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em seu discurso não respeite a justiça. Ora, nenhuma das outras artes conclui os
contrários por meio do silogismo, a não ser a Dialética e a Retórica.
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É através desse método que Aristóteles aceita e depura as opiniões comuns, ou seja,
aquelas que são aceitas pela maioria. O nível de verdade que o filósofo prega depende da
organização da opinião, como acontece nas assembléias, por exemplo, e que corresponde
em algum grau à verdade
184
. Este argumento do consenso advém da prática retórica, afinal,
aquilo que todos acreditam ser verdade é verdade. Dessa forma, Aristóteles garantiu um
status positivo para as opiniões comumente aceitas e para o reino da ação, que é onde se
afirma a persuasão. Segundo ele, "a capacidade de deliberar bem sobre o que é bom e
vantajoso para cada um está alicerçada numa típica sabedoria prática e, (...) no geral, o
homem de sabedoria prática é aquele que tem capacidade para deliberar.”
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Para
Aristóteles, portanto, a filosofia não exclui a eloqüência, pois o contemplativo deve
aprender a falar, propondo assim a conciliação entre ciência e eloqüência, contemplação e
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Aristóteles. Arte Retórica e Arte Poética. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, livro I, I, IV, p. 31.
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Aristóteles destaca no livro III da Política a importância da existência do consenso nas deliberações
políticas e, portanto, da depuração das opiniões. Segundo ele: “reunidos em assembléia geral, todos têm uma
inteligência suficiente. (...) É assim que os alimentos impuros, misturados a alimentos sãos, fornecem uma
alimentação mais nutritiva se a quantidade dos primeiros tivesse sido aumentada. Mas, tomado à parte, cada
cidadão desta classe é incapaz de julgar... Cada um dos indivíduos que compõe [a multidão] será, sem dúvida,
pior juiz que os entendidos, mas, reunidos, julgarão melhor, ou, pelo menos, não julgarão pior.” Aristóteles. A
Política. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d., livro III, cap. VI, 7-10, pp. 124-125. Este argumento sobre a
necessidade do consenso nas deliberações públicas é retomado no século XVI por Erasmo ao se opor à idéia
de uma verdade absoluta e dogmática a respeito da divindade. Erasmo expõe sua tese em seu Ensaio sobre o
Livre Arbítrio, de 1524, que ele escreve em resposta às inventivas luteranas. Erasmo reconhece as limitações
da razão humana para alcançar a plenitude do saber divino, pois, para ele, apenas a fé pode aproximar o
homem de Deus. Por sua vez, esta experiência não tem nenhuma vinculação com a razão, mas com uma
relação mística, dada pelo êxtase e pelo sentimento. Portanto, se para ele a verdade da fé depende da negação
da razão teológica, ou seja, de uma ciência para se chegar a Deus, em que critério de verdade ele se apoiaria?
Conforme a tese do professor Danilo Marcondes (a qual adotamos aqui) a verdade para Erasmo advém de sua
base aristotélica, principalmente no que tange ao consenso, pois, se não há certeza na opinião individual,
devemos adotar o consenso oferecido pela multidão, tendo em vista que os homens reunidos julgarão melhor
que aquele que permanece convicto de suas crenças particulares contra a opinião da maioria.
Ele retoma, portanto, diretamente o livro III da Política, assim como a Retórica e a Ética a
Nicômaco, obras freqüentemente lidas na Renascença, pois, ao contrário do que é comumente aceito, não há
um abandono total de Aristóteles pelos humanistas, mas apenas de obras como a Metafísica, tão cara à
tradição escolástica medieval. Este ceticismo em relação aos poderes da razão em demonstrar a verdade nos
chama a atenção para a aceitação erasmiana do verossímil e não de uma verdade absoluta e irrevogável, como
propõem os teólogos escolásticos. E é justamente pelo viés da crítica que caminha o anti-intelectualismo de
Erasmo em relação ao racionalismo e o dogmatismo da teologia escolástica, detentora dos mais amplos e
inquestionáveis saberes. A partir dessas críticas, já presentes desde as suas primeiras obras, Erasmo
desenvolve todo o seu programa educacional ancorado não na busca de respostas inalcançáveis (como a
questão do livre-arbítrio), mas numa formação ampla e eclética baseada na leitura dos antigos, na
compreensão e apreensão da forma e conteúdo desses textos, assim como na utilização da retórica voltada
para um cristianismo centrado na vida prática e no consenso entre os homens.
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Aristóteles. Ética a Nicômaco.
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