Download PDF
ads:
PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO
RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE SERVIÇO SOCIAL
CRISTINE JAQUES RIBEIRO
AS MANIFESTAÇÕES DOS MODOS DE VIVER CABOCLO:
UMA CARTOGRAFIA COLETIVA NUM ASSENTAMENTO
DE REFORMA AGRÁRIA
Porto Alegre
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
CRISTINE JAQUES RIBEIRO
AS MANIFESTAÇÕES DOS MODOS DE VIVER CABOCLO: UMA CARTOGRAFIA
COLETIVA NUM ASSENTAMENTO DE REFORMA AGRÁRIA
Tese apresentada como requisito para obtenção do
grau de Doutor, pelo programa de Pós-graduação da
Faculdade de Serviço Social da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Orientadora: Drª Márcia Salete Arruda Faustini
Porto Alegre
2007
ads:
R484m
Ribeiro, Cristine Jaques
As manifestações dos modos de viver caboclo: uma
cartografia coletiva num assentamento de reforma agrária. –Porto
Alegre: PUC-RS, 2007.
130 f.
Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Programa Pós-Graduação da Faculdade de
Serviço Social, Porto Alegre, BR-RS, 2007. Orientadora:
Faustini, Márcia Salete Arruda.
1.caboclo. 2.cartografia 3.discurso. 4. estigma. 5.
subjetividade. I. Faustini, Márcia Salete Arruda. II.Título.
Ficha Catalográfica elaborada pela bibliotecária Cristiane de Freitas Chim CRB 10/1233
3
CRISTINE JAQUES RIBEIRO
AS MANIFESTAÇÕES DOS MODOS DE VIVER CABOCLO: UMA CARTOGRAFIA
COLETIVA NUM ASSENTAMENTO DE REFORMA AGRÁRIA
Tese apresentada como requisito para obtenção do
grau de Doutor, pelo programa de Pós-graduação da
Faculdade de Serviço Social da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Aprovada em 26 de abril de 2007
BANCA EXAMINADORA:
___________________________________________
Profª Drª Esalba Maria Carvalho Silveira- PUCRS
_____________________________________________
Profª Drª Helenara Silveira Fagundes - UCPEL
_______________________________________________
Prof. Dr. Luiz Antônio Bogo Chies - UCPEL
_________________________________________________
Orientadora Drª Márcia Salete Arruda Faustini – orientadora- PUCRS
_______________________________________________
Prof. Dr. Paulo Peixoto Albuquerque-UFRGS
Dedico este texto/Tese a você, pai Nelson, caboclo
primeiro de minha vida,
que me ensinou, por meio de seu jeito simples e sensível
de amar, os outros sentidos que a vida pode ter.
4
AGRADECIMENTOS
Muitos viajantes acompanharam os mares desta produção através dos mais diferentes e
diversos processos vividos durante os tempos do Doutorado...
Aqui não haverá uma ordem de preferência, pois muitos sentimentos se misturam na relação
com os viajantes...
A você, Nilson, companheiro amado, que viveu e vive comigo tempestades presentes como a
doçura dos encontros... Obrigada por aliar-se a esta proposta através dos cuidados com o
nosso João Pedro, que muito foi sacrificado nas horas nas quais manifestava o desejo da
atenção, da brincadeira, do colo, perguntando: “Mamãe, por que tu não pode brincar comigo
agora?”, deixando explícito que seu tempo é outro. Obrigada por me instigar, a cada dia, a
reinventar a vida em família.
A você, João Pedro, filho amado que, no percurso deste estudo, foi gerado e nasceu no
momento em que as ondas desta produção se alteravam. Passamos juntos muitos desafios...
Eu, você e papai, lutando para que fosse forte e resistisse à surpresa de um pulmão criativo,
que exigia sua transformação...
A vocês, meus outros amores, mãe Laidi, Deisy, Mara, Nelsinho, Killian e Bruna, que
coletivamente buscaram descobrir junto comigo outros caminhos capazes de existir sem a
presença do pai... sofremos... choramos... mas, aprendemos com ele a continuar lutando e
reconhecendo, na vida, a própria beleza que a saudade pode proporcionar...
A vocês, famílias agentes do grupo da pesquisa, componentes do MST, que não puderam ser
identificados, mas que, para além dos nomes, registraram suas vidas, apresentaram conexões
possíveis, manifestaram modos sensíveis de criar alianças cotidianas para construir outros
mundos... Obrigada pela a abertura e pela coragem de expor o que pensam e como vivem sem
saber de fato no que resultaria... Ainda temos muito a aprender juntos...
A você, Márcia, que aceitou orientar o desconhecido... Que abriu possibilidades de discussão
em nosso território profissional... que foi sensível em perceber que o diferente não é ruim...
que ensinou que são importantes o respeito e a acolhida na convivência com os outros
mundos... A ética manifestada por você foi a da vida que reconhece, nas multiplicidades,
alianças potentes. Obrigada pelo companheirismo e parabéns pela capacidade de produzir
atenção nos pousos cartográficos...
A você, Rita, que surgiu em nossas vidas para nos ajudar a cuidar do João Pedro e nos
ensinou que a paciência, a dedicação e a humildade nos fazem pessoas melhores ... Obrigada
pelo amor dedicado ao João Pedro, pois sem você, talvez, as dificuldades para chegar neste
momento fossem maiores...
A vocês, “galera” do Anexo, nosso grupo de estudos sempre foi dispositivo para que eu
pudesse acreditar num Serviço Social competente, desejante, sensível, capaz de produzir
intervenção sem ferir os diferentes modos de vida que se apresentam nas embarcações desta
profissão...Obrigada, Aline, Carim, Francine, Lena, Rita, Rosi, Graciela, Angelita, Andréia,
Daiane, Maria Alice, Carol, Diene, Milca, Cristine, Carina, Juliana, Carol, Anice, Tiana... e
muitos outros viajantes que ousaram romper fronteiras ou, pelo menos, torná-las mais
5
flexíveis... Com certeza, nossas alianças tornaram possível uma relação de amor reinventada
em nossa profissão, a qual foi propiciada pela delícia de nossos encontros... Virão outros...
A vocês amigos de outras viagens: Angelita, Ton, Pedro e Verônica, que me oportunizaram
outros encontros quando o corpo cansava e, por isso, desejava alimentar-se de outras
histórias... Obrigada por fazerem parte das mais diferentes histórias de minha vida... vocês são
meus manos do coração!
A vocês amigos: Marli e Kiko, que acompanham minhas histórias desde criança... E a você,
Marli, que me faz acreditar que é possível ser professora através de outras práticas... práticas
de amor, de afeto, de desejo em construir outros mundos possíveis... Amo vocês de montão!
A vocês da Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Pelotas: Alceu, que já ousou
outras embarcações, mas que em sua delicadeza rompante permanece desenhando nossa
profissão; Mara, que assume o desafio de dirigir a heterogeneidade do grupo profissional nas
suas mais diferentes paisagens; Vini, que assumiu o desafio de lutar para tornar concreto o
convênio com a PUCRS, proporcionando para o coletivo o gosto de aprofundar nossas
perspectivas; Andréa, companheira aliada que, mesmo desconhecendo a proposta, exercitou a
desconstrução dos preconceitos possíveis, acolhendo-me em muitos momentos, valeu amiga!
E aos colegas profissionais das mais diferentes áreas desta Escola, que me instigam todos os
dias a querer buscar novas viagens, desafiando-me a estudar mais e mais...
Aos estudantes da Escola de Serviço Social, que fazem do meu cotidiano profissional um
espaço cheio de afetos... Para vocês estudantes é que hoje chego aqui querendo oferecer mais
e mais qualidade em sua formação, pois acredito que o Serviço Social que escolhemos pode,
cada vez mais, qualificar-se. Obrigada pela oportunidade oferecida em sala de aula, nos
momentos de supervisão e de orientação, pelos debates capazes de criar novas alternativas de
intervenção sempre... para a nossa profissão...
Finalmente, agradeço à Banca Examinadora em ter aceitado participar deste trabalho,
contribuindo para que este possa manifestar-se nos mundos do programa de pós-graduação
em Serviço Social, qualificando-o ainda mais.
6
RESUMO
As manifestações dos modos de viver caboclo apresentam-se como trabalho
de estudo e de pesquisa desta Tese. O propósito desta escrita é de instigar uma
análise que deseja desconstruir as imagens socialmente produzidas acerca da vida
do aqui considerado caboclo. Os agentes que desenham esta pesquisa são os
participantes de um assentamento de Reforma Agrária do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra MST na região Sul do Estado do Rio Grande
do Sul - Brasil.
Para tanto, o texto segue o movimento na busca primeira de conhecer os
discursos institucionalizados pela literatura brasileira com destaque, principalmente,
às obras Urupês e Velha Praga, de Monteiro Lobato. A proposta é de analisar os
discursos que estigmatizaram uma parcela do povo brasileiro. Logo após, o texto
chega a seu segundo momento, propondo que a desconstrução de imagens se
expresse num modo de cartografar territórios e considerar as desterritorializações
feitas pela multidão. No último capítulo, o texto apresenta uma cartografia dos
modos de viver feita pelos próprios assentados a partir de suas experiências e
histórias cotidianas, que foram registradas coletivamente. E, enfim, as considerações
apresentam o desafio de fazer um registro cartográfico de modo narrativo para
também contar a partir do olhar dos agentes da pesquisa esta produção.
Palavras-chave: caboclo, capitalista, cartografia, discurso, estigma,
subjetividade.
ABSTRACT
The manifestations of the manners of mestizo to live comes as study work and of
research of this Theory. The purpose of this writing is of urging an analysis that wants
the desconstrution socially the images produced concerning the life of the here
considered mestizo. The agents that draw this research are them seated of a
settlements of Agrarian Reformation of the Landless Rural Workers Movement - MST
- in the South area of the State of Rio Grande do Sul - Brazil.
For so much the text follows the movement in the first search of knowing the
speeches institutionalized mainly by the Brazilian literature with prominence in the
works Urupês and Old Prague author's Monteiro Lobato. The proposal here is of
analyzing the speeches that stigmatized a portion of the Brazilian people. Therefore
after the text it arrives his second moment proposing that this desconstrution of
images is expressed in a way of cartography territories and to consider the
desterritorialization done by the crowd. In the last chapter the text presents a
cartography of the manners of living done by the own ones seated starting from their
experiences and daily histories that they were registered collectively. And, finally, the
considerations present the challenge of doing a cartographic registration in a
narrative way for also to count starting from the agents' of the research glance this
production.
Words-key: capitalist, cartography, mestizo, speech, stigma, subjectivity.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO............................................................................................. 09
2. CABOCLO: O QUE SE QUER COM ELE?................................................. 13
2.1. O QUE É O CABOCLO?........................................................................... 14
2.2. ENUNCIADOS QUE MORTIFICAM: ANALISANDO UM DISCURSO...... 21
2.3. A LITERATURA E A PRODUÇÃO DE UM IMAGINÁRIO......................... 29
3. OS NEXOS ENTRE A CARTOGRAFIA, A NARRATIVA E O SERVIÇO
SOCIAL........................................................................................................... 37
3.1. ABREM-SE AS CORTINAS: APRESENTANDO A PROPOSTA PARA
O SERVIÇO SOCIAL..................................................................................... 38
3.2 CIÊNCIA E NARRATIVA: ENCONTROS POSSÍVEIS.............................. 42
3.3 NOTAS DE UMA PESQUISA: UMA CARTOGRAFIA DO CAMPO........... 50
4. CARTOGRAFIA: APRESENTANDO A PROPOSTA DA PESQUISA........ 60
4.1. CARTOGRAFIA: UM MOVIMENTO NÔMADE......................................... 60
4.2 CARTOGRAFIA: JUSTIFICANDO UMA PROPOSTA A PARTIR DA
PROBLEMÁTICA ............................................................................................ 65
4.3. CARTOGRAFRIA: FUNDAMENTANDO OS MOVIMENTOS TEÓRICOS 72
5. CARTOGRAFIAS COLETIVAS: NAS MARGENS DA PRODUÇÃO.......... 79
5.1 O ACONTECIMENTO NUMA NOVA ESTÉTICA: CONTRARIANDO OS
DISCURSOS MORTIFICADOS NOS ENCONTROS QUE SE
REGISTRAM.................................................................................................... 79
5.2. CARTOGRAFIAS COLETIVAS: POR UMA ESTÉTICA DOS
ENCONTROS.................................................................................................. 83
6. CONSIDERAÇÕES CARTOGRAFADAS................................................... 115
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 121
9
1. INTRODUÇÃO
Consiste a minha sabedoria em ter sido muitas coisas e ter estado
em muitos lugares (Nietzsche)
A escrita acontece durante o processo, tornando impossível afirmar que se
sabe o que se vai escrever antes de escrever, como também só é possível, devido à
experiência, dizer qual é a Tese produzindo a Tese. Então, quando o texto inicia,
ele mesmo o sabe o que vem desenhar as linhas no papel, porque toda escrita
depende de uma série de acontecimentos que estão por vir.
Com essa perspectiva, pretendo lançar o convite ao leitor para adentrar as
páginas deste texto na tentativa de conhecer e desconhecer, num movimento
itinerante, as propostas dos capítulos que são conduzidos pelo tema: os modos de
viver caboclo. Conhecer e desconhecer são registros que desejam chamar a
atenção para a mutabilidade das multidões e de seus cotidianos. Assim, o texto não
pretende dar voz aos supostos emudecidos. Supostos, porque a afirmação parte do
lugar onde considero que a voz se manifesta de diferentes modos e em diferentes
acontecimentos, basta que se aceite romper com a linguagem formal
institucionalizada. “(...) uma forma de reflexão sobre a linguagem que aceita o
desconforto de não se ajeitar nas evidências e no lugar já-feito” (Pêcheux, 2006,
p.7). Portanto, este texto o tem o desejo de dar voz, ser voz, trabalhar para e por,
mas sim considerar os modos de vida que existem em diferentes mundos,
potencializando alianças coletivas das quais quem escreve este texto também faz
parte.
Dessa maneira, a postura política e ética de cuidar para que o processo se
mostre no coletivo evidencia-se na relação de quem escreve com a proposta da
Tese. Essa proposta surge pelas marcas da imposição de um êxodo que expulsou
pequenos agricultores que viviam no campo para um espaço urbanizado onde os
modos de viver foram expostos a uma cultura capitalística impondo uma socialização
forçada. Por conseqüência, este estudo é o estudo de quem vive ou viveu as
resistências frente a uma cultura etnocêntrica com resíduos coloniais, pois “trata-se
de resistir no sentindo de re-existir, ou seja, reinventar outros modos de existência
no trabalho que afirmem a inesgotável potência de criação” (Heckert, 2004, pág.
53).
Então, considerando as trajetórias (pessoal e profissional) de um movimento
vibrátil que existe no corpo de quem escreve, o processo de escrita do texto foi-se
10
apresentando: no início, timidamente, com receio de se tornar um gesso em
putrefação com verdades constituídas SOBRE a vida de alguém ou de alguns. Mas,
arriscando, o registro foi-se modificando a cada momento, e o que parecia óbvio
destruía-se numa velocidade rompante. Assim, encontros com diferentes agentes
foram contribuindo para que uma cartografia se manifestasse resistente aos modelos
e aos perfis mortificados que pudessem aparecer. Um texto, Tese, começou a dar
seus primeiros saltos, pequenos e grandes saltos, com seus tombos esperados e
suas ousadias desejadas.
Dessa forma, a preocupação de desconstruir rótulos e estigmas aprisionados
num imaginário social seletivo torna-se objetivo do texto/Tese cujos capítulos
propõem apresentar uma análise frente às realidades construídas pelo sistema e as
potências que reinventam essa construção no enfrentamento dos desejos que
pretendem construir verdades constituídas.
(...) que é, portanto a verdade? Um exército móvel de metáforas [...]
em suma, uma soma de relações humanas que se tornaram poética e
retoricamente intensificadas, metamorfoseadas, adornadas e, depois de
muito uso, parecem, para uma nação, fixas, canônicas e obrigatórias: as
verdades são ilusões, das quais nos esquecemos que são ilusões;
metáforas gastas que se tornaram impotentes para afetar os sentidos;
moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração
como metal, não mais como moedas (apud Arrojo, 2003, p. 13).
No primeiro capítulo, busco um encontro com fragmentos da literatura
brasileira. Fragmentos que apresentam o modo hegemônico de uma caricatura
criada SOBRE o povo brasileiro. Caricatura reconhecida num personagem nacional
chamado Jeca Tatu, do autor Monteiro Lobato. Então, nesse primeiro capítulo faço a
viagem em algumas obras que se referem à construção da categoria caboclo e, em
especial, nas obras de Monteiro Lobato (que teve expressão nacional a partir da
segunda metade do século XIX, segundo Lima e Hochman, 2000), lançando, num
movimento imposto, explicações e tentativas de caracterizações SOBRE as
manifestações e os modos de viver caboclo numa força que viola um cotidiano que
não é chamado para questionar essas afirmações. Afirmações acerca de sua própria
vida num discurso de verdade que vende um outro desejo, o de controlar todas as
manifestações dos corpos que vibram fora da lógica urbanizante. De acordo com
Rancière (2005, pp. 14-15).
11
Não mais proletários, apenas recém-chegados que ainda não
entraram no ritmo da modernidade, ou atrasados que, ao contrário, não
souberam se adaptar às acelerações desse ritmo. A sociedade se
representa, assim, como uma vasta escola que tem seus selvagens a
civilizar e seus alunos em dificuldade a recuperar.
Assim, no segundo capítulo, apresento uma proposta de envolver-me em
pesquisa de modo delicado e sensível. Uma proposta que se abre para os afetos e
para os fluxos imanentes, construindo um modo de se relacionar, um modo de
conhecer, um modo de produzir pesquisa chamada de Cartografia. Suely Rolnik
(2006, p.69) contribui evidenciando a proposta cartográfica:
Espaço de emergência de intensidades sem nome; espaço de
incubação de novas sensibilidades e de novas línguas ao longo do tempo.
A análise do desejo, desta perspectiva, diz respeito, em última instância, a
escolha de como viver, à escolha dos critérios com os quais o social se
inventa, o real social. Em outras palavras, ela diz respeito à escolha de
novos mundos, sociedades novas. A prática do cartógrafo é, aqui,
imediatamente política..
A escolha pela cartografia busca garantir um exercício teórico e prático ao
mesmo tempo, para poder encontrar mundos e extrair a vida que existe e pulsa em
cada manifestação. Não é uma escolha de encarceramento metódico, mas, antes,
de libertar-me coletivamente através da atenção ao heterogêneo e aos relevos que o
compõem. Segundo Kastrup (2007, p. 12), “a atenção é tocada neste nível, havendo
um acionamento no nível das sensações, e não no nível das percepções ou
representações de objetos”. Cartografar, então, é o modo de existir nos processos
coletivos.
Desse modo, cabe uma pausa para afirmar que esse modo de agir,
pesquisar, pensar, produzir deve aproximar-se da própria profissão de Serviço
Social, pois este defende a intervenção junto aos coletivos de modo crítico e político,
por meio de seu pluralismo, que tenta abrir-se para as teorizações diferentes com
suas diversas dimensões. Entretanto, esta pausa não deseja discutir a legalidade
das práticas, apesar de não negá-las, mas assinalar sua legitimidade frente aos
diferentes pensamentos que conduzem à profissão, frente às multidões em seus
territórios múltiplos. A cartografia, antes de parecer uma proposta “forma”, é uma
ferramenta que qualifica e dispara outros e novos olhares.
Chego ao terceiro capítulo com o desejo de apresentar As manifestações dos
modos de viver caboclo a partir destes, não na defesa de uma construção identitária,
12
pois esta não é proposta deste estudo e, sim, apresentar o pouso de uma cartografia
que pretendeu ser coletiva para contar histórias e experiências de um grupo que
resiste às subjetividades capitalística. Então, para cuidar das
expressões/sensações, reproduzo, no papel/texto, as falas como o ditas, sem
nenhum propósito de correção, para não impor/exigir uma gramática que não faz
parte do cotidiano do grupo, porque
[...] não sou contra uma ciência entendida dessa maneira. Tal ciência é
uma das invenções mais maravilhosas da mente humana. Mas sou contra
ideologias que usam o nome da ciência para o assassínio cultural.
(Feyerabend, 2007, p. 23).
Portanto, este texto/Tese tem, como objetivo geral, instigar/abrir a discussão
do imaginário social construído a partir de um discurso lingüístico que pretende
interpretar, através de seus adjetivos, o que vem a ser um caboclo. Por exemplo, há,
no primeiro capitulo, a tentativa de marcar os modos de viver caboclo como “piolho
da terra”, referência de Monteiro Lobato, porém, no último capítulo encontro um
caboclo reinventado pelo seu próprio coletivo, destruindo essa imagem constituída.
Assim, a produção de uma cartografia coletiva considerou a capacidade de
seus agentes em resistir aos modelos civilizatórios, o que não significa em não
reproduzir algumas práticas, mas poder criar outras. Para tanto, a cartografia
potencializou uma outra capacidade, a imaginante, como processo de existência do
grupo da pesquisa. Por conseqüência, a criatividade, as conquistas, as esperanças,
a alegria, o “belo” para o grupo, sem negar seus problemas, as suas necessidades,
os seus “erros”. Esses foram os dispositivos/força deste trabalho.
Com isso, não desejo negar as reproduções, as antiproduções, os controles,
as disciplinas impostas que possam existir nesse cotidiano, mesmo porque não são
características únicas desse grupo, nem privilégio, pois suas práticas também o
vivenciadas por toda a sociedade. No entanto, o olhar investigativo desnuda-se para
poder produzir a atenção, categoria da cartografia, na produção de outros
conhecimentos.
A proposta desta escrita, antes, é de evidenciar o propósito acima
mencionado, bem como fazer um convite à própria profissão de Serviço Social para
conhecer outros caminhos possíveis no que se refere à pesquisa e repensar seus
campos teóricos, não os colocando como únicos para a direção profissional, porque
esta escrita encontrou, nos autores registrados, a possibilidade de um outro diálogo.
13
Por isso, a ausência dos autores específicos do Serviço Social, pois esses ainda
estão numa outra discussão que, neste momento, não contribui para a proposta
apresentada aqui.
Ainda que um trabalho seja apresentado num programa de Serviço Social, ele
não deve ficar aprisionado, mas deveria, sim, ousar vôos nas infinitas possibilidades
do conhecimento. A implicação da escrita está feita pela Assistente Social que
escreve e, portanto, manifesta um Serviço Social que é desenhado por
multiplicidades heterogêneas. Conseqüentemente, este trabalho está longe de ser
constituído por uma construção teórica confusa, eclética, porém existe nele uma
outra escolha teórica bem posicionada num processo itinerante.
Enfim, esta escrita parte das necessidades produzidas em escrever um texto
que apresente as manifestações, e o os perfis de um coletivo, mesmo que aqui
esteja sendo considerado o caboclo, o qual, provavelmente, neste momento de
apresentação, este se tenha metamorfoseado... Por conseguinte, no final desta
Tese, o leitor irá encontrar as considerações cartografadas por um coletivo que
estava aliado aos movimentos desta escrita.
2. CABOCLO: o que se quer com ele?
- (Dário)
1
O que tu tava contando das galinhas?
- Ah, das galinhas?
- Isso.
- Ah, das galinhas nós botamo...cada um boto vinte galinha junto pra criá
tudo junto, e daí a mãe quis pra ela criá... daí tinha um galinheiro ali, daí
deixamo pra ela...ali umas quarenta e agora tem mais ou menos umas
oitenta criada tudo solta, e daí é da mãe... é da vó (eh eh eh)!
- Ela que quis fazê assim? Por quê?
- Ela gosta de as galinha solta...fechado não... o sistema dela, no
interior as galinha tinham que se criá solta ...
- (Marta) caboclo o trabalha assim, se pra i na roça é comparação
sim... se chegou uma visita, ele vai receber com todo o orgulho e deixa o
serviço pra lá.
Eu gosto de, eu toda vida gostei de morá no campo, óia, já tive na cidade,
meus filhos moravam na cidade os mais velho daí... ficava quase louca
quando morava na cidade, Deus o livre! gente de carro não tinha saída
aqui. No campo, aqui, adoro ando na horta, planto flor eu, minha vida essa,
né, me criei no interior, né, então eu adoro... esses dias plantei aipim,
abóbora, melancia... Na cidade, pra mim, não tem sentido...(14/10/2006)
1
Durante o capítulo, serão apresentadas algumas falas dos agentes da pesquisa em momentos diversos de
diálogo. O objetivo é trazer o cotidiano com suas multiplicidades, junto com os registros dos autores, para dar
vida ao texto.
14
A pergunta que inicia este capítulo pretende mexer com os territórios das
imagens socialmente instituídas sobre os modos de viver caboclo
2
, com o objetivo
de problematizar os discursos que desejam inviabilizar um novo viver através das
práticas coletivas e criativas dos agentes caboclos. Assim, o contar das histórias e
das percepções do que vem a ser o caboclo, a partir de um grupo num
assentamento do MST, é a proposta de toda a escrita, que se torna viva no encontro
das falas, bem como no cotidiano de quem vive e reinventa as imagens produzidas
na sociedade. Mas, para isso, entendo necessário começar o desenho da escrita a
partir do discurso registrado no texto brasileiro sobre o caboclo.
2.1. O que é o caboclo
3
?
O pai gostava de plantar bastante trigo porque era um alimento que
sempre tinha... (observou-se que o túmulo é envolto por trigos) (Paulo, 22-
10-2006).
Que a gente se acha caboclo mesmo, na vivência, é no
assentamento que isso começou. Uma vida nova. Eu, na verdade... eu
penso que eu comecei tudo de novo, outra sociedade...(Silvio, 14-10-2006).
Esta escrita pretende, inicialmente, apresentar, por meio de seus registros,
um corpo
4
caboclo. Um corpo caboclo plagiado por um imaginário instituído que
tenta legitimar a “verdade” de um modo de vida que se manifesta no heterogêneo.
Um corpo caboclo que se mostra inquieto em relação à ordem do discurso de
invasor, ocioso, pedinte.
2
No que se refere à delimitação da categoria caboclo, Darcy Ribeiro, em seus Diários Índios, define-a na mesma
ordem do negro e do índio, caracterizando-a exclusivamente por uma relação de miscigenação (Martins, 2005,
p.4).
3
“Até que ponto, (...) ´dar nome`a um grupo (...) implica tentar construir uma idéia e uma imagem estática, fixa
e a-histórica de um conjunto de pessoas que reivindicam, nesse caso, assistência estatal? E aqui a própria idéia
de ´auto-designação`mereceria um certo cuidado” (Silva, 2007, p. 6).
4
“O corpo não é apenas um texto da cultura. É também, como sustentam o antropólogo Pierre Bourdieu e o
filósofo Michel Foucault, entre outros, um lugar prático direto de controle social” (Jaggar; Bordo, 1997, p.19).
15
As pesquisas em torno do campesinato mostram uma literatura arcaica
5
sobre os modos de vida no campo, e essa situação não é diferente no que se refere
ao caboclo. No entanto, o caboclo, aqui considerado, manifesta-se como ser agente
do campo. Assim, ele não é e não está pronto dentro de uma identidade
6
engessada, pois resiste a esse aprisionamento. O corpo caboclo, e aqui campesino,
plagiado pelo dito apresenta-se nos discursos acadêmicos como um corpo cil,
domesticado numa estrutura homogênea. Para Cândido (2003, pp. 288-289):
Casar é na verdade necessário não apenas dentro das condições de
trabalho, como das de vida sexual que prevalecem no meio rural. Sem
companheira, o lavrador pobre não tem satisfação do sexo, nem auxílio na
lavoura, nem alimentação regular.
Mas, existe um “outro” corpo caboclo
7
que se manifesta numa potência
intempestiva, com a qual tenta romper com os dogmas e doutrinas criados sobre o
seu dia-a-dia e os modos de manifestar as suas práticas, sua vida. Esse outro corpo,
resistente, luta para rachar os modelos, os “perfis” e as verdades instituídas.
Segundo Deleuze; Guattari ( 2004, p. 44).
Adoro inventar povoações, tribos, as origens de uma raça... Retorno
de minhas tribos. Sou, até o dia de hoje, o filho adotivo de quinze tribos,
nem mais nem menos. E estas são minhas tribos adotivas, porque eu amo
cada uma mais e melhor do que se eu tivesse nascido nelas.
5
Aqui, o arcaico refere-se à reprodução de textos que apenas apresentam as relações de trabalho e de gênero, por
exemplo, como expressão maior de vida no campo não arriscando a apresentar outras manifestações que existem
no mesmo espaço campesino como as relações homossexuais, a expressão do jovem enquanto ser que deseja ter
uma outra vida no campo para poder permanecer neste, a existência do caboclo camponês, neste caso, enquanto
ser diferente que busca viver a seu modo uma outra relação com a terra. Como Lembra Rogers (2006, p.1) ,
quando analisa a literatura sobre as sociedades camponesas no Brasil, “O Texto Brasileiro está ancorado em um
imaginário instituído, limitado, sobre o corpo do homem do campo. Cria-se, neste sentido, uma identidade
cultural reacionária e fechada sobre si mesma, em que os mesmos falam as mesmas coisas para os mesmos.
Naturalizações e definições do que é o desejo, sempre ligado à reprodução da espécie, institui no corpo do
camponês um corpo-mais-valia, um corpo-mutilado, um corpo-funcional, um corpo-bíblico, via uma literatura
que, curiosamente, organiza, simplifica e seleciona discursos que desembocam em um persistente retorno ao
Mesmo”.
6
“(...) a identidade é aquilo que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de existir por um e mesmo
quadro de referência identificável. Quando vivemos nossa própria existência, nós a vivemos com as palavras de
uma língua que pertence a cem milhões de pessoas; nós a vivemos com um sistema de trocas econômicas que
pertence a todo um campo social; nós a vivemos com representações de modos de produção totalmente
serializado ” (Guattari; Rolnik,2000, pp. 68-69).
7
Aqui se torna pertinente a referência de Rogers sobre a literatura homogênea que se faz sobre o Corpo
camponês nos texto Brasileiro: “O que é um camponês? O que é a ideologia camponesa? O que é o campesinato?
Identidades e modelos fadados à caricatura de um nostálgico ideário sobre o rural. Modelos fabricados que não
dão espaço ao corpo transbordar, se reinventar, se afectar. Um ideário que institui, sobretudo, o desejo, que
castra o homem rural brasileiro”. (Rogers, 2006, pp. 170-171). Afirma ainda que “Mormente, as categorias
estrangeiras ao contexto brasileiro e camponês e campesinato caem em um vazio categórico, um problema de
método, pois o que se percebe é uma replicação, no texto Brasileiro, de uma campesinato à francesa, à inglesa, à
americana, sem muitas vezes se atentar para as especificidades de um país continental como é o Brasil” (p. I).
16
O registro de um estudo sobre o caboclo num assentamento de reforma
agrária não tem o objetivo de afirmar as suas relações de parentescos ou religiosas,
nem investigar suas relações amorosas, sexuais, por exemplo. Mas possui o
propósito de abrir-se a outras estratégias, as estratégias nômades, abrir-se aos
afetos. Esse abrir pretende considerar o outro corpo numa nova estética que se
movimenta como multidão na qual existem infinitas expressões.
O corpo caboclo que é campesino sofre o mal-dito através da divisão dos
lugares e dos papéis para mulheres, homens, crianças no habitar. Para Guattari
(1987. p. 30): “Todos os pólos do agenciamento, a criança, o irmão, a mãe, vão
então se cristalizar no campo da representação”
8
No entanto, a família apresenta-se
como categoria centralizadora nesse cenário coletivo. A constituição da moradia e
do trabalho na “roça” é construída, e essa expressão aqui não se pretende negar.
A proposta desta análise é perceber uma arquitetura que impõe um território
instituído no corpo do caboclo, veiculando a imagem de preguiçoso, “sujo”, entre
outros adjetivos. Guattari (1987, p. 30) afirma: “Toda a realidade, então, passa a ser
tomada no campo dos valores binários, o bem/o mal, (...), o rico/ o pobre, o útil/ o
inútil, etc.”
9
. O imaginário social
10
tenta mutilar a existência do corpo caboclo através
de um discurso que deseja moldar os modos de viver coletivos, sufocando suas
manifestações.
O caboclo sofre, na sociedade capitalista, graças às imposições da revolução
industrial, o estatuto do atrasado, do ocioso e do vagabundo, carregando as marcas,
em seu corpo, de que o seu modo de viver é um modo de reprodução alienante. O
fato é que o caboclo enquanto ser manifesta e acolhe o viver de modo a não
centralizar e a não se encarcerar frente à categoria trabalho.
Meu pai nunca pensava: tem que trabalhar, tem que trabalhar...
Quando ele colhia, is colhia a safra, se Deus quiser, se sobrasse, is
8
“Dizer que o imaginário aparece ou representa um papel porque o homem é incapaz de resolver seu
problema real, supõe que saibamos e que possamos dizer qual é esse problema real, em toda a parte e sempre, e
que ele foi, é e será sempre o mesmo(visto que se esse problema muda, somos obrigados a perguntar por que
somos levados à pergunta precedente)” (Castoriades, 1995, p. 163).
9
“As visões sobre as mazelas do Brasil se dão dentro de um enquadramento dualista habitado por pares
indissociáveis tais como litoral-sertão, saúde-doença e moderno-atrasado” (Lima; Hochman, 2000, p.3).
10
“Mais do que nenhuma outra sociedade, também, a sociedade moderna permite ver a fabricação histórica das
necessidades que são manufaturadas todos os dias sob nossos olhos. [...] (...) está suspenso no imaginário: a
economia do capitalismo moderno pode existir na medida em que ela responde às necessidades que ela
própria confecciona.[...] (Castoriades, 1995, pp. 188-189).
17
comprava um xampu, uma bolachinha até hoje. Ele podia ta na maior
colheita e chegava visita na casa dele era agradar bem as visitas, era
passear se chovia... (Valéria, 14-10-2006)
Então a resistência
11
do caboclo campesino fundamenta-se contra a
imposição do corpo útil, ou seja, o corpo do trabalhador é exigido ser um corpo
funcional, um corpo material, um corpo fabril, um corpo mercadoria onde não são
permitidos prazer e criação.
Então um sonho um dia a gente te a morada da gente... Fico feliz
porque eu sei que aqui é meu não tem esse negócio: será que o ano que
vem o meu patrão precisa da terra? O que a gente planta não precisa
parte, eu o consegui compra terra por causa disso né, os patrão cada
ano comprava um pedaço de terra. A soja, o milho, o feijão a gente vendia
eu dava a parte, eu dava a terça parte de cada três bolsa que eu colhia
uma ia pro patrão. Nóis cheguemo a colhe... 300 sacos de soja e de dá 100
sacos de soja pro patrão assim a notinha pesadinha na bodéga e daí eu
tinha que entra com todas as despesa: era semente pra trilha depois, era
arado que a gente gastava, era carroça que a gente quebrava, tudo saia da
gente o custo. O patrão ganhava liquido isso ai não investia em nada.
Então aquilo ali eu considerava que fosse o lucro da gente se não
precisasse parte a gente até conseguia compra um pedacinho de terra,
cada ano pegasse ia agregando em cinco, seis ano agente conseguia
compra um pedaço de terra, mas ...(Jairo, 21-10-2006)
Existe um “mal-dizer” sobre as manifestações dos modos de viver caboclo
onde se estigmatiza o movimento deste corpo e ao mesmo tempo lhe oferecem
práticas prisioneiras bem como políticas que pretendem torná-lo refém da doutrina
capitalística.
Assim, a proposta deste trabalho é analisar o discurso registrado nos
enunciados sobre o caboclo e, neste caso o caboclo que vive no campo. Aqui a
linguagem será considerada como uma ação, ou seja, cada ato de fala está
conectado há uma instituição e ao mesmo tempo ao desejo
12
de sua reinvenção.
11
“O que caracteriza os novos movimentos sociais não é somente uma resistência contra esse processo geral de
serialização da subjetividade, mas também a tentativa de produzir modos de subjetividade originais e singulares,
processos de singularização subjetiva” (Guattari; Rolnik, 2000, p. 45) “[...] A resistência consistiria em embarcar
nos processos de diferenciação de todos esses modelos, pois com isso é o próprio falocratismo que estaríamos
desinvestindo” (Guattari; Rolnik, 2000, p. 81).
12
Para Esquizoanálise criada por Deleuze e Guattari “(...) o Desejo é essencial e imanentemente produtivo, gera
e é gerado no processo mesmo de invenção, metamorfose ou ´criação` do novo. Sua essência não é
exclusivamente psíquica, pois participa de todo Real. Corresponde ao que Nietzsche denominou vontade de
potência, que Espinosa chamava a substância e os estóicos, o acontecimento, que resulta do encontro entre os
corpos. (Baremblitt, 1998, p. 163).
Ainda observa-se neste parágrafo que o caboclo existe em todo território nacional seja ele em áreas urbanas
como rurais, pois como lembra Gilberto Freyre Ligam-se à monocultura latifundiária males profundos que têm
comprometido, através de gerações, a robustez e a eficiência da população brasileira, cuja saúde instável, incerta,
tantas vezes são atribuídas à miscigenação”(2006, p.33).
18
Então, nos textos de Darci Ribeiro (2006, p. 19) e de Monteiro Lobato (1968,
p. 278), o primeiro apresenta o processo civilizatório no Brasil, considerando o
caboclo através das conceitualizações resultantes das diferentes regiões do país, e
o segundo cria uma caricatura do povo brasileiro resultante da interferência
indígena:
Por essas vias se plasmaram historicamente diversos modos rústicos
de ser dos brasileiros, que permitem distingui-los, hoje, como sertanejos do
Nordeste, caboclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do Sudeste e
Centro do país, gaúchos das campanhas sulinas, além de ítalo-brasileiros,
teuto-brasileiros, nipo-brasileiros etc. Todos eles marcados pelo que têm de
comum como brasileiros, do que pelas diferenças devidas a adaptações
regionais ou funcionais, ou de miscigenação e aculturação que emprestam
fisionomia a uma ou outra parcela da população.
O indianismo está de novo a deitar a copa, de nome mudado.
Crismou-se de ´caboclismo`. O cocar de penas de arara passou a chapéu
de palha rebatido à testa; a ocara virou rancho de sapé; o tacape afilou,
criou gatilho, deitou ouvido e é hoje espingarda troxada; o boré descaiu
lamentavelmente para pio de inambu; a tanga ascendeu a camisa aberta
ao peito.
No entanto, como vem sendo explicitado não desejo tratar, neste trabalho,
do caboclo através de uma constituição étnica
13
, mas fazer os recortes genéricos a
partir do seu modo de viver que se manifesta num assentamento de reforma agrária,
este modo considerado caboclo, bem como as marcas que sofre pelo discurso que
tem a vontade da verdade no jogo do poder e do desejo capitalístico. De acordo com
Maigueneau (1997, p. 37): “O discurso é autorizado e, conseqüentemente, eficaz
se for reconhecido como tal”.
O caboclo é aquele que vive da terra e produz seu sustento da terra,
né. É que tem diferença do caboclo produtor do caboclo que vive da terra
mesmo. Tem o agricultor do caboclo, né. É diferenciado porque o agricultor
que tem sua terra, mas não vive daquilo ali, ele produz pra exportação e, o
caboclo ele tira o seu sustento da terra mesmo, né. É poucas coisas que
ele depende de comprar de fora. E é a cultura. Caboclo não é nada mais
que a cultura também. Diferenciando lugares para culturas diferentes. Nóis
todos somos caboclos... (Rita, 15-10-2006).
13
Na concepção da antropologia clássica, identidade étnica é definida a partir de 4 questões: 1- perpetua-se
biologicamente de modo amplo; 2- compartilha valores culturais fundamentais, realizados em patente unidade
nas formas culturais; 3- constitui um campo de comunicação e interação; 4- possui um grupo de membros que se
identifica e é identificado por outros como se constituísse uma categoria diferenciável de outras categorias do
mesmo tipo” ( Barth, 1998, pp. 189-190).
19
Cultura, aqui, é entendida como produção social, e não como resultado de
uma origem natural que inviabiliza qualquer prática que deseje mudanças cotidianas
no viver individual, familiar e coletivo. Segundo Laraia (2006, p. 25) a primeira
definição de cultura do ponto de vista antropológico surge com Edward Tylor, em sua
obra Primitive Culture (1871):
Tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que
inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer
outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma
sociedade.
Entretanto, prefiro utilizar as orientações de Félix da Guattari, que, diante das
inúmeras definições que apresenta sobre cultura, evidencia a proposta deste
trabalho (2000, p. 23): “No fundo, uma cultura: a capitalística. É uma cultura
sempre etnocêntrica e intelectocêntrica (...), pois separa os universos semióticos das
produções subjetivas”. Então, para além da concepção de cultura, o desejo é de
considerar o caboclo como ser com diferentes manifestações em seu modo de viver.
Caboclo, pra mim, é o modo das pessoa vivê, eu não me refiro cor
sabe?! É a nossa produção, o jeito de nós... a nossa convivência. Tá na
origem, por exemplo, qual a visão dos Estados Unidos com o mundo e
qualé a visão das pessoas hoje brasileira? Então eu vejo que o jeito de
caboclo é o que o pai ensinou: é a vivencia amigável com todo mundo, é
vivê a vida, é se diverti, é fazê amigos, produzi alimento de qualidade, é
paz e deu... (Leonardo, 14-10-2006).
Conforme as manifestações já registradas neste texto, é possível o leitor
perguntar se esta proposta de estudo é científica? Pois, se não está sendo feita a
defesa de uma identidade étnica e de classe, para que e quem serve este trabalho?
