Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DO OESTE DE SANTA CATARINA
ÁREA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO
A FOTOGRAFIA COMO LINGUAGEM ARTÍSTICA NO CONTEXTO ESCOLAR:
UMA ABORDAGEM DE REEDUCAÇÃO DA VISÃO
JANIZE SCUSSIATO
Joaçaba
2005
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
UNIVERSIDADE DO OESTE DE SANTA CATARINA
ÁREA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO
A FOTOGRAFIA COMO LINGUAGEM ARTÍSTICA NO CONTEXTO ESCOLAR:
UMA ABORDAGEM DE REEDUCAÇÃO DA VISÃO
JANIZE SCUSSIATO
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em
Educação da Universidade do Oeste de Santa Catarina –
Unoesc, Campus de Joaçaba, para obtenção do grau de
Mestre em Educação, sob orientação da Profª Dra.
Graciela Ormezzano
Joaçaba
2005
ads:
Ao meu esposo e minha família pela compreensão e
incentivo à realização desta caminhada.
Aos educandos que sempre com entusiasmo permitiram
muitas trocas de conhecimentos, sentimentos e valores.
À Professora Dr. Graciella Ormezzano pelas orientações
e contribuições a esta pesquisa.
MENSAGEM
Eu aprendi
... que ser gentil é mais importante do que estar certo;
Eu aprendi
... que eu sempre posso fazer uma prece por alguém quand
o não tenho a força
para ajudá-lo de alguma outra forma,
Eu aprendi
... que não importa quanta seriedade a vida exija de você, cada um de s
precisa de um amigo brincalhão para se divertir juntos;
Eu aprendi
... que algumas vezes tudo o que precisamos é d
e uma mão para segurar e um
coração para nos entender;
Eu aprendi
... que deveríamos ser gratos a Deus por não nos dar tudo que lhe pedimos,
Eu aprendi
... que são os pequenos acontecimentos diários que tornam a vida espetacular;
Eu aprendi
... que o amor, e não o tempo, é que cura todas as feridas,
Eu aprendi
... que não posso escolher como me sinto mas posso escolher o que fazer a
respeito,
Eu aprendi
... que todos querem viver no topo da montanha, mas toda a felicidade e
crescimento ocorre quando você está escalando-a.
William Shaskeapeare
RESUMO
As obras de arte apresentam um aglomerado de significações e estímulos através
de gestos, cores, texturas, linhas, sons e formas, que penetram nos nossos sentidos
chegando ao universo imaginário. A construção de um leitor de arte é fundamental
para a transformação das fragilidades do sistema educacional e dos métodos
pedagógicos, pois através dela conseguimos nos compreender enquanto ser
sensível, desnaturalizando as tensões violentas que cercam o cotidiano. Acreditando
que a leitura de imagens pode promover uma reeducação da visão para os alunos
dos alunos iniciais, esta pesquisa investiga como as fotografias de Salgado, Rio
Branco e Achutti relacionam-se com as crianças e seu cotidiano através de
atividades propostas numa oficina de fotografia. Também foram relacionadas as
informações coletadas à leitura transtextual de imagens, fazendo emergir mitos,
contos e símbolos referentes ao universo imaginário e emocional, proporcionando o
conhecimento mais profundo acerca das crianças observadas e a compreensão das
transformações ocorridas através desta vivência estética que utilizou a fotografia
como linguagem artística no contexto escolar.
Palavras-chave: Ensino da Arte, Leitura de Imagem, Fotografia.
ABSTRACT
The works of art present an accumulation of significações and stimulatons through
gestures, colors, textures, lines, sounds and forms, that penetrate in our directions
arriving at the imaginary universe. The construction of an art reader is basic for the
transformation of the fragilities of the educational system and the pedagogical
methods, therefore through it we obtain in understanding them while to be sensible,
disnaturalizing the violent tensions that surround the daily one. Believing that the
reading of images can promote a re-education of the vision for the pupils of the initial
pupils, this research investigates as photographs of Salty, Rio Branco and Achutti
become related with the children and its daily through activities proposals in a
photograph workshop. Also the information collected to the transtextual reading of
images had been related, making to emerge referring myths, stories and symbols to
the imaginary and emotional universe, providing to the knowledge deepest
concerning the observed children and the understanding of the occured
transformations through this aesthetic experience that used the photograph as artistic
language in the pertaining to school context.
Keywords: Teaching of Art; Reading of Images; Photographs.
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS.....................................................................8
CAPÍTULO I – ARTE E EDUCAÇÃO: EM BUSCA DE UM LEITOR ATIVO...........25
1.1 O ensino da arte no cotidiano escolar................................................................25
1.2 A leitura de imagens - textos..............................................................................31
1.3 A força da imagem no ensino da arte.................................................................36
1.4 Fotografia: uma proposta de reeducação do olhar.............................................43
CAPÍTULO II - A FOTOGRAFIA: UMA FORMA DE REEDUCAÇÃO DO OLHAR.47
2.1 História da fotografia ..........................................................................................47
2.2 Pequena biografia de Sebastião Salgado ..........................................................52
2.2.1 Êxodos Sebastião Salgado .............................................................................54
2.2.2 Cultura visual x mudança educativa................................................................56
2.3 Miguel Rio Branco: vida e obra ..........................................................................58
2.4 Fotoetnografia: sob um olhar de Luiz Eduardo Robinson Achutti.......................63
CAPÍTULO III - ESTÉTICA E IMAGINÁRIO: INGREDIENTES PARA A
RECONSTRUÇÃO DE VALORES ..........................................................................66
3.1 O belo e o feio....................................................................................................66
3.2 Um hóspede oculto: o imaginário na perspectiva de Durand.............................70
3.2.1 O regime diurno...............................................................................................72
3.2.2 O regime noturno da imagem..........................................................................76
3.3 Interferências midiáticas na construção de um leitor consciente........................77
3.4 O olhar e a crise do processo de criação...........................................................79
CAPÍTULO IV - RELATÓRIO DA OFICINA DE FOTOGRAFIA..............................84
4.1 Relatório dos encontros......................................................................................86
4.1.1 Primeiro encontro - 1º ano inicial - Dia 28/06/04 .............................................86
4.1.2 Primeiro encontro - 4º ano inicial - Dia 25/06/04 .............................................91
4.1.3 Segundo encontro - 1º ano inicial - Dia 29/06/04 ...........................................98
4.1.4 Segundo encontro - 4º ano inicial - Dia 28/06/04 ..........................................102
4.1.5 Terceiro encontro - 1º ano inicial - Dia 30/06/04............................................108
4.1.6 Terceiro encontro - 4º ano inicial - Dia 29/06/04............................................114
4.1.7 Quarto encontro - 1º ano inicial - Dia 01/07/04..............................................119
4.1.8 Quarto encontro - 4º ano inicial - Dia 30/06/04..............................................123
4.1.9 Quinto encontro - 1º ano inicial - Dia 02/07/04..............................................126
4.1.10 Quinto encontro - 4º ano inicial - Dia 01/07/04............................................128
4.1.11 Sexto encontro - 1º ano inicial - Dia 05/07/04 .............................................129
4.1.12 Sexto encontro - 4º ano inicial - Dia 02/07/04 .............................................130
CAPÍTULO V - LEITURA TRANSTEXTUAL DE IMAGENS..................................133
5.1 Primeiro ano do ensino fundamental................................................................133
5.2 Quarto ano do ensino fundamental ..................................................................153
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................175
REFERÊNCIAS......................................................................................................178
ANEXOS................................................................................................................183
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
Sempre fui uma pessoa diferente. Ao completar meu primeiro ano ganhei uma
coleção de livros de contos de fadas de uma tia, cujas páginas eram bem resistentes
aos riscos de caneta que produzia. Com os livros recebi um poema que relatava
meu olhar meigo e extrovertido. Aprendi a subir e a descer escadas muito cedo,
ficava imaginando ser a Cinderela, que perdia seu sapatinho de cristal nelas.
Lembrava as imagens do livro, as pedrinhas, o vestido da Cinderela, o colar de
pérolas, a carruagem...
Quando ingressei no jardim de infância, por volta de 1983, minha mãe teve de
cortar meus cabelos bem curtos, por causa de um problema de visão. Então, as
outras crianças não queriam brincar comigo porque eu era feia. A única vez que
consegui sua atenção foi quando pintei no livro didático uma cadeira desenhada
da cor laranja. Foi a maior emoção, todos os meus colegas ao meu redor só para ver
minha cadeira! Nessa época eu era muito tímida, falava raramente e, quando
tínhamos de tirar fotografias na escola, eu me trancava no banheiro e ficava bem
escondida até tudo acabar. Tinha medo de ver os outros, tinha um certo pânico das
pessoas. Inclusive, desisti da pré-escola no último ano.
Por esse motivo fui cursar a primeira série com seis anos de idade. A escola
ficava longe e eu sempre andava a pé, observando as pessoas, o formato das
casas, as formas engraçadas que as nuvens desenhavam no céu, os traços que os
raios construíam com sua luminosidade na imensidão azul. Adorava meu guarda-
chuva, cuja estampa do Mickey conversava comigo. Lembro-me bem duma foto que
meu pai tirou: eu em frente ao portão de casa, num dia ensolarado, agarrada ao meu
guarda-chuva. Neste ano a professora Ermelinda, uma senhora muito doce, fez um
sorteio de alguns cadernos de desenho e foi nessa oportunidade que ganhei meu
primeiro suporte para viajar pelo mundo da fantasia.
Aos oito anos eu adorava vestir uma camisola branca de minha mamãe, sua
grinalda e seu buquê de casamento, colocar seus sapatos de salto e fingir ser a
9
noiva, a Cinderela à espera do príncipe encantado. Mais tarde aprendi a brincar de
ser artista de novela. Então vestia seus sapatos, colares e pijamas de cetim,
sonhava, fantasiava... E meu pai, como sempre, fotografava todas as minhas
proezas. Como nunca tive muitos amigos, adotava animais como companheiros:
tinha meu “totó”, um cachorro pequinês, um frango e aproximadamente dez gatos.
Ainda na infância, deixava meu aFiorindo maluco, pois queria jogar bocha
na sua cancha, mas ele me dizia que era um jogo somente para homens. Então eu
colocava um chapéu de palha, com carvão, pintava bigodes e barba e me
apresentava a ele, que continuava a me impedir de tentar a carreira de atleta.
Contudo, lembro-me que foram muitas as tentativas e muitos personagens! Nessas
minhas performances, eu ficava bem parecida com o retrato de meu bisavô
pendurado na parede da sala, com a única diferença de que ele tinha um olhar meio
assustador.
Com nove anos de idade decidi que seria estilista e desenhava em tudo
quanto era papel esqueletos de vestidos. Observava as fotos de revistas, recortava
modelos, recriava personagens e fazia a maior bagunça.
Durante a adolescência, por volta dos onze anos, fui estudar na Escola de
Artes de Chapecó, no curso gráfico-plástico. Mais tarde ingressei no curso de
desenho, no de pintura e também no de história da arte. Em 1997 passei no
vestibular de Educação Artística na Unochapecó, onde, após quatro anos, concluí o
curso. Na universidade tive contato com a disciplina de fotografia e me apaixonei
pelo assunto. Sempre soube o que queria ser.
No início foram muitas as dificuldades na construção dos objetivos, na
definição do tema, mas sempre com a compreensão do professor Valdir. Lembro-me
de que, quando tudo estava encaminhado, enviei o texto para a digitação, mas,
como uma pesquisadora ingênua, deixei meu caderno e todas as anotações com o
digitador, que sumiu. Nunca consegui reavê-lo e tive de refazer tudo e, o pior,
explicar ao professor essa história absurda!
Numa aula, resolvi apresentar o livro Êxodos, de Salgado, aos meus alunos
do grau, turno noturno, do Colégio Zélia Scharf. Contextualizei o fotógrafo,
realizamos uma roda de apreciação, porém no decorrer da atividade a turma
“ferveu”, os alunos indignaram-se com as imagens, o massacre social e com as
10
cenas de dor e sofrimento, que lhes despertaram sensações e sentimentos que os
fizeram pensar... E percebendo que a fotografia não era trabalhada na escola, que
as transformações sociais e tecnológicas não eram abordadas nas aulas de artes
pelos demais professores, resolvi continuar...
Com o passar do tempo, meu interesse pela investigação da desnaturalização
do olhar através da fotografia cresceu... A sedução das imagens, os apelos
sentimentais que norteiam as formas, luzes e sombras e o fascínio gerado pelos
olhares atentos dos educandos merecem um grau de importância saliente no ensino
da arte. Desde então, venho me familiarizando com esse tema, vivenciando
experiências estéticas, observando reações.
O motivo que me impulsionou a realizar esta pesquisa é o desejo de
despertar nos seres humanos uma forma de ver mais singular, compreendendo
através do olhar seus desejos, percebendo a manipulação que a mídia capitalista
implanta no interior do ser através da rede tecnológica que fragmenta a alma, destrói
os sentidos e distorce nossa sensibilidade.
Sendo a fotografia um objeto do cotidiano, através de revistas, fôlders,
outdoor, registros familiares... e, ao mesmo tempo, algo pouco explorado nas aulas
de artes, torna-se um ótimo ponto de partida para o desenvolvimento de atividades
que estimulem a percepção crítica e a criatividade. A fotografia proporciona ao
ambiente escolar um contato com as cores, as formas e os objetos que são
atraentes e utópicos, ou, ainda, com aqueles que são totalmente distanciaddos do
belo.
Geralmente, o professor de arte associa a fotografia ao ato de fotografar e
revelar a imagem, considerando um processo pouco viável para a sala de aula. Com
isso, não explora a leitura de imagens, a colagem, a interferência plástica nas
imagens produzidas, a sonorização de uma imagem, entre outros aspectos que
podem estar relacionados ao fazer e ao analisar.
Existe uma falsa compreensão da idéia da fotografia como linguagem artística
e suas possibilidades de exploração no contexto escolar. A fotografia fica presa a um
conceito estereotipado, ao belo, a uma forma de registro ou de publicidade. Nesse
contexto, torna-se evidente a necessidade da construção de instrumentos para que
o educador, em sua formação acadêmica, seja capaz de compreender a fotografia
11
como meio de reeducação da visão, levando para a escola uma contextualização
mais significativa, que proporcione a compreensão e a possibilidade de discussões
críticas acerca do consumismo desenfreado e da estética do descartável.
A escola tem de competir com um eclético leque de interesses que visam à
sua falência; sempre se submetendo às leis da linearidade e do drama psicológico,
pouco dizem acerca da estética do cotidiano. Esses enquadramentos tradicionais
constroem limites na aproximação da experiência estética com o desenvolvimento
da criatividade consciente do sujeito. Segundo Moreira e Silva (1995, p. 34),
“desnaturalizar e historicizar o currículo existente é um passo importante na tarefa
política de estabelecer objetos alternativos e arranjos curriculares que sejam
transgressivos da ordem curricular existente” (MOREIRA e SILVA, 1995, p. 31).
Repensar o currículo significa fazer uma análise dos momentos históricos em
que os elementos visuais foram concebidos socialmente e tornaram-se “naturais”,
para que o educador possa atuar no cerne da questão, realizando um processo
contínuo de identificação e análise das relações de poder envolvidas nas
experiências do próprio cotidiano. A percepção do real depende de uma atividade
consciente e, estando o currículo dividido em disciplinas, priorizam-se algumas
áreas em detrimento de outras. Especificamente quanto ao ensino da arte, sempre
foi marginalizado e suprimido nas escolas, acarretando prejuízos aos alunos, que
acabam por não compreender a importância da arte na vida humana. Conforme
Ormezzano e Torres:
Uma concepção de educação estética global implica que estejam
relacionadas todas as linguagens expressivas: corporal, poética, vocal,
coreografia, plástica, instrumental, interrelacionando-se num movimento
permanente de percepção e tradução das emoções (2002, p. 71).
Um leitor ativo é aquele que sente o texto, que corporifica as emoções
fazendo ebulir um processo de significações. Compreender esse processo significa
educar a sensibilidade a respeito das diferentes perspectivas intelectuais e racionais.
Essas manifestações ocorrem quando a experiência, o educando e o currículo estão
voltados para as vivências socioculturais e para o desenvolvimento do processo
criativo. A formação de um leitor de arte é também a formação de um pensamento
complexo, ou seja, a capacidade de compreender as diversas partes de um conjunto
que compõe um texto.
12
A leitura estética contribui para a percepção da complexibilidade da vida, do
cotidiano, para a capacidade de resolver problemas, de criar novas formas de
sobrevivência. Pensar em rede conduz a que o sujeito assegure seu lugar no meio
social e político, voltando-se para novas possibilidades e para a humanização do
viver (STRIEDER, 2002).
Na objetivação transparece, pois a responsabilidade histórica do sujeito: ao
reproduzi-la criticamente, o homem se reconhece como sujeito que elabora
o mundo: nele, no mundo, efetua-se a necessária mediação do auto-
reconhecimento que o personaliza e o conscientiza como autor responsável
de sua própria história. O mundo conscientiza-se como projeto humano: o
homem faz-se livre. O que pareceria ser apenas visão, é, efetivamente,
“provocação”; o espetáculo, em verdade, é compromisso (FREIRE, 2002, p.
17).
O sujeito, ao reconhecer seu contexto histórico e cultural dentro de uma
pedagogia artística transformadora, sente-se provocado a sentir, a apropriar-se, a
dialogar e a refletir sobre seu próprio lugar no mundo. Portanto, justifica-se este
estudo em virtude da necessidade de construção de um leitor de arte, o que precisa
ser iniciado ainda na infância, relacionando a realidade, o lúdico, o prazer e o
brincar. Compreender aquilo que vemos torna-se fundamental para o exercício diário
da cidadania; para isso, a reeducação da visão deve tornar-se hábito nas aulas de
artes, possibilitando um fazer artístico voltado para uma ressignificação do saber e
do próprio papel da escola na vida do educando.
Tentando compreender as transformações ocorridas através de uma vivência
estética que trabalha a fotografia como uma linguagem artística no contexto escolar,
buscamos analisar de que modo a leitura das imagens fotográficas e a produção
artística das crianças poderão influenciar no desenvolvimento do imaginário. Qual
seria a significação de uma vivência estética sustentada pelos ensaios fotográficos
de Sebastião Salgado, Miguel Rio Branco e Achutti para os alunos dos anos iniciais?
Acreditando que a leitura de imagens pode promover uma reeducação da
visão para os alunos dos anos iniciais, esta pesquisa investiga como as fotografias
de Salgado, Rio Branco e Achutti relacionam-se com as crianças e seu cotidiano.
13
RECURSOS METODOLÓGICOS
Campo de estudo:
Este trabalho foi realizado na Escola de Educação sica Professora Zélia
Scharf, em Chapecó, SC, pertencente à rede estadual da educação. A escola foi
escolhida por ser o local de trabalho da pesquisadora, o que facilitou os primeiros
contatos com a direção para a organização da oficina.
A Escola de Ensino Básico Professora Zélia Scharf atende aproximadamente
dois mil alunos e conta com três diretores, quarenta professores, dez serventes, dois
orientadores pedagógicos e oito estagiários; possui sala de vídeo, ginásio de
esportes com sala de ginástica, sala de artes, sala de informática, ainda que com
equipamentos precários, uma área coberta com palco e duas salas de professores,
numa das quais funciona todas as quartas-feiras à tarde o Clube de Mães.
Possui também equipamento de som, DVD, data show, um computador com
internet para pesquisa do professor e xerox gratuito para material didático. É uma
escola antiga e necessita de muitas reformas;80% dos alunos são pertencentes às
classes média e baixa, 20% são muito pobres, não tendo materiais básicos, como
caderno, lápis, borracha, nem condições mínimas de higiene.
Os alunos, em sua maioria, são filhos de comerciantes, funcionários de
indústrias e empresários, entre outros, cujas famílias são instruídas e alfabetizadas,
auxiliando-os nas tarefas de casa.
Entretanto, existem inúmeros problemas de violência entre os próprios alunos
e entre os professores; a convivência é difícil, pois existe um clima de reclamações e
desilusões.
Seleção das fotografias:
Foram escolhidas oito imagens de cada fotógrafo, conforme descritas a
seguir, na ordem em que foram apresentadas as crianças:
SALGADO, Sebastião. Retratos de crianças do êxodo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
14
1- Acampamento de sem-terra em Rosa do Prado, Itamaraju. Bahia, Brasil, 1996.
2- Campo de Kamaz, em Mazar-e-Scharif, para afeganes deslocados. Afeganistão,
1996.
3- Crianças deslocadas que perderam suas famílias, em Mopéia. Província de
Zambeze, Moçambique, 1994.
4- Acampamento de sem-terra em Rio Bonito do Iguaçu. Paraná, Brasil, 1996.
5- Criança Ianomâmi em Lafakabuco, na serra dos surucucus. Roraima, Brasil, 1996.
6- Campo Quilômetro 42 de Biaro para refugiados Hutu ruandeses, entre Ubundu e
Kisangani. Zaire, 1997.
7- Campo Nasir Bagh, em Peshaurar, para refugiados afeganes. Paquistão, 1996.
8- Acampamento de sem-terra em Rosa do Prado, em Itamaraju. Bahia, Brasil,
1996.
Foram utilizadas primeiro as imagens da obra de Salgado por serem retratos
de crianças e permitirem estabelecer um elo maior com os educandos, e também
pela cor, por ser utilizada na produção das crianças, ou seja, carvão e sulfite branco.
RIO BRANCO, Miguel. Entre os olhos, o deserto. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
(Conceito original a partir da instalação entre os olhos, o deserto).
Este livro não contém paginação nem título nas fotografias, que foram
selecionadas de forma aleatória.
Em seguida, como um dos objetivos da oficina era despertar para a
observação minuciosa e, ao mesmo tempo, estimular o imaginário, trabalhamos com
as imagens de Rio Branco, estas coloridas, que também motivaram a pintura a
guache, realizada após a leitura de imagens.
ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia: um estudo de antropologia
visual sobre cotidiano, lixo e trabalho. Porto Alegre: Palmarinca, 1997.
1- Sem título p. XLV (A vila).
2- Sem título p. LXXXV (retratos).
3- Sem título p. XLI (A vila).
15
4- Sem título p. LXI (O trabalho e o lixo).
5- Sem título p. LXVIII (O trabalho e o lixo).
6- Sem título p. XLIII (A vila).
7- Sem título p. LXXXIX (Retratos).
8- Sem título p. CXXIII (Imagens dentro da imagem).
Na seqüência realizamos a leitura das imagens da obra de Achutti, que se
tornou a mola motivadora para a criação dos fotogramas, pois revelaram um pouco
da história de cada indivíduo e sua relação com o cotidiano.
Preparação da sala
A sala de artes precisou ser adaptada para a realização das atividades, sendo
necessária a construção da mara escura. Nesta etapa, foram utilizados
compensado e lona preta e, em seguida, adquiriram-se extensão e lâmpada
vermelha, bandejas e papel fotográfico. Ao lado da câmara escura foi montado um
palco com materiais existentes na sala para que as crianças pudessem realizar a
brincadeira da estátua. Próximo ao palco e à janela foi construído um varal onde os
fotogramas seriam postos para secar.
Coleta das informações
O diário de aula foi utilizado para organizar e registrar as atividades e as falas
das crianças. Este instrumento ajuda-nos a perceber as questões subjetivas e a
observar minuciosamente os detalhes de cada atividade.
A entrevista iconográfica (ORMEZZANO, 2001) foi realizada no último
encontro através de um desenho por meio da qual cada criança respondeu à
pergunta: “O que significou para você ter participado da oficina de fotografia?”
Os participantes da investigação e seus textos iconográficos
Foram selecionadas seis crianças de cada turma, sendo três meninos e três
meninas, de acordo com a freqüência em todos os encontros e a diversidade dos
textos iconográficos, totalizando doze amostras. Os nomes dos participantes da
oficina foram trocados por nomes fictícios a fim de preservar a identidade da criança.
16
Os participantes do primeiro ano do ensino fundamental
Gustavo: sete anos de idade, é uma criança bem extrovertida e brincalhona,
que conversa bastante durante as atividades, tem dificuldade em permanecer
sentado e adora contar novidades sobre sua casa. Criou sua imagem dentro de um
jogo repleto de fantasias, no qual a bruxa montada em sua vassoura segura uma
varinha de condão. Ela parece se dirigir a um castelo gico onde um guardião
voador a espera. Acredito que para ele a parte mais significativa da oficina tenha
sido a brincadeira de estátua com as fantasias e fotos da professora, momento em
que ele conseguiu fantasiar-se, criando um mundo imaginário divertido e singular.
Jonas: sete anos, descendente de italianos, natural de Chapecó. Sua mãe é
jovem e viúva. É uma criança muito sentimental, que adora chamar a atenção.
Realiza as atividades com entusiasmo, mas, às vezes, demonstra insegurança em
tomar decisões. Seu desenho também se relaciona à brincadeira de estátua:
desenhou-se como sendo o Harry Pother, espalhando seu pó mágico junto com uma
princesa no dia do seu casamento. A chuva aparece dividida em uma parte amarela
e outra azul. Com certeza, para este menino a brincadeira permitiu que sua
imaginação flutuasse em meio aos personagens criando um lindo conto, no qual o
protagonista podia ditar as regras.
Luciano: é um menino tímido e novo na turma, pois mudou de turno
recentemente. Demonstra interesse, é uma criança sensível, às vezes com um olhar
triste; é calmo e costuma receber a professora com um beijo todos os dias. Tem sete
anos. Seu desenho relatou o dia em que realizamos os fotogramas. Desenhou um
varal com muitas fotos de mão, a câmara escura, as crianças observando as fotos
de Achutti e uma chuva de flores caindo sobre os alunos.
Ane: sete anos, tem dificuldade em se concentrar e não tem um bom
relacionamento com os colegas. Em seu desenho aparecem muitas estrelas,
corações, dois sóis, uma casa onde os móveis parecem estar no sótão e, neste, uma
flor laranja bem maior do que as cadeiras. Também aparecem sete crianças
brincando entre flores e árvores. Nenhuma das crianças tem mãos. Acredito que
este desenho se relacione também à brincadeira de estátua.
17
Ana Paula: sete anos, é uma criança fechada, que tem dificuldade em
relacionar-se com os colegas, pois constantemente entra em atritos. Conversa
bastante durante as atividades. Seu desenho apresenta um vasto espaço verde com
muitos corações e flores. Duas pessoas estão saindo da mara escura. Para a
aluna o momento mais significativo deve ter sido a confecção dos fotogramas.
Cláudia: sete anos, é uma criança agitada, que apresenta dificuldade em
relacionar-se com as outras; tem um temperamento forte. Em seu desenho uma
imensidão ocre protege um triângulo, que parece ser uma casa com três pessoas,
entre elas uma fada e uma que está deitada no topo deste triângulo. No céu, nuvens
azuis e o sol aprisionado num quadrado são envolvidos pela cor violeta. Este
desenho relaciona-se à brincadeira de estátua.
Os participantes do quarto ano do ensino fundamental
Welison: dez anos, tem um relacionamento complicado com a família, às
vezes apresenta um comportamento agressivo. Seu relacionamento com os colegas
é difícil devido ao seu temperamento. Gosta de desenhar. Seu desenho mostra a
câmara escura, a lâmpada vermelha, os líquidos para revelação, a pia e fora, da
câmara, no lado esquerdo da folha, aparece a professora; no lado direito, ele mesmo
com um aspecto maroto. Considero que para ele os momentos mais significativos
foram a foto na lata e a confecção dos fotogramas.
Juliano: dez anos, brincalhão; gosta de conversar durante as atividades,
costuma contar novidades sobre acontecimentos fora da escola. Realiza as
atividades com dedicação e entusiasmo. Desenhou a brincadeira da estátua, onde
apresentou uma breve história de luta.
Luan Felipe: dez anos, é uma criança bem agitada; não gosta de ficar sentado
e conversa muito durante as atividades, porém é bastante sensível; não costuma
brigar ou discutir com os colegas. Está sempre rindo. Seu desenho mostra um sol
tórrido, um céu laranja e um fotógrafo tirando uma foto, este está vestindo uma
camisa azul e tendo brincos nas orelhas. Para este aluno o momento mais
significativo foi o da foto na lata.
18
Laura: dez anos, uma menina delicada, doce e meiga. Desenhou-se com
cabelos presos e seu cérebro na testa indica inteligência. Segundo ela, como a
oficina despertou-lhe muitas idéias e novidades, as lâmpadas estão presentes uma
de cada lado da cabeça. O fundo aparece preenchido pela cor violeta. “Para mim
toda a oficina foi importante, não tem como escolher um pedaço, por isso desenhei o
meu retrato com as coisas que mudaram em mim”. Talvez nem os fotógrafos
estudados na oficina tivessem noção do que suas imagens poderiam provocar no
observador no momento em que estavam fazendo-as!
Vanusa: dez anos, uma criança calma, serena e tranqüila; desenhou a
câmara escura, os fotogramas pendurados na varal, ela entre a pia e a mesa, tendo
uma idéia do que fazer, ao lado uma colega. Também aqui o momento preferido foi a
confecção dos fotogramas.
Cristina: dez anos, uma criança sempre feliz, doce, meiga e curiosa. Gosta de
participar ativamente das atividades e de contar novidades; está sempre disposta a
ajudar os colegas ou a realizar tarefas extraclasse. Seu desenho está dividido em
quatro partes: a primeira com uma menina vestindo uniforme e realizando a foto na
lata; a segunda com cinco meninas na brincadeira de estátua; a terceira com a
revelação das fotos e a quarta com o fotograma da mão.
Acredito que para Cristina, assim como para a turma da quarta série, a oficina
como um todo foi significativa; foi uma experiência positiva e divertida pela qual
conseguimos juntos construir experiências e novos conceitos sobre as imagens e
sobre a própria vida.
Oficina de fotografia: cronograma das atividades
A oficina teve como objetivo geral analisar as imagens produzidas pelos
fotógrafos Sebastião Salgado, Miguel Rio Branco e Luiz Eduardo Robinson Achutti,
percebendo a significação de uma vivência estética sustentada por estes ensaios
para os alunos da 1ª e 4ª série do ensino fundamental.
Para a seleção das imagens utilizei como critério que todas fossem do corpo
humano. Com relação ao ensaio Êxodos de Sebastião Salgado, escolhi apenas as
fotografias de crianças por dois motivos essenciais: primeiro, porque trabalharia com
19
duas turmas de crianças e, por isso, as imagens estabelecem maior relação com os
alunos; segundo, para não causar um impacto violento, pois as cenas com adultos
apresentam imagens muito fortes, que poderiam desnortear o trabalho com a
primeira série.
Após a seleção das imagens, o segundo passo foi negociar com as
professoras regentes das turmas envolvidas e propor um horário especial de seis
dias para as duas. Para que isso fosse possível, precisei negociar também com a
direção, pois as outras turmas da escola não poderiam ficar sem aula. Expliquei aos
diretores os benefícios da oficina para as turmas, pois os alunos teriam uma semana
diferente, com materiais e atividades inovadoras. Além disso, as aulas das outras
turmas estariam sendo ministradas por uma professora substituta, tudo custeado
por mim, sem que a escola tivesse prejuízos.
Com as professoras de primeira e quarta séries a negociação foi bem fácil
porque todas aprovaram a idéia de terem alguns horários a mais para planejar e
concretizar atividades que normalmente precisam levar para casa.
Acordos estabelecidos, era hora de oficinar. Organizei, então, seis encontros
por turma, um a cada dia, a primeira série pela manhã e a quarta rie à tarde. As
atividades desenvolvidas foram iguais para as duas turmas.
1º Encontro: Sebastião Salgado
Objetivo: Conhecer a vida e a obra de Sebastião Salgado e, através da
leitura de imagens, refletir sobre o tema do ensaio fotográfico.
Atividade: Introduzir a oficina, explicando que teríamos encontros diferentes
e, nesses dias, horários diferentes.
Questionamentos: Quando tiramos fotografias? Em que ocasiões? Elas
registram momentos agradáveis? O que sabemos sobre fotografia?
Vamos observar se as imagens que a professora trouxe representam os
momentos citados pelos alunos.
* Contar uma breve história para que os alunos compreendam Sebastião
Salgado. Em seguida, as crianças deveriam observar oito imagens retiradas do livro
Êxodos (crianças) e realizar uma leitura; após, passariam a realizar um desenho
20
com carvão sobre o que haviam sentido em relação às imagens observadas.
Materiais necessários: oito cópias reprográficas do livro Crianças do Êxodo,
de Sebastião Salgado, carvão, spray fixador para cabelos, folhas de ofício.
2º Encontro: Miguel Rio Branco
Objetivo: Observar as imagens retiradas do ensaio fotográfico “Entre os
olhos, o deserto”, de Miguel Rio Branco, e realizar uma atividade de leitura de
imagens estimulando o imaginário das crianças.
Atividade: Contar uma pequena história para as crianças sobre a vida de Rio
Branco; em seguida, apresentar oito imagens para que observem e realizem uma
leitura.
Questionar sobre: Como é o fundo da fotografia? Onde parece que esta
pessoa está olhando? Como são as linhas? O que está acontecendo? Como são as
cores? E as formas? Aparece toda a cena ou apenas um detalhe?
Após a leitura os alunos deveriam realizar uma pintura sobre uma imagem
que foi escolhida por eles e imaginar o que estaria acontecendo naquela cena.
Materiais: oito cópias reprográficas coloridas sobre o ensaio de Miguel Rio
Branco, tinta guache, pincel e folhas de ofício.
3º Encontro: Luiz Robinson Eduardo Achutti
Objetivo: Conhecer um pouco sobre o que é fotoetnografia e, através de
fotogramas, descobrir o que é uma câmara escura e como ocorrem os processos
químicos da revelação, estimulando, assim, a observação e a percepção do aluno.
Atividade: Contar uma breve história sobre Luiz Robinson Eduardo Achutti e
seu trabalho de fotoetnografia em Porto Alegre. Apresentar oito imagens retiradas do
livro de Achutti para que os alunos realizem uma leitura. Estimulá-los com questões
sobre as formas, o fundo, as cores, as linhas, o local onde as pessoas estão... Em
seguida, em grupos de cinco crianças, realizar na câmara escura os fotogramas de
uma parte do corpo. Conversar sobre revelação, o que sentiram, como ocorre.
Materiais: câmara escura, lâmpada vermelha, revelador, fixador, duas bacias,
duas pinças, varal, grampos de roupa, papel fotográfico, oito cópias reprográficas
21
coloridas do livro Fotoetnografia de Achutti.
4º Encontro: Fantasias e fotos da professora com dramatização
Objetivo: Estimular a criatividade e o imaginário através da brincadeira
denominada “estátua”.
Atividade: As crianças foram avisadas, ainda no terceiro encontro, para
trazerem fantasias, maquiagens, enfeites, enfim, tudo o que tivessem de diferente.
Inicialmente, dá-se um tempo para que as crianças se troquem e se enfeitem;
em seguida, elas devem formar grupos de cincos e inventar uma história que
envolva os cinco personagens que escolheram para se caracterizar.
Após terem concluído essa etapa, um grupo por vez sobe ao palco e
dramatiza sua história em três minutos; ao final, devem congelar numa posição
como se fossem estátuas, situação que a professora fotografa.
Materiais: fantasias diversas, maquiagem, enfeites, como flor artificial,
purpurina, laços..., uma máquina fotográfica.
5º Encontro: Fotografia a partir das leituras de imagem
Objetivo: Apreender como se constrói a máquina da latinha e, através dela,
estimular a observação desenvolvendo noções de composição.
Atividade: Confeccionar a máquina da latinha forrando-a e furando-a; colocar
na câmara escura e papel fotográfico na lata e fotografar tema livre; em seguida
revelar.
Materiais: lata, papel preto, fita adesiva, prego, papel fotográfico, revelador,
fixador e a câmara escura.
6º Encontro: Coleta das informações
Objetivo: Coletar informações e construir com os alunos uma avaliação sobre
a oficina.
Atividade: Montagem da exposição dos fotogramas, interferência na pia
reprográfica que eles trouxeram do seu rosto em tamanho ampliado. Aqui cada
criança modifica na sua imagem o que gostaria de ter diferente, como a cor do
22
cabelo, o comprimento, a cor dos olhos, o lugar onde se encontra...
Em seguida coletaram-se as informações através de um desenho com o qual
cada criança irá responder: “O que significou para você participar da oficina de
fotografia?” Ao final cada criança falará sobre o seu desenho.
Materiais: um mural, fita adesiva, trabalhos das crianças, tinta guache,
canetinha, lápis de cor, papel, cópia reprográfica do rosto.
Processo de leitura singular transtextual de imagens
No processo cria-se um vínculo entre semiótica e iconologia, possibilitando
adentrar em universos cíclicos, abertos e intuitivos baseados nos estudos e nas
propostas de Ormezzano (2001). Nesse contexto observamos um elo entre o
imaterial, o sentir e a energia psíquica que permeiam as ações da consciência e do
pensamento (pensamento, sentimento, sensações e intuições).
Como critérios para a leitura transtextual singular dos textos iconográficos
utilizei aqueles sugeridos pela proposta de Ormezzano (2001).
O suporte e o material do desenho
As crianças utilizaram sulfite e lápis de cor por ser um material simples, barato
e parte do cotidiano. Mesmo sendo um material induzido pela professora, a
linguagem visual possibilita uma comunicação interna com elementos da
criatividade, do sentir e da comunicação de idéias, caracterizando, assim, uma
atividade de mobilização.
Aspectos compositivos da linguagem visual
Cada elemento é disposto intencionalmente pela criança de acordo com seu
sentir; a organização espacial produz um contexto gráfico singular em cada
indivíduo. Essa organização contribui para a leitura, a observação intuitiva e
subjetiva das formas, cores e elementos gráficos, como linhas, pontos, texturas,
sugerindo e revelando novos elementos intrínsecos e muitas vezes não observados
formalmente. “Existem três fatores envolvidos na atividade artística da criança, a
organização de suas experiências, a auto-compreensão e o relacionamento com os
outros por meio de seu trabalho” (DUARTE JR., 1998, p. 113).
23
Simbologia espacial
Foi utilizado o esquema interpretativo elaborado por Grünwald e fornecido por
Franz Jans, docente do Instituto C. G. Jung, em Zurique (ZIMMERMANN, 1992, p.
95).
Projeção do eu
I IV VI
EIXO DO
CRESCIMENTO II VII
III VIII
Realização do eu
EIXO DO TEMPO
I- Imaginação, arquétipo do pai, pai impessoal, luz, vazio, ar, saudade.
II- Realidade interior, passado, introversão, mãe, feminino, emoção, Eu.
III- Inconsciente, origem, arquétipo da mãe, conflitos, regressão, o que foi
superado, o criativo.
IV- Mundo do espírito, intelecto, razão, desenvolvimento espiritual, fogo, pai,
céu.
V- Mundo corporal, das sensações, matéria, mãe, terra, natureza, instinto.
VI- Consciência, fogo, claridade, o final configurado, morte, objetivo, projeções.
VII- Realidade exterior, futuro, extroversão, pai, masculino, ação exterior, tu.
VIII- Vida instintiva, mãe pessoal, terra, decadência, demônios.
Simbologia das cores
Constitui-se na observação e interpretação das cores. Portal (1996) utiliza três
linguagens das cores: a divina, a sagrada e a profana. O simbolismo das cores
auxilia na interpretação do imaginário universal.
24
Referências do imaginário
Para a concretização desta etapa a teoria de Durand (1997, 1998) nos auxilia
nas investigações acerca do imaginário, de suas relações com o inconsciente
coletivo e o processo de criação. Utilizaremos também o Dicionário de Símbolos
para a interpretação dos desenhos.
Síntese do pesquisador
São as leituras que permeiam diversas áreas do contexto artístico construindo
significados. A leitura de imagens mobiliza, além das operações de pensamento, as
emoções, as quais se ligam não só à corporeidade, mas também às energias
psíquicas. A comunicação de uma idéia, segundo Duarte Jr. (1998), sempre carrega
os tons afetivos daquele que a emprega. E desvelar esses tons é parte de um jogo
entre o pesquisador e a pesquisa, ou seja, ao se interpretar um signo expressivo,
estamos lhe emprestando uma significação que nos remete às intenções de sua
fonte ou criação.
Buscando organizar e relacionar as informações coletadas, esta dissertação
conta com três partes fundamentais, a primeira, segunda e terceira referem-se aos
subsídios teóricos que constituem a base para a compreensão da atual situação da
arte e educação nas escolas públicas, as questões pertinentes à leitura de imagens,
à fotografia e às relações sobre estética e às teorias do imaginário. A quarta
relaciona-se à organização e seleção de imagens e ao relatório das atividades. A
quinta é composta pela leitura transtextual singular das imagens segundo
Ormezzano (2001). Finalmente, as considerações finais, referências e anexos.
CAPÍTULO I
ARTE E EDUCAÇÃO: EM BUSCA DE UM LEITOR ATIVO
1.1 O ensino da arte no cotidiano escolar
Sabe-se que a educação deve ser uma totalidade, assim como o ser humano,
o ato de fragmentar é uma forma de desprezar o indivíduo. E a totalidade
educacional é um processo amplo e complexo. Trabalham-se as diferenças, a
inclusão, mas esquece-se de perceber quais são essas diferenças. De que somos
excluídos?
O ensino da arte hoje sofre inúmeras transformações e talvez esteja se
iniciando sua libertação das ideologias que permeiam o cotidiano. Lembra-se que a
mídia e as imagens apeladoras conferem autoridade às elites dominantes para a
imposição de significados e valores sobre os outros seres humanos... E o professor
de arte pode e deve abordar em suas práticas pedagógicas questões que
desmistifiquem a rotina do ser. O educador não deve apenas se restringir a mostrar
caminhos, mas, sim, ensinar o educando a caminhar, a buscar, a ser sujeito.
Ainda se percebe no cotidiano escolar a utilização de mecanismos ideológicos
que, na prática, consciente ou inconsciente, acobertam a injustiça, mantendo
intactas as dinâmicas opressoras de uma globalização, onde o currículo apresenta
saberes que têm o efeito de ocultar as graves desigualdades, provocando uma
exclusão em diversas áreas do conhecimento. O fato de a naturalização dos
símbolos, códigos, paradigmas, imagens, provérbios estar presente nos planos
pedagógicos acaba por impedir o desenvolvimento de conhecimentos que façam
frente às desigualdades e ao controle dos significados dominantes (STRIEDER,
2000).
Os educadores precisam admitir sua capacidade de fomentar saberes,
impulsionando a reconstituição da sensibilidade humana, tendo a responsabilidade
de se questionar, de se auto-avaliar, buscando contribuir para a construção de seres
26
humanos como autores de uma sociedade comprometida com a justiça social,
econômica.
Se o aluno assume uma identidade, a sua subjetividade, perante a
naturalização de algo, e se observarmos a fundo o significado disso para o aluno,
sempre mediando quando necessário, estaremos produzindo significados para o
conhecimento (OSTROWER, 1996). O aluno tem de se reconhecer como autor,
como sujeito, constituindo-se como um todo, organizando-se, tomando contato com
seus limites, recriando e reapropriando conceitos. É na relação com o outro que o
sujeito se constitui. Necessitamos dialogar com as formas, as cores, conhecer,
mastigar, construir através dos meios artísticos um novo significado. “Não é à força
que as coisas mudam, mas com encantamento, prazer e novidade” (MARQUES,
2002, p. 84).
O ensino da arte deve privilegiar a construção de conhecimento e apresentar
consistência pedagógica pelo desenvolvimento de alternativas inovadoras do ponto
de vista metodológico; propor estratégias que busquem o enriquecimento
sociocultural e a construção da cidadania. Desse modo, a articulação da apreciação,
da contextualização e do fazer artístico conduzem à transformação de atitudes, de
valores, do contexto cultural, como uma conseqüência do processo, rompendo com
um passado repleto de repressões e homogeneidades.
“O passado recente tem demonstrado uma ênfase na diferença e
descontinuidade após um regime de universalismo” (HARRISON; WOOD, 1998, p.
254).
Na produção do educando, seja num texto, seja numa interferência, num
desenho..., são várias vozes: a voz dos momentos vivenciados no passado; às
vezes, dos autores conhecidos, das experiências. E o aluno se faz autor enquanto
organizador dessas vozes. Portanto, conseguimos perceber que, como mediadores,
somos uma dessas vozes que permeiam a mente do indivíduo, subsidiando a sua
formação, desafiando limites, e uma relação de fragmentos com a totalidade dos
acontecimentos.
Quando se opta por ler uma imagem, em nenhum caso ela é uma obra à
parte, uma obra em si, fechada e valorada de uma forma estética predeterminada,
mas, sim, uma imagem que vai transitar perante um indicador carregado de vozes.
27
Essas vão mediar sinais, signos e significados num sistema sintáxico, o próprio
observar manifesta essa sintaxe pelo seu posicionamento. A linguagem é interação
e a imagem, como forma de expressão, vem ao encontro das vozes que integram as
vivências do observador (ECKERT, s.d.).
As práticas culturais exibem numerosas diferenças, que, em parte, se devem
a questões socioculturais. o muitos os processos vividos que fazem parte das
diferentes manifestações das experiências e reações de diferentes grupos perante
vida cotidiana. Esse aglomerado de vivências reflete-se nas possibilidades de ver o
mundo, de pensar sobre a cultura a qual estamos inseridos, o que se torna
fundamental para a criação de uma identidade individual e cultural. O aprendizado
de valores e sentimentos nos alicerces para analisar criticamente a realidade à
qual pertencemos, os princípios que nos regem e nos integram mutuamente, e para
criar novas formas de mudanças (LOWENFELD; BRITTAIN, 1977).
As obras de arte apresentam um aglomerado de significações construídas por
meio de composições de imagens que revelam possibilidades de existência de
comunicação que transcendem os espaços reais, os meios sociopolíticos e os
sentidos. Não provocam um sentir linear sobre a visão; as imagens provocam nos
seres humanos reações que questionam, identificam, ordenam ou desordenam as
leis da lógica interna. Despertam um ser intrínseco, morador do imaginário, que
costumeiramente denominamos “ato criador”.
Ao criar uma forma para ser percebida, o artista constrói com ela uma visão
diferente dos sentimentos.
[...] a arte não significa, exprime; não diz, mostra. E o que ela mostra, que
ela nos permite, é uma visão direta dos sentimentos; nunca um significativo
conceitual (DUARTE JÚNIOR, 1998, p. 83).
Atualmente vivemos em meio a grandes crises sociais e econômicas, com um
enorme leque de tensões direcionando a vida humana. A humanidade torna-se cada
vez mais violenta e menos sensível. Nesse contexto, a construção de um leitor de
arte implica reconhecer as fragilidades do sistema educacional e dos métodos
pedagógicos e perceber o surgimento de uma cultura transdisciplinar, na qual a
escola necessita criar instrumentos que valorizem os seres humanos, a
sensibilidade, a vida, fatores que refletem diretamente no processo de ensino-
aprendizagem.
28
Apenas um ensino criador, que favoreça a integração entre a aprendizagem
racional e estética dos alunos, poderá contribuir para o exercício conjunto
complementar da razão e do sonho, no qual conhecer é também maravilhar-
se, divertir-se brincar com o desconhecido, arriscar hipóteses ousadas,
trabalhar duro, esforçar-se e alegrar-se com descobertas (BRASIL, 1997, p.
35).
Desse modo, o ensino da arte auxilia o educando a compreender as crises de
valores, o avanço frenético de um consumismo violento, a depredação do meio e de
sua cultura. Estabelecer uma cadeia interativa com o cotidiano produzindo
experiências visuais marca significativamente o aprendizado do aluno, despertando-
lhe uma nova forma de olhar e sentir o universo que o circunda.
O ensino da arte deve despertar para os problemas sociais, para a falta de
criatividade, de compreensão dos desejos internos dos seres humanos, suas
fantasias, seus medos. A leitura de imagens promove a curiosidade e uma
inquietação indagadora, com o que o esclarecimento e uma visão mais profunda do
meio brotam naturalmente. Ao trabalhar com a leitura de imagens, o educador
proporciona um momento de desenvolvimento da percepção e da imaginação
criadora do educando, ampliando as dimensões de contato com a estética da arte e
também com o universo cotidiano que a cerca. A contextualização, a leitura e o fazer
são os ensaios norteadores das aulas de arte, apontando que o ensino não se
restringe apenas à confecção de artesanato, formando alunos “tarefeiros”.
O fazer apresenta sentido para o aluno quando recheado de reflexões
sobre o próprio mundo e também sobre a construção histórico-social da arte, pois o
diálogo com diferentes linguagens construídas pelo ser humano amplia o
crescimento do potencial de observação.
Todo texto visual faz referência a objetos sentimentos, idéias, ao mesmo
tempo em que expressa a própria visão de mundo do produtor da imagem.
Assim, tanto as imagens produzidas pelas crianças quanto aquelas
produzidas pelo artista plástico devem ser apresentadas como um texto que
comunica uma idéia (BUORO, 1998, p. 248).
Nosso cotidiano está repleto de aspectos visuais e comerciais. É essencial
que a escola contribua para o exercício da criatividade visual. A sensibilidade no
olhar é insuficiente para acelerar o processo de reflexão, visto que a construção de
um leitor visual transformador requer algumas habilidades e métodos permeando o
processo de ensino-aprendizagem.
29
Percebem-se alguns problemas nas relações entre mídia e educação. Ao
observar as estratégias de linguagem da mídia, a forma como constrói a imagem de
seus produtos e ao comparar as estratégias de leituras de imagens empregadas até
então nas escolas, podemos perceber por que os alunos não gostam de freqüentá-
la.
A constituição da mídia como lugar de verdade, nela, a relevância dos
temas do corpo, da sexualidade e da juventude, o elogio do efêmero e do
presente sem história, o excesso de informação multiplicada ao infinito e
sem hierarquização, a publicação da vida privada, por exemplo, são
questões que nos interessam aqui na exata medida em que são vistas a
partir de um olhar sobre a própria materialidade dos materiais midiáticos
(FISCHER, 2000, p. 75).
A escola precisa considerar a centralidade da linguagem, o duplo sentido das
imagens, formas, cores e métodos. A estética oculta do cotidiano tem força
manipuladora, amplia desejos, destrói valores, altera estilos, forma um olhar
desvinculado de valores sociais, morais, críticos ou religiosos.
O complexo dos fenômenos que provocam o ambiente cotidiano e a
atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade,
imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes,
assumindo um aspecto independente e natural... (KOSIK, 1995, p. 11).
Essa naturalização provoca o fato de, numa percepção imediata, não se
conseguir captar a coisa em si, a essência do fenômeno, o pano de fundo. Inúmeras
vezes o educador critica seus alunos afirmando que são incapazes de retirar ou de
descobrir a essência dos textos, “não sabem interpretar o problema”. Será que os
educadores atuais são capazes de ler (e extrair dessas leituras a essência) as
imagens cotidianas, os comerciais carregados de ideologias e as deturpações
midiáticas? Torna-se cômico cobrar aquilo do qual não se tem consciência.
A escola necessita encontrar caminhos que levem ao exercício real da
criatividade, promovendo experiências significativas que ocorram continuamente,
pois a interação do ser humano com o meio que o circunda implica um processo de
reconhecimento da própria vida. Nesse processo surgem momentos de resistência,
conflitos e prazeres, aspectos e elementos do “eu e do mundo”, que, implicados
nesse diálogo, qualificam as experiências com emoções e idéias de maneira que a
intenção consciente desvele a essência do ato ou da coisa em si.
30
A distinção entre representação e conceito, entre o mundo da aparência e o
mundo da realidade, entre a práxis utilitária cotidiana dos homens e a
práxis revolucionária da humanidade ou, numa palavra, a “cisão do único” é
o modo pelo qual o pensamento capta “coisa em si” (KOSIK, 1995, p. 15).
Um dos problemas do ensino da arte atualmente é a experiência incompleta e
insignificante; o próprio fazer é experienciado, mas não de tal modo que se exerça
um ato crítico e significante. Existe um certo distanciamento entre o que se observa
e o que se pensa. O ato de olhar é tão mecânico que não se consegue chegar a
perceber a essência do que se observa. Afirma Dewey:
Os inimigos do estético não são nem o prático nem o intelectual. São o
monótono; a lassidão dos fins indefinidos; a submissão à convenção nos
procedimentos práticos e intelectuais. Abstinência rígida pela força, tensão
por um lado e dissipação, incoerência e indulgência sem objetivo, por outro
são desvios, em sentidos opostos, da unidade da experiência (1974, p.
251).
A experiência artística requer qualidades tanto quanto o pensar em termos
simbólicos verbais, escritos ou matemáticos; exige um pensar aguçado e penetrante,
que direcione a intencionalidade da execução; busca o ponto de vista do consumidor
com maior ênfase do que o do produtor. Assim como o jardineiro que prepara o
terreno para que seja apreciado, existe uma distinção na experiência de quem planta
e do contemplador que absorve o jardim florido.
O acesso mais imediato à cultura visual não se através de museus e
galerias, mas, sim, pelas correntes da moda, da tecnologia digital, das revistas
populares, da televisão... O prazer físico do consumo está impregnado amesmo
nos materiais escolares, a corporificação dos modismos avança aceleradamente
pelas instituições de ensino. E a escola, com suas paredes cinza descascadas, não
alimenta esse vigor visual.
A fotografia investiga, congela, sente, pensa, discursa, fala por si só, através
de uma linguagem estética e não-verbal. Existem aspectos relevantes que são
capazes de ligar o presente ao futuro, de montar e desmontar, de construir e
desconstruir. Um ensaio revela-nos detalhes de um meio, de uma bagagem cultural
que o fotógrafo carrega a cada click, oportunizando ao espectador a revelação de
uma aprendizagem nas entrelinhas, utilizando suas próprias idéias.
É cada vez maior a evidência de que a porção do conhecimento que cada um
31
pode alcançar é insignificante diante da realidade a ser conhecida, é significante e
marcante para o observador perceber uma imagem e identificar-se com ela,
relacionando-se com a sua individualidade, sensibilizando-se para receber
informações e uni-las àquelas já existentes. Assim, o observador torna-se o condutor
do processo de captação e decodificação, desenvolvendo a percepção visual,
recriando seu mundo particular, ampliando uma formação crítica e exercitando,
assim, sua própria cidadania (OSTROWER, 1996).
Através das percepções e interpretações, a realidade externa é inserida no
interior do ser humano, o qual começa a desenvolver um sistema de apropriação e
leitura capaz de construir imagens, aguça sua sensibilidade, amplia sua memória e
capacidade de tomar decisões. O ser humano está carregado de influências
psicológicas, sociais e culturais, que despertam através do olhar. É por meio dessas
influências que o ser humano foi se relacionando com a natureza e com o mundo ao
seu redor, construindo as possibilidades de sua sobrevivência e desenvolvimento. A
arte, como linguagem, interpretação e representação do mundo, é também parte
dessa junção de influência, sendo um instrumento essencial para o desenvolvimento
da consciência, por propiciar ao ser humano um contato com a sua singularidade e
com o universo. A arte é uma forma de o ser humano entender a si mesmo e
relacionar-se com a sociedade. O conhecimento do meio sociocultural é fundamental
para a sobrevivência, e representá-lo é parte do próprio processo pelo qual o ser
humano amplia sua capacidade de olhá-lo (BARBOSA, 1995).
1.2 A leitura de imagens – textos
A sociedade tornou-se opaca aos sentidos porque a escola contenta-se com o
desenvolvimento da competência da memorização, aceitando respostas prontas,
mecânicas e decoradas. A reflexão acerca das informações aceitas pelo aluno
inexiste. Criamos seres que apenas armazenam por um curto tempo alguns
fragmentos escolhidos nos livros considerados didáticos. O ensino da arte possibilita
uma reação a essa apatia, estimulando sensações e emoções. Para Barbosa,
[...] todo o grande artista é intrinsecamente um educador. Através da arte,
não revela mas também afeta o mundo ao redor dele. Através de sua
obra prepara seu público para a aceitação de uma nova estética, de um
novo pensamento visual, e isto é função educacional (1995, p. 160).
32
Encontrar sentido e relação com a vida cotidiana nos textos explorados,
compreender e ser capaz de analisar criticamente o que se lê, é uma condição para
reverter a sobrevivência para um viver ativo. A arte possibilita um aprendizado
através de experiências, porém essas precisam interagir com o meio sociocultural
para se tornarem significativos, caso contrário a experiência se tornará mais um
fragmento vazio. A conscientização dos sentidos humanos ocorre com o
desenvolvimento da sensibilidade, criando significados que são interiorizados pelo
sentir, fazendo com que realmente ocorra a apropriação do que foi conhecido; mais
do que se apropriar, o aluno consegue refletir sobre a experiência e fazer relações.
A imagem sobrevive autônoma às tendências e práticas do ensino da arte, ou,
ainda, aos meios socioculturais nos quais o indivíduo se encontra. Em razão do
consumismo crescente e do sentido externo que ela própria cria, hoje é impossível
ignorar que a tecnologia expande elementos visuais que muitas vezes não são parte
do cotidiano. Por isso, em alguns casos perde-se a referência cultural para que
ocorra uma apropriação dos modismos do outro, dos costumes do outro, das
imagens do outro...
Adoramos olhar o que fazem os outros, os espionamos quando estamos
entediados, quando estamos desconfiados, quando estamos surpresos,
ansiosos, curiosos... um voyeur oculto em cada um de nós e um voyeur
integralmente assumido em cada fotógrafo, videomaker e cineasta
(BALOGH, 2003, p. 26).
O desafio ao educador hoje é reconstruir novas totalidades, novos valores,
que permitam encontrar sentido, apropriando-se de valores estéticos preexistentes,
recriando-os, reordenando-os. Faz-se importante perceber que no universo artístico
vivemos um momento de mudanças, onde coexistem vários estilos. o buscamos
aqui trabalhar a fotografia como mero instrumento ornamental, porque nesse
contexto o que predomina é a sobrevivência do vazio, da técnica pela técnica. Nem
estamos falando de um contexto vazio, como o que predominou no movimento
Dadá, no qual ocorria uma intencionalidade estética. Vivemos na realidade da
repetição, da cultura industrial; é preciso acabar com a síndrome da cegueira que se
instalou nas mentes desta geração, que pouco observa e pouco pensa. Procura-se
tudo pronto, receitas de como fazer ou pensar sobre algo.
Segundo Benjamin (1993), existe uma correspondência das imagens
33
conscientes coletivas nas quais o novo é misturado ao velho. Essas imagens são
imagens de desejos e delas surge um esforço positivo para separar-se do que se
tornou antiquado. Explica-nos Aragon:
Eu comecei a perceber que o reino [desses objetos novos] estava
construído sobre sua novidade, e que o seu futuro brilhava uma estrela
moral. Eles se revelavam a mim, então, como tiranos transitórios, como os
agentes do destino de alguma maneira ligados à minha sensibilidade.
Finalmente eu me dei conta de que eu possuía a intoxicação do moderno
(2002, p. 310).
Atualmente, percebemos a dificuldade existente no cotidiano de criar algo
novo, seja para criar soluções, seja, mesmo, uma imagem. Essa dificuldade está
intimamente ligada à escola e à forma como ela trabalha.
A idéia de que o único ser criador é o artista surge para mascarar a
necessidade das demais disciplinas em desenvolver a criatividade. Se existe um
mural a ser preenchido, “jogam” a tarefa ao professor de artes; se precisam de idéias
para mudar algo, pedem ao professor de artes. Esse círculo vicioso de “empurrar”
tudo o que é relacionado à prática e ao ato criador cria um muro cristalizado num
fazer sem sentido, não possibilitando a exploração dos espaços escolares pelas
demais áreas do conhecimento.
Por que os professores de matemática, história, geografia, português não
utilizam os espaços da escola para expor curiosidades, interferir nas reações
comportamentais com instalações, performances, estimulando o interesse e a
criatividade? Preferem aceitar a estética desbotada da escola trabalhando com
fragmentos e desconhecendo as inúmeras possibilidades de interdisciplinaridade, as
quais poderiam mexer com o interesse do aluno, despertando-o do sono profundo e
mobilizando-o pela emoção.
A atividade criativa consiste em transpor certas possibilidades latentes para
o real. As várias ações, frutos recentes de opções anteriores, vão ao
encontro de novas opções, propostas surgidas no trabalho, tanto assim que
continuamente se recria no próprio trabalho uma mobilização interior, de
considerável intensidade emocional (OSTROWER, 1996, p. 71).
A criatividade não é algo que se desenvolve rapidamente ou isoladamente,
pois ninguém cria do nada. Ela se relaciona aos estímulos e conceitos apropriados
do passado e aliados com os do presente, não é algo mecânico ou estático. O fato
34
de observarmos pouco, de não estimularmos nossa percepção através de leituras
críticas e pensadas, de aceitarmos um universo pronto e estagnado oferecido pelo
comodismo consumista nos torna seres incapazes de estabelecer um processo
cognitivo voltado para a criatividade.
É nesse contexto mecanizado que podemos perceber mercadorias
produzidas em massa, experiências e idéias individuais infinitamente reproduzidas e
expostas. O universo pedagógico que vem ignorando ou vivendo no faz-de-conta
deve buscar formas de perceber esses novos “textos” e de fazer emergir leituras
desse novo contexto. A criatividade desenvolve-se também por meio da leitura de
imagens e da apreciação estética reflexiva. O universo divide-se em questões
políticas e sociais de sobrevivência, porém a escola não estimula o aluno a ler e
compreender a realidade de seu meio para, então, conseguir transformá-la. A
experiência estética pode ser um caminho para o conhecimento do próprio ser e do
mundo. “Na experiência estética os meus sentimentos descobrem-se nas formas
que lhes são dadas, como eu me descubro no espelho. Através dos sentimentos
identificamo-nos com o objeto estético, e com ele nos tornamos um” (DUARTE
JÚNIOR, 1998, p. 93).
Nesse jogo de leituras e descobertas estéticas, de admirações e vivências é
que o sujeito se constrói, compreendendo seu contexto, as relações com o mundo,
desfrutando prazeres e desvelando ideologias.
Em meio a tanta tecnologia, a tantas imagens oníricas, belas e luxuosas, o
contraste da necessidade: vemos ruas servindo de dormitório, de banheiro, com atos
íntimos que ficam à mostra de olhares de estranhos, onde existir em espaços
públicos é estar sob a vigilância de olhares censuradores, repreensivos... Tudo isso
convive com as imagens publicitárias no mundo dos objetos, dos desejos e dos
sonhos, produzindo nos seres humanos sentimentos latentes e pulsantes que
alimentam, ao mesmo tempo, fantasias e contradições.
Se o modernismo expressa uma nostalgia utópica que antecipa a
reconciliação da função social com a forma estética, o pós-modernismo
reconhece sua falta de identidade e mantém viva a fantasia. Cada postura
representa portanto uma verdade parcial; cada um recorre “novamente”,
enquanto perdurem as contradições da sociedade de consumo (BUCK-
MORSS, 2002, p. 425).
Todo mundo é um consumidor em potencial, seja através do olhar, seja do
35
sonho; cada indivíduo é capaz de lançar um significado totalmente novo a uma
mesma imagem, eternizando potenciais, fazendo aflorar novas experiências e
preservando as existentes. O comportamento midiático criou uma certa
colonização dos cérebros, de tal modo que os educandos nascem observando cores
e fundos voltados às ideologias dominantes através da TV, do cinema, dos
videogames, e raciocinam através de um discurso que lhes é transmitido pela
imagem.
A escola ainda se constitui com características formatadas e autoritárias, ao
passo que as informações midiáticas aparecem num contexto entusiasmante,
fascinante e colorido, num jogo de realidade e ficção. As instituições escolares
pouco trabalham o lúdico, o imaginário, as representações; portanto, deixam uma
lacuna na formação da identidade. Não queremos aqui criticar a importância dos
“conteúdos escolares”, mas o modo de propô-los.
A relação de identificação conceitual através de uma experiência de leitura de
imagem significativa leva a sentimentos criados pela singularidade individual do
aluno. Dessa experiência podem surgir inúmeras formas de expressão artística que
formarão a atitude de ser sensível, que poderão se desenvolver a partir de
potencialidades estimuladas pelas experiências, transformando-se em significações
marcantes do conhecimento.
Crescer, saber de si, descobrir seu potencial e realizá-lo: é uma
necessidade interna. É algo tão profundo, tão nas entranhas do ser, que a
pessoa nem saberia explicar o que é, mas sente que existe nela e es
buscando o tempo todo e das mais variadas maneiras, a fim de poder
identificar-se na identificação de suas potencialidades (OSTROWER, 1990,
p. 6).
Existe uma ampla relação entre as experiências, a sensibilidade e a
criatividade. Nessa rede as vivências levam nossa imaginação a intuir, ou seja, a
despertar um momento luminoso no qual o senso da realidade é transformado em
idéias. A fusão entre a razão e a sensibilidade para o despertar da emoção leva a
um instante em que a sensação de satisfação é indiscutível; o aluno ganha um brilho
inquietante e motivador que o impulsiona a querer mais, a vivenciar situações
prazerosas na escola. É um despertar para a participação ativa cativada pela
experiência, esta capaz de resgatar a auto-estima trilhando novos caminhos
educacionais.
36
1.3 A força da imagem no ensino da arte
Toda leitura ocorre dentro de um contexto social, cultural e estético, que
configura sentidos e provoca significados. Percebemos que através das imagens é
possível desenvolver um sistema educacional que permita à criança, ao adolescente
ou ao adulto o ato de exercer uma consciência interrogante.
Os padrões de certo e errado, a lógica social e as regras que permeiam o
meio sociocultural do indivíduo o ditados muito cedo pela família, pela escola e
pela própria sociedade. As crianças sempre buscam estar de acordo com os
padrões dos adultos, por não terem meios para conhecer e entender seu próprio
mundo. Faz-se necessário que o educando, ainda nas séries iniciais, tenha
possibilidades de brincar, de conhecer a si próprio, de desenvolver aptidões, de
sonhar e recriar seu mundo, fantasiando e expressando suas angústias. Ele precisa
construir de forma significativa uma reflexão sobre si próprio, como nos explica
Humberto:
Atuando como força mobilizadora de encantadas descobertas a serem
partilhadas e de surpresas que irão nos permitir novas formas de ver e
sentir, a arte trabalha com a invenção de sonhos, intransferíveis, mas
deflagradores de outros sonhos, animadores da aventura de viver a
imaginação (2000, p. 28).
Cada indivíduo possui particularidades. É preciso que se construam espaços
onde ele possa se questionar sobre o que gostaria de ser, que ele possa imaginar e
sonhar com as coisas que poderiam ser diferentes, embarcar nas histórias
construindo um mundo lúdico. Todavia, a criança hoje quer ser como o adulto, adota
padrões de beleza, sonha com roupas e maquiagens que não condizem com sua
idade. E os adultos não se encontram preparados para trabalhar com a reflexão
sobre os apelos consumistas existentes.
O indivíduo acaba preso aos padrões rígidos do certo e do errado, do belo e
do feio, e a realidade rígida e dura fica preestabelecida. Não percebemos que
necessitamos abrir janelas, olhar por diversos ângulos para compreender o que nos
norteia, ou a nós mesmos. A curiosidade e a investigação propostas de forma
interessante nas aulas de artes levam o indivíduo ao autoconhecimento e ao
rompimento desses padrões.
37
Para nós, seres humanos irremediavelmente destinados à curiosidade,
experimentar significa investigar, testar possibilidades, cotejar resultados,
conhecer os limites de nosso universo sensível, na busca de sua ampliação.
Significa, também, autoconhecimento e procura incessante de espaços mais
arejados e generosos para a criação (HUMBERTO, 2000, p. 29).
Muitas vezes a socialização e o processo escolar acabam sufocando a
imaginação, pois a criança, ao chegar à instituição de ensino, encontra um olhar
absolutamente adulto. Inúmeras vezes o encontra educadores sensíveis ao
mundo infantil, os quais se esquecem de que a imaginação e a fantasia são os
alicerces que formam o potencial criativo. No ensino da arte devem ser abordadas
inúmeras formas de linguagem, para que o indivíduo consiga, ao menos, conhecer
diferentes elementos que permeiam o universo artístico. Porém, muitas vezes o
fazer torna-se vazio, sem contextualização ou ligação com o cotidiano do indivíduo.
O desenvolvimento de um pensamento que se relaciona com essas
linguagens cria um discurso verbal e imaginativo que se liga como uma rede ao
pensamento científico relacionado à própria lógica. Esse desenvolvimento ocorre no
ensino da arte através da captação e da leitura de imagens. Segundo Barbosa
(1997), a produção de arte faz a criança pensar inteligentemente acerca da criação
de imagens visuais, juntamente com a contextualização e a leitura de imagens,
relacionando-as tanto ao cotidiano quanto à produção dos grandes artistas,
produzindo um indivíduo consciente e crítico. Estando a aprendizagem ligada ao
processo visual é indiscutível a formação de leitores sensíveis, capazes de perceber
as diferenças, as ideologias e o seu próprio contexto.
Este mundo cotidiano está cada vez mais sendo dominado pela imagem. Há
uma pesquisa na França mostrando que 82% da nossa aprendizagem
informal se faz através da imagem e 55% desta aprendizagem é feita
inconscientemente (BARBOSA, 1997, p. 34).
Com a leitura de imagens abordadas como um exercício constante,
estaremos recriando a alfabetização visual, preparando o indivíduo conscientemente
para a decodificação dos elementos formais que estão relacionados à gramática
visual. Essas leituras devem fazer revisitas ao passado, observando a qualidade e a
tecnologia atual e suas relações com momentos anteriores.
Quando falamos da imagem no ensino da arte, normalmente a associamos a
um quadro emoldurado ou a uma escultura. Mas devemos abordar em nossa prática
38
também as imagens vindas da televisão e do cinema, ou seja, não trabalhar apenas
com a imagem fixa, mas relacionar a gramática da imagem em movimento. Com
isso, podemos estabelecer ligações e criar novas leituras, como, por exemplo: como
será essa imagem sem o som? Ou, ainda, cobrindo a tela e ocultando a imagem,
imaginar a que sons estão relacionadas às cenas escondidas; quando retiramos o
que cobre a tela, as reações dos educandos o diferentes e a leitura que irão
realizar será diferente da anterior. Conforme Buoro:
A imagem da arte requer, portanto, o cultivo de um olhar sensível, que
desvele no educador a possibilidade do conhecimento igualmente sensível,
a fim de que esse sujeito possa fazer-se agente mediador que trabalha com
arte, utilizando, para isso, os modos de aprender pela via da sensibilidade
que constrói um saber; ao fazê-lo, também instaura uma consciência visual
mais aguçada em seus alunos (2002, p. 64).
O currículo não pode ser simplesmente lindo na teoria e simplório e pobre na
prática. É preciso ousar, criar, através de experiências, leituras de imagens que não
sejam massantes e desinteressantes aos educandos, respeitando suas
necessidades, seus interesses e seu desenvolvimento, os quais são diferentes em
cada indivíduo, conforme os estímulos relacionados ao meio sociocultural em que
estão inseridos. Desenvolve-se, dessa forma, um modo integrado de experiências e
sensações.
O objetivo da arte na educação, que deveria ser idêntico ao propósito da
própria educação, é desenvolver na criança um modo integrado de
experiência, com sua correspondente disposição física “sintônica”, em que o
“pensamento” sempre tem seu correlato na visualização concreta em que
a percepção e o sentimento se movimentam num ritmo orgânico, numa
sístole e diástole, em direção a uma apreensão mais completa e mais livre
da realidade (READ, 2001, p. 116).
Sabe-se que cada disciplina precisa ser abordada com integridade a ser
preservada e respeitada e que a arte-educação foi e é muito discriminada. Muitas
vezes, no ensino fundamental a arte é considerada ilustração para as outras
disciplinas. Cabe ao educador mostrar sua autonomia, revelando aos educandos
que as informações científicas sobre o ver e o pensar contribuem para o
desenvolvimento da própria personalidade transformando a formação do ser. O
produto e a própria consciência do olhar são fruto de uma postura coerente perante
à cultura e os meios socioculturais adotados pelo orientador.
Para que ocorra uma apropriação significativa das leituras de imagens é
39
necessário relacioná-las ao contexto no qual foram construídas. É nessa hora que a
história da arte liga-se à situação abordada. Nenhuma imagem parte do nada, ou
permeia sem objetivo. Assim, concretizamos a simultaneidade de diversas formas de
pensar num mesmo ato de conhecimento, sem preconceitos ou restrições. A análise
crítica da materialidade da obra, os princípios estéticos e semiológicos, gestálticos
ou iconográficos devem ser selecionados conforme o momento, o local e a imagem
selecionada. Segundo Barbosa:
A metodologia de análise é de escolha do professor, o importante é que
obras de arte sejam analisadas para que se aprenda a ler a imagem e
avaliá-la, esta leitura é enriquecida pela informação histórica e ambas
partem ou desembocam no fazer artístico (1997, p. 37).
Existe uma grande integração entre a busca de significados pelo educando e
a atração provocada pela imagem e, neste caso, o educador deve ser a ponte que
irá concretizar a leitura da imagem, ligando a descrição e a subjetividade,
conhecendo características das classificações de estilo e as relações que estas
exercem com o tempo, a economia e o desenvolvimento tecnológico, pois a
psicologia social sempre interfere na valoração ou no julgamento das qualidades
formais do objeto. “Cada geração tem direito de olhar e interpretar a história de uma
maneira própria, dando um significado à história que não tem significação em si
mesma” (BARBOSA, 1997, p. 39).
As imagens provocam nos observadores reações singulares, diferentes, de
acordo com o envolvimento existencial e sentimental do aluno. Elaborando uma
intuição estética na primeira impressão em relação ao objeto e, conseqüentemente,
uma reação, essas devem ser objeto de discussão. Uma prática problematizadora
proporciona um entendimento crítico dos conceitos visuais e formais, provocando
novos significados, reapropriando-se da primeira impressão, porém retrabalhando-a.
O processo de fruição está interiorizado na apreciação consciente.
Mejorar y dignificar la vida en todas sus manifestaciones, es compromiso de
todos es de cada uno de los seres humanos. Esto presupone por parte del
docente, investigar, conocer y utilizar, metodologías y recursos
incentivadores; teniendo en cuenta el perfil del grupo destinatario y de los
individuos que lo integran; para despertar en ellos el deseo de aprender y
de pensar (MELCHIORE, 2004, p. 154).
Nos últimos anos, o que ocorreu foi uma falsa educação do olhar, a livre
40
expressão sem contextualização, o fazer por fazer sem um objetivo concreto, o que
acarretou falhas no desenvolvimento da capacidade crítica de avaliar a própria
produção do educando e isso não ocorreu apenas no ensino da arte, mas estendeu-
se às demais disciplinas, que continuam a aplicar conteúdos fragmentados sem
interdisciplinaridade ou relação com o meio sociocultural do aluno. Criou-se um
consumidor ávido e acrítico de imagens, impregnado de necessidades fúteis e sem
padrões avaliativos para a transformação consciente de sua realidade. Fica
evidente, portanto, a necessidade de educarmos para um olhar sensível e
transformador, que possa interagir com o universo interior e exterior do ser.
À medida que a visibilidade ativa um repertório construído e captado por um
olhar sensível, configurado pela obra de arte, ela abandona a mera
condição de atributo do mundo externo e passa a existir na interação entre
realidade interior versus realidade exterior, participando como competência
incorporada pelo sujeito em seu contato com o mundo. A ampliação da
consciência visual possibilita a construção de um repertório de imagens
significativas para o sujeito, capacitando-o a imaginar, criar, compreender,
ressignificar, criticar, escolher entre uma infinidade de ações possíveis
(BUORO, 2002, p. 73).
Na escola aprende-se muito pouco acerca de nossas emoções, tensões, as
quais podem se revelar em ltiplas reações tanto na vida escolar como na própria
sociedade. um ambiente hostil e agressivo, no qual a violência, tanto na escola
quanto nas ruas, domina a mentalidade dos alunos desde as ries iniciais até na
própria graduação. Não se deve apenas culpar o sistema, a falta de recursos
básicos para sobrevivência, porque existem inúmeras pessoas que encontram na
dificuldade a felicidade e a maturidade para sobreviver. As instituições de ensino
devem se tornar mais humanas, ressaltar menos os erros, aprender a elogiar e
resgatar a auto-estima. Questiono você educador: quantas vezes recebeu um elogio
pelo seu trabalho ou por alguma experiência positiva realizada pelos seus colegas
ou superiores durante o último ano? E quantas vezes você elogiou algum aluno em
sala?
A arte tem a função de relacionar-se com o universo emocional, porém educar
a emoção é um processo multicultural ligado à família, a toda escola e a todas as
disciplinas. Mas quando falamos da educação do olhar não podemos deixar de
ressaltar que também se constrói na escola uma imagem acerca do mundo, dos
outros e de si mesmo, e essa construção da imagem também vem sendo esquecida.
41
O desenvolvimento da capacidade criadora também está no ato do
entendimento global de si e do meio sociocultural em que estamos inseridos, através
da decodificação das múltiplas significações. Portanto, o hábito de utilizar as
diferentes linguagens estéticas favorece a formação de um conjunto de valores
equilibrados para a construção de uma sociedade mais solidária, digna e consciente.
El uso de los lenguajes estéticos, de sus expresiones y de sus contenidos,
favorece la formación de una personalidad multilateral, que encuentra en el
propio sensus aestheticus un posicionamiento equilibrado entre la parte y el
todo, entre yo y el otro, entre objeto y sujeto, entre realidad e imagen, entre
desarrollo y paralización. El arte es capaz de establecer uno de los
equilibrios más convincentes respecto a la persona en proceso de
formación; puede incluso convertir-se en un modo de ser, en un paradigma
vital, en un corroborador de experiencias enriquecedoras en el nivel del
inconsciente y del consciente, en un canal para la expresividad, la
creatividad o la actitud crítica (GENNARI, 1997, p. 76).
Quando nos colocamos frente a uma imagem desconhecida, seja uma obra
de arte, seja uma propaganda, sentimos um certo grau de originalidade, de
criatividade do objeto frente aos valores preestabelecidos e tentamos adivinhar o
que o artista quer nos dizer. Esse primeiro contato nos leva a essa atitude
naturalizada pelo ensino tradicional, porém o devemos perguntar o que o autor
quis dizer, pois ele não é o único dono da verdade ou da interpretação absoluta.
Devemos, sim, questionar sobre o que ela nos provoca, pois não somos detetives,
ou adivinhos, à procura de respostas prontas e iguais. Essa não seria uma
pedagogia que trabalha com as diferenças. A criatividade e a emoção crescem à
medida que compreendemos os efeitos produzidos pelo corpo, pela razão e pelo
espírito perante o estímulo.
El paradigma de la creatividad, repleto de cognitividad y emotividad,
sustentado por el bios y el logos, abierto a la recepción de la información
icónica y a la generación de la información semántica, dirige la practica de la
mirada y la conduce desde los mundos reales a los imperios de la ficción,
desde los reinos de la imagen a los universos de lo imaginario (GENNARI,
1997, p. 83).
Ao falarmos do multicultural, do aprender com as diferenças, logo nos vêm à
mente as questões sociais e raciais, porém esquecemos que as diferenças estão
também nas respostas, nos meios de sentir, de interpretar ou provocar. Inúmeras
instituições de ensino insistem em dizer que trabalham e aprendem com elas, mas
cobram do aluno respostas idênticas às dos livros didáticos. O choque de
reconhecimento elimina a obviedade do observador-leitor e afirma o seu poder de
42
redimensionar a maneira convencional de ver e pensar as coisas. A expressividade
da apreensão e decodificação torna-se mais ampla, singular e consciente à medida
que eu não me preocupo em responder àquilo que o educador quer ouvir, e, sim, o
que senti em relação ao objeto.
Criando uma espécie de satisfação pessoal pela valorização da
individualidade, verificando onde e como o educando chegou a certo resultado,
estamos recriando um contexto que se apropria da sensibilidade de um tempo e
espaço próprio do lugar onde está sendo observada. Cria-se um conhecimento
híbrido que contempla o contexto da criação através da história da arte e as
sensações individuais que o observador cria à medida que assimila o objeto e
insere-o no seu mundo cognoscível. “[...] a satisfação do objeto demonstra a
adequação ao mundo conhecido do observador, obrigando-o a tomar consciência
deste mundo” (BARBOSA, 1997, p. 42).
Não se deve suprimir a imagem, mas provocar a possibilidade do observador
de exercitar sua capacidade de criar e recriar múltiplas interpretações. Também nas
rodas de apreciação das produções de sala, o exercício da capacidade dos
educandos de observarem conscientemente seus trabalhos é muito importante para
a formação de uma nova consciência, explorando novos significados que surgem da
junção de diferentes olhares.
Para Feldman (1999), a compreensão da linguagem artística implica o
desenvolvimento das técnicas, das críticas e dos processos de criação e, portanto,
das relações sociais, culturais, criativas, psicológicas e antropológicas que permeiam
os seres humanos em seu cotidiano. Entendemos que somente concretizaremos o
desenvolvimento ativo da leitura da imagem quando pararmos de negar a sua
relação com o meio sociocultural em que o educando está inserido, pois a
capacidade de sonhar, de interagir e vivenciar desenvolve-se através do ato de ver,
de sentir e refletir. Essa junção de elementos está diretamente ligada à rede dos
princípios estéticos, éticos e históricos, os quais o indivíduo vivencia tanto na
instituição de ensino quanto fora dela.
Naturalizamos o ato de não prestar atenção no que vemos, ou, quando o
fazemos, estamos simplesmente ligando o olhar à descrição. Não que esta última
não seja importante, mas devemos ir além. Observar o nosso comportamento
enquanto olhamos talvez seja o primeiro passo; buscar entender o meu significado
43
em relação à impressão obtida através do olhar fornece subsídios para que a
argumentação em relação a outros momentos do ensino da arte possa ser mais
enriquecida pelas experiências já apropriadas.
A leitura de imagem orienta a produção como um instrumento de ensino, não
como um mero fazer; trabalha a educação estética, a percepção visual, as
simbologias, as relações espaciais, a relação de aproximação ou distanciamento
com o objeto, a criação de significados através da orientação visual. Por isso não
pode mais ser ignorada pela escola. À medida que amadurecemos, vamos fazendo,
através de repetidos encontros com o objeto, diferentes leituras e novos
julgamentos; nosso próprio conceito de belo vai se reconfigurando.
São inúmeras as necessidades de mudança no processo de ensino da arte,
mas pouco tem se discutido acerca da aprendizagem sensório-perceptual. Sabemos
que os processos de criação estão diretamente ligados aos estímulos visuais.
O importante não é ensinar estética, história e crítica da arte, mas
desenvolver a capacidade de formular hipóteses, julgar, justificar e
contextualizar julgamentos acerca de imagens e de arte. Para isso usa-se
conhecimentos de história, de estética e de crítica de arte (BARBOSA,
1997, p. 64).
As imagens conseguem expressar desejos, sensações e sentimentos que as
palavras usuais não dão conta de explicar, através de uma complexidade de
elementos, como a variação de linhas, cores, texturas, espaços, ritmos, movimentos,
equilíbrio, enfim, uma infinita gama de apelos capazes de nos influenciar tanto
consciente quanto inconscientemente no cotidiano. Devemos deixar a imaginação
visual explorar as imagens guiadas pela estética empírica, não apenas ficar restritos
ou presos a roteiros ou métodos preestabelecidos, explorando as mutações, as
aparências, os diferentes pontos de vista sobre o material. O ato da observação é
um suporte interpretativo, de modo que o observador possa recriar mentalmente ou
plasticamente a sua posição em relação a ela.
1.4 Fotografia: uma proposta de reeducação do olhar
O fotógrafo consegue transpor suas ideologias através da imagem; valendo-
se de sua intencionalidade, tem em suas mãos o poder de dar ênfase a detalhes, de
recriar situações, formando e reformulando opiniões. Muitas vezes o observador não
44
está apto a perceber essa manipulação, não desvenda a intencionalidade e
tampouco explora o potencial da cena exposta. As “ilustrações” servem apenas
como um atrativo visual, e as informações contidas nas entrelinhas não são
decodificadas, como assinala Kossoy:
Equívocos ocorrem pela desinformação conceitual quanto aos fundamentos
que regem a expressão fotográfica, o que os leva a estacionarem apenas
no plano iconográfico, sem perceberem a ambigüidade das informações
contidas nas representações fotográficas (2002, p. 20).
A extensão da abrangência de uma imagem é incalculável, e considerá-la
como algo esgotável em si é algo o ingênuo que não cabe mais nesse circuito de
sobrevivência. Nesse contexto, o ser humano passa a ser escravizado pelos apelos
visuais, como um ser alienado pela sua criação.
O observador comporta-se como um animal faminto, que persegue
vorazmente seus desejos de contemplação. Nesse jogo, seu olhar caminha num
sentido espiral, sempre retornando aos detalhes que para ele são mais atraentes;
seu olho permanece vagando pelas formas, cores e planos, afasta-se e retorna
numa dança sincrônica com o real e o imaginário.
No entanto, se o observador ingênuo percorrer o universo fotográfico que o
cerca, não poderá deixar de ficar perturbado... Era de se esperar: o universo
fotográfico representa o mundo fora através deste universo, o mundo. A
vantagem é permitir que se vejam as cenas inacessíveis e preservar as
passageiras (FLUSSER, 2002, p. 37).
A imagem é capaz de difundir falsos valores e referenciais fragmentados; a
velocidade com que exercemos nosso ato de olhar, de ver e sentir não nos
proporciona oportunidade de reflexão; esgotamo-nos pela repetição, acreditamos na
sua insistência e digerimos falsos conceitos; viciamo-nos a contemplar, criando um
muro que reduz nosso espaço de expressão para ampliar o espaço do outro, espaço
este que surge de acordo com interesses, alianças e valores manipulados. Criamos
uma expectativa pouco saudável acerca desse acolhimento alimentando desejos
fúteis, ampliando nossa solidão.
Existe, na verdade, um gerenciamento internacional da cultura, orientador
de parâmetros a serem seguidos que, se obedecidos, iriam nos aproximar
de um gosto predeterminado, mas este realizar-nos como autores, pela
expectativa criada em torno de nosso possível acolhimento. Estaríamos
negociando nossa sensibilidade no varejo (HUMBERTO, 2000, p. 14).
45
As imagens não podem ser aceitas como um espelho real da verdade; sua
ambigüidade precisa ser desvelada pela contextualização, que está ligada ao
contexto sociocultural tanto do observador quanto do seu produto. A ausência de
uma contextualização, da provocação de confrontos, cria uma estagnação mental e,
por conseqüência, o congelamento da criatividade.
A realidade da fotografia não corresponde (necessariamente) a verdade
histórica, apenas ao registro expressivo da aparência... A realidade da
fotografia reside nas múltiplas interpretações, nas diferentes “leituras” que
cada receptor dela faz num dado momento... (KOSSOY, 2002, p. 38).
Emancipar o observador é parte de uma tarefa de reeducação social, pois
esse comportamento apático enraizou-se como um ritual macabro e acrítico que
permeia naturalmente o cotidiano. Quebrar o paradigma da estagnação mental
equivale ao redimensionamento educacional, resgatando o leitor do absurdo abismo
criado pela ausência de contextualização e reflexão.
A poluição visual torna-se um hábito natural, que encobre, distorce, mascara.
A implantação da invisibilidade vai impregnando-se na capacidade de percepção, vai
encobrindo nossa personalidade; por conseqüência, a singularidade do gosto torna-
se vulnerável a sistemas publicitários ordenados que, automaticamente,
redimensionam nossa valoração acerca dos valores e do próprio universo.
As imagens assimiladas deixam de ser estáticas para se tornar parte de um
conjunto dinâmico, o imaginário. Sonhamos com elas, recriamos, experimentamos
novos desejos; ficamos encantados, hipnotizados, criamos um gosto estranho pelos
noticiários violentos, que cotidianamente formam um ciclo vicioso. Estamos, enfim,
enfeitiçados pela poluição visual.
A imagem... é na origem e por função, mediadora entre os vivos e os
mortos, os seres humanos e os deuses; entre uma comunidade e uma
cosmologia; entre uma sociedade de sujeitos visíveis e a sociedade das
forças invisíveis que os subjulgam. Essa imagem não é um fim em si, mas
um meio de adivinhação, defesa, enfeitiçamento, cura, iniciação (DEBRAY,
1994, p. 35).
Essa veiculação de imagens não apresenta uma preocupação com as
conseqüências reais da cultura humana. A supervalorização dos bens materiais está
comercializando almas, destituindo o ser humano em suas qualidades humanas.
Esse desgaste da sensibilidade naturaliza a frieza dos acontecimentos, tornando
46
natural conviver com a fome, a violência, a dominação...
Essas imagens, entretanto, uma vez assimiladas em nossas mentes,
deixam de ser estáticas; tornam-se dinâmicas e fluídas e mesclam-se ao
que somos, pensamos e fazemos. Nosso imaginário reage diante das
imagens visuais de acordo com nossas concepções de vida, situação sócio-
econômica, ideologia, conceitos e pré-conceitos (KOSSOY, 2002, p. 45).
Portanto, essa capacidade de receber e guardar imagens, sons e sentimentos
interfere na formação da personalidade, dos sentimentos que preservamos em
relação à vida e ao universo. Precisamos nos reciclar, aprender a reeducar a visão
em busca dos valores perdidos; abrir espaço para sensações prazerosas que
podemos observar nas pequenas coisas, no sentir a brisa, no som das ondas do
mar, numa pequena flor. Não precisamos ficar algemados ao consumismo e à
poluição sentimental.
CAPÍTULO II
A FOTOGRAFIA: UMA FORMA DE REEDUCAÇÃO DO OLHAR
2.1 História da fotografia
A fotografia surgiu no contexto da Revolução Industrial, quando se sucedeu
uma série de invenções que interferiram na história moderna. Com a imensa
procura, ocorreu o gradativo aperfeiçoamento da técnica fotográfica.
A partir de 1860, surgiram grandes impérios industriais e comerciais na
produção de equipamentos e materiais fotossensíveis. A câmara teve, então, uma
função documental, visto que eram registrados grandes acontecimentos, costumes,
monumentos, entre outros, proporcionando ao homem obter um conhecimento mais
amplo das diferentes realidades que aentão lhe eram transmitidas pela escrita ou
pela fala. Surgiu um novo processo de conhecimento do mundo. Foi nessa época
que a imagem ganhou força através da indústria, com a possibilidade de
multiplicação de imagens, de difusão de hábitos e fatos de povos distantes.
Uma fotografia é o testemunho de algo extinto, mas permanece como
portadora de possibilidades de múltiplas leituras, principalmente quando foi
produzida com apaixonado empenho, guiada por olhos informados e pela
percepção sensível da vida (HUMBERTO, 2000, p. 41).
O mundo tornou-se ilustrável com a capacidade de recordação e de criação e
abriram-se novos caminhos para a própria história da arte. Eram registros precisos
de aparências e fatos absorvidos como verdade absoluta, não questionadas. Foram
as imagens produzidas a partir de 1840 captadas como documentos visuais, cuja
função era revelar informações, congelar existências, que naturalmente estavam
carregadas de emoções.
Nessa época a fotografia ainda não tinha um pleno reconhecimento como
elemento documental, fonte de investigação e pesquisa científica. Embora
existisse uma certa conscientização em relação à importância da imagem como
48
fonte de informação histórica, um certo preconceito ainda permeava a sociedade da
época.
Sua importância enquanto artefatos de época, repletos de informações de
arte e técnica, ainda não foi devidamente percebida: as múltiplas
informações de seus conteúdos enquanto meios de conhecimento tem sido
timidamente empregadas no trabalho histórico (KOSSOY, 2001, p. 28).
Deve-se lembrar que, no século XIX, uma parcela considerável da população
era analfabeta; por isso, a necessidade de informação visual era cada vez maior,
tanto para a propaganda política como para a comercial. Então, começaram a ser
estabelecidas diferenças crescentes entre as modalidades e os ritmos da produção
de imagens. Nesse contexto surgiram novas exigências para a sua produção:
rapidez na execução, baixo custo, qualidade e alta capacidade de reprodutilidade.
Desde a criação do processo litográfico em 1797 por Alois Senefelder, que
determinou um ponto culminante na definição da importância da reprodução da
imagem, surgindo os retratos em miniatura, a rapidez de execução, preço razoável e
produção em rie, é importante perceber que muitas pessoas interessaram-se pelo
processo. É claro que os pesquisadores químicos começaram a buscar soluções
que ampliassem as novas possibilidades de consumo.
Para que fosse possível obtermos imagens através da luz, foram
necessários muitos anos, muitas descobertas e invenções. Descobertas
óticas e químicas. Invenções de artefatos e mecanismos. A primeira destas
invenções foi sem dúvida a Câmera Escura (CAMARGO, 1999, p. 56).
No final do século XVIII surgiram na França e na Inglaterra inúmeras
experiências à procura de superfícies sensíveis à luz e para fixar as imagens, com a
utilização de sais de prata. Começou-se a relacionar esses processos à câmara
escura, onde os princípios da fotografia começaram a engatinhar. Nessa sucessão
de experiências surgiu a daguerreotipia.
O daguerreótipo ganhou muita aceitação, pois proporcionou uma
representação precisa e fiel da realidade, produzindo uma imagem mais nítida e
detalhada; sendo um procedimento simples e acessível, possibilitou-se sua grande
difusão.
49
Rouillé analisa o entusiasmo despertado pelo daguerreótipo em termos de
lógica industrial. O procedimento permite a decomposição e a
racionalização da produção das imagens numa série de operações técnicas
ordenadas, sucessivas, obrigatórias e simples. O ato quase místico e
totalizador da criação manual da imagem cede lugar a uma sucessão de
gestos mecânicos e químicos parcelados. O fotógrafo não é o autor de um
trabalho minucioso, e sim o espectador da aparição autônoma e mágica de
uma imagem química” (FABRIS, 1998, p. 14).
Pode-se classificar em três momentos importantes a descoberta do processo
fotográfico: as primeiras experiências, o colódio úmido e a gelatina bromuro –, que
acabaram por levar à criação da primeira câmara portátil. Nesta pesquisa não
aprofundaremos como esses processos ocorreram, pois nosso objeto de estudo é o
modo como criaram o mito da fotografia como registro.
Inicialmente, a fotografia era considerada uma obra de arte, cujo preço era
alto e, por isso, não ostentada por muitos. Mas por volta de 1880 a fotografia tornou-
se um fenômeno comercial, inúmeros truques seduziam a clientela e surgiu uma
relação mais fria e consumista entre o homem e a máquina. Paralelo a esse
processo, por volta da década de 60, a fotografia pintada garantiu ao artista
fotógrafo a sua consagração, retratando a fidelidade do retrato e criando uma
fisionomia agradável.
A obra fotográfica passou de súbito a ser adquirida como objeto de coleção:
criava-se, por fim, um mercado e fotografias de épocas mais afastadas,
assim como as contemporâneas, passaram a ser vistas com maior atenção
e renovado respeito (KOSSOY, 2001, p. 126).
Disdéri, nesta época, fotografou seus clientes de corpo inteiro e os cercou de
elementos imaginários, compondo um novo espaço e mascarando situações. Houve
uma certa idealização, criando-se padrões de beleza para o indivíduo. Nos ateliês
surgiram telões pintados, decorações exóticas, enfim, alguns aparatos que exalavam
status.
Nesse momento, a fotografia criou em torno da imagem um mito, um registro
do belo, de um momento gico, e com a criação da reprodução em massa, ela
passou a freqüentar o cotidiano do povo através das ilustrações em jornais, revistas,
auxiliando o processo industrial. Quanto mais inovações técnicas surgiam, mais o
ser humano naturalizava seu olhar, digerindo e ostentando tudo, numa falsa
necessidade de consumo criada pelo seu inconsciente.
50
O universo fotográfico está em constante flutuação e uma fotografia é
constantemente substituída por outra. Novos cartazes vão aparecendo
semanalmente sobre os muros, novas fotografias publicitárias nas vitrines,
novos jornais ilustrados diariamente nas bancas. Não é a determinadas
fotografias, mas justamente a alteração constante de fotografias que
estamos habituados. Trata-se de novo bito: o universo fotográfico nos
habitua ao progresso. Não mais o percebemos. O progresso se tornou
ordinário e costumeiro; a informação e a aventura seriam a paralisação e o
repouso (FLUSSER, 2002, p. 61).
Além de influenciar a opinião pública em julgamentos criminais, a fotografia
começou a ser utilizada nas expedições para documentar vestígios das civilizações
passadas. Porém, nem sempre o objetivo das expedições fotográficas era apenas
informativo ou documental, pois começou a haver um intuito propagandista,
tornando-se aliada da expansão colonialista.
A fotografia apresenta uma forma híbrida: é uma arte exata e, ao mesmo
tempo, uma ciência artística. Os primeiros fotógrafos retrataram em seus ensaios a
tradição pictórica, com retratos, paisagens, naturezas-mortas, evidenciando uma
dimensão ilusória, por contemplar imagens apenas relacionadas à natureza.
Por volta de 1865, a fotografia confrontou-se com a gravura, que se
demonstrou incapaz de traduzir a fidelidade dos retratos com a mesma exatidão
dessa nova arte mecânica. Surgiram inúmeros preconceitos, manifestos e críticas ao
negativo, discutindo-se a sua legitimidade artística.
A fotografia não possibilitaria apenas a decodificação das obras dos
grandes mestres. Permitiria rivalizar com elas e até mesmo superá-las por
proporcionar uma nova percepção da natureza e em seus aspectos
cambiantes e fugidios. E ainda mais: contribuindo para a educação visual do
público, a fotografia propiciaria o estabelecimento de uma escala de valores
entre os artistas, graças a qual os profissionais se distinguiriam dos
amadores... (FABRIS, 1998, p. 184).
Em seguida surgiu a fotomontagem, que utiliza alguns truques para evitar o
feio, o desagradável, corrigindo detalhes, e assim, tornando as imagens mais belas,
misturando realidade e técnicas. No século XIX, Degas foi um dos artistas que
utilizaram a nova visão que a fotografia proporciona, recriando composições com
contornos sintéticos, cortando figuras, alterando angulações, trabalhando-as com giz
pastel...
51
O percurso para a automação da fotografia começa a se tornar visível a
partir da segunda década do século XIX, quando são descobertos os
produtos químicos e processos para a retenção de imagens luminosas e
seu registro. A partir daí, a associação entre o invento da câmera escura e a
descoberta da química sensível à luz, possibilitaram o surgimento da
fotografia como a conhecemos hoje (CAMARGO, 1999, p. 66).
O nascimento da fotografia num ambiente que valoriza o mundano, o
fragmentário, as aparências, num contexto moral em transição, provocou conflitos,
colocando em crise os valores tradicionais da pintura, da gravura e da escultura. A
Revolução Industrial transformou os hábitos do consumidor, que exige uma visão
mais imediata dos fatos, exatidão e fidelidade nas imagens; conduzindo a uma
grande procura da técnica fotográfica, pois ela respondia ao império dos fatos.
A grande exigência visual no século XIX colocou num turbilhão de conflitos o
conceito da própria arte. Quando a fotografia brasileira ganhou ênfase, algumas
questões estéticas começaram a ser formuladas sobre as qualidades formais da
obra, tentando separar a fotografia artística da fotografia comercial. Questionavam-
se a liberdade e a inventividade do artista, o que nos leva a perceber algumas
mudanças nos valores tradicionais da história da arte.
Assim, se por um lado à obra de arte era vista sem nenhuma articulação
com a estrutura social, um setor significativo da historiografia ligada ao
materialismo procurava interpretar a produção artística como determinação
de fatores sócio-econômicos. A dicotomia superestruturada (infra-estrutura)
negava a autonomia da obra de arte para reduzi-la a um simples reflexo de
fenômenos históricos produzidos a sua revelia (FABRIS, 1998, p. 200).
Faz-se necessário compreender os conflitos que nortearam a evolução da
fotografia para perceber como ela se instaurou no cotidiano tão fortemente ligada ao
belo, aos padrões e ideais de beleza. Sabe-se que a apropriação do olhar em
relação à imagem cria suportes para representações individuais que se relacionam
ao meio sociocultural do indivíduo, onde recriam a ordem do imaginário, na qual a
análise e a compreensão consciente estão inseridas.
Percebe-se que, no Brasil do culo XIX, os padrões europeus eram a base
de referências para as criações e valorações na arte. Por outro lado, a fotografia não
tem a função de simples registro que não levanta nenhum tipo de reflexão sobre
suas fontes e qualidades visuais, que se correlacionam às transformações da
produção econômica. “As análises de fenômenos de caráter sócio-econômico e
52
político não parecem dar conta dos processos responsáveis pela formação de novos
padrões de visualidade no final do século XIX” (FABRIS, 1998, p. 201).
Surgem as necessidades relacionadas aos resultados plásticos das imagens,
à escolha da composição, ao enquadramento, à criação de motivos e às variedades
de técnicas e tratamento. A imagem é um conjunto de categorias e esquemas de
percepção, sendo viva e ativa, produzindo representações que são o reflexo da
mentalidade capitalista.
2.2 Pequena biografia de Sebastião Salgado
Sebastião Ribeiro Salgado Junior nasceu em Aimorés, Minas Gerais, em 8 de
fevereiro de 1944. De uma família com oito filhos, ele é o único homem.
No lugarejo de 200 habitantes onde nasceu, perto da pequena Aimorés,
cidade interiorana de Minas Gerais, não havia câmaras fotográficas. O pai
era criador de gado em uma fazenda de 700 hectares, hoje propriedade do
casal. Criança, passou 30 horas dentro de um trem para chegar a capital do
Estado. A sofrida paisagem admirada à janela do vagão marcaria Salgado e
estaria presente em um de seus primeiros ensaios fotográficos: os
trabalhadores das indústrias do Vale do Aço, recorrentes às margens de
toda a estrada de ferro (PAES; DUARTE e VANNUCHI, 2000, p. 29).
Em 1964 começou a estudar economia em Vitória, capital do Espírito Santo, e
terminou o curso em 1967, coincidentemente no mesmo ano em que foi realizado o
primeiro transplante de coração. Em 16 de dezembro desse mesmo ano casou-se
com Lélia Deluiz Wanick. No ano seguinte, cursou pós-graduação em Economia pela
Universidade de São Paulo (USP) e a julho do ano seguinte trabalhou na
Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo.
em 1969, quando o homem pisou na Lua, Sebastião seguiu os cursos de
preparação para doutorado em Economia na Universidade de Paris, Panthéon, até
1971 (mesmo ano em que foi fundado o Greenpeace para protestar contra testes
nucleares no Alasca). Entre 1971 e 1973 trabalhou em Londres para a Organização
Internacional do Café, na área de investimentos, onde participou da diversificação de
plantações de café na África. Em 1973, começou sua carreira como repórter
fotográfico, interessando-se, num primeiro momento, pela seca no Sahel (África) e,
em seguida, pelos trabalhadores imigrantes na Europa.
53
Salgado tirou seu primeiro retrato em 1971, aos 27 anos. Nessa ocasião,
vivia em Paris com sua mulher, a arquiteta Leila Wanick Salgado, que fora
obrigada a comprar uma câmera Pentax para fotografar apartamentos. Seu
marido “roubou-lhe” a câmera por um instante e tirou um retrato seu,
sentada no parapeito da janela, em um dia de sol (PAES; DUARTE e
VANNUCHI, 2000, p. 30)
No ano de 1974 trabalhou para a agência Sygma, em Paris, e viajou para
Portugal, Angola e Moçambique. Em fevereiro desse ano nasceu seu primeiro filho,
Juliano; no ano seguinte entrou para a agência Gamma.
No período de 1977 a 1983, pesquisou as dificuldades da vida dos
camponeses, índios e seus descendentes na América Latina, trabalhando em nove
países, desde o México ao Brasil. Este projeto resultou no Ensaio “Outras Américas”.
Durante todos estes anos, Salgado fotografou, no Brasil, os Garimpeiros de
Serra Pelada, os cortadores de cana do Nordeste, os poucos Ianomâmi que
ainda sobrevivem no sul da Amazônia e os integrantes do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) (PAES; DUARTE e VANNUCHI,
2000, p. 31).
Em 1979 trabalhou para a agência Magnum, continuando seu trabalho sobre
os vários níveis de integração dos imigrantes no círculo social europeu, onde
ressaltou principalmente a França, Holanda, Alemanha, Portugal e Itália. Em agosto
deste ano, nasceu seu segundo filho, Rodrigo.
Em 1982 recebeu pelo Ministério da Cultura da França o Prêmio Eugene
Smith da Fotografia Humanitária, como recompensa do seu trabalho de pesquisa
com os camponeses na América Latina. Entre 84 e 85, em conjunto com a
organização humanitária Médecins Sans Frontiéres, fotografou o efeito arrasador da
seca na região de Sahel na África. Ainda em 1984, recebeu o Prêmio Paris
Audivisuel e Kodak pela publicação do primeiro livro de fotografia; no ano seguinte,
recebeu o prêmio World Press Photo, Holanda, e o Oskar Barnack, na Alemanha,
pelos registros da seca em Sahel.
Os princípios resultantes dessas análises despertaram Salgado para
algumas dezenas de reportagens, realizadas durante sete anos em 45
países. Uma pequena amostra do universo de milhares de imagens
conservadas pelo fotógrafo pode ser observada na exposição Êxodos e nos
dois livros que acompanham a exposição (PAES; DUARTE e VANNUCHI,
2000, p. 32).
Em 1986, como conseqüência das publicações sobre seu trabalho na América
54
Latina e no Sahel, Salgado recebeu inúmeros outros prêmios e, a cada ano
seguinte, novos troféus e condecorações, tornando-se um fotógrafo respeitado no
mundo todo.
No Brasil, em 1977, no mesmo ano em que nasceu a ovelha Dolly na Escócia,
o primeiro animal clonado em laboratório, Sebastião recebeu o prêmio Nacional de
Fotografia, Ministério da Cultura, Funarte, e o prêmio A Luta Pela Terra,
Personalidade de Reforma Agrária, Movimentos dos Sem-Terra.
2.2.1 Êxodos: uma das principais obras de Salgado
Sebastião Salgado apresenta em suas imagens-textos elementos que
representam os deslocamentos populacionais de risco, entre eles os refugiados de
guerras ou perseguidos por problemas políticos e os deslocamentos familiares, por
motivos econômicos, desempregados, sem terra, sem teto, populações indígenas
suprimidas pela carência de políticas públicas e uma acelerada exploração
predatória de florestas e áreas de preservação. Aponta o ato predatório do homem
para consigo mesmo, a expansão de um submundo violento, um ambiente de
exclusão.
Salgado faz o retrato de uma época antropofágica, na qual a depredação do
corpo e da alma é impulsionada pela globalização, ou seja, uma parcela significativa
da população planetária que é excluída socialmente e economicamente, sendo
obrigada a abandonar seus direitos à cidadania, suprimidos em prol do consumismo
desenfreado.
Por identificar-me com as imagens e realidades apresentadas no livro Êxodos
e acreditando que esse capital cultural seja pertinente à realidade dos educandos,
optei por limitar meus comentários a essa edição. No primeiro capítulo desse livro, o
fotógrafo aborda questões pertinentes à fronteira entre o México e os Estados
Unidos, onde inúmeras pessoas provindas de diferentes nacionalidades arriscam-se
no intuito de atingir dentro do território americano condições financeiras e sociais
mais respeitáveis. Também registra o estreito de Gibraltar, através do qual muitos
imigrantes deixam a África e tentam, atravessando o Marrocos e a Espanha, chegar
à Europa. Ainda, no leste da Europa aparecem judeus russos tentando chegar a
Nova York.
55
Outro lugar com intensos deslocamentos populacionais reflexos de intensos
conflitos é o Oriente Médio, como os afegãos e palestinos, os curdos, sem território
pátrio, sem Estado ou elos que lhes permitam uma identidade singular, e os
refugiados de guerra da Ex-Iugoslávia.
No segundo capítulo tematiza visualmente as tragédias do continente
africano, que priorizam a banalização do viver, o gosto do azedo, a negação da
infância, a miséria, epidemias, o desejo da apropriação de riquezas e a exploração
natural e territorial. Surgem aqui imagens de campos minados, de corpos mutilados,
da expansão do terror. E o terceiro capítulo reflete sobre a globalização, a
hegemonia cultural, as migrações rurais/urbanas, o esmagamento de povos
indígenas, o movimento sem-terra...
Percebe-se que o livro tem como objetivo atingir os formadores de opinião,
buscando a sensibilização para um movimento em defesa da vida e da preservação
da humanidade. A rotina acelerada dos trabalhadores, as ideologias neoliberais, as
crises econômicas e políticas acabam mascarando a necessidade de criação de
novas solidariedades e formas de organização voltadas à ética e à cidadania. A
garantia de um futuro que projeta os direitos mínimos de sobrevivência de todos
aqueles que vivem em condições menos favorecidas no meio sociocultural atual
deve ser assegurada. “O olhar dessas crianças estimula nosso sentimento de
urgência na construção de outro modo de ser” (IOKOI, 2000, p. 11).
Os migrantes clandestinos buscam superar, nas fronteiras México/EUA,
câmeras vigilantes capacitadas para iluminação noturna, rádios de alta potência e
equipamentos de identificação biométrica, além de um grande aparato militar. O
sonho de uma vida melhor, economicamente farta, com garantias de consumo
asseguradas pelas propagandas midiáticas, compensa os riscos. Uma pesquisa
elaborada pela Universidade de Huston aponta que, entre 1993 e 1997, o número de
mortos na fronteira foi de 1.183 homens. Um deles foi um brasileiro de 26 anos, que
se afogou ao tentar atravessar o rio Laredo/Texas.
Também os afegãos, pelos inúmeros conflitos, somam mais de 4,5 milhões de
refugiados, a maioria no Irã. Com o surgimento em 1995, no sul do país, de um
grupo armado denominado Taliban, que pretendia a criação de um governo islâmico
unificado e a imposição das leis do Corão, que excluem as mulheres da vida pública,
do sistema educacional, proíbem cinema, teatro e inúmeras formas de lazer,
56
espalhou-se o terror, ampliando-se os grupos armados e atentados violentos.
Salgado reflete a perseguição no Oriente Médio, os refugiados palestinos, o
terrorismo, a dor, o sabor do veneno, a mutilação.
Aos formadores de opinião fica o questionamento: saber qual é o olhar do
aluno com o qual trabalhamos sobre essas questões? Sobre essas imagens?
Estamos apenas trabalhando para sobreviver ou suportar a rotina da sala de aula? É
preciso levar em conta tanto a necessidade de estímulos dos alunos quanto dos
professores.
Os conflitos sangrentos prosseguem, faltando com respeito aos acordos de
paz. A mídia entra em nossas casas todos os dias arrancando-nos momentos de
diálogos; refeições em família são feitas em silêncio para que a atenção se volte ao
noticiário que anuncia retaliações corporais.
2.2.2 Cultura visual x mudança educativa
O caráter da não-identidade é impregnado na vida humana muito cedo, pois
as atitudes comportamentais de bebês são influenciadas pela televisão, através
de atrativas imagens em movimento. Os fetiches que pregam uma falsa liberdade
são inculcados pela indústria cultural no cotidiano, produzindo um caráter de
negatividade do eu e do meio sociocultural.
Os produtos culturais veiculados no contexto da sociedade de massa,
embora contenham elementos de cultura, não é essa a finalidade ou função
que os constitui. O cerne, isto é, o núcleo que sustentação a essa forma
cultural apropriada ideologicamente é a dinâmica consumista consolidada
pelo processo industrial como universo social unidimensionalizado
(FABIANO, 2003, p. 497).
A mídia volta-se exclusivamente para os aspectos tecnocomerciais em
detrimento do desenvolvimento social e humano. Nesse contexto, as imagens
movimentam a consciência levando-a a um estado de inversão de valores morais e
sociais. Esse sistema industrial formula conceitos e cristaliza ideologias que impõem
modelos de verdade, gerando uma realidade virtual e comercial. Esse
embrutecimento dos sentidos humanos ocorre em virtude da interferência dos
processos de produção e reprodução de imagens, voltadas a um sistema social que
vai destituindo a subjetividade enquanto característica humana.
57
A leitura de imagens pode ser uma possibilidade de um resgate significativo
da percepção dos sentidos. Assim, a fotografia apresentada num ensaio singular
não estabelece uma identificação imediata, mas se constitui num elemento capaz de
mediar a imagem com a realidade social que a produziu, alimentando a dimensão
estética e articulando percepções.
E se a dimensão estética da obra artística por si só não se constitui como
determinante de mudança das condições sociais, nela está contida pelo
menos a possibilidade de articular tais mudanças, tornando-se por base a
mediação com a realidade histórico-social que a produziu, sem contudo ser
a sua afirmação (FABIANO, 2003, p. 497).
A nova realidade cultural da sociedade contemporânea requer um leque de
atividades educativas voltadas a uma educação para a imagem e com a utilização
desta como recurso. Percebemos uma falha no sistema educacional que ignora esse
desenvolvimento das técnicas de informação; por conseqüência, surge uma
escravidão mental implantada pelos meios de comunicação de massa, que se
tornam ícones alienantes e desinformantes que podem ser revertidos na medida
em que forem lidos, ultrapassando a muralha dos contextos inadvertidos e não
selecionados pelo observador.
Educar para a imagem (e a isso se acrescenta hoje, de maneira sempre
mais imprescindível, o educar com a imagem) significa praticamente educar
a “ler” a imagem; isto é, não a captar a informação material (ou narrativa)
que ela contém, mas a captar o pensamento direto ou indireto (fundos
mentais) do autor da imagem, o que significa libertar da massificação e da
conseqüente instrumentalização (TADDEI, 1981, p. 8).
Antigamente, a comunicação dava-se muito mais por conceitos do que por
imagens; por isso, a maneira tradicional de comunicar corre um alto risco de não
conseguir as interpretações desejadas. A era da imagem relaciona-se às metáforas
sensuais dos moldes padronizados pela sociedade de consumo, e a escola deve
estar atenta a essa mudança para propor soluções. Portanto, é visível a
necessidade de adoção de métodos que utilizem a imagem em suas obras de
formação voltados à criticidade e ao contexto social da escola. Educar com a
imagem significa fazer dela uma forma de expressão significativa; logo, a fotografia é
um ótimo instrumento para a sensibilização e conscientização.
58
Felizmente ainda existem pessoas que acreditam que educar o olhar é
possível, buscando divulgar com maior extensão o livro Êxodos de Salgado.
Em 2000 é publicado o projeto educativo com três volumes que além das
narrativas fotográficas selecionadas da obra original, foram criadas
narrativas literárias, resumos históricos e conceituais para a compreensão
dos processos registrados. Assim como bibliografias de referência e
indicações de filmes, um conjunto de mapas e uma leitura poética das
imagens enquanto textos emotivos e intencionais.
Ao atingir os formadores de opinião, pretende-se que o drama apresentado
sensibilize aos adultos e as crianças de todos os lugares, criando um
movimento em defesa da vida e da preservação da humanidade do homem
(IOKI, 2000, p. 11).
Entretanto, muitos educadores não tiveram acesso ao material, por falta de
divulgação do projeto, pelo desinteresse das autoridades, pela inexistência de
políticas públicas voltadas a uma reeducação cultural e emocional. Tudo isso conduz
a que a educação ignore cotidianamente a brutalidade com que a humanidade vem
destruindo suas próprias características humanas. Assim é que uma gigantesca
porcentagem dos brasileiros não conhece um dos maiores fotógrafos do país, nem
sequer ouviram seu nome ou observaram uma de suas fotografias.
Como educadora, acredito que um novo sentido de futuro deve ser concebido
para as gerações que estão em processo de alfabetização do olhar
(independentemente da idade); um novo sentido de ser e sentir o outro e a si
mesmas precisa ser construído no processo educacional. E o trabalho de Salgado,
com sua objetividade, provoca sensações, estimula reações que podem ser
trabalhadas nessa construção do novo. É um conhecer a realidade do outro criada
pela intencionalidade do fotógrafo na busca de um despertar mais significativo do
próprio sentido da vida.
2.3 Miguel Rio Branco: vida e obra
Miguel da Silvas Paranhos do Rio Branco nasceu em Las Palmas de Gran
Canária, na Espanha, em 1946. Atualmente mora e trabalha no Rio de Janeiro,
sendo fotógrafo, pintor, artista multimídia e diretor e fotógrafo de cinema.
Iniciou sua carreira profissional em 1964 através de uma exposição de pintura
em Berna, na Suíça. Em 1966, optou por estudar na New York Institute of
Photography e, em 1968, na Escola Superior de Desenho Industrial do Rio de
Janeiro. Na década de 1970, trabalhou como fotógrafo e diretor de filmes
59
experimentais em Nova York e em 1972 começou a expor seus trabalhos de
fotografia e cinema. Todavia, mas sempre paralelo à fotografia, continuou a dirigir
filmes de curta e de longa metragem durante os nove anos seguintes.
Entre os inúmeros prêmios de fotografia de Miguel Rio Branco destacam-se o
Grande Prêmio da Primeira Trienal de Fotografia do Museu de Arte Moderna de São
Paulo (1980) e o Prix Kodak de La Critique Photographique, Paris (1982). Entre suas
exposições individuais e coletivas ressaltam-se as seguintes: Centre Georges
Pompidou, Paris, 1982 e 1983; XVII Bienal de São Paulo, 1983; Stedelijk Museum,
Amsterdam, 1989; Palazzo Fortuny, Veneza, 1988; Funarte, do Rio de Janeiro,
1988; Frankfurter Kunstverein Frankfurt, 1996; Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro, 1996.
As fotografias de Miguel Rio Branco traduzem a riqueza, a complexidade e a
sensualidade da América Latina contemporânea. A tensão entre manhã e
noite, terra e mar, mulheres e homens, dor e prazer é sutil mas
poderosamente retratada. As fotos de toureiros, capoeiristas, boxeadores e
prostitutas estão carregadas de intensa paixão humana. Rio Branco expõe
os elementos velados e proibidos do mundo à sua volta, iluminando assim,
o poder intrínseco de seus objetos (SALGADO; SALGADO apud BRANCO,
1998, posfácio).
As fotografias de Miguel Rio Branco abordadas no estudo estão relacionadas
aos processos de criação contidos no ensaio denominado Entre os olhos, o deserto,
publicado em 2001.
Neste livro, as imagens são recheadas de mistério; as formas insinuam,
escondem, revelam; as cores tornam-se personagens vivas, relatam histórias,
aguçam nossos sentidos, passeiam livremente pelos períodos mais fascinantes do
dia. O nascer e or-do-sol, períodos extremos que iluminam, refletem suas formas,
combinam extremos, oscilando entre a aflição, a exaltação e a banalização. A
diversidade e a pluralidade retratam a singularidade de janelas que nos dão a
sensação de continuidade, como se do movimento rotatório do ciclo vital congelado
pelo olhar emergisse a vitalidade complexa do homem, propondo, intencionalmente
ou não, uma nova forma de olhar o mundo, recriando-o, vigoroso, quente e perplexo.
Criar é formar algo novo. O ato criador relaciona-se com a capacidade de
compreender, pois relacionamos, ordenamos e configuramos os significados
provocados pelo ato de olhar. Lembramos aqui de um velho ditado popular: “O que
os olhos não vêem o coração não sente”. O ser humano, enquanto formador de
60
sentidos, configura através da experiência do olhar um aprendizado empírico e
significativo; por meio dos estímulos captados no cotidiano, como a luz, os sons, os
cheiros, as cores..., vamos associando-os e ordenando-os mentalmente.
Inconscientemente, acabamos nos apropriando desses estímulos para
solucionar situações de desejos, medos, angústias ou qualquer desafio encontrado
para criar uma nova forma de resolução. Ao transformar o nosso meio, também nos
transformamos.
Criar não representa um relaxamento ou um esvaziamento pessoal, nem
uma substituição imaginativa da realidade; criar representa uma
intensificação do viver, um vivenciar-se no fazer; e, em vez de substituir a
realidade, é uma realidade nova que adquire dimensões novas pelo fato de
nos articularmos, em nós e perante nós mesmos, em níveis de consciência
mais elevados e mais complexos (OSTROWER, 1987, p. 28).
As fotografias de Miguel Rio Branco relacionam-se diretamente, enquanto
estímulos, ao processo criador; são elementos que nos levam a viajar, a intuir,
observar e estão carregadas de conflitos emocionais; argumentam através dos
elementos formais, pondo à prova nossa vulnerabilidade ao toque pelo olhar;
penetram no corpo e na mente como se tocassem a epiderme da alma através do
calor das cores. Cada observador vai senti-las diferentemente, de acordo com suas
afinidades e seus íntimos interesses; cada pessoa sente em si uma reação singular,
desenvolvendo seu discurso de análise de acordo com suas potencialidades e
experiências preexistentes, que constituirão sua motivação para a concretização da
desnaturalização de sua forma de olhar.
O ser humano elabora e recria seu potencial criador por meio do olhar; não
que ele seja a exclusiva fonte de transmissão de significados, mas, em meio aos
apelos da sociedade capitalista, é, sem dúvida, a fonte mais provocante. O ato de
olhar é uma experiência vital, na qual o ser humano encontra a realização de seus
desejos mais íntimos e profundos, realizando através da observação tarefas mentais
e emotivas. Assim, à medida que sentimos a necessidade de encontrar soluções
criativas perante as dificuldades, apropriamo-nos das ordenações de vivências para
que ocorram algumas recordações de imagens que nos servirão de estímulos.
61
O artista não se define apenas pela habilidade em seu artesanato, mas por
sua capacidade no manejo de uma linguagem e pela força inovadora no
rearranjo constante de seus elementos, capaz de levar à revelação da coisa
surpreendente. Assumir-se como artista não significa admitir-se como um
indivíduo especialmente esplendoroso, mas como alguém que atribui a seu
ofício um compromisso de transformação (HUMBERTO, 2000, p. 18).
A invenção é o auge de um processo somatório de experiências e resulta de
acertos e erros, escolhas e julgamentos que fazemos em nossas vivências e as
transformamos. Criamos uma busca por algo indeterminado, o qual se torna
misterioso e empolgante na medida em que traz a satisfação do desvendar através
do fazer artístico; torna-se a solução resultante da insistência, trabalhamos com a
representação de nossos signos mais íntimos.
A leitura das fotografias de Rio Branco pode instigar o processo criativo de tal
forma que o observador fique sensibilizado a analisar criticamente não somente os
elementos formais, mas também as reações provocadas pela sua contemplação
consciente. Em todos os campos que o ser humano percorre através de seu
pensamento, seja na ciência, na saúde, nas artes ou nos campos tecnológicos, no
cotidiano de suas produções, ele cria soluções pela sua sensibilidade, pelo equilíbrio
entre a emoção e a lógica.
O ato de ler as fotografias como texto conduz à percepção de certas
possibilidades ignoradas atualmente pelas instituições de ensino. A leitura de
imagem deve ser reconhecida como um percurso orientador, visto que, dentro de
nossas limitações na forma de olhar, criamos estereótipos que nos impedem de
compreender e responder às camadas dominantes do nosso meio sociocultural. A
fotografia liga-se em rede a inúmeros ramos sensíveis, provoca sensações que
atuam diretamente na imaginação criativa, vinculando-se às experiências adquiridas
e levantando novas hipóteses sobre certas configurações naturalizadas. “Assim, o
imaginar seria um pensar específico sobre um fazer concreto(OSTROWER, 1996,
p. 32).
A fotografia é uma linguagem sedutora, cheia de luz e imagens; torna-se
menos abstrata do que a língua escrita ou falada; seleciona ícones do mundo das
aparências e lhes dá um toque próprio de acordo com o olho do fotógrafo.
O olho-câmera não pensa: ele reconhece. Mostra-nos o que sabemos
mas sem saber que sabemos. Sua sintaxe é menos contida que a sua
gramática, e por isso é importante a maneira como as imagens se
combinam (STRAUSS, 1998, p. 7).
62
O que está entre os olhos hoje quase sempre esteve despercebido antes. As
imagens com que nos deparamos no cotidiano são veladas pela nossa
irracionalidade perante os apelos conquistadores. Estamos vivendo sem perceber
que a televisão naturaliza a violência, pois nos mostra cenas destruidoras; não
reagimos, estamos apáticos aos problemas sociais e pessoais; vivemos entre dois
mundos distintos sem perceber o real e o imaginário.
As fotografias de Rio Branco tornam-se a ponte entre o visível e o invisível,
entre a leitura e o descaso. O olhar torna-se a morada da alma à medida que vamos
lendo e compreendendo nossa própria forma de olhar. Os olhos devem pôr à prova
as aparências, deixando o corpo encher-se de sensações agradáveis ou não, e
nisso a luz tem um papel revelador, encantador. A luz tem o poder de desestabilizar
o ser pela sua capacidade de nascer e morrer muitas vezes durante o dia, e Miguel
consegue captá-la de forma a aquecer e resfriar o ser humano simultaneamente.
Nas mãos de Miguel Rio Branco, a montagem se torna poesia – mais
especificamente, poesia trágica. Como toda tragédia, ela se concentra em
dois pontos essenciais: a coragem e a inelutabilidade da derrota. Isso é
representado pelas imagens, mais do que ilustrado por elas (STRAUSS,
1998, p. 7).
Ao retratar o nascer ou o pôr-do-sol, o fotógrafo expressa o sofrimento da luz,
oscilando entre a exaltação e a banalização, produzindo novos significados,
transmitidos pela sensação de calor ou frio. Com isso, o observador acolhe tanto o
entusiasmo obtido pela cor quanto a rejeição ferozmente produzida pelos temas. A
câmera amplia o universo expressivo, proporcionando através da tecnologia novos
intermediários entre a sensibilidade humana e o processo criativo, modificando
fronteiras, ampliando janelas, que fazem brotar uma nova forma de sentir a estética.
Nessa poética permeia o cotidiano, alimentando possibilidades de discussões. Aqui
começamos a perceber que a fotografia, como texto, pode conter tantas leituras
quantas o observador for capaz de fazer ao viajar no mundo da imaginação.
O fotógrafo modifica intencionalmente os dados da realidade com o desejo de
alcançar um determinado equilíbrio, que se faz imaginado durante a escolha do
ângulo a ser retratado. Essa intencionalidade age diretamente na sensibilidade, que
é variável em cada indivíduo, na estrutura única de uma individualidade; a
imaginação e a linguagem adquirem formas pessoais e objetivas que acabam por
63
reordenar as experiências, produzindo novos significados, tanto para o fotógrafo
quanto para o observador.
Sendo a linguagem um referencial básico para a comunicação, a fotografia
torna-se um referencial para a elaboração de critérios de valor. As fotografias de Rio
Branco iluminam o olhar no “como ocorre essa comunicação”, no “quê expressam
através dos elementos formais” e no modo como esse conteúdo expressivo na forma
objetivada caracteriza a extensão do sujeito que retransforma o seu próprio olhar.
A imagem objetivando uma forma de linguagem é uma condição
indispensável para a concretização de diagnósticos no ensino da arte, pois, uma vez
que nos tornamos indiferentes à nossa realidade, necessitamos de uma atitude
básica. Por isso, cabe ao orientador propor uma forma carregada de qualificações
criativas para que o educando reintere sua imaginação, o que ocorre do interesse,
do entusiasmo de um indivíduo pelas crescentes possibilidades em determinados
assuntos ou em certas realidades.
2.4 Fotoetnografia: sob um olhar de Luiz Eduardo Robinson Achutti
Achutti é gaúcho, nascido em Porto Alegre no dia 4 de janeiro de 1959.
Começou a trabalhar como jornalista em 1979 e realizou trabalhos para diversos
jornais e revistas, entre eles Zero Hora, Folha de S. Paulo e Revista IstoÉ. É
formado em Ciências Sociais e mestre em Antropologia Social; atualmente é
professor do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul
1
.
É autor do livro Fotoetnografia, resultado de sua pesquisa visual na Vila Dique
em Porto Alegre, uma comunidade que retira seu sustento da separação do lixo. Em
sua obra, o autor levanta questões relacionadas à antropologia do olhar,
considerando o texto escrito uma forma de ilustração para suas imagens textos, as
fotografias. Provoca discursos dentro da interioridade de cada observador,
contaminando com emoções o pensamento, que por alguns instantes fica congelado
numa viagem questionadora acerca da própria imagem.
1
Dados retirados do livro Fotoetnografia de Luiz E. R. Achutti, 1997.
64
Pequena queimadura de luz sobre uma superfície sensível (como uma
alma) os nitratos de prata, pele e película ao mesmo tempo a fotografia
é, na sua materialidade, tanto uma ferida como uma cicatriz, uma fenda
aberta no tempo, uma rachadura do espaço, uma marca, um rastro, um
indício... As fotografias são tecidos, malhas de silêncio e de ruídos, os
envelopes que guardam nossos segredos, as pequenas peles, as películas
de nossas vivências. As fotografias são memórias e confidências (SAMAIN
apud ACHUTTI, 1997, p. XIX).
Achutti propõe um ângulo a mais para o olhar: mergulhar na realidade do
outro para interpretar valores, experienciar sentimentos. Ao tratar de um tema do
cotidiano tão polêmico, pesado e mal cheiroso como o lixo, provoca um certo
estranhamento; com sua câmera desconstrói, percebe particularidades nas pessoas,
no espaço, nos objetos. “Ciente de estar de certa maneira ousando, desenvolvo, em
termos de ênfase descritiva, uma forma narrativa foto etnografia de relatar a
vivência cultural de um determinado grupo” (ACHUTTI, 1997, p. XXIV).
Considera a fotografia como espelho ideal, mágico, espelho que evoca
memórias, que faz através dela uma espécie de coleta visual, explorando ângulos,
planos, texturas, cores, volumes, linhas, compondo esteticamente com o sentir.
Dessa forma, faz conexões entre fotografia e etnografia; os textos fotográficos são
mais do que cópias da realidade, são recortes de afirmações e de interpretações
sobre o real. Nesse contexto, as imagens apresentam um potencial psicológico e
sentimental capaz de provocar estímulos, reações, de gerar funções, adquirindo
características diferentes de acordo com as vivências do próprio observador.
Nenhuma imagem é inata, inocente ou inadvertidamente lida, ela se insere
num contexto, num amplo sistema de significação composto por estruturas
de sentido e semiótica próprias e é sob este ponto de vista que deve ser
lida: como um processo contínuo, um refletir e refratar simbólico de um
espelho: o que ele absorve do mundo e o que ele devolve, o que ele mostra
e o que nós vemos (CAMARGO, 1999, p. 34).
Esses espelhos, cuja moldura é determinada pelo fotógrafo, apresentam uma
carga emotiva acumulada pelos inúmeros recortes de olhares anteriores que
caracterizam a bagagem sociocultural do próprio fotógrafo. Acabam criando
conexões com o observador e suas leituras, alterando configurações, construindo
conteúdos, comunicando, mobilizando cognitivamente novas sinapses. “Informação
visual não se resume na confirmação do óbvio, mas pode ser uma porta de entrada
para reflexões renovadas, a partir de indicativos oferecidos por um momento real
roubado ao tempo” (HUMBERTO, 2000, p. 41).
65
Essas leituras acabam sendo significativas na medida em que estabelecem
relações com princípios ou identidades com o mundo natural e real ao qual nos
referenciamos cotidianamente. Portanto, as imagens criam novas fontes de
referenciais.
CAPÍTULO III
ESTÉTICA E IMAGINÁRIO: INGREDIENTES PARA A
RECONSTRUÇÃO DE VALORES
3.1 O belo e o feio
O juízo do gosto não é cognitivo. Sendo estético, esligado às sensações,
às emoções, que resultam em relações empíricas por meio das quais o sujeito
percebe o que o objeto pode provocar nele. A questão em discussão aqui é perceber
como aflorar no educando o que o objeto provoca dentro dele, não a importância de
sua existência, ou simplesmente abordar a questão do gosto. “Não se pode ser
minimamente influenciado pela existência da coisa, mas antes a este respeito de se
estar completamente indiferente, para se desempenhar o papel de juiz em coisas do
gosto” (PINA, 1982, p. 15).
Mesmo que o objeto que observamos não nos seja agradável aos sentidos,
devemos perceber o que ele nos provoca, a intencionalidade com que foi elaborado.
É por meio de sentidos que buscamos conhecer a representação dos objetos, aquilo
que tende a permanecer no sujeito.
Um exemplo desse contraste entre o gosto do observador e o sentido que a
imagem apresenta para o criador são as pinturas de Francis Bacon, que utilizam a
distorção da forma, cores fortes e marcantes, assim como temas relacionados à
crucificação, à deformação da carne, entre outros. Para muitos chega a ser
considerada uma arte trágica e violenta, mas para o artista é apenas uma forma de
expressão de elementos que para ele apresentam um significado muito forte.
Se você for a um desses grandes depósitos e andar por aqueles salões
enormes, cheios de cadáveres, encontrará carne, peixe, aves, tudo ali morto
esticado. E, como, pintor, você não pode deixar de perceber toda a beleza
do colorido da carne (BACON, 1995, p. 46).
O juízo que elaboramos sobre uma coisa, o sentimento agradável que
67
expressamos frente a ela, está ligado a um interesse preexistente consciente ou
não; portanto, a satisfação está ligada a um certo apetite pelo assunto abordado.
Então percebemos que o agradável contenta, elabora a fruição, à medida que revela
a intimidade do contentamento. Mas como elaborar e provocar nos educandos a
fruição a partir do feio, do diferente?
O agradável e o bem têm ambos uma referência ao poder de desejar e
trazem consigo, nessa medida, aquele uma satisfação patologicamente
condicionada (por estímulos), este uma pura satisfação prática, em ambos
os casos uma satisfação que não é determinada apenas pela representação
do objeto, mas ao mesmo tempo pela ligação representada do sujeito com a
existência daquele. Não agrada apenas o objeto, mas também a sua
existência (PINA, 1982, p. 19).
A representação do sentimento de prazer e desprazer a que nos referimos
deve ser constantemente questionada e relacionada à existência do objeto, quanto à
valoração pessoal, ao contentamento, ao interesse que ele desperta. A imagem
original do gosto, que está relacionada à idéia da razão, não pode ser representada
por meio de conceitos, mas, sim, por representações singulares e individuais que,
por razões socioculturais, produzimos em nós; é um ideal de imaginação que se
sustenta na representação, pelo qual formulamos o nosso próprio ideal de beleza.
Portanto, o educador convive com diferenças no próprio conceito do belo e deve
partir delas para propor julgamentos, leituras e análises.
[...] A idéia estética normal, que é uma contemplação singular (da
imaginação), a qual representa à medida de orientação do seu julgamento,
como de uma coisa própria de uma espécie particular de animal; segundo, a
idéia da razão, a qual torna os fins da humanidade, na medida em que estes
não podem ser representados sensivelmente, em princípio do julgamento de
uma figura por meio do qual, como seu efeito no fenômeno, aqueles se
revelam (PINHA, 1982, p. 25).
A idéia do belo ou do feio surge da experiência do olhar, de elementos
particulares na construção de sua relação com a figura. A imaginação evoca sinais
para conceitos, reproduz imagens e as figuras de objetos observados; compara e
recria segundo a consciência, criando uma analogia óptica; relaciona o espaço e o
tempo em que o objeto foi percebido, criando, assim, um significado. A ltipla
concepção e capacitação de elementos e figuras, levando-as para um órgão de
sentido interior, cria condições empíricas de desenvolvimento do senso crítico,
através de uma idéia normal de beleza pré-relacionada, capaz de interagir com
68
elementos visuais do cotidiano. Assim, podemos afirmar que a imaginação interage
no olhar, permitindo um desenvolvimento sensível e crítico. É nessa fase do
desenvolvimento do olhar que ocorre a desnaturalização, ou seja, a reeducação do
modo simples e pacato de ver, ou melhor, de digerir as imagens.
Quando lemos imagens – de qualquer tipo, sejam pintadas, esculpidas,
fotografadas, edificadas ou encenadas –, atribuímos a elas o caráter
temporal da narrativa. Ampliamos o que é limitado por uma moldura para
um antes e um depois e, por meio da arte de narrar histórias (sejam de
amor ou de ódio), conferimos à imagem imutável uma vida infinita e
inesgotável (MANGUEL, 2001, p. 27).
É na imaginação que a imagem cria vida, germina e se desdobra, formulando
uma teia de relações com outras imagens e informações. Essas relações recriam
histórias, sentimentos e estímulos, visto que cada imagem, com suas singularidades,
aciona operações de pensamentos. Nesse ciclo construímos nossas narrativas por
meio de um espectro de circunstâncias íntimas e sociais, prazeres ou devaneios que
pontuam nosso imaginário e, por sua vez, nosso ato de gostar ou não.
As imagens existem e flutuam em meio a diferentes percepções: aquelas que
motivaram seu criador a formulá-las e aquelas que podemos nomear ou lembrar;
ainda, aquelas que habitam o abismo de nossa incompreensão. Inquietações, vozes,
formas, luzes são artifícios para representações, as quais são exatamente aquilo
que queremos ser, que almejamos ver, mas jamais serão algo fechado, acabado ou
pontuado. Cada olhar tem seu leque de vivências, relações e sinapses, portanto
diferente em cada instante, em cada piscar.
O ser humano limita-se pela sua determinação na medida em que seu
pensamento se acomoda à rotina íntima e sua disposição estética estaciona. Assim
como o desenho, que é a primeira linguagem da criança, se atrofia no adulto e
estaciona nos estereótipos, pois a maioria dos adultos desenha como uma criança
de sete anos, o olhar, a percepção e a capacidade de observação também param no
tempo. Quem dera o ser humano adulto observasse o mundo como uma criança! O
que ocorre com a percepção e a absorção do olhar é muito mais cruel do que com o
desenho. A criança percebe quando a professora, ou um coleguinha, corta o cabelo,
usa uma meia nova, pinta os olhos, porém muitas vezes um familiar próximo não
percebe essas diferenças. É muito comum o marido comprar um presente para o
aniversário de sua esposa, como uma roupa, extremamente grande, ou de uma cor
69
que ela detesta e jamais usou. O olhar da criança é verdadeiro, puro, curioso, mas, à
medida que a escola deixa de instigá-lo, ele começa um processo de naturalização.
No estado estético o ser humano é, portanto, zero na medida em que se
atende a um resultado singular, e não ao poder na sua totalidade, e se torna
em consideração nele a falta de toda determinação particular. Por isso se
tem de dar plenamente razão àqueles que explicam o belo e a disposição
em que coloca o nosso espírito como completamente indiferentes e
infecundos no que concerne ao conhecimento e à maneira de pensar (PINA,
1982, p. 32).
Se a beleza não produz resultados para o entendimento, não possui
finalidades intelectuais, não nos possibilita criar alicerces no conhecimento científico
porque se naturalizou como padrão de consumo; não provoca reações além de
desejo de posse. Então, questionamos: por que os educadores ignoram o feio? Por
que ele incomoda tanto?
A deformidade causa uma sensação de repulsa, provoca e consegue
desenvolver a liberação de sentimentos que normalmente são reprimidos; reorganiza
a razão do pensar sobre uma nova disposição estética. Se buscamos uma
pedagogia que valorize as diferenças, não podemos ficar somente dependentes do
belo, do trivial. Precisamos criar um novo apetite, que não seja o da comodidade,
para que possamos caminhar conscientes, sendo capazes de decidir, analisar e
interferir.
Espectadores freqüentemente passivos, temos por hábito consumir toda e
qualquer produção imagética, sem tempo para deter sobre ela um olhar
mais reflexivo, o qual inclua e considere como texto visual visível e,
portanto, como linguagem significante. Somos submetidos as imagens,
possuídos por elas, e sequer contamos com elementos para questionar
esse intricado processo de enredamento e submissão (BUORO, 2002, p.
35).
Muitas pessoas ainda não vivenciaram experiências voltadas para a
educação do olhar, nem experienciaram momentos de um desenvolvimento
evolutivo de processos perceptuais e conceituais. Essas pessoas confrontam-se
diariamente com as expressões imagéticas contemporâneas que são digeridas por
elas. Experiências progressivas e diárias proporcionam uma falsa aceitação natural;
no caos do consumismo, aceitam cores, formas, atitudes, interiorizando coisas e
valores que não pertencem a sua singularidade.
70
Se o homem sente um prazer sensorial direto com o mundo que o cerca, ele
procura identificar-se com os objetos desse mundo, e no próprio ato da
percepção ele descobre no objeto qualidades emotivas correspondentes a
seus próprios sentimentos psíquicos... se o sentimento que descobrimos no
objeto nos prazer e o aceitamos como parte da realidade objetiva de
nosso meio, então nos sentiremos em harmonia com o objeto e o
acharemos belo (READ, 2001, p. 96).
Portanto, cabe ao educador promover um planejar responsável, com a
criticidade mental e emocional voltadas a ações que livrem o ser humano dos
grilhões que os prendem a essa confusão caótica das impressões visuais. Muitas
vezes as imagens nos despertam o desejo de substituir a realidade pela aparência,
fantasiando uma verdade consumista que sugere ser agradável. “A aparência
estética não pode nunca tornar-se perigosa para a verdade de costumes, e onde
encontrarmos algo diferente sem dificuldade se demonstrará que a aparência não
era estética” (PINA, 1982, p. 37).
Precisamos estar preparados, como educadores, para ampliar as discussões
sobre o belo e os “ideais” padrões de beleza. A idéia deve estar determinada como
totalidade concreta, para que tenha em si mesma uma particularidade; à medida que
é incorporada e assimilada, deixará de ser abstrata, pois estará envolvida a um
conceito geral, particular e individual.
O significado é o valor de um conceito dentro de um sistema global, formando
uma rede de ligações e relações estruturais nas quais as diferenças estão revestidas
de valores estéticos. Sabe-se que o olhar é um processo comunicativo, tanto que na
infância se compreende muitas vezes a repreensão de nossos pais simplesmente
por uma expressão do olhar. A imagem é, portanto, um texto, que possui uma
totalidade na qual se manifestam as estruturas apropriadas através de elementos
socioculturais. Um processo analítico deve reagrupar esses elementos em classes
de acordo com suas possibilidades combinatórias e, a partir dessas, estabelecer
ligações com o elaborar e reelaborar conceitos e valores. Essas relações entre as
redes de ligações são pontos do estudo relacionadas aos processos semióticos e
não devem ser ignoradas pelas instituições educacionais.
3.2 Um hóspede oculto: o imaginário na perspectiva de Durand
A inflação de imagens explode no cotidiano com uma velocidade
71
preocupante, pois são absorvidas e aceitas como verdades absolutas, sem reflexão.
Adentrando no imaginário, elas perpassam pelos desejos, sonhos e medos,
influenciando modos de agir e pensar.
A enorme produção obsessiva de imagens encontra-se delimitada ao campo
do “distrair”. Todavia, as difusoras de imagens digamos a “mídia”
encontram-se onipresentes em todos os níveis de representação e da
psique do homem ocidental ou ocidentalizado. A imagem midiática está
presente desde o berço até o túmulo, ditando as intenções de produtores
anônimos ou ocultos: no despertar pedagógico da criança, nas escolhas
econômicas e profissionais do adolescente, nas escolhas tipológicas...
(DURAND, 2001, p. 33).
A manipulação icônica tornou-se um fenômeno capaz de provocar revoluções
comportamentais e culturais, algo que o foi medido ou pesquisado, mas que cria
valores do imaginário e para o imaginário. O imaginário humano articula-se por meio
de estruturas plurais que podem distribuir e articular as imagens de elementos ou
momentos significativos ao longo do tempo. Essas imagens podem atuar como
anticorpos ou agentes patogênicos da psique.
Por muito tempo, a imaginação foi reduzida pelos clássicos a uma
desvalorizada sensação estática, na qual as imagens eram frutos equívocos da
memória. Considerando-se a imaginação uma espontaneidade vácua e a imagem,
um objeto fantasma inofensivo e sem conseqüência, mais tarde rebaixada a uma
influência sobrenatural demoníaca, ambas tiveram suas essências qualitativas
reduzidas a um nada imensurável. Com certeza, nenhum teórico da época podia
“imaginar” que a era da imagem tomaria proporções gigantescas no cotidiano dos
seres humanos e que essas desempenhariam muitos papéis na construção emotiva
e psicológica do homem pós-moderno.
Muitas foram as tentativas para explicar ou classificar as motivações
simbólicas e o próprio conceito de símbolo, porém a maioria é reducionista, linear e
unidimensional; baseadas nos estudos fenomenológicos, confundiam e misturavam
os próprios conceitos. Durand (1997) considera como a essência da estrutura do
imaginário o caráter pluridimensional e espacial do mundo simbólico e a capacidade
bivalente de cada elemento, entendendo a percepção humana como rica em
composições que ultrapassam as classificações consideradas pela física aristotélica.
Segundo Durand (1997), é possível agrupar as ações humanas em dois
72
regimes do simbolismo, definidos como diurno e noturno. O noturno liga-se às
pulsões digestivas e às sexuais, à libido, e subdivide-se nas dominantes digestivas e
cíclicas. A digestiva engloba as técnicas do continente e do habitat, os valores
alimentares e digestivos, a sociologia matrística e alimentadora. A cíclica agrupa
técnicas do ciclo, do calendário agrícola e da indústria xtil, os símbolos naturais ou
artificiais do retorno, os mitos e os dramas antrobiológicos. Por sua vez, o diurno
envolve a postura humana, o regime das armas, a sociologia do soberano mago e
guerreiro, os rituais de elevação e purificação; vincula-se às manifestações manuais
e visuais e a alguns aspectos da agressividade.
Partindo de uma concepção simbólica da imaginação, não considera que as
imagens sejam apenas signos, mas, sim, que cada uma delas aprisiona
materialmente o seu sentido. Considerando que o esquema seja uma generalização
dinâmica e afetiva da imagem, fazendo a junção entre os gestos inconscientes e as
representações, o autor divide o gesto postural em dois esquemas: o da
verticalização ascendente e o da divisão visual e manual.
Com efeito, os arquétipos ligam-se a imagens muito diferenciadas pelas
culturas e nas quais vários esquemas se vêm imbricar. Encontramo-nos
então em presença do símbolo em sentido estrito, símbolos que assumem
tanto mais importância quanto são ricos em sentidos diferentes (DURAND,
1997, p. 62).
3.2.1 O regime diurno
Neste regime encontramos símbolos teriomórficos, entre eles o simbolismo
animal, que pode agregar valores positivos, como a pomba, o cordeiro, o cão,
quanto negativos, como aranhas, morcegos, répteis, ratos... Desde a infância o
homem convive com representações animais em brinquedos, desenhos animados,
contos de fadas, entre outros.
Para além da sua significação arquétipica e geral, o animal é suscetível de
ser sobredeterminado por características particulares que não se ligam
diretamente à animalidade. Por exemplo, a serpente e o pássaro, são,
por assim dizer, animais em segunda instância. O que neles prima são as
qualidades não propriamente animais: o enterramento e a mudança de pele
que a serpente partilha com o grão, a ascensão e o vôo que o pássaro
partilha com a flecha (DURAND, 1997, p. 71).
73
Segundo Durand (1997), o aparecimento da animalidade na consciência é um
sintoma de uma depressão até os limites da ansiedade. Considera, ainda, o
formigamento e o fervilhar da larva semelhantes às reações humanas perante
situações dolorosas, como o nascimento e o choro do bebê. Muitos são os
elementos animais que refletem o medo diante da fuga do tempo, simbolizada pela
mudança e pelo ruído.
Inúmeros mitos utilizam o animal para sustentar sinais e símbolos ligados a
morte, a violência, a punição e a sexualidade. O Apocalipse relata um cavalo da
morte com cabeça de leão, cujo poder reside na boca e na cauda, assemelhando-se
às serpentes. Os signos zodíacos dão exemplos de cavalos solares; personagens da
mitologia grega ligam-se a inúmeras formas animais; todas as culturas paleorientais
simbolizam a potência meteorológica e destruidora pelo touro.
Verificamos o estreito parentesco dos simbolismos taurino e eqüestre. É
sempre uma angústia que motiva um e outro, e especialmente uma angústia
diante da mudança, diante da fuga do tempo como diante do mau tempo
meteorológico. Esta angústia é sobredeterminada por todos os perigos
acidentais: a morte, a guerra, as inundações, a fuga dos astros e dos dias, o
ribombar do trovão e o furacão... O seu vetor essencial é o esquema da
animação. Cavalo e Touro são apenas símbolos, culturalmente evidentes,
que reenviam para o alerta e para a fuga do animal humano diante do
animado em geral (DURAND, 1997, p. 83).
Segundo Bachelard (1994), muitos sonhos relacionam-se a imagens semi-
humanas, com gritos aterrorizantes, uivos e grunhidos. A boca animal concentra
muitos fantasmas terrenos da animalidade: agitação, mastigação violenta e ruídos
sinistros são alguns elementos que permeiam o imaginário e o ato de sonhar.
Poderia lembrar aqui os sonhos de criança, quando, ao entardecer, embalada
pela doce história de Chapeuzinho Vermelho, adormecia no colo do meu pai.
Lembro-me bem de algumas vezes em que acordava assustada com o lobo
devorando a vovozinha, que gritava por socorro em sua barriga.
El paso de la imaginación a lo imaginario no se produce únicamente en el
interior del sujeto. El esfuerzo imaginativo que éste emprende, si en ciertos
aspectos se aproxima y alcanza el imaginario personal, es decir, el lugar
donde se agrupan y concentran los productos de la fantasía del sujeto –,
también es capaz de penetrar en el imaginario colectivo, universo que
encierra todo un patrimonio de fantasías e imágenes sobre la historia de la
humanidad y sus mitos (GENNARI, 1997, p. 66).
74
De modo geral, o animal liga-se a agitação, a fuga, aos elementos e situações
que não podemos apanhar, podendo ser considerado também um símbolo
devorador.
Também os símbolos nictomórficos fazem parte dessa classificação e estão
relacionados à cor negra, o sinistro, a noite, a trevas, a barulho, ao Ogro, ao Diabo, a
cegueira, a mutilação, a loucura, a morte, ao dragão sustentado pelos esquemas da
noite e da água em conjunto, a lágrimas, cabelos longos e seu movimento ondular, a
sombra, ao movimento da água, a água negra, a espelho, a água e a lua, a ciclos, a
lua negra, a lua da morte, a menstruação, a fios, a teia e aranha, a polvo, laços,
cordas e nós.
É neste isomorfismo que se deve considerar o símbolo que os psicanalistas
ligam a uma exasperação do Édipo, a imagem da mãe terrível, ogra que o
interdito sexual vem fortificar... Esta Mãe terrível é o modelo inconsciente de
todas as feiticeiras, velhas, feias e zarolhas, fadas corcundas que povoam o
folclore e a iconografia (DURAND, 1997, p. 104).
Os símbolos catamórficos remetem a queda, a vertigem, a gravidade e a
esmagamento; ligam-se às experiências vividas, ao aprender a andar, às primeiras
mudanças desniveladas e rápidas. O mal, pela queda e suas variantes morais, pode
também se apresentar como um auxiliar do bem. A queda é simbolizada pela carne
como alimento e objeto sexual, unificadas pela mitologia do sangue, e transforma-se
em apelo ao abismo moral. Segundo Bachelard (1990), os atributos desagradáveis e
repugnantes do objeto surgem à imaginação relacionados a culpa, a
constrangimento moral pelo sexo, a consciência tardia, a queda interior.
Os símbolos ascensionais pertencem ao esquema de elevação, e os símbolos
verticalizantes relacionam-se à espiritualidade e postura humana, às religiões, às
escadarias das igrejas, a subidas difíceis, ao caminho do céu. Aparecem aqui as
montanhas, pedras não polidas, o pássaro, borboletas, a potência, a pureza,
substâncias celestes por excelência. O arquétipo das fantasias do vôo, o anjo,
símbolo da purificação moral, a flecha, a sabedoria, o totem, o talismã.
Os símbolos ascensionais, segundo Durand (1997), aparecem-nos marcados
pela preocupação da reconquista de uma potência perdida. Pode ser a ascensão
rumo à dimensão metafísica, para além do tempo; também pode concretizar-se pelo
símbolo da flecha e da asa, onde a imaginação tinge-se de um matiz ascético,
75
sublimando a carne e o elemento fundamental de uma meditação de pureza. O anjo
é o eufemismo, quase a antífrase, da sexualidade; através da reconquista, o poder
vem orientar as imagens viris: realeza, o padre, o guerreiro, as cabeças e chifres
fálicos.
Segundo Jung (1977), o pensamento simbólico relaciona-se ao conhecimento
e à consciência dos grandes símbolos da humanidade, os quais organiza através
dos elementos da natureza: o fogo, a água, o ar e a terra. Reconhecendo a
bivalência de cada elemento, sugere-se uma visão com múltiplos significados.
Considera o sentido metafórico o semantismo da imaginação, fundamentando
os arquétipos na visão simbólica.
Num encantado momento em que desempenhamos o papel de atenta ao
universo, emitimos a depuração de nossas influências, de nossas
particularidades, de nossas vacilações, de nossas tênues certezas, de
nossa ousadia em transgredir e de nossa coragem em abandoar, quando
necessário, o conforto de nossa aceitação (HUMBERTO, 2000, p. 18).
Os símbolos espetaculares são referentes à luz, à iluminação celestial, à
auréola, ao luminoso solar, ao branco, ao real e ao vertical. O azul celeste, a luz
dourada, o sol, o olhar, o julgamento moral, a transcendência, a vidência, os
mantras. O Gládio reforça o Cetro e os esquemas diairéticos consolidam a
verticalidade. Os esquemas e arquétipos de transcendência se opõem
dialeticamente aos seus contrários. A ascensão é o oposto da queda; a luz é o
elemento que pode vencer um adversário, ressaltando o herói frente ao abismo. “A
transcendência está sempre, portanto, armada, e encontramos esta arma
transcendente por excelência que é a flecha, e tínhamos reconhecido que o Cetro
de justiça traz a fulgurância dos raios e o executivo do Gládio ou do machado”
(DURAND, 1997, p. 159).
As armas de que os heróis se encontram munidos são símbolos de pureza e
potência; apresentam um caráter intelectual, de elevação espiritual. A espada, raios
cósmicos, o disco solar, a lança, o príncipe encantado, o fogo, o ar, a translucidez,
detergentes, o tira-manchas, o policial, o justiceiro, a espada de fogo são símbolos
diairéticos que a imaginação utiliza para cortar, salvar, separar e distinguir das trevas
o valor luminoso. Portanto, o regime Diurno consiste na antítese constante dos
elementos e de seus significados.
76
3.2.2 O regime noturno da imagem
Neste regime predomina o signo da conversão e do eufemismo. No primeiro
grupo estão as inversões do valor afetivo, o processo de eufemização do destino e
da morte; o segundo sintetiza as aspirações de transcendência ao além e às
intuições.
Os símbolos da inversão estão constituídos por vários elementos, entre os
quais a descida agradável, o calor prazeroso, os segredos do devir, a intimidade, o
macio. Diferentemente da queda e do esmagamento, a descida é prazerosa;
relaciona-se ao ventre, ao digestivo e à libido. A noite tem um caráter agradável, é o
retorno ao lar materno, um momento de comunhão. As cores apresentam uma
riqueza de matizes e, por sua vez, constituem também os elementos minerais e as
pedras preciosas. O verde acalma a alma, lembra a profundidade materna. A
melodia musical é o tema de uma regressão às aspirações mais primitivas. A
Grande Mãe, o peixe, o encaixe, as ondas, o engolimento são alguns elementos
dessa classificação.
Si la imagen es el lugar en el que el sentido toma forma, lo imaginario se
describe como el espacio fantástico donde la imagen vuelve a representarse
a la mirada por medio de posibilidades infinitas, en formas y contenidos
divergentes, según una lógica de la ficción totalmente imprevisible
(GENNARI, 1997, p. 80).
Os símbolos da intimidade ligam-se às fantasias do enterramento, do
repouso, considerando a morte um retorno a casa; a terra torna-se um berço mágico.
O ritual mortuário e a antítese da morte. Um dos modelos considerados em nossos
contos é a Bela Adormecida, no qual o sono, o despertar para a intimidade são
elementos confortáveis. A casa torna-se a ponte entre o corpo e o cosmo, a imagem
da intimidade repousante. A floresta, a mandala, o círculo, os alimentos e bebidas
são elementos cíclicos de renovação.
Na linguagem mística tudo se eufemiza: a queda torna-se descida, a
manducação engolimento, as trevas adoçam-se em noite, a matéria em mãe
e os túmulos em moradas bem-aventuradas e em berços. É assim que para
os grandes místicos a linguagem da carne recobre a semântica da salvação,
é o mesmo verbo que exprime o pecado e a redenção (DURAND, 1997, p.
273).
Podemos classificar através dos elementos iconográficos as culturas de
77
predominância diurna, pois apresentam uma exaltação à figura humana e tendem a
gigantizar os heróis e suas ações, ao passo que as culturas que se constituem
ligadas ao misticismo, ao sentimento cósmico, privilegiam o naturalismo, tanto a
solidez da rocha quanto a leveza da onda. O símbolo da taça, o ciclo, o retorno, o
agradável são elementos noturnos.
Existe uma constelação de símbolos que giram em torno do domínio do
tempo, classificados como “cíclicos”. O tarô, o denário e o pau, o calendário, a lua,
os astros simbolizam um eterno retorno. A frutificação, a árvore, o batismo, as
cerimônias iniciativas, os sacrifícios, os símbolos botânicos (arquétipos da paixão do
filho) são elementos que compõem a classificação cíclica.
Segundo Durand (1997), na animalidade, a imaginação do devir cíclico vai
procurar um triplo simbolismo: o do renascimento periódico, o da imortalidade ou da
inesgotável fecundidade e, ainda, a troca pelo sacrifício. O ciclo agrolunar possui um
esquema dinâmico de manifestações iconográficas. No Bestiário da lua classificam-
se animais heteróclitos, como o dragão, o caracol, o urso, a aranha, a cigarra, o
cordeiro e a serpente. Também os instrumentos e os produtos da tecedura e da
fiação são universalmente símbolos do devir, em razão do movimento rítmico e do
esquema da circularidade.
Durand (1997) enfatiza que o regime noturno do imaginário agrupa as
imagens em torno dos arquétipos do “denário” e do “pau” revelando a própria
tentativa sintética: a estrutura de harmonização de gesto erótico é a dominante,
relaciona as imagens ao grande universo musical e a astrobiologia. Na estrutura
dialética que tende a conservar os contrários no centro da harmonia cósmica, o
sistema assume a forma de um drama, onde as paixões são modelos. A estrutura
histórica não objetiva esquecer o tempo, mas antecipá-lo, prevalecendo a noção de
síntese.
3.3 Interferências midiáticas na construção de um leitor consciente
Atualmente a mídia constitui uma fonte dominante de informação social,
seletividade de desejo, sentimentos e valores. O pensamento visual mobiliza as
imagens num ritual sedutor e dinâmico, criando estereótipos e regras de consumo
voltadas às ideologias capitalistas. A escola, com suas paredes frias, saliva, quadro
78
e giz, acalenta a passividade diante da velocidade com que os acontecimentos
explodem na vida cotidiana.
um conflito cultural entre o saber escolar e o saber de apelo imediato da
televisão. A escola não tem enfrentado o conflito, e o adversário sai
ganhando. Pouco interessada em cultural, a escola busca o conhecimento
de conteúdos, a acumulação de informação, a cognição neutra e
inimaginativa (BARBOSA, 1995, p. 148).
Nesse contexto, a educação emocional ocorre através dos meios de
comunicação de massa, uma vez que a família tem uma carga horária de trabalho
que não deixa espaço para diálogos e a escola acaba se omitindo por abolir de seu
contexto a fantasia, as brincadeiras, as leituras de imagens... Assim, a educação do
sentir fica à mercê das novelas, dos filmes, das minisséries, que criam uma
linguagem comum, um conjunto de valores impostos pela realidade virtual que
banaliza a vida, os sentimentos humanos e a solidariedade.
A reconstrução da linguagem escolar pode instigar a criança a criar suas
próprias imagens, a refletir sobre comportamentos e estimular leituras críticas e
conscientes sobre as informações visuais. A possibilidade de fazer escolhas amplia
a significação da experiência, tornando a mímese imagética um meio para ver onde
os outros não o fizeram. Apreendendo imagens em movimento, reorganizando-as,
incluindo experiências pessoais, fantasias, recriando a cena, estamos exprimindo
reflexões que podem direcionar o visual para o exercício da cidadania.
O discurso das culturas vividas torna-se um instrumento de questionamento
para professores, a fim de esclarecer não somente como o poder e o
conhecimento se cruzam para negar a capital cultural dos estudantes de
grupos subordinados, mas também como essa interação (entre
conhecimento e poder) pode ser traduzida para uma linguagem de
possibilidade (GIROUX, 1998, p. 96).
Essa linguagem de possibilidade, entretanto, ocorre na medida em que a
construção de um leitor de arte se revela importante e significativa ao cotidiano
escolar, proporcionando novas visões de mundo, novos meios de pensar e sentir.
Neste contexto a sensibilidade torna-se instrumento para, uma ação que
viabilize a reeducação da visão, proporcionado um sentido mais amplo para
uma pedagogia do ensino da arte que busca na estética do cotidiano uma
possibilidade de ensino. Esta não se constitui enquanto tarefa simples ao
educador, mas uma roda viva e ativa de valores que se recria a cada
instante, sendo capaz de resignificar o gosto, o cheiro, o tato, o sentir e a
própria maneira de viver (BARBOSA, 1995, p. 153).
79
3.4 O olhar e a crise do processo de criação
O processo de criação não é um dom divino, restrito a poucos privilegiados,
mas uma habilidade que se desenvolve conforme a relação sociocultural que o
indivíduo exerce com o seu meio, ou seja, é preciso que tanto os educadores quanto
os educandos procurem se situar mediante os conflitos políticos, econômicos e
sociais a fim de perceberem as dificuldades do país no qual estão inseridos. Afinal,
que sociedade estamos formando? E qual é o objetivo dessa formação? Quais
seriam nossas limitações e a que elas se relacionam? Necessitamos, urgentemente,
modificar a hostilidade naturalizada tanto no nosso comportamento quanto no nosso
modo de ver e pensar.
Estamos em meio a um processo de transição violento, sangrento, no qual
nos deparamos com o medo, com novos atentados terroristas, a fome, a
globalização; criamos uma guerra pela sobrevivência buscando desenvolver novos
projetos, inteligência artificial, clones e experiências, contudo percebemos a falta de
respeito e valorização da sensibilidade.
É chegada a hora de perceber o homem como um ser plural, capaz de, a
cada minuto, criar, reciclar e reinventar, sonhando e construindo caminhos rumo a
um novo projeto de desenvolvimento sustentável; criando sua interdependência
através de uma visão crítica e consciente, que lhe possibilita reinventar a vida ao seu
modo, desacostumando-se da violência, da crueldade, dos abusos dos predadores
de sua própria espécie.
Podemos enumerar fatores que levam o homem a reforçar o comodismo e a
naturalização dos fatos. A escola que suprime e fragmenta saberes exaltando uma
determinada área em detrimento de outra é um deles, assim como a própria
televisão, que tem sido usada para manipular através de imagens em movimento, de
apelos consumistas que acabam por ampliar as barreiras, dividindo os indivíduos por
classes sociais e não dando margem ao conhecimento ou à reflexão.
Suas possibilidades tecnológicas lhe permitem um alcance planetário.
Esgota pela repetição, ocupa o imaginário de milhões de pessoas, atribui
credibilidade a falsos referenciais e funciona como deflagrador de um
processo de consumo escapista (HUMBERTO, 2000, p. 14).
A não-valorização de programas educativos, de documentários, e a falta de
80
investimentos em projetos culturais tornam o homem uma marionete de sua própria
espécie. “Pelo controle imposto por seus proprietários, que, no interesse de suas
alianças, manipulam a informação, camufla a gravidade de uma crise sem
precedentes” (HUMBERTO, 2000, p. 14).
Acabamos, pois, suprimindo nossa própria identidade à medida que nos são
injetados valores estranhos, os quais o absorvidos como verdades absolutas e
ramificados como uma substância letal. Acabamos perdendo a nossa visibilidade
sobre o nosso cotidiano, criando parâmetros comparativos com a excelência do
outro e refutando nossa singularidade e o nosso próprio meio de expressão,
enterrando nossa auto-estima num jazigo onde não existe a originalidade ou a livre
circulação de informação, trocas de experiências ou incentivo à diversidade.
Sabemos que a identidade cultural é construída em torno das evidências
das diferenças. Se as diferenças culturais são embaçadas, o ego cultural
desaparece. Portanto, a procura por uma identidade cultural e a educação
multicultural o são operações em diálogo, mas um inter-relacionamento
complexo e dialético (BARBOSA, 1998, p. 80).
A desvalorização da nossa produção expressiva leva-nos a crer em padrões
estéticos predeterminados, com o que negociamos no brique ou no brechó a nossa
criatividade, esterilizando nossos valores pela exaltação da internacionalidade.
Devemos aprender a aprender, trabalhar sem discriminar ou radicalizar com o
isolamento ou a negação de uma cultura universal; saber reconhecer o nosso valor e
aprender com as diferenças faz parte do processo crítico-criativo com o qual
sonhamos. “Somos aceitos em momentos de excepcionalidade ou pelo caráter
exótico de uma produção. Não existem olhos com disponibilidade para nos enxergar,
nem gosto pela descoberta ou possível surpresa” (HUMBERTO, 2000, p. 15).
As autoridades competentes de nosso estado e país estão aflitas com
problemas ditos “urgentes”, como a falta de moradia, a fome, menosprezando a
educação do olhar, falhando na falta de ações possivelmente estimuladoras dos
processos de criação. E quando abordo o termo “criação”, penso não somente na
criação de imagens, quadros ou esculturas, mas na criação de soluções. Que tipo de
conhecimento seria compatível com uma sociedade cheia de necessidades e
urgências?
Numa noite, em meio a uma palestra na instituição de ensino na qual leciono,
81
ouvi um relato de um morador de uma cidade vizinha sobre seu prefeito, que havia
retirado algumas famílias do lixão e dado-lhes casa própria, imaginando assim ter
solucionado o problema. Contudo, “essa gente”, após alguns meses, vendeu sua
casa e voltou ao lixão. Refletindo sobre os problemas sociais do nosso povo, percebi
o quão despreparado era esse governo, que, ao invés de oferecer um programa de
empregos, ou uma cooperativa de trabalhos, dera-lhes somente uma casa, a qual
venderam para comprar comida, retornando ao lixão, sua fonte de renda! Não
estamos mais na época em que pão e circo nos eram suficientes. A crise da
economia brasileira permeia todos os setores e poderá ser revertida se
observada por diversos ângulos, valorizando todos os setores.
A questão cultural e os meios de implementação e aplicação de um processo
criativo real são tratados segundo a visão das classes dominantes, que selecionam
da cultura aquilo que lhes convém e massacram o popular, discriminando o ponto de
vista do outro.
Não por que ter pudor em cobrar do Estado o cumprimento de seus
compromissos. Ele deve ser o mantenedor de uma política de apoio que
viabilize uma produção inovadora, mesmo quando rejeitada pelo mercado,
por não se encaixar em seus objetivos de lucro. A ele cabe preservar os
resíduos de nosso passado, agregá-los todos a um sistema de bases
referenciais que, junto com o estímulo à experimentação, irão se constituir
em informadores e revitalizadores de um processo de criação (HUMBERTO,
2000, p. 15).
Um ser humano exerce sua cidadania ao ter acesso ao ato de criar, observar,
sentir e refletir. Quando negamos ao seu processo de crescimento essas
oportunidades, estamos fragmentando sua formação, contribuindo para a
continuação de um processo arcaico, que trata o homem como um ser abstrato,
insensível, que sobrevive das migalhas e ideais de seus “superiores”. Reinventam-
se, desse modo, as necessidades aplicadas em função dos interesses comerciais
momentâneos. “O cotidiano é enlouquecedor, pontuado por uma sucessão de
absurdos e desnecessários dramas e tragédias”.
Você já percebeu como almoça?
Geralmente quem manda na televisão é o pai de família. Então, sentamo-nos
à mesa e o som da TV predomina sobre o dos talheres, pois ele quer ouvir o jornal.
Seus filhos não contam sobre a escola ou jogo de futebol, porque ele quer estar por
82
dentro das notícias. Comemos ouvindo sobre o João que foi esfaqueado numa briga
de botecos, assistimos à carnificina das guerras, escutamos sobre tiros, inflação,
aumento do combustível, e não conversamos. Desenvolvemos, dia após dia, o gosto
pela destruição, a morbidez de mastigar ouvindo prazerosamente o noticiário policial;
simpatizamos com as cenas de suicídio e nos naturalizamos com uma realidade
demolidora. Acostumamo-nos, portanto, a ser nojentos e nem percebemos.
Tornamo-nos pouco a pouco depressivos, carentes e frustrados. Ficamos
incapazes de nos compreender, de rir ou nos encantar com a simplicidade da vida,
com o pôr-do-sol ou com qualquer manifestação de inteligência externa a nós.
A educação do olhar é uma ão pedagógica consistente que extravasa as
molduras da sala de aula para instalar-se como essência na vida do sujeito,
seja ele o educador, seja aluno ou qualquer outro indivíduo captado por
essa órbita, levando-o a romper as teias do automatismo e da massificação
e a instaurar uma nova ordem de percepção, e, portanto, de significação,
em suas relações com a realidade (BUORO, 2002, p. 236).
Somos a única espécie autodestrutiva, sem estabilidade emocional;
sonhamos com a felicidade, mas às vezes passamos a vida procurando sem a
encontrar. Tornamo-nos seres destrutivos, perigosos, viciados ao nosso egoísmo e
incapazes de criar; fruto da falência educacional, adorador da doença, prisioneiro da
reclamação, o homem torna-se um ser atormentado.
Nesse conflito existencial, entretanto, ainda existem aqueles que lutam para a
transformação da realidade, ampliando seu acervo de visões de vida, adquirindo
com as experiências efetuadas nas mais variadas linguagens. Esses assumem o
papel de informadores, produzindo generosas sementes, pequenas idéias próprias
de suas análises críticas do meio sociocultural ao qual pertencem, deixando uma
herança de recados sensíveis que têm por finalidade despertar o olhar adormecido
de cada um de s, para que sejamos sobreviventes ao caos e consigamos
transmitir às gerações futuras o equilíbrio suficiente para a análise da nossa própria
realidade.
Contido dentro de sua casca, confinado nos limites de sua mesquinharia
ao mesmo tempo em que se desespera e luta contra eles –, o homem
consegue, ao trilhar seus caminhos de expressão, enxergar a grandeza,
voar pela imaginação. Viaja por universos paralelos, abre janelas e
descobre novas paisagens (HUMBERTO, 2000, p. 17).
83
A reeducação do olhar liberta através do conhecimento estético, do
conhecimento individual e singular de nossa essência, na medida em que nos
permite ampliar nossa percepção, compreendendo novos modos de investigação,
alcançando e experimentando novos caminhos, recriando outros sentidos e
significados para a própria vida. Assim, balançamos entre a busca da superação de
paradigmas e o retorno às barreiras de nossos medos.
Fazer desse processo um elemento concreto exige-nos ter acesso aos
nossos referenciais histórico-culturais, para que a mobilização na prática possa ser
sensível aceitando elementos novos à medida que avançamos expressivamente em
busca de uma poética singular e significativa, nascida através dos frutos envolvidos
na cumplicidade de nossos erros e acertos, buscando um resultado ativo no
processo de criação, a fim de que ocorra uma organização intencional dos
elementos da linguagem apropriada.
CAPÍTULO IV
RELATÓRIO DA OFICINA DE FOTOGRAFIA
O presente relatório foi organizado de acordo com a ordem dos encontros
pela manhã, com a turma do primeiro ano primário e, à tarde, com a turma do quarto
ano primário. Para facilitar o acompanhamento das atividades, as imagens
trabalhadas em cada encontro estarão dispostas no início do dia descrito; em
seguida, descreveram-se os encaminhamentos didáticos feitos e alguns comentários
das crianças.
Imagens do primeiro encontro:
Imagem 1 - Campo de Nasir Bagh, 1996
Fonte: SALGADO, 2000.
Imagem 2 - Campo de Kamaz, 1996
Fonte: SALGADO, 2000.
Imagem 3 - Crianças deslocadas que perderam
suas família, 1994
Fonte: SALGADO, 2000.
Imagem 4 - Acampamento de Sem-terra em Rio
Bonito do Iguaçu, 1996.
Fonte: SALGADO, 2000.
Imagem 5 - Criança ianomâmi em Lafakabuco,
1996
Fonte: SALGADO, 2000
Imagem 6 - Campo Quilômetro 42 de Biaro, 1997
Fonte: SALGADO, 2000.
86
Imagem 7 - Campo de Kamaz, 1996
Fonte: SALGADO, 2000.
Imagem 8 - Acampamento do sem-terra em Rosa
Prado, 1996
Fonte: SALGADO, 2000.
4.1 Relatório dos encontros
4.1.1 Primeiro encontro – 1º ano inicial – Dia 28/06/04
Entramos na sala com muita euforia, pois os alunos o esperavam pela aula
de artes, que não estava prevista no horário. Expliquei-lhes que iríamos fazer uma
oficina de fotografia e, por isso, teríamos aulas de artes todos os dias, com o que
eles gritaram e vibraram com a notícia. Também os informei que a oficina seria uma
parte da pesquisa desenvolvida pela professora para o mestrado em Educação na
Unoesc Joaçaba e, por isso, seria anotado e gravado tudo o que fizessem.
Comecei falando sobre a fotografia, e perguntei-lhes sobre quando
fotografavam. Eles responderam: “Quando vamos na praia”; “Em casa”; “Quando
meu irmãozinho faz alguma coisa engraçada”; “Quando vamos no rio”; “Da e da
mãe!”; “Nas festas de São João”; “Quando andamos de barco”; “Dos animais de
estimação”; “Quando vamos no zoológico”; “Quando somos bebê”; “Quando vamos
pro centro!”; “De aniversário...”
Perguntei se alguém conhecia a história de Sebastião Salgado, ou se já
haviam escutado algo dobre ele. As crianças responderam: “Ele devia ser um
87
menino que comia muito salgadinho”; “Acho que ele caiu no mar! Porque a água do
mar é salgada”. Então contei-lhes a mesma história que havia relatado para o 4º ano
inicial, informando-os sobre Sebastião Salgado. Após, perguntei-lhes: “Vamos ver
quem adivinha qual era a profissão do pai de Sebastião Salgado?”. Eles
responderam: “Fotógrafo”; “Pintor”; “Vendia salgadinho”; “Pegava milho”; “Jogador
de futebol”; “Agricultor...”
Continuando a história, falei sobre a profissão do pai de Salgado e que o
fotógrafo estudara economia, fazendo mestrado e doutorado nessa área. Após
perguntei-lhes: “- O que faz um economista?”. Eles responderam: “Economiza água”;
“E luz”; “Economiza dinheiro nas empresas”; “Trabalha com os números”.
Terminei a história relatando que Salgado se casara com Lélia, trabalhara
como fotojornalista e viajando por 41 países para realizar uma pesquisa sobre os
trabalhadores e as pessoas que migram em busca de uma vida melhor. Relatei-lhes
que essa pesquisa resultara num livro chamado Êxodos, cujas imagens iria mostrar-
lhes (SALGADO, 2000). Em seguida mostrei-lhes a primeira fotografia, realizada em
Peshawar, campo para refugiados afeganes, no Paquistão.
Sobre o fato, eles falaram: “É uma velha”; “Roubou a roupa de sua avó”; “Está
perto de uma cabana”; “Ela foi no chiqueiro, se sujou e teve que pegar uma roupa de
sua avó”; “É feia”; “O tecido é liso”; “Tem um lenço na cabeça”; “Atrás dela tem uma
casa”; “Ela cabe num retângulo”.
Observando a segunda fotografia, realizada em Mazar-e-Sharif, para
afeganes deslocados no Afeganistão, pedi a eles que ficassem atentos aos detalhes,
à composição, à textura, aos sentimentos que a imagem provocava. Em seguida,
eles expressaram: “Acho que eles estão num buraco”; “Estão molhados”; “Devem ter
caído no buraco”; “É um menino e uma menina”; “Eles estão tristes e com fome”; “O
tecido da roupa é áspero”; “Acho que o tecido é liso”; “Aparece mais uma luz na
cabeça”; “E na perna”; “Acho que o fotógrafo ficou na frente deles”.
Antes de apresentar a imagem seguinte, solicitei-lhes que tentassem se
lembrar das aulas em que a professora explicara a composição, as formas, as linhas
e que relacionassem isso à fotografia que iríamos ver. Com relação à imagem três,
fotografada em Mapeia, província de Zambeze, em Moçambique, eles falaram: “Ele
está preso”; “Está sem as pernas”; “É um menino”; “Tem as roupas rasgadas”; “Está
88
sujo”; “Bravo”; “Está bravo porque o pai trabalha muito”; “Ele cabe num triângulo”;
“Tem mais luz na cabeça”; “Ele está numa casa de castigo”; “O pai deve estar
desempregado”.
Conseguimos aqui perceber que, nesta faixa de idade, as questões subjetivas
e emocionais são mais relevantes para a criança. Em seguida, mostrei-lhes a
imagem quatro feita no Paraná, Brasil. A essa altura, os alunos estavam bastante
eufóricos, quase todos falavam ao mesmo tempo e queriam participar. Disseram: “É
um menino”; “Ela está perto da casa”; “Está no mato fechado”; “Está na praia”; “Está
triste”; “Está descabelada”; “Atrás dele tem uma cabana”; “Não, atrás dele tem uma
roupa”; “Tem um monte de manto atrás dele”; “Tem muita solidão nesta foto”; “Ele,
apanhou do pai! Apanhou porque não obedeceu!”; “O pai dele deve ser bravo!...”
Nessa etapa do trabalho percebi que a primeira rie, a partir da imagem,
imaginara muitas histórias acerca da família do menino, talvez algumas relacionadas
as suas vivências, que nessa fase a criança se considera como referente em
relação ao meio. Também verifiquei que foi a primeira vez que observaram
atentamente o fundo, não só a figura, percebendo o todo da composição.
A imagem cinco corresponde à realizada na Serra dos Surucucus, Roraima,
Brasil. Sugeri que as crianças tentassem colocar a figura dentro de uma forma
geométrica e também buscassem imaginar como o fotógrafo agira para obtê-la.
Sobre essa imagem as crianças gritavam: “Ah, meu Deus! Como ele é bravo!”; “É
um índio eu sei!”; “Tem os dentes feios”; “Tá espetado! Tem palitos espetados nele”;
“É muito gordo! Tem que fazer regime”; “Está triste”; Tem muita sombra, deve ser
de noite!”; “Ele na floresta, tem árvores, por isso está escuro”; “O fotógrafo deve
ter ficado com medo”; “Ele está pintado”; “Não está, é sangue na barriga!”; “Tem luz
na barriga e no rosto!”; “Acho que o fotógrafo ficou bem longe para tirar a foto”; “Ele
não cabe num quadrado porque é gordo”; “Nem num retângulo!”; “Ele não cabe nas
formas!”; “É porque não fez regime”.
As crianças continuavam eufóricas e queriam tocar as imagens, olhá-las bem
de perto. Sobre a foto número seis, de refugiados hutu, ruandeses, entre Ubundu e
Kisangani, no Zaire, os alunos relataram: “Tá triste”; “Foi jogado no mato, dentro
dum saco”; “Tá magro, não tem comida”; “A mãe dele jogou ele no lixo”; “Ele foi
trocado no hospital por isso que a mãe jogou ele no mato”; “É porque ele era negro e
ela era branca, daí descobriram a troca”; “Ele cabe num triângulo. É bem magro e
89
aparecem os ossos”; “Tem luz na testa, no mato, no nariz...”; “Eu sei de uma mulher
que também jogou o filho no lixo, daí a é a mãe”; “O saco é a roupa, deve ser
bem áspero”.
Com essa imagem eles ficaram impressionados e estavam curiosos para ver
mais. Então, começaram a relacionar fatos corriqueiros, histórias que tinham ouvido
falar, e a euforia foi surpreendente. Continuavam atentos, mas sempre dando ênfase
às questões emocionais. Sobre a imagem número sete, de afeganes deslocados no
Afeganistão, os alunos exclamaram: “Tem uma mochila”; “Deve estar indo pro
colégio”; “Ele é branco”; “Ele está usando uma blusa branca”; “Ele foi trocado na
maternidade”; “Ele está feliz”; “Tá feliz porque se livrou da mãe”; “Ele cabe num
retângulo”.
A essa altura ficava difícil sugerir a observação de detalhes, porque todos
queriam falar e de alguma forma relacionar a imagem a sua realidade. Alguns diziam
conhecer a criança, outros continuavam expressando seus conflitos pessoais na
história que fantasiavam para a imagem.
Sobre a foto número oito, realizada em Itamaraju, Bahia, fiz um suspense
antes de mostrá-la a fim de retomar a ordem. Com um olhar malandro, sussurrei que
essa imagem também era muito interessante e que deveríamos observar a luz, as
sombras, a organização, as formas... Sobre a foto os alunos falaram: “Ele cabe num
triângulo”; “Tem luz no fundo; “É um menino triste”; “Está de castigo”; “Aprontou e
olhando a bagunça que fez”; “Está apoiado numa madeira”; “Ela é áspera porque
espeta”; “Tem os olhos tristes”; “Não quer ir pra escola”; “Está pensando”; “É um
fantasma”; “Tomou banho, penteou os cabelos e tem cheiro bom”.
Observei que as crianças tinham ficado surpresas com as imagens e, de
alguma forma, sentiram-se tocadas com o que viam. Alguns, inclusive, chegaram a
se questionar se aquilo era “de verdade”, ou seja, real, reflexão que demonstra um
distanciamento da realidade daquele outro com o seu modo de vida. Ao mesmo
tempo, criavam histórias com elementos de seu cotidiano, deixando transparecer
alguns conflitos.
Sabemos que, nessa fase, a criança brinca e fantasia muito, ainda se
considerando o centro das atenções. Por isso, refletir sobre os outros, as
dificuldades de sobrevivência, tanto do ser humano quanto do planeta, é um dos
90
caminhos para uma educação solidária.
Ter um estado de espírito tranqüilo ou calmo não significa ser
completamente desligado ou ter a mente totalmente vazia. A paz de espírito
ou a serenidade têm como origem o afeto e a compaixão. Nisso há um nível
muito alto de sensibilidade e sentimento (LAMA e CUTLER, 2000, p. 28).
Despertar a sensibilidade é um sentir sobre aquilo que vemos não é uma
tarefa fácil, pois a apatia é algo que interessa a muitos; a insensibilidade e a
naturalização da violência são algo cotidiano e o comum que são concebidas
como normais. Por isso, é interessante estimular reflexões desde os primeiros
momentos da criança na escola para que ela se construa como um ser pensante,
sereno e capaz de sentir compaixão.
Lama e Cutler (2000) afirmam que, sem adquirirmos a disciplina interior que
traz a serenidade mental, não importa quais sejam nossos sonhos, conquistas e
recursos externos que consideramos necessários para a felicidade, eles nunca nos
darão a sensação de alegria e felicidade que buscamos. Nós, educadores, temos a
função de possibilitar para nós mesmos e para as crianças oportunidades para que
essa serenidade interior possa se desenvolver. Para isso, temos de parar de negar a
intuição, os sentimentos e as sensações cotidianas e apreender a trabalhar com
elas, a desenvolvê-las.
Um dos agravantes maiores para esta degradação é a estonteante ausência
de condições relacionais entre os humanos capazes de propiciar
comportamentos solidários. Nem a solidariedade e nem a responsabilidade
são resultados de extorsões, mas sim de um profundo sentimento de
aceitabilidade e de significação do outro (STRIEDER, 2002, p. 183).
Desenvolver a sensibilidade e a compaixão pode ser responsabilidade de
todas as disciplinas, mas, sendo o ensino da arte uma janela aberta para sentir,
tocar, fazer arte e ler imagens, não pode de maneira alguma se eximir desse
processo de alfabetização visual.
Em seguida encaminhei a atividade na qual os alunos desenharam o que
haviam sentido em relação às fotografias de Salgado. Como materiais foram
utilizados carvão, lápis de cor, folhas de ofício e fixador (Anexo 1).
91
4.1.2 Primeiro encontro – 4º ano inicial – Dia 25/06/04
A oficina iniciou no dia 25 de junho com a turma 43, da série, no turno
vespertino. As crianças não sabiam que seria uma aula diferente, mas o encontro
estava previsto no horário normal da escola. Chegando à sala, acomodei os alunos
e solicitei a sua atenção para um recado, todos me olharam com aquela cara que
parecia dizer: “Que saco!”
Expliquei-lhes, então, que havia feito um acordo com as outras professoras da
turma para trocar com elas por uma semana todo o horário, pois gostaria de realizar
uma oficina de fotografia. Para isso, precisava realizar um encontro por dia; portanto,
durante uma semana ocorreriam aulas de artes todos os dias. Nesse instante, houve
tumulto e todos gritavam: “Oba!, Eh!, Viva!...” Demoramos alguns minutos para
retomar o assunto.
Logo surgiram as primeiras perguntas: “Vamos trabalhar com tinta?”; “Vamos
estudar fotografia? Temos que comprar uma máquina?”; “Tem que pagar para fazer
a oficina?”. Expliquei-lhes, então, que a oficina era uma parte da pesquisa que eu
estava desenvolvendo no meu curso de mestrado, razão pela qual eu também tinha
uma professora bem curiosa, que gostaria de saber como aconteceria essa oficina;
por isso, eu iria gravar as nossas conversas e fotografar os trabalhos. Eles
concordaram e logo um dos meninos questionou: “Você vai mostrar tudo para ela?
Então vamos virar uma celebridade?” (risadas da turma).
Começando a conversar sobre fotografia, perguntei-lhes: “O que é um
retrato?”. A turma respondeu: “É uma lembrança”; “Uma lembrança do passado. De
muito tempo”; “Uma recordação”; “São emoções, passagens pelo tempo, assim
quando a gente tira uma foto de uma pessoa e depois de muito tempo você acha
92
aquela foto, quando você olha dá uma emoção, saudade daquele tempo”; “Acho que
é por isso que minha mãe vive dizendo que no meu tempo não era assim...”; “Vai
ela tirou um retrato!”; “Hi, acho que naquele tempo nem existia fotografia”.
Continuando nossa conversa questionei-os: “O que precisamos para tirar uma
fotografia?”. Eles responderam: “Uma máquina”; “Filme”; “Pessoas”; “Um lugar”;
“Mas poderia ser uma máquina digital, daí o vai filme”. Então perguntei-lhes:
“Como é uma máquina digital?”. Obtive em resposta: “Ela é parecida com as outras,
que no lugar do filme tem uma memória que grava tudo o que a gente bate. Daí
tem um fio que você liga no computador e a foto vai parar dentro dele, depois você
imprime”; “Ah, então tem um outro tipo aquela que sai na hora, vai filme e não é
digital eu vi na televisão”.
Questionei-os, após: “Como revelamos um filme?”. O aluno Diego deu um
show na sua explicação: “Primeiro nós levamos para a loja, que leva a máquina para
um quarto escuro, depois ascende uma luz vermelha e tiram o filme, colocam num
aparelho e esse aparelho amplia, tudo no escuro. Depois, deixam uma luz e a foto
grava num papel que é colocado num líquido e, depois de seco, a gente paga e leva
para casa”.
Conversamos um pouco sobre a revelação. Em seguida, expliquei-lhes que o
papel sensibiliza-se com a luz, por isso existe a câmara escura; os líquidos são o
revelador e o fixador. Também falamos sobre a possibilidade de tirar fotografia sem
máquina e sobre o que é um ensaio fotográfico. Os alunos mostraram-se curiosos e
interessados. Após, contei-lhes uma pequena história sobre Sebastião Salgado,
adaptada por mim para a compreensão das crianças.
Relatei-lhes que Sebastião tinha sete irmãos, que havia nascido no interior de
Minas Gerais no ano de 1944. Perguntei-lhes: “Que profissão o pai de Sebastião
Salgado exercia?”. Eles responderam: “Ele devia ser ferreiro”; “Acho que ele era
fotógrafo. Devia ser uma tradição”; “Não, ele era motorista!”; “Cantor”; “Professor”;
“Pescador!”; “Agricultor! Tinha muitas vacas”.
Continuando a história, contei-lhes que seu pai era pecuarista e que
Sebastião havia estudado Economia, inclusive mestrado e doutorado na área.
Casara-se com lia e trabalhara como fotojornalista, sempre se interessando por
temas sociais. Pesquisou em 41 países os trabalhadores e o movimento de
93
migração, construindo um ensaio denominado Êxodos.
Perguntei se eles sabiam o que era o êxodo rural, ao que eles responderam:
“Estudamos isso o ano passado”; “As pessoas vivem no campo sem conforto, sem
dinheiro e trabalham muito. Então, cansam dessa vida e vão para a cidade”; “E nas
cidades formam as áreas de riscos, as favelas nos morros que podem desabar,
podem queimar, eles não têm luz elétrica e, quando tem, é roubada, sem
segurança”; “Eles não têm educação, morrem de anemia, não têm saneamento
básico e nem higiênico”; “E nas favelas, dormem numa casa de cinco ou seis
pessoas é tão pequeno que não tem quarto”; “E o prefeito e a polícia não podem
tirar eles dali sem dar um outro lugar para eles morar”; “Acho que eles são sem
terra”.
A essa altura, todos queriam falar e estavam no auge do barulho. Então
perguntei-lhes: “Quando tiramos fotografias?”. Eles responderam: “Nos casamentos”;
“Em aniversários”; “No ano novo, Natal, Páscoa e formatura”; “É, vamos tirar na
formatura do Proerd
2
”; “De lugares bonitos, viagens, cruzeiros, festas juninas,
momentos emocionantes, de eclipses e dos planetas, andando de trem...”
Expliquei-lhes que iríamos realizar uma leitura da imagem a partir das cópias
das fotografias de Sebastião Salgado e solicitei-lhes que observassem os tipos de
linhas (retas, curvas e mistas), onde a fotografia acontece, o que aparece ao fundo,
onde há mais luz, o que está acontecendo, quais são os sentimentos que desperta.
Como critério de seleção das fotografias escolhi aquelas que apresentavam
figuras humanas. Expliquei-lhes que se tratavam de imagens em preto e branco.
Houve um comentário bem espontâneo: “Acho que ele não tinha dinheiro para
fotografar coloridas”. Em seguida outro revidou: “Não, é porque o existiam fotos
coloridas, naquela época”; “Ele fotografava em preto e branco porque dava mais
emoção!”
As crianças adoraram a história de Salgado, estavam encantadas e
buscavam descobrir um universo misterioso acerca de sua vida. Seus olhos
brilhavam a cada pergunta, ficaram eufóricos, participaram muito buscando
respostas, sentiam-se mais íntimos do fotógrafo a cada passo, pois estavam criando
2
O Proerd é um programa que a Polícia Militar desenvolve em parceria com as escolas com o
objetivo de prevenir a violência e o consumo de drogas. Neste programa policiais ministram aulas e
finalizam as atividades com formatura e certificado.
94
um laço afetivo, ampliando significados.
Educar é contar histórias. Contar histórias é transformar a vida na
brincadeira mais séria da sociedade... Dentro de cada ser humano, mesmo
dos mais formais um palhaço que quer respirar, brincar e relaxar. Deixe-
o viver. Surpreenda os jovens. Nossos filhos precisam de uma educação
séria, mas também agradável. Abra um sorriso, abrace os jovens, conte-
lhes histórias (CURY, 2003, p. 73).
Então mostrei-lhes a primeira imagem: Campo de Nasir Bagh, em Peshawar,
para refugiados afegãs (Paquistão, 1996). A respeito, eles declararam: “É um
menino assustado”; “Tem um lenço na cabeça. Ele mora numa barraca”; “É pobre,
está triste”; “Deve ser árabe”; “Está na guerra. Está triste”; “Está passando fome”;
“Aparecem linhas curvas no lenço”; “Aparecem linhas retas na barraca”; “Acho que é
uma menina de saia, tem flores na saia”; “Ela está com fome no deserto”; “Deve
estar com frio”; “O fotógrafo deve ter ido bem na frente dela para tirar a foto”.
Apresentei-lhes, após, a imagem dois: Campo de Kamaz, em Mazar-e-Sharif,
para afeganes deslocados (Afeganistão, 1996). Sobre a foto as crianças falaram:
“São duas pessoas tristes”; “Deve ser dois irmãos”; “São podres e sujos”; “Eles são
sozinhos e não têm pai. Um cuida do outro”; “Um está descabelado”; “Acho que os
pais morreram na guerra”; “Ele não gosta de pentear os cabelos”; “Tem mais luz no
rosto deles”; “E no joelhos”; “O muro é de cimento e tijolo”; “Mas tem argila, eles
estão perto do murro porque são mendigos”; “As rachaduras do muro são linhas
curvas”; “Não! São mistas”; “A roupa é áspera está suja”; “Acho que eles caberiam
num quadrado”.
Observando a imagem três, Crianças deslocadas quando perderam suas
famílias em Mopéia, Província de Lambeze (Moçambique, 1994), as crianças
falaram: “Ele é negro”; “Está furioso”; “Ele não tem pernas”; “Usa roupas velhas e
rasgadas”; “Ele é mal-humorado”; “Deve trabalhar na lavoura”; “Foi escravizado”; “É!
Ele foi escravizado porque era preto”; “Acho que quando bateram a foto ele estava
chorando”; “Não! Ele estava chorando porque bateram nele quando foi escravizado”;
“Está bravo porque está usando um vestido, ele é um menino”; “Essa roupa é
áspera, tem umas pintinhas, não são bolinhas”; “Deve ter um machucado na perna”;
“Aparece luz no muro, na testa, no nariz e na mão”; “A figura cabe num triângulo”.
Podemos perceber pela empolgação das crianças como a observação e a
leitura de imagens são experiências significativas. Todos se sentem felizes ao
95
participar, imaginando situações.
[...] a contemplação estranho poder da alma humana capaz de ressuscitar
seus devaneios, de recomeçar seus sonhos, de reconstruir, apesar dos
acidentes da vida sensível, sua vida imaginária. A contemplação une mais
ainda lembranças que sensações. É mais ainda história que espetáculo. É
quando acreditamos contemplar um espetáculo prodigioso de riqueza que o
enriquecemos com as lembranças mais diversas (BACHELARD, 1990, p.
169).
Nessa contemplação das fotografias e da própria turma em si, a atividade
segue como um brincar suavemente encantado.
Sobre imagem quatro, Acampamento de sem terra em Rio Bonito do Iguaçu,
Paraná (Brasil, 1996), as crianças falaram: “É uma menina triste”; “Foi escravizada”;
“Tem a cara deformada”; “Perdeu os pais”; “É mal-humorada”; “Está suja e brava”; “É
descabelada”; “Mora numa favela”; “A bochecha está suja”; “É sozinha no mundo”;
“O fotógrafo devia estar na sua frente”; “Acho que ele tinha aquela coisa que
aproxima a imagem”; “Um zoom?”; “É um zoom”; “Ela tem luz no rosto”; “Ela acabe
num círculo porque a cabeça é redonda”; “Não ela cabe num triângulo”; “Ela tem a
cara deformada porque apanhou. Deve ter tirado nota baixa”; “Tem uma luz dentro
do olho...”
Sobre a imagem cinco, Criança ianomâmi em Lafakabuco, na serra dos
Surucucus, Roraima (Brasil, 1996), elas declararam: “É um índio fumando”; “Está
gordo e sem camisa”; “Na barriga tem mais luz”; “Tem pedaços de estacas no rosto”;
“Tem cara de maluco”; “É um canibal”; “É da tribo kayagangui”; “Parece um indígena
japonês”; “Está numa prisão muito escura”; “Ele quis colocar um piercing”; “Está na
noite, zangado”; “Está machucado”; “Deve ter cocais de pena”; “Acho que ele usa
uma coroa”; “Foi amarrado com as mãos para trás dentro de sua toca”; “Olha!
Aparecem as tetas”; “Ele usa um colar”; “Tem bastante escuro”; “A figura não é
definida. Tem mistério”; “Ele cabe num triângulo”; “É mas tem que ser um triângulo
gordo”; “Ele cabe num retângulo”; “Ele está morto”; “Parece que o fotógrafo tava
meio abaixado”; “Devia ser de medo, ele era um canibal que tava preso”; “Foi
escravizado”.
Com relação à imagem seis, Campo Quilômetro 42 de Biaro para refugiados
Hutu Ruandeses, entre Ubundu e Kisangani (Zaire, 1997), os alunos disseram: “É
um negro”; “Mendigo”; “Seus pais foram escravizados”; “Tá sentado na grama”; “É
96
muito magro, não se alimenta bem”; “A roupa está rasgada, suja ele é desnutrido”;
“Ele cabe num triângulo”; “Ele foi jogado na grama está fraco”; “Tem luz na grama e
na testa”; “Tem os olhos tristes, o tecido é áspero”.
A foto sete, Campo de Kamaz, em Mazar-e-Sharif para afeganes deslocados
(Afeganistão, 1996), provocou os alunos a falarem: “É feliz”; “É um carteiro”; “A alça
da mochila é uma linha inclinada”; “Está indo para a aula”; “É branco”; “É um
estudante, o rosto está mais iluminado”; “Não, ele está indo num curso de
bombeiros”; “Deve estar indo na festa junina”; “Ele vende jornais!”; “É noite”; “Ele tem
um brilho nos olhos”; “Ele cabe num retângulo”.
Sobre a foto oito Acampamento de Sem Terra em Rosa do Prado, em
Itamaraju Bahia (Brasil, 1996), declararam: “Ele é triste. Cabe num triângulo”; “É
um estudante, o uniforme é branco”; “Tá prestando atenção em algo”; “Perdeu os
pais”; “Está de castigo, está triste porque ficou de castigo, queria estar brincando
com as outras crianças, é para elas que ele está olhando”; “Tem um rio atrás dele”;
“Tem linhas curvas na camiseta”.
A turma com a qual desenvolvi o trabalho sempre foi muito ativa, crítica e
dinâmica. Um dos elementos que a caracterizam é a curiosidade, pois eles sempre
perguntam muito, às vezes todos ao mesmo tempo. Todavia, quando começam a
desenhar, mergulham numa viagem interior encantadora, organizam-se buscando
criar sua composição rumo à qualidade estética; porém, não estão tão presos ao
certo e errado, agora experimentam a liberdade de sensações; procuram em seu
trabalho o que cada linha, cada forma, provoca em seu interior. “Quando a mente
pode invocar imagens à vontade (e suprimi-las à vontade), consegue representar as
coisas como elas se mostram aos sentidos” (READ, 2001, p. 146).
Em seguida encaminhei a atividade, na qual os alunos deveriam desenhar o
que haviam sentido em relação às fotografias de Salgado. Como
materiais
foram
utilizados
carvão,
lápis
de cor, folhas de ofício e fixados.
97
Imagens do segundo encontro:
Imagem 1 - Sem título
Fonte: RIO BRANCO, 2001, [s.p.].
Imagem 2 - Sem título
Fonte: RIO BRANCO, 2001, [s.p.].
Imagem 3 - Sem título
Fonte: RIO BRANCO, 2001, [s.p.].
Imagem 4 - Sem título
Fonte: RIO BRANCO, 2001, [s.p.].
98
Imagem 5 - Sem título
Fonte: RIO BRANCO, 2001, [s.p.]
Imagem 6 - Sem título
Fonte: RIO BRANCO, 2001 [s.p.]
Imagem 7 - Sem título
Fonte: RIO BRANCO, 2001, [s.p.]
Imagem 8 - Sem título
Fonte: RIO BRANCO, 2001, [s.p.]
4.1.3 Segundo encontro – 1º ano inicial – Dia 29/06/04
As crianças entraram na sala, acomodaram seus materiais e ocuparam seus
lugares. Estavam, neste dia, bastante agitadas. Então estabeleci um acordo com a
turma da seguinte forma: primeiro, a professora iria contar uma história “bem legal”;
99
depois, iríamos observar umas imagens e, em seguida, trabalharíamos com tinta.
Contei-lhes que Miguel da Silva Paranhod do Rio Branco nasceu em Las
Palmas de Gran Canária, na Espanha, em 1946. Atualmente com 58 anos, mora e
trabalha no Rio de Janeiro. Perguntei quais seriam as profissões de Rio Branco, ao
que eles responderam: “Fotógrafo”; “Pintor”; “Desenhista”; “Artista de TV”; “Vendedor
de revista”; “Agricultor”; “Pedreiro”; “Era rico e comprou um carro porque estamos
estudando ele”; “Vendedor de jornal”; “Vendedor de carros”; “Vendedor de cachorro
quente”; “Jogador de futebol...
A essa altura todos estavam muito curiosos para saber quem era Miguel Rio
Branco e o que ele fazia. Continuei contando que ele havia iniciado sua carreira
profissional em 1964 com uma exposição de pintura na Suíça. Na década de 1970,
trabalhou como fotógrafo e diretor de cinema com filmes experimentais em Nova
York. Ganhou muitos prêmios de fotografia no Brasil e no exterior.
Como os alunos estavam bem curiosos para ver as fotografias, iniciamos o
processo de descrição. Apresentei-lhes a imagem número um, que foi considerada
muito estranha: “É um rosto”; “Não! É a metade de um rosto”; “É uma boca cheia de
risquinhos”; “É uma boca e um nariz”; “Esse nariz é um triângulo”; “É uma mulher
aparece um olho”; “Ao redor da foto tem linhas retas”; “Sim a forma da foto é um
quadrado”; “No nariz tem mais luz”; “Perto da bochecha tem luz”; “Ela está no
cinema”; “Ela está dormindo”; “Ela está fazendo cinema”; “É uma artista, tem um
dente”.
Elogiei a primeira descrição e pedi que continuassem observando os
elementos da composição. Muito eufóricos, uns apontando o dedo e pulando ao lado
da carteira, impacientes para falar, observaram sobre a imagem dois os seguintes
itens: “É um olho, está piscando”; “É a mesma mulher da outra foto”; “Usa
maquiagem”; “Tem um olho fechado e outro meio aberto”; “Na testa, na bochecha e
no nariz tem luz”; “Está acordado”; “É uma mulher”; “Aparecem linhas retas nas
madeiras”.
Continuei elogiando os comentários, porém pedi que observassem que
sentimentos a imagem provocava em cada um.
Sobre a foto três os alunos falaram: “Ela está acordada”; “Está bravo, é um
homem”; “Tem a cara feia”; “O nariz é muito grande”; “Tem a sobrancelha muito
100
grande”; “O nariz é vermelho”; “Aparece a cor roxa”; “A pele é vermelha”; “A
sobrancelha é preta”; “Tem um branquinho no olho”; “E também tem um roxo no
olho”; “A testa é branca e está cheia de luz”; “Tem os olhos grandes”.
Percebi que, nesse contexto, as crianças gostavam mais de observar as
características formais e fantasiavam menos.
Observando a imagem quatro, os alunos ficaram bem impressionados com a
cor, elemento que chamou a atenção de todos sem exceções: “Tá montando um
quebra-cabeça”; “É da cor do sol”; “É laranja”; “E tem um pouco de vermelho”; “É um
pouco amarelo”; “É todo riscado”; “A sobrancelha é muito grande”; “Tá muito
arranhado”; “Tá machucado por isso tem um lado mais vermelho”.
Já, com relação à imagem cinco, o aspecto mais importante para os alunos foi
a idade do personagem da foto.
Si la imagen es el lugar en el que el sentido toma forma, lo imaginario se
describe como el espacio fantástico donde la imagen vuelve a representarse
a la mirada por médio de posibilidades infinitas, en formas y contenidos
divergentes, según una lógica de la ficción totalmente imprevisible
(GENNARI, 1997, p. 80).
A capacidade de imaginação nessa fase da criança é ilimitada; assim, a cada
característica observada surgiam novas histórias: “É um velho, bem noninho
mesmo”; “Não! Eu acho que é uma velha, ela tem muitos netos”; “Aparecem muitas
rugas”; “Estas rugas são linhas”; “É só um pedaço da velha”; “Parece o diretor!”; “Ele
está bravo”; “Parece uma cobra”; “Vai ver porque ele tem um veneno. Um veneno
escondido”; “O nariz é muito grande”; “É feio”; “Só aparece um pedaço do nariz”;
“Tem linhas na testa e no olho”; “O cabelo é cinza”; “As cores que aparecem são
branco, preto, cinza e marrom...”; “O olho é grande”; “A testa é grande”; “É bonita”;
“Tem pintinhas na pele”; “É muito marrom”; “Um lado tem mais sombra e o outro,
mais luz”; “Parece uma velha, ela é triste”; “Na testa tem linha reta”.
Sobre a foto número seis os alunos observaram: “É uma mulher”; “Tá
dormindo”; “Parece um homem”; “Tem um nariz pequeno, só aparece a metade”; “Só
aparece a metade do rosto”; “Tem roxo”; “Ela está dormindo na cama”; “Tá morta”;
“Não está morta, está bêbada”; “Tá machucada”; “Ela desmaiou”; “Tem mais na
bochecha”; “O nariz é mais vermelho”; “Tem linhas no olho”; “Ela usa maquiagem”;
“É um pedaço, um detalhe”.
101
Como todas as fotos anteriores haviam sido de um rosto, eles estavam
esperando outro, mas, ao se depararem com uma fotografia que não apresentava o
esperado, eles exclamaram formando um coro: “Oh! Olha!”; “São duas mãos com
um papel”; “Não é colorida!”; “São mãos de um homem”; “São mãos de um macaco”;
“É uma mulher lavando roupa”; “É um homem fazendo uma escultura”; “São mãos
de uma criança”; “Tá fazendo sabão”; “Está trabalhando com gesso”; “Está fazendo
o sabonete”; “Tá descascando batata”; “É triste porque é um trabalhador”; “Aparece
o preto e o branco”.
O foco de interesse da turma eram as questões subjetivas e emocionais, os
elementos formais eram percebidos, mas para os alunos o eram elementos
interessantes. Eles pareciam estar fascinados pelas cenas, queriam imaginar,
fantasiar situações. Sobre a imagem número oito expressaram: “É um homem dentro
de um barco”; “Ele está andando de skate”; “É um pedreiro”; “Caminha pela
calçada”; “Tem uma piscina atrás dele”; “Está em casa”; “Tem a calça suja”; “Tá
esperando o ônibus”; “O sapato é preto”; “A calça tá suja, deveria ser branca”; “Tem
um rio atrás dele”; “Tem mais luz atrás”.
As fotografias de Miguel Rio Branco levaram as crianças a imaginar muitas
coisas, às vezes voltadas as suas realidades, às vezes fantasiosas; o exercício
permitiu-lhes uma viagem pelo mundo da imaginação, possibilitando-lhes criar
muitas histórias acerca dos detalhes visuais percebidos. Buscamos estimular o
imaginário através da leitura das imagens.
A criança é um ser em contínuo movimento; são as transformações físicas, de
percepção, psíquico-emocional que promovem na criança um espírito curioso; seu
olhar aventureiro desvenda, considera e descarta de acordo com a sua vivência.
Podemos afirmar que diante das imagens surge um estado coletivo de
encantamento, e a descoberta une-se ao desejo de relação com o objeto observado,
como se quisessem tomar posse, o que ocorre à medida que a criança cria uma
fantasia sobre a imagem.
O que caracteriza os processos intuitivos e os torna expressivos é a
qualidade nova da percepção. É a maneira pela qual a intuição se interliga
com os processos de percepção e nessa interligação reformula os dados
circunstanciais, do mundo externo e interno, a um novo grau de
essencialidade estrutural, de dados circunstanciais tornam-se dados
significativos (OSTROWER, 1996, p. 57).
102
A percepção amplia sua qualidade à medida que leituras conscientes e
dinâmicas acerca de imagens atrativas para a série trabalhada são feitas
regularmente.
Em seguida os alunos realizaram uma pintura com guache sobre onde
imaginavam que as cenas fotografadas por Rio Branco estavam acontecendo.
Através da pintura todo o corpo participa do processo de criação e
imaginação; os movimentos do braço, os olhares atentos vão criando um clima
calmo, harmoniosamente prazeroso. Do papel brotam histórias coloridas que vão
dando forma às pinceladas; alguns pintam o rosto ou o braço, são tatuagens
solúveis que retratam o toque, um contato direto com o material.
4.1.4 Segundo encontro – 4º ano inicial – Dia 28/06/04
Inicialmente, relembramos o encontro passado e as características das
fotografias de Salgado. Perguntei-lhes, então, se conheciam Miguel Rio Branco, ao
que eles responderam que não. Contei-lhes, após, uma pequena história adaptada
103
por mim para que compreendessem um pouco da vida de Rio Branco.
Miguel da Silva Paranhos do Rio Branco nasceu em Las Palmas de Gran
Canária em 1946. Atualmente com 58 anos, mora e trabalha no Rio de Janeiro.
Perguntei-lhes: Além de ser fotógrafo, o que será que Rio Branco faz? Eles
responderam: “É arquiteto”; “Pintor”; “Escultor”; “E faz filmes experimentais, assim
como arte em multimídia”.
Iniciou sua carreira profissional em 1964 através de uma exposição de pintura
na Suíça. Na década de 1970, trabalhou como fotógrafo e diretor de filmes em Nova
York; em 1972, começou a expor seus trabalhos de fotografia e cinema. Ganhou
muitos prêmios de fotografia no Brasil e no exterior.
Em seguida falei de suas fotografias, que às vezes apresentam cenas de uma
composição, outras, detalhes de um objeto. Começamos, então, a observar as
imagens.
Sobre a imagem um, os alunos falaram: “É um rosto”; “Tem mais luz perto dos
olhos”; “Aparece uma linha reta na bochecha, nos dentes”; “A boca é vermelha”;
“Parece triste, num lugar azul”; “A figura parece meio triangular”; “Está dormindo”; “É
um detalhe”; “As cores o fortes”; “Está usando batom”; “Tem linhas nos lábios”; “O
nariz é um triângulo”.
Sobre a foto número dois, solicitei que as crianças observassem o que
parecia, onde apareciam linhas retas, onde surgiam linhas curvas, se existia textura,
como era a composição, as cores... Elas observaram: “É um outro rosto”; “Tem mais
luz perto dos olhos”; “Tem linhas curvas no nariz”; “Parece um quadrado”; “Tem luz
na testa”; “Não tem fundo”; “Está com sono”; “É um homem”; “Parece cansada. O
104
olho tem linhas curvas, a pálpebra é cansada”; “Estava de lado quando bateram a
foto”; “Não tem fundo, é um olho e meio num quadrado. Também é um detalhe”.
Sobre a figura três as crianças já começaram a imaginar onde a pessoa
estaria, deixando uma brecha à criatividade: “Está barbudo, é um homem”; “Os olhos
estão meio abertos, parece cansado”; “O nariz vermelho, deve ser de raiva”;
“Aparecem linhas curvas em cima do nariz, está com raiva”; “Ele está em casa com
raiva do sofá”; “Não ele está gritando com os filhos porque trocaram o canal”; “Ele
está mal-humorado porque está acordando e, por isso, está vermelho”; “O nariz está
triangular, o tem fundo, é um detalhe do rosto”; “Tem rugas e na frente dele devia
estar o fotógrafo”; “Ele usou o zoom, para aproximar”; “O fotógrafo estava perto
dele”.
Sobre a foto número 4 as crianças enfatizaram: “Aparece madeira, um
quadro, é esquisito”; “Tem alguma coisa escrita no rosto”; “Ao redor do olho está
vermelho, parece um quebra-cabeça”; “Ele estava de lado quando tirou a fato”; “A
bochecha tem mais luz, parece que ele foi machucado”; Tem muita sobrancelha,
parece que fizeram uma pirâmide de palitos”; “Não tem fundo, tem mais linhas retas
nas madeiras”; “Parece um outdoor, e tem um olho inchado, e grandes”; “Parece um
navio, uma caravana, é bem diferente”.
Sobre a foto número cinco pudemos perceber que as crianças estavam bem
atentas: “É um velho, com o olho preto”; “É narigudo, a testa é mais clara”; “Aparece
o cabelo, é um velho”; “Está olhando para um campo ou um parque”; “Não! Ele está
olhando para uma praça porque está trabalhando na guerra”; “Parece que ele está
confuso numa cidade”; “Está triste e cansado”.
As crianças começam a fantasiar sobre o personagem da foto e fugiram das
questões formais para relatar as subjetivas. Sobre a foto número seis elas
comentaram: “Tá dormindo. É uma mulher”; “Tem sombra nos olhos, está piscando”;
“Também é um quadrado”; “Nos cantos da figura está mais escuro”; “Está dormindo
no sofá ou na cama. É um detalhe”; “A foto foi tirada de lado”; “Ela está sonhando
com o namorado, longe da família”; “O fotógrafo usou zoom, ela está calma,
tranqüila”; “Parece pensativa, tem muitas cores, vermelho, roxo, amarelo, cor de
pele”.
esperando outro detalhe do rosto, as crianças foram surpreendidas com a
105
foto número sete: “É preta e branca”; “É uma mulher lavando a mão”; “Está com a
mão machucada”; “Está suja, na cozinha”; “Está esculpindo um brinquedo ou
cortando alguma coisa”; “Está fora de casa fazendo uma máscara”; “Está fazendo
chocolate, suja de farinha”; “Está com as unhas sujas”; “É uma mulher por causa das
unhas”; “Está concentrada no que faz”.
Sobre a foto número oito as crianças foram bastante detalhistas: “Parece um
homem, tem fundo”; “Um homem escorado na parede e a parte mais clara é atrás
dos pés. Está na rua”; “Tiraram a foto de cima para baixo”; “Está na prisão”; “Está
tocando uma campainha”; “Acho que está esperando o ônibus, indo para o trabalho”;
“Trabalhando como pintor no corredor de um apartamento”; “Parece que colocou um
pijama para dormir”; “É tranqüilo, o corredor está em forma de triângulo”; “No chão
tem linhas retas, ele tá abrindo uma porta”; “Tem os pés cruzados conversando com
alguém”; “Parece cansado, com sono”.
Percebemos que também nesta turma as questões subjetivas foram o foco do
interesse, fazendo-os fantasiar sobre o personagem observado. Em seguida, os
alunos realizaram uma pintura com guache sobre o que imaginavam acerca de uma
das fotografias escolhidas por eles: para onde a pessoa estava olhando, o que
estava fazendo... (Anexo 2). Colocamos, nesse momento, som e incenso para criar
um ar místico, mais concentrado e profundo.
Segundo Ostrower (1996), a imaginação criativa nasce do interesse, do
entusiasmo de um indivíduo pelas possibilidades maiores de certas realidades ou
experiências: surge da capacidade de estabelecer relações com as experiências e
com o sentir. As indagações constituem formas de relacionamentos afetivos, formas
de expressar a essência de um fenômeno e de uma ação. A afetividade vincula-se
ao interesse, que transcende o fazer.
Essa atenção e interesse foram verificados durante as atividades, pois o
entusiasmo e a expectativa aos poucos foram criando novas formas de ver e pensar
o mundo e os próprios seres humanos.
106
Imagens do terceiro encontro:
Imagem 1 - Sem título
Fonte: ACHUTTI, 1997.
Imagem 2 - Sem título
Fonte: ACHUTTI, 1997.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo