’ do respectivo bairro. Em virtude deste status,
o oquilidi tinha o direito de usufruir da produção agrícola do bairro e exigir o serviço da plebe
integrada, sempre na mesma medida que o próprio chefe chané do bairro, recebia os atuais
regalos segundo a etiqueta Chané -, seja mantas de algodão ou bolos de ‘nibadená-urucu’
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
258
para pintura corporal, devendo corresponder na qualidade de oquilidi com objetos de ferro,
sempre uma necessidade básica dos cultivadores. A dependência Chané era estruturada através
da integração cacical de um Mbayá dentro da classe dominante; o integrado oquilidi obteve
assim o direito próprio de um senhor Chané do bairro, o que significava o poder sobre a plebe
integrada, mas não sobre a classe cacical, com a qual tinha que cumprir as pautas de
reciprocidade. A vassalagem não implicava uma subordinação tribal como conjunto
sóciopolítico, mas uma dependência econômica por unidades fragmentadas, estas
representadas nos ‘bairros’ das aldeias”. (Susnik, op.cit, p.115).
Ou seja, as unidades sociais e territoriais amplas dos Terena, os grandes aglomerados
populacionais, eram parte de uma tendência sócio-cultural, mas estas unidades eram fragmentadas
politicamente, em um tipo de organização segmentar baseada na exogamia étnica e alianças
matrimoniais verticais, na camada dos “chefes”. Esta forma de organização, inclusive, criaria
dificuldades para os Terena no território administrado pelo Império Espanhol. Ao contrário do lado
da fronteira brasileira, ocorreu já no início aquele século uma colonização criolla nos território na
margem ocidental do Rio Paraguai, e a demanda por terras melhor cultiváveis criou uma tensão
entre as comunidades locais Terena e os colonos criollos. Enquanto no lado brasileiro, os Terena
eram sempre associados a representações de índios “pacíficos” e potenciais aliados do “Império”,
no lado espanhol, na mesma época, eles era acusados de ser um grupo incontrolável, dado a roubos,
saques e raptos, tratado então como um grupo “bravio” e guerreiro108.
Os contornos gerais desta organização política permanecerão na primeira fase da situação de
diretório. A inserção num sistema político estatal não afetaria a transmissão hereditária da liderança
dentro da camada dos naati, e mais especificamente, de pai para filho ou dentro do grupo de
siblings, mecanismo que continuou operando durante o “cativeiro” no início do século XX (ver
Altenfelder Silva, 1949, Cardoso de Oliveira, 1968).
5.3 - Empreendimentos Indigenistas e descentralização político-territorial.
O processo de formação das aldeias deve ser compreendido a luz da organização social e
dinâmica política Terena (especialmente as formas de segmentação) e sua interação com as
instituições estatais. As primeiras reservas indígenas Terena foram estabelecidas em 1904, as de
Cachoeirinha e Bananal. Mas em todas as reservas ao longo do século XX foram formadas
diferentes aldeias, com organização política própria. E a origem dessas aldeias remonta aos
empreendimentos indigenistas, assim como a formação das reservas remetem a empreendimentos
108
Mas não eram as únicas causas o roubo e o rapto de mulheres a que motivavam o pedidos dos colonos de desalojar
os Terenos de Naranjaty: havia certa preocupação pelo rápido crescimento demográfico deste grupo indígena”...:
(Susnik, 1981,p. 220). Éinteressante observar que o último núcleo Terena no território paraguaio é desalojado em
1840,data próxima a que Oberg diz ter sido a migração dos Terena de Bananal. Épossível que ele tenha registrado
exatamente a história deste grupo.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
259
governamentais e militares. É uma história da formação das aldeias por meio de empreendimentos
indigenistas dentro da reserva que iremos narrar agora.
Cachoeirinha/Sede.
As denominações dos cinco setores ou aldeias hoje existentes na Terra Indígena
Cachoeirinha remetem a natureza. Os nomes dados pelos Terena as aldeias representam a
incorporação de elementos da natureza na criação de categorias de classificação do espaço e
território. Bookoti ou Cachoeirinha, é um nome dado devida a existência de uma pequena cachoeira
no local onde hoje se localiza a aldeia. Morrinho, é devido a existência de um Morro, que seria o
antigo limite da terra de Cachoeirinha. Babaçu é um tipo de árvore, existente na área que hoje é a
aldeia; Argola, é um nome dado em razão de os primeiros moradores do local terem construído as
suas casas de maneira circular, em torno de um rio (informações dadas por Inácio Faustino, Aldeia
Argola, Setembro/2004).
No século XIX, existia uma aldeia Terena denominada Cachoeirinha, mas não é possível
que sua localização não corresponda a da atual Cachoeirinha. E esta aldeia atual, teria sido formada
depois da Guerra do Paraguai, quando o líder Kali Sini (pequena onça ou oncinha) conduziu um
grupo de Terena para as margens ocidentais do rio Paraguai. Antes da formação da reserva,
Cachoeirinha passou por uma situação de grande instabilidade populacional. Segundo Roberto
Cardoso de Oliveira, ao final do século XIX, um fazendeiro o “Coronel Zózimo Filho”, dono da
Fazenda Santana (hoje fazenda Petrópolis, de propriedade de Pedro Predrossian, ex-governador do
Estado do Mato Grosso do Sul, que faz limites com Cachoeirinha), acusou os Terena de roubo e
saque nas fazendas. Como conseqüência deste processo, o Coronel passou a considerar os Terena
como devedores, obrigando-os a trabalhar de graça na sua fazenda. Alguns índios se rebelaram e
fugiram para Bananal e serra de Maracajú, não retornando mais. Porém outras famílias chegariam
de Lalima, e da Fazenda Salobra. Assim, a demarcação da reserva de Cachoeirinha em 1905 pela
Comissão Rondon encontra esta situação, de reagrupação de famílias no local.
Cachoeirinha é a mais antiga das áreas residenciais. Na realidade, a localização da área da
Cachoeirinha mudou várias vezes ao longo do tempo. A princípio, a ocupação teria se dado na área
que hoje é conhecida como Morrinho, e somente depois este nome teria ficado associado ao local
que hoje é a “Sede”. Cachoeirinha é a primeira das aldeias hoje existentes a ter sido formada.
Adolfo Pedro, hoje morador do Babaçu, falou que segundo sua mãe, “eram 8 as famílias
“fundadoras” da Cachoeirinha: “Na historia da mamãe, eram 8 famílias, tudo veio daquele lado,
Chaco. Ai vinha vindo, disse que tinha homens corajosos, que atravessaram Rio Paraguai, e os
índios bravos mataram gente lá, e esse primeiro índio que veio investigar aqui chamava Kaly Siny
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
260
(pequena onça), e foi feito por Deus”. Citou os nomes dos primeiros moradores: Handi; Hitu´tui;
Soporoke´e; Miexou; Kiriu; Heovoloukê; Pe´pelô. Disse que só conhece os nomes no “idioma”
porque antigamente os índios não tinham nome em português, que eles “pegaram trabalhando com
o patrão”. Das famílias identificadas como fundadoras Adolfo identificou as relações genealógicas
de algumas delas: Handi seria antepassado da família Canali; Kiriu seria da família Lipú; Pe´pelô
seria bisavô de Adolfo Pedro; Heovoloukê da família Gonçalves (o que é interessante é que o
Gonçalves que nós conhecemos era um índio Kadiwéu) que moram nas vilas Serradinho e Morrinho
principalmente. A aldeia Cachoeirinha se compunha assim no início do século XX, de alguns
grupos domésticos, os quais possuem ainda descendentes e famílias importantes em
Cachoeirinha.
Argola
Vejamos à história da ocupação das terras que hoje fazem parte da aldeia Argola. Segundo
Fernando Antonio da Silva, um ex-cacique da Argola:
“Assim conforme conta o histórico desta aldeia Argola o inicio da vinda dos lavouristas lá
aldeia da Cachoeirinha começou o povoado desta aldeia, aonde foi deixado os moradores desta
aldeia Argola, mais ou menos no período de 1935 por ai. Eu fiquei já sabendo no período de
1960, eu já existia aqui na aldeia e comecei acompanhar o movimento.(...) Fomos trabalhando,
expandindo esta aldeia, começou chegar gente da Cachoeirinha, mudando para cá. Onde foi a
historia desta aldeia Argola. Começou a juntar a população onde foi formada uma aldeia até no
presente momento.
(...)
Segundo Fernando Antonio da Silva, foram cinco as famílias a se fixarem inicialmente em
Argola: uma delas é a de Felipe Antonio, seu avô, outra é a de Pedro Candelário (parente) de Rufino
Candelário. A família Candelário e a família Antonio da Silva são duas das maiores e mais
importantes do setor no atual momento histórico. O atual cacique de Argola é João Candelário, e o
primeiro cacique foi Rufino Candelário, ainda morador da Argola. Fernando Antonio da Silva
também já foi cacique, por duas vezes, entre (1995-2003). A formação da Argola deriva em parte da
ocupação das antigas áreas de roça.
Conversamos também com Januário Candelário, e cruzando as informações genealógicas
com as fornecidas por Fernando é possível concluir o seguinte: os irmãos Candelário (Antônio
Candelário - pai de Januário - João, Pedro e José) se mudaram para Argola por volta de 1950
(quando Januário tinha 18 anos); ele, seu pai e seus irmãos (Jerônimo, Cândido, Lázaro, Marilza e
Margarida Candelário). Existiam 4 famílias na Argola no início de sua formação, sendo que Felipe
Antônio seria sogro do Pedro Candelário, porém não conseguimos determinar com que filha ele foi
casado, possivelmente Guilhermina Antônio.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
261
O grupo teria se deslocado para tocar roças o que confirma a formação de aldeias a partir de
núcleos de famílias extensas inter-relacionadas por parentesco, a família Candelário se juntaria à
família de Felipe Antônio, que seria sogro de um dos filhos de Antonio Candelário. Na realidade
estas trocas matrimoniais é que gerariam as novas famílias extensas, que seriam à base da formação
das novas aldeias. Em 1935, aproximadamente começa a ocupação de diferentes áreas de roça em
Cachoeirinha.
Morrinho
Vejamos a história de Morrinho, outro dos setores da terra indígena de Cachoeirinha.
Conversando com Isidoro Pinto, ele me passou algumas informações sobre a história de Morrinho.
Vejamos como o cacique Isidoro Pinto, conta à história local:
“Quando e quem criou esse setor?
Foi, parece que começaram 1961. Foi finado Luiz Raimundo. Mas eu tava 15 anos ainda. ( )
Mas quando fundou aqui tinha quatro famílias. Não, cinco famílias.
Era todo mundo da família do Luiz Raimundo?
É, era família dele mesmo. Porque a minha mãe era da família do Luiz Raimundo. Só que tem
finado Luiz Raimundo, finado meu pai, e tem Firmino Augusto, é outra família. Firmino
Augusto, ele está aí na Cachoeirinha, não sei se você viu, ele é irmão. Aí tem o Renato, ele está
aí ainda. (...) Os primeiros que começaram nesse Morrinho. (...).
Por que essas famílias vieram para cá?
De primeiro aqui é roça, primeiro era roça. Finado Luiz Raimundo, ele morava em
Cachoeirinha, finado meu pai morava lá. Mas só que aonde que ele toca roça era aqui. Foi
indo, foi indo, tocando roça nessa parte, vai embora pra Cachoeirinha, cedo já tava aqui na
roça. Depois ele fez um barraquinho aqui na roça. Aí outro veio fazendo barraquinho também,
dentro da roça. Aí depois ele acostumou de morar, depois ele mudou, mas não tinha ainda essa
tal de Morrinho, trabalhava na roça, ainda. Aí, depois aquele chefe do posto, apareceu aquele
chefe do posto, chama Vitorino. Não sei se ele é finado ou está aí ainda... Ele é branco, mas eu
não sabia que ele tá aí ainda. Mora em Campo Grande. Aí, apareceu aquele chefe do posto, aí
já inventaram pra levantar a comunidade aqui no Morrinho. Aí falou pro Luiz Raimundo pra ele
ser cacique, ele que comanda aqui. (...). É. Depois, foi indo, levantando aquele outro também,
né, o Babaçu. Quem mais primeiro cacique lá, chama Faustino, do Babaçu. Do tempo do finado
Luiz Raimundo. Faustino já é finado também. Aí foi indo, levantaram. Aí já tem outro aldeia,
Morrinho, Babaçu, Argola, Lagoinha, se tiver muitos anos, é dez anos, por aí.
Por que colocaram o nome de Morrinho?
Agora sim, rapaz... Esse aí, quando já conheci nesse mundo, já estou com aquela idade, já
conheci, aquele que nome do Morrinho, tem um açude pra cá nesses rumos. Um açude, né. Um
índio antigo que fez descer aquele açude. Tinha aquela pedra ali, aquela pedra (...) até hoje tá
ali. Aí quando era, já conheci mundo, eu sei que o nome daquele morrinho e lá, aquele açude.
Sempre a indiada veio pra lavar roupa ali. Não tinha açude, aquele perto ali. Não era como
hoje. Antigamente, aí, a minha mãe sempre falava Eu vou lá no morrinho lavar roupa, aí eu
bem acompanhando, era ali. E aquela pedra toda ali rodando aquele morro ali. E eu que falo,
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
262
pode ser por causa daquele, o açude. Mas tem aquele morro, agora, que fala aquele Morrinho
lá, aquele grandão lá. Mas não é. Não é. Esse é enganado. Eu sei que o Morrinho é aquele ali.
Aí quando levantou aqui, pegou nome aqui. Já escutei o que ele falou Morrinho, aqui, ele
pegou o nome daquele morro lá. Mas não esse. Esse aí, ele criou agora essa conversa, mas pra
mim não é. (08/05/2003).
O que hoje é aldeia Morrinho, era até os anos cinqüenta aproximadamente uma área de
roçado. As residências foram construídas depois, e cinco famílias se deslocaram para ali, na época
do “capitão Timóteo”: as famílias de Otávio Pereira, Luis Raimundo, Pereira Pinto, Renato
Barbosa e Firmino Augusto.
A genealogia do Cacique Isidoro é interessante para descrever a história local. Seu Pai é
Pereira Pinto. O pai de seu pai e a mãe de seu pai ele não soube informar os nomes. Seu pai tinha
dois irmãos, Firmino Pinto e Antonio Pinto, e duas irmãs que morreram e ele não soube informar o
nome. Sua Mãe é Cristina Domingo.O pai de sua mãe é José Raimundo e mãe de Sua mãe é
Domingas, não soube informar o sobrenome. Os irmãos de sua mãe são Luis Raimundo, João
Raimundo e Armando Raimundo, suas irmãs, Lúcia Raimundo e Rosa Raimundo.
Eu recolhi também a genealogia da esposa de Luis Raimundo, a senhora Zenaide
Gonçalves, nascida em 1935. O Pai dela é Batista Gonçalves e sua Mãe Anita Heloi. O pai de seu
pai é Brigito Gonçalves (índio Kadiwéu) e a mãe de seu pai é Cirina. Seu pai tinha como irmãos
Lino Gonçalves, Artério Gonçalves e Pascoal Gonçalves. Sobre sua mãe não consegui maiores
informações. Ela tem como irmãos: Aldo Gonçalves, Lucio Gonçalves, João Gonçalves, Heitor
Gonçalves (com quem peguei informações genealógicas também) e Margarida Gonçalves (que
alguns dizem ser “benzedora/rezadora”). Seus filhos são: Milton Raimundo (que me ajudou a fazer
as entrevistas), Ramão Raimundo, Jorge Raimundo (diretor da Igreja Assembléia de Deus
Emanoel), Lúcio Raimundo, Getulio Raimundo, Edenir Raimundo, e Sebastiana Raimundo e ... (ver
nome Raimundo).
Ou seja, as famílias que se deslocaram para a área que hoje é a aldeia Morrinho, duas delas
pelo menos, eram previamente inter-relacionadas por parentesco. Luis Raimundo era cunhado de
Pereira Pinto e tio de Isidoro Pinto. Atualmente, as residências do cacique Isidoro, e dos
descendentes das demais famílias,seguem o padrão da co-residência da família extensa.
Destas famílias fundadoras do Morrinho, saíram às primeiras lideranças locais,
especialmente o “cacique Luis Raimundo”, que ficou no seu cargo durante cerca de 15 anos, até o
início dos anos “80”, pelo que nos informamos. Depois da morte de Luis Raimundo, outros dois
homens ocuparam os cargos de caciques (Roberto Júlio, que teria abandonado o cargo por ter
“fugido” com uma mulher, e (...) que teria sido removido da função por pressão da comunidade).
Isidoro foi escolhido em 1988 para cacique (temos um documento que confirma isso).
Campão/Babaçu
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
263
O setor que hoje é conhecido como “Campão/Babaçu” existe pelo menos desde os anos 50,
pois já era mencionado nos estudos de Cardoso de Oliveira, inclusive como área de maior
“produtividade econômica” naquele contexto. Na realidade, Campão e Babaçu consistem em duas
áreas diferentes, ocupadas por conjuntos de distintos grupos familiares. O Campão fica do lado
oeste da estrada, próximo a uma área de serrado, e foi ocupada por famílias de origem Laiano,
especialmente as de Gonçalo Roberto e Faustino Salvador .
O Babaçu é uma área mais central, próxima a estrada da Cachoeirinha. Uma das primeiras
famílias a se fixar no local, é a família “Balbino”, hoje responsável pela Igreja Presbteriana
Renovada, e que foi protagonista de um conflito político-religioso nos meados dos anos 90. Seu
pastor, Emenegildo Balbino, nos contou que em certa ocasião que a tenda da sua Igreja foi
incendiada pelos Católicos, com a ajuda da Associação Mãos Unidas (presidida pelo hoje Cacique
Zacarias da Silva). O Cacique Zacarias é morador do Campão e não do Babaçu.
Conversamos com Saturnina Rodrigues, nascida em Campão em 04/06/1955. Sua mãe
nasceu no Lalima, de nome Calixta Roberto e filha do Xamã Gonçalo Roberto, e seu pai Demétrio
Rodrigues, nasceu no Bananal. Indicou (junto com dois de seus irmãos que os primeiros moradores
do setor foram Faustino Salvador, Irene Salvador e Marcelino Salvador). Na sua genealogia vimos
que há uma mulher (Firmina Salvador) que indica a troca matrimonial, ou a absorção de indivíduos
migrantes no caso Gonçalo nas famílias existentes, no caso a Salvador.
Depois entrevistamos Justo Salvador (filho de Faustino Salvador) e sua esposa Maria
Belizário (irmã de Celinho). Eles informaram que Faustino era nascido na Cachoeirinha e foi para
Lalima onde residiu 12 anos e depois retornou. Lá ele se casou com “Camila Roberto” e foram
morar no Campão. Indicam que ele Faustino se deslocou com sua esposa, sua irmã Marcelina
Salvador (casada com Miguel Batista). Depois a segunda família a se deslocar para o que hoje é
Babaçu, foi a de José Balbino, que morava e trabalhava na região de Albuquerque.
Faustino (seu apelido era Xovoti, que em Laiano significa “filho único”) teria se tornado
cacique em 1962, ficando 5 anos. O primeiro cacique do Babaçu foi Adolfo Pedro, indicado por
Lino em 1979. Assim segundo estes dados, Campão teria sido formado por um grupo de siblings (os
“Salvador”) a quem se juntariam depois os membros da família Roberto, também vindos de Lalima.
A parentela Rodrigues teria início com a absorção de Demétrio neste grupo.
No Campão entrevistamos Calixta Roberto e Demétrio Rodrigues (o cacique Zacarias
Rodrigues é um de seus filhos). Ela reside na mesma área que seu pai e sua mãe moravam, e ali
foram construídas as casas de dois de seus filhos. Calixta Roberto é nascida na Lalima, em 14-10-
1936 e foi para o Campão aos 10 anos, aproximadamente. Ela é filha de Gonçalo (que tinha dois
nomes, também o de Valeriano Roberto) e Firmina Salvador. Disse que Camila Roberto que se
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
264
casou com Faustino Salvador, era tia de Gonçalo. Foi então um grupo de siblings Laiano vindos de
Lalima que fundaram a área chamada Campão até então um serrado desabitado.
Depois conversamos com Adolfo Pedro, primeiro cacique do Babaçu. Ele é nascido em
11/09/1933, e começou a construir seu rancho com 16 anos naquele local. Seu pai era Geraldo
Pedro e sua mãe Dionísia Balbino (filha de José Balbino). Foi morar ali, depois da morte do pai.
Isto significa que a família Balbino, era uma família extensa, e que a filha se reintegrou na casa do
pai depois da morte do marido.
Disse que os primeiros moradores foram: José Balbino e sua esposa Maria Carolina; seus
irmãos Antonio, Mário e Augusta Balbino (casada com Leôncio da Silva); José Vaquero (genro de
Balbino). Citou também como moradores antigos (Seranio Sebastião, Gonçalo Roberto, Faustino
Salvador Francisco da Silva e João Lemes, do lado do Campão). Ou seja, o Babaçu foi também
formada por famílias extensas inter-relacionadas por parentesco; José Balbino, com seus irmãos,
filhos e genros.
Lagoinha
Lagoinha é a aldeia de criação mais recente em Cachoeirinha. Ela começou a ser formada
nos meados dos anos 1970, com a chegada de algumas famílias vindas da aldeia Lalima. O atual
Cacique da Lagoinha é Ramão Vieira, de uma destas famílias vinda da Lagoinha. Conversamos
com Felipe Neto, nascido em 23/09/1952, e atual presidente do Conselho da Aldeia. Ele nasceu na
aldeia Argola, onde o pai e a mãe moravam e se mudou para a Lagoinha aos 28 anos, ainda solteiro
(acompanhando sua mãe Vitoriana Ferreira, que havia se separado de seu pai). Antes dele já
residiam na área da Lagoinha, Osvaldo Vieira (que se tornaria seu sogro) e Benedito Ferreira com
sua esposa Joana da Silva (seus avós, pais de sua mãe). Ou seja, o retorno de Felipe e sua mãe
indicam a reconstituição de uma “família extensa”, depois de um divorcio. A família de Osvaldo
Vieira, casado com Adelaide Arruda, foi morar lá mais ou menos na mesma época (1980), vindos
de Lalima com seus nove filhos. 3 filhos de Osvaldo Vieira casaram-se com as irmãs de Felipe
Neto: Alípio Vieira com Pedrosa Felipe; Lilio Vieira com Dionísia Felipe; Virgilio Vieira com
Petronia Felipe. A comunidade de Lagoinha se constituiu na base de trocas matrimoniais, e destas
duas famílias inter-relacionadas é que sairiam as lideranças políticas. Uma outra família residente
na Lagoinha era a do xamã Mário Lemes.
Na Lagoinha o padrão é o mesmo: co-residência dos ovokuti com famílias nucleares,
agrupadas em lotes e que funcionam como unidades de produção/consumo e também de ação
política. Felipe Neto falou que foi ele que brigou para colocar o cacique, “lutei, lutei e coloquei o
Alípio, porque era o mais velho de todos, e eu era vice dele. Alípio Vieira é seu cunhado (irmão de
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
265
sua esposa). O segundo cacique foi Joãozinho Felipe e Jorge Felipe seu vice (seus irmãos), e neste
momento construíram um Conselho Tribal. O terceiro Cacique é Ramão Vieira, pelo que disse, os
caciques são escolhidos na comunidade, ainda não há eleições.
A formação das comunidades-locais Terena obedece certas características comuns. A
história de Cachoeirinha, de seus cinco setores, da territorialização interna dos grupos domésticos,
revela alguns padrões 1) Argola, Morrinho, Campão/Babaçu e Lagoinha foram criadas pela
ocupação inicial de 3 ou 4 famílias. Em todo os casos, as famílias que se fixaram, eram famílias
extensas previamente relacionadas, ou terminariam por se inter-relacionar através de matrimônios, e
a forma de ocupação que elas hoje fazem do território, indica que desde o início estas famílias
extensas eram a forma de organização social das unidades familiares; 2) a fixação da residência
nestas novas áreas (e isto é igualmente válido para Babaçu, Lagoinha, Morrinho e Argola), se deu a
princípio por uma motivação econômica, para facilitar o trabalho e a exploração das roças que se
localizavam nestas áreas; 3) os setores hoje existentes foram sendo construídos a partir das décadas
de 1930/40 (Argola e Campão/Babaçu), década de 1950 (Morrinho), e década de 1970 (Lagoinha).
Os três setores (Argola, Babaçu, Morrinho), foram construídas sob o período de existência do SPI,
por ordem ou orientação do Encarregado do Posto, ou seja, pela intervenção da política indigenista,
de maneira que os objetivos de índios e encarregado do Posto eram coincidentes neste aspecto. Pelo
que a memória dos moradores do local indica, os deslocamentos destas famílias para as roças
muitas vezes era feito por incentivo ou ordem direta dos Chefes de Posto, que visavam aumentar a
produção econômica da reserva indígena
109
. 4) Como vimos pelas informações dadas por Isidoro
Pinto, o primeiro cacique de Morrinho foi indicado pelo Chefe de Posto. Os primeiros caciques de
cada setor saíram das famílias que inicialmente ocuparam as áreas de roça. Isto significa que, em
todos os setores, as famílias extensas que se fixavam, se já não tinham uma relação privilegiada
com o Estado, através do Chefe de Posto do SPI antes de se deslocarem para as áreas de roça,
terminaram por estabelecer tal relação no processo de ocupação das roças. Como algumas pessoas
nos falaram, o Cacique em Cachoeirinha era escolhido por “indicação”. Segundo estas pessoas, os
“mais velhos” se reuniam para indicar o nome do Cacique. Mas este processo era regulado pelo
Chefe de Posto do SPI, que indicava também o cacique. A “indicação” era um sistema em que se
conciliava a indicação do Chefe de Posto com a indicação feita por alguns indígenas. Assim, o
Cacique Lino de Oliveira Metelo teria sido indicado por um Conselho de Anciãos e pelo Chefe de
Posto. O Cacique Lino por sua vez teria indicado seus auxiliares, que deveriam trabalhar segundo
sua orientação, todos se subordinando ao poder do Chefe de Posto. Criou-se uma rede determinada
de famílias que compartilhavam, em certa medida o poder de certas instituições de Estado, ou
109
Lembremos que Roberto Cardoso de Oliveira, fala de uma “economia do posto”, quando analisa as relações
interétnicas entre os Terena e o SPI.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
266
melhor, o poder concedido pelo Estado sob certos objetos específicos. Veremos mais a frente que
hoje a maior parte das lutas políticas faccionais se dão entre membros destas famílias e grupos
vicinais que inicialmente se integraram nas redes de Estado e outros que com elas iriam disputar
poder e recursos materiais e simbólicos.
No conjunto deste processo, em que empreendimentos indigenistas conciliavam os
interesses do Estado com os dos grupos familiares Terena e possibilitaram a expansão das roças e a
formação de novas aldeias, ocorreu simultaneamente uma tendência ao crescimento demográfico do
conjunto da reserva combinada com a da descentralização política. Ou seja, ao longo de um século,
entre 1900 e 2000, houve uma tendência à descentralização política relativa. Mas mesmo sendo
estes processos de formação gerados por processos de “empreendimentos”, eles terminaram por
acumular uma série de questões e efeitos que levariam a emergência de dramas sociais. Neste
sentido, podemos falar de que num primeiro momento, os empreendimentos sociais prevaleceram,
e que a ocupação das áreas de roça tinha as características deste tipo de processo social.
Este processo de formação de novas aldeias, e depois sua transformação em unidades
políticas relativamente autônomas ou que buscam ter autonomia se deu a princípio, pela
estratégia deliberada do SPI, através dos encarregados de Posto, de expandir a área plantada,
aumentar a produção e gerar o “desenvolvimento” da aldeia, de acordo com os parâmetros do
indigenismo do século XX - criar arruamentos, construir casas com o padrão “brasileiro”. Além da
ação do Encarregado de Posto do SPI, era fundamental também para o estabelecimento destes
“ranchos” nas áreas de “roça”, a ação do Cacique, pois ele gerenciava as ordens do Encarregado e
deveria aplicá-las e supervisioná-las.
A princípio, não existiam “caciques” nestas novas áreas, nem elas eram consideradas como
“aldeias”, mas eram vistas apenas como grupos domésticos residentes em novos ranchos. A origem
dos “caciques” e a posterior transformação destas unidades em aldeias, se relaciona diretamente ao
próprio processo de centralização política dentro da aldeia. Pelo que levantamos o Cacique da sede
Lino de Oliveira Metelo indicou “auxiliares” dentro das novas áreas de residência, conforme estas
áreas foram crescendo em importância e demografia. Com o tempo, estas lideranças locais teriam
começado a reivindicar autonomia política local, transformando-se os antigos conglomerados de
ranchos ou “bairros” em novas “aldeias” (no sentido estatal e indígena) das quais estes teriam se
tornado os caciques. A formação das aldeias por meio de empreendimentos conjuntos dos índios e
o Estado, através da ação do Encarregado de Posto que incentivava a exploração econômica das
terras da aldeia, teve como efeito de longo prazo um processo de descentralização política que
assumiria contornos faccionais.
Esta descentralização inicial teria como resultado a transformação destas antigas áreas de
roça, em “aldeias”, cada uma com um Cacique e uma estrutura de liderança própria. Sabemos que
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
267
uma disputa política existe entre os caciques dos setores e o Cacique da Sede, e que a transformação
das antigas “roças” e “auxiliares de cacique” respectivamente em “aldeias” e “caciques”, expressam
a reivindicação de autonomia das novas comunidades locais e a disputa de poder dentro do grupo.
Ouvimos em uma ocasião o seguinte “cacique da Sede manda na Sede, aqui quem manda é o
cacique daqui” (palavras de Adelino José, secretário da liderança da Argola, em conversa informal
sobre os assuntos de Cachoeirinha).
A atual organização política e territorial Terena hoje é o produto desta história e experiência
local. As forças advindas da organização social e das relações político-econômicas combinaram-se
e produziram o que hoje é a realidade social do grupo. Hoje as cinco aldeias existentes, sua
organização social e política, só são plenamente compreensíveis à luz desta história. Somente assim
compreendemos o real significado de certos acontecimentos. Veremos mais a frente que a luta
política dentro do grupo étnico, e a forma das relações interétnicas, acompanham esta dinâmica
histórica.
Estas aldeias são unidades básicas da organização política Terena. Elas são hoje uma
interseção entre as instituições administrativas de Estado e a organização indígena. Do ponto de
vista estatal, consistem em unidades territoriais na qual se aplica a política indigenista, do ponto de
vista indígena, consistem em unidades societárias compostas pela articulação de grupos domésticos
inter-relacionados por parentesco, e que participam em relações de sociabilidade, cooperação e
conflito. Mas estas unidades, como produtos das relações interétnicas, não podem ser vistas apenas
como resultado da imposição da política indigenista, mas tem de ser compreendidas como produtos
das estratégias políticas indígenas.
Esta organização do território indígena em diferentes aldeias é o resultado de um processo
verificado dentro da situação histórica de reserva. A construção do território indígena expressa
exatamente os processos de centralização/descentralização verificados dentro da organização
política Terena, por meio da combinação de empreendimentos indigenistas e lutas faccionais.
5.4 – As facções e a política do óleo e da semente.
O processo de descentralização político-territorial não foi gerado exclusivamente por
empreendimentos indigenistas. Na realidade, paralelamente aos empreendimentos, desenvolveram-
se dramas de sucessão que foram fatores determinantes para a organização política Terena. Isto
porque dentro das próprias aldeias se deram processos de segmentação que resultaram na
construção de diversas “vilas”. Essas unidades têm um profundo significado e importância e seu
surgimento está associado aos dramas de sucessão.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
268
A multiplicação de aldeias dentro das reservas na realidade é apenas o desdobramento de um
processo que já existia, de diferenciação interna. Cachoeirinha era historicamente dividida em
“bairros”. Nos anos 1950 eram 53 ranchos na área que hoje é a Sede, Argola com 23 ranchos e
Capão, com 18 ranchos. Mas na “Sede”, “... poder-se ia ainda dizer que esse núcleo estaria
dividido em dois “bairros”, Cachoeirinha propriamente dita e Cruzeiro, atualmente muito pouco
diferenciados mas que tempos atrás chegaram a representar dois grupos até certo ponto rivais e
com equipes de futebol próprias”. (Cardoso de Oliveira,1976, p.72). Quer dizer, o processo de
localização dos grupos domésticos dentro do espaço aldeão tinha levado a diferenciação em
“bairros”. No caso da antiga área central da Cachoeirinha, dentre os 53 ranchos existia uma
subdivisão entre “Cachoeirinha” e “Cruzeiro”.
Essa configuração territorial só pode ser compreendida em relação a dois fatores: o regime
de escolha dos caciques e a organização política indígena, e historia das facções e líderes locais. Em
Cachoeirinha e nas demais aldeias, a partir dos anos 1920, serão aplicadas diferentes fórmulas de
organização política. Primeiramente a indicação do Cacique pelo Chefe de Posto. Depois a criação
de um “Conselho Tribal” (aparentemente, nos anos 1930), que indicaria o cacique, e finalmente as
“eleições”. As eleições para Cacique foram implantadas a princípio nos anos 1960, mas seu uso se
generalizou entre os Terena apenas nos anos 1980. A implantação das eleições emergiu como uma
“solução” à mera indicação do Cacique pelo Chefe de Posto, como forma de dar maior legitimidade
à ação o Estado, criando bases internas ou o “consentimento” do grupo para as ordens dadas pelo
Encarregado do Posto. Isto se fez necessário devido às dificuldades encontradas em impor uma
liderança única centralizada ao conjunto do grupo. Mas na realidade o seu emprego foi logo
descartado e só voltaria a ser acionado em razão da política de resistência dos índios. O quadro
abaixo permite visualizar a evolução da organização política de Cachoeirinha:
Quadro 34 - Organização Política Terena em Cachoeirinha 1850-2005.
1850-1903 1904-1927 1928-1979 1980-2005
“Regime da
Transmissão Hereditária
da Chefia”.
(dentro da camada naati).
Controle total dos índios
sobre o processo político
aldeão.
Regime de Indicação
Unilateral”
(pelo SPI).
Controle total do
Estado sobre o
processo político
aldeão.
Regime de Indicação
Bilateral”
Os “índios” representados
peloConselho Tribal”, em
conjunto com o SPI,
escolhiam o Cacique. Em tal
regime havia o predomínio do
Estado no controle do
processo político aldeão.
“Regime de Eleições
Diretas” (organizadas pelo
SPI/FUNAI).
Os “índios”, tomados em
seu conjunto, escolhem o
Cacique. Em tal regime há
um relativo equilíbrio entre
Índios e Estado no controle
do processo político aldeão.
Conseguimos algumas informações para tentar compor uma “linha de sucessão” dos
caciques Terena. Esta linha não está completa. Segundo estas informações entre meados da década
de 1950 e o atual momento, sucederam-se 11 caciques.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
269
Quadro 35 - Linha de Sucessão dos Caciques Terena de Cachoeirinha (as datas são aproximadas).
Até 1904 1904-1918 1919-1928
1928-1958 Década 1960
Polidório
Benedito Polidório. Capitão Vitorino
Pereira da Silva
Capitão
José Timóteo
Ciriaco Júlio
(foi derrubado do
cargo)
Faustino Salvador
Lino de Oliveira
Metelo
Década de 1970
1976-1979
1979-1982
1982-1985 1985-1988 1988-1991
Lino de Oliveira
Metelo
Mario Pedro
(teria abandonado o
cargo)
João Niceto Júlio
João Niceto
(renunciou)
Dionísio Antônio
(renunciou) Alírio de
Oliveira Metelo.
Sabino de
Albuquerque
Sabino de
Alburquerque
X
Dionisio Antonio
1991-1994 1994-1998 1998- 2002
2002-2005 2006
Argemiro Turíbio
(teria sido
derrubado do cargo)
Assumiu Cirilo
Raimundo
Esídio Albuquerque Sabino de
Albuquerque
Lourenço Muchacho
(abandonou o cargo) e
assumiu Zacarias da
Silva.
Cirilo Raimundo
Pelas informações etnográficas disponíveis (ver Cardoso de Oliveira,1968) podemos dizer
que os conflitos de sucessão no Caso de Cachoeirinha, são tão antigos quanto a situação de reserva.
Enquanto a “Comissão de Linhas Telegráficas” demarcava a reserva de Cachoeirinha, um processo
de luta pelo poder se verificava. A princípio esta luta de sucessão se dá entre os membros de uma
mesma parentela, entre dois irmãos classificatórios. O Capitão Polidoro, foi assassinado por meio
de feitiçaria, por Benedito Polidoro e este último seria assassinado poeteiormente numa vingança,
por seus atos de feitiçaria.
O quadro 35 permite fazer algumas afirmações: 1) a partir dos anos 1960 até 1986, existe
uma linha de sucessão do poder político do cacique, por uma determinada linha de grupos
familiares e vicinais, por um conjunto determinado de famílias relacionadas por parentesco. Se
observarmos o período que vai 1986-1990, poderemos notar a existência de “dois caciques” em
Cachoeirinha, um deles sendo Sabino Albuquerque. E depois ocorreria uma alternância de facções.
Dos 11 caciques, seis pertenciam a um mesmo conjunto de famílias extensas e grupos vicinais
(Lino, Dionísio Antonio, Mario Pedro, João Niceto, Alírio, Argemiro) e dois de uma de outras
famílias e outras “vilas(os irmãos Albuquerque e Lorenço).
Nos anos 1980, a quebra da linha de sucessão se dá paralelamente a mudança na forma de
escolha do cacique (do regime de indicação para as eleições), por conseqüência de uma série de
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
270
conflitos internos que marcou a vida em Cachoeirinha. A própria aldeia Sede ficou dividida em
duas; uma era comandada por Sabino, outra por Dionísio Antônio. As facções rivais segundo nos
informamos chegavam a ter alguns enfrentamentos físicos, com ameaças de parte a parte. Os
moradores dos diferentes “territórios” não podiam cruzar de um lado para outro. Esta situação de
tensão foi gerada por uma série de questões. A principal é a “monopolização” de recursos realizados
pelos “caciques”, que com o poder de representar o grupo étnico terminaram sendo acusados de
utilizar sua posição em favor próprio, apropriando-se dos “recursos da comunidade”. Soma-se a
isto, o fato de os recursos disponibilizados pela FUNAI para investimento nas áreas indígenas
estarem sendo reduzidos a partir do final dos anos 1980 e início dos 1990.
Iremos analisar agora o processo de formação destes “bairros” como parte de uma luta
política pela sucessão dos caciques. Estes conflitos de sucessão, expressão da luta pelo poder na
aldeia, alcançaram um clímax importantíssimo nos anos 1980, quando a ascensão de novas
lideranças e facções indígenas explicitaria as contradições do regime tutelar e as estratégias de
resistência indígena.
5.5 – A Cisão Cruzeiro X Mangao: os conflitos de sucessão como dramas sociais.
O drama social de sucessão que levou a cisão de Cachoeirinha, e que de certa maneira ainda
condiciona a vida na aldeia, teve início mais exatamente no final dos anos 1970. O clímax seria a
“cisão” da aldeia Cachoeirinha em dois “bairros”, Cruzeiro e Mangao, cada um com seu respectivo
Cacique”, que era líder de uma certa facção local. Por outro lado, este conflito político entre
facções expressa também a luta não entre indivíduos, mas entre grupos vicinais: um que remonta
diretamente ao antigo capitão Benedito Polidório e outra ao antigo capitão Vitorino Pereira da
Silva. A divisão faccional e político-territorial traz em seu interior uma luta entre famílias
descendentes de antigos “naati”, e que expressa também as formas de resistência ao regime tutelar e
seus colaboradores/executores dentro da aldeia, as facções políticas indígenas.
Na década de 1970 três nomes passaram pelo cargo de Cacique (ver quadro 40): Lino de
Oliveira Metelo, Mário Pedro e João Niceto Júlio. De acordo com relatórios da FUNAI, João Niceto
Júlio já era cacique em 1979. Pelas informações dadas por Dionísio Antonio, que na época era o seu
vice-cacique, antes deles assumirem o Cacique era Mário Pedro, que teria ficado três anos no cargo.
Desta maneira, pelas informações disponíveis, parece que Lino de Oliveira ficou como Cacique
entre 1964 e 1976, aproximadamente. É neste período que alterações na política indigenista, com a
implementação dos projetos agrícolas orientados por uma ótica produtivista teriam forte
repercussão no contexto local de Cachoeirinha.
Segundo o relatório do Chefe de Posto de Cachoeirinha, a situação naqueles anos era a
seguinte:
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
271
“O presente instrumento tem a finalidade de tentar mostrar a VSA, a situação do PI, tanto com
dados positivos como fatos e até mesmo boatos os quais fazem parte do exposto abaixo
discriminado: em outubro do ano de 1979, esta chefia chegava no PI Cachoeirinha,já como
servidor no mesmo e deparando com um projeto agrícola; por sinal primeiro a ser desenvolvido
nesse PI; de primeira mão observei todas as particularidades da área, notei pouco ou quase
nada de investimento agrícola. Era dotado de uma Casa-Sede, mais duas casas circunvizinhas
próxima à da Sede, ambas acervo da FUNAI, onde uma morava a professora da FUNAI a outra
em estado precário, funcionava a enfermaria da FUNAI”. (Relatório FUNAI, 1983, p.1)
Cachoeirinha teria como estrutura administrativa e de serviços indigenistas, 3 auxiliares de
ensino e 3 atendentes de enfermagem, com uma população residente de 1209 pessoas.
O Chefe de Posto designado para Cachoeirinha e autor do relatório era Manoel Nunes de
Freitas, que narra assim a sua chegada na aldeia:
“Encontrei na época o índio João Niceto Júlio, atual capitão naquela época, junto seu vice-cap.
Dionísio Antonio; conheci o referido Cacique, dias antes de estar designado oficialmente a esse
PI da 9º DR, a qual estamos informando-a, nesta mesma, junto ao referido representante do PI,
acompanhei a reformulação do Projeto Agrícola acima mencionado; reformulação esta que
queria trocar 10 Juntas de Bois contidas no referido por Trator MF, o que foi difícil, mas
aconteceu”. (Relatório FUNAI, 1983
110
, p. 1)
A introdução do “Projeto Agrícola” em 1979, seria bem recebida pelos índios, que
formulariam uma pauta de reivindicações. Essa pauta apontava para a introdução de novas
tecnologias produtivas (o trator e a mecanização, substituindo os “carros de boi”), visando a
expansão da produção. Pelo relato do Chefe Manoel, foi a própria liderança da comunidade
indígena Cachoeirinha que exigiu da FUNAI a introdução das novas tecnologias, encontrando
resistência dos representantes desta:
“O delegado naquela época, era Joel Oliveira (índio Terena) tiveram um longo debate para
convencê-lo, mas saindo, como queria o trator; só que ouve uma promessa por parte do
cacique de que, poderia isentar os Bois mas só isto não daria para cobrir o preço da máquina,
argumentou senhor Delegado Joel o Cacique pediu que retirasse também uma mimi-máquina
de beneficiar Arroz argumentou senhor delegado que não daria novamente pediu que
retirasse tudo e enfatizou, dizendo que queria condições de trabalho. O senhor delegado, ai quis
pegar no pé novamente do líder, argumentando que ainda teria gastos com manutenção e outros
o líder novamente assumiu por sua conta, que estava falando em nome de seu povo, os quais
estava informado de sua intenção. E foi assim que no final do mesmo ano enviaram um trator
MF 290 equipado de uma grade (...) niveladora e um Arado 4 discos, já como parte integrante
do projeto agrícola 83/digo 79/80 junto mais CR$ 150.000,00 de Cantina Reembolsável, um
ralador de mandioca, um motor elétrico, 60 há de desmatamento através de AGROSUL-MS, em
resumo o valor do referido projeto foi no montante de CR$1.000.000, 00”. (Relatório FUNAI,
1983, p.1-2).
Por um acordo com a FUNAI, a prefeitura manteria “200 litros de óleo diesel” para o
maquinário obtido, sendo a complementação feita pela comunidade. O dinheiro era obtido com a
changa, e segundo o Chefe de Posto, os índios conseguiram mesmo realizar a compra de uma
“trilhadeira” e um Trator MF50X com estes recursos. Um técnico agrícola foi enviado para atender
110
Relatório da Situação do P.I.Cachoeirinha nos anos 1979-1983 (16/11/1983, por Manoel Nunes de Freitas).
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
272
os grupos dedicados à produção, familiar e coletiva (são citados os grupos de Gilberto Augusto com
25 pessoas e Dionísio Antonio, 19 pessoas, mais dois grupos com menos de 9 pessoas - Relatório
FUNAI, op.cit).
Porém, o Chefe de Posto acrescenta que o “trabalho estaria começando a fracassar”, e reflete
sobre suas possíveis causas:
“Por outro lado não sabemos se existe a influência de Políticos, Religiosos, Centro de Trabalho
Indígena (CTI), onde como exemplo citamos em nossa área (entre Sabino Albuquerque
anterior ou através do índio Calixto Francelino) que até agora está em vigor, em fim outros e
até mesmo acreditamos de funcionários, interferindo (Professora Benedita Fonseca Prado,
Enfermeira do Estado, D. Dolores Pereira Dorval) mesmo os próprios índios, evidente, o mais
aculturado, como por exemplo Adão de Oliveira, e outros, isto também poderá estar trazendo
semente infrutífera para nosso trabalho (AMBOS NO DISQUE=DISQUE FOFOCA) quando da
reunião realizada neste PI dia 04/05/83 com presença do delegado Amauri Mota Azevedo
contidos na reunião conhecida, Reunião do Posto Indígena da Região Norte, onde esta chefia já
acreditava que a situação que ora propalamos, particular do PI, já era sentida por VSA.
(Relatório FUNAI, p.3)
Num relatório de 1982, já haviam sido relatados problemas do Chefe de Posto com o CTI:
“6 (Agricultura- o projeto agrícola desenvolvido no Posto Indígena Cachoeirinha, embora com
boas perspectivas de desenvolvimento (área de 280 hectares cultivada/arroz e milho ano/81/82)
com mais adesão de interessados particulares e mesmo em forma coletiva mas, mesmo assim
esta chefia teme dissabores, tendo em vista a intromissão de outras entidades ou melhor
entidade (Gilberto Azanha) e suas digo seus comparsas) adentrando na área deste PI
ocultamente e fornecendo dinheiro gratuitamente, para alguns elementos sem que haja qualquer
critério de trabalho junto à FUNAI e comunidade com um todo, como é de conhecimento da DR,
através de relatórios.
6-1 ( - está sendo concluído um desmatamento com o trator de esteira de propriedade do senhor
José Carlos, residente nas proximidades digo de propriedade, em tempo, na Cidade de
Miranda-MS/ o qual nos informou que o desmatamento feito por eles seria para beneficiar o Sr.
Sabino de Albuquerque, Rafael de Albuquerque e Alberto de Albuquerque, e outros ainda não
identificados. A origem dos recursos para este trabalho, não sabemos ainda de onde/parte
achamos que os recursos são oriundos da entidade da qual participa o conhecido Gilberto
Azanha, cremos nós que este tipo de trabalho poderá prejudicar futuramente o andamento do
projeto do Órgão Tutelar na área
111
” (Relatório FUNAI, 1982).
No período 1982/83, começam a aparecer no contexto regional, novos atores políticos, que
rivalizavam com a FUNAI. Além das Missões Religiosas e dos “Políticos”, começaria a atuação do
CTI (Centro de Trabalho Indigenista), especialmente no que tange aos Projetos Agrícolas. Fica
visível a existência de dois “projetos rivais”, o Projeto Agrícola da FUNAI e o Projeto do CTI,
sendo que este último teria alguns aliados dentro de Cachoeirinha, como Sabino Albuquerque. Em
conseqüência desta rivalidade a FUNAI enviaria um engenheiro agrônomo (José Resina) para
trabalhar no seu projeto agrícola.
111
Relatório de Ocorrência (por Manoel Nunes de Freitas) 08/01/1982.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
273
A atuação deste engenheiro detecta os conflitos latentes dentro da Cachoeirinha, entre estes
“grupos” envolvidos com o Projeto Agrícola da FUNAI e aqueles voltados para a aliança com o
CTI. A visita do Engenheiro agrônomo é assim relatada:
“No mês seguinte tivemos a visita de nosso Engenheiro Agrônomo José Resina (..) ele me
revelou que estava percebendo haver um pouco de falta de entrosamento, mútuo de funcionários
e indígenas, pois até mesmo uma palestra com o índio Sabino Albuquerque, ele realizou, no
sentido de unir os trabalhos agrícolas, nos moldes da FUNAI mas que não esquecesse o
trabalho oposto, também está beneficiando índios, isto na minha ausência, mas posterior levou
ao meu conhecimento como também ao Cacique e ao Técnico; o que ocasionou novamente com
meu propósito pois dias anteriores, esta chefia tentava esta junção, que na verdade não é fácil,
tendo em vista que este tipo de tentativa sempre por esta chefia foi tentado, mas ora sempre
oportuna e sempre rejeitadas por parte do Sabino, sempre foi contra a FUNAI e a favor do CTI,
disendo que neste teria melhores indigenistas, antropólogos, enfim uma equipe melhor (...)
quero com isto tentar mostrar estar tentando em todos os ângulos estarmos nos preparando a
paz”. (Relatório FUNAI, p.4)
Em 1983, já existia um conflito entre os executores da política indigenista, como o Chefe de
Posto, os Engenheiros e Funcionários da FUNAI e o nascente trabalho do CTI. O projeto agrícola,
que havia sido introduzido na comunidade e a implantação de novas máquinas e processos
produtivos criou uma demanda específica por matéria prima, que irá condicionar a própria vida
política dentro de Cachoeirinha.
O conflito FUNAI X CTI daria-se em diversas dimensões e em todas as aldeias do
município de Miranda. A documentação da FUNAI da época indica que o CTI procurava fornecer
uma assessoria alternativa para os índios em diversos domínios, não somente o da produção
agrícola. Um relatório do Chefe de Posto de Passarinho narra à visita de Gilberto Azanha e
Advogados do CTI, que procuravam dar assistência jurídica a um índio acusado de homicídio:
“Disseram que só queriam ajudar e que não estavam de maneira nenhuma interessados em
fazer política contra a FUNAI e que em resposta a minha pergunta se possuíam autorização da
FUNAI para atuar na área, disseram que já estavam providenciando a documentação para tal.
(...) Os referidos senhores se retiraram depois de uma hora de palestra, sendo que cumpre-nos
esclarecer que não pudemos escorraçar as pessoas que vêm ao posto, por isto fomos cordiais,
sem sermos servis ou ter traído a confiança que em nós deposita o órgão”. (Relatório FUNAI,
1982)
112
Vemos claramente que existia uma profunda desconfiança da Administração Regional da
FUNAI, para com a ação do CTI dentro das reservas indígenas, de maneira que o mero diálogo do
Chefe de Posto com os membros do CTI, tinha de ser justificado por este, para que não parecesse
uma “traição” deste funcionário aos seus superiores no órgão tutelar. Logo, o CTI apresentava-se
como uma organização que oferecia uma alternativa à política de assistência oficial do órgão tutelar
(oferecendo assistência jurídica, educacional e agropecuária), criando um canal diferente de
112
Relatório de ocorrência de Visita de Pessoas Extra-FUNAI (08/12/1982, por Luiz Pereira).
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
274
diálogo, de fornecimento de recursos e alianças políticas. A implantação do indigenismo não estatal,
colocaria uma nova gama de questões e conflitos no primeiro plano da vida de Cachoeirinha.
O relatório do engenheiro agrônomo José Resina, descreve assim o projeto agrícola de
Cachoeirinha, depois de dar um “histórico” da aldeia (em que indica as características básicas da
terra indígena e a ocupação imemorial Terena), descreve da seguinte maneira o projeto agrícola:
“Mas foi no ano de 1979 que esta Comunidade Indígena começou a receber efetivamente o
que mais desejava, qual seja, a implantação de Projeto Agrícola, para o seu desenvolvimento
comunitário. O difícil de tudo isso foi à execução do trabalho de base realizado. A escolha de
um lote padrão de índios, estes com ambições moderadas, porém entusiastas e dedicados, foi a
parte principal, refletido hoje em dia de modos a ser o PI Cachoeirinha, o mais unido, que
possui um desenvolvimento em ritmo acelerado, mais equilibrado e finalmente que possui a
maior perspectiva de desenvolvimento, em termos de 9º Delegacia Regional
113
(Relatório
FUNAI, 1982).
De acordo com os dados do relatório, montamos o seguinte quadro, sobre a produtividade agrícola:
Quadro 36 -- Produtividade do “Projeto A grícola de Cachoeirinha” em HA cultivados.
1979 1980/1981 1982 1982/83
53 hectares 200 hectares arroz
47 hectares de milho
60 hectares feijão
278 hectares
350/400 hectares (meta)
O relatório de José Resina ainda diz o seguinte:
“Com uma produção significativa a ser colhida, a comunidade entrou do PI Cachoeirinha
realizou a aquisição por conta própria de uma trilhadeira de arroz (nova), pois observaram que
tinham ingressado em um ciclo produtivo de grande porte. Vale ressaltar também, que desde a
chegada do trator, o tratorista é pago pela comunidade. Desse ponto em diante, passaram a
receber visitas constantes de comerciantes, cooperativas e até mesmo dos agentes do Banco do
Brasil, com a finalidade de realizar a compra da produção. Os indígenas passaram a ser
olhados com outros olhos na cidade de Miranda, pois a antiga concepção era de que os índios
em geral não passavam de vagabundos e Cachaceiros”. (Relatório FUNAI, 1982)
Ou seja, a introdução do projeto agrícola possibilitou simultaneamente um incremento da
produção agrícola e a formação de um capital que era reinvestido na produção, de maneira que as
relações comerciais e mesmo a imagem do “índio” teria sido mudada dentro do município de
Miranda, em razão do “desenvolvimento” alcançado com tais projetos. Com os recursos realizaram
a aquisição de um trator e “aguardaram a chegada de um trator da FUNAI, para elevar a área
cultivada para 400 hectares”. A lógica “desenvolvimentista” da política indigenista encontrava
assim entre os Terena um espaço exemplar de realização. A própria comunidade local absorvia
como seus objetivos este mesmo desenvolvimento (basta ver que é a própria comunidade que exige
a introdução de máquina e tecnologias; é a comunidade que paga os tratoristas, que consegue o
combustível e etc).
113
Projeto Agrícola do Posto Indígena Cachoeirinha (José Resina Fernandes Jr., 1982).
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
275
A FUNAI implementava estes projetos com o apoio político interno dentro da Cachoeirinha,
especialmente na figura do então Cacique, como indica José Resina:
“Todo este trabalho desempenhado, não seria possível sem a ajuda constante e permanente do
Capitão do P.I. Sr. João Aniceto. Pessoa digna e honesta, merecedora de toda nossa confiança,
pois durante todo este período (3 anos), a cantina do P.I. está sob seus auspícios e até hoje a
mesma dá suporte para os novos iniciantes do Projeto.
É comum esta Delegacia, especificamente o Setor Agrícola receber informações dos
funcionários do P.I., que o Sr. João Aniceto tenha passado a noite inteira em cima do trator,
ajudando o preparo de solo para o plantio, para não atrasar os trabalhos.
Certa vez, o referido capitão chegou até mim, e disse que não estava suportando a carga de
serviços que recaia sobre ele, e que suas intenções era de abandonar o cargo de capitão.
Diplomaticamente solicitei a ele que não deixasse o cargo, e que seu trabalho era de muita
importância para sua comunidade.
E, realmente ocorreria uma interrupção natural, se sua saída fosse efetuada.
Por fim este permaneceu, e os resultados estão para ser vistos, apesar das interferências:
externas que tentam criar uma ala dissidente entre a Comunidade, contra o Sr João Aniceto.
Porém seu trabalho, sua dignidade, sua moral e sua força de espírito, supera todas estas
dificuldades encontradas, e os trabalhos por nós desenvolvidos geralmente apresentam alta
rentabilidade em conotação social significativa”. (Relatório FUNAI, 1982, p. 2)
Por este relato, vemos que já se apresenta uma análise por parte dos técnicos e funcionários
da FUNAI e o delineamento de um quadro bem preciso. No contexto da implementação dos
projetos agrícolas - e do surgimento de novos atores históricos como o CTI, que apresentam como
canais alternativos de recursos e aliança política e rivalizavam com a estrutura político-
administrativa da FUNAI - se estabelecerá uma conexão entre os grupos ou facções indígenas locais
(organizados em torno de certas lideranças emergentes) e o CTI. De um lado, temos a figura de
João Niceto Júlio, como aliado da FUNAI e executor da sua política através do “projeto agrícola”.
De outro, temos a emergência da figura de Sabino Albuquerque, como líder de um grupo que se
articulava com o CTI e era combatido pela FUNAI tanto no contexto da aldeia Cachoeirinha quanto
das demais aldeias Terena do Mato Grosso do Sul. É neste contexto que ressurgem os conflitos de
sucessão, envolvendo o posto do Cacique.
O projeto agrícola da FUNAI estava apresentando certos resultados dentro do contexto da
aldeia; a expansão da produção, a circulação de dinheiro e novas tecnologias e ferramentas, que
ficavam de acordo com a estrutura da FUNAI, sob o controle centralizado do cacique da aldeia.
Este monopólio dos recursos motivava a disputa pelo cargo de cacique, principalmente num
contexto de aumento da oferta de recursos materiais, como estava acontecendo, durante o período
de vigência do “projeto agrícola”.
O que começa com uma disputa de grupos ou facções locais, que a principio faziam criticas
ao projeto da FUNAI e buscavam novas alianças políticas (com o CTI, por exemplo), irá se
manifestar também na luta política pelo controle do cargo de Cacique, tornando-se-um conflito de
sucessão. Segundo as informações de diversas pessoas dentro da aldeia Cachoeirinha, quem
“inventou” a idéia das eleições foi o “Sabino”. Isto é parcialmente verdade. Na realidade, o SPI
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
276
tinha implementado tal sistema nos anos 1960, porém ele não perdurou e voltou a realizar um
processo de indicação. As eleições seriam retomadas como solução por Sabino Albuquerque e por
pressão de sua facção. Numa conversa que tivemos com ele em sua casa ele disse: “Se um grupo
indicava, era válido, porque era pouco índio, depois do Lino batemo o pé, batemos o pé, vamos
eleger, vamos eleger, então daí pra cá foi eleição já...”. (Sabino Albuquerque/ 2004). A
implantação do atual regime de eleições em Cachoeirinha, a mudança na forma de atuação da
FUNAI, é conseqüência das lutas faccionais.
Um documento manuscrito (uma ata de reunião da Comunidade da Cachoeirinha) anexo a
um memorando encaminhando a 9º DR da FUNAI em 14/05/1982, relata os seguintes
acontecimentos:
“Dia 08/05/1982. As 16 horas. Recebemos uma antropóloga, um estudante e um motorista da
FUNAI dentro da Reserva do PI da Cachoeirinha. Finalidade:Forçando de fazer uma reunião
com a comunidade afim de fazer pesquisa não realizada de acordo com liderança. A reunião foi
liberada para o dia 10/05. Início da reunião foi as 9 horas. Assunto: consultar com a liderança:
não aceitaram. Pediram reunião da comunidade: foi aceito reunião.
Sabino de Albuquerque forçando comunidade para trocar de capitão. Ai ouve a eleição: início:
as 16 horas, encerro: as 17 horas. Candidato: João Niceto Júlio 120 votos. Sabino de
Albuquerque, 86 votos.
Tendo voto de 4 mulheres.
De acordo com os voto da Comunidade não aceita outro projeto sem ser da FUNAI de acordo
com a decizão do grupo. Conselho Tribal pede máxima providencia para a transferência do
Sabino Albuquerque da área indígena. Motivo: dando problema para a comunidade, para a
FUNAI.”
Vemos a confirmação de que as eleições de 1982 se realizaram sobre pressão direta de
Sabino de Albuquerque, que tentava garantir o acesso de um antropólogo a área indígena, sendo o
pedido negado pela liderança Cacique e Conselho Tribal. O exercício do poder de controle sobre
o acesso ao território indígena, e que limitava assim as alianças e a assistência que outras facções
políticas não dominantes podiam obter através delas. Sabino concorreu com João Niceto Júlio que
venceu com uma diferença de 34 votos. Mas a realização das “eleições” para Cacique em 1982 não
solucionou o problema da “luta pelo poder”, que então se reabria. A retaliação contra Sabino
Albuquerque (a solicitação da transferência dele para outra aldeia, por estar “dando problema para a
comunidade, para a FUNAI”, é ilustrativo de como as facções políticas indígenas colaboradoras do
Estado dentro do regime tutelar, se valiam dos poderes e técnicas, utilizadas pelo SPI e FUNAI,
para combater e reprimir outros indígenas dentro das suas lutas internas). A técnica da “remoção”
era muito comum, e foi acionada pela facção então no poder em Cachoeirinha.
Na realidade, o cacique eleito João Niceto Júlio não terminaria o seu mandato. O “Relatório
de Ocorrência” do Chefe do Posto de Cachoeirinha, Manoel Nunes de Freitas, de 04/11/1983,
menciona como Cacique Dionísio Antônio. Isto confirma as informações de que João Niceto Júlio
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
277
teria renunciado ao cargo (devemos lembrar que um dos relatórios acima citados menciona a
vontade de João Niceto abandonar o cargo de cacique). O seu vice-cacique, Dionísio, assumiu.
O “regime de indicação” pelo Chefe de Posto com a anuência do Conselho Tribal, começou
a ser contestado por esta nova liderança indígena e pela facção política que ele conseguiu organizar
em torno de si. Assim, as “Eleições para Cacique” tiveram dois momentos dentro de Cachoeirinha;
um primeiro, no final dos anos 1960, por iniciativa direta do SPI, que visava dar maior legitimidade
aos Caciques, e um segundo momento, quando são as facções indígenas que exigem a implantação
deste modelo estatal, por questões de disputa política interna, permitiria uma maior rotatividade nas
posições de poder local e ainda a quebra do monopólio que certas “facções” exerciam (por sua
política de colaboração com os poderes estatais).
Podemos dizer que na “política indígena” Terena, as lutas faccionais se estruturam em
função do controle das instituições da aldeia: a função de Cacique e o Caixa Comunitário, o Posto
da FUNAI, a Escola. As tentativas de derrubar caciques e chefes de posto passam sempre por estas
questões de poder local na aldeia, sem as quais não se compreende a organização social e as
relações políticas do grupo. Por outro lado, sem fixarmos atenção na política local municipal, e no
contexto econômico e político regional e nacional, não é possível compreender plenamente esta
situação. Já que as próprias bases do poder local do grupo étnico se assentam nas relações com o
Estado-Nacional e o Mercado Capitalista.
Depois da implantação do projeto agrícola, a dinâmica política da Cachoeirinha se viu
relativamente alterada: inaugurou-se a era da política do “óleo e da semente”, ou seja, a introdução
do trator e da mecanização da lavoura criou uma demanda permanente por combustível e por
sementes que viabilizassem o ciclo de expansão e re-investimento gerado. A política dos conflitos
de sucessão e das lutas faccionais se organizariam em torno desta política; as lideranças locais iriam
ascender e cair em função da sua capacidade de buscar e gerenciar eficazmente tais recursos, que
tem um significado tanto econômico quanto simbólico-cultural para os índios, já que possibilitam
uma maior produtividade da lavoura, a conseqüente comercialização do excedente e diminuição da
demanda de mão de obra, liberando assim os filhos e filhas para as atividades mais valorizadas e
vistas como estratégicas para os índios como as atividades educacionais e políticas e a preparação
de quadros “gestores” capazes de “ocupar espaços”.
A emergência de Sabino Albuquerque durante os anos 1980 se deu no quadro da getsação
desta política do óleo e da semente. O monopólio exercido pelas facções associadas e colaboradoras
da FUNAI, obrigavam em certa medida as demais facções existentes a buscarem canais alternativos
de realização destas mesmas demandas, assim como a desencadearem uma “luta pelo poder”, pelo
controle do cargo de Cacique. Entretanto uma outra questão possibilitou a ascensão de Sabino
Albuquerque enquanto liderança: a revisão e ampliação dos limites da reserva de Cachoeirinha.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
278
As informações passadas por Élcio Albuquerque, nascido em 08/02/1961, na própria Sede,
filho Hélio Albuquerque (um irmão de Sabino Albuquerque), e que participava das lutas internas da
aldeia acompanhando seu pai e tios, indicam isso. Ele nos disse que quando era novo fugiu de casa
para trabalhar em fazendas; trabalhou também no corte de cana, sendo cabeçante em algumas
turmas. Entre 1993 e 2001 foi secretário da AITECA. Disse que o Sabino se lançou como
“liderança” batendo na questão da demarcação da terra e que ele tinha um grupo que o apoiava nas
lutas internas. Mesmo certos rivais de Sabino concordam com a importância dele para a luta pela
terra.
Sabino narra assim o processo de reivindicação para demarcação:
Como começou a movimentação da comunidade para solicitar o GT da FUNAI?
Faz ano que vem, desde 1980, nós vem lutando, nós vem mexendo aí... nós organizando, todos
os caciques da Argola, Morrinho, mas de apoio, né... Nós tá apertado aqui, nós fizemos
levantamento (...) e a população aumentando (...) Começamos reivindicar para a FUNAI fazer
a demarcação na área e nós fomos lutando, FUNAI contra, até o dia que nós conseguimos,
Governador, esse Barbosa, deu uma mão também, fomos localizando documento, vestígios, da
área, os velhos indicava os pontos para nós antigamente, e fomos percorrendo a região
escondido porque os fazendeiro não deixava nós olhar. E fomos indo e cada trabalho as vezes
demorava um ano...Pra gente olhar os pontos que os velhos falava para nós antigamente.... Até
que conseguimos agora Fernando Henrique fomos a Brasília e aí obrigamos a FUNAI a fazer
um GT para fazer a pesquisa da área.
Onde veio Gilberto Azanha, fazer a pesquisa nos pontos reivindicados dos índios, aí tá aí,
alcançamos os documentos no cartório, Terrasul, também o Zeca deu uma força grande para
nós... Aí conseguimos localizar o documento Terrasul, no cartório de Miranda... Tudo isso aí é
os ponto, que os velhos falava para nós....
Aí começamos assustar, comover que realmente nossas crianças ia precisar da área. Tá
faltando só isso aí, Ministro analisar, Zeca reconheceu que o Estado errou....
Quais foram às pessoas que começaram a mobilização?
“Foi a comunidade toda, mas quem mais deu força para nós foi a Argola, capitão Rufino, que
assumiu mesmo, juntamente com nós, grupo nosso aqui da Sede, primeira batalha foi isso aí,
Dionísio era cacique na época, mais João Niceto, foi contra, foi a favor da FUNAI, mas só ele
de cacique, e a comunidade falando. Então Dionísio e João Niceto foi contra na época, mas
hoje graças a Deus reconheceu. Tá reconhecendo.
Uma vez aí veio, mandado pela FUNAI, o funcionário da FUNAI, que é índio, que é irmão do
Marcos Terena, que tem o apelido de Maninho, o nome eu não lembrando como é que ele
chama.... Veio fazer demarcação queria fazer essa documentação aqui onde tá nós com
2.600ha, e aí comunidade nós não deixamos, o cacique Rufino.
E esse João Niceto, e o Dionísio o Guilherme ainda brigou com o Rufino que queria fazer
demarcação aqui... Ai nós falamos para eles, isso aí tá seguro, ninguém toma mais de nós, isso
aí não é demarcação, não é por aí que nossos pais falava, porque meu pai era campeiro,
Alexandre Albuquerque. Ele sabia todos os ponto,ele falava para nós, e falava eu vou marcar os
pontos para vocês, e o velhos faleceu novo, setenta e poucos anos...
Porque a FUNAI mandou ele demarcar... Até o próprio Rondon não deixou nos limites certos. O
pessoal do Carrapatinho recebeu terra do Rondon...
Na época o Valdir Neves, veio aí, pressionou muito o delegado, falou que nós estava
invadindo... Vinha aqui em casa... As vezes o índio tava pescando na Bahia, e falava que nós
tava ocupando... Achava que eu era cabeça.... (Sabino Albuquerque/ 2004)
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
279
O início do processo de demarcação de terras em Cachoeirinha, também se tornou motivo de
conflito de posicionamentos entre as diferentes facções políticas. A facção de João Niceto e
Dionísio se colocaram na época a favor da demarcação das terras com os limites de 1904 (2600
hectares) enquanto que a facção de Sabino queria iniciar um processo de revisão dos limites, o que
aconteceria cerca de 20 anos depois com o envio do GT da FUNAI coordenado pelo antropólogo
Gilberto Azanha. A demarcação só não feita no inicio dos anos 1980 pela oposição encontrada.
É interessante notar que a política fundiária da FUNAI encontrava executores e
colaboradores em facções locais e nos próprios índios Terena. Segundo moradores da Cahcoeirinha,
foi um irmão de Marcos Terena (funcionário da FUNAI) que foi enviado para tentar convencer os
índios a aceitarem a demarcação tal como proposta pela FUNAI, as facções locais que atuavam em
aliança/colaboração política com a FUNAI, apoiaram tal proposta, entrando em choque mais uma
vez com as facções e lideranças políticas emergentes.
Neste sentido, o regime tutelar e a política fundiária a que ele sempre atendeu, dependia da
divisão política das comunidades indígenas, do apoio e colaboração política das facções locais
existentes. A reafirmação dos limites da reserva de Cachoeirinha pela FUNAI, era a reafirmação
histórica da política de redução das terras indígenas, visando liberá-las para o Mercado Regional.
Tal política só se implantou (assim como no século XIX, a redução das terras Terena), em razão da
política de colaboração que diversas e importantes lideranças indígenas estabeleceram com as
agências de Estado. O caso relato acima se insere dentro destes precedentes históricos.
No período que vai de 1983-1985, mas uma mudança ocorreria na liderança de
Cachoeirinha. Dionísio Antonio daria lugar a Alírio de Oliveira Metelo, que assumiria o cargo de
Cacique. Segundo algumas informações dadas pelo próprio Alírio, ele teria assumido por que
Dionísio sofreu um acidente, segundo outras versões ele teria renunciado em razão das lutas e
conflitos políticos internos. Um ofício encaminhado a FUNAI em 1985, contém o nome de Alírio
como cacique, e este teria ficado no cargo até 1986. Uma nova eleição teria sido realizada, e Sabino
Albuquerque foi escolhido como Cacique, permanecendo três anos na função.
A partir de então as relações políticas dentro de Cachoeirinha vão caminhar para um
acirramento cada vez maior. A antiga facção do cruzeiro, liderada agora por Dionísio Antonio,
passa a fazer uma política de oposição sistemática a Sabino. As acusações contra ele e sua liderança
eram do mesmo tipo das que este lançava contra Dionísio: de monopolizar os bens da comunidade
somente em proveito próprio, de usar o trator, caminhonete e poder somente para favorecer o seu
próprio “grupo”. Algumas das pessoas que na época apoiavam o Sabino, hoje o acusam de “querer
comandar a aldeia como se comandasse uma fazenda particular”, de centralizar as decisões
políticas e recursos.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
280
Mas na época, a força de Sabino Albuquerque junto à comunidade indígena era grande.
Tanto que nas eleições de 1988, ele concorreu novamente e se elegeu. Entretanto, neste ano a
facção “derrotada” não aceitou o resultado das “eleições” e se acirrou assim o conflito de sucessão e
reacendeu a luta pelo poder dentro da aldeia. Numa conversa com Sabino, ele relembra dos
acontecimentos deste momento, do final dos anos 1980:
“Eu não sei se foi segundo mandato meu, parece (...) Que a FUNAI começou me enxergar
contra eles aqui, eu fui, eu fazia porque o pessoal mandava, eu batia naquela fase, onde era
autorizado do Conselho, e não onde peitava. Na época o Chefe de Posto da FUNAI, o delegado
que eles falava antigamente, e tinha o Chefe de Posto, o Juracy, foi mandado pelo Delegado, eu
não sei se era cabo, se era tenente, se era major, ele era policial capitão, não sei o que ele era,
onde ele foi mandado aqui.
A comunidade queria, que queria, que queria brigar... E aí o Dionísio quis assumir tinha caixa
comunitário que influía muito o cacique antigamente, o cacique brigava muito pelo caixa
comunitário que a Usina pagava.
Aí eu falei para a turma, deixa que ele assume, Dionísio, se ele quer caixa comunitário, deixa
pra ele, eu não quero, nós queremos trabalho. Então ele ficou lá, fazedor de contrato, mas ele
não resolvia nada na comunidade. Ninguém ouvia ele, ele só pegava caixa comunitário, que ele
era interessado na caixa comunitário na época, tinha renda, eu não me interessei. Ai eu deixei a
caixa comunitário ele recebendo, ai ficou tudo pouco né, era interessado naquilo mesmo e eu
fiquei dominando a comunidade.
O que eu lembro que ficou dividido foi isso ai, AITECA, a divisa, rua, tudo aqui eu que resolvia.
Ele mesmo era pegar dinheiro do caixa comunitário, ele ficou gostando, eu num ligava, num
fazia contrato pra ir para as Usinas, não me importei, falei para turma, deixa eles, brigar com
Chefe de Posto, que dividiu nós, o Juracy, nós não vamos brigar por causa disso aí, deixa que
eles quere isso ai, deixa ficar pra eles. Aí nós ficamos tocando até o final do mandato, nós
fizemos eleição eu não lembro se eu concorri de novo. Essa divisão ficou por causa disso aí, por
causa do caixa comunitário.
Tem ata, mas essa ata o Juracy queimou. Invadiu e queimou nossa documentação todinha nessa
época. (...) Eles se interessava no caixa comunitário. Eles só fazia grupinho, não era grupo
grande”. (Sabino Albuquerque/ 2004)
A partir do ano de 1988 a comunidade de Cachoeirinha se viu cindida em duas: Cruzeiro,
que abrangia todos os grupos domésticos fixados do Posto da FUNAI para o Leste; Mangao,
abrangendo os grupos domésticos do Posto para Oeste. A cisão entre “Cruzeiro e Mangao” aparece
assim como o resultado das lutas faccionais dos anos 1980, da luta de resistência movida por certas
facções locais contra o regime tutelar, mas é também o produto da experiência histórica local, das
formas de organização social e política dos Terena.
O contexto da vida dentro da aldeia foi profundamente alterado por esses conflitos. A
violência e as hostilidades entre os grupos se reproduziam no cotidiano, de maneira que se tentava
mesmo impedir a circulação de moradores do Cruzeiro pelo Mangao e vice-versa, pelos relatos de
alguns moradores. Dionísio Antonio era o Cacique do Cruzeiro, e Sabino Albuquerque do Mangao.
Élcio Albuquerque nos falou em certa ocasião: "existia a briga de duas facções de caciques, uma
era amparada pela FUNAI, tinha maquinário, semente, óleo e outra não. (...) Era conflitado, se
pegavam na reunião, se pegavam muito. Tinha um chefe de posto que dormia com duas carabinas e
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
281
as janelas pregadas." Élcio mora com sua esposa, que é filha de uma das lideranças do Dionísio
Antonio, na área do Cruzeiro, mas apoiava a facção do Sabino.
O caso de Zacarias da Silva, um pastor da Assembléia de Deus, é o contrário. Ele era
membro da liderança de Dionísio Antonio, e morava no lado do Mangao, e narra assim os
acontecimentos:
“Que eu entendo que morava na Cruzeiro era Quiniquinau, então dois raça não combinava
com outro. Já mudaram tudo daí. Mas eles moravam desse lado assim. São raça meio
resolvido, não combina com outro....
Em 1958 mudaram...
A divisão do Sabino X Dionísio.Você chegou acompanhar?
“O motivo é de administração, o divisão quando começou, falava que não sabe dirigir, não
sabe conduzir o povo, um quer ser mais do que o outro, onde ele queria caçar o mandato do
Dionísio, isso foi mais ou menos 1980. (...)
O Dionísio queria caçar, caçou sim, a comunidade se reuniu, caçar o mandato do Sabino
quando ele foi eleito pelo povo, só que ele não conseguiu e o Sabino continuou, e o Dionísio
continuou como Cacique. Aí que o índio perdeu a direção, quando havia algum problema,
quando vai lá no Sabino, manda lá no Dionísio, ai o Dionísio manda lá no Sabino, ai é assim.
Foi quatro anos de luta, ai teve outra eleição, ai outro partido ganhou, aí melhorou”.
“Eu comecei com Dionísio, ai quando foi no tempo, eu fui escolhido para ser presidente do
Conselho.
“Eu sei que o Sabino e o Dionísio não combina até agora, continua aquela separação. Essa
pergunta foi bom, porque a maioria do juventude já começa a levantar contra o outro lado da
ala, deu problema juventude”. (Zacarias da Silva, Março/2006).
As palavras de Zacarias da Silva são importantes porque quando perguntamos da divisão
“cruzeiro/mangao” ele mencionou a antiga divisão entre os moradores do lado oeste do Posto que
seriam “Terena” e os do lado Oeste que seriam Quiniquinau. Isto reforça que esta divisão era mais
antiga, e precedia os conflitos faccionais dos anos 1980. As pessoas envolvidas mais diretamente
nos conflitos indicam que esta cisão provocou uma profunda ruptura nas relações sociais dentro da
aldeia.
Conversando com outro morador da antiga Mangao, o ex-cacique Lourenço ele que não
chegou a se envolver diretamente no conflito, disse, ao responder nossa pergunta:
“Mas porque que aconteceu essa divisão, porque que o chefe de posto fez isso?
“Política dele. Para dividir o povo mesmo, não tinha intenção de trabalhar como ele tinha que
trabalhar. Eu acho que antigamente o chefe do Posto da FUNAI ele queria ser mais do que o
cacique. Mas não é que acontece isso. Quem manda realmente é o cacique. Que começa a
liderar a comunidade. Então o que os caciques decidia antigamente, era aquilo, o chefe do
posto não poderia mudar aquilo, se foi decidido isso, foi decidido. Se for decidido isso, então foi
decidido. Então naquele época o FUNAI era forte ainda, tinha recurso, tinha recurso de todo
lado, naquele época o índio era recebido no Estado, Município, Governo Federal, FUNAI, o
povo naquela época tinha recurso, os cacique naquele época tinha conseguido muita coisa, hoje
mudou muito. Hoje a gente não consegue nada senão pressionar mesmo. Eu acho que o pessoal
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
282
queria tomar o cargo dos outro acho que por isso mesmo. Tinha muito recurso aquele época.
Hoje não tem mais recurso não. A pessoa pensar assim eu vou entrar, vou tirar esse cacique e
vamos entrar e vamos conseguir aquilo, é muita mentira, o pessoal é muito enganado se falar
isso. Hoje eu vou lá no estado e vou trazer isso. Antigamente você ia lá e você trazia na mão,
hoje você vai lá, três mês, quatro mês, cinco mês, aí é que você recebe. Hoje não. Hoje o
político tem mais desconfiança, dos políticos das lideranças indígenas. Mas porque que isso
acontece? Eu vejo que as maiorias das lideranças, de outros aldeia, sempre ouve conversa ali, o
fulano tirou aquilo, o fulano desviou óleo diesel, o fulano desviou recurso. Eu acho que o que
tem mais aqui é desvio de verba, desvio de tudo. Antigamente nem ligava isso. O povo ia na
FUNAI se precisava de 10, 20 rolos de arame, ia lá e trazia, hoje não é uma burocracia
desgraçada. Hoje você vai lá reivindica, dois mês, três mês, ai que vem, as vezes vem com
resultado as vezes não. O que eu vejo naquela época é por isso que o povo brigava muito.
Os caciques antigamente, se saia daqui,o FUNAI pagava diária para ele, se ia para Brasília ele
tinha diária, ele recebia diária, ele tinha recurso de alimentação e de passagem. Hoje não tem,
o cacique não tem diária. Hoje se a pessoa pensar assim eu vou para Brasília vou passar no
FUNAI porque FUNAI vai me pagar diária, se ele pensar assim, tá enganado. FUNAI hoje não
dá mais isso, foi cortado. Então o povo via isso mais essa parte de recurso naquele época. Hoje
não tem mais isso.
Senão me engano, acho que mudou tudo isso, mais ou menos de 85. Ai veio esse clima de
política, já veio essas confusão, aí foi mudando. Até que 2002, 2001, ainda tinha recurso do
pessoal que ia para canavial, Cacique recebia e trabalhava com aquilo, hoje não tem, não tem
mais desse pessoal de usineiro que vem para contratar pessoal. Tem mais é pouco, não era
como antigamente. Se vinha de lá pra cá pegava cinco grupo ...Completava trinta dias mandava
caixa comunitário. Hoje se não vencer o contrato não manda o caixa comunitário.Mas só que o
taxa comunitário hoje é 500,600, um grupo naquele época era 1000 real, se saia 5 grupo de 40
homens, pô era cinco paus na mão, era dinheiro.É engano do pessoal que fala isso vou entrar,
vou fazer aquilo, aquilo... Hoje o que eu vejo que a comunidade mudou muito é que o pessoal
era brigueiro mas as vezes era unido no trabalho ... O pessoal chamava pro mutirão ia todo
mundo ...e essas pessoas que fazia limpeza aqui na divisa ... A comunidade tinha gado, o
cacique carneava e dava pedacinho para todos aqueles pessoas que estão no trabalho... hoje
não tem mais, não tem cavalo nem gado para comunidade, hoje acabou tudo. Tem muita pessoa
que fica lembrando. Poxa mas naquele tempo era isso, era aquilo, nós ia para limpar o divisa
no mutirão, nos tinha pedacinho de carne... Hoje para você fazer esse compromisso com ele, pra
você comprar duas vacas para carnear você vai gastar 2 mil e quinhentos. Cachoeirinha
cresceu muito. Mas o que brigava antigamente era pessoa de idade, homem forte, hoje é
juventude que briga, hoje 12, 13, 14... uma baderna aí hoje. O que era a situação mais ruim
antigamente hoje se tornou a juventude. Porque que eu vejo isso agora? Hoje tem pai
aposentado, tem mãe que recebe auxilio maternidade, auxilio da doença, cesta básica, bolsa
escola, agente jovem, agente de saúde, tem tudo hoje... essas pessoas tem emprego hoje. Mas
quanto mais a liberdade que os pai tem hoje para seus filhos ... Antigamente eu, meu pai falava
pra mim, hoje de manhã você vai estudar, de tarde você vai para roça, se você não for vai
apanhar. Hoje se a família vê filho, o pai vai para roça e o filho fica dormindo, na mordomia
...Então tem essa mudança. Antigamente não era assim, porque se o povo furasse um dia, era
necessidade. Hoje se um fulano tá dormindo hoje, levantou tá comendo, tá bebendo água.
Antigamente se tinha que buscar água era longe, sete quilômetro, cinco quilometro, com lata na
cabeça. Hoje ate na cabeceira da cama do fulano tem água..Então a gente pensa que vai
acontece para o futuro? Então é isso”. (Lourenço Muchacho, Setembro de 2004).
A disputa política dentro da aldeia, pelo poder do posto de cacique e a outras posições, se
vincula intima e diretamente as alianças externas e a disputa por outros postos de poder dentro das
instituições de Estado. Desta maneira, o faccionalismo político Terena não pode ser pensado fora
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
283
das redes de relações que este grupo étnico constitui no contexto local e regional, que por sua vez se
inserem em redes nacionais de dominação.
Um outro depoimento importante é o de Anésio Pinto, que morava no lado do Cruzeiro, mas
que na época ficou do lado da facção de Sabino Albuquerque. Perguntamos:
Você chegou a pegar a época em que Cachoeirinha ficou dividida?
Sim, esse aí se eu não em engano foi na década de 1980, me parece, quando a Cachoeirinha
dividiu-se a ala do Dionísio mais a ala do Sabino. Isto ai foi o resultado da política interna e da
política lá de fora. E também eu como professor naquela época um dos prefeito não queria que
eu falasse idioma Terena na sala de aula, e fui até ameaçado por isso, lembro que daquela
vez.... Eu tava na ala do pessoal daqui ... eu me senti muito assim, não gostei daquela divisão,
onde teve muito entrada de políticos, foi muito difícil de resolver... Naquele tempo eu apoiei
porque as pessoas mais forte em relação ao Estado ou Município, estava em poder do Sabino. O
prefeito mesmo estava ao lado do Sabino e o pessoal contra queria fazer dele também. O
prefeito apoiava ele, só que eles não tinha aquele grande poder como o Sabino tinha. Eu achei
de estar ao lado do Sabino devido a esses grupos de pessoas que tem poder como o Governador
do Estado de Mato Grosso de Sul o próprio CTI já vinha agindo neste sentido, a Prefeitura,
onde naquela época o Sabino desentendeu com o Prefeito, aí o Prefeito deixou o Sabino e
procurou ajudar o Dionísio. Mas só que o Dionísio não tinha aquele grande conhecimento
através do Governo do Estado do Mato Grosso do Sul, somente com o prefeito, aí o Sabino
cortou a parceria com o Prefeito aonde eu sofri a conseqüência disso daí, durante seis anos,
onde eu me desliguei da prefeitura, naquela época eu já era professor, e a prefeitura não queria
mais auxiliar os alunos aqui, aonde o Sabino levou esses alunos a ser reconhecido como escola
Estadual, ai teve a parceira do CTI aonde o CTI arcou com os uniformes, foi muito difícil
naquele tempo.
Quem tava do lado do Sabino e quem tava do lado do Dionísio?
O Sabino tava com maioria, e o Dionísio tava com minoria. O Sabino era reforçado através do
Cacique da Argola e do Morrinho. Adolfo Pedro apoiou muito o Sabino. O pessoal do Lino tava
apoiando o Dionísio, Alírio, o Mário Pedro apoiava o Dionísio. (Anésio Pinto,Março/2006).
No período entre 1988 e 1991 a cisão entre Cruzeiro e Mangao na Cachoeirinha, marcou a
ascensão de uma facção política local. Através de alianças externas com o CTI, e pela inserção de
suas lideranças nas redes políticas regionais, essa facção conseguiu fortalecer suas bases de
mobilização política interna e ao mesmo tempo fazer uma política de oposição a FUNAI e a facção
política que nela se amparava. A ascensão da facção que chamamos de facção do “Mangao”,
liderada por Sabino Albuquerque, se relaciona a um conjunto de processos e fatores. Primeiro lugar,
a luta pelo poder, que diferenciava as duas facções; uma atuava como força de apoio da FUNAI,
através dos empreendimentos indigenistas, sob forma de “projetos agrícolas”, e controlando de
forma relativamente monopólica, os recursos e relações políticas com o Estado através da FUNAI.
A outra facção, começou a questionar os métodos de organização política, o “regime de indicação
do cacique”, exigindo eleições e a transferência do poder de decisão para a comunidade indígena.
Ao mesmo tempo, começou a articular a demanda de revisão e ampliação das terras indígenas, e
nesse momento, entrou em choque com a facção do cruzeiro que atendendo as orientações da
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
284
FUNAI, tentou impedir o processo e a reivindicação de terras. O envio do “índio funcionário” para
realizar a “demarcação” nos limites de 2600 hectares, sem nenhuma revisão, mostra o compromisso
em transmitir ordens do Estado para a comunidade e manter os padrões de territorialização e
inserção na estrutura de classes estabelecido ao longo do século XX. A técnica da “desobediência”
política e do “boicote” aos empreendimentos agrícolas e o trabalho comunitário foram as principais
formas da resistência cotidiana. Dessa maneira, a política de resistência cotidiana expressa-se nesse
momento pelo choque com os índios funcionários e o projeto de “co-gestão indígena” que se
apresenta antes de tudo, como meio de garantir que certas facções indígenas atuem como forças de
apoio do Estado dentro do regime tutelar.
Isto significava que as bases locais do regime tutelar estavam sendo transformadas:
primeiramente, quebrava-se o poder de uma facção aliada à FUNAI, e abria-se espaço para outras
facções; em segundo lugar, o próprio poder da FUNAI nesse processo se via contestado, já que
juntamente com o declínio do poder da antiga facção dominante, declinava relativamente a
capacidade da FUNAI de impor decisões às aldeias como um todo, de se fazer obedecer e de
monopolizar a representação e as decisões em nome das comunidades indígenas. Como vimos pelo
depoimento do Anésio, muitas estratégias individuais e de grupos familiares contabilizavam o poder
que estas facções não alinhadas com a FUNAI (e que minavam as bases do regime tutelar) como
um fator para aderirem ou não as diferentes facções políticas.
Estes conflitos ganharam grande repercussão na sociedade sul-mato-grossense, de maneira
que alguns jornais chegaram a noticiar os conflitos ocorridos no dia do índio: “Nem tudo foi festa
ontem durante a comemoração do Dia nacional do Índio. Na aldeia Cachoeirinha em Miranda, os
dois caciques promoveram duas festividades, dividindo os índios. Uma das comemorações foi
financiada pelo prefeito de Miranda, Roberto Paulo de Almeida, do PTB. Há denúncias de que ele
está procurando dividir as lideranças do local114”.
O conflito e a divisão durou até 1991, quando uma nova eleição foi realizada e mudanças na
política local possibilitaram uma reconciliação entre as duas facções, que foi simbolicamente
promovida no “Dia do Índio”, como vemos pela descrição abaixo:
“Em comemoração no dia 19 de abril fizemos uma festa, onde no dia 19 de Abril os dois
entraram em paz e pediram aquele união, aliança de novo com eles, desde aquela época 1989,
eu me lembro que foi no dia 19 de abril eles entraram em paz, entraram aliança entre eles para
acabar aquele conflito entre eles, entre nós aqui, eu mesmo eu sofri a conseqüência daquele
divisão naquele tempo. (...) Aí no final de 1991, a prefeitura voltou e contratou todos os
professores, depois que o Sabino se entendeu com o Ivan. (Anésio Pinto,Março/2006).
Neste mesmo ano, foi realizada uma nova eleição para Cacique, e o vencedor foi Argemiro
Turíbio (que na época já era vereador, eleito em 1988), morador do “Cruzeiro”. Também ele não
114
Dia do índio Provoca Divisão entre os Terena”.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
285
conseguiria “terminar” o seu mandato, segundo informações dadas por alguns moradores do local e
confirmadas por alguns documentos da FUNAI.
Assim, podemos identificar todas as fases características do drama social: primeiramente, a
eclosão de um conflito entre diferentes facções políticas indígenas, que tinha como objeto a disputa
de recursos materiais e poder local; depois, a transformação de um conflito latente em um conflito
aberto que levou inclusive a cisão política da aldeia Cachoeirinha durante 3 anos aproximadamente;
por fim a fase da reconciliação, quando as facções em luta repactuam certos elementos e voltam a
um convívio relativamente normal, o que aconteceu no Dia do Índio. O relato de Argemiro, um dos
personagens dessa história indica o seguinte:
“Porque aconteceu a divisão entre cruzeiro e mangao?
Eu não sei bem dizer isso, porque antigamente isso já existia, antes de eu nascer isso já existia,
mas a gente acompanhou através das conversas. Porque a Cachoeirinha sempre assim dividido
em uma família, antigamente tinha aquele Cruzeiro... Uma parte o pessoal considerava uma
família morava em Cruzeiro, então tinha uma certa divisão, outro o pessoal falava de Mangao,
então são duas divisões que era fortíssima, que era difícil se juntarem naquela época, inclusive
fizeram até dois times, do lado do Mangao que chamava estrelinha e aqui permaneceu Cruzeiro,
por causa da implantação de Santa Cruz que fizeram. Então chamou esse nome ai e ficou, nesta
fase antigamente. E hoje naturalmente tem esse nome mas vários divisão de localidades que já
foram inventadas. Historicamente na Cachoeirinha tinha essas duas divisões.
E a luta entre Sabino e o Dionísio?
Aquela divisão é mais assim desconfiança da própria comunidade, como tinha duas alas, era
difícil bater e o pessoal acusou muito o pessoal do Sabino, porque tava fazendo isso, desviando
aquilo da comunidade, então criou-se aquela impasse, a comunidade querendo destituir do
cargo dele naquela época. (...)
Qual o cacique reconhecido pela FUNAI?
Incentivava as duas alas. A liderança do Dionísio, era sempre o turma mesmo, Alírio, Adolfo,
uma turma que vinha pra apoiar para resolve o problema. O do Sabino era o Sabino Lipú
Gaudêncio Henrique. O do Dionísio era Zacarias da Silva. (Argemiro Turíbio, Março/2006).
Mas como explicar em termos sociais e históricos os conflitos de sucessão? Seriam apenas o
resultado da luta pelo poder e expressariam como sugerem os indigenistas, o resultado de uma
“influência” externa e estranha aos índios, que os dividiria e manipularia? Na realidade, o drama da
cisão se relaciona aos outros dramas de sucessão. É isto que analisaremos abaixo, através dos dados
levantados sobre a facção do cruzeiro.
5.6 - A Facção do Cruzeiro: genealogia e história dos “tuuti.”
A facção do Cruzeiro era organizada a princípio em torno de uma liderança: João Niceto
Júlio. Outros indivíduos como Dionísio Antonio e depois Alírio de Oliveira Metelo, jogariam um
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
286
papel importante na construção desta facção, e conseqüentemente nos conflitos políticos de
Cachoeirinha analisados anteriormente. A análise da biografia destes indivíduos e também das suas
relações genealógicas se torna fundamental para a real compreensão dos dramas de sucessão, que
redundaram inclusive numa cisão temporária da aldeia Cachoeirinha.
Iremos começar analisando primeiramente as genealogias e relações de parentesco-
residência de quatro caciques da facção do Cruzeiro: João Niceto Júlio, Dionísio Antônio, Alírio de
Oliveira Metelo e Argemiro Turíbio.
Figura 3- Esquema Genealógico de João Niceto Júlio.
João Niceto Júlio é filho de Ciriaco Júlio, um antigo “tenente” da polícia indígena, que se
tornou cacique de Cachoeirinha logo após a morte do “Capitão Timóteo”, no final dos anos 1950.
Por sua vez, Ciriaco era filho do mais “odiado” curandor da Cachoeirinha, Antônio Júlio. João
Niceto, na época em que foi Cacique, final dos anos 1970 e início dos anos 1980, era casado com
Leda Pedro e ambos residem hoje na vila “Cruzeiro”.
1 Antônio Júlio 4 Hilário Júlio 7 Abertino Júlio 10 João Niceto Júlio
2 Justina Maria 5 Luiza Francelino 8 Alcides Júlio 11 Nancy Jùlio
3 Ciriaco Júlio 6 Arlindo Júlio 9 Ailton Júlio 12 Elida Júlio
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
287
Figura 4– Esquema Genealógico de Dionísio Antônio.
1 Francolino
Antonio
5 Vitorino Pereira
da Silva
9 Àguida Antonio 13 Doracy
Francisco
17 Maurício
Antônio
2 Não soube
informar
6 Joana da Silva 10 Laurentina
Antonio
14- Laércio Antonio 18 Adilson
Antonio
3 Guilherme
Antonio
7 Dalva da Silva 11 - Ernesto
Antonio (falecido)
15 Sildo Antonio 19 Guilherme
Antonio
4 Otílio Antonio 8 Dionísio
Antonio
12 - Silvia Antonio 16 Pedro Dionísio 20 Marlisa
Antonio
21- Dalva Antonio
22 Maisa Antonio
Os dados genealógicos de Dionísio Antonio mostram o seguinte: ele é descendente do
Vitorino Pereira da Silva, que foi “capitão” da Cachoeirinha no início do século XX. Vitorino é seu
avô materno (Onjú); seguindo a linha patrilateral de descendência, Dionísio herdou o sobrenome de
seu pai (Antonio) e não de sua mãe (Pereira da Silva).
Dionísio nasceu na Cachoeirinha, mas sua família morava numa área de roça chamada
“Pindó”. Sua família teria se mudado para a área do Cruzeiro por convite de Lino de Oliveiro
Metelo (que convidou também Eusébio Antonio), “em 1958 mais ou menos, segundo o próprio
Dionísio.
“Eu na minha vida como qualidade de morador daqui de Cachoeirinha quando fui cacique em
1982, fui convidado através desse capitão Lino de Oliveira. E assim eu tomei posse em 1986 eu
sai, em 1988 eu voltei três anos de novo na minha vida de cacique. (...) Eu entrei como vice,
primeiro ano em 1979, era João Niceto, afastou, eu assumi, membro do conselho fez avaliação e
eu assumi. Foi assim. (...) Em 1982 foi eleito pelos membros do Conselho”. (Dionísio Antonio,
março/2006)
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
288
Dionísio Antonio aparece primeiramente como vice-cacique em 1979, acompanhando o
grupo de João Niceto. Ele passa a ser Cacique pelo convite de “Lino de Oliveira Metelo”, nos anos
1980 um ex-cacique da Cachoeirinha e membro do Conselho de João Niceto Júlio.
Analisando a genealogia de Alírio de Oliveira Metelo, o cacique que sucedeu Dionísio no
seu primeiro mandato, veremos o seguinte.
Figura 5– Esquema Genealógico de Alírio de Oliveira Metelo.
1 - João Metelo 7 Felix da Silva 13 Alírio de
Oliveira Metelo
19 Ari de Oliveira 25 Wanda de
Oliveira (falecida)
2 Maria Rita de
Oliveira
8 Marcolina
Rodrigues
14 Marcos de
Oliveira
20 Agripina Júlio 26 Cleonice de
Oliveira
3 Lino de Oliveira
Metelo
9 Benedita
Rodrigues
15 Adão de Oliveira 21 Maria Joaquim
Pio
27 Regina de
Oliveira
4 Amâncio de
Oliveira Metelo
10 João Guilherme 16 Alinor de
Oliveira
22- Ginaldo de
Oliveira
28 Creuza de
Oliveira
5 Idalina de
Oliveira Metelo
11 não soube
informar
17 Ariano de
Oliveira
23 Evandir de
Oliveira
29 Cleide de
Oliveira
6 Deolinda de
Oliveira Metelo
12 Maria
Rodrigues
18 Arino de
Oliveira
24 Renaldo de
Oliveira
Alírio é filho de Lino, o antigo líder que convidou o Dionísio Antonio para ocupar o cargo
de Cacique. Sua esposa é originária da aldeia do Bananal. Agripina Júlio é sua meia “irmã”, ela é
filha de um outro casamento de sua mãe, Benedita Rodrigues com Ciriaco Júlio. O seu irmão
Marcos é casado com Nancy Júlio (uma das irmãs de João Niceto Júlio), o seu irmão Ariano é
casado com Ramona da Silva, Adão com Margarida Belisário e Alinor com Marisa Candelário
(sendo que todos atualmente residem em Campo Grande), sua irmã Agripina Júlio é casada com
Gilberto Turíbio.
Pelo que levantamos de informações junto ao próprio Alírio, ele começou sua atuação
política como presidente do Conselho de João Niceto Júlio. Depois foi vice-cacique de Dionísio
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
289
Antonio e tornou-se cacique em 1984, ficando um ano na função. Alírio serviu ao exército, morou
em Campo Grande vários anos, e trabalho em Mato Grosso e São Paulo, sendo cabeçante durante
certo tempo. Assim, antes de se tornar-se um líder político, Alírio tinha tido experiência de
organizar e liderar grupos de trabalhadores e suas relações nas fazendas da região.
Figura 6- Esquema Genealógico de Argemiro Turíbio
1 Pereira da Silva 6 Idalina Pedro 11 não
conseguimos
identificar
16 - Ademar Turíbio 21 Vianey Lipú
Gonçalves Turíbio
2Helena Joaquim 7 Ciriaco Júlio 12 Agripina Júlio 17 Adirce Turíbio 22- Jean Lipú
Gonçalves Turíbio
3 Turíbio Pereira
da Silva
8 Benedita
Rodrigues
13 Argemiro
Turíbio
18 Maria Helenice
Turíbio
23- Argemiel Lipú
Gonçalves Turíbio
4 Vitorino
Pereira da Silva
9 Gilberto Turíbio 14 Ademir Turíbio 19 Maria Darcy
Turíbio
24 Narliene Lipú
Gonçalves Turíbio
5 José Timóteo 10 Cláudia
Timóteo
15- Milton Turíbio
(falecido)
20 Marlene Lipú
Gonçalves
25- Diego Lipú
Gonçalves Turíbio
Argemiro Turíbio é filho de Gilberto Turíbio (nascido em 1911). Gilberto é filho de Turíbio
Pereira da Silva, e herdou o primeiro nome do pai, ao invés do sobrenome (como foi comum em
certas épocas). Turíbio, avô de Argemiro é por sua vez filho de Pereira da Silva, que seria irmão do
pai de Vitorino Pereira da Silva, o “capitão” que antecedeu José Timóteo no Comando de
Cachoeirinha, entre 1918 e 1928 aproximadamente. Dentro do sistema de parentesco Terena,
Vitorino Pereira da Silva e Turíbio Pereira da Silva são “primos/irmãos”, e logo, Gilberto, é
sobrinho do antigo capitão (ou filho classificatório). Turíbio Pereira da Silva faleceu quando
Gilberto ainda era pequeno, e sua mãe teve um segundo casamento, com José Timóteo. Gilberto por
sua vez casou-se com uma das filhas de Ciriaco Júlio, Agripina irmã de João Niceto Júlio.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
290
Na realidade, a “facção do cruzeiro”, se constituiu sobre a base das alianças matrimoniais
entre algumas famílias: a família Oliveira Metelo, família Antonio, a família Pereira da Silva
(Turíbio) e a família Pedro. Mas os membros desta facção são recrutados dentro do “cruzeiro”, que
como vimos é um antigo “bairro” dentro da Cachoeirinha. Na realidade, para compreender
efetivamente a formação das facções com base nos bairros ou vilas, temos de olhar os conflitos de
sucessão como dramas sociais.
Um primeiro drama de sucessão possivelmente ocorrido entre 1900-1905 - é caracterizado
pela luta interna entre irmãos classificatórios, ou seja, entre dois membros de um grupo de siblings,
dentro de uma mesma geração, pelo controle do poder político no espaço aldeão. Esta luta teria sido
marcada pela utilização de “técnicas indígenas” como a feitiçaria, empregada por Benedito
Polidoro para eliminar o Capitão Polidoro, e assumir seu lugar de chefe da comunidade-local. Este
ato teria sido bem sucedido, mas o Capitão Benedito Polidoro terminaria assassinado numa vendeta,
por índios de Bananal.
Depois do assassinato de Benedito Polidoro teria ascendido à posição de “Capitão” o índio
Vitorino Pereira da Silva, que teria sido indicado pelo SPI. Segundo as informações “A ascensão do
capitão Vitorino é um tema controvertido na aldeia. As versões variam. Umas mostram-no como
um autêntico líder indígena: outros um preposto do Inspetor de Índios da época” (Cardoso de
Oliveira, 1968, p.108).
As relações de colaboração do capitão Vitorino com Rondon e o SPI são corroboradas pelos
depoimentos de alguns de sues descendentes:
“Quando ele chegou aqui, esse Vitorino Pereira da Silva, assim que o finado capitão Timóteo
falou pra mim, que o primeiro capitão aqui na Cachoeirinha é ele, porque tempo de Rondon,
tava trabalhando junto com ele em serviço até Cuiabá, Rio de Janeiro pra lá, na linha telégrafa,
porque quando chegou aqui e acabou o serviço, aí deixou, ficou como capitão, tomar conta de
terra. O primeiro capitão, diz que sabia falar português, e respeitava tudo. Assim que me
contou. (...) Porque ele sabia, homem que já tem idade. Tempo de Coronel quando recebeu a
terra. Então é por isso que cada aldeia recebeu a terra, por causa desse general, por que quem
guentava serviço era só índio Terena (Gilberto Turíbio 26/03/2006)
Vemos pelo depoimento de Gilberto que Vitorino Pereira da Silva teria acompanhado
Rondon nos trabalhos das linhas telegráficas, sendo indicado como capitão da aldeia Cachoeirinha
quando retornou dos trabalhos para a reserva. O que importa marcar é que com a indicação de
Vitorino Pereira da Silva, consolidou-se o deslocamento do poder político de uma família os
Polidório para outros grupos familiares.
No final dos anos 1920, entrou na função de Capitão José Timóteo, em substituição ao
Capitão Vitorino Pereira da Silva, “. As razões da substituição de Vitorino foram assim narradas
por José Timóteo:
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
291
“O Capitão Vitorino inventou de beber e tinha quatro mulheres e queria mais uma
mulher. O pai da mulher não queria dar a filha. Daí o finado Capitão Vitorino mandou
o José Polidoro bater no velho, enquanto ficava em casa. O seu Werneck mandou
buscar o Capitão Vitorino que estava bêbado e dizia nada saber. Aí, o Coronel Horta
Barbosa mandou ele embora. Ele pediu, e deixaram ele ficar na roça, doente,
tubercoloso, até morrer. Quando ele morreu, eu já era capitão.” (Timóteo Turíbio,
apud in Oliveira, 1968, p. 109).
José Timóteo que foi indicado para “Capitão” casou-se com Idalina Pedro, viúva de um
irmão classificatório de Vitorino, Turíbio Pereira da Silva. O Capitão Timóteo foi quem mais tempo
ficou a frente da Cachoeirinha, cerca de trinta anos, até sua morte, que abrirá um segundo drama de
sucessão.
A morte de José Timóteo abriu um período de luta política e um conflito de sucessão dentro
de Cachoeirinha, que não se resolveu até 1960. Cardoso de Oliveira indica que três homens
disputaram o posto de Cacique naquele momento: Ciriaco Júlio (“tenente” da polícia indígena),
Faustino Salvador (migrante de Lalima, Koixomuneti) e Emílio Polidório (da parentela dos
Polidório, casado com uma sobrinha do capitão Timóteo). Cardoso de Oliveira notara a preferência
da comunidade-local Terena por Emílio Polidoro, pelo fato deste pertencer a uma família
tradicional. Mas quem ficou com o cargo foi o então “tenente” da polícia indígena, Ciriaco Júlio.
Este permaneceria à frente da comunidade cerca de 3 anos, e depois seria substituído por Faustino
Salvador. Segundo as informações dadas por uma de suas filhas, Agripina Júlio, a comunidade teria
brigado e batido nele, e por isso ele deixou o cargo de capitão.
Na seqüência teria assumido Faustino Salvador (koixomuneti, assistente de Gonçalo
Roberto, maior xamã de Cachoeirinha na época e relacionado a ele por parentesco), que também
ficaria no comando da Cachoeirinha cerca de 4 anos. Segundo informações de algumas pessoas, foi
afastado por ser muito “violento” (além de ser de origem Laiano e identificado como de “fora da
aldeia” por ter migrado de Lalima, apesar de seus descendentes afirmarem que ele era nascido na
Cachoeirinha e ter ido pequeno para Lalima e depois retornado). Seria somente Lino de Oliveira
Metelo, antigo membro da polícia indígena, que ao ser indicado para a função de capitão,
permaneceria mais de 10 anos no cargo, dando maior estabilidade e fazendo cessar temporariamente
as lutas de sucessão. Lino por sua vez se casaria com uma ex-esposa de Ciriaco, a Benedita
Rodrigues (que abandonou Ciriaco para casar com Lino). Assim, Lino de Oliveira Metelo teria sido
o Cacique indicado pelo Encarregado do Posto do SPI com anuência do Conselho Tribal, logo após
a experiência das “eleições” promovidas pelo SPI terem “fracassado” diante das continuas disputas
estabelecidas nas aldeias como Cachoeirinha. Mas Lino de Oliveira Metelo não teria sumido do
cenário político local, como veremos adiante.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
292
Depois da saída de Lino de Oliveira Metelo o homem a assumir a posição de Cacique foi
Mário Pedro. Este teria abandonado o cargo de Cacique e ido morar em São Paulo (segundo
algumas versões relatadas em Cachoeirinha).
Na realidade, podemos dizer que um grupo de famílias estabeleceram um conjunto de
alianças matrimoniais, especialmente as famílias dos líderes indígenas que tornaram-se
caciques/capitães. As famílias dos caciques Vitorino Pereira da Silva estabeleceram trocas
matrimoniais com os membros das famílias Pedro e Antônio (no caso, Idalina Pedro que foi casada
com Turíbio Pereira da Silva) e Dalva da Silva, uma das filhas de Vitorino, que casou-se com
Guilherme Antonio. Idalina Pedro tinha dois irmãos, Geraldo Pedro e Antonio Pedro, sendo os pais
destes Pedro Elói e Aninha Joaquim. Mário Pedro casou-se com Rosalina Antonio, e João Niceto
foi casado com Leda Pedro.
Estas famílias é que ocupam a área que ficou conhecida como Cruzeiro. A facção política do
Cruzeiro é conseqüentemente aquela que reúne os líderes indígenas e grupos familiares locais que
conseguiram estabelecer com maior eficácia uma relação de colaboração/aliança com o SPI. Ao que
parece, as famílias que estabeleceram estas trocas matrimoniais, absorveram dois indivíduos que
tornaram-se “caciques” durante o segundo “drama de sucessão”; Ciriaco Júlio e Lino de Oliveira
Metelo; e é graças ao trabalho político e as relações de parentesco e aliança que este último soube
construir, que ele conseguiu agrupar no lado “leste” do Posto, um conjunto de grupos familiares,
que poderiam ter ascendência comum. A facção do “Cruzeiro”, tal como se apresenta nos anos
1980, e a organização política e cultural de Cachoeirinha indicam que este antigo líder e membro da
policia indígena, continuou exercendo forte influência na vida política da comunidade mesmo
depois de ter deixado a função de cacique em meados dos anos 1970. A vila Cruzeiro reuniria assim
os grupos familiares mais vinculados ao SPI/FUNAI, e aqueles que por mais tempo tinham exercido
o controle político da aldeia graças a essa relação.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
293
Para compreender a real importância da figura de Lino, construtor tanto de uma política de
alianças com o Estado quanto de um agrupamento residencial entre diferentes grupos familiares de
uma ou duas linhagens, em torno da sua atividade e liderança, é preciso observar a atual
composição (os grupos domésticos residentes) da antiga “Cruzeiro”. Os mapas 5 e 6 ilustram isso:
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
294
Mapa 5– Vila Santa Cruz.
Mapa 6 Vila Cruzeiro.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
295
1) Luiza Francelino (viúva de Ciriaco Júlio) 16) Airton Júlio e Vaneide Turíbio (filha de
Ademir Turíbio)
2) Elenilda Antonio (neta de Luiza Francelino) e
Enilson Albuquerque
17) Mário Albuquerque e sua esposa Maria Darci
Turíbio (irmã de Argemiro)
3) Hélcio Albuquerque e sua esposa Silvia Regina
Oliveira (filha de Marcos de Oliveira)
17-A) Simão da Silva e Lucila Brás
4) Marcos Oliveira e sua esposa Nancy Júlio 18) Ademir Turíbio e sua esposa Lucília Pedro
5) Jailce Oliveira filha de Marcos de Oliveira e seu
esposo Sebastião de Oliveira Costa (branco)
19) Tomás Balbino e sua esposa Paulina Barbosa.
6) Maria Helenice e sua filha, Ednara 20) Alírio de Oliveira e sua esposa Maria Joaquim
Pio.
7) Gilberto Turíbio e Agripina Júlio (filha de
Ciriaco Júlio)
21) Ariano de Oliveira e sua esposa Ramona da
Silva (estão em Campo Grande é o lote que
pertenceu a Lino Oliveira).
8) Ademar Turíbio 22) Elcio de Oliveira (filho de Alinor Oliveira) e
sua esposa Daniela Paiva)
9) Argemiro Turíbio, sua esposa Marlene Lipú
Gonçalves.
23) Danilo Paiva e sua esposa Nelsinha Vitor
(sogro e sogras de Élcio)
10) Venâncio Barbosa (viúvo de Dirce Turíbio,
irmã de Argemiro)
24) Dionísio Martins e sua esposa Cleide Oliveira
(filha de Alírio)
11) Leda Pedro (ex-esposa de João Niceto Júlio,
mãe de Airton Júlio)
25) Basílio Martins (irmão de Dionísio) e sua
esposa Regina Oliveira (filha de Alírio). Estão em
Campo Grande, sua filha mora no local.
11-A) Rosa Antônio (ex-mulher de Mário Pedro,
com seu filho Edílson Pedro, Nora e Netos.
26) José Antonio e sua esposa Marlene Oliveira
(filha de Alinor)
12) Cecílio Antonio com esposa e filhos. 27) Mariza Candelário (viúva de Alinor e Mãe de
Marlene Oliveira).
13) Bernardina Antonio 28) Tereza Salvador, filha de José Vaqueiro
(falecido)
14) Temiz Arruda e sua esposa Ruth Lemes 29) Ielmiro José (neto de Vaqueiro), com sua
esposa Cileide Vitor
15) Luiz Antonio e sua esposa e filhos. 30) João Niceto Júlio e filhos.
A antiga Cruzeiro compreendia as atuais vilas Cruzeiro, Santa Cruz e Rio Branco dos
mapas acima. Os lotes em que hoje estão Alírio de Oliveira e os lotes vizinhos dos seus irmãos
eram do seu pai, Lino. Algumas das famílias extensas que hoje se encontram nestas vilas, foram
reunidas por Lino, como por exemplo, a própria família de Dionísio Antonio. Segundo o
depoimento deste último, ele e seu pai moravam na roça até os anos 1950, quando o Lino convidou-
os para ir residir na Sede, que facilitaria a “escola” para as crianças. Guilherme Antonio e um
primo/irmão Eusébio Antonio transferiram-se com suas famílias para a Sede.
O grupo doméstico de Dionísio Antonio hoje é composto por uma família extensa de 4
gerações. Residem na mesma vila, em casas vizinhas, seu pai Guilherme Antônio com sua irmã (ex-
esposa do cacique do Babaçu, Zacarias Rodrigues) e os filhos e netos de Dionísio. Na mesma vila
moram também alguns cunhados como Horto Belizário, e genros, como Joelino Pereira. Os
membros da família Belizário, estão integrados no grupo de Dionísio. Guilherme e Eusébio Antonio
eram companheiros de Lino de Oliveira na realização do ritual Oheokoti.
Outra família que se mudou para aquela vila por convite de Lino, foi a família de Afonso
Pinto. Afonso Pinto é chefe de uma família extensa, residindo no seu lote ele, dois de seus filhos
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
296
com suas esposas e 3 filhas com seus maridos. A família de Afonso residia no Morrinho até os anos
1970, quando foi morar na Sede, por convite de Lino. Afonso Pinto tornou-se também companheiro
de Lino, Eusébio e Guilherme Antonio no Oheokoti.
Uma parte dos filhos de Lino de Oliveira se mantém residindo no mesmo “lote” que
pertencera a seu pai. Gilberto Turíbio e Agripina Júlio foram convidados para fixar residência ali,
depois de morar um tempo junto do capitão Timóteo, mas saíram e foram morar num lote ao lado
da casa do pai de Agripina, Ciriaco Júlio, que morava num lote vizinho ao de Lino Oliveira.
É interessante ver que os homens que ocuparam o cargo de cacique foram escolhidos quase
todos por Lino de Oliveira ou sua liderança:
“Eu na minha vida como qualidade de morador daqui de Cachoeirinha quando fui cacique em
1982, fui convidado através desse capitão Lino de Oliveira. E assim eu tomei posse em 1986 eu
sai, em 1988 eu voltei três anos de novo na minha vida de cacique.
A comunidade eu vi que tava precisando, eu fiz muito projeto grande, quando eu fui cacique,
nós colhemos arroz, feijão, essa máquina 290 que ta aí, foi do nosso projeto, teve um F4000 e
acabou noutro mão, e foi assim a minha vida e eu fiquei aqui até agora”. (Dionísio Antonio,
Março/2006)
Lino de Oliveira era membro do Conselho Tribal de João Niceto Júlio, e uma das figuras
que organizava o processo político e ao que parece, dava unidade para estas diferentes parentelas de
naati/caciques e que foram política e residencialmente agrupadas por sua iniciativa.
Outras lideranças foram preparadas por esta facção e seus principais “cabeças”, como
Argemiro Turíbio nos anos 1980, e como parece hoje em dia, um dos filho do Dionísio Antonio,
Adilson Antonio que tornou-se vice-cacique e um filho do ex-cacique Mário Pedro, que reside na
vila Cruzeiro, Edílson Pedro.
A própria análise da trajetória individual de Argemiro Turíbio, o último cacique do
Cruzeiro, mostra isso também:
“Primeiro quando comecei a entrar no movimento, eu comecei na Igreja, desde jovem,
participando do trabalho na Igreja, ai comecei a aprender ali, a participar de todos os
encontros, discussão dentro da Igreja, falando da palavra de Deus. Ai depois eu fui entrando,
aproximando das lideranças, quando tinha reunião, eu ia, participava... Depois mais tarde
comecei a organizar esporte (...) evento, danças nas festas eu fazia tudo isso... Qualquer
movimento assim social eu tava no meio, ajudando a organizar....
Quando você começou a acompanhar a liderança?
Isso foi demorado. (...) Ai depois fui crescendo, ai comecei participar, eu comecei sair, estudei
para fora, me formei, voltei pra cá... Quando sai daqui, eu já fazia tudo isso, ai sai 84, 85, 86,
pra fora, voltei, retornei para cá, aí comecei a trabalhar na educação, três anos como
professor, ai depois disso o pessoal me indicou para concorrer a eleição em 1988 ...
Quem o indicou para concorrer?
Mais os parentes, como o Dionísio, Alírio, Adolfo Pedro, algumas pessoas ligadas a gente. Ai
eu sai vitorioso em 1988, e fiquei até 1990.Em 1991 eu concorri para cacique, eu já era
vereador, eu ganhei mais quatro anos, ai comecei a trabalhar desse jeito.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
297
Quem fazia parte da sua liderança?
Cirilo Raimundo, Zacarias da Silva, Alírio Oliveira, Dionísio, Adolfo Pedro
Ai eu tentei eleição para vereador, e não consegui. Ai eu fiquei um ano lá no Morrinho
implantando um projeto de agricultura, horta na escola, lá no Morrinho, trabalhando lá, ai
depois disso eu tentei mais uma vez vê se conseguia eleger para vereador e não consegui, e
depois disso eu comecei a organizar uma associação, o nome dele hoje é ACIC..”. (Argemiro
Turíbio, Março/2006)
O grupo que se articulava em torno de Argemiro Turíbio, era composto pelos chefes das
famílias moradoras do “cruzeiro”, especialmente os líderes da comunidade nos anos anteriores.
Assim, entre 1910 e 1985, os caciques da Cachoeirinha foram recrutados entre um limitado grupo
de famílias, sendo que aqueles que não eram das famílias que antes forneciam os “caciques”, se
integraram em suas redes de parentesco e afinidade através de torças matrimoniais, como vimos
acima. Este grupo conseguiu manter-se no poder local durante um tempo importante, especialmente
depois da ascensão de Lino de Oliveira.
Os dramas de sucessão, aqui analisados, o primeiro passado no início do século, o segundo
em final dos anos 1950, e o drama da cisão e suecessão dos anos 1980 estavam inter-relacionados.
No início do século, a substituição de Benedito Polidório por Vitorino Pereira da Silva, marcou um
deslocamento de poder importante dentro da reserva também ocasionado pela mudança do regime
da transmissão hereditária da chefia para o regime de indicação unilateral. Nos anos 1950, depois
da morte do capitão Timóteo, outro drama de sucessão de desenvolveria. Emílio Polidório,
descendente da parentela derrocada do poder na Cachoeirinha disputaria a posição de Cacique com
lideranças emergentes. Ciriaco Julio e Lino Metelo participaram de um mesmo grupo vicinal e foi
este ultimo que conseguiu manter-se de forma estável na liderança. O terceiro drama de sucessão,
que resultou na cisão da Cachoeirinha, traz a tona conflitos que remontam a estes outros dramas e
lutas entre diferentes parentelas e grupos vicinais.
No terceiro “drama de sucessão dos anos 1970/80, descendentes dos Polidório e de Vitorino
Pereira da Silva se defrontaram politicamente, agrupados em diferentes facções: uma liderada por
Sabino Albuquerque e outra por João Niceto Júlio. De um lado um grupo de famílias que já estava
controlando o poder local há bastante tempo, de outro, um conjunto de grupos familiares que estava
disputando este poder.
Na realidade, a facção liderada por Sabino Albuquerque, era composta na sua grande
maioria por moradores da área da aldeia conhecida como “Mangao, por sua vez da parentela do
capitão Polidorio. As famílias que ocupam esta área e que serviram de base para sua mobilização
política, foram especialmente as famílias Albuquerque, Polidório e Muchacho. As relações
genealógicas dos líderes que passaram a combater a facção do cruzeiro nos anos 1980 e disputar o
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
298
poder e controle dos recursos dentro da aldeia, remontam aos Polidorio. Além disso, existia também
uma rixa entre a família Albuquerque e certas famílias da facção do cruzeiro.
Uma análise da história da família Albuquerque e informações genealógicas são encontradas
no trabalho de Ladeira (2001). Podemos perceber o seguinte:
Figura 7– Esquema Genealógico de Sabino Albuquerque.
1 Lili Albuquerque
6 Xavier Polidório 11 Cecilia
Muchacho
16 Esídio
Albuquerque
21 Genilda
2 Maria Angelina
Antonio
7 Leonardo
Polidório
12 Sabino
Albuquerque
17 Mário
Albuquerque
22 Genimara
3- José Polidório 8 Floriza Polidório 13 Rafael
Albuquerque
18 Almerinda
Albuquerque
23 - Salmir
4 Alexandre
Albuquerque
9 - 14 Alberto
Albuquerque
19 Marina
Albuquerque
24 Geni
5 Carlos Polidório 10 15 Hélio
Albuquerque
20 Genésia Pinto 25 Saulo
26 Samir
Sabino é filho de Alexandre Albuquerque, que é filho de Lili Albuquerque, um branco que
foi o primeiro marido de Maria Angelina Antonio, avó de Sabino. Este separou-se de Maria
Angelina em 1930-31. Maria Angelina Antonio casou-se novamente, com José Polidório (que é,
pelas informações de Roberto Cardoso, filho do capitão Polidório, o primeiro capitão de
Cachoeirinha). Alexandre é assim o fundador de um novo grupo familiar, os Albuquerque.
Alexandre casou-se com Cecília Muchacho, e teve oito filhos (6 homens e 2 mulheres). Hélio
casou-se com Idalina Polidório; Sabino casou-se com Genésia Pinto; Alberto casou-se com Maria
Aparecida Pedro; Esídio casou-se com Eulógia (uma branca); Rafael casou-se com Dominga
Américo; Mário casou-se com Maria Darci Turíbio; Almerinda e Marina casaram-se com homens
de fora da aldeia, não indígenas e residem em Campo Grande.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
299
A história da família Albuquerque indica que Alexandre era um índio dedicado ao trabalho e
comércio, criador de gado e empreendedor. Pelo que conseguimos levantar junto aos moradores de
Cachoeirinha, existia uma certa antipatia de alguns frente a figura de Alexandre, tanto pela sua
capacidade comercial quanto pela sua estratégia individual, que levava segundo alguns a não
participar em mutirões dentro da aldeia e atender a convocação para o trabalho feita pelo Capitão
Timóteo. Em 1954 aproximadamente Alexandre recebeu um convite para ir morar em uma fazenda
da região do rio Salobra, onde conseguiu uma criação de gado. Desta maneira, existia já um atrito
entre Alexandre alguns indígenas. Eles “Voltaram para aldeia em 1961. Uma volta conturbada, já
que o chefe da aldeia na época, capitão Julio Siriaco, recusava permissão para Alexandre
estabelecer novamente moradia na aldeia de Cachoeirinha” (Ladeira,2001, p. 47).
De acordo com as memórias dos filhos de Alexandre:
“ele alegava que por ter passado um tempo para fora ele não era mais índio, foi quando meu
pai falou com o compadre dele que era Chefe de Posto na época, sr. Américo. O chefe de Posto
teve que conversar muito com o cacique e mostrar todos os documentos do finado meu pai, que
era analfabeto.....se não fosse o Chefe de Posto o cacique atual na época não estava aceitando
ele .... Eu já não lembro muito bem dessa história, meu pai contava para mim: meu filho, foi
difícil de nós voltar novamente para a nossa área...então meu filho não sai daqui, fica aqui, aqui
você constrói a sua vida.”. ( Alberto Albuquerque, apud in Ladeira, p. 47)
Existiu um conflito entre Alexandre Albuquerque e o então Capitão Ciriaco Júlio, que tentou
proibir a entrada de Alexandre na área, o que só foi conseguido graças à intervenção do
Encarregado do Posto. Retornando para Cachoeirinha, ele conseguiu ainda acumular alguns bens,
que ficaram para seus filhos:
Quando o velho faleceu, vendemos as terras , meus irmãos se reuniu para vender essas terras,
aí teve a herança, aí ficou até hoje a gente tem um gadinho e aí que a turma fica com inveja com
o que a gente tem, sei que meu pai foi perseguido por causa de gado, então até hoje a turma tem
coragem de falar que a gente não é índio, minha mãe é índia e meu pai filho de índia... meu pai
não condeno que ele é brasileiro, não sei o que ele é, mas o pessoal de Albuquerque de
Miranda, coitado, todo mundo xinga ele de índio, de bugre.... acho que é mais inveja né,
ninguém pode ter nada aqui que a turma fica de olho em pé(Sabino, apud in Ladeira, 2001,
p. 48).
Desta maneira, a ascendência purutuye de Sabino foi (e na verdade ainda é) utilizada para
desqualificá-lo dentro da política aldeia. A experiência de enfrentamento com certos grupos
familiares, que dominavam a vida política em Cachoeirinha, por questões especificamente
individuais ou familiares, juntou-se ao fato de o pai de Sabino, Alexandre, ser enteado de José
Polidório, descendente de um antigo cacique e um naati.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
300
A ação política de Sabino foi motivada tanto pela sua vontade de auto-afirmação da família
Albuquerque dentro da aldeia
115
, quanto pela sua localização social e territorial, dentro de um
conjunto de famílias que residia no lado oeste do Posto, especialmente os Polidório e os Muchacho.
A ascensão política de Sabino coincidiu com o seu deslocamento para o “centro” da aldeia, já que
ele construiu uma grande casa com uma enorme varanda ao final da “vila principal”. Ele conseguiu
alcançar um padrão de vida econômico muito superior ao da média da população de Cachoeirinha,
tendo gado, carros, ônibus e caminhões e “terras” fora da aldeia. É como ele próprio descreve:
"Então é isso aí, é minha luta sempre adquirir as coisas pra deixar meu nome, pra não apagar
pros meus netos, essa é que é minha preocupação né, deixar a família Albuquerque
desprotegida né, quero que o meu filho seja considerado, por isso que eu luto pra adquirir
alguma coisa, por causa do começo da vida do meu pai aqui, disso eu tenho sentimento e graças
a Deus, eu tenho correspondido, e eu acho que daqui pra frente vai ser respeitado meu nome ..a
gente taí lutando pra adquirir mais terra pra comunidade, essa é a minha luta". (Sabino, apud
in Ladeira, p. 50).
Neste sentido, podemos falar que a parentela dos Albuquerque, iniciada com Alexandre, e
hoje composta por algumas dezenas de pessoas, foi integrada numa rede troca matrimoniais e
alianças políticas com as famílias que tradicionalmente ocupavam a área do Mangao, especialmente
os Muchacho e os Polidório.
As facções do Cruzeiro e do Mangao eram compostas por grupos domésticos que
integravam unidades político-territoriais mais amplas, os grupos vicinais que se constituíram em
conjuntos de ação política, seguindo certos critérios, especialmente as relações de parentesco dentro
de determinadas parentelas de naati. Estas facções foram construídas por um longo processo
político de alianças matrimoniais entre certas famílias da reserva de Cachoeirinha. Para entender o
funcionamento destas facções políticas, é preciso entender a constituição das “vilas” ou “bairros”
dentro de Cachoeirinha, que são esses grupos vicinais. Hoje em dia estes antigos “bairros” se
“fragmentaram” em diferentes “vilas”, indicando talvez uma tendência ainda maior a um tipo de
descentralização faccional, e uma composição de alianças altamente móvel, tanto entre as facções e
lideranças indígenas, quanto entre estas e grupos políticos e elites dirigentes locais e regionais.
Depois de 1986, o monopólio exercido pela facção do Cruzeiro foi quebrado; a facção do
Mangao, liderada por Sabino e aliada ao CTI, conseguiu eleger o cacique” por duas vezes
consecutivas. A cisão “Cruzeiro X Mangao” entre 1988 e 1991, que eclodiu por conta do controle
dos recursos do “caixa comunitário”, especialmente, foi um momento de crise provocada pela
115
Em todos os depoimentos gravados e em todas as conversas mantidas os filhos fizeram questão de manifestar sua
mágoa pela marginalidade de seu pai, Alexandre Albuquerque, na comunidade terena. Na verdade, seu pai, por ser
filho de branco, não poderia ser enquadrado em nenhuma das camadas sociais, já que a descendência, como vimos é
patrilinear. E, consequentemente, seus filhos também não. Mas, paradoxalmente, todos, com exceção do Ezídio,
procuram reforçar sua identidade terena lutando para fazer o nome Albuquerque, nos padrões atuais de pertencimento
de um grupo, como dos Xuna Xati, de onde saiam os "chefes de guerra". Daí o empenho de Sabino em ser eleito como
chefe e lutar para conseguir um grande feito para a comunidade:a ampliação do território indígena.” (Ladeira, op.cit,
p. 51).
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
301
quebra desta linha de sucessão dos caciques dentro da mesma facção e grupo vicinal. Nos anos
1990, a antiga facção do Cruzeiro só conseguiu eleger um Cacique, Argemiro Turíbio. Mesmo
assim ele foi tirado do cargo, sob circunstâncias que nós não conseguimos esclarecer, ficando em
seu lugar o vice-cacique, Cirilo Raimundo Pinto, casado com Nilza Júlio, uma das filhas de Hilário
Júlio, irmão de Ciriaco Júlio. Cirilo é filho de Pereira Pinto e Cristina Raimundo, que residiam na
antiga Cruzeiro (no lugar em que hoje reside Afonso Pinto), antes de mudar-se para o Morrinho.
Depois os caciques eleitos foram Esídio Albuquerque (1994-1998) e Sabino Albuquerque (1998-
2002) e Lourenço Muchacho (2002-2006), todos moradores da antiga área do Mangao. Somente em
2006 seria eleito Cirilo Raimundo, que apesar de residir do lado “oeste” do Posto, é relacionado por
parentesco e aliança política tradicionalmente a Dionísio Antonio, tanto que Adilson Antonio, filho
de Dionísio, tornou-se vice-Cacique e o próprio Dionísio faz parte da liderança, como membro do
conselho tribal.
Na realidade um processo de fragmentação da facção do cruzeiro se verificou,
principalmente após a morte de Lino de Oliveira, que ao que parece, era quem dava coesão ao
conjunto de famílias, permitindo sua constituição em conjuntos de ação política. Houveram
dissidências entre Dionísio Antonio que passou a liderar as famílias da Vila Santa Cruz, e Alírio de
Oliveira, que passou a liderar os moradores da Vila Cruzeiro. Outras crises entre estes grupos
familiares iriam se verificar em diferentes momentos, e muitos indivíduos iriam buscar alianças
com antigos adversários, como o Sabino, além do fato de que várias trocas matrimoniais se deram
entre os Albuquerque e os Turíbio, Antonio e Pedro.
Também na facção do Mangao um processo similar se verificou. Os irmãos, Esídio, Sabino
e Rafael Albuquerque entraram em conflito. Durante a nossa pesquisa de campo vimos depoimentos
sobre os conflitos entre Sabino e Esídio: “Sabino e seu irmão Esídio Albuquerque não se dão. Por
exemplo, na época que o Sabino era vereador, Inácio perguntou ao Sabino porque não fazia
projeto para a comunidade, e ele respondeu “o cacique não trabalha junto comigo”. (Inácio
Faustino, 2004), o que é corroborado (ver Ladeira 2001), que diz que Esídio é “o maior desafeto
político de Sabino”. Também continua existindo uma rixa entre Dionísio e Sabino, apesar de um
filho de Dionísio ser casado com uma filha de Sabino. Antigas lideranças de Sabino, como Sabino
Lipú, que foi vice-cacique, passaram a atuar com o grupo de Alírio e Argemiro. Assim, a
mobilidade dos indivíduos e grupos familiares, característico da organização faccional, se encontra
em Cachoeirinha. A disputa pelo controle dos recursos econômicos e políticos precipitou este
processo e seu desenvolvimento.
Os conflitos de sucessão dos anos 1980, quando uma facção liderada por Sabino
Albuquerque começou a desencadear uma política de oposição à facção dominante e à FUNAI, na
realidade não eclodiram somente em razão da política do “óleo e da semente”. No fundo deste
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
302
processo, estava uma outra questão: a da substituição de uma facção (composta por grupos
familiares que controlaram a política de Cachoeirinha por anos, através da colaboração direta com o
SPI/FUNAI) por outra, que incluía grupos familiares de uma parentela que foi deslocada da posição
política dominante, no processo de construção da reserva em 1904-1910. Além disso, existiam rixas
e rivalidades entre as famílias, em razão de diversos fatores, como o “exercício monopólico do
poder que ia desde a exclusão do acesso a recursos, até a repressão política e imposição de
situações vexatórias e formas de exclusão ideológica, como as fofocas e o não reconhecimento da
identidade indígena (como é o caso de Sabino). Esta rivalidade ganhou expressão territorial. A cisão
Cruzeiro X Mangao deve ser vista como um parte de um drama social, que na realidade reativa e
explicita conflitos e contradições históricas dentro da aldeia, que remontam aos primeiros dramas de
sucessão. É importante notar que durante muito tempo, esta forma de organização territorial dos
Terena em “bairros” ou grupos vicinais, de onde surgiam os tuuti, líderes políticos e religiosos, foi
ignorada. Estes bairros expressam a descentralização da autoridade política, e conseqüentemente
produzem uma grande instabilidade, levando aos contínuos conflitos de sucessão.
No cerne de todo este processo está à problemática do regime tutelar. O exercício do poder
tutelar dependia de uma colaboração continua do SPI/FUNAI com segmentos dos grupos indígenas.
O poder monopólico e centralizado era compartilhado com facções indígenas que exerciam este
poder, em nome de seus interesses e do Estado, excluindo outras facções locais. Os poderes
inerentes ao regime tutelar controlar o acesso ao território e movimentos dos indígenas, realizar a
gestão dos bens, e exercer a representação política tornaram-se objeto de contestação e disputa; as
facções contestavam os poderes e o regime tutelar porque contestavam o domínio das facções
rivais; assim, as forma de resistência contra a tutela são também formas de luta política interna, de
maneira que não faz nenhum sentido considerar a centralização política como um fator acessório ou
externo. Diferentemente das representações do discurso indigenista, que são reforçadas por certas
teses sociológicas, os conflitos entre os próprios indígenas não são a conseqüência de uma mera
intervenção externa. Na realidade a centralização estatal não eliminou a descentralização segmentar
(que compreendia conflitos entre os próprios indígenas), ao contrário, atuou sobre ela acentuou e
transformou numa descentralização segmentar-faccional.
O processo de imposição de uma estrutura de poder e chefia centralizada, assimilada em
parte pelos Terena, teve como contrapartida um processo de descentralização faccional. A
centralização levou ao faccionalismo; o favorecimento de um grupo de famílias recrutadas dentro
de certo grupo vicinal produziu uma cristalização do poder em uma “aristocracia indígena”; um
grupo que detinha privilégios e poderes especiais concedidos pelo Estado em razão de (e em quanto
durasse) sua colaboração para com as agências estatais, no caso, as instituições tutelares.
Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional
303
Esta descentralização surgiu também da própria política produtivista de formação de “novas
roças”, que era incentivada pelo SPI e FUNAI especialmente através da nova modalidade de
empreendimentos indigenistas, os projetos agrícolas. Os grupos domésticos deslocados para as
áreas de roça levavam consigo o modelo de organização social, e rapidamente as famílias se
transformaram em agrupamentos residenciais e conjuntos de ação política. A partir deste momento,
ocorreu uma pluralização das chefias, relativamente tolerada, mas não totalmente sancionada pela
FUNAI o que possibilitou o aparecimento de novas aldeias e caciques. Esta centralização política
coexiste assim com uma descentralização administrativa, que se tornaria também faccional, e ambas
são na realidade, causa e efeito uma da outra. O faccionalismo, conseqüência direta do regime
tutelar e também das estratégias de resistência e formas de organização social e cultural do grupo,
levaram a transformações significativas no regime tutelar, com a mudança em aspectos importantes
de sua configuração, ao mesmo tempo garantindo sua reprodução.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
304
Capítulo 6 A Co-gestão indígena e as micropolíticas de
colaboração e a resistência cotidiana.
“Meus povos temos que aprender a dirigir o barco, para nós possamos ser acreditado e
respeitado por “PURUTUYE”, por que um dia nós veremos a realização dos nossos trabalhos,
para que as nossas comunidades possam ver nos próprios olhos o que eu sonhei, porque eu
sinto muito quando eu vejo minha comunidade esquecida pelos projetos de nosso município. As
muitas vezes nós elegemos os “PURUTUYE”, que nunca teve retorno para os nossos povos,
porque eles não sabem o que nossas comunidades precisam, mas eu sei o que meu povo
lamenta, eu nasci e cresci nesta comunidade dos Terenas da aldeia Argola e grande
Cachoeirinha. É por isso que eu estou nesta luta, para ser candidato a vereador dos
“COPENÓTI”, para ser representante”.
Proposta Política do Candidato a Vereador Aldo da Silva para todos os povos indígenas Terena, 2004.
O processo de construção das facções indígenas e de resistência ao regime tutelar em
Cachoeirinha, não se esgotou na disputa pelo posto de cacique. Na realidade, este processo se
estende para diversos domínios: a política local, a política indigenista, o cotidiano das relações
sociais dentro e fora da aldeia. Iremos analisar agora alguns dos processos sociais mais importantes
ocorridos em Cachoeirinha: a formação das “associações” indígenas; a luta pela autonomia dos
“setores” contra o cacique geral; o novo processo de territorialização desencadeado pela “retomada”
de terras tradicionais.
As idéias sintetizadas no lema “vamos dirigir o barco” do candidato indígena Aldo da Silva
mostram essa vontade política dos índios de “ocuparem espaços”, de “gerirem” instituições e
recursos materiais e simbólicos. Iremos descrever e analisar como as transformações nas relações
entre Índios e Estado e no próprio regime tutelar, são marcadas por múltiplas contradições que
levam ao aprofundamento das tensões entre as formas de resistência e o projeto de co-gestão
indígena, e ao mesmo tempo como esta última tem exigido um fortalecimento das “dominações
horizontais” no contexto das aldeias de Cachoeirinha.
6.1 - A formação das Associações Indígenas
Iremos descrever abaixo a história de duas associações indígenas (AITECA e ACIC)
formadas nos anos 1980/1990 como produtos da luta verificada entre duas grandes facções
indígenas.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
305
AITECA
Atualmente Cachoeirinha possui praticamente uma dezena das chamadas “Associações”.
Mas a maior parte destas associações indígenas tem existência efêmera; algumas se formam e logo
desaparecem, muitas vezes sequer conseguem obter registro legal e realizar sua principal função
possibilitar a representação dos grupos indígenas perante organismos estatais e outras organizações
e instituições sociais e obter “recursos” e “projetos” para a “comunidade”. A mais sólida é a
AITECA (Associação Indígena Terena da Cachoeirinha), que dispõe de Sede própria, 2 tratores e
maquinário. Algumas outras Associações existem na Sede, como a ACIC (Associação da
Comunidade Indígena Terena de Cachoeirinha).
A AITECA foi constituída em outubro de 1989, na mesma conjuntura em que Cachoeirinha
apresentava a cisão entre “Cruzeiro e Mangao”, lutas faccionais e conflitos de sucessão. A facção
de Sabino Albuquerque, que já havia estabelecido uma aliança política com o CTI, consolida esta
relação e o processo de “ruptura política” com a FUNAI, ao implementar o processo de constituição
desta nova organização:
“Ata da Assembléia Geral de Constituição da Associação Indígena Terena de Cachoeirinha.
Aos 12 (doze) dias do mês de Outubro, do ano de 1989 no local da reunião, sito na Aldeia
Cachoeirinha município de Miranda, estado do Mato Grosso do Sul, reuniram-se as pessoas a
seguir indicadas, com o propósito de constituírem uma associação de produtores rurais
indígenas, sob a forma de uma sociedade civil sem fins lucrativos.
Para coordenar os trabalhos, a Assembléia escolheu, por aclamação, o senhor Gaudêncio
Henrique que convidou a mim Luís Cláudio Bona, para lavrar esta ata. Seguidamente se
procedeu a leitura, discussão e esclarecimentos finais do estatuto social, o que foi feito artigo
por artigo. O Estatuto foi aprovado pelo voto de todas as pessoas anteriormente identificadas
no prosseguimento dos trabalhos. A assembléia procedeu à eleição dos primeiros membros da
Diretoria: Diretor Presidente: Sabino Albuquerque; Diretor Vice-Presidente: Alberto
Albuquerque; 1 e 2 Diretores Secretários: respectivamente Elcio Albuquerque e Gilberto
Augusto;1 e 2 Diretores Tesoureiros, respectivamente Gaudêncio Henrique e Aliana Alfredo
Pinto; para membros efetivos do conselho fiscal Hélio Albuquerque, Bento Silvério e Maria
Aparecida; como suplentes do Conselho Fiscal, Cecílio Lipú, Milton Pires e Sabino Lipú. Todos
os membros já eleitos já se encontram devidamente identificados nesta ata. Após a eleição e
tomada a posse de todos os membros, o presidente da mesa declarou definitivamente constituída
a Associação Indígena Terena da Cachoeirinha AITECA com administração e Sede na aldeia
da Cachoeirinha, município de Miranda, Estado do Mato Grosso do Sul, sociedade civil sem
fins lucrativos, criada ao abrigo do Código Civil brasileiro que terá como objetivo a prestação
de quaisquer serviços que possam contribuir para o fomento e racionalização das explorações
agropecuárias e artesanais em geral e para melhorar as condições de vida de seus associados”.
(Ata de Fundação da AITECA, 1989).
A escolha de Sabino Albuquerque para presidente, seu irmão Alberto para vice, seu sobrinho
Élcio para secretário, e seu irmão Hélio para Conselho Fiscal, marcam a proeminência da família
Albuquerque na fundação desta associação. Gaudêncio Henrique era um antigo companheiro de
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
306
Sabino, sendo presidente do seu Conselho Tribal e também articulador importante dentro da facção
em meados dos anos 1980.
Nos documentos de fundação da AITECA (ata e estatuto) estão os nomes de 47 pessoas (28
homens e 19 mulheres). Destes indivíduos destacam-se 8 da família Polidório (7 mulheres e 1
homem) e 8 da família Albuquerque (7 homens e 1 mulher). Abaixo podemos ver o quadro
completo dos fundadores:
Gaudêncio
Henrique, 39
anos
Antonio da Silva, 44
anos
Ricardo Pinto, 56
anos
Feliana Lemes, 34
anos
Maria Aparecida
Pedro, 38 anos
Laurindo José
Muchacho, 43
anos
Elias Antonio, 42
anos
Rafael Albuquerque,
58 anos
Eniá Polidório, 43
anos
Letícia Polidório, 54
anos
Antonio
Muchacho, 74
anos
Hélio Albuquerque,
52 anos
Milton Pires, 39 anos Sebastiana Polidório,
30 anos
Cláudia Timóteo, 60
anos.
Camilo
Henrique, 62
anos
Sabino Albuquerque,
40 anos
Aleixo Lemes, 59
anos
Dilma da Silva, 27
anos
Maria Fátima Canale
15 anos
Cecílio Lipú Alberto Albuquerque,
37 anos
Assunção Pedro, 38
anos.
Lucia Pereira, 69
anos.
Valdelina Pereira 17
anos
Cesário Canali
Barbosa, 64 anos
Gilberto Augusto, 37
anos
Esídio Albuquerque,
43 anos
Soeli Polidório, 29
anos
Eusinda
Albuquerque, 17
anos.
João Lipú, 74
anos
Elcio Albuquerque,
28 anos.
Mário Albuquerque,
39 anos.
Cândida da Silva, 39
anos
Aliana Alfredo
Pinto, 30 anos
Ramão Vitor, 31
anos
Sabino Lipú, 45 anos Alberto Polidório, 75
anos
Emiliana da Silva, 56
anos
Otacílio Canali,
49 anos
Bento Silvério, 33
anos
Genésia Pinto, 36
anos
Feliciana Polidório,
39 anos.
Marcelino da
Silva,
44 anos
Jacinto Samuel, 37
anos
Idalina Polidório, 44
anos
Donalita Polidório, 54
anos
Na realidade tratam-se de algumas famílias inter-relacionadas por parentesco e que seguem
também um padrão de co-residência. Além dos membros das famílias Albuquerque e Polidório,
estavam entre os fundadores 5 membros da família “Silva”, 2 membros da família “Muchacho”, 2
membros da família “Henrique” e 3 membros das famílias “Lipú”, “Pinto” e “Canali” (e indivíduos
de sobrenome Lemes, Pires, Pereira, Vitor, Pedro e Timóteo). Os indivíduos acima citados nos
documentos são oriundos de famílias que mantêm trocas matrimoniais e estão inter-relacionadas por
parentesco há algumas gerações, além de manterem formas de cooperação econômica e ação
política comuns. Enquanto os irmãos e a família Albuquerque se destacam como articuladores
políticos das facções e da iniciativa de formação da nova associação, a família Polidório (de um
antigo naati), figura como uma parentela extensa na qual os diferentes indivíduos e famílias buscam
esposas e alianças políticas e matrimoniais. A análise interna da composição deste grupo irá revelar
exatamente isto.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
307
Essas famílias estão fixadas, praticamente todas elas, na área ou nas vilas da antiga
“Mangao”, e algumas delas são da aldeia Morrinho. Os irmãos Laurindo José Muchacho e Antonio
Muchacho, por exemplo, residiam no que hoje é a “Vila América”. Os irmãos Albuquerque
residiam a princípio no Morrinho e alguns deles ainda moram numa área mais retirada (como Esídio
Albuquerque que mora na área conhecida como Carrapatinho e Rafael Albuquerque, que mora nos
limites da Sede com o Morrinho, sendo que Sabino se transferiu para a Sede, vindo a construir sua
casa no centro da aldeia). Uma exceção importante é a de Ricardo Pinto. Ele residia com sua família
na antiga área do “Cruzeiro”. Mas é importante indicar que ele e sua família nuclear se tornaram
uma base de apoio político de Sabino Albuquerque, que casou-se com Genésia Pinto, uma das filhas
de Ricardo sendo assim “genro” deste último. Genésia é também uma das fundadoras da AITECA,
assim como sua irmã, Aliana Alfredo Pinto que foi inclusive indicada para a tesouraria da AITECA
nesta primeira gestão.
Já Hélio Albuquerque, um dos irmãos de Sabino era casado com Idalina Polidório, filha de
Alberto Polidório e Júlia Pereira. Tanto Alberto como Idalina Polidório (e suas irmãs, Feliciana,
Sebastiana, Donalita e Soeli Polidório) estão entre os fundadores da AITECA. A parentela de
Alberto Polidório, sogro de Hélio Albuquerque, reforçou assim a base de mobilização desta
associação. Antonio Muchacho, um dos fundadores da AITECA, é pai de Mariana Muchacho
casada com Assunção Pedro, outro dos fundadores da AITECA, ou seja, mais uma vez a relação
“sogro-genro” sustenta a ação política e organização indígena. Lourenço Muchacho, que viria a ser
cacique de Cachoeirinha 13 anos depois é também filho de Antonio Muchacho, e por sua vez é
casado com Luzia Albuquerque, uma das filhas de Hélio Albuquerque, irmão de Sabino.
A criação desta Associação deu expressão formal para as bases da mobilização política
Terena (relações de parentesco e vizinhança), de forma que as facções políticas constituídas para a
luta pelo poder local dentro da aldeia, se valeram da formação deste tipo de organização como uma
tática de resistência contra os esquemas de distribuição de poder impostos pela FUNAI e pelo
regime tutelar. A formação da Associação visava garantir a auto-representação indígena perante a
sociedade e o Estado em meio à cisão da aldeia indica isto.
Elcio Albuquerque, que foi secretário da AITECA por mais de 10 anos, disse sobre a
história desta associação: “existia a briga de duas facções de caciques, uma era amparada pela
FUNAI, tinha maquinário, semente, óleo e outra não. (...) Era conflitado, se pegavam na reunião,
se pegavam muito. Tinha um chefe de posto que dormia com duas carabinas e as janelas pregadas.
(... )O clima era tenso, era muito perigoso, o Dionísio tinha o apoio da FUNAI, que não apoiava
quem ficava do lado do Sabino, não tinha recurso para lavoura, nem, trator nem semente, por isso
que fundou a AITECA, por causa desse conflito”. " (Elcio Albuquerque, 2004, 2006).
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
308
Quer dizer, a monopolização dos recursos e poderes garantida a certas facções indígenas
através de uma relação de colaboração/aliança com a FUNAI, e que somava-se a rixas existentes
entre grupos familiares de diferentes vilas, é que levou não somente a cisão entre “Cruzeiro e
Mangao”, mas também a formação de associações como parte de uma política de oposição às
facções indígenas dominantes na política aldeã e também de oposição a FUNAI, como vemos pelo
depoimento de Sabino Albuquerque:
Como foi a construção da AITECA?
“A AITECA foi nós que iniciou o Governo queria que fizesse, tem até uma emenda, depois
falaram assim nós tem que fazer associação pro Governador, pro Estado, pra poder atender o
grupo, vai mudar a FUNAI e ai FUNAI não queria ouvir nós, queria bater pé, fazer o que quer,
dominar o cacique, dominar a comunidade. Pra fazer a demarcação, onde foi a primeira
associação que existiu aqui foi a AITECA. Ai foi isso. Trabalhando, compramos trator.
O que eu queria mesmo é essa regulamentação que tá na mão do ministro que a gente tá ficando
velho, o que eu queria mais era deixar um histórico para minha família, o que eu queria realizar
esse trabalho até agora, tem muitas pessoas brancos... Isso que eu queria, pra comunidade
branca ver que o índio tem condição de trabalhar sozinho. (Sabino Albuquerque,
Outubro/2004).
Vemos pelo discurso de Sabino, que a criação da AITECA estava associada a diversos
elementos: 1) a oposição a “dominação da FUNAI sobre o Cacique”;2) a vontade política de
encaminhar a luta pela redefinição dos limites de Cachoeirinha, a luta pela terra; 3) a compra de
maquinário, especialmente de tratores; 4) deixar um “histórico” para a família e ao mesmo tempo
garantir a auto-afirmação da capacidade indígena perante a sociedade regional “branca”. Este
discurso sintetiza grande parte das idéias, símbolos, interesses, práticas e questões implicadas nas
formações das associações indígenas.
A AITECA surgiu assim tendo por base um conjunto de famílias integrantes de certos
grupos vicinais, algumas delas muito antigas e importantes dentro de Cachoeirinha; na realidade, foi
a facção do Mangao que através da aliança estabelecida com o CTI (num contexto em que a disputa
com a facção rival aliada a FUNAI estava extremamente acirrada) construiu a AITECA. A
AITECA é fruto desta aliança política com um naquele momento - novo ator histórico, que
possibilitava outros canais de recursos materiais e espaços políticos. Ao longo dos anos 1990,
AITECA desenvolveria ainda outros projetos voltados para Agricultura, e hoje ela continua em
atividade.
Analisando o livro ata da AITECA, pudemos ver que ela manteve suas atividades e reuniões
regularmente ao longo de 15 anos. Foram pelo menos 24 assembléias entre 1992 e 2003 e ainda 6
reuniões de diretoria. O número de presentes nas assembléias oscila bastante ao longo dos anos. O
quadro abaixo permite uma visualização das atividades da AITECA registradas em seu livro ata,
constando os temários e o número de presentes (quando foi possível contabilizar esta informação).
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
309
1992 1993 1994 1996
Assembléia 17/04/1992 admissão
de novos membros. : Sabino Lipú,
Elias Antonio e Antonio da Silva
demitiram-se da AITECA.
Assembléia 25/04/1993
assembléia de eleição de
diretoria. Foi eleito para
presidente Esídio
Albuquerque, vice Cecílio
Lipú;
Assembléia 07/07/1993
emenda de admissão de
novos membros,
Assembléia 01/05/1994
a pauta do dia. Sendo o
ponto principal a
renovação do mandato da
atual diretoria e discussão
sobre alteração do artigo
27 parágrafo 18 dos
estatutos.
46 presentes.
Assembléia 01/05/1994
às 11:45h, para deliberar
sobre prorrogação de prazo
de mandato da Diretoria.
Aprovada mudança de
mandato para 4 anos.
Assembléia
08/10/1996
reunião com
representantes do
Governo
Estadual. 22
presentes.
1997 1998 2000 2001
Assembléia 09/05/1997 discute o
trabalho na lavoura e o repasse de
recursos 31 presentes
Assembléia 28/01/1997 Debate a
dificuldade da AITECA na gestão
do prefeito.
Assembléia 24/05/1997 discute a
adesão de novos membros. 9
Presentes.
Assembléia 30/06/1997 discute a
adesão de novos membros e
prioridade no atendimento com o
maquinário da AITECA.
30 presentes
Assembléia 07/07/1997 informe
do presidente Esídio sobre obtenção
de recursos como Cacique e
Presidente para a AITECA.
41 presentes
Assembléia 04/08/1997 - reunião
extraordinária da diretoria/troca de 4
touros por tanque de combustível de
5.000 litros (Cecílio Lipú,Antonio
Muchacho e outros)
Assembléia 06/08/1997
assembléia geral aprova troca do
tanque de combustível.
20 presentes (Sem Sabino)
Assembléia 15/09/1997 na Gleba
da AITECA,
13 presentes.
Assembléia 17/09/1997 filiação de
novos sócios.
Assembléia 13/03/1998
discute a sucessão do
presidente da AITECA.
Informa dos “projetos”.
32 presentes
Assembléia 23/04/1998
debate sobre a sucessão
na AITECA:candidatos:
Mario, Esidio, Alberto
Albuquerque.
42 presentes
Assembléia 26/04/1998
eleição da AITECA. É
eleito o Alberto
Albuquerque com 35
votos; Mario tem 20 e
Esídio tem 13 (2 votos
nulos).
Assembléia 27/0/1998
posse da nova diretoria da
AITECA. Fala da
necessidade de integrar
efetivamente as mulheres
na AITECA, por estarem
ausentes das assembléias
e etc. 40 presentes.
26/07/2000 reunião
extraordinária da Diretoria,
devido ao falecimento de
Alberto Albuquerque.
Criticas da diretoria ao
antigo presidente.
Assembléia
21/03/2001
pauta, eleição do
presidente da
AITECA. Eleito
Mário
Albuquerque por
unanimidade.
49 presentes.
Assembléia
25/03/2001
posse da nova
diretoria.
37 presentes
Assembléia
04/06/2001
reunião com
representante do
CTI para discutir
projeto agrícola
(viveiro de mudas
de arvores de lei e
frutíferas).
24 presentes
2002 2003
06/05/2002 reunião de diretoria.
Coloca que o Mário Albuquerque
para se candidatar a Cacique deverá
deixar o cargo de presidente da
AITECA.
15/11/2002 reunião de diretoria.
05/01/2003 reunião de diretoria.
Assembléia 07/01/2003 , assuntos relativos a trator.
36 presentes.
27/01/2003 reunião de diretoria com o CTI, para analisar os projetos em
comum. Rogério Resende reclama das fofocas e discute-se a parceria com o
CTI irá continuar ou não. Projeto com ceramistas a ser desenvolvido pela
antropóloga Bernadete.
28/01/2003 reunião de diretoria, conflito da câmera com Elcio
Albuquerque, que diz estar sendo tratado como “ladrão” pela atual diretoria.
Assembléia Geral discute projetos com o CTI. Elcio defende aliança com
o Governo Estadual através da parceria com, o CTI. 34 presentes.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
310
Com relação ao quadro de associados, verifica-se tanto a admissão de novos membros
quanto a demissão de fundadores, como acontece na assembléia de 1992, quando Sabino Lipú e
Elias Antonio o primeiro foi vice-cacique de Sabino Albuquerque, mas mudaria de “facção”.
Sabino Lipú é irmão de Aracy Gonçalves Lipú, mãe de Marlene Lipú, que viria a casar-se com
Argemiro Turíbio (morador e membro da facção do “Cruzeiro”), e aderiu à Associação fundada
naquele mesmo ano pelo grupo do Cruzeiro. Elias Antonio, que foi presidente do Conselho Tribal
do Morrinho, também entraria para tal associação.
Com relação ao temário das assembléias é interessante observar que estes são referidos
exclusivamente a assuntos que envolvem a produção agropecuária; são dois projetos discutidos no
ano de 2001, um relativo a formação de um viveiro de mudas de árvores frutíferas e madeiras de lei
e outras envolvendo as mulheres ceramistas, ambos do CTI. Discussões sobre a aquisição de
tratores, maquinários, óleo e semente também são feitas. Os únicos pontos que não dizem respeito a
tais questões, são relativos à política e negociação com Governos e FUNAI ou então a sucessão do
presidente da associação.
O quadro permite ver que foram os irmãos Albuquerque que se revezaram na presidência da
AITECA entre 1989 e 2003; primeiramente Sabino, depois Esídio, Alberto e Mário Albuquerque. E
neste aspecto (da sucessão do presidente da associação) que é interessante ver que mesmo dentro
das associações os conflitos políticos apareceram, com relação a definição do presidente.
Os irmãos Albuquerque entraram numa dura disputa pelo controle da Associação. Na
assembléia da AITECA de 01/05/1994, vemos este debate.
“Em seguida foi apresentada a pauta do dia. Sendo o ponto principal a renovação do mandato
da atual diretoria e discussão sobre alteração do artigo 27 parágrafo 18 dos estatutos, o que só
poderá ser feito em Assembléia Geral extraordinária com um mínimo de 2/3 dos sócios
presentes.
Abriu-se a discussão com a argumentação de Sabino que falou ser contrário a prorrogação do
mandato do Esídio por ele estar se candidatando também à capitania da aldeia, Sabino
reclamou que sendo ele o representante da AITECA, eleito vereador, ficou isolado pelo Grupo.
Surgiram protestos de alguns presentes e do atual presidente, que argumentou que o assunto em
pauta não tem nada a ver com a vereança do Sabino e com a disputa da capitania. O
Coordenador garantiu a palavra ao Sabino para que se manifestasse. A discussão desse tema
ficaria para a diretoria decidir com encaminhá-lo. Sabino argumentou que seus objetivos são os
de garantir os direitos dos associados. Ele acha que acumular dois cargos seria prejudicial a
AITECA. Houve nova discussão, sem ordem de falação. (...)
Sabino ainda falou que não está sendo convidado para as reuniões, nem sua mulher, que é
associada e do grupo de ceramistas. Novamente foi interrompido e o coordenador pediu para
garantirem a palavra a quem está falando. Rafael rebateu falando que o Sabino já teve dois
cargos antes e que agora ele não quer que o Esídio tenha e que isto foi uma escolha da
comunidade.
Sabino reclamou que não foi chamado para a escolha de capitão dizendo que fizeram uma
escolha fechada e que Esídio tinha oferecido o cargo de cabeçante para outros. Foi contestado
mas disse ter provas.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
311
Teve manifestação garantindo que a escolha do Esídio para os dois cargos foi do povo, assim
como fizeram para o Sabino. Novo tumulto e o Esídio disse que já esperava esta manifestação
do Sabino. Apesar de que deixaram ele falar e ele mesmo está demonstrando ser o agitador.
Sabino argumentou que no mínimo devia assumir o cargo de vice da Aiteca para não haver
acúmulo de cargos e que agora já se mostra que não estão dando conta de preparar as áreas de
roças, que ficam atendendo outra aldeia, deixando pra trás os associados. Rafael contestou e
mais outros, dizendo que no tempo dele é que não podiam fazer roça direito porque Sabino não
administrava as máquinas e que várias vezes usava só para seu benefício. Hélio comentou que a
escolha do Conselho da capitania será feita à parte da associação para que não tenha mistura
com o conselho da Aiteca. Falou também de que é uma pessoa bem aceita pelos adversários e
que o Sabino não é: o pessoal tem desconfiança.”
Sabino entra em choque direto com seu irmão Esídio, que é escolhido tanto para a
presidência da AITECA quanto para ser candidato a “capitania”, ou seja, para disputar as eleições
para cacique (que acabaria vencendo em 1994). A assembléia de 01/05 transcorreria em clima
acirrado, com interrupções das intervenções dos diferentes grupos em disputa, Sabino denuncia que
a diretoria marca as reuniões no dia das sessões da câmara (às segunda-feira), impossibilitando-o de
participar. Rafael Albuquerque e Esídio rebatem as acusações de Sabino. Uma assembléia
extraordinária é convocada para o mesmo dia, 15 minutos após o termino da primeira, que contou
com 46 associados presentes. Ao fim, é mudado o mandato do presidente da associação, que deixa
de ser de 1 ano para ser de 4 anos. Sabino e Esídio passam a estar em lados políticos opostos. A
AITECA por sua vez, e os diversos grupos familiares que compõem os seus quadros conseguem
garantir mais uma vez a eleição do seu candidato a cacique.
Assim, ao longo da década de 1990, as associações passam a desempenhar um papel cada
vez mais importante: a princípio, elas surgem como uma forma de escapar ao controle exercido pela
FUNAI sobre o Cacique (através das trocas de “óleo e semente” por “obediência e lealdade
política” ); num segundo momento, a AITECA torna-se um espaço de articulação para a conquista
da poder político local e de interação com a FUNAI, já que é no âmbito da associação, que se
decide quem será o candidato a Cacique, por exemplo. Entretanto, as estratégias individuais não
são diluídas nesta associação. Os conflitos entre os irmãos Albuquerque revelam isso; as facções
políticas se multiplicam e os conflitos eclodem dentro da própria associação. A vontade de um líder
de ocupar um cargo ou posição de poder (posto de presidente da associação, cargo de vereador ou
cacique) criaram cisões no interior mesmo das associações. Além disso, o estabelecimento de novas
relações de parentesco e afinidade, possibilitaram também a mudança de facções e associações de
alguns indivíduos, como Sabino Lipú, que havia sido vice-cacique de Sabino Albuquerque entre
1988-1991, ou seja, como membro da facção do “Mangao”. Entre os anos de 2000 e 2006, a
AITECA continuaria como as outras associações, a desempenhar um papel importante, tanto nas
questões relativas a produção quanto a política local. A formação desta Associação abriu caminho
para o desenvolvimento de outras associações similares, como veremos abaixo.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
312
“O caminho a ser seguido”: a criação da ACIC
A Associação da Comunidade Indígena Cachoeirinha foi criada em 23/09/1992. A
assembléia foi realizada na Sede do Posto Indígena da FUNAI. Assim é descrita a assembléia na ata
de fundação da organização:
“As oitos horas e trinta minutos do dia 23 de setembro de um mil novecentos e noventa e dois,
na Sede do Posto Indígena Cachoeirinha realizou-se a reunião das lideranças da comunidade
de Cachoeirinha pra assembléia geral para discutirem quanto a criação de uma associação por
motivo de dificuldade que as lideranças vinham enfrentando nas suas reivindicações, assim
sendo analisado e discutido e resolveram criar a associação para facilitar qualquer trabalho a
serem realizado na Comunidade, assim criou-se a associação denominado “A.C.I.C.”,
Associação da Comunidade Indígena de Cachoeirinha e para definição da sua composição esta
mesma reunião foi presidida pelo Cacique Geral sr. Argemiro Turíbio, iniciando que a mesma
fora convocada para escolher a composição da diretoria da associação, salientem-se que os que
forem se associar não poderão sair para trabalhar fora da aldeia, para não complicar a
situação. E na mesma pauta frisou-se ainda que futuramente os associados terão que colaborar
para a compra de um trator, através da união de todos e todos os líderes da Comunidade
Argola, Babaçu, Morrinho e Sede decidiram pela criação dessa associação. (...) (Livro Ata da
ACIC, p. 2)
Os documentos da entidade indicam que assembléia foi realizada com a presença dos
caciques da Argola, Babaçu, Morrinho e Sede. O nome do indicado para presidir a assembléia de
fundação foi o então Cacique Geral, Argemiro Turíbio. Podemos ver também que as motivações
para a formação da “associação” se relacionam à percepção que os índios estavam tendo sobre a
dificuldade de obter recursos e implementos agrícolas. Na definição dos objetivos/atividades da
associação consta apenas a seguinte indicação: “...e uma das principais atividades da associação
será de garantir o aumento da produção e de boa qualidade de vida e aquisição de implementos
agrícolas”. (Livro Ata da ACIC, p. 2).
A ACIC se forma com o objetivo de reunir os indígenas para organização do trabalho e
produção, para obtenção de recursos externos e para a aquisição de tecnologia que permitisse o
aumento da capacidade das forças produtivas locais. A presença dos 4 caciques de Cachoeirinha,
indica que esta associação era pensada como “representativa” da comunidade indígena como um
todo.
Mas analisando a composição dos associados, e os nomes indicados pela assembléia para os
órgãos diretivos da entidade, veremos que esta associação se produz no seio de uma rede particular
de grupos de parentesco, que formaram num certo contexto, conjuntos de ação, com objetivos
determinados. A ação continuada destes conjuntos estruturados em tornos destes grupos de
parentesco e certas lideranças é que podemos chamar de uma facção política local.
Na estrutura organizacional da ACIC foi indicado um “Conselho Consultivo”, composto
pelos seguintes membros: Alírio de Oliveira Metelo (presidente), Isidoro Lemes, Luis Martins da
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
313
Silva, João Miguel, João Niceto e Temiz Arruda. Como membros do Conselho Fiscal, Félix
Cândido Antonio, Elias Antonio, Dionísio Antonio, Cecílio Antonio e Venâncio Barbosa. Na
diretoria executiva Mamédio Pedro, Raul Félix Antônio, Daniel Pinto e Sabino Lipú. Na assembléia
de fundação 53 homens assinaram o livro ata, sendo assim os associados fundadores, como
podemos ver abaixo.
Danilo Paiva Zacarias da Silva Sebastião Miguel Lírio Lemes Porfírio Martins
Cecílio Antonio Isidoro Lemes Basílio Martins Bartolino da Silva Isidoro Lemes
Venâncio Barbosa Sabino Lipú
Maurílio Pedro
Ariano Rodrigues
Metello
Albertino Júlio Antonio Lemes
Temiz de Arruda Egídio Barbosa Dorival Antonio Ramão da Silva Júlio Martins
Felix Antonio Simão da Silva Odenir Barbosa Acácio Muchacho Florentino Martins
Adão de Oliveira Marcos de Oliveira Alírio de Oliveira João Martins Sebastião Vieira
Raul Antonio Daniel Pinto
Afonso Pinto
Reinaldo de Oliveira João Miguel Gilberto Augusto
Pedro Manoel Cirilo Raimundo Alinor de Oliveira Mário Lemes Adailton Júlio
Luis Martins da
Silva
Robson Júlio Antonio Júlio Dionísio Antonio Varmedir Antonio
Elias Antonio Admir Turíbio Adão Joaquim Maurício Antonio Gilberto Turíbio
Mas se observamos atentamente a sua composição, veremos que elas fornecem informações
importantes. No seu conselho consultivo estão Alírio de Oliveira Metelo e João Niceto, os membros
da facção do cruzeiro. No Conselho Fiscal estavam Félix Cândio Antonio, um dos fundadores da
Igreja Uniedas e presidente do Conselho Tribal de Dionísio Antonio, Elias Antonio, velho dirigente
da Igreja Católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, e Dionísio Antonio, ex-cacique de
Cachoeirinha, também nos anos 1980, e principal líder da facção do cruzeiro.
Podemos perceber que entre os associados fundadores da ACIC, se destacam algumas
famílias: a família Antonio (com seis membros), a família Oliveira Metelo (com seis membros), a
família Lemes com 5 membros, a família Pinto com 4 membros, a família Júlio com 3 membros, e a
família Turíbio com 3 membros.
Na verdade, estes indivíduos estão inter-relacionados por parentesco, além de
compartilharem atividades mágico-religiosas e políticas. Argemiro Turíbio, que então era o Cacique
Geral, e presidiu a assembléia de fundação da ACIC, é filho de uma das irmãs de Alírio, e
conseqüentemente, neto de Lino de Oliveira Metelo. Dionísio Antonio, é outro ex-cacique, e foi ele
quem disputou no final dos anos 1980, com Sabino Albuquerque, a posição de Cacique Geral,
durante o período em que a Sede ficou “cindida” e com dois “Caciques”.
Ao longo dos anos 1990, a ACIC manteve também suas atividades. O quadro abaixo mostra
as atividades registradas em ata, num total de 6 assembléias num período de 4 anos:
1993 1994
Assembléia de 31/0/1993 reunião realizada na escola
Nicolau Horta Barbosa. Delibera sobre roça coletiva
dos associados. 30 membros presentes
Assembléia 23/04/1994 eleição de nova diretoria, 73
membros presentes na assembléia
Assembléia 23/06/1994,
na casa de Dionísio, que
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
314
Assembléia de 02/02/1993, em assembléia realizada no
PI Cachoeirinha, sob presidência de Adailton Júlio.
Desligaram-se da associação Cirilo Raimundo, Antonio
Joaquim e Isidoro Lemes, por não estarem cumprindo o
item do estatuto de não fazer “changa”
Assembléia 21/03/1993 realizada na quadra esportiva
da aldeia Cachoeirinha, discutiram solicitação de Anésio
Pinto para ajudar o mutirão:
38 membros presentes na assembléia
informa do registro da associação. Estabelecido critério
para requisição de “sementes” na associação (quem
pega paga com a colheita). A Sede da associação seria
construída nas imediações da casa de Gilberto Turíbio.
21 presentes
1995 1997
Assembléia 12/02/1995- Dionísio Antonio pede
demissão da função de presidente da associação, e
assume o cargo Pedro Alcântara.
25 membros presentes.
Nova solicitação de registro da entidade, desta vez
encaminhada por Argemiro Turíbio.
É interessante que o temário das assembléias da ACIC tratam quase que exclusivamente da
produção agropecuária e mencionam questões políticas internas. Estas atividades reuniam
principalmente os membros da antiga facção do cruzeiro.
Foi a antiga facção do “cruzeiro” que se constituiu em associação, sendo primeiramente
presidida por Alírio de Oliveira Metelo e João Niceto Júlio; depois assumiria a presidência da
entidade Dionísio Antonio, que se demitiu da função em 1995. É importante observar que Dionísio
rompeu politicamente com Argemiro Turíbio e Alírio de Oliveira (os moradores da atual “vila
cruzeiro”), por conta das alianças com diferentes lideranças políticas do município. Esta cisão no
interior da associação representou um distanciamento relativo das antigas lideranças da facção do
cruzeiro, que passaram a ter estratégias próprias e diferenciadas de relacionamento político e de
trabalho.
Por outro lado também esta associação iria se tornar a base de articulação dos grupos que
almejavam controlar o posto do Cacique. Na realidade é emblemático que o presidente da
assembléia de fundação desta associação seja o então cacique geral Argemiro Turíbio, e que esta
assembléia tenha sido realizada no Posto Indígena da FUNAI; além disso, o então vice-cacique
Cirilo Raimundo (que tornaria-se Cacique), também fazia parte desta associação no momento de
sua fundação. Pedro Alcântara seria candidato a Cacique nas eleições de 2002 e seria derrotado.
Também este espaço da associação construída sobre as bases da organização política indígena, as
vilas” compostos por grupos familiares de certas linhagens seria utilizado para construir a
disputa política pelo cargo de Cacique.
Num das atas vemos como estas associações eram acionadas para cumprir certas demandas
dentro da comunidade, e como elas ao mesmo tempo apontavam para uma fragmentação da
autoridade política local:
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
315
“Na pauta mencionou-se que os professores através da pessoa do professor Anésio Pinto,
solicitou uma colaboração da associação uma vez que os pais dos alunos não participam do
mutirão. Os associados por sua vez deram a sua posição neste termo achando injusto que outras
associações existentes dentro desta comunidade ou até membro da comunidade não venha a
participar do mutirão uma vez que é benefício da comunidade. Eles alegaram ainda que todos
os mutirões a exemplo da limpeza somente os membros da associação vem prestando sua
colaboração. Diante de tantas discussões decidiu-se que os professores tem que tentar
novamente com os pais dos alunos e se não derem conta de fazer em um dia de trabalho os
membros do ACIC irão auxiliar no dia seguinte”. (Livro Ata ACIC, Assembléia 21/03/2003)
O caso acima é interessante porque mostra a fissão política na aldeia; ao chamado para os
trabalhos em regime de mutirão, só respondia a “associação” da qual o Cacique e o vice-Cacique
eram os membros. É comum que a desobediência se expresse desta forma: como uma das principais
bases da autoridade do Cacique é o comando do trabalho coletivo na aldeia, a desobediência ao
chamado expressa uma forma de oposição política velada. No caso acima, o professor Anésio
tentou articular um mutirão para a escola e convocou a associação, mas esta se recusou a fazer um
trabalho para toda a comunidade sem que outras “associações” tomassem parte nele.
Entre 1997 e 2004, a ACIC continuou sua atuação, mesmo que esta como da grande parte
das associações existentes não cumpra seus objetivos formais, mas continuam sendo uma
referência interna e externa; os moradores identificam os lideres e os membros da associação, assim
como as lideranças de partidos políticos e os representantes da FUNAI, que falam diretamente com
estas lideranças. O papel na política local destas associações é decisivo (compreendendo tanto os
conflitos dentro da aldeia quanto a inserção nos campos e arenas regionais).
A ACIC se apresenta como o produto da ação de um conjunto de grupos de parentesco,
articulados por relações de aliança, e que compunham a antiga facção do cruzeiro. As famílias
Oliveira Metelo, Antônio, Lemes, Pinto, Júlio e Turíbio se articulam politicamente e por meio de
relações parentesco há algumas gerações. A formação da ACIC visa tentar buscar re-estabelecer o
poder de um conjunto de grupos de parentesco, que estavam perdendo espaço político desde os anos
1980, e também dar viabilidade para o projeto de gestão indígena das atividades produtivas. O
surgimento de novas lideranças políticas locais, que conseguiram acumular dinheiro, bens, status e
poder político, ameaçava seriamente o poder destes grupos. A facão rival era liderada por um grupo
de siblings, da família Albuquerque, que estava conseguindo ser bem sucedida num novo
empreendimento, num novo campo de alianças, composto por instituições estatais, ONG´s e
lideranças políticas locais. No novo cenário criado pela globalização, pela “redemocratização”, os
esquemas de distribuição do poder local estavam sendo afetados seriamente. A formação da
AITECA, e o seu “sucesso” inicial indicou o caminho a ser seguido pelos Terena. Por isso a
formação de inúmeras associações, como a ACIC, cada uma delas composta por membros das
antigas facções do Mangao e Cruzeiro.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
316
A formação das associações indígenas se dá como um resultado direto dos dramas de
sucessão verificados ao longo dos anos 1980, e da luta entre facções compostas por diferentes
grupos vicinais. A criação da AITECA pelos principais líderes da facção do Mangao e da ACIC
pelas lideranças da facção do Cruzeiro revela isso. As associações se apresentam como mais uma
tática para viabilizar o ideal de gestão indígena”, que é concebido a partir das unidades
segmentadas em que se encontram organizados os Terena do que o grupo como um todo
“homogêneo’ em oposição “a sociedade regional”. A formação da AITECA e da ACIC (e das
diversas organizações/associações indígenas), apresentam-se assim como resultado da combinação
de três forças: 1º) da crise de um esquema de poder produzido pela situação histórica de reserva, em
que a “governabilidade” das aldeias indígenas foi baseada na centralização do poder nas mãos do
Chefe do Posto do SPI/FUNAI, que para melhor exercer sua ação política construiu uma relação de
aliança com grupos de parentescos locais, que partilhavam o poder, através do controle da posição
de Cacique; 2º) as estratégias indígenas, especialmente dos grupos de parentesco-vizinhança que se
apresentam como importantes unidades de ação política no plano local; 3º) ao novo cenário
econômico e institucional imposto pelo liberalismo, que reduziu os orçamentos de assistência às
áreas indígenas, de um lado, e de outro, criou uma retórica de incentivo ao “associativismo”, pela
criação de um mercado de financiamentos no chamado “terceiro setor”.
Desta maneira, a formação das primeiras associações indígenas pode ser entendida como
uma expressão da reação local a centralização política imposta pelas estruturas estatais e
estatizantes. Um efeito direto e contraditório, já que em última instância, representa uma
descentralização faccional que dinamiza e reproduz as mesmas estruturas e esquemas de
distribuição de poder contra as quais se coloca, a princípio.
As disputas de sucessão travadas ao longo dos anos 1990, na realidade expressavam a luta
entre duas antigas facções (Cruzeiro e Mangao), só que agora organizadas também sob formas de
associações; as cisões dentro das facções permitiram também uma recombinação das alianças de
maneira que muitos membros das facções mudaram de lado ou começaram a investir em sua própria
liderança pessoal, rompendo com os antigos líderes como aconteceu no caso da AITECA com os
irmãos Albuquerque, e também dentro da ACIC, com Dionísio Antonio. Sabino Albuquerque iria
estabelecer relações de aliança política de curta duração com antigos membros da facção do
Mangao, como por exemplo, com Argemiro Turíbio, que teria sido indicado para Chefe de Posto
por Sabino em 2000. Também a candidatura de Lourenço Muchacho com o apoio de alguns
membros da família Belisário que são moradores da vila Santa Cruz, e relacionados por parentesco
a Dionísio Antonio. Assim, o processo de segmentação dentro da aldeia Cachoeirinha é marcado
por uma grande instabilidade, de maneira que estratégias individuais e familiares podem levar a
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
317
rupturas dentro de grupos de parentesco e co-residência, de forma que antigos aliados se tornam
adversários e vice-versa, como é característico da dinâmica da organização faccional em geral.
O importante a observar é que estas associações criaram um novo espaço de articulação
política; o Cacique não seria o único representante das “comunidades indígenas”; também agora as
facções indígenas constituídas sobre as bases das unidades políticas segmentadas em “vilas” com
seus respectivos cabeçantes, poderiam se representar e articular diretamente com as instituições
estatais, lideranças políticas locais e regionais e ONG´s. E é isto que aconteceu. O processo de
descentralização faccional se acentuou, no sentido que emergiram cada vez mais as lideranças
destas unidades segmentadas.
Mas se de um lado as bases simbólicas e políticas da relação e regime tutelar eram
relativamente abaladas pelas estratégias indígenas e mais a frente veremos porque relativamente -,
a configuração do campo e das arenas das relações interétnicas coloca o clientelismo como relação
de dominação preponderante, de maneira que as condições econômico-sociais da vida dos Terena
se torna um fator determinante para a construção de limites para o ideal de “controlar a própria
vida”, gerado pela política de resistência indígena contra o regime tutelar. Além disso, o próprio
processo de segmentação e as formas de tradicionais de constituição das facções indígenas
baseadas nos “cabeçantes de bairros faz com que as alianças entre estas e outros grupos políticos
reative mecanismos e técnicas de poder característicos do regime tutelar. Para entender como
funcionam estes processos, iremos descrever algumas situações sociais desenroladas dentro de
Cachoeirinha.
6.2 - As Facções e a “Ocupação dos Espaços”: política indígena e clientelismo.
O ano de 2004 foi um ano de eleições para as câmaras de vereadores e prefeituras
municipais. No mês de setembro, a campanha já tinha atingido um certo clímax no Município de
Miranda, e a disputa estava muito acirrada, entre Ivan Paz Bossay (PDT) e Beth Almeida (PT). Ivan
é um médico e fazendeiro que já havia sido prefeito da cidade algumas vezes. Ele estava novamente
concorrendo às eleições a Prefeitura pelo PDT, e sua principal adversária naquele ano era Beth
Almeida, professora, esposa de Roberto Almeida que também já havia sido Prefeito da cidade de
Miranda. O terceiro candidato era João Pedro Pedrossian Neto, do PSDB, ex-prefeito, sobrinho do
ex-governador e Senador do Mato Grosso do Sul, Pedro Pedrossian, e fazendeiro (era o candidato
apoiado pelo Sindicato Rural). Beth Almeida se candidatava a reeleição pelo PT, e batalhas
judiciais estavam sendo travadas, com tentativas de impugnação das candidaturas de ambos.
Beth Almeida havia sido eleita prefeita em 2000 pelo PPS (Partido Popular Socialista), e
mudou de partido em 2003, sendo o anuncio de sua filiação ao PT realizado numa cerimônia
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
318
ocorrida durante um evento esportivo na aldeia de Cachoeirinha (1º Campeonato Inter-tribal de
Miranda), mediante o “convite feito pelo índio “Carlos Jacobina”, liderança indígena do Posto Pilad
Rebuá. As situações sociais que iremos descrever estão todas elas relacionadas às eleições de 2004,
para apresentar em termos etnográficos como se dá a ralização dessa ocupção de espaços e tentativa
de construção de co-gestão indígena na política local.
Nas eleições de 2004¸ várias redes políticas foram estabelecidas dentro das aldeias. Os
candidatos que estavam em maiores condições de disputa, pelas pesquisas divulgadas na cidade
eram Ivan Paz Bossay e Beth Almeida. Obras de “cascalhamento” da avenida principal e das
estradas de acesso a Cachoeirinha estavam sendo realizadas, para receber a visita do Governador do
estado José Orcírio Miranda, o Zeca do PT. Comícios eram promovidos dentro da aldeia. Enfim,
diversas atividades se desenrolavam.
A primeira atividade que vimos foi a chegada de um ônibus trazendo indígenas das aldeias
Passarinho e Moreira com cerca de 60 pessoas, para fazer campanha eleitoral em Cachoeirinha, do
candidato Terena Carlos Jacobina. O cacique e outras pessoas que estavam conversando no PIN
torceram o nariz, mas nada fizeram. Depois de cerca de 2 horas de campanha em Cachoeirinha o
grupo de 60 cabos eleitorais de Carlos Jacobina se reuniu no centro comunitário e ele falou da
importância de estarem ali, que convidaram a comunidade para uma reunião, e que mesmo que
aparecessem poucas pessoas estava bom. Isto se deu por volta das 16h.
Às 17:45h teve inicio a reunião. Com poucas pessoas além dos cabos eleitorais, um homem
Terena falando em idioma começou a reunião, fez menção a Lula, a Zeca e a prefeita Beth Almeida
(parecia estar apresentando os mesmos argumentos que Wilson Jacobina, irmão de Carlos, tinha
apresentado para mim pouco antes (de que mesmo estando a Beth desgastada, ela era representante
do PT, de Lula e Zeca no município) e que por isso eles estavam com ela.
Carlos Jacobina tomou a palavra e disse: "a gente está aqui no fortalecer as candidaturas
indígenas. E o Celinho vai tá falando como tá sendo a política aqui, se tá tendo reunião grande, se
tá sendo de casa em casa .... O índio precisa ter seu representante no legislativo. Nós vamos estar
implementando aqui em Cachoeirinha o programa habitacional. Aqui na Cachoeirinha vamos
começar com 20. Lagoinha tá recebendo 20. Isso é uma realidade. Nós já temos casa em Buriti,
Nioaque”. Celinho disse: Vou tentar explicar como é que a política aqui em Cachoeirinha.
Cachoeirinha hoje no cenário municipal, eu espero que os nossos patrícios estejam valorizando o
voto em prol dos próprios patrícios. Os trabalhos estão sendo por vila, por família, por Igreja
(explicando que não haviam reuniões maiores para esta questão). Nós fizemos um trabalho de
conscientizar os patrícios de votar nos próprios patrícios”. Carlos Jacobina: "Nosso lema é resistir
e transformar (resistir aos 500 anos ...) e transformar a realidade de nossas aldeias (cita como sua
realização o campeonato intertribal). O pessoal precisa tá preparando para receber o governador
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
319
que é um chefe de estado e tem compromisso com as aldeias (falou para os índios levarem suas
reivindicações, das associações, da terra, no papel para entregarem ao governador)”. Às 18:40 h
chegou o ônibus para levar os indígenas de volta. Wilson Jacobina toma a palavra para fazer o
encerramento e autoriza os cabos eleitorais a irem para o ônibus (o que alguns já estavam fazendo
antes dele falar).
Naqueles dias, a aldeia viva uma grande movimentação e agitação por conta da expectativa
de visita do Governador do Estado, o Zeca do PT. Esta visita aconteceu no dia 15/09/2004. O clima
estava instável, alternando-se o frio e o calor intenso, mas sem chuva; a seca já durava quarenta
dias, segundo as informações dos moradores. Neste dia seria realizada visita do Governador em
Cachoeirinha e também, na cidade, o comício da prefeita.
Foto 14 - Governador Zeca ladeado pelo Cacique Lourenço e "Guerreiros" do Bate-Pau.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
320
Foto 15 - Público do Comício de Zeca.
O comício da candidata Beth Almeida do PT, com a presença do governador José Orcírio, o
Zeca do PT, seria iniciado às 16h. No fim da tarde o clima estava limpo, apesar do pouco sol. As
16h o povo já se aglomerava na vila principal, próximo a um caminhão que seria utilizado como
palanque, enquanto esperavam a chegada da prefeita e do governador. Mas a esta altura o número
ainda era reduzido. Um grupo de dançarinos do bate-pau esperava, caracterizado, organizado em
duas filas paralelas - formação tradicional da dança - em frente ao centro comunitário. O cacique
Lourenço aguardava próximo a eles. O governador e a prefeita chegaram com suas comitivas e
seguranças. Juntaram-se ao cacique Lourenço e ao grupo do bate-pau que os esperavam. O
governador tomou posição ao centro das duas filas e a frente, os indígenas carregavam uma faixa
em homenagem a presença do Governador, e caminharam até o caminhão que seria usado como
palanque (estacionado em frente ao campo de futebol Capitão Timóteo, na vila principal). Neste
momento um público numeroso já estava no local e cabos eleitorais, indígenas e não indígenas
seguravam as bandeiras vermelhas do PT e portavam camisas e faixas. No trajeto até o caminhão
(de cerca de 30 metros) foi tocada a música do bate-pau. Nas cercas das casas da vila principal,
próximas ao local do comício, foram colocadas 7 faixas. Em duas delas lia-se “A comunidade [de
Babaçu, de Argola] tem o orgulho de receber nossos amigos, Zeca, Beth e Neder" Em outra estava
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
321
escrito: "Amigo Zeca do PT. Amiga Beth Almeida. Obrigada por ajudar a resgatar nossa
dignidade". Nas demais faixas, mensagens de agradecimento à presença do governador em nome
das comunidades indígenas. O mestre de cerimônias anuncia a presença da prefeita, do deputado
Arroyo, do presidente da câmara e vice na chapa de Beth, Neder, dos candidatos indígenas e não
indígenas a vereador. À esquerda do palanque havia um galhardete do candidato indígena Carlos
Jacobina. No palanque Zeca ao centro, à sua direita a prefeita e o deputado Arroyo, rodeados por
lideranças e candidatos indígenas. A boléia do caminhão estava cheia. À frente do caminhão
ficaram postados os índios caracterizados, juntamente com algumas jovens que seguravam faixas e
bandeiras. Neste momento estavam na avenida principal, por nossas estimativas, cerca de 1000
pessoas. Depois das apresentações iniciais começaram as intervenções.
Foto 16- Zeca discursa aos indígenas.
Primeiramente falou o cacique Lourenço Muchacho que agradeceu a presença do
governador e elogiou-o, falando o seguinte.
"... A vinda do governador do estado zeca do PT, com muito orgulho, pela primeira vez que
governador do estado visitou a nossa comunidade aqui na Cachoeirinha e o senhor ta de
parabéns. Quero cumprimentar a prefeita de Miranda, Elizabeth, bem vinda a nossa
comunidade, muito obrigado. o deputado Arroyo, deputado estadual, pela primeira vez também,
ele vai nos ouvir ao nosso desabafo dentro de nossa comunidade.s agradecemos sua vinda
aqui também. Muito obrigado. Queremos agradecer a presença do Neder, candidato a vice-
prefeito Os demais companheiros, candidatos indígenas aqui presentes, o Otto, o (...) Jacobina.
Os demais companheiro presentes nesta ocasião, o meu agradecimento é isso ai, queremos mais
ouvir o futuro senador, futuro senador, esse aqui é o senador do povo, presidente da república,
se o Lula deixar, se o Lula não deixar depois de Lula ele pode até se candidatar como
presidente da república. A esperança do indígena hoje, senador, governador, senador porque o
senhor já tá lá profetizando, o meu agradecimento é esse ai. Meu agradecimento a todos
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
322
indígenas presentes. De Lagoinha, Campão/Babaçu, Argola Morrinho, e da comunidade da
Sede. Muito obrigado o nosso agradecimento é esse ai."
Depois falou o cacique da aldeia Argola, João Candelário, falando da necessidade de
construção de casas do programa habitacional do governo no seu setor.
"Quero cumprimentar a toda população da aldeia Cachoeirinha, e também quero
cumprimentar o nosso excelentíssimo governador doutor José Orcírio Miranda, o nosso grande
governador do estado, e também cumprimentando a nossa excelentíssima prefeita Elizabeth de
Paula Almeida, quero cumprimentar o deputado Arroyo, que é deputado estadual,
cumprimentando também nosso futuro vice-prefeito ilustre Neder Vedovato. E aproveitando
também cumprimentar todos os vereadores que fazem parte da nossa caravana, que fazem parte
da coligação de nosso partido. Primeiramente eu quero dizer ao nosso governador Zeca do PT,
seja bem vindo em nossa aldeia Cachoeirinha. Eu quero dizer de todo o coração, zeca do PT, o
nosso grande governador, que eu tenho grande orgulho da sua pessoa. Porque o senhor é um
governador que tem compromisso com os pobres e tem compromisso também com a comunidade
indígena. E nunca houve um governo passado que teve compromisso com nosso povo. É por
isso com toda convicção eu subo aqui no palanque pra dizer ao nosso povo o que nosso
governador tem feito em nossa comunidade. E acredito também que a comunidade indígena
sabe disso, está consciente de tudo isso, e elogio o nosso governador também pelos grandes
programas sociais, trabalhos sociais, que tem realizado no estado do Mato Grosso do Sul, em
todos os municípios, como no Município de Miranda, nós reconhecemos o seu grande trabalho
governador. Gostaria também de pedir ao governador do estado que como liderança da aldeia
Argola, setor da Cachoeirinha, que também nós precisamos do seu grande apoio sobre
construção de habitação para aldeia Argola e nos pedimos que o governador não esqueça como
nós temos em Morrinho isso e nós temos certeza que estas aldeias circunvizinhas da
Cachoeirinha será beneficiado. Também está conosco a excelentíssima prefeita Beth Almeida.
Eu quero agradecer a presença da nossa prefeita que tem também dado grande apoio ao nosso
povo, a comunidade indígena. E agradecendo também o deputado Arroyo, que é um dos nossos
parceiros e parceiro da prefeita também, que juntando seus esforços traz recursos, traz projetos
para o município de Miranda. E é isso que eu quero dizer para comunidade.
O terceiro a falar foi o cacique Isidoro Pinto, de Morrinho.
Isidoro: "Primeiramente eu agradeço a esse horário que nesse dia de hoje, porque nós precisa
dele, e precisa das cinco comunidade daqui da Cachoeirinha governador, porque nós
precisamos dele para toda comunidade, deputado Arroyo, tudo companheiro. Porque o cacique
tem muito que ele precisa para comunidade, então eu queria isso para Zeca, para atender nossa
comunidade, Morrinho é pequena ainda, mas precisa de construção, de tudo, nós tamos
precisando de escola, lá no Morrinho nós não temos, escola é de tauba ainda, e nós tamos
aumentando aluno, isso que eu quero passar para vocês. E também eu queria a viatura, nós
tamos precisando. Nós não temos nada lá na nossa aldeia. A nossa esperança para ajudar nossa
comunidade , temos quem para dar a mão. Mas esse ano é uma esperança. E esse é nosso
companheiro, nossa companheira, dona Beth, então é isso aí que eu quero agradecer, nosso
amigo candidato. É isso que eu quero passar para nossos companheiros. E só isso que eu quero
falar. Muito Obrigado.
O quarto a fazer o uso da palavra foi Wilson Jacobina, cacique de Passarinho:
"Boa tarde para todos os nossos patrícios daqui da aldeia cachoeirinha. Boa tarde governador,
seja bem vindo aqui dentro da nossa reserva indígena, prefeita Beth Almeida, futura prefeita do
município de Miranda , seja bem vinda aqui no meio do nosso povo. Quero agradecer também a
presença das pessoas que não são indígenas que tá aqui na nossa comunidade. Seja bem vindo.
É com muito carinho que nós recebemos vocês aqui. Juntamente com essa caravana da vitória,
caravana a da Beth Almeida. E é por isso que nós tamos aqui hoje para tá conscientizando o
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
323
nosso povo do projeto que Beth também representa. E eu enquanto cacique da aldeia
Passarinho quero deixar bem claro pros nossos patrícios aqui. No dia 3 de outubro nós da
aldeia Passarinho vamos eleger Beth Almeida. E tenho certeza que nas outras aldeias vão fazer
o mesmo. Porque uma pessoa que tem o aval do Governador, do deputado estadual, o Arroyo
aqui, nenhum candidato pode perder. E a Beth não vai perder, e num vai perder nem o sono,
quem vai perder é o nosso adversário. Porque ele está desesperado com essa política de
inclusão social que o PT tem feito no nosso estado.
No dia 11 recebemos 30 casas do programa novo habitar na aldeia Passarinho e na Aldeia
Moreira e lá o Governo do estado, PT fez a revolução em termos de habitação nas áreas
indígenas, com a parceria da prefeita e do governo federal e do governo estadual. E com esse
time, no dia 3 de outubro tudo vai estar a nosso favor. Eu acho que é o momento das
comunidades indígenas prestar atenção na inclusão social. Prestar atenção de 10 anos atrás de
como era o abandono da nossa comunidade, como era o abandono de nossas lideranças. E hoje
nós temos uma prefeita voltada para as áreas indígenas, um governador voltado para área
indígena. na questão da inclusão social. Então é isto que meu povo tem que acordar, tem que
prestar atenção que inclusão social e só o PT e essa caravana que vai fazer.Outro nenhum vai
fazer. Então presta atenção.
...Aqui também no nosso município veio com muita firmeza esse projeto. Porque? Diminuiu o
índice de mortalidade infantil aqui nas nossas áreas indígenas. Onde que nós vemos que nossos
jovens, crianças que antes passavam necessidade, agora tão passando com fartura aqui dentro.
E graças a esse governo voltado para minoria. Eu quero deixar aqui meu abraço governador,
meu abraço dona Gilda. Beth tem certeza que nós vamos aqui chegar lá juntamente com
Carlos Jacobina na câmara municipal e os demais companheiros que aqui se encontram nessa
caravana da vitória. Meu muito obrigado que deus abençoe todos.
Em quinto na seqüência falou Neder Vedovato, que o mestre de cerimônia frisou ser "primo
do governador". Em sexto falou Arroyo. Depois dele falaram a prefeita Beth Almeida e o
governador Zeca do PT. O governador citou a inauguração do hospital em Miranda também do
“Memorial da Cultura Terena”, a serem realizadas no dia seguinte (16/09), como exemplo das
realizações da administração da Beth Almeida. Depois de encerrada sua intervenção, o Governador
e sua comitiva retiraram-se pela parte traseira do caminhão e neste momento as lideranças foram
atrás dela entregar "documentos". Ainda foram distribuídos picolés, para o que se formaram
imensas filas ao redor do caminhão.
A visita do Governador movimentou toda a cidade e as aldeias; os adversários políticos da
prefeita também realizariam atividades dentro de Cachoeirinha, e uma delas aconteceu no dia
seguinte, dezesseis de setembro de 2004. Ao fim da tarde, para ser mais preciso, Às 17:30h, notava-
se uma movimentação em uma das casas da “vila cruzeiro”. Uma reunião política estava
começando no quintal da casa de Alírio de Oliveira Metelo (que reside próximo ao Posto Indígena e
a Igreja Católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro). Era uma reunião de campanha do candidato
a prefeito pelo PDT “Ivan Paz Bossay” e do candidato indígena pelo PL (que estava coligado com o
PDT) Edílson Pedro (apelido Bebe). Estavam presentes cerca de 40 pessoas, que fizeram um
círculo para a realização da discussão. Primeiramente falou Alírio de Oliveira Metelo. Ele declarou
seu apoio ao candidato Ivan e disse palavras próximas a estas: "que o doutor prometeu trator e o
trator para nós é tudo". Depois dele ter terminado sua fala, quem tomou a palavra foi o candidato
indígena Edílson Pedro: "Precisamos eleger candidato índio. Vote candidato índio" Falou da
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
324
Associação do Alírio, que está precisando disso, precisando daquilo e ajudá-la é o “papel do
vereador”. Disse ainda, ao comentar as dificuldades da associação: "Agora tendo vereador é
diferente, vocês não vão precisar gastar nada, por isso a gente tá pedindo o apoio’. Na seqüência
falou um homem, ao que parece de nome Donato. Depois deste homem, falou Adílson Júlio. Sua
intervenção enfatizou também o apoio para as atividades econômico-produtivas. Ele perguntou: "eu
não sei onde está nosso trator", disse reclamando da falta de apoio da prefeita e candidata Beth
Almeida, do PT e da falta de recursos. Falando sobre o candidato disse " porque nós temos
deputados para apoiar. Porque ele vai pedir apoio no governador do estado”. Frisou ao final que
seriam promessas do Ivan a reforma das duas viaturas e a reforma do trator.
Levantou-se então para falar um homem de nome Milton Pires, " Tá aqui a presença de
nosso candidato, o dr. Ivan, e Bebê nosso vereador. Já teve elemento lá em casa cutucando,
cutucando, e eu falei, já te ajudei e nada você fez por mim. Ele disse quinta-feira o Ivan tá preso,
hoje nosso candidato tá aí... e ele não fez nada por nós. Deus está vendo todo o sofrimento que nós
estamos passando com essa mulher aí." Depois ele comentou sobre a visita do governador Zeca do
PT a Cachoeirinha, realizada no dia anterior. "Não falo mal do Zeca, do presidente Lula, mas o
problema é aquela mulher ai. Você vai na prefeitura e cadê a prefeita, nunca tá, tá viajando. É
mentira (...)" E fala olhando para o Edílson Pedro: "E Bebe, eu vou cobrar você, não só eu, a
comunidade vai cobrar."
Seu Alírio, que estava atuando como um coordenador da reunião, pergunta se mais alguém
queria falar, e então dona Agripina Júlio, sua meia irmã, vai até o centro da roda e canta e dança em
homenagem ao dr. Ivan (grita “viva o doutor Ivan”). Depois de sua manifestação, toma a palavra
Ramão (um “branco”, assessor de campanha do candidato a prefeito), e diz: "O Ivan foi o único
candidato que colocou um branco para trabalhar para o índio, para pedir voto para o índio”. Olha
então para o Ivan e diz: “O senhor é um mito entre os indígenas”. Depois de tecer mais elogios a
ele e falar que a vitória já estava garantida, de acordo com as pesquisas, ele encerrou.
Então o próprio Ivan tomou a palavra. Começa agradecendo ao senhor Alírio por fazer a
reunião na casa dele. "O objetivo de chegar na prefeitura é trabalhar pelo nosso povo". Comenta
sobre o comício da prefeita realizado na noite anterior, acontecido na cidade de Miranda, citando o
fato de um índio de Argola ter sido esfaqueado numa briga, ironizando a “falta de urgência no
atendimento” dispensado a ele (já que não se liberou uma ambulância que estava à disposição do
Governador, presente no local, para fazer o atendimento). Fala da disputa pela prefeitura municipal,
afirmando que está vencendo as eleições e para os índios trabalharem como cabos eleitorais de
outros candidatos, “mas peguem o dinheiro e não votem neles”. Declara seu apoio ao governador,
fala que seu partido apóia o Zeca na ALEMS, e que o Zeca só apoiou a Beth Almeida por obrigação
partidária. "Além disso eu queria falar para vocês da lavoura, citando projetos de fomento, apoio e
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
325
fornecimento de maquinário, que pretendemos criar uma indústria de farinha.", Afirmou que vai
criar uma secretaria indígena e que será comandada e composta por índios, para atender suas
reivindicações, para que eles não tenham que ficar sempre esperando para falar com o prefeito.
Falou ainda que a comunidade indígena deveria votar no índio. “Nós temos que votar no patrício.
Eu quero agradecer a todos vocês. Mas a associação tem um peso na administração, para que nós
mandemos máquinas, semente, ela é unida. Muito obrigado". A reunião se encerrou por volta das
19h, e as pessoas presentes ficaram ainda no local conversando e tomando refrigerante distribuído
pelo candidato.
Poucos dias depois, a candidata à prefeita Beth Almeida e vice na sua chapa, Neder
Vedovato (vereador), voltariam a Cachoeirinha, desta vez na aldeia Argola. No dia vinte de
setembro, fomos até a Argola e lá encontramos Inácio Faustino, por volta das 15:30h e ficamos
sabendo da reunião que ele estava preparando com a prefeita e o candidato a vice, Neder, para as
16h. No caminho ele foi explicando as razões da reunião e suas expectativas. Falou que eles ficaram
afastados da prefeita nesta última gestão” e que “as outras associações tinham espaço”, e que eles
estavam querendo reverter esta situação. Por isso ele tinha pedido a reunião com a prefeita, para o
Neder. Fomos para um terreno, que depois saberia ser da AITRE (Associação Indígena Terena
Reviver, da qual Inácio é presidente) e ficamos embaixo de uma mangueira.
Ficamos esperando um tempo o inicio da reunião e neste meio tempo chegou o candidato
indígena Aldemir Soares, da aldeia Moreira. Ele falou, ao considerar o seminário de capacitação de
professores realizado na Sede: "Porque para mim educação é tudo. A comunidade mesma
administra isso aí. Nós temos idéia, capacidade. Nós temos já pessoas capacitadas para
administrar qualquer coisa, inclusive uma secretaria de educação.”
Às 17h a reunião teve inicio, com a chegada da Prefeita Beth, do Vice Neder e de uma
assessora, de nome Juliana. Sentaram-se Juliana, Beth, Neder e Waldemir, de frente para o grupo de
pessoas que estavam esperando (que fizeram um semi-círculo). Conteamos cerca de 20 pessoas no
local. Quem primeiro tomou a palavra para falar foi Inácio Faustino, presidente da AITRE. Ele
falou, quem tá aqui, a maioria é da diretoria da AITRE, a maioria tá cadastrado para fazer
campanha. Nós tivemos dificuldade com a senhora prefeita, a gente ficou distanciado, não teve
acesso depois da campanha. Não sei se a senhora lembra, nós fizemos campanha voluntariamente.
Mas nós não tivemos acesso na prefeitura. Nesse período eu não tive respaldo na comunidade
porque não tive acesso. Eu queria garantir de não ficar mais distanciado. Eu dirijo uma associação
de quase 40 famílias. O que nós estamos esperando é uma Sede para a associação. Um projeto tá
nas mãos do deputado. Essas são as dificuldades que a gente tem”. A prefeita respondeu, dizendo
para ele passar na prefeitura para ver isso. “Nesse galpão tá funcionando o Mova”, disse Inácio.
Ele pede uma caixa d´água, a extensão da rede e luz. Falou que nunca a associação recebeu
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
326
maquinário. A prefeita contestou, diz que a prefeitura mandava as máquinas. Ela citou uma
ocasião em que falou com o Tomás, marcou uma reunião com os presidentes das 3
associações, mas o Inácio não foi. O Inácio retrucou, “Às vezes a senhora fala com um e pensa
que tá falando com todos. Quando uma pessoa quer dominar, então fica só ele sabendo”.
Falou então o cacique da Argola João Candelário: "Eu lembro que nos recebemos o ofício de
recebimento de um trator, a senhora vai dizer como e que ta isso ai. A gente queria amarrar o
atendimento da senhora” e fala de um rapaz, do secretario de esportes da comunidade, dizendo que
esperava muito dele. A prefeita fala, diz que vai mandar o padrão (para resolver a questão da
energia elétrica), a caixa de água, mas que só não pode fazer isso imediatamente por causa da
fiscalização. A prefeita reclamou porque ele não a procurou mais. Inácio respondeu : "Eu sou
sistemático. Uma vez eu fui na prefeitura com a liderança, mas ligaram para que nós não fossemos
atendidos, eu e o Fernando batemos com a cara na porta. O Esídio e o Celinho Segato, eu sei
porque depois eles me cercaram na rua e disseram que na prefeitura nós não íamos arrumar nada.
Creio que nós vamos acertar essas coisas. Daqui por diante pode confiar em nós.
Terminada a intervenção do Inácio, a palavra foi passada a João Candelário. "Só queria
fazer uma pergunta para a senhora, da emenda que o deputado Arroyo fez”. A prefeita responde.
Ao final volta a tomar a palavra Inácio, para combinar a contratação e conversa com Neder, que dá
os valores: sessenta reais por pessoa. Inácio pediu para que adicionassem mais cinco pessoas na
lista, mas não foi atendido. Antes do fim da reunião se pronunciou ainda “Baixinho”, secretario de
esportes, e reclamou de uma série de coisas. Em seguida a reunião foi encerrada..
No dia vinte e seis de setembro, à noite assistimos o comício do candidato João Pedro
Pedrossian. O comício teve início as 20:40h minutos aproximadamente, sendo realizado ao lado da
AITECA, em um caminhão que serviu de palanque. Antes do início, uma banda tocava xamamé
para atrair o publico. Aglomeraram-se no local cerca de 100 pessoas, ou um pouco mais, porém
número bem inferior ao que aglutinou o comício do Ivan. As pessoas, mulheres, crianças, sentavam-
se em bancos e cadeiras trazidas das casas, ou ficavam paradas em pequenos grupos ao redor do
local do comício. Algumas dezenas de cabos eleitorais com camisas e bandeiras aguardavam no
local, e outros chegaram em ônibus e caminhões. Chegou o candidato, e o mestre de cerimônias
começou a chamar os convidados para o palanque: Vacílio Elias, Edílson Pedro, Airton Vitor da
Igreja Católica, Rafael Albuquerque, Nicola Pedro da Assembléia de Deus, Quintino Pereira
Mendes da Vila União São João, Evandro Antonio, representante da Vila Nova, Arlene Julio, da
Associação de Ceramistas, Mario de Albuquerque da AITECA, Leôncio Belisário da Vila Santa
Cruz e os coordenadores Felix Canali, do Morrinho e Esidio Albuquerque; o Pastor Zacarias a
futura “primeira dama”, o João Pedro e vice na sua chapa, Henrique. Chamou também os
candidatos a vereador Celma Iranda, Luiz Meneses e Kátia.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
327
A primeira pessoa a se pronunciar no palanque foi Arlene Julio, ceramista. “Nós somos
lutadoras, somos trabalhadeira, principalmente dentro das nossas casas”. Diz que precisam de
oportunidade para fazer feira em Miranda. Fala da organização das mulheres, a AMITECA. Lê
então um discurso: "Precisamos de apoio das autoridades. Esta associação não é legalizada." "Nós
mulheres somos lembradas só na época de eleição, de campanha. Em reunião da comunidade nós
não somos convidadas. Nós temos a mesma autoridade e autonomia que os homens”.
Na seqüência falou Mario Albuquerque, presidente da AITECA, vestindo a camisa da
campanha: "Eu vou fazer um pedido aos meus companheiros. Nós temos esse companheiro que é
candidato. Ele me procurou na minha casa pedindo meu apoio. Então eu fiz reunião com os
associados porque eu não faço nada sozinho, e confirmamos ao João Pedro Pedrossian. Na
eleição passada nós trabalhamos para essa prefeita. Mas resolvi sair fora dela. Em tudo ela
enganou nós. Ela não merece nosso voto. Ela prometeu ônibus para as ceramistas...Beth é
mentirosa. Nós tamos com um homem que tem compromisso com nós. Ele trabalhou muito bem
para a AITECA”.
Na seqüência falaram o pastor Zacarias, Vacilio Elias, que falou da criação da secretaria
indígena, Felix Canali, Rosana Canali, Edílson Antonio (locutor da rádio), Cilsa da Passarinho, e os
candidatos a vereador, Nica, Luis Meneses e Davi. e Carlinhos da Lalima. Por fim falou a esposa de
João Pedro: "Amigos de Cachoeirinha, vocês terão semente e óleo diesel. As mulheres serão
valorizadas sim. Nós teremos o maior prazer em apoiar a associação das ceramistas. Henrique e
João Pedro falaram para encerrar: “Amigos. Queridos. A alegria de estar aqui é muito grande, nos
emociona, toca o coração. Vocês podem em 2005 contar com o total apoio do 45, do João Pedro.
Felizmente conseguimos reunir liderança expressivas de Cachoeirinha, Argola, Babaçu, Lagoinha
e Morrinho e através dessas lideranças chegamos na comunidade, em vocês." Fala da sua proposta:
“Secretaria do Índio sim, faremos com que ela tenha toda a estrutura, para receber projetos", e
promete que serão os índios que irão comandá-la. “É preciso que vocês tenham o apoio necessário
para produzir e produzir bem. Semente, óleo diesel e estrada cascalhada vocês já tiveram. Teremos
um cerimonial comandado por esse povo ordeiro, por esse povo Terena”. Depois das palavras de
Pedrossian, o comício foi encerrado, a banda tocou músicas ainda, mas grande parte do público foi
se dispersando lentamente.
Até o dia três de outubro, vários outros comícios foram realizados dentro da aldeia, inúmeras
reuniões de articulação política. O dia das eleições foi tranqüilo, a maior parte dos índios votam na
própria aldeia, nas urnas instaladas nas seções eleitorais das escolas. Os mesários e fiscais eram os
próprios moradores das aldeias. Depois da divulgação do resultado da apuração das eleições para
prefeito e vereador, 5 carros, 2 motos e 1 caminhão e algumas bicicletas percorreram a avenida
principal com algumas dezenas de pessoas acompanhando, carregando bandeiras e portando
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
328
camisas e bonés do PT e da Beth Almeida, soltando fogos de artifício e gritando muito. Os veículos
formaram um círculo em frente ao PIN e ficaram dando voltas, fazendo muito barulho durante
alguns minutos. Depois saíram em disparada percorrendo as demais vilas. Ao conversar com um
dos ciclistas que acompanhava o grupo, ele amostrou a marca de uma pedrada e disse “o pessoal
não sabe perder”. O resultado das eleições era provisório, já que estava em curso um processo
judicial contra a candidata Beth Almeida (sua candidatura seria cassada e depois a cassação seria
suspensa por decisão do STF, garantindo sua posse).
Nos dias que se seguiram as eleições de 2004, houve uma grande movimentação na aldeia.
A expectativa em torno da indefinição de quem seria o prefeito era muito grande. No município são
11 sessões de votação dentro das aldeias, totalizando 3118 votos de indígenas (num total de 16.769
eleitores, o que representa cerca de 18% do eleitorado municipal). Abaixo segue um mapa do
resultado das eleições para prefeito dentro das aldeias do município:
Quadro 37- TRE-MS-2004 (CD-ROM)
Aldeias Total de
Votos
Beth
Almeida
Ivan Paz
Bossay
João Pedro
Pedrossian
Paulo
Rebuá
Siufi
Seção 92 147 37 38 23 20
Seção 36 355 75 87 62 41
Seção 35 297 69 81 51 31
Aldeia
Cachoeirinha
Seção 67 305 58 90 46 25
Aldeia Argola Seção 34 353 83 126 17 58
Seção 88 224 58 51 45 22 Aldeia Lalima
Seção 63 318 89 75 65 34
Seção 77 277 87 86 27 25 Aldeia
Passarinho
Seção 43 285 102 70 27 29
Seção 70 279 87 83 30 36 Aldeia Moreira
Seção 44 278 88 59 50 27
Total 11 3118 833 846 443 348
O resultado das eleições foi o seguinte: Beth Almeida, 5641 votos; Ivan Paz Bossay, 5077
votos; João Pedro Pedrossian 1664 votos; Paulo Rebuá Siufi, 1341 votos. Nas áreas indígenas foram
2470 votos nos candidatos e mais 648 votos brancos e nulos; Ivan (846 votos) foi ligeiramente mais
votado nas áreas indígenas consideradas em seu conjunto que a Beth Almeida (833 votos). Foram
89 candidatos a vereador no município, sendo 7 eleitos para a câmara.
A busca pelo poder: os líderes indígenas na política local
O “tempo da política” se apresenta como uma conjuntura muito propícia para a descrição e
análise da ação das facções políticas dentro do campo e das arenas das relações interétnicas. As
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
329
eleições 2004 permitem mostrar os pontos de constituição de redes sociais que articulam o universo
das aldeias com diversas instituições e atores dos campos e arenas políticas descritos inicialmente.
Primeiramente, podemos analisar cada uma das situações sociais, e indicar as relações e
questões implicadas nelas:
1) A primeira situação é a atividade de campanha de um dos muitos candidatos indígenas de
Miranda, Carlos Jacobina. Aliado da Prefeita Beth Almeida, ele promoveu atividades de apoio a
Beth desde 2003, tendo sido também candidato a Administração Regional da FUNAI, mas foi
derrotado por poucos votos, por Wanderley de Limão Verde; a “reunião de campanha” e o discurso
de Carlos e seu irmão Wilson Jacobina explicitam o discurso hegemônico entre os índios Terena, da
necessidade de um “voto étnico” (como por exemplo "a gente está aqui no fortalecer as
candidaturas indígenas). Por outro lado a descrição da campanha coordenada por Celinho
Belisário mostra que “Os trabalhos estão sendo por vila, por família, por Igreja (explicando que
não haviam reuniões maiores para esta questão). Este tipo de discurso volta a ser acionado, por
exemplo, na outra reunião, na Argola, por outro candidato indígena, Aldemir Soares, que afirmou:
Porque para mim educação é tudo. A comunidade mesma administra isso aí. Nós temos idéia,
capacidade. Nós temos já pessoas capacitadas para administrar qualquer coisa, inclusive uma
secretaria de educação.”Ou seja, é a expressão do ideal de controlar a própria vida/gestão indígena,
da afirmação da “capacidade política indígena” de se representar, de gerir atividades, inclusive de
organismos estatais. Este discurso era reproduzido por todos os candidatos a prefeito e se
cristalizava na proposta da formação de uma “secretaria indígena” na Prefeitura, que seria ocupada
por um índio. Assim, o discurso produzido pelos Terena, e corresponde práticas e políticas
desenvolvidas pelos índios dentro das aldeias, no sentido de garantir seus espaços políticos; os
discurso realizados pelo Chefe de Posto, Argemiro, e pelos professores e outros indígenas no Dia do
Índio de 2004 (ver capítulo 3), também apontam na mesma direção. O trabalho dos líderes
indígenas dentro das aldeias expressa a busca “espaços de poder”, de maneira que as alianças com
as elites dirigentes locais e autoridades de Estado, aumentam o capital político destas mesmas
lideranças.
2) Um aspecto organizativo é também fundamental; nas diversas situações sociais descritas, vemos
que as facções e as associações criadas por elas, são instrumentos fundamentais de constituição das
relações políticas dentro do campo e arenas das relações interétnicas. Na reunião de campanha
ocorrida na Vila Cruzeiro fica explícito que Alírio, líder da antiga facção do cruzeiro e da ACIC,
atua como coordenador de campanha e mediador político, sendo o ponto numa rede social que
articula grupos familiares de certas linhagens em torno de uma aliança situacional com um líder
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
330
político local (Ivan Paz Bossay); o candidato a vereador lançado e apoiado pela ACIC (por Alírio de
Oliveira, Argemiro Turíbio, João Niceto Júlio) foi Edílson Antonio Pedro, filho de Mario Pedro e
Rosalina Antonio, e morador da Vila Cruzeiro. O seu discurso mostra como na realidade o
“candidato a vereador” indígena está mais associado a um “bairro”, sua associação e seus líderes do
que a aldeia considerada como um todo homogêneo: (Associação do Alírio, que está precisando
disso, precisando daquilo e ajudá-la é o “papel do vereador”. Disse ainda, ao comentar as
dificuldades da associação: "Agora tendo vereador é diferente, vocês não vão precisar gastar nada,
por isso a gente tá pedindo o apoio”. Ou seja, o espaço buscado na política local, é para os
diferentes segmentos em que se organizam os Terena, e não para os índios considerados como um
agregado de indivíduos. É a busca de poder individual e para o grupo de parentesco e vizinhança
que se busca, não para o grupo Terena como um todo; isto ainda é confirmado pelo comício
realizado próximo a AITECA, com a presença de Mario e Esídio Albuquerque, além do presidente
do Conselho Tribal pastor Zacarias da Silva, o que marca a importância das formas de liderança e
organização política dentro da aldeia; também na reunião da Argola, o líder Inácio Faustino e o
cacique João Candelário se apresentam diante da prefeitura como representantes de uma associação
de 40 famílias, para negociar com a candidata a prefeita Beth Almeida;
3) A outra dimensão a ser destacada, é como certos recursos materiais entram diretamente no
circuito de trocas entre as facções indígenas e as lideranças políticas do município. Na primeira
situação descrita, temos as obras de “cascalhamento” das estradas e ruas das aldeias de
Cachoeirinha que são uma das “moedas” de troca utilizadas na política local; as estradas
cascalhadas facilitam o trânsito de veículos, principalmente em tempos de chuva, de forma que os
índios levam em consideração este tipo de ação; durante o comício do Governador do Estado, os
“agradecimentos” para o Governador realizados pelo Cacique Lourenço em seu discurso, ou então o
pedido de projetos e recursos feito pelo cacique da Argola João Candelário; Wilson Jacobina
agradece a construção de “casas” pelo programa habitacional do Governo do Estado, realizado em
Passarinho/Moreira; na reunião realizada na casa de Alírio na Sede, na AITRE na Argola e também
no comício de Pedrossian na Sede, vemos certos fatores serem colocados em negociação: 1º) trator
e maquinário (esteiras, estrados e etc) da prefeitura são prometidos por Ivan a Alírio de Oliveira e
sua associação; 2º) no comício de João Pedro Pedrossian, são prometidos “óleo, semente e estrada
cascalhada”; 3º) na reunião da AITRE, vemos que outros recursos de infra-estrutura (“padrão” para
instalação elétrica e caixas d´água compõem os elementos a serem negociados em torno de apoio
político, além da própria remuneração em dinheiro para os cabos eleitorais que realizam as
campanhas políticas).
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
331
4) Outro fator fundamental é ver como as alianças políticas se dão entre os diferentes atores
componentes do campo, e as unidades segmentadas nas quais os Terena se organizam; neste sentido
a reunião na Argola entre as lideranças indígenas e lideranças políticas do município são
emblemáticas; Inácio coloca a necessidade de uma “aproximação” com a prefeita, o que não tinha
acontecido nos 4 anos anteriores. Ele fala de como ele enquanto líder tinha ido várias vezes
diretamente ao Gabinete da Prefeita, sem ser atendido (é interessante que Alírio de Oliveira falou a
mesma coisa); a Prefeita Beth tinha um contato estreito com Tomás Martins, uma das lideranças
políticas da Argola, ex-cacique e presidente de uma das associações, a APRAA (Associação dos
produtores Rurais da Aldeia Argola). Inácio reclama que Tomás manipulava as informações,
impedindo o dialogo entre ele e a prefeita, e que muitas vezes “a prefeita fala com um e pensa que
está falando com todos mas não está”. Ou seja, as máquinas (tratores) que eram enviadas para
aldeia Argola, eram gerenciadas por Tomás Martins, que monopolizava o acesso e definia os
critérios de sua utilização, assim como de outros recursos. Ou seja, a aliança com uma facção
indígena leva a exclusão das outras da comunicação e da participação na distribuição dos recursos
que circulam nas relações dentro do campo de relações entre índios, instituições de Estado e grupos
políticos locais; é o mesmo tipo de relação de exclusão que Alírio de Oliveira denuncia na Sede
com relação a ele e sua associação; “A política sempre traz a proposta, mas nunca é cumprida a
proposta. Então toda política, todo ano tem sido assim. Principalmente essa prefeita que tá agora
ai nunca fez nada para nós. No dia que falou lá, dia que o Zeca do PT veio, que ele tem ajudado a
associação, pelo menos a minha associação não tem ajudado não, pelo menos se abrisse a porta
para mim para conseguir conversar com ela a gente ficava satisfeito. Quando eu vou procurar na
prefeitura, fala que ta viajando, reunião e quando procura o marido dela, fala que tá na obra. Ia
várias vezes, só falava com um tal de Serginho, então ele me passava que a prefeita tava em
reunião, tava viajando. É desse jeito. Até que nos desistimos da prefeitura. Questão de Zeca a gente
não tem anda a ver com o Zeca, fizemos nossa parte, votamos já para ele, se for preciso nós
estamos em peso do lado dele de novo. Agora a questão é dessa mulher, da prefeita”. (Alírio de
Oliveira Metelo/2004); o mesmo foi falado por Mário de Albuquerque, no comício, em que
questiona a política da prefeita para a AITECA. O poder compartilhado pelas elites locais com
determinadas facções indígenas leva diretamente a exclusão das outras facções, e implica sempre
numa política de rebaixamento e de repressão de uma em relação às outras.
As trocas de recursos materiais e poder político (cedido pelas lideranças das elites dirigentes
e grupos políticos locais, pelas autoridades representantes do Estado) por apoio político na forma de
voto e obediência das lideranças indígenas, reproduz em grande medida as formas de
colaboração/aliança desenvolvidas pelo SPI/FUNAI. Na realidade, como vimos, existe uma
profunda e intensa disputa política entre as facções indígenas Terena, para acumular bens e poder
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
332
para sobrepujar as facções rivais, o que parece ser o grande objetivo dos líderes Terena. Neste
sentido, as alianças com as elites e líderes políticos municipais e estaduais, são uma forma de
aumentar o poder político destas facções indígenas, para reforçar uma dominação horizontal,
através de políticas de colaboração com agências do Estado e grupos dominantes na política local. E
nesta direção, se valem inclusive dos próprios dispositivos do regime tutelar, do acionar constante
das suas técnicas e dispositivos de poder, para garantir seus interesses.
Na realidade o que o Terena chama de líder, o “Tuuti” ou “Cabeçante” em português, na
realidade é avaliado por sua capacidade de construir e manter estas relações de aliança. A
capacidade de manter “boas relações” com as autoridades políticas (prefeito, governador,
vereadores, representantes da FUNAI) é talvez o grande critério que torna uma liderança aceita, e
ao mesmo tempo, a incapacidade de manter esta comunicação regular e eficaz com os “donos do
poder’ o que leva a sua rejeição e derrocada política. A capacidade de conseguir bens materiais e
recursos para si e para seu grupo é uma conseqüência desta capacidade de comunicação e
relacionamento. Um bom líder é “bem relacionado”, e por ser bem relacionado ele consegue ter
acesso a recursos; esta é a equação que avalia o líder.
O papel da FUNAI não deixa de ser importante dentro desta configuração; por mais que
tenha perdido recursos e competências (educação para as prefeituras, saúde para a FUNASA), ela
ainda se apresenta como um espaço de poder para os índios, o qual é sempre procurado. Desta
maneira, o que não se consegue na Prefeitura ou Câmara de Vereadores, busca-se na FUNAI e vice-
versa.
Nas eleições de 2004, estas relações de aliança estavam sendo refeitas, seja para confirmar
as alianças estabelecidas nos anos anteriores, seja para desfazê-las e construir novas alianças. Neste
sentido, vejamos algumas das alianças: Ivan, do PDT, conseguiu estabelecer alianças com a ACIC
na Sede tendo o apoio de lideranças como Alírio de Oliveira, Argemiro Turíbio em troca de
fornecimento de tratores e implementos agrícolas, e também do apoio a candidatura de Edílson
Antonio Pedro; na Argola ele estabeleceu uma aliança importante com Adelino José e Aldo da
Silva, também candidato a vereador; João Pedro, do PSDB, estabeleceu sua rede de apoio através de
Esídio e Mário Albuquerque.
No Morrinho conversamos com um dos “coordenadores de campanha” de João Pedro, Felix
da Silva Canali. Disse que o candidato o procurou na casa dele, através do seu tio, Esídio
Albuquerque. Ele nos disse que é através da política que consegue semente, trator. Afirmou estar
coordenando uma equipe de 11 cabos eleitorais no Morrinho
116
.
116
Ele citou os nomes de Zilo Muchacho, Mateu Antonio, Robson Julio, Bento Silverio, Aparecida Raimundo,
Argemiro Polidoro e Miguel Barbosa, que teriam participado da sua equipe.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
333
Em uma conversa com Vitorino Paulino, nascido em 05/05/1948, morador da Sede, falou
sobre as eleições e que coordenou uma equipe de 26 pessoas, sendo que os cabos eleitorais
ganhavam 60 por quinzena e os coordenadores 130,00. Pessoas com que trabalhou: esposa, filhos e
filhas; Valdirene Pedro, Dionísia Belisário (irmã da esposa), Emilio Polidório, Maria José
(esposa do irmão), Marilza Matias, Valentino Lemes, Zenildo Batista (nora), os demais disse
não se lembrar. O quadro abaixo mostra a existência de um mercado temporário de trabalho na
politica local.
Quadro 38 Mercado Temporário de Trabalho na Política Local.
Candidatos João Pedro Pedrossian
PSDB
Ivan Paz Bossay
PDT
Beth Almeida
PT
Total
Valor Pago R$100, 00 por quinzena (60 dias)
R$ 40.000, 00
R$ 130 reais por
quinzena por
coordenador
R$ 60 reais por
quinzena por cabo
cabo eleitoral
R$ 42.240.
R$ 60 reais por
quinzena por cabo
cabo eleitoral
R$ 12.000
R$ 94.000
Coordenadores Felix da Silva Canali
Esídio Albuquerque
Deodato Lipú
Vacilio Elias,
Quintino Mendes
Ailson Vitor
Evandro Antonio
Gordo Nelinho
Cutia,
Francisco
Neito
João Leiteiro.
Joazinho, Antonio de Arruda
Rogério
Coordenadores: Alírio
(40) Adilson Júlio
(60) Vitorino Paulino
(26) Lírio Lemes (20)
Sabino Loto
Sabino Albuquerque
Quantidade de
Cabos Eleitorais
100 cabos eleitorais
176
50
326
Este quadro indica a importância econômica e social de tais alianças políticas; as estimativas
de circulação de dinheiro dentro da aldeia nos dois últimos meses do processo eleitoral, chegam a
R$ 94 mil, com pelo menos 326 cabos eleitorais que conseguimos identificar. Somente três
candidatos constam da tabela, porque somente para eles conseguimos informações sistemáticas. O
“tempo da política” possibilita a formação de um mercado de trabalho temporário, em que são
agenciadas as lideranças indígenas que funcionam como intermediários (como os “cabeçantes” das
Usinas); devem recrutar, organizar e executar o trabalho, receber o dinheiro e fazer o pagamento
dos “cabos eleitorais”.
As principais lideranças políticas é que articulam os acordos e normalmente acionam seus
parentes ou pessoas de confiança para assumirem a coordenação do trabalho; é o caso de Esídio
Albuquerque, Sábio e Alírio. Estes líderes normalmente atuam de forma mais discreta (por
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
334
exemplo, Sabino não assumiu que trabalhava com Beth Almeida, mas no comício do Zeca em
Cachoeirinha foram seus ônibus que transportaram grande quantidade de pessoas até a Sede para
participar do evento). Além de Sabino, também Dionísio Antonio coordenou equipes e apoiou a
candidatura de Beth Almeida.
Este “mercado de trabalho temporário”, no qual muitos índios participam, é fundamental
para entender as relações de poder no contexto da política local. Enquanto que as lideranças buscam
efetuar “trocas” com lideres das elites locais, grande parte da população encara esta atividade como
uma “changa”. O volume de dinheiro total consiste de uma soma importante, e o percentual da
população indígena empregada nas eleições chega a mais de 10% - somente considerando os 326
cabos eleitorais identificados acima, mas deve ser maior.
Podemos dizer que durante as eleições de 2004 ocorreu a seguinte configuração: na Sede,
um líder de facção estabeleceu uma relação de aliança política com Ivan, foi Alírio de Oliveira
Metelo; Esídio e Mário de Albuquerque estabeleceram relações de aliança com João Pedro
Pedrossian; Sabino de Albuquerque e Dionísio Antonio, estabeleceram uma relação de aliança
política com a Prefeita Beth Almeida do PT. Na realidade, estas relações também tem precedentes
históricos; Sabino por exemplo tinha no início dos anos 1990, uma relação de aliança com Roberto
Almeida (marido e do mesmo grupo de interesses que Beth Almeida), mas brigou com ele e ficou
com o apoio do Governo do Estado; ele também já trabalhou com Ivan Paz Bossay durante um
certo tempo, e passou a se articular com Beth Almeida possivelmente a partir de 2000, quando ela
foi eleita; Alírio e os grupos do “Cruzeiro” apóiam Ivan desde 2000 e mantiveram esta posição em
2004; Mário Albuquerque trabalhou com Beth Almeida em 2000, mas tendo suas expectativas
frustradas, mudou sua aliança para João Pedro Pedrossian. Assim, cada facção indígena, cada grupo
de parentesco e vizinhança, constrói sua própria rede de alianças políticas de forma autônoma e
muitas vezes concorrente com as outras; da mesma forma que estabelecem relações comerciais e de
trabalho enquanto famílias extensas ou indivíduos. Assim, as facções organizadas também em
associações, impulsionam a dinâmica política sob a forma de conflitos por recursos e poder político.
Os líderes de bairros que conseguem ser mais eficazes na comunicação e relação com os líderes
políticos locais, são aqueles que tendem a manter sua própria liderança e poder pessoal e faccional.
A descentralização faccional, num contexto de escassez (socialmente produzida e relativa)
de recursos abre espaço para uma dinâmica de concorrência entre as facções, que termina com o
estabelecimento de um “monopólio” sobre certos recursos e poderes locais possibilitado graças à
aliança/colaboração com os membros das elites locais, que atuam como patrões na relação
clientelista. Esta descentralização faccional, que provocou em parte mudanças no regime tutelar, e
abriu espaços de poder aos índios, é a mesma que garante a reprodução da dominação centralizada.
Mas esta relação clientelista, que aparece sob formas de colaboração voluntária e reciprocidade, se
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
335
assenta também sempre sobre a possibilidade da repressão garantida especialmente através das
relações de trabalho formais que podem derivar das trocas (empregos em instituições públicas, por
exemplo), além da exclusão do acesso a recursos públicos.
No contexto da aldeia, a Escola e o Posto de Saúde da FUNASA, assim como o Posto da
FUNAI, apresentam-se não somente como instituições políticas, ou difusoras e reprodutoras de
mensagens simbólico-culturais, mas se apresentam como espaços de trabalho acessíveis aos índios,
e com uma remuneração regular e estável (o que o trabalho da lavoura não oferece) e com um
trabalho mais leve (por serem atividades de cunho intelectual, ou mesmo manual, mas sem muito
desgaste) que aquele das Usinas. Assim, as instituições locais e os postos de trabalho são também
integrantes do circuito de trocas clientelistas (emprego de professor ou merendeira na escola; de
servidor do posto de saúde; e mesmo de chefe ou zelador do Posto da FUNAI). A indicação para
estes cargos assim tem múltiplas dimensões. Iremos analisar abaixo como dentro da política
faccional e do regime clientelista, se dão os processos de dominação política.
A Escola Indígena: a experiência da co-gestão e da coerção.
No início do século XXI, as comunidades da Cachoeirinha desenvolveram uma política para
alcançar a “gestão” da Escola dentro das aldeias. Nesse sentido, a criação da “Escola Indígena”
pode ser tomada como um caso para o aprofundamento da análise do projeto político de “co-gestão
indígena”, de “ocupação de espaços” de representação política.
Devemos registrar aqui a importância que a Escola enquanto instituição adquiriu na vida e
na organização social dos Terena. Podemos dizer que a Escola se constitui não só num mecanismo
de mobilidade profissional individual e familiar, mas é também depositária de uma expectativa
coletiva relacionada ao grupo étnico como um todo. As percepções simbólicas do grupo atribuem
uma valorização expressiva à educação, escolarização, incorporando-os mesmo como valores do
grupo. A educação é vista como um instrumento político e como símbolo de uma melhor posição de
poder na sociedade brasileira. Podemos ilustrar isso por algumas informações colhidas junto aos
indígenas.
Numa conversa informal ocorrida entre o chefe de Posto de Cachoeirinha, o Cacique e
etnógrafo em Campo Grande, logo após uma audiência pública sobre a questão indígena, o chefe
comentou: “ os nossos parentes foram enganados na questão da terra, perderam muita terra
porque não tinham estudo.”
O índio Terena Wanderley, na ocasião membro de uma comissão especial de educação
escolar indígena da secretaria estadual de educação do mato Grosso do Sul e depois administrador
da FUNAI, afirmou na Audiência Pública A Dívida de Mato Grosso do Sul com os
Índios”,afirmou:
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
336
“A educação joga um papel muito importante na questão da afirmação identitária,por que?.
Porque é na escola que nós vamos estudar muito da nossa história que foi negada (..). Aí as
pessoas vão ter orgulho de ser índio, vão saber de onde vieram,e porque estamos hoje numa
situação dessas, de conflito,queiramos ou não, de animosidade,de insegurança, de incerteza e
de aflição. (...) E quero fazer um apelo aqui a toda liderança indígena, discutam no mesmo
teor,no mesmo nível, com o mesma ênfase que se discute o óleo, semente, trator,discutam
também o papel da educação para as nossas comunidades”. (fl 157-159).
O antropólogo Kalervo Oberg, nos anos quarenta do século XX, já registrava mesmo que de
maneira superficial esta valorização da escolarização por parte dos Terena:
“The attitude of the local Brazilian toward the Terena is one of tolerant disdain. Like other
Indians they are sometimes called bugres, a term o abuse associated with sodomy and heresy.
(…) A Terena, on other rand, accepts Brazilians in general as superiors but adds that if he
were better educated he could compete with a Brazilian on equal terms. (OBERG, 1948, p.38).
Esta importância simbólica e identitária atribuídas pelos Terena a Escola pode ser percebida
também no fato da classificação das Escolas existentes dentro de Cachoeirinha; com exceção da
escola Pólo que leva o nome de Coronel Nicolau Horta Barbosa, todas as extensões levam os nomes
de lideranças indígenas, caciques ou líderes de famílias extensas. Cada extensão existente em cada
setor leva um nome: Sala Luís Raimundo, em Morrinho; sala Alexandre Albuquerque, na aldeia
Lagoinha; sala Felipe Antonio, na aldeia Argola; sala José Balbino, na aldeia Babaçu; sala José
Caetano, na Sede (todos fundadores ou antigos moradores das respectivas aldeias). Nestas escolas
trabalham cerca de 20 professores indígenas, de um total de 25 que conseguimos identificar,
estando duas professoras já aposentadas.
A Escola é parte do espaço da aldeia construído simbolicamente, em que a percepção
indígena se objetiva em instituições materiais, que para além das funções específicas, operam como
espaços de referência e memória coletiva. Esta importância simbólica se associa conseqüentemente
a uma diferença social e política, que faz com que os professores se destaquem como agentes
políticos dentro das aldeias e dentro da política local como um todo.
As Escolas ocupam um lugar importante na vida e na cultura dos Terena. Mas devemos
observar, no entanto, como a instituição se insere na dinâmica da política local, e como estas se
entrecruzam com as relações de trabalho e poder, configurando assim uma complexa configuração
na qual se desenvolve a vida do povo Terena. Debateremos esta temática ao analisar as relações e
restrições que se impõem as ações dos professores indígenas.
A Escola serviu também como um importante espaço de formação das lideranças políticas
Terena. As trajetórias individuais mostram que muitas vezes elas podem servir para preparar futuros
candidatos a “caciques” especialmente os mais jovens dentro de determinadas facções, ou então
administradores para a FUNAI e outros cargos. Dois casos ilustrativos disso são os de duas
lideranças da vila Cruzeiro: Argemiro Turíbio e Edílson Pedro.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
337
Argemiro, em sua trajetória individual, começa sua atuação ele mesmo o lembra na
Igreja Católica. Depois, investe em seus estudos, sai para estudar um curso técnico em agropecuária
e retorna a aldeia em meados dos anos 1980, onde começa a atuar como professor. Participa, assim
como sua esposa, Marlene, da experiência de mobilização dos professores indígenas, e depois seria
candidato a vereador e eleito em 1998. Seria eleito cacique em 1991, e depois de deixar o cargo
passaria a ser presidente da ACIC.
Edílson Pedro, filho do ex-cacique Mário Pedro, tornou-se professor. Como vimos, foi
também candidato a vereador em 2004, com o apoio da ACIC e dos lideres e parentela residente na
vila cruzeiro, estando sendo preparado para assumir tarefas de “gestão” e administração dentro da
aldeia. A Escola e atuação enquanto professor auxilia na formação de lideranças e na construção de
redes de comunicação dentro da política local.
Os dados quantitativos reproduzem essa tendência a busca da escolairazação pelo povo
Terena. Obtivemos acesso a informações da Administração Regional da FUNAI
117
sobre educação
indígena para os anos de 1998, 1999 e 2000. Os dados relativos à escolarização da população
indígena também são significativos. Em 1999 eram 3.684 os alunos que estudavam dentro das
próprias áreas indígenas (3629 no ensino fundamental e 55 no ensino médio). Estudando fora das
áreas indígenas existiam 240 alunos (152 no ensino médio, 88 no ensino superior público
federal
118
). Eram 33 escolas em áreas indígenas, destas 28 ficam localizadas em aldeias Terena
(dessas escolas, muitas são extensões de escolas que ficam localizadas fora das aldeias).
Do total de alunos, 3.377 estavams nas áreas Terena (mais de 90% do total na FUNAI/AER
Campo Grande). Em 2000 o total de alunos subiu para 3.975. Destes, 3.577 estão em áreas Terena.
O volume de alunos cresceu e os Terena mantiveram a proporção de 90% do total de alunos.
É interessante registrar que nos documentos relativos ao ano de 1998 o número de alunos no
ensino médio dentro das aldeias é 0 enquanto que em 1999 é de 55. Isto revela que foi
implementado o ensino médio dentro de algumas aldeias apesar dos documentos não apontarem
quais.
Dados de outubro de 2000 apontam à existência de 4.065 estudantes nas aldeias distribuídos
em 38 escolas (26 escolas de 1º à 4º, 8 escolas de 5º à 8º e 4 escolas de ensino médio). Do total de
alunos 309 estão na educação infantil, 3.666 no ensino fundamental e 90 no ensino médio. Fora das
aldeias o número era de 345 (dos quais 78 estavam cursando o nível superior).
O total de professores no ano de 1999 é de 152. Destes 105 são indígenas (96 do órgão
Municipal e 9 do Federal) e 47 “não índios” (em 1998 eram 78 os professores indígenas e 47 os
“não índios”. Dessa maneira, em um ano, houve um crescimento na contratação de professores
117
Estes dados referem-se às populações das áreas discriminadas nas tabelas.
118
FUNAI/AER-Campo Grande, seção de educação 1999.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
338
indígenas da ordem de aproximadamente 15% (27 professores contratados). Em 2000 são 116 os
professores índios e 55 os não índios).
Entre 1998 e 2000 o número de estudantes cresceu tanto dentro quanto fora das aldeias, no
ensino infantil, médio e superior. Cresceu também o número de professores indígenas dentro das
áreas indígenas (foram contratados 38 professores indígenas para 8 não índios) entre 1998 e 2000.
Existem alguns dados sobre as áreas de trabalho deste quadro de professores. Não consta, no
entanto no documento o ano de sua produção e muitas das suas informações não batem com as
anteriores. Caso os dados sejam precisos, num universo de 79 professores indígenas, 1 está em área
Guató/Corumbá, outros 8 em área Kadiwéu em Porto Murtinho e todos os demais em áreas Terena.
A presença Terena no ensino superior na FUNAI/AER - Campo Grande também é
majoritária. Dados de 2001
119
apontam a existência de 110 alunos matriculados em cursos
universitários. Destes dois são Caiuás e um Kadiwéu. Todos os demais são da etnia Terena.
Em Cachoeirinha existem cinco Escolas, sendo uma delas a Escola pólo “Coronel Nicolau
Horta Barbosa”, localizada na Sede, que tem cinco extensões, uma em cada setor: Babaçu,
Morrinho, Lagoinha, Argola. Esta Escola foi transformada em Escola Municipal Indígena pelo
decreto municipal nº 1224 de 12 de novembro de 2001, que transformou a Escola Pólo Coronel
Nicolau Horta Barbosa e instituiu as demais como extensões suas. O decreto municipal 1262 de 26
de agosto de 2002 substitui a designação “escola” atribuída às extensões no decreto 1224 por
“salas”.
As extensões são construções pequenas, com duas salas de aula, que se localizam
normalmente nas áreas centrais das respectivas aldeias. Do ponto de vista administrativo, as escolas
dos setores são subordinas a Escola Pólo, seguindo uma mesma organização pedagógica. O caráter
de Pólo atribuído a Escola lhe dá autonomia administrativa dão poder de escolha de um diretor.
A história da construção da “Escola Indígena” remete a processos locais e também
nacionais. Um desses processos é a desvinculação da educação indígena da FUNAI, e sua
transformação em atribuição dos poderes municipais. Parece que em Cachoeirinha a escola foi
administrada pela FUNAI até 1985.
A Escola teria passado ainda por período na rede estadual. Segundo os moradores, isso teria
se dado num momento em que Sabino Albuquerque era cacique. Ele tinha uma aliança com o então
prefeito, que foi rompida por desentendimentos políticos. Sabino teria conseguido o apoio do
Governo do Estado e teria, com o apoio do CTI, reivindicado e conseguido estadualização da escola
exatamente para fugir ao controle que a prefeitura exercia, através dos mecanismos de contratação
temporária de pessoal.
119
FUNAI/AER-Campo Grande. Diretoria de Assistência Departamento de Educação.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
339
Nos anos 1990, o CTI desenvolve ações de incentivo a formação de uma associação de
professores indígenas em Miranda. A formação da APROTEM (Associação dos Professores
Indígenas Terena de Miranda) em 1994 indica o amadurecimento deste processo na região de
Miranda. Outros esforços de organização dos professores Terena teriam se dado também nos anos
1980.
Mas o impulso final na direção da formação da Escola Indígena se daria no período 2000-
2001, quando lideranças indígenas negociaram tal questão junto a Prefeitura, durante o primeiro
Governo de Beth Almeida. As narrativas de alguns professores mostram como algumas questões
estavam colocadas: como autonomia administrativa e pedagógica e relação da escola com a
secretaria de educação e prefeitura.
O professor Genésio Farias, que foi diretor interino da Escola Indígena, narra assim a
historia da escola:
“Aí fizeram um convênio, contratando professores, né, pagos pelo Estado. Aí, com essa
documentação do pedido, aí que transformou a escola, a escola indígena. Quer dizer, tem uma
diferença de entendimento. Esse documento aí, nunca foi referido pelo Município. Nunca
aparece no discurso, dizer assim Ah, esse documento, que a gente começou a pensar isso...
Elas nunca falam isso.
Nunca falam que foram vocês que tomaram a iniciativa.
Não, não, nunca. A idéia foi nós, né. Foi nós que fizemos a escola indígena. Agora, na verdade,
foi assim, essa escola indígena que aconteceu... Nós pedimos pólo, mas pra começar ela teve
uma reunião. Interessante que a gente não comentou, com medo de problematizar o assunto.
Desde que, quando a liderança entrou pediram pra liderança que querem a escola indígena,
nós não problematizamos pra não atrapalhar. Essa é nossa idéia. Aí o que a liderança falou
Isso é um pedido nosso há muito tempo. Nós queremos a escola indígena. Então, muito bem.
Nós vamos fazer essa escola aí pela prefeita, dizendo que a gente vai fazer, mas quando que a
gente não sabe. A gente não tem equipamento, a gente não tem teoria pra isso. Mas, vamos
fazer, e der o que der. Vocês serão responsáveis, os professores. E ela disse uma frase, assim,
interessante, falou assim Se a gente não souber levar essa escola, a gente pega nosso
violãozinho, põe no ombro, e a gente volta novamente começar a fazer o que era antes. Ela
usou essa frase. Ela falando da inexperiência, porque ninguém tem experiência. E justamente
era aquela argumento nosso quando dizemos que a gente não quer ir na frente da liderança,
pedindo a escola indígena, porque sabemos que é complicado. Como é complicado até agora,
não é fácil essa questão.
Como é que foi o papel da APROTEM em relação a isso?
Essa história, da... nós tivemos também relacionamento com ONG, né. Nós tivemos
relacionamento, por exemplo, a CTI de São Paulo... Então, nós tivemos um... o cacique Sabino,
ele teve uma aproximação com essa ONG. Me parece que foi em 80, eu não lembro quando que
é, não. Então essa ONG fazia um projeto em nome do lugar onde eles trabalhavam eles
conseguiam recurso, e entravam em contato com a liderança. E a liderança quando pensava na
educação, o que ele pedia? Pedia uniforme... Porque a educação é uma questão muito
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
340
complicada. Falar dela, o líder falar da educação. Então, quando a Maria Luiza que era
coordenadora da educação do CTI chegava, tinha mais conversa com ele, e eu como professor,
eu não concordava. E não concordava. Primeira vez a Maria Luiza sabia que eu tinha um
pensamento diferente, primeira vez que eu tive contato com ela, sentamos bem na frente
daquela escola da... Porque nós não concordamos também como o Sabino fazia. (...) E naquele
momento a proposta dela era justamente a APROTEM. Ela entendia que os professores devem
se organizar para poder fazer frente a essa questão do problema aí, do Município. Tinha muito
problema de evasão, naquela época, né. Muito problema de evasão. O problema era sério na
escola. E a proposta dela era a criação dessa organização de professores, e nós concordamos,
fizemos essa organização. Primeiro foi aqui em Cachoeirinha, depois nós puxamos para os
outros. Aí, na fundação dela mesmo, foi com todos os professores de Miranda. Então, acho que,
mais ou menos, é isso, a história da... Porque, na verdade a gente tem relação com essa
entidade até agora, né, ainda tá esperando, depende da gente conversar. Porque a comunidade
convidou ela para ser acessor dessa briga, só que a gente não está abrindo a porta, convidando
ela, né, porque a gente vê muito problemática aqui, né. Ou seja, trazer ela, porque o Município,
uma vez ela veio, fez reunião, né, nós fizemos reunião, tivemos muita briga com ela, então a
secretária, ela não tem boa relação com ela. Então, com isso, a gente não puxa ela, mas de vez
em quando tá mandando umas cartas aí, né Como é que é, a gente vai trabalhar? Tudo bem,
nós estamos aí pra trabalhar, né.
Quer dizer, a APROTEM surgiu desse diálogo com o CTI?
É, a questão da APROTEM. E às vezes ela reclamava que a gente não fala o nosso discurso, o
CTI, né. Que a gente não fala. (Riso) Agora eu faço questão do trabalho ser, né... A gente
apresentar o nome dele. Que na verdade fizeram um trabalho de incentivo, só, incentivo. E
muitas brigas... E o problema maior, eu acho, não sei, acho que vem contra nossa cultura,
umas coisas assim, né. A gente faz confronto com município, e ela sempre fazia essa proposta
Não pode abaixar a cabeça. Tem que enfrentar. E a gente nunca cedeu, até agora. Não sei se
você está percebendo esse nosso posicionamento, em relação nós mandar carta, que essa nossa
carta, a gente não cria essa briga assim, de frente a frente, né. Não sei se é cultura, alguma
coisa assim... uma questão de verificar e saber, né.” (Genésio Farias, Abril-Maio/2003)
Ou seja, a discussão acerca da escola indígena é remetida iniciativa indígena dos caciques de
reivindicar o projeto de formação de uma escola “pólo” independente das escolas rurais ou das
escolas municipais urbanas. A adoção dessa proposta pela prefeitura se deu através do dialogo das
lideranças indígenas, APROTEM e a prefeita Beth Almeida. A criação da Escola Indígena
possibilitaria a criação das eleições para a diretoria da escola, tornando-se mais um espaço de
disputa política dentro da aldeia. É importante observar os atritos em relação ao CTI e a diferença
de estratégia política, que não visava o enfrentamento mas a colaboração e o dialogo com a
prefeitura.
Outro professor indígena, Eliseu Lindolfo Sebastião, que foi o primeiro diretor eleito da
escola comentou:
“Olha, a construção, se bem que na verdade nós continuamos nessa batalha, nessa luta de
conquistar realmente a escola indígena. Que, na verdade, o que está funcionando é uma
experiência da prefeita, dona Bete, também da secretária, a professora Célia. Que na verdade
ainda não é a escola indígena, não é essa a escola que a gente tá batalhando por ela. Continua
sendo municipal escola municipal indígena mas comparando com a gestão anterior, já dá
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
341
pra perceber diferença. Que antigamente era considerado como se fosse uma escola rural... da
fazenda. Não tinha essa diferença. Que a questão indígena é super diferente. Comparando a
escola que fica na área indígena é diferente da que fica na área rural... nas fazendas, por
exemplo. É superdiferente. E com essa administração da dona Bete, logicamente com a luta dos
caciques e da APROTEM, que fizeram essa reunião, onde foi feita essa proposta de criar a
escola indígena, aqui dos três povos. Aqui em Cachoeirinha, La Lima, Pílade Reboá. Onde a
prefeita entendeu que é um pedido da comunidade, não é de uma pessoa. Onde a prefeita
decidiu, teve essa ousadia, e até ela falou Vamos fazer essa experiência, vamos juntos fazer
essa experiência, se eu errar, todos vão errar, não vou errar sozinha. Então foi uma ousadia
através da prefeita, e com isso foi criada a escola indígena e onde eu trabalhava também a
portaria do reconhecimento junto ao conselho estadual de educação, e graças a Deus foi
reconhecida à escola. Tanto a escola daqui, da La Lima, e da Pílade. Mas que não foi fácil não.
Foi uma luta grande mesmo.
Qual a diferença do que vocês pedem em relação a escola indígena, com o que vocês têm
hoje?
Hoje, o que dificulta, bom, não tanto agora. Mas pensando comparando a escola sendo
considerada como escola rural, é uma escola onde acaba sendo manipulada, e essa
manipulação, a gente tá querendo colocar um ponto final, a escola não ter liberdade de decidir
sua própria política, o seu próprio plano político pedagógico. Isso é uma coisa que se a escola
não tem, é praticamente uma escola sem objetivo. E o que nós queremos com isso? A escola que
tenha autonomia e seja uma escola que tenha o seu objetivo, qual é a sua meta enquanto um
estabelecimento de ensino, de educação. (Eliseu Lindolfo Sebastião, Abril-Maio/2003).
Nesse sentido, a autonomia administrativa e pedagógica reivindicada e a independência em
relação às lutas políticas locais era um dos objetivos da “Escola Indígena”. Entretanto o depoimento
do próprio Eliseu mostra que na realidade na gestão do primeiro diretor eleito existiam restrições a
essa autonomia. Tal problemática remte a própria historia da construção da Escola Indígena e
também as relações políticas dentro do município. No período 2004-2006 alguns acontecimentos
irão marcar mudanças nessas relações (especialmente as eleições municipais 2004 e o processo de
luta pelo poder dentro da Cachoeirinha).
A análise de algumas trajetórias individuais e situações de conflito (envolvendo professores
indígenas e poderes locais) permitirá uma compreensão do funcionamento da “co-gestão” indígenas
no nível local da política. O projeto da gestão indígena parece esbarrar nas relações de poder dentro
da Escola tomada enquanto espaço de trabalho. As relações entre trabalho e política serão aqui
consideradas do ponto de vista das práticas que as equacionam numa totalidade complexa e
dinâmica. Entendemos que esta vinculação é tão estreita que nos permite pensar na necessidade de
formular o problema das relações interétnicas, pelo menos em parte, em função delas. È preciso
considerar que a Escola é não somente um espaço simbólico e político, mas também um espaço de
trabalho, em que os índios buscam empregos assalariados. Sem considerar essa dimensão, é
impossível compreender o funcionamento da co-gestão indígena.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
342
Iremos delimitar inicialmente o universo de pessoas consideradas, ou seja, de professores
indígenas Terena com quem conversamos e interagimos.
Professores Professores Professores
Marlene Lipú Maria Rosário Gonçalves Rui Sebastião
Anésio Alfredo Pinto Nerci Julio Raimundo Sebastião Rodrigues
Celinho Belizário Luzinete Julio Aldenira Pinto Julio
Josefina Muchacho Edílson Antonio Pedro Eduardo Candelário
Nilza Júlio Anilson Julio Marlene Rodrigues
Amarildo Julio Helena Antonio da Silva Isidoro Pereira Pinto
Maiza Antonio Aronaldo Júlio Olavo Pinto
Silviana Augusto Vania Antonio da Silva Eulógia Aguiller Albuquerque
120
Temos aqui um número total de vinte e três professores indígenas. Selecionaremos algumas
entrevistas e informações levantadas junto a eles sobre esta a questão da relação entre trabalho e
política, que mostram as formas concretas pelas qualis a co-gestão se estabelece. No entanto cabe
antes caracterizar a própria forma de inserção destes indígenas nas relações de trabalho, o que acaba
condicionando e influenciando a própria dinâmica política indígena dentro das aldeias, a ação dos
professores e também a própria política local.
Pelo que conseguimos apurar, apenas 3 dos 23 professores indígenas são funcionários
públicos concursados, o que lhes garante do ponto de vista jurídico-trabalhista, estabilidade no
emprego, sendo que dois destes se encontravam aposentados em 2006 e um em atividade. Os outros
professores são “convocados”, ou seja, tem vínculo empregatício com a prefeitura regulado por um
contrato temporário, renovado anualmente mediante a convocação da prefeitura.
Iremos analisar três casos diferentes em que se coloca o entrecruzamento das relações de
trabalho, do seu lugar na vida indígena e as relações de poder. Todos os três professores são
membros de parentelas importantes e grandes dentro da Cachoeirinha. Começaremos relatando o
caso do professor Anésio Pinto, um dos três mais antigos da Cachoeirinha, que começou a atuar na
década de setenta como professor. Ao descrever sua história de vida ele fala:
Primeiramente, diga seus dados pessoais. Nome, nome dos pais, escolaridade.
“Meu nome é Anésio Alfred Pinto, tenho 45 anos, etnia Terena, professor há 25 anos. Meus
pais são naturais de Aquidauana e eu também sou natural de Aquidauana, mas atualmente tô
morando aqui no município de Miranda, meus pais chama Ricardo Pinto, falecido, e minha
mãe Mariana Alfredo Pinto, falecida também. Meu pai teve só 4ª série primária, agora eu como
filho dele terminei o magistério e cursei um ano de faculdade mas não terminei.(...)
Queríamos que você falasse da sua trajetória como professor.
120
Esta professora é uma Purutuye casada com um Esídio Albuququerque e mora em Cachoeirinha há muitos anos.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
343
Em 1973 me fizeram um convite, a aldeia Argola me fez um convite para dar aula para os
adultos. Antigo Mobral, onde qual eu dei aula 1 ano e 6 meses. Ai depois eu vi, eu casei com
minha esposa, eu vi que tava meio difícil já de sustentar os meus filhos, depois eu desistir,
depois de 1 ano e 6 meses, ai eu tive que sair para poder sustentar os meus filhos, por causa
que o pagamento naquele tempo era muito atrasado, o Mobral num pagava assim mensalmente,
então ai eu tive que sair. Foi quando eu sai para fazenda onde qual me procuraram, onde eles
me localizaram, né, então eles me localizaram eu tava numa fazenda trabalhando, e ai eles
mandaram me chamar...
Quem chamou?
Foi a secretaria de educação porque naquele tempo o Mobral era vinculado através da
secretaria de educação. Ai eu voltei e passei lá depois, ai chegando lá em Miranda eles deram
a oportunidade novamente para mim, ai eu comecei novamente. Ai eles tinham falado para mim
que o meu pagamento já estava em ordem. Ta bom eu vou voltar, vou terminar mais estes 4
meses, para poder ter o fechamento dos meus diários essas coisas, né. Tá bom.
Ai depois de 2 anos eu parei, ai onde qual as pessoas viram o meu serviço, os próprios pais e
mães dos alunos viram o meu trabalho, que estava bem assim progredindo através dele, porque
os adultos já estavam aprendendo a escrever os nomes, ai eles pediram para mim trocar. Ai
onde em 1978 me convidaram pra dar aula de primário até a 4ª serie, isso lá na Argola, onde
eu comecei a dar aula pelo Mobral. Ai eu comecei, fiquei lá um ano na Argola na escola Felipe
Antonio, ai onde esse pessoal daqui da aldeia Cachoeirinha onde eu moro viu o meu empenho,
os meus alunos tava já bem já adiantado, desenvolvido, aí eles pediram a minha mudança para
cá, isso foi já no ano de 1979. Aí eu comecei a dar aula aqui na Cachoeirinha, no ano de 1979.
Aí eu peguei o multiseriado que era muito difícil naquele tempo,num existia professores que
poderia dar aula para isso. Onde eu tenho a experiência de uma sala que é a multiseriada. Eu
apanhei um pouquinho, mas eu coloquei em ordem. Eu tive que ser um artista, porque 40
alunos numa sala era muito aluno pra mim.
Ai comecei, comecei e fui embora, e nunca mais fui transferido para outro lugar. (...)
De 1978 a minha ficha funcional já estava já em andamento, e quando foi em meados de 1978 a
minha carteira já foi assinada como professor, como professor efetivo no quadro permanente
da secretaria de educação. Aí continuei, aí quando foi no ano de 2000, não, me engano, foi
antes, na década de 80 o pessoal de Morrinho me pediram que desse aula lá também. Vendo o
meu desenvolvimento, e eu tive que atendê-los eles lá também, ai eu fiquei dois anos lá no
Morrinho, depois eu pedi a transferência novamente para Cachoeirinha onde qual eu fiquei até
o ano de 2000.
Aí no ano de 2000, sabe que a política do setor branco, ela quando a gente não está na ala, no
barco deles, ainda mais que eu era funcionário naquele tempo naquele ano, aí eles perceberam
que eu era contra eles, e o que eles fizeram comigo? Eles pediram minha transferência, eles
não pediram minha exoneração mas pediram minha transferência, e eu naquele tempo eu já
estava doente de diabete, sem motivo nenhum, porque a minha transferência? E ai no ano de
2000 eu fui mandado para a José Balbino, Babaçu, a três km daqui da aldeia central. Eu fui,
porque eu sou subordinado a eles, eu tive que aceitar essa mudança.
Aí fiquei um ano lá, na José Balbino, ai veio onde qual foi implantada a escola indígena no ano
de 2001, fizemos eleição, todas as pessoas votaram que moram nesta extensão de Morrinho,
Argola, Babaçu, Cachoeirinha, aonde foi lavrada uma ata, setecentos e poucos pessoas
votando naquele dia a escolha da direção da escola, daqui do Pólo Coronel Nicolau Horta
Barbosa. Isso ai já foi em 2001. Ai no 2001 eu concorri mas o professor Eliseu, mas a
professora Josefina, mas o professor Edvaldo, mas o professor Genésio, então tinha 5
candidato a concorrência, para ser diretor dessa escola pólo Coronel Nicolau Horta Barbosa
onde eu tive e 281 votos, o Eliseu teve 284 votos, então eu perdi por três pessoas a ele. E onde
qual o Eliseu atualmente agora ele está sendo como diretor, e eu deixei de ser professor e eu
continuei na secretaria, ainda estou na secretaria agora consecutivamente, estou indo para três
anos já, então. (Anésio Pinto, 21/04/2003).
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
344
O caso de Anésio é interessante. No contexto da cisão Cruzeiro X Mangao nos anos 1990, o
fato dele ter sido vinculado a facção de Sabino Albuquerque, teve algumas conseqüências. A
primeira delas foi que quando Sabino rompeu sua aliança com a Prefeitura, esta cancelou os
contratos de trabalho dos professores em represália e como forma de coerção. A articulação política
com o CTI possibilitou que a escola fosse transformada em Escola Estadual e dessa maneira
voltasse ao âmbito de influência da facção liderada por Sabino. Vemos aqui pela experiência
pessoal de Anésio, como o status ocupado pelo professor indígena dentro das relações de trabalho
se coloca como instrumento de poder de grupos político locais. O envolvimento de Anésio em
atividades políticas, nas eleições municipais, ou seja, no âmbito da política local, o colocou dentro
de uma dinâmica de poder em que os cargos políticos de Estado instrumentalizam a própria
administração no sentido de fazer valer seus interesses. E é o trabalho o ponto de articulação e de
incidência do próprio exercício do poder. A demissão, ou seja, a eliminação do sujeito do seu posto
de trabalho se constitui como um recurso de poder eventual a ser empregado para subordinar os
professores indígenas aos interesses de determinados grupos políticos. No caso de Anésio Pinto,
como este instrumento não estava disponível, foi empregado outro recurso de coação/punição pelo
não alinhamento político: a criação de dificuldades dentro do seu próprio trabalho.
Outro caso interessante é o do professor Edílson Pedro. Diferentemente de Anésio, ele é um
jovem que começou a trabalhar como professor há poucos anos. Sua experiência é distinta, como
podemos ver pelas suas palavras:
“Eu comecei estudando aqui em Cachoeirinha mesmo. Eu comecei a trabalhar aqui em 1998,
antes de concluir o magistério, e eu estava estudando ainda, onde as lideranças chegaram em
casa, disse que tava faltando professor aqui na aldeia, onde eu aceitei, sem ter formado ainda.
E como é que você vê a relação com a prefeitura?
Bom se eu falar individualmente da minha pessoa, eu não tenho esse conflito com a prefeitura...
Quando a gente é funcionário contratado, cada um dos professores tem que ter a política. Os
professores não podem se envolver muito na política, principalmente nos tempos de eleição.
Esse é o nosso problema. Nós não temos aquela autonomia para seguir um determinado
político, então devido ao trabalho. Se os professores contrariar a prefeita atualmente, ano que
vem, no ano mesmo ele é demitido. Nos professores andemos conversado sobre isso, tem que
tomar muito cuidado. (...)
Fique agora a vontade para fazer um comentário final ...
“Eu queria concluir com a questão da política. Eu tenho uns parente muito grande. E devido
aos problemas que a gente tem, a gente tem que cuidar. E eu não deixo minha família se
envolver, nem coordenar, as vezes político vai na casa da minha mãe, vai na casa dos meus
irmãos para trabalhar, para ser coordenador. E onde meus irmãos primeiro consulta eu,
porque eu sou dos irmãos deles que tem mais estudo, nenhum dos irmãos tem estudo, e consulta
se pode ou não,onde eu falo que não deve. Porque no caso se ele ta trabalhando de repente
perde, a oposição ganha, aí fica chato para mim, ai alguém fala “pô, aquele professor lá o
irmão dele tava trabalhando para oposição. Por isso que eu evito a minha trabalhar na parte
política”.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
345
O depoimento de Edílson é ilustrativo das formas das conexões existentes entre trabalho e
política. Vemos que a virtualidade do uso de mecanismos repressivos se dá não somente por conta
da ação do próprio professor na política, mas também devido a ação de suas redes de parentesco.
Destaca-se também o fato de no seu depoimento ele, pelo fato de ser professor, servir como uma
referência determinante para toda a sua família, quando esta queria se posicionar na política. Mas
não podemos perder de vista o fato que Edílson Pedro é filho de Mário Pedro, ex-cacique da
Cachoeirinha, e também morador da “vila cruzeiro”.
O alvo da “repressão” seria o próprio Edílson, que poderia perder o seu emprego na escola
da prefeitura caso seus familiares tomassem parte na política. Pelo menos este era o seu receio.
Aqui o mecanismo repressivo não operou, mas a sua existência foi suficiente para determinar o
comportamento político do professor indígena e de parte de sua família.
O último caso que analisamos é um pouco distinto dos dois primeiros. É o depoimento de
Aronaldo Julio, professor na Aldeia Argola:
Fala um pouco dessa situação que você comentou há pouco e que tipo de barreira vocês
enfrentam com a prefeitura.
Esses tipos de problema a gente já havia enfrentado muito tempo e como foi aumentando os
professores, as pessoas que terminaram e concluíram seu estudo, as própria liderança luta
para que possa assim lançar essas pessoas. Então nós enfrentamos muito problema,muita
barreira, a própria prefeitura faz com que nós aqui na área pudesse ter esse atrito. Porque era
aquele negócio de política. Era assim por exemplo. Se a professora Helena não votar nesse
prefeito na eleição dele ele é praticamente excluído. Não tem chance nesta gestão.
Então aconteceu isso. Ela é minha cunhada. Praticamente quem abriu essa oportunidade para
ela fui eu, porque os próprios brancos da cidade, vereadores, já me conhecem, porque eu tenho
assim trabalhado há muito tempo. Então lutamos assim, conversando, procurando chegar, fazer
com que ela tivesse oportunidade de trabalhar, conversei, ai já partir para a política, né, tive
que conversar com a família, com os pais, convencer a votar no tal prefeito para que ela tivesse
uma vaga, e deu certinho.
E neste mesmo processo de trabalho que aconteceu, o próprio prefeito na época me deu essa
confiança. Ele me perguntava, agora quem que vai ser o próximo professor, quem a gente vai
colocar nessas escolas?, ele falava pra mim. E eu vi que essa situação que ele me deixou, foi
uma situação assim muito difícil para mim, porque as próprias pessoas me apontavam como um
politiqueiro, vamos dizer como politicagem. Só que é difícil a gente, né ... por exemplo, ele
queria cortar o Celinho, mas ele não conseguiu, de acordo com a nossa inteligência,de acordo
com nosso talento,
Porque eles queriam cortar esses professores?
Porque esses professores não votavam nele.(...) Então eu convencia ele, senão ele mandava
pessoas de fora para trabalhar aqui. Então nessa situação que ele coloca a gente, a gente
acaba sendo filmado pelos nossos próprios patrícios.
A própria professora ali a Nilza, que é minha madrinha, o próprio prefeito na época num
queria dar oportunidade para eles, mas como é da mesma família a gente foi conversando, foi
formando assim para que a gente possa conseguir convencer ele para agente poder assim
trabalhar.
E depois foi criado esse grupo de professores, nós fomos aproximando cada vez mais, mas
mesmo com essa criação, com esse grupo que a gente tem agente sofre muito problema, muita
perseguição, muita política. Mas hoje eu posso dizer que nós temos conquistado muitas coisas.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
346
Nós temos uma vitória muito grande nesses dois anos. O próprio prefeito na época num dava
oportunidade.”(Aronaldo, Março/2006)
O caso de Aronaldo Júlio revela como a posição pessoal de poder coloca o índio que a ocupa numa
situação em que tem de conciliar dois padrões de interesses e lealdade; para com o seu “patrão” na
política, no caso o prefeito, ou para com os seus parentes. É ilustrativo também de como certos
professores são recrutados como espécies de “cabeçantes”, ou agenciadores de trabalhadores
mediante as ordens do patrão político local. Inserido nas redes faccionais locais, os certos
professores ou lideres indígenas tem um poder grande sobre a escola e os professores que nela
trabalham, através da sua relação com a prefeitura.
Logo, a experiência da “co-gestão”, da “ocupação de espaços”, também se dá por meio da
concentração de poderes nas mãos de indivíduos e facções indígenas. Observemos que Aronaldo
Júlio é de uma das maiores famílias da Cachoeirinha, e irmão de Adílson Júlio, um dos líderes que
se envolveu na luta contra Lourenço pelo posto de cacique. A família Júlio também é relacionada
por alianças à família de Dionísio Antonio, lembremos que professora Nilza Júlio é casada com o
atual cacique Cirilo Raimundo Pinto e que grande parte dos professores são dessa família, mesmo
que seus membros atuem em diferentes facções políticas, mas nas duas principais, ligadas a
Dionísio Antonio e Sabino Albuquerque.
Os acontecimentos que se desenrolaram depois das eleições 2004 mostram exatamente a
evolução dessas contradições. No ano de 2004, às 19h, encontramos o professor Anésio Pinto numa
das ruas da aldeia e conversamos um tempo com ele. Eles nos falou das movimentações que
estavam acontecendo. Disse que estava para ser mudada a direção da escola, mas ao invés de
serem realizadas eleições o “diretor seria indicado pela prefeita”. Falou também que o Sabino
queria mudar o Chefe de Posto. Disse que o Sabino está com muita influência política, por estar
junto com a prefeita Beth Almeida. E que foi ele que indicou o nome do Eliseu para Chefe e que
também a prefeitura quer influenciar a FUNAI. Afirmou que o Sabino o sondou (ele, Anésio) para
assumir a direção da escola, mas que ele não sabia se ia aceitar, pois não queria ser indicado pela
minoria e sim pela maioria. Falou que a comunidade estava dividida, que ela até quer que mude o
chefe, mas o pessoal não quer o Eliseu, porque não tem autoridade e pulso firme. Falou também
que existiria um acerto para o Lourenço entregar o cargo e o Sabino assumir. Mas por outro lado à
comunidade quer outra eleição para cacique, pois uma boa parte dela não quer o Sabino
(perguntamos por que e ele falou que o pessoal acusa o Sabino de se apropriar de bens da
comunidade). Perguntamos por que queriam tirar o Argemiro do PIN e ele falou que o pessoal acha
que ele “não tem autoridade, não contem a venda de bebida alcoólica, não controla a violência”.
Ao final ele disse que apóia o Sabino para cacique e que o final do ano vai ser movimentado pela
mudança do chefe, do cacique e do diretor da escola.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
347
No início de 2005 e depois em 2006 tais processos se consolidaram. Lourenço, Argemiro e
Eliseu deixaram seus respectivos postos (de cacique, chefe de posto e diretor da escola). Cirilo
Raimundo foi eleito para o posto de Cacique e Edílson Pedro assumiu a direção da Escola Indígena
e um não indígena, indicado pela FUNAI, a função de Chefe de Posto. Esta configuração indica
uma mudança em relação a 2004: Edílson se articulava com Argemiro e Alírio e se lançou
candidato com o apoio de Ivan Paz Bossay, mas agora estava se articulando com a prefeita Beth
Almeida do PT. Ele falou: “eu sou político, já fui candidato e vou me candidatar de novo a
vereador”. Edílson teria sido indicado para a direção da escola por Sabino Albuquerque, em razão
de sua influência política junto a prefeitura, em troca do apoio de Edílson nas eleições para cacique.
Entretanto, Edílson deixou de apoiar Sabino no meio do processo e passou a apoiar o grupo de
Cirilo. De toda maneira, o alinhamento dentro da aldeia está atrelado ao bloco do PT no município,
já que tanto Sabino quanto Dionísio estão vinculados por alianças a prefeita Beth Almeida.
A indicação de Edílson Pedro por intermédio de Sabino para a Direção da Escola retoma
procedimentos os políticos típicos das faões dominantes, que exercem o poder de forma
monopólica dentro do contexto local. O fato de só haver uma eleição para a direção da escola
mostra a instabilidade do projeto de autonomia diante do contexo local. Dessa maneira, nos período
2005-2006, a experiência da “co-gestão” na Escola Indígena reativou os conflitos, e mudanças nos
cilcos de exercício do poder dentro de instituições expressam exatamente a luta entre facções
políticas pelo poder.
A criação da “Escola Indígena” por decreto municipal em 2001, foi a culminância dos
processos políticos, de colaboração e conflito, entre facções indígenas, elites locais e o CTI. A
criação da Escola Indígena expressa, num certo sentido, a extensão da co-gestão indígena no nível
local da política das unidades base do órgão indigenista, como o PI, para instituições integrantes e
subordinadas aos poderes municipais, como a Escola. A análise da experiência da Escola Indígena
serve para pensarmos o funcionamento do projeto de “co-gestão indígena” dentro do contexto da
política local, marcado por relações de clientelismo. Mostra também as diferenças e similaridades
entre os padrões de funcionamento dessa co-gestão indígenas nas instituições federais (FUNAI)
para as instituições municipais (como a Escola e Secretaria Municipal de Educação).
A “co-gestão indígena”, uma estratégia política e projeto de futuro do grupo étnico, se vê
atrelado e limitado diretamente ao campo de forças e formas de dominação que se cristalizam no
aparelho de Estado, que finciona como empregador, como uma imensa máquina de administração
pública. E é exatamente esta vinculação orgânica entre relações de trabalho e política, entre a
condição de sujeição do indígena e a de situação de classe, que produz a complexidade das relações
interétnicas que os Terena vivenciam.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
348
Além do mais o controle dos índios sobre a Escola, assim como no caso controle sobre a
FUNAI, é exercido pelas facções e seus líderes de acordo com seus interesses e de seus aliados nos
campos e arenas políticas. A luta pelo poder entre as faões se estende para a disputa pelo controle
e gestão das instituições locais e pelas relações clientelistas com as elites do município, que podem
servir para fazer uma política de oposição dentro da aldeia a uma facção dominante como
aconteceu nos anos 1980/90.
6.3 - As formas de resistência: a Luta contra o Cacique Geral
Simultaneamente a inserção cada vez mais profunda e sistemática das facções indígenas na
política local, e a viabilização da co-gestão indígena, deram-se desdobramentos do processo de
resistência ao regime tutelar, que se alimentam e realimentam o faccionalismo Terena e o regime
clientelista; iremos agora estudar alguns desses desdobramentos. O primeiro deles é a luta contra o
Cacique Geral; o segundo é a Cisão na aldeia Argola; o terceiro é a “Retomada” de uma Fazenda
(que abrange territórios tradicionais) realizada pelos índios. Todos eles se encontram articulados
entre si, e os eventos mais dramáticos relativos a isto se deram entre 2003-2006, durante o período
que concentramos grande parte de nossa pesquisa de campo.
O processo de descentralização desencadeado pelos empreendimentos de formação das
novas aldeias e pelos conflitos de sucessão teriam uma outra expressão: a da luta das lideranças das
aldeias contra o poder do Cacique Geral. Neste sentido, o caso da Argola, e de certas lideranças
daquela aldeia, é emblemático, já que é lá que se verifica esta vontade de “autonomia” com maior
persistência.
Inácio Faustino, morador da Argola e uma das lideranças locais, uma vez nos falou também
que o Sabino na sua época de cacique queria mandar em tudo; controlava os recursos só para ele.
Inácio disse que ele tem uma casa boa e bastante gado lá na gleba da AITECA (que teria sido
construída com o dinheiro da comunidade). Também teria “acabado” com a caminhonete da
comunidade, retirando suas peças assim que sua gestão acabou (por isso ela teria ficado inutilizada);
a biciletaria do Lourenço também teria sido construída com dinheiro desviado do Caixa
Comunitário”.Falou que as lideranças não são mais respeitadas pelos jovens que trabalham nas
usinas por conta disso, que eles ficam revoltados, que eles não podem se meter se tiver uma briga
porque não tem mais moral. Quer dizer, a figura do “Cacique Geral”, é normalmente associada a
este uso particularista dos “bens coletivos da comunidade”. Sabino é especialmente acusado de se
“beneficiar” dos recursos da comunidade, tanto na Sede quanto em outras aldeias. Adelino José
afirmou que Sabino, na época em que era Cacique Geral, queria comandar Cachoeirinha “como se
fosse sua fazenda, e ele o fazendeiro”.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
349
Acusações de autoritarismo, abuso de poder e monopolização de recursos coletivos são
comuns contra os caciques ou ex-caciques entre os Terena. Na realidade, as acusações dirigidas
contra os caciques são muito comuns, e elas se aplicam normalmente a quase todos os caciques. É
difícil encontrar uma situação em que uma facção não faça acusações do mesmo teor contra a
facção dominante na ocasião.
Entretanto, a consolidação das novas aldeias e suas lideranças entre 1930 e 1970, foi
acompanhada de um processo de formação de uma política de resistência sistemática que resultou
em ações concretas contra o regime tutelar e a centralização política imposta através dele.
Na Argola ocorreu um debate sobre a questão do cacique geral e da necessidade de
formação de um PIN exclusivo para a Argola. Numa entrevista com Odir Antonio e Inácio no
acampamento Mãe Terra em 2006, Inácio nos disse:
Porque teve essa idéia de pedir esse posto?
“Eu era presidente do Conselho Tribal, ele era membro do Conselho, seu Odir, falando nesse
ai, o pedido foi o seguinte, a comunidade da aldeia Argola já tinha em tamanho bom, já era
suficiente para construir o Posto da FUNAI dentro da comunidade. E agente viu que sempre
s tava dependendo da Cachoeirinha, muitas vezes mesmo com o projeto da FUNAI, tinha que
ser dependente da Cachoeirinha. (...) Quando chega um projeto da FUNAI, quem é mais
beneficiado é a Cachoeirinha, pela quantidade das pessoas da comunidade, enquanto nós da
Argola as vez não era beneficiado com o programa da FUNAI, isso aí que fez nós ter essa
idéia, de querer construir um Posto da FUNAI dentro da comunidade. (Inácio Faustino, Mãe
Terra, Março/2006).
Um grupo de lideres do qual Inácio fazia parte fez um documento solicitando que a FUNAI
extinguisse a figura do “cacique geral”, mas segundo Inácio “acabou que um pessoal (o Grupo do
Tomás), foi para a Sede votar nas eleições”, contrariando a vontade deste grupo. Desta maneira,
todos os setores ficam subordinados a Sede e votam nas eleições dela. Mas é somente o Cacique
Geral que controla o Caixa Comunitário, os recursos que entram (15 reais por trabalhador que vai
para a Usina, sendo R$ 7, 50 retirados do salário deste e R$ 7, 50 do lucro da USINA). Todo o
dinheiro que entra, fica na Sede, não sendo retornado nada para os demais setores. Os recursos da
FUNAI (trator, carro, grade, sementes e óleo) são controlados pelo chefe do Posto, juntamente com
o Cacique Geral. Inácio contou que o Sabino Albuquerque uma vez lhe disse: “Se vocês ficarem
independentes, não vão ter máquina nem recurso”. Sabino foi defensor da manutenção do Cacique
Geral, assim como o Argemiro, segundo o Inácio. Desta maneira, continua valendo a hierarquia de
poder entre os caciques dentro de Cachoeirinha.
Em 2001-2002, houve uma confluência de interesses de certas lideranças Terena de
Cachoeirinha, tanto as que tinham tentado criar um PIN na aldeia Argola, quanto as dos outros
setores.Numa conversa com Ramão Vieira, Cacique da Lagoinha, ele nos conta sobre o contexto
interno que motivou esta articulação:
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
350
“Que mais tarde, a gente tá percebendo que hoje a política tá avançada em tudo, aonde você
vai é política, você quer fazer um projeto até mesmo dentro da área, existe política. Existe a
política interna do índio. Hoje, existe as outras comunidades eles têm a política deles, mas não é
uma política construtiva, é uma política que eles pega aquela visão lá do branco e quer trazer
pra dentro da área, aonde não serve, porque a política do branco é organizada, e quando o
índio, ele pensa que tá se organizando, ele tá criando um conflito dentro da área, então a gente
presta bem atenção é nas associações. Antes não existia associações na área indígena, era só o
cacique, existia o cacique que no tempo passado se chamava capitão. Então, esse cacique, ele
fazia o projeto, ele elaborava tudo dentro da área, eu acho que naquela época existia menos
política. Hoje, já existe várias associações dentro da área, onde cada um quer a sua parte do
bolo, e onde envolve mais, também, a política do branco dentro da área, e onde acaba criando
um tipo de um confronto dentro da área, e a gente percebe que hoje o governo tá dando mais
prioridade para as associações, convênio, coisa e tal, tá certo. Só que pra nós uma associação,
uma sociedade civil, como se chama, sem fins lucrativos, pra nós, ela é muito importante, mas
só que por um lado, nós temos que saber trabalhar com ela pra não virar política dentro da
área. Hoje, a gente percebe que aqui em Cachoeirinha existe um pouco de política, mas uma
política interna dos índios. Isso aí dificultou a gente bastante também...”. (Ramão Vieira/2003)
Em certa ocasião Ramão reclamou do fato de a escola da Lagoinha levar o nome de
“Alexandre Albuquerque (nome dado por Esídio quando era cacique, em homenagem a seu pai),
dizendo que quem deveria ter escolhido o nome da escola era a própria comunidade. Estes
elementos reforçam a antipatia e a rivalidade com que os demais caciques e lideranças locais
encaram o Cacique Geral, muitas vezes.
A partir deste momento, os caciques da Lagoinha, Argola, Babaçu e Morrinho se articularam
para tentar eliminar a hierarquia entre o Cacique Geral e os demais Caciques dentro de
Cachoeirinha, fizeram viagens até Campo Grande para negociar com o Administrador Regional da
FUNAI, e produziram um documento sintetizando as posições e vontade política destes líderes
quanto a esta questão. Um documento datado de 03/01/2002, na Administração Regional da
FUNAI, encaminha a solicitação da liquidação do Cacique Geral (no sentido de suspender os
poderes de representação das demais aldeias de Cachoeirinha). O documento foi protocolado em
11/04/2002. Ele diz o seguinte:
Aldeia Argola PIN Cachoeirinha Janeiro de 2002
Estamos informando a V.SA que nesta data referida,aconteceu reunião de quatro lideranças ou
caciques: Zacarias Rodrigues da Aldeia Campão/Babaçu, Fernando Antonio da Silva cacique
da Aldeia Argola, Ramão Vieira de Souza Cacique da Aldeia Lagoinha, Isidoro Pereira Pinto
Cacique da aldeia Morrinho.Onde foi decidido e aprovado pelas lideranças a necessidade de
cada Cacique trabalhar independente do Cacique Geral PIN Cachoeirinha. Cada uma dessas
aldeias e suas comunidades participarão somente na eleição do seu respectivo Cacique. O
maior argumento dos Caciques nesta reunião é com relação ao trabalho centralizado do
Cacique Geral, respondendo por todos, tornando muito prejudicial às atividades dos caciques.
Porém vale dizer e afirmar o respeito e a consideração com o Cacique de Cachoeirinha nas
situações que envolvem as aldeias do PIN Cachoeirinha, continua sendo observada e sendo
jurisdicionada pelo Posto Indígena Cachoeirinha. Porém salientada a decisão que cada
Cacique de Campão Babaçu, Argola, Lagoinha e Morrinho, terão o poder e autonomia em
responder toda as questões em respeito ao interesse destas respectivas aldeias junto a suas
comunidades. Para afirmação e fins de efeito, abaixo assinamos: Fernando Antonio da Silva
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
351
(Cacique Aldeia Argola); Zacarias Rodrigues (Cacique Aldeia Babaçu); Inácio Faustino
(Presidente Conselho Argola); Ramão Vieira de Souza (Cacique Aldeia Lagoinha); Isidorio
Pereira Pinto (Cacique Aldeia Morrinho), Fernandes Pereira (Presidente Conselho Morrinho),
Jesuíno José (Presidente Conselho Babaçu); Aguinaldo Vieira Leite (Presidente Conselho
Lagoinha).
Ou seja, o documento firmado pelos quatro caciques da aldeia Cachoeirinha e os Presidentes
dos Conselhos Tribais, solicitavam a extinção ou a diminuição drástica dos poderes do Cacique
Geral. Assim, o “trabalho centralizado do Cacique Geral” é apontado como um grande problema
para as lideranças locais. A implicação seria a realização de processos eleitorais independentes em
cada setor.
Na época em que aconteceu esta movimentação para a extinção do Cacique Geral, o então
Cacique Geral era Sabino Albuquerque, mas os efeitos do debate se estenderam até o início da
gestão de Lourenço Muchacho. Ele falou sobre as eleições de Cacique Geral de 2002:
Alguém dos outros setores veio votar na Sede?
Alguns pessoal vieram. (...) Pouca gente. Mas eu acho que não é por esse lado não. Como
indígena tem que ajudar o próprio indígena, porque é um Cachoeirinha só, Lagoinha,
Morrinho, Argola Babaçu, tá dentro da Cachoeirinha, e não são aldeia assim particular, são o
mesmo Terena...
E porque o pessoal não vem votar?
Parece que em 2001 cada setor fizeram documento e enviaram para FUNAI de Campo Grande
pedindo independência de Sede de Cachoeirinha. Argola queria construir o Posto da FUNAI lá;
Campão queria construir o Posto da FUNAI lá. Mas a FUNAI não tinha como fazer outros
postos. Então ficou aquilo lá. Eles ficaram independente, então até agora ficaram na cabeça
daquilo lá, “porque nós não precisamos da Cachoeirinha”, Campão fala isso, Argola falou isso,
Lagoinha tá passando por essa tipo de fase agora, “não precisamos da Cachoeirinha”. Mas na
realidade de todo jeito ele precisa. Porque Posto da FUNAI só aqui na Sede. FUNAI não tem
competência de fazer na Lagoinha. Porque lá Lagoinha tem 40 famílias. Campão se tiver
bastante tem famílias. Tão tudo incluindo para cá, na Sede. O único que ainda ficou ainda do
nosso lado, da Sede, foi o pessoal do Morrinho.
Mas qual foi à posição da FUNAI?
A posição da FUNAI naquela época era Márcio que era administrador, aceitou a proposta,
aceitou a proposta da Argola de ser independente da Cachoeirinha, mas porque que ele aceitou
isso? Porque ele tinha a política dele por cima disso. A preocupação dele caso rejeitasse aquele
documento, caso um dia se fosse mexido naquele cargo que ele ocupava, então essas pessoas
apoiaria ele. Então a intenção dele era isso, não tinha intenção de trabalhar para a
comunidade, a intenção dele era permanecer, sempre permanecer nesse cargo, como
administrador. Mas houve momento que não conseguiu. Isso não aconteceu só na Cachoeirinha
não, aconteceu isso no Bananal, Ipegue, então tinha essa jogada dele, ele apóia para ser
apoiado depois na política das lideranças.
Porque o pessoal tava querendo ser independente?
O governo do estado pediu para comunidade que fizesse um projeto, um projeto único, mas na
realidade cada setor fizeram seu projeto. Morrinho pediu um trator, Lagoinha, pediu um trator,
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
352
Argola pediu um trator, Campão pediu um trator, Sede pediu um trator. Ai onde Governo do
Estado avaliou essa questão do projeto, “Mas porque que a Lagoinha vai precisar de trator,
porque que a Cachoeirinha? Então ele queria fazer a parte dele, mas a partir do momento que
eles não conseguiram prejudicou todo mundo, eu não sei qual a intenção deles, eu acho que
queria ser mais do que outro. Porque o pouco que nós temos agora o pouco que a FUNAI tem
hoje, se a FUNAI não abrir as portas para o Governo do Estado, se o Governo do Estado não
tem comunicação com o Município e tanto com as lideranças dos povo indígenas, essa porta vai
ser sempre fechada. Agora se agente fizesse um projeto único voltado para esse comunidade
geral, acho que o nosso projeto poderia ser aprovado, mas se continuar dessa forma o fulano
tem um projeto, o fulano tem outro, o fulano tem outro, nos nunca vamos chegar e esse projeto
foi aprovado. Mas isso não foi colocado ainda na cabeça da liderança do setor.
E a FUNAI trabalha o seguinte, se o FUNAI vai mandar 10 mil litros de combustível, não vai
mandar 10 para o Lagoinha, nem para o Morrinho, nem para o tal fulano ali, é 10 mil único,
para todos. Ai vai 1500 pro Lagoinha, 1500 pra cá, 1500 pra cá, a sobra fica para Sede, ai o
Cacique do Sede, do Cachoeirinha chama o presidente das associação e ele distribui. Mas se for
assim, se continuar dessa forma, toda a comunidade vai ser atendido nesta questão, nenhum das
pessoal que mora nas aldeia vai ser prejudicado, mas se continuar dessa forma, alguns vai ser
beneficiado, alguns não será, então por isso que houve esse confusão, pedido de independência
da Sede de Cachoeirinha.
Os recursos que vem da FUNAI vão para o cacique geral?
Então já vem no documento, tanto para Lagoinha, vem tudo discriminado. Quando chegar
repassa.Semente por exemplo, quando vem semente de feijão, desce tudo para cá na Sede..
Então aconteceu assim de lá pra cá no nosso mandato. Aí fizeram um projeto de 40 rolos de
arame. Vem discriminação no documento, é tanto pro fulano, tanto pro fulano, vai ficar para
Sede tanto. (...)
E o Caixa Comunitário?
No meu tempo o destilaria veio muito pouco. A gente não consegue reformar o trator por
exemplo. Não consegue reformar nada, Porque quando desce esse dinheiro, desce no valor de
500, 550, 600 reais.Quando vai dois grupos daqui, vai dar mil e pouco. Eu faço campeonato pro
pessoal, assim no mês de dezembro, no mês de abril, ano passado, eu comprei dois vacas com
caixa comunitário. Porque o prefeita naquela vez tinha dado cinco, e costume era dar 6, aí
chegou naquela vez no final do meu mandado ela deu só cinco. Comprei dois vacas do Dionísio
Antonio. Antigamente era muito dinheiro, aqui saia oito grupo. Hoje a destilaria passa por um
grande exigência. Ai já não vai mais pra frente. Se a gente não fizer um documento para os
Usineiros exigindo que eles cobrem do trabalhador, eles não cobram não. (Lourenço
Muchacho, Março/2006)
As palavras do Lourenço mostram como agregada a demanda por autonomia, estava a
problemática do controle dos recursos (óleo diesel, semente, arame), de como ao mesmo tempo em
que se solicitava a “independência” em relação ao Cacique, se reivindicava a expansão do Estado,
através da multiplicação dos números de PIN´s dentro de uma mesma terra indígena.
É solicitada total “autonomia” aos caciques de cada um dos setores para responder por todas
as questões relativas as suas respectivas aldeias. Mas entretanto, tal documento solicita uma
intervenção de verdadeiro poder central a FUNAI no contexto da aldeia. Da mesma maneira que
a luta das facções normalmente terminava pela requisição da intervenção de “cima e de fora” (de
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
353
cima porque é ao poder superior do Estado que se apela, de fora, porque se apela as instâncias
situadas fora do contexto local aldeão).
Mas tal problemática não seria resolvida naquele momento; de um lado, porque a
reivindicação e atendimento da FUNAI em relação a tal “autonomia” teve muito mais um caráter
formal do que prático. Em segundo lugar porque no final de 2002, o CIMI começou a desenvolver
um trabalho político dentro das aldeias Terena, visando agilizar o processo de demarcação de terra,
organizando seminários indígenas e incentivando o dialogo entre as diversas lideranças dos setores,
o que efetivamente aconteceu. Este processo duraria alguns meses, somente seria revertido no ano
de 2004, quando as questões da política local (especialmente as eleições municipais, mas também as
lutas faccionais, dissolveriam as alianças entre os Caciques). Na realidade algumas outras situações
sociais se colocariam direta ou indiretamente como desdobramento do processo mais geral de
descentralização faccional.
6.4 - As formas de resistência: Cisão na Argola
No início de setembro de 2004, estávamos percorrendo a aldeia Cachoeirinha, e fomos até a
Argola, no caminho encontramos Inácio Faustino, da AITRE, ele nos convidou para ir até sua casa
para tomar tereré e conversar. Ele relatou a principal novidade: a luta interna em Argola para retirar
o cacique João Candelário (sob acusação de desvio de combustível). Esta luta ainda estava em curso
naquele momento.
Em 21/11/2004, fomos novamente a aldeia Argola, desta vez fomos de carona com o
Argemiro que enquanto chefe de PIN acompanharia uma reunião da liderança da comunidade local.
A reunião estava em andamento. Quando chegamos, Adelino José fazia o trabalho de secretaria e
coordenação. Percebemos que se tratava de uma reunião para discutir as acusações contra o cacique
João Candelário, acusação de “desvio de combustível da comunidade”. O João Candelário falou e
se defendeu, dizendo para os presentes que estes faziam as acusações mas sem ter provas. Falou
bastante em idioma. O Adelino tomou a palavra então. Criticou as lideranças que se afastaram do
João por causa dos conflitos. Disse que “ter essas brigas era normal, que na outra gestão teve isso
também”. Falou que era preciso que as lideranças trabalhem mais com o cacique e que a
comunidade apoiasse mais a liderança. Falou que quando tinha limpeza somente os Candelário
participavam do trabalho. E falou: “eu estou com o João”. Falou também que a outra turma (a das
associações) queria tirar o João na base da violência, mas que eles não iam conseguir. Disse que
eles eram bons mas que se fosse preciso seria “wharê”, ruins e iriam pegar o pessoal. Depois falou
o vice-cacique Armando Antonio. Pudemos perceber que o João estava sendo afastado
temporariamente do seu cargo e que o Armando o substituiria. Esta foi a decisão da liderança ali
reunida. O chefe do posto também se pronunciou. Falando em idioma ele citou como funciona entre
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
354
os “purutuye”, afirmando que depois do afastamento temporário, no caso de um prefeito p.ex, se
não forem provadas as acusações, ele volta ao cargo. E que assim deveria ser no caso do João, ao
final do prazo de quarenta dias. Estavam presentes na reunião o Rufino Candelário, Lindomar
Ferreira, Mauricio Candelário, Germano da Silva o Jânio de Arruda, e mais algumas pessoas, cerca
de quinze. Conversando com o Germano ao final da reunião ficamos sabendo que o administrador
regional da FUNAI esteve na Argola na terça-feira anterior, para discutir o assunto, e que a reunião
foi muito tumultuada. Mas acabou tendo efeito, já que o João Candelário foi afastado, como
queriam seus opositores, liderados por Tomás Martins, Eugênio Santana e Inácio.
Depois fomos à casa do Maurício Candelário e conversamos com ele e o Adelino que estava
por lá. Eles me falaram do caso do João, mas me contaram que estava ocorrendo uma
movimentação também para tirar o chefe do posto. Disseram que o Sabino Albuquerque e o
Lourenço estavam articulando isso, junto com o Ramão da Lagoinha. Eles teriam procurado a
FUNAI para pedir isso. Eles em resposta estariam indo a Campo Grande para exigir a permanência
do Chefe. O Lourenço e o Sabino estariam indicando o Eliseu, atual diretor da escola, para o cargo.
O Adelino falou também que chegou um recurso da FUNAI para Argola, mas que foi tudo para as
mãos do Lourenço. Disse que “ele quer ser cacique geral, que pegou os recursos, mas na Argola
ele não ia mandar, que ali tem cacique e ele tem que reconhecer”. Disse que as lideranças iriam
para Campo Grande também para falar com o Wanderley sobre isso, para ele reconhecer o cacique
da Argola. Os caciques Zacarias, Isidoro e Armando estão apoiando Argemiro e sua permanência
no PIN.
A situação social descrita acima mostra uma etapa de um conflito político estabelecido na
Argola em razão da vitória de uma facção nas eleições para cacique em 2005. O grupo de João
Candelário ascendeu politicamente acusando o grupo de Tomás Martins de monopolizar para seu
próprio benefício os recursos de toda a comunidade, especialmente “óleo e sementes”. Foi assim
que encontramos a aldeia Argola no ano de 2003, e que nos narraram os acontecimentos numa
conversa, o próprio João Candelário, Adelino José e Lindomar Ferreira. Eles falaram de diversos
assuntos, a necessidade da ampliação das terras de Cachoeirinha, política e conflitos na aldeia. João
Candelário afirmou: “As associações não tem trazido nada para a comunidade, os presidentes de
associação não tem essa responsabilidade”. Lindomar: Os presidentes de associação estão
querendo passar por cima da liderança. As associação disputam os recursos que chegam”. Eles
afirmaram que o Tomás Martins, líder da APRAA teria vendido um trator da comunidade e mesmo
o óleo era revendido dentro da comunidade local, ao invés de ser repassado”.
Só voltaríamos à Cachoeirinha e à Argola em março de 2006. Mas encontramos ainda
desdobramentos desta situação social. Na Argola, em 2004 e 2006 uma “luta pelo poder” também
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
355
se realizava. A sua facção, entretanto, mantinha a luta com as facções encabeçadas por Tomás
Martins e Eugênio Santana, antigas lideranças da Argola.
João Candelário nos narrou o processo de luta política dentro de Argola. Ele começou
narrando como se tornou cacique: existia uma disputa interna na comunidade, entre o grupo da
AITRE, liderado por Inácio Faustino e a APRAA, liderado por Tomás Martins. Assim, Lindomar o
teria convidado para realizar uma articulação política (Lindomar é filho de Maria de Lurdes
Ferreira, que é filha de Lázaro Candelário, irmão de Januário Candelário) e chegaram à conclusão
que deveriam se lançar como candidatos, porque o Inácio perderia. Em entrevista realizada na sua
casa, com presença de seu pai, ele falou da sua história enquanto liderança.
“Primeiramente eu não tinha interesse de ser cacique, porque eu sabia que era um serviço
voluntário, primeiro lugar porque eu tinha família, tinha filho pra tratar. E quem trabalha
como cacique não ganha nada, somente assim pra comunidade, , não tem horário, a hora que o
pessoal precisar, não tem feriado, não tem domingo e você tem que atender essa comunidade.
Mas aí teve essa política, política interna aqui, e aí o pessoal tava procurando candidato para
ser cacique mas ninguém queria não. (...)
Assim, João concorreu e venceu a Tomás Martins, que era acusado de monopolizar recursos
e atuar em proveito de seu próprio grupo. Contou também que ele João, durante o período inicial
em que era cacique, foi muito perseguido pelo grupo do Tomás Martins e do Eugênio Santana.
Estes teriam arrumado uma acusação de “corrupção” contra ele. É exatamente o processo que
conseguimos acompanhar. As “reuniões” da liderança com o Chefe de Posto e o Administrador da
FUNAI, são parte deste processo de luta pelo poder na Aldeia Argola que levaria a uma cisão em
2005-2006.
Mas novos acontecimentos mudariam as posições e as partes em luta. A disputa entre
Lindomar e João Candelário surgiu por conseqüência da disputa de 2004, quando João Candelário
foi acusado, pelo grupo liderado por Tomás e Eugênio, de desviar combustível do Idaterra destinado
à comunidade de Argola e vendê-la. Este grupo reuniu uma denúncia, com notas e documentos, e
protocolou na FUNAI um pedido de intervenção do Administrador. Foi feita uma reunião na aldeia
Argola com a presença de Wanderley. Nela o grupo de Eugênio e Tomás acusou João e suas
lideranças de ladrões de combustível, que bebem combustível como quem bebe água”. Desta
reunião saiu a decisão de afastar o cacique João Candelário por 40 dias.
João falou que depois que o grupo do Tomás produziu um documento e encaminhou para a
FUNAI denunciando o “desvio de combustível”, sua reação foi a seguinte:
“Aí eu pedi pro Wanderley, administrador da FUNAI viesse aqui para fazer esse acordo par
ver se o combustível foi desviado ou não, ai o Administrador falou ´a liderança do João vai
pegar dois presidente de associação, pra fazer procuração, se ele desviou esse combustível ele
vai ser afastado do cargo, eu dou prazo de trinta dias para vocês procurar, agora se vocês não
achar, se não for justificado esse acusação, aí ele vai continuar assumindo o cargo. Como não
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
356
tem provas que ele desviou o combustível, e aí juntaram o presidente da associação, a minha
liderança... Ai eu me afasto 30 dias. Vai procurar se eu desviei ou não...
Aí então ficaram quieto, quieto, quieto ninguém me falou nada mais.... Aí falaram o João saiu,
agora quem vai assumir é o Lindomar. Pois é, eu aceito que o Lindomar vai assumir, mas
agora eu quero que comprova que eu roubei, que eu desviei esses 3 mil litros de combustível.
Eu voltei para minha liderança, e falei puxa vida, tem justificativa pro meu afastamento? Eu
estou pronto de me afastar se tiver prova concreta que eu desviei combustível, eu deixo meu
cargo, e falou, não tem. Se não tem esse prova eu tô sabendo que só tem política nesse meio.
Então eu não vou entregar não, eu falei. Porque o Eugenio e o Tomás tava fazendo jogo
política, me considerando que eu sou adversário da prefeita municipal. E junto com vocês
também, eu falei para eles.
Aí a FUNAI aguardou resposta, venceu trinta dias, e num tinha, aí eu fui lá. Tem prova
concreta, então se não tem eu vou continuar. Se eu não continuar, vão falar que os comentários
são verídicos. Porque não é verdade, não teve prova concreta. Aí depois que eu afastei essas
pessoas, meu companheiros mesmo que me acusou também, não apresentaram prova concreta.
Eu ajudei, beneficiei ele, assim né (risos), nesta questão de combustível, tá aí, pode levar, tá
precisando pode levar, só que eu não anotava o nome, por isso que eu caí do cavalo. Quando
eles me acusaram também porque fizeram política do município, “não João taí com prefeita,
vamos tirar ele”. Ai eu não deixei barato não, porque não era verdade (João Candelário,
Março/2006).
Pelo que vemos pelas palavras de João, depois das acusações da facção rival, o seu grupo de
apoio entendeu que seria melhor afastá-lo do cargo, só que ele não aceitou esta decisão,
argumentando que se ele saísse estaria assumindo a culpa pelas acusações. Isto levaria a uma cisão
entre João e seu grupo de apoio. Mas observemos que João Candelário estabeleceu uma aliança com
a prefeita Beth Almeida do PT (sua participação e discurso no comício do Zeca do PT descrito
anteriormente mostra isso), contrariando parte de sua liderança. Em março de 2006 ficamos
sabendo que na Argola rivalizavam agora dois “líderes”, João Candelário como cacique e Lindomar
Ferreira,como líder respaldado por um grande número de famílias. Depois do desentendimento
entre João Candelário e seus líderes, os seus antigos oponentes o procuraram, como ele descreve
abaixo:
“Ai depois disso, o grupo que tava querendo me arrebentar, falou, João o negocio é o seguinte,
nós não tamos querendo tirar você. Nós queremos fazer apuração de prestação de conta do
óleo. Nós te respeitamos. Sua liderança que tá te afastando definitivamente. Ai eles falou, eu
não vou aceitar não, ele falou. Nós te damos esse apoio e você vai. Nós não tamos querendo te
tirar. E aconteceu muita coisa, sua liderança não teve competência pra apurar essa questão.
Porque nos não vamos tirar você, porque não tem justificativa pro seu afastamento. Ai começou
aquela briga interna de Lindomar e Eu, Lindomar e Eu... A minha liderança reconhecia
Lindomar, e o que era meu adversário me fortaleceu, porque eles sabia que se me afastasse
acabava tudo. Ai eu troquei minha liderança. (...)
Ali depois desse grande luta que eu tive, ai eu troquei minha liderança, ai ficaram assim, eu
continuei como liderança, a liderança que era minha antes começaram a se afastar de mim,
começaram a não gostar de mim, a fazer política interna, houve uma maior divisão interna
aqui, ai teve questão de retomada, que eu vinha fazendo trabalhando com Ramão, com
Zacarias, como cacique., Ai depois disso, eu tava com ele, eu fui lá, o próprio meu
companheiro não aceitava não de ser cabeça lá, pra não complicar eu vou embora pra a
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
357
aldeia. (...) Não era assim que eu queria, porque nossa luta como indígena é muito grande, é
como eu falei pra você a nossa luta é muito grande.
A nossa luta pela autonomia não é fácil, a comunidade não vai chegar lá se não unir, a terra
não vai ser conquistada, a demarcação não vai acontecer, a autonomia não vai acontecer...
(João Candelário, Março/2006)
Este conflito aconteceu por conta de alguns milhares de litros de óleo Diesel destinados a
Comunidade pelo IDATERRA, e que ele, João Candelário, foi acusado de vender. No meio da
disputa, a sua facção retirou o apoio, tentou convencê-lo a abdicar do posto de cacique, mas ele não
aceitou tal decisão. Então o grupo que lhe fazia oposição passou a apoiá-lo. Na luta que se
estabeleceu entre João Candelário e sua antiga liderança, prevaleceu à força de João que substituiu o
Conselho Tribal, já que a FUNAI não interveio para retirá-lo do cargo “por falta de provas”. Não
podemos perder de vista também que a FUNAI em Campo Grande está sendo liderada por aliado do
PT, o índio Wanderley Cardoso, e que existem esquemas e redes que vinculam FUNAI e Prefeitura
Municipal. Logo, a permanência de João Candelário estava de acordo com os interesses das elites
locais e das facões indígenas que controlavam a FUNAI naquele momento.
Para perceber as mudanças nas bases de sustentação política, vejamos a compração da
composição do Conselho Tribal antes e depois da luta entre João e Lindomar. O seu primeiro
Conselho Tribal era composto da seguinte forma: Armando Antonio (vice-cacique); Lindomar
Ferreira (Presidente do conselho); Hilário Candelário 1º Tesoureiro (filho de Maximiano
Candelário); 2º Tesoureiro: Mauro Barbosa (filho de Paulo Barbosa); 1º Secretário: Adelino José; 2º
Secretário: Aldo da Silva; Membros: Mamédio Candelário, Mauricio Candelário, Nelson de
Oliveira e Anésio Lemes. Esta liderança foi substituída por outra, como conseqüência da luta
interna que se abriu entre Lindomar e João: Novo Conselho: Presidente: Miguel Antonio (tio de
Tomás e seu co-residente); Vice-Cacique: Fernando Antonio; 1º Secretario: Aguinaldo Martins; 2º
Secretario: Renato Farias: 1º tesoureiro: Reinaldo Bernardino; 2º tesoureiro: Jerônimo de Arruda.
Membros: Jânio de Arruda; Esídio Candelário; Antonio e Bernardo Santana (irmãos de Eugenio);
Isidoro Antonio, Marco de Arruda e Laurindo de Arruda.
Pudemos conversar com Inácio Faustino, que também apoiou João Candelário em certos
momentos, só que desta vez na tenda em que estava morando no “Acampamento mãe Terra”, na
Fazenda Santa Vitória. Ele falou sobre a situação política de Argola, de Cachoeirinha e do
Município e indicou que: “Quem comanda lá de cima e o PT, na administração da FUNAI em
Campo Grande é o PT, e na aldeia agora o chefe do Posto é do PT».
Mas agora a situação e diferente. João Candelário teria sido chamado para uma reunião com
a prefeitura, com Eugênio e Tomás, ali teria sido acertada sua permanência no posto de cacique,
recebendo um salário de 450,00 pela prefeitura com a condição de afastar sua liderança. (inclusive o
próprio João Candelário admitiu que ele foi chamado na prefeitura para discutir com Eugenio e
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
358
Tomás). Foi o que aconteceu. João indicou novos membros para compor o Conselho Tribal. Inácio
concluiu que por isso «quem manda na Argola é a Prefeitura, é o PT
O conflito e a luta pelo poder na Argola levou a cisão na aldeia, com o deslocamento de uma
grande parte das famílias que estavam seguindo o líder Lindomar Ferreira para o “acampamento” na
Fazenda Santa Vitória e a permanência de João Candelário como Cacique com um outro grupo na
Argola, só teve este desdobramento pela intervenção dos grupos de interesse que atuam dentro das
instituições estatais, como a FUNAI e a Prefeitura, ou seja, pelos diferentes atores componentes do
campo e das arenas das relações interétnicas, e pela recomposição de alianças e oposições entre as
diversas facções indígenas. A própria “retomada” se deu como desdobramento destas lutas políticas
entre facções indígenas e suas diferentes estratégias, de maneira que o novo processo de
territorialização pode ser considerado como parte do processo mais geral de “descentralização”
faccional que envolve a “luta pelo” poder entre os caciques e facções e as oposições entre os
caciques de aldeia e o cacique geral, e estes e a FUNAI, como forma de resistência ao regime
tutelar.
6.5 - As formas de resistência: a ocupação da Fazenda Santa Vitória.
A cisão da Arolga se desdobrou no novo processo de territorialização, o da “retomada” da
Fazenda Santa Vitória, que compreende terras indígenas tradicionais identificadas pelo GT da
FUNAI. Lindomar, que era o presidente do Conselho Tribal, se juntou aos Caciques Ramão da
Lagoinha e Zacarias, que são reconhecidos como os três líderes do acampamento Mãe Terra.
Grande parte das famílias da Argola (cerca de 70% estão residindo no acampamento, seguindo a
liderança de Lindomar e apenas 30% permaneceu na Argola). Logo, a cisão política entre os dois
líderes implicou na formação de uma nova “aldeia”, dentro do acampamento, composta
praticamente pelos adeptos de liderança de Lindomar Ferreira (iremos retomar esta discussão mais
abaixo).
A “retomada” consiste num processo de mobilização política organizada por lideranças
indígenas com o apoio de certos atores que compõem o campo das relações interétnicas,
especialmente o CIMI, para ocupar parte das terras tradicionais Terena identificadas pelo GT da
FUNAI em 2001. O processo de mobilização foi desencadeado a partir do ano de abril de 2003,
quando o processo de identificação da terra indígena Cachoeirinha foi paralisado no Ministério da
Justiça. Em abril de 2003, o CIMI começou a promover uma articulação no município de Miranda,
visitando as diversas aldeias (Passarinho, Moreira, Cachoeirinha e Lalima), visando colocar em
discussão a organização das comunidades indígenas para realizarem pressão no sentido da
demarcação das terras.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
359
O Primeiro Seminário da Cachoeirinha foi realizado no dia 17/04/2003 na quadra
poliesportiva, que foi ocupada com cadeiras escolares dispostas em filas e a sua frente foi feita uma
fila de cadeiras destinadas a receber os palestrantes. Foi colocado um microfone e um amplificador
para facilitar o discurso dos presentes. As pessoas que iam chegando se acomodavam nas cadeiras
ou se sentavam nas arquibancadas da quadra, onde normalmente fica a torcida nos dias de jogo de
futebol de salão.Cabe comentar, que como em toda atividade do gênero realizada em Cachoeirinha,
os índios se valem do seu bilingüismo, usando alternadamente o Português e o Terena/Aruak.
Na mesa estavam os caciques, o representante do CIMI e algumas lideranças indígenas.
Coordenava a reunião Argemiro Turíbio, chefe do Posto, e alguns índios faziam o trabalho de
secretaria. Lideranças Terena da Aldeia Buritis, que haviam sido convidadas a participar do
seminário, não haviam chegado até o momento do seu início. Jorge do CIMI fez uma intervenção
inicial, descrevendo a “história” daquele acontecimento, falando que houve uma reunião com o
CIMI a convite dos caciques no dia 30/03 para discutir o apoio para a luta pela terra. Comentou a
história da luta dos povos indígenas, desde a conquista até a constituição de 1988. Depois de sua
exposição, alguns indígenas fizeram perguntas.
Falaram na seqüência Daniel Pinto, o Pastor Faustino, o ex-cacique de Argola Fernando,
fazendo questões de esclarecimento de trechos da intervenção de Jorge, e perguntando sobre o
processo de demarcação, sobre como ficaria a questão da propriedade da terra, se ela seria de cada
aldeia ou de todas, do porque da demora já que o GT da FUNAI já havia feito o relatório sobre
Cachoeirinha. Depois o chefe do PIN e o professor Rui fizeram intervenções, este último indagou
sobre a situação dos Terena do Município de Dois Irmãos do Buriti, que também estavam se
mobilizando pela terra. Às 13:00 h a plenária se subdividiu em grupos, correspondendo estes a cada
setor/aldeia existente em Cachoeirinha, para que formulassem propostas relativas a questão da terra.
O Plenário foi reconstituído as 14: 30 h, e agora com a presença dos índios de Dois Irmãos
do Buriti, que haviam se atrasado devido a problemas mecânicos do seu transporte. Falou
inicialmente Perverino Rodrigues, vereador, e disse que com ele estavam mais o professor Alberto,
o Cacique e mais”dois guerreiros”. Depois dele falou o presidente do Conselho de Buritis, que
comentou como eles se organizaram para fazer a “retomada das terras”, ou seja, a ocupação. Disse
que fizeram reuniões com os mais velhos para saber a extensão de suas terras, e depois optaram pela
retomada. O GT da FUNAI que realizou posteriormente os estudos, confirmou a expectativa dos
índios. Falou também da dificuldade, e de como eles operacionalizaram a ocupação, fazendo um
“alistamento” voluntário daqueles que concordavam em partir para a ação de retomada, através da
assinatura em dois livros ata: um com os nomes dos que concordavam com esta decisão e queriam
ir para ocupação e outro com os que não queriam. Na seqüência falou Alberto, professor, que
ressaltou que “não adianta esperar os órgãos, que devemos fazer por nós mesmos”. Fez alusão
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
360
também aos “guerreiros” da luta pela terra, incluindo aí o cacique e os professores, e também as
guerreiras, as mulheres.
Terminada a exposição dos índios Terena de Buritis (que era esperada com ansiedade e foi
muito bem recebida pelos Terena de Cachoeirinha, isto nós vimos pelos comentários e pela
expressão dos rostos atentos durante o discurso das lideranças de Buritis), o chefe do PIN,
Argemiro, tomou a palavra e conduziu a reunião para que fosse feita a exposição dos relatos dos
grupos. As 15: 00h foi exposto o relato do grupo do Setor Cachoeirinha (Sede), pelo cacique
Lourenço e Quintino Mendes. O grupo propôs a realização de outro seminário no dia 04/05/03, para
aprofundar a discussão e mobilizar um número maior de indígenas, pois acreditavam que o número
ali presente era ainda pequeno em relação ao que poderiam efetivamente reunir. Depois os relatores
do Setor Argola, as 15:13 h e Babaçu 15: 20 h deram prosseguimento ao seminário. Estes
apresentaram a proposta de, seguindo o exemplo de Buritis, ocuparem as fazendas, buscando
alianças fora da Aldeia e reunindo os indígenas de Cachoeirinha num movimento comum. Por fim,
Lagoinha fez a exposição de sua avaliação, e assim terminou a exposição dos grupos dos setores, já
que não havia no dia representantes da aldeia/setor de Morrinho. Terminada a exposição dos
relatores dos grupos, falou um representante da APROTEM, relacionando a questão da terra no
plano político pedagógico do universo escolar e do impacto que tal mobilização teria sobre as
crianças e seu estudo.
Por fim, o coordenador do Seminário, Argemiro Turíbio retomou a palavra para realizar o
encerramento da reunião, falou da necessidade da “ação de cada um”, de lideranças, presidentes de
associação, professores, estarem discutindo junto a seus colaboradores, irmãos de igreja e
comunidade, a questão da terra. Tal proposta foi acatada pelos presentes. Depois se deu a indicação
de uma delegação indígena para ir a Brasília, e foram indicados o cacíque Lourenço Muchacho e
Ramão Vieira. Foi constituída também uma comissão para organizar o II Seminário e encaminhar
as propostas, composta pelos caciques dos cinco setores e pelo CIMI. Enquanto os primeiros
ficaram com a responsabilidade de fazer a mobilização dentro das aldeias, o último ficaria com a
função de coordenar as alianças externas. O II Seminário ficou marcado para o dia 25/05. O evento
terminou por volta das 17 h, e nele estiveram presentes 80 pessoas, segundo as informações dos
próprios organizadores, tendo por base as assinaturas da lista de presença.
É importante observar que durante e depois do evento, os Terena comentaram um pouco
criticamente a reduzida presença dos moradores da Sede no seminário. A isto somam-se os apelos a
necessidade de união, de “esquecer as diferenças para caminhar junto para um mesmo objetivo”,
como em certo momento disse Argemiro, Chefe do Posto. Também o clima de tensão era visível, e
em diversos momentos se comentava o que representava aquela reunião na cidade, da pressão dos
fazendeiros, comerciantes e políticos locais sobre os índios, que em toda ocasião possível os
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
361
pressionavam na cidade para saber se eles iam “ocupar as terras”. Os índios alertavam para a
necessidade do sigilo, de não se comentar o que fora ali discutido. As lideranças lembravam que às
vezes os índios “se vendiam” por qualquer trocado, passando informações para os fazendeiros. Em
diversos momentos foi dado o conselho aos presentes de negar a existência de qualquer mobilização
interna se perguntados por alguém na cidade. Os indígenas notaram também com certa preocupação
a ausência de certas lideranças importantes, o que poderia indicar uma certa resistência à
mobilização e dificultá-la. Mas de toda forma os presentes, e boa parte moradores da aldeia Argola,
demonstraram grande disposição e entusiasmo para tal ação.
Depois deste seminário, foi realizada uma assembléia indígena em 2003, e mais três outros
seminários indígenas ao longo de 2004. Em certa ocasião, conversamos com o professor Genésio
Farias (na ocasião diretor interino da Escola Indígena) e ficamos sabendo por exemplo que a
reunião do final de 2003 teve o caráter de uma assembléia indígena e que houve, segundo Genésio,
um movimento na comunidade, que definiu um programa com objetivos para serem alcançados na
saúde, na educação, na terra. Genésio afirmou que houve um desentendimento entre as próprias
lideranças, o que teria paralisado os esforços, mesmo que momentaneamente. Ficamos sabendo
também que havia ocorrido um outro seminário indígena, no dia 05/09, e que reuniu dezenas de
pessoas. Ele afirmou que a política tinha atraído a atenção de todos e por isso o movimento estava
um pouco “parado”.
Na realidade, o primeiro seminário tinha sido possibilitado uma aliança entre os caciques do
cinco setores de Cachoeirinha na ocasião (Ramão, Lourenço, João, Isidoro, Zacarias). Estes
começaram a viajar em conjunto, realizar discussões antes e depois dos seminários. A intervenção
do CIMI no sentido de promover tal entendimento foi fundamental. Os “seminários indígenas”
deliberaram também pela formulação de uma política indígena que abrangesse não somente
questões relativas à demarcação da terra, mas também participação na política local (como por
exemplo, a indicação de poucos candidatos indígenas, com apoio geral da comunidade, para
garantir sua eleição).
Porém, esta aliança entre as diversas facções indígenas não subsistiu. No ano de 2004,
especialmente no segundo semestre, as alianças políticas com as elites locais, assim como a luta
pelo poder dentro da aldeia entre diferentes facções (a luta entre o cacique Lourenço e o chefe de
PIN Argemiro; a luta entre o cacique geral e os caciques dos setores, envolvendo questões relativas
o controle dos recursos e poder de representação política) ajudaram a desfazer as alianças. O
processo político dos campos e arenas terminou por dissolver as alianças estabelecidas e paralisar o
movimento da retomada.
Ao longo de 2005 a idéia de realizar uma “retomada” foi recuperada por algumas das
lideranças. Segundo informações colhidas em março de 2006, o processo de ocupação das terras
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
362
teria sido desencadeado da seguinte maneira: algumas lideranças de Cachoeirinha (Argemiro, Mário
Albuquerque, Lindomar e outros, Edvaldo do Morrinho e Julião, Babaçu) que foram a Brasília
realizar uma audiência com o Presidente da FUNAI, para solicitar a intervenção na FUNAI “AR-
Campo Grande”, no sentido da deposição de Wanderley, por denuncia de “corrupção”; nesta
ocasião, a delegação (composta ainda por indígenas de outras aldeias do Mato Grosso do Sul), foi
acompanhar o lançamento de um livro, e o presidente da FUNAI, Mércio Gomes, sabendo da
presença de índios de Cachoeirinha, mencionou que as negociações para a publicação da portaria
demarcatória estavam avançadas (entre lideranças indígenas, fazendeiros e FUNAI). Os membros
da delegação de Cachoeirinha protestaram, dizendo que a comunidade não estava sabendo, que era
negociação de “meia dúzia”. Questionaram, querendo saber quem estava à frente desta negociação.
Descobriram que quem estava realizando a negociação seria Sabino e Esídio Albuquerque, e que
Ramão de Souza estava envolvido (e ainda um corretor de terras de Miranda), que estaria sendo
articulado pelo CTI (Gilberto Azanha teria elaborado um projeto para levantar recursos no exterior
para “pagar os fazendeiros”). Com tais informações, o grupo retornou e denunciou tal negociação
feita sem o conhecimento da liderança e da comunidade. Isto teria precipitado a decisão de fazer a
retomada, liderada por Zacarias Rodrigues e Ramão de Souza. Sabino teria se manifestado contra a
“ocupação”, argumentando que o povo “correria riscos desnecessariamente”.
Em 28/11/2005, tal processo se consolidou: os índios Terena de Cachoeirinha realizaram a
retomada que haviam tanto discutido e idealizado. A retomada se deu em 1 das 53 propriedades
atingidas pela identificação de terras, na Fazenda Santa Vitória, que faz limites com a aldeia de
Babaçu. A área foi batizada de Acampamento Mãe Terra”. O assentamento começou com vinte
famílias (do Babaçu) e a princípio os funcionários da fazenda realizaram ameaças e intimidações,
inclusive disparando armas de fogo contra os acampados. Depois da ocupação, começou uma
batalha judicial e política para a permanência dos índios na terra.
Em março de 2006, cerca de 10 famílias eram de Babaçu, outras 10 da Lagoinha e as
demais, cerca de 130, da Argola. Encontram-se inclusive agrupadas em locais diferentes do
acampamento, em frente à Sede da Fazenda, onde foram construídas as tendas de palha,
reproduzindo o mesmo padrão de concentração dos grupos domésticos encontrados nas demais
aldeias. Foi construída uma tenda para reuniões e uma OCA (que será o Centro Comunitário) está
sendo levantada. A casa da Sede da Fazenda e as casas dos capatazes estão sendo usadas pelos
índios: o cacique Ramão está morando em uma, e Lindomar em outra. O Galpão é utilizado para
guardar o caminhão de Zacarias Rodrigues e as sementes: alguns animais ficam amarrados ali.
O acampamento conta com a Coordenação Geral (Ramão, Lindomar e Zacarias).Existem
ainda 11 coordenações (agricultura, formação política e etc) responsáveis pela gestão dos animais,
atividades, ferramentas e recursos do acampamento. Pudemos presenciar inclusive um choque entre
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
363
as decisões dos coordenadores e os caciques. Um homem chegou solicitando o uso de um cavalo
para pegar um touro. O coordenador não autorizou, e o homem reclamou muito e falou com o
cacique Ramão; este com o apoio do Lindomar, autorizou a utilização do cavalo, dizendo que o
animal está ali para ser usado. Os líderes do acampamento decidiram investir numa roça coletiva
que será o principal empreendimento local.
Em entrevista com Zacarias, Lindomar e Ramão. Eles falaram da história da luta pela
demarcação das terras:
“Não é de hoje que nós o povo Terena de Cachoeirinha vem lutando de muito tempo. Vem
lutando, todos aqueles que foram cacique, sempre lutaram, desde anos 1980, é que sentiram
cada vez povo tava aumentando, que nós sempre vivia numa terra de 2600 hectares e o pessoal
aumentando, nós sempre reivindicando. Ai chegou e nós pedimos o grupo técnico vim fazer
levantamento. Aí veio em 1999, e de lá para cá fizeram estudo antropológico, foi levantado, 36
mil hectares que foi identificado, reconhecido pela FUNAI, aí foi publicado no diário oficial da
União, no diário oficial do Estado, reconhecido pela FUNAI.
A gente fazia seminário, mais seminário, assembléia, e fomos incentivando a comunidade de
Cachoeirinha para lutar, para ter essa demarcação dessa terra de 36 mil hectares que foi
levantado pelo antropólogo, pelo GT. Então em 2000, 2001, 2003, 2004, esperando esse
resultado que vinha, e nós ficamos lá fazendo assembléia, e reunião, só que ficava só no papel.
Até que um dia nós não esperamos mais pelo Governo lá de cima pra resolver por nós ai nos
decidimos por índio Terena mesmo para fazer essa retomada, para fazer pressão, para dar
continuidade, para sair do papel.
Ai foi ano passado dia 28 de novembro, a comunidade não acreditava mais reunião, só queria
saber na prática, nós queremos ver na prática, vamos fazer retomada para acelerar o processo
que tá parado na FUNAI. Então nós fizemos retomada e tamos aqui, (..) Hoje nós tamos com
175 famílias no acampamento e cada dia chega mais gente. Nosso objetivo é de acelerar o
processo que tá parado lá em Brasília, E esse processo administrativo já foi na mão do Ministro
da Justiça, depois voltou para FUNAI e agora tá parado. Fazendeiro entrou com recurso e tá na
FUNAI por enquanto. Apesar de que nós já tivemos duas ações de reintegração de posse e nos
conseguimos derrubar essas liminar... (Zacarias Rodrigues, Março/2006)
Em dezembro de 2005 a justiça concedeu liminar de reintegração de posse para o
proprietário da fazenda, João Proêncio de Queiroz, e a polícia federal realizou uma operação de
despejo dos índios. Estes decidiram realizar uma ação de resistência ao despejo, e conseguiram
concentrar cerca de 1000 indígenas para tentar impedir a ação policial. Em razão disso, a polícia
federal foi ao local, entregou o documento com a decisão judicial aos índios na porta da fazenda e
se retiraram sem tentar empregar a força para retirar os Terena do local. Tal fato é contado e
lembrado com muita satisfação e orgulho por todos com quem conversamos sobre o assunto no
acampamento.
Outro acontecimento importante e que os líderes contam com orgulho, é da manifestação e
ocupação da Delegacia de Polícia da cidade Miranda, por ocasião de um conflito que resultou na
apreensão de um veículo do acampamento.
“Cerca de 80 índios Terena, vestidos para a Guerra, portando inclusive lanças, cercaram o
Comando da Polícia Militar em Miranda, na manhã de quarta-feira 01/02. Os indígenas
queriam pressionar a PM a devolver o veículo FIAT Fire 2002 que estava em poder deles e foi
apreendido. Segundo um dos líderes da manifestação, Ramão Vieira, Cacique da Lagoinha, o
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
364
carro apreendido havia sido liberado pela FUNAI para atender os Terena que invadiram a
fazenda (...) Já a FUNAI alega que nunca cedeu nenhum automóvel e que o veiculo foi tomado
por indígenas numa manifestação na aldeia. A movimentação de índios pintados para a Guerra
portando lanças e cercando o Comando da Polícia Militar em Miranda causou medo em muitos
mirandenses. Os menos otimistas chegam a acreditar que este é um perigoso precedente e que,
se alguma atitude não for tomada, as conseqüências dos conflitos entre índios e produtores
rurais podem ser graves”. (Índios se Vestem para Guerra e Assustam Miranda, jornal
Guaicuru, 07 a 13/02/2006, Ano IV, nº 136
121
).
Desta maneira, a luta política desencadeada pela “retomada” teve uma profunda repercussão
no contexto municipal e regional; o antigo “medo do índio” foi reativado, como a manchete do
Jornal explicita. Os Terena passaram de “índios mansos” a “índios bravos”, para utilizar as
categorias do antigo discurso colonial.
Entretanto, o processo de “retomada” foi marcado por uma série de conflitos internos, que se
relacionam diretamente a problemática da descentralização faccional e suas formas. Muitos
indígenas de Cachoeirinha se colocaram contra a “retomada”,inclusive lideranças importantes. Na
entrevista realizada com Zacarias, Ramão e Lindomar eles comentaram:
Como é posição do resto da comunidade, o Rui falou que tem gente contra?
“Quando nós tava fazendo reunião aldeia por aldeia, nós tava preparando para fazer essa
retomada, Lagoinha, Babaçu e Argola, quem decidiu mesmo para fazer esse retomada foi esse
três aldeia. Então até hoje tá esses três aldeias junto, três caciques junto, apesar que dois
caciques, eu e Ramão, Lindomar é um líder que lidera as pessoa que veio da Argola. Não
esperou cacique de lá, cacique de Argola por enquanto tá indeciso. (...)
Esse contra que a gente fala é porque não tá entendendo como é o direito... Quando entender
acho que eles vem.... Até hoje ele entende que a FUNAI é um órgão que vai incentivar eles. Mas
do contrário, quando nós viemos para cá nós não dependemos da FUNAI orientar, se nós
depender da FUNAI orientar nós, não orienta não. Ele fica naquela idéia de que o Governo vai
orientar, vai depender da FUNAI, agora nós não, nós decidimos por conta própria, nós como
índio decidimos que nós vamos e vamos. O que fez nós vim pra cá? Eu e Ramão nós fomos em
vários encontro, encontro nacional em Brasília, trocando experiência com outro povo de outro
estado, isso que fez nós aprender o que é nosso direito. Agora nós tamos aqui, e não temos
dúvida, e não é qualquer pessoa que vem fazer nossa cabeça, nós sabemos quem é companheiro
e quem não é companheiro.(...)
O pessoal fala que o próprio índio é contra, juntaram ai foram na delegacia para fazer BO, mas
só que nós resistimos. Policia Civil não podia entrar aqui, houve vários ligações para nós
falando que polícia ia vim pegar nós aqui. (...)
Foi os próprios índio, mas só que delegado telefonou para mim, delegado de policia civil, tem
uns índio aqui pressionando para tirar vocês daí. (Zacarias Rodrigues e Lindomar Ferreira
Março/2006)
Vemos o seguinte: algumas lideranças indígenas foram não somente contra a ação de
retomada, como acionaram a polícia civil para fazer a denúncia da ação e solicitar a retirada à força
dos índios Terena que acampara na Fazenda Santa Vitória. Alguns informantes disseram que quem
121
Esta e outras reportagens nos foram mostradas pelos líderes do acampamento, que mantém um arquivo com
documentos sobre as ações indígenas.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
365
solicitou a ação policial contra o assentamento foi o chefe de PI Pilad Rebuá com apoio de Sabino
Albuquerque, Cirilo Raimundo e Zacarias da Silva (então ainda Cacique interino na Sede).
Na realidade, o “Acampamento Mãe Terra” pode ser entendido ao mesmo tempo como uma
das formas de resistência ao regime tutelar, como parte do processo de descentralização faccional
analisado anteriormente. Os conflitos que surgem durante o processo de retomada que ainda está
em curso são o resultado das diferentes estratégias políticas e questões colocadas em prática pelas
diferentes facções.
Em primeiro lugar, devemos remeter aqui ao “I Seminário Indígena” realizado em 2003.
Duas lideranças importantes não se colocaram a frente do processo, Sabino de Albuquerque e
Dionísio Antonio. Os dois na verdade se colocam contra a ação de retomada. Em certa ocasião
Sabino nos falou numa entrevista, quando perguntamos “O sr. Tem acompanhado os seminários?
Não. Eu não fui mais porque o CIMI tá querendo fazer uma política. (...) então o CIMI ficou
baseado nisso aí, o trabalho já tá feito já, então é só cobrar do Ministro. (...) Eu não participei
dessa reunião porque não me avisa, não me comunica, só avisa pelo rádio... Eu não tenho
participado... O CIMI faz muita reunião porque quer ocupa, e o índio não quer, nossa idéia não é
brigar, nós deixamos pro autoridade resolver, nós ta aguardando, agora se não tiver jeito..”.
(Sabino Albuquerque, 2004). Dionísio Antonio também se pronunciou com um posicionamento
similar:
“Agora o grande sonho meu durante aquele tempo quando foi cacique era conquistar, trazer
aquele área que tem aí pra fora, agora como morador, então agora, a partir desse ano nós
tamos com 6 mil índios, nós temos que correr atrás, negociar com fazendeiro, com INCRA,
Ministério pra ver se agente consegue essa área sem briga com vizinho, na negociação, assim
que a gente tava querendo fazer agora a gestão do Cacique Cirilo com meu filho vice-cacique
(...) Nós tá querendo não assim acampar, o que nós queria fazer, nós vamos fazer, sentar com
fazendeiro, fazer uma mesa redonda, de lado de lá fazendeiro, negociação, pra INCRA,
Ministério, assim que nós tá formando” (Dionísio Antonio, Março/2006).
Na realidade, o cacique Cirilo Raimundo atua dentro da facção de Dionísio Antonio, que
tem alianças políticas estabelecidas e de longa data tanto com a FUNAI como com certas elites
políticas locais no município (e que são proprietários de terra). Estas facções estão contra, e através
da suas conexões com a FUNAI e grupos políticos de Miranda, tentaram inviabilizar a “retomada”
da fazenda.
Além disso, existem outras questões relativas à dinâmica política interna de Cachoeirinha.
Analisando a composição do acampamento, vemos que apesar dela ser liderada pelos caciques da
aldeia Babaçu e Lagoinha, a “massa” de acampados é da aldeia Argola. Conversando com alguns
dos acampados, vimos que o plano deles era que a Sede da Fazenda fosse transformada num PIN, e
que esta seria a reivindicação da comunidade-local diante da FUNAI. Quem está liderando o grupo
da Argola, é Lindomar, que dentro da disputa na aldeia, rompeu com o Cacique João Candelário,
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
366
levando consigo as demais lideranças do antigo Conselho Tribal, como Adelino José e outros
conselheiros o grupo que hoje apóia o João Candelário e ele inclusive, não estão participando do
acampamento. É emblemático que nenhum morador da Sede tenha ido para o acampamento.
Usa-se a retomada para reativar a luta contra o cacique geral. Foi no processo de luta contra
o cacique geral e de “cisão na Argola” que se produziram às forças políticas, alianças e estratégias
que possibilitaria a ação de “retomada”. Ramão e Zacarias, enquanto caciques participaram da
reivindicação de “autonomia” local das aldeias; as lideranças da Argola já haviam solicitado a
formação de um PIN na Argola. E são estas as questões que voltaram a ser colocadas pela
“retomada”.
O depoimento do cacique Ramão é bem ilustrativo e resume de maneira muito enfática e
rica a situação política de Cachoeirinha e do acampamento:
“A gente passou por aquele processo dos seminário em que os cinco caciques estavam junto, só
que ai houve uma paralisação dentro da liderança da nossa área de Cachoeirinha, que parou o
movimento nosso. Aconteceu seminário, foi delegado uma comissão e ai parou. Eu e o cacique
Zacarias achamos que não devia parar, devia continuar com resultado, porque nosso povo, a
gente conversava com várias lideranças, várias pessoas de idade, senhora, e eles comentavam
que não queriam mais reunião, eles queriam ver acontecer na prática.
E nós viemos a fazer a partir do ano passado, tomamos essa decisão, na expectativa das nossas
lideranças entenderem aquele processo que já vinha acontecendo, do seminário para cá. Só que
agente encontrou essa dificuldade dos outros caciques entenderem esse movimento, por causa
que de inicio a gente veio eu e o cacique Zacarias, pra fazer a ponte, não querer ser assim o
dono da história ... Mas apenas ser ponta de um processo que vinha sendo paralisado há muito
tempo. Isto fez que a nossa liderança não entendesse esse processo... Eles acharam que nós
estávamos querendo ser o dono. Só que nossa intenção não é essa.
Eu vou falar um pouco da FUNAI porque ela tem sido o foco principal do debate do nosso povo
aqui. (...) A FUNAI ela pouco tem feito visita aqui para nós. A gente acredita que a FUNAI
sempre trabalhou numa política, qual é essa política, a da pessoa que fica em frente da FUNAI,
no caso do administrador da FUNAI. Ele trabalha na política para ele permanecer no cargo. O
que acontece, ele pega o cacique, manipula o cacique e o cacique tem que falar a língua dele. E
isso tem acontecido na FUNAI. O que agente acredita é que o cacique da Sede da Cachoeirinha
ele tem sido muito manipulado pela FUNAI, muitas vezes manipulado de certa forma de não
acompanhar esse movimento porque a FUNAI trata de movimento ilegal. Que o movimento traz
risco, que não é assim, que tem que esperar o processo rolar na justiça... Então existe uma
política da FUNAI muito forte em cima da nossa liderança. E a gente como tem um pouco de
experiência (...) em relação a essas coisas que rola dentro da FUNAI, a gente ficou ciente que
nosso movimento é legal, desde que nós tamos brigando por uma coisa que é nossa.
Comprovado que é nossa. A gente acredita que FUNAI tem manipulado nossas liderança, e não
só as liderança de Cachoeirinha, como existe várias outras lideranças do Mato Grosso do Sul
que tem sido manipulado até mesmo para dar o apoio a ele permanecer no seu cargo. Isso tem
acontecido e não há duvida que tá acontecendo isso com o nosso cacique da Sede de
Cachoeirinha.
Falando um pouco do visita do Cacique da Sede aqui no acampamento, quando ele foi
candidato a cacique ele teve aqui várias vezes, trabalhando aquela campanha dele para
cacique, a gente até achou muito esquisito por causa que ele chegou prometendo que ia fazer
tanta coisa aqui para o pessoal, como se fosse um político branco, como se fosse um vereador,
um deputado. Eu mesmo fiquei surpreso...
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
367
O que aconteceu também que a gente acha que o Cirilo não gostou é que o nosso pessoal não ir
votar lá na Sede. Nós não fora votar, essa decisão foi do acampamento. O acampamento fez sua
assembléia, trabalhou a assembléia e fez a ata, dizendo que acampamento não ia participar da
política interna, que era eleger o cacique. Então a própria comunidade da Sede já teria
bagagem para eleger seu cacique. Agora sempre eles trabalha de querer o Cacique da Sede ser
o Ditador, da coisa, falar bem claro, “Ah eu que sou o Cacique Geral, eu que mando em tudo”.
Então a nossa comunidade não acredita nisso. Hoje nós temos uma luta, uma luta com nosso
povo, que tá firme, buscando o nosso direito, e a gente vem perguntando cadê o Geral? O
“Geralzão” era pra tá nessa hora na frente, aqui junto com o pessoal lutando. Então, a gente
vem mais acreditar que tanto faz a política da FUNAI, a política dos brancos, infiltrado nesse
meio, e até mesmo os próprios fazendeiros. Porque não os fazendeiros não investir por fora e
falar “Ó você tem que ser dono da Cachoeirinha, você tem que mandar naquele Posto, você tem
que mandar na Cachoeirinha, você tem que mandar naquele povo, tomar a decisão por aquele
povo, para o que você falar, eles ouvir”. O fazendeiro pode bem fazer isso. Talvez do pessoal do
acampamento não ir votar lá seja o motivo dele não estar aqui no nosso meio. Isso pode ser
uma das causas.
Mas a segunda ... é a política da FUNAI também que pode tá por trás disso, de não tá deixando
participar junto conosco, se até mesmo que próprio administrador que é índio, eu teve uma
conversa com o administrador que é índio e falei assim pra ele se porque não vai fazer uma
visita ao acampamento, se não quiser vir como FUNAI vem como índio porque ele é índio, ele
levo assim como se eu tivesse alguma coisa pessoal com ele.Hoje ele me nega até conversa, mas
a gente não ta nem aí (Ramão Vieira, março/2006).
O “Acampamento” tomou a decisão de não participar das eleições para o “Cacique Geral”,
em uma assembléia realizada no dia 19/01/2006, registrada em ata. Lá é possível ver a
reivindicação de “autonomia” daquela comunidade local, formulada explicitamente. O “boicote” as
eleições para Cacique Geral foi um dos motivos e a resposta a oposição do Cacique e seu grupo a
ação da retomada.
O Cacique Cirilo Raimundo sofreu então uma forte oposição dentro do acampamento
(segundo Quintino Mendes, morador da Sede, quando os representantes da Funai e o Cacique Cirilo
foram no assentamento enfrentaram um bate-boca e chegaram a ser agredidos. Segundo os
comentários Cirilo teria dito: “Agora vocês me conhece, agora nós vamos administrar, eu sou o
cacique geral”, e o pessoal respondeu “aqui você não manda”). Assim, agregada a demanda de
formação de um novo PIN (demanda dos moradores da Argola) apareceu à reivindicação da
eliminação da figura do “Cacique Geral”, o seu não reconhecimento.
Desta forma, a luta contra o “Cacique Geral”, foi recolocada dentro da ação de “retomada”,
expressando mais uma vez, uma tendência à descentralização político-territorial dentro de
Cachoeirinha. A cisão faccional na aldeia Argola, por sua vez, também possibilitou a “massa” que
mobilizar-ia-se para realizar a ocupação da fazenda, e o assentamento pode ser visto também como
uma aldeia (ou embrião de aldeia) formado pelas lutas faccionais, pela “luta pelo poder” e disputa
entre diferentes estratégias políticas adotadas pelos indígenas. A retomada então foi desencadeada
por lutas internas entre facções indígenas pelo controle do poder local dentro da aldeia. A retomada
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
368
se deu num contexto de cisões políticas dentro da aldeia Argola e também de disputas políticas
entre os Caciques das Aldeias Babaçu e Lagoinha com o Cacique Geral.
6.6 – Co-Gestão Indígena e Poder Local: mudança e reprodução das relações de dominação.
Fazendo um balanço geral, podemos dizer que a formação de associações, a inserção na
política local e a experiência da co-gestão, bem como os processos de cisão e a retomada, fazem
parte de uma mesma dinâmica política.
A criação das “associações indígenas” expressava um jogo de posicionamentos dentro da
dinâmica de luta pelo poder local, e visavam dar forma as duas estratégias: a da co-gestão indígena
e a da resistência, dependendo da situação histórica. A formação da AITECA fazia parte de um
processo de luta de uma das facções indígenas contra a FUNAI, contando com o apoio do CTI; a
criação da ACIC foi uma resposta de outra facção, a nova conjuntura que se colocava, e é
sintomática que sua fundação tenha se dado dentro Posto da FUNAI. A formação das “associações”
dentro de Cachoeirinha foi um dos meios encontrados pelas facções subordinadas de fugir ao
monopólio e centralização impostos pelo Estado através da política indigenista implementada pelo
SPI/FUNAI. Num certo sentido, a formação das “Igrejas” (e o caso da UNIEDAS e da aldeia
“União” em Miranda, pelos índios expulsos do Bananal por conta da revolta dos anos 1930)
representa um movimento similar. As “associações” e “igrejas”, cada qual em seu contexto, assim
como a reivindicação da “extinção do cacique geral”, expressam uma estratégia de resistência
política indígena, que queriam fugir a centralização política imposta e buscar a afirmação da
“capacidade política indígena” contra toda estrutura simbólico-cultural da idéia tutela - dando
aspecto formal ao ideal do protagonismo étnico. Mas também pode ser um eficaz meio de viabilizar
a gestão indígena, que é concebida sempre a partir dos grupos vicinais compostos dentro de certas
parentelas. A criação das associações poderia estar a serviço da co-gestão ou da resistência
indígena. O principal objetivo dessas associações era criar condições para a gestão indígena da
produção(dos recursos naturais e maquinário, antes comandado pelo PIN da FUNAI) e políticos,
como a Escola através da indicação de administradores indígenas. A busca de espaços de
representação política na câmara de vereadores segue também esse projeto de criar uma co-gestão
indígena no nível local. As técnicas de resistência cotidiana especialmente o boicote e a
desobediência - foram empregadas sistematicamente como meios de escapar ou confrontar
sutilmente os poderes exercidos pela FUNAI ou por seus colaboradores em facções indígenas e
elites locais. E assim, podiam estar também a serviço de um projeto de co-gestão.
Todos os acontecimentos apresentados na etnografia do processo político, se inter-
relacionam; a formação da associações indígenas é um produto da luta entre facções indígenas e um
meio de viabilizar o projeto de gestão indígena; a inserção na política local, se dá através tanto da
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
369
participação nas eleições municipais quanto na administração pública, como é o caso da gestão da
Escola Indígena. E os demais acontecimentos (a luta contra o Cacique Geral, a cisão na aldeia
Argola e a Ocupação da Fazenda Santa Vitória), expressam em termos etnográficos mudanças
importantes nas relações de poder e nos modos de dominação. Expressam também a evolução das
formas cotidianas de resistência contra o regime tutelar para formas de resistência aberta, e ao
mesmo tempo as tensões e contradições entre essas política de resistência e o projeto de co-gestão
indígena que muitos setores da sociedade Terena sustentam. Assim podemos considerar que:
1) A vontade de conseguir a autonomia, da parte das comunidades locais e caciques das aldeias
Babaçu, Lagoinha, Argola e Morrinho, expresso pelo movimento de reivindicar a “extinção do
cacique geral”, é uma ação contra uma das principais bases do regime tutelar tal como constituído
na situação histórica de reserva. Lembremos que a centralização foi imposta pelo SPI/FUNAI,
através do reconhecimento (e investidura) de uma única “liderança política” para cada território
indígena. Esta forma de centralização estatal, que se sobrepôs a organização social e política
indígena levava necessariamente a formação de uma “aristocracia indígena”, que monopolizava o
controle dos recursos, do patrimônio e dos poderes dentro da aldeia, mesmo que a duração de tal
aristocracia fosse efêmera. Ao questionarem o Cacique Geral, os Terena de Cachoeirinha estavam
atacando a centralização e o monopólio da representação política, do controle social e da gestão
econômica, que consistem nos poderes outorgados pelo Estado ao Cacique. Os recursos que são
colocados à disposição do Cacique também são decisivos: a gestão dos veículos, tratores e
maquinários; do óleo diesel, semente e outros implementos agrícolas; do armazém da comunidade;
dos projetos que são aprovados e etc. Tudo isso faz com que os interesses das demais aldeias entrem
em contradição com a política monopolista de gestão do patrimônio indígena por uma aristocracia
local.
2) A cisão na aldeia Argola mostra, por outro lado, as contradições que marcam este processo. Ao
mesmo tempo em que se coloca uma demanda por autonomia se reivindica a expansão da
estatização do território indígena pela multiplicação dos PIN´s. A vontade de criar um posto da
FUNAI (o que implica a extensão de estrutura burocrático-administrativa estatal), mostra como a
autonomia reivindicada pelos Terena não exclui a demanda pela própria estrutura de “proteção e
controle” do órgão tutelar; quer dizer, como a FUNAI reúne as duas dimensões, proteção e controle,
poderíamos pensar que na verdade a demanda é apenas pela “estrutura assistencial”, mas na verdade
não é isto que acontece, pelas próprias situações sociais analisadas. A “proteção” é indissociável do
“controle” estatal, e na realidade, a demanda por uma implica na aceitação tácita ou não da
outra.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
370
3) Vimos também que apesar dos Terena realizarem uma crítica prática e discursiva da
centralização política e da lógica monopolista imposta, esta crítica é muito mais direcionada para os
modos de distribuição do poder dentro do campo de atividades em que estão localizados do que ao
regime tutelar em si. O projeto de co-gestão indígena não exclui a demanda pela intervenção estatal
e sua contínua legitimação, nem a colaboração com os poderes estatais e elites locais e regionais,
nem a subjugação de outras facções indígenas. Na realidade, esta intervenção estatal é associada
diretamente à realização de tal “ideal”, no sentido que os poderes e a intervenção do Estado são
“manipulados” para desequilibrar a correlação de forças entre as diferentes facções que lutam pelo
poder dentro da aldeia. Em todos os casos estudados ao longo desta tese nós podemos ver
exatamente isso; quando analisamos a luta pelo poder entre o cacique Lourenço Muchacho e o
chefe de PIN Argemiro Turíbio, vemos que é realizada uma solicitação a FUNAI para “mudar o
chefe”; quando o contra-golpe é dado, os grupos que se opõem a Lourenço e apóiam Argemiro
encaminham um “documento” à FUNAI solicitando a intervenção na aldeia e mudança do cacique.
Nos anos 1980, o conflito entre as facções do Cruzeiro e Mangao, vemos que são utilizadas pelos
índios as mesmas técnicas que a FUNAI: expulsão da aldeia, prisão de opositores e etc. O grupo de
João Niceto Júlio e Dionísio Antonio solicitam a FUNAI e remoção de Sabino da aldeia, e são feitas
diversas solicitações de intervenção no contexto da política aldeã; vimos que nos casos estudados
acima (a luta contra o cacique geral, a cisão na Argola, e a ocupação da fazenda Santa Vitória)
existe uma contínua demanda pela intervenção estatal; apesar de se oporem à centralização, é na
FUNAI que se solicita a “extinção do cacique geral”, quer dizer, não se questiona a investidura
estatal, nem a intervenção da FUNAI como um organismo central em relação à aldeia, ao contrário,
ela é naturalizada; no caso da Argola, quando surge a luta pelo posto de cacique, uma das facções
solicita a intervenção da FUNAI para derrubar João Candelário, e este solicita a FUNAI a fixação
de regras para resolver os conflitos locais. As reuniões na aldeia com Wanderley, o Administrador
Regional mostram isso; no caso do Acampamento Mãe Terra, a demanda pela intervenção do
Estado da parte das facções que se opunham à realização da “retomada”, aparece no acionamento da
polícia civil para prender os líderes e despejar os acampados (o que se somou as ameaças de
incendiarem o acampamento).
4) Isto significa duas coisas: em primeiro, lugar, o imaginário do “índio modelo” (dócil e
subserviente) aplicado aos Terena pelos discurso engendrado pela política indigenista, na realidade
se transpôs tanto para as relações sociais quanto para o discurso acadêmico.Este imaginário precisa
ser analisado criticamente e é refutada pela experiência etnográfica. Os índios Terena na realidade,
assim como inúmeros outros grupos indígenas, inclusive os “guerreiros” Guaicurus, sempre
oscilaram entre uma política de aliança/colaboração e guerra/resistência contra os poderes estatais.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
371
E esta colaboração não exclui as formas cotidianas de resistência, assim como uma política de
“guerra” não excluía formas cotidianas de colaboração. Esta dinâmica, dentro da situação histórica
de reserva, não foi extinta, mas re-configurada. Depois da formação do Estado-Nacional brasileiro,
com a incorporação dos territórios do interior, a guerra passou a ser um recurso distante do acesso
dos índios; mas “revoltas armadas” não foram completamente abolidas, como vimos, por exemplo,
em Bananal nos anos 1930. Dentro da reserva de Cachoeirinha, vimos que as formas cotidianas de
resistência tem como alvo central os modos de distribuição de poder, e não o regime tutelar em si,
mesmo que o discurso por meio do qual tal resistência é formulada, aponte para a crítica de tal
regime. Como a política de controle do regime tutelar depende da colaboração de
segmentos/facções indígenas (alimentando a formação de uma aristocracia indígena), a resistência
Terena, termina com a derrubada da aristocracia indígena e sua substituição por uma outra, que irá
cumprir um papel estruturalmente similar (mas que pode ser historicamente diferente
122
) e utilizar
as mesmas técnicas empregadas pelas outras facções. Esta dinâmica de “luta pelo poder” entre as
facções indígenas permite que ao mesmo tempo ocorram mudanças importantes nos arranjos
administrativos e balanceamento de forças dentro do regime tutelar, mas que este seja reproduzido,
tanto do ponto de vista das interações sociais quanto formas simbólico-culturais. Mas surge uma
contradição entre a estratégia indígena de co-gestão e as formas cotidianas de resistência, já que a
primeira leva a manutenção da ideologia e política que constituem o regime tutelar. As mudanças
sociais nos modos de distribuição do poder somam para a reprodução do sistema de poder, numa
dialética de mudança/reprodução social.
5) A política de resistência ao regime tutelar expressou em seu interior a lógica segmentar
encontrada na organização política Terena desde o período colonial: a da constituição de “bairros”
que reconheciam seus próprios “líderes ou chefes”. E da mesma maneira que na “situação de
diretoria” os índios Terena se relacionavam a partir destas unidades segmentares com outros grupos
indígenas e com os colonos e poderes estatais, as facções constituídas dentro da situação atual
operam de maneira similar. Vimos que a estratégia das facções na sua política de resistência ao
regime tutelar se expressou de diferentes maneiras: a aliança com as Missões/Igrejas, a aliança com
ONG´s, a aliança com elites, lideranças e grupos políticos locais e regionais. Estas alianças abriram
o leque de possibilidades políticas dentro do campo e arenas das relações interétnicas. Ao mesmo
tempo, abriu-se espaço para a introdução e/ou generalização de novos modos de dominação no
contexto da política das aldeias. As alianças permitiram a formação de relações clientelistas dentro
da política local, que sendo à base das alianças entre índios e instituições estatais, elites políticas e
122
É o caso da facção do Sabino, que nos anos a 1980/1990, utilizando de técnicas e formas de organização similares as
outras facções, cupriram um papel importante na oposição ao regime tutelar e na reivindicação de terras.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
372
etc, permitia o fortalecimento de determinadas facções na sua luta pelo poder dentro da aldeia. A
“Prefeitura” e a “Câmara” (e o conjunto das instituições de Governo na esfera local) passaram a
ocupar um lugar tão importante quanto à “FUNAI”. Assim se de um lado o regime tutelar foi
modificado pela estratégia de resistência indígena, obrigando o Estado-Nacional a reconhecer a
capacidade política indígena, emergiu uma relação e um modo de dominação clientelista
paralelamente àquele. Esta é mais uma das antinomias que compõem o processo de mudança e
reprodução das relações de poder entre os Terena e o Estado brasileiro.
6) Ao mesmo tempo, as formas cotidianas de resistência se materializaram numa política de
resistência aberta ao regime tutelar, quando os Terena lançaram um processo de territorialização
dirigido por eles mesmos, com a ocupação de terras. Essa técnica de luta política combinada com
outras (ocupação de prédios públicos, retenção de viaturas pela força e etc), se deu pela evolução
dos conflitos faccionais e da luta contra a centralização política dentro de Cachoeirinha. O processo
de “retomada” apresenta outras variáveis: a do aprofundamento das formas de resistência, com o
acirramento dos conflitos entre “índios e FUNAI” e “índios e elites locais”. O conflito colocou em
oposição direta facções indígenas, FUNAI e o Estado (através de diversas agências, como o
Ministério da Justiça, a Polícias Federal e Civil e etc). A aliança com o CIMI e entre os líderes de
diferentes comunidades e facções, as ações de ocupação de fazenda, ocupação da delegacia de
polícia, bloqueio de rodovias e etc, marcam como o “protagonismo étnico” se expressa também
através de tais técnicas e pela política de resistência aberta (as palavras de Zacarias Rodrigues, de
que índios resolveram fazer por si próprios sem esperar o Governo, mostram o tipo de imagem
associada ao conflito político). A ação coletiva dos índios Terena de Cachoeirinha permitiu a
reativação da imagem do “índio bravo” (como no artigo jornalístico “Índios se Vestem para a
Guerra e Assustam Miranda”), e a articulação de “campanhas ideológicas” contra os índios. A
análise do cacique Ramão, indica etnograficamente, que a “estrutura de poder centralizada” (um
cacique geral) pode servir aos interesses dos fazendeiros e elites locais na sua luta contra as
ocupações de terra pelos Terena, da mesma maneira que serve aos interesses das facções que atuam
dentro da FUNAI, no sentido de manterem-se no poder dentro do órgão tutelar. Esta centralização,
manipulada por elites burguesas e burocracias estatais, somam para a manutenção das condições
econômico-sociais dos índios, sua condição de subalternidade (através do controle dos contratos de
trabalho e dos padrões de acesso ao território e recursos naturais). Logo, serve aos interesses da
burguesia rural e da política fundiária do Estado brasileiro. É interessante observar que o deputado
Arroyo,que visitou Cachoeirinha nas eleições 2004 (ver situações descritas), foi um dos principais
articuladores da campanha contra a demarcação de terras no Mato Grosso do Sul, e ele tem diversas
conexões dentro das aldeias do estado. Mas dentro do acampamento as relações clientelistas
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
373
operam, especialmente em torno da Prefeitura (já que Ramão e Zacarias) são aliados políticos de
Beth Almeida.Ou seja, as formas cotidianas de resistência e a resistência aberta coexistem com
formas cotidianas de colaboração, inclusive são promovidas pelos mesmos atores que dependem do
manejo eficaz das duas para manterem-se como líderes políticos.
O projeto de “co-gestão indígena” se manifesta nos esquemas de poder local (e estamos
compreendendo por isso, as relações no campo e arenas de Cachoeirinha e seus componentes). A
idéia dos Terena é que os índios possam ocupar espaços tornarem-se funcionários nas posições
hierárquicas mais diversas de diversas instituições estatais, como a Escola e mesmo a “Secretaria
de Educação”, Câmaras Municipais e Prefeituras, estendendo e ampliando assim os “espaços de
poder” acessíveis e eles. Um elemento de destaque nas situações descritas acima, foi à proposta da
formação de uma “Secretaria do Índio” dentro da Prefeitura. Praticamente todos os lideres políticos
locais que disputaram as eleições para a prefeitura, apresentaram tal proposta, ou seja, todos os
candidatos assimilaram e falam dessa possibilidade (além de colocarem candidatos indígenas nas
suas coligações). Um documento do PT de 1988 já mencionava na proposta de programa de
governo para a Prefeitura a criação de uma Secretaria do Índio.
O caso das lutas entre as facções da Argola mostra como a conexão e a possibilidade de “co-
gestão” aberta a uma das facções exige de outro lado, o fortalecimento da dominação do Estado
sobre o grupo indígena, materializado especialmente na relação de dominação horizontal de uma
facção sobre a outra, através da exclusão do acesso a recursos, tratores, empregos e etc. O
depoimento de Aronaldo Júlio, no que diz respeito à gestão dos empregos para os professores, e
também a situação do grupo liderado por Tomás Martins, mostra como os grupos que tem acesso ao
poder de gestão empregam uma forma monopólica, tanto por interesse próprio quanto de seus
aliados nas elites locais.
Nesse sentido, todo o conjunto de processos sociais difusos, os diferentes dramas de
sucessão e cisão, as estratégias de assembléias e organizações indígenas, de ocupação de espaços
nos organismos estatais, a política de resistência cotidiana, e também os diferentes
empreendimentos indigenistas, governamentais, missionários e militares nos quais os índios tomam
parte contribuem ao mesmo tempo para mudanças nas relações e esquemas de distribuição de
poder
123
(entre facções indígenas dentro das aldeias e nas instituições estatais, nos “espaços de
poder” que eventualmente ocupem; e também no nível local da política, entre elites e frações de
classe em luta pelo poder) e para a reprodução do sistema de poder, ou seja, das estruturas de longa
duração e larga escala que operam tanto no campo quanto na arena das relações interétnicas.
123
Estamos falando de reprodução do poder no sentido de reprodução: 1) da autoridade, do poder decisório e
legalidade de uma decisão ou gestão; 2) da força, das bases materiais do exercício e da imposição de decisões e ações
políticas. As técnicas de luta política que expressam essa reprodução das relações de dominação são a) requisições
administrativas; b) abaixo assinados reivindicando intervenção de organismos superiores.
Capítulo 6 Co-gestão indígena.
374
Podemos ver em todos os casos e situações analisadas neste capítulo, que experiência da co-
gestão indígena não anula o exercício do poder centralizado (seja pelo FUNAI, pela Prefeitura ou
mesmo por facções indígenas), mas pode coexistir com essa centralização. Lembremos que quando
narramos o processo da ocupação, vemos que lideranças indígenas foram em Brasília solicitar a
deposição do Administrador Regional. Também no caso da “Cisão na aldeia Argola”, a intervenção
da FUNAI é que definiu a resolução do conflito entre as facções locais, aliadas do PT, da prefeitura
e da própria FUNAI. Assim, mesmo as técnicas de resistência cotidiana se combinam com formas
de colaboração, e a etapa final das lutas faccionais é a legitimação da intervenção e do poder da
FUNAI, ou seja, do próprio regime tutelar.
Mas é a imprevisibilidade relativa das ações e eventos, e seus efeitos, que compõem a
dinâmica dominação-resistência, especialmente naquelas situações em que as técnicas de resistência
agudizam os conflitos, que residem os fatores que podem provocar por combinação com outros
fatores mudanças mais profundas no sistema de poder.
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
375
Capítulo 7 -Paradoxos do protagonismo étnico
“O controle político só pode efetuar-se através dos Chefes e, numa certa medida, pela
intermediação das instituições nativas. Os chefes tiveram que ser integrados no conjunto do
sistema administrativo, direta ou indiretamente. Mas esta ´integração´ nem sempre foi fácil:
seja porque a sociedade colonizada, por uma submissão inteiramente fictícia, escondesse os
chefes reais por detrás de “chefes de palha”, seja porque a administração colonial, ao não
penetrar na realidade do Sistema Político nativo, criasse a chefia ao mesmo tempo que o chefe
ou que chamasse à chefia um homem que chamais deveria ou poderia pretendê-la”.
Georges Balandier, in A Noção de Situação Colonial.
Ao longo dessa tese descrevemos uma série de situações, empreendimentos, dramas sociais,
processos históricos e apresentamos interpretações especificas para explicar cada um desses fatos
sociais. Esses fatos heterogêneos e difusos integram o processo contemporâneo de emergência do
“protagonismo étnico”, noção que busca apreender uma mudança no balanceamento de forças entre
os índios e Estado. Demonstramos que esse processo manifesta-se de forma molecular em inúmeros
acontecimentos como ocupações de terras, bloqueios de rodovias, ocupações de prédios públicos,
tomada de reféns, atos de desobediência às ordens e boicote aos projetos dos poderes de Estado e
seus representantes (como a FUNAI). Ao mesmo tempo, esse processo prático de resistência
cotidiana e aberta foi acompanhado pela produção de formas de consciência e discursividade
étnica que delineiam diferentes e contraditórios projetos políticos do grupo Terena.
Demonstramos que os Terena ocuparam uma posição histórica singular: integravam até o
século XVIII, um sistema social indígena com características específicas e devido a uma
combinação de fatores (resistência e supremacia militar dos índios Guaicurus em amplos territórios
na região do Chaco/Pantanal; competição entre aos Impérios de Portugal e Espanha; situação
econômica, ecológica e demográfica desfavorável os Impérios na fronteira) tornou-se durante um
certo tempo um grupo social estratégico para a política colonial e imperial. Isso possibilitou uma
articulação histórica entre dois modos de organização política, de maneira que um modo dominante
(estatal) se impôs sobre um modo subordinado (o segmentar indígena).
Conseguimos também identificar a dinâmica e os “significados” da política e tradições
nativas, os sentidos e racionalidade das formas de organização social e política indígena nas
situação de reserva e depois durante as “retomadas”.
Vimos que a organização política Terena segue uma lógica de luta pelo poder entre as
facções, que opõe diferentes grupos vicinais e de descendência, e que essa luta pelo poder engendra
tanto formas de resistência quanto de colaboração para com os poderes estatais. Uma luta por bens
materiais e pela elevação do status das famílias. Vimos também à articulação entre tradições
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
376
culturais, indígenas e nacionais, através da produção de uma mito-história que sintetiza a
experiência histórica do grupo com concepções mágico-religiosas.
Mas inevitavelmente certas questões permanecem em aberto. Qual o significado sociológico
da resistência cotidiana indígena, do processo de centralização estatal e descentralização faccional,
da luta pelo poder e da afirmação do protagonismo indígena, da co-gestão e colaboração? Qual o
significado do fato de as tradições culturais indígenas adotarem signos e símbolos nacionais e
estatais? Qual o significado de todos esses elementos dentro do processo histórico e dentro do
contexto de luta política de hoje?
Determinar as percepções, representações e estratégias indígenas é apenas parte da tarefa da
etnografia e sociologia; é preciso indicar o significado sociológico do significado “nativo”, ou seja,
que efeitos a existência de certas práticas políticas e representações simbólicas provocam na
realidade concreta, nos contextos de poder locais e gerais. Já que as sociedades colonizadas são o
produto de uma dupla história (Balandier, 1993, p.110) e porque dificilmente os significados do
pensamento e das práticas indígenas adquirirem pleno sentido exclusivamente dentro da fronteiras
da própria sociedade indígena, mas ao contrário, se realizam nas suas relações de oposição e/ou
composição com outros grupos e contextos sociais
124
.
A atual situação histórica só pode ser plenamente compreendida quando temos em mente os
elementos principais do processo histórico e as condições materiais que moldaram e moldam ainda
hoje seu desenvolvimento. É preciso também ter um modelo teórico que apresente possibilidades de
interpretação do conjunto de eventos e processos sociais em curso. Dessa maneira poderemos
entender como os processos de mudança social e reprodução das relações de poder, se dão através
da complexa dinâmica entre dominação e resistência.
7.1 - Os sentidos da conquista colonial: formação do Estado-Nacional e Transição Capitalista.
O regime tutelar é um produto da história colonial e uma forma de gestão dos grupos
subalternizados pelo processo de formação do Estado-Nacional. Logo, é preciso interpretar o
processo histórico da conquista colonial e seus desdobramentos: a formação de um Estado e uma
Sociedade Nacional que absorveu as sociedades indígenas, política e territorialmente. É nesse
processo que se encontram às respostas para condição de subalternidade dos índios e para o
funcionamento da estrutura de dominação política engendrada desde o século XVIII, e também para
a compreensão do real significado de fatos cotidianos como a contratação de turmas de trabalho por
124
“Ora, dar primazia ao ameríndio e não ao ocidental apenas inverte os termos do debate, em vez de deslocá-lo ou
renová-lo.” (Gruzinski, 2001,p. 57) Nesse sentido, a idéia de compreensão do “ponto de vista do nativo” pode ao invés
de ser um caminho para a superação do etnocentrismo, um meio de reforçá-lo ou de dar-lhe uma roupagem aceitável,
exatamente quando não se reconhece o elemento dialético ou de “mistura” que serve de base de constituição daquele
ponto de vista (Gruzinski, idem).
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
377
representantes de Usina agro-exportadoras. Na realidade, uma compreensão das teses sobre esses
processos gerais é fundamental para a análise de situações etnográficas e processos históricos
específicos. Isto porque as mudanças sociais desencadeadas nas relações e sistemas de poder pela
conquista colonial, afetaram as sociedades indígenas, mas estas enquanto protagonistas históricos,
determinaram também (pelo menos relativamente) tanto as suas respectivas histórias quanto a
história do Estado-Nacional.
Para compreender os sentidos da conquista colonial podemos utilizar a tipologia de
Gluckman, que classificou sistemas os sistemas sociais com relação à mudança social, em sistemas
repetitivos e dinâmicos. Mas é preciso compreender que essa oposição não implica a anulação das
mudanças sociais, como a idéia de um sistema repetitivo pode sugerir. Poderíamos adicionar que o
que diferencia o sistema repetitivo do sistema dinâmico, é o balanceamento de forças que determina
a estrutura de classes e os grupos sociais dominantes dentro do sistema e os tipos de mudança
social verificadas nele.
Apresentamos aqui uma tipologia de mudanças sociais para dar maior nitidez à distinção
entre sistema repetitivo e sistema dinâmico: 1º) Mudanças Cíclicas mudanças nos grupos que
exercem o poder ou funções dentro das instituições e sistemas, provocadas por dirigismo estatal ou
por efeito da luta de classes, mas que não questionam as bases do sistema de dominação, apenas
trocam os indivíduos e grupos concretos que exercem certos poderes e mudam os esquemas de
distribuição dos poderes. Elas são relativamente previsíveis de acordo com as próprias regras de
formação dos modos de dominação, consistindo de ciclos mais ou menos regulares e tendentes a
operar no curtíssimo prazo; 2º) Mudanças Institucionais em que as instituições e/ou os tipos de
relações ordenadoras do funcionamento social são transformadas, também por dirigismo estatal ou
por efeito da luta política entre grupos sociais, classes e frações, mas relaciona-se a forma do Estado
a organização ou sistemas políticos, e tendem a se realizar no curto e médio e prazo; 3º) Mudanças
Estruturais mudanças nos fundamentos das relações de poder e estrutura de classes, basicamente
na relação grupos sociais-território-meios de produção ou seja, nas partes e formas de organização
dos grupos (posições de classe dominante e subalterna, ou dos componentes do bloco no poder) e
tendem a operar no médio e longo prazo, como produto da acumulação de outras mudanças e
conflitos sociais.
Podemos dizer que as mudanças sociais cíclicas e institucionais são comuns aos dois tipos
de sistema e que a única diferença efetiva dos sistemas repetitivos para os sistemas dinâmicos é que
nos primeiros inexistem mudanças estruturais. O principal significado da classificação de um
sistema como repetitivo ou dinâmico, da forma aqui empregada, é a qualificação do tipo de
mudanças sociais e balanceamento estrutural de forças e relações de poder que fundam e organizam
a dinâmica societária. Isto permite também estudar a dinâmica dominação/resistência enquanto um
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
378
processo contínuo com efeitos distintos, de pequena e larga escala, curta e longa duração, e
relativamente imprevisíveis.
A principal característica do processo de conquista colonial na região sul de Mato Grosso, é
que ele se deu numa situação específica de fronteira em que determinados grupos indígenas, como
os Guaicurus e os Guanás, tinham um status especial frente aos europeus (espanhóis e portugueses)
em função da sua posição política e militar na região. A “Situação do Chaco” marca exatamente a
existência de um sistema social no qual a hegemonia político-militar cabia ao grupo Mabyá-
Guaicuru, na região da bacia do rio Paraguai, Sistema este articulado com o Sistema Mundial já a
partir de meados do século XVI. Tal conjuntura histórica implicava também um padrão de
distribuição do poder ou balanceamento de forças naqueles territórios e entres grupos sociais
concretos. A conquista colonial iniciada no século XVI desencadeou uma redefinição da dinâmica
interna do Sistema Social Indígena.
A existência da disputa com o Império Espanhol e depois a República do Paraguai pelo
território do Mato Grosso, e também a importância dos índios enquanto mão de obra e força militar
(numa região de em que o custo dos escravos negros era alto e a ocupação de colonos incipiente)
faziam com que os Guaicurus e os Guanás fossem cortejados pela política colonial portuguesa e
depois do Império Brasileiro. Os registros documentais e a etnografia dos militares mostram que a
representação dos índios Guanás e Guaicurus não eram pejorativas. Eles eram equiparados aos
“europeus” em certos momentos, e supunha-se que suas culturas possivelmente jamais
desapareceriam.
Tomando o processo de conquista colonial no sul de Mato Grosso, podemos dizer que o
Sistema Social Indígena entre 1540-1776, era um sistema repetitivo que conheceu diversas
transformações de tipo cíclico ou institucional. Diferentes grupos indígenas podiam se revezar em
posições dominantes; concretamente a aliança Guaicuru com os Paiaguás e com os Guanás revela
isso. Eles podiam ocupar posições de poder diferentes no sistema social indígena, mas as formas de
seu exercício, as técnicas políticas e militares, as formas de organização social, eram relativamente
estáveis. Por exemplo, a introdução do “cavalo e do aço”, garantiu a consolidação da hegemonia
política e militar Guaicuru, criando uma nova forma de guerra e mudança na organização das
instituições indígenas, possibilitando a ampliação da mobilidade das práticas de guerra, coleta e a
extensão do território em que eram praticadas. Mas as formas de produção e atividades principais
continuavam dentro do esquema de caça-coleta e guerra/saque no caso Guaicuru.
Devemos considerar que esse Sistema Social Indígena já era integrante ou articulado com
um Sistema Mundial e com as forças coloniais espanholas e portuguesas. E aqui a caracterização do
Sistema Indígena como Repetitivo nesse período mostra sua validade teórica, como contraponto as
teses da aculturação. Contrariamente as teses dos estudos de aculturação/assimilação, e mesmo as
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
379
idéias estruturantes da tutela indígena, os grupos indígenas como os Terena não eram um grupo
“isolado” e não foi o “contato” com a sociedade colonial que deu início a um processo de
“transformação” que resultaria na “extinção” das sociedades indígenas (caso o Estado não tivesse se
colocado como “protetor” dos índios). Durante esse período as relações interétnicas com as forças
coloniais e com Sistema Mundial já eram plenamente consolidados, mas o tipo de balanceamento
de forças fazia com que o sistema social indígena conseguisse se reproduzir na história com sua
singularidade e alteridade. Diversas mudanças se processaram, mas elas não afetaram
estruturalmente o sistema indígena.
Foi somente a partir de 1776 que certas mudanças sociais aparentemente cíclicas
aconteceram, mas que analisadas retrospectivamente, tiverem efeitos de mudanças estruturais: a
quebra da aliança dos Guaicurus com os Paiaguás, a expansão de fazendas sobre territórios
indígenas e a construção de fortes e presídios. Vejamos, várias vezes os colonizadores tinham
avançado fazendas e os índios as tinham destruído e massacrado os colonos. Mas outros fatores se
combinaram para dar a estes processos uma função relativamente nova e imprevisível (alguns deles
nós analisamos no capitulo 3). A partir desse momento nós podemos falar que o Sistema Indígena
passa a ser um Sistema em Transformação, pois o balanceamento de forças entre os diferentes
grupos sociais se altera, e conseqüentemente as relações entre estes e o território, os meios de
produção e de poder, surgindo uma outra estrutura de classes. Os colonizadores espanhóis e
portugueses alcançam progressivamente uma posição de poder cada vez mais superior ao antigo
poder dos Guaicurus.
Entre 1780 e 1850 o mais correto é falar da coexistência e articulação de um Sistema Social
Indígena com um Sistema Estatal, Colonial-Escravista, de teor “Para-Capitalista” (Velho, 1979),
mas uma articulação que tendia para a absorção das unidades societárias indígenas no Estado-
Nacional em formação. Porém, mais uma vez, esse processo não estava pré-determinado; ele se
consolidaria através de uma série de acontecimentos, de pequena e larga escala, como a atração dos
Guaná para a área de influência portuguesa, a dificuldade de reprodução de certas sociedades
indígenas por diversos fatores (como a prática do infanticídio) e a dissolução da aliança Guaicuru-
Guaná. A formação dos aldeamentos e a participação dos índios nos empreendimentos coloniais
(militares, religiosos e comerciais) criaram uma vinculação cada vez mais estreita entre os índios e
o Estado e os diferentes segmentos da sociedade colonial na fronteira.
Na realidade, havia se levantado um “cerco” contra o Sistema Indígena do Chaco/Pantanal.
Somente depois de 1860, com a Guerra do Paraguai e a vitória brasileira, e conseqüentemente com
a eliminação da ameaça “externa”, a criação de vias de comunicação, a expansão da fronteira
agrícola e com ela do capitalismo monopolista, é que se colocaria uma contradição direta entre a
existência de um Sistema Social Indígena, marcado por uma profunda alteridade étnico-cultural e
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
380
autonomia indígena, e de um Estado-Nacional. Mas essa contradição está associada especialmente à
expansão da fronteira agrícola sob a direção do capital monopolista (que levou a formação dos
latifúndios no sul de Mato Grosso) e ao fortalecimento do Estado-Nacional. Dessa maneira, a
conquista colonial evoluiu para a formação de um Estado Capitalista, que destrói e aniquila
definitivamente o Sistema Indígena nesse período.
Mas não devemos confundir a destruição do Sistema Social Indígena com a destruição das
sociedades indígenas. Na realidade, será sob as condições do capitalismo monopolista na situação
de cativeiro que muitos grupos étnicos e aldeias irão desaparecer. Os dados do censo de 1862
estimam a população indígena no intervalo de 10.000 a 15.000 pessoas, e o comerciante J.Bach fala
que em 1897 os Terena consistiam de 12 a 14 mil índios em “inúmeras aldeias”, das quais visitou 8.
O censo de 1926 composto por Roberto Cardoso a partir de informações do SPI, a apontou a
existência de 2.995 indígenas Terena em oito aldeias. Sabemos que os dados não refletem nem
dizem tudo sobre os processos sociais (pois muitos índios vivam em fazendas e cidades e podem
não ter sido recenseados), mas é certo que o final do século XIX no de Mato Grosso foi marcado
pelo etnocídio, com desaparecimento de povos como os Xamacocos, Guaxis, e sub-grupos Mabyá e
Guaná, de maneira ainda mais dramática que no período do final do século XVIII, quando as
circunstâncias históricas davam as sociedades indígenas da região uma importância estratégica.
Dessa maneira, no período de 1776 a 1850, o Sistema Social Indígena passa de Sistema
Repetitivo a Sistema Dinâmico, sendo que a causa da liquidação desse Sistema Indígena não foi o
estabelecimento de relações (ou o “contato”) das sociedades indígenas com as forças coloniais, mas
sim o tipo de direcionamento que as mudanças sociais tomaram com os novos esquemas de poder e
balanceamento de forças de longo prazo. Duzentos anos de interação, guerra, comércio e
colaboração política se deram sem que o Sistema Indígena tivesse sua existência ameaçada, e para
garantir a mudança estrutural foi necessária a violência e a guerra, como fatores determinantes
desse tipo de mudança social.
Pudemos ver que na realidade o Estado Colonial se articulou e manipulou tanto as relações
quanto as contradições do Sistema Indígena em seu favor. As alianças com os Guaicurus e com os
Guanás, o seu recrutamento para os principais empreendimentos coloniais mostram que não é
exatamente a impossibilidade de “administração” através de formas segmentares que levou a
extinção do Sistema Indígena, mas uma determinada configuração histórica e uma contradição
especialmente no que diz respeito à “estrutura territorial” dos dois sistemas e a disputa pelo controle
dos territórios e recursos naturais e econômicos existentes neles, e logo, as posições de poder dos
grupos indígenas
125
. Quando o Estado assume feições tipicamente Capitalistas e elimina a “ameaça
125
Em todas as sociedades descritas no livro o sistema político tem uma estrutura territorial, porém tem uma função
diferente nos dois tipos de sistema político. (Fortes & Evans-Pritchard, op.cit, p. 10)
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
381
externa” representada por um outro Estado é que a existência do Sistema Indígena torna-se
dispensável e ao mesmo tempo sua destruição possível.
Não podemos pensar a transição das “sociedades sem estado” para as sociedades estatais
sem pensar a história concreta desse processo. E no caso do Sul de Mato Grosso, essa transição se
deu através da transição de uma Sociedade Segmentar para um Estado Capitalista, como em quase
todos os contextos coloniais modernos e o sistema indígena que foi transformado, não se enquadra
nos parâmetro de uma “sociedade primitiva”, já que mesmo sendo um sistema repetitivo até o
século XVIII ele passou por profundas mudanças cíclicas e institucionais em razão do “encontro ou
confronto colonial”.
Outro equivoco a evitar é a elevação da dicotomia “índios/brancos” a um patamar
explicativo e a descontextualização dessas categorias. A sociedade colonial em termos étnicos se
aproxima mais de um mosaico ou de formas multidimensionais, sendo composta por europeus
(brancos), índios, africanos (negros) e mestiços, inseridos numa estrutura de classes que opunha
“senhores, escravos e livres”, definida pelas diferentes posições de controle dos meios de produção
e de poder. Nesse sentido, não somente o índio, mas branco, negro e mestiço são todas categorias da
situação colonial (Batalha, 1972). Mas é preciso lembrar que tanto estas categorias recobriam
grupos heterogêneos internamente, quanto às posições na estrutura da sociedade não derivam dessas
classificações, mas antes, tais classificações derivavam da estrutura da sociedade colonial-
escravista.
Podemos dizer que os Guaicurus e os Guanás durante o período de 1540 até 1776, e mesmo
entre 1780 e 1850, estavam na condição de “livres” (participavam de uma estrutura de estratificação
relativamente autônoma frente à estrutura colonial) por conta da sua posição especifica na fronteira,
livres em relação à classe de escravos (composta por negros, mestiços e índios) e a classe
dominante de senhores (composta por brancos europeus colonizadores). Mas as mudanças sociais
que levaram a dissolução da situação colonial não transformaram apenas as sociedades indígenas,
mas o conjunto dos grupos da classe dominada e a própria classe dominante senhorial-escravista.
Os “brancos” deixaram de se confundir com a classe dominante já que a política de imigração e
miscigenação levou a formação de um proletariado heterogêneo étnico e nacionalmente. Os
colonizados mudaram também seu perfil étnico e social, já que os índios do Sistema do
Chaco/Pantanal perderam sua condição de “livres”, e no final do século XIX a população mestiça e
branca superou a população indígena no Mato Grosso. Assim rapidamente a oposição
colonizados/colizadores, ou índios e brancos, deu lugar a uma mais complexa trama de
contradições.
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
382
A coexistência de diferentes modos de organização política indígena e estatal a
articulação de classes ou estratos dominantes em diferentes sistemas e a formação de novas
clivagens como colonizador/colonizado e sua transformação (na oposição patrão/empregado ou
fazendeiro/camponês) e o seu papel na formação do Estado-Nacional exige uma interpretação do
significado das múltiplas formas de colaboração e resistência encontradas.
Nesse sentido algumas formulações de Nicos Poulantzas são muito pertinentes para a
interpretação do processo de mudança social nas estruturas de poder, sendo um conceito chave o de
Bloco no Poder.
“Em primeiro lugar, devemos ainda recordar-nos que a linha de demarcação política de
dominação-subordinação não pode ser traçada, como o desejaria uma concepção
instrumentalista e historicista do Estado, segundo a perspectiva dualista de uma luta
“dualista” das classes dominantes/dominada isto é a partir de uma relação entre o Estado
e uma classe dominante. Sabemos que uma formação social é constituída de uma superposição
de vários modos de produção , implicando assim a coexistência, no campo da luta de classe, de
várias classes e frações de classe, e eventualmente, de várias classes e frações dominantes”.
(Poulantzas, 1977, p. 224)
A primeira indicação teórica importante é a da possibilidade de coexistência de grupos dominantes
em diferentes sistemas sociais (pelos termos marxistas, “modos de produção”). É essa possibilidade
que faz com que mais de uma classe ou fração de classe exerçam a dominação de forma conjunta,
sob a forma de “bloco no poder”. Num certo sentido, é um problema associado à transição do
feudalismo para o capitalismo (ver Poulantzas, op.cit, p. 229).
Mas a idéia de Bloco no Poder diz respeito a uma região delimitada do universo social. O
“Bloco”, que é efetivamente quem detém o poder, se relaciona por duas grandes modalidades, aos
demais setores da sociedade que não integram o bloco no poder: 1) a aliança; 2) o apoio. Segundo
Poulantzas:
“O apoio distingue-se do bloco no poder, do mesmo modo que a aliança, pela natureza das
contradições entre o bloco no poder e as classes aliadas..”. (p. 238)
1) Que o seu apoio a uma dominação de classe determinada não é em geral baseado em
qualquer sacrifício político real dos interesses do bloco no poder e das classes aliadas em seu
favor. Esse apoio, indispensável a essa dominação de classe, é em primeiro lugar, baseado em
um processo de ilusões ideológicas. (...)
“Esta unidade não se manifesta, regra geral, nas relações imediatas de classe, mas realiza-se
por intermédio do Estado. A relação das classes-apoios com o bloco no poder e com as classes
aliadas manifesta-se menos como relação de unidade política de classe que apoio a uma forma
de Estado determinada”. (Poulantzas, 1977, p. 239).
Dessa maneira, podemos perceber que o “Bloco no Poder”, e as formas de extensão de suas
relações, a “Aliança” e o “Apoio” baseiam-se na unidade contraditória de interesses. Entretanto a
aliança é baseada numa identidade de interesses dentro de uma “instância” especifica (por exemplo
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
383
à economia), ficando aberta a possibilidade de conflitos em outras (como a política); o Apoio é um
modo de relação de poder em que não existe uma identificação de interesses, ou pelo menos uma
reciprocidade ou equivalência entre as trocas. Além disso, a aliança e o apoio ampliam o arco de
articulação do bloco no poder para fora de si mesmo, já que outras frações da classe dominante ou
setores da classe dominada são mobilizados. Assim, há um delineamento claro de uma relação entre
a estrutura de classes da sociedade e o Estado Capitalista (já que a noção de bloco no poder se
aplicaria segundo o autor somente no capitalismo).
De uma maneira geral, poderíamos dizer que o conceito de Bloco no Poder se inscreve
dentro de uma “macrofísica do poder”. As características principais do Bloco no Poder recortam
um espaço que abrange a sociedade como um todo; o Bloco existe, se expressa numa forma de
Estado e determina, em parte, a dinâmica social global. O Bloco no Poder compreende as altas
posições na Sociedade e no Estado, os grandes capitais e poderes monopolistas, sendo um espaço
circunscrito e fechado a todos os setores não hegemônicos da classe dominante e especialmente, aos
setores e frações da classe dominada.
Podemos pensar o processo de formação do Estado Capitalista, da passagem das sociedades
sem estado à sociedade estatal no caso de Mato Grosso também a partir da transformação das
relações de classe num momento de expansão da fronteira agrícola e formação de uma economia
capitalista. Quando falamos de um momento histórico de coexistência e articulação de sistemas
sociais e políticos (período compreendido entre 1780-1850, aproximadamente), falamos da
coexistência de dois grupos/classes dominantes: os Guaicurus, enquanto estrato guerreiro dentro do
Sistema Indígena e os “militares e comerciantes” portugueses dentro do Sistema Colonial. Existia
uma interação e diálogo entre os dois setores dominantes nos respectivos sistemas sociais. Vimos
que os Guaicurus eram tratados com honras de Chefe de Estado. Mas desde os primeiros momentos,
como pelas formulações do governador da capitania de Mato Grosso Caetano Pinto de Miranda
Montenegro, tinha-se o projeto de utilizar os índios nos empreendimentos militares, produtivos e
comerciais (agricultura e mineração). Não se cogitava a possibilidade de compartilhar o poder em
Bloco com os setores dominantes da sociedade colonizada. Contrariamente a política adotada em
relação aos senhores feudais, a coexistência de dois sistemas sociais e classes dominantes não levou
a formação de uma identidade de interesses.
Conforme o Estado-Nacional se construiu e a economia capitalista se desenvolveu, o Bloco
no Poder se formou. E aqui nos interessa mais a exclusão dos grupos indígenas desse Bloco que a
composição do Bloco propriamente dito pois na realidade a exclusão é apenas uma dimensão da
sua composição. E também o processo de vinculação dos grupos dominados ao Bloco no Poder e
elites locais e sues interesses, como forças de apoio em empreendimentos coloniais diversos.
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
384
Os índios Guaicurus e Guanás foram articulados enquanto forças de apoio dentro do
universo da classe senhorial-escravista, especialmente através da fração militar. Essa fração militar
senhorial integraria o futuro Bloco no Poder quando da transformação capitalista da sociedade
brasileira. A idéia de forças de apoio indica uma relação diferenciada com a classe dominante. Os
índios foram empregados como força de apoio, mas com garantias e tratamento de forças aliadas,
em razão de uma combinação de fatores, sendo uma das principais foi a sua capacidade de
resistência político-militar diante da debilidade relativa do Estado-Colonial. Por isso as terras e a
autonomia política garantida aos índios dentro das primeiras fases da formação do Estado-Nacional
brasileiro (1800-1860), e também o acesso direto as mais altas autoridades imperiais (como as
negociações diretas dos Capitães com os Presidentes de Província ao longo do Império).
Um dos meios de viabilizar a utilização dos índios Guaicurus e Guanás como forças de
apoio, foi o loteamento de postos inferiores dentro da estrutura administrativa do Estado. A
concessão de patentes militares, o recrutamento de índios para empreendimentos missionários e
comerciais, como bandeiras e obras públicas, a concessão de terras para uso particular, viabilizavam
a adesão dos índios e sua íntima articulação com as instituições de Estado e as frações dominantes
da sociedade colonial. Além disso, num certo momento, opunha os Guaná e Guaicurus aos demais
grupos indígenas e população negra e mestiça escravizada. A autonomia relativa dos índios
coexistiu com sua colaboração na dominação, sendo utilizados às vezes no extermínio de quilombos
e outras comunidades indígenas. Podemos falar num modelo histórico de colaboração entre
colonizadores e colonizados através de empreendimentos governamentais, implicando a concessão
de postos administrativos e pela sua participação dentro das instituições estatais, consolidando este
grupo como parte das forças de apoio.
Contraditoriamente, estas formas concretas de colaboração minaram as bases de poder que
levavam o Estado Colonial a ter a necessidade de coexistir com a autonomia territorial e política das
sociedades indígenas. Ao estabelecer relações com a Classe Dominante os Guaicurus e Guanás
minaram progressivamente os fundamentos político-militares de seu poder. Com a destruição do
sistema social indígena, os índios Guaicurus e Guanás, antes ocupantes de uma posição dominante
em relação aos índios e mesmo a espanhóis e portugueses, são inseridos numa posição subordinada
na estrutura de classes da nova sociedade que se formava. Isso aconteceria depois da Guerra do
Paraguai, quando a eliminação da disputa de fronteiras e o desenvolvimento das vias de
comunicação possibilitaram o avanço do capitalismo monopolista em Mato Grosso, com a
formação de um mercado de terras e a consolidação do povoamento.
A principal mudança social se deu nas estruturas de poder e de classes, nas formas de
relação das sociedades indígenas com o território e os meios de produção e autoridade política.
Podemos dizer que ao final do século XIX, o principal sentido da conquista colonial tinha sido o da
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
385
incorporação definitiva das sociedades indígenas na dinâmica do Estado-Capitalista: numa condição
de grupo dominado, subalterno na estrutura de classes, ocupando as posições inferiores de poder e
de status na sociedade nacional que se formava.
7.2 - Etnocentrismo e sub-proletarização: os fundamentos da sobre-exploração.
O regime tutelar tal como estabelecido pelo SPI se apresenta como um modo de dominação
associado a essa situação de declínio relativo de poder dos índios, na seqüência de uma série de
guerras durantes o período colonial e também um período de “colaboração” entre os Terena e o
Estado-Nacional. A tutela consolida esse processo de subalternização. O SPI impôs a lógica da
centralização política baseada numa dominação de classe e étnica, dentro dos territórios das
reservas. Essa centralização não conseguiu se estabilizar nas primeiras décadas de existência do
SPI. Ao mesmo tempo, as reservas pelas suas características devem ser pensadas como “reservas
de mão-de-obra” (ver Cardoso de Oliveira, 1976). Isto significa que os índios eram empregados em
empreendimentos indigenistas, governamentais e produtivos, como campeiros, trabalhadores
rurais, trabalhadores manuais em obras públicas, ofícios rurais e urbanos. A maior parte dos índios
passou a se dedicar de forma temporária ou permanente ao trabalho assalariado. Nesse sentido, a
noção de reserva de mão-de-obra tem de adquirir uma maior precisão sociológica. Ela deve indicar
a nova posição na estrutura de classes, e a elucidação de mais um dos sentidos das mudanças sociais
de longo prazo.
A situação econômica atual dos índios se relaciona ao tipo de inserção na estrutura de
classes, efeito simultaneamente político e econômico da colonização, da sua exclusão do Bloco no
Poder e do projeto que este tinha para os índios. A situação de classe e ocupacional dos índios
Terena de Cachoeirinha e que se reproduz em todo o Mato Grosso do Sul, como descrita no capítulo
2, mostra que eles estão localizados em um município com alta taxa de concentração de renda e
posicionados nos estratos de rendimentos mais baixos. Isso em razão da baixa produtividade e
pouco valor da sua mão-de-obra no mercado regional.
A questão a colocar é: quais são as condições particulares da reprodução da força de
trabalho que permitem praticar esses baixos salários? Quais são as condições da sobreexploração do
trabalho nos países “colonizados”? (Meillasoux, 1976, p.152). A problemática da inserção numa
nova estrutura de classes engendrada pela passagem das sociedades “sem estado” as “sociedades
estatais”, implica obviamente no aparecimento de novas posições nas relações de produção e
economia. E implica também no peso do legado histórico da situação colonial na formação dos
Estados capitalistas. É preciso perceber a importância do etnocentrismo e das teses sobre
superioridade racial como parte de uma política de construção da sobre-exploração do trabalho da
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
386
classe trabalhadora composta nos contextos pós-coloniais como o brasileiro, por uma massa
heterogênea de mestiços, negros e indígenas.
E do ponto de vista da história indígena, é a explicação para sua localização na estrutura de
classes e agrária, sob diversas formas possíveis. Isso relaciona diretamente à contradição da
agricultura doméstica nos países da periferia: apesar de demandar mais tempo de trabalho e ter
pouca produtividade, os produtos e a força de trabalho proveniente desse setor são baratos.
(Meillasoux, 1976,p.155), O que Meillasoux indica é que na realidade o capitalismo não leva
necessariamente a destruição da economia doméstica enquanto modo de produção, mas ao
contrário, pode levar a uma articulação entre capitalismo e economia doméstica:
“As relações entre os dois setores, capitalista e doméstico, não podem ser consideradas como
relações entre dois ramos do capitalismo como basta fazer para explicar a troca desigual: a
relação estabelece-se entre setores em que predominam relações de produção diferentes. É por
intermédio das relações orgânicas que estabelece entre economias capitalistas e domésticas
que o imperialismo põe em cena os meios de reprodução de uma força de trabalho barata em
proveito do capital; processo de reprodução que é, na fase atual, a causa essencial do
subdesenvolvimento e simultaneamente da prosperidade do setor capitalista. Social e
politicamente, está também na origem das divisões da classe operária internacional”.
(Meillasoux, 1976, p.156)
Mas ainda assim a economia doméstica pertence à esfera de circulação do capitalismo, na
medida em que os aprisiona em termos de força de trabalho e de produtos enquanto permanece fora
da esfera da produção capitalista. (Meillasoux, 1976, p.156). Dessa maneira, a preservação das
relações de produção domésticas e do acesso de certos grupos sociais a parcelas de terra, são
fundamentais para viabilizar a realização de um sobre-trabalho, mecanismo de exploração que
aumenta a lucratividade do setor capitalista.
Nesse sentido, Meillasoux busca uma definição para o conceito de modo de produção que
foi utilizado por Marx para descrever a sucessão histórica de sistemas baseados em diferentes
relações de produção. “Outra coisa é opor modos de produção como o fazemos aqui, pelo seu
encontro contemporâneo, pela sua articulação ou dominação eventual de um por outro”.
(Meillasoux, 1976, p.156-157). Dessa maneira “... não é portanto a destruição de um modo de
produção por outro, mas a organização contraditória das relações econômicas entre os dois
setores, capitalista e doméstico, um preservando o outro para lhe subtrair a sua subsistência, e, ao
fazê-lo, destruindo-o”. (Meillasoux, 1976, p.159).
Meillasoux irá retomar a noção de “acumulação primitiva” de Marx dando um outro
significado. A noção de acumulação primitiva em Marx estava ligada a um contexto histórico
preciso: a emergência de um capitalismo das ruínas da feudalidade. Neste fenômeno Marx
considera alguns processos: 1) a transferência da terra; 2) a transferência da força de trabalho para
as cidades pelas migrações; 3) a transformação do trabalhador de produtor independente em
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
387
“trabalhador livre”. (Meillasoux, 1976, p.172). O que Meillasoux faz é falar de um modelo de
acumulação baseado nas características da “acumulação primitiva”. Seriam diferentes modos de
garantir a “acumulação” baseada em taxas de mais valia absoluta.
Essa situação especifica de articulação de “modos de produção” capitalista e doméstico
entendidos enquanto arranjos mais ou menos abertos entre força de trabalho, meios de produção e
relações de propriedade - se dá para viabilizar a sobre-exploração do “trabalho” desse campesinato.
Essa sobre-exploração se dá pelos seguintes mecanismos: o duplo mercado de trabalho que divide
organicamente o proletariado entre: 1) trabalhadores integrados (que se reproduzem totalmente no
setor capitalista); 2) trabalhadores migrantes (reproduzem-se apenas parcialmente) e ao quais a) são
recusados ou dados menores salários indiretos; b) e setores da economia buscam impor salários
baixos e instabilidade para afastar o trabalhador “integrado”. O papel do racismo é fazer funcionar e
legitimar o duplo mercado de trabalho; introduzindo clivagens dentro o proletariado super-
explorado, retardando a emergência da consciência de classe. Esses mecanismos garantem a rotação
da mão-de-obra que obrigam permanentemente os trabalhadores a voltarem a seus lugares de
origem. (Meillasoux, 1976, p.198).
“O mecanismo das migrações temporárias funciona não só no meio de um mesmo país, entre
zonas rurais e zonas urbanizadas, como à escala internacional entre os países com dominância
rural e o paises industrializados. Está na origem dos imensos movimentos de populações que
não pararam de surgir, depois do fim da segunda guerra mundial, entre África e Europa,
migrações que certos sociólogos atrasados, cegos ou cúmplices continuam a atribuir a
mentalidade indígena ou à sua tradição”. (Meillasoux, op.cit,, p.199).
A exploração se dá sobre toda a célula familiar a que pertence o trabalhador. Ela também produz
um sobretrabalho equivalente à duração do tempo livre (para o senhor feudal esse sobretrabalho
aparecia como renda em trabalho” ou trabalho gratuito” prestado pelo camponês).
(Meillasoux, op.cit,p.181).
A renda está presente porque o trabalhador divide seu tempo de trabalho entre sua produção
e a produção para o patrão. A extração da renda em trabalho exige as migrações temporárias, o
estabelecimento de um mercado duplo e uma ideologia discriminatória (Meillasoux, 1976, p.188).
Por isso é necessária uma política preservacionista que coexiste com o racismo, e que leva criação
de reservas de terra que são na realidade reservas de mão-de-obra.
“Nestas colônias de povoamento, uma fração do território colonizado é subtraído à
apropriação privada dos colonos. São as“reservas” nas quais se confinam a as populações
africanas. Reservas ditas terras, mas sobretudo de mão-de-obra, que foram até o presente
momento i trunfo da política econômica dos Estados racistas. Sob o pretexto de preservar as
condições de vida tribal, as autoridades tentam ai conter, por leis apropriadas, a emergência
de uma propriedade privada da terra e a constituição de relações de produção capitalistas”.
(Meillasoux,1976, p.192).
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
388
Outro sentido da conquista colonial, que a “situação de reserva” em Mato Grosso
consolidaria, seria um padrão determinado de exploração do trabalho indígena, desta vez pela
inserção dos índios enquanto segmento do campesinato e dos trabalhadores nacionais localizados no
setor agrícola. Os traços fundamentais do regime tutelar, naquilo que tem de pragmático, apontam
nesse sentido. O que a análise Meillasoux tem de valorosa é nos levar a perceber como o padrão de
“acumulação” estabelecido exigia a articulação do modo de produção “doméstico” do campesinato
indígena com o setor capitalista. Essa articulação possibilita a extração de uma “renda” em forma de
trabalho. As “reservas” de mão-de-obra indígena têm uma relação também especifica com a
situação colonial de que é produto e com a economia capitalista da qual se apresenta como
engrenagem.
Podemos dizer que o etnocentrismo e sua forma superior, o racismo, é um fator
fundamental; a concepção de que os povos colonizados são inferiores (racial, cultural e
socialmente) levou a um profundo abismo nas relações entre e colonizados e colonizadores que
delinearam um projeto político de inserção dos primeiros enquanto força de trabalho barata na
sociedade nacional em formação. Entretanto, essa ideologia da superioridade, o etnocentrismo e as
necessidades econômicas, levaram ao mesmo tempo a necessidade da preservação de sua economia
doméstica e sua inserção na esfera inferior do duplo mercado de trabalho. Dessa maneira, a linha
étnica e o etnocentrismo característicos da situação colonial, foram transformados em engrenagens
da exploração capitalista pela organização das migrações temporárias e expropriação de terras que
reedita enquanto modelo de acumulação, as principais características da acumulação colonial de
poderes e capitais enquanto etapa histórica (simultaneamente da história indígena e do Estado-
Nacional). E este modelo de acumulação baseado na sobre-exploração da comunidade doméstica e
trabalho indígena, também levou este campesinato indígena a ser absorvido na esfera subalterna do
duplo mercado de trabalho (em que são praticados menores salários diretos e indiretos).
Nesse sentido, elucidamos um outro sentido fundamental da conquista colonial: a formação
de uma economia e de uma estrutura de classes capitalista baseada num duplo mercado. Torna-se
compreensível o porque da atual situação econômico-social dos índios Terena, como descrita no
capitulo 2.
Assim, o colonialismo e o etnocentrismo são fatores fundamentais para entender o lugar do
índio dentro das sociedades capitalistas: o capitalismo foi capaz de articular diferentes sistemas
sociais e de produção; foi capaz de fazer coexistir classes dominantes em diferentes sistemas; foi
capaz de absorver essas antigas classes enquanto frações dentro do capitalismo; mas o capitalismo
nos países colonizados assumiu a característica de levar a sub-proletarização dos povos colonizados
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
389
dentro do duplo mercado de trabalho. A “proteção e preservação” engendrada pelo regime tutelar
estão associadas a esse modelo de acumulação colonial e de sobre-exploração
126
.
Podemos falar de um “Modelo de Acumulação Colonial”, que pode ser tanto uma etapa
histórica e aí considerado como um tipo de acumulação primitiva (ver capítulo 3), quanto um
modelo de processo de articulação e funcionamento de diferentes modos de produção e
expansão do capitalismo. Este modelo tem algumas características que podem se apresentar de
forma simultânea ou alternada: 1º) articulação de “alianças políticas com os setores “colonizados”
ou “setores” da classe dominada; 2º) incentivo e manipulação dos seus conflitos internos; 3)
formação de uma aristocracia indígena através do recrutamento de nativos como forças de apoio em
empreendimentos sociais e cargos na administração estatal; 4º) expropriação generalizada de terras;
5º) extração de “renda” pelo trabalho forçado; 6º) organização de migrações temporárias.
Esse modelo de acumulação pode se aplicar dentro de uma situação colonial clássica (com
um “regime político colonial”) ou dentro de contextos diversos (democracias) através do
colonialismo interno em regiões de fronteira agrícola ou de frentes de expansão. Depois da
incorporação das novas terras e fechamento da fronteira, muitas dessas características tendem a
persistir (como duplo mercado de trabalho, coexistência de modos de produção articulados, e
mesmo o trabalho forçado), através de tipo de relação “centro-periferia” em que o setor
doméstico e a esfera inferior do mercado de trabalho são a periferia, dependente e subordinada ao
“centro”, composto pelo “setor capitalista” e pela esfera superior do mercado de trabalho. E este
modelo de acumulação tende a ser historicamente reeditado sob certas condições de expansão
imperialista e colonialista.
O sentido da conquista colonial e logo da construção do regime tutelar é, ao estabelecer um
determinado processo de territorialização, sacramentar o resultado da guerra de conquista colonial,
pela imposição de padrões políticos centralizados e certas relações territoriais que ao mesmo tempo
produziam uma inserção na estrutura de classes e institucionalizavam as relações de poder entre
dominantes e dominados. Garantindo também que o resultado da transição capitalista para os índios
fosse seu aproveitamento como mão de obra barata, dentro de um modelo de acumulação altamente
lucrativo. Tudo isso foi recoberto pela ideologia da preservação e proteção que assegurava a
dominação política e a exploração do trabalho indígena.
7.3- Os múltiplos usos e faces da tutela: colonialismo interno e imperialismo.
126
“Nestas colônias de povoamento, uma fração do território colonizado é subtraído à apropriação privada dos colonos.
São as “reservas” nas quais se confinam a as populações africanas. Reservas ditas terras, mas sobretudo de mão-de-
obra, que foram até o presente momento i trunfo da política econômica dos Estados racistas. Sob o pretexto de preservar
as condições de vida tribal, as autoridades tentam ai conter, por leis apropriadas, a emergência de uma propriedade
privada da terra e a constituição de relações de produção capitalistas.” (Meillasoux, 1976, p.192).
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
390
A articulação da etnografia em pequenas comunidades com a análise teórica de processos de
larga escala e longa duração, nos obriga a terminar nossas reflexões por onde começamos: pela
experiência de participação em certas situações sociais na aldeia Cachoeirinha no Mato Grosso do
Sul. A função da teoria é exatamente iluminar a percepção do profundo significado sociológico de
eventos cotidianos.
Uma das primeiras situações sociais descritas neste trabalho, foi o evento da contratação de
turmas de trabalhadores indígenas dentro da aldeia Cachoeirinha. Pudemos ver que as negociações
envolviam diretamente os indígenas: o cacique, o chefe de posto enquanto funcionário da FUNAI
- os “cabeçantes” e os representantes das Usinas. O representante da Usina Santa Olinda comentou
que os índios trabalhavam em regime do contrato temporário e que os não indígenas eram
empregados em outros regimes de trabalho. Na realidade, esta é uma situação chave para a
apreciação e compreensão da atual situação histórica, porque ela elucida tanto a situação de classe
dos índios quanto os esquemas de dominação e distribuição do poder local.
Em primeiro lugar, trata-se de que os fluxos organizados de trabalho, as migrações
temporárias, constituem uma das principais engrenagens do regime tutelar. Como vimos, a
consagração dos contratos coletivos instituídos pelo Estatuto do Índio de 1973, implicam na
organização de migrações temporárias dos índios. No caso do Mato Grosso do Sul e da industria
canavieira, as mesmas turmas saem várias vezes ao ano, ficando de 60 a 70 dias no corte da cana
que vai de março até novembro. A situação dos trabalhadores indígenas mostra as formas de
combinação do trabalho na agricultura doméstica, camponesa, com o trabalho assalariado. As
“plantations” exportadoras de cana-de-açúcar e seus derivados, empregam assim formas de extração
de mais-valia e “renda em trabalho” garantida pela existência das reservas indígenas no Mato
Grosso do Sul, o que pode explicar em parte sua lucratividade (ver capítulo 2).
Os dados disponíveis, levantados tanto em campo por meio de entrevistas quanto em
pesquisas em arquivos da FUNAI e jornais, mostra como esta articulação do trabalho indígena se
dava no final da década de 1990 e ainda se dá nos primeiros anos do século XXI:
“A recusa dos índios em assinar carteira de trabalho e contribuir com a Previdência Social
está emperrando as negociações em torno do trabalho indígena nas usinas e destilarias do
Mato Grosso do Sul. Atualmente, de acordo com o levantamento feito pela “Comissão de
Fiscalização das Condições de Trabalho das Carvoarias e Destilarias” e Carvoarias, 2.400
índios trabalham no corte de cana no Estado. Conforme a FUNAI, esses trabalhadores recebem
um adiantamento de R$ 100,00 e recebem até R$ 300,00 no final do contrato de trabalho que
dura até 60 dias. O valor final depende da produção de cada um”. (Diário da Serra.
17/06/1997).
Em julho de 1997, a Delegacia Regional do Trabalho e a FUNAI percorreram as aldeias do
sul de Mato Grosso do Sul para emitir carteiras de trabalho e previdência social para os índios que
trabalhavam no corte de cana. Tal medida foi estabelecida por acordo entre o MPT (Ministério
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
391
Público do Trabalho) e duas Usinas depois de uma ação civil pública. As estimativas indicam que
cerca de 4.000 índios trabalhavam nas Usinas de Mato Grosso do Sul, sendo que seu vinculo
empregatício se resumia a um “contrato”. Tivemos também acesso a relatórios da FUNAI, que por
diversas vezes anos 1980 e 1990 realizou viagens de fiscalização nas Usinas.
A “Comissão Permanente de Investigação e Fiscalização das Condições de Trabalho no
Estado do Mato Grosso do Sul”, criada pelo Governo Estadual para investigar as denúncias
referentes às condições insalubres e irregulares vividas pelos trabalhadores em carvoarias”,
composta por órgãos públicos e representantes da sociedade civil organizada, foi criada em junho
de 1993. Essa comissão teve suas funções estendidas abrangendo também as Usinas e outros setores
de atividade econômica. Do trabalho dessa comissão resultou que: “Nas destilarias houve uma
melhoria nas condições dos alojamentos, e foi proposto o contrato coletivo para os índios. O
trabalho infantil não-indígena foi praticamente eliminado. O mesmo não aconteceu em relação à
mão-de-obra infantil indígena: por questões culturais, as crianças acompanham seus pais no
trabalho
127
.”A explicação “culturalista” não esconde o fato de que as condições exploração de
trabalho infantil para os índios perduraram ainda depois do trabalho da comissão.
Da pressão realizada pelo MPT, resultou a princípio uma resistência das Usinas, que se
recusaram a contratar mão-de-obra indígena e ameaçaram levar trabalhadores da Bahia para
substituir os locais. Disso resultou que os próprios indígenas pressionaram a DRT e o MPT, no
sentido de acelerar a resolução do impasse (Correio do Estado, 28/04/1998). Depois de algum
período de pressão, as Usinas aceitaram conceder algumas melhorias e garantias como carteira de
trabalho aos índios. Somente por isso, na situação da contratação em que o “Gato” representante da
Usina Santa Olinda e os o Cacique e o Chefe de Posto procederam da maneira como descrevemos.
Quadro 39 - Mão de Obra Empregada nos setores Fiscalizados pela Comissão Permanente de
Investigação e Fiscalização das Condições de Trabalho/SCJT Governo/MS (1996).
Carvoarias 8.000
Destilarias 12.000
Braquearia 2.000
Algodão 6.000
Erva-mate 800
Total 30.000
Os dados acima mostram que o setor que mais se vale de mão-de-obra é o das Usinas e
Destilarias de açúcar, e pelos dados disponíveis a mão-de-obra indígena corresponderia a 1/3 do
total (4 mil trabalhadores), um número mais do que significativo. E isto porque estamos
considerando apenas as Destilarias de Cana-de-Açúcar. O baixo nível de remuneração salarial e a
127
Comissão de investigação e fiscalização, em 19/05/2006. Autor: Marco Antônio de Almeida a partir do relatório
de Jean Rocha para o Programa Gestão Pública e Cidadania. Publicado originalmente como DICAS nº 69 em 1996.
Acessado em 07/12/2006. http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=2653
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
392
inexistência de formas de salário indireto e mesmo de garantias formais de contratação, que
caracterizam os fluxos de trabalho indígena no Mato Grosso do Sul, mostra como se dá sua inserção
nesse duplo mercado de trabalho.
A instituição do “duplo mercado de trabalho” no caso da economia agrária do Mato Grosso
do Sul, insere os índios dentro de pesados esquemas de dominação e exploração que se vinculam
diretamente a organização dentro das aldeias e comunidades indígenas. Por isso, as situações
descritas representam a exploração e dominação herdeira do colonialismo em processo de
funcionamento. O regime tutelar, mesmo com suas transformações contemporâneas e sua
liberalização, continua mantendo seus principais objetivos e talvez graças a essa liberalização, sua
função e eficácia enquanto modo de dominação tenha recebido um novo fôlego.
O regime tutelar é uma das engrenagens de um modo de dominação/exploração do trabalho
indígena e as transformações nele tem de ser contrastadas com as transformações em outras
instituições como o duplo mercado de trabalho e com forças econômicas como as migrações
temporárias e relações de produção doméstica. E mais que isso, o regime tutelar historicamente se
estabeleceu na seqüência de políticas de colonialismo interno, e como é o caso de Mato Grosso em
áreas de “fronteira fechada”. Mas na realidade, este próprio modo de dominação/exploração
“regional” está integrado num circuito mundial, numa cadeia imperialista. Uma vez que as
plantations agro-exportadoras, nas quais se colocam as Usinas e Destilarias, fazem parte de cadeias
mercantis internacionais e orienta seus modos de organização pela lógica de competição e pelas
relações centro-periferia da economia mundial. Nesse sentido, o próprio regime tutelar está a
serviço de uma cadeia mais ampla de relações do imperialismo que visa extrair mais valia dos
países da periferia do capitalismo.
Ao mesmo tempo, a participação indígena na negociação de contratos de trabalho dentro da
aldeia abre campo para a reflexão acerca da dominação política e dos diferentes projetos políticos
do grupo étnico. A presença de funcionário indígena representando a FUNAI e do cacique, não
afetam em nenhum momento a estruturação da relação consagrada pelo regime tutelar. Apenas
possibilita que as facções indígenas controlem meios de poder como o “caixa comunitário” e as
relações com o “Gato” e os “Cabeçantes”.
Em outra situação social, igualmente verificada no PI da FUNAI, vimos como os índios
reivindicavam posições na estrutura administrativa do “Estado’, querendo indicar o “gestor” do
“Projeto Pantanal”. Além da idéia de formação de uma “secretaria indígena” na prefeitura
municipal. Essa perspectiva de construção de uma “co-gestão indígena” na realidade deve ser vista
em relação ao conjunto de elementos que compõem o regime tutelar. Observado a partir da ótica da
“governamentalização do Estado”, a co-gestão se apresenta como forma de estender a racionalidade
administrativa, no sentido do aproveitamento dos índios como “forças de apoio” dentro dos quadros
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
393
da administração pública, enviando para trabalhos em regiões que normalmente outros funcionários
não teriam interesse, por meio de contratos temporários e criando formas de relação clientelista
dentro do próprio Estado. A governamentalização representa no sentido de Foucault, a introdução
do principio da “economia política” (racionalidade que visa extrair o máximo das forças
disponíveis) na gestão das atividades regionais do Estado; a criação do “Caixa Comunitário”
enquanto fundo para investimento na “Comunidade Indígena” recobre essa função de
“reciprocidade” e “economicismo” que caracteriza a governamentalização.
No que tange a FUNAI enquanto órgão da administração pública, a idéia da co-gestão tem
um duplo efeito: 1) resolve o problema do recrutamento de funcionários, muitas vezes contratados
de forma precarizada, temporária, que os coloca sob domínio direto da burocracia superior do
órgão, como o caso dos Chefes de Posto; 2) assegura a criação de um interesse indígena na forma
de organização do Estado-Nacional, já que possibilita que facções monopolizem recursos e tenham
asseguradas vantagens pela sua colaboração com os empreendimentos da administração através dos
espaços criados na instituição (secretarias, comissões, cargos e etc).
Para entendermos o sentidos sociológicos das mudanças sociais em curso, de uma tutela
baseada na “gestão branca” para uma tutela baseada na “co-gestão indígena”, temos de observar que
na o instituto da tutela foi empregado em diversos contextos para responder a uma única e decisiva
questão: o que fazer com os colonizados?
Dessa maneira, o fim da primeira Guerra Mundial em 1918 levou a formulação do sistema
de mandatos para avaliar os destinos das colônias da Alemanha e do Império Otomano. No final da
Segunda Guerra Mundial um problema similar foi colocado. As conferências internacionais do
Cairo (Egito) em 1943 e de Hot Springs, no estado da Virgínia, EUA, em janeiro de 1945,
abordaram o problema colonial. “O mais debatido problema foi o destino das colônias européias
no sudeste asiático" (Dilner, 1952, p. 35) “Os primeiros projetos relativos a um sistema de tutela
internacional foram elaborados na Conferencia de Hot Springs” (Dilner, op.cit). Os EUA
apresentaram uma proposta de carta de administração colonial (charter of trusteeship), baseada em
alguns princípios, como a formação de “governo próprio” e formação de “comissões coloniais
internacionais”.
A Conferência de Yalta, 1945, atribuiu a ONU alguma jurisdição sobre a questão colonial.
Delineia-se que o “sistema de tutela internacional” aplicaria-se aos territórios sob o “mandato” da
Liga das Nações, os territórios desmembrados dos inimigos depois da guerra, a qualquer “território
colocado voluntariamente sob tutela”. Na Conferência de São Francisco várias propostas para
regulamentar o sistema de tutela foram apresentadas pela Austrália, China, EUA, França e URSSS.
Finalmente, o regime de tutela internacional ficou consubstanciado nos capítulos XII e XIII,
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
394
artigos 75 a 91, das Cartas das Nações Unidas” (Dilner, op.cit, p.40). A carta das Nações Unidas
previa o seguinte:
“Art.76: Os objetivos básicos do sistema de tutela, de acordo com os propósitos das Nações
Unidas enumerados no art. 1 da presente carta serão: a) favorecer a paz e a segurança
internacionais; b) fomentar o progresso político, econômico, social e educacional dos
habitantes dos territórios tutelados e o seu desenvolvimento progressivo para alcançar governo
próprio ou independência, como mais convenha as circunstancias particulares de cada
território e de seus habitantes e aos desejos livremente expressos dos povos interessados, e
como for previsto nos termos de acordo de tutela..”. (apud Dilner, op.cit, p.43).
O artigo 76 estava relacionado, segundo Dilner, diretamente ao artigo 84, devendo ser lido
conjuntamente para que ficasse claro o regime de tutela internacional:
“Art. 84:“A autoridade administradora terá o dever de assegurar que o território tutelado
preste sua colaboração à manutenção da paz e segurança internacionais. Para tal fim, a
Autoridade Administradora poderá fazer uso de forças voluntárias de facilidades e de ajuda do
território tutelado para o desempenho das obrigações por ele assumidas a este respeito perante
o Conselho de Segurança, assim como para a defesa local e para a manutenção da lei e da
ordem dentro do território tutelado” (apud Dilner, op.cit, p. 44).
Os objetivos do regime de tutela internacional se relacionavam a “manutenção da paz” e a
“formação de governos locais ou da independência dos territórios tutelados”. Os “acordos de tutela”
começaram a ser firmados a partir de 1946. Os territórios de Camarões, Togo e as Ilhas do Pacífico
foram alguns dos primeiros aprovados pela ONU. Alguns acordos mencionam a proibição do
trabalho forçado, mas o autorizam à Administração Colonial em caso de necessidades públicas
(Dilner, 1952, p.47).
Dilner notou em sua análise do sistema de tutela internacional que ao mesmo tempo em que
a manutenção da paz dava a Autoridade Colonial ou Tutor o direito de movimentar forças militares
nas colônias, para manutenção da “paz e da ordem”, a idéia de um “Governo Próprio” não
implicava necessariamente em independência política. O poder de “dissolução” do acordo de Tutela
dependia do consentimento da ONU e o tutor, investido dos poderes necessários a sua manutenção
(Dilner,op.cit, p. 48). Houve muita resistência dos países tutores (Inglaterra, França, Bélgica) em
aceitar a idéia do governo próprio nos primeiros acordos de tutela e a mais ainda a independência.
Em contrapartida “O acordo de tutela para a Nova Guiné assegurava aos habitantes do
território ex-vi do artigo 8, alínea “e um aumento progressivo na administração do território
e em outros serviços públicos, conforme as circunstancias particulares” e ainda “Os acordos de
tutela para Camerum e o Togo franceses estatuem, no artigo 5, que a Autoridade Administradora
tomará medidas no sentido de “assegurar a população local” a administração no território através
do desenvolvimento de corpos representativos democráticos e a promover as consultas necessárias
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
395
para capacitar os habitantes a desenvolverem livremente suas opiniões a ser alcançada a
finalidade prevista no artigo 76, letra `b´”. (Dilner,op.cit, p.50)
Nesse sentido, assim como no “regime de tutela” do caso brasileiro a idéia de
“emancipação”, o regime de tutela internacional reconhece a constituição de “governo próprio” e/ou
a “independência” como objetivos da tutela. Ao mesmo tempo, os acordos de tutela firmados na
prática apontavam para a subordinação dos territórios tutelados ao Tutor e a ONU, os quais
guardavam o poder de conceder a independência e determinar o ritmo de formação dos “governos
próprios”. Tais poderes foram denunciados nas assembléias da ONU por delegados dos territórios
tutelados.
Aqui o nexo entre a forma nacional e internacional não é ocasional. Podemos dizer que os
parâmetros do Estatuto do Índio assemelham-se aos do “regime de tutela internacional da ONU”, no
que diz respeito à absorção dos povos colonizados na administração colonial. Essa é uma mudança
institucional dirigida de acordo com os interesses dos colonizadores e do imperialismo
internacional. Uma das principais políticas foi o incentivo à utilização dos povos nativos ou
indígenas dentro do pessoal da administração estatal e serviços públicos, e ao mesmo tempo
garantir formação de instituições políticas e a participação dos colonizados dentro delas. A
antinomia inerente ao “regime de tutelar”, é exatamente prolongar as formas de dominação sob o
argumento de preparação da “emancipação” ou “independência”. Entretanto, é preciso considerar
que a formação de “governos próprios” apresenta-se como solução barata e como forma de
cooptação, tornando-se engrenagem da cadeia imperialista. Alguns “Estados” foram declarados
independentes, como a Líbia em 1951, de uma certa maneira resolvendo o problema da “soberania”,
mas não da dependência externa.
Ao mesmo tempo, é possível que a formação desse regime de tutela internacional esteja
diretamente relacionado à expansão capitalista do pós-segunda guerra mundial. Entre 1800 e 1930
as migrações atingiram 40 milhões de indivíduos. Depois da Segunda Guerra Mundial o
“deslocamento dos refugiados está na origem de um certo número de milagres econômicos. Nos
anos 1970, o capitalismo internacional beneficiava-se com 40 bilhões de dólares anuais pela
imigração. Todos os movimentos migratórios coincidem com uma expansão da economia
capitalista, que representam essa transferência para as zonas de emprego”. (Meillasoux, 1976,
p.178).
O regime tutelar, tanto na sua forma nacional no caso brasileiro, como internacional, se
apresenta como nexo entre uma etapa histórica de acumulação primitiva colonial e um modelo de
sobre-exploração numa cadeia imperialista, se inserindo dentro de um modo de acumulação e
dominação. É a racionalização da exploração que o regime tutelar visa garantir, pela reprodução de
uma lógica de centro-periferia entre um setor capitalista e outro doméstico e pelo duplo mercado de
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
396
trabalho. Dessa maneira, as características principais da exploração sob regime tutelar não são as da
“situação colonial”, mas sim as formas mais complexas e contraditórias do imperialismo, que se
realiza por cadeias produtivas e comerciais, ideologias etnocêntricas e/ou racistas, e técnicas de
governamentalização política.
Mas como essas informações podem nos auxiliar a entender a mudanças sociais verificadas
no regime tutelar e sociedades indígenas no caso brasileiro?
7.4 - Os destinos do regime tutelar e da resistência indígena.
Pensar as mudanças sociais verificadas atualmente nas relações de poder entre os índios
Terena é pensar nos destinos da tutela e da própria resistência indígena. Como vimos, o regime
tutelar passa por um processo de transformação e num certo sentido de questionamento. Porém, o
fato de certas atribuições estarem sendo questionadas (como a substituição das ações dos índios
pelo órgão, e as representações acerca da incapacidade relativa dos índios) não implica no
desaparecimento do regime tutelar. E ainda, mesmo que tal regime seja desmantelado o que é
possível não significa que as bases da dominação e exploração indígena sejam destruídas, já que o
regime tutelar é apenas uma engrenagem e forma histórica dessa dominação.
A principal mudança que se coloca hoje é a passagem de uma “gestão branca” que
caracterizou o SPI - para um modelo de “co-gestão indígena”. Nesse aspecto, a situação Terena
antecipa muitos dos efeitos e contradições que tal modelo pode suscitar nacionalmente. Em
primeiro lugar, cabe indicar que tal modelo se baseia numa política dirigida pelo Estado, através do
Estatuto do Índio de 1973. Porém outras mudanças na arquitetura legal foram decisivas (como as
mudanças na constituição de 1988) e de maneira mais significativa, as mudanças nos arranjos locais
de poder dentro das aldeias, que são o produto das formas cotidianas e abertas de resistência
movidas pelos índios.
Basta considerar o próprio caso dos Terena. A situação da povoação do Bananal, em que a
resistência indígena fez com que o SPI adotasse fórmulas de administração “sem chefe de Posto”,
baseadas em “três caciques” com vistas a “emancipação” da comunidade local. O processo de
instabilidade da administração nas aldeias Terena, em que conflitos de sucessão afetavam não
somente os caciques mas também os chefes de posto em todo o estado. É importante lembrar que
isso se dava no grupo indígena tomado como “colaboradores modelo” do SPI. Isto pode indicar uma
extrema dificuldade de viabilizar a dominação tal como ela existia naquele momento, e uma
insuficiência geral do regime tutelar. Sem os conflito e as lutas políticas, o regime tutelar não se
transformaria da maneira que se transformou. Isso revela em termos gerais a dificuldade do
exercício da dominação e a dependência dialética do dominador da “colaboração” dos dominados.
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
397
A colaboração é o ponto forte e o ponto fraco da estrutura de dominação. Quando ela falha, a
estrutura como um todo se torna vulnerável.
Mas se a figura do “índio funcionário” é uma criação do regime tutelar, não podemos perder
de vista que essa medida encontrou uma base de interesses objetivos nas próprias lideranças e
comunidades Terena. Daí resulta que essa medida de Estado ao mesmo tempo expressa uma
redefinição da estratégia de dominação, redefinição esta imposta em parte pela política de
resistência cotidiana e pelas estratégias indígenas.
As mudanças sociais verificadas no balanceamento de forças, nas relações de poder, podem
ser descritas em seu paradoxo. De um lado, as formas cotidianas de resistência dinamizam e dão
funcionalidade a uma estrutura de dominação, através da descentralização faccional e do
desenvolvimento de um projeto político de “co-gestão indígena” já realizado no Mato Grosso do
Sul em grande medida, em nível local e regional pelos Terena (que o principal setor de
recrutamento de funcionários da FUNAI). A co-gestão no plano local, como vimos, representa a
colaboração de facções locais transformadas em “aristocracias indígenas”, nos esquemas de
recrutamento de trabalhadores, nas redes clientelistas que exigem o fortalecimento das dominações
horizontais dos líderes sobre a comunidade, de uma facção indígena sobre outra, de uma
comunidade local em relação à outra e etc. Ao mesmo tempo essas lideranças apresentam o projeto
de formação de uma Co-gestão Indígena Nacional, através da proposta de criação de Secretarias
Indígenas, Parlamento Indígena, da indicação de um índio para a presidência da FUNAI e etc.
Nesse sentido, precisamos mais uma vez recorrer a uma classificação tipológica do sistema
social na atual situação histórica. Em primeiro lugar, o sistema social em que os índios estão
inseridos é um “sistema repetitivo”, e as mudanças sociais verificadas são de tipo cíclico ou
institucional. Ou seja, o fato da dominação global, da existência de um Bloco no Poder, que
mobiliza os índios como forças de apoio em empreendimentos locais, não entra em contradição com
essas mudanças cíclicas e institucionais, locais ou regionais. Na verdade, tais mudanças podem ser
de interesse de tal bloco, ignoradas ou irrelevantes.
A co-gestão indígena implica nos dois tipos de mudança (cíclica e institucional) e como tal
envolve a circulação, substituição ou derrocada de grupos que participam em esquemas de poder
local, se torna igualmente dramática. E por isso interessa aos diretamente envolvidos. As formas de
resistência indígena cotidiana, associadas ao projeto de co-gestão, na realidade representam para
utilizar a linguagem clássica da antropologia política, mudanças nos modos de distribuição do
poder, não no sistema de poder. E nesse sentido, são mudanças “regionais” que levam a uma
reprodução global do sistema.
Mas ao mesmo tempo, “a luta pelo caixa comunitário”, a luta pela “eleição do cacique” e
não sua indicação, a “luta pela extinção do cacique geral”, a luta pela “emancipação de bananal” e o
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
398
“governo” de três caciques, a luta pelo controle dos bens e da “polícia indígena”, atacam alguns
dos principais efeitos da estrutura básica do regime tutelar: o poder da gestão de mão-de-obra. De
outro lado, a “criação” das associações como parte da luta pelo “controle dos recursos” e escape ao
controle e domínio das facções rivais, e o uso de certa técnicas de luta política (bloqueio de
rodovias, ocupação de terras, tomada de reféns) marcam a passagem às formas de resistência aberta,
e que atingem a dois dos pilares básico do regime tutelar: 1) o padrão de territorialização e de
inserção na estrutura de classes; 2) a estrutura simbólica e política da “incapacidade indígena”.
Nesse sentido, são formas de luta contra os mecanismos de exploração, mesmo que se apresentem
como disputas entre facções indígenas. Por mais que, do ponto de vista de longo prazo, possa
contribuir para a reprodução da dominação do Estado sobre os Índios ao garantir a reprodução do
modo de vida camponês. As associações indígenas, surgindo com caráter de associações produtivas,
com objetivos de aumentar a produção e qualidade de vida dos membros, e ao mesmo tempo
garantir canais de recursos autônomos e diversificados em relação à FUNAI, contrariam um dos
pilares do regime tutelar. Dessa maneira, as associações indígenas expressam antes de tudo, uma
forma de disputar com a FUNAI o poder de gestão da “economia local”, das terras e dos recursos e
transferi-las aos índios.
O paradoxo do protagonismo étnico, ou da atual situação histórica, está no fato de que as
formas cotidianas de resistência alimentam ao mesmo tempo a estratégia da co-gestão indígena e
também a estratégia da resistência aberta; dinamizam a estrutura do regime tutelar e podem mesmo
reforçar o poder das facções indígenas, e contraditoriamente, o poder de Estado através disso. Essa
resistência pode levar tanto a mudanças cíclicas e institucionais quanto à reprodução da
estrutura de dominação. Por outro lado, as formas cotidianas de resistência e de resistência aberta,
mostram os limites da estrutura de dominação, que em última instância depende não somente da
colaboração dos dominados, no caso os índios, mas da neutralização das suas formas de luta política
ou pelo menos de sua discplinarização dentro de certas regras
128
. O que acontece através do
fortalecimento da dominação vertical (do Bloco no Poder e classe Dominante) e da centralização
(do poder nas instâncias estatais) através da multiplicação das dominações horizontais e da
descentralização faccional (dentro da classe trabalhadora e suas frações e camadas étnicas, como os
Terena). Nesse sentido, o funcionamento da estrutura de dominação dentro das comunidades
128
Estamos entendendo aqui a reprodução do poder e/ou da dominação como: 1) reprodução da autoridade ou força
investida; 2) ampliação dos poderes e mecanismos concretos; 3) ampliação dos espaços e grupos submetidos a ela; ou
que reconhecem sua legitimidade; ou a tomam como modelo ideal e fazem uso dos seus mecanismos. Retomar
discussão sobre oposição aos efeitos da dominação e a dominação em si; entre os tipos de conflito (entre poder central e
local e segmentos territoriais e os tipos de mudança social). A reprodução da dominação em uso se dá pela estratégia
“do dividir para conquistar” que converteu-se na situação pós-colonial em “dividir para governar”, que é a lógica
imposta pelo regime tutelar e pelas relações clientelistas .
Capítulo 7 Os Paradoxos do protagonismo étnico.
399
indígenas do Mato Grosso do Sul pode ensinar algo sobre o funcionamento da estrutura de
dominação em outros contextos e sobre a estrutura global na qual está inserida.
Na realidade, tanto o processo histórico de acumulação colonial de poderes e capitais em
Mato Grosso, quanto a atual dinâmica de balanceamento forças entre os índios e o Estado, podem
servir como um “modelo de processo de dominação”, que serve para pensar os desdobramentos dos
processos em curso, no sentido que as formas de colaboração, a criação de aristocracias indígenas
e recrutamento dos índios como forças de apoio em larga escala (fato que também aconteceu no
século XIX, com os Guaicurus e Guanás), pode estar relacionado com a necessidade de preparar
condições para outra fase de expansão da fronteira agrícola e de acumulação colonial em outras
regiões e territórios de “fronteira aberta”. Nada na história torna essa hipótese absurda. A própria
experiência da tutela internacional, indica que esses procedimentos constituem saberes
sistematizados pela política imperialista. Logo, o regime tutelar pode passar por mudanças cíclicas e
institucionais, e mesmo desaparecer, mas se não se modificarem as condições gerais nas outras
instâncias o duplo mercado de trabalho, estrutura de classes, padrão de territorialização, relações
de aliança política entre frações da classe dominada um eventual desaparecimento do regime
tutelar poderá representar apenas uma mudança secundária na arquitetura da dominação política.
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1915 Relatório IR-6, tratando de todos os PI’s do Mato Grosso. Nas pág. referentes aos Terena, menciona-se conflitos
em Terenos e Aquidauana. Fala da possibilidade de haver índios escravos nas fazendas em Miranda e Aquidauana. Cita
os Terena como os maiores fornecedores de produtos à Miranda. Microfilme. 379. Fotograma. 1071.
1916 Relatório IR-6; menção aos Terena de Bananal , indicando o caráter provisório do funcionamento do Posto. Fala
que era muito comum a escravização dos índios no Sul do MT. Microfilme.379. Fotograma. 1087-97
1919 Relatório IR-6; menciona os Terena de Bananal e existência de duas escolas, uma sendo da missão protestante
fixada ali desde 1913. O encarregado do PI é Roberto Vieira dos Santos Werneck, que fala de um índio (Adolpho
Massi) que vivia causando problemas. Microfilme 379. Fotograma. 1103..
1920 Relatório IR-6; contém informações sobre os Terena de Cachoeirinha, Bananal e Nioaque. Dispõe de uma série
de informações sobre o funcionamento da Inspetoria em MT no ano de 1919(dizendo que as terras de Cachoeirinha
estavam localizadas dentro da mesma área que Bananal (1228) menciona o conflito com a missão protestante e a
retirada do índio João Evangelista; regime de aprisionamento dos Terena em fazendas. Convite do SPI de Agaxi se
fixarem em Cachoeirinha. Assassinato de um índio pelo chefe do PI de Bananal. Microfilme 379. Fotograma. 1198-
1315
1921 Relatório IR-6; faz descrição detalhada dos trabalhos da Inspetoria do MT; tem um tópico dedicada a questão
religiosa de Bananal (1345). Menciona Cachoeirinha como Aldeia e sua população é recenseada juntamente com a de
Bananal. Um funcionário do SPI foi designado para o local em razão do conflito de terras (1350); diz ser inexistente a
proteção prestada aos índios de Limão Verde e Passarinho. O Inspetor de MT é Samuel Henrique da Silveira Lobo.
Microfilme 379. Fotograma. 1315.
1922 Relatório IR-6; assume um diretor interino em MT; faz menções a Bananal e a tentativa de emancipar as terras do
SPI. Menciona um movimento de católicos e protestantes para retirar o encarregado local (1439). Neste anos
Cachoeirinha já é citado como PI e o encarregado do SPI visitou-o juntamente com o Capitão de Bananal Marcolino
Lili, sendo recebido pelo Capitão Vitorino Pereira da Silva. Cita a intenção de colocar Roberto Werneck em
Cachoeirinha. Microfilme 379. Fotograma. 1429-1455
1923 Relatório IR-6; já se fala em convivência pacífica entre os Protestantes de Bananal e o SPI (1467). Fala da
construção de uma escola do SPI e problemas dos índios com alcoolismo. Contém uma lista com as terras necessárias
aos índios (1494). Microfilme 379. Fotograma. 1457-1496
1924. Relatório. IR-6; já começa falando em três grandes problemas; guerra, seca e o prazo para envio do relatório.
Menciona o recrutamento forçado dos índios em Bananal (1499). Faz uma menção às Missões. (1539). Microfilme 379.
Fotograma. 1497-1566
1925 Relatório IR-6; contém uma tabela que expõe as viagens feitas pelo Inspetor aos diferentes PI’s no estado do MT.
Microfilme 379. Fotograma. 1600-1643
409
1926 Relatório IR-6; faz uma descrição das inspeções realizadas nos PI’s durante o ano e menciona o impacto da
invasão dos “revoltosos” (1342). Afirma que o PI Bananal foi invadido pelos revoltosos que roubaram 17 cavalos. Há
um relatório Anexo sobre as áreas Terena (1454-72). Em um dos anexos (1493) menciona-se a harmonia em que vivia o
PI Bananal na relação entre SPI, católicos e protestantes. Microfilme. 341. Fotograma. 1339.
1927. Relatório. IR-6; faz uma descrição as inspeções e trabalhos realizados no ano de 1927. Dá uma lista com os
estabelecimentos sob jurisdição da IR (999). PI Terenos: Bananal; Cachoeirinha; Capitão Vitorino (Lalima consta como
dos Guaicurus e Francisco Horta como Caiuás). Buriti, Passarinho e Moreira constam como sub-postos. Há em anexo
um relatório do auxiliar Roberto Vieira dos Santos Werneck .(1011). Menciona a situação de conflito com os índios de
Bananal encabeçados por Marcolino Lili. Fala do bom relacionamento dos missionários com o SPI, e diz que são dois
ou três os índios que geram desunião. O Anexo II (1126) consiste em um relatório do auxiliar Roberto Vieira dos Santos
Werneck, o Anexo III e IV contém documentos referentes à Bananal (1172). Microfilme 341. Fotograma. 989-1336.
1929. Relatório. IR-6; dá conta de todos os PI’s de MT. Sobre os Terena ver (0900). Microfilme 379. Fotograma. 0823-
0907
1930. Relatório. IR-6; quadro demonstrativo de despesas da Inspetoria, e contratação de índios (1659); lista dos PI’s do
MT. Microfilme 379. Fotograma. 1656.
1935. Relatório. IR-6; há referências à Lalima, Cachoeirinha e Bananal; conta um conflito ocorrido entre índios
liderados por Marcolino Lili e José Francisco (Japonês) e homens que haviam entrado em área indígena com
autorização do SPI. O encarregado solicitou a prisão e desarmamento do grupo. Diz o relatório que em consequência
disso muitos índios dispersaram p/ Aquidauana para onde foram enviados presos Lili e Japonês. O conflito se encerrou
com a intervenção do chefe da IR e a substituição do Chefe do Posto. Lili e Japonês foram transferidos para
Cachoeirinha. Microfilme. 380. Fotograma. 1661.
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Relatório de 1840 - Estevão Ribeiro de Rezende
Relatório de 1849, 3 de Maio Pelo Major Doutor João de Oliveira.
Relatório de 1851, 10 de Maio de 1851 Pelo Capitão de Fragata Augusto Leverger
Relatório de 1857, Albano de Souza Osório.
Relatório de 1858 Albano de Souza Osório.
Relatório de 1859 Joaquim Raimundo de Lamare
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Relatório de 1862 Herculano Ferreira Penna
Relatório de 1863 Herculano Ferreira Penna
Relatório de 1864 Alexandre Manoel Albino de Carvalho
Relatório de 1865, 17 de outubro Augusto Leverger
Relatório de 1869. 20 de Setembro - Barão de Melgaço.
Relatório de 1872 - Cardozo Junior
Relatório de 1877 - 03/05/1877. General Hermes Ernesto da Fonseca
Relatório de 1879 - 05/12. João José Pedrosa.
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