As respostas para tais perguntas estão, primeiro, na preocupação de criar
práticas profissionais capazes de considerar o que existe e pulsa cotidianamente na
vida das multidões
14
, ou seja, desenvolver o cuidado de não exigir aquilo que não é
necessidade e prática dos coletivos, aprender a ouvir antes de falar, conhecer,
através da pesquisa, modos sensíveis e possíveis de intervenção no encontro com
os agentes que fazem parte dessa intervenção. É poder problematizar o Social, não
o banalizando como lugar privilegiado das tarefas, mas evidenciando que é um
14
“(...) Os homens, reduzidos à condição de suporte de valor, assistem, atônitos, ao desmanchamento de seus
modos de vida. [...] A experiência deixa de funcionar como referência para a criação de modos de organização
do cotidiano: interrompem-se os processos de singularização. È, portanto, num movimento que nascem os
indivíduos e morrem os potenciais de singularização.” (Guattari, Rolnik, 2000, p. 38).
20
campo de multiplicidades de acontecimentos heterogêneos, dinâmicos, mutantes e,
como lembra Donzelot (1986, p. 8), “(...) ´o` social nasce com um regime de
flutuações, onde as normas substituem a lei, os mecanismos reguladores e
corretivos substituem o padrão” e, portanto, é reconhecer a linha de flutuações que
cerca o caboclo através da imagem com seus imperativos sociais e seus
regulamentos comportamentais. Romper o padrão e virar do avesso às normas é o
que percebi neste estudo sobre as manifestações do viver caboclo, mesmo que
também existam, nesse modo, muitas reproduções
15
.
Por exemplo, a importância de tê... dá valor...em você um
banheiro, um chuveiro dentro de casa esse tipo de coisa meu finado pai,
por exemplo, cinqüenta anos, ele faleceu com setenta anos, né, depois do
cinqüenta anos que ele foi, acho que por causa da idade, do frio, que ele foi
optá pra o banheiro, pra o chuveiro, mas a felicidade dele era i pra
sanga toma um banho, aqui mesmo no assentamento, nós arrumamos a
rede de água, nós temo chuveiro em casa, ele não desceu ali, cavô e fez
um pocinho pra ele tomá banho?! Ele ia tomá banho ali embaixo na sanga.
Quando tava calor, ele botava a toalha no ombro e ia ali tomá banho. Isso
faz com que a gente... tu fica vendo assim que do que que adianta o
dinheiro, tê tantas coisa se tu não é feliz, eu acho que ele tinha uma
felicidade imensa, às vezes tu tem dois, três irmão, as pessoas não se
acertam, brigam, né, fazem isso, aquilo, tem violência, e nós em onze, por
exemplo, a maior alegria no final do ano nós se reúne, a festa, pra ele, nós
temo fotos aqui, dele no meio da netaiada, pra ele não importava se ele
tinha trezentos reais, se não tinha, o negócio dele era vivê bem...
(Leonardo, 14-10-2006)
A segunda preocupação é a de desenvolver uma escrita que discuta as
diversas possibilidades de existir dos coletivos no mundo capitalista através dos
diferentes processos nos quais segundo Guattari; Rolnik (2000, p. 37): o “(...) que se
coloca é saber como uma micropolítica de processos singulares articula-se com
esses processos de individuação”. Ou seja, o caboclo que sofre em seu corpo um
discurso estrangeiro sobre o seu viver, sendo o mesmo discurso que condena a luta
coletiva por ocupação de terra.
A terceira preocupação é de reconhecer que a ciência “deveria ser”
reconhecida como tal, quando considera o cotidiano, as diferentes populações, os
diversos saberes coletivos numa relação de aliança, e o de submissão. Deve ser
reconhecida quando rompe com a imposição de um conhecimento sobre os seres e
15
[...] Função é sinônimo de reprodução: é a tentativa de reiterar o igual, de perpetuar o que existe, aquilo que
não é operativo para acompanhar as transformações sociais “(Baremblitt, 1998, p. 36).
21
seus mundos, tornando-os privados e antiprodutivos. Para Nietzsche (2004, Livro
primeiro, item 12):
Com a ciência pode-se deveras favorecer um e outro objetivo! Talvez
seja ela mais conhecida dos nossos dias pela sua faculdade de privar o
homem das suas alegrias e o tornar mais frio, mais ´estátua`, mais estóico.
Nada impede também que se descubra nela a grande causadora das
dores; talvez, então, da mesma maneira, se encontre a sua força contrária,
a sua prodigiosa faculdade de fazer brilhar à alegria dos humanos, novos
universos de estrela.
Assim, o tema “As manifestações dos modos de viver caboclo” pode correr o
risco de não parecer pertinente para a comunidade científica, por deixar vidas
sobre as contribuições desta pesquisa para a vida dos agentes, ou seja, aquela
velha pergunta: Qual o retorno dos resultados e que contribuição para o campo
pesquisado? Mas, tratando-se da proposta de pesquisa avaliada a priori e sendo
feita no programa de Serviço Social, penso que o objetivo da busca deste campo e
tema, e não outro, está esclarecido, bem como as respostas a essas perguntas
estão explicitadas, principalmente, quando as famílias do grupo da pesquisa
autorizaram o início deste processo.
2.2. Enunciados que mortificam: analisando um discurso
Para Grenand e Grenand (1990: p 25):
(...) as inúmeras possibilidades de especulação oferecidas pela
organização do mundo dos caboclos refletem as origens, os itinerários, as
trajetórias e as condições diversas de uma população cuja maior
característica é a mobilidade.
Considerando a importância de haver um todo de análise, fiz a escolha
pela Análise de Discurso através das contribuições de Michel Foucault, como
também por uma metodologia que conduza o processo de estudo e pesquisa
qualitativo. Assim, este item pretende analisar um discurso que constrói um
imaginário social acerca dos agentes desta pesquisa. No entanto, não existe o
desejo de cristalizar falas, práticas, manifestações em um modelo ou perfil
comportamental. Entendo que o método, aqui, auxiliou, pois foi ferramenta para os
encontros sem determinismos. Segundo Foucault (2005, p. 5-6):
22
Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e
levado bem além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no
momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo:
bastaria, então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse,
sem ser percebido, em seus interstícios, como se ela me houvesse dado
um sinal, mantendo-se, por um instante, suspensa. Não haveria, portanto,
começo; e em vez de ser aquele de quem parte o discurso, eu seria, antes
ao acaso de seu desenrolar, uma estreita lacuna, o ponto de seu
desaparecimento possível.
A formação discursiva é o objeto da Análise de Discurso que oferece um
conjunto de regras histórico-temporal, no qual se encontram enunciados que nada
mais são do que a expressão de uma população de acontecimentos. A formação
discursiva poderá viabilizar o entendimento deste estudo, no caminho e na afirmação
de que não existe nenhum ato ou fala por trás do que existe, não existe nada a ser
desvelado, nada está escondido e, sim, o que existe é um discurso bem elaborado
que tem a vontade de criar pensamentos, necessidades, decisões sobre a vida do
pobre, campesino, caboclo. Ou seja, poder analisar,
16
aqui, é poder analisar o
enunciado que foi produzido num momento e em nenhum outro, em circunstâncias
bem determinadas.
na literatura brasileira, a tentativa de caracterização sobre o modo de vida
caboclo. Quando se refere ao caboclo da Amazônia, por exemplo, Ribeiro (2006, p.
280) afirma:
A característica básica desta variante é o primitivismo de sua
tecnologia adaptativa, essencialmente indígena, conservada e transmitida,
através de séculos, sem alterações substanciais. E a inadequação desse
modo de ação sobre a natureza para prever com condições de vida
satisfatórias e um mínimo de integração nas modernas sociedades de
consumo.
Essa afirmação oferece um modelo que apresenta um caboclo cujo
comportamento está aprisionado à regra do primitivismo, ou seja, o caboclo aparece
como um nativo e, portanto, desprovido de informações e de condições para romper
com as imposições do consumo moderno da chamada civilização. Ainda, Ribeiro
(2006, p. 280) assinala:
Na verdade, a civilização não se revelou capaz, até agora, de
desenvolver um sistema adaptativo ajustado às condições da floresta
tropical, multiplicável através de um modo empresarial que lhe assegure
viabilidade econômica.
16
“Não se trata de´interpretá-los`. Trata-se, isto sim, de situar sua trajetória para ver se eles têm condições de
servir de indicadores de novos universos de referência, os quais poderiam adquirir uma consistência suficiente
para provocar uma virada na situação” (Guattari; Rolnik, 2000, pp. 222-223).
23
A topografia que contorna a relação dos seres em seus mundos de
convivência sugere o questionamento de um discurso exterior à realidade de um
grupo, de uma comunidade, de uma chamada civilização. Esse discurso localiza-se
num espaço e num tempo que pode ser pertinente para um dado momento, e não
outro. Assim, expresso uma concepção institucionalizada sobre o modo de
manifestar um viver coletivo dentro de um olhar homogêneo.
A mesma tentativa de caracterização aparece quando Ribeiro (2006, p. 376)
se refere ao caboclo gaúcho:
Esses eram os gaúchos originais, uniformizados culturalmente pelas
atividades pastoris, bem como pela unidade da língua, costumes e usos
comuns. Tais eram: o chimarrão, o tabaco, a rede de dormir, a vestimenta
peculiar caracterizada pelo chiripá e pelo poncho; as boleadeiras e laços de
caça e de rodeio; as cadeias de sebo para alumiar e toda tralha de
montaria e pastoreio feita de couro cru; a que se acrescentaram as carretas
puxadas por bois, os hábitos de consumo de sal como tempero, da
aguardente e do sabão e da utilização e artefatos de metal, principalmente
a faca de carnear, as pontas das lanças, as esporas e freios e uns poucos
utensílios para ferver e para cozinhar.
As diferenças de um grupo para o outro, segundo o autor, são de ordem
regional, mas o que os aproxima é a contribuição indígena em suas misturas étnicas.
No entanto, como não desejo significar, produzir sentido
17
, ou seja, tornar central,
nesta escrita, a constituição étnica como representação simbólica, e aqui não se
trata de negar as interferências étnicas nas práticas e nas manifestações dos modos
de viver caboclo, mas, antes de tudo, o que desejo é considerar o caboclo como ser
agente que produz movimentos instituintes em suas relações com a natureza e com
os outros seres que a compõem. Para Fraxe (2006, p. 3): “Não se trata, assim, de
definir os caboclos-ribeirinhos como uma classe, uma essência ou substância, mas
como pessoas inseridas em uma dinâmica social”. Desse modo, no diálogo abaixo,
num momento de entrevista, foi possível reconhecer, na fala e no modo como fala
um agente do grupo no assentamento de reforma agrária, o que vem a ser o
caboclo.
- O que é caboclo?
17
“Os sentidos passaram a existir quando um corpo destacado do mundo, coisificado, se tornou independente
e de se vender e se propor como individualidade interioridade” (Caldas, 1999, p.28). A preocupação, aqui, é
não defender um pensamento naturalizado, não crítico, ou seja, a preocupação é considerar que toda produção é
social e não natural e, por isso, o caboclo não se torna aprisionado por uma análise étnica de classe.
24
- Caboclo se chama que não é de origem alemão e nem italiano.
- É o quê?
- É o brasileiro.
- Tem bastante caboclo no grupo?
- Tem, da minha família tudo é caboclo.
- Tu consegue a diferença de como é que vive um caboclo pra um
italiano?
- Ah, tem muita diferença!
- Qual é a diferença?
- O sistema todo dele. Tem muita diferença no trato com animal, no
cuidado com as planta, tudo que é coisa tem diferença.
- Como é que o caboclo olha pro tratamento do animal, como é a
relação dele?
- Ele não é assim muito de tá plantando bastante pasto, ele deixa solta
a criação no campo, daí faz alguma pastagem, o italiano não, o italiano é
de cortá o pasto e trazê no coxo.
- E pra plantá, com a agricultura, com a natureza qual é a diferença?
- Com a natureza, o caboclo não é de usá, óia, de dez caboclo, um bota
adubo, veneno, ele planta, prepara a terra, arado de boi, lavrô, e planta,
a terra é natural... Na minha região, o que era caboclo era dividido a
lavoura. Era bem diferente... O meu pai não botava um litro de veneno na
terra, e daí nós lavrava, plantava feijão e milho, desgaiava a planta que
escapava do mato que dava, e eles eram de botando veneno,
arrancando isso... Então, a diferença na terra era que dentro de dez ano
a terra que nós plantava como feijão que is tirava média de trinta a
quarenta bolsa, plantava, trilhava com a enxada, colhê ou malha, e eles
não. Eles era de passá o veneno, remédio, carpi, eles queriam que a
lavoura tivesse mais limpinha, mas três, quatro anos as lavoura que eles
plantava tava morta. Eu me lembro duma lavoura que eu plantei, eu
plantei soja, e o meu vizinho pegô e plantô a terra dele. Ele tinha dez
colônia de terra, ele dava dois arqueiro, dois arqueiro era cinco hectare, e
eu plantei mais ou menos um arqueiro, a metade. Eu peguei e dei uma
desgaiada de enxada que a planta escapou do mato, e daí a soja depois de
escapá... Mato nenhum se cria e daí fomo colhê a soja, eu da minha planta
que era a metade desgaida eu colhi oitenta bolsa de soja e a dele que ele
fez...botô adubo, botô veneno, tirô quarenta, daí ele disse: Agora sim, eu vi
que não adianta carpi, limpando, botando veneno porque o Dário que
plantô a metade e nem limpô e colheu... (Dário, 14-10-2006)
Então, para romper com o discurso de adaptação, o caboclo que desejo
evidenciar, neste trabalho, é o ser brasileiro que, em suas práticas, manifesta uma
multiplicidade de ações/expressões. Assim, ele resiste a uma agricultura de
exportação, resiste à produção de monoculturas e atreve-se a preservar o que a
natureza tratou de criar. Portanto, levando em consideração os limites desta Tese,
recorro a alguns autores que tentaram conceitualizar a categoria caboclo, para que
esta escrita possa fazer a discussão e análise a partir dos registros e das imagens já
instituídas sobre o caboclo campesino
18
.
18
Aqui valem as contribuições de Paulo Rogers quando faz a crítica ao texto brasileiro a partir da análise da
categoria camponês-campesinato e, para isso, utiliza-se das contribuições de Pierre Bourdieu em seus
fundamentos: Um corpus Academicus seletivo, fechado, sem dar espaço para o Diverso, para o novo: Homens,
mulheres e crianças camponeses passivos, omissos, cabendo muitas vezes, em uma única página, peças de um
25
Encontra-se, no Dicionário de Luís da Câmara Cascudo (1972, p.193), uma
explicação etimológica sobre o caboclo: “Caboclo vem [do tupi] caá, mato, monte,
selva, e boc, retirado, saído, provindo, oriundo”. ronique Boyer (1999, p. 6)
reúne, numa síntese, um conjunto de definições de diversos autores feito sobre o
caboclo no qual afirmam:
O processo, cada vez mais abrangente, levando à inclusão de novas
populações nas definições de tapuio e de caboclo, aparece na obra do
Visconde de Beaurepaire. Tapuio é certamente o ´nome genérico aplicado
aos selvangens bravios no Brazil`, mas, escreve o autor, ´conservaram
[também] essa denominação os aborígenes já mansos. Além disso, o uso
do termo estendeu-se ´à generalidade dos mestiços, e neste caso
corresponde ao termo Caboclo`(1889:136). O significado atual de caboclo,
constituído por volta de 1895(Grenand e Grenand, 1990:28), é assim o de
habitante do interior, independente de sua origem: ´hoje, escreve Câmara
Cascudo nos anos 50, indica o mestiço, o popular, um caboclo da
terra`(1972, p.192)
Considerando a historiografia que trata da questão do caboclo, pode-se
perceber uma linguagem instituída que apresenta um ser selvagem, mas já
domesticado, cujas condições de existência estão dependentes de uma cultura
homogeneizante que o aceita desde que ele aceite os critérios e as regras da
sociedade moderna civilizada que, segundo Boyer (apud, 1999, p.6):
Após uma definição inicialmente restrita ao índio, "selvagem" ou
"manso", o termo caboclo passa também a qualificar o mestiço de índio
com branco. Nesse sentido, caboclo remete ao termo tapuio, cuja definição
foi tão flutuante quanto a dele no que tange aos grupos que deviam ser
assim chamados, bem como no que diz respeito ao seu suposto "grau de
civilização". José Veríssimo concebia o tapuio como "o filho legítimo da
raça americana" (1970:13), enquanto Armando Mendes o considerava
como "o indígena, o caboclo semi-civilizado, que vive entre a população
sertaneja" (s/d:90) e Alfredo A. da Mata, como o "caboclo civilizado" (1939,
p.304).
Diante dos discursos produzidos no texto acima, pode-se perceber que a
base do referencial que qualifica o caboclo de selvagem ou manso tem, como
parâmetro, as normas de comportamento e de conduta da civilização imposta,
civilização essa européia,
19
com influência forte, hoje, norte-americana. Um exemplo
é o mercado que oferece produtos cujas marcas apresentam modos de vida
jogo discursivo que exclui outros modos de vida, outros encontros, outros afectos. O camponês inventado,
instituído, passa a ser interpretado, um objeto de estudo (...), apenas bom para pensar” (2006, p. I).
19
Octavio Ianni, quando apresenta a obra Ariel, de José Enrique Rodó, afirma que a tese dessa obra é “(...) que
as nações latino-americanas podem beneficiar-se melhor das contribuições européias, em contraposição às norte-
americanas. Por sua história, bem como heranças culturais, a América Latina seria naturalmente beneficiária dos
modelos europeus. Ariel é uma contribuição fundamental para a compreensão do europeísmo que impregna o
pensamento e o modo de ser de amplos setores sociais das sociedades latino-americanas” (Rodo, 1991, p. 7).
26
urbanizados, enlatados, capitalizados, totalmente contrários aos modos de vida de
quem não dependia do mercado para viver
20
. Para Boyer (1999, p. 7):
Através dos séculos, o sentido do termo caboclo carregou uma forte
carga negativa para as populações que assim eram designadas. Câmara
Cascudo lembra que, quando sinônimo oficial de índio, "foi vocábulo
injurioso e El-Rei D. José de Portugal, pelo alvará de 4 de abril de 1755,
mandava expulsar das vilas os que chamassem aos filhos indígenas de
caboclos" (1972, p.192). (apud Boyer, p. 6) No início do século XX, Vicente
Chermont de Miranda mostra ainda clara desconfiança em relação ao
caboclo: ´Caboclo, s.m. Tapuio ou seu mestiço que não se exprime
no, completamente esquecido, nheengatu materno: ombreia com a
degenerada e entorpecida raça conquistadora, calças lustrosas, botinas,
ostenta rutilantes gravatas, dança polcas e valsas, chega a ser coronel ou
doutor, adquire maneiras cortesãs, mas sob a apatia atávica muito
esconso, sopita o ódio de raça. Orgulhando-se de pertencer à estirpe tupi,
despreza soberanamente o africano e seus mestiços` (1988, p.12-13)
Como lembra Foucault (2005), o procedimento exclusão define e autoriza,
através do seu mecanismo de interdição, quem tem direito a fala e, portanto, marca
essa fala nos registros que reproduzem imagens fundamentadas pela vontade de
verdade e pelo desejo de poder
21
. Segundo Boyer (1999, p. 7):
Mas esta definição, na qual brota uma notável aversão aos
colonizadores portugueses, aplica-se melhor às elites do interior
empenhadas em seguir as modas das capitais longínquas e em encontrar
elementos ideológicos lhes assegurassem sua dominação — do que a
seus modestos dependentes, pequenos agricultores e pescadores. A estes,
que revelariam de modo abrupto a natureza verdadeira dos nativos da
região, isto é, sem o verniz de civilização apresentado pelas elites, conviria
melhor a definição dada por Miranda (1988:86) do termo tapuio enquanto
"caboclo rude e ignorante".
Conforme se pode observar no texto acima, de longa data o caboclo vem
sendo estigmatizado como alguém desprovido de capacidade para conviver com
outros humanos de modo socializado, assim como enfatiza Foucault (2005), existe
uma separação e uma rejeição em torno do ser civilizado para o selvagem. Ou seja,
o caboclo é aquele que foi domesticado para conviver em sociedade, mas que não
merece regalo devido a sua ignorância
22
. De acordo Boyer (1999, p. 7):
20
“(...) suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos que m por função conjurar seus poderes e perigos, dominar
seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (Foucault, 2005, pp. 8-9)
21
“(...) o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por
que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. (Foucault, 2005, p. 10).
22
Aqui é possível fazer a comparação com o exemplo que Foucault faz sobre o louco: “Penso na oposição entre
razão e loucura. Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros:
pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância, não
podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no
27
nos dicionários publicados a partir dos anos 30, não é raro constar
uma definição de certa forma positiva de caboclo (mas não de tapuio). Por
exemplo, Raymundo Moraes, cujo objetivo declarado era estabelecer a
"verdade" da Amazônia, assinala que o "termo é affectuoso, empregado
com ternura meu Caboclo, Cabocla da gente" (1931:96). Alguns anos
depois, Alfredo A. da Mata nota um outro "significado popular" da palavra, o
caboclo como "homem distinguido" (1939:95). Essa mudança de tom para
tratar do caboclo parece ter ocorrido também no Nordeste. F. A. Pereira da
Costa, por exemplo, indica, em 1937, que se o vocábulo "out'ora tinha uma
expressão depreciativa, injuriosa mesmo ao infeliz aborígene [...] constitui
hoje, e vindo naturalmente já de longe, uma dicção familiar de affeto,
intima, carinhosa mesmo: Meu caboclo; Caboclo velho" (1937:135).
Acrescenta o autor que aplicado a mulheres, trata-se de um "tratamento
intimo, affectivo [...], e em tom interjectivo, [serve] como expressão de
admiração a de um porte elegante e de bello typo feicional: que cabocla
bonita!" (1937, p.133; ênfases no original).
Sendo os discursos um conjunto de acontecimentos históricos nos quais se
manifestam procedimentos de controle
23
, o texto acima apresenta um outro princípio
que propõe criar uma nova imagem do caboclo não menos selvagem e domesticado,
mas agora dócil e controlado. Assim, Foucault (2005, p. 26) considera que “O novo
não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta“
24
.
Outro registro sobre o caboclo na literatura brasileira dá-se através do
discurso médico-higienista
25
, bem como nos textos fundamentais da fase de
institucionalização das ciências sociais no Brasil
26
, como lembra Lima e Hochman
sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo; pode ocorrer também, em
contrapartida, que se lhe atribua, por oposição a todas as outras, estranhos poderes, o de dizer uma verdade
escondida, o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não
pode perceber”. (2005, pp. 10-11).
23
“É sempre possível dizer o verdadeiro; mas não nos encontramos no verdadeiro senão obedecendo às regras de
uma ´polícia` discursiva que devemos reativar em cada um de nossos discursos” (Foucault, 2005, p. 35).
24
Esse novo registro de expressão não significa que tenham desaparecido as conotações pejorativas associadas
ao termo. Em boa parte da literatura, "caboclo" permanece uma palavra injuriosa e negativamente definida. Além
do que, na realidade das relações sociais, o forte estigma associado ao termo caboclo faz com que as populações,
ainda hoje, não aceitem ser caracterizadas dessa forma. A multiplicação de significados refletiu, na verdade, a
preocupação crescente dos intelectuais da Amazônia a respeito das potencialidades do caboclo homem. (apud
Boyer, 1999, p. 7)
25
Cabe salientar quatro eventos significativos e fundantes do movimento sanitarista. Primeiro, o impacto
público da divulgação, também em 1916, do relatório da expedição médico-científica do Instituto Oswaldo Cruz,
chefiada por Belisário Penna e Arthur Neiva, ao interior do Brasil, em 1912, que revelava um país com uma
população desconhecida, atrasada, doente, improdutiva e abandonada, e sem nenhuma identificação com a pátria
(Albuquerque et al., 1991; Penna e Neiva, 1916). Segundo,a enorme repercussão de um discurso- tomado como
inaugurador do movimento pelo saneamento do Brasil- Miguel Pereira, pronunciado em outubro de 1916,
caracterizando o país como um imenso hospital. Terceiro, a repercussão dos artigos de Penna sobre saúde e
saneamento, publicados no jornal Correio da Manhã, entre 1916 e 1917, e depois reunidos em 1918, sob o título
de O saneamento do Brasil. Por último, a própria atuação da Liga Pró-Saneamento, entre 1918 e 1920, período
em que se inicia a implementação da reforma dos serviços de saúde federais. (Lima, Hochman, 2000, pp. 3-4)
26
“As ciências sociais em sua fase de institucionalização universitária, no período que se estende
aproximadamente de 1933 a 1964, mantiveram uma agenda de pesquisa em que o tema dos contrastes sociais e
culturais da sociedade brasileira - os dois ou os muitos Brasis- continuaram em destaque. Da mesma forma,
continuou em pauta o tema das possibilidades e das resistências à modernização, em uma nova versão do debate
28
(2000, p. 1): “marcada pela criação dos cursos universitários de sociologia e
antropologia” O caboclo é desenhado por um discurso que o culpabiliza frente às
mazelas do País, ou seja, o caboclo, na literatura brasileira, torna-se sinônimo de
não desenvolvimento, doença
27
coletiva, resistência ao processo de modernização
que a civilização estava produzindo, etc
28
.
A caricatura feita através da construção de um imaginário de maior expressão
no Brasil sobre o corpo caboclo é, neste estudo, o personagem criado por Monteiro
Lobato (1968, p. 271) conhecido por Jeca Tatu
29
. Um imaginário cuja produção,
segundo Foucault (2001, p. 95), “(...) justamente no discurso que vêm a se articular
poder e saber”.
Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem
baldio, semi-nômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela
na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem
chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da
propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão,
o pica-pau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e
sorna.
Essa é a moldura do homem rural brasileiro que reproduziu estigmas acerca
de sua vida na tentativa de impor-lhe regras de comportamento obediente às
exigências da civilização. O seu nomadismo encarado como preguiça, e o
intelectual sobre o progresso e civilização que envolveu os intelectuais de fins do século XIX e três primeiras
décadas do século XX. Refletindo sobre os conceitos de cultura rústica e de resistências culturais à mudança
social, verificamos a continuidade do estranhamento dos intelectuais diante de tantos Jecas-Tatus, resistentes aos
conselhos dos diferentes especialistas para tratar a ancilostomose, racionalizar o trabalho e mudar seus hábitos
mais arraigados e que, embora falando português, pareciam viver em uma outra sociedade” ( Lima; Hochman,
2000, p. 17).
27
Vi uma vez, depois de mais de três anos maciços de ausência do Brasil, um bando de marinheiros nacionais
mulatos e cafuzos descendo, não me lembro se de São Paulo ou de Minas, pela neve mole de Brooklyn.
Deram-me a impressão de caricaturas de homens.(...) A miscigenação resultava naquilo. Faltou-me quem me
dissesse então, como em 1922 Roquette-Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia, que não eram
simplesmente mulatos ou cafuzos os indivíduos que eu julgava representarem o Brasil, mas cafuzos e mulatos
doentes” (Freyre, 2006, p. 31).
28
A literatura brasileira opta pela concepção de raça inferior para desenvolver seus discursos e registros
reforçando a imposição de um modelo de vida frente aos caboclos: “A literatura sobre o tema indica que
dificilmente se poderia falar de pensamento social brasileiro e da presença do discurso higienista, sem referência
à noção de raça na elaboração de interpretações sobre o Brasil. Idéias de inferioridade racial compõem um
quadro explicativo sobre o país. Especialmente na segunda metade do século XIX, vê-se a expressiva influência,
entre as elites políticas e intelectuais, das teorias européias sobre inferioridade racial. Para alguns intelectuais, os
obstáculos representados pela base racial eram insuperáveis. Sob a influência de teóricos como Gobineau,
Agassiz e Lê Bom apontavam um programa intenso de imigração como única saída favorável. Dentre as diversas
correntes, destacavam-se os que afirmavam uma saída ´mais otimista` encontrando-a num processo progressivo
de ´branqueamento`do Brasil ”( Lima; Hochman, 2000, p. 8).
29
“Muito antes de Monteiro Lobato, viajantes, cronistas e escritores haviam se debruçado sobre as condições de
vida e os tipos humanos das áreas rurais. Isolamento, ignorância e ociosidade são os termos mais comuns citados
pelos autores de relatos de viagens, contos e crônicas” (Lima; Hochman, 2000, p. 9).
29
responsabilização com a sociedade, não foi pouco criticado no conto acima. Ao
contrário dessa critica, a sociedade nunca se reinventou para olhar esse nomadismo
que anunciava resistência a normas frente aos mecanismos de adaptação da
mesma sociedade. Em sua obra Urupês, Monteiro Lobato (1968, p. 281) não cessa
na contribuição da construção do imaginário acerca do caboclo quando afirma:
“Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!” .
Institucionaliza-se o estatuto do preguiçoso
30
, do ocioso, do desajeitado, do
feio, de acordo com os padrões sociais aprisionados no pacote de uma sociedade
preconceituosa e desigual. Portanto, o corpo caboclo é plagiado por uma literatura
seletiva, que limita e aprisiona as manifestações dos modos de viver caboclo num
discurso mutilador das possibilidades de transformação e criação dos agentes, dos
coletivos, dos seres na sociedade. Para Rogers (2006, p. 4):
Hierarquias de conjunto, corpos-muitlados por um ideário acadêmico sobre
o Outro e o com o Outro, em que o TB
31
parece, deste modo, moldar o
seu próprio objeto analisado: o camponês como criação imaginária
Assim, o próximo item pretende cartografar os territórios do saber e do poder
construídos a partir de algumas obras literárias brasileiras sobre o corpo caboclo e
suas manifestações nos seus modos de viver.
2.3. A literatura e a produção de um imaginário
É homem permanentemente fatigado. Reflete a preguiça invencível, a
atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto
contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas,
na tendência constante à imobilidade e à quietude. Entretanto, toda esta
aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-la
desaparecer de improviso. Naquela organização combatida operam-se, em
segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer
30
Já, o autor Mário de Andrade cria o personagem Macunaíma para romper com o estigma do personagem Jeca
Tatu de Monteiro Lobato. Em todo momento, na obra Macunaíma o herói sem nenhum caráter, o autor utiliza a
expressão: “Ai! que preguiça!...(1985, p 9) para manifestar uma outra idéia, ou seja, nem toda conquista valia
esforço que “pagava a pena” na expressão criada por MonteiroLobato. Mário de Andrade também fazia a crítica
ao discurso sanitarista cuja preocupação era de o Brasil retornar à situação colonial: “Porém, senhoras minhas!
Inda tanto nos sobra, por este grandioso país, de doenças e insectos por cuidar!... Tudo vai num descalabro sem
comedimento, estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes! Em breve seremos novamente uma colônia da
Inglaterra ou da América do Norte!...Por isso e para eterna lembrança destes paulistas, que são a única gente útil
do país, e por isso chamados de Locomotivas, nos demos ao trabalho de metrificarmos um dístico, em que se
encerram os segredos de tanta desgraça: ´Pouca Saúde e Muita Saúva, os Males do Brasil São` ” .(1985, p. 65).
31
O autor refere-se à sigla TB para Texto Brasileiro.
30
incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas. O homem
transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na
estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros
possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe,
prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do
relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro,
reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e
potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade
extraordinárias (Cunha, 2003, p. 116).
Neste item, pretendo apresentar alguns discursos registrados na literatura
brasileira que interferiram profundamente na produção de um imaginário acerca do
caboclo com seus tons e sons, num movimento instituído e instituinte
32
, e, assim,
foram escolhidas as obras de Monteiro Lobato, ousando uma rápida viagem literária
para viabilizar este conhecimento, bem como algumas contribuições de outros
autores que transversalizaram este discurso.
No que se refere ao pensamento de Monteiro Lobato (1968, p. 292), é
possível afirmar que esse autor oferece momentos de reprodução do estigma sobre
o corpo caboclo, bem como o desejo de sua transformação. Em sua obra Urupês
33
,
Lobato apresenta uma imensa repulsa ao modo de viver caboclo, afirmando que “o
caboclo é o sombrio urupê de pau pobre a modorrar silencioso no recesso das
grotas. Só ele não fala, não canta, não ri, não ama. ele, no meio de tanta vida,
não vive...”. A afirmação decorre das denúncias que o autor fazia sobre as
incansáveis queimadas na mata brasileira, culpabilizando o caboclo por tal ato
34
.
Contudo, essa postura de repulsa ao corpo caboclo transforma-se anos depois de
sua obra, mas não com força suficiente para romper com estigma estabelecido
(1968, p. 54):
num tópico de `Mundo da Lua`(escrito por volta de 1914) afirmava
que econômica, espiritual, mental e científiamente continuávamos colônia.
32
“Instituinte é o processo mobilizado por forças produtivo-desejante-revolucionárias, que tende a fundar
instituições ou a transformá-las, como parte do devir das potências e materialidades sociais” (Baremblitt, 1998,
p. 178).
33
Encontra-se, no dicionário da Língua Portuguesa, o significado da palavra Urupê: “Fungo poliporáceo; orelha-
de-pau” (Ferreira, 2002, p. 698). Poliporáceo, “família de fungos que se nutrem de matéria orgânica em
decomposição” (idem, p. 543).
34
“A nossa montanha é vítima de um parasita, um piolho da terra, peculiar ao solo brasileiro como o ´Argas`o é
aos galinheiros ou o ´sarcoptes mutans`à perna das aves domésticas. Poderíamos, analogicamente, classificá-lo
entre as variedades do ´Porrigo decalvans`, o parasita do couro cabeludo produtor da ´pelada, pois que onde ele
assiste se vai despojando a terra de sua coma vegetal até cair em morna decrepitude, nua e descalvada” (Lobato,
2005, p. 161).
31
E noutro tópico, mais ou menos da mesma época, dizia estarmos divididos
em duas classes: embaixo, a imensa massa dos Jecas, meros puxadores
de enxada; e em cima, um bacharelismo furiosamente apetrechado de
diplomas. E no seio? Perguntava ele. Nada. ´A classe fecunda, a classe
obreira do progresso industrial, essa não temos`. ´O problema`,
acrescentava, ´é abrir à classe de baixo o caminho à imediata. Temos de
descascar o Jeca na Escola Primária, ensinando-lhe depois, na
profissional, a utilizar-se da leitura e da técnica.
Monteiro Lobato nasceu no ano de 1882 e morreu em 1948
35
. O escritor viveu
66 anos de profunda competência literária e envolvimento com as questões sociais
da época, contribuindo para os debates econômicos, sociais e políticos em
sociedade. Isso, numa época na qual o Brasil apresentava (desde sua
colonização) profundas desigualdades. Edgar Cavalheiro, no comentário sobre Vida
e Obra de Monteiro Lobato (1968, p.4), afirma que Lobato foi, na obra Urupês:
Lutador intimorato, sinceramente consternado com a situação de
desigualdade econômica da sociedade em que viveu, desde o seu livro de
estréia, tomou posição ao lado dos mais fracos contra os mais fortes, dos
oprimidos contra os opressores.
No entanto, o que desejo, aqui, é trazer alguns registros da obra de Monteiro
Lobato que marcaram o modo de agir e de viver do caboclo brasileiro. Mas, este
texto reconhece, através da pesquisa bibliográfica feita em algumas obras de
Monteiro Lobato, como Urupês
36
, Idéias de Jeca Tatu
37
e Mr. Slang
38
e o Brasil, que
o escritor/autor, em sua trajetória de vida pessoal e literária desempenhou um
importante lugar crítico frente à sociedade e ao governo do País, cujo marco de
atuação ocorreu no comício popular em apoio aos deputados e senadores
comunistas que sofreram cassação. Nesse acontecimento, Lobato (1968, p. 57)
distribuiu uma parábola que conta a história do Rei Vesgo e de seu povo. Com esse
ato, o escritor deseja condenar as práticas populistas e autoritárias no País, na
década de 40. Aqui vale conhecer um trecho final do texto manifesto:
35
Em 1941, Lobato foi preso devido ao fato de ter enviado ao presidente Getúlio Vargas uma carta sugerindo a
organização do ferro e do petróleo no Brasil, para acabar com as mazelas do País. Ficou preso por três meses,
,,sendo o suficiente para adoecer, sendo essa a causa da futura morte (Lobato, 1968).
36
Urupês foi o primeiro livro de Monteiro Lobato, marcando a sua história como presença literária no Brasil
voltado para o mundo vivido do povo onde deflagra os problemas do País.
37
Nessa obra, Lobato pretende apresentar a caricatura do Brasil com suas marcas da colonização e a criação de
um estilo a ser reproduzido no País: “Mas uma coisa que impede o crescimento e a plena floração da nossa
caricatura: a restrição cada vez maior da liberdade de crítica ao governo. E sem liberdade da mais ampla, a
caricatura fenece como a gramínea que tem sobre si um tijolo. Perde a clorofila. Descora” (Lobato, 1967, p. 21).
38
No que se refere a essa obra, o autor transforma a imagem de atrasado do personagem Jeca para moderno,
quando afirma que modernizou sua propriedade, introduziu novas lavouras e tecnologia, e aprendeu a falar
inglês. Ao fim da história, um ensinamento moral: Jeca Tatu transformara-se não apenas num homem rico, mas
em incansável educador sanitário, que transmitia a seus empregados todos os conhecimentos que aprendera.
Morreu muito idoso, sem glórias, mas consciente de que havia cumprido sua missão (Lobato, 1957).
32
Este comício tem essa significação. É um protesto do povo contra as
primeiras carroçadas de terra que o nosso rei, sob o pretexto de arrancar o
cragoatá espinhento do comunismo, tirou do nosso Morro da Democracia.
Cesteiro que faz um cesto faz cem. Quem tira uma carroçada de terra, tira
mil. Se não reagirmos energicamente, um dia estaremos privados do nosso
morro e com um terrível soba dominando toda a planície.
Contudo, conforme afirmado antes, o que interessa neste estudo são os
registros que marcam o corpo caboclo e o seu modo de viver. Assim, a atenção será
dada a dois textos que lançaram a imagem
39
do caboclo através da criação do
personagem Jéca Tatu no cotidiano brasileiro. Aqui, serão apresentados alguns
fragmentos dos textos Velha Praga e Urupês para a análise de um discurso que
marcou os corpos dos caboclos no território brasileiro. Então, não se trata de
analisar o sujeito/autor que fala, mas sim a função enunciativa que impõe regras
para constituir um discurso que será compreendido num determinado tempo e
espaço. Lobato (2005, p. 161) enfatiza:
É de vê-lo surgir a um sítio novo para nele armar a sua arapuca de
agregado; nômade por força de vagos atavismos, não se liga à terra, como
o campônio europeu “agrega-se” tal qual o “sarcopte” , pelo tempo
necessário à completa sucção da seiva convizinha; feito o que, salta para
diante com a mesma bagagem com que ali chegou.
É possível observar que o nomadismo
40
é reconhecido no texto como um
modo de existência inquietante que atrapalha o processo civilizatório, o qual não
considera esse modo nômade como um movimento que resiste à demarcação de um
território privado que não deseja enraizar-se em lugar algum. Assim, constrói-se um
pensamento que reproduz códigos de verdade sobre as manifestações da existência
do caboclo. Apresenta-se um discurso que enuncia uma realidade aprisionada num
padrão comportamental seletivo. Lobato (2005, p. 162) sustenta:
Depois ataca a floresta. Roça e derruba, não perdoando ao mais belo
pau. Árvores diante de cuja majestosa beleza Ruskin choraria de comoção,
ele as derriba, impassível, para extrair um mel-de-pau escondido num oco.
Pronto o roçado, e chegado o tempo da queima, entra em funções o
isqueiro. Mas aqui o ´sarcope` se faz raposa. Como não ignora que a lei
impõe aos roçados um aceiro de dimensões suficientes à circunscrição do
fogo, urde traças para iludir a lei, cocando destarte a insigne preguiça e a
velha malignidade..
39
Nesse contexto, Castoriades (1995, p. 415) afirma: “A maneira pela qual, de cada vez, tudo faz sentido, e o
sentido que faz, provém do núcleo de significações imaginárias da sociedade considerada”.
40
“A definição de cultura cabocla e suas diferenças em relação às tradicionais culturas camponesas européias
referiam-se também ao nomadismo e à idéia do uso predatório da terra e dos recursos naturais” (Lima;
Hochman, 2000, p. 16).
33
Toda a formação de uma sociedade colonial não é questionada, nesse texto,
o que aparece é a culpabilização do homem que vive no campo frente às imposições
tecnológicas, as imposições de uma cultura que produz práticas usurpadoras da
natureza. Portanto, trata-se de pensar que produção é essa, ou seja, considerar as
condições que vinculam aspectos históricos, sociais e materiais às regras sociais
postas no contexto. Lobato (2005, p. 164) ressalta:
Curioso este preceito:”ao caboclo, toca-se”. Toca-se, como se toca
um cachorro importuno, ou uma galinha que vareja pela sala. E tão afeito
anda ele a isso, que é comum ouvi-lo dizer: “Se eu fizer tal coisa, o senhor
não me toca?” (...). No vazio de sua vida semi-selvagem, em que os
incidentes são um jacu abatido, uma paca fisgada n´água ou o filho
novimensal, a queimada é o grande espetáculo do ano, supremo regalo
dos olhos e dos ouvidos. O caboclo é uma quantidade negativa. Tala
cinqüenta alqueires de terra para extrair deles o com que passar fome e frio
durante o ano. Calcula as sementeiras pelo máximo da sua resistência às
privações. Nem mais, nem menos. “Dando para passar fome”, sem virem a
morrer disso, ele, a mulher e o cachorro- está tudo bem, assim fez o pai, o
avô, assim fará a prole empazinada que naquele momento brinca nua no
terreiro.
Essa caricatura de um ser despreocupado com a destruição da natureza, que
não tem consciência para analisar o que se passa em sua volta e com preguiça para
decidir sua vida, cola, no corpo caboclo, uma imagem pejorativa sobre o selvagem,
evidenciada num discurso que deseja objetivar o indivíduo
41
. A dobra
42
capitalista
que compõe as forças que atravessam as relações do ser no mundo não é
problematizada. O que acaba marcando este discurso é o estigma
43
de um ser que
ignora todo o processo civilizatório, mas percebo que esse discurso não se abre às
diferentes manifestações no campo social
44
.
A resistência é como batalhas a serem
travadas contra o governo da individualização (Foucault, 1995).Essas batalhas não
41
Em arqueologia do saber, Foucault afirma que um enunciado “está ligado a um referencial que não é
constituído de coisas, de fatos, de realidades, ou de seres, mas de leis de possibilidade, de regras de existência
para os objetos que se encontram nomeados, designados ou descritos, para as relações que se encontram
confirmadas ou negadas”. (2002, p. 103).
42
“(...) nós poderíamos dizer que são essas múltiplas dobraduras do tecido social que vão produzir diferentes
modos de expressão da subjetividade. (...) A noção de dobra não é, portanto, independente do campo social: a
produção de um certo tipo de relação consigo e com o mundo é coextensiva às forças que atravessam/constituem
um determinado arranjo do tecido social” (Silva, 2003, p. 183).
43
Goffman (1998, p. 11) afirma: “Os gregos que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o
termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se preocupava em evidenciar alguma coisa de
extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no
corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor- uma pessoa marcada, ritualmente
poluída, que devia ser evitada, especialmente em lugares públicos”.
44
Para Silva (2003, p. 178), “é preciso partir de um movimento de desnaturalização do social, ou seja, um
movimento que cessa de tomar o social como uma simples evidência fundada no senso comum e passa a
problematizá-lo em função de um campo específico forjado a partir de um determinado conjunto de práticas”.
34
são aceitas, e sim se caracterizam por uma linguagem instituída de práticas
atravessadas no mundo, no cotidiano rural. Lobato (2005, pp. 167-168) salienta:
Porque a verdade nua manda dizer que entre as raças de variado
matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e
o aborígene de tabuinha no beiço, uma existe de cócoras, incapaz de
evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a e de .
Quando Pedro I lança aos ecos o seu grito histórico e o país desperta
estrouvinhado à crise duma mudança de dono, o caboclo ergue-se, espia e
acocora-se de novo. [...] o caboclo olha, coça a cabeça, magina e deixa
que do velho mundo venha quem nele pegue de novo.[...] o caboclo
continua de cócoras a modorrar..[...] Nada o esperta. Nenhuma ferroada o
põe de pé. Social, como individualmente, em todos atos da vida, Jeca,
antes de agir, acocora-se. De ou sentado, as idéias se lhe entramam, a
língua emperra e não de dizer coisa com coisa. De noite, na choça de
palha, acocora-se em frente ao fogão para ´aquentá-lo`, imitado da mulher
e da prole. Para comer, negociar uma barganha, ingerir um café, tostar um
cabo de foice, fazê-lo noutra posição será desastre infalível. de ser de
cócoras.
uma distinção entre os povos, a qual cria uma raça inferior submetida ao
desenvolvimento econômico, social, cultural ofertado pelo progresso
45
. Essa raça
que o discurso considera como a falta de capacidade para erguer-se com o objetivo
de enfrentar as forças do poder constituído se torna aprisionada pelo olhar marginal
ressaltado pela literatura brasileira. Esse mesmo discurso resultante das produções
sociais capitalistas, portanto, subjetivações, impõe um pensamento sobre o corpo
caboclo e o veicula, evidenciando um ser que não luta, que não busca modificar sua
realidade. No entanto, esquece tal discurso que os povos e o povo brasileiro
sempre, na historiografia, resistiram à imposição com luta e quando se submeteram
não foi porque não tivessem capacidade, mas sim porque numa relação entre servos
e tiranos
46
sempre cumplicidade e acordo. Lobato (1968, p. 281 e p. 284)
destaca:
45
“No Brasil, as relações entre os brancos e as raças de cor foram desde a primeira metade do século XVI
condicionadas, de um lado pelo sistema de produção econômica a monocultura latifundiária; do outro, pela
escassez de mulheres brancas, entre os conquistadores. O úcar não abafou as indústrias democráticas de
pau-brasil e de peles, como esterilizou a terra, em uma grande extensão em volta aos engenhos de cana, para os
esforços de policultura e de pecuária. E exigiu uma enorme massa de escravos. A criação de gado, com
possibilidade de vida democrática, deslocou-se para os sertões. Na zona agrária desenvolveu-se, com a
monocultura absorvente, uma sociedade semifeudal - uma minoria de brancos e brancarrões dominando
patriarcais, polígamos, do alto das casas-grandes de pedra e cal, não os escravos criados aos magotes nas
senzalas como os lavradores de partido, os agregados, moradores de casas de taipa e de palhas vassalos das
casas-grandes em todo o rigor da expressão” (Freyre, 2006, pp. 32-33).
46
Em o Discurso da Servidão Voluntária, Etiene La Boétie afirma: “Não pode haver amizade onde está a
crueldade, onde está a deslealdade, onde está a injustiça; e entre os maus, quando se juntam, uma
conspiração, não uma companhia; eles não se entre-amam, mas se entre-temem; não são amigos, mas cúmplices”
(2001, pp. 35-36).
35
Quando comparece às feiras, todo mundo logo adivinha o que ele
traz: sempre coisas que a natureza derrama pelo mato e ao homem
custa o gesto de espichar a mão e colher- cocos de tucum ou jissára,
guabirobas, bacuparis, maracujás, jataís, pinhões, orquídeas, ou artefatos
de taquara-poca-peneiras, cestinhas, samburás, tipitis, pios de caçador; ou
utensílios de madeira mole- gamelas, pilõezinhos, colheres de pau. Seu
grande cuidado é espremer todas as conseqüências da lei do menor
esforço e nisto vai longe. Começa na morada. Sua casa de sapé e lama
faz sorrir aos bichos que moram em toca e gargalhar ao joão-de-barro.
Pura biboca de bosquímano. Mobília, nenhuma. A cama é uma espipada
esteira de peri posta sobre o chão batido.
Da terra só quer a mandioca, o milho e a cana. A primeira, por ser um
pão amassado pela natureza. Basta arrancar uma raiz e deitá-la nas
brasas. Não impõe colheita, nem exige celeiro. O plantio se faz com um
palmo de rama fincada em qualquer chão. Não pede cuidados. Não ataca a
formiga. A mandioca é sem vergonha..
Com que autoridade a literatura se coloca no lugar de quem pode caracterizar
uma vida heterogênea, mutante, criativa? Que discurso invalida o modo de viver de
uma multidão? O desejo de reproduzir a imagem de subordinado e domesticado
frente à civilização nega o que existe em sua frente: a composição
desterritorializante que rompe fronteiras do padrão e da regra dos comportamentos
para poder ser o que quiser e poder transformar-se num movimento intempestivo
vibrátil.
Os registros tornam-se modelos, e os modelos apodrecem, apodrecem
porque não carregam o movimento micro-revolucionário do cotidiano, não
reconhecem os saberes a sua frente, não respeitam a importância das trajetórias e
das histórias que se realizam e se metamorfoseiam todos os dias. A não-reprodução
de valores morais
47
, que servem para mortificar iniciativas, expressões, processos
autogestionários, são linhas diversas desenhadas por devires desobedientes que
buscam uma outra geografia numa nova estética. Lobato (1968, p. 286) sustenta:
O fato mais importante de sua vida é sem dúvida votar no governo.
Tira nesse dia da arca a roupa preta do casamento, sarjão furadinho de
traça e todo vinacado de dobras; entala os pés num alentado sapatão de
bezerro; ata ao pescoço um colarinho de bico e, sem gravata, ringindo e
47
“Esta é a longa história da origem da responsabilidade. A tarefa de criar um animal capaz de fazer promessas,
percebemos, traz consigo, com condição e preparação, a tarefa mais imediata de tornar o homem até certo
ponto necessário, uniforme, igual entre iguais, constante, e, portanto, confiável. O imenso trabalho daquilo que
denominei moralidade do costume (...) o autêntico trabalho do homem em si próprio, durante o período mais
longo da sua existência, todo esse trabalho pré-histórico encontra nisto seu sentido, sua justificação, não obstante
o que nele também haja de tirania, dureza, estupidez e idiotismo: com ajuda da moralidade do costume da
camisa-de-força social, o homem foi realmente tornado confiável” (Nietzsche, 2006, pp. 48-49).
36
mancando, vai pegar o diploma de eleitor às mãos do chefe Coisada, que
lho retém para maior garantia partidária. Vota. o sabe em quem, mas
vota. Esfrega a pena no livro eleitoral, arabescando o aranhol de
gatafunhos a que chama ´sua graça`.
Refletir os entremeios, (Pêcheux, 2006), do discurso torna-se um princípio
importante da análise, portanto, essa análise serve como dispositivo frente aos
registros amortecidos. A descrição textual terá importância na medida em que se alia
ao campo de análise que atravessa o discurso, sendo este considerado um
acontecimento. Então, refletindo os entremeios de um discurso que marca um
campo de preconceitos que classifica, seleciona e estigmatiza o caboclo é o que
parece apresentar o texto de Lobato. O poder sobre a vida numa reversão de
valores não está sendo evidenciado pelo autor, esse poder, que é força constante
dos corpos que não se deixam controlar totalmente, incomoda a civilização do
branqueamento.
Na historiografia brasileira, é possível encontrar registros sobre a
manipulação da participação política do povo, e isso não desejo negar, mas a
aproximação política deveria dar-se numa relação de encontro capaz de despertar
vontade em cada agente em manifestar suas idéias, seus desejos de mudança e
suas sugestões para uma vida nova, mas isso se sabe que “nunca” foi objetivo da
colonização e de seus resquícios. Assim, entendo que, nesse texto, Lobato não
pretende fazer discussão sobre a imposição colonial e as brechas que o povo cria
para reinventar suas vidas. Lobato (1968, p. 291) destaca:
Egresso à regra, não denuncia o nosso caboclo o mais remoto traço
de um sentimento nascido com o troglodita. Esmerilhemos o seu casebre:
que é que ali denota a existência do mais vago senso estético? Uma
chumbada no cabo do relho e uns ziguezagues a canivete ou fogo pelo
roliço do porretinho de guatambu. É tudo. Às vezes surge numa família um
gênio musical cuja fama esvoaça pelas redondezas. Ei-lo na viola:
concentra-se, tosse, cuspilha o pigarro, fere as cordas e ´tempera`. E fica
nisso, no tempero.
O que pode ser mais cruel do que falar sobre alguém sem sua autorização? O
que pode ser mais cruel do que tentar caracterizar uma vida que não é sua e, por
isso, correr o risco de construir uma caracterização ignorante. Subestimar o saber e
a capacidade de conhecer de uma multidão é prática da cultura capitalista. Tornar
rotina um discurso que descreve o que não é possível ser descrito é prática
recorrente do mundo “erudito”. Condenar o corpo a uma simples existência funcional
37
é um modo de controlar suas manifestações condicionando-o a uma interpretação
racional e, assim, desconsiderar um corpo desterritorializado, sem órgão, nômade,
potente. Assumir um social conduzido por agentes que produzem acontecimentos
revolucionários não foi expressão dos textos Velha Praga
48
e Urupês
49
, de Monteiro
Lobato. E são esses tipos de práticas impositivas que construíram o pensamento
hegemônico brasileiro. Os equipamentos para tal perspicácia foram sendo utilizados
em diferentes estabelecimentos, contudo, o de grande expressão coletiva sempre
foram as escolas, que agiram direto na formação de uma cultura domesticada, e a
interferência sutil da televisão e de seus meios de comunicar seus discursos.
Em vista do exposto, no próximo capítulo, pretendo apresentar uma outra
proposta, um outro modo de registrar as manifestações do viver coletivo no
cotidiano. Apresentar um outro caboclo numa escrita que respeita o que não
conhece e, portanto, entende que não dará voz a quem parece o poder falar,
porque este já há muito tempo fala, e foi a sociedade que ainda não o escutou.
48
Em entrevista para Silveira Peixoto, Monteiro Lobato explica a origem do nome Urupê: “- Onde foi buscar
este nome - Urupês? - Recordação de infância. Quando em menino minha mãe me mandava fazer qualquer coisa
e eu mostrava corpo mole, ela: ´Anda, menino! Parece um urupê de pau podre!` Esse nome urupê ficou-me na
cabeça. Afinal um dia, quando precisei classificar a classe do Jeca, ou do homem da roça, o nome que me acudiu
foi esse – e acabou denominado-me também o livro” (Landers, 1988, p. 42).
49
“Um outro fator de extrema importância (...) é que (...) compreendemos sua impaciência com o Jeca, pois ele
aqui é o seu agregado, o trabalhador dentro de sua fazenda e o incêndio que promove, como ele diz, é pessoal.
Em Velha Praga isso não se dá. O Jeca passa a ser impessoal ou coletivo, fora dos seus domínios, queimando
uma serra- a da Mantiqueira- que não lhe pertence. Aqui explica-se a frieza e a distância em que se colocou
Monteiro Lobato diante do Jeca no momento de sua retratação. Mas é em Velha Praga que o público toma
conhecimento oficialmente do Jeca Tatu e das suas características repulsivas” (Landers, 1988, p. 45).
37
3. Os nexos entre: a Cartografia, a narrativa e o Serviço Social
Quando se fala em cartografia, é comum surgirem muitas dúvidas em torno
desse analisador. A cartografia surge no universo acadêmico como mais uma
proposta de se movimentar em pesquisa. Não é uma categoria comum nas ciências
humanas, nem nas ciências sociais aplicadas, mesmo que seja bastante utilizada
pela psicologia institucional e social. Sabe-se, também, que a geografia, sim, de
longa data, utiliza-a, claro com um outro sentido, que é o de mapeamento de
territórios e de fronteiras, sendo diferente do enfoque que desejo dar neste texto. No
entanto, no que se refere ao Serviço Social, ela ainda se mantém desconhecida
frente ao todo da profissão, aparecendo de forma tímida e paulatina.
Contudo, para apresentar esta pesquisa foi feita a escolha pela Cartografia no
modo de produzir dados e pela Narrativa no modo de conduzir a análise dos dados,
devido ao envolvimento com essas propostas algum tempo em práticas de
supervisão de estágio, orientação de Trabalho de Conclusão de Curso, bem como
acompanhamento em grupo de estudo. Todas essas práticas envolveram
acadêmicos do Serviço Social. Mas a proposta, aqui, não é em defender a
cartografia como método, e sim como o modo de fazer, de olhar, de escutar, de se
movimentar no acontecimento da pesquisa. Segundo Rolnik (2006, p. 23):
Para os geógrafos, a cartografia diferentemente do mapa:
representação de um todo estático é um desenho que acompanha e se
faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem.
Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse
caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de
certos mundos sua perda de sentido e a formação de outros: mundos
que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais
os universos vigentes tornaram-se obsoletos.
Assim, para conduzir a apresentação desta proposta, inicio este item
manifestando para a profissão de Serviço Social, em especial, os fluxos deste desejo
que contribuíram para o movimento desta produção. Logo após, é feita a
apresentação da escolha pela narrativa, tentando evidenciar a diferença entre narrar
e relatar, ao apresentar aos leitores que o primeiro acontece numa escolha política
frente a um modo de contar as manifestações caboclas cuja neutralidade não
acontece neste registro. Finalmente, então exponho a proposta da cartografia como
prática de produção de dados.
38
3.1. Abrem-se as cortinas: apresentando a proposta para o Serviço
Social
Colocado o desafio para produzir um texto capaz de apresentar análises e
posicionamentos que venham a contribuir também para a formação de Serviço
Social de forma arriscada, tento sintetizar algumas linhas de discussão. Linhas em
movimento e em metamorfose.
Portanto, a proposta construída neste texto é de trazer possibilidades de
análises que não são novas, mas que, para a profissão do Serviço Social, mostram-
se, ainda, de forma tímida, através de algumas produções acadêmicas em
diversas Universidades do Brasil. Um exemplo disso é a Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande Sul, que comporta, em seu acervo de dissertações e de
teses do Serviço Social, escritas ousadas que buscam linhas de fuga da hegemonia
imposta sobre o saber científico
53
.
Mas que análises são essas? Que possibilidades estão sendo faladas?
Funcionalistas? Positivistas? Fenomenológicas? Dialético-marxistas? Teorias
marxianas? Não, pois essas compõem a estrutura curricular acadêmica nas
escolas, faculdades, cursos de Serviço Social no Brasil. Estou-me referindo à
produção teórica a partir do pensamento foucaultiano e de autores que dialogam
com este, como Felix Guattari e Gilles Deleuze, que vão oferecer, por exemplo, a
Cartografia como um modo de produzir conhecimento.
Assim, com a liberdade de viajar por outros caminhos antes não conhecidos,
reconheço, no Serviço Social, uma profissão que se caracteriza por ser crítico-
interventiva e, por isso, possibilita esta viagem, pois se condenamos os cárceres que
controlam e impedem a vida da população em suas diversas roupagens não seria
possível pensar que, ousando outros caminhos, isso estaria destruindo, fatalmente,
uma profissão que se descobre a cada dia. Sendo uma categoria profissional crítica,
acredito que busca contribuir para que, também, possa romper com a perversidade
53
Dissertações defendidas no ano de 2000, cujos títulos foram: Da Invenção do Social ao Serviço Social, para
além da sobrevivência, de Mari Aparecida Bortoli, e Práticas de Gestão e Modos de Subjetivação do Trabalhador
Público: Uma Cartografia à Luz do Tempo de Clenir Maria Moretto. Tese defendida ano de 2005 cujo título foi:
O Laudo Social: Da Verdade Constituída à Verdade Constituinte, de Dionizia Portella Ghiggi. Os três trabalhos
foram orientados pela professora Drª. Marilú Fontoura de Medeiros no Programa de pós-graduação da Faculdade
de Serviço Social.
39
desta sociedade e não apenas mantê-la como é conhecida em sua historiografia.
Portanto, é preciso pensar que, a cada momento de relação e de questionamento
nos lugares de atuação profissional, é necessário nos auto-analisarmos e isso
significa processo coletivo.
Conseqüentemente, desejo aproveitar a contribuição de Virginia Kastrup
(1999, p. 18), quando salienta a importância de intercessores, ou seja,
Alianças que se configuram na atualidade é praticar a história do
presente. História difícil, pois depende da captação de linhas, movimentos,
fluxos, devires, forças e tendências, e não do apoio em estratos, teorias,
sistemas que foram sedimentados ao longo do tempo.
Desse modo, os intercessores são alianças que vão criando práticas capazes
de eruptar com o estabelecido, com os equilíbrios e com as harmonias de uma
unidade não una, com a conservação de uma ordem imposta. Buscar outras escritas
com novos companheiros de viagem que incluem tanto movimentos sociais como
autores da filosofia, da psicologia, da pedagogia, entre outros, é desenhar uma
profissão que se comunica em diversos canais. Para Kastrup (1999, p. 19):
... os intercessores realizam uma operação de fecundação. Os novos
intercessores forçam a pensar, a problematizar... Na atualidade, eles
apontam uma direção, mas é preciso abrir caminhos através de
experimentações conceituais e práticas, que exigem grande atenção,
trabalho e disposição de riscos. A pergunta é, portanto, oportuna: que
novas alianças devemos estar fazendo hoje, em que vizinhanças devemos
estar executando o nosso trabalho... ?
As forças que desenham esta busca são forças de desejo pela produção e
não por um desejo adulterado através de definições infantilizadas pela sociedade de
controle. Essa sociedade persiste em impor um outro desejo conhecido, que é o
desejo conservador do que está instituído. No entanto, o tempo anseia por
composições que, no ritmo da dança, possam estar livres de perseguições e
preconceitos cientificistas. Nessas linhas de fuga, e aqui entendo este como espaço
de reinventar uma outra produção num mesmo território, de uma explicação
enrijecida sobre a sociedade, surge uma nova paisagem que apresenta arco-íris e
tempestades, estrelas que orientam direções e desorientam verdades, que conectam
e se desconectam a cada disparo, ou seja, a cada novo caminhar.
O desejo não tem caráter restitutivo, tem caráter essencialmente
produtivo-revolucionário e não é uma força separada das que animam a
vida social e natural... Trata-se de aprender a pensar um desejo
40
essencialmente produtivo e aprender a pensar uma produção, dita no
sentido amplo, que não pode ser senão desejantes, na medida em que as
subjetivações estão essencialmente envolvidas nestes processos
produtivos... (BAREMBLITT, 1998, p. 65).
A defesa dos intercessores não ocorre para convencer que exista uma única
competência para analisar a sociedade e suas relações, pois por conta desse
discurso não serviria, uma vez que se caracterizaria como uma envergadura e,
assim, destruiria os espaços que se abrem. Mas, antes, é um aliado em territórios
institucionalizados, como prefeituras, através de suas secretarias, ou em outros
lugares de atendimento à população, como: hospitais, presídios, comunidades,
diversos estabelecimentos onde circulam diversas instituições. Com os
intercessores, é possível trabalhar com conceitos que ofereçam a análise do
cotidiano que considere os diversos processos. “... O processo implica a idéia de
uma série de ruptura permanente dos equilíbrios estabelecidos” (GUATTARI;
ROLNIK, 2000, p. 321).
Então, não será a proposta, aqui, de utilizar intercessores capazes de afirmar
que nada é possível ser feito e que “tudo não presta”. Ao contrário, a existência de
intercessores no Serviço Social e, neste caso, na escrita desta Tese evidencia a
força da contribuição da cartografia como intercessor, sendo esta a arte de
pesquisar manifestações, lutas, conquistas, derrotas, desencontros, potencialidades,
resultantes de acontecimentos que se registram no dia-a-dia e, assim, essa arte
qualifica a profissão em todos os seus movimentos. Aqui, também, é possível avistar
outros intercessores, como: análise institucional e a esquizoanálise, mas não são,
neste momento, objetivo desta escrita.
Cartografar é poder conhecer as relações nas desterritorializações possíveis.
O coletivo desenha o marco de invenções que se misturam, não de forma confusa, e
sim múltipla, pulsando movimentos que não permitem mais apenas controles
antiprodutivos. Conseqüentemente, é preciso ser relação, ou seja, o se perceber
fora dos processos, das metamorfoses, mas penetrado por estes onde se conectam
e se desconectam a cada descoberta sobre as diferentes práticas, relações, ações,
convivências, entre outros tantos movimentos realizantes a cada instante do
cotidiano. Por isso, aqui, pretendo romper com a idéia de que o fato de utilizar esta
análise sobre a prática social não é para reduzi-la a uma analise que busca
perseguir as pessoas que puncionam diversas práticas, nem para desconsiderar o
41
Serviço Social utilizando outros intercessores, mas, antes, para dizer que ele pode
mais e que seu coletivo manifesta esse querer, porque “a teoria não expressará,
não traduzirá, não aplicará; ela é uma prática” (FOUCAULT, 1996, p. 71). Ou seja, a
cada momento em cada espaço, surge nova criação resultante de diversas histórias.
Ao longo da primeira incursão, o cartógrafo vai logo se dando conta
de que naquele lugar está havendo uma verdadeira revolução no modo de
produção do desejo. se fala em mudança. A impressão que ele tem é
que está tudo de pernas pro ar. E parece que a inteligência, a
sensibilidade, a percepção, os sonhos, os costumes, a sensibilidade...
encontram-se em plena mutação. (ROLNIK, 2006, p. 92).
Um processo muito expressivo registrado pela cartografia é a autogestão que
existe em diversos grupos que compõem a sociedade e, neste caso, no grupo que
compõe esta pesquisa. Esta não é estática e vitalícia, se trata de uma autogestão
que surge em determinados momentos, garantindo, através de suas ações, romper,
enfrentar e resistir às imposições de forma criativa e inovadora. Assim, autogestão
implica uma criatividade independente a partir da gestão que surge por dentro das
ações definidas por seus agentes. “As comunidades instituem-se, organizam-se e
estabelecem-se de maneiras livres e originais, dando-se os dispositivos necessários
para gerenciar suas condições e modos de existência” (BAREMBLITT, 1998, p. 157).
A proposta aqui é, então, pensar que os fluxos existentes no cotidiano podem,
também, oferecer caminhos mediante rumos que não são mais estabelecidos
verticalmente na sociedade, visto que conseguem imanentemente construir espaços
através de outros modos, modos de singularizar, que se arriscam a viver
profundamente a heterogeneidade existente. É possível, nesse caminhar coletivo,
resistir à imposição capitalista de fabricar as relações com “a produção, com a
natureza, com os fatos, com o movimento, com o corpo, com a alimentação...”
(GUATTARI; ROLNIK, 2000, p. 42), pois a imposição capitalista é orientada por uma
ordem mundial que inviabiliza a criação de movimentos de protesto.
Nesta escrita, então, abrem-se as cortinas de outras práticas e, portanto, de
outras teorizações para a profissão. Contudo, a proposta é de não fechar questões
que não são colocadas aqui como obra de um “expert”, mas sim a tentativa é de
poder, igualmente estar livre para agenciar coletivamente, não apenas reproduções
já enraizadas, mas também produções que resultam da articulação com o diferente e
a comunicação através do diferente. Assim, a escrita é produzida com o corpo, não
somente com a razão, ou seja, são fragmentos potentes que se colocam para ir ao
42
encontro do infinito e não ficar na defesa de questões que, neste momento aqui,
se desfizeram, pois somos outros... “O que me interessa são as relações entre as
artes, a ciência e a filosofia. Não nenhum privilégio de uma destas disciplinas em
relação a outra. Cada uma delas é criadora” (DELEUZE, 1992, p. 154).
Enfim, a proposta deste item foi de apresentar para a profissão de Serviço
Social, que tem como direção teórica a Dialética-materialista, uma outra
possibilidade teórico-prática que existe no cotidiano e no corpo de seus
profissionais, que é a teoria utilizada nesta Tese, pois esta escrita confirma essa
informação. Conforme foi manifestado, é uma existência tímida frente à totalidade
da profissão, porém basta aguçar a escuta nos espaços de atuação profissional e
acadêmico que será possível reconhecer essa existência. Mas, se ainda são
necessários exemplos, os espaços de trabalho com saúde mental, hoje, estão
exigindo outras leituras e outros modos de qualificar a atuação. Portanto, basta que
se abram outros espaços de escrita e de produção para que aconteça essa relação,
uma vez que os nexos estão aqui colocados.
3.2 Ciência e Narrativa: encontros possíveis
- Olha! eu acho que agora nesses últimos tempos, sendo mais... é mais
respeitado, né? Porque o andamento que o mundo tem tomado, né, nas grandes
cidades, a poluição, né, acho que agora o povo da cidade começando a dar mais
valor, né, aquela forma de vida do caboclo, né? Que antigamente era considerado
miserável, né, o importante era a universidade, né, e agora mudando um pouco,
até porque, como eu estudando, a gente conversa mais com as pessoas, que não
são do interior, né, coloca nossa forma de viver... (Fabiana, 22-10-2006)
Neste capítulo, pretendo fazer do registro um encontro com as vidas que
dispõem abrir seus espaços, suas moradas, suas histórias para que outros
encontros também sejam possíveis. Essas vidas resistem num assentamento de
reforma agrária onde o cotidiano manifesta potencialidades para permanecer no
campo. Pretender conhecer estas vidas é não fazer da pesquisa um instrumento de
infantilização do que existe.
Não infantilizar é um modo de fazer pesquisa, ou seja, é não tentar conduzir o
que se apresenta com olhos tecnicista de um “expert”. Infantilizar, nesta concepção,
apresenta-se muito mais no modo como ocupamos um lugar do que na
apresentação de um instrumento utilizado.
43
Assim, a preocupação com o processo da pesquisa é uma preocupação ético-
política, já que não se movimenta com a intenção de considerar as invenções
criadas por aqueles que vivem no assentamento de modo ingênuo e idealista, mas,
antes, dizer que o desenho deste registro se faz numa cartografia. Ou seja,
cartografar é não defender a neutralidade da ciência num discurso distante e
disciplinador. É não cair na armadilha de uma defesa quantificável, e isso não quer
dizer que as pesquisas que utilizam a proposta quantitativa não sejam importantes,
porém a proposta, aqui, é chamar a atenção para as manifestações da vida
independentes da sua quantidade, porque a sua existência exige escuta, exige
olhar, exige envolvimento, exige problematização. O objeto torna-se existência onde
a aprendizagem acontece no corpo dos coletivos.
Portanto, cartografar é não defender, num discurso pretensamente inócuo,
uma proposta de distanciamento entre sujeito e objeto, mas ousar afirmar que a
pesquisa cartográfica requer implicação de todos os agentes envolvidos. E o único
distanciamento possível é o de não reproduzir preconceitos acerca do cotidiano dos
agentes da pesquisa, ou seja, o distanciar-se é distanciar-se de padrões impostos
na história linear, produzindo novos conceitos a partir do encontro com os diferentes
mundos.
Reconhecer a poesia
54
na vida é, também, objetivo, desta pesquisa, pois, ao
contrário do que desejo aqui, uma tendência de instigar o olhar acadêmico para
uma conotação miserável e mortificada das capacidades dos coletivos. Tendência
essa encontrada no discurso apresentado no primeiro capítulo, pois cria um discurso
que, além de produzir estigmas cheios de preconceitos e de rótulos, produz e
reproduz a lógica do coitado, do subalterno, do incapaz e, através de interpretações
ilegítimas, tenta criar um imaginário instituído pelas regras da sociedade de controle.
Estigma, porque cola no corpo das multidões marcas que não desaparecem com o
tempo; ao contrário, são marcas que se cristalizam. Desse modo, o que desejo é
inverter a lógica do estigma, ou melhor, é destruí-lo através do movimento do pensar
que, como lembra Espinoza: “Quando o pensamento é livre, portanto vital, nada está
comprometido; quando deixa de o ser, todas as outras opressões são também
54
[...] Os filósofos edificantes querem manter o espaço aberto para a sensação de admiração que os poetas
podem por vezes causar- admiração por haver algo de novo debaixo do sol, algo que não é uma representação
exata do que já ali estava, algo que (pelo menos no momento) não pode ser explicado e que mal pode ser descrito
(Rorty, 1988, p. 286).
44
possíveis, e uma vez realizadas, qualquer acção se torna culpável, e toda a vida
ameaçada” (Deleuze, 1970, p. 10).
Assim, a cartografia pretende abrir a discussão do imaginário criado acerca
do discurso adjetivado como, por exemplo: “o ruim é...” A cartografia busca instigar a
capacidade imaginante através da atenção para os modos sensíveis,
potencializando o belo, o criativo, a capacidade de existir na resistência. E isso não
significa negar os problemas, as dificuldades, os “erros”, as imposições, os
controles, as disciplinas do próprio grupo e do próprio movimento social a que se
pertence, mas sim afirmar que reproduções e antiproduções sempre existiram em
qualquer território, e, portanto, não é privilégio do MST. Então, o olhar preciso
desnuda-se para poder propor, bem como considerar o que vem dos coletivos, das
multidões e, aqui, do grupo da pesquisa.
Neste sentido, a cartografia [...] pode ser considerada como máquina
autopoiética, pois se produz através de uma dobra, ou seja, como efeito da
subjetividade que registra o mundo. Desdobramentos e redobramentos,
gerados pela pesquisa, podem aproximá-la de seu papel no
engendramento das subjetividades (Kirst et al, 2003, p. 99).
Portanto, não é possível, nesta concepção, aceitar um discurso que utiliza a
vida que se abre à pesquisa para depois, no território acadêmico, desqualificá-la. A
prática acadêmica pode correr o risco de não exercitar a alteridade e a atenção,
analisadores importantes, na cartografia, para a outra estética que se mostra. Dessa
forma, essa outra estética, proposta da análise desta escrita, acontece
movimentando-se frente aos afetos coletivos e afetos, aqui, é o que faz disparar a
produção do conhecimento e, se para disparar essa produção, é preciso contaminar-
se então a contaminação é o afeto sobressaliente desta pesquisa. Segundo
Espinosa: “As afecções (...) são os próprios modos. [...] entendendo por afectos as
afecções do corpo pelas quais a potência de agir deste mesmo corpo é aumentada
ou diminuída, favorecida ou impedida” (Deleuze, 1970, p. 49; 50).
Toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência
afetiva. É a fome que põe em funcionamento o aparelho pensador. Fome é
afeto. O pensamento nasce do afeto, nasce da fome. Não confundir afeto
com beijinhos e carinhos. Afeto, do latim affecare, quer dizer ´ir atrás`. O
afeto é o movimento da alma na busca do objeto de sua fome. É o eros
platônico, a fome que faz a alma voar em busca do fruto sonhado (Alves,
2004, p. 52).
Os coletivos, via de regra, o alvos de pesquisas que não oferecem
instrumentos capazes de instigar processos autogestionários. Pelo contrário,
45
utilizam-se das vidas para fortalecer um discurso acadêmico disciplinador,
assumindo uma vontade de uma verdade que se esfacela nos encontros com a
multidão. Assim, falar SOBRE é sempre uma fala frágil, pois esta se autoriza sem
legitimação, porque está fora do mundo de quem vive o tema escolhido. Se os
pesquisadores, intelectuais, “experts”, como o leitor preferir chamar, desejassem
produzir contribuições para a vida dos coletivos/multidão, iriam problematizar os
processos decisórios resultantes de suas micropolíticas nos territórios dessas
multidões, e não apenas no território acadêmico. Assim como lembra Feyerabend,
quando conta um acontecimento com Lucien Febvre, pois este “tinha ridicularizado
os escritores que, ´sentados a suas escrivaninhas, atrás de montanhas de papel,
tendo fechado e coberto suas janela` emitiam juízos profundos sobre a vida de
proprietários rurais, camponeses e trabalhadores agrícolas” (2007, pp. 11-12).
No entanto, este texto quer ter o cuidado de não entrar no perigo dos rótulos,
mesmo que isso seja inevitável, uma vez que acredito, como nos casos de Marx e
de Foucault, que estes não desejaram reproduzir um exército de seguidores, pois o
que contavam era fruto daquilo que viviam, pensavam, agiam, pesquisavam,
“conheciam”, como também não foram eles que criaram as nomenclaturas Marxista
ou Pós-estruturalista
55
. Marx denunciava as relações de subordinação e de
exploração por que passavam os operários e, por isso, integrou-se às luta operária,
e Foucault não considerava seu pensamento estrutural, e sim propunha uma análise
arqueológica da sociedade e de suas relações de poder e de saber, que o motivo
de sua obra havia sido a subjetividade, evidenciando-a em espaços manicomiais e
carcerários. Portanto, estes autores viviam o que escreviam e lutavam a favor da
vida.
55
Se neste trabalho existe alguma manifestação pós-moderna, é na produção de um tipo de prática que segundo
Veiga-Neto “Ora, ao fazer esse deslocamento, o pós-moderno não filosofa sobre o mundo concreto, isto é, não
parte do pensamento para entender o mundo. O que ele tenta fazer, então é edificar um pensamento a partir do
mundo ou daquilo que entendemos como sendo o mundo” (1995, p. 14). Também defende a proposta de que “Na
pós-modernidade, parece necessário pensar não em processos mais confusos e plurais, mas, especialmente,
supor que o sujeito que viaja é, ele próprio, dividido, fragmentado e cambiante” (Louro, 2004, p. 13)
Assim, “De qualquer maneira, ainda que abandone as grandes categorias iluministas o Sujeito, a Razão, a
Totalidade, O Progresso, etc. o pós-moderno não se despede da racionalidade mas, antes, subordina a um a
priori histórico e, assim fazendo, desloca a razão da transcendência para a contingência” (Veiga-Neto, 1995, p.
14)
46
Conseqüentemente, os exemplos acima surgem para manifestar o desejo de
não estar preso a um modelo, a uma concepção teórica identitária. Mas, sim, são
feitas escolhas políticas: uma escolha é pelos autores convidados a dialogar neste
texto, outra escolha é pelo caboclo devido a sua manifestação, e não a sua
vitimização frente a outras categorias no assentamento, porque o que desejo é
romper, e não propor perfis, pois busco construir um texto/trabalho que pretende
trazer uma discussão ética e não paradigmática, ou seja, considerar o saber, e não
afirmar teorias ou produzir vigilância epistemológica (Bourdieu,1983). Enfim, a
escolha pela narrativa, porque permite a aventura de viver, junto com o coletivo,
outras trilhas.
Dar ouvidos à voz argentina das sereias, voltar-se em direção ao
rosto proibido que desvia o olhar, não unicamente evitar a lei para afrontar
a morte, como tão pouco abandonar o mundo nem o esquecimento da
aparência, é sentir de repente crescer em si mesmo um deserto, no outro
extremo do qual [...] espelha uma linguagem sem sujeito atribuível, uma lei
sem deus, um pronome pessoal sem pessoa, um rosto sem expressão e
sem olhos, um outro que é ele mesmo. (Foucault, 1990, p. 62).
Problematizar a própria ciência e a sua relação com o “chamado” senso
comum é, também, um dos desafios desta análise. Assim, a cartografia não defende
a fotografia das paisagens, ou seja, congelar acontecimentos, histórias, falas,
saberes, etc., mas, antes, questionar o lugar da ciência, visto que o estatuto da
verdade é a todo momento aclamado, seja na profissão, especificamente, seja no
mundo acadêmico, pois esquecem que o senso comum está em toda a parte,
inclusive nas práticas profissionais e acadêmicas.
A escolha de produzir pesquisa aliando as narrativas possibilita considerar
esta pesquisa como produtora da própria ciência, pois, no que se refere ao perigo de
entrar no senso comum, este não existe porque existe ciência. Ao contrário, existe
ciência porque existe senso comum. Então, o registro narrativo não busca objetivar a
defesa de um processo descritivo, que cairia no risco de uma tentativa neutra
impossível, mas sim afirmar:
A narrativa parece produzir ecos que se pluralizam, pois cada
pedacinho acrescentado muda os rumos da história narrada. O que importa
na narração não é a verossimilhança como fato, mas o que se faz dela e
com ela; quais sentidos outros se fabricam (Heckert, 2004, p. 64).
47
A arte de narrar acontece quando se potencializa a escuta indisciplinada, uma
vez que os sentidos reproduzidos são modificados no movimento de sua reinvenção.
Ou seja, a escuta produzida tenta não falar em nome de, porém exercita a sua
capacidade de controlar o seu próprio controle, em outras palavras, narrar, aqui, não
é relatar, nem tampouco construir um descrição recheada de dogmas e estigmas,
mas sim propiciar o contar das histórias cotidianas do grupo. Por isso, a narrativa
não pretende informar ou explicar, pois o que deseja é contar, não se prendendo a
uma linearidade, mas aos rompantes desta, porque a escolha de narrar, aqui, é uma
escolha política.
O que se quer é [...] desenvolver “uma sabedoria prática necessária
para participar numa conversação” [...] de modo que se cuide que a
comunicação não degenere em inquérito, em programa de investigação [...
e não] atinja o caminho seguro de uma ciência (Heckert apud Veiga-Neto,
1995, p. 20).
Trazer a narrativa no processo cartográfico é afirmar a implicação de todos
envolvidos na pesquisa: doutoranda, acadêmicos e assentados. A implicação
constitui-se nos encontros e no compromisso ao que se mostra, que a implicação
é
Um processo de materialidade múltipla, complexa e
sobredeterminada, um processo econômico, político, psíquico etc.,
heterogêneo por natureza, que deve ser analisado em todas dimensões
(Baremblitt, 1998, p. 73).
As histórias que serão registradas são histórias em movimento que, no
encontro com a memória, correm em direção às diferentes paisagens do tempo
vivido. São histórias que mudam, que se metamorfoseiam, devido aos novos
acontecimentos. São contos carregados de risadas e de choros, são vidas latentes
que, aqui, o são negadas. Segundo Heckert (2004, p.57): “As narrativas, tecidas
nas margens, podem nos auxiliar a captar os vestígios dos roncos surdos das
batalhas”.
A memória considerada não será violentada por uma análise que pretende
produzir o apego ao passado, mas evidenciar que a vida se anuncia frentes às
diferentes manifestações no tempo. A narrativa propõe desafios, visto que os
narradores bailam durantes os contos, emocionam-se frente aos acontecimentos,
saboreiam sensações nas quais o corpo lança saltos em relação às possibilidades.
48
Assim, os narradores “falam das memórias que não têm tempo e lugar marcado e
que, ao serem compartilhadas, ensinam que os embates mudam de lugar, voz,
forma e cheiro.” (Heckert, 2004, p. 64).
Aqui não desejo produzir, pela narrativa, um enunciado que relate a verdade,
no entanto desejo potencializar as fissuras no tempo, pois a imprevisibilidade propõe
a criação e reinventa os modos de viver. Portanto, a narrativa é um “por vir”.
Narrativa e relato não se confundem, uma vez que o relato diz
respeito ao dado, àquilo que se configurou em formas, à reprodução
do fato ocorrido. A narrativa, ao contrário, narra o acontecimento e este não
está preso ao tempo e à verdade. A narrativa não é o relato do
acontecimento, mas o acontecer. (Heckert, 2004, p. 65).
É preciso desenvolver um modo como linha de aproximação para a produção
do conhecimento, o qual seja capaz de acompanhar um processo, e não representar
um objeto, uma vez que o conhecimento é uma invenção porque existe uma prática
do conhecer. Tal prática torna-se uma política cognitiva ética. A pesquisa, então,
aqui é uma pesquisa cognitiva que acompanha o processo de subjetividade.
Aqui vale uma ressalva para a profissão de Serviço Social, apesar de todo o
texto estar conectado: quando se propõe uma política ética, propõe-se também uma
política de intervenção. Esta política acontece desde o início da formação
profissional e movimenta-se durante o processo no qual a conclusão dos quatro
anos acadêmicos não conclui a formação, e sim potencializa a invenção de novas
práticas políticas dessa formação. Como lembra Kastrup (2007), se se fizer uma
proposta de pesquisa e de intervenção sobre o cego você terá um objeto, mas se
fizer com o cego você terá o processo latente capaz de muitas criações e de muitas
transformações.
Através da cartografia, é possível mexer com os focos cristalizados da
realidade, pois será problematizado o fato de não haver uma realidade, mas muitas
que se mostram sem cortinas. Os acontecimentos se realizam e se modificam numa
velocidade não controlável e, por isso, não é possível criar verdades, e sim
desconstruí-las. A cartografia oferece a oportunidade de exercitar o não-saber e,
portanto, não desvincular campo de intervenção do campo de análise como
processo de uma prática incessante. O não-saber é dispositivo, é agenciamento.
Então, ciência e narrativa constroem-se nos encontros, quando não mais
supervalorização de uma em relação à outra. Lembro-me de uma aula em que eu
49
estava tentando instigar o grupo de acadêmicos a debater sobre ciência. Usei, como
dispositivo do debate, as imagens que temos sobre higiene. Perguntei-lhes: “Se
vocês estivessem estagiando num hospital e viesse para vocês executar o
convencimento frente a um paciente para tomar banho, porque ´supostamente` se
este não tomasse, agravaria seu estado de saúde, o que fariam?” Para minha
alegria, os argumentos foram diversos, porém um deles era que, acima de tudo, o
paciente tinha que tomar banho. Então, resolvi problematizar mais: quais os padrões
de higiene que tinham e se haviam se preocupado em pensar se o paciente possuía
os mesmos ou, simplesmente, tentariam impor a regra do banho? Nesse momento,
uma acadêmica, que me pareceu indignada, disse: “Tá! Mas, a gente aqui
aprendendo ciência para executar, e não ao contrário?!” E eu lhe respondi: “A gente
aqui produzindo ciência e, portanto, podemos modificá-la e reinventá-la, caso
contrário vamos reforçar as práticas que condenamos, ou seja, reproduziremos
coletivamente a mesmice e a submissão dos usuários frente aos estabelecimentos.
E, mais, nunca devemos esquecer que também somos ou seremos usuários e, por
isso, a alteridade é muito importante tanto na pesquisa, quanto num cotidiano de
atendimento profissional”. Como bem afirma Foucault (2001, p. 215): “[...] quanto
menos o cientista se engana, mais ele é perverso, ou demente, ou estranho ao
mundo [...]; quanto mais ele é positivo, mais se engana [...] a ciência fala em um
espaço vazio”.
Não quero, com isso, construir uma receita, pois não acredito em receitas,
mas, antes, propor desconstruir
56
imposições, para que a capacidade de criar modos
de vida possa existir. Rubem Alves (2004, p. 12) sustenta: “A aprendizagem da
ciência é um processo de desenvolvimento progressivo do senso comum.
podemos ensinar e aprender partindo do senso comum de que o aprendiz dispõe”.
Desse modo, considerar as narrativas no processo de pesquisa é praticar uma
análise qualitativa dessa produção. Assim, a proposta cartográfica acontece numa
filosofia da diferença, pois pretende apresentar os movimentos cartográficos do
56
Desconstrução foi o termo criado por Jaques Derrida, que tem como um dos objetivos, evidenciar que “[...]
desconstruir a oposição sujeito x objeto não implica, por exemplo, destruir a dicotomia mas, sim, problematizar a
relação entre os dois termos que a constituem. Implica mostrar, por exemplo, que o objeto não pode ser
independente do sujeito, nem separado deste por uma barreira de neutralidade. Sujeito e objeto são
desmascarados em sua relação simbiótica: ao mesmo tempo em que cria,a partir de seu contexto, de suas
circunstâncias e de sua psicologia, o sujeito também é criado e influenciado pelo objeto” (Arrojo, 2003, p. 11).
50
grupo em relação às manifestações de seu modo de viver, reinventando práticas
através dos dispositivos coletivos. E como lembra Walter Benjamim (1996, p. 205):
A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão -
no campo, no mar e na cidade-, é ela própria, num certo sentido, uma
forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o
´puro em si`da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela
mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele.
3.3 Notas de uma pesquisa: uma cartografia do campo
É através da cartografia das formações subjetivas que podemos
esperar nos distinguir dos investimentos libidinais dominantes (Guattari)
Aproximar-se de uma prática que se propõe fazer pesquisa não é tarefa muito
fácil. Isso, porque essa prática vai além de uma simples ou cansativa coleta de
dados, mas abrange o modo como nos relacionamos com a proposta de pesquisar e
de produzir conhecimento coletivo. Tal fato se refere tanto ao contato com os
agentes que foram convidados a participar do processo de produção dos dados,
quanto aos autores com quem pretendo dialogar.
A escolha por uma escrita que oferece a vida que pulsa no cotidiano depende
do contato com esse cotidiano e, portanto, exige uma cartografia do campo.
Dessa maneira, a cartografia acontece, uma outra geografia aparece, uma
preparação e o preparo exige movimento, expressa-se numa paisagem sem
fronteiras que esbanja um colorido infinito. Nele, o cenário está contido de
expectativa do encontro que é resultante dos contatos prévios que foram marcados
para a realização do acontecimento, como também do desenho da ansiedade para
iniciar um trabalho que pretende ser coletivo. Os agentes envolvidos: doutoranda,
estagiárias e assentados vão, desde o início do encontro, criando uma aproximação
capaz de garantir a manifestação da vida naquele cotidiano.
No entanto, esse cenário não será e não foi palco de representação. Não
existe, em cada manifestação do coletivo, um mistério a ser descoberto ou algo
escondido/velado que, para Guattari (1987, p. 22), é “(...) uma interpretação
significante que tende a cortar a análise de suas implicações sociais reais”. O que
51
percebo/percebi foi a exposição de um cotidiano que produz e reproduz práticas
caboclas campesinas.
Para o encontro nesse cenário, a doutoranda, junto com sua equipe de
estagiárias, levou alguns equipamentos auxiliares que pudessem contornar as
multiformas existentes, como: máquina fotográfica, filmadora, papel, caneta,
gravador e um roteiro orientador cujos tópicos bailavam em torno de questões
específicas e abertas: o que é o caboclo, como é a relação com a terra, qual a
proposta do autoconsumo, um contar sobre a trajetória do grupo do acampamento
para o assentamento, da trajetória familiar para o acampamento, bem como
questões que, durante o diálogo/entrevista, surgiam para contar outros
acontecimentos, pois de acordo com Pesavento (2004, p. 107): “(...) as
questões/problemas que se definem em torno da escolha de certos temas dizem
respeito não à temporalidade na qual se colocam, mas também ao marco
conceitual escolhido”. Portanto, é importante a escolha do roteiro, um roteiro aliado
que tem a preocupação de considerar a singularidade dos sujeitos, dos
acontecimentos, dos devires para poder criar novos sentidos, com o desejo de fazer
do encontro um encontro cartográfico, no qual o coletivo desenha a sua geografia,
os seus engendramentos, os seus acontecimentos, as suas resistências, as suas
potencias (Moretto, 2000).
Assim, foi sendo criada uma cartografia que considerava a história das
famílias em suas diferentes trajetórias, bem como trajetórias do grupo antes de
optarem pelo MST, depois a inclusão do grupo nos acampamentos, até a chegada
ao assentamento.
A vontade de potencializar o que existe, o que se realiza, ou seja, poder
acolher a realidade não como um molde e uma estrutura estabelecida, mas olhar
para o que resiste ao concreto, para as práticas criativas, para os outros sentidos
produzidos no coletivo é, também, poder criar modos sensíveis de pesquisa que não
se tornem tão impositivas, que tornem a pesquisa vibrátil, ao ponto que a produção
do conhecimento desabrochando aos poucos, com a força desse encontro. Kirst
(2003, p. 100) destaca:
Na pesquisa cartográfica, o tempo pulsa, pois se evidenciam os
modos pelos quais os sujeitos percebem, experimentam e narram a
passagem do tempo em suas próprias vidas e naquilo que estudam. Por
este motivo, o conhecimento desde o momento de produção não pode ser
tomado como algo generalizante, mas sim singularizante e único. O tempo
tomado na pesquisa como parte do procedimento cartográfico, orienta-nos
52
à desterritorialização /reterritorialização promovidas na performace sujeito-
objeto, captadas nos registros advindos de tal encontro.
Por conseqüência, a problemática
57
da pesquisa surge através das marcas
dos corpos da doutoranda e dos assentados. Surge dos corpos daqueles que dão
vida à pesquisa. Surge do coletivo implicado no processo de estudo, de análise e de
criação dos modos de viver. Então, não surge para ser resolvida por meio de
respostas cientificistas, mas para lançar-se ao inusitado, aventurando-se no
entrelaçamento dos caminhos, caminhos criados pelos assentados que habitam o
espaço do assentamento. E, nesse encontro inusitado de horas oferecido,
transversaliza-se a análise da dobra
58
, a reinvenção de um outro modo de vida
caboclo, marcando a problemática desta pesquisa, problemática que surge como
questão para instigar os percursos e as rotas de uma escrita infinita e imaginante
59
.
As rotas deste estudo se encontram no momento no qual é reconhecido que,
na luta molar, busca-se a distribuição de terra e condições para nela viver. Mas, tais
condições o fortalecidas no espaço onde o disparo das revoluções
moleculares
60
, cotidianas. Assim, a todo o momento é reafirmada a Reforma
Agrária
61
a partir das experiências de convivência e de vida em assentamentos.
A análise da manifestação dos modos de viver caboclo no assentamento de
Reforma Agrária, onde existe a desconstrução das verdades sobre e sob a vida de
quem vive nesse espaço rural de assentamento, apresenta-se como objetivo geral,
maior, de denúncia. Materializa-se, nesta escrita, um estudo que pretende montar
57
“[...] analisar, não os comportamentos, nem idéias, não as sociedades, nem suas ´ideologias`, mas as
problematizações através das quais o ser se como podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das
quais essas problematizações se formam.(...) Problematização que caracteriza o momento em que a ciência se
defronta com o novo e inesperado que a força a pensar e divergir de si mesma. Esse processo nos permite
ultrapassar a simples descoberta para a produção de conhecimento” (Foucault, 2001, p. 15).
58
A idéia de dobra aqui é o que propõe Deleuze (2000), ao apresentar o pensamento de Leibniz, que é romper
com a linearidade, com a homogeneidade, com o reto, ou seja, “Diz-se que um labirinto é múltiplo,
etimologicamente, porque tem muitas dobras. O múltiplo é não o que tem muitas partes, mas o que é dobrado
de muitas maneiras” (Deleuze, 2000, p.14).
59
[...] o conhecimento pertence a qualquer forma de vida, não provém de fora (...). Nessa perspectiva, o
conhecimento é compreendido como um processo de auto-organização (...)” (Gonsalves, 2002, p. 73).
60
“A idéia de revolução molecular diz respeito sincronicamente a todos os níveis: infrapessoais (o que está em
jogo no sonho, na criação, etc); pessoais (por exemplo, as relações de autodominação, aquilo que os psicanalistas
chamam de superego); e interpessoais (a invenção de novas sociabilidades na vida doméstica, amorosa,
profissional, na relação com a vizinhança, com a escola, etc.) (Guattari; Rolnik, 2000, p. 46).
61
Cabe lembrar que a Reforma Agrária exigida pelos movimentos campesinos, no Brasil, foi tornada lei no ano
de 1964, pelo Estatuto da Terra, Lei 4.504. Ano de ditadura e, portanto, com legítimo interesse de reforma, e não
de transformação agrária. Mesmo assim, essa lei se efetiva precariamente, quando existe luta e resistência
coletiva.
53
cenários para desmontar afirmações, verdades e normas que seduzem e produzem
imagens socialmente aceitas sobre o assentado.
Para tanto, a fim de pensar os modos de viver, é importante considerar o
envolvimento dos próprios assentados que compõem um grupo de dez famílias do
conjunto de sessenta e cinco, do assentamento de Reforma Agrária neste processo
de pesquisa. A participação constitui-se como campo de estudo no qual os agentes
envolvidos ofereceram condições de tornar esta pesquisa uma pesquisa
reafirmadora da realidade como movimento de multiplicidades heterogêneas, e não
como moldura de vida.
A preocupação acima se sustenta a partir da análise do fazer pesquisa, ou
seja, o fazer não deve ser apenas considerado como tarefa do pesquisador, mas
como modo de se movimentar e de se manifestar frente ao que se permite conhecer.
Portanto, quando se fala em manifestações logo surge a idéia do modo como
as diferentes lutas sociais se expressam nos diversos cenários do mundo. Contudo,
é possível afirmar que os modos de existir e, portanto, os modos de se manifestar
estão também, hoje, muito dependentes das imagens produzidas pelos meios de
comunicação desenvolvidos pelo sistema capitalista, criando uma cultura sobre a
qual Guattari e Rolnik (2000, p:15) afirmam:
O conceito de cultura é profundamente reacionário. É uma maneira
de separar atividades semióticas (atividades de orientação no mundo social
e cósmico) em esferas, às quais os homens são remetidos. Tais atividades,
assim isoladas, são padronizadas, instituídas potencial ou realmente e
capitalizadas para o modo de semiotização dominante, ou seja,
simplesmente cortadas de suas realidades políticas. [...] A cultura enquanto
esfera autônoma existe a vel dos mercados de poder, dos mercados
econômicos, e não a nível da produção, da criação e do consumo real.
Quando há referência sobre os modos de vida, entendo que são modos
modelados e institucionalizados que vendem maneiras de ser e de agir. Assim, o
social é individualizado através de signos elaborados de forma eficiente, garantindo
formatos e perfis de como se “deve ser” individual e coletivamente. Segundo Negri
(2003, p. 29):
O capitalismo investiu sobre a vida, sua produção é biopolítica; o
poder, na produção, é uma “superestrutura” do que está espalhado e
reproduz-se na sociedade. O “sistema disciplinar” da organização social foi,
então, substituído por um “sistema de controle”.
54
Adentrar uma realidade que busca criar outros modos de viver, como as
trajetórias, as histórias, os saberes, os processos que expressam as forças ativas e
inventivas no cotidiano, é poder considerar tais manifestações numa geografia
transversalizante, ou seja, numa cartografia vívica. Dessa maneira, este estudo do
caboclo
62
não pretende defender a idéia de classe social com identidade constituída,
mas sim um modo de viver que se manifesta cotidianamente, resistindo às
imposições da cultura capitalista, a qual institui as relações utilitaristas com a terra,
de forma mercadológica, através do uso de agrotóxicos e da prática do agronegócio.
Trata-se das relações de uma cultura etnocêntrica, de composições familiares e
religiosas movidas por valores morais impositivos, entre outros componentes dessa
cultura hegemônica. As manifestações do modo de vida caboclo e de sua
reinvenção são defendidas como a arte de viver uma estética da existência.
A categoria cartografia
63
possibilita desenhar as transformações dos modos
de existência caboclo no assentamento de reforma agrária. Esse desenho pretende
afirmar uma pesquisa implicada com as diversas manifestações do viver caboclo,
que recusa neutralidade, pois entende que esta inviabiliza a vida, impondo
processos de mortificação dos seres em seus diferentes mundos. Assim, esta
pesquisa considera que em todo momento, o objeto e o sujeito do conhecimento
vão-se constituindo e, portanto, metamorfoseando-se no mesmo processo no qual
se abrem caminhos para o novo, sem perder o rigor exigido, como lembra Deleuze
(1997) quando afirma que o saber não pode opor-se à vida.
O movimento dos corpos
64
na pesquisa foi e vai ao encontro da vida e dos
saberes que se engendram. As forças dessa vida, ou melhor dizendo, desse viver
buscam conhecer a partir da composição de zonas de vizinhanças, ou seja, buscam
62
Este estudo pensa o caboclo através de suas manifestações no cotidiano que Foucault vai chamar de: “[...]
Artes da Existência. Deve-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens
não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar , modificar-se em seu ser
singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios
de estilo (2001, p. 15)”.
63
O termo cartografia utiliza especificidades da geografia para criar relações de diferença entre territórios e dar
conta de um espaço... Uma discussão metodológica que se atualiza na medida em que ocorrem encontros entre
sujeito e objeto (FONSECA; KIRST, 2003, p. 92).Para Suely Rolnik “A prática de uma cartógrafo diz respeito,
fundamentalmente, às estratégias das formações do desejo no campo social. (...) O que importa é que, para ele,
teoria é sempre cartografia- e, sendo assim, ela se faz juntamente com as paisagens cuja formação ele
acompanha.(...) O cartógrafo é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, apropriar-se, devorar e desovar,
transvalorando. (2006, p. 65).
64
É pertinente afirmar que utilizo a concepção de corpos sem órgãos apresentada por Antonin Artaud e
profundamente desenvolvida por Felix Guattari e Gilles Deleuze: “O corpo sem órgãos não é um corpo morto,
mas um corpo vivo, e tão vivo e tão fervilhante que expulsou o organismo e a organização[...] O corpo pleno
sem órgãos é um corpo povoado de multiplicidades” (2004, pp.43-44).
55
considerar novos acontecimentos que existem a cada momento de manifestação de
seus agentes. Este movimento, que é movimento de acontecimentalizar
65
,
desenhou a pesquisa, questionou o modo de trabalho do pesquisador, instigando-o
a ponto de desacomodá-lo para que pudesse buscar outros caminhos de estudo,
resultantes de um movimento constante de criação.
Contudo, com toda a preocupação de cuidar da relação de estudo/pesquisa,
não nego a utilização de instrumentos que possam viabilizar o encontro para a
produção de um conhecimento
66
que pretende ser coletivizado. Esse encontro
orientou-se, de acordo com Pesavento (2004, p. 106), numa “[...] espécie de
cartografia do campo (...), mapeando seu roteiro ou itinerário de ação”, no qual se
desenhou uma paisagem em movimento. Essa paisagem pretendeu manifestar
acontecimentos, lutas, devires, saberes, histórias, processos desejantes,
movimentos.
Para tanto, utilizei-me, também, da concepção de linhas de fuga
67
que nos
retiram do lugar de sujeito idêntico e nos recolocam como sujeitos de multiplicidades
e, portanto, de um devir constante. Os modos de viver caboclo instigam-nos a
reconhecer outros novos modos de ser, fazendo-nos ousar, desfrutar dos próprios
encontros do saber na vida, ou seja, de produzir novos saberes no processo de
pesquisa. E esse movimento vibrátil produziu conexões frente às formatações.
Assim, as tarefas com os processos constituintes reinventam uma existência a partir
da criatividade cotidiana, na qual, por exemplo, prioriza-se o autoconsumo através
de experiências entre companheiros e familiares que dão outro sentido
68
para o viver
no campo.
65
Aqui vale a apresentação da categoria acontecimento que, segundo Baremblitt, é o “ato, processo da atividade
afirmativa do acaso. É momento de aparição do novo[...], da diferença e da singularidade. Estes atos, conexões
insólitas que escapam das constrições do instituído, organizado, estabelecido, são o substrato de transformações
de pequeno ou grande porte que transformam a história em todos os seus níveis (1998, p. 151). Então, o ato
torna-se ato de acontecimentalizar quando existe o encontro dos coletivos que buscam outras maneiras de viver
no cotidiano.
66
“Em outras palavras, nosso marco inicial, para gerar uma explicação cientificamente validável, é entender o
conhecer como ação efetiva, ação que permita a um ser vivo continuar sua existência em um determinado meio,
ao fazer surgir o seu mundo. Nem mais, nem menos” (Maturana e Varela, 2001, p. 36).
67
“A linha de fuga marca, ao mesmo tempo: a realidade de um número de dimensões finitas que a
multiplicidade preenche efetivamente; a impossibilidade de toda dimensão suplementar, sem que a
multiplicidade se transforme segunda esta linha; a possibilidade e a necessidade de achatar todas estas
multiplicidades sobre um mesmo plano de consistência ou de exterioridade sejam quais forem suas dimensões”
(Deleuze e Guattari, 2004, p. 17).
68
“(...) A realidade não é coisa dada, mas algo socialmente construído, criado segundo cada sociedade... [..] Os
sentidos podem ser falados porque estão no corpo das mercadorias e foram transpostos para o corpo como se
pertencessem a ele” (Caldas, 1999, p. 17; 25).
56
Para considerar as manifestações do modo de viver caboclo, os caminhos
que pretendi percorrer foram os das práticas
69
existentes no cotidiano do
assentamento, tais como: a produção para o autoconsumo, que resiste à imposição
de um imaginário que exige a comercialização dos produtos, mas não aposta na
qualidade de vida das famílias camponesas; a produção agroecológica, que
manifesta cuidado no manejo com a terra, garantindo alimentação coletiva, livre de
venenos e de componentes químicos que mortificam os seres vivos; a utilização de
tecnologias populares que considerem os saberes existentes entre agentes que
convivem no mesmo espaço.
Adentrar outro tempo, transitar noutro espaço, reconhecer os processos
constituintes e os afetos existentes é poder aproximar-se de uma realidade
heterogênea, dinâmica, aberta, resistente a qualquer tentativa de homogeneização.
É poder considerar que, quando os sem-terra se reúnem em acampamentos,
começam exercitar as desterritorializações que a luta por reforma agrária exige. Os
corpos nômades, itinerantes nos acampamentos, os quais não possuem mais um
habitar de referência fortalece-se na abertura para uma nova vida que se cria.
Assim, o nomadismo vai ser linha transversal constante na trajetória que se põe a
constituir no assentamento.
É importante afirmar que o conjunto de conceitos que desenham a postura da
pesquisa que se produziu manifesta a prática a partir do modo como se relacionou o
pesquisador com o coletivo, com o objetivo de poder criar relações com o
conhecimento de forma viva, amorosa, de intensa paixão, pois como lembra Rubem
Alves, o conhecimento é coisa erótica que engravida (2003).
É essa relação e desejo que movimentam a mudança por não abandonar os
territórios de luta, territórios cotidianos, de diversos saberes, de gente miúda, de
gente que busca prazer, que acredita na felicidade, que quer romper com as
nomenclaturas que tentam marcar seus corpos de vagabundos, de pedintes, de
subalternos, de ociosos, de excluídos, entre outros tantos adjetivos, substantivos,
para apresentar as desterritorializações dessas nomenclaturas e as
reterritorializações das manifestações nômades, itinerantes, revolucionárias,
guerreiras a caminho aberto. As mãos calejadas são, também, mãos que pintam,
69
Refere-se aqui ainda a concepção de corpo sem órgãos explicado por Deleuze: “Ele não é desejo. Não é uma
noção, um conceito, mas, antes de tudo, uma prática, um conjunto de práticas. Ao corpo sem órgãos não se
chega, não pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite” (apud Lins, 2000, p.50).
57
que desenham, que criam um outro modo de viver na terra e, aqui considerado, um
modo de vida caboclo.
Os modos de existir tradicionalmente estão constituídos num mapa agrário de
profunda concentração de riqueza e de terra no Brasil. A cultura capitalista produziu
um território enrijecido que não considera as outras manifestações existentes, e esta
pesquisa desejou mostrar a implicação do pesquisador com essas outras maneiras
do existir. Então, a pesquisa buscou seguir o que destaca Moehlecke (2005, p. 82),
“[...] os desvios, as curvas, as saliências e protuberâncias do relevo, isto é, produzir
uma cartografia” do viver caboclo.
Enfim, é poder propor um processo de reinvenção através das concepções de
terra, trabalho, família, cultura, arte a partir das ações dos assentados. Ações que
busquem, no cotidiano, produzir uma outra vida, uma ética da existência que se
preocupe em poder cultivar hortas agroecológicas; aprender um manejo animal
também ecológico; apostar na produção do biocombustivel como resistência à
dependência político-econômico-cultural de uma nação; criar uma relação potente
com a natureza, que resiste à exploração, mas aprende a conviver, nesse
ecossistema, através de técnicas conhecidas, como, por exemplo, tecnologias
populares as quais existem para, também, investir na agroindústria familiar e
comunitária, na produção para o autoconsumo, garantindo qualidade de vida
camponesa, comercializando o que sobra, demonstrando as revoluções num jeito de
ser coletivo que não depende da lógica mercantil para existir neste mundo
capitalizado, ou seja, poder apresentar um novo paradigma estético
70
.
Para que esta proposta de pesquisa se efetivasse, foram marcados encontros
com as dez famílias que compõem o assentamento de reforma agrária. Os
encontros aconteceram de forma coletiva e individual. De forma coletiva, a
aproximação deu-se através das atividades de trabalho, de lazer, de reuniões.
Igualmente, foram marcados encontros específicos para o diálogo conjunto com
assentados nos quais estes puderam contar suas experiências, suas histórias,
manifestar seus olhares/pensamentos. De forma individual, a aproximação
aconteceu em seus espaços de convivência familiar, tanto nos momentos de lazer
quanto nos momentos de trabalho.
70
“A potência estética de sentir [...]- potência de pensar filosoficamente, de conhecer cientificamente, de agir
politicamente- talvez esteja em vias de ocupar uma posição privilegiada no seio dos agenciamentos [...] de nossa
época” (Guattari, 2000, p. 130).
58
Os registros das falas/ acontecimentos foram feitos com a companhia de um
gravador; e as histórias, transcritas logo após os encontros. A fotografia também foi
um instrumento importante no registro das imagens cotidianas, bem como a
filmagem de alguns acontecimentos, mas sem nenhuma pretensão de congelar os
acontecimento, tornado-os estáticos.
Além disso, este processo de estudo contou com a preocupação de envolver
o grupo no sentido de apresentar o projeto de pesquisa (deixando-se uma cópia
para o grupo), bem como de abrir-se para que o registro deste estudo fosse o
resultado da presença, das manifestações, das percepções do próprio grupo, a fim
de que pudessem, também, registrar e receber este material no final do processo,
através de encontros com o grupo, com o conjunto do assentamento e com a própria
regional do MST.
Portanto, acredito numa outra produção, que é a produção de uma vida nova
que resiste todos os dias. Tal produção é carregada de outros sentidos dados à vida
no campo, onde se processa uma paisagem colorida, cheia de experiências de cada
agente, de cada assentado e, especialmente, de cada caboclo. Caboclo, porque
vem da mistura das raças, dos saberes, das caminhadas, das trajetórias que o
fazem ser nômade, por não se prender à lógica do pedinte, do servo, mas do que vai
à busca... do desejo de ser feliz ainda nesta terra, que é terra de ninguém e terra de
todos ao mesmo tempo, onde se acredita na luta para conquistar felicidade. Então,
destaca Moretto (2000, p. 111) “para além de narrar engendramentos de práticas [...]
se quer construir uma outra relação com os modos de conhecer e de pesquisar”, na
qual Kirst (2003, p. 100) contribui:
Enfim, a cartografia propõe-se a capturar no tempo o instante do
encontro dos movimentos do pesquisador com os movimentos do território
de pesquisa. É o encontro que se registra e não seus objetos. O cartógrafo
sabe que é impossível congelar um objeto para estudar sua natureza sob
todos os ângulos, isentando-se de implicação direta, conforme propõe a
ciência positivista. Cartografar é seguir o movimento de ecceidades que se
conectam e produzem desvios ao invés de regras e, a partir daí, novos
movimentos. A cartografia é um terceiro que se produz, podendo conectar-
se a outros e produzir ainda outros, infinitamente. Assim, não existem
“ritornelos” autônomos, são funções que emergem quando
deslocadas/desterritorializadas de seus espaços, sendo sugadas por uma
memória, vindo a fazer parte da história de uma vida.
59
Nessa perspectiva, apresento a proposta de estudo, que se coloca de forma
aberta para se reinventar no processo de pesquisa aliado ao cotidiano daqueles que
de fato vivem as resistências registradas, aqui, timidamente, ou seja, os caboclos
assentados. E ainda vale registrar que este desejo se encontra e se conecta com um
outro desejo de poder produzir e criar pensamentos, ações, afetos, outros sentidos
no movimento da própria reinvenção do Serviço Social, mesmo que possa parecer
grande ousadia, mas o que é a vida sem ousadias...
60
4. CARTOGRAFIA: apresentando a proposta da pesquisa
A partir da escolha da Cartografia como um modo de fazer pesquisa, este
capítulo tem o objetivo de expor esta proposta, bem como contextualizar
rapidamente a luta pela reforma agrária articulada pelo MST, para manifestar os
propósitos que cercam a escolha do campo de pesquisa junto a um grupo de
assentados caboclos. Por fim, faço o desenho da escolha dos fundamentos teóricos
que irão contribuir na discussão que se desejo registrar nesta Tese.
4.1. Cartografia: um movimento nômade
(...) o tempo para essas pessoas é tempo de pescar, caçar, colher,
viver, bem diferente do tempo econômico da produtividade, da lucratividade
imposta pelo modelo capitalista (Jesus, 2000, p. 36).
Cartografar, aqui, é poder desenhar as relações nos seus territórios, é dar
atenção aos seus movimentos de desterritorialização nos seus desejos de
reterritorializar. É poder envolver-se de modo delicado e não menos producente.
Assim, a própria escrita manifesta esse modo de se relacionar, pois, para Deleuze e
Guattari (2004, p. 13): “Escrever nada tem a ver com significar, mas com
agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir”
A opção pela cartografia também se afirma pelo cuidado que esta tem na
produção de outras redes, de outros mundos, de outras práticas de saber e de poder
que o coletivo vai encaminhando, vai desenhando no seu dia-a-dia e, dentre os
coletivos, está a própria profissão de Serviço Social. Essa profissão afirma, em seu
projeto profissional, a importância de trabalhar com o pluralismo, ou seja, com os
diferentes. No entanto, sabe-se que a ênfase no pluralismo dada pelo Serviço Social
segue uma tendência teórica que não é a proposta registrada aqui. Contudo, com a
perspectiva de aliança oferecida pela cartografia é possível romper algumas
barreiras para que aconteça uma produção do conhecimento efetivamente coletivo.
Esse grifo é considerável, mesmo não sendo o tema deste trabalho, para dar
seguimento a esta proposta por dentro do Serviço Social, uma vez que a reprodução
de mitos e de estigmas pode desconsiderar a relevante contribuição da cartografia
na pesquisa em Serviço Social.
61
No entanto, a proposta de conectar a cartografia enquanto modo de pesquisar
não é de dar respostas e, muito menos, sugerir receitas de como executar, pois, se
fosse esse o registro, estaria inviabilizando a proposta de reinventar outras práticas.
O que desejo registrar é que se aprende vivendo através de uma relação com a
leitura, com a escrita, com os grupos, com a vida, com as tentativas de desconstruir
o estabelecido, para encontrar sempre outros caminhos de intervenção e de
pesquisa que qualifiquem a atuação profissional frente às necessidades produzidas
na sociedade capitalista. Ou seja, o trato com as demandas não acontece
espontânea e naturalmente, pois sempre uma produção de demanda também
vinda pela profissão, isto é, uma oferta profissional que vem antes da demanda
da população e merece ser problematizada com a contribuição da cartografia.
Assim, pode-se estar aqui assumindo o ônus de romper com alguns padrões,
mesmo que outros se montem automaticamente, porque, na medida em que se
desterritorializa um saber, outro se territorializa, visto que os processos vão
modificando histórias a cada disparo de um novo movimento. No entanto, o desafio,
aqui, é de oferecer instrumentos teóricos que considerem as resistências coletivas
como um modo de produzir uma estética capaz de autogestionar as decisões a partir
dos desejos dos assentados caboclos. Por isso, as manifestações caboclas são
consideradas através de um jeito próprio de viver na terra com seus modos de
produzir a sua própria vida, sem depender totalmente dos mandos do modelo de
uma agricultura capitalística que quer decidir como se deve viver no campo, por
exemplo. Portanto, essas resistências consideradas pela cartografia, as quais serão
apresentadas nas falas do último capítulo deste trabalho, apresentam-se como
exercícios de práticas para o Serviço Social. Segundo Heckert (2004, p. 27):
“Práticas de resistências são aquelas que não apenas atendem ao prescrito, ao
designado, ao já esperado, mas que no seu fazer esboçam outros modos de ação”.
Quando insisto para considerar as resistências coletivas frente aos modelos
capitalistas é, também, para chamar a profissão a ouvir o ronco das falas das
multidões, para desmontar discursos que nada conhecem de seu cotidiano. O
cotidiano é, então, aqui considerado também como campo de forças, e não somente
como espaço da mesmice que nada oferece de novo.
O Serviço Social pode, igualmente, com esta proposta qualificar a escuta dos
discursos homogeneizantes que tentam retirar da multidão a sua capacidade criativa
de viver mesmo frente às imposições da sociedade de controle. Portanto essa
62
escuta exige uma atenção dobrada e redobrada aos modos de produção das
práticas sociais que existem tanto nos espaços acadêmicos, ou seja, no território
padrão da formação profissional, quanto nos diversos territórios de atuação
profissional.
Assim, as resistências coletivas consideradas pela cartografia são registradas
como insistentes práticas que buscam mesmo no instituído, criar outras
possibilidades de vida. Ou seja, os processos coletivos existem e devem ser
considerados nas suas mais diferentes manifestações. Desconstruir a imagem
construída acerca dos caboclos no espaço do assentamento é convidar a profissão
a posicionar-se frente a esse imaginário social, bem como frente às lutas
enfrentadas pela multidão.
Então, a relação com o tempo e com espaço é uma relação que aceita o
inesperado, que aceita a diferença que considera o pulsar de cada encontro. Neste
sentido, Kirst (2003, p. 98) afirma: “As sensações, os conceitos e as percepções são
um elo, algo que acontece entre pesquisador e objeto”.
A cartografia o se preocupa em mensurar dados quantitativos para
por em prova verdades, mas se preocupa com o que acontece naquele
momento e não em outro, com que se manifesta com o que se expressa,
mesmo que isto apareça em territórios clandestinos, em movimentos
instituintes. “O maquínico cartográfico se caracteriza não porque faz
retornar o mundo em forma de ficção, mas porque o mundo recriado
adentra o sujeito e pode modificá-lo” (Kirst, 2003, p. 99).
Os fluxos intensos desmontam verdades em processos conduzidos por
agenciamentos. Os agenciamentos disparam em busca do novo
50
, por aquilo que
não se enxerga, que não se materializa, mas que é devir. Então, a escolha do
encontro entre agentes da pesquisa não significa a certeza dos acontecimentos do
que está por vir, mas o desejo de uma produção coletiva e autogestionado.
A cartografia considera a existência do rizoma
51
e, com ele, seus princípios
que, segundo Deleuze e Guattari (2004), são: de conexão, de heterogeneidade, de
50
“O novo é, neste sentido, definido pela ligação, pela coexistência de diversas camadas do tempo, nunca
perdidas, jamais ultrapassadas definitivamente, mas conservadas desde sempre e reunidas nas formas cognitivas
da atualidade” (Kastrup, 2003, p. 61).
51
“Resumamos os principais caracteres de um rizoma: diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma
conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a
traços de mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não –signos.
O rizoma não se deixa reconduzir nem ao Uno e nem ao múltiplo. Ele não é o Uno que se torna dois, nem
mesmo que se tornaria diretamente três, quatro ou cinco etc. (...) Ele não é feito de unidades, mas de dimensões,
ou antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e
transborda (Deleuze; Guattari, 2004, p., 32).
63
multiplicidade e de ruptura a-significante. O rizoma manifesta-se em suas zonas de
intensidades chamadas de platôs, que se acabam e se reinventam numa potência
rebelde. Diferente da raiz que se agarra à tradição, aos dogmas, as verdades
enunciadas. Permite-se a existência do rizoma e, portanto, permite-se modificar a
todo o momento, porque o rizoma é feito de linhas desobedientes e criativas.
Assim, perceber o próprio Movimento Sem-Terra como rizoma de uma árvore
mortificada que é a sociedade é também perceber que, no próprio MST, existem
movimentos rizomáticos que lutam para romper preconceitos, estigmas, dogmas,
doutrinas hierárquicas que envelhecem as idéias, as vontades, a própria existência
dos seres. Então, o heterogêneo é a insistência de conviver com a diferença, e a
multiplicidade é a realidade em seus movimentos intempestivos, bem como a
conexão de poder conviver com a diferença reinventando suas práticas, seus
desejos, seus saberes, suas decisões, seus modos de ser e estar nos diversos
mundos. E impactar, romper com significações é libertar o ser e as suas
manifestações cotidianas onde não se aceita mais o discurso: o sem-terra é invasor,
e o caboclo é preguiçoso.
Por conseqüência, o caboclo sem terra e agora assentado busca reinventar
52
práticas cotidianas aonde vai construindo, junto ao coletivo, o modo de produzir a
própria vida em grupo. Isso se refere tanto à prática agroecológica quanto à relações
entre homens, mulheres e crianças. E, para considerar essas
relações/manifestações, a tarefa do cartógrafo, segundo Rolnik (2006, p. 23), é:
(...) dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera
basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que,
atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem
elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem
necessárias. O cartógrafo é antes de tudo um antropófago.
Dar língua não é significar a palavra, dar voz aos enfraquecidos, ser seu
representante social e político, mas dar língua é não querer controlar o que existe no
momento do encontro dos agentes da pesquisa, dos agentes do cotidiano agrário,
52
A invenção não é prerrogativa dos grandes gênios, nem monopólio da indústria ou da ciência, ela é potência
do homem comum. Todos e qualquer um inventam, na densidade social da cidade, na conversa, nos costumes,
no lazer- novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação. (...) Nossa economia
afetiva, a subjetividade, não é efeito ou superestrutura etérea, mas força viva, quantidade social, potência
psíquica e política. (...) Todos e qualquer um, e não apenas os trabalhadores inseridos numa relação assalariada,
detêm a força-invenção, cada cérebro-corpo é fonte de valor, cada parte da rede pode tornar-se vetor de
valorização. Assim, o que vem à tona é a biopotência do coletivo, a riqueza biopolítica da multidão” (Pelbart,
apud Pougy, 2006, pp. 5-6).
64
dos agentes aqui considerados assentados caboclos. Cartografar é perceber o
movimento dos corpos e compor, com esse movimento, a cartografia desenhada
pelos corpos.
Penso que se trata de um grande desafio, pois o que parece automático em
pesquisas cientificas é a reprodução de valores sobre a vida das multidões, valores
que a academia ajuda a legitimar. A necessidade de formar uma cultura não
alienada acaba, muitas vezes, por esmagar histórias, saberes, processos
autogestionários, práticas, experiências de vida que bastante contribuíram para a
ciência tornar-se ciência. Portanto, a produção de subjetividades capitalística seria
oposta ao que desejo encontrar nesse modo de se relacionar em pesquisa que,
segundo Guattari e Rolnik (2000, pp. 16-17):
(...) é possível desenvolver modos de subjetivação singulares, aquilo
que poderíamos chamar de “processos de singularização” : uma maneira
de recusar todos esses modos de encodificação preestabelecidos, todos
esses modos de manipulação e de telecomando, recusá-los para construir,
de certa forma, modos de sensibilidade, modos de relação com o outro,
modos de produção, modos de criatividade que produzem uma
subjetividade singular. Uma singularização existencial que coincida com um
desejo , com um gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo no
qual nos encontramos, com a instauração de dispositivos para mudar os
tipos de sociedade, os tipos de valores que não o os nossos. assim
algumas palavras-cilada (como a palavra cultura), noções-anteparo que
nos impedem de pensar a realidade dos processos em questão.
Então, não desejo impor modos de viver, controlar manifestações, vigiar
comportamentos, doutrinar pensamentos, punir decisões, mas sim reconhecer que,
no dia-a-dia existem tanto produções de uma vida que busca romper com o
estabelecido quanto reproduções de práticas oriundas desde a convivência familiar
até a decisão de engajar-se ao MST. E tais práticas de produção e de reprodução
não inviabilizam a reinvenção de um outro conviver em grupo, pois nada é igual,
como também nem tudo é sempre novo. O que existe são relações micropolíticas a
todo o momento.
4.2 Cartografia: justificando a proposta a partir da problemática
Criar dispositivos para que a problemática esteja sempre se
colocando e se recolocando (Guattari)
Penso ser importante fazer, aqui, uma pausa na proposta...
65
Acredito que este espaço me permite um contar minhas histórias. Claro,
apenas um rápido contar.
Sempre me indignei com as injustiças, mesmo que fossem justificadas
legalmente e desejadas socialmente. Indigno-me com as situações de despejo em
espaços urbanos e rurais onde famílias, pessoas, seres, sem-terra, sem-teto,
desempregados, entre outros substantivos, que desacomodam a paisagem
constituída, são deslocados para longe dos olhos e do bem-estar da “casta”
sociedade capitalista. De acordo com Foucault (2002), os “homens infames” são
condicionados à geografia e à arquitetura hegemônica.
Mas, a indignação acima apresentada é, também, resultado da trajetória de
uma família de pequenos agricultores, que é a minha história. No auge do êxodo
rural, na década de 70, minha família sai do espaço rural para o urbano. Família
sem-terra, tornando-se sem-teto, compõe esse mapa junto a muitas outras famílias
brasileiras.
A experiência de êxodo junto ao grupo familiar não vivi diretamente, contudo,
as marcas imprimidas nos corpos
71
de meus pais me afetam e, igualmente, marcam-
me. O jeito caboclo de manifestar o modo de viver potencializando o encontro
contribuiu para que eu não estabelecesse regras cheias de gessos, oriundas de
informações dos mais diferentes meios de comunicação social, quando me
aproximava dos acampamentos e dos assentamentos de Reforma Agrária do MST.
Segundo Castoriades (1995), o imaginário construído a respeito do pobre,
imaginário que não quer o questionamento nem a ruptura com o poder constituído,
sustenta a concentração de riqueza e de terra no Brasil. Esse imaginário, por muitas
vezes, invadiu meu corpo na tentativa de controlá-lo. Contudo, não porque
conheço esta realidade, mas porque ela não está longe de mim e, sim, atravessada
nas minhas histórias
72
, que são histórias de vida, junto a diversos coletivos, tento
romper com os preconceitos que estigmatizam e manipulam as informações e as
formações da vida em sociedade.
71
“O pensamento não se reduz aos chamados discursos racionais. Existem pensamentos-corpo, pensamentos-
afeto, pensamentos-percepção, pensamentos-signo, pensamentos-conceito, pensamentos-gesto, pensamentos-
máquina e pensamentos-mundo. O espaço do saber é habitado, animado, por intelectuais coletivos- imaginantes
coletivos- em permanente reconfiguração dinâmica.” (Lévy, 2003, p. 121).
72
(...) Não existe uma história, uma História que seja como uma espécie de mangueira, de modo que totalize
todo o devir da vida social em um espaço e um tempo só; mas diz que existem histórias econômicas, culturais,
ideológicas, do desejo, da afetividade, da vontade, histórias raciais, histórias das gerações (Baremblitt, 1998,
p.42).
66
No espaço, acadêmico sempre busquei aproximação nos acampamentos e
nos assentamentos de reforma agrária do MST. Fiz estágio, em 1996 pela Cáritas
Diocesana de Pelotas, acompanhando diretamente a organização de um
assentamento que resultou, logo depois, em meu trabalho de conclusão de curso.
No Mestrado, em 1998, mantive esse envolvimento, pois a dissertação pretendeu
apresentar uma análise do cotidiano dos assentamentos do MST
73
. Chego, em
2004, ao doutorado, instigada a produzir uma tese que garanta este desejo,
existente em mim, em estudar, pesquisar, considerar os assentamentos do MST.
Acredito que as minhas diferentes histórias, em diferentes espaços, com
diferentes coletivos, sempre produziram a minha formação voltada à luta dos
“homens infames” e seus modos de viver, agora nomeados aqui como objeto
74
,
proporcionando novamente esse encontro.
Então, como os caboclos reinventam seu modo de viver o cotidiano num
assentamento de Reforma Agrária da região Sul do Estado do Rio Grande do
Sul/Brasil foi a problemática aqui estudada. Seus objetivos percorreram a análise da
manifestação dos modos de viver caboclo num assentamento de reforma agrária
como resistência à imposição capitalística.
A pertinência desta busca em contribuir para a produção do modo de vida
que, por si, demonstra potencial suficiente para enfrentar as ofertas impostas pelo
capitalismo. Contudo, entendo que se faz necessário apresentar este objetivo
explicitando as especificidades que o cercaram: problematizar imagens socialmente
produzidas sobre o modo de viver caboclo nos assentamentos de Reforma Agrária;
analisar a concepção de terra que desenha os modos de vida cabocla; conhecer
como se manifesta a cultura como modo de existência cabocla; analisar a
concepção de trabalho frente aos processos de decisão coletiva; potencializar as
relações criativas dos assentados como diferencial para a reinvenção do modo de
vida caboclo; reafirmar a produção para o autoconsumo e a comercialização do
produto como potência do viver caboclo; reconhecer o processo organizante para a
convivência familiar.
73
Esse estudo resultou na publicação: Facetas do Cotidiano- o dia-a-dia dos assentamentos do MST, pela editora
EDUCAT/ Pelotas, em 2001.
74
“O cartógrafo procura afirmar-se através do encontro com o objeto e não no distanciamento dele. (...)
Cartógrafo e objeto nascem juntos e percorrem a vida de modo inseparável na criação de problemas (Kirst,
2003, p. 96).
67
Assim, justificar a importância de uma proposta de pesquisa é algo que se
coloca como desafio para cada agente que pretende apresentar seu estudo. E
como desafio desempenha tentativas para convencer que a sua proposta é muito
importante? Mas para quem? Para a população? Para a profissão? Para a
academia? Para quê? Apenas descrição de relatos? Ou analises fechadas e
ortodoxas sobre a realidade?
Dessa forma, as perguntas acima nada mais são do que questionamentos e,
por isso, tento arriscar a desenvolver esta escrita que percorre os caminhos do
desejo da produção. Que produção? Produção do conhecimento não individualizado,
como resultado de vários processos.
Acredito, então, que as pesquisas que surgem no cenário das universidades
devam ter a preocupação de não somente absorver informações, pois, se assim
fazem, enrijecem o conhecimento científico, tornando-o limitado e incolor, mas no
entrelace de informações, consideram que as multidões, em seus mais diferentes
espaços, não devem servir como laboratório de experiência de alguns “grandes”
pesquisadores.
É com a preocupação de construir, junto com os assentados do MST, um
estudo, bem como seu procedimento metodológico que, na arte de descobrir os
caminhos do saber, através das suas paisagens, de seus relevos sobressalientes,
de suas estrelas que orientam buscas e desorientam verdades, que é possível
justificar o fazer pesquisa, considerando a importância que esta tem, quando se
torna instrumento das revoluções cotidianas em lugares do ensino acadêmico, bem
como nos assentamentos do MST.
Então, qual será o cenário que percorrerá esta proposta? Vale, aqui, algumas
histórias contextualizadas ...
No final da década de 70 e inicio da década de 80, o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra apontou no cenário nacional como movimento de
luta pela terra e reforma agrária, garantindo sua resistência contra a política agrária
imposta pelos governos ao longo de cadas. Frente à precariedade de condições
no meio rural, em cinco anos, o MST, a partir do Rio Grande do Sul, articulou-se em
todos os estados brasileiros (Ribeiro, 2001). A constituição do movimento se deu na
organização de acampamentos de resistência em latifúndios distribuídos no território
agrário nacional. Com o lema: ocupar, resistir e produzir, definido no congresso
68
nacional de 1990, o MST foi adquirindo adesão de várias populações que estavam
jogadas nos porões das cidades, conforme afirmou um assentado na obra de Ribeiro
(2001, p. 113): “... o povo que se reuniu aqui é um povo que veio de uma exclusão
social, um povo que estava num extremo abandono...”. Os assentamentos
resultam como espaço de garantia de sobrevivência permanente das famílias que
estavam acampadas e, por isso, sugerem novos enfrentamentos, pois é preciso
buscar coletivamente as alternativas para viver através de atividades agrícolas.
A contextualização das lutas do MST sublinha a realidade regional como
expressão de um Estado e de uma nação marcada pela explícita desigualdade
econômica e social construída no sistema capitalista. A questão agrária é hoje
manifestada como um dos grandes problemas sociais no Brasil, porque o “direito à
propriedade” não permite a garantia de sobrevivência para a maioria da população,
que é subjugada na lógica do capital. O repasse de terras não resolve a
problemática fundiária, por não mexer na concentração de bens e recursos
nacionais. Assim, reforma agrária significa mudança rural e urbana. Destaca
Fernandes (2001, p. 23): “A questão agrária é o movimento do conjunto de
problemas relativos ao desenvolvimento da agropecuária e das lutas de resistência
dos trabalhadores, que são inerentes ao processo desigual (..) das relações
capitalistas de produção”.
A realidade dos assentamentos do MST que compõem a região Sul do Estado
apresenta a importância da reinvenção do modo de vida através da diversidade que
é marcada por um jeito novo de conviver num espaço potencialmente campesino.
Esse modo de vida oferece práticas que viabilizam a desconstrução de imposições
técnicas e governamentais, que o coletivo é capaz de decidir suas metas e suas
linhas de ação. É importante registrar que é crucial a definição de problemas e
soluções pelos próprios coletivos aonde estes irão também definir seus limites do
que é possível e impossível (Baremblitt, 1998).
Os assentamentos vão-se configurando na produção econômica de forma
cooperativa e familiar, dividindo-se em grupos por afinidades e projeções coletivas.
O cultivo da agroecologia demonstra uma postura de relação com a natureza através
do plantio de frutas, legumes, verduras, milho, arroz e feijão, como também através
do trato animal. Cabe, aqui, salientar que as escolhas de produção coletiva ou
familiar são feitas a partir da aproximação que os assentados criam no tempo de
69
acampamento, bem como fruto das experiências acumuladas na trajetória familiar.
Para Stédile (2005, p. 17):
(...) Na Geografia, é comum a utilização da “expressão questão
agrária” para explicar a forma como as sociedades, como as pessoas vão
se apropriando da utilização do principal bem da natureza, que é a terra, e
como vai ocorrendo a ocupação humana no território(...).
Outras expressões nos assentamentos são: a manifestação da religiosidade,
nas práticas católica, protestante e de outros movimentos religiosos recentes no
cotidiano; as várias etnias que garantem um espaço múltiplo de convivência onde os
assentados reinventam um cotidiano dinâmico na arte do fazer e do agir no dia-a-
dia; a organização interna de cada assentamento, que é definida entre as famílias
assentadas; as decisões coletivas são tomadas a partir de cada grupo de trabalho
com seus respectivos coordenadores e um coordenador geral do assentamento com
representação na organização regional dos assentamentos, Ribeiro (2001).
É importante contar, ainda, que o MST possui hoje um setor nacional que
oferece várias áreas de concentração e linhas de pesquisa. Uma linha de pesquisa é
o Desenvolvimento local e regional, cujo eixo temático caracteriza-se pelos impactos
socioespaciais dos assentamentos (Fernandes, 2001). Penso que tais iniciativas, as
quais surgem de dentro do MST, demonstram a vontade de romper com pacotes que
pretendem explicar uma realidade que se faz a cada dia.
As práticas campesinas do MST, bem como de outros movimentos sociais
rurais, começaram a entrar em cena em meados da década de 90, com a articulação
internacional dos camponeses na Via Campesina. Até então, as ações dos
movimentos sociais eram basicamente voltadas à luta e conquista da terra e pela
Reforma Agrária. Agora, as ações voltam-se para questões como segurança
alimentar, biodiversidade e recursos genéticos (cf. Cartilha da Via Campesina).
Com o cuidado de o fechar o cenário dos assentamentos da região, pois
isso seria impossível através desses histórias, desejo afirmar que foi preciso
aproximação junto ao MST, para que a justificativa que cerca esta proposta de
pesquisa torne cada vez mais legítima a vontade desses outros agentes,
personagens, atores, contadores, que são os assentados e seus modos caboclos de
manifestar um outro viver.
70
Para tanto, é preciso que se relacione esta proposta de pesquisa com o
trabalho e com a formação do Serviço Social no Brasil. Depois de uma longa
trajetória histórico-teórico-metodológica, a profissão coloca-se hoje numa relação
política que exige reconhecer as lutas coletivas e, se assim desejar, poder participar
desses processos. Esse comprometimento é possível encontrar no código de ética
profissional, CRESS (2000, p. 28), quando se afirma que é direito do Assistente
Social “apoiar/e ou participar dos movimentos sociais e organizações populares
vinculados à luta pela consolidação e ampliação da democracia e dos direitos de
cidadania”.
Um exemplo existente do exercício deste direito, evidenciado pelo Código de
Ética, ocorre na região Sul do Estado, onde a aproximação se através de estágio
curricular, de grupo de estudo e de pesquisa em assentamentos de Reforma Agrária.
Essa proposta de formação profissional vem sendo construída há, pelo menos,
dez anos, resultando em trabalhos de conclusão de curso e de nculo do agir
profissional dos acadêmicos que se formam. Essa trajetória é resultado do
comprometimento coletivo que foi produzido para tal fim. Especificamente atuo como
supervisora acadêmica e orientadora dos trabalhos de conclusão de curso e do
grupo de pesquisa.
Penso que poder apresentar a resistência coletiva frente à reprodução dos
modos de vida ofertados pelo sistema através de outros modos de viver e, portanto,
a partir do desenho de uma cartografia vívica pelos assentados é, sim, andar por
outras rotas, é fazer o agir profissional a partir de quem vive no local, de quem luta
por outra vida, de quem existe no cotidiano, ou seja, é exercitar a capacidade que
hoje está cada vez mais sufocada, a de colocar-se no lugar, não para dar voz,
porque os assentados já a têm, mas para aliar-se a suas vozes, que não são
manifestações individualizadas, mas coletivas.
Essa postura, que também se caracteriza pela preocupação em construir um
agir profissional competente não se mortifica pelas tarefas das quais precisa dar
conta, mas busca problematizar a relação com tais tarefas, não as congelando num
simples desempenho de papéis, de funções, de obrigações, mas pensando esse
lugar profissional no mundo, ou melhor, apontado os diferentes mundos que
borbulham no cotidiano coletivo. Perrenoud (1999, p.20):
71
A competência [...] seria essa capacidade de continuamente
improvisar e inventar algo novo, sem lançar mão de uma lista
preestabelecida. Nessa perspectiva, a competência seria uma
característica da espécie humana, constituindo-se na capacidade de criar
respostas sem tirá-las de um repertório.
Este estudo carrega o desejo de contribuir para uma formação profissional
que produza linhas de sensibilidades que instiguem relações transversais,
considerando os diferentes saberes sem adjetivá-los, reconhecendo as revoluções
micropolíticas como ferramentas de um poder criativo e coletivo. Isso,porque a
atuação profissional não se resume ao velho dilema de descobrir se existe ou não
separação entre teoria e prática. O trabalho e a formação profissional são modos de
se relacionar, de existir junto a outros diferentes modos e, assim, a sua legitimação
se torna processo. Portanto, não se separa teoria e prática, conforme Foucault
(1996, p. 70): “[...] Não se refaz uma teoria, fazem-se outras; outras a serem
feitas”.
O desejo acima referenciado encontra-se na busca de espaços capazes de
permitir o convívio com o diferente, com o inesperado, com a mudança constante,
com as metamorfoses da própria formação profissional. Nessa perspectiva, torna-se
necessário buscar, nesses espaços de formação, agenciamentos que disparem num
movimento sem volta, ou seja, num movimento das revoluções cotidianas.
Assim, para que seja possível fortalecer esta proposta de estudo/pesquisa
implicada também na formação e no trabalho profissional do Serviço Social, na
relação com a multidão e com seus caminhos revolucionários, o item que segue
pretende apresentar as referências que são ferramentas deste caminhar.
4.3 Cartografia: fundamentando os movimentos teóricos
Como um “equilibrista” que não desiste de assumir os desafios das linhas que
desenham o seu modo de viver, este estudo tenta contar histórias parecidas, nas
quais existe dança através dos ritmos mais diferentes, mesmo dentro da sociedade
72
que reproduz subjetivações capitalísticas
75
. Assim, o estudo tem a perspectiva de
cruzar pensamentos no campo das ciências sociais aplicadas e ciências humanas, a
fim de adquirir subsídios que fundamentem o conhecimento aqui gestado. Sendo
assim, várias são as contribuições de autores para esta escrita, como as de Michel
Foucault, Felix Guattari, Gilles Deleuze e Gregório Baremblitt, que serão
imprescindíveis para a produção do saber coletivo.
O Movimento de Trabalhadores Rurais Sem-Terra, MST, alia-se
76
aos
movimentos sociais do campo que articulam coletivamente a Via-Campesina
77
. Entre
outras propostas, defendem um modo de viver no campo como perspectiva de
resistência às imposições do sistema que tenta, dia a dia, subalternizar pequenos
agricultores e assentados do MST. Aqui, considero a fala de um dos integrantes da
Via Campesina quando, em uma manifestação pública, no município de Pelotas
(2004), através de um equipamento, o microfone, disse: “Precisamos ser criativos
para resistir neste sistema...”.
Então, de se pensar que criatividade é essa? Como é possível reinventar
um modo de viver em assentamento, quando a subjetividade coletiva impõe práticas
de dependência do mercado? Portanto, mais do que responder a problemas ou criar
problemas de pesquisa, este texto pretende buscar contribuições de análises sobre
os modos de existência cabocla que são produzidos pelas diversas e diferentes
forças ativas, inventivas e criadoras que têm a capacidade de oferecer novas
manifestações para outras formas de vida.
A marca primeira nesse processo de descobertas será o analisador
78
,
invenção que, junto com os demais analisadores, instigará discussões e
questionamentos a serem trocados. Mas, por que invenção? é muito difícil ser, o
75
“(...) não é apenas uma questão de idéia, não é apenas transmissão de significações por meio de enunciados
significantes. Tampouco se reduz a modelos de identidade, ou a identificações com los maternos, paternos,
etc. Trata-se de sistemas de conexões diretas entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de
controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo” (Guattari; Rolnik, 2000, p.
27)
76
“Alianças que se configuram na atualidade é praticar a história do presente. História difícil, pois depende da
captação de linhas, movimentos, fluxos, devires, forças e tendências, e não do apoio em estratos, teorias,
sistemas que foram sedimentados ao longo do tempo” ( Kastrup, 1999, p. 18)
77
A Via-Campesina é um movimento internacional que coordena organizações camponesas de médios e
pequenos agricultores, trabalhadores agrícolas, mulheres rurais e comunidades indígenas da Ásia, África,
América e Europa. (Cf. Cartilha Via Campesina, MST-CONCRAB, fev. 2001, p.01).
78
Este texto quer superar a proposta de categorização de idéias e oferecer um outro entendimento que Baremblitt
chama de analisador, pois tem uma ampla abrangência tanto através de efeitos verbais como qualquer outra
materialidade. “... não é apenas um fenômeno cuja função especifica é exprimir, manifestar, evidenciar,
denunciar. Ele mesmo contém os elementos para se auto-entender, ou seja, para começar o processo de seu
próprio esclarecimento” (1998, p. 71).
73
que dizer ser caboclo e reinventar seu modo de viver em assentamentos do MST?
Para intensificar mais essas interrogações, é preciso aproveitar as contribuições de
Virgínia Kastrup (1999, p. 24), quando nos desafia a pensar que, no tempo coletivo,
é possível viver um devir criativo no qual é necessário buscar linhas de fuga em
relação às concepções tradicionais da sociologia e da psicologia.
...a invenção não pode ser definida como um processo psicológico particular,
que responderia pela criação de respostas novas. Nem pode ser considerada obra
de um sujeito psicológico, que seria o centro gerador da invenção. A invenção
surge de um fundo arqueológico ou temporal ... aparece, então, como um processo
dotado de uma inventividade intrínseca, processo de diferenciação em relação a si
mesma, o que responde pela criação de múltiplos e inéditos regimes de
funcionamento. Ela é, assim, seu principal invento.
Portanto, a invenção considerada aqui não é o produto de alguns experts”,
mas possibilidade de todos agentes que fazem parte do cotidiano dos
assentamentos. O dia-a-dia, nesses espaços, exige que se crie resistência capaz de
demonstrar insatisfações à modelização criada socialmente. Para tanto, o caboclo
reinventa um modo de vida, não para defender um passado assegurado numa
historiografia das relações no campo, no trabalho, na família e na cultura, mas para
gerir um ser coletivo que segundo Kastrup (1999, p. 187), “..refere-se a uma
multiplicidade, a uma rede de processos que opera, ao mesmo tempo, além do
individuo, junto do socius...”. Um ser coletivo, que incomodado, mistura-se nos
territórios e se desterritorializa a cada disparate. Então, reinventar é viver o que não
existiu, o novo, o avesso, a não verdade da realidade...
A manifestação da existência de outros modos de vida cabocla não será
determinada por uma defesa de identidade que modela, classifica e normatiza
práticas tentando homogeneizar o que é heterogêneo. Aqui, não é possível defender
hegemonias, pois estas são impositivas e condenam a vida e a morte dos processos
de auto-análise e de autogestão dos coletivos.
Assim, surge o devir como outro analisador. Devir que é a própria mudança
do ser coletivo frente às suas multiplicidades. Devir que é a própria produção
provocadora de viagens com a disposição de romper com as fronteiras do saber.
Para Guattari e Rolnik (2000, p. 318):
Devir, termo relativo à economia do desejo. Os fluxos de desejo procedem
por afetos e devires, independente do fato de que possam ser ou não calcados
sobre pessoas, sobre imagens, sobre identificações. Assim um indivíduo,
74
etiquetado antropologicamente como masculino, pode ser atravessado por devires
múltiplos e, aparentemente, contraditórios: devir feminino que coexiste com um
devir criança, um devir animal, um devir invisível, etc...
O devir instaura dúvidas e incertezas, condena cristalizações e demarcações
de territórios fechados, e, nesse movimento, espaços criativos instituintes
79
vão
revolucionando um modo de vida em acontecimentos que eruptam e transformam o
corpo que estava antes docilizado, o qual, para Jaggar e Bordo (1997, p. 20), “... e
regulado, colocado a serviço das normas da vida cultural e habituado às mesmas”.
Viver a contradição, o desatino, o afeto constituinte da multidão, segundo Kirst
e Fonseca (2003, p. 132), “entendendo essa como um conjunto de múltiplas
emergências, de forças singulares”, é viver o devir caboclo que desenha um outro
ser coletivo nas paisagens dos assentamentos. O devir, então, é movimento que não
estaciona e não é controlado. É movimento que persegue linhas para evitar
equilíbrios, certezas, harmonias. Devir é processo, no qual Guattari e Rolnik (2000,
p. 321) destacam: “... seqüências de fatos ou de operações que podem levar a
outras seqüências de fatos e de operações. O processo implica a idéia de ruptura
permanente dos equilíbrios estabelecidos”
As linhas, as divergências, as conexões e as desconexões propiciam
invenções e, assim, corre-se o risco de, através de alianças heterogêneas, saber
reinventar os modos de viver coletivamente que, segundo Baremblitt (1998, p. 16):
É uma ontologia, uma teoria do devir que, desde a base (se isto se pode
chamar “base”), propõe um tipo de vida que confie nisto, que acredite que somos
portadores de uma energia criativa que nos faz formar parte de um mundo que é
simultaneamente físico, natural, humano e maquínico.
A proposta desta análise é expressar que existe nos mais diferentes coletivos
e, nesse caso, no assentamento de reforma agrária do MST, como lembram Guattari
e Rolnik (2000, p. 127), “micropolíticas de formação do desejo no campo social, diz
respeito ao modo como se cruza o nível das diferenças sociais mais amplas”.
Micropolíticas que vão para além das repetições discursivas e ideológicas, pois, em
seus fluxos, oferecem abertura de caminhos que articulam a vida de seus espaços
livres de rumos estabelecidos pela sociedade.
79
Para Baremblitt (1998), o instituinte é dinâmico e não aceita conservação.
75
Outro analisador entra em cena. Aqui, indico como cotidiano que, segundo
Certeau (1998, p. 31), é“... aquilo que nos prende intimamente a partir do interior. É
uma história a meio-caminho de nós mesmos, quase em retirada...” O cotidiano é
aquele que atravessa os assentamentos no trato do dia-a-dia, exigindo dos
assentados a resistência em permanecer num espaço que é extremamente
diversificado, tanto no que se refere à constituição familiar de cada grupo, quanto no
entendimento sobre produção para subsistência. A pressão do cotidiano impõe
normas para viver, tais como: acordar, fazer a refeição, plantar, cozinhar, morar,
criando condições que são cruzadas por desejos e fadigas.
O ambiente de moradia define automaticamente ações que condicionam a
repetição, mas que também propõem criação, quando se torna possível reinventar o
que se quer e como se quer viver frente a um coletivo que impõe análises e
articulações conjuntas. O que não é comum em outros espaços de moradia na
sociedade. Como lembra Certeau (1998, p. 40):
A fixidez do habitat dos usuários, o costume recíproco do fato da vizinhança,
os processos de reconhecimento... todos esses elementos “práticos” ... nos
oferecem como imensos campos de exploração em vista de compreender um
pouco melhor esta grande desconhecida que é a vida cotidiana.
Assim, fazer pesquisa significa conectar-se nesses espaços, não como seres
iguais, mas como seres ltiplos, vivendo situações no assentamento para poder ir
além de uma interpretação da realidade, reconhecendo as trajetórias que agilizam
as práticas sociais dos assentados.
A costura dos retalhos da vida traz o colorido, o criativo, os detalhes e as
interrogações do como fazer com que uma parte de um todo possa ser uma parte
singular que manifeste o seu jeito especifico. A arte está em pensar no fazer, não
como algo dado e acabado, mas como algo que precisa não ser refletido somente
no coletivo, mas ser auto-entendido no dia a dia. Portanto, o desafio está colocado,
e as interrogações que o permeiam estão em ebulição, porque poder verificar as
manifestações dos modos de vida dos assentados, manifestações do viver caboclo,
no assentamento de reforma agrária, é certamente perceber as tentativas de andar
na contramão da sociedade.
Entendo que, no entrelace de analisadores, é notória a importância de um
outro: a singularização
. A singularização é entendida, aqui, como processo noqual a
76
experiência produz e cria modos de organização do cotidiano que, para Guattari e
Rolnik (2000, p. 17), são:
...uma maneira de recusar todos esses modos de encodificação
preestabelecidos, todos esses modos de manipulação e de telecomando, recusá-
los para construir, de certa forma, modos de sensibilidade , modos de relação com
o outro, modos de produção, modos de criatividade que produzam uma
subjetividade singular. Uma singularização existencial que coincida com um desejo,
com um gosto de viver, com a instauração de dispositivos para mudar os tipos de
sociedade, os tipos de valores que não são os nossos...
A singularização é o desenvolver do singular original, do singular que cria,
produz e reinventa o modo de vida caboclo, apontando um diferencial no cotidiano.
A singularização é o processo que considera o poder local, caracterizando-se como
força que impulsiona um tipo de fazer que encarna outros processos de avaliar e
reavaliar livremente a vida suas moradias, nos assentamentos. Assim, o viver
alarga-se através das condições que o acompanham, opondo-se à subjetividade
assujeitada que, segundo Guattari e Rolnik (2000, p. 42): “... fabrica relação com a
produção, com a natureza, com os fatos, com o movimento, com o corpo, com a
alimentação...”, pois é orientada por uma ordem mundial que inviabiliza a criação de
movimentos de protesto
80
.
O MST resiste a essa imposição, quando as originalidades de suas lutas
estão asseguradas no processo de busca de contingentes absolutamente gerados
por acontecimentos revolucionários na sociedade, bem como na convivência
cotidiana em seus assentamentos, quando é possível garantir o lugar do diferente,
não submetendo cada assentado, mas propiciando espaços de saber. De acordo
com Lévy (2003, p. 121):
...Tem a ver com um espaço cosmopolita e sem fronteiras de relações e de
qualidades; um espaço da metamorfose das relações e do surgimento das
maneiras de ser; um espaço em que se unem os processos de subjetivação...
No cotidiano, os processos de singularização potencializam o modo de vida
no campo, visto o que poder
81
e o saber dos assentados expressam-se, e esse
exercício colabora no desmonte de um outro saber, que é dominante e oferece os
ranços da cultura capitalística. O que existe, então, nesse espaço, é o saber e o
80
Para Baremblitt (1998) o instituinte é força que existe na produção e aparece como processo.
81
“(...)É possível que as lutas que realizam agora e as teorias locais, regionais, descontínuas, que estão se
elaborando nestas lutas e fazem parte delas, sejam o começo de uma descoberta do modo como se exerce o
poder” (Foucault, 1996, p. 76).
77
poder que para Negri (2001, p. III), é como “... uma potência constituinte que não se
deixa reduzir à transcendência do poder constituído...”, porque é um poder vivido
coletivamente.
Seguindo as linhas que estão em movimento neste texto, é pertinente
apresentar outro analisador que chamo de agenciamentos. Destacam ainda,
Guattari e Rolnik (2000, p. 317): “Um agenciamento comporta componentes
heterogêneos, tanto de ordem biológica, quanto social, maquínica,... imaginária”.
Assim, trago este analisador como relação dos demais apresentados, porque um
depende do outro, ou seja, o ser caboclo se constitui como modo de vida e, para
isso, a realidade se realiza através das conexões transversais cotidianas.
Os agenciamentos perturbam para afetar o instituído, ou seja, uma
reprodução de modos de viver plagiados pelo capitalismo. Então, este, segundo
Baremblitt (1998, p. 178): “... tem uma tendência a permanecer estático e imutável...
tornando-se assim resistente e conservador” nas relações e, nesse caso, nos
assentamentos do MST. Agenciar é comunicar, agenciar é ser capturado pelo
movimento produzindo processos de diferenciação. As tentativas de resistência dos
assentados frente à ordem mundial capitalista são formas de agenciar. Mas, esse
agenciar não pretende massificar, porque para Kastrup (1999, p. 188):
...toda forma constituída, guarde ela uma maior ou menor potência
inventiva, pode sempre, de direito, ser desmanchada e reinventada de
acordo com sua comunicação com o plano do agenciamento coletivo, onde
fluxos diversos estão em movimento permanente.
Os conhecimentos e os sentimentos são recíprocos e, nos processos
coletivos, não devem ser considerados isoladamente. Os agenciamentos fecundam
outros momentos e outros modos de vida que no movimento dos corpos, provocam
arrebatamento, resistência, confronto, como também descobertas, capturas,
emergências. Baremblitt 1998, p.151) afirma:
...é uma montagem ou artifício produtor de inovações que gera
acontecimentos, atualiza virtualidades e inventa o Novo Radical. Em um
dispositivo, a meta a alcançar é o processo que a gera, são imanentes
entre si ... comportam elementos heterogêneos que ignoram os limites
formalmente constituídos das entidades molares... geradores da Diferença
Absoluta, produzem realidades alternativas e revolucionárias que
transformam o horizonte do considerado Real.
78
Portanto, os acontecimentos que surgem em assentamentos do MST, nos
processos micro, criam disposições e buscam resistir à sujeição, que é perversa e
tirânica, resultante de práticas antiprodutivas do sistema. Estar no campo como ser
coletivo é ser contra a manipulação determinada nos processos macrossociais. O
simples cultivo de uma horta agroecológica, ou seja, produção livre de agrotóxicos,
como também abolição do cultivo de transgênico em lavouras, expressa o desejo de
viver cada vez mais modos de singularização, que consistem em garantir revoluções
no dia-a-dia
82
.
Vários são os analisadores que contribuíram para o caminhar desta pesquisa.
Entretanto, foram referenciados alguns para dar rota ao caminhar das descobertas,
que não pretendem fechar-se, nem impor a “verdade” sobre as manifestações do
modo de vida caboclo. Assim, o capítulo que segue pretende apresentar esse modo
de fazer pesquisa, ou seja, apresentar o campo de pesquisa com os seus
acontecimentos e seus agentes.
82
“A revolução molecular consiste em produzir as condições não de uma vida coletiva, mas também da
encarnação da vida para si próprio, tanto no campo material, quanto no campo subjetivo” (Guattari; Rolnik,
2000, P. 46).
79
5. CARTOGRAFIAS COLETIVAS: nas margens da produção
A proposta deste capítulo é de apresentar o espaço da pesquisa com seus
agentes, através de suas manifestações no viver cotidiano. Para tanto entendo
importante que a escrita aconteça num movimento de encontro com as escolhas
teóricas e políticas feitas pela autora frente à profissão de Serviço Social. Não como
um registro que pretende apresentar uma receita de como se deve produzir pesquisa
e, portanto, como a partir desta as intervenções deverão ser realizadas, porque não
é o objetivo deste texto, nem poderia ser, pois as receitas geralmente enrijecem a
criatividade, mas o que desejo, aqui, é lançar vôos livres.
Assim, a escrita abaixo quer anunciar possibilidades, sendo ela mesma um
devir, porque não certeza alguma dos impactos, mas sabe-se que ela acontece
num movimento infinito.
5.1 O acontecimento numa Nova Estética: contrariando os discursos
mortificados nos encontros que se registram
Por que considerar este encontro, pesquisa, como acontecimento? Por que
não chamar, simplesmente, de coleta de dados? De atividade de pesquisa?
Conforme apresentado no capítulo anterior, a proposta deste estudo é de
conhecer os territórios e as desterritorializações através do saber coletivo e,
portanto, do conhecimento que se cria entre conexões e desconexões cotidianas. O
movimento de territorializar, assim como o de desterritorializar acontece como um
platô, que este é a parte móvel da planta onde se estabelecem conexões.
“Chamamos de platô toda multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas
superficiais de maneira a formar e estender um rizoma”. (Deleuze; Guattari, 2004, p.
33). Então, não está sendo considerado o fato de coletar informações, mas de
operacionalizá-las de modo cartográfico, de modo a perceber as relações, as lutas,
os fragmentos do dia-a-dia, ou seja, o movimento dos platôs, melhor dizendo o
movimento do acontecer no coletivo.
80
Para tanto, é importante apresentar o espaço de acolhida desta pesquisa e a
sua micropolítica
83
. O encontro da pesquisa se deu num assentamento de reforma
agrária da região Sul no Estado do Rio Grande do Sul. Um assentamento que
contém 65 famílias e, destas, 10 famílias se tornaram agentes coletivos da pesquisa.
As dez famílias envolvidas fazem parte de um dos grupos existentes no
assentamento
84
. O processo de organização
85
das famílias, quando ocupam o
assentamento, é de desenvolver ações a partir dos próprios grupos, sendo os
encaminhamentos tomados pelos mesmos. No que se referem às decisões no
assentamento, os grupos reúnem-se conjuntamente para encaminhar os interesses
de todas as famílias. Assim, no diálogo abaixo, é possível começar a conhecer as
concepções do grupo da pesquisa:
Por ser um grupo no coletivo, a gente tem mais condições de
trabalhar no conjunto, e tu, ampliar e diversificar tua produção. Então, a
maneira que a gente procura sempre se organizar, né, que a gente,
procurar o máximo, né, diversificar nossa produção, quanto mais dentro do
possível dentro da propriedade, a gente não fica dependente dos produtos
de fora, né. Então, essa, por ser uma facilidade dentro do coletivo, oferece
as condições de tu ampliar, e já o individual essas condições do cara
trabalhando sozinho, de diversificar, fica um pouco limitado, a mão-de-obra
dele são pouca e ele se define por duas, três produção, né, e não tem
condições totais e nóis plantando essa questão de trabalhar no coletivo, o
pessoal se dispôs, a gente distribui as tarefa, né. Vai distribuindo as
tarefa por pessoa dentro do grupo, tem os setores que se distribui, né, um
assume a questão do gado de leite; outro, a questão de suíno; outro, a
questão das aves, e, questão de ovelhas, vai diversificando, né. É que
cada produção tem um significado, tem um, sentido, né, da gente, o
aproveitamento , tu a questão do leite do gado, por exemplo, vem
muitos derivado, a questão do queijo, a questão de alimento que é feito, né,
e até próprio, né, a gente aproveita muito esterco que se usa muito como
adubo além dessa questão do leite se muito isso, a questão dos porco
também, né. Então, você vai... questão que os animais também produzem
adubo que a gente se utiliza questão da lavoura, questão da horta né.
Então, is, dentro do grupo a gente tentou o máximo diversificar. Hoje a
gente um pouquinho mais consolidado nessa produção, a gente já tem
bastante variedade de produto, né. Então, praticamente, é pouca coisa que
a gente depende de buscar de fora, de buscar, porque a gente
conseguindo produzir dentro da própria propriedade. E são isso, quer dizer,
tem qualidade, que a gente sabe né, foi is mesmo que produzimo, e um
83
“A questão micropolítica – ou seja, a questão de uma analítica das formações do desejo no campo social – diz
respeito ao modo como se cruza o nível das diferenças sociais mais amplas (que chamei de molar), com aquele
que chamei de molecular” (Guattari; Rolnik, 2000, p. 127).
84
“Vale dizer que o processo migratório no qual estão inseridos os caboclos faz parte do próprio universo
simbólico caboclo e leva em conta três momentos distintos: a vida no meio rural, a ida para o meio urbano e um
eventual retorno ao meio rural via movimentos sociais” (Martins, 2007, p. 5). Claro que este texto não pretende
reproduzir imagens sobre o universo simbólico, arriscando-se a afirmar que não é mais nos dias de hoje o
eventual o retorno para o campo, e isso se confirma na pesquisa de campo frente às falas e práticas dos agentes.
85
“É necessário para orientar o funcionamento da entidade, mas tem tendência a rigidificar-se e esclerosar-se,
perpetuando-se e tornando-se um objetivo em si mesmo. Assim se exagera em torno de sua função, adquirindo
uma série de vícios; o mais conhecido é a burocracia” (Baremblitt, 1998, p 184).
81
custo bem reduzido, né. Então, esta maneira da gente conseguir hoje
sobreviver, né, na propriedade dessa forma... (Jonas, 14-10-2006).
As decisões por grupo vão desde o modo de produzir o alimento até a
organização da religiosidade. O grupo convidado a participar foi o que manifestava,
por exemplo, a prática agroecológica como uma das regras criadas pelo grupo, bem
como a priorização mais pelo autoconsumo do que pela comercialização, ou seja, a
comercialização acontece a partir da sobra (termo usado pelo grupo). Outra
manifestação importante foi a manutenção do saber e, portanto, do conhecimento
adquirido na trajetória familiar, como: não pôr fogo na mata, não envenenar insetos,
não aprisionar os animais, instigar as crianças a manter uma relação de cuidado
com a natureza de modo a o explorá-la e, sim, perceber-se como mais um ser da
natureza, conforme como lembram Maturana e Varela (2001, p. 12): “(...) se a vida é
um processo de conhecimento, os seres vivos constroem esse conhecimento não a
partir de uma atitude passiva e sim pela interação. Aprendem vivendo e vivem
aprendendo”.
Então, faz-se a opção, aqui, de contar, de modo narrativo, essa produção,
não como um relatório descritivo senão se perderia o desejo pela escrita, mas como
fragmentos vivos do cotidiano, pois, segundo Walter Benjamim (1996, p. 198): “A
experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos
narradores”.
A primeira aproximação da equipe (doutoranda e estagiárias) com os
assentados com o objetivo da pesquisa surgiu depois da combinação da doutoranda
com um agente do grupo. Acertado o encontro, o dia chega...
Chega o dia da apresentação da proposta da pesquisa. A equipe entra no
assentamento com o entusiasmo de se abrir para o que está por vir, ansiedade,
alegria, lembranças, expectativa. Mas expectativa, não de conhecer quem serão as
pessoas, porque estas se tinham encontrado em outros momentos de luta junto
ao MST e, sim, a expectativa de produzir pesquisa com a conexão do coletivo.
No caminho do assentamento, ao longe, enxerga-se o grupo, alguns ainda
na frente de suas casas e outros no espaço coletivo de refeição.
A equipe, estrangeira a esse espaço, aproxima-se. Aos poucos, o cheiro da
mata, o som dos animais, a alegria em cada rosto começam a contagiar e a instigar
a aproximação.
82
Estaciona-se um dos equipamentos importantes da equipe, o carro. Sem ele,
a aproximação seria mais complicada devido à distancia do assentamento em
relação à rodovia ser de 15 km (estrada de chão) e da rodovia até o município de
origem, 60 km.
Quando descemos do carro, vem ao nosso encontro o grupo e, com ele, sua
acolhida: um chimarrão quentinho com sabor de boas vindas. Corria a criançada
para a volta de seus pais e outras, em nossa volta, com o olhar curioso para os
estrangeiros que chegavam. Essa correria e envolvimento não sofreram nenhuma
fala ou olhar controlador do grupo e de seus familiares. Assim, percebemos que
faziam parte do encontro, da pesquisa.
O espaço se tornava colorido, uma vez que oferecia muitos rostos diferentes,
muitos olhares diversos, muitas falas alegres que já manifestavam histórias da
infância, histórias do trabalho no campo como pequenos agricultores, contos das
lutas cotidianas.
Entre uma risada e outra, linhas se misturavam, desenhando uma cartografia
coletiva, manifestando fronteiras, desmanchando-se frente aos modos de viver do
grupo. Assim, num tempo de aproximação, não tão chronos quanto kairòs
86
, fomos
convidados a passar para o espaço que chamavam de salão coletivo, onde seria
servido o almoço. Chegando lá, do outro lado da estrada, à nossa espera, estava
servida uma mesa comunitária, também colorida, que continha saladas, galinha
caipira, sucos e outros tantos alimentos cheios de sabores, além da participação de
cada agente na composição da refeição.
Depois da refeição gostosa, gostosa sob todos os aspectos do encontro,
encontro com tempero do novo, da produção de um conhecimento que se tornava
coletivo, iniciou-se a reunião, claro que somente depois da sobremesa, reunião que
ainda mantinha o caráter de encontro
87
. Começa a apresentação da proposta de
86
“Kairòs é, na concepção clássica do tempo, o instante, ou seja, a qualidade do tempo do instante, o momento
de ruptura e de abertura da temporalidade. É um presente, mas um presente singular e aberto. Singular na decisão
que ele exprime a propósito do vazio sobre o qual se abre. Kairòs é a modalidade do tempo através da qual o ser
se abre, atraído pelo vazio que está no limite do tempo, e decide preencher este vazio. Podemos dizer que, no
Kairòs, nomear e coisa nomeada chegam, ´ao mesmo tempo`, à existência, e que são, portanto, exatamente “isto
aqui?”(Negri, 2003, pp. 43-44).
87
“Mas o que é, precisamente, um encontro com alguém que se ama ? Será um encontro com alguém, ou com
animais que vêm povoá-los, ou com idéias que os invadem, com movimentos que o comovem, sons que os
atravessam? [...] Não é nada enquanto eu não souber encontrar realmente esse conjunto de sons martelados, de
gestos decisivos, de idéias em madeira seca e fogo, de atenção extrema e de fechamento súbito, de risos e
sorrisos que sentimos serem ´perigosos` no mesmo momento em que se sente ternura” (Deleuze, e Parnet, 1998,
p.19). Eu acredito que a prática de pesquisa deve ser carregada de paixão, pois sem paixão não produção do
83
pesquisa com o tema e o modo de fazer, cujo objetivo era de interferir o menos
possível nas atividades cotidianas. Contudo, sabemos que, mesmo com essa
preocupação, era quase impossível, pois na medida em que o estrangeiro chegava,
o cotidiano sofria suas modificações. Depois da apresentação, veio o
posicionamento do grupo em aceitar esse acontecimento. As linhas se
transversalizaram
88
para o início das atividades.
Então, dá-se inicio à apresentação dos fragmentos cotidianos dos encontros
desejantes, nos quais se tentará conectar com os objetivos e analisadores da
pesquisa no item seguinte, em que toda a produção dos dados da pesquisa será
apresentada. O texto pretende seguir o relevo das paisagens que foram surgindo e,
como lembra Kastrup (2007, p.3 e p. 4): “Trata-se aqui de ressaltar que a atenção
cartográfica - ao mesmo tempo flutuante, concentrada e aberta” considera que “A
entrada do aprendiz de cartógrafo no campo de pesquisa coloca imediatamente a
questão de onde pousar sua atenção”. E o pouso dependeu, também, do desejo do
grupo encontrado, para que este contribuísse no processo. Portanto, desenhava-se
coletivamente a cartografia.
Kastrup (2007, p. 8) refere-se à atenção do cartógrafo, afirmando que esta
“deixa de buscar informações para acolher o que lhe acomete. A atenção não busca
algo definido, mas torna-se aberta ao encontro. Trata-se de um gesto de deixar vir”.
E é este deixar vir que propõe o próximo item cujo capítulo será desenvolvido ao
“final”.
5.2. Cartografias Coletivas: por uma estética dos encontros
A metodologia é importante demais para ser deixada aos
metodólogos (Becker, H.)
conhecimento. Esta proposta não tem nenhuma intenção de romantizar a pesquisa, mas de questionar o discurso
das cabeças cristalizadas da ciência cuja defesa é de produzir conhecimento com neutralidade e, assim, um
acervo envelhecido de mesmices constantes no mundo acadêmico. Então, este espaço quer apresentar o desejo de
uma produção coletiva como dispositivo de um conhecimento que acontece e se metamorfoseia a todo o
momento.
88
A transversalidade veiculada pelas linhas de fuga do Desejo e da Produção é uma dimensão do devir que não
se reduz à ordem hierárquica da verticalidade nem à ordem informal da horizontalidade nas organizações. A
transversalidade é capaz de provocar sínteses insólitas entre elementos incompatíveis, gerando efeitos a distância
sem transmissores detectáveis, a partir de conexões locais. É uma travessia molecular dos estratos molares
(Baremblitt, 1998, p. 195).
84
Métodos se fazem no cotidiano, nos movimentos dos processos de
subjetivação, nos acontecimentos, nos instantes-já. (Rogers, P.),
Neste item, pretendo apresentar os encontros com o grupo da pesquisa que
potencializam uma nova estética, ou seja, uma estética contrária às ofertas dos
modelos capitalistas, tanto no que se refere ao cultivo de alimento e ao trato com os
animais, quanto nas manifestações de um conviver coletivo. Essa estética acontece
no desenho feito pelo grupo em seu cotidiano, através de seus diversos modos de
viver. Assim, o registro das falas a partir do viver do grupo contribuiu para a
desconstrução das imagens produzidas no discurso apresentado no primeiro
capítulo, sendo a problematização dessas imagens o primeiro objetivo da pesquisa
cartográfica.
Essa nova estética dos modos de viver caboclo expressa-se em sua
manifestação num assentamento de reforma agrária do MST cujo espaço exige a
reinvenção das práticas coletivas
89
, bem como a implicação de todos envolvidos,
doutoranda, estagiárias e assentados, pois essa estética para Rogers (2006, p.121),
é:
(...) pura imanência, potência de vida, experimentação e não objeto
de interpretação ganha aqui o combustível à engrenagem de uma máquina
estética desejante, com seu remanejo constante de novas fronteiras (...).
A combinação com o grupo de iniciar (a iniciada) a pesquisa definiu que os
encontros seriam nos espaços de moradia de cada família do grupo, bem como em
seus espaços coletivos porque, segundo Kastrup (2007, p.7): “Não é possível
cartografar um território antes de habitá-lo (...) O trabalho vai acontecer nas bordas
do território buscando ultrapassar seus limites”.
Acionada a máquina desejante
90
, em outro dia acontece o primeiro encontro.
A equipe retorna ao assentamento e, no espaço de refeição do grupo, este está à
89
Numa folha de papel, torna-se difícil registrar exatamente todas as sensações, mas é possível fazer a tentativa
para dar vida à escrita, à pesquisa, a produção do conhecimento. Mas, como lembra Guattari: “Partiremos, antes,
de blocos de sensações compostos pelas práticas estéticas aquém do oral, do escritural, do gestual, do postural,
do plástico... que m como função desmanchar as significações coladas às percepções triviais e às opiniões
impregnando os sentimentos comuns. Essa extração de perceptos e de afetos desterritorializados a partir de
percepções e de estados de alma banais nos faz passar, se quisermos, da voz do discurso interior e da presença a
si, no que podem ter de mais padronizado, a vias de passagem em direção a formas radicalmente mutantes de
subjetividade” (Guattari, 2000, p. 114).
90
“As máquinas do desejo, as máquinas de criação estética, pela mesma razão que as máquinas científicas,
remanejam constantemente nossas fronteiras cósmicas. Por essa razão, elas devem tomar um lugar eminente no
interior dos Agenciamentos de subjetivação, eles mesmos chamados a substituir nossas velhas máquinas sociais,
incapazes de seguir a eflorescência de revoluções maquínicas que fazem explodir nosso tempo por todos os
lados” (Guattari, 2000, p. 117-118).
85
espera. Esclareço novamente o cuidado de tentar não alterar as tarefas do grupo e,
então, divide-se a equipe pelas famílias através da definição do grupo. O momento
de diálogo, conhecimento, produção desenha-se, e a equipe vai ao encontro das
famílias em seu espaço de moradia.
Na casa que serve também como “bodega”, lugar onde comercializam
produtos ecológicos e industrializados, com um pomar de pessegueiro em volta,
colorida por pequenas flores e uma grama viva em desenvolvimento, estavam à
nossa espera Joana, Volmir, Graciela
91
(a filha mais velha) e a outra filha pequenina,
Diana, recém nascida. Joana, a embalar a mais nova integrante da família, dividindo
a tarefa do cuidado com seu companheiro. Aquela geografia da espera conectava-se
com a geografia da expectativa, manifestando uma geografia dos afetos. Para
Guattari (2000, p. 118): “O afeto não é questão de representação de discursividade,
mas de existência”.
Aproximando-se da casa, o pomar de pessegueiro foi o primeiro espaço de
apresentação da família. Havia uma garrafa de plástico PET pendurada em cada
pessegueiro, com um conteúdo para controlar as moscas na fruta. Com a
curiosidade de quem não conhece as alternativas criadas pelos assentados em seus
modos de viver, a primeira pergunta surge:
- Conta como é a técnica com as moscas.
- (Volmir) A técnica da mosca pode ser usada, nós aqui usamo mais o
melaço por ser mais fácil de adquirir ele: é um quilo de melado pra dez litro
d’água, mexe bem ele e você põe nas armadilha. Também as armadilha
tem que o cuidado de não fazê o buraco muito grande, né. Tem que
da espessura duma caneta que daí a mosca não tem como ela saí, ela
entra dentro e aí tu põe uma quantia mais ou menos...assim por litro
dependendo do tamanho do litro, mas tem que fica uma quantia boa pra
que a mosca caia dentro ...grude ali e não saia. E outra coisa também,
uma vez por semana pelo menos, quando muito sol forte, tem que
repondo aquele...Evapora o líquido, né. Também pode usado o próprio
suco do pêssego, o suco de laranja, o suco de uva, mas tem que
natural, né...porque ela vem pelo cheiro atrai ela...
- Como se chama esta técnica?
91
Neste texto os nomes dos agentes assentados envolvidos no processo de pesquisa não serão identificados pelo
acordo de sigilo das informações, mesmo que não tenham manifestado problema algum em dizer quem são e o
que fazem. Assim, os nomes no texto são fictícios, o que é uma perda cartográfica, para facilitar a linguagem
escrita. O que interessa considerar são as falas livres, e não as falas aprisionadas, como lembra Guattari (2000, p.
113): “Quando a fala se esvazia é porque ela passou pelo crivo de semiologias escriturais ancoradas na ordem da
lei, do controle dos fatos, gestos e sentimentos (...) entretanto a fala comum se esforça para conservar viva a
presença de um mínimo de componentes semióticos ditos não-verbais, onde as substâncias de expressão
constituídas a partir da entonação, do ritmo, dos traços de rostidade, das posturas etc..., coincidem, se alternam,
se superpõem, conjurando antecipadamente o despotismo da circularidade significante”.
86
- (Volmir) Isca, né...armadilha. E aí também nóis usamo no pomar que
nem esse aqui pequeno, você consegue tê o controle das mosca com
as isca...bota numa árvore sim, e outra não, mas quando dá num pomar
muito grande, não tem jeito, né...
- E o custo?
- (Volmir) Ah, o custo é baixíssimo. Nem se compara você comprá um
veneno químico pra pulverizá, pra matá mosca, né. Daí, quando num
pomar grande que nem embaixo que o se tem como botá uma a cada
duas árvore...é de mais plantas...então nós tivemo um bom controle com o
soro de leite sem sal, a gente aproveita, fizemo queijo pra comercializá
ou pra nóis come e usamo o soro pra pulverizá...senão o sangue de animal
funciona bem...
- Pulveriza?
- (Volmir) A mosca...tudo que vem de resíduo animal ela não gosta,
repele ela...
- Sempre que eu venho aqui, vocês dizem afastá o inseto, não matá?
-(Volmir) Não matá...
- Por quê?
- (Volmir) No ano mais brabo que foi a mosca... nós aqui conseguimo
um controle muito bom, enquanto os que tavam usando o químico não
tinha jeito... porque o produto químico vai viciando, vai
acostumando...então, chega um certo ponto...ele mata mas daí o
organismo das gerações que vão vindo...a mosca vão se acostumando
com aquilo ali, e o veneno químico chega um ponto que ele não serve mais
e aí tem que fazê outro tipo de veneno, pesquisa outro tipo pra... e assim tu
tem um controle biológico...não matando os bichinho, tu ta repelindo
e, aí, eles vão pro mato, vão procurá outro tipo de fruta que tem bastante
na natureza pra botá os ovos dela lá se reproduzi lá...
- Vocês tinham essa visão, ou vocês tiveram aqui no
assentamento?
- (Volmir) A família aqui da minha esposa...o finado sogro ele tinha
pouca terra, criou tudo os filho dele, são treze filho, criou tudo em cima de
pouca terra e ele nunca usô...Então, isso é coisa da família que a gente vem
trazendo das outras geração. E também outra coisa que levou nós... nós
começamo a pensá: como é que nós vamo criá nossos filhos? Como é que
eles vão, se comendo produto envenenado? Assim como a gente veio depois
que saiu da lavoura foi morá na cidade fazia um bom tempo, né, ela a gente
vivia comendo porcaria...agora que nós temo o que é nosso...temo em
cima de nossa terra porque que vamo continua degradando, destruindo,
né?...
- O que é vive na terra?
- (Volmir) Eu, pra mim...pra mim, pessoalmente é a liberdade da
gente, né...É a liberdade de você trabalhando em cima do que é teu,
convivendo com a natureza, é muito diferente de você tá...eu morei na
cidade, então eu sei o que isso...os filho da gente aqui se criam livre,
saiem, correm, vão pra onde qué e, quando a gente morava na cidade, a
gente vivia ali...tinha aquela divisória...tu vai até aqui e o tem mais, se tu
87
pulá pro outro lado é do vizinho, né?! E aqui o, aqui a gente não tem
fronteira...é livre...(14-10-2006)
Então, aqui começamos a conhecer a concepção de terra que desenha os
modos de vida cabocla, sendo este um dos objetivos deste trabalho. Percebo que os
microprocessos revolucionários, segundo Guattari e Rolnik, (2000) manifestam-se
através da percepção e dos modos sensíveis de conduzir as práticas coletivas,
criando mecanismos de sobrevivência/ convivência com a natureza. Todo ser vivo
merece viver e, portanto, não desejo aqui romantizar essa relação com a natureza,
mas, antes, evidenciar o cuidado discutido por Maturana em suas diversas obras,
por meio da categoria autopoiésis. A autopoiésis é evidenciada, pois se apresenta
como prática constante desse grupo, porque o que parece não científico para os
olhos tecnicistas a cartografia acolhe com atenção produtiva.
Para Guattari (2001, p.9):
Não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser em
escala planetária e com a condição de que se opere uma autêntica
revolução política, social e cultural reorientando os objetivos da produção
de bens materiais e imateriais. Essa revolução deverá concernir, portanto,
não às relações de forças visíveis em grande escala, mas também aos
domínios moleculares de sensibilidade, de inteligência e de desejo.
O simples, o cotidiano, a memória não aprisionada, o devir inseto, o devir
natureza desencadeiam processos de desterritorialização que rompem com o modo
utilitarista de viver na Terra, considerando o saber do grupo desde criança com os
seus pais e, depois, com outros agentes que vão entrar nas linhas transversais de
convivência. Esse devir enfraquece o olhar e o discurso criado fora desse viver,
porque o devir, analisador desta escrita, apresenta a proposta de tencionar
permanentemente o enquadramento no registro acadêmico. Para Guattari e Rolnik
(2000, p.46):
A partir do momento em que os grupos adquirem essa liberdade de
viver seus processos, eles passam a ter uma capacidade de ler sua própria
situação e aquilo que se passa em torno deles. Essa capacidade é que vai
lhes dar um mínimo de possibilidade de criação e permitir preservar
exatamente esse caráter de autonomia tão importante.
88
Esse caráter de autonomia pode ser considerado a partir dos processos de
auto-análise e de autogestão
92
vivenciados pelo grupo. O modo de conduzir esses
processos estabelece uma outra relação com a terra e com seus componentes,
seres humanos ou não, sendo este também um modo autopoiético
93
.
E é com essa tonalidade multicolorida que desejo, com delicadeza, envolver
os fragmentos cotidianos. Fragmentos cotidianos que são produzidos nos
acontecimentos/ encontros da pesquisa, na tentativa de desterritorializar os lugares
estabelecidos e as falas instituídas através do intermezzo
94
de cada contar das
diversas famílias que compõem o grupo. O intermezzo é um espaço coletivo que faz
conexões entre as coisas, entre pontos, entre linhas, não se aprisionando, não
traçando caricaturas de cada agente, mas envolvendo, numa mistura, os contares,
as manifestações de todos, para considerar de acordo com Guattari (2000, p. 114):
(...) blocos de sensações compostos pelas práticas estéticas aquém
do oral, do escritural, do gestual, do postural, do plástico... que têm como
função desmanchar as significações coladas às percepções triviais e as
opiniões impregnando os sentimentos comuns. Essa extração de perceptos
e de afetos desterritorializados a partir de percepções e de estados de
alma banais nos faz passar, se quisermos, da voz do discurso interior e da
presença a si, no que podem ter de mais padronizado, a vias de passagem
em direção a formas radicalmente mutantes de subjetividade.
O texto irá ser conduzido por objetivo proposto neste trabalho, no encontro
com seus analisadores, considerando os fragmentos cotidianos. Para tanto, os
passos para a apresentação da produção dos dados acontecerá a partir da
manifestação das famílias do grupo de modo misturado, ou seja, em alguns
92
“Auto-Análise: processo de produção e re-apropriação, por parte dos coletivos autogestionários, de um saber
acerca de si mesmos, suas necessidades, desejos, demandas, problemas, soluções e limites (...). Autogestão: é, ao
mesmo tempo, o processo e o resultado da organização independente que os coletivos se dão para gerenciar sua
vida. As comunidades instituem-se, organizam-se e estabelecem de maneiras livres e originais, dando-se os
dispositivos necessários para gerenciar suas condições e modos de existência” (Baremblitt, 1998, p. 156-157).
93
Poiesis é um termo grego que significa produção. Autopoiese quer dizer autoprodução. A palavra surgiu pela
primeira vez na literatura internacional em 1974, num artigo publicado por Varela, Maturana e Uribe, para
definir os seres vivos como sistemas que produzem continuamente a si mesmos. Esses sistemas são autopoiéticos
por definição, porque recompõem continuamente os seus componentes desgastados. Pode-se concluir, portanto,
que um sistema autopoiético é ao mesmo tempo produtor e produto (Mariotti, 1999).
94
A categoria intermezzo veio da comparação que Deleuze e Guattari fazem com rizoma: “Um rizoma não
começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação,
mas o rizoma é aliança, unicamente aliança.” (2004,p. 37). E como lembra Rogers (2006, p.122) quando refere-
se a cultura: “Nesse sentido, o conceito de cultura que exponho, nada tem a ver com identidade cultural, mas
com o intermezzo de todos os modos de produção cultural (as artes, a história, os ritos, as danças, as tatuagens,
os ornamentos etc.) em uma articulação do campo social, articulação com o conjunto dos outros tipos de
produção na intenção de abrir e quebrar (implodir) todas estas esferas culturais fechadas sobre si mesmas. A
produção de novos agenciamentos de singularização que trabalham por uma estética, pela mudança da vida num
plano mais cotidiano e, ao mesmo tempo, pelas transformações sociais em nível dos grandes conjuntos
econômicos e sociais. Em tese, não se trata de ideologia, mas de subjetivação, de processos de subjetividade.
89
momentos será feita a apresentação dos espaços onde aconteceram os diálogos e,
noutros os diálogos aparecerão através dos dispositivos dos objetivos propostos,
independente de uma ordem linear. Assim, o diálogo feito na estrada, nas casas,
nos encontros coletivos, na horta ou no espaço de ordenha, aconteceu através do
contar das histórias e das experiências que o grupo construiu até a chegada no
assentamento bem como as manifestações de suas vidas reinventadas no
assentamento. E, ainda, fiz a opção por apresentar os diálogos inteiros e, na
seqüência, a análise de quem escreve conectando a cartografia construída.
Entretanto, cabe retomar a apresentação dos objetivos e dos analisadores
para que a proposta do tema desta pesquisa não seja esquecida. Sendo os modos
de viver caboclo a definição temática desta construção, a escolha dos objetivos
expressa-se no estudo de: problematizar imagens socialmente produzidas sobre os
modos de viver caboclo nos assentamentos de reforma agrária, analisar a
concepção de terra que desenha os modos de vida cabocla; conhecer como se
manifesta a cultura como existência cabocla; analisar a concepção de trabalho frente
aos processos de decisão coletiva; potencializar as relações criativas dos
assentados como diferencial para a reinvenção dos modos de viver caboclo;
reafirmar a produção para o autoconsumo e a comercialização do produto como
potência do viver caboclo; e reconhecer o processo organizante para a convivência
familiar. No que se refere aos analisadores, a escolha destes foi: Invenção, Devir,
Cotidiano, Singularização, Agenciamentos para conduzir as análises conectadas ao
referencial escolhido.
Assim, nos fragmentos a seguir, através das falas
95
, será possível continuar
conhecendo a concepção de viver na terra que as famílias caboclas manifestam,
evidenciando outro objetivo deste estudo.
- Como é que é a relação do caboclo com a terra?
- (Joana) A gente respeita a natureza, não trata mal ela...é como se
fosse como tratar a mãe da gente: com respeito, com carinho, trabalha ela
com cuidado porque dali sai os fruto, tem as nascente, então você tem que
respeitá...
- (Volmir) o caboclo tem o costume de pass a terra de geração pra
geração...trataá a terra com amor pra que as gerações futuras possam
também aproveitando a terra...pra mim é essa diferença que tem...
- (Joana) Que nem meu vô...a terra não tinha dono, ninguém era dono,
depois é que começaram se adoná e o caboclo... o meu vô, assim se ele
95
“Tudo isso, repito, com a condição de que novas práticas sociais, políticas, estéticas, analíticas nos permitam
sair dos grilhões da fala vazia que nos esmagam, da laminação de sentido que pretende se impor por toda parte”
(Guattari, 2000, p. 122).
90
fosse uma pessoa egoísta poderia dono de um monte de terra. Naquele
tempo dele, chegavam demarcando, e ele foi uma das pessoas fundadores
das missões na região onde nós morava, e ele com aquele monte de filho
se contentou com um pouquinho, tudo que era família que chegava ele
mandava que pegasse um pedacinho, sabe? Ele nunca disse: Olha daqui
aqui é meu, daqui você não passa. Então, quando ele viu, se deparou que
as outras famílias começaram a demarcar, mas ele não, os tios
comentavam: Ah, o teu poderia sido dono, mas ele achou que aquilo
dava pra sobrevivê em cima com os filho ... As filha iam chegando, e ele
repassava e realmente ele não era dono mesmo...(14-10-2006)
Num outro momento de encontro com a família de Leonardo e de Beatriz,
durante o anoitecer em seu espaço de moradia durante uma refeição colorida (o
jantar), o diálogo/entrevista acontecia num modo simples de manifestar o que
pensavam:
- Qual é a relação das famílias com a terra?
- (Leonardo) Nós somos filho dela, é a mãe... como trata que a gente
tem com a mãe que nos gerô, a terra também nos gera porque é ela que
nos dá o sustento. Se eu cuidá ela como a mãe me cuidô quando eu nasci,
é o mesmo carinho pra terra, é dela que eu vou consegui vivê. Então hoje,
por exemplo, a nossa propriedade aqui se houver maior queda que tivé na
produção agora nós não colocamo químico, mas não colocamo de jeito
nenhum, nós pode assim...nós tivemo um período três anos atrás que a
fruticultura, se nós não passasse produtos químico, a mosca, a podridão
parda tava invadindo, nós preferimo a nossa parte, nós perdê do que nós
colocá, nós perdemo 60% de nossa produção(iniciativa do grupo), e não
colocamo veneno...
- De onde vem isso?
- (Leonardo) É sangue, porque o finado pai foi um dia no colégio,
ele teve uma vida que, aos oito ano de idade, ele perdeu o pai dele, o
finado vô, que foi pego de cobra. Então, ele ficô ele e a finada vó, porque
eles eram em dois irmãos e são diferença de oito anos e, aí, logo o irmão
mais velho dele casô, e ele só aprendeu fazê o nome dele, finado pai, e era
desenhado o nome dele, agora na propriedade nunca entrou veneno, ele
tinha essa consciência, e a produção dele era de qualidade, enquanto as
pessoa batalhavam, ele colhia e se orgulhava dessa coisa, e a gente vem
do sangue, claro que a gente depois, além de participá do movimento e
junto nessa defesa e, tendo pessoas qualificada, pessoas que tão formada
na universidade, que ajudam fazê estudo, né, que coloca qual a diferença,
qualé as causas negativas e positivas...(14-10-2006).
No encontro com a família de Silvio e Valéria, o registro também acontece no
movimento dos modos sensíveis. O espaço do encontro foi a sala da moradia. Na
companhia das fotos da família, as respostas apareciam livres de pergunta
específica, ou seja, a família contava sua história. Aqui, vale a observação de que,
na medida em que o equipamento/ gravador se desliga, Valéria convida a equipe de
91
estagiárias para sentar na rua e que estas, então, possam contar para a família
entrevistada as suas histórias. Nesse momento, potencializam-se os afetos coletivos
na produção dos dados, pois se tornam acessíveis, nos encontros, os registros:
(Silvio) Pra gente que sente... a gente se criou no campo...e, com
toda experiência de seis anos atrás, sete anos, a gente morou dois anos na
cidade, e isso que não era praticamente dentro da cidade, era na beirada
da cidade assim, mas na maioria a gente trabalhava dentro, onde a
gente morava era assim na chácara (...)e a gente ficou até doente, né, se
estressava e, cidade, a gente não tem aquela liberdade que tem no campo.
Quando a gente criança que se criou e mora na cidade e vem pro
interior, né, a gente começa a ver que maravilha que é o campo...a
pessoa se distrai, os filhos com ar puro, né, come coisas saudável, vai ali
na horta, na lavoura e tira...pode comer cru, como sem problema nenhum,
né, se distrai...acho que porque aconteceu assim, eu principalmente, que a
gente, mais saudável do que viver no meio dos animais, da natureza assim,
não tem coisa melhor. Tu fala com os bichos, tu grita assim, né, e se tu
na cidade, tu tá preso ali na frente, tu nervosa, capaz de nem ... É uma
maravilha, oh, não tem, acho que nem tem o que falar de tão maravilhoso
que é. E a gente até tentou depois de aqui, tentar ir pra cidade...a gente
foi, uma experiência de três meses, né. Não dá, né, depois o tem como
aqui é saudável emoção... faz torneio de futebol, faz festinha e coisa, nóis
temo agora associação do grupo, né, tem convidado mais gente de fora,
que o faiz parte do grupo, mas sim do assentamento. Então, tem festa
da comunidade, festa do grupo. Então, é muito sadio o lazer aqui, né, o
pessoal da volta gosta muito, o pessoal muito educado, nunca dá problema
nenhum, né. É bem bom morar no interior...(14-10-2006).
Na família de Rita e Jonas, continua a manifestação dos sentidos através do
diálogo sobre cultura, outro objetivo da pesquisa. Esse encontro acontece, também,
no seu espaço de moradia. Rita, durante a conversa, vai encaminhando, de modo
carinhoso, o almoço que terá a companhia do grupo estrangeiro. Assim, Jonas
acompanha Rita no contar a dois sobre os seus olhares de viver no campo e,
durante esse contar, seus filhos, Raquel e Marcos, envolvem-se com os seus
olhares curiosos diante do acontecimento novo em sua moradia:
(Rita) Uma das questões fundamental que tem de morar no campo, é
produzir a própria alimentação, o próprio alimento usado, porque na cidade,
hoje em dia, tu vive de enlatados, vive de produtos com álcool, vive de
agrotóxicos, né. Então, aqui a gente produz e sabe o que comendo que
é uma coisa com saúde, né, porque todo o mundo sabe que o negócio de
enlatado... E as crianças que estão na fase de crescimento, né, tomam
enlatado de suprimento, né, é muito prejudicial, e pode ser que não
aconteça nada de agora, mas no futuro essa criança vai ter vários
problemas. Uma das coisas fundamental hoje ...(15-10-2006).
Portanto, o discurso que mantém a vontade de criar códigos de verdade sobre
os modos de viver e sobre as manifestações dos agentes caboclos é desconstruido,
92
discurso esse evidenciado no primeiro capítulo deste trabalho. Em cada expressão
registrada, tanto na fala quanto em seu movimento, o homem e a mulher plagiados
pela literatura, aqui, principalmente nos registros de Monteiro Lobato, esfacelam-se
para nascer um outro. Um outro que existe no processo, na reinvenção, no devir. E
como lembra Guattari (2000, p. 121): “Não apenas eu é um outro, mas é uma
multidão de modalidades de alteridade”, ou seja, o caboclo manso adaptado às
normas de comportamento da civilização imposta reverbera para romper com as
marcas totalizadoras.
Assim, as manifestações tornam-se, aqui, expressões dos modos de existir
que questionam a imposição de uma cultura hegemônica, a qual exige como se
deve andar, como se deve comer, como se deve dormir, como se deve transar e,
principalmente, como se deve relacionar com o mundo negando a existência de
diferentes outros mundos. Segundo Guattari (2000, p. 122):
A oralidade, moralidade, ao se fazer maquínica, máquina estética e
máquina molecular de guerra que se pense atualmente na importância,
para milhões de jovens, da cultura Rap- pode se tornar uma alavanca
essencial da resingularização subjetiva e gerar outros modos de sentir o
mundo, uma nova face das coisas, e mesmo um rumo diferente dos
acontecimentos.
Considerando aqui o analisador Invenção, é possível afirmar que a proposta é
perceber as potências que criam, a cada movimento, linhas de vida. Linhas simples,
cotidianas que contêm um saber capaz de aceitar o novo que se anuncia. Um
exemplo comum é: se existe uma cultura que impõe uma produção agrícola
dependente, tóxica, química, transgênica, também existe, no mesmo espaço
campesino, o desejo coletivo que impulsiona a criação de uma outra cultura
reconhecedora a terra como sua aliada, na qual não existe um “Super Homem”
autorizado a devastar, matar, destruir com uma natureza potente, impondo-se. Como
destacam Maturana e Varela (2004, p. 11):
(...) não são só os timoneiros que dirigem os navios. O meio ambiente
também pilota as embarcações, por meio das correntes marítimas, dos
ventos, dos acidentes de percurso, das tempestades e assim por diante.
Dessa forma os pilotos guiam, mas também são guiados. Não velejador
experiente que não saiba disso. Portanto, pode-se dizer que construímos o
mundo e, ao mesmo tempo, somos construídos por ele. Como em todo
esse processo entram sempre as outras pessoas e os demais seres vivos,
tal construção é necessariamente compartilhada.
93
Então, o discurso literário que tentou culpabilizar o caboclo brasileiro de ser
aquele que queimou e devastou a natureza, através do argumento estigmatizante de
atrasado e de ocioso, desmancha-se para considerar que toda prática social é
política e coletiva. Assim, não foi o caboclo, como quis explicar Monteiro Lobato, que
atrasava o desenvolvimento do País, e sim o próprio país que, com seus jogos de
força, impôs regras hierarquizante de convivência e existência no mundo.
Portanto, será possível encontrar, nesta cartografia, seres preocupados e
sensíveis nos modos de existir, os quais buscam uma outra relação com a terra e
com os seres que a desenham, ou seja, para Guattari (2000, p. 15): “O melhor é a
criação, a invenção de novos Universos de referência”. E isso é encontrado nesse
grupo de assentados do MST, quando busca afirmar que viver no campo é produzir
alimento sem agrotóxico, é poder conversar com os animais sem ser rotulado, e
considerar-se “filho da terra e não dono dela, enfim ter uma relação de amor e de
respeito com a terra” (falas repetidas pelo grupo nos encontros da pesquisa).
Mas, para evidenciar a reinvenção de práticas do grupo, desejo problematizar
o biopoder na sociedade capitalista, para que seja possível analisar que outra
estética, aqui, está sendo defendida. O que encontramos no dia-a-dia são a
produção e reprodução da própria vida, seja através de propagandas que vendem a
imagem de uma vida saudável, educada, rica de recursos e que, para obter esses
produtos, é preciso rever critérios de sobrevivência, seja nos modos de agir
coletivamente. O que está em jogo ou no jogo do poder é, de fato, o controle
disciplinador que comanda os desejos, as práticas e as decisões em sociedade.
Foucault alertava que “a sociedade está apta a adotar o contexto biopolítico como
terreno exclusivo de referência” (Negri e Hardt, 2001, p.43).
Quando nos aproximamos dos assentamentos de reforma agrária, é comum
ouvir, dos mais diferentes territórios de comunicação na sociedade em geral, frases
do tipo: “quem não planta é vagabundo, quem deve plantar é quem viveu sempre no
campo e nunca se desvinculou dele”, ou seja, um bombardeio de ordens e de
comandos aparece, mas as condições de viver no campo não são questionadas.
Penso que descobrimos que as necessidades sociais, econômicas,
culturais, políticas, entre outras, não são naturais e por isso exigem debate. Ou seja,
com a imposição da chamada Revolução Verde
96
, muitas famílias que viviam no
96
Aqui penso pertinente apresentar fragmentos de um texto feito por Frei Sérgio rgen, fruto dos estudos
coletivos de que faz parte, para informar famílias camponesas, bem como quem desejar conhecer o que foi e o
94
campo obrigaram-se a assumir a prática do agrotóxico e da imposição química em
suas plantações. Um exemplo disso é o cultivo de fumo sob a pressão de empresas
fumageiras, pois, no Rio Grande do Sul. Nos dias de hoje, amplia-se a imposição
através do cultivo de eucalipto como monocultura, por meio de outras empresas.
Práticas impostas pelo sistema são, a todo o momento, criadas, e a invenção das
tecnologias como paradigma de realização e sucesso são evidenciadas, e isso prova
que nem toda invenção é boa, como, por exemplo, a monocultura do eucalipto.
Portanto, não é esse tipo de invenção ou de reinvenção que está sendo defendida
aqui Contudo, a imposição dos regimes de verdade sobre a vida dos coletivos não
acontece mais de modo agressivo, sob o ponto de vista ditatorial, mas agora o modo
de convencer para o disciplinamento acontece num discurso de uma prática doce,
ou seja, nos próprios mecanismos da sociedade democrática, pois, como lembra
Foucault :“a vida agora se tornou um objeto de poder” (2003, p. 194).
Assim, o biopoder tem uma política que tenta determinar práticas e, no que se
refere à vida no campo, essa determinação se arrasta desde a colonização. Os
coletivos que viviam no Brasil (história conhecida por todos) não dependiam de
adubação química para cultivar seus alimentos; muito pelo contrário, aproveitavam
os recursos naturais para viver. Mas, de lá pra , foi sendo disseminada uma
que pretendeu/pretende a Revolução Verde: “Depois da segunda Guerra Mundial, que terminou em 1945,
começaram a acontecer mudanças muito profundas na agricultura do mundo todo, através de um plano chamado
de REVOLUÇÃO VERDE no campo. Algumas invenções usadas na guerra, especialmente máquinas e produtos
químicos, passaram a ser usados em larga escala na agricultura (os venenos da guerra viraram ´remédios`para as
plantas). Essas mudanças chegam no Brasil a partir dos anos de 1950, iniciando um processo de
´modernização`da agricultura tradicional brasileira. Mas é nos anos após 1960 que entra em cheio no Brasil,
trazida dos Estados Unidos, este novo modelo tecnológico de três áreas da ciência- mecânica, química e
biologia- gerando conhecimentos e tecnologias nestas áreas, objetivando a introdução da mecanização agrícola,
os insumos químicos (venenos e fertilizantes) para as plantas, os medicamentos veterinários e as sementes
modernas, ditas `melhoradas`. Estas novas tecnologias mudaram completamente as formas de produzir e os
jeitos de viver dos agricultores. Receberam o nome de revolução verde, porque mudaram completamente a forma
de produzir na agricultura e prometia esverdear toda a terra com produção de alimentos.” No entanto sua prática
foi: - da genética vegetal com produção e multiplicação de sementes híbridas ou ´melhoradas`resistentes a
doenças e pragas e adaptadas para receber altas doses de adubos químicos; da aplicação de novas técnicas
agrícolas ou tratos culturais aplicação intensiva de adubos químicos e venenos; da mudança da infra-estrutura
agrícolas e aplicação de mecanização pesada e intensiva de adubos em todas as atividades possíveis; da genética
animal com animais de raças ´melhoradas uso de antibióticos, hormônios e produtos químicos.” As estratégias
para o convencimento de inclusão deste modelo foram: chamando de atrasadas e desmoralizando as formas
de produção praticadas por muitos anos pelos agricultores,especialmente os camponeses; - através da acedência
técnica patrocinada pelos governos a serviço das grandes empresas de máquinas, produtos químicos e sementes,
que ´ensinavam` aos agricultores as novas técnicas; - através do crédito rural pois só tinha crédito para plantar os
produtos da monocultura 9soja, trigo, etc.) para comprar máquinas e ainda eram obrigados a comprar o pacote
todo (adubos e venenos) mesmo que não precisassem; - através da formação de agrônomos, veterinários,
zootecnistas, engenheiros florestais, técnicos agrícolas e extensionistas com as universidades e escolas agrícolas
ensinando o pacote da revolução verde; - criação de cooperativas empresarias, com apoio e dinheiro dos
governos para reunir os agricultores e levar o pacote da Revolução Verde monocultura,sementes, fertilizantes
químicos e venenos- até os agricultores” (s.d, p. 25-27).
95
necessidade de adubação agrotóxica, um tipo de cultivo de sementes como as
transgênicas, um trato com mecanização agrícola na qual a terra é desgastada,
construindo seres dependentes. No entanto, esses mesmos seres o capazes de
romper com esta imposição que se arrasta através da memória de suas histórias
familiares, aprendendo que é possível resistir com criatividade, tornando a
resistência manifestação de um micropoder latente no exercício cotidiano. “O poder
é, dessa forma, expresso como um controle que se estende pelas profundezas da
consciência e dos corpos da população” (Negri; Hardt, 2001, pp. 43-44).
Conseqüentemente, essa população pode, através de seus mecanismos de
resistência, desconstruir o controle que não é oriundo das experiências de quem vive
tal realidade. E, assim, não se negam os controles existentes pelo próprio grupo e
pelo MST, mas aqui se defende a proposta de que, já que a sociedade é de controle,
que isso, então, aconteça a partir dos coletivos, através de seus modos de
singularizar, quando estes experimentam processos autogestionários, e não fora dos
coletivos que desconhecem tais vivências.
O diálogo abaixo aconteceu, também, do mesmo modo afetuoso dos
anteriores, num dia enriquecido pelo sol que aquecia os corpos numa moradia
envolvida por um jardim colorido. Jairo e Saara esperavam-nos com o preparo do
almoço, como anúncio do encontro. Na volta do fogão à lenha, Saara envolvia-se
com a arte do preparo da alimentação que seria (e foi) coletivizada e, entre um
chimarrão e outro, deu-se início aos registros, com o estímulo do objetivo terra e
autoconsumo.
- (Jairo) - É nóis pra terra, nóis temo um sistema assim ó, que o que
nóis sabemo que pra plantá, que dá pra colhê, is insistimo. Nóis
achemo muito melhor nóis produzi pra nóis comê, do que nóis i buscá no
mercado. Isso é uma coisa que não é o que eu tô dizendo, é a pratica. Pra
vocês verem uma coisa, esses dia...ano passado agora is plantemo 4 veiz
batatinha, né, Saara? O tempo judiava de nóis, e nóis plantemo 4 veiz. E a
ultima veiz nóis colhemo...
- E vocês colocam veneno?
- (Jairo) - Não...
- E por quê?
- (Jairo) - Ah, isso aqui é uma história que... não sei...
- (Saara) - Já vem dos pai e dos avó que nunca usaram...
96
- (Jairo)- Dá pra... é uma coisa até que é bonito de porque tanto do
meu lado da minha família,né? O meu pai ele nunca...nunca lidô com veneno
e sempre aconselhô nóis que não era pra lidá com veneno. E ele nunca, por
exemplo ah, is tinha, ele tinha meia colônia de terra quando nóis tava em
casa e aquilo ali não dava pra nada pra nóis plantá. Nóis pegava terra de...
acho que tinham em 5 mais ou menos patrão nosso, né? Que eles pegavam
pedaço dum, pedaço dotro pra nóis consegui plantá. E ele tinha um mato e
ele ia cortando o mato, de acordo, conforme ele precisava de lenha. Não
sei se a Saara pode confirma...ele fazia a rocinha assim,né? pra lenha e daí
então ele...nóis gastava e enquanto tinha aquela lenha, ele não derrubava,
não cortava outro pedaço.Tanto é que a mãe temonde nóis morava lá...ela
tem aquele pedaço de terra lá...ela tem o pedaço de mato lá. Mato virge, que
chama, né? Tá lá o mato lá...
- Me conta, Saara, um poquinho como é que era quando tu era
criança, antes de casar, como que teu pai fazia?
-(Saara) - Era o mesmo sistema mais ou menos deles, não muda. De
veneno, nada, nunca nem conhecemo, nem conhecia. Até porque eu era
solteira, né? Morava com o meu pai, nem sabia o que era veneno, né? Pra
bota na lavoura ou numa horta qualquer, nem esses adubo
comprado,nunca,nunca... Era só os esterco mesmo, né? das criação...
- (Jairo)- A mãe dela, ela usava a estrebaria, ? E daí pra tê a
estrebaria tinha tipo um cocho, um negócio grande assim e ali sempre tava
cheio, ? E assim enchiam carroçada, ? Aonde eles iam planbatatinha
eles enchiam a carroça e levavam pra lá. E daí só colhiam a batatinha...
- (...) Como é a experiência de vocês com os animais?
- (Jairo) - Óia pra nóis aqui a gente cuida os animal, que nem quando
que é....
- (Saara)- Tu bate numa vaca aqui, ela não te o leite, né? Ela
segura...já fica estressada... Não adianta batê que vai complicá, né? Tem
que tê paciência, né?...
-(Jairo)- Eu....sempre né? A gente trabalhando na lavora, lidando com
junta de boi, eu nunca fiz assim um... um escândalo né? Como a gente
muita gente, né? Pegam e atam e se atracam a cacete assim, né? E
sempre passando pros filho que a gente tem que cuida, né? Porque o animal
aprende do jeito que a gente quisé... Tu vai falando, tu vai dizendo pra e
pra cá, e eles obedecem.
E quanto o veneno que a gente também é contra, a gente tem uma
consciência, eu não sei por quem, quem qui troxe isso, né! Que a gente
aprendeu dos pai, que a gente tem uma coisa pra gente assim ó: tanto nóis
que semo caboclo como ela que são alemão, a família deles é assim ó,
tudo o que a gente o q pra gente a gente não que pro outro. É uma
coisa...é um...não sei...
- É a experiência com a terra, né?
- (Jairo)- É a experiência sim...
-(Saara)- E o próprio medo, né? Do veneno que a gente sabe, né, do
que o veneno é capaz, pra saúde, então a gente pensa bem presse lado,
além que economiza, né, de não comprá que é caro pra tu usá...além de...pra
saúde, né? Batatinha dessas comprada não gosto muito...prefiro...só quando
não mesmo, daí, né, a gente as veiz compra uns quilo, nem o gosto dela,
parece que é diferente não tem aquele gostinho...
97
- E vocês continuam produzindo aquelas sementes crioulas? Conta o
que são as sementes crioulas...
- (Jairo)- A semente...hoje a televisão coloca assim na cabeça do
povo que tem que comprá semente, né, e a gente desde...isso a gente não
perdeu, até a gente gostô muito aqui ..., que quando tem essa fera do
agricultor, né, de sementes criola assim...nóis...e eu na época que a gente
plantava soja eu nunca comprei selecionada sempre nós dexemo...apartava
um pedaço dexava seca mais bem assim, né, quando ia triá mais seco
apartava a semente. O milho, a mesma coisa, sempre tinha no galpão
nunca...eu comprava cheguei a comprá mais não tudo, né, comprava pra
gente sempre renova a semente fazê a semente. E este ano nóis...demo
seca, mais assim mesmo a gente conseguiu apartá a semente de milho, né,
aparta da carroça as espiga, e eu tenho milho criolo, eu não comprei
semente selecionada...
- Então o crioulo é o quê?
- (Jairo)- O criolo é uma semente que...a gente trabalha assim, a
gente nunca pensa em dinhero, dinhero, né, a gente trabalha num
pensamento assim ó: porque eu pagá centi e pocos conto...centi e pocos
reais por vinte quilos de milho, né, porque é pintado...se eu tenho ali a
semente, então é reduzi custos, né?! Até agora quando nós fumo passeá
nos parente eu...eles ficam curioso, né, eles o conhecem pra cá...ficam
curioso, ficam perguntando, né, aí eu dizendo pra eles, hoje nóis temo assim,
nóis temo que reduzi custo tudo qui nóis produzimo não vale nada, a gente si
quexa, não vale nada, então pra nóis competi no mercado hoje a gente tem
que reduzi custo. É a semente criola, é o leite, é o pasto qui a gente pras
vaca, a gente não compra, é muito poco que a gente compra pasto pra
plantá, é pasto nativo, ração no coxo das vaca, ali a gente não bota, não
precisa comprá , a gente um poquinho de sal mineral que é o necessário ,
e pronto. Então se eles tiram o leite de uma vaca à base de ração, eles
tinham que vendê, no mínimo, a um real o litro de leite, e nóis a trinta e pocos
ou quarenta, is temo mais lucro, nóis não temo custo, né?! Aquele leite
vem assim de...é nativo, a gente limpando os campo, investindo assim pra
recupera a terra...(21-10-2006).
Ao contrário da proposta da revolução verde e do imaginário social construído
a partir da literatura brasileira sobre o caboclo, que foi evidenciado, no primeiro
capítulo deste texto/tese, como sendo um ser preguiçoso e destruidor da natureza,
as manifestações aqui encontradas registram a resistência dos corpos que não
desejam legitimar a dependência de uma agricultura que não é sustentável.
O cotidiano, aqui, aparece como espaço que propicia a reprodução de
práticas vividas na trajetória de cada agente. Nesse cotidiano, é possível encontrar
os saberes criados e vividos independentes da política do MST. Contudo, no espaço
do assentamento, os mesmos saberes abrem-se de um modo potente dia a dia.
Assim, as práticas cotidianas são feitas de conexões em fluxos. Esses fluxos são de
intensidades, pois são capazes de romper e, ao mesmo, tempo de manifestar
desejos micro-revolucionários que desmontam poderes e reinventam outros novos
poderes. Segundo Maturana e Varela (2001, p. 22):
98
Tendemos a viver num mundo de certezas, de solidez perspectiva
não contestada, em que nossas convicções provam que as coisas são
somente como a vemos e não existe alternativa para aquilo que nos parece
certo. Essa é nossa situação cotidiana, nossa condição cultural, nosso modo
habitual de ser humanos.
O mundo de certezas que tenta acabar com o simples, com aquilo que
demonstra independência das ofertas capitalísticas, é desconstruído quando os
agentes desafiam-se para produzir outras práticas e, assim, um outro social. O social
que existe a partir de outros acontecimentos, como, por exemplo, a produção de
sementes crioulas. Esses acontecimentos desenham uma outra geografia do viver,
um outro tipo de relação no mundo, um devir terra, animal... E assim, o cotidiano
torna-se uma arte do viver (Certau, 1998).
(Marta) - Vou à igreja todos domingo assim, todos os domingos a
gente tava indo na igreja e, sempre em casa, às vezes reza de noite pra
dormir sentava na cama eu mesmo até agora sentava na cama acendia vela
pro meu santinho e rezava, e a religião que nóis temo e também meus pai
que ensinava, minha mãe era trabalhar e até assim a gente se não pode
comprar qualquer coisa fiado não comprar e não ficar devendo pra ninguém e
si fica devendo pagá certinho. Nóis tamo morando pouco tempo aqui e
amizade que temo na volta, ai quero que veja! Se fizer uma festinha,
enche de gente, aí a piazada é jogar bola sempre, é o esporte deles bailinho,
festinha fazer janta nós se reunimo. Olha! tem semana que almocemo tudo
junto é fazê um churrasquinho qui o pessoal se junta, ai união, sempre e
união de tarem junto...(21-10-2006).
Então, o cotidiano
97
poderá evidenciar experiências que, para além de seus
códigos de identificação, apareçam como práticas que colocam em funcionamento
encontros desejantes. Assim, como a questão da prática religiosa, da manifestação
de manifestada por Marta, noutro momento da pesquisa, poderá tanto instituir
valores morais acerca dos comportamentos, quanto proporcionar condições de
reflexão através dos processos de singularização que criam alternativas e alianças
no viver coletivo. Como lembra Guattari e Rolnik (2000, p.38), existe também uma
“tendência a bloquear processos de singularização e instaurar processos de
individualização. Os homens reduzidos à condição de suporte de valor, assistem
atônitos, ao desmanchamento de seus modos de vida”.
97
“(...) o cotidiano como espaço vazio, o lugar da mesmice, da falta de opção, o olhar distante. De outro, é o
lugar da possibilidade, onde está sendo tecido e articulado (...) a novidade” (Jesus, 2000, p. 37).
99
Portanto, a singularização está muito mais no modo como produzimos nossas
práticas, nossos desejos, nossos saberes, nossas escolhas, ou seja, nesse caso, no
modo como o poder dos agentes, dos caboclos assentados é vivenciado. Então, não
é a escolha de uma religião que fará a individualização acontecer, mas sim o modo
como se vive essa escolha, principalmente.
Noutro encontro da pesquisa, que aconteceu na moradia de Jaques e
Fabiana, foi possível conhecer a concepção de lazer, diversão e criatividade que tem
o grupo. Antes do almoço, como de costume para a acolhida da pesquisa, o casal
nos mostrou o espaço de serigrafia do grupo onde são confeccionados bonés.
Também existe, no espaço do grupo, uma minifábrica, apresentada por Volmir no
primeiro encontro da pesquisa, construída devido à duradoura seca de 2005, que os
obrigou a criar alternativas de renda. Essa pequena fábrica produz mochilas, bolsas,
carteiras, entre outros materiais. Assim, com essa apresentação dos agentes, foi
possível conhecer o trabalho como objetivo de análise da pesquisa .
Então, durante o encontro com Jaques e Fabiana, o diálogo aconteceu
estimulado pelo objetivo relações criativas:
-Sobre o concurso pé-de-moleque...
- (Jaques): É, às vezes no interior, também às vezes não se tem
muitas oportunidades, como na cidade, né? Por exemplo, as estrutura
físicas, as estrutura fisica que são criada pro pessoal da cidade que faltam
no interior muitas coisas, infra-estrutura, falta então as criança que querem
ter alguma estrutura pra se divertir, às vezes a não ser em colégio, mas
pouco, pouco se tem isso aí, né? Algumas que outra comunidade que
consegue se organizar e criar alguma estrutura, uma associação cria
alguma estrutura como prédios, com ginásios, com praças, essas coisas,
né, então nós aqui é um, uma dificuldade bastante grande, porque o foco tá
voltado mais pra grandes centros, grandes cidades, né? Então aqui no
interior, não se tem muito disso daí e é onde às vezes acontece que,
quando chega, os adolescentes vamos dizer pra jovens ou pros próprios
adultos mesmo, até mesmo, às vezes motivo das pessoa saírem da colônia
também, porque tu às vezes um jovem trabalha uma semana inteira,
chega o no final de semana, que fazê, tem um, quer se divertir, enfim, e
ai se tu não viaja e ter um lugar meio longe tu já não acaba acontecendo,
né? É tipo um isolamento, assim, né, eu penso assim, né, e aqui a gente
tenta, pelo menos tamo lutando, para ver se conseguimo pra que as coisa
aconteçam, aqui mesmo no interior. E aí, às vezes a gente tem, aqui no
grupo mesmo, a gente tem são poucas coisas mas é onde agente se reúne
pra se divertir é os aniversário do pessoal que junta pelo menos uma vez
por mês, para comemorar, né, a gente conta causo, faz uma comida em
conjunto, as criança, brincam, né? Enfim, é um momento de, de, de se
divertir, assim? O pessoal é, e outra questã é os, os domingo a gente tá se
envolvendo com a comunidade da volta, que é os campeonato que são
organizados, campeonato de futebol, né, onde a gente tem opção daí de
sair, se divertir, assim como a gente vai visitar as comunidade, a gente
consegue organizar, conseguindo organizar aqui no grupo mesmo, né, é
100
num domingo uma rodada do campeonato rola aqui na comunidade E
também tem uma que nós criamo já faiz 5 anos, né, vamos fazer este ano,
este ano que passou foi o quinto ano, é o quinto concurso, foi o quinto
concurso pé-de-moleque, é, passou este ano, é, foi agora, não este ano,
não, o ano passado, este ano em junho, que é no dia de São João no caso,
né, é a gente faz fogueira, convida todo o pessoal, né, de volta, os
conhecido, e cada um contribui com um pouquinho de pipoca, é um
pouquinho de melado, açúcar e um quentão, nós se organizamo e a
festa tem um objetivo se divertir. As criança apresentam peças e, aí no fim,
é o concurso pé-de-moleque, que assim tem a apresentação, que é o
concurso pé-de-moleque que tem os jurado, cada companheiro ou
companheira que quiser fazer um prato, faz um prato de pé-de-moleque e
traz pra comê, né, e ai os jurado daí tem uma degustação pra ver, tem
uma nota de 1 a 10 pontos, e ai depois de, como é de, que acontece a
degustação ali os jurados fazem as nota, e sai os ganhadores, né, os
três primeiros ganhadores, vamos dizer assim, então este ano que passou,
foi minha avó...
- É difícil ganhar?
- (Jaques): Ela ganhô de outros dois, é, é uma forma de a gente
conseguiu, começamo primeiro com o grupo aqui, né, internamente, no
grupo ali, até um dia tivemo um dia São João, mas fizemo só a família e daí
conversemo com o pessoal, a gente achou melhor, de expandir, né? no
outro ano convocamo o assentamento, e a partir do segundo ano
começou o pessoal aqui da comunidade, de volta, né, tivemo que fazê
dentro de um galpão, que temo, daí a gente acolhe todos, e esse ano
prometendo, né, cada vez ser maior, porque não tem, fim lucrativo, é pra
reunir a família, traz a família, traz um prato de casa de pé-de-moleque, e o
que puder ajudar com o que pode, qualquer coisa, ai a gente ddepois
tem e agora entrou também junto depois, que agora entrou também, junto
do concurso pé-de-moleque que cada vez mais a gente vai incrementando
mais alguma coisa, ? A gente tem também as rodada de bingo também,
que a gente consegue brinde no comércio, e o pessoal paga R$ 0,50, era a
rodada pra ganhá um brinde, então. É outra coisa também que a gente
sempre tenta, eu venho conversando, que tem vontade, mas as vezes o
tempo, o tempo também não, não se a gente não se organiza, né, que é de
fazê um tipo de festival, um grupo de teatro assim. Meu pai conta, meus tio,
os mais velho, eles contam que na comunidade tinham um grupo de
jovens e que tinha teatro assim, né, e ele no caso fazia um teatro em
comédia, né, a vontade, né, então tem muitas coisa que eles contam que
faziam e que, se a gente fosse pega e não precisava nem criá coisas nova,
né, que eles faziam da época e a gente pega e tenta fazer hoje com as
criança de hoje ou até o pessoal que nunca viu, né, tem várias, já pra
apresenta várias, faze várias apresentações, né, que é uma forma da gente
i criando um nosso próprio espaço, porque hoje, hoje sinceramente a
gente, a gente fica dentro de casa e o, ah, tu entra pra ligá a televisão,
tem parabólica tudo, mas tu procura de canal e canal e eu faz desde a
semana retrasada, pra cá eu não tenho tido sentado na frente da televisão,
é daí a única coisa que tu diz, é um jornal no caso, o jornal, mas tu liga a
televisão e vai assisti um jornal, meu Deus do u é, é um terrorismo,
terrorismo aquilo e daí tu tem se tu vai pensar em vez de ficar de noite
assistindo, tu pode organizá, tentativa ai, fica escutando bobagem na
televisão, não sei se a gente não vai começar a fazer isso daí, nem que
seja uma vez por semana, na noite que seja, né, é, no Natal também é feito
e gostam e se dedicam, porque faz dois anos, que é feita uma encenação
no Natal das criança, e no dia das criança tem também, é feita uma
mesada como se diz, como se fala faz uma alimentação, uns doce de tarde
e, aí, bota a criançada pra passá o dia, e ficamo fazendo uma gincana, e
tudo o que, que todo o tipo de gincana, se faz...(22-10-2006)
101
A geografia em movimento vai criando possibilidades em grupo, confrontando
o discurso existente na sociedade de que: “quem vive no campo ou da agricultura
sabe ou quer plantar”. Tal este discurso tenta construir uma imagem falsa dos
desejos desse coletivo. Reconhece-se que a luta pela Reforma Agrária é uma
bandeira de expressão do MST; no entanto, existem outras lutas que borbulham no
cotidiano, na micropolítica dos assentamentos.
O ato de conhecer processa-se a partir dos agentes que não se acomodam
frente aos bloqueios impostos pelo sistema subjetivado. As redes heterogêneas vão
sendo formadas e, com isso, o criar torna-se dispositivo dos encontros. Ou seja,
independente das etnias, das culturas inventadas, das trajetórias vividas, a mistura
vai produzindo novos saberes. Inventam-se
98
novas perspectivas, novas lutas,
outros modos de habitar.
A capacidade de criar tem várias facetas. Assim, quando houve o diálogo com
Clarice, foi possível conhecer as barreiras que são enfrentadas e desmanchadas na
arte do viver coletivo como processo organizante das famílias:
- Como era a convivência no acampamento? Tu acha que tinha
diferença, como era resistir em um acampamento, como é que vocês
combinavam isso?
- (Clarice): Ah, a gente fazia bastante reunião vivia de reunião a maior
parte do tempo. Depois que nóis viemo pro assentamento até, às vezes
nóis ficava o dia inteirinho sentado numa cadeira de reunião o dia todo, o
dia todo, o dia todo no outro dia era di novo até foi um alívio um pouco vir
pro assentamento a reunião era todo dia... todo dia e até umas hora da
noite nóis fazendo reunião decidindo, né? Quando vem a terra, fazê os
plano já, planejando tudo lá, pra depois quando chegasse aqui e ainda tive
reunião mais não tanto como lá, já é mais calmo agora...
- (Clarice) É que nasci e me criei na cidade, antes de vim pro
acampamento eu morava na cidade, é, eu nunca morei no interior. saía
pra fora pra visitar e ia nas férias, foi bastante difícil quando nós
cheguemo aqui pra se acostumar. Deus o livre, eu tinha vontade de ir
embora, não assim era difícil de bem longe de todos os meus parente,
né, o Jorge perto de todos os parente dele mãe, irmão e eu fico bem
longe. E depois, com o tempo, eu fui me acostumando, e nada de lavoura,
não sabia plantar nada, cada vez que tinha que fazer uma semeadura eu
tinha que perguntar pra quem sabia que época semeava, agora eu posso
98
“Buscando lançar luz sobre o que deve ser entendido por invenção, retomo a etimologia da palavra latina
invenire, que significa encontrar relíquias ou restos arqueológicos (apud Stengers1983). Tal etimologia indica o
caminho a ser seguido: a invenção não opera sob o signo da iluminação súbita, da instantaneidade. (...) A
invenção implica uma duração, um trabalho com restos, uma preparação que ocorre no avesso do plano das
formas visíveis. Ela é uma prática de tateio, de experimentação que se o choque, mais ou menos inesperado,
com a matéria. Nos bastidores das formas visíveis, ocorrem conexões com e entre fragmentos (...)” (Kastrup,
1999, p. 23).
102
dizer que em planta de horta até que eu me saí bem a época certa de
plantio de lavoura...
- E pra criar os filhos: tu moravas na cidade, e agora?
- (Clarice): Ah, eu acho que eles têm mais liberdade aqui, né, porque
aqui tu, eles pode brincá por ai jogar bola, andar de bicicleta, aí não precisa
se preocupá, né, com pessoas estranhas e, até mesmo assim, sai longe de
ti má companhia também, né, aqui eles saem, a gente vai trabalhá. Ah, eu
falo para eles enquanto eu não volto do serviço eles fica em casa, e daí
eles fica estudando, assistindo televisão e eles ficam fazendo. Aí, depois
que eu chego em casa, eles saem pra brincar, mais assim a gente sai, eu
saio despreocupada, não tem com o que se preocupar, não tem perigo de
deixar eles sozinho em casa, mesmo sem assaltante né...(15-10-2006).
Quando acontece o envolvimento das famílias nos acampamentos do MST,
elas começam a experimentar desterritorializações. O deslocamento de suas
moradias para viver num grande coletivo heterogêneo registra uma capacidade
nômade de modificar-se pelos assentados. Depois, quando chegam aos
acampamentos, essa capacidade é potencializada para o convívio num tempo
indeterminado, pois o se sabe quando haverá o assentamento e em que
condições irá acontecer. Sabem que resistir ao frio, ao calor, a fumaça das lonas é
um dos desafios constantes, porque os acontecimentos produzidos no momento de
acampamento foram lembrados pelas famílias em vários momentos de diálogos
informais, nos quais contavam os desafios enfrentados: os temporais, os
enfrentamentos com os fazendeiros, os poucos recursos, como alimentação escassa
para uma grande quantidade de gente, entre outros. Assim, a falta de recursos, o
aparecimento de possíveis doenças não acabam com a perspectiva de continuar,
mesmo sem saber para onde. As diversas reuniões com diversos debates, com suas
consecutivas decisões, são ferramentas de uma nova escola que se estabelece
nessa trajetória. Por ser escola não menos instituída, mas agora com objetivo de um
viver modificado e, assim, territorializa-se o lugar de acampado.
No momento da convivência no assentamento, aparece uma nova
desterritorialização, que é aprender a conviver, agora, num tempo chronos mais
longo, recheado pelas trajetórias de vida diferentes que esperam construir práticas
coletivas. Então, o aprender a fazer, o aprender a pensar, o aprender a conhecer
vão dando-se no agenciar de um processo dotado de inventividade. Desse modo,
concordo com Maturana e Varela (2001, p. 11) quando afirmam que “a idéia de que
o mundo é construído por nós, num processo incessante e interativo, é um convite à
participação ativa nessa construção”.
103
- Conta aquela experiência que tu contô do aramezinho do alimento das
galinha.
(Jairo) - Aquilo foi uma coisa que nóis queria evitá eles botarem fora o
prato, e a gente sempre pensa em fazê as coisa reduzindo o custo e daí
nóis peguemo e fizemo o coxinho e botemo aquelas travinha de fora a fora,
né? Pra ficá pra cada frango, né? E daí eles começaram a comê e
começaram a puxá e botá fora e começaram a dormi em cima também e
daí dormiam em cima e onde cagavam não queriam comê mais. Aí, nóis
achemo um jeito de botá aquela tábua de quina, botemo em cima. Aqui
eles não vão consegui a passá dum lado pro outro com os sujo, né? E
sujando a comida, aqui eles não vão consegui passá e não vão consegui
puxá a corda também. Beleza! rendeu deu uma coisa boa. que daí não
passavam em cima mais começaram a fazê puleiro em cima pra durmi.
nóis peguemo e atemo aquele arame, né? Botemo bem espichadinho... E
daí elas trepavam ali e caíam...(21-10-2006)
A capacidade de reinventar num outro espaço modos de fazer através do
conhecimento vivido é a diferença das relações criativas encontradas nesse espaço.
Diferença, porque pode ser comum encontrar nos coletivos a submissão frente às
tecnologias impostas
99
. Mas o discurso que “mal-diz” as manifestações dos modos
de viver caboclo, tentando afirmar que este é atrasado, mediante a linguagem
reforçada na escrita literária, é aqui questionado, pois o que foi encontrado na
pesquisa contesta esse imaginário construído. Os agentes caboclos aliados nesta
pesquisa apresentaram uma capacidade de combater a moral escrava, que esta,
segundo Nietzsche (2006, p.29), é atribuída ao “homem comum (...) expressões (..)
´infeliz`, ´lamentável`, temeroso, sofredor, mísero, as duas últimas caracterizando-o
verdadeiramente como escravo do trabalho e besta de carga”.
Por conseguinte, o discurso de um corpo caboclo domesticado e, portanto,
dócil, também apresentado no primeiro capítulo, é combatido, nos modos de fazer e
de pensar, pelo grupo da pesquisa, experimentando outras sensibilidades, uma
outra ética. Ou seja, uma ética da existência que acontece, não por códigos morais
que exigem obediência intransigente, mas por um modo de relacionamento no qual
a vida transforma-se em arte
100
. Assim, existe também uma atenção que desliza das
práticas conservadoras e alcança uma outra atenção cognitiva e inventiva que busca
99
Faço uma comparação com os saberes vividos com as palavras das crianças: (...) as palavras que a criança
aprende melhor, aquelas em cujo sentido ela penetra mais facilmente, de que se apropria melhor para seu próprio
uso, são as que aprende sem mestre explicador, antes de qualquer mestre explicador” (Rancière, 2005, p.22).
100
“Deslocar a arte entendida como um conjunto aberto e variável de técnicas de construção e criação do
mero âmbito dos objetos ao da vida e colocar esse conjunto de técnicas nas mãos de cada individuo para que ele
mesmo produza sua própria vida e gerencie sua própria liberdade é uma aposta que Foucault faz” (Nascimento,
2007,p. 02).
104
“(..) conhecer a experiência humana em seu caráter mutável e fluido” (Kastrup, 2007,
p.10).
Nos diálogos abaixo, será possível encontrar uma multidão de saberes que
foram construídos pelas diversas histórias de vida, através do processo organizante
das famílias:
- Qual é o sentido de batizá em casa, por que que a família cabocla
batiza seu filho em casa?
- (Joana)Que nem a mãe e o pai sempre batizaram que é bom antes
dos sete dias, né, pra gente batizá...é uma cultura que a gente tem de
batizá, que é bom que a gente acredita, né? Tem fé...
- Quem é que é convidado pra batizá a criança ?
- (Joana)Geralmente a gente convida, pelo menos o que eu aprendi as
pessoa que a gente gosta, né? As pessoa que a gente admira que se
bem quando tu escolhendo o padrinho, tu escolhendo uma pessoa no
sentido de tê ajuda, né? a educá, te ajudá...
- Na família cabocla as crianças batizam?
- (Joana) Sendo batizado toda criança pode batizá, nós temo esse
entendimento pode batizá outra...(14/10/2006)
Outro:
- (Clarice): Nós viemo mais porque tava individado, por causa do
Douglas.
- (Jorge): É o Adriano era muito doente, tinha que fazer um monte de
exames, então nós não tinha outra saída a não ser se empregá, tinha que
levá ele a Passo Fundo, levar a Carazinho, em Ijuí, até resolver a questão
dele, resolvemo o que nós gastamo com ele que eu tinha...
-(Clarice): Nós tinha um mercadinho e tivemo que vender, pagar o
que nós devia por causa dele. Ele tinha convulução, o médico não soube
dizer o que que era uma disretimia cerebral o que ele tinha e daí ele tomou
gardenal dois ano e daí ele começou a... a gente começou, a perceber que
ele ficou, começou a ficar uma criança estranha, isolada, como se ele
naquele mundo ali, e depois de um tempo que ele começou, pois o tava
tomando o gardenol e levamos ele a consultar de novo com a neurologista.
A neurologista aumentou, ele tomava 38 gotas, ela aumentou pra quase 90
gota de gardenal. Eu disse pro Jorge, mas ele era desse jeito, ele vai
morrê deste... e se desse, ele disse, ele vai morrê e, se não desse, era
perigoso também. tava entre dois coração e, daí, o dia que levamo ele
pra fazê, ele teve uma convulsão mesmo tomando o gardenal e, ao mesmo
tempo, o gardenal provocou foi não... não foi o gardenal foi que eles
cedaram ele pra podê fazê o exame e daí o remédio que deram para ele
dormi deu a convulsão, e o gardenal ao mesmo tempo interrompeu, nós
tava em casa quando ele começou a pôr a língua pra fora e babar, levamo
ele de volta, da médica queria aumentar as gota de gardenal dele, e eu
não ia dá e daí levamos ele pra o neurologista lá e daí paguemo a consulta,
paguemo exame, olha nós gastemo um horror aquele dia, sabe?Aí ele deu
105
um explicação, né?...O gardenal, ao invés de botando a vitamina, ele
tava tirando, ele deu um remédio mais fraco pra ele que invés de tirar
aquelas vitamina, ia repor aquelas vitamina que o gardenal tinha tirado.
tirá o gardenal totalmente de um dia pro outro não dava, né, nós tivemo
que aquele remédio junto com o gardenal e tirando 5 gotas por dia do
gardenal, aos poucos, até ele acostumar com o outro, e daí foi daonde ele
começou a viver, de certo o remédio começou a fazer bem para ele como o
doutor explicou, né, e ele começou a virar outra criança, começou a
brincar, ele não comia, sabe, era bem complicado!...(15-10-2006).
É possível afirmar, de acordo com as falas acima, que as histórias
familiares evidenciam a produção de uma cultura carregada por blocos de
sensações que transpõem os limites constituídos, para experimentar o contar de
suas próprias histórias através das diferentes práticas vividas. E isso se mostra
desde a decisão de um batizado não convencional, cujo ritual acontece no espaço
de moradia da criança, tendo, como componentes, pessoas que convivem em seu
cotidiano, bem como as relações de parentesco, até a luta pela saúde de um filho
cuja trajetória para ingressar no MST é motivada pelas condições cruéis de
sobrevivência. Assim, numa pesquisa que busca conhecer as manifestações dos
modos de viver caboclo, essas histórias são muito bem aceitas, pois “(...) a vida é
engendrada em meio ao vivido- formas constituídas- e a sua constante variação
intensiva - forças inomináveis, sem contorno, atemporais” (Heckert, 2004, p. 69).
No que se refere ao entendimento de cultura através das histórias do grupo,
foi possível encontrar contos como estes:
- (Beatriz) Eu diria que é uma cultura, né, que nem ele falô do pai
dele. Tudo isso é cultura que o pai dele deu para ele. A cultura da minha
família já é bem diferente. Eu nasci no interior, eu filha de pequeno
agricultor. Meu pai faleceu quando eu tinha um ano e meio, então eu não
convivi com ele e nem com a agricultura. Eu fui a agricultura depois dos
vinte dois anos, na verdade eu aprendi na agricultura, até hoje eu tô
aprendendo porque eu não tinha conhecimento nenhum, mas quando
jovem, quando alguém jogava lixo no chão, sempre preocupada, né? Vai
demorar tantos anos pra se decompor. Aqui, apesar da gente vivê da
agricultura, a gente sempre consome coisas da cidade e aonde a gente vai
pôr? Nos anos que vivia sem luz, nós consumíamos muita pilha, né, a pilha
vai pro solo, e o que tu vai fazer, nós não temos onde colocá e o plástico,
né se queimado vai pro ar, né? A camada de ozônio?...(14-10-2006).
- (Marta) A minha história, desde criança é que eu contando para
as crianças, né, daí o Leonardo diz a história da é um causo não
precisa vocês saí daí, ? Contando, nóis fumo pobre, nóis tinha um
rancho de chão bem grande e, daí, naquele rancho ali nóis um dia deu uma
tormenta e caía tábua na cabeça das crianças e is caía rindo um pra cá,
outros pra lá, e tormenta velha, Deus o livre! Daí eu contando pra eles, às
106
vezes, eu dizia e a queria um guarda-roupas não tem meu marido ia na
no mato e cortava um cipó e vinha e dizia vou arrumar um guarda-roupa
para vocês, daí atava de uma ponta e outra dentro de casa lá no quarto, eu
dobrava as roupas e ia botando assim de caminhava e oiava assim como
ficava bonito, eu tava dizendo pra eles, né, que não tem o que chegue é
uma coisa e outra eles querem, né? Assim, foi nossa vinda, fumos indo
trabaiando inté que conseguimo tudo, tudo tinha sua roupinha, nóis ia na
igreja, saía na festinha, tudo tinha sua roupinha boa pra ir mas era
guardado, não era assim, tinha as de andar em casa e as de sair, né? Que
hoje em dia, eles usam fora de hora, tem que poupar as roupas de sair,
pra não tarem sovando que tem bastante roupa as crianças e usarem as
roupas mais sovadas em casa e as veiz tão com a roupa melhô brincando
por aí, ? Rolando digo deferença de primeiro... não digo Raul que é o
mais velho, quando vinha vindo da aula vinha desabotoando a roupinha
dele pra tirar né? Pra guardar, o Jorge é foi da aula do que o mais novo...
distância muitos longe, eles quantos quilômetros tinha pra dentro, eles
saíam, iam a pé e voltava, chegava de tarde em casa...(21-10-2006).
- (Silvio) A gente praticamente nasceu se criou num lugar só...numa
época que todas a famílias eram grandes não é...e dava na média oito, dez
filhos...vive todo mundo pertinho, então era. O que a gente participava
assim era festa anual, festa anual, né? E que vinha grupo que fazia parte
de nossa comunidade e era atração da criançada e da própria família...e
dos pais, né? Dos adultos na, daquela festança muito grande, muito
famosa. A gente ganhava roupa nova, sapato novo, né, a gente foi criado
assim, pela cultura que os pais da gente tinham de construir, de comprar
terra, de, né? de investir bem, mas a gente andava com calça pra gente ir
pro colégio, né? pra gente ir no catecismo, que tinha na época, né...você
fazia dois turnos...nenhuma roupa pra trocar... Eu, pra mim seria, uma
cultura muito ineficiente,.até não sei por que origem existe mas...se
modernizou tudo. Mas depois, com os passar dos anos, né? as coisas foi
mudando, começou a vir luz, né? começou a aparecer televisão e coisa,
então, a gente foi mudando e daí discutindo mais, se valorizando mais, né,
não se deixando mais assim levar, de viver daquela situação, né, fazer
contra o bem a gente participava...oportunidade... fazia baile...eu lembro
que eu fui criado nos transgênico, ? Eu me criei em sociedade, né? E
vendo muita, muita coisa errada, né? Crime é ver esse tipo de coisa, né?
que a gente sempre participava desde pequenininho, não sei se é a
conduta, não sei se a gente achava feio isso que a gente sempre quando
participava..., a conduta,... Então a gente cuidava muito isso, né? Da gente
não ofender as pessoas, né? E se criou desde que o pai e a gente
aprendeu com isso e vai levando pros filhos e tal, pros netos, como a gente
deve se comportar perante a sociedade, perante as pessoas, né? deve
valorizar os outros né? se valoriza, e não ofender as pessoas, e viver
sempre uma vida com amizade e tal, né? A gente participou de ...e se
fosse para outra cidade era muito diferente, o trabalho que a gente fazia a
gente o consegui tirar o tempo, o tempo pra isso...comunidade...(14-10-
2006).
O contar das histórias
101
acima instiga a memória imaginante, pois convida o
seu narrador a viajar, fazendo fissuras no tempo. No entanto, a narrativa não se
prende ao próprio tempo, mas ao acontecer das práticas que alimentam o cotidiano.
101
Nossa história também nos escapa e nos desenraíza, mas é somente graças a essa fuga que podem cessar a
insistente repetência do previsível e a sedução triste do totalitarismo, e que algo outro pode advir (Gagnebin,
2004, p.95).
107
O contar de Marta, que saboreia a arquitetura criada para poder ter um guarda-
roupa, bem como o contar de Beatriz, que enfatiza a diferença de suas histórias com
as de seu marido, cujos modos de viver são produto de uma cultura realçada por ela.
Também o contar de Silvio, que assinala o viver comunitário como “principio” de
convivência, confirmando que viver é uma arte, porque constrói, a cada dia, os
modos de ser e de estar no cotidiano.
A criação de linhas para viver com criatividade a partir do que existe no
espaço do habitar através da produção pelo autoconsumo e pela comercialização é
apresentada nas falas abaixo:
- Eu vi que tem um doce de leite ali, né? Esse doce de leite é pra quê?
- (Joana) Pra nossa subsistência, né? Que a gente aproveita o leite...a
gente aproveita caso pra comê e pra vendê também...
- Vocês vendem pra quem?
- (Joana) Olha vendemos pras família, também pra gente da cidade
né?...
- Vocês falam muito no autoconsumo. O que é o autoconsumo?
- (Joana) O autoconsumo que a gente fala é você produzi de tudo, né?
Quando a gente fala em autoconsumo, subsistência, você o porco,
banha, torresmo, salame, tem a carne, tu tem adubo do porco dali do
porco vai pra lavoura, né? Da vaca tu também tem o leite, tu tem o queijo
esse tipo de coisa. A horta envolve tudo que se produz...alface, beterraba,
mandioca, batata...daí milho, feijão... Então, quando falamo em
autoconsumo é um ciclo esse tipo de coisa...frutas temos um pomar, tamo
ampliando, não sei, tu viu? de laranja...esse tipo de coisa tu a fruta,
por exemplo, tu tê ela o ano todo, tem frutas que dão ... cada uma delas
uma época. Produzi semente tudo, não precisa dependendo de fora,
né?...
- A produção que tu no grupo é pra comercializá ou pra
autoconsumi?
- (Joana)Primeira pra autoconsumo...
- Por quê?
- (Joana) A gente... poucas linha que a gente comercializa, que é o
leite mesmo especifico, né? e o pêssego, e a fábrica no caso, por exemplo,
agora a gente enfrentando a estiada na agricultura, a gente gostaria de
milho pra vendê, feijão também, mas não é porque nós não
queremo...que a gente põe na terra, agora, por exemplo, de novo foi
plantado umas semente, tamo esperando, mas do jeito que tá indo o
clima...(15-10-2006).
- O que é o autoconsumo?
108
- (Leonardo): Pra nós, a prioridade é o autoconsumo, nós até hoje, por
exemplo, nós temo o leite, é uma das linha de produção que nós temo, o
autoconsumo e comercialização, a fruticultura, o pomar de pêssego é
autoconsumo e comercialização, e as demais produção é autoconsumo, a
produção de milho que nos é autoconsumo onde nós tratamo todos os
animais, tratamo porco, tratamo galinha, da galinha sai os ovos e carne e o
porco também, então nós temos feijão, nós temo toda produção da horta,
né, a questão de verduras, nós temo feito ...
- (Beatriz): A batata, a mandioca, a abóbora, inclui tudo...
- (Leonardo): Inclui tudo: legumes, verduras, então é a diversificação
de produção: mandioca, batata, amendoim, abóbora, nós temo tudo isso
plantado junto na horta, qué dizê é tu alimenta com qualidade mesmo, a
carne de gado, a carne de galinha, carne de porco faz três anos que não
entra de fora na nossa propriedade, é daqui que sai ou pra nós comê até
sai pra fora pra vendê, mas entrá, não entra. Adubo faz dois anos que nós
não buscamo adubo de fora, nós mesmo daqui fizemo adubo que a gente
coloca na horta, que coloca no pomar... o ano passado nós colhemo aveia,
nós tinha ervilhaca que são adubação verde que a gente faz,
principalmente, no pomar e na horta porque, enquanto a terra
descansando tu faz a cobertura verde pra ela descansá melhor ainda, ,
então a gente tem essas coisa que a gente seis ano que a gente tá aqui
a gente tem buscado cada vez se aperfeiçoá melhor e produzi com
qualidade...(15-10-2006).
-(David): O caboclo...a origem de nossa geração é ter fartura na
mesa, a ia, ela é panela cheia e chegava gente se tão dez pra comer e
se tiver mais um ou dois depois não é não ...faz farta ...(22-10-2006).
O caboclo que foi caricaturado no texto brasileiro, ou melhor, na literatura
brasileira, como um ser ocioso, primitivo, selvagem, apresenta aqui um modo de
viver que se manifesta nas escolhas de poder ser o que desejar. Ou seja,
independente das nomenclaturas, o registro aparece porque o caboclo aqui
encontrado investe na sustentabilidade, cuidando dessa relação como regra
combinada e vivenciada por todos. (...) Cuidar é mais do que um ato; é uma atitude
(...) uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento
afetivo com o outro (Boff, 1999, p. 33).
Portanto, quando este texto expõe a escolha de uma prática sustentável feita
pelo grupo, o é para produzir um outro imaginário, um tanto infantilizado de um
grupo folclórico amante da natureza, mas para poder anunciar as possibilidades de
que a vida pode produzir novas formas. Ou seja, são formas e modos de singularizar
o viver. E isso acontece mediante os processos moleculares revolucionários
102
e
seus agenciamentos coletivos. Como lembra Guattari (2001, p. 29):
102
Não é possível pretender se opor ao sistema capitalista apenas de fora, através de práticas sindicais e políticas
tradicionais. Tornou-se igualmente imperativo encarar seus efeitos no domínio da ecologia mental, no seio da
109
No caso dos Agenciamentos processuais, a ruptura expressiva a-
significante convoca uma repetição criativa que forje objetos incoporais,
Máquinas abstratas e Universos de valor impondo-se como se tivessem
sempre estado aí, ainda que totalmente tributários do acontecimento
existencial que lhes dá nascimento.
Quando falo em ruptura a-significante, defendo a proposta de romper com os
valores, com as verdades, com os símbolos criados e reproduzidos através dos
modos homogêneos. Ou seja, produzir para autoconsumir como prioridade não é
uma prática instigada pelos dispositivos capitalísticos, no entanto essa produção é
um agenciamento assumido pelo grupo da pesquisa, para acionar outras práticas de
resistência. Como, por exemplo: adubar organicamente, aproveitar o que existe no
campo ao máximo, consumindo o mínimo dos produtos de fora, reflorestar ao invés
de devastar
103
, entre outras práticas. Assim, agenciar é deixar disparar novos
universos de referências capazes de criar movimentos de reinvenção coletivos e
cotidianos no seio do habitar, pois o que grupo manifestou foi um desprendimento de
certos paradigmas a fim de poder estabelecer outras escolhas de vida.
- Fábrica do que é?
- (Joana) Nós somos uma família assim... de dinheiro, somos pobre,
mas de dom é o que mais a gente tem, não tem quem não saiba fazê
alguma coisa...costurá na fabrica nós fazemos bolsa, sacola, roupa, precisa
de fazê abrigo, camiseta essas coisa, tem gente especializado pra isso...
- Eles aprenderam aonde?
- (Joana) Mas olha a gente aprende na escola da vida, como diz o
outro... nós aprendemo trabalhando, né? com o outro... eu acho que a
gente tem um dom por causa que nem eu ainda trabalhei em fábrica
pequena, né...outro meu irmão também, mas eu tenho uma outra irmã
minha que ela mesmo produz, mas eu acho ...por exemplo da família do
meu pai, a minha avó era costureira e ela nunca aprendeu com ninguém,
ela aprendeu por conta, e a minha irmã também...ela, além de
costureira, ela é mesmo estilista...a gente mesmo que cria os
modelos...(14-10-2006).
- (Silvio) E as hortaliças, e tem uma horta, coletiva, tem uma coletiva
e daí tem mais uns dois, três que outro ? que tem uma hortinha...aí o
vida cotidiana individual, doméstica, conjugal, de vizinhança, de criação e de ética pessoal. (Guattari, 1997,
p.34)
103
Aqui se lembra o discurso produzido na escrita de Monteiro Lobato em Velha Praga, quando estigmatiza e
culpabiliza o caboclo pela queimada e devastação. Entretanto, o grupo da pesquisa apresenta uma prática
comprometida e ética frente à existência, pois nos encontros com as famílias foi possível conhecer as produções
ecológicas feitas por eles e nelas se inclui o reflorestamento de árvores que desenham o corredor de entrada do
assentamento.
110
leite é coletivo, se trabalha todo mundo, se pega de consumo, né, pra se
faz queijo, pra consumo, pra vender, nata, manteiga, né, a produção
mesmo do leite é muito grande, cooperativa dos assentados, ....uma
cooperativa nossa que surgiu esse ano, antes nós vendia pra
COOPAL,..........nós criamos porco também, é... pro consumo, mas as
vezes sobra e a gente vende também, ou um pouco de carne. Pra
vizinhança aqui. Tem muita escassez de porco, né, então a gente vende
pro pessoal que não sabe criar...(15-10-2006).
A prática do trabalho, objetivo de análise da pesquisa, manifestada pelo grupo
não acontece a partir do exercício de um corpo funcional e útil, mas sim pela
necessidade criada a partir da realidade que se mostra no viver do grupo em que
são potencializadas as habilidades de cada um. Entretanto, o desejo de ultrapassar
a realização material para viabilizar outras possibilidades também foi possível
conhecer, porque, quando aconteceu o encontro na moradia de Volmir e de Joana,
relatado no início deste item, eles apresentaram as pinturas em tela que Volmir faz.
Igualmente no espaço do assentamento, foi possível conhecer a pintura feita na
parede da sede pelo mesmo assentado. Outro momento da pesquisa, quando o
grupo todo se reuniu no espaço desse coletivo, a música, o canto e a dança
apresentadas pelos diferentes agentes afirmaram que ser caboclo campesino é
um fragmento deste corpo, outras manifestações dos corpos que acontecem
quando acionadas. Fazem mais e sabem mais do que plantar e colher, pois
singularizam seus modos de viver através dos diversos processos em grupo. Assim,
como afirma Jesus (2000, p.36) “(...) o trabalho para os caboclos (...) sempre foi visto
sob a ótica da satisfação de suas necessidades, não como obrigação, tarefa ou
exploração de suas energias”, pois um devir artista que transversaliza o corpo do
caboclo assentado num movimento que pulsa os desejos, fazendo acontecer a arte
como ressonância do trabalho.
- (Silvio): Essa história de acampamento aqui, desde que começou,
os primeiros acampamentos não por nóis aqui, mas uma parte apoiava,
tava mais politizado no sindicato, politicamente no próprio movimento,
outros não queriam nem saber, né? Muitos jovens..... e daí sempre tinha
uma resistência do irmão, do pai, mãe, toda aquela história, né?E mas aí,
depois que foram amadurecendo, o pessoal começou a sair pra acampar, e
daí quando começou a sair o dinheiro do assentamento, ? Muita gente
morava....dizendo que não ia conseguir mais perto, que ficar na
cidade....vai até um certo ponto depois não tem mais como...aí se começou
a planejar e acampar, mas sempre queriam assim uma turma grande, né,
mesmo não sendo da família que achavam que era mais viável, mesmo
sendo uma área só...se pensava anos atrás isso,e daí veio se firmando
essa idéia, nóis, acampamento na cidade, e éramos na área da
111
prefeitura, né?que ficava praticamente dentro da cidade, onde tem feito
acampamento, o pessoal era favorável começou indo dois, três, né, pra ir
segurando e aí tinha prazo né, tinha trinta dias, quarenta dias de prazo, né?
e daí, durante esses quarenta dias, o pessoal foi solucionando os
probleminhas que tinha por fora, né, de fabriqueta, quem era empregado e
coisa, né, pra fazer de tudo isso, parar né, parar...(14-10-2006).
- (Leonardo) Quem decidiu vi acamfoi a Beatriz, não fui eu porque
eu tava trabalhando, eu cheguei em casa, e ela disse: “Não, Leonardo, eu
acho que a nossa saída é i se acampá, eu até fiquei assim porque foi de
surpresa, né? Disse pra ela que eu ia conversá, voltei à tardinha do serviço
quis colocá pra ela todos os problema, as dificuldades que nóis poderia
encontrá no acampamento, porque não é fácil, muitas pessoas dão risada:
ah, tu debaixo duma lona preta, olha os sem-terra, né?! Mas se os governo
olhassem a reforma agrária com outros olhos, talvez essas pessoas
poderiam melhor no nosso País, né? qué dizê, terra tem à vontade nas
mãos de poucas pessoas concentrada, e muita gente precisando um
pedacinho produzi nem que seja o seu alimento, mas infelizmente
enquanto não tem isso, tem que se organizá pra tu lutá por alguma coisa...
(14-10-2006).
- (Jorge) Quando ocupemo fazenda... era granja, né? Nóis fiquemo na
beirada do mato, então eles passavam, nóis fazia linha de marcação pro
povo o passar das linhas de marcação, por exemplo, o acampamento
tinha uns barracos aqui nóis, fazia uns 30 metros longe dos barracos, nóis
colocava umas bandeiras de marcação pra segurança, né? segurança,
não deixar as criança sair pra longe, né? pra ficarem ali e daí eles vinham
com as camionetas assim e passava perto do nosso segurança, assim e
passava com a camioneta em cima das bandeiras nossas.. Derruba, daí
nóis ia e colocava de novo, passaram incomodando o dia inteiro, né?
ameaçando de vir e crucortando os barracos com aquelas camionetas,
né? E daí o povo ajeitava lá na reunião até o segurança chamá no apito lá,
e nóis saía tudo, né? organizava o povo, né? porque ali tinha tudo criança,
tinha mulhé, tinha né... um louco com uma camioneta atropela criança, né?
da gente. Dnóis sai, né, o pessoal saía pra fazer as coisas, né, e daí de
noite, daí eles vinham perto do nosso acampamento, daí eles atiravam a
noite inteira. Começava escurecer, eles começavam a dar tiro de
espingarda. Depois, nóis achava as balas, sabe, caída assim perto... nóis
achemo.
- Ah, que perigo! Nunca acertaram ninguém?
- Não, o nunca assim, mas atiravam a noite inteira, tiro e tiro, de
dez em dez minutos era um tiro.
- E as crianças?
- As crianças pulavam. Pobrezinhos. Nóis não tinha sossego, doze
noite e doze dia sem dormir. Pensei que ia ficá louco. Daí aquilo nóis tudo
barrava, né, para dar uma pressionada no governo, né. Pra saí a área daí,
nesse tempo negociou essa área e dasapropriou ... o governo Olívio tinha
uma área de 150 hectare, negociemo com ele, e ele cedeu aquela área
para nóis, onde ia sai assentamento e saiu, né, e dela nóis, semo sorteado
para essa área aqui, né. Aquele 12 dias foi um inferno!.... !...(15-10-2006).
- Vocês acham que as histórias das famílias de vocês ajudaram a
convivê num acampamento e, agora, convinum assentamento? O que
as histórias das famílias têm a ver com vocês e com o assentamento?
112
- (Volmir): Pra mim, principalmente, é um pouco pela gente tê nascido
na colônia, a gente visto os pais da gente sofre, né? com pouca ou
trabalhando pros outros de empregado na colônia, e a gente sempre
mantendo esse sonho, né? A gente trabalhô até os doze anos, quinze ano
por na colônia, e teve que vi embora pra cidade devido, principalmente,
pra mim, na época da revolução verde foram empurrando...que nem o meu
pai, por exemplo, ele trabalhava...plantava as terra do meu finado vô, né,
que era pouca terra, era vinte e um hectares que eles tinham, né? E os
grande foram empurrando em roda, foram empurrando até que eles
tiveram, foram forçado a vende aquelas terra pros grande latifundiários que
compraram aquilo ali pra...então a gente foi obrigado a vim pra cidade, o
meu pai ficô no interior trabalhando de empregado nas grandes granja né?
E a gente veio pra cidade continuá os estudo e trabalhá também, né, pra se
sustentá, então a gente sempre diz, o sonho né, o que nos le mais a
gente i se acampá...até a Joana dizia pra mim...eu falava muito pra ela o
meu sonho é i juntando dinheiro pra comprá uma terrinha no interior pra
quando a gente se aposentasse ficasse com mais idade voltá a morá no
interior, né? E aí, como surgiu a oportunidade da gente i se acampá, de
lutando por um pedaço de terra, a gente pegô e foi teve a coragem e foi
tentá uma vida melhor e, graças a Deus, hoje a gente não se arrepende do
que fez porque temo muito feliz...
- (Joana) A gente é filho de pequeno agricultor...se dependesse de
mim, eu nunca tinha saído do interior, a gente se crio no interior, sabe o
quanto que é bom, louco! não tem coisa melhor! Filhos de agricultor, o
pai e a mãe trabalhando na agricultura...a idéia do meu pai é que nunca
nóis saísse dela, né? Ele conseguiu comprá um pedacinho de terra, mas só
daí com um monte de filho não dava mais pra continuá comprando terra,
então ele queria que a gente estudasse, , e aquele tempo, aquela
dificuldade, imagine pra estudá eu pra fazê até a oitava série tinha que
andá oito quilometro pra pode estudá, ele levava a gente até uma altura
ainda quando era escuro, o finado pai levava, a gente saía às seis e meia
da manhã de casa, levantava, fazia o café pra gente estudá porque sempre
queria que a gente fosse estuda, né?! Mas que as oportunidade eram
poucas por isso que hoje a gente vendo as oportunidade que tem de
estudá, mais fácil pros nossos filho que nem... tão estudando. Então,
esse tipo de coisa...e praticamente a gente foi pra cidade porque a terra
não dava pra sustentá todo mundo, né, praticamente a terra que ele tinha
pra ele e pra mãe um filho olha lá? E a gente foi trabalhá, né, de
empregado, mas o trabalho que a gente tinha não dava pra pagá...o
segundo grau, mas faculdade nem pensá, né?! Tanto que se parou por ali,
e daí a idéia era um dia trabalhá pra comprá uma terra e voltá, né...pra vivê
o resto da vida, mas daí, como diz o outro, surgiu o movimento...que faz
anos que por aí, e a gente foi vendo que tava dando certo, que as
familias ... eu acho que muitas famílias sofreram muito porque nóis ficamo
um ano acampado, tem famílias que sofreram muito mais, ficaram cinco,
oito anos. O processo é assim, né, as dificuldade, mas que hoje tão bem,
né, na sua terra, e hoje a gente aqui...às vezes a gente, né, eu tava
comentando com o Volmir que não tá ainda que nem, por exemplo, a gente
queria uma casa melhor, ta ainda bom, te a água potável dentro de
casa...a reforma agrária a gente vai é conquistá, mas tem coisa que
depende de governo, né, se torna difícil, mas pelo menos a gente se deita
na calma e dorme descansada, mas tu sabe se tu não tem dinheiro, mas a
casa é minha, seja ela como for, a terra é minha não vai tê ninguém
amanhã vindo batê aqui na porta cobrando aluguel, cobrando luz, cobrando
água, esse tipo de coisa, a gente sabe que aqui comida nunca vai faltá, a
menos que...apesar da seca, da estiagem, que não depende da gente,
depende da natureza, que também é uma coisa que o próprio homem
destruiu, né, mas você sabe que, pra comê você tem né, você sabe que é
113
só i ali e plantá, né, e é uma alimentação mais saudável, tem saúde
também. Então, é esse tipo de coisa...Lazer, tudo, a gente se diverte...e daí
a forma, né,...o pai e a mãe sempre foram umas pessoas humildes, que
felicidade pra eles era, né, tendo saúde, os filho tando bem, tendo comida
na mesa, esse tipo de coisa...(14-10-2006).
(Rita): Eu acho que as histórias familiares que prevalecem, nessa
história, acho que é a geração que vem de pais e avós que trabalhavam
na terra, e todo mundo tinha essa vontade de trabalhar na terra, só que não
tinha meios, né, porque todos eram filhos de pequenos agricultores.....não
tinham mais como sustentar os filhos na terra e acabaram indo pra cidade,
mas essas pessoas sempre iam pra cidade, com aquela intenção de um
dia, né? voltar a trabalhar, que nem seus avós, seus pais, sem a questão
da monocultura e, coisa, produzir seu próprio alimento, não depender de
mercado, essas coisas. E a convivência coletiva acho que é o fundamental,
porque nós temos
,
aqui, a produção que nós temos, hoje é porque a gente trabalha no
conjunto, né? Porque, às vezes, um precisa sair, o outro fica. É aquela
correria. Não vai ficar naquela dependência que eu falei antes, né, que
daí, deu pra nóis construir, porque nóis conseguimos diversificar mais a
produção. Porque se nóis fosse assim, não tivesse esse trabalho no
coletivo, nós ia limitar a nossa produção, porque, somos todos, não sei se
vocês perceberam, famílias pequenas, né, que ainda tem filhos pequenos,
então depende mais em casa um pouco né, e ia limitar a produção. Ia ser
uma ou duas produção, e não mais, porque tinha pouca mão-de-obra, né?
Então, aqui nóis trabalhamos todo mundo junto, a gente faz mutirão no
lugar. Então, favorece pra diversificar a produção. E já desde o
acampamento já vinha com essa questão, né?...(15-10-2006).
O processo organizante das famílias para ingressar no MST foi evidenciado
nas falas acima, sendo que os dispositivos desse envolvimento se deram a partir da
família. Ou seja, mesmo que a família seja uma instituição que impõe regras e
normas de comportamento, ela mesma buscou potencializar a capacidade de luta do
seu coletivo. Outra questão que também exigiu atenção é que, embora o MST tenha-
se institucionalizado através de seus mecanismos de controle para uma eficácia de
luta feita como movimento social, mesmo assim, é nesse espaço que o grupo de
caboclos escolhe reinventar os seus modos de viver. Tutelados ou não, a escolha
proporciona outras expressões o permitidas quando estavam vivendo nos
espaços urbanos e rurais. Então, por isso se chama aqui de processo organizante,
porque para além do organizado, ou seja, das reuniões, das pautas que exigem
comprometimento nas tarefas de todos criados pelo MST, este grupo, quando se
vincula no movimento e, portanto, tornando-se também do MST, consegue
apresentar os desejos, as histórias, as esperanças, as dificuldades, e estas
aparecem como manifestações que vão desenhar a cartografia coletiva que, sendo
organizante, pode, em meio ao organizado, criar outras práticas.
114
Esse foi o processo apresentado, cujo objetivo, evidenciado no início deste
capítulo, era de apresentar uma cartografia coletiva que aconteceu no desenhar de
uma estética que teima em existir. O objetivo não foi de idealizar as manifestações
dos modos de viver caboclo, mas, antes, de registrar as potências coletivas que são,
muitas vezes esquecidas pela força de um olhar estigmatizado.
Este capítulo pretendeu, também, desconstuir o discurso de verdade instituído
sobre o caboclo apresentado no primeiro capítulo desta Tese, pois o ocioso, o
vagabundo, o adaptado, o destruidor, o primitivo, o selvagem, o preguiçoso, o piolho
da terra, entre tantos adjetivos registrados, foi metamorfoseando-se numa outra
escrita devido à aproximação com o cotidiano de um grupo que luta. E esse lutar
alegre desloca os conceitos que marcaram seus corpos através de outras
manifestações. Assim, descobre-se que o tempo, para o caboclo, é um outro tempo,
o qual busca viver processos que se modificam a cada despertar de uma
aprendizagem que acontece coletivamente.
Portanto, o discurso de verdade sobre o caboclo, que o colocou no lugar de
atrasado, frente ao processo de civilização imposto no País, alimentado pelo
imaginário social criado nos registros da literatura brasileira, em especial nos textos
de Urupês e Velha Praga, do autor Monteiro Lobato, desloca-se para a existência de
um outro caboclo, o que denuncia esse mesmo discurso/imaginário nas
Manifestações de seus modos de viver num assentamento de reforma agrária.
Assim, outros sentidos foram produzidos sobre o viver num jeito coletivo de
agenciar práticas capazes de reinventar o cotidiano nas relações em grupo, nas
relações em família, nos modos de se relacionar com a terra, criando dispositivos de
autoconsumo e de comercialização, potencializando as experiências e as histórias
de cada um.
Então, os resultados dessa produção de dados estão registrados nas falas e
nos diálogos proporcionados pelos encontros cartográficos. Para conhecer e
entender esses registros, basta potencializar uma escuta sensível, um olhar atento,
um despertar curioso para a vida que se manifesta cotidianamente nos diferentes
mundos das multidões que encontramos. Aqui, foi encontrada não
uma multidão de pessoas, mas uma multidão de histórias que não se prendem
apenas ao passado, mas que contam com ele para reinventar o dia a dia. Uma
multidão de desejos que desenham os mundos vividos e uma multidão de outros
115
sentidos produzidos pelos próprios caboclos que ousam romper com alguns
preconceitos, criando outras histórias no movimento realizante do viver em grupo.
6. CONSIDERAÇÕES CARTOGRAFADAS
- (Volmir) A família cabocla tem o costume de passá a terra de geração
pra geração... Trata a terra com amor pra que as gerações futuras possam
tá também aproveitando a terra... Pra mim, é essa diferença que tem... (14-
10-2006).
-
Pelo mundo, as pessoas desenvolveram maneiras de sobreviver em
ambientes em parte perigosos, em parte agradáveis. As histórias que
contaram e as atividades em que se ocuparam enriqueceram sua vida,
protegeram-na e deram-lhe significado. O “progresso do conhecimento e
da civilização” - como está sendo chamado o processo de forçar costumes
e valores ocidentais em todos os cantos do mundo- destruiu esses
maravilhosos produtos da engenhosidade e compaixão humanas sem uma
única olhadela sequer em sua direção. Progresso do conhecimento”
significa, em muitos lugares, a matança de mentes. (Feyerabend, 2007, pp.
22-23).
Chegar a este momento é aceitar o movimento itinerante do pensamento que
novamente reinventa passagens, afetos, desejos, lutas, batalhas, processos. Chegar
a este momento é poder aceitar que as multiplicidades existem e, portanto,
transformam os registros a cada disparate. Não há final, mas um infinito de
possibilidades que convidam a novas viagens para encontrar outras paisagens.
Assim, a escolha de um texto acaba se tornando uma escolha amorosa por
vezes mais apaixonante do que amorosa, pois a entrega acontece sem rótulos,
aberta a qualquer elemento temporal. Como acredito na beleza multicolorida das
paisagens, as tempestades são importantes na composição cartográfica.
Por conseqüência, chegar aqui não é chegar sozinho, mas, antes de tudo, ser
afetado por uma multidão de outros encontros e de desejos que buscam agitar as
instituições que congelam a vida cotidiana. E no que se refere à profissão de Serviço
Social, é possível encontrar aliados/companheiros que dançam sem se aprisionar às
regras dos passos. Então, os trechos abaixo foram registrados pelas acadêmicas
que fizeram parte da pesquisa:
Pensar essa cartografia coletiva que traçamos requer a mesma
atenção e sensibilidade imprescindível nos momentos de encontro com o
Grupo do assentamento. Afinal, a escrita é parte dessa cartografia. Os
momentos junto a esse grupo (que haviam acontecido antes da
pesquisa) me despertam um estado de euforia por me sentir frente a frente
com a vida. Um modo de vida que é traçado de uma maneira bela, movida
pelo desejo de ter condições de existência digna que se traduz na luta
travada junto ao MST – de viver perto da família, de ter lazer, de ser feliz.
116
O olhar para esta pesquisa cartográfica me faz sentir parte de um
lindo mosaico criado a partir do modo de vida caboclo. A partir dos
momentos impregnados de falas (numa sonoridade na maior parte das
vezes, mansa e calma), risos, de olhos marejados de lágrimas, de gestos
corporais que expressavam a intensidade das história contadas, fui
traçando, viajando com toda aquela multiplicidade e compondo
movimentos do meu viver, que era costurado ali de uma maneira coletiva.
Parte interessante da experiência da pesquisa foi transcrever as
entrevistas. Isso me fez pensar a própria experiência do “contar”, e me
despertou uma curiosidade: Como seria se alguém transcrevesse minhas
falas, minhas histórias cotidianas, minhas expressões, minhas gírias?
Acredito que a linguagem, a maneira de contar já desenha um pouco do
que é contado, um pouco da vida que ali essendo traçada. As histórias
às quais me mantive atenta (ainda de uma forma mais intensa no momento
da transcrição) me permitiram ir compondo paisagens, imagens daquele
viver. E isso me fez pensar todas as imagens que desenhamos com
nossas falas cotidianas. Fazer parte dessa cartografia me fez estar mais
próxima do que considero vida. Estar no cotidiano das pessoas cujas
dificuldades, mas também a resistência, as micro-revoluções acontecem.
Um mundo “em anexo” a academia e, que ao mesmo tempo inventa
espaços de discussão nesse mesmo mundo acadêmico, no coração do
mesmo estabelecimento que nos vigia (Giacomel, et al., 2004).
Vivências como essa junto a esse grupo, são o que mina minha
formação profissional, produzindo dobras que me fazem suportar a
instituição acadêmica, cujos “formadores de opinião” estão sendo
encaixotados e saindo logo ali na esteira da fábrica “bitolante”, carregando,
em seus “chips” profissionais, o mesmo conteúdo e nenhuma resistência
(Duarte, 2005). O Serviço Social só se torna uma profissão comprometida e
desejante, ao permitir – se um olhar estético para os coletivos, aquele olhar
que o pretende interpretar, julgar, ou explicar modos de vida, mas sim
um olhar a partir das sensações, que sente e a multiplicidade da vida
que atravessa os coletivos sociais. Sem esse olhar, penso que qualquer
luta contra o capital perde seu sentido, pois serializa a vida em um modo
único de viver, legitimando assim toda a subjetividade capitalística e
negando toda a vida que presenciamos nessa cartografia coletiva
(acadêmica, 8º semestre/2007).
Eles conseguem usar dispositivos que tornam qualquer movimento
simples movimento cheio, completo e intenso O cotidiano destes caboclos
é um cotidiano repleto de sentimentos transformadores...os movimentos
são tão harmoniosos neles que até a ciência que se julga tão onipotente se
torna simples (acadêmica, 8º semestre/2007).
A Dona Marta, uma simples senhora a qual chamo de arca da família,
nos deixou tão à vontade que me senti da família. A sua preparação para o
nosso encontro foi tão marcante pois teve um ritual, ou seja, uma grande
preparação. Vi que aquilo foi por prazer foi lindo (acadêmica,
semestre/2007).
Assim, os textos acima conduzem ao pensamento de que a proposta desta
pesquisa, antes, foi de potencializar os saberes e os poderes existentes. Saberes
que resistem todos os dias. Resistência que aparece através das estratégias
coletivas que questionam diversas fronteiras desejando-as minimamente mais
flexíveis na formação profissional ou na construção do grupo, nas escolhas em
117
produzir alimento que possa extrair a vida numa relação de alteridade com a
natureza. Então, propor uma cartografia coletiva que expresse as possibilidades de
uma vida potente na produção de novos mundos é, sim, ter uma posição política
frente às subjetividades capitalísticas que hoje estão, cada vez mais, plagiando
sensações, amores, lutas, vidas heterogêneas.
Portanto, esta cartografia resulta num processo que acontece numa
velocidade incontrolável, chegando a uma outra fase da vida em que as indignações
com uma sociedade seletiva foram traduzidas na busca por uma profissão que
acenava à abertura dos questionamentos, bem como na busca de um envolvimento
amoroso com as lutas criadas e reinventadas pelo Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem-Terra.
Os encontros de pesquisa produziram afetos que garantiram novas relações
com o tema aqui proposto. Relações de um saber que não se estabelece somente
nos bancos universitários, mas que se criam no contato com os mundos simples do
cotidiano. Cotidiano o menos conflituoso, mas de intensa potência coletiva.
Cotidiano que não nega as suas dificuldades, os seus considerados problemas, mas
que está em constante transformação. Transformação comparada ao processo que
torna a lagarta em borboleta, o sem-terra em assentado, o caboclo considerado
atrasado em caboclo brasileiro, que se manifesta rompendo com dogmas e estigmas
acerca de sua vida.
Os regimes de verdade foram aqui questionados na tentativa de, a partir da
cartografia coletiva, “tentar” desconstruir o que desde a colonização brasileira foi
construído. Ou seja, a tentativa foi a de mostrar que os seres agentes do
mundo/mundos são capazes de criar estratégias, produzir alianças e manifestar, nos
acontecimentos cotidianos, um novo território cuja tônica é poder viver do modo que
quiser, sem o policiamento da sociedade “modernizante”. Segundo Heckert (2004, p.
70):
A proposta que movimenta este trabalho é ouvir, atentamente.
Algumas narrativas que podem nos auxiliar a mergulhar em meio aos
processos de fabricação das resistências. Transitamos nestas narrativas
buscando entrelaçarmo-nos nelas, mais do que apreender suas
divergências. O que importa não é a verdade do narrado, a unidade textual
ou sua correta transmissão, mas o que é feito dessa e nessa narração.
Nesta viagem fomos acompanhadas por alguns aliados que habitaram
tempos e espaços diversos, mas que tiveram em comum o desafio de
indagar os modos de existência instituídos.
118
O objetivo explícito deste trabalho foi de utilizar a cartografia como modo de
pesquisa junto a um grupo de assentados caboclos do MST, bem como tentar
desconstruir imagens sociais que teimam colar os corpos desses agentes. Outro
objetivo foi de, com esta proposta, instigar uma aliança com o mundo do Serviço
Social, pois é possível ousarmos outras viagens.
A proposta, mesmo sabendo que, em qualquer território das multidões,
inclusive este aqui, problemas, reproduções, antiproduções, controle,
disciplinamento, etc., também tentativas de resistir a isso tudo através da
criatividade, do desejo de viver outras práticas a partir das histórias desses coletivos.
A tentativa foi de ir ao encontro para apresentar o que esses agentes pensam,
e não falar em nome de ou contra quem... Mas de proporcionar para tais agentes,
aqui considerados caboclos, o exercício de contar de suas histórias, seu cotidiano,
suas lutas, suas alegrias, seus desejos... Ou seja, cartografar é poder falar com eles,
e não sobre, nem para eles... Segundo Louro (2004, p.13):
(...) para pensar as culturas como locais de moradia e de passagem, para
refletir sobre viajantes e nativos, turistas ou migrantes compulsórios, para
pensar sobre os sujeitos que podem (ou não) viajar, para pluralizar
sentidos e significados das viagens, para falar sobre raízes e rotas, sobre
as formas como os ´dentros` e ´foras` de uma comunidade são ´mantidos,
policiados, subvertidos, cruzados`, para contar sobre zonas de fronteiras.
Suas reflexões permitem pensar para além das culturas ditas exóticas, das
tribos ou dos grupos aos quais os etnógrafos costumam dedicar tanta
atenção; elas permitem pensar outros deslocamentos na
contemporaneidade.
Portanto, é uma outra cultura que se anunciou, não com a caracterização
étnica, racial, de classe, de gênero, ou seja, esta escrita não se deteve nesse tipo de
preocupação, mas buscou apresentar as manifestações dos modos de viver como
possibilidades de um acontencimentalizar produzido pelos próprios agentes que
vivem naquele espaço. Conseqüentemente, a escolha pelo caboclo deveu-se ao
enfoque estigmatizante que sofre, não para criar um modelo ideal de um tipo de
população existente nos assentamentos. É apenas uma escolha, mesmo que seja
uma escolha política posicionada, pois, apesar dos mecanismos de reprodução dos
discursos de verdade sobre tais agentes, eles possuem uma outra visão de seu
viver. A capacidade, o poder, o saber, entre outros aspectos, desenharam um
coletivo potente e alegre. Assim, a cartografia foi desenhada pelo coletivo, pela
oportunidade de registrar, também, o seu ponto de vista, ou seja, não encontrei nada
velado que necessitaria de uma interpretação para descobrir alguma verdade,
119
porque, como lembra Silveira (2007), a “interpretação não descobre a verdade, mas
a produz”. Então, para esta escrita, não existe um conhecimento puro irrepreensível,
mas o desejo de reconhecer os “enunciados que supõem singularidades”.
Poder trazer as falas é poder conhecer os deslocamentos desse grupo frente
a um mundo desconhecido.... A concepção de terra, trabalho, cultura, lazer, através
das escolhas de produção do autoconsumo, bem como da comercialização num
processo organizante das famílias, é para apresentar algumas das facetas dessas
manifestações, uma vez que elas não esgotam o cotidiano, os modos de viver. Um
exemplo disso é a concepção de tempo, evidenciando que, quando chega uma
visita, o trabalho é encerrado para acolher quem chega, ou seja, é uma outra forma
de eleger o que é importante neste viver. Segundo Kohan (2007, p.3):
A história é a sucessão de efeitos de uma experiência ou acontecimento.
Portanto, de um lado estão as condições e os efeitos; do outro lado, o
acontecimento mesmo, a criação, o que Nietzsche chamava de
intempestivo. De um lado, está o contínuo: a história, chronos, as
contradições e as maiorias; do outro lado, o descontinuo: o devir, aión, as
linhas de fuga e as minorias. Uma experiência, um acontecimento,
interrompem a história, a revolucionam, criam uma nova história, um novo
início. Por isso o devir é sempre minoritário. As maiorias não se definem
pelo número ou pela quantidade porque são um modelo ao qual que se
conforma. As minorias, ao contrário, são potências não numeráveis ou
agrupáveis em conjunto, elas não têm modelo, estão sempre em
processo
105
.
Assim, o caboclo registrado em Urupês e Velha Praga, na obra de Monteiro
Lobato, no primeiro capítulo, diferencia-se do caboclo encontrado nesse grupo
assentado, registrado no último capitulo, pois as concepções do grupo através dos
objetivos da pesquisa apresentaram um modo de viver o melhor, nem pior, como
adjetivado no registro da literatura, mas um modo que merece ser considerado. Um
exemplo disso ocorre quando nós, profissionais das áreas sociais ou humanas,
vamos atender a população, sendo necessário considerarmos as heterogeneidades,
e não colocar no enfoque desse atendimento, um procedimento que não reconheça
as diferenças, as histórias e os modos de viver que chegam demandados por nós.
A escolha do habitar de um grupo assentado como lócus da pesquisa foi para
apresentar algumas manifestações dos modos de viver caboclo, que a proposta
105
Para Walter Omar Kohan (2007, p. 3) “Mesmo que chronos tenha sido a palavra bem-sucedida e comum entre
nós, não é a única para designar o tempo entre os gregos. Outra é Kairós, que significa medida, proporção, e, em
relação com o tempo,momento critico, temporada, oportunidade. Uma terceira é Aión, a mesma que Platão usa
para referir-se á eternidade na citada passagem do Timeu; em seus usos mais antigos, aión designa a intensidade
do tempo da vida humana, um destino,uma duração, uma temporalidade não numerável nem sucessiva, intensiva.
Se chronos é limite, aión é duração.”
120
foi de não tornar esse espaço como uma verdade totalizante sobre tais modos de
viver, porque o risco de utilizar outros esteriótipos sempre pode cercar a escrita
acadêmica. Por isso, o desafio foi de fazer um registro cartográfico de maneira
narrativa e não de analisar condutas ou comportamentos, ou registrar
representações, pois são manifestações, e não modelos.
Os analisadores: Invenção, Devir, Cotidiano, Singularização e Agenciamento,
escolhidos para a produção das analises do processo de pesquisa, contribuíram
para compreendermos que, sendo esta pesquisa registrada e produzida de modo
cartográfico, não nos interessa a quantidade como resultado, mas os movimentos
desse coletivo no que se refere às manifestações de seus modos de viver como
saberes minoritários que micro-revolucionam as relações. Portanto, os analisadores
seguiram os movimentos do processo, ou seja, foi construída uma cartografia capaz
de acompanhar as paisagens desenhadas pelos agentes participantes da pesquisa
e não de representar um objeto mortificado.
Assim, o mundo ou os mundos desta cartografia não estão dados, foram-se
inventando através de uma política cognitiva na qual houve e um estudar, um
conhecer, um infinito viver, uma vez que há uma criação junto, coletivizada nos
diversos mundos possíveis acionados como possibilidades de encontros.
Enfim, o caboclo estigmatizado reinventou-se em outras histórias e em outros
espaços...
121
REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. Estórias de quem gosta de ensinar. 7 ed. SP: Papirus, 2003. 168p.
ALVES, Rubem. Ao professor com meu carinho. 5 ed. SP: Verus, 2004. 62p.
ARROJO, Rosemary (org). O Signo Desconstruído- implicações para tradução, a
leitura e o ensino.2 ed. SP: Pontes, 2003. 121p.
ARAGÃO, Elisabeth Maria; BARROS, Maria Elisabeth de; OLIVEIRA, Sonia Pinto
de. Falando de Metodologia de Pesquisa. http://www2.uerj.br/v5n2/artigos. Visitado
em 15/09/2006.
BAREMBLITT, Gregório. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes. 4
ed. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1998. 235p.
BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe e
STREIFE-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. São Paulo: UNESP,
1998.250p.
BECKER, Howard S. Métodos de pesquisas em ciências sociais. Tradução de
Marcos Estevão e Renato Aguiar. 4 ed. SP: Hucitec, 1999. 178p.
BENJAMIM, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. 10 ed. SP: Brasiliense, 1996.
253p.
BOÉTIE, Etienne de La . Discurso da Servidão Voluntária. Tradução de Laymert
Garcia dos Santos. SP: Brasiliense, 2001. 239p.
122
BOFF, Leonardo. Saber cuidar- ética do humano- compaixão pela terra. 12 ed. RJ:
Vozes, 1999. 199p.
BOURDIEU, Pierre. O Campo Científico. In: ORTIZ, R. (org.) Pierre Bourdieu. São
Paulo: Ática, 1983.
BOYER, Véronique. O pajé e o caboclo: de homem a entidade. 1999.
http://www.scielo.br/2007. Visitado em 21/02/2007.
CALDAS, Alberto Lins. ORALIDADE- textos e história para ler a história oral. São
Paulo, Loyola, 1999. 133p.
CÂMARA CASCUDO, Luís da. 1972[1954]. Dicionário do Folclore Brasileiro. Instituto
Nacional do Livro/Ministério da Educação e Cultura.
CANDIDO, A. Os parceiros do rio bonito: estudo sobre o caipira paulista e a
transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Editora 34, 2003.
CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1995. 418p.
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
372p.
CRESS SER É LUTAR/ GESTÃO 1999/2002. Coletânea de Leis- revista ampliada.
Porto Alegre: CRESS 10ª região, 2000. 237p.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. SP: Martin Claret, 2003. 560p.
DELEUZE, Gilles. Espinoza e os Signos. Portugal: Rés Editora, 1970. 202p.
123
DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972-1990. Rio de Janeiro, Editora 34, 1992.
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de Eloísa Araújo Ribeiro.
SP: Escuta, 1998. 179p.
DELEUZE, Gilles. A Dobra- Leibniz e o Barroco. 2ºed. SP: Papirus, 2000. 232p.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 1.
Tradução Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004.
95p.
DONZELOT, Jacques. A Polícia das Famílias. 2 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1986. 209p.
DUARTE, Rosi Marrero. Musicalidade: uma dobra no processo de formação
profissional. Pelotas: UCPEL, 2006. 60p.
FERNANDES, Bernardo Mançano. Questão Agrária, Pesquisa e MST. São Paulo,
Cortez, 2001. 120p.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio- o minidicionário da língua
portuguesa Séulo XXI.4 ed. RJ: Nova Fronteira, 2002. 789p.
FEYERABEND, Paul. Contra o Método. SP: UNESP, 2007. 374p.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 12 ed. Tradução de Laura Fraga de
Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 2005. 79p.
124
FOUCAULT, Michel. Ditos & Escritos- Estratégia, Poder-Saber. IV. Rio de Janeiro:
Forense, 2003. 390 p.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2002. 239p.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. 14 ed. RJ: Graal,
2001. 152p.
FOUCAULT, Michel. Historia da Sexualidade - o uso dos prazeres. 9 ed. Rio de
Janeiro: Graal, 2001.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 12 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1996. 295p.
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H. ; RABINOW, P. Michel
Foucault, uma trajetória filosófica. RJ: Forense Universitária, 1995.
FOUCAULT, Michel. O pensamento do exterior. São Paulo: Princípio: 1990.
FRAXE, Therezinha de Jesus Pinto. O Saber local e os Agentes da Comercialização
numa Comunidade Amazônica: Um estudo de caso na costa da terra nova, no
careiro da Várzea (AM). http://www.anppos.org.br/encontro_anual.Visitado em 02
/08/2006.
FREYRE, Gilberto. Casa- Grande & Senzala. 51 ed. SP: Global, 2006. 726p.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamim.SP: Perspectiva,
2004.114p.
GIACOMEL, Angélica Elisa; et al. Que tal um banho de mar... para ativar a potência
do corpo! Tânia Mara Galli Fonceca; Selda Engelman (Orgs). Corpo arte e clínica.
Porto Alegre: UFRGS, 2004. 90p.
125
GOFFMAN, Erving. Estigma - notas sobre a manipulação da identidade deteriorada.
4 ed. RJ: LTC, 1998. 158p.
GONSALVES, Elisa Pereira (Org.). Educação e Grupos Populares: temas
(re)correntes. SP: Alínea, 2002. 328p.
GÖRGEN, Frei Sérgio Antônio. Os Desafios da Agricultura Camponesa. Cartilla. s. l.
s.e. s.d.
GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo. São Paulo:
Brasiliense, 1987. 229p.
GUATTARI, Félix. As Três Ecologias. 6 ed. Campinas: Papirus, 1997.
GUATTARI, Félix. As Três Ecologias. 11 ed. Campinas: Papirus, 2001. 56p.
GUATTARI, Feliz; ROLNIK, Sueli. Micropolítica cartografias do Desejo. 6 ed. RJ:
Vozes, 2000. 327p.
GUATTARI, Félix. Caosmose- um novo paradigma estético. Tradução de Ana Lúcia
de Oliveira e Lúcia Claúdia Leão. SP: Editora 34, 2000. 203p.
GRENAND, Françoise e GRENAND, Pierre. 1990. “L´Identité Insaisissable: Lês
Caboclos Amazoniens”. Études Ruarales.
HECKERT, Ana Lucia Coelho. Narrativas de Resistências: Educação e Políticas.
Niterói: UFF, 2004. Tese (Doutorado em Educação), Universidade Federal
Fluminense, 2004. 2985p.
126
JAGGAR, Alison M.; BORDO, Susan R. Gênero, Corpo, Conhecimento. Tradução de
Britta Lemos de Freitas - Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997. 348p.
JESUS, Cláudio Portilho de. Utopia Cabocla Amazonense- agricultura familiar em
busca da economia solidária. Canoas: Ed. Ulbra, 2000. 151p.
KASTRUP, Virgínia. A invenção de si e do mundo - uma introdução do tempo e do
coletivo no estudo da cognição. Campinas: SP, Papirus, 1999. 216p.
KASTRUP, Vírginia. A Rede: Uma Figura Empírica da Ontologia do presente. In:
KIRST, Patrícia Gomes; FONSECA, Tânia Mara Galli. Cartografias e Devires: a
construção do presente. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. 395p.
KASTRUP, Vírginia. A Aprendizagem da Atenção na Cognição Inventiva.
http://www.psicologia.ufrj.br/propsi/aprendizagem.pdf.Visitado em 05/07/2007.
KASTRUP.Virginia.CartografiasLiterárias.http://www.psicologia.ufrj.br/pospsi/cvvirgini
akastrup.htm.Visitado em 20/03/2007.
KASTRUP, Virginia. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. 2007.
Mimeo.
KIRST, Patrícia Gomes et al. Conhecimento e Cartografia: tempestade de Possíveis.
In: KIRST, Patrícia Gomes; FONSECA, Tânia Mara Galli. Cartografias e Devires: a
construção do presente. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. 395p.
KOHAN, Walter Omar. Apontamentos para uma (nova) política e uma (também
nova) educação da infância. http://www.edrev.asu.edu/reviews/Visitado em
01/08/2007.
LANDERS, Vasda Bonafini. De Jeca a Macunaíma- Monteiro Lobato eo
Modernismo. RJ: Civilização Brasileira, 1988. 275p.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura um conceito antropológico. 19ªed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar editor, 2006.117p.
LÉVY, Pierre. A Inteligência Coletiva - por uma antropologia do ciberespaço. 4 ed.
São Paulo, Loyola, 2003. 212p.
127
LIMA, Nísia Trindade; Hochman, Gilberto. Pouca saúde, muita saúva, os males do
Brasil são...Discurso dico-sanitário e interpretação do país. Revista Ciência &
Saúde Coletiva. Vol.5. Nº. 2. Rio de Janeiro: Scielo Brasil, 2000.
LINS, Daniel. Antonin Artaud- o Artesão do Corpo Sem Órgãos. 2 ed. RJ: Relume
Dumará, 2000. 134p.
LOBATO, Monteiro. Mr. Slang e o Brasil e problema vital. Obras completas de
Monteiro Lobato, 1ª série, literatura geral, 8ªed. V.8. São Paulo: Brasiliense, 1957.
LOBATO, Monteiro. Idéias de Jeca Tatu. Obras completas de Monteiro Lobato
série, literatura geral, 12 ed. V. 4. São Paulo: Brasiliense, 1967. 275p.
LOBATO, Monteiro. Urupês. Obras completas de Monteiro Lobato, 1ª série, literatura
geral, 14 ed. V.1. São Paulo: Brasiliense, 1968. 299p.
LOBATO, Monteiro. Urupês. 37 ed. São Paulo: Brasiliense, 2005.179p.
LOURO, Guacira Lopes. : Ensaios Sobre Sexualidade e Teoria Queer. Belo
Horizonte: Autêntica, 2004. 92p.
MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. 3 ed. São
Paulo: Pontes: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1997.198p.
MARIOTTI, Humberto. AUTOPOIESE, CULTURA E
SOCIEDADE.http://www.geocities.com/pluriversu. Visitado em 22/05/2007.
MARTINS, Pedro. Processo Migratório e Mudanças na Estética Musical Cabocla.
http://www.ceart.udsc.br/revista_pesquisa/artigo.Visitado em 27/02/2007.
128
MATURANA, Humberto R; VARELA, Francisco J. A Árvore do Conhecimento- as
bases biológicas da compreensão humana. 4ªed. SP: Palas Athenas, 2001. 283p.
MOEHLECKE, Vilene. O dançar do corpo- experimentações rebeldes no
contemporâneo. Porto Alegre: UFRGS, 2005. Dissertação (Mestrado em Psicologia
Social e Institucional), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005. 115p.
MORETTO, Clenir Maria. Práticas de Gestão e modos de Subjetivação do
Trabalhador Público: Uma Cartografia à Luz do Tempo. Porto Alegre:PUCRS, 2000.
Dissertação (Mestrado em Serviço Social), Faculdade de Serviço Social, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2000. 117p.
NASCIMENTO, Wanderson Flor do. Nos rastros de Foucault: Ética e subjetivação.
http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/art02.html.Visitado em 05/07/2007.
NEGRI, Antonio. Kairòs, Alma Vênus, Multitudo. RJ: DP&A, 2003. 231p.
NEGRI, Antonio. Kairòs, Alma Vênus, Multitudo: nove lições ensinadas a mim
mesmo. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.231p.
NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. Império. 2 ed. RJ: Record, 2001. 501p.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004.
247p.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral - uma concepção polêmica. São Paulo:
Companhia de Letras, 2006. 179p.
PÊCHEUX, Michel. O Discurso- estrutura ou acontecimento. Tradução deEni
Puccinelli Orlandi. 4 ed. SP: Pontes, 2006. 68p.
PERRENOUD, Philippe. Construir as competências desde a escola. Tradução
Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999. 90p.
129
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Um Roteiro para o Clio. In: KIRST, Patrícia Gomes;
In: FONSECA, Tânia Mara Galli; KIRST, Patrícia Gomes. Cartografias e Devires- a
construção do presente. Porto Alegre: UFRGS, 2004. 395p
POUGY, Eliana. O discurso, o saber, o poder e a linguagem na óptica da Filosofia da
Diferença.http://www.cronopios.com.br/site/ensaios. Visitado em 15/09/2006.
RANCIÈRE, JAQCQUES. O Mestre ignorante- cinco lições sobre a emancipação
intelectual. Tradução de Lílian do Valle. 2 ed. Belo horizonte: autêntica, 2005. 192p.
RIBEIRO, Cristine Jaques. Facetas do Cotidiano- o dia a dia dos assentamentos do
MST. Pelotas, EDUCAT, 2001. 181p.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia de Letras, 2006. 435p.
RODÓ, José Enrique. Ariel.Campinas: ED. Unicamp, 1991. 115p.
ROGERS, Paulo. Os Afectos Mal-Ditos: O Indizível das Sexualidades camponesas.
Brasília: Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília, 2006(Dissertação
de Mestrado). 190p.
ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do
desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2006. 248p.
RORTY, R. A Filosofia e o espelho da Natureza. Lisboa: D. Quixote, 1988.
SILVA, Cristhian Teófilo da. Parados, Bobos, Murchos e tristes ou Caçadores de
onça?. http://www.unb.br/ics/dan/geri/textos/parados.htm.Visitado em 23/02/2007.
SILVA, Rosane Neves. Inventando uma outra Psicologia Social. In: FONSECA,
Tânia Mara Galli; KIRST, Patrícia Gomes. Cartografias e Devires - a construção do
presente. Porto Alegre: UFRGS, 2003.
130
SILVEIRA, Débora de Barros. A Escola na Visão das Crianças.
http://www.anped.org.br/reunioes/27/gt07/po74/pdf.Visitado em 30/07/2007.
STEDILE, João Pedro(org). A Questão Agrária no Brasil- o debate na esquerda :
1960- 1980. Vol. 2. São Paulo: Expressão Popular, 2005. 320p.
VEIGA-NETO, Alfredo (org.) Crítica s-Estruturalista e Educação. Porto Alegre:
Sulina, 1995. 260p.
VIA CAMPESINA. MST-CONCRAB, Fev., 2001. 8p.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo