64
Pequena queimadura de luz sobre uma superfície sensível (como uma
alma) – os nitratos de prata, pele e película ao mesmo tempo – a fotografia
é, na sua materialidade, tanto uma ferida como uma cicatriz, uma fenda
aberta no tempo, uma rachadura do espaço, uma marca, um rastro, um
indício... As fotografias são tecidos, malhas de silêncio e de ruídos, os
envelopes que guardam nossos segredos, as pequenas peles, as películas
de nossas vivências. As fotografias são memórias e confidências (SAMAIN
apud ACHUTTI, 1997, p. XIX).
Achutti propõe um ângulo a mais para o olhar: mergulhar na realidade do
outro para interpretar valores, experienciar sentimentos. Ao tratar de um tema do
cotidiano tão polêmico, pesado e mal cheiroso como o lixo, provoca um certo
estranhamento; com sua câmera desconstrói, percebe particularidades nas pessoas,
no espaço, nos objetos. “Ciente de estar de certa maneira ousando, desenvolvo, em
termos de ênfase descritiva, uma forma narrativa – foto – etnografia – de relatar a
vivência cultural de um determinado grupo” (ACHUTTI, 1997, p. XXIV).
Considera a fotografia como espelho ideal, mágico, espelho que evoca
memórias, que faz através dela uma espécie de coleta visual, explorando ângulos,
planos, texturas, cores, volumes, linhas, compondo esteticamente com o sentir.
Dessa forma, faz conexões entre fotografia e etnografia; os textos fotográficos são
mais do que cópias da realidade, são recortes de afirmações e de interpretações
sobre o real. Nesse contexto, as imagens apresentam um potencial psicológico e
sentimental capaz de provocar estímulos, reações, de gerar funções, adquirindo
características diferentes de acordo com as vivências do próprio observador.
Nenhuma imagem é inata, inocente ou inadvertidamente lida, ela se insere
num contexto, num amplo sistema de significação composto por estruturas
de sentido e semiótica próprias e é sob este ponto de vista que deve ser
lida: como um processo contínuo, um refletir e refratar simbólico de um
espelho: o que ele absorve do mundo e o que ele devolve, o que ele mostra
e o que nós vemos (CAMARGO, 1999, p. 34).
Esses espelhos, cuja moldura é determinada pelo fotógrafo, apresentam uma
carga emotiva acumulada pelos inúmeros recortes de olhares anteriores que
caracterizam a bagagem sociocultural do próprio fotógrafo. Acabam criando
conexões com o observador e suas leituras, alterando configurações, construindo
conteúdos, comunicando, mobilizando cognitivamente novas sinapses. “Informação
visual não se resume na confirmação do óbvio, mas pode ser uma porta de entrada
para reflexões renovadas, a partir de indicativos oferecidos por um momento real
roubado ao tempo” (HUMBERTO, 2000, p. 41).