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LEANDRO JOSÉ LUZ RIODADES DE MENDONÇA
Cinema e indústria:
o conceito de modo de produção cinematográfico e o cinema brasileiro
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação, Área de
Concentração Estudo dos Meios e da
Produção Mediática, da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo, como exigência parcial para
obtenção do Título de Doutor em Ciências da
Comunicação, sob a orientação da Prof
a
.
Dr
a
. Mariarosaria Fabris.
São Paulo
2007
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LEANDRO JOSÉ LUZ RIODADES DE MENDONÇA
Cinema e indústria:
o conceito de modo de produção cinematográfico e o cinema brasileiro
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação, Área de
Concentração Estudo dos Meios e da
Produção Mediática, da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo, como exigência parcial para
obtenção do Título de Doutor em Ciências da
Comunicação, sob a orientação da Prof
a
.
Dr
a
. Mariarosaria Fabris.
São Paulo
2007
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LEANDRO JOSÉ LUZ RIODADES DE MENDONÇA
Cinema e indústria:
o conceito de modo de produção cinematográfico e o cinema brasileiro
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação, Área de
Concentração Estudo dos Meios e da
Produção Mediática, da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo, como exigência parcial para
obtenção do Título de Doutor em Ciências da
Comunicação, sob a orientação da Prof
a
.
Dr
a
. Mariarosaria Fabris.
Defendida em ____de ______ de ________ perante a seguinte Banca
Examinadora
________________________________________
________________________________________
________________________________________
________________________________________
________________________________________
Resumo
Esta Tese discute questões da construção historiográfica da história do
cinema. A história do cinema compôs um conjunto de obras que, normalmente,
toma como ponto de partida obras cinematográficas, e não aspectos
considerados extra texto, como a economia ou a recepção. Esse trabalho tenta,
através do uso do conceito de modo de produção, unir em um aparato
conceitual questões estéticas e econômicas. Para tanto, refaz uma parte do
percurso historiográfico sobre o cinema brasileiro dos anos cinqüenta e tenta
discutir fundamentalmente dois aspectos: o primeiro que o cinema pode ser
entendido por meio do conceito de modo de produção; e o segundo reside na
descrição de dois exemplos, em linhas gerais, de modos de produção que
coexistem na mencionada década. Por fim, destaca que o conjunto de filmes
da chanchada produzido na Atlântida pode ser caracterizado como um modo
de produção que se opunha de várias maneiras ao recém surgido modo de
produção, representado pelo filme Rio 40 Graus.
Palavras chave: Modo de produção cinematográfico, História do cinema,
História, Economia do cinema, Técnica cinematográfica, Cinema brasileiro,
Estética cinematográfica, Marxismo e cinema.
Abstract
This thesis discusses the historiography of Film History. Film History has
produced a set of material that, generally, takes as starting point the films
themselves and do not consider extra text material, such as the economy and
the reception of the film. This work attempts, through the concept of mode of
production, bridge under a conceptual apparatus matching up aesthetic and
economic matters. In doing so, the work critically looks at the fifties Brazilian
Film History and makes basically two propositions: one is that Cinema may be
understood through the conception of mode of production; the second consists
of the description of two examples, in general terms, of modes of production
coexistent in the decade. Finally, it highlights that the set of chanchada films,
produced by Atlantida, may be characterized as a mode of production that is in
many ways opposed to the more recent modes of production represented by
the film Rio 40 Graus.
Keywords: Modes of production, Film history, History, Film economy,
Brazilian Cinema, Cinematographic Aesthetics, Cinematographic Technique ,
Marxism and cinema
AGRADECIMENTOS
A Mariarosaria Fabris, pela orientação e pelo auxílio inestimável nas
horas de maior necessidade.
Aos colegas do Departamento de cinema da UFF, por terem me
permitido afastar-me das atividades profissionais, sem o qual não teria a
oportunidade de desenvolver este trabalho. Aos colegas do departamento de
comunicação do UNIPLI, pela companhia e pelo prazer da convivência.
Aos amigos que dividiram comigo este projeto desde o nascedouro. A
Allan Rocha pela companhia sempre constante. E a Antonio Serra, José
Marinho, Tunico Amâncio e João Luiz Vieira pelo incentivo e interlocução ao
longo destes anos.
A minha esposa Márcia Motta pelo incentivo, paciência e exemplo, sem
sua ajuda não teria conseguido lançar-me na aventura da pesquisa ou
descoberto o prazer de trabalhar com a matéria da história. Junto dela
agradeço a meus filhos, por existirem e me proporcionarem a vontade de fazer
e continuar o que faço...
Leandro Mendonça
Janeiro de 2007
SUMÁRIO
INTRODUÇAO 01-08
CAPITULO 1- HISTÓRIA DO CINEMA E MODO DE PRODUÇAO 09- 60
CAPITULO 2 CINEMA POPULAR E CINEMA AUTORAL 61- 89
CAPITULO 3 MODO DE PRODUÇAO DE SUBSTITUIÇAO DE IMPORTAÇAO
DE FILMES 90-125
CAPITULO 4 O MODO DE PRODUÇAO COOPERATIVADO: O EXEMPLO DE
RIO 40 GRAUS 126- 164
CONSIDERAÇOES FINAIS 165 -171
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 172 -178
Introdução
Este trabalho tem suas raízes no meu processo de formação como
pesquisador de cinema e nos incômodos dele decorrentes. Comecemos do
início, essas perguntas sobre modo de produção, que acabaram expressas no
projeto de pesquisa, foram objeto de uma conversa na comemoração pelo
recebimento de um título por Nelson Pereira dos Santos. Após a cerimônia,
fomos todos comemorar e, entre os presentes, estavam vários colegas do
Departamento de Cinema e Vídeo da UFF. Sentamos-nos ao lado de Nelson e,
conversando sobre nossa dissertação de mestrado (que trata do campo da
crítica cinematográfica na primeira metade da década de 40), externávamos
nossa impaciência sobre o fato de os estudos de história do cinema se
segmentarem muito e em várias direções. Os campos que compõem a área de
estudos parecem muito distantes uns dos outros. A crítica, classificada por
muitos como um espaço literário, a análise de filmes, toda poderosa, ocupando
quase tudo e a recepção e os aspectos técnicos e econômicos, surgindo como
um tipo de patinho feio das pesquisas universitárias.
Nossa dissertação gira em torno das críticas e da recepção negativa do
cinema brasileiro no inicio da década de 40. Neste momento, era clara a
influência dos modelos norte-americanos de produção, distribuição e, por
conseqüência, também de sua face estética. Defendíamos e reiteramos aqui,
que a crítica era parte do campo intelectual. Propomos, ainda, uma definição
de crítica que a articula de maneira profunda com o objeto fílmico, ao ponto de
considerá-la parte mesmo do objeto. O problema se apresenta nos ganhos de
estima (importantíssimos para qualquer atividade artística) e nas facilidades de
recepção e compreensão do próprio objeto no contexto de sua fruição. Isso
tudo nos mostrava a necessidade de tentar trabalhar organizadamente com a
maior parte possível de problemas, práticas e questões que tocassem o
sistema produtivo para tentar entender em um viés, mas completo, o campo da
produção e recepção cinematográfica. Neste ponto, Nelson levantou a questão
do modo de produção, expressando sua vontade de estudá-lo e falou sobre os
anos 50 e 60 como espaço privilegiado para descrever o modo de produção do
cinema brasileiro. Era o fim da retomada dos anos 90 e Nelson argumentava
sobre a pertinência ou não do modelo de intervenção estatal. Um grande grupo
de pessoas sentia, naquele momento, a fraqueza do sistema de financiamento
baseado na renúncia fiscal e os limites, óbvios, deste mesmo sistema (escolha
dos filmes, incapacidade de distribuição, a quase impossibilidade de produzir
vários tipos de conteúdo, apenas para citar os mais graves) e, em muitos
momentos, se anunciava um déjá vu, uma repetição de erros cometidos no
passado.
Essa foi a semente que passamos a desenvolver e o modo de produção,
era um conceito que, a princípio, poderia ser aplicado nos estudos
sistêmicos de largo alcance, sobre toda uma sociedade. Tínhamos também a
impressão errada de que poderia utilizá-lo em grandes períodos de tempo,
na história de longa duração. No entanto, descobrimos que esse, aliás como
todos os conceitos, era maleável e se prestava ao projeto que pretendíamos
desenvolver, ou seja, o de tentar dar continuidade ao trabalho que realizamos
no mestrado; entender como o cinema brasileiro se desenvolveu de maneira
tão antagônica a seus próprios interesses. A crítica lá, como a distribuição aqui
são instrumentos de acesso, meios de compreensão para o incômodo objeto
da rejeição, in totum, de setores inteiros da produção cinematográfica e da
manutenção de um sistema econômico, quase que inteiramente adverso a sua
existência. No processo de moldar o conceito para o uso proposto, tivemos
como primeiro aporte a obra de Bordwell e colegas
1
sobre modo de produção
no cinema clássico narrativo e o trabalho de Mariarosaria Fabris sobre o
cinema de Nelson Pereira dos Santos
2
. Vislumbrava, através do trabalho de
Fabris, o início de um modo de produção diferenciado, um rompimento e uma
influência diferente ligada ao surgimento e ao aumento exponencial do cinema
de autor no mundo s-segunda guerra, através do neo-realismo e da luta por
um conteúdo brasileiro “verdadeiro”.
O contexto periférico tudo influencia no pensamento sobre o Brasil, e
não por sua própria força intrínseca. A externalidade aos sistemas é produzida
aqui mesmo nas racionalizações e nas formulações teóricas que aceitam e
exploram como partida o externo e estrangeiro. Esta exploração tem como
formatos principais o estabelecimento de padrões comparativos, buscando uma
meta de qualidade ou o padrão de consumo, onde as mais variadas maneiras
culturais acabam absorvidas como se fossem naturais. O conceito de modo de
produção implica nisso tudo e poderia ser apropriado numa vertente de
explicação total, que não cabe no âmbito deste texto. Aqui assumimos a
continuidade com uma tradição dos estudos sobre audiovisual que vem se
consolidando nas últimas décadas e busca agregar novas temáticas e novas
1
Bordwell, David, Staiger, Janet & Thompson, Kristin. The classical Hollywood cinema: film
style & mode of production to 1960, Nova York: Columbia University Press, 1985.
2
Fabris, Mariarosaria. Nelson Pereira dos Santos: um olhar neo-realista? São Paulo: Edusp,
1994.
abordagens e, especificamente, os aspectos econômicos como focos centrais
para a construção teórica.
A tentativa de juntar em uma análise a legislação, a organização
empresarial, a recepção, a distribuição, o modo de filmar, o financiamento,
entre outras questões, em sua relação com resultado estético, foi atingida
apenas parcialmente. A abordagem pelo modo de produção significou a
afirmação da existência de modos de produção diferentes, convivendo no
mesmo momento histórico e ocupando nichos distintos no espaço de
sobrevivência. Um exame com maior largueza implicaria a análise de todos
eles, um a um, para, depois de criar este quadro geral, passar a demonstrar as
relações, não entre um e outro modo de produção, mas também entre estes
e o contexto político e intelectual da época. Essa tarefa extrapola os objetivos
do projeto original, que era estruturar e definir um conceito de modo de
produção para o cinema brasileiro e aplicá-lo à década de 50.
Assim, o trabalho se divide em quatro capítulos, sendo que nos dois
primeiros se tenta trabalhar os problemas da história do cinema e o conceito de
modo de produção, com o intuito de torná-lo operacional. Na segunda parte,
isto é, no terceiro e quarto capítulos, realizamos uma aplicação do conceito de
modo de produção proposto, demonstrando sua utilidade para trazer uma
historiografia, que se construiu na maior parte do tempo como uma história da
arte, para a proximidade do objeto e criar fortes ligações com o estatuto da
práxis e do real.
No primeiro capítulo, trabalhamos a relação entre história e história do
cinema e, neste âmbito, com certas fontes históricas, muito ricas, as
quais ou
não são utilizadas ou ficam como um tipo de campo à parte que não se
encontra com a corrente geral dos estudos que têm viés intra-texto. Ainda
neste capítulo, realizamos um mergulho nas raízes do conceito de modo de
produção desde quando ele foi enunciado, pela primeira vez, no marxismo
clássico. Não entraremos aqui na discussão sobre os muitos tipos de marxismo
ou toda a celeuma existente com a briga sobre as aplicações históricas e
sociológicas de uma das mais importantes formulações do pensamento
ocidental. O que nos interessou, desde a proposição inicial, foi darmos curso à
análise das condições de produção sem nos afastarmos da tradição de estudos
sobre a expressão cinematográfica. O objetivo foi conseguir somar as duas
vertentes, incluindo elementos que iluminassem a expressividade das obras
através das vicissitudes de seu nascimento e no curso da circulação e da
recepção crítica após o lançamento. O conceito inicial de Bordwell não possuía,
como elemento constitutivo, a distribuição e a exibição e, assumidamente, se
colocava como um estudo sobre os modos de filmar nas suas relações com a
normatividade técnica do sistema de estúdios. A falta dos elementos mais
ligados à dimensão econômica imprimia uma dada direção de análise para o
conteúdo dos filmes. Como a intenção deste trabalho é voltada para o
problema da distribuição no Brasil, adicionamos ao núcleo de nossa proposta
as questões relativas à distribuição, exibição e recepção dos filmes no país,
conseguindo com isso abrir um espaço interpretativo fértil para responder as
demandas que o cinema brasileiro continuamente tem tentado explicar de
variadas formas.
A distribuição é problema sempre presente nas preocupações do cinema
brasileiro, porém a força da gravidade dos problemas de produção acaba por
se sobrepor a todas as questões e determinando uma lateralidade no
tratamento destes problemas. Este enigma eterno levou boa parte das forças
produtivas a pensar ser possível resolver o problema da circulação do cinema
brasileiro pela reserva forçada de tempo de exibição no circuito comercial. Não
temos nenhuma dúvida que esse é um dos erros históricos do cinema
brasileiro. As leis de reserva acabam sendo usadas como teto e deixam o
caminho aberto para que outros agentes dominem e explorem, com uma sem
cerimônia espantosa, nosso mercado. O modo de produção de substituição de
importações é explorado no capítulo terceiro e trabalha exatamente neste foco.
Este modo se estrutura como uma estratégia de sobrevivência e um acordo
tácito entre exibidor nacional e cinema estrangeiro. O acordo se expressa no
interesse em produzir para ocupar um pequeno nicho, sem arriscar desagradar
o parceiro distribuidor estrangeiro, ou seja, faturar com a lei de obrigatoriedade
de exibição de filmes brasileiros dentro de seus estritos limites. O triste nisso foi
ter sido essa a conjuntura econômica cavalgada, aproveitando-se o que de
mais importante existia como expressão do cinema popular na história do
cinema brasileiro a chanchada. Claro que, como expressão, a chanchada
ultrapassa tudo isso, mas os efeitos da associação simbólica de uma
expressão popular com a manutenção do espaço do cinema estrangeiro e, seu
posterior abandono, têm longa repercussão e estão ainda por ser estudados
em seus desdobramentos.
Impossível abordar a distribuição sem trazer para a discussão o
problema do uso do sistema de exibição e distribuição. A idéia, por si só
ingênua, de que se poderão interessar os donos dos meios de circulação
através de parcerias e concessões fez e continua fazendo grandes estragos na
economia do cinema brasileiro. O problema tem uma face atual encontrada na
discussão sobre a neutralidade de redes de transporte de conteúdo na internet.
Nesta discussão, correlata a nossa, é cristalino o domínio exercido pelo dono
do meio de difusão. Ele pode, num ou noutro momento, definir o que passa ou
não, seja na sua banda larga (caso da Internet), seja em suas telas (caso do
cinema) e deste modo controlar, no seu próprio interesse, o acesso aos
produtos e serviços. Essa contenda é um espelho da discussão sobre
circulação no mercado de cinema na qual estamos, o tempo todo, formando
gosto e platéias a partir desse interesse representado pelo dono das redes de
distribuição e exibição cinematográfica. Uma outra face contemporânea dessa
discussão aparece na proposta de se financiar com dinheiro público
(renuncia fiscal) filmes que tenham distribuidores associados. Praticamente
todos os distribuidores no Brasil são empresas privadas e isso redundaria
numa óbvia sobre determinação de todo o mercado pelos detentores de uma
capacidade por demais poderosa. O claro desequilíbrio seria na direção do
interesse dos agentes que já dominam o mercado e indicaria a vitória de um
tipo de argumento, já muitas vezes visto, sobre a qualidade da produção
brasileira. Esta baixa qualidade seria, como nos anos 50, a causa da população
preferir o consumo dos filmes importados. Parece ou não os anos 50?
Num primeiro momento, pode parecer que tudo se resolve com o
problema da distribuição, mas o cinema brasileiro também purga um
afastamento de seu público, já que mesmo o chamado sucesso esteve e está
restrito a uma franja do mercado e em toda sua história nunca foi majoritário.
Essa era uma motivação central da reação que vai determinar o aparecimento
do modo de produção cooperativado que se queria como alternativa a estes
conteúdos controlados e vistos como réplicas pioradas. Fica clara a
necessidade de construir um conteúdo genuinamente brasileiro. Ainda neste
movimento reativo exploramos, no quarto capítulo, o problema que se
apresenta nas propostas de tentar levar o povo ao cinema e não o contrário, ou
com se dizia na época, baixar o cinema ao povo. A união do cinema autoral
com uma busca prolífica de tipos brasileiros associado ao processo de colocar
em primeiro plano um outro estrato da sociedade brasileira é uma das marcas
da nova temática que caracterizaria esse modo de produção. Juntemos a isso
a produção de baixo custo e seu impacto na expressão e na busca de novas
maneiras de filmar e fazer filmes no que talvez tenha sido um dos mais
vigorosos movimentos do cinema brasileiro: o Cinema Novo.
CAPÍTULO 1
HISTÓRIA DO CINEMA E MODO DE PRODUÇÃO
A história do cinema, bastante tempo, se afirmou como um dos
lugares de grande produção teórica e interesse de consumo bibliográfico.
Candente, multifacetada, opinativa ou analítica, ela enfrenta a questão do
gigantismo, não somente da expressão artística do cinema, mas também de
suas fontes que ultrapassam em muito a análise do objeto fílmico. Tais fontes,
relativas ao estudo da cinematografia, têm por base não apenas o filme em si,
mas estende-se a todos os materiais relacionados aquela produção e ao
contexto histórico próprio da época. ainda inúmeras portas de entrada para
a pesquisa, já que os filmes se unificam ou separam em escolas, décadas,
nacionalidades, situações de produção, de acesso ao mercado exibidor, na
relação com as legislações específicas e na recepção, entre outras
possibilidades. Todas estas muitas entradas podem ser articuladas em jogos,
analíticos ou não, tornando bastante complexa a tarefa de construir uma
análise voltada para o uso do aparato teórico-conceitual da história. Um
entrecruzamento necessário acaba por ocorrer com o uso de metodologias
semelhantes à história da arte que terminam por marcar os estudos histórico-
cinematográficos.
Este capítulo objetiva aprofundar alguns dos marcos teóricos e
metodológicos, a nosso ver ainda pouco desenvolvidos. Neste sentido,
pretende-se aqui aperfeiçoar o entendimento das condições de produção,
estéticas e econômicas do cinema brasileiro. Nunca é demais lembrar o quão
pertinente é discutir o espaço de “autoconhecimento teórico do problema da
história do cinema”
3
.
Como realizar essa operação em relação ao cinema brasileiro? Como
firmar um espaço que reúna “rigor explicativo e exatidão empírica”
4
?
Parafraseando Hobsbawn
5
, tal projeto requer um esqueleto analítico para
conseguir o seu intento e este deve estar baseado em um elemento de
mudança e transformação nos assuntos humanos, aqui o cinema, que seja
observável e objetivo, desprezando nossa subjetividade, desejos ou
julgamentos de valor. O elemento necessário aparece no crescimento da
capacidade humana de controlar os meios do trabalho manual e mental,
tecnológico e da organização da produção. Em outras palavras, é preciso falar
de modo de produção em relação ao cinema, assumindo a complexidade de
entrecruzamento, desnudando – portanto – essa via de mão dupla.
Mas é possível reconstruir esta relação e aceder ao real ou ao que
verdadeiramente aconteceu? Claro que o saber histórico está ancorado em
uma operação que implica a crença de algum tipo de acesso aos fatos
passados, mas isso não significa que não existam diferenças entre
acontecimento e fato histórico. Michele Lagny em seu De l’histoire du cinéma
afirma que a história é necessariamente uma mescla de narração e explicação.
Segue, citando Paul Veyne, que concebe o relato histórico como uma
construção a partir de um ponto de vista. Nesta partida, se criam relações que
se desdobram em narrativas históricas. Estas serão diferentes, pois são
diversos os olhares sobre as fontes e distintas as articulações analíticas que
3
Allen, Richard. Rewriting American film History. Londres: Framework 29, 1992, p. 86.
4
Idem, p. 86.
5
Hobsbawn, Eric. On History. New York: The New Press, 1997, p. 31.
propiciam. Passa daí, a apoiar-se em Michel de Certeau para concluir a
necessidade de se distinguir entre acontecimento e fato histórico. O primeiro é
apropriado de forma distinta da tradicional (como uma data importante), pois
uma data não existe por si mesma e sim pelo conhecimento, isto é através do
instrumento conceitual do historiador, aquele que é necessário supor para fazer
“possível uma determinada organização de documentos”
6
(ou seja, uma
interpretação).
Ao esclarecer a maneira pela qual o problema historiográfico gira em
torno de compor uma interpretação e, a partir dela e com ela, organizar um
conjunto de fontes, colocam-se os limites da existência do fazer histórico.
Seguimos apoiados em Lagny que, citando os historiadores cinematográficos
Robert Allen e Douglas Gomery, afirma que a história do cinema deve “explicar
as mudanças que tem sofrido o cinema desde suas origens, assim como trazer
à luz os aspectos que tem resistido a estas mudanças”
7
. Neste ponto passa-se
a problematizar a questão principal do fazer histórico e da construção de um
discurso sobre o passado, o trabalho sobre o tempo, sendo esta a matéria
prima fundamental do edifício historiográfico. Este trabalho organiza-se em
categorias que se instalariam como instrumentos fundamentais para o
historiador. São duas as categorias que operam com a matéria temporal - a
cronologia e a multitemporalidade - e elas determinam, por sua vez, os
aspectos principais de enunciação sobre esta dimensão fugidia.
A cronologia distinguiria o tempo longo, realizando a ligação da inovação
com a tradição e permitindo que a transformação seja possível. Consegue,
6
Lagny, Michele. De l’histoire du cinéma. Méthode historique et histoire du cinéma. Paris: Armand
Colin, 1992, p. 44-46.
7
Idem, p. 31.
assim, uma demarcação da experiência coletiva das gerações e permite fixar
as ‘datas-referência’ que constituem a cronologia (eventos históricos) em si.
Uma cronologia é então indispensável para pensar o tempo, mas não se institui
como uma realidade em si mesma e sim, como uma escala estabelecida
convencionalmente
8
.
A multitemporalidade viria ampliar este conceito de tempo cronológico,
trabalhando com tempos variáveis. Ela ocorre nos fenômenos sociais e assim o
tempo histórico deixa de ser linear, uniforme ou homogêneo. Com isso, o
material temporal passa a responder a uma outra necessidade do olhar sobre o
objeto estudado em sua complexidade epocal. Fernand Braudel, que formulou
essa noção de multitemporalidade, chama ”diferentes tempos da história” aos
vários ritmos que afetam, em relação ao tempo do calendário, os diversos tipos
de fenômenos distribuídos sobre diferentes níveis de uma estrutura social
9
.
Teríamos três tipos de discursos históricos; o da história tradicional, que
se prende ao tempo breve, ao individuo ao evento e nós, depois de longo
tempo, nos habituamos a seu discurso precipitado, dramático de pequeno
alcance; a nova história econômica e social que coloca no primeiro plano de
sua pesquisa a oscilação cíclica e aposta na sua duração: ela se encontra
presa a uma miragem, a realidade das subidas e descidas cíclicas dos preços.
Atualmente ela é, ao lado do relato (ou do discurso tradicional), um discurso
sobre a conjuntura que coloca em causa o passado em grandes fragmentos,
dez, vinte ou cinqüenta anos. Mas, além disso, temos um terceiro discurso que
8
Idem, p. 32.
9
Idem, p.33.
situa uma história de alcance maior e mais sustentado, esta de dimensão
secular, ou seja, a história de longa, ou mesmo de muito longa duração
10
.
Para além desta breve explanação sobre esta matéria primordial
tempo e a forma como ela é tratada na história, devemos necessariamente
passar a outro tipo de materialidade, dessa feita física, os rastros e as provas,
ou pensarmos as provas do efetivamente acontecido as fontes. No registro
do tempo, em sua passagem ininterrupta e inapreensível existe apenas um
infindável presente. O acontecido, uma vez vivido, perde sua materialidade
física e transforma-se em passado, um ente conceitual essencial ao homem
porque o configura, mas conhecido apenas pela memória, seja pessoal, seja
este tipo de narrativa que chamamos história. Para que possamos montar um
discurso coerente sobre o passado e garantir que ele tenha algum tipo de
fidedignidade e funcionalidade, devemos escolher e reorganizar esses fatos
vividos através de perguntas e recortes, necessários para que tudo não se
transforme em uma extensa e impossível reminiscência.
O trabalho com as fontes é o que garante, aceitando que elas são
marcas e rastros de um efetivamente acontecido, dizer que a história fala sobre
o que realmente aconteceu e se distancia de um discurso puramente ficcional.
Lagny nota que neste ponto não existe qualquer discordância e afirma que “o
recurso ao documento é a base do trabalho histórico”. Segue desenvolvendo o
problema de como saberíamos o que é um documento. Para responder a esta
questão, devemos, portanto, investigar, conservar e criticar as evidências
11
10
Braudel, Fernand. Écrits sur l’histoire. Paris: Flammarion, 1969, p. 44-45, citado in Lagny, Op. cit., p.
33.
11
Lagny, Op. cit., p. 35-36.
sabendo que “os fatos do passado não nos são conhecidos, apenas seus
traços são conservados”
12
.
Junto à questão das fontes e em estreita relação com elas, temos a
operação historiográfica. Ela representa as condições de produção efetiva, de
onde e para onde fala o pesquisador de uma dada história do cinema. Claro
está que a história, como qualquer outro discurso humano, tem um agente
produtor, um lugar de produção e uma intenção. Estas características,
compartilhadas pela história com toda a produção intelectual, retiram de seu
processo construtor toda a possibilidade de neutralidade, de ingenuidade e a
definem como um saber imperfeito, discutível, mas possuidor de normas de
verdade e de condições de exercê-la profissionalmente que permitem chamá-la
de científica
13
. Neste sentido, o processo de fabricação da história deve ser
compreendido como um modo necessariamente limitado, como a relação entre
um lugar (um chamado, um meio, uma profissão), métodos de análise (uma
disciplina) e a construção de um texto (uma literatura)
14
.
Neste ponto, devemos retornar à questão precípua do trabalho com a
mesma pergunta, feita no início desta digressão, sobre o fazer histórico, para
que com esse aporte, realizemos a relação entre os conceitos e métodos da
historiografia e a história do cinema. Como fazer existir essa operação em
relação ao cinema brasileiro? Vamos então, pela ordem, à questão da
cronologia.
Temos atualmente na história do cinema brasileiro uma cronologia
razoavelmente consolidada através de uma visão construída por uma
12
Lanblois, Charles-Victor & Seignobos, Charles. Introduction aux études historiques. Paris : Hachette,
1898, citado in Lagny, Op. cit., p. 36.
13
LeGoff, Jacques. Histoire et mémoire. Paris: Gallimard, 1988.
14
Cf. Certeau, Michel. L’écriture de l’histoire. Paris : Gallimard, 1975, citado in Lagny, Op. cit., p. 37.
abordagem mais estilística. Nesse sentido, ela se aproxima do quadro
metodológico da história da arte, que esta tem como principal propósito a
construção e organização de grandes conjuntos de obras que possuam
semelhanças em suas tendências e características formais, conteudísticas e
estéticas em determinado período ou movimento.
O livro organizado por Fernão Ramos, História do cinema brasileiro, se
divide a partir de critérios regionais (cinema carioca, ciclos regionais, cinema
paulistano) e estilísticos. Esta divisão demonstra claramente uma opção de
organização das fontes e, mais ainda, o tipo de pergunta que se fez a elas.
Propomos aqui a composição de uma cronologia um pouco diferenciada,
mas referenciada a existente e consolidada. Como afirmado, o constructo
histórico não pode e nem deve escapar de determinadas relações, sob pena de
perder suas características de coerência e causalidade. Assim, não é de forma
alguma a proposta de invalidar as conquistas precedentes, mas sim ampliar e
perguntar a novas fontes, articulando os usos e descobertas feitas. Dentro
dos marcos da cronologia dos ciclos regionais e geográficos, queremos
acrescentar algumas outras fontes documentais; estas se compõem
principalmente pelo quadro das práticas ou modos de filmar, pelas formas de
financiamento, distribuição e pelos mecanismos de exibição.
Para conseguirmos montar essas relações é que propomos a utilização
do conceito de modo de produção
15
que, de muitas formas, possibilita todo um
rol de indagações sobre as peculiaridades históricas da produção
cinematográfica, bem como acerca da materialidade mesmo do discurso
cinematográfico. A ligação deste conceito com uma concepção materialista da
15
Mais adiante, discutiremos o conceito de modo de produção.
história nos direciona para uma aproximação com respeito aos métodos e
objetivos deste estudo. A forma da expressão cinematográfica pode ser
relacionada com estas novas fontes e voltaremos novamente à questão do
conteúdo brasileiro nos filmes e sua busca de afirmação. Esta se dá não
apenas pela aceitação por parte da crítica e do público, mas também pela
decorrente continuidade de produção e conseqüente inserção/construção de
um modelo de mercado que a receba, viabilize, financie e distribua.
Para tanto temos que indagar também à técnica e ao modo de filmar
como se viabilizou determinada forma estética e se ela se diferenciou de
alguma forma no modo de filmar das outras expressões no mesmo período. É
preciso que fique claro que inquirir a prática sobre sua base econômica o
implica uma tentativa de subordinar a forma estética a um determinismo técnico
ou econômico. A intenção, como dissemos, é ampliar o raio de análise e
talhar uma lista diferenciada de perguntas às fontes. Devemos esquadrinhar a
questão da economia do cinema e da cultura técnica de forma a inseri-las em
nossa lista de preocupações.
O conceito de modo de produção a ser operado procura adequar-se a
uma direção de análise em parte consagrada por uma vertente da historiografia
de cinema, representada pelo trabalho de David Bordwell, Janet Staiger e
Kristin Thompson
16
. Tentaremos mapear a ação de voltar à consciência para o
estilo e, ao mesmo tempo. conciliar o estudo das formas técnicas que podem
inflectir de alguma forma a expressão cinematográfica.
16
Bordwell, David, Staiger, Janet & Thompson, Kristin. The classical Hollywood cinema: film style mode
of production to 1960. New York: Columbia University Press, 1985.
Alargar este campo significa que se deve olhar com precisão para as
formas de inserção no mercado exibidor e distribuidor nas suas características
de mercado hegemonizado pelo cinema estrangeiro e tentar descobrir se
existiram estratégias de ascensão e sobrevivência para cada uma das formas
de expressão, produção e inserção no mercado que concorriam em uma
mesma época.
A pergunta então feita às fontes históricas difere de maneira essencial
das realizadas pela história tradicional, presa ao tempo breve e ao individuo.
Tenta tocar, como já explicitado acima, o estudo da conjuntura, de alcance
mais longo, e entender a história do cinema também como uma história
econômica e técnica. Neste sentido, a ampliação do tempo coberto pela
pesquisa não é imediatamente dada pela cronologia já existente, e sim
conseguida a partir dela. A proposta é trabalhar, de plano, com um ponto exato,
um evento, e estender, da novidade das conclusões depreendidas, outras
respostas. Estas, talvez, possam nos dar uma nova organização que implique a
justa construção de um fragmento temporal maior.
No caso trabalharemos com o filme Rio, 40 graus tentando entender a
novidade de seu aparecimento dentro do campo do cinema brasileiro.
Perguntar ao processo de produção e aos modos de filmar se aconteceu uma
mudança que possamos encontrar durante um determinado período histórico.
É importante também indagar as formas de financiamento de que o realizador
lançou mão e se elas implicaram o aparecimento de novas formas de financiar
a produção cinematográfica ou, como acreditamos, todo um modo de produção
próprio. No mesmo movimento, desdobrar aspectos estéticos e estilísticos
presentes no filme que representem uma resposta ou uma adaptação aos
processos encontrados.
A forma de distribuição e exibição também se caracteriza como um
instrumento para descobrir o modelo da continuidade de uma expressão
cinematográfica. A recepção pelo público, a bilheteria, as relações com o
mercado e empresários da exibição e com os intermediários da distribuição vão
articular diretamente a capacidade de refinanciamento e as exigências que o
filme sofre, ou pode sofrer, na sua construção prática. Essas injunções não
excluem a análise estético-crítica e esta estabelece outra relação com o objeto
em tela para fazer outras descobertas significantes que a enriquecem ou
mesmo sugerem todo um outro campo de significação conjunto a ser
explorado.
Positivamente a relação com um mercado dominado pela cinematografia
estrangeira e com conjuntos de salas ocupados pelos lançamentos americanos
e -por isso - com grande interesse comercial em receber produtos pensados
para um grande rendimento comercial, influi no modo de fazer um filme. A
questão é em si óbvia para qualquer cineasta diante da importância de seu
posicionamento e de uma necessária capacidade de ser efetivamente aceito e
entendido. No cinema brasileiro existe, desde sempre, a discussão sobre a
própria identidade e o que é conteúdo brasileiro. Essa busca se interpõe de
forma crucial quando o realizador distribui e exibe o filme. Também podemos
afirmar que influi decisivamente no ato de filmar. Até o ato, muitas das vezes
retórico, de retirar sua importância acaba por lhe emprestar novamente um
valor estratégico, ai pensado como libertador das peias do mercado. Logo, de
uma forma ou de outra, o modo de filmar do ponto de vista técnico e como
projeto expressivo é sempre transformado pelo julgamento de como o filme
efetivará sua exposição.
O conceito de modo de produção se encaixa perfeitamente neste
contexto por ter sido utilizado no estudo do cinema americano para “iniciar e
sistematicamente examinar o relacionamento entre o estilo do filme, a
tecnologia e a organização da indústria”
17
. A essa pesquisa se devem
acrescentar as questões de exibição e distribuição para podermos completar
um quadro no que tange ao campo da organização da indústria. Claro que
escopo tão extenso tem de ser recortado, sob pena de tentarmos falar sobre a
totalidade do fazer cinematográfico, o que pode nem ser possível. Tentar
unificar um conjunto de eventos tão complexos como os encontrados sob o
nome cinema pode elevar o grau de generalidade a um nível tal que acabe não
se falando realmente de nada. Por conseguinte, o desafio é incluir mais
variáveis, sem perder o foco ou imergir em um discurso generalista de eficácia
discutível. No entanto, no caso de um cinema nacional com as características
do nosso, acreditamos que não se compreenderão em profundidade
determinados aspectos de sua história, sem que consigamos meios conceituais
que tenham especial aptidão para discutir suas várias configurações e, entre
estas, a econômica.
Dessa forma, mesmo com risco de ficarmos presos a uma miragem é
necessário tentar produzir um relato sobre uma conjuntura que, numa análise,
desvende o alcance historiográfico de duração média. Inscreve-se essa
duração entre uma história estilística, que, apesar de razoavelmente
trabalhada, no caso do cinema, ainda tem inúmeros vazios, e um tipo de
17
Allen, Op. cit., p. 87.
história econômica, que pretende resolver questões de outra influência e de
maior duração ao tratar de modificações que apenas acontecem com muita
lentidão.
É possível contar a história do cinema também como uma história da
técnica?
A história da técnica no cinema se confunde, obviamente, com a própria
história do cinema, vale dizer que o cinema pode ser definido, grosso modo,
como a união de um aparato técnico e um saber artístico/expressivo. Temos,
nesta relação, inúmeras nuances e devemos utilizá-las sempre com muito
cuidado, já que é impossível achar um percentual definitivo, uma medida única
que seja por si garantia da interpretação. Pascal Ka
18
tentou definir esta
relação, utilizando como exemplo o cinema de Eisenstein. Em sua descrição,
aponta o cinema russo mudo com um oposto do cinema hollywoodiano pela
razão de terem os realizadores russos tentado teorizar sua prática. Sua visão é
de que a reflexão teórica leva diretamente à prática, fazendo com que a prática
teórica prevaleça sobre a prática técnica.
Nesta linha, Kané entende a noção de espetáculo ligada ao trabalho
intelectual e indica que o cinema hollywoodiano caminhou na direção oposta,
isto é, na do predomínio da prática sobre a teoria. Em sua visão, o conceito de
mercadoria, na forma apreendida por Hollywood limita o espaço criativo do
18
Kané, Pascal. Cinema, arte e ideologia. Porto: Afrontamento, 1974, p. 19.
diretor com o estabelecimento de normas técnicas e padrões de procedimento
que implicariam em um modelo geral que seria válido para todos os filmes e
que envolveria o público em um tipo de recepção mais fácil que esconde a
natureza artificial da construção cinematográfica. Aparentemente neutro e
despolitizado, o cinema americano “veicula uma ideologia (a que postula o
modelo) sem poder em momento nenhum apreender esta ideologia e pô-la em
causa, pois que está inscrita no próprio processo de fabricação do filme”
19
.
Esta posição não significa que
Kané defenda a rejeição ao cinema
americano, sabedor, o apenas da importância dessa produção, como dos
valores estéticos e inovadores existentes nesse cinema. Griffith, Lang,
Hitchcock, Ford, Lubitch, Chaplin são lembrados como tendo levado o cinema a
seu auge. Na verdade, o objetivo maior do instigante trabalho de Kané é o de
revelar o aparecimento de um “’grupo social’: o público de cinema”
20
. Nesse
grupo também reside nosso interesse, mas para além das implicações da
técnica no cinema e na mudança de rumo causada pela inclusão de uma
história da técnica cinematográfica unificada com a história estética. É uma
tentativa de desvendamento do próprio processo de produção (em todos os
seus aspectos) como um tipo de inscrição ideológica que se articula com o
tecido social onde se encontra e com um núcleo de necessidades econômicas
impostas a um cinema nacional. Isso tudo pode demonstrar a existência de
marcas próprias que surgem durante o desenvolvimento do filme como objeto
estético e como produto com uma vida e uma recepção.
As exigências que um filme faz na sua recepção têm relação direta com
o que esse “grupo social” está acostumado a receber e perceber como cinema.
19
Idem, p. 20.
20
Idem, p. 20.
Da mesma maneira, as práticas técnicas, o acesso ou não aos equipamentos e
laboratórios podem ser essenciais para entender o aflorar de um objeto
artístico. O filme é uma obra a ser criada e distribuída, como descrito por
Pierre-Jean Benghozi, e sua efetivação se coloca no cruzamento das ambições
artísticas afirmadas e de obrigações financeiras rígidas. Neste sentido, o
cinema se debate “num processo que inclui os fatores artísticos, mas também
econômicos e sociais”
21
. Assim, devemos tentar ampliar os aspectos da análise
para realizar essa adição de novas variáveis que funcionem junto aos modelos
de leitura interpretativa. O valor do objeto fílmico está no amálgama de todos
esses fatores. Como a ocupação do mercado exibidor é resultado também e
principalmente de aspectos econômicos é cil que o grupo social que surge a
partir do consumo de cinema nas salas é em sua maioria permeável ao cinema
dominante e sendo assim podemos citar Sérgio Buarque em sua afirmação de
que “trazendo de países distantes nossas formas de vida, nossas instituições e
nossa visão de mundo e timbrando em manter isso tudo em ambiente muitas
vezes desfavorável e hostil somos uns desterrados em nossa própria terra”
22
Na atualidade, as fontes sobre a técnica cinematográfica são de difícil
apreensão, pois o esparsas e pouco trabalhadas. No caso de
cinematografias como a brasileira - com suas dificuldades de preservação e
organização de pesquisa e documentação -, são às vezes inexistentes. No
entanto, com esse trabalho pretendemos conseguir inserir e valorar uma série
de informações que ajudam a explicar não apenas a forma final do filme, como
também sua trajetória em vários aspectos. Essas informações podem também
reconstruir uma parte da lógica que existe em uma cinematografia quando
21
Benghozi, Pierre-Jean. Le cinéma: entre l’art et l’argent. Paris: Editions L’Harmattan, 1989, p. 25.
22
Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 96.
opera num mercado dominado, como é o caso da brasileira. É a partir desse
aporte lógico que poderemos explicar a sucessão de modelos de produção que
surgem associados à criatividade na abordagem. Esta questão da abordagem
encontra um norte na busca de novidade e na melhor expressão de um
conteúdo brasileiro
. No caso impor-se-ia a necessidade de um triplo eixo de
análise onde teríamos um eixo de comercialização e recepção que estaria
ligado à exibição e distribuição; um eixo do estilo, da estética dependente da
história da técnica e do estilo e das relações entre o cinema e o conjunto da
produção artística e, por fim, um eixo político onde estaria expressa uma
capacidade do campo cinematográfico em interligar-se a todo o complexo da
sociedade e, é claro, o elemento mais restritivo de todo este sistema.
Não pretendemos nesse texto discorrer sobre esses três eixos, portanto
é a partir da criatividade e da carência econômica, essas duas pedras
angulares, que tentaremos estabelecer a possibilidade de um novo olhar sobre
os movimentos do cinema brasileiro. Com a afirmada dificuldade de acessar
fontes sobre o campo da técnica deste período, enfrentaremos este obstáculo
fazendo uma análise de partes do que está coletado na forma de entrevistas
e trabalhos acadêmicos que conseguiram de alguma maneira lidar com esses
conteúdos.
Iniciaremos com o exame de uma entrevista de Hélio Silva, fotógrafo de
Rio, 40 graus, que aqui é peça fundamental para entendermos o que
aconteceu no processo de filmagem e como se dava a formação e a atuação
de técnicos no espaço histórico configurado. Muitas práticas técnicas podem
ser percebidas e suas repercussões podem ser depreendidas através desta
grande entrevista sobre sua carreira. o informações determinantes que nos
ajudam a ordenar os vários formatos e efeitos dos fazeres técnicos.
Quando fala de sua trajetória de formação, Silva nos conta que começou
no Laboratório Bonfanti e por essa ligação profissional foi trabalhar em um
documentário italiano, onde carregou pela primeira vez um chassi. Esse
laboratório, o Bonfanti & Duverger daria um capítulo à parte, citado por vários
técnicos da época, sua importância é inequívoca e talvez determinante. Aliás,
não só o Bonfanti, mas também o Rex deveriam ser objeto de um estudo
próprio que nos levaria a novas descobertas.
Em sua dissertação de Mestrado, Paulo Schettino, na entrevista com
César Mêmolo Jr. sobre Chick Fowle, fotógrafo falecido, levanta um dado
pouquíssimo estudado sobre a passagem para o laboratório de muitos dos
controles que estavam com o diretor de fotografia no período do preto e
branco,
“...o cinema a cores transferiu do fotógrafo para o
laboratório, o controle da qualidade. No preto e
branco, o fotógrafo sabe a quantidade de luz, o
tempo de exposição ...
... agora quando chega o cinema a cores esses
controles ficam para o laboratório. não é mais
o virtuose, o fotógrafo que domina. Quer dizer, o
laboratório, processando mais ou processando
menos, pode destruir toda a intenção do fotógrafo.
Aquele fotógrafo personalista e que tem o seu
estilo não vai ter muito espaço com o cinema a
cores. O laboratório passa a dominar mesmo.”
23
23
Schettino, Paulo Braz Clemêncio. Diálogos sobre a tecnologia do cinema brasileiro, Dissertação de
Mestrado. ECA, Universidade de São Paulo, 1997, v. III, p. 88.
Novamente citado por Maria Guadalupe, argentina que se radicou no
Brasil quando da fundação da Vera Cruz, montadora e fonte importante sobre
as práticas do período, o Laboratório Bonfanti teria suas raízes um pouco mais
esmiuçadas. Uma parte relevante é a que fala da sua relação com a grande
produção do Jean Mazon que seria à época “o cliente número 1 do Bonfanti” e
havia exigido “uma sala de negativo de primeira, como na Europa, como na
França, ar condicionado, porque com o calor do Rio, fica o negativo fica se
encrespando...”
24
. Em função de sua grande produção e contratos com o
governo, achamos sua condição de exigir, a capacidade de financiar de
Bonfanti e, por fim toda uma herança francesa (também citada por Guadalupe)
que uma vez explorada poderia nos dar variados insights.
Hélio Silva, após trabalhar como técnico de som e com a fundação da
Flama (produtora onde conheceria Nelson Pereira dos Santos) vai atuar como
assistente de câmera em Uma Agulha no Palheiro. Aqui fica clara a riqueza
deste tipo de informação e, no caso de Hélio Silva, mais ainda ao desnudar
uma assimetria entre a sua formação e a de Alex Viany. Ele deixa claro que,
como técnico o entendia as razões de algumas escolhas de Alex Viany e se
sentia, de alguma forma, mais preparado no aspecto técnico, que o próprio
diretor.
“O Alex tinha aquela coisa de não ter uma
escola. E a mesma coisa que você pegar uma
pessoa que nunca passou por um banco de
escola mas que doidamente. Então tanto faz
ele ler um grande autor ou um autor menor que
não vai ver as diferenças. Era esse o caso. O
Alex dizia: câmera aqui. Está bem, a primeira
24
Idem, p. 102.
posição de câmera ninguém erra.(risos) Agora
quando corta... Invertia o eixo a toda hora. E
eu, assistente de câmera, vou fazer o que? Vou
falar para ele: está errado. Não, eu não posso
falar uma coisa dessas. Eu tenho que ficar na
minha posição de assistente de câmera.
tenho que acertar o foco.
ABC - Mas o Nelson como assistente de
direção, não falava nada?
Hélio - Eu olhava para ele e via que ele estava
olhando para mim. Ai olhávamos os dois para o
Mario Pagés que chamava o Alex. Chico.
Mira... E demonstrava que ele estava errado.
Mas o Alex não entendia! E é claro que em
alguns momentos tem problema. Você coloca
os personagens todos numa mesa. Um fala,
esse aqui responde. pela terceira seqüência
o cara se confunde. Se você não tiver um
mapa, você se estrepa. Ai então o Mario Pagés
dizia: No, No la camera tiene que ser do lado
de cá! Não. Vamos botar aqui. Bem o Mário
também não ia ficar discutindo. Porque o
Nelson nunca falava assim. Ele não era bobo
de se queimar. Estava indo tão bem... Então o
Alex falava: Aqui! E eu chegava um pouquinho
pro lado. Não. Não é não! Então volta... Não
tem problema. (risos)”
25
.
A despeito de eventuais exageros operados na ação de rememorar
podemos retirar várias conclusões do depoimento de Helio Silva. Uma primeira
é sobre um processo de formação técnica, bastante solto e marcado pelo
autodidatismo, tanto no caso dos técnicos brasileiros, como também no dos
estrangeiros aqui formados. Mesmo assim, depreende-se que, na visão de
Hélio Silva, a formação profissional dos técnicos de cinema, por ser mais
restrita e voltada às próprias necessidades do set, era mais lida no que diz
respeito a seus aspectos artesanais. Esse fato mostra que, apesar da coragem
e muitas vezes genialidade de realizadores e produtores, muito da pobreza
25
Entrevista de Hélio Silva divulgada no site da ABC – Associação Brasileira de Cinematografia.
técnica do cinema brasileiro pode ser atribuído à relação descrita e ao fato de
faltar uma organização que garanta uma formação técnica mínima.
Parece-nos claro que poderíamos mergulhar em inúmeras situações de
set para tentar explicar esta ou aquela característica de um filme e que a
descontinuidade entre o fazer técnico e a criação artística é importante como
fonte de informação e descrição de um determinado modo de filmar. Podemos,
para começar a definir modo de filmar, fugir da acepção que conteria apenas
os aspectos técnicos para, em uma conceituação mais vigorosa, conter na
expressão técnica e criação como irmãs siamesas que, se separadas, não têm
condição de subsistir. Desta maneira, toda essa circunstância confirma uma
carência típica, um meio que não se intercomunica, não cria procedimentos
padrão e, até por não ter infra-estrutura, acaba por mergulhar no método da
tentativa e erro. O fato é que apenas encontraremos esses procedimentos
técnicos em cinematografias consolidadas como indústria ou com um mínimo
de infra-estrutura de formação e de emprego.
É óbvio que não estamos a defender a necessidade da existência de
uma indústria aos moldes hollywoodianos para conseguirmos a constituição de
padrões e procedimentos. Não é esta a forma de organização das práticas
técnicas e nem pretendemos desviar o estudo para esta resolução. No que
tange à questão dos modos de produção e dos modos de filmar ressaltamos,
no entanto, o valor daqueles procedimentos para a compreensão do resultado
estético e econômico do final de uma produção cinematográfica.
Assim, variados métodos poderiam ser lembrados e muitos cinemas são
os frutos entregues por cada um deles. Não é a defesa ou proselitismo de um
cinema industrial com métodos de set e finalização pré-determinados como
panacéia de qualidade até porque este (cinema industrial hollywoodizado) é
uma expressão estética não necessariamente melhor que qualquer outra.
Reafirmamos um efeito conhecido desde sempre de influências recíprocas que,
não podem ser negadas e que devem sim ser trazidas para uma posição mais
iluminada na análise estética.
No espaço de reflexão feita por realizador e, ao mesmo tempo, autor e
teórico, temos Glauber Rocha e, em conjunto, a idéia de um método Glauber.
No conteúdo expresso na sua assertiva - “Vi que a crise do cinema é associada
e conseqüente da crise geral de fome que nos envolve. Por isto, em tese o
filme não pode ser arte tem de ser manifesto...”
26
está a raiz da negação de
certo tipo de técnica e, claro, a assunção de outro procedimento por sua vez
também técnico. Sua outra afirmação de que “o cinema novo, por razões
econômicas, políticas e sobretudo tecnológicas - cresceu no Rio, organizando-
se dialeticamente ao processo político...”
27
somente reforça essa presunção.
Para aprofundarmos esta discussão teremos que citar o artigo de Glauber
“Cinema Novo 62”.
“Nossa geração tem consciência: sabe o que
deseja. Queremos fazer filmes aintiindustriais;
queremos fazer filmes de autor, quando o
cineasta passa a ser um artista comprometido
com os grandes problemas do seu tempo;
queremos filmes de combate na hora do combate
e filmes para construir no Brasil um patrimônio
cultural.
Não existe na América Latina um movimento
como o nosso. A técnica é haute couture, é
frescura para a burguesia se divertir. No Brasil
o cinema novo é uma questão de verdade e não
26
Avellar, José Carlos. A ponte clandestina. Rio de Janeiro-São Paulo: Editora 34-Edusp, 1995, p. 78.
27
Rocha, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 475.
de fotografismo. Para nós a câmera é um olho
sobre o mundo, o travelling é um instrumento de
conhecimento, a montagem o é demagogia
mas pontuação do nosso ambicioso discurso
sobre a realidade humana e social do Brasil. Isto
é quase um manifesto.
28
A afirmação de uma falta de técnica é obviamente uma proposta técnica
em si, um método que responde a uma necessidade, aqui, revolucionária,
estética e econômica que a imagem tinha que guardar uma relação
intrínseca com o objeto. Nossa intenção é deixar claro que, manifestamente,
todas as expressões cinematográficas podem ser entendidas em sua relação
com a técnica, mais ainda, que quando temos uma aspiração maior de
explicação é decisivo o conhecimento de padrões e procedimentos técnicos ou
a rejeição a eles para conseguir maior qualidade na compreensão histórica.
Dessa maneira reafirma-se, mais que a possibilidade, a necessidade de
empregarem-se as origens técnicas de um filme como fonte na história do
cinema.
Uma segunda questão a ser ressaltada da entrevista de Helio Silva é a
da formação técnica propriamente dita. É importante destacar as diferentes
posições no interior do set, no que toca ao poder e à função que ficaram
expostas na entrevista de Hélio Silva. O diretor tem uma ascendência diferente
em relação às funções técnicas e uma tarefa mais geral.
No caso do técnico estrito senso, com posição bem característica, temos
uma história de seu conhecimento profissional que passa também pela
percepção de escolas de formação. No conteúdo da fonte citada, a formação
no cinema brasileiro vinha de Hollywood via Argentina que, por sua vez, a
28
Idem, p. 52 (grifo nosso).
trazia do México ou diretamente dos EUA (fato corroborado por Nelson Pereira
dos Santos na entrevista que realizamos para este trabalho). Essa visão tem
como base a atuação de Mario Pagés, diretor de fotografia argentino que veio
ao Brasil em 1951 para atuar na Maristela. Posteriormente, Pagés trabalhou
bastante no Rio e foi o responsável pela vinda de muitos técnicos argentinos
para o Brasil. Juan Carlos Landini, um dos que veio para o Brasil a seu convite,
declara que ele foi “o intermediário entre a Maristela e eu”. Landini afirma ter
feito “a carreira completa, de assistente, de segunda assistente, de primeiro
assistente, operador de câmera, o camera-man e depois entrei na fotografia”
29
.
Tal afirmação mostra que na Argentina talvez existisse um método e
arregimentação do pessoal que trabalhava em cinema. Cremos ser correto
afirmar que existe uma tendência a pensar que a escola de formação do
cinema argentino é tributária da mexicana. Entretanto, não pensamos que a
trajetória de formação destes técnicos, nem a formação majoritária dos
técnicos do cinema brasileiro, corrobore essas afirmações. Seria mais acertado
afirmar uma grande influência americana e inglesa.
Os três diretores de fotografia citados têm se apogeu profissional no
Brasil, diante de vicissitudes e dificuldades de produção e equipamento
caracteristicamente brasileiras. Uma dúvida levantada por Schettino com
respeito ao uso do termo cinegrafista demonstra bem os obstáculos que são
enfrentados quando se inicia uma aproximação dessas questões.
Schettino - “... quando você trabalhos de
pesquisadores brasileiros de cinema você ouve
muito falar a palavra cinegrafista. Parece que
29
Idem, p. 31.
cinegrafista era uma palavra que englobava tudo.
Era aquele cara que tinha uma câmera, que ia
para o interior fazer documentários, ele operava,
carregava...”
Landini “Sim, é o caso do William Gerrick. Ele
fazia todos os filmes sozinho, até montava.”
30
Essas variações de nomenclatura e a dificuldade de entender o que
realmente significa, em cada caso, a palavra cinegrafista, estão
manifestamente ligadas às diversas formas de produção e modos de filmar e
acabam por dar uma pista, o próprio nome da função, do que estava
acontecendo durante o processo de filmagem e finalização. Não podemos usar
essas pistas como definitivas, mas sua existência demonstra cabalmente um
norte, também da formação dos técnicos de cinema no Brasil.
Não temos assim um conjunto de conhecimentos e habilidades
específicas firmes que possam caracterizar uma escola de formação. Teríamos
que dedicar o trabalho apenas a essa temática se quisermos conseguir mapear
a construção de uma mentalidade relativa ao conjunto de processos
cinematográficos. Podemos, porém, observar quais as rotas de aprendizado
e/ou de influência estética que são mais distintas. Por este viés, é possível
cristalizar um modo de filmar que é parte constitutiva de um modo de produção.
Quando perguntado se se via influenciado por Gabriel Figueroa, o
fotógrafo Landini nega. No entanto, ao ser indagado se, em sua opinião, a
fotografia de Chick Fowle em O Caganceiro teria tido aquela influência antes
indicada, Landini não se furta em afirmar que talvez esta tenha existido na
composição do quadro. Chick Fowle teve uma experiência com a escola
inglesa de documentário com uma
30
Idem, p. 34.
“fase marcante trabalhando em vários filmes da
GPO, que era do grupo do General Office, que era
a empresa que realizava esses documentários,que
era uma estatal inglesa, sob a direção do John
Grierson ..”
31
.
Com uma filmografia de 13 obras, anterior a sua vinda para o Brasil, é
claro que um grande diretor de fotografia como Figueroa acaba por ser um tipo
de referência quase universal. Mais ainda quando vemos algumas questões
temáticas que estão presentes nas duas cinematografias.
que destacar ainda o importantíssimo Mario Pages, pelo trabalho,
longevidade e passagem pelos vários meios da produção audiovisual
32
. Em
entrevista a Afrânio Catani, datada de 1980, Mario Pagés informa que teve o
primeiro contato com o cinema nos Estudios Río de La Plata, onde conheceu
“um dos grandes diretores de fotografia de Hollywood, Paul Perry, que fora a
Buenos Aires para instalar um laboratório - LECA.”
33
Novamente encontramos
a repetição do laboratório e da fonte estadunidense através do fotografo Perry.
Porém, quando vemos, pelas respostas dadas na entrevista sobre seu
percurso profissional, que Pagés, antes de vir para cá, isto é, até 1951, realizou
16 filmes na Argentina, essa informação nos leva a crer não ter sido no Brasil
que Pagés atravessou sua fase de aprendizado profissional. Por conseguinte,
31
Idem, p. 88.
32
Pagés começou seu trabalho em cinema em 1934 na Argentina e infelizmente não temos a data de sua
morte. Afrânio Catani, na introdução de uma entrevista no site da ABC, realizada em 1980, nos informa
que ele faleceu no final dos anos 80-início dos 90, sem precisar a data. Indica também como fontes sobre
Pagés seus textos A sombra da outra - A Cinematográfica Maristela e o cinema industrial paulista nos
anos 50 (São Paulo: Panorama, 2002) e o verbete “Mário Pagés” para a Enciclopédia do cinema
brasileiro, organizada por Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda (São Paulo: Editora SENAC, 2000, p.
412-413). Cremos serem estas as melhores fontes sobre esse diretor de fotografia e, fora essas, podem-se
ainda encontrar referências dentro de algumas entrevistas, como a de Hélio Silva.
33
Entrevista de rio Pagés por: Afrânio Mendes Catani no endereço eletrônico http://publique.
abcine.org.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=118&from%5Finfo%5Findex=21&sid=5
ele pode ser considerado, assim como Chick Fowle, que veio também com
uma grande experiência, como um dos formadores dos técnicos no Brasil
Pagés tem uma filmografia realizada no Brasil de 24 obras e conta com
a participação de muitos dos futuros diretores de fotografia, que viriam a atuar
no cinema brasileiro nos anos seguintes. É o mesmo caso o de Chick, que
conta com uma filmografia de 17 obras no Brasil. Em relação a este ultimo,
temos a afirmação de que “formou dezenas de profissionais, inclusive
influenciando a formação técnica e profissional de eletricistas, de maquinistas,
etc.”
34
. Sobre Pagés, há que se destacar ainda a partir da entrevista de Hélio
Silva - sua decisiva influência como formador de mão de obra e fonte, não
apenas dos conhecimentos técnicos, mas também nos procedimentos da arte
de filmar.
Toda essa terraplanagem sobre a origem e a formação dos técnicos, dos
procedimentos técnicos e sobre suas fontes de trabalho demonstra-nos o
processo de construção de conhecimentos adaptados à realidade brasileira, no
enfrentamento dos problemas práticos e reais, no set, na convivência aqui no
Brasil. Desta maneira, quando olhamos para os chamados movimentos de
“recomeço” ligados à duração das empresas produtoras, isto é, a abertura ou
ao fechamento de empresas, vemos também o percurso de um conjunto de
profissionais. Tais trajetórias profissionais, empresariais e estéticos o os que
nos dão suporte firme para podermos finalmente falar dos processos de
“instalar a indústria cinematográfica no Brasil”. É essa busca de operação em
um nível mais profundo e articulado de todas essas variáveis que pode ser
feito através de uma agregação de novas fontes. O movimento pretendido tenta
34
Schettino, Op. cit., p. 80.
encontrar continuidades e descontinuidades que possam determinar relações
de causalidade onde antes teríamos uma separação definitiva pré-estabelecida
pela idéia de que a história econômica es separada dos desdobramentos
estéticos.
Claro que uma das possibilidades de utilizar essas fontes se também
na descrição do caminho e da forma e entrada de novidades e saberes
técnicos. Este trajeto vai nos mostrar uma parte respeitável da relação entre os
dois campos tratados, o econômico e estético. O conceito é promover um tipo
de religação desses problemas sobre os quais temos que trabalhar com o
objetivo de estender a análise abrangendo o campo da apropriação e da
construção de variada formas de linguagem.
Vamos retornar à entrevista de Hélio Silva, pois muito mais se pode
retirar no que diz respeito ao filme Rio, 40 graus. Nosso personagem destaca:
“Foi quando o Nelson chegou dizendo que ia fazer
um filme mas com poucas condições. Fulano vai
dar o dinheiro do negativo, mais isso e mais
aquilo. Vamos lá? Eu disse: Não Nelson. Eu estou
com um conceito relativamente bom em São
Paulo como primeiro assistente de câmera, então
eu estou cheio de serviço. Deixar isso aqui onde
eu estou aprendendo pra entrar numa quase
aventura, você sabe... Mas eu vou lá e convenço
o Silvio Garnero a fazer com você. O Silvio esta
fazendo câmera muito tempo e quer largar
pra fotografar. Então o Nelson falou: Mas o Sílvio
é outro espírito. O lvio não vai conseguir
entender certas coisas que a gente faz sabendo
que a história necessita dessas coisas. Eu acho
você muito mais arrojado, muito mais capaz de
fazer do que ele. Eu fiquei assim, mas disse:
Não. Eu vou falar com o Sílvio. Se ele não topar,
então eu vou pensar. Mas ele foi dando uns
toquesinhos. Vamos fazer assim, assado. E eu
concordei: Então vamos! Ai saímos de São Paulo
com o Roberto Santos, o Ronaldo Lucas Ribeiro,
um assistente de direção, e um assistente de
câmera e fomos para o Rio. Tinha um
apartamento alí na Cruz Vermelha, do Salvyano
Cavalcanti de Paiva e nós ficamos lá. Bom, dois
problemas: Tem um cara que vai dar cem mil,
então vamos fazer a lista do material que a gente
precisa. Enquanto isso o pessoal se reunia ali na
ABI, fazendo relação de atores, das pessoas
envolvidas. Era bastante trabalho. Eu fiz os
cálculos do negativo que precisava, do positivo
para o copião, 6000 metros, do negativo de som
etc. Tudo que eu podia fazer eu fiz e coloquei
numa relação. Fui conversar com Mesieur
Duverger. É Mesieur Duverger, eu estou
envolvido aqui com um filme, mas não tem
dinheiro para o laboratório, compreendeu? Você
está na equipe do filme? Estou. O que você vai
fazer? Bem, eu vou fazer a fotografia e a câmera.
É? Está bom; pode trazer o material que a gente
ajeita aqui. Então, para não ficar muito pesado, a
gente entrou com o positivo e foi fazendo. Mas
antes, tinha um outro problema. O material da
lista, que ficou até mais barato porque foi
comprado direto sem passar pela Kodak do Brasil,
acabou com os cem mil cruzeiros e a produção
voltou a não ter dinheiro nenhum. Precisavam de
ir a o Paulo e não podiam, porque a passagem
era muito cara. Outro problema: câmera. Chegava
um e dizia: Não tem problema, minha câmera está
a disposição de vocês. Chegava não tinha
câmera, ou estava toda incompleta. Até que
chegamos no Humberto Mauro, no Instituto
Nacional do Cinema Educativo. Eu olhei as
câmeras e disse: Bom, a gente pode levar aquela
Super Parvo. Não é câmera para exterior, mas
não tendo outra eu dou um jeito. E ele disse:
Não, essa o sai daqui não porque está
novinha. Leva essa aqui. Ai ele abriu um armário.
As portas rangiam, parecia filme de mistério.
no meio da poeira e de teias de aranha, estava
uma câmera. Está aí. Tem essa Debrie. Não é
nem Parvo L, nem Parvo M era anterior, Parvo K.
Ela tinha sido usada numa filmagem com o Ugo
Lombardi, Hospede de uma Noite com D´Andréa
Neto. O filme todo era na praia. Você viu, não
é? Uma filmagem sem assistente, na praia, onde
o diretor e o fotografo eram a mesma pessoa.
Resultado: a média era de um, dois milímetros de
ferrugem em cima da câmera toda. Aí, tinha uma
mesa de jacarandá enorme, com uns seis metros.
Eu falei pro Mauro: Me empresta essa mesa para
eu trabalhar na câmera? Ele concordou, saiu por
uma porta é voltou um mês depois. Nós
desmontamos essa câmera todinha. Não
deixamos um parafuso trabalhando. Nada.
Pusemos tudo dentro do querosene. Eu tinha um
amigo polonês, Inácio, e disse para ele que tinha
umas peças assim, assim. sei; trabalho de
graaaça! Então ele pegou as peças mais
delicadas e limpou. O resto eu mesmo levei na
santa paz da ignorância para limpar. Eu e
Ronaldo, que era meu assistente. Dia e noite.
Mais ou menos uns vinte e poucos dias. Daí
começamos a juntar. Quando chegou na grifa,
deu problema. Ai eu corri lá no meu padrinho,
Messieur Duverger e ele me disse que não tinha a
peça, e que tinha que pedir na França. Ai
complicou. Porque a câmera tinha sido fabricada
muitos anos. A janela dela era de cinema
mudo, 1 : 1.33. Não tinha espaço para a pista de
som. Ai eu fui atrás do Humberto Mauro. Eu sabia
que você vinha atrás de mim! É a janela? Eu falei:
É. Aquela janela tem um defeito mas eu tenho
uma nova. Só que não esta trabalhada para entrar
naquela câmera. Você vai ter que adaptar. Então
eu s atrás das pessoas que sabiam disso. A
janela tinha que ser desgastada por igual para
tirar uns três milésimos. Então eu com uma lixa
para ferro finíssima, dentro do óleo, e com uma
madeira por cima para fazer pressão por igual, fui
desgastando. Primeiro 5 Minutos. Medimos.
Nada. Meia hora. Nada. Passamos para duas
horas. Nada. Ai passamos a fazer 3, 4 horas de
manhã, 3, 4 horas à tarde. Era um aço duríssimo.
E cada vez que íamos checar tínhamos que
limpar bem, armar tudo, colocar bastante óleo e
girar. No princípio dava duas voltinhas e
bloqueava. Depois cada vez bloqueava num
ponto diferente. Era uniforme. Pelo menos isso!
Até que chegou o momento em que rodamos e
ela correu livre. Então remontamos toda a câmera
e demos uma geral no tripé. Nisso chegou o
Humberto Mauro. O Senhor está convidado para
ver a câmera funcionando. Tirei o motor, coloquei
a manivela e deixei ele examinar. Ele girou a
manivela, verificou o sincronismo do obturador
com a grifa e disse: Perfeito! Quer trabalhar aqui?
(risos) Como? É, funcionário do INCE. Eu
gostaria, mas acontece que eu sou muito jovem
para isso e gosto muito de fazer externas e tal...
Está bem. Mas o dia que você quiser, pode bater
aqui que você tem emprego. Não é para trabalhar
todo dia não. Você vem uns 20 dias por ano. Eu
vou pensar... Ele entendia os problemas muito
bem. Ai acabamos de montar a câmera e o
negativo chegou: Vamos começar a filmar”.
Este relato é um excelente exemplo em duplo sentido. O primeiro é o de
mostrar aspectos do nascimento e das metodologias que foram utilizadas no
filme Rio, 40 graus. Essas metodologias serão tratadas mais adiante. O
segundo é expor de uma maneira geral as relações internas entre modos e
sistemas de produção diferentes no cinema brasileiro dos anos 50. Vamos nos
ater aqui mais ao segundo aspecto, deixando para momento à frente o
tratamento do filme de Nelson Pereira dos Santos. O relato é rico em
informações e começaremos com as relativas à motivação. Hélio nos coloca
logo no início que sua escolha profissional seria manter uma atividade em São
Paulo, como assistente de câmera. Fica claro em sua visão que, com esta
atitude, se encontraria melhor colocado para disputar posições em seu ofício
de fotografo iniciante e adquiriria maior valor e respeitabilidade. Porém, logo
em seguida, ele deixa claro que sua intenção quando faz cinema não é
puramente técnica e nem Nelson tem uma intenção exclusivamente técnica
quando o convida. Vale a pena repetir a passagem:
“O Sílvio é outro espírito. O Sílvio não vai
conseguir entender certas coisas que a gente faz
sabendo que a história necessita dessas coisas.
Eu acho você muito mais arrojado,...”
O texto em tela explicita um tipo de parceria que excede em muito a
relação que podemos encontrar na mesma entrevista e que utilizei
anteriormente, onde Hélio conta o ocorrido na filmagem com Alex Viany. Essa
parceria já nos coloca diante de um tipo de afinidade que não existe, stricto
sensu, em uma relação puramente profissional. Desnuda-se aqui a noção de
projeto, não apenas estético, como também político.
Ao referir-se a um outro filme de Nelson Pereira dos Santos Rio, Zona
Norte – Mariarosaria Fabris destaca que este:
“simboliza a busca de esquemas alternativos de
produção por parte dos cineastas independentes
que entenderam que, para divulgar as próprias
idéias, era necessário gerir o aparelho que as
havia fabricado”
35
.
Tal projeto, que se constrói coletivamente é, de uma forma ou de outra,
um ponto de partida para a resistência aos velhos esquemas de produção, a
nosso ver, para além da oposição clássica presente na maneira pela qual se
compreende a história do cinema, na qual devemos distinguir: “um ponto claro
e distinto, como inteira predominância, e um outro, mais difuso, de menor
escala, porém não menos perceptível”. E ainda: “O primeiro se refere aos
indivíduos que fizeram e fazem o cinema nacional, o segundo, às empresas às
organizações que escoram a armação industrial do sistema cinematográfico”
36
.
Por uma outra direção de análise é possível alinhavar que a mencionada
armação industrial nunca realmente foi escorada por nenhum agente. Além
disso, a posição dos indivíduos na sua relação com o cinema brasileiro foi
35
Fabris, Mariarosaria. Nelson Pereira dos Santos: um olhar neo-realista?. São Paulo: Edusp, 1994, p. 88.
36
Vilela, Sérgio Renato Victor. Cinema brasileiro: capital e estado. Rio de Janeiro: Xerox-CNDA-
Funarte, 1979, p. 63.
sempre de engajamento. Nesta direção vemos alguns casos onde este
engajamento é definitivo para o resultado final do produto, tornando-se por
assim dizer – o exemplo emblemático de uma era, de um modo de produção.
Tal afirmativa pode ser reforçada pelas posições de uma
“intelectualidade paulista” que publicou, em 1949, dois artigos, “Da Inexistência
do Cinema Nacional” (24 de maio) e “Da Existência do Cinema Nacional’ (4 de
junho), onde a própria temática aponta a necessidade de “resgatar o cinema
brasileiro”
37
. Aqui a baliza é a fundação da Vera Cruz que vinha “dar um
embasamento industrial ao cinema brasileiro”, entretanto “não consegue levar
adiante seus planos, uma vez que nem sempre esses fatores estiveram
coordenados entre si
38
”.
Toda essa digressão sobre a inexistência do cinema brasileiro, ou
melhor, sobre sua indigência industrial, ou melhor ainda, sobre uma certa
cegueira presente no processo de mergulhar no estudo da história do cinema
brasileiro em busca de explicações com densidade e capacidade de articular o
aparelho e as idéias, nos remete a outro aspecto importante. Ele se substancia
quando as relações pessoais se sobrepõem às relações econômicas. Senão
vejamos, quando Hélio conta como resolveu a necessidade de laboratório no
início da produção, ele não nos descreve uma relação comercial com pedidos
de desconto ou propostas de parceria. Hélio nos expõe uma relação pessoal,
intima, dele com o senhor Duverger. Já sabemos nesta altura que foi ele,
senhor Duverger, quem o introduziu no meio e que estimulava o aprendizado
técnico. O tratamento recebido no INC através da recepção de Humberto
37
Fabris, Op. cit., p. 41-42.
38
Idem, p. 42.
Mauro é pessoal, da mesma maneira, porém, adverte outras motivações e
relações de produção.
O INC é um serviço público, seus equipamentos são para o cumprimento
de suas funções precípuas. Nem o pedido nem a resposta colocam qualquer
problema sobre as relações entre uma produção privada e o uso de
equipamentos públicos. Pelo contrário, tudo isso parece alheio e fora de lugar.
Temos uma brincadeira sobre uma esperteza de Mauro que, ao emprestar a
câmera, na realidade, a está recuperando de um tipo de tratamento
injustificável, em se tratando de próprio público (não poderia ser emprestada
sem as condições devidas e, muito menos, não ser imediatamente recuperada
ou ainda serem cobrado do “destruidor” os prejuízos porventura causados pela
utilização). Outros exemplos poderiam ser trazidos à análise, porém este
basta para que entendamos que um tipo de substituição essencial se na
troca das relações econômicas que poderiam ser encaradas como
estruturantes por um espaço ocupado pelas intenções ou percepções dos
indivíduos.
Assim, não é de nenhuma forma ocioso explicitar, como parte de modo
de produção, o tratamento diferenciado das relações, econômicas e pessoais
no processo de criar as condições para o filme. Ainda mais importante é
percorrer estes motivos e articulá-los com os fazeres técnicos expressos no
contexto técnico de produção, nas condições de filmagem e nos materiais
utilizados. O campo econômico, pessoal, técnico e político é essencial como
base funcional no surgimento de um modo de produção. Claro que a extensão
dessas práticas, situações, intenções e relações pode variar, sem que se perca
o principal. O jogo de base técnica, relações pessoais e flexibilidade necessária
para conseguir ‘levantar’ um filme fora dos esquemas de financiamento da
época é essencial para a compreensão e o conhecimento das condicionantes,
que vão definir um modo de produção.
O conceito clássico de modo de produção
Após ter citado a expressão modo de produção faz-se necessário um
retorno ao campo de sua afirmação teórica. È imperativo definir o que estou
chamando de modo de produção em sentido estrito. Imprescindível fazer um
movimento de retorno na busca de criar essa possibilidade, de volta ao ponto
de partida, ao lugar de onde emerge a expressão e conseqüentemente aos
seus usos originais. Esses usos serão extremamente elucidadores. Nesta
direção estão, obviamente, escritos modernos sobre sua definição na filosofia,
na história e nas ciências sociais.
O conceito de modo de produção pode ser primeiramente apreendido
através de um sentido autocontido, referenciado apenas à expressão e
proclamado no campo de senso comum. Nesta senda, não estaremos distantes
do significado que verdadeiramente nos interessa, mas encontraremos aqui
uma rarefação de seu conteúdo. Assim sendo, a expressão modo de produção
significa, no domínio do senso comum, a forma ou maneira pela qual é
efetivamente produzida qualquer coisa.
No entanto, ao contrário do que acontece com muitas outras noções
centrais, o conceito de modo de produção tem “algo semelhante a uma
definição formal, a respeito, do próprio Marx”
39
.
39
Cardoso, Ciro Flamarion Santana. Verbete sobre Modo de Produção. In: Motta, Márcia (org.).
Dicionário da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 310.
A análise científica do modo de produção capitalista demonstra, não
somente sua natureza particular, como pressupõe a existência de condições
históricas reais para qualquer outro modo de produção. Essas condições
históricas consubstanciam-se através de
“determinada fase das forças produtivas sociais e
de suas formas de desenvolvimento: condição
que é, por sua vez, resultado e produto histórico
de um processo precedente e do qual o novo
modo de produção parte como sua base dada;
que as relações de produção que correspondem a
este modo de produção específico, historicamente
determinado relações que os homens
estabelecem em seu processo social de vida, na
criação de sua vida social apresentam um
caráter específico, histórico; e finalmente, que as
relações de distribuição o essencialmente
idênticas a estas relações de produção, o avesso
delas, pois ambas apresentam o mesmo caráter
histórico e transitório”
40
.
Colhendo diretamente em sua fonte original, o texto de Marx, teremos
uma noção bem exata e operacional das ligações lógicas dadas por essa
conceituação clássica. Estes significados são por demais importantes para o
processo de delimitação do conceito tal como nos interessa, o qual, por fim,
nos auxilia no trabalho direto com o nosso objeto. Entretanto, temos sempre o
dever em guardar certa distância da formulação desenhada.
Desta maneira, no âmbito de nossa análise, a pergunta de Fossaer é
emblemática: - Permite-nos Marx construir uma teoria geral dos modos de
produção? E qual a extensão que se deveria emprestar a esse conceito?
41
e
nos coloca as dificuldades e complexidades do trabalho em torno de uma idéia
40
Marx, Karl. El capital. México: Fondo de Cultura Económica, 1968, Tomo III, p. 744.
41
Fossaert, Robert. “Prefácio”. In: Srour, Robert Henry. Modos de produção: elementos para uma
problemática. Graal: Rio de Janeiro, 1978, p. 18.
tão seminal. Quase que imediatamente, no entanto, quando está a aprofundar
os objetivos do trabalho que apresenta, Fossaer oferece as respostas contidas
no texto de Srour.
Srour, respondendo à primeira pergunta, afirma que “trata-se de tornar
inteligível o conjunto de modos de produção historicamente discerníveis”,
fundado na idéia de que “cada um dos modos de produção passados,
presentes ou vindouros, pode ser analisado como uma combinação singular de
elementos mais simples que poderiam ser, por sua vez, identificados e
categorizados”. E sobre esta combinatória afirma que “fornece uma base sólida
para a análise teórica das sociedades de toda espécie”
42
.
Aqui cabe uma digressão pida sobre a procura dessa base material
que apoiaria de forma definitiva as interpretações sobre a realidade histórica.
Claro que a tentativa de estabelecer essa base factual tem uma função
diferente do que tinha quando da formulação do conceito original por Marx.
Queremos afirmar que tanto a realidade como o próprio cinema têm uma
materialidade inequívoca, são ambos objetos que, apesar de apenas podermos
abordar de maneira discursiva e interpretativa, têm efetiva existência real e
laços com esse mundo dos fatos que podem ser trabalhados e explicados.
Assim essa análise teórica, função mesmo do conceito ora trabalhado, expõe a
capacidade de tocar esses “reais” quase que indisponíveis e fugidios, pois
sempre aprisionados no campo da representação e interpretação.
A segunda questão recoloca a dúvida do que seria realmente o modo de
produção, se a representação teórica da sociedade ou apenas sua base
econômica. Formulando-a de forma objetiva, Fossaer ressalta “claramente a
42
Idem, p. 19.
base econômica observável como um sistema de vários modos de produção
imbricados sob a predominância de um deles”
43
e, com esse pensamento
enriquece as possibilidades de uso e expande, se é que isso é possível, as
aplicações do conceito. A idéia de podermos encontrar grande número de
modos de produção funcionando em um mesmo período e em conjunto, um
com os outros, nos abre todo um campo de discussão sobre a organização da
base material das atividades humanas. Esse campo nos ajudará no
entendimento legítimo sobre o conjunto das forças produtivas.
Retornando à passagem inicial de Marx, tomada por definição na
companhia de Cardoso, devemos também, e junto com ele, verificar os pontos
seguintes:
“1) cada modo de produção tem como base
e ponto de partida uma determinada situação das
forças produtivas sociais (nível e forma), formadas
num processo histórico anterior;
2) as relações de produção picas de cada
modo de produção dado são relações sociais que
se estabelecem entre os homens ao criarem sua
vida social, ao viverem socialmente em
determinadas circunstâncias, pelo qual sempre
apresentam o caráter de algo específico e
passageiro”.
44
O entendimento do conceito de modo de produção depende, portanto,
do prévio esclarecimento de outros dois conceitos: forças produtivas e relações
de produção. Este último conta com a definição de Marx: determinadas
relações necessárias, independentes de sua vontade”, nas quais os homens
43
Idem, p. 19.
44
Cardoso, op. cit., p.310.
entram entre si na produção social de sua vida”; as quais “correspondem a
uma determinada fase do desenvolvimento de suas forças produtivas”
45
.
Para que não percamos a linha de raciocínio, devemos ainda continuar a
busca do conceito geral antes de particularizarmos uma aplicação e as
modificações que ela implica. O conceito de modo de produção foi e é palco de
luta intelectual exatamente por sua abrangência e importância central. O status
teórico e histórico do conceito de modo de produção foi muito discutido:
“Se muitos autores estranhos ao marxismo
tendem a ver nele uma modalidade do que Max
Weber chamava tipo ideal um modelo, no
vocabulário de Jerzy Topolski arbitrário’ (ou
eventualmente, ‘contrafactual’), o que era, aliás, a
opinião do próprio Weber a respeito dos conceitos
de Marx, os marxistas quase sempre sublinham,
pelo contrário, o caráter ‘isomórfico’ do modo de
produção considerado como modelo dinâmico,
isto é, sua pretensão de construir uma
representação realista, se bem que seletiva e
simplificada, da estruturação em si, real, das
sociedades humanas. Isto, para o pensamento
pós-moderno, não passaria de uma ilusão
positivista (já que o pós-modernismo estende –
ilegitimamente a meu ver a qualificação de
positivista a qualquer modalidade de teoria que
pratique o realismo do objeto, como é o caso do
marxismo)”
46
.
A nosso ver, o conceito de modo de produção traz, como aparato
teórico, uma capacidade de nos aproximarmos das aptidões reais dos fazeres
humanos. O aprofundamento desta explicação nos realinha à problemática dos
objetos de estudo no campo da história que, como nos diria Chartier sobre
outro objeto:
45
Idem,p 311.
46
Ibidem, pp.312/313.
“Contra a representação, elaborada pela própria
literatura, segundo a qual o texto existe em si,
separado de toda materialidade, é preciso lembrar
que o texto fora do suporte que lhe permite
ser lido (ou ouvido) e que não há compreensão de
um escrito, qualquer que seja, que não dependa
das formas pelas quais atinge o leitor. Daí a
distinção indispensável entre dois conjuntos de
dispositivos: os que provêm das estratégias de
escrita e das intenções do autor, e os que
resultam de uma decisão do editor ou de uma
exigência de oficina de impressão .”
47
Nesta direção, podemos estabelecer as mesmas necessidades de
articular os dois conjuntos de dispositivos aqui expressos na intenção estética
em conjunto com a capacidade técnica de execução e os fundamentos
econômicos que existem em dados momento ou são assumidos como parte
efetiva do projeto de um filme.
Problemas e soluções na abordagem de Bordwell, Staiger e Thompson
Uma utilização do conceito de modo de produção, desbastado de
algumas características que colocaria como essenciais à aplicação aqui
proposta, é o livro The Classical Hollywood Cinema: Film Style Mode of
production to 1960. Esse livro, escrito a seis mãos, procura “examinar o cinema
47
Chartier, Roger. “O mundo como representação”. Estudos Avançados,o Paulo, v. 5, n. 11,
1991. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141991000
100010&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 14 Nov 2006. doi: 10.1590/S0103-40141991000100010.
hollywoodiano como um fenômeno artístico e econômico separado”
48
, pois “um
modo de prática fílmica não é redutível a uma oeuvre (os filmes de Capra), a
um gênero (o Western), ou a uma categoria econômica (filmes da RKO). Ele é
uma categoria geral completamente diferente fazendo um corte através das
carreiras, dos gêneros, dos estúdios, dos produtores, etc. Logo, o modo de
prática fílmica hollywoodiano constitui um sistema integral, incluindo pessoas,
grupos e ainda regras, filmes, maquinaria, documentos, instituições, métodos
de trabalho e conceitos teóricos”
49
.
Com esse projeto de estudo, os autores tomam uma posição nova diante
do objeto, tentando construir uma visão de conjuntura e abarcando um período
de tempo de média duração. O projeto em si é hercúleo e inexecutável por
apenas um pesquisador, tanto diante do tamanho do objeto delimitado, como
do gigantismo das fontes a serem trabalhadas. Ele expressa, então, mais uma
tomada de posição, do que uma tentativa de esgotamento do tema. Carrega
como proposta um olhar sobre o tipo de história a ser construído que se
pretende além do viés que se dedica à leitura e estudo do texto
cinematográfico.
O aparato conceitual deve ser diferente e a obra em tela tenta lidar com
estes vários aspectos não podendo se restringir a um método de interpretação
do texto fílmico. Daí a referência imediata ao estilo, figura conceitual muito
presente na história da arte, mas fugidia e de difícil utilização e definição.
Dessa maneira, afirma que uma “série de micro-histórias não necessariamente
48
Bordwell, Staiger & Thompson, op. cit., p. XIII.
49
Idem, p. XIII.
apresenta uma visão coerente ou sintética da história do cinema. Ao contrário,
uma história geral não é feita com séries de estudos de caso”
50
.
Voltamos, dessa maneira, à questão de como descobrir relações de
causalidade quando cobrimos períodos maiores de tempo e unimos a esta a
necessidade e a idéia de trabalhar com fontes diferenciadas sobre o estilo. Não
significa, no entanto, abrir mão da importância e da centralidade desta ligação
primordial entre o autor e sua obra, não existiria sentido em buscar uma história
geral do cinema que o tivesse entre seus objetivos falar da arte da
expressão cinematográfica. Não se trata, pois, de um esvaziamento dessa
problemática, mas, reiterando, de uma tentativa de realizar uma “avaliação
racional e significante que, por si só, transcenda a inevitavelmente
desconjuntada e infinita tarefa de enumerar fatos e relações de causalidade da
visão de curta duração”
51
.
Importante entender que não retiramos, de nenhuma forma, a
importância dos estudos de curta duração ou sobre recortes igualmente
extensos, mas, com outro aporte conceitual, apenas esposo a afirmação de
que “no caso do cinema, os estudos sobre estilo no cinema, com suas
inevitáveis necessidades de investigar detalhadamente e identificar
formalmente as obras, podem agir como um bloqueio ao desenvolvimento de
diferentes maneiras de escrever a história do cinema com uma ampliada visão
sociológica ou em perspectiva histórica”
52
.
Ainda assim, existem diferenças determinantes no estudo do
desenvolvimento das mudanças estilísticas no cinema americano. Este possui
50
Allen, op.cit., p. 86.
51
Idem.
52
Idem, p. 88.
características práticas comerciais vitoriosas que permitiram a extensão de
seus mercados e, por este fato, receitas monumentais impossíveis para outras
indústrias cinematográficas. Mais ainda, desse desenvolvimento peculiar
derivou uma organização industrial sólida que criava e mantinha não apenas
procedimentos próprios do ponto de vista técnico, como também pesquisava e
inovava no âmbito da maquinaria e dos materiais. O fato de a exportação da
produção americana não constituir somente a venda de uma arte” e incluir,
com todas as denotações, a compra casada de uma gama de procedimentos
técnicos, padrões de qualidade, normas organizacionais, práticas comerciais e
meios de financiamento não representa em si novidade.
Da mesma forma, o conceito de cinema clássico hollywoodiano não é
uma idéia nova no contexto dos estudos de cinema. O aspecto mais importante
do estudo de Bordwell e colegas é apreender obliquamente ao refinamento
normal dos estudos textuais este mesmo conceito como tendo raízes
organizacionais e gerenciais, tentando unificar várias das micro-histórias sobre
este pano de fundo. Dessa maneira, “o livro tenta estabelecer uma explicação
holística da estrutura dentro da qual este corpo heterogêneo de elementos
significativos que constroem o cinema (aqui como instituição) podem ser vistos
como tendo relações de sentido uns com os outros.” A obra tem como tese
central “que o cinema clássico hollywoodiano é uma norma estilística
constituída por volta de 1917 e sustentada, mesmo que com variações e
diferenças, até os anos 60” . Além disso, os autores destacam que o cinema de
Hollywood constitui “um grupo de estilos de mesma origem tal como o
classicismo e o barroco nas outras artes“ e é “caracterizado nos termos de um
grupo de norma estéticas hierarquicamente organizadas em termos de níveis
de generalidade:
Primeiro nível técnicas estilísticas (iluminação de três pontos, edição
de continuidade, foco soft ou profundo etc.);
Segundo nível sistemas estilísticos de espaço, tempo e narrativa
lógicos que definem os grupos de funções e relações para as técnicas do
primeiro nível;
Terceiro nível as relações de hierarquia e subordinação entre os
sistemas do segundo nível”
53
.
Aqui retomamos o conceito de modo de produção nas ciências sociais
para modificar o enfoque de modo de produção e explicitar nossa abordagem.
Em outras palavras, trata-se aqui de operar com o conceito de modo de
produção, tendo em vista a especificidade e, porque não dizer, a originalidade
do cinema nacional.
Em primeiro lugar, a indústria americana com sua estabilidade gerencial
e com a evolução da comercialização e das formas de financiamento possui
uma complexidade enorme, o que a diferencia de todas as demais indústrias.
Um dos principais fatores dessa complexidade é não ter pressões no seu
mercado interno para comercialização e distribuição de seus produtos. Além
disso, uma de suas práticas importantes é a absorção de autores e inovações
estilísticas promovendo uma adaptação de suas expressões cinematográficas
quando conseguem algum tipo de diferencial. Esta demonstração de
capacidade pode ser na rentabilidade ou no âmbito simbólico/expressivo
53
Idem, p. 90.
(recepção crítica ou inovação artística). Todos sabem que esse recrutamento
não se sem uma, muitas vezes importante, transformação no resultado final
na direção de um conveniente realinhamento com suas práticas. Assim, por
esse mecanismo o modo de produção hollywoodiano está sempre
harmonizando a seu esquema ideológico, prático e expressivo e absorvendo
novos capitais simbólicos de outras cinematografias e com essa atitude criando
um tipo de pressão na direção dos outros mercados quase que irresistível.
Os mercados nacionais concorrentes, por sua vez, sofrem essa pressão
nas mais diferentes formas. Os principais focos se colocariam no sistema de
distribuição e exibição e no sistema simbólico que pode ser retrabalhado na
direção das práticas hegemônicas. O mercado brasileiro sendo, como é,
dominado pelo cinema americano durante quase toda sua história, tem uma
reação própria ao calcamento e apenas entendendo esse evento
encontraremos a explicação de como respondeu ao modelo imposto com
estratégias de sobrevivência. Uma ocorrência-chave para a compreensão do
funcionamento do cinema no Brasil é a divisão entre sistema
distribuidor/exibidor e o sistema de produção. Enquanto a organização
industrial americana rapidamente caminhou para a verticalização, que se
garantia controle sobre esses mecanismos, também provocava, com suas
práticas comerciais, o inverso no Brasil. Aqui agia pelos mesmos motivos que
em seu mercado de origem, buscava uma aliança mercantil para garantir seus
pontos de venda. Como desdobramento dessa parceria um setor da exibição
se aplicou em produzir para ocupar um nicho de mercado, sem a concorrência
com o parceiro hegemônico e sem o qual pensava não poder sobreviver.
os empresários que atuavam diretamente na produção, sem laços
essenciais que garantissem a colocação de seus produtos, dividiram-se entre
uma atuação de guerrilha (que foi chamada de cavação durante um período)
ou tentaram alicerçar sua existência também com laços comerciais com o
cinema americano, pela via de suas distribuidoras. Tudo isso se apresenta
como um dos motivos que provocaram a profunda fraqueza do setor de
produção no Brasil e desdobrando-se no fato de não se conseguir estabilidade
empresarial ou em uma pequena possibilidade de crescimento. Esse dado é de
enorme importância para pensarmos o cinema brasileiro.
Em segundo lugar, e em decorrência também da anemia da produção, a
recepção dos filmes tem de ser mediada a partir de um olhar sobre um
público/crítica que assiste a um número muito maior de filmes estrangeiros que
brasileiros. Esse fato, que não ocorre no mercado americano, provoca um tipo
de recepção diferenciada. O público exposto e acostumado a um produto
realizado com o topo do aparato do ponto de vista de maquinaria e do preparo
técnico, com padrões rígidos de qualidade, terá dificuldade de lidar com uma
produção mais frágil. O desenvolvimento dos gêneros cria também uma
descontinuidade no processo de recepção, já que alguns deles o típicos da
cultura americana e não podem ser reproduzidos, sem modificação. Essa
modificação transforma o produto em um pastiche do original, o que em si o
desloca em seu acolhimento.
que se destacar ainda que a produção descontínua e em pequena
quantidade do cinema brasileiro vai ser empurrada para um nicho de seu
próprio mercado. A recepção crítica mediada por essa situação não pode se
comportar (nem que quisesse) como se o cinema americano não existisse.
Além do mais, o campo crítico por definição faz parte do campo geral da
distribuição/exibição, respondendo ao ritmo geral do mercado exibidor. Não
cabe aqui uma análise mais aprofundada dos motivos (que foram inúmeros) e
das demandas dos críticos em geral, porém, é inegável que no que toca a esse
aspecto, o cinema brasileiro também passa, diante do predomínio americano, a
ocupar um espaço simbólico reduzido, uma lacuna no mercado. Nela, vira
“saco de pancada” em suas carências e objeto de um desejo geral de
desenvolvimento em direção a uma maturidade impossível, porque não é
apenas expressiva, e sim organizacional e empresarial. Dessa maneira, o
caminho normal da sentença foi tentar seguir o formato da cinematografia
dominante, percebendo a direção da transformação como símile da americana.
Como sabemos, e pretendemos descrever em outra oportunidade, esses
desejos de replicação não são possíveis por muitas razões. Uma das principais
reside na existência de modos de produção diferenciados, não apenas no
sentido estilístico descrito em The Classical Hollywood Cinema, mas também
na direção mesmo do conceito geral o da coexistência de vários modos de
produção em uma mesma base econômica.
Neste sentido, o estudo calcado o somente na direção de um modo de
prática fílmica não nos permite um olhar sobre a conjuntura brasileira, pior que
isso, nos afasta de nosso objetivo que implica, como acontece no próprio
mercado produtor/exibidor de cinema na aceitação, de forma tácita, do “modo
de produção hollywoodiano” como um dado, um caminho a ser seguido se
queremos a maturidade da indústria. Isto acontece em razão da não inclusão
das questões de distribuição e exibição no trabalho de Bordwell e outros. Ao
contrário, observamos que, sem a inclusão dos mecanismos de circulação, a
obra não ganha existência e viabilidade em sua forma industrial. Pior que isso,
num mercado com acesso restrito aos rituais de legitimação do cinema
internacional, pela via da crítica e de produção de sentido, ela tem problemas
similares no que tange a essa validação internamente. Todos estes problemas
dificultam a avaliação do valor real das explicações históricas possíveis quando
se põe em jogo prática de filmar, circulação, financiamento e legislação.
O conceito de modo de produção acrescentado das questões da
distribuição e da exibição
Propomos aqui uma modificação no esquema de apropriação do
conceito de modo de produção, levando-o em direção à base econômica do
cinema e desdobrando-o em direção ao ponto de vista estilístico. Claro que
algumas análises se aproximam dessa visão, um exemplo é João Luis Vieira
em seu capítulo de História do Cinema Brasileiro. Ao analisar a transformação
estética e organizacional da Atlântida em finais dos anos 40 o autor destaca
que Carnaval no Fogo (1949), novo fôlego à comédia musical brasileira,
moldando definitivamente a forma na qual o gênero atingiria seu clímax e
atravessaria, soberano, toda a década de 50”
54
. Em continuidade a este
raciocínio, Vieira afirma a existência de dois temas principais o primeiro, a
questão da formula de sucesso, testada e repetida que garante bilheteria (a
criação de um gênero); o segundo, a entrada de Severiano Ribeiro na
produção, em decorrência da percepção da lucratividade da fórmula, da lei de
54
Vieira, João Luiz. “A chanchada e o cinema carioca (1930-1955)”. In: Ramos, Fernão P. (org.), História
do cinema brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987.p. 159.
obrigatoriedade de três filmes nacionais e das vantagens da verticalização não
competitiva com o parceiro americano.
Fica clara a importância de propor aqui um estudo que se esforce por
unificar esses fatos percebidos como cruciais naquele momento. Também
necessitamos de uma organização conceitual um pouco mais forte para tentar
uni-los em uma visão que também inclua as tentativas do cinema
independente. Para isso o esquema de três níveis de Bordwell e colegas deve
ser alterado. Em outras palavras, defendemos aqui a incorporação no escopo
da análise de um quarto nível. Neste sentido.
o primeiro nível trata da base econômica e tem como itens as
seguintes variáveis nível de organização empresarial, condições de
penetração no mercado exibidor e distribuidor, legislação reguladora e
investimento estatal, condições de inovação técnica e acesso aos meios de
produção;
o segundo nível trata do espaço simbólico de recepção e das formas
de legitimação dentro dele sistemas de divulgação, importância relativa da
produção no mercado nacional, posição geral da crítica e processos de
aculturação, importância e quantidade das trocas com outras expressões
artísticas e da indústria cultural, relações de recepção e sucesso de público;
o terceiro nível trata das questões estilísticas e seria semelhante ao
descrito em um dos níveis acima - técnicas estilísticas (iluminação de três
pontos, edição de continuidade, foco soft ou profundo etc.) - somado a regras
de uso e apropriação de fluxos vindos de outras cinematografias;
o quarto nível, em que se encontra a unificação do conjunto de fatores
descritos nos outros três que caracterizariam um modo de produção elaborado
e com formas próprias em todos os níveis. Em primeiro lugar sabemos que
vários dos elementos singulares são compartilhados por vários filmes e alguns
talvez por todos. Essa objeção o invalida o método em si, pois o mesmo
acontece na análise econômica pura e simples. Temos que ter em vista que o
objetivo de uma análise deste tipo é, em primeiro lugar, construir uma visão de
conjunto que nos retire da construção de interpretações a partir de motivos
que, na maior parte das vezes se apresentam como restritos ao espectro da
escolha pessoal ou ao posicionamento político. É certo que tal opção implica a
perda de um grau de acuidade sobre a história e as explicações voltadas para
a apreensão das formas da arte cinematográfica, porém não existe explicação
total e este método também não se propõe a ocupar um campo consolidado
e, em alguns casos, exaustivamente trabalhado. A intenção é, portanto, tentar
fazer novas perguntas e, sobretudo, agregar novos documentos e fontes à
história do cinema brasileiro.
CAPÍTULO 2
CINEMA POPULAR E CINEMA AUTORAL
A historiografia do cinema brasileiro trata - em vários momentos - dos
problemas de recepção e legitimação que