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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
CLÁUCIA IVETE SCHWERZ
A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO
DEPENDENTE QUÍMICO: DESAFIOS E POSSIBILIDADES
NO ÂMBITO DA SAÚDE PÚBLICA
PORTO ALEGRE
2007
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CLÁUCIA IVETE SCHWERZ
A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO:
DESAFIOS E POSSIBILIDADES NO ÂMBITO DA SAÚDE PÚBLICA
Dissertação de Mestrado apresentada à
Faculdade de Serviço Social da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
como requisito para obtenção do grau de Mestre
em Serviço Social.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Isabel Barros
Bellini
PORTO ALEGRE
2007
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CLAUCIA IVETE SCHWERZ
A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO:
DESAFIOS E POSSIBILIDADES NO ÂMBITO DA SAÚDE PÚBLICA
Dissertação apresentada como requisito para a
obtenção do grau de mestre pelo Programa de
Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade
de Serviço Social da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul.
BANCA EXAMINADORA
Doutora Maria Isabel Barros Bellini
(PUCRS- Orientadora)
Doutor Alfredo Cataldo Neto
(PUCRS)
Doutor Francisco Arseli Kern
(PUCRS)
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________
Doutora Maria Isabel Barros Bellini
______________________________________________________
Doutor Alfredo Cataldo Neto
________________________________________________________
Doutor Francisco Arseli Kern
AGRADECIMENTOS
Como é bom chegar ao final de mais uma das caminhadas da vida e lembrar daqueles
que fizeram parte dela. Muitos fizeram parte desta, das mais diferentes maneiras, cada um,
com seu significado. Mas há aqueles que foram....especiais.
À minha família, pelo jeito de ser de cada um. Minha irmã Carina, minha melhor
amiga, companheira...e tudo mais que se pode dizer de uma grande irmã. Ao Caca, cunhado
que é , na verdade, um irmão.
Simone, pelo sentido especial que deste neste processo. Uma grande amiga e parceira
daquelas que a comunicação se no olhar...Vinícius que veio junto com ela para dar esse
brilho especial que vocês têm como um casaal.
Jorge, colega e amigo. É preciso dizer aqui..Simone, Jorge e Cláucia..o trio ternura,
pelos momentos de grandes teorizações acerca de tudo o que podíamos falar..
À minha orientadora Belinha, além do que envolve o processo de orientação, agradeço
por ter acreditado neste projeto e pelo seu respeito ao meu jeito de ser.
À CNPq e CAPES, enquanto agências de fomento e financiamento à pesquisa.
Às amigas gãardas. Pela história de cada uma e da nossa. Obrigada pelo respeito ao
processo: hoje não posso..Aviso que estou de volta.
Aos colegas de equipe e alunos do COPA que, por muitos momentos não tiveram esta
assistente social por inteiro. Mas preciso agradecer em especial aos amigos Maguinha,
Gilberto, Priscila e Simara pelo apoio, cobertura e carinho.
À Renata Brasil, a primeira orientadora deste projeto. Obrigada pela disponibilidade
e incentivo.
Aos professores Cataldo e Francisco por compartilharem e acrescentarem através da
qualificação.
Por fim, devo dizer que agradeço a vida. Ela que é tão sábia em seus caminhos...que
me leva a querer continuar sempre. Mais do que as teorias que li o que me motiva são as
histórias que vi e vivi. Obrigada.
“A minha alma está armada
e apontada para a cara
do sossego (sego)
pois paz sem voz
não é paz é medo (medo)
às vezes eu falo com a vida
às vezes é ela quem diz
qual a paz que eu não quero
conservar
para tentar ser feliz
as grades do condomínio
são para trazer proteção
mas também trazem a dúvida
se não é você que está nessa prisão
me abrace e me dê um beijo
faça um filho comigo
mas não me deixe sentar
na poltrona no dia de domingo
procurando novas drogas
de aluguel nesse vídeo
coagido pela paz
que eu não quero
seguir admitindo”
Minha Alma (A Paz Que Eu Nao Quero)
O Rappa
Composição: Marcelo Yuka
RESUMO
O presente estudo parte de uma experiência prévia construída em um dos espaços de
formação profissional do Sistema Único de Saúde voltada para o campo da saúde mental
coletiva, através da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul. É com base neste
aprendizado que se deu continuidade ao processo de pesquisa junto ao Programa de Pós-
Graduação da Faculdade de Serviço Social com fins a construção do conhecimento neste
campo. Este projeto consistiu na implantação de uma alternativa pioneira em uma instituição
pública especializada em saúde mental do município de Porto Alegre, enquanto uma proposta
de tratamento a fim de ampliar e descentralizar o atendimento envolvendo os técnicos
especializados em uma proposta interdisciplinar. A participação do usuário e seus familiares
voltou-se para o trabalho em uma perspectiva de construção de rede social de apoio ao
dependente químico. Portanto, a partir desta primeira etapa realizada o que se pretende é
aprofundar a discussão, uma vez que, o número de dependentes químicos no Brasil vem
crescendo em uma velocidade preocupante de 10% ao ano (Laranjeira, 2005:10), tornando-se
um problema grave de saúde pública. A segunda etapa da pesquisa consistiu em rever os
mesmos participantes a fim de verificar em que medida este modelo de tratamento lhes
auxiliou no decorrer deste intervalo de tempo quanto às possibilidades de prevenção de
recaída, como o significado da intervenção com a família e ainda, avaliar a sua inserção em
um Serviço de atendimento especializado à saúde mental, no âmbito do SUS, a fim de
verificar sua efetividade nesse espaço. Os resultados da pesquisa referem a intervenção com a
família como uma vantagem deste modelo de tratamento uma vez que propiciou
esclarecimento da questão da dependência química a todos, desmistificando julgamentos
morais e auxiliando em situações de risco para a recaída, bem como sentimentos de acolhida e
compreensão entre os membros da família. Mas apontam também alguns riscos, que são
discutidos no decorrer do trabalho para os quais devemos estar atentos enquanto profissionais
que dizem respeito, fundamentalmente, a não sobrecarregar a família enquanto cuidadora,
perspectiva já utilizada no âmbito das políticas públicas.
Palavras-chaves: dependência química, família, rede social.
ABSTRACT
The present study is based on a previous experience constructed in one of the spaces of
professional formation of the Sistema Único de Saúde SUS (Integrated Health System)
directed toward the field of the collective mental health, through the School of Public Health
from Rio Grande do Sul – Brazil. It is based on this learning that the continuity of the research
process happened linked to the Program of Post Graduation of the College of Social Service
aiming the knowledge construction in this field. This project consisted in the implantation of a
pioneering alternative in a specialized public institution in mental health of the city of Porto
Alegre, while a proposal of treatment in order to extend and to decentralize the attendance
being involved the technician specialized in a interdisciplinary proposal. The participation of
the user and its familiar ships were turned toward the work in a perspective of construction of
social net of support to the chemical dependent. Therefore, with this first stage already
realized, what it is intended is to deepen the quarrel, meanwhile the number of chemical
dependents in Brazil comes growing in a preoccupying rate of 10% by year (Laranjeira,
2005:10), becoming a serious problem of public health. The second stage of the research is
consisted in the review these same participants, in order to verify what kind of improvements
this model of treatment assisted to them in the elapsing of this interval of time about the
possibilities of fallen prevention, as the meaning of the intervention with the family and also
to evaluate its insertion in a Service of attendance specialized to the mental health, in the
scope of the SUS, in order to verify its effectiveness in this space. The results of the research
relate the intervention with the family as an advantage of this model of treatment, once it has
propitiated a clarification about the question of the chemical dependence to all, demystifying
moral judgments and assisting in situations of fallen risks, as well as feelings of received and
understanding among the members of the family. But they also show some risks, that are
argued in elapsing of the work for which we must be intent while professional that treat about,
basically, to do not overload the family while responsable by the user, a perspective already
used in the scope of the public politics.
Word-keys: chemical dependence, family, social net
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................11
2. A CONSTRUÇÃO DOS PROCESSOS DE EXCLUSÃO SOCIAL FRENTE À
DEPENDÊNCIA QUÍMICA................................................................................................15
2.1 A dependência química, seus reflexos sociais e a política de saúde pública no
Brasil...........................................................................................................................23
2.2 A família como referência...........................................................................................34
3. APRESENTAÇÃO DA PESQUISA.................................................................................42
3.1 Problema de Pesquisa...................................................................................................42
3.2 Questões Norteadoras...................................................................................................42
3.3 Objetivos.......................................................................................................................43
3.4 Metodologia..................................................................................................................44
3.5 Método..........................................................................................................................45
3.6 Sujeitos/Amostra...........................................................................................................47
3.7 Instrumentos e técnica para coleta e análise..................................................................49
3.7.1 Etapas do Estudo........................................................................................................50
3.7.2 Procedimentos para coleta de dados..........................................................................52
3.7.3 Modo de análise dos resultados.................................................................................54
4. O PRIMEIRO ENCONTRO – DESCRIÇÃO DOS SUJEITOS PARTCIPANTES DA
PESQUISA............................................................................................................................56
4.1 O reencontro - Uma oportunidade de compartilhar a história.......................................65
5. A FAMÍLIA ENQUANTO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO – ANÁLISE
FINAL DOS RESULTADOS............................................................................................................68
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................81
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................84
APÊNDICE A .......................................................................................................................88
APÊNDICE B.........................................................................................................................89
APÊNDICE C.........................................................................................................................90
1. INTRODUÇÃO
A discussão acerca da dependência química no âmbito da saúde pública brasileira
apresenta-se como uma temática de fundamental relevância para os diferentes profissionais
que atuam nesse campo, uma vez que os dados nos remetem a uma realidade que abrange
grande parte da sociedade. Aproximadamente 45% da população brasileira é dependente de
alguma droga lícita ou ilícita. (Laranjeira, 2005).
Somente a partir da explicitação desse dado é possível afirmar a necessidade de
aprofundamento científico e de proposição de alternativas que sejam eficazes no trato da
questão. Ao ampliarmos nosso olhar e considerarmos as inúmeras implicações da drogadição
em nossa sociedade torna-se possível visualizar a guerra do tráfico, que se tornou, em cidades
referência do país, um governo paralelo, fortemente atuante, com um poder imensurável, no
que tange à vida dos cidadãos que o vivenciam no cotidiano das periferias. Estendendo nosso
olhar, vamos às inúmeras implicações quanto à saúde física, ou seja, as sérias decorrências
clínicas da dependência química, bem como o sofrimento psíquico envolvido. Vamos aos
prejuízos laborais, sociais, afetivos, que se estendem pelas linhas que constituem a rede de
vida dos sujeitos, o que representa sua família, seus laços de amizade, seu espaço profissional,
sua vizinhança, sua comunidade, enfim, sua identidade, sua representação social. O lastro que
a dependência de determinadas substâncias pode deixar na vida de inúmeros cidadãos pode
tomar uma dimensão quase devastadora, mas não irreversível.
Diante desse quadro, o Serviço Social, enquanto categoria profissional inserida no rol
dos trabalhadores da área da saúde e como uma profissão que tem em seu objeto as diferentes
expressões da questão social, deve-se inserir no atendimento a essa demanda de forma crítica,
no que se refere à apreensão da realidade, e propositiva, em ações que possam ampliar o leque
de alternativas tanto eficazes como viáveis para o Sistema Único de Saúde competências
essas que são de sua atribuição.
Nesse sentido, no que se refere aos princípios fundamentais do Serviço Social, o
Código de Ética da profissão deixa claro o compromisso com um rigoroso trato teórico e
12
metodológico da realidade social. Dentre eles, encontra-se firmado o compromisso com a
qualidade dos serviços prestados à população e com o aprimoramento intelectual, na
perspectiva da competência profissional” (Código de Ética, 1993:32).
A assistente social Dal Pra (2006:16) aponta quanto à competência do profissional no
âmbito da Saúde ao dizer:
[...] a especificidade de articular demandas dos usuários com recursos materiais e
sociais do sistema, com o contexto das mudanças da sociedade capitalista, se deve
ao fato de o assistente social ser o profissional mais próximo dos usuários e por
suas ações se desenvolverem no sentido de trabalhar os aspectos do processo
saúde/doença na perspectiva da totalidade, para que o atendimento ocorra da forma
mais integral possível.
No que diz respeito à importância da atenção voltada para a família, esta se encontra
fundamentada e preconizada nas leis que regem os diferentes campos das políticas públicas.
Um exemplo é a Política Nacional de Assistência Social, sendo ainda firmada nas bases da
Política de Atenção Integral à Saúde Mental. No campo da dependência química, o
atendimento ao dependente químico integrado à família, à comunidade e aos demais serviços
da rede que constituem a vida do sujeito se encontra preconizado nos decretos de Lei que
determinam a política de atenção à dependência química. Estes reconhecem a fundamental
importância da atenção integral no tratamento dessa demanda, que consiste em campo fértil
para a intervenção do assistente social.
A pesquisa que aqui será descrita parte de uma experiência prévia no campo da saúde
mental por meio do Programa de Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva, que se
constitui espaço formador de trabalhadores na área da Saúde Pública. De acordo com Ceccim
e Armani (2001:30), a educação em saúde coletiva está voltada para
[...] o processo de formação de profissionais, a qualificação para a percepção
ampliada da saúde e para a resposta segura dos sistemas e serviços de saúde às
demandas coletivas da população, a gestão pedagógica do ensino e pesquisa no
complexo campo da saúde blica/saúde coletiva e o planejamento dos centros de
ensino e pesquisa [...]
Nesse sentido, os mesmos autores apontam que a residência da Escola de Saúde
Pública do Rio Grande do Sul se constitui local estratégico para a reflexão sobre o ensino e o
13
serviço em saúde coletiva, na medida em que esta, ainda de acordo com Ceccim e Armani
(2001:30):
Convoca os residentes à atuação e ao estudo entre os diversos profissionais da
saúde, ao conhecimento do SUS e ao reconhecimento da gestão da rede de atenção
à saúde, ao conhecimento e ao estudo da epidemiologia, da educação em saúde, das
ciências sociais e saúde, do planejamento local, do trabalho com grupos e dos
programas de promoção e prevenção em saúde.
Portanto, é com base nesse aprendizado que se quer dar continuidade ao processo de
pesquisa com fins à construção do conhecimento no campo da saúde mental coletiva,
realizando-o agora junto ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Serviço Social. A
pesquisa, enquanto modalidade inserida no rol dos trabalhadores da saúde, exige destes
competência para a identificação de demandas potenciais que necessitam de criação e/ou
ampliação de propostas de intervenções que busquem caminhos para potencializar a
resolubilidade das ações do Sistema Único de Saúde.
O modelo de tratamento da internação domiciliar, que se encontra como modalidade
do serviço preconizado na Lei do Sistema Único de Saúde, é o modelo de atendimento
utilizado para fins dessa investigação, cujo objetivo é analisar a possibilidade de
fortalecimento da família enquanto rede de apoio ao dependente químico, bem como seu
potencial na prevenção de recaída ou na redução de danos.
É necessário problematizar essa modalidade de atendimento a fim de qualificar a sua
prestação à população. O Sistema Único de Saúde apresenta sérios desafios, no que diz
respeito à sua capacidade de atendimento à população, como também se constitui enquanto
campo de conquistas e de extenso benefício aos seus usuários.
No campo da saúde mental, igualmente se observam avanços e a permanência de
modelos hospitalocêntricos, na contramão das mudanças previstas com a Reforma
Psiquiátrica consolidada no Rio Grande do Sul em 1992, por meio da Lei n.º 9716/92, que
prevê a substituição dos leitos em hospital psiquiátrico por uma rede de atenção integral à
saúde mental. No entanto, pode-se dizer que este é um processo que ainda vem sendo
construído socialmente, exigindo dos profissionais e usuários do serviço uma constante luta
pelo aprimoramento do sistema.
14
Para tal, o estudo que aqui lhes é apresentado está estruturado em cinco capítulos. O
primeiro busca abordar um olhar crítico quanto à sociedade capitalista e seus processos de
exclusão – competência essencial para o assistente social que tem como objeto de intervenção
a questão social. Apresenta uma compreensão da realidade, uma vez que a demanda da
dependência química não pode ser vista somente sob um ponto de vista, ou seja, a partir da
particularidade das diferentes demandas do cotidiano profissional. É necessário que as
expressões da questão social, dentre elas a dependência química, sejam compreendidas
enquanto partes intrínsecas ao sistema macro para que se possam desdobrar as possibilidades
e mesmo os limites de suas refrações.
Segue-se uma discussão acerca da família, na qual se busca discutir sua centralidade,
no campo das políticas públicas, enquanto categoria de análise para a proposta da pesquisa
desenvolvida, que visa identificar as possibilidades de fortalecê-la na condição de rede de
apoio ao dependente químico e a ela própria enquanto grupo. Seguindo com a discussão
acerca de possibilidades de intervenção com a demanda da dependência química bem como
com a sua história na sociedade, e a condição para a mudança dos sujeitos permeados por essa
realidade através de um conjunto de ações que devem estar na contramão de uma lógica
moralista e repressora ainda presente em políticas públicas do Estado.
No terceiro e quarto capítulos, apresentar-se-á a pesquisa, que teve uma primeira
realização ainda no espaço da Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva. Descreve-se
tal processo e a pesquisa, com vistas ao seu aprofundamento no âmbito do mestrado da
Faculdade do Serviço Social, a fim de cumprir com o compromisso de colaborar com
subsídios para a discussão de um modelo de tratamento preconizado na Lei do Sistema Único
de Saúde. Por fim, no quinto capítulo, apresentam-se as conclusões, embasadas na pesquisa,
fundamentando-se na discussão da família como rede social de apoio ao dependente químico.
Nas considerações finais, serão feitas as pontuações acerca da importância e dos desafios da
temática.
15
2. A CONSTRUÇÃO DOS PROCESSOS DE EXCLUSÃO SOCIAL FRENTE À
DEPENDÊNCIA QUÍMICA
Enquanto categoria que tem como objeto de intervenção a questão social, faz-se
necessário que o profissional de Serviço Social tenha, em primeiro lugar, uma ampla
compreensão da realidade, a qual não pode ser vista apenas sob um ponto de vista, ou seja, a
partir da particularidade das diferentes demandas do cotidiano profissional. É necessário que
as expressões da questão social sejam compreendidas enquanto partes intrínsecas ao
macrossistema para que se possam desdobrar as possibilidades e mesmo os limites de suas
refrações. Nesse sentido, Iamamoto (1999:80) destaca que é necessária ao profissional
[...] uma competência crítica capaz de decifrar a gênese dos processos sociais, suas
desigualdades e as estratégias de ação para enfrentá-las. Supõe competência teórica
e fidelidade ao movimento da realidade, competência técnica e ético-política que
subordine o “como fazer” ao “o que fazer” e este ao “dever ser”, sem perder de vista
seu enraizamento no processo social.
Entenda-se que essa competência se aprimora no cotidiano profissional, à medida que
incorporamos em nosso modo de pensar a realidade a relação teórico-prática. Tal
compreensão torna-se cada vez mais desafiadora quanto mais se agrava a desigualdade social,
dando-se à mesma proporção e em movimento constante o aprimoramento das estratégias do
capitalismo na manutenção de seu sistema, o que nos exige igualmente a mesma velocidade
para a sua apreensão.
Nesse sentido, as idéias de Marx, como perspectiva de análise, nos orientam para
entendermos a que visa esse sistema e como faz para atingir o seu fim, possibilitando-nos
compreender o movimento histórico de apropriação do homem sobre os modos de produção e,
fundamentalmente, de apropriação destes sobre as relações sociais.
Desse modo, para a compreensão do sistema capitalista vigente em nossa sociedade, o
Serviço Social utiliza o referencial teórico-metodológico marxista. Referencial este que está
consolidado pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social ABEPSS,
reconhecido pelo seu potencial esclarecedor das relações que se formam no âmbito do sistema
social. Assim, diz o documento (1996:13):
16
[...] a tradição marxista empreende, desde Marx e Engels até os dias de hoje, um
esforço explicativo a cerca da questão social, já que o que está subjacente às suas
manifestações concretas é o processo de acumulação do capital, produzido e
reproduzido com a operação da lei do valor, cuja contraface é o crescimento relativo
da pauperização
Portanto, é possível referir que determinantes na forma de constituição das relações
sociais instauradas no processo da divisão social do trabalho; são passíveis, porém, de
transformação em um movimento que se na contradição dos diferentes interesses e sujeitos
autores dessa realidade.
Voltada para a busca constante da mais valia, a burguesia vem, ao longo da história,
modificando os padrões de produção e, assim, as relações sociais diretamente imbricadas nas
relações econômicas. Na produção da mais valia, ficam em desvantagem os trabalhadores, em
uma relação de exploração que vai desde a exigência da sua capacidade de produção em
tempo máximo, até a tentativa de aniquilar seus direitos, conquistados por sua organização de
classe, que também é afetada em sua organização. Esse processo, minuciosamente controlado
pelo capitalista através de mecanismos diversos englobados em processos de gestão e de
garantia de mínimos sociais quer manter o trabalhador em condições mínimas para a
produção.
A leitura de Sérgio Buarque de Holanda (2004) nos remete à história que foi traçada
no Brasil. Com fortes heranças da colonização ibérica e das relações de escravidão, nossa
sociedade foi marcada muito mais pela diversidade do que pela homogeneidade, com
diferentes culturas; relação que vai se refletir na cultura da personalidade, da vida regrada,
com compromissos afetivos ou submissos à autoridade pessoal, com a negação da
racionalização.
O processo histórico de desenvolvimento do país, explorado em um período de
colonização, com fortes traços de uma cultura escravagista, não pode ser deixado de lado na
análise e proposição de alternativas eficazes para o atendimento das demandas expressas pela
sociedade. Sem vida, as permanências culturais resistem ao tempo, denunciando de forma
expressiva os processos forçados de dominação. É importante levar em conta que muitas das
percepções construídas historicamente pelas elites persistem de forma hegemônica, servindo
para que a pobreza não seja, atualmente, a única explicação determinante para as relações
constituídas no âmbito das classes subalternas.
17
Em se tratando do percurso da constituição dos direitos no Brasil, em paralelo à
condição de escravidão, têm-se as relações de poder estabelecidas em torno da questão da
grande propriedade (Couto, 2006). Associando-se à construção desses perfis sociais, é
possível apontar que, “quando a relação de trabalho está baseada na submissão e no
compadrio, elimina-se a possibilidade de uma relação livre e de cidadania” (Couto, 2006:79).
Mesmo com a abolição da escravatura e a proibição do tráfico de escravos, não se
eliminou a relação de poder e tampouco se ampliaram as condições para uma melhoria do
modo de vida da população. O processo de independência do país, dessa forma, herda a lógica
de exploração do período colonial. A mão-de-obra escrava continuou, portanto, a ser
explorada e excluída do acesso aos direitos civis e políticos proclamados na Constituição de
1824 afora o fato de as mulheres e demais categorias não se enquadrarem nas exigências
para o exercício desses direitos.
A Proclamação da República e a nova Constituição de 1891 ainda não apresentaram
grandes modificações no campo dos direitos e das relações sociais, que seguem a gica do
acúmulo da burguesia, favorecida em sua relação com o Estado, e de subalternidade e favor a
que se submete o restante do povo.
Tais características vão-se evidenciando ao longo do processo histórico do país;
entretanto, são tencionadas no campo das disputas entre a classe trabalhadora e o Estado, na
medida em que os direitos sociais passam a ser reivindicados, principalmente em decorrência
das relações de trabalho estabelecidas a partir da década de 30 período em que se iniciam as
transformações no campo econômico e a nova ordem produtiva urbana industrial.
A partir desse período, presenciam-se, ao longo dos diferentes governos, várias
constituições e um processo de crescimento econômico, em decorrência do qual cada vez
mais aumenta a disparidade entre a distribuição da riqueza, agravando-se a pobreza no quadro
da conjuntura capitalista brasileira. A década de 50 constitui-se o marco da aceleração da
economia, com o desenvolvimento de grandes indústrias; não se medem, contudo, as
conseqüências dos impactos sociais. Assim, a população que não consegue inserir-se nesta
produção vai empobrecendo e, ao mesmo tempo, pressionando o governo politicamente.
18
Com o golpe de 64, os militares permanecem no poder até os anos 80. Tem-se, aí, a
ditadura, que se caracteriza pela censura e ausência de eleições, com forte repressão àqueles
que se opunham ao governo. Nesse momento histórico, inicia-se a abertura da economia ao
exterior, com o objetivo de acumulação da renda, seguindo-se o desenvolvimento de
indústrias que se beneficiam com regalias para a sua implantação. Por conseguinte,
desfavorecem-se as pequenas indústrias e, com efeito, há uma não-inserção de grande parte da
população nesse processo de crescimento econômico.
Dessa forma, a política social dos anos 30 até o período da ditadura militar caracteriza-
se por políticas clientelistas, fragmentadas e desiguais na incorporação social da população
em estratos de acesso conforme os arranjos no bloco do poder. Economicamente, a política
favorece alguns grupos privados, impulsionando certos setores economicamente influentes a
obterem lealdade e dinamizarem a acumulação. Ainda segundo essa lógica, aqueles que não
trabalham e não podem contribuir ficam à mercê de programas assistenciais que
institucionalizam a pobreza.
Nesse quadro de crise, a população organiza-se em movimentos sociais, na busca da
garantia de seus direitos, os quais são efetivamente alcançados. Há, porém, um cercamento
desses direitos pelos mecanismos de desconstrução, entabulados pela lógica da acumulação
capitalista.
No bojo dessas discussões, avança a luta pelo processo de democratização do país,
tendo-se, em 1985, a primeira eleição direta, retomando-se os direitos políticos e a
Constituição de 1988. Apesar do avanço quanto às legislações sociais proporcionadas pela
nova Carta, instauram-se, paralelamente, as diretrizes macroeconômicas que reiteram os
cortes nos gastos sociais (Couto, 2006).
Com uma política neoliberal e com o controle do FMI (Fundo Monetário
Internacional) sobre a economia do país, dá-se a fragilização dos direitos trabalhistas,
perdendo-se a garantia dos seguros em relação aos dispositivos de proteção social. O Estado
vai cedendo espaço às grandes organizações multinacionais, diminuindo gradativamente seu
dever com seus cidadãos em relação à garantia de direitos, agravando ainda mais a questão
social.
19
Nesse sentido, o modelo que o governo segue explicita-se, conforme aponta Yazbeck
(2001:37), como:
Um Estado que reduz suas intervenções no campo social e que apela à
solidariedade social, optando por programas focalistas e seletivos caracterizados
por ações tímidas, erráticas e incapazes de alterar a imensa fratura entre
necessidades e possibilidades efetivas de acesso a bens, serviços e recursos sociais.
Estabelece-se uma grande competitividade no mercado, exigindo-se “capacitação”
para nele se inserir. Desta forma, a exclusão não se resume unicamente ao fato de ter-se ou
não emprego, mas abrange as relações políticas, culturais e sociais dos sujeitos que ficam
excluídos não somente do direito à renda, mas também dos seus direitos trabalhistas,
previdenciários e de proteção social.
Encontramo-nos, então, em um país de contrastes marcantes, em que a economia
segue o padrão internacional, com alto desenvolvimento industrial, mas em que, ao mesmo
tempo, grande parte da população se submete à situação de desigualdade social. Nessa época
em que estão ocorrendo rápidas e grandes transformações tecnológicas, com uma estrutura de
dimensão global e universal, com uma rede de informações que dispõe de diversidade e
velocidade de conhecimento, exige-se, e cada vez mais, maior qualificação para o ingresso no
mercado de trabalho.
Nesse sentido, Iamamoto (2000:112) trata sobre a lógica de acumulação do
capitalismo, na media em que afirma o seguinte:
A globalização, excludente e desigual, estabelece maior exposição das atividades
nacionais à competição externa, ao mesmo tempo em que estimula a incorporação
de novos paradigmas tecnológicos e de gestão, poupadores de mão-de-obra,
objetivando a elevação dos padrões de produtividade e rentabilidade do capital.
Sob esse contexto, origina-se um campo de trabalho que tem substituído a mão-de-
obra pelos novos métodos tecnológicos produtivos, visando à competitividade e ao aumento
da produtividade, com redução de gastos internos. Isso resulta em um número massivo de
desprovidos da vinculação produtiva, ou que a estabelecem mediante o desrespeito à
legislação trabalhista sem a garantia da estabilidade profissional, formando “aquela parcela
estagnada de trabalhadores ativos com ocupações irregulares e eventuais” (Iamamoto,
2000:15).
20
Agrava-se o quadro da questão social com o crescimento do pauperismo, segmento
formado por contingentes populacionais miseráveis, que acabam, após incessante busca pelo
trabalho, permeados por sentimentos de fracasso e inutilidade, indo de encontro à lógica
neoliberal ao que se refere à necessidade da capacitação para inserir-se no mercado de
trabalho; caso contrário, deve considerar-se “desadaptado” ao sistema (Iamamoto, 2000).
Assim, a situação contemporânea da questão social remete-nos a disparidades no
segmento da sociedade civil, considerando-se que camadas da população que ficam, para
além da situação de instabilidade empregatícia e informal, totalmente excluídas das relações
de trabalho e, conseqüentemente, do usufruto dos bens que este proporciona, privadas
inclusive de reproduzirem-se socialmente.
Cabe aqui destacar ‘exclusão’ enquanto categoria que merece análise mais detalhada,
uma vez que se pode atribuir diferentes significados ao seu uso. Nesse sentido, Castel
(1995:23) apresenta tal análise, apontando os riscos que podem funcionar como “uma
armadilha, tanto para a reflexão como para a ação”. Para a reflexão, o autor descreve:
[...] economiza-se a necessidade de se interrogar sobre as dinâmicas sociais globais
que são responsáveis pelos desequilíbrios atuais; descreve-se da melhor forma
estados de despossuir, mas criam-se impasses sobre os processos que os geram;
procede-se a análises setoriais, renunciando-se à ambição de recolocá-las a partir dos
mecanismos atuais da sociedade. Sem dúvida, hoje os in e os out, mas eles não
estão em universos separados. Não se pode falar numa sociedade de situações fora do
social. O que está em questão é reconstruir o continuum de posições que ligam os in e
os out e compreender a lógica a partir da qual os in produzem os out.
Para a ação, o autor igualmente alerta para o risco da armadilha e cita como exemplo a
seguinte realidade:
A partir dos anos 80, na realidade, vê-se desenvolver paralelamente um duplo
discurso. Um reabilita a empresa, canta os méritos da competitividade e a eficácia a
todo o preço. O outro se debruça sobre o destino dos “excluídos” e afirma a
necessidade de tratá-los com mansidão. De um lado, a celebração do mercado, com
seu sistema próprio de pressões; de outro, um esforço para se cuidar de situações de
desespero extremo que resultam desse funcionamento impiedoso.
O autor atenta para um dado fundamental em relação a essa questão, ou seja, a
armadilha se refere à possibilidade de que a luta contra a exclusão se torne um “pronto
socorro social, isto é, intervir aqui e ali para tentar reparar as rupturas do tecido social”
(1995:26). Nesse sentido, ainda aborda sobre “um tipo clássico de focalização da ação social a
21
partir da delimitação de zonas de intervenção que podem dar lugar às atividades de reparação”
(1995:27). Historicamente, a ajuda social foi traçada por esse percurso, com o que conflui a
caracterização de “populações-alvo” identificadas por um déficit preciso.
Foram assim cristalizadas categorias cada vez mais numerosas de populações
advindas de um regime especial: inválidos, deficientes, idosos economicamente
frágeis, crianças em dificuldade, famílias monoparentais, etc.
Mas de se considerar que, em se tratando de “novas populações” as quais Castel
(1995:28) menciona sofrerem hoje um “déficit de integração”, sendo elas “os desempregados
de longa duração e os jovens mal escolarizados em busca de emprego” –, estas não
correspondem à categoria de inválidos, deficientes ou “casos sociais”, e, portanto, não se
pode tratá-las com uma intervenção especializada na ótica de “reparar” ou de “cuidar” de
uma incapacidade pessoal, a menos que, segundo o autor, “se pretenda que o conjunto dos
jovens com dificuldade de integração sejam deliqüentes ou doentes ou que todos os
desempregados se tornaram desempregados em razão de uma tara individual...”.
Desse modo, a categoria exclusão que vem sendo utilizada para a análise deste
trabalho está relacionada, conforme descrito, ao sistema capitalista vigente em nossa
sociedade. Isso nos leva a ter uma compreensão ampla a respeito da questão social
diretamente relacionada às relações entre capital e trabalho, para que o foco de análise e de
proposição de ações não se detenha somente em suas expressões, pois reside o risco do
assistencialismo. Nesse sentido, Castel (1995: 33) afirma que:
[...] é o mesmo deslocamento do centro à periferia que se opera quando hoje se reduz
a questão social à questão da exclusão. Agindo-se desta forma, detemo-nos nos
efeitos mais visíveis da “crise” e, no entanto, esta não é uma crise pontual, mas um
processo geral de desestabilização da condição salarial. É a desagregação das
proteções que foram progressivamente ligadas ao trabalho que explica a retomada da
vulnerabilidade de massas e, no final do percurso, da “exclusão”.
Voltemos a nos deter no caso do Brasil, do qual Reis (2005) analisa o significado da
exclusão social na contemporaneidade. Na mesma linha de Castel (1995), esse autor fala
sobre as velhas formas de exclusão social e as novas formas de exclusão social, partindo da
premissa de que a exclusão sempre existiu nas sociedades, tanto nas desenvolvidas como nas
em desenvolvimento.
22
Mas primeiramente, em relação aos diferentes significados do termo, o autor aponta
que “essa multimensionalidade tem suas expressões tanto em variáveis políticas e econômicas
como nas sociais” (p.3), alertando para o risco do reducionismo a uma medida estritamente
econômica: a ausência de renda. Tal redução, segundo ele, não necessariamente determina o
significado da exclusão do sujeito, sendo esta a perspectiva de entendimento que se está
construindo no presente trabalho, ou seja, a de que a pobreza não pode, por si só, decretar a
exclusão social dos sujeitos. Caso o seja, não como pensar projetos de inclusão em meio a
expressões da questão social com as quais convivemos e nas quais intervimos em nosso
cotidiano profissional.
Portanto, assim como Castel (1995), Reis (2005) aponta as tradicionais expressões da
exclusão social em que a pobreza e a mendicância sempre estiveram presentes. O que se
constata é o agravamento desse quadro em função da reestruturação produtiva e da reforma
dos sistemas de proteção social, ocorridas nos anos de 1980. No caso brasileiro, estavam
sendo consolidadas ao mesmo tempo em que eram definidas as diretrizes macroeconômicas
que orientaram a diminuição dos gastos nas políticas sociais e a retirada do Estado do campo
social, em meio a uma trajetória crescente de desemprego estrutural e, como conseqüência, de
aumento das desigualdades sociais.
Dessa forma, Reis (2005:8) destaca o surgimento da chamada “nova pobreza”,
classificando-a da seguinte forma:
Via de regra, são sujeitos sociais que, no passado recente, tinham pleno acesso aos
bens e serviços necessários à manutenção e à reprodução de um digno padrão de vida.
Como conseqüência da perda do emprego e da diminuição crescente da proteção
social, esses trabalhadores ficaram sem condições de usufruir o pleno acesso aos
costumeiros bens e serviços e, nesse sentido, passaram da condição de incluídos à de
excluídos das relações econômicas e de um conjunto de direitos sociais conquistados
enquanto incluídos.
Ambos os autores, portanto, como Iamamoto (2000), citada, apontam para o
surgimento da “nova pobreza”, das novas formas de exclusão social decorrentes da
reestruturação produtiva.
Nessa condição, o acesso às políticas públicas garantidas por lei se apresenta como
um direito que vem sendo buscado ao longo da história, devendo constituir-se para que os
23
sujeitos possam acessar o conjunto articulado de redes de atendimento, cujo dever é lutar pela
conquista de novos programas, ampliando-se os espaços e a demanda beneficiada.
de se considerar que os sujeitos permeados por este contexto buscam em
programas sociais do Estado uma forma de enfrentamento de sua realidade, mesmo que em
um confronto desigual, que os mais pobres, com suas precariedades, buscam sobreviver
satisfazendo minimamente algumas de suas necessidades. No caso da demanda relacionada à
dependência química, tal análise econômica e social nos oferece subsídios para a leitura da
realidade de cada sujeito, no entendimento de sua condição diante do atual sistema, a fim de
compreender as relações interpessoais interligadas às relações sociais globais, numa visão que
busca a apreensão da estrutura de produção da sociedade e dos sujeitos.
São múltiplas as relações que compõem a vida dos sujeitos e são diferentes as
repercussões em seu contexto. Umas têm maior implicação do que outras na articulação das
demais relações, condicionando os ciclos de vida e suas trajetórias.
As mediações, portanto, constituem esta complexa teia de relações dos sujeitos e
devem, assim, conter em sua leitura esse campo contraditório de interações, que podem
significar um movimento de lutas e tensões, nas quais cada sujeito, de forma individual e/ou
coletiva, tem sua implicação na totalidade, como tem o todo sobre o indivíduo.
Dessa forma seguiremos a análise acerca da dependência química: uma leitura
voltada à história das substâncias na sociedade e à forma de tratamento do Estado à questão –,
uma visão voltada ao campo das mediações das políticas públicas de atendimento –, uma vez
que a proposta de intervenção deste estudo se encontra neste território de desafios mas
também de possibilidades.
2.1 A dependência química, seus reflexos sociais e a política de saúde pública no Brasil
É com o olhar crítico para o contexto, e em meio a este, que se faz a discussão acerca
do tema da pesquisa. Em se tratando do âmbito da saúde, é preciso destacar que a
Constituição Federal de 1988, do artigo 196 ao 200, promoveu uma verdadeira revolução,
24
criando um novo sistema de saúde pública no país. A Legislação Federal e Estadual do
Sistema Único de Saúde (2000:14) determina que
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais
e econômicas, que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação.
Assenta, ainda, que o Sistema Único de Saúde deve dispor de serviços integrados em
uma rede regionalizada e hierarquizada, basear-se na descentralização, com direção única em
cada esfera de governo.
Ao se tratar sobre o atendimento dos portadores de sofrimento psíquico, os objetivos
da Política de Atenção Integral em Saúde Mental colocam que é necessário: desencadear e
potencializar a atenção integral em saúde mental para as crianças, adolescentes, adultos e
idosos; garantir os direitos dos portadores de sofrimento psíquico, buscando ampliar a
capacidade de autonomia das pessoas, dos grupos sociais e da coletividade; implementar
ações para a melhoria da qualidade de vida daqueles que estão institucionalizados e outros
(Dias, 2001).
O desafio que se coloca aos trabalhadores dessa área é o de tentar humanizar o
atendimento ao portador de sofrimento psíquico. No caso específico da dependência química,
esse movimento se produz pela discussão temática do projeto de pesquisa desenvolvida no
âmbito da academia e do sistema público de saúde. Sua relevância se evidencia nos dados que
apontam que o número de dependentes químicos no Brasil vem crescendo a uma velocidade
preocupante: 10% ao ano (Laranjeira, 2005), tornando-se grave problema de saúde pública. A
questão se faz em torno do tratamento do dependente químico, no sentido de respeitar suas
peculiaridades, não sendo tratado e internado com pacientes de outras psicopatologias.
A abordagem sobre a drogadição e as políticas públicas para enfrentamento dessa
realidade são questões geradoras de polêmica, devido às diferentes concepções de
entendimento e tratamento do tema;,outro problema é o fato de tratar-se de drogas em um país
que, como outros, tem uma sociedade permeada por elas sob as mais diversas formas. Lícitas
e ilícitas, envolvidas em fortes relações de poder e interesses políticos, nos mais diversos
meios de propagação, possibilitando ao ser humano delas fazer uso, abuso ou mesmo tornar-
25
se dependente. Por isso, vejamos algumas considerações a respeito das drogas e algumas das
concepções acerca delas no movimento da história.
Os problemas derivados das drogas, sejam aqueles ligados ao tráfico ou às
conseqüências individuais e coletivas do consumo, estão inseridos no cotidiano das pessoas.
A relação do homem com as substâncias psicoativas é bastante antiga nas sociedades, sendo,
portanto, equivocada a idéia de que a presença das drogas é um evento novo na história
humana. “Na verdade, trata-se de uma presença nua no tempo e que envolve não somente
medicina e ciência, mas também magia, religião, cultura, festa e deleite” (Sebeil e Toscano
Jr., 2004:07). Ainda segundo esses autores, a vida da humanidade sempre esteve ligada às
plantas, em particular àquelas que “alimentam o espírito”.
Consideram, inclusive, que em todas as religiões e culturas antigas observa-se a
atribuição de um caráter sagrado a uma substância com potencial de intoxicação. Assim
referem que, através do uso de drogas, podem-se obter tipos “diferentes de embriaguez ou de
alterações da consciência” (Sebeil e Toscano Jr., 2004:08). Entretanto, alertam em sua análise
que:
[...] o uso religioso de drogas, como ainda ocorre hoje em algumas partes do
mundo, em busca de experiências com sentido de religião, é um tipo de relação
peculiar estabelecida entre o homem e a droga, restrito a rituais e contextos
culturais específicos, apresentando-se como um fenômeno que deve ser
devidamente diferenciado da patologia drogadictiva.
Conforme relato histórico desses autores, os conquistadores da América ficaram
“maravilhados com os tesouros botânicos encontrados” (p.13). Para o fascínio dos europeus, o
Novo Mundo foi fonte inesgotável em relação às drogas. Nos períodos decorrentes, as drogas
foram adquirindo diferentes significados no contexto das sociedades e diferentes
entendimentos quanto aos seus efeitos. Foi a partir do século XIX que se desencadeou um
interesse pelas psicoativas, através da busca de conhecimentos sobre o sistema nervoso
humano e sobre o funcionamento da mente em um percurso que reuniu diferentes
especificidades do conhecimento.
Nos últimos 50 anos, o uso de drogas como os barbitúricos amplamente usados
principalmente como “indutores do sono, e não como anticonvulsivantes, superou o de
outros sedativos até 1960 [...] Os barbitúricos estiveram relacionados a muitas tentativas de
26
auto-extermínio e mesmo de suicídios consumados na década de 1950(Seibel e Toscano Jr.,
2004:17). Outra substância de destaque foi a anfetamina, utilizada inicialmente como produto
de substituição da cocaína. Os autores apontam que o “uso destas drogas tornou-se mais
comum, quer como estimulante entre os estudantes, esportistas, militares e homens de
negócios, quer como antidepressivo e, como ainda hoje, em regimes para emagrecimento”.
Em seu estudo, os autores revelam que, na Segunda Guerra Mundial, essas drogas foram
utilizadas pelas forças armadas de vários países. No Japão, seu consumo transformou-se
numa verdadeira epidemia”, sendo distribuídas nas usinas de armamentos para aumentar a
produção. “Em 1950, este país ainda contava com cerca de 500.000 dependentes
anfetamínicos na população, apesar das campanhas contrárias ao uso, conduzidas pelo
governo”.
A importância das drogas alucinógenas no mundo ocidental voltou a crescer
consideravelmente na época do movimento psicodélico. “Naquele período, o desencanto dos
jovens em face dos ideais políticos era associado à exaltação de um modo de vida marginal,
representado pelo movimento hippie, pelo lema da paz e amor” (Seibel e Toscano Jr.,
2004:17).
O ressurgimento da epidemia da cocaína vai se dar nas últimas décadas do século
XX em países como o Brasil, pela utilização “das vias de administração intranasal e
endovenosa, esta principalmente no final dos anos 1980, estando inclusive relacionada com a
infecção pelo HIV” (Idem); outra droga bastante consumida no decorrer dos anos 1990 é o
crack. As primeiras apreensões de crack
1
pela polícia ocorreram em São Paulo, antes de 1989
(Seibel e Toscano Jr. 2004). O século XX foi marcado pela associação entre o uso de drogas e
a infecção pelo HIV, o que provocou verdadeira revolução nas políticas de saúde pública.
Surgem, então, estratégias de redução de danos, ou harm reduction
2
, a partir da aceitação de
haver inevitavelmente um dado nível de consumo das drogas na sociedade, optando-se pelo
objetivo primário da redução das conseqüências adversas desse consumo.
1
Substância que deriva da base da cocaína que, misturada a outros produtos, pode ser fumada. Esse material vem
sendo assim chamado, por causa do som feito pelos cristais quando queimados, sendo também chamado de
‘pedra’, por causa de sua aparência.
2
Termo definido por Newcombs como sendo toda uma política social que tem por objetivo prioritário minorar
os efeitos negativos decorrentes do uso de drogas.
27
No Brasil, a corrente de pensamento que defendia a redução de danos teve pouca
adesão. A primeira experiência ocorreu em 1989, na cidade de Santos, no Estado de São
Paulo, onde o governo municipal lançou a proposta de distribuição de seringas e agulhas, a
fim de controlar a epidemia de usuários de drogas injetáveis. A medida gerou polêmica
nacional, sendo a intervenção enquadrada como crime, antes de ser referência para uma
política brasileira de redução de danos pelo uso indevido de drogas (Mesquita, 1994).
Percorrendo esse breve caminho histórico acerca da existência das drogas em nossa
sociedade até os dias atuais, o que temos é, sem dúvida, uma geração que segue fazendo uso
delas por diferentes motivos. Sejam quais forem eles, o fato que se percebe quanto ao que se
busca com a droga é, em um momento ou por muitos, alterar o estado de consciência, o que
pode levar o cérebro humano a tornar-se dependente desse mecanismo.
Vários estudos revelam que o abuso é influenciado por um complexo cruzamento de
variáveis tanto sociais quanto psicológicas e biológicas (Denton e Kampfe, 1994). Portanto, se
o uso também é influenciado por fatores sociais, de se considerar a questão social e as
demais relações sociais. Ora, os agravos e as refrações destas repercutem nas condições de
vida dos sujeitos, possibilitando considerar-se o uso de drogas como um modo de
automedicação, à medida que os sujeitos buscam, depois de inúmeras tentativas de inclusão
na sociedade capitalista, ou ainda em sua família, em um grupo, enfim, uma possibilidade de
fuga do atual contexto neoliberal, que dita os valores de uma sociedade competitiva e
individualista.
Esta é uma possibilidade de análise que parte, sobretudo, da experiência prática no
âmbito do SUS no atendimento à dependência química, e que deve ser contemplada pelo
agravamento das questões sociais e do empobrecimento da população; este não é, entretanto,
o único entendimento possível. É necessário que se tenha uma compreensão quanto à
ideologia do Estado neoliberal vigente no Brasil para que a discussão o se desvincule do
contexto político e social, enfim, da realidade em que os sujeitos se movimentam.
Analisar a ideologia neoliberal concomitantemente à ideologia que permeia o Estado
em suas intervenções no campo referente às drogas, seja no atendimento à dependência
química ou no enfrentamento ao tráfico, nos remete ao Estado de Polícia, instaurado no
período medieval. Tratava-se de um “setor subsidiário da atividade do Estado, visando,
28
sobretudo, à prevenção e punição dos ilícitos, mediante o emprego de um aparelho rígido e
autoritário de investigação e intervenção” (Bobbio, 1999:410) que se estende até fins do
século XVIII.
Na própria conduta tomada a partir da primeira discussão do programa de redução de
danos e nas demais situações de repressão, vistas em nosso atual sistema de “segurança”
pública, e se formos mais a fundo com nossa visão sobre as políticas públicas, em seus
diferentes setores, veremos ainda que as ideologias se parecem com as dos Estados de Polícia
e Liberal.
Essa percepção se dá ao tomarmos a conduta repressiva e moralista do Estado atual em
relação ao abuso de substâncias em nossa sociedade. Observa-se, de acordo com (Bucher,
1997), o processo de demonização e de criminalização dos drogadictos, que serve de
balisamento para práticas normativas de correção de desvios, de controle social e moral
daqueles que se distanciam dos padrões “normais” de funcionamento (Bravo, Vasconcelos,
Gama, Monnerat, 2004:168).
Ainda segundo tais autoras, “voltar-se-á para a busca de processos homeostáticos, de
estabilidade e de equilíbrio, e para a correção de desvios de padrões de funcionamento normal
dos sujeitos. Advém daí a concepção de sujeitos patológicos, desestruturados e
disfuncionais”.
Bucher (1992:170) refere-se à repressão como a tônica prevalente da política de drogas
no Brasil.
Transformando as situações de consumo flagradas em meras ocorrências policiais,
sem consideração pelas suas raízes e razões, pelas suas implicações psicossociais
ou simplesmente humanas, a repressão cega encontra um campo fértil para atuações
indiscriminadas, através da violência policial, do peso esmagador do aparelho
judiciário (ou ainda psiquiátrico), das condições desumanas de detenção, do
estigma social e da marginalização crescente que marca os indiciados.
Tal referência não se parece com a dos períodos medievais, em que a polícia
intervinha para manter a ordem, “limpando” as cidades daqueles que eram considerados pela
monarquia desajustados, ou mesmo com a do liberalismo, que se referia aos “desadaptados”
como aqueles que acabavam “escolhendo” entregar-se ao alcoolismo, à drogadição, à
29
criminalidade, à preguiça, enfim, e que deveriam, então, ser institucionalizados para não
“contaminarem” o sistema?
No entanto, na contramão dessa lógica, ao se trabalhar com sujeitos que se tornam
dependentes de substâncias psicoativas, assim como em outras áreas, buscamos com estes, a
partir de uma perspectiva de acolhimento, viabilizar a protaganização de seus projetos de
vida. Projetos que encontram sérios desafios no atual contexto social do país que não pode
ser deixado de lado nesta análise, na medida em que grande parte da população encontra-se
atingida pelos fatores estressores sociais e afetada em suas condições de vida.
Fundamentalmente, o desemprego gera uma série de situações de vulnerabilidade,
excluindo os sujeitos do acesso ao que consideram necessário para se manterem. Em meio a
esse contexto, as ações no âmbito do SUS tornam-se contrastantes, pois à medida que se
avança em propostas para a melhoria do atendimento à saúde, não há uma política econômica,
cultural e social por parte do Estado que possibilite a recuperação do cidadão que adoeceu
nesse contexto e está motivado a reerguer-se.
É importante ressaltar, contudo, que a lei do SUS e da Reforma Psiquiátrica traz os
dispositivos para o enfrentamento de tal situação. Decreta que o atendimento aos cidadãos
deve ser integral, descentralizado, de acordo com as necessidades de cada região. Deve haver
a participação de seus usuários no controle social e ser intersetorial na perspectiva de
construção de uma rede articulada para atender às diversas demandas do usuário. É na lei que
nossas ações devem estar focalizadas, para trabalharmos com os usuários a conscientização
dos dispositivos políticos, possibilitando espaços de discussão para o enfrentamento das
situações limitantes.
Mas, ao se verificarem os avanços aqui trazidos na Lei do SUS e os objetivos para a
atenção em saúde mental e simultaneamente as análises que trazem os autores referidos
sobre como vem sendo tratada a questão da drogadição –, o que se constata é a vigência de
“velhos” padrões morais, alienantes, punitivos, que não podem coincidir com as propostas da
área da saúde em relação a um projeto de autonomia e emancipação dos sujeitos.
de se considerar que a dependência não é uma condição imutável, marcada por um
problema de personalidade, e da qual o indivíduo sempre estará refém. Entende-se, antes, que
30
todo o dependente pode ser motivado para a mudança. A motivação é um estado de prontidão
para mudanças, flutuante ao longo do tempo e passível de ser influenciado por outrem
(Vaillant, 1999: 69).
Prochaska e Diclemente (1982) baseiam-se nas seguintes premissas: de que a mudança
em relação a determinado modo de comportamento é um processo e de que as pessoas têm
diversos níveis de motivação. Sobre estes, aponta quatro estágios bem definidos, confiáveis e
bem relacionados entre si quanto ao processo que ocorre com o dependente químico, e assim
os nomeiam e descrevem: Pré-contemplação, um estágio em que não intenção de mudança
nem mesmo uma crítica a respeito do conflito envolvendo o comportamento que lhe causa
problema; Contemplação, que se caracteriza pela conscientização de que existe um problema,
no entanto uma ambivalência quanto à perspectiva de mudança; Ação, que se quando o
paciente escolhe uma estratégia para a realização desta mudança e toma uma atitude neste
sentido; e Manutenção, estágio no qual se trabalha a prevenção à recaída e a consolidação dos
ganhos obtidos durante a Ação (Miller e Rollnick,2001).
Ressalta-se que a motivação é uma das variáveis a serem analisadas ao se escolher,
juntamente com o paciente, o tipo de tratamento indicado para o caso, de acordo com o
processo em que este se encontra, podendo ser que necessite apenas de um espaço de acolhida
e escuta (Miller e Rollnick,2001:62).
Quanto à avaliação para a indicação de internação para um dependente químico, é
necessário considerarem-se os níveis de dependência, de complicações orgânicas, de
complicações psíquicas, de barreira defensiva, além do contexto familiar e do nível sócio-
econômico do indivíduo (Ramos e Bertolotte, 1997:114).
Nos casos de saúde mental, no âmbito da saúde pública, em se tratando da internação
hospitalar, esta ainda encontra-se centrada em hospitais psiquiátricos, e não em leitos
psiquiátricos em hospitais gerais, como preconiza a Lei da Reforma Psiquiátrica (Legislação
Federal e Estadual SUS, 2000).
Um dos pontos mais importantes no processo da Reforma Psiquiátrica é o atendimento
adequado aos portadores de sofrimento psíquico nas unidades de saúde ou a oferta de outros
serviços substitutivos que não somente os serviços especializados ou internações. No caso
31
específico da dependência química, a discussão faz-se em torno do tratamento ao dependente
químico respeitando suas peculiaridades, não o internando com pacientes de outras
psicopatologias (Araújo et al., 2003).
Por fim, não se pode deixar de mencionar a discussão ocorrida no Rio Grande do Sul
para debater uma tentativa do cumprimento da Lei da Reforma Psiquiátrica, quando foi
fechada, em agosto de 2002, a Unidade de Dependência Química do Hospital Psiquiátrico São
Pedro que atendia pelo SUS. Após esse fechamento, porém, de acordo com uma pesquisa
realizada (Araújo et al., 2003) com os 168 pacientes que não obtiveram vaga para internação
no HPSP, apenas 10 foram internados em outros hospitais, números significativamente
maiores do que os obtidos quando esta unidade estava funcionando. Além disto, houve um
aumento significativo do número de pacientes dependentes químicos, sem comorbidades
psiquiátricas, que internaram em unidades de psicóticos do Hospital Psiquiátrico São Pedro,
sem que lhes fosse prestado um atendimento adequado às suas necessidades. Mesmo com a
reabertura da unidade no ano de 2005, a partir dos dados expostos se faz necessário
problematizar a respeito do destino que os pacientes com dependência química vêm tendo na
rede pública de atendimento, a fim de viabilizar alternativas que estejam em consonância com
a lei e com a realidade dos sujeitos.
Os transtornos mentais têm altas taxas de prevalência na população e importante
demanda potencial para os serviços de saúde. Na cidade de Porto Alegre, dentre os
diagnósticos mais freqüentemente encontrados estão os transtornos do uso de substâncias
psicoativas (Ballester,1998:93) fato que revela a importância da avaliação dos dependentes
e do seu atendimento aos dependentes químicos. Em levantamento realizado quanto à
prevalência de dependência do álcool em área metropolitana na Região Sul do Brasil, viu-se
que esse distúrbio afeta de 8 a 10% da população adulta e é responsável por 9 a 32% dos
leitos hospitalares (Nunes,1999:84).
De acordo com a definição do DSM-VI (APA,1995:177), “a dependência caracteriza-
se pela presença de um agrupamento de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos
indicando que o indivíduo continua utilizando uma substância apesar de problemas
significativos relacionados a ela".
32
No tratamento da dependência química, são propostos diversos métodos de
intervenção. Ganham destaque as intervenções com a família, na comunidade, as relações
significativas e o ambiente de trabalho (Sonenreich,2000:341). Indica-se, primeiramente, que
os pacientes sejam desintoxicados ambulatorialmente. Nos casos considerados mais graves e
que reúnam condições de fazer uma internação domiciliar, esta deve ser a opção, deixando-se
a hospitalização indicada para o último caso (Ramos e Bertolote, 1997:116).
Ainda no caso específico da internação domiciliar, ressalta-se que está prevista na Lei
8.080, de 19 de setembro de 1990, quando passa a vigorar acrescida do seguinte Capítulo VI e
do art. 19.º:, “são estabelecidos, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o atendimento
domiciliar e a internação domiciliar”, constando ainda do parágrafo 1.º que “na modalidade de
assistência de atendimento e internação domiciliares incluem-se, principalmente, os
procedimentos médicos, de enfermagem, fisioterapêuticos, psicológicos e de assistência
social, entre outros necessários ao cuidado integral dos pacientes em seu domicílio”.
O suporte social é fundamental para a melhora do prognóstico dos dependentes de
substâncias psicoativas (Rusch,1989:35). Uma investigação completa deve abordar a situação
do sujeito em seu meio de convivência, a estabilidade do núcleo familiar e a disponibilidade
deste para cooperar no tratamento, devendo-se organizar uma rede de suporte social
(Department of Health, 1999:162).
Kern (2005) traz uma importante discussão acerca do trabalho do assistente social via
mediações em redes, discutindo a importância das redes sociais para o homem; na verdade,
entendo-as como essenciais para o tratamento, uma vez que o homem é por natureza um ser
social.
Nesta perspectiva, o autor trabalha o sentido da potencialização das redes que
constituem as relações humanas e aborda a subjetividade, quer dizer, o potencial encontrado
nas redes através da subjetividade, tanto a individual quanto a coletiva, transmitida uma para a
outra instância em um movimento constante de relações intersubjetivas. Segundo Kern
(2005:54):
A condição humana de estar com o outro significa que o ser humano move-se em
direção ao relacionamento com o mundo que o rodeia, em busca de recursos de que
necessita, não só para a subsistência, mas também para seu desenvolvimento.
33
Faleiros (2001:57), ao discutir as estratégias de fortalecimento do usuário por meio das
mediações em rede, descreve as redes primárias como aquelas “que se configuram mais
significativas para o eu, como as relações afetivas familiares e de amizade. As redes
secundárias são formais, institucionalizadas, e dizem respeito à socialização do sujeito e a
vínculos sociais mais amplos”. Nessa relação, o autor enfatiza que “as estratégias de
intervenção devem combinar as mediações da rede de relação primária com as da rede
secundária para fortalecer o patrimônio, o poder, a crítica e a autonomia do sujeito”.
Seguindo com a leitura deste autor, encontra-se em sua obra justamente um exemplo
no âmbito da temática que vem sendo desenvolvida neste trabalho, em se tratando da questão
da dependência química. Assim, aponta que:
[...] a fragilização afetiva, resultante da rejeição familiar, que se manifesta em
drogadição ou doença mental, implica uma estratégia voltada tanto para as relações
familiares em que se imbricam de imediato como para a relação com instituições, com
a garantia de direitos sociais, com a cultura (2001:58).
Cabe ainda enfatizar, de acordo com a mesma referência, o desdobramento dessa
estratégia de intervenção voltada a essa demanda, através de uma compreensão do movimento
que se dá do particular para o todo, assim como desse todo para o particular. Sobre a
compreensão desse movimento, o autor faz a seguinte exposição:
[...] consumo de drogas rejeição abandono família rede familiar relações de
solidariedade políticas de atendimento garantia de direitos imaginário da droga
atividade laboral, implicando o envolvimento dos atores que vão dando suporte tanto à
compreensão da questão como à mudança de trajetória do sujeito (2005:58).
A partir desse entendimento que se busca a mediação das situações adversas do
cotidiano, viabilizando o protagonismo dos sujeitos envolvidos. A discussão acerca da família
tem de se ater às condições em que essas famílias vivem no seu dia-a-dia, no âmbito
doméstico, familiar e de vizinhança, com vistas a construir um projeto social no sentido de
uma nova qualidade de vida. É nesta via das linhas das redes formadas pelos sujeitos que
haverá a possibilidade de tencionar, fortalecer, abrir seus laços, apoiando, unindo, através dos
vários protagonistas sociais a família, comunidades, vizinhos, parentes, profissionais,
instituições, lideranças, políticos –, enfim, a relação da totalidade com as partes e destas com
o todo.
34
A partir da perspectiva de uma intervenção que considera a família como rede de
apoio ao dependente químico, é necessária uma reflexão voltada para a sua centralidade no
campo das políticas públicas. Tais políticas devem entendê-la como instância que deve ser
igualmente atendida em suas necessidades, na medida em que esta compõe um papel central
na vida do homem, enquanto âmbito de potencialidades e de situações conflituosas,
constituindo uma complexa teia de relações interpessoais influenciadas pela estrutura externa
e por sua própria estrutura interna.
2.2 A família como referência
É nosso ponto de partida a colocação dos autores que apontam ser “a relação entre
família e Estado [...] conflituosa desde o princípio, por estar menos relacionada aos indivíduos
e mais à disputa do controle sobre o comportamento dos indivíduos” (Mioto, 2004:53).
De acordo ainda com Mioto (2004:45), esta relação tem sido lida de duas formas
opostas, as quais a autora define como:
Uma questão de invasão progressiva e de controle do Estado sobre a vida familiar e
individual, que tolhe a legitimidade e desorganiza os sistemas de valores radicados
no interior da família ou como uma questão que tem permitido uma progressiva
emancipação dos indivíduos.
A autora refere ainda três grandes linhas pelas quais se a interferência do Estado
nas famílias, fato importante para esta análise, uma vez fazer-se necessário identificar como
essas relações se organizam. Ela menciona a primeira sob a forma da “legislação, através da
qual se definem e regulam as relações familiares”; a segunda, “das políticas demográficas,
tanto na forma de incentivo à natalidade como na forma de controle de natalidade”; a última,
“da divisão de uma cultura de especialistas nos aparatos policialescos e assistenciais do
Estado destinados especialmente às classes populares” (2004:45).
Os interesses de controle dos cidadãos por parte do Estado são explicitados por
Jurandir Freire da Costa (1979), em Ordem Médica e Norma Familiar. Neste trabalho, relata
sobre o período do século XIX, no qual as famílias passam a migrar da Colônia para o centro
35
urbano, e a intervenção policial não mais conta da ordem, na medida em que as famílias da
elite burguesa se opõem a algumas intervenções Estatais. Torna-se necessário, então, que se
crie uma nova política que leve os indivíduos à compactuarem” com a ordem estatal, sendo
este “o momento da inserção da medicina higiênica no governo político dos indivíduos”
(Costa, 89:28). O dispositivo médico inseriu-se na política de transformação familiar
compensando as deficiências da lei. Nesse sentido, a medicina passa a introduzir-se no
“universo familiar” com o objetivo de obter a ordem urbana. O que se pretendia era a
“reeuropeizacão do costumes”, sendo a “reurbanização” da família uma estratégia de
“nacionalização”.
Para tal, segundo Costa (1979:64), “um mesmo eixo lógico orientava todos eles. De
início, o fenômeno físico, cultural ou emocional era aspirado e convertido em fato médico e,
em seguida, reinjetado no tecido social conforme articulação prevista”.
Mesmo o amor, que primeiramente era entendido pelo “filtro religioso”, passou a ser
“adequado à manipulação médico-estatal”. Nessa contraditória parceria entre Estado e
família, esta, através da divisão das tarefas e responsabilidades entre gênero e gerações,
constituiu-se num dos grandes pilares do Estado de Bem-Estar (Mioto,2004).
No caso específico da saúde mental, a família e o portador de transtorno mental
passaram por diferentes entendimentos quanto aos modelos de intervenção no seu âmbito. No
caso da intervenção do Serviço Social, um estudo é desenvolvido por Vasconcelos (2000), em
que o autor descreve as correntes teóricas que influenciaram os modelos de atendimento,
principalmente a partir da década de 40.
Segundo o autor, o Serviço Social esteve inserido em modelos que tiveram como
base o diagnóstico de caso e clínicas de orientação que se propunham, principalmente, à
orientação infantil e juvenil, com a finalidade de o profissional realizar uma investigação do
indivíduo e do seu meio. Nessa circunstância, a família era alvo de uma investigação pautada
em valores morais e religiosos que buscava diferi-la enquanto ambiente saudável ou não. De
acordo com Vasconcelos (2000:225):
A família reconhecida como estável pela assistente social era aquela formada pelo casal
unido pelo casamento civil e religioso, onde a função exercida por cada membro é
colocada de forma clara; qualquer relacionamento que ultrapasse esse pressuposto de
36
estabilidade familiar seria considerado prejudicial à saúde da criança, justificando,
assim, o surgimento de problemas emocionais.
Outra importante referência de ideário mencionada pelo o autor diz respeito às
Comunidades Terapêuticas com origens na Inglaterra no período da Segunda Guerra Mundial
e também, por conseguinte, nos Estados Unidos. A discussão era pautada pela necessidade de
humanização no tratamento do sofrimento psíquico em contrapartida à realidade das
instituições psiquiátricas. No Brasil, em função do projeto político do governo militar no auge
do cresci2mento capitalista industrial, a saúde mental centrou sua ênfase na força de trabalho
produtivo com caráter privado, fato que manteve os desprovidos desta possibilidade em
internações nos grandes hospitais psiquiátricos, que se encontravam em péssimas condições,
desde a falta de técnicos às instalações precárias.
Em relação às intervenções na família, Vasconcelos (2000:236) menciona que “a
família, que era tida como o elo entre o doente e a sociedade, era também considerada
responsável pelo tratamento, visto que nela se teria iniciado a doença”. De acordo com o
Vasconcelos (2000:238), esse modelo teve importante contribuição na abertura de espaço para
a família fazer suas próprias reivindicações.
Os familiares tendem a reconhecer, sim, sua importância no tratamento, contudo
apontam para a necessidade do reconhecimento dos seus limites no processo de cuidar e
de suas tensões advindas da presença de um ente portador de transtorno mental na
família.
O autor segue com uma descrição bastante consistente a respeito dos modelos de
terapia familiar; essa descrição irá servir de subsídio para entendermos os avanços que esses
modelos significaram na constituição da profissão e mesmo os retrocessos que ainda podem
ser encontrados no campo da prática profissional. No que tange ao trabalho com as famílias
no âmbito da saúde mental, Vasconcelos (2000:254) alerta para a fundamental diferença que
devemos ter em nossa prática atual em contrapartida às primeiras tentativas de atenção à
família, ao resumir que:
É importante que os profissionais da área da saúde mental, de modo especial os
assistentes sociais em sua intervenção junto à família, atentem para esta realidade, para
que propiciem a possibilidade de superar as dificuldades vividas no convívio com o
membro portador de transtorno mental, dividindo
com ele o tempo de cuidar, através
Grifo da autora para chamar a atenção para a diferença, principal, nas práticas de atenção à família.
37
da oferta de serviços de atenção psicossocial diário, oferecendo-lhe o apoio necessário
dos serviços para lidar com o estresse do cuidado e convidando-o a participar da
elaboração dos serviços e de sua avaliação (e aqui não com a família como também
os próprios usuários).
Pode-se dizer, com base nessa breve menção à história, que a relação estabelecida no
contexto das políticas públicas de atenção voltada à família através do Estado se caracterizou
por uma cultura prevalentemente assistencialista no âmbito das políticas e dos serviços
destinados a dar sustentabilidade à família como unidade (Mioto,2004).
O mesmo se pode dizer das políticas voltadas à família no campo da assistência, que,
mesmo a partir da proposição da sua centralidade na Política Nacional de Assistência Social,
ainda se caracteriza pela ação de controle do Estado, permeada por uma cultura
prevalentemente assistencialista no âmbito das políticas e dos serviços destinados a dar
sustentabilidade à família como unidade (Mioto, 2004).
Nesse sentido, Neder (2004:42), ao se referir ao quadro atual das famílias no Brasil,
coloca que “a formulação mais simpática às classes populares que trata da organização
familiar ainda está presa nas malhas de um enfoque que enfatiza a relação pobreza/família
irregular”.
Outro fato importante apontado por Neder (2004:45) é de se considerarem no
trabalho com as famílias brasileiras os aspectos históricos e culturais, buscando-se uma “saída
para esta armadilha ideológica”. Enfatiza ainda que “uma boa política social para as famílias
das classes populares deve, portanto, respeitar política e ideologicamente as diferenças, se
almeja alguma eficácia”.
Mioto (1997:128) menciona que é preciso “pensar as famílias sempre numa
perspectiva de mudança, dentro da qual se descarta a idéia dos modelos cristalizados para se
refletir as possibilidades em relação ao futuro”. Nesse sentido, coloca que as transformações
ocorridas no âmbito familiar são históricas e articuladas com a sociedade, e quando não
encontram “soluções adequadas para os desafios, elas expressam suas dificuldades por meio
de inúmeros problemas (dificuldades de relacionamento, membros-problema, doenças)”.
38
Esses conflitos devem ser compreendidos pelas condições em que vivem as famílias
que lidam diariamente com a luta de conquistarem seu alimento, sempre escasso. Lutam,
igualmente, por um espaço no interior de suas pequenas casas que, geralmente, abrigam um
grande número de membros, sendo necessário lutarem por um lugar nas camas e colchões,
tornando-se impossível a privacidade. Nas casas, encontram-se literalmente jogados uns sobre
os outros, compartilhando seus sentimentos, sejam eles de afeto, raiva ou de frustração.
Para seguirmos compreendendo a dinâmica dos conflitos existentes no contexto
familiar, utilizaremos a seguinte definição de Schabbel (2004:417):
[...] considera-se a família como um sistema social, formado por unidades
interdependentes (pessoas) que, por comunicação e comportamentos recursivos,
estabelecem um intercâmbio de influências recíproco. Os membros de uma família
desenvolvem padrões compartilhados de comportamento a partir da sistematização de
hábitos e do “mergulho” em conhecimento por vezes inconsciente ou de níveis mais
arcaicos, a ecologia das idéias, que são determinantes no entrelaçamento das relações
familiares.
Nesse sentido, entende-se que a família constrói significados que podem estar
baseados em suas crenças, premissas, regras, que irão orientar as interações entre seus
membros, além das demais relações sociais, de uma forma que os caracteriza em alguns
aspectos. Como complemento, referencia-se ainda Osório (1996:47), que diz que “a família é
e continuará sendo, a par de seu papel na preservação da espécie, um laboratório de relações
humanas onde se testam e aprimoram os modelos de convivência...”.
Considerando-se os fatores que colaboram para o agravamento dos conflitos internos
das famílias, o alcoolismo, as dependências de outras drogas e as violências somam-se ao
quadro de fragilização.
A condição de miséria das famílias brasileiras consideradas de baixa renda é um
quadro alarmante, que exige políticas voltadas para a distribuição de renda enquanto uma
política de proteção em meio ao sistema capitalista que gera, cada vez mais, um número
massivo de desempregados. A família, afetada nesse contexto, necessita de um apoio
direcionado ao maior usufruto de bens e serviços indispensáveis à alteração da qualidade de
vida e à exclusão a que estão submetidas.
39
a necessidade de se ampliar a rede social de apoio às famílias que sejam
conhecedoras do trato com essas questões, ultrapassando a oferta de serviços exclusivamente
solidários, de cunho caritativo. Essa rede deve abranger os serviços de saúde, educação,
assistência social e outros, uma vez que tratamos de uma realidade complexa, que exige a
integração dos diferentes âmbitos das políticas públicas.
No campo da dependência química, igualmente dispomos de alternativas para os
sujeitos. Trata-se de uma acolhida que propicie às pessoas uma escolha consciente, que não
pode ser encorajada em um sistema no qual as pessoas são induzidas a seguirem determinado
modo de ação, nem em programas em que um tratamento relativamente padronizado é
oferecido a todos. de se motivar aqueles que buscam ajuda a reconhecerem sua liberdade
de escolha em relação à forma como desejam tratar de sua condição.
Portanto, trabalhar na perspectiva de cidadania e do fortalecimento da auto-estima dos
sujeitos inclui receptividade, respeito, apoio, afeto, preocupação, compreensão empática,
comprometimento e interesse pelo que pensam, sentem e fazem.
É dessa perspectiva que Freire (2002:17), em seu livro “Pedagogia da Autonomia”,
aborda sobre a ética universal dos direitos humanos, referindo-se à relação com os educandos,
a qual se estende também ao âmbito da prática profissional, aos usuários, enfim, ao campo das
relações humanas. Segundo o autor, ainda sobre ética, “a melhor maneira de por ela lutar é
vivê-la em nossa prática, é testemunhá-la, vivaz, aos educandos em nossas relações com eles”.
Nesse sentido, viabilizar que os sujeitos possam refletir sobre sua condição de vida e
decidir sobre esta consiste em uma relação que pressuponha a aceitação das escolhas feitas
por estes para que se possa compreendê-las e, a partir daí, estabelecer confiança na relação
entre profissional e usuário. Implica proporcionar espaço para que o sujeito possa pensar a
respeito de sua vida, assegurado por uma relação de confiança, e sinta-se seguro em ser
verdadeiro consigo e com o profissional que lhe atende. É este percurso o qual o profissional
pode motivar para a mudança, através do diálogo que permite a construção e desconstrução de
idéias e saberes, em uma relação de troca de aprendizados.
Em lugar do aconselhamento moral ou da tentativa de dizer às pessoas o que é “certo”
para suas vidas, o sentido é incentivá-los a pensar. Nesse sentido que a educação permeia a
40
prática cotidiana com os usuários, pois o que se quer é aguçar o pensamento e a capacidade de
reconstruir novos conhecimentos a respeito de si e da vida que fundamentem uma nova
tomada de posição. Freire (2002:37) aponta que
[...] pensar certo, pelo contrário, demanda profundidade e não superficialidade na
compreensão e na interpretação dos fatos. Supõe a disponibilidade à revisão dos
achados, reconhece não apenas a possibilidade de mudar de opção, de apreciação,
mas o direito de fazê-lo.
Nesse processo, de se considerar a contradição que, segundo Vasconcellos
(2001:87), é um elemento central, fundador do homem, e, por conseqüência, do
conhecimento”. Assim, aponta ainda sobre o processo de evolução do conhecimento:
A evolução do conhecimento do sujeito vai-se dando a partir da tomada de
consciência da contradição entre o elemento subjetivo (sua representação, idéia,
conceito) e o elemento objetivo (a realidade nas suas múltiplas determinações), na
perspectiva de sua superação.
Sentir-se dividido em relação a alguma coisa, situação ou pessoa é uma experiência
comum. Mas quando falamos de comportamentos aditivos, esse tipo de conflito costuma ter
um papel central. Muitas vezes, as pessoas reconhecem os riscos, os custos e os danos
envolvidos em seu comportamento. Ainda assim, sentem-se muito apegados e atraídos ao
abuso de drogas por várias razões, não tendo certeza do que deveriam fazer quanto a sua
situação. Eles querem beber ou fumar, etc., mas não querem. Querem mudar e não querem.
É importante que a aceitação e a compreensão por parte do profissional façam parte
desse movimento, buscando descobrir e entender as contradições de cada um. Vasconcellos
(2001:87) trata sobre a “contradição autopromovida (quando o próprio sujeito está no
processo de investigação e percebe que sua hipótese não conta de explicar o fenômeno em
estudo) ou heteropromovida (quando o sujeito não conta por si da contradição e esta ter de
ser provocada por um outro sujeito)”.
Nesse sentido, o autor está se referindo ao papel do professor quanto à construção do
conhecimento, embora não se tratando de uma relação entre professores e alunos. Trata-se,
sim, de construir conhecimento no sentido educativo progressista, já que se pretende alcançar
a opção por uma mudança consciente e crítica a partir de novos ideais.
41
Cabe novamente ressaltar que neste processo de espaço ao pensar não é possível
qualquer forma de discriminação. Esse é um movimento permanente dos sujeitos,
constantemente passível de mudanças, as quais podem provocar o temor por aquilo que é
novo. Neste contexto, pensar certo é pensar de acordo com os princípios próprios, e não
unicamente de acordo com o que pensa o profissional ou a sociedade, ou seja, com algo que é
dado.
Freire (2002:42) explora tal idéia a respeito do pensar certo.
A grande tarefa do sujeito que pensa certo não é transferir, depositar, oferecer, doar
ao outro, tomado como paciente de seu pensar a intelegibilidade das coisas, dos
fatos, dos conceitos. A tarefa coerente do educador que “pensa certo” é, exercendo
como ser humano a irrecusável prática de inteligir, desafiar o educando com quem
se comunica e a quem comunica, produzir sua compreensão do que vem sendo
comunicado. Não há intelegibilidade que não seja comunicação e intercomunicação
e que não se funde na dialogicidade. O pensar certo por isso é dialógico e não
polêmico.
Portanto, no campo da saúde, ao tratar-se de sujeitos que fazem uso abusivo ou mesmo
tornaram-se dependentes das drogas, deve-se realizar um acolhimento livre de preconceitos
morais, compreendendo a fragilidade subjetiva que levou a pessoa a estabelecer uma
dependência e os inúmeros fatores relacionados (relações familiares, sociais, desemprego,
problemas no emprego, perdas de pessoas queridas, etc.). É necessário ainda reconhecer a
necessidade desses sujeitos de uma reorganização de vida; para tanto, a abordagem deverá ser
flexível, respeitando o desejo e o tempo da pessoa.
O auxílio está em não recriminar, mas em estar disponível, próximo para os sujeitos
que, muitas vezes, não estão vendo a gravidade de sua situação. O profissional envolvido deve
ser sensível para captar as necessidades da pessoa e disponível para conhecê-las (valores,
princípios, códigos de linguagem e objetivos de vida).
É fundamental entender como as pessoas com as quais trabalhamos vêem o mundo e
os valores que possuem, pois esse é um caminho dialético que exige, além do nosso
entendimento da realidade, vermos como os sujeitos a percebem para podermos viabilizar um
caminho para a mudança.
42
Nesse sentido, o atendimento ao sujeito dependente químico e sua família é entendido
como um processo que implica uma escuta ativa, visando à criação de um espaço para o
diálogo com avaliação de interesses e necessidades, com uma análise de causas e soluções, e
planejamento de ações inovadoras a partir das possibilidades e circunstâncias que estão sendo
vivenciadas no momento.
A partir desse entendimento, segue a apresentação da pesquisa desenvolvida a respeito
da proposta de internação domiciliar no âmbito da saúde pública. O objetivo deste trabalho é
verificar de que forma essa modalidade de atendimento pode servir para o trabalho de
perspectiva de rede integrada viabilizado em serviço especializado de atendimento à saúde
mental. O meio é a proposta de atenção ao sujeito dependente químico e à sua família no
momento da desintoxicação, no intuito de fortalecer o grupo e com vistas a dar continuidade
ao seu atendimento na rede de serviços disponíveis aos sujeitos, de acordo com a sua
condição.
3. APRESENTAÇÃO DA PESQUISA
Segue-se com a apresentação da pesquisa desenvolvida acerca do modelo de
internação domiciliar ao dependente químico implantado no Ambulatório Melanie Klein no
ano de 2004, especificando todos os ítens observados para sua realização.
3.1 PROBLEMA DE PESQUISA:
Como o modelo de internação domiciliar realizado no Ambulatório Melanie Klein contribui
para o dependente químico na prevenção de recaída, na redução de danos no âmbito da saúde
pública e no fortalecimento da rede de apoio?
3.2 QUESTÕES NORTEADORAS
1. Como a modalidade de internação domiciliar contribui para o fortalecimento da rede social
de apoio ao dependente químico, fortalecendo a família e o sujeito?
2. Como o modelo de internação domiciliar contribui no sentido de reduzir as possibilidades
de recaída?
43
3. Qual a contribuição do modelo de internação domiciliar para a prevenção à recaída e para a
redução de danos?
4. Que significado possui para os sujeitos a vivência desse modelo de tratamento?
2.3 OBJETIVOS
GERAL:
Analisar o modelo de internação domiciliar do dependente químico realizado no Ambulatório
Melanie Klein, no âmbito da Saúde Pública, a fim de verificar vantagens e desvantagens
identificadas pela família e pelo sujeito neste modelo de atendimento, bem como pela equipe
responsável pelo Programa de Dependência Química, de modo a contribuir com subsídios
para o seu aprimoramento.
OBJETIVOS ESPECÍFICOS:
1. Analisar a participação da família dentro da modalidade de internação domiciliar como
rede social de apoio no tratamento da dependência química, a fim de verificar em que medida
é possível fortalecer seus vínculos e potencialidades para lidar com a questão.
2. Analisar o que está preconizado no modelo de internação domiciliar ao dependente químico
e avaliar a sua inserção em um Serviço de atendimento especializado à saúde mental, no
âmbito do SUS, a fim de verificar sua efetividade nesse espaço.
3. Verificar as contribuições desse modelo no que concerne à redução de danos e prevenção
de recaída.
4. Verificar, a partir da experiência social dos sujeitos que vivenciaram o modelo de
internação domiciliar, o significado atribuído a essa modalidade de tratamento.
44
3.4 METODOLOGIA
Esta é uma pesquisa que visa conhecer o que pensam os sujeitos a respeito da
proposta de atendimento realizada em seu domicílio em conjunto com seus familiares,
buscando desvelar os sentimentos que perpassam todos e a forma como conduzem o
tratamento. Tendo em vista que se conheçam as possibilidades que auxiliam na prevenção de
recaída ou mesmo na elaboração de estratégias de redução de danos na dependência química,
esta consiste de uma pesquisa qualitativa.
Sobre esta, Martinelli (1994:13) destaca alguns pressupostos que fundamentam o uso
de metodologias qualitativas de pesquisa. A autora aponta como primeiro pressuposto “o
reconhecimento da singularidade do sujeito”, ou seja, “permitir-lhe que se revele”, algo que
pode ser construído em meio a sua realidade, ao seu contexto de vida. Daí segue com o
segundo pressuposto, de que “essas pesquisas partem do reconhecimento da importância de se
conhecer a experiência social do sujeito e não apenas as suas circunstâncias”, ou seja, implica
conhecer “o modo de vida” dos sujeitos, e não apenas as circunstâncias que o levaram a
determinado comportamento. Nesse sentido, chega-se ao terceiro pressuposto, que trata sobre
“o reconhecimento de que conhecer o modo de vida do sujeito pressupõe o conhecimento de
sua experiência social”, pois, segundo a autora, “é na busca dos significados de vivências para
os sujeitos que se concentram os esforços do pesquisador” (Martinelli 1994:14).
Portanto, é nessa via que a pesquisa se fundamenta, uma vez que pretende desvelar
alguns dos significados envoltos no uso de drogas, bem como o que isso representa e como
repercute na vida dos sujeitos que convivem nesta trama. Além de se propor um modelo de
tratamento, o que se pretende é discutir com os sujeitos-alvo da pesquisa se esse pode ser um
modelo que realmente os auxilie, na medida em que é a protagonização dos projetos de vida
dos sujeitos o fio que percorre este trabalho.
Richardson (1999:79) afirma que “a abordagem qualitativa de um problema, além de
ser uma opção do investigador, justifica-se, sobretudo, por ser uma forma adequada para
entender a natureza de um fenômeno social”. Considerando o Serviço Social enquanto
categoria comprometida com a questão social através do enfrentamento de suas múltiplas
expressões, Prates (2003:16) aponta necessário “conhecer como a questão social se manifesta
45
no cotidiano dos sujeitos sociais, e suas formas de organização e resistência são fundamentais
para que possamos construir coletivamente alternativas de enfrentamento”.
Por fim, de acordo com Martinelli (1994:15), em relação às pesquisas qualitativas, é
imprescindível considerar que “muito mais do que descrever um objeto, buscam conhecer
trajetórias de vida, experiências sociais dos sujeitos, o que exige uma grande disponibilidade
do pesquisador e um real interesse em vivenciar a experiência da pesquisa” desejo esse
atrelado a este projeto.
3.5 MÉTODO
A análise que orienta este projeto se fundamenta no método dialético-crítico. Sobre a
dialética, Konder (1985:70) coloca que:
A dialética aponta na direção de uma libertação mais efetiva do ser humano em
relação ao cerceamento de condições econômicas ainda desumanas... Uma das
características essenciais da dialética é o espírito crítico e autocrítico. Assim como
examinam constantemente o mundo em que atuam, os dialéticos devem estar
sempre dispostos a rever as interpretações em que se baseiam para atuar.
De acordo com o Documento da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em
Serviço Social ABEPSS (1996:12-13), a orientação da formação profissional dos
Assistentes Sociais está pautada pela matriz marxista que, ao referir-se à abordagem da
questão social, objeto do Serviço Social, aponta que:
[...] na apreensão do processo como totalidade, reproduzindo o movimento do real
em suas manifestações universais, particulares e singulares, em seus componentes
de objetividade e subjetividade, em suas dimensões econômicas, políticas, éticas,
ideológicas e culturais, fundamentado em categorias que emanam da teoria crítica.
O método que orienta este projeto, portanto, fundamenta-se na perspectiva dialético-
crítica, à medida que busca refletir sobre o processo nele envolto, a partir do contexto
histórico, político, econômico e social, considerando os sujeitos-alvo da intervenção
determinados pelas relações de poder, capazes de transformar sua realidade, movendo-se
dentro da estrutura da sociedade e posicionando-se frente a esta.
O saber que se busca nesse processo implica conhecer a realidade da forma mais
ampla possível, relacionada às singularidades dos sujeitos, com objetividade e autocrítica
46
diante da intervenção, para que seja comprometida ética e politicamente com os princípios
que norteiam a práxis do Serviço Social.
Para tal, utilizam-se as categorias teóricas explicativas da realidade propostas por este
método, que são o instrumento metodológico da dialética para analisar os fenômenos da
natureza e da sociedade, os quais abarcam a contradição, a totalidade e a historicidade.
Sobre a contradição, Marx (1980: 74) refere que “a contradição da realidade é a forma
da realidade se mover, é a forma de colocar em movimento, o tempo todo, esse destino do ser,
da realidade, que é ser móvel”. Pode-se ainda dizer, de acordo com Vasconcelos (2004:84),
que “a contradição é entendida como um elemento central, fundador do homem, e, por
conseqüência, do conhecimento”. Portanto, entende-se a contradição como um conflito que
impulsiona o sujeito à sua superação, sendo um movimento de negação e também de criação,
pelo qual o que se pretende desvelar é exatamente esse movimento dos opostos.
A totalidade é explicada assim por Cury (1992:36):
Uma compreensão dialética da totalidade exige a relação entre as partes e o todo e
as partes entre si. O todo, colocado acima ou fora das partes numa mera relação de
exterioridade, se petrifica na abstração. O todo, na verdade, se cria
concretamente nas partes e é na relatividade das partes que o todo se estrutura e
caminha.
Dessa forma, o que se busca com a análise dessa categoria é a compreensão da relação
do contexto social como um todo entre as particularidades. Esse todo tem influência sobre os
sujeitos com os quais trabalhamos, assim como suas ações têm efeito sobre o todo. Prates
(2003:25) aponta que A totalidade concreta não é um todo dado, mas um movimento de
autocriação permanente, o que implica a historicização dos fenômenos que a compõem”. Dirá
ainda que “analisar um fenômeno, uma situação concreta, à luz da totalidade, não significa
exaurir os fatos, mas problematizá-los de forma inter-relacionada, buscando as determinações
que uns têm sobre os outros para melhor interpretar a realidade”.
A historicidade “significa o reconhecimento da processualidade, do movimento e da
transformação do homem, da realidade e dos fenômenos sociais” (PRATES, 2003:26). Buscar
desvelar a historicidade, neste sentido, não significa somente o resgate da história dos
47
sujeitos, mas principalmente os significados contidos no movimento de suas trajetórias, nas
quais cada sujeito vai se construindo coletivamente e individualmente marcado por suas
experiências.
É fundamentado, contudo, nesse referencial que propõe um método de análise
condizente com o projeto profissional da categoria do Serviço Social, que esta pesquisa tenha
como proposta se desenvolver na proporção que se compromete com a análise de um modelo
de atendimento oferecido no âmbito da saúde pública, com vistas a apreender as relações que
ocorrerão nesse processo de forma crítica e construtiva, voltada à análise das categorias
família, rede social de apoio e dependência química.
3.6 SUJEITOS/ AMOSTRA
O público-alvo da pesquisa consistirá na amostra do universo de pessoas que
participaram desta modalidade de atendimento para dependência química no Ambulatório
Melanie Klein do Hospital Psiquiátrico São Pedro no período em que foi implementado, no
ano de 2004, com a realização dos atendimentos nos meses de junho a agosto.
A respeito dos participantes da pesquisa do tipo qualitativa, ressalta-se aqui, de acordo
com o autor utilizado como referência no campo da pesquisa em saúde, o seguinte aspecto:
Nas pesquisas em que seres humanos são alvos do estudo é impossível, por razões
práticas, abordar todos os sujeitos que compõem o grupo de interesse do
pesquisador, salvo quando o recorte do objeto de estudo compreenda comunidades
numericamente tão restritas, que o pesquisador tem condições temporais de
conhecer cada um e condições intelectuais de apreender todos em seu trabalho
(Turato, 2003:351).
Sendo assim, utiliza-se a mesma referência para explicar o uso da definição de amostra
e seu significado.
A palavra amostra quer dizer uma porção, um pedaço, um fragmento, os quais são
apresentados para demonstrar propriedades da natureza ou qualidade de algo. Na
linguagem científica das pesquisas com seres humanos, amostra significa uma
parcela selecionada, segundo uma determinada conveniência, e extraída de uma
população de sujeitos, consistindo assim num subconjunto do universo (Idem).
48
Portanto, o tipo de amostra para esta pesquisa será a amostragem proposital,
intencional ou deliberada. Segundo Turato (2003:357), conforme esse tipo:
O autor do projeto delibera quem são os sujeitos que comporão seu estudo, segundo
seus pressupostos de trabalho, ficando livre para escolher entre aqueles cujas
características pessoais (dados de identificação biopsicossocial) possam, em sua
visão enquanto pesquisador, trazer informações substanciosas sobre o assunto em
pauta.
A indicação, então, pressupõe que sejam sujeitos que participaram da primeira
realização desta pesquisa, a fim de se verificar como se encontram atualmente, bem como os
processos que passaram após o tratamento, para que se possa identificar a possibilidade de
contribuição na prevenção da recaída ou na redução de danos. Cabe ressaltar que os critérios
para a amostra do respectivo período em que foi efetivada consistiam em sujeitos do sexo
masculino ou feminino que fecharam critérios para dependência de acordo com a OMS
(1993). Seus perfis configuram-se em faixas etárias entre 18 e 60 anos, com suporte familiar,
desejarem realizar esse tipo de atendimento e não apresentarem riscos físicos importantes,
como delirium tremens, suicídio e agressão.
A OMS (1993) propõe seis critérios-diagnóstico para a síndrome de dependência de
substâncias psicoativas. Caso três ou mais desses critérios tenham sido experenciados ou
exibidos em algum momento durante o ano anterior à pesquisa, o diagnóstico pode ser feito:
(1) forte desejo ou senso de compulsão para tomar a substância; (2) dificuldades em controlar
o comportamento de uso da substância quanto ao seu início, final ou veis de uso; (3) estado
de abstinência fisiológica, quando o uso da substância é interrompido ou reduzido, conforme
evidenciado pela síndrome de abstinência característica da substância; (4) evidência de
tolerância, de modo que doses crescentes da substância psicoativa são necessárias para se
obter efeitos originalmente produzidos por doses menores; (5) abandono progressivo de
interesses ou prazeres alternativos em favor do uso da substância psicoativa; quantidade maior
de tempo necessário para obter ou usar a substância para se recuperar de seus efeitos; (6)
persiste o uso da substância apesar das conseqüências nocivas.
Ainda sobre os critérios para selecionar casos para estudos qualitativos, o autor pontua
que “não modo certo ou errado de construir amostras em pesquisa qualitativa, sendo que a
49
decisão pela amostragem deveria ser distintamente pensada e ser apropriada às questões da
pesquisa, não simplesmente ditada pela conveniência” (Turato, 2003:357).
No que se refere ao tamanho da amostra qualitativa e aos dilemas a ela atribuídos,
Turato (2003:359) aponta que “devemos ter em mente que para o pesquisador qualitativista
não cabe raciocinar como um apriorista, isto é, como quem detém afirmações ou
conhecimentos anteriores à experiência”.
Cabe, portanto, ressaltar que é necessário contar com a possibilidade de não se
encontrarem todos os sujeitos atendidos nessa modalidade de tratamento, fato que não afetaria
a importância da pesquisa, uma vez que, segundo o mesmo autor (2003:360):
É necessário enfatizar que os pesquisadores qualitativistas, por seu turno, não
tencionam, assumidamente, generalizar resultados, mas dar possibilidades de
generalizar novos conceitos e pressupostos que levantamos na conclusão do estudo;
na pesquisa qualitativa a generalização, de certo modo, é abandonada, e ela enfoca
sua atenção no específico, no peculiar, no individual, buscando a compreensão e
não a explicação dos fenômenos estudados.
3.7 INSTRUMENTOS E TÉCNICAS DE COLETA E ANÁLISE
Para a realização e avaliação da pesquisa, serão utilizadas entrevistas enquanto
instrumentos para análise, bem como as entrevistas colhidas no ano de sua efetivação, a fim
de verificar se houve mudanças quanto aos aspectos apontados.
Conforme Turato (2003:308), “A entrevista é um instrumento precioso de
conhecimento interpessoal, facilitando, no encontro face a face, a apreensão de uma série de
fenômenos, de elementos de identificação e construção potencial do todo da pessoa do
entrevistado e, de certo modo, também do entrevistador”.
Ainda recorrendo a Turato (2003:312), este denomina os diferentes tipos de
entrevistas em dirigida, semidirigida e não-dirigida, uma vez que, segundo ele, “estrutura
todas as entrevistas sempre têm”. E quanto a serem dirigidas (ou guiadas), o autor explica:
O ato de dirigir significa que podemos dar direção, apontar para onde a entrevista
caminhará. Significa também que a direção pode ser dada alternadamente: pelo
50
entrevistador em alguns momentos, mas com uma flexibilidade que permita
também ao entrevistado assumir o comando.
Desse modo, primeiramente será realizada uma entrevista inicial dirigida para
abordar os dados de identificação do sujeito e demais informações necessárias para a
avaliação da questão da dependência química aplicada no primeiro dia (Apêndice A).
Será aplicada a entrevista semidirigida (Apêndice B), que orienta para conversar a
respeito dos sentimentos do entrevistado e também dos familiares, das dificuldades, das
vantagens encontradas no tratamento domiciliar e, ainda, quanto ao envolvimento familiar e
ao modo como os fatos ocorreram nesse intervalo de tempo.
Será ainda utilizada a entrevista semidirigida com a equipe de residentes que
sucederam, bem como com as coordenadoras do Programa de Dependência Química do
AMK, com a direção do HPSP e com o coordenador da Residência Integrada em Saúde
Mental Coletiva. O objetivo é verificar como estes analisam a realização deste modelo de
atendimento no serviço em que foi proposto e se houve condições de garantir sua
continuidade (Apêndice C).
3.7.1 ETAPAS DO ESTUDO
O processo inicial consistirá na busca dos sujeitos que foram atendidos no ano de 2004
por meio dos contatos que se têm, como o número de telefone e o endereço, sendo ainda por
meio da vinculaeão que estes ainda possam ter com Programa de Dependência Química do
Ambulatório Melanie Klein.
A equipe do Programa de Dependência Química também será entrevistada, a fim de se
saber se houve novos casos neste período de tempo. Atualmente, a equipe constitui-se dos
técnicos do Ambulatório Melanie Klein, sendo uma psicóloga, uma psiquiatra, um médico
clínico e uma assistente social. Atuam ainda os residentes do programa de dependência
química, sendo eles cinco médicos psiquiatras, um enfermeiro, uma assistente social, duas
terapeutas ocupacionais e uma artista plástica.
51
A capacitação para a realização dos atendimentos efetuados no período da primeira
realização deste modelo de atendimento se fundamentou nos princípios da Entrevista
Motivacional, de Miller e Rollnick. Segundo estes (2001:61), "A entrevista motivacional é um
meio particular de ajudar as pessoas a reconhecer e fazer algo a respeito de seus problemas
presentes ou potenciais". Nesse tipo de abordagem, o técnico não assume uma postura
autoritária. Evita-se a mensagem de que ele é o especialista e vai dizer como se deve
proceder. As estratégias da entrevista motivacional visam ser mais encorajadoras do que
argumentativas. Por ser este o fundamento teórico que orienta o Programa de Dependência
Química, de acordo com a sua coordenadora, sabe-se que o mesmo princípio foi aplicado caso
tenham ocorrido novos atendimentos.
São cinco os princípios que norteiam o referencial motivacional. O primeiro consiste
em expressar empatia, o que pressupõe aceitação empática da condição do sujeito
acompanhada de escuta reflexiva, buscando compreender as perspectivas do sujeito sem
julgar, criticar ou culpar. O segundo princípio se refere a dar o feedback, com vistas a ampliar
e criar junto com o sujeito o melhor modo de compreender o seu processo. Por terceiro, evita-
se argumentações ou confrontação direta, ou seja, a situação que menos se deseja é aquela em
que o profissional argumenta que o usuário tem um problema e precisa mudar, enquanto ele
se defende. Acompanhar a resistência, enquanto quarto princípio, trata sobre o respeito aos
momentos de ambivalência do sujeito, devendo estes serem reconhecidos pelo técnico como
naturais e compreensíveis, disponibilizando espaço para que o sujeito reflita sobre seu
momento e visualize possibilidades. Por fim, busca-se promover a auto-eficácia, ou seja,
aumentar as percepções do sujeito quanto a suas potencialidades para enfrentar obstáculos,
não enfatizando o sucesso do tratamento através da abstinência total, mas da tentativa de
iniciá-lo (Miller e Rolnick,2001).
Para o aperfeiçoamento do trabalho da equipe com a proposta do projeto, a
pesquisadora se integrará às supervisões do Programa de Dependência Química do
Ambulatório Melanie Klein, realizadas semanalmente, discutindo em conjunto com a equipe a
respeito de todos os casos trazidos, de acordo com a prática desenvolvida no programa. Serão
buscadas coletivamente as alternativas de tratamentos, conforme o contexto de cada paciente,
aprofundando a discussão sobre internação de dependentes químicos e internação domiciliar.
52
A discussão acerca da Internação Domiciliar tratará também da importância do
entendimento quanto à historicidade, ao contexto de vida de cada usuário deste serviço e
daqueles que com ele convivem, ressaltando o papel da mediação familiar como a construção
de um espaço entre pessoas em conflito que permita perceber e reconhecer as diferenças,
discutir as divergências, negociar as convergências possíveis, criar vínculos, transformar
possibilidades a partir do diálogo. Nesse processo, os participantes devem reconhecer-se a si
mesmos e reconhecer a perspectiva do outro como protagonista de experiências e
comportamentos (Schabbel, 2000:417).
Nesse sentido, pretende-se abordar a riqueza do trabalho realizado no domicílio do
sujeito, o que possibilita estender o diálogo ao grupo deste e o trazer para as discussões em
equipe. É importante se perceberem as relações estabelecidas, visando tornar a mediação uma
possibilidade para a transformação dessas relações. Sendo o período da Internação Domiciliar
de curto prazo, a transformação buscada nas relações familiares volta-se fundamentalmente
para a importância da escuta entre os membros, para a visão de cada um em torno da situação
e, principalmente, para ressaltar as potencialidades deste grupo que, em meio a situações de
crise, tornam-se despercebidas.
3.7.2 PROCEDIMENTOS PARA COLETA DE DADOS
De acordo com a primeira experiência realizada no ano de 2004, foram atendidos
quatro sujeitos nesta modalidade, sendo estas as pessoas que serão buscadas para a realização
da segunda etapa da pesquisa. de se mencionar que, dentre os critérios citados na amostra
dos sujeitos, de acordo com a classificação da OMS (1993) para o diagnóstico da dependência
química e indicações de tratamento, outro fator que deve ser levado em conta para a
realização dessa modalidade de tratamento são as condições que a equipe considera
necessárias para atender à demanda. Portanto, a disponibilidade da equipe também é um
critério a ser analisado, devendo ser estimado pela equipe o número de sujeitos que poderá ser
atendido neste modelo de tratamento.
Após, os sujeitos da pesquisa serão contatos a comparecerem ao Ambulatório Melanie
Klein para que se possam realizar as entrevistas, bem como para que se encaminhem as visitas
53
domiciliares a fim de esclarecer a proposta da pesquisa aos familiares e avaliar as condições
para tal.
Para a realização dos atendimentos domiciliares, será solicitado o carro do Hospital
Psiquiátrico São Pedro, sendo o procedimento realizado pelo hospital; os mesmos poderão
ainda serem realizados por conta do pesquisador, uma vez que os sujeitos eleitos para a
pesquisa devem residir próximo ao hospital critério utilizado na primeira etapa da pesquisa.
Ressalte-se que, na primeira etapa, o veículo era cedido para a pesquisa pela Direção Técnica
da instituição.
As abordagens serão realizadas no espaço do ambulatório Melanie Klein, conforme
acordado com a Coordenadora do Programa de Dependência Química. As intervenções que
foram realizadas nos domicílios dos sujeitos na primeira fase em que foi implantada esta
pesquisa foram realizadas diariamente, em duplas, composta pela pesquisadora e por mais um
membro da equipe. O tempo dessa etapa será de um período médio de sete dias, de acordo
com as necessidades de cada sujeito, podendo chegar a dez dias. Para os acompanhamentos
diários, foram utilizados roteiros, para que a equipe estivesse voltada aos aspectos que devem
ser contemplados, de acordo com os objetivos da pesquisa e os cuidados ao sujeito que devem
ser observados. O roteiro consta dos seguintes aspectos:
1.º dia) avaliação clínica psiquiátrica, seguida de orientações, realizada pelo residente de
enfermagem e de psiquiatria. Fazer combinações quanto à rotina, ou seja, quem estará em
casa com o sujeito, locais onde julguem pertinente que este possa ir, em caso de saída
combinada, indicações e formas de uso de medicação, avaliação de situações de risco e
tratamento dos demais aspectos trazidos pelo sujeito e por seus familiares;
2.º dia) continuar a avaliação quanto à dependência química, comorbidades e prejuízos
clínicos;
3.º dia) dar o feedback a respeito dos dois primeiros dias, com atenção voltada a todos os
participantes do tratamento. Continuar motivando para a mudança do comportamento aditivo,
analisando perdas e ganhos com a cessão do consumo de drogas;
54
4.º dia) trabalhar os desejos, as metas do sujeito em atendimento, bem como situações de risco
e prevenção de recaída;
5.º dia) seguir reforçando estratégias para a prevenção de recaída e identificar desejos do
sujeito para novas atividades, trabalhando-as com todos os presentes;
6.º dia) trabalhar os potenciais e possibilidades junto ao sujeito e seus familiares, visando
creditar confiança e responsabilidades a todo o grupo, bem como atividades que ele possa
voltar a assumir;
7.º dia) avaliação clínica do sujeito em tratamento, com também avaliação quanto ao
tratamento em si e encaminhamentos necessários, como: continuação do atendimento
ambulatorial e demais encaminhamentos para serviços da rede de acordo com as necessidades
e motivação do paciente e seus familiares. Orientação quanto aos Programas de Redução de
Danos (Guia de Redução de Danos para Trabalhadores da Saúde, Secretaria de Estado da
Saúde/RS, Escola de Saúde Pública/RS) para os casos em que o sujeito não quiser manter-se
em abstinência, ou informações de estratégias de redução de danos em casos de recaída.
Os atendimentos diários foram registrados em um prontuário que permanecia na
residência do sujeito em tratamento durante o período da internação domiciliar. Após, este foi
protocolado ao seu prontuário no Ambulatório Melanie Klein, para o seguimento de
acompanhamento ambulatorial.
3.7.3 MODO DE ANÁLISE DOS RESULTADOS
A metodologia que será utilizada para a análise dos dados qualitativos será a
denominada análise de conteúdo. Esta deve se basear em uma definição precisa quanto aos
objetivos da pesquisa (Richardson, 1999).
Quanto ao funcionamento e objetivo da análise de conteúdo, Bardin (1979:42) define
como:
Um conj. de cnicas de análise das comunicações visando obter, por
procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens,
55
indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos
relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens.
A análise de conteúdo visa não somente à descrição de resultados, mas À compreensão
dos significados envoltos na realidade que se está buscando estudar. De acordo com Roque
Moraes (1999), a análise de conteúdo tem progredido ao longo do tempo, no que se refere ao
seu uso em pesquisas qualitativas para a exploração de mensagens e informações, sendo
desenvolvida através de diferentes métodos.
Assim, a linha metodológica para a análise de resultados desta pesquisa estará
orientada de acordo com o que propõe Roque Moraes (1999:9), que define a análise de
conteúdo como:
...uma metodologia de pesquisa usada para descrever e interpretar o conteúdo de
toda classe de documentos e textos. Essa análise, conduzindo a descrições
sistemáticas, qualitativas ou quantitativas, ajuda a reinterpretar as mensagens e a
atingir uma compreensão de seus significados num nível que vai além de uma
leitura comum.
De acordo com o autor, a análise de conteúdo o escapa a uma interpretação pessoal
por parte do pesquisador em relação ao entendimento que tem dos dados.
Portanto, para se chegar à interpretação dos dados coletados, Roque Moraes (1999)
contempla as etapas de preparação das informações, unitarização ou transformação do
conteúdo em unidades, categorização ou classificação das unidades em categorias,
descrição e, por fim, a interpretação. Tais etapas serão seguidas pela análise dos resultados
da pesquisa.
A preparação é a etapa em que se buscam identificar as amostras diferenciadas de
informação que serão analisadas, iniciando-se através de um processo de codificação dos
materiais, a fim de possibilitar a rápida identificação de cada elemento integrante da amostra
dos depoimentos a serem analisados.
A unitarização depende da natureza do problema, dos objetivos da pesquisa e ainda do
tipo dos materiais que serão analisados. Assim, é necessário reler todo o material
atenciosamente a fim de identificar as unidades de análise, reescrevendo-as de maneira que
56
possam ser compreendidas fora do contexto original de que foram retiradas. O autor aponta
ainda nesta fase a definição de unidades de contexto entendida como unidade mais ampla que
servirá de referência, estabelecendo limites contextuais para sua interpretação.
A categorização se refere ao agrupamento dos dados a partir do que de comum
entre eles, podendo ser por semelhança ou analogia, de acordo com critérios previamente
estabelecidos no processo. Os critérios, por sua vez, podem ser semânticos, que originam
categorias temáticas ou sintáticas, que se definem por categorias a partir de verbos, adjetivos,
substantivos e outros. O conjunto de categorias deve, porém, se fundamentar em apenas um
desses critérios. A categorização é, então, a classificação dos elementos de uma mensagem
que segue determinados critérios.
A descrição é a fase em que se produz um texto de forma resumida para cada
categoria, expressando o conjunto dos significados encontrados nas unidades de análise.
Pode-se fazer o uso de citações diretas de dados originais.
A interpretação consiste na fase final voltada para a compreensão dos significados
obtidos nas categorias de análise. É, então, a parte da produção escrita com as interpretações
do pesquisador com novos sentidos e significados, possibilitando a teorização e o avanço de
concepções teóricas assumidas a priori.
4. O PRIMEIRO ENCONTRO – DESCRIÇÃO DOS SUJEITOS
Obtivemos quatro sujeitos na primeira fase da implementação do projeto de
internação domiciliar no Ambulatório Melanie Klein realizada no ano de 2004, no período de
junho a agosto, sendo estes os mesmos sujeitos entrevistados na segunda etapa da pesquisa
para o aprofundamento da análise deste modelo de tratamento.
Sendo assim, iniciaremos tal análise partindo da descrição destes sujeitos, utilizando-
se de nomes fictícios e seguindo com a análise dos primeiros achados da pesquisa.
O primeiro sujeito, identificado por Adão, é do sexo masculino, com trinta e sete
anos de idade. Residia com a esposa e três filhos. Possuía segundo grau completo, profissional
57
de Técnico em Enfermagem, estando naquele período em licença saúde. Dependente de álcool
desde os doze anos de idade, com consumo de meio litro de cachaça por dia, relatava estar a
três meses sem fazer uso da bebida. Buscou atendimento ambulatorial, pois “se sentia muito
nervoso com a família e estava com medo de agredir os filhos” (sic).
Desde sua avaliação inicial, de acordo com os relatos de Adão e avaliação da equipe
interdisciplinar, trabalhou-se com a hipótese diagnóstica de este sujeito ter uma comorbidade
psiquiátrica
1
de depressão com sintomas psicóticos
2
. A investigação então da equipe buscava
identificar se esta era primária ou secundária à dependência química. Adão e seus familiares
não queriam que fosse realizada uma internação hospitalar, optando, assim, pela internação
domiciliar, onde ficou sendo acompanhado durante cinco dias, quando apresentou sintomas
psicóticos graves, sendo então encaminhado para internação hospitalar devido ao risco de
suicídio avaliado pelos profissionais.
A internação hospitalar de Adão teve duração de trinta dias. Ao receber alta
hospitalar, retornou ao Ambulatório Melanie Klein e, não necessitando mais de internação,
passou a ser acompanhado em nível ambulatorial durante o restante do ano pelo residente
médico. Este o acompanhou durante o período de internação domiciliar, como resultado do
vínculo formado com esta equipe.
O segundo sujeito, identificado por Lúcia, do sexo feminino, com quarenta e quatro
anos de idade, divorciada, residia sozinha nos fundos da casa de um de seus filhos. Possuía
terceiro grau incompleto e era professora aposentada. Era dependente de benzodiazepínicos
desde os vinte e nove anos e de álcool desde os trinta e seis anos. Consumia diariamente meio
litro de vinho ou cachaça. Apresentava comorbidade psiquiátrica de Transtorno Afetivo
Bipolar
3
, para o qual recebia acompanhamento interdisciplinar no Ambulatório Melanie
Klein, sendo encaminhada para a internação domiciliar para a realização da desintoxicação do
álcool, o que não conseguiu realizar em nível ambulatorial. Neste caso, a família de Lúcia se
propôs a realizar um cronograma dos dias e de quem ficaria com ela na residência, de acordo
1
O uso de drogas pode ser ao mesmo tempo causa, conseqüência de transtorno mental ou simplesmente ocorrer
na presença de outro diagnóstico psiquiátrico, sendo em geral difícil determinar se a patologia observada é
resultado do uso regular das drogas, conseqüência de seus efeitos ou faz parte da síndrome de abstinência (Seibel
e Toscano Jr., 2004).
2
Estado de desordem, de devastação, de cataclisma e dissonância fundamental (Pankow, G.; 1989).
3
58
com os critérios para este modelo de atendimento. Assim, organizaram a divisão entre seus
três filhos e seu pai. O prazo julgado necessário para o tratamento de Lúcia foi de dez dias.
A partir dos instrumentos utilizados para avaliação desta primeira etapa da pesquisa e
baseado nos demais relatos colhidos durante os atendimentos realizados no período da
internação domiciliar, pode-se referir que Lúcia achou inicialmente, o trabalho difícil, pois era
preciso o apoio da família da qual estava afastada em função do alcoolismo. Mas colocou que
com a organização que a família realizou para apóia-la durante seu tratamento sentiu-se
novamente “acolhida e protegida” (sic), referindo não esperar o envolvimento familiar
ocorrido.
Como dificuldades enfrentadas nesta modalidade de tratamento, mencionou ter sido
“duro” (sic) escutar os relatos de seu passado através da família e também, reaproximar-se dos
filhos, pois segundo ela “era algo que não acontecia muito tempo”. Como vantagens para
este tratamento, apontou o fato de poder permanecer em sua casa, com a família novamente
perto de si, recebendo sentimentos de carinho e acolhida. Ao falar sobre a comparação que fez
entre a internação hospitalar e a domiciliar, sendo que Lúcia teve em torno de seis internações
hospitalares, relatou que na última a vantagem foi ter a família perto de si, recebendo maior
apoio e também se sentiu amada. Bem como, avaliou que a família teve suas atitudes
modificadas e ainda, referiu ter sentido menos fissura, pois “o ambiente era mais
confortante”(sic). Durante o período da internação domiciliar, não houve recaída nem para o
álcool como para os benzodiazepínicos. Como avaliação final, Lúcia dizia-se confiante e
desejava “continuar com a força descoberta em casa com sua família” (sic).
O terceiro sujeito, identificado por Cássio, do sexo masculino, com quarenta anos de
idade, divorciado que residia com a mãe e dois irmãos. Possuía o primeiro grau incompleto e
estava sem trabalhar a quatro anos, não possuía renda pessoal mensal e contava, portanto, com
a renda familiar proveniente da aposentadoria da mãe e da prestação de serviço de um dos
irmãos. Cássio foi morador de rua em momentos alternados em que não se sentia em
condições de voltar para casa, segundo seu relato. Sua situação caracterizava-se por
dependência cruzada
4
, utilizando-se de álcool, solventes e cocaína (crack), diariamente.
4
Termo farmacológico para denotar a capacidade de uma substância ou uma classe de substâncias de suprimir as
manifestações da síndrome de abstinência de outra substância ou classe e assim manter o estado de dependência.
((Seibel e Toscano Jr,; 2004)
59
Cássio procurou atendimento ambulatorial, mas também apresentava dificuldades em
realizar a desintoxicação neste nível, pois seguia ingerindo álcool logo após os atendimentos
no ambulatório, uma vez que encontrava seus “ex-companheiros de rua” (sic) no trajeto até
sua casa ou mesmo estando sozinho. Portanto, para este sujeito percorrer seus trajetos o
colocavam em situação de risco.
No seu caso, como resultados da primeira fase, os relatos foram de sentimento de
nervosismo ao se dar conta da situação grave em que se encontrava e também, pelo fato de
estar novamente à par dos problemas da família. Após este período, disse ter “aberto os olhos”
(sic) nesses dias com a família. Quanto ao envolvimento familiar durante a internação
domiciliar, referiu que esta foi a primeira vez que sua família participou de um tratamento
seu, onde foi possível para ele dizer como se sentia e também, ouvir a família dizer como se
sentiam em relação a ele. As dificuldades enfrentadas nesta modalidade de tratamento se
referiam ao sentimento de vergonha por tudo ao que tinha feito sob os efeitos das drogas e
ao fato de não estar trabalhando e, portanto, não ter condições de contribuir com as despesas
da casa. Mas para ele, o fato de poder ter ficado em casa com sua família a qual também pode
ser acompanhada em suas questões por uma equipe técnica especializada, com espaço para
expressar seus sentimentos deu a ele maior credibilidade perante seus familiares, uma vez que
acompanharam sua evolução de perto.
Quanto à comparação entre a internação hospitalar e a domiciliar, avaliou esta
segunda como “algo fantástico que aconteceu em sua vida” (sic). Relatou que ao relembrar da
vida que vinha tendo longe de sua família e da aparência física em que estava e, ao se ver no
final deste tratamento em outras condições, se sentia muito feliz. “Eu era barbudo, tava sem
higiene, jogado na rua e agora estou em casa com minha família. Voltei a falar com minha
filha que vai casar e quer que eu entre com ela na igreja” (sic). A respeito de como se sentia
para vivenciar um novo período após a internação domiciliar, dizia-se calmo, entendendo que
haveria ainda muitos aspectos para serem modificados em sua vida pessoal, social e
profissional desejando manter-se “forte para não recair diante das dificuldades da vida” (sic).
O quarto sujeito da pesquisa, Domingos, do sexo masculino, com trinta e sete anos
de idade, era casado e morava com a esposa e três filhos. Possuía o primeiro grau incompleto
e realizava “biscates” como atividade profissional, mas a renda familiar fixa era proveniente
60
da atividade profissional da esposa. Dependente de álcool desde os quatorze anos fazia
consumo diário de um litro, variando entre destilado ou vinho. Domingos buscou ajuda para
tratamento ambulatorial, mas após um período de atendimento foi encaminhado pela a equipe
para a internação domiciliar, pois não estava conseguindo manter a abstinência.
Percebeu-se em Domingos durante a internação domiciliar, sua ambivalência quanto
à motivação para tentar realizar um período de abstinência, no entanto, ele se dispôs a fazer a
tentativa da desintoxicação possibilitando fortalecer sua consciência quanto aos prejuízos do
alcoolismo, identificando situações que poderiam colocar-lhe em risco e construir estratégias
de redução de danos trabalhado com ele algumas modificações em seus hábitos.
As vantagens identificadas por ele em relação ao tratamento foram a realização da
desintoxicação que o manteve afastado do álcool neste período lhe permitindo refletir sobre
seu modo de ser enquanto estava alcoolizado e quando ficava sóbrio, verificando,
principalmente, sua mudança de atitudes com seus filhos na medida em que notava ter maior
paciência com estes, pois “antes discutia demais com eles, por qualquer coisa” (sic).
Este sujeito da pesquisa nunca havia realizado nenhum tipo de internação, e referia
sentir-se “bem” (sic) após a internação domiciliar conseguindo perceber suas diferentes
atitudes diante das situações do cotidiano, bem como estar “mais confiante” para voltar a
trabalhar.
Antes de seguir com a continuação desta pesquisa que consistiu em fazer uma busca
destes sujeitos a fim de aprofundar o estudo a respeito da contribuição da modalidade de
internação domiciliar aos dependentes químicos e seus familiares, bem como de verificar a
efetividade deste modelo de tratamento no local em que foi implantado é possível realizar
uma primeira discussão quanto aos resultados descritos. Cabe destacar que as discussões aqui
feitas a respeito da primeira etapa desta pesquisa baseiam-se, nos registros obtidos através dos
primeiros instrumentos de pesquisa utilizados que seguem em anexo, bem Omo resultantes
dos diálogos estabelecidos com a equipe do Programa de Dependência Química que
participou desta fase da pesquisa também registrados no período em que foi efetivada.
Sobre o primeiro caso descrito, pode-se então dizer que este retrata a complexidade
dos quadros atendidos no âmbito da saúde que exigem a efetivação dos princípios da acolhida,
61
do nculo, da responsabilidade e do contrato quanto à forma de cuidado que será utilizada
para cada situação. Este sujeito buscou ajuda ambulatorial por não desejar a internação
hospitalar e obtinha o apoio de sua família na escolha do tratamento que desejava ter, da
mesma maneira, que teve sua vontade e a da família acolhida pela equipe atuante neste
projeto promovendo sob este contexto, a efetivação do vínculo com estes sujeitos.
Nesse sentido, Ramos e Bertolote (1997:113) mencionam que é durante a síndrome
de privação que o sujeito que busca tratamento para a dependência química estará mais
disposto a ser ajudado e tudo que fizermos por ele nesta fase colaborará para o fortalecimento
do vínculo.
Com o decorrer do tratamento onde se constatou os riscos que corriam Adão e sua
família devido à gravidade de seu quadro psicótico, foi necessário reelaborar seu plano
terapêutico juntamente com a família de acordo com a responsabilização da equipe pela
recuperação deste, sendo re-contratado a forma de tratamento adequada para o momento em
que ele se encontrava. Neste sentido, pode-se apontar que a internação domiciliar teve um
papel importante tanto ao que se referiu à correta realização do diagnóstico deste sujeito, o
que implicou em um tratamento adequado para seu caso que deveria ser realizado, uma vez
que apresentava concomitante um quadro psicótico, exigindo uma atenção redobrada em
função da forma em que o sujeito relata sua situação.
O tratamento de quadros psicóticos requer a integração cuidadosa dos modelos
psiquiátricos e da dependência de substâncias psicoativas. Pacientes sofrendo de
psicoses agudas ou crônicas fazem o relato de seus quadros muitas vezes de maneira
insatisfatória, apresentando com freqüência sintomas paranóides e sensoperceptivos,
além de atenção e concentração deficitárias ( Seibel Toscano Jr.2004:307).
Ao receber a alta hospitalar, Adão retornou ao ambulatório Melanie Klein e, não
necessitando mais de internação passou a ser acompanhado em nível ambulatorial durante o
restante daquele ano de 2004 para dar continuidade ao tratamento da dependência do álcool
bem como para seguir com atenção voltada ao convívio familiar neste momento então, em
nova fase.
No caso de Lúcia seu encaminhamento foi dado ao projeto de internação domiciliar
pela psiquiatra responsável do Programa de Dependência Química do Ambulatório Melanie
Klein, uma vez que não vinha conseguindo efetivar abstinência do álcool no modelo de
62
atendimento ambulatorial, mas também não desejava a internação hospitalar pala qual já havia
passado seis vezes. “Vou para e fico presa, isso não adianta para mim, saio e volto na
mesma. Aqui, conheço vocês, é melhor para eu falar as coisas” (sic). Em amostra estuda
por Rohrer (1992), verificou-se que os pacientes de dependência química desejam, entre
outras coisas, que os profissionais da saúde sejam compreensíveis, preocupados, cuidadosos,
experientes, bons ouvintes, fáceis de conversar e com “mente aberta”.
O envolvimento familiar apontado como dificuldade inicial, devido ao retorno do
convívio com os filhos deveu-se aos retratos das situações ligadas ao alcoolismo. “Meus
filhos me viram apanhando de homens que conheci na noite e escolheram não ficar mais
perto de mim pra não ver mais essas coisas” (sic). Tais situações puderam ser trabalhadas
durante o período da internação domiciliar, sendo possível que a família expressasse seus
sentimentos buscando o esclarecimento das situações ocorridas, ou seja, o entendimento de
que esta mãe encontrava-se doente, envolvendo-se em situações que traziam para ela assim
como para família, muito sofrimento.
Assim, de acordo com Schabbel (200:418) sendo a mediação potencialmente uma
possibilidade para transformação das relações, sua prática foi estendida para as auxiliar nas
resoluções de conflitos familiares, como as problemáticas dos relacionamentos entre pais e
filhos, crises de comunicação e disfunções na família provocadas por agentes externos como
desemprego, perda de posição social, recasamentos, crises do ciclo vital e outros temas
concretos da vida familiar.
Portanto, na situação de Lúcia o fato de a família ter participado de seu tratamento
possibilitou que alguns dos conflitos existentes fossem sendo trabalhados, tendo como
resultado final em sua análise, possibilitado que tanto ela como seus familiares modificassem
algumas de suas atitudes modificadas. “Muitas cobranças que a gente se fazia, acabaram”
(sic). Rusch (1989:35) escreve que “o suporte familiar é fundamental para a melhora do
prognóstico dos dependentes de substâncias psicoativas”.
Após o período da internação domiciliar, L” seguiu com atendimento no
Ambulatório M. K. para dar seguimento ao tratamento para o transtorno de humor e também
63
para a Prevenção de Recaída
5
. “L” organizou-se junto à família quanto ao que poderia estar
ajudando-os e passou então a cuidar de seu neto nos dias em que sua nora saía para trabalhar,
cuidado que não exercia anteriormente porque “não tinham confiança em mim...e nem
podiam”(sic). Retomou ainda suas atividades artesanais para fazer em casa, enfim, foi
redescobrindo tudo aquilo que lhe dava prazer em fazer.
No terceiro caso, por sua vez, Cássio apontou a dificuldade de estar a par dos
problemas financeiros da família e não poder colaborar em função de não estar trabalhando.
Da mesma forma, nesta situação a mediação familiar possibilitou dialogar e construir
estratégias de enfrentamento para as situações de conflitos oriundas das dificuldades
financeiras, à medida que se buscou potencializar a união deste grupo para enfrentar juntos as
suas dificuldades. Do mesmo modo, que foi possível que a família compreendesse a falta de
atividade profissional de Cássio como momentânea e também como uma realidade social que
não atinge somente a esta família, dando-lhe maior credibilidade para tratar-se primeiramente
e gradualmente ir retomando suas atividades. A exemplo disso, foi o próprio fato de todos
terem aceitado a proposta de internação domiciliar, resgatando “o amor que sentiam uns pelos
os outros” (sic), sendo fatos como este que fortalecem a auto-estima dos sujeitos.
Durante o acompanhamento que foi realizado após o período da internação
domiciliar, a pior dificuldade relatada por Cássio seguia sendo a falta de trabalho e, portanto
de renda, situação esta amplamente discutida no segundo capítulo deste trabalho. No entanto,
de acordo também com o que foi desenvolvido anteriormente no capítulo que se refere ao
trabalho com dependentes químicos no âmbito da saúde pública há de se reconhecer as
limitações encontradas no que se refere ao trato com a questão social e os avanços obtidos em
meio a este contexto.
Em relação ao caso de Domingos, conforme a ambivalência para a desintoxicação
identificada durante seu período de internação sua vontade de beber seguia “muito forte”
(sic). Domingos voltou a consumir álcool, afirmando “ainda não estar preparado para parar de
vez”(sic). Dessa forma, foi orientado sobre os inegáveis danos decorrentes da dependência do
álcool, bem como realizado um trabalho de redução de danos educando para a promoção da
5
Conjunto de habilidades para antecipar, prevenir, modificar, enfrentar e lidar com situações que a coloquem em
risco para a recaída, isto é, situações que façam com que ela volte a consumir álcool ou outras drogas.(Knapp,
Paulo; Beertolote, José Manoel; 1994)
64
melhoria da sua qualidade de vida. Assim, buscou-se acordar com Domingos e sua esposa que
este buscaria manter algumas modificações realizadas durante seu tratamento como a
diminuição da quantidade de álcool ingerida por dia, bem como os horários, ou seja, que não
fosse logo cedo pela manhã, para que ele pudesse seguir cuidando da filha mais nova no
horário em que a esposa iria trabalhar. A esposa acordou que caso ele se apresentasse
excessivamente alcoolizado à noite, não dormiriam juntos, que isto “sempre foi motivo de
discussão” (sic), e conforme vinham efetivando no período da internação domiciliar.
A proposta de tratamento realizada na residência dos sujeitos consistiu em uma
forma de propiciar ao grupo familiar um espaço terapêutico em seu âmbito de relações, a fim
de construir uma possibilidade de mediação dos possíveis conflitos existentes e
desmistificação de pré-conceitos acerca da dependência química.
Em função da fragilização que ocorre nas relações pessoais, profissionais e sociais do
dependente químico, é de extrema importância que o sujeito possa compartilhar destas
situações na tentativa de entendê-las também como parte do processo da doença, ao invés da
culpa individual que sentem e ainda, como um meio de reconstruir seus vínculos e recuperar
sua auto-estima.
Portanto, os sujeitos incluem-se nesta proposta em uma perspectiva de trabalho
integrado, uma vez que a escuta e a compreensão de como cada sujeito percebe sua vivência,
seu mundo e seus valores são primordiais para a troca de conhecimentos.
Pode-se dizer, que esta forma de atendimento consisti, a partir dos primeiros
achados, em um meio de contribuir para o fortalecimento da rede social de apoio aos sujeitos,
bem como uma possibilidade de motivar para uma avaliação de sua condição. Esta construção
também sendo feita junto com aqueles que fazem parte do cotidiano, propicia para que estes
também se sintam acolhidos e com melhores condições de estarem ajudando o seu familiar
em momentos de fragilização, fortalecendo a importância de sua união, pois conforme com
Carvalho (2000:18) “esta solidariedade familiar, no entanto, só pode ser reivindicada se
entender que a família, ela própria, carece de proteção para processar proteção”.
65
4.1 O REENCONTRO – UMA OPORTUNIDADE DE COMPARTILHAR A HISTÓRIA
O reencontro é, então, a realização da continuação da pesquisa no âmbito da academia,
a fim de aprofundar a discussão quanto a este modelo de tratamento. Cumpre-se, assim, o
objetivo de analisar o modelo de internação domiciliar do dependente químico, realizado no
Ambulatório Melanie Klein no âmbito da Saúde Pública. A finalidade é verificar as vantagens
e desvantagens identificadas pela família e pelo sujeito neste modelo de atendimento, bem
como a avaliação da equipe responsável pelo Programa de Dependência Química, de modo a
contribuir com subsídios para o seu aprimoramento.
Para tal, segue aqui um momento de muita gratificação nesse processo, que é o de
compartilhar a história desses sujeitos. Estes tornaram-se companheiros desta construção,
pois, passados dois anos, estão eles comigo novamente como sujeitos que construíram a
sua história esta história. Assim, de acordo com a metodologia da análise de conteúdo
utilizada para a análise dos resultados deste trabalho, apresentada no item 2.7.3, serão
descritos trechos importantes das falas dos sujeitos que contêm os elementos das mensagens
que indicarão as categorias principais que estão sendo interpretadas em relação aos objetivos
da pesquisa.
Adão, imensa alegria de revê-lo e sua esposa, sua “fiel companheira” (sic). Atualmente
está exercendo sua atividade profissional de auxiliar de enfermagem em um hospital da rede
pública de Porto Alegre. Após terminado o ano de 2004 em acompanhamento no Ambulatório
Melanie Klein, conforme descrito no capítulo 3, Adão foi encaminhado para a Unidade Básica
de Saúde de sua região para obter continuidade no acompanhamento da depressão e ao Grupo
de Alcoólicos Anônimos como apoio para a manutenção da abstinência para o álcool.
Neste intervalo de tempo, relata três recaídas, mas que não consistiram em
reinstalação.
6
Atualmente está há um ano “sem colocar álcool na boca”(sic). Durante a
realização da entrevista, ele e sua esposa vão contando suas vivências, suas descobertas, seus
“limites” (sic). Conforme o instrumento da pesquisa para se alcançar o fim desta investigação,
Adão refere como vantagens do período da internação domiciliar ter recebido um atendimento
“especializado”, que “esclareceu” seu “problema” (sic). Adão referia-se à compreensão
6
Retorno a um nível preexistente de uso e de dependência de substância psicoativa em um indivíduo após
período de abstinência. ((Seibel, Toscano Jr., 2004)
66
quanto a sua história: iniciou o consumo de álcool aos doze anos de idade e a depressão foi
decorrente, dentre outros fatores, da dependência. A esposa compartilha deste ponto e relata o
“medo” que sentiu, vendo o quadro do marido se agravando em casa, mas, ao mesmo tempo,
“amparada”, porque “vocês iam todos os dias lá” (sic). Ambos relatam que o fato de Adão ter
sido atendido por uma equipe especializada em saúde mental foi esclarecedor, tanto para o seu
diagnóstico como para o tratamento, o que o ajudou nas recaídas. Lembrava das coisas que
aprendi aqui, daí voltava ao normal, parava de beber... e assim foi, até que não bebi mais”
(sic). Também se beneficiou dos encaminhamentos para a rede, sendo o Grupo dos Alcoólicos
Anônimos identificado como local de “ajuda importante”.
Lúcia permanece vinculada ao Grupo de Dependência Química do Ambulatório
Melanie Klein, o qual freqüenta semanalmente. Nestes dois anos e oito meses, não teve
nenhuma recaída para o álcool nem para os benzodiazepínicos, fato que se deve também ao
acompanhamento continuado que recebe até hoje.
Em seu relato, afirma que “este foi o tratamento para a dependência química que mais
me beneficiou” (sic). Atribui ao fato de ter trabalhado em sua casa novos hábitos de rotina,
paralelo à realização da desintoxicação, ao que se refere como as estratégias para a prevenção
da recaída fato que, na internação hospitalar, de acordo com ela, “fica na idéia”. A
aproximação da família seguiu identificada como benéfica, pois relembra que no período da
intoxicação constante afastou-se da família. “Tava na minha vidinha de remédios e bebida...
perdida e isolada” (sic). Novamente aponta os sentimentos de acolhida, carinho, afeto e
confiança por parte da família.
Em sua situação, o Ambulatório M. K. é o serviço de referência mais próximo de sua
residência e, portanto, a rede institucional de apoio que deve atendê-la, uma vez que os
serviços de rede devem se localizar próximos à moradia do usuário do serviço. Ao falar sobre
a família, conta sobre seus filhos: “O que mora em Viamão até hoje passaem casa todos os
dias pra me dar um beijo... A mais nova, que saiu de casa quando eu bebia, ainda mora com o
pai, mas a gente voltou a se dar bem... E o que mora no meu pátio voltou a estudar, ele e a
esposa... Ele faz técnico em enfermagem, e ela pedagogia. E eu cuido do meu neto pra eles”
(sic). Sobre o pai, “(risos) brigadiano aposentado, lembra? Ele bem, segue na casa dele
com uma companheira nova e vem me visitar sempre... Nunca mais deixou de visitar... (risos)
Ele se sente até hoje muito orgulhoso em ter me ajudado. Claro... sempre achando que ele é o
67
cara. Brigadiano...” (sic). Por fim, Lúcia diz que o que lhe falta atualmente “é um
companheiro” (sic), e explica: “É que hoje tô lúcida, por isso consigo saber o que é certo. Não
fico mais com qualquer um”.
Cássio não foi encontrado e a entrevista foi realizada com sua família pela visita
domiciliar. Segundo sua mãe e seu irmão, que participaram do tratamento da internação
domiciliar, Cássio havia voltado para a rua após permanecer seis meses em abstinência ao
término do tratamento. “Foi ao casamento da filha, lembra? Depois voltou a beber nas festas
de final de ano (sic). Em seus relatos, acreditam que, devido ao fato de ele não ter
conseguido “emprego fixo”, sentia-se frustrado em não colaborar com as despesas da casa e
“não agüentou” (sic). No entanto, nesse intervalo de tempo a família conta que “ele vai e
vem”. Ambos apontam que, com a internação domiciliar, puderam acompanhar seu familiar
“de perto” e compreender sua doença. “Hoje, deixo ele voltar pra casa. É meu filho. Antes,
botava ele pra correr” (sic). O nculo familiar ficou mantido da forma “possível”. Eles
entendem que o fato de Cássio não ter renda para contribuir nas despesas, o que lhe
preocupava no período da internação domiciliar, dificulta a manutenção da abstinência. Os
laços que ele formou na rua “são mais fortes” (sic).
No caso de Domingos, ele e sua esposa compareceram ao Ambulatório para a
realização da entrevista. Sua esposa inicia a conversa: “Continua a mesma coisa... Tem dias
que ele bebe mais, outros menos, mas, pelo menos, voltou a fazer os biscates dele” (sic). Ele,
com um gesto afirmativo com a cabeça, consente. Quanto ao relacionamento com os filhos,
ambos afirmam que, com a internação domiciliar, foi possível que entendessem a doença do
pai. “Eles não têm mais medo dele, quando muito bebum, todo mundo sai de perto”, diz a
esposa. Ambos dizem que procuram a Unidade Básica de Saúde, conforme lhes foi
encaminhado no período após a desvinculação com o Ambulatório Melanie Klein, nos
momentos em “que a coisa está demais” (sic). É uma forma de retomar as orientações acerca
dos prejuízos do alcoolismo e das estratégias que podem utilizar para diminuir o consumo, ou
seja, seguem sendo orientados na perspectiva da Redução de Danos, indicação mais adequada
a ser trabalhada pelos profissionais da saúde de acordo com a situação deste usuário do
serviço.
68
5. A FAMÍLIA ENQUANTO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO
ANÁLISE FINAL DOS RESULTADOS
O contexto exposto teve por objetivo analisar o caminho percorrido no
desenvolvimento desta pesquisa por meio do método dialético-crítico. Este se especifica pela
maneira de compreender a realidade e problematizá-la, a fim de articular as mediações sobre
as particularidades, relacionando-as com a estrutura que as cerca, bem como com as
influências sobre o todo, a partir da demanda social da dependência química. Cabe dizer que a
realidade estudada, sem dúvida, possui uma série de outras implicações e relações que são
entendidas de formas diversas no campo teórico através das diferentes especificidades do
conhecimento e mesmo para os cidadãos envoltos com esta questão. Portanto, a partir do
entendimento do constante movimento do real e suas múltiplas implicações nas esferas de
vida e em seu próprio significado, não se pretende com esta investigação da realidade
determiná-la enquanto um saber que responde à demanda da dependência química. Mesmo
porque o movimento dialético não se propõe a tal, ou seja, não esgota possibilidades.
Apresenta-se, assim, uma investigação realizada em determinado contexto, com
particularidades, enquanto um meio para se pensar a alternativa de internação domiciliar,
observando-se de que forma ela pode auxiliar no fortalecimento das potencialidades dos
sujeitos no âmbito da família, como também os riscos que apresenta esta modalidade de
intervenção, conforme discutido com base nos modelos históricos. Com o objetivo final de
contribuir, enquanto subsídio teórico, ao serviço em que foi realizada tal proposta, deve ser
útil também para aqueles que podem vir a buscar este modo de atendimento, e ainda aos
sujeitos que vivenciam essa realidade e buscam alternativas que, de acordo com o seu
entendimento, possam lhes auxiliar. Segue-se, por fim, a discussão final dos resultados
encontrados com base nos objetivos propostos.
É fundamental que se diga que a proposta realizada de internação domiciliar não se
volta a uma perspectiva que fundamentou o eixo teórico-prático da intervenção do
assistente social em meados da década de 30, ou seja, “mudar o comportamento do indivíduo
e da família” (Faleiros, 2001). Tampouco tem os fundamentos que pautaram a intervenção das
décadas de 60 ou 70, em que o foco se voltava para a melhoria do meio, das condições
imediatas, através do método diagnóstico/tratamento/avaliação com o intuito de identificar o
69
“indivíduo/grupo problema” para fins de controle por parte do Estado conforme discutido
no primeiro capítulo deste trabalho. No entanto, devemos enquanto profissionais atentar a tais
perspectivas para que não se corra o risco de reproduzir velhos padrões de intervenção,
principalmente no que se refere a essa forma de atendimento, uma vez que historicamente o
Estado encontrou na família um meio de partilhar responsabilidades de sua atribuição na
atenção à população, na medida em que foi se mostrando ineficiente na oferta de serviços
públicos.
Outro aspecto a salientar é o sentido do trabalho com as famílias, que não se embasa
na ótica antiga de centralidade, colocando-as como “responsáveis por seus doentes”
decorrendo disso a omissão institucional com sua demanda; ou ainda a perspectiva de
trabalhar com as famílias a “aceitação de seu indivíduo-problema”. Não se trata de
desresponsabilizar o Estado em sua função de garantir e assegurar os serviços de atenção que
lhe competem, mas, sim, viabilizar essa atenção de forma integral, como pressupõe a política
de atenção à saúde do sistema público. O objetivo está em identificar e trabalhar as
potencialidades dos sujeitos como forma de fortalecimento da autonomia e emancipação, em
uma perspectiva de rede integrada.
O acolhimento se faz também à família, no intuito de estender a escuta para as suas
aflições diante do envolvimento com a questão da dependência química, considerando os
sentimentos de todos para visualizar alternativas viáveis a cada um nesse processo de
mudança. Portanto, fortalecer a família enquanto rede de apoio ao dependente químico
implica uma construção coletiva, na qual cada membro possa se colocar sem se sentir
sobrecarregado nem desprezado, no que diz respeito ao seu envolvimento nas relações
familiares.
É preciso lembrar aqui que as disputas inerentes à família, ou seja, aquelas em nível
inconsciente, não estão sendo enfatizadas, uma vez que a proposta não se trata de terapia
familiar, mesmo porque não seria possível, de acordo com o modelo proposto de tratamento.
Por outro lado, tais questões não podem ser ignoradas, na medida em que se tornam
perceptíveis para o profissional que está realizando a mediação.
A proposta da mediação neste modelo de tratamento visa a um processo de
transformação, ou seja, busca retomar o diálogo com as famílias no tratamento da
70
dependência química, trabalhando objetivamente o presente e possibilidades para o futuro dos
sujeitos acompanhados. A tentativa é de reduzir sentimentos como de ansiedade e raiva,
gerados em situações de conflitos, e ampliar a compreensão e a confiança, bem como
habilidades de colaboração entre os membros da família.
Neste sentido, a mediação tem fundamental importância no fortalecimento da rede
familiar do dependente químico, na medida em que se entende que o fortalecimento da
autonomia dos sujeitos inicia a partir da possibilidade de cada um se expressar e se fazer
compreendido, para então haver condições para uma mudança de atitudes. Schabbel
(2004:417), ao descrever sobre a mediação no tratamento da dependência química, aponta que
A mediação trabalha no sentido de explorar significados, trazendo à tona uma
profundidade da experiência e de pensamento que vai além da visão individual dos
participantes. Funciona também como reveladora de incoerências de pensamento que,
por sua vez, são geradoras de incoerências na relação. Os participantes do processo
de mediação m a oportunidade de ocupar tanto a posição de protagonistas como de
narradores da experiência trazida e compartilhada, tornando-as mais sensíveis às
incoerências e, a partir do momento em que se percebem como observadores de seu
processo, a crise e o conflito vivido são colocados, avaliados e transformados.
Ressalte-se que a mediação não será aqui desenvolvida enquanto uma categoria para
análise, mas tem se evidenciado sua importância enquanto cnica utilizada no fortalecimento
da rede de apoio familiar no modelo de tratamento de internação domiciliar. Conforme
descrito, esta proposta de tratamento foi realizada em conjunto com a família do dependente
químico, sendo efetivada em sua residência com o objetivo de propiciar, no âmbito de suas
relações, um espaço terapêutico para o grupo. O diálogo entre os membros foi o recurso mais
utilizado nesta proposta.
Conforme descreve Faleiros (2001:53), “as mediações se implicam mutuamente no
contexto de relações histórico-estruturais, constituindo redes de mediações ou mediações
articuladas, sob cuja ótica é que vamos elaborar estratégias de ação”. As mediações são
articuladas, então, nas diferentes esferas da vida dos sujeitos e perpassam os diferentes
âmbitos por onde vão sendo tecidas as linhas das redes desses sujeitos, quer em suas relações
de trabalho, institucionais, de vizinhança, familiares e outras. Relações estas formadas em
uma sociedade capitalista que é determinante no modo de inserção dos sujeitos, conforme a
análise do primeiro capítulo.
71
Com a realização da pesquisa, elementos importantes são identificados para se realizar
a análise dos resultados, a fim de se cumprir com os objetivos desta. Portanto, retomando os
objetivos específicos da pesquisa, pode-se mencionar que a rede de apoio familiar manifesta-
se por meio da subjetividade, através de sentimentos de cuidado, afeto, carinho, acolhimento,
continência, e como forma de reconhecimento da potencialidade dos sujeitos para lidarem
com o tratamento da dependência química.
Ao se tratar de família, é preciso pensar na subjetividade humana, nos sentimentos
envolvidos no cotidiano dos sujeitos que, sob influências do contexto econômico, político,
cultural, assim como de transformações tecnológicas que implicam modificações na forma
dos relacionamentos interpessoais, interagem com o amor, carinho, empatia e, mesmo
opostos, com sentimentos de raiva, rejeição, frustração, que encontram na família o continente
para serem expressos diferentemente de outros espaços. Porém, sem dúvida, as vivências
individuais de cada membro em sua relação com o mundo vão também tendo representações
dentro da família dinâmica, o que deve constituir o olhar para a família. Nesse sentido, Bellini
(1992:42) aponta que:
A inobservância dos aspectos sociais e econômicos faz com que toda situação
problemática fique centrada na família, resultando daí toda a responsabilidade de sua
disfuncionalidade, o que incapacita, muitas vezes, a reagir. Essa posição desqualifica
a família para tanto produzir relações sociais sadias como não sadias. Ao transformá-
la em conseqüência única dos fatos sociais, emudece-a enquanto potencial, tornando-
a acossada e submissa.
Fortalecer a família enquanto rede de apoio significa potencializar habilidades para
lidar com suas problemáticas e com as advindas do contexto externo, o que implica a
conscientização e a viabilização dos recursos disponíveis no âmbito do Estado. Isso
caracteriza a sua articulação com a rede de serviços de atendimento disponíveis.
Os significados tidos para os sujeitos que vivenciaram este modelo de tratamento
também estão contidos nas mensagens identificadas em seus relatos, os quais se referem tanto
à subjetividade quanto à possibilidade efetiva da abstinência total. Tal situação foi encontrada
em um dos casos, tornando-se condição para lidar e entender a dependência química de modo
diferentemente ao entendimento do período anterior ao da vivência deste tratamento,
identificado nas quatro situações atendidas nesta modalidade de tratamento.
72
As dificuldades enfrentadas na vida podem fortalecer o sujeito, dependendo do modo
como são vivenciadas. Conforme os relatos obtidos após a internação domiciliar, é possível
perceber que, independente da manutenção da abstinência, o envolvimento familiar durante o
tratamento teve destaque enquanto vantagem desta modalidade de tratamento. A possibilidade
de o grupo familiar entender a dependência química enquanto doença, bem como os prejuízos
que decorrem dela desmistificando julgamentos morais, possibilitou outras formas de
relacionamento intrafamiliar, calcadas em sentimentos de cuidado, respeito, tolerância. Como
ainda o fato de os membros da família do dependente químico falar de seus sentimentos e
percepções em relação às situações vivenciadas deu-lhes também possibilidade de
organizarem as suas questões.
Não se trata então de a família ser a cuidadora de seu doente”, mas de ela receber
atenção em sua integralidade, como forma de fortalecê-la em períodos de crises e conflitos,
nos quais comumente perpassam sentimentos de derrota, culpa, enfim, sentimentos punitivos,
presentes em situações de familiar de dependente químico. Neste processo, é necessário ao
profissional estar atento em sua mediação, sendo que mais do que falar ele deve ter a
percepção e a escuta aguçada para identificar reais possibilidades de fortalecer o vínculo. As
experiências negativas que são vivenciadas em meio à dependência química podem ser muitas
e traumáticas, pois, como vimos nos casos pesquisados, ela inicia precocemente na vida dos
sujeitos. Portanto, os sentimentos negativos e mesmo doloridos que ficam para cada membro
da família, de acordo como cada um assimila tais vivências, não são apagados, ao contrário,
eles podem ir se acumulando.
Dessa forma, neste curto período de tempo, não é possível esperar “milagres”, mas dar
início a um processo que pressupõe abordar questões do presente e possibilidades para lidar
com futuro de forma diferenciada, a partir do diálogo, de acordo com o que cada sujeito
entende que tem condições de fazer. Isso que implica respeito às singularidades, aos direitos
individuais, amor próprio e ao outro.
Schabbel (2004:420) refere que as disputas que surgem em virtude da presença de um
dependente químico em uma família podem ser “disputas baseadas em interpretação,
equívocos ou ambigüidades, e disputas em valores e objetivos”. Segundo a autora, a mediação
necessária para tais situações é a seguinte:
73
[...] tem por objetivo preparar as partes para que sintam suficientemente seguras para
falar do problema, experienciar suas próprias potencialidades diante da questão e
desenvolver o que Busch e Folger chamam de “força da compaixão”, que inclui empatia
para com as outras partes envolvidas no conflito.
Realizar tal trabalho pressupõe uma pré-disposição dos membros da família que,
muitas vezes, não é encontrada em um primeiro momento devido à historicidade do grupo
com a problemática. Assim, buscar a motivação desse grupo para a proposta faz parte da
mediação e do início do fortalecimento da rede. A aceitação para este tipo de intervenção
sinaliza que laços e sentimentos positivos ainda presentes, fato que, por ele próprio,
início ao fortalecimento da família, pois se reconhece a importância que um membro tem para
o outro. Caso contrário, poderiam se abster dessa intervenção e optar por um tratamento
individual do dependente químico.
Nessa perspectiva, qualquer dificuldade que leva uma pessoa e sua família a se dispor
a uma intervenção com o grupo pode significar uma oportunidade para que essas pessoas
olhem para a forma como se estabelecem suas relações, bem como para as que estabeleceram
no decorrer de suas vidas, e possam definir seu lugar nestas relações. É o momento de
contatar com a rede primária a qual pertencem. Giongo (2000:32) traz o seguinte conceito:
Trabalhar em uma perspectiva de Rede Social, antes de ser um modo de resolver um
problema emergente, constitui o método fundamental através do qual cada pessoa tece a
história da própria vida de relações, uma necessidade nova ou uma situação de crise são
oportunidades existenciais que provocam o reconhecimento de pertencimento recíproco,
uma consolidação de relações que assume no tempo um significado bem maior que a
mesma necessidade que a determinou.
Realizar um trabalho integrado junto à família significa viabilizar aos sujeitos a
oportunidade de reconhecer as formas de suas relações: quais são as construtivas que quer
manter e quais as que não lhe proporcionam crescimento e, portanto, não deseja manter. É o
momento de reconstrução da história de seu pertencimento, no qual cada pessoa influenciada
por suas vivências na rede social mais ampla adquire um modo próprio de se relacionar com o
mundo, injetando novos significados em sua relação com a família, mas preservando sinais
que somente são reconhecidos naquele grupo, segundo (Giongo,1994:32):
Algumas características aparecem para algumas pessoas. determinadas pessoas
conhecem particularidades nossas, que podem ter até sido apagadas de nossa vida; ao
contatar com essas pessoas, temos a condição necessária para lembrarmos essas
situações e contatarmos com características potenciais nossas. Estas pessoas acabam
funcionando como nossa memória. Algumas pessoas o sabem mais o que são,
74
esqueceram no decorrer de sua vida e precisam de que alguém as conduza para esses
laços que já se tornaram invisíveis.
Quando alguém se torna dependente de uma substância, muda seu modo de ser, seus
hábitos e suas relações; passa a girar em volta de um contexto particular ao universo das
drogas, o que, gradualmente, vai modificando seu estado natural enquanto ser humano e,
assim, sua forma de se relacionar com o mundo. Essas modificações podem causar
estranhamento às pessoas mais próximas e implicar mudanças também de sua parte. Tal
situação pode se transformar em um ciclo de conflitos em que as partes não se reconhecem
mais e vão se distanciando ou culpando uns aos outros pelas transformações, com
dificuldades de manter ou restabelecer os vínculos que um dia os uniu fato que também foi
relatado pelos familiares entrevistados.
Nesse contexto, trabalhar em uma perspectiva de rede de apoio à família significa
trabalhar para que os vínculos da família e sua rede sejam reconectados, na construção do
fortalecimento da autonomia dos sujeitos a partir do reconhecimento de sua rede de
pertencimento, na tentativa de auxiliar as pessoas a contatarem com aqueles que fazem parte
da sua história.
A questão da dependência química intriga há muito o homem na busca da
compreensão dos motivos que o levam a consumir drogas. Cunha (2000:101) refere que “a
história tem mostrado que este homem sempre busca ou uma forma de conforto, ou prazer, ou
para sair de uma situação de desconforto, de desprazer”. Reconhecer o abuso de substâncias
como uma dependência que acarreta prejuízos é um passo, por vezes, demorado para o
próprio usuário e mesmo para sua família. Isso representa reconhecer uma problemática e ter
se fazer algo acerca dela. O mesmo autor coloca que:
[...] os mecanismos de defesa e resistência da família para assumir o uso ou
dependência, leva tempo e quando se consegue o envolvimento do afeto e a disposição
desta para lidar com a doença, o resultado tem sido muito mais satisfatório que o
acompanhamento individual [...]
O fato é que existem muitas teorias sobre a dependência química e sobre os modelos
de tratamento; portanto, o ideal é realizar aquela que o sujeito e a família julgam ser a melhor
no momento. Mas é preciso estar atento, ser verdadeiro em assumir se realmente a busca é por
tratamento ou por repassar a problemática a uma outra instância. Ainda Cunha (2000:103)
75
defende a idéia de que “a internação é muitas vezes apenas um desencargo de consciência da
família, muito mais eficiente e mais usado hoje em dia é o internamento doméstico, o
acompanhamento terapêutico e grupos de mútua ajuda”. Conforme dito, diversas teorias
sobre modelos de tratamento na dependência química, devendo-se pensar em conjunto com
aqueles que buscam ajuda a melhor opção para todos. de se considerar ainda que nem
sempre a alternativa desejada está disponível, principalmente em se tratamento do Sistema
Público de Saúde.
Em relação à análise de recaídas ao longo do tempo, estudos que mostram que a
estabilização da taxa de ocorrência começa a acontecer aproximadamente 90 dias após o
início da abstinência (Hunt, Barnett & Branch, 1971). No entanto, os 12 primeiros meses são
considerados como período de alto risco de acordo com o DSM-IV (American Psychiatric
Association, 1994).
Na clássica análise (Cummings, Gordon & Marlatt, 1980) de 311 episódios de recaída
em dependentes de álcool, tabaco, heroína, alimentos e jogo compulsivo, identificou três
situações primárias associadas ao problema: 1) estados emocionais negativos (35% das
recaídas); 2) conflito interpessoal recente (16% das recaídas) e 3) pressão social (20% das
recaídas). Estudos subseqüentes não apontaram mudanças no quadro apresentado, mas
variaram quanto à definição de pontos críticos. Um estudo (Gossop, Green, Phillips &
Bradley, 1989) sobre recaídas em 80 dependentes de álcool e heroína, submetidos a
tratamento em regime de internação, informou que: 1) quase dois terços daqueles que
recaíram reconheceram falhas em tomadas de decisão e em planejamento de atividades
(fatores cognitivos); e 2) mais da metade indicou que algum estado de humor negativo
precedeu a recaída. O estudo salientou ainda que, freqüentemente, estes fatores ocorriam
juntos.
Nesse sentido, a respeito de se verificar as contribuições desse modelo no que
concerne a redução de danos e prevenção de recaída, em dois dos casos atendidos sendo os de
Adão e Lúcia, trabalhar as estratégias de prevenção de recaída, conforme está descrito no 4º.
ítem do roteiro para os acompanhamentos diários na gina 57, contribuiu para que ambos
fizessem uso destas ao longo deste período de tempo, após a internação domiciliar. Sendo que
para Adão significou utiliza-las nos momentos em que teve as recaídas, conforme descrito em
76
seu caso e para Lúcia, nas situações em que esta sentia vontade de recair que são identificadas
na dependência química como situações de risco. Vale lembrar que a Prevenção de Recaída se
refere ao conjunto de habilidades para antecipar, prevenir, modificar, enfrentar e lidar com
situações que a coloquem em risco para a recaída, isto é, situações que façam com que ela
volte a consumir álcool ou outras drogas (Knapp et al. 1994).
Em se tratando da contribuição quanto à Redução de Danos o caso de Cássio mostra
que esta é mais uma possibilidade ao se tratar da dependência química, ou seja, conforme as
estatísticas os índices de recaídas ao longo da vida são significativos o que denota a
importância de propor alternativas outras que não somente a abstinência, uma vez que o
usuário não se encontra motivado ou mesmo preparado o suficiente para cessar seu consumo
de substâncias. Principalmente quando consideramos, conforme seu caso, que o início do uso
de drogas está ocorrendo com pessoas cada vez mais jovens e com substâncias de teor tóxico
cada vez mais elevado (Bucher, 1996). Segundo estudo da Organização Mundial de Saúde
(OMS, 1999)19, o Brasil está situado no 63º lugar do uso per capita de álcool na faixa etária
de 15 anos, entre 153 países, um consumo razoavelmente discreto. Porém, quando a OMS
compara a evolução do consumo per capita entre as décadas de 1970 e 1990, em 137 países, o
Brasil apresenta um crescimento de 74,5% no consumo de bebidas alcoólicas. Rev Bras
Psiquiatr 2004;26 (Supl I:03-06 / Epidemiologia do uso do álcool / Galduróz JCF & Caetano
RSI 04). Portanto, reduzir os danos acerca do consumo de álcool e outras drogas, significa
buscar uma melhoria na qualidade de vida dos sujeitos dependentes químicos tanto no seu
quadro clínico, como em suas demais relações sociais e interpessoais.
Quanto ao que está preconizado no modelo de internação domiciliar ao dependente
químico, e sua inserção em um Serviço de atendimento especializado a saúde mental, no
âmbito do SUS a fim de verificar sua efetividade neste espaço, faz-se referência à Portaria
16/2001 que dispõe sobre o Regulamento Técnico Estadual para o Funcionamento dos
Serviços de Atenção a Dependentes de Substâncias Psicoativas, a conceituação se define por:
Serviços de Atenção a Transtornos decorrentes do uso ou abuso de Substâncias
Psicoativas/SPA, em regime de residência ou outros vínculos de um ou dois turnos,
segundo modelo psicossocial, são serviços que tem por função a oferta de um ambiente
protegido, técnica e eticamente orientados, que forneça suporte e tratamento psicológico
e social aos usuários abusivos e ou dependentes de substâncias psicoativas, durante
período estabelecido de acordo com o Programa Terapêutico adaptado às necessidades
de cada caso. É um lugar cujo principal instrumento terapêutico é a convivência entre os
pares. Oferece uma rede de ajuda no processo de recuperação das pessoas, resgatando a
história de vida e a cidadania, buscando encontrar novas possibilidades de reabilitação
77
física e psicológica e a reinserção social. Tais serviços incluem também aqueles
conhecidos como Comunidades ou Fazendas Terapêuticas, urbanas ou rurais. A
orientação teórica e filosófica destes serviços é diversificada.
Portanto, o Ambulatório Melanie Klein de Porto Alegre se caracteriza enquanto um
serviço de atendimento especializado a saúde mental no âmbito da saúde pública, onde
oferece atendimento aos diferentes transtornos de saúde mental, dentre eles, a dependência
química. Dessa forma, a proposta de internação domiciliar consistiu enquanto uma alternativa
inovadora no Ambulatório Melanie Klein, na medida em que ainda não havia sido realizada
neste serviço e, portanto, cabe primeiramente ressaltar que esta foi realizada de acordo com as
condições do momento, mas que se efetivou enquanto uma modalidade de atendimento ao
dependente químico que está prevista em Lei, a partir da vinculação ao Programa de
Dependência Química do Ambulatório Melanie Klein, estando passível de reformulações no
decorrer de sua continuidade.
Um dado importante a ser apontado se refere ao público alvo da pesquisa, sendo
famílias em situação econômica e social desprivilegiadas conforme a reflexão teórica
realizada nos primeiros capítulos deste trabalho, mas que, no entanto puderam ter acesso a um
modelo de tratamento que tem um custo alto por ser mais comumente encontrado no âmbito
privado.
Esta forma de atendimento tem evitado que um certo contingente de pacientes seja
hospitalizado. Mas é, obviamente, uma técnica restrita a segmentos econômicos da
sociedade que possam suportar o ônus de visitas médicas domiciliares diárias, e usada
quando se pode contar com bom suporte familiar (Ramos e Bertolote, 1997).
De acordo com a coordenadora do Programa de Dependência Química, o modelo de
tratamento da internação domiciliar segue disponível no Ambulatório Melanie Klein. Entre o
período de 2005 até o presente ano de 2007, relata ter havido mais quatro internações
domiciliares, no entanto refere sobre alguns desafios acerca da efetivação desta proposta.
Dentre eles, a disponibilidade da equipe uma vez que, com a reabertura da Unidade de
Dependência Química no Hospital Psiquiátrico São Pedro a demanda da internação hospitalar
é elevada e exige uma atenção maior. Bem como, as mudanças que ocorreram no Programa da
Residência Integrada em Saúde Mental quanto à inserção dos residentes nos diferentes
programas de atendimento do Ambulatório Melanie Klein e a forma como os serviços estão
sendo disponibilizados. Atualmente cada programa possui um dia específico a ser
78
disponibilizado no Ambulatório, o que acarreta em uma dificuldade dos residentes poderem
realizar um acompanhamento continuado diário ao dependente químico, uma vez que se
encontram em dias alternados neste Programa. Porém, de acordo com a mesma, enquanto um
espaço essencial de formação para os residentes multiprofissionais, condições para
flexibilizar o horário viabilizando a realização desta modalidade de atendimento enquanto um
meio de aprendizado para os profissionais que se integram ao Programa de Dependência
Química.
Outro fator ressaltado pela equipe do Programa de Dependência Química se refere à
gravidade dos casos de dependência química que tem se apresentado no serviço público, que
dizem respeito tanto ao grau de dependência dos usuários e, portanto uma severidade maior
nos comprometimentos clínicos como à complexidade das problemáticas sociais dos sujeitos
citadas como a perda de vínculos em decorrência de conflitos, a situação precária de moradia
dos sujeitos, o desemprego e a falta de renda familiar que agravam o quadro das famílias.
Conforme discutido nos critérios para elegibilidade nesta forma de atendimento, retoma-se
que pressupõe sujeitos com idade entre 18 e 60 anos, com suporte familiar e que desejam
realizar este tipo de atendimento e que, não apresentam riscos físicos importantes, como:
delirium tremens, risco de suicídio e agressão.
Retomando a Portaria 16/2001 que dispõe sobre o Regulamento Técnico Estadual para
o Funcionamento dos Serviços de Atenção a Dependentes de Substâncias Psicoativas, o
comprometimento leve da dependência química se classifica como:
Motivação para mudança; conscientização da sua situação em relação à droga;
disponibilidade para a abstinência (entrada e manutenção); conscientização das perdas
sócio-econômicas e relacionais; expectativa favorável ao tratamento; aceitação das
orientações terapêuticas.
Sendo que o comprometimento moderado, implica em:
Relativa motivação para mudanças; pouca conscientização da sua situação em relação à
droga e das perdas sócio-econômicas e relacionais. Relativa disponibilidade para a
abstinência. Algumas expectativas favoráveis em relação ao tratamento. Aceitação das
orientações terapêuticas recebidas, porém com restrições e questionamentos.
De acordo com a equipe atual do Programa de Dependência Química e conforme os
critérios estabelecidos para a realização da internação domiciliar, os sujeitos devem se
79
encontrar entre os níveis leve e moderado de dependência para haver condições de realizar a
internação domiciliar, caso contrário, ou seja, em função de maior comprometimento clínico
ele deverá receber uma atenção em nível hospitalar para realizar a desintoxicação. Estando
entre os níveis citados, cabe dizer que mesmo o tratamento ambulatorial pode ser empregado,
lembrando que a internação domiciliar serve para àqueles que encontram dificuldades de
iniciarem a desintoxicação neste nível, necessitando de maior acompanhamento, mas que não
necessariamente a hospitalar. Ainda, de acordo com os critérios citados no item 3.7.2, retoma-
se que outro fator que deve ser levado em conta para a realização desta modalidade de
tratamento, e que foi enfatizado pela equipe que são as condições as quais esta considera
serem necessárias para atender a demanda. Portanto, a disponibilidade da equipe também é
um critério a ser analisado devendo este ser estimado em grupo um número de sujeitos que
poderá ser atendido neste modelo de tratamento. Como ainda a presença da família do sujeito,
estando esta disponível para realizar esta forma de atendimento.
Sobre como a atual equipe de residentes do Programa de Dependência Química avalia
o envolvimento familiar nesta modalidade de tratamento, compartilham do potencial que a
internação domiciliar possui para mediar as relações familiares dos sujeitos, bem como no
fortalecimento das estratégias de prevenção de recaída na medida em que são trabalhadas com
a família como forma de auxiliar o dependente químico em momentos de possíveis retornos
ao uso de substância. Mas avaliam, de acordo com as experiências que acompanharam e com
o suporte teórico que aprendem com a formação, que o acompanhamento ao dependente
químico e sua família necessita ser continuado e integrado a rede de atenção na saúde, que por
sua vez, não se encontra disponível a todos de acordo com a demanda necessitada, o que
propicia a recaída. Como ainda, a complexidade social dos sujeitos, conforme já apontado, a
falta de perspectiva de atividade profissional e outras por conseqüência, acaba sendo um fator
que leva às pessoas retomarem o uso de drogas, fato este também discutido ao longo deste
processo evidenciado na pesquisa acima referenciada que aponta a pressão social como
responsável em 20% das recaídas (Cummings, Gordon & Marlatt, 1980).
É necessário ressaltar que a internação domiciliar é uma estratégia que não exclui a
internação hospitalar ou o atendimento ambulatorial, devendo cada indicação de tratamento
ser cuidadosamente avaliada pela equipe de atendimento juntamente com o sujeito e seus
familiares. O Sistema Único de Saúde deveria, portanto, disponibilizar para os dependentes
80
químicos as diferentes modalidades de tratamento para que assim possa ser respeitada a
necessidade de cada pessoa.
81
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fica um sentimento de gratificação por ter sido possível cumprir com os objetivos
desta pesquisa como com os objetivos da formação em saúde pública no que se refere à
proposição e implementação de alternativas de atendimento ao cidadão portador de algum
tipo de sofrimento psíquico, que não somente a hospitalização. A tentativa foi de humanizar o
atendimento ao dependente químico e sua família, a partir do reconhecimento de sua
realidade, processo que teve seu início durante a realização do segundo ano da Residência no
Programa de Dependência Química, onde no decorrer do atendimento a esta demanda é que
foi se identificando as problemáticas envoltas à questão da dependência química e um desejo
das pessoas em receber apoio não especializado, mas também daqueles que consideram
importantes para a sua vida.
Gostaria ainda por fim, de chamar atenção a uma matéria que pouco foi divulgada
como manchete central no principal jornal do Rio Grande do Sul com a seguinte chamada:
“Mães contra o crack. O avanço da droga no Estado leva mulheres a gestos desesperados para
salvar os filhos dependentes da pedra e evitar a corrosão das famílias” (Jornal Zero Hora, 24
de junho de 2007). Nesta matéria que trata dos diversos desafios enfrentados na busca de
tratamento para a dependência do crack, constam dados alarmantes no que se refere ao
sistema público de saúde.
Enquanto a dependência cresce, a oferta de leitos para internação psiquiátrica diminui.
Nos últimos 15 anos, a quantidade de vagas psiquiátricas oferecidas pelo SUS caiu 41%
no Estado e 61% em Porto Alegre. Em Porto Alegre, a prefeitura oferece entre 90 e cem
vagas para a internação de dependentes químicos a partir dos 14 anos. O numero mensal
de solicitações de internação atinge o dobro (Fonte: Jornal Zero Hora, 24 de junho de
2007).
Nessas circunstâncias, as mães de adolescentes dependentes do crack relatam o
desespero de verem seus filhos dependentes, as perdas que elas têm em suas vidas como o
próprio casamento, o emprego, as relações de amizade em nome da ajuda incondicional ao
filho e sobre as indagações que fazem acerca dos porquês do envolvimento com a droga e
mesmo, com o tráfico.
Esta nota é colocada aqui para ressaltar a importância do tema em nossa sociedade e
alerta também para o que é discutido neste trabalho, a família sofre e sofre muito e necessita
82
de auxílio. Nas situações aqui descritas, a família esteve presente durante o processo da
internação domiciliar, posicionando-se quanto aos seus limites e possibilidades na questão do
familiar dependente químico atenta para suas condições, não estando personificada no papel
de cuidadora incondicional, ao qual já foi remetida pelo Estado.
A proposta de internação domiciliar, assim como outras modalidades de tratamento
apresenta vantagens e desvantagens. A proximidade com a família possibilita a realização de
um trabalho em conjunto com esta através de uma escuta estendida a todos que se incluem no
grupo e da mediação das situações conflitantes, como na identificação de situações que são
consideradas como risco para a recaída, a partir do entendimento dos demais e não do
dependente químico e no fortalecimento das estratégias de prevenção para esta. Possibilita
ainda, que o sujeito possa permanecer em seu meio com um atendimento especializado para
sua necessidade. Mas é necessário considerar, que este envolvimento familiar pode também,
apresentar algumas dificuldades bem como deve se estar atento para não responsabilizar
unicamente a família no cuidado ao dependente químico.
No entanto, considera-se que diante da complexidade das demandas expressas pela
questão social os limites se fazem presentes constantemente na prática do assistente social. O
desafio se faz em trabalhar possibilidades em meio a um contexto que manifesta
desigualdades de dimensões macroeconômicas, políticas e sociais refletidas nas condições de
vida dos sujeitos, devendo o núcleo das ações voltar-se para articulação integrada das
políticas públicas e na potencialização da autonomia dos sujeitos para identificarem
possibilidades no enfrentamento de suas problemáticas.
Para tanto, a política de saúde pública apresenta-se enquanto espaço de aprimoramento
e articulação de ações através da integração de programas, serviços e projetos que tenham
como base a família reafirmando seu papel central nas políticas públicas. Nesse sentido é
necessário valorizar, recuperar e articular a rede de proteção à família fortalecendo seus
vínculos enquanto nicho afetivo de relações que são estendidas às diferentes esferas de vida
dos indivíduos, potencializando seu sentido de pertencimento social.
Sem dúvida, a família é um campo de mediação imprescindível para diferentes
profissionais que devem se integrar a partir de uma perspectiva interdisciplinar, considerando-
se as múltiplas expressões que se fazem presente em seu âmbito. O Serviço Social constitui-
83
se, portanto, em uma das categorias profissionais que, ao longo de sua história voltou sua
intervenção para a família sob diferentes aspectos, devendo seguir com seu olhar voltado para
as transformações societárias, articulando e viabilizando a conscientização e o acesso às
políticas públicas, bem como intervindo diretamente nas mais diversas expressões da questão
social, nas suas refrações e particularidades promovendo a emancipação dos sujeitos e o
fortalecimento da autonomia rompendo com possíveis práticas de assistencialismo e
negligência em programas sociais, promovendo novas ações e dando novos sentidos à sua
prática.
84
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88
APÊNDICE A
ENTREVISTA INICIAL - DADOS DE IDENTIFICAÇÃO
Iniciais do entrevistado:
Data da entrevista:
Nome do entrevistador:
Data de nascimento: Idade:
Estado civil:
Nº. de Filhos:
Você reside com:
Escolaridade: Trabalha atualmente:
Profissão: Renda Pessoal Mensal:
Tipo de droga utilizada:
Padrão de consumo da droga:
Idade de início:
Data da última ingesta:
Comorbidade Psiquiátrica:
Comorbidade Clínica:
Medicações Utilizadas:
Sintomas de Abstinência? Quais?
89
APÊNDICE B - ENTREVISTA DE ACOMPANHAMENTO
1.Como todos vocês se sentiram durante este período?
2.Quais as dificuldades que enfrentaram?
3. Quais as vantagens que identificaram realizando o tratamento em casa?
4. Como foi o envolvimento familiar e o relacionamento entre vocês?
5. Houve envolvimento de mais pessoas?
6. Se já foi internado alguma vez, qual a comparação que faz entre as diferentes situações?
7. Como se sentiram para enfrentar o período após a internação domiciliar?
8. Houve alguma recaída neste período?
9. Em momentos com possibilidade de recaída, o que pensaram e o que foi possível em fazer?
10. Como está sendo o atendimento da rede de saúde?
90
APÊNDICE C
ENTREVISTA COM A EQUIPE
1. Como vocês avaliam os atendimentos realizados?
2. Como vocês avaliam a inclusão desta modalidade de atendimento nas atividades de vocês?
3. Acreditam que condições para que se mantenha esta modalidade de atendimento no
Ambulatório Melanie Klein?
4. Como perceberam a mediação familiar durante o tratamento?
5. Como avaliam o envolvimento da equipe no tratamento?
6. O que apontam como passível de mudança quanto a realização do tratamento?
7. Como vocês se sentiram na realização desta pesquisa?
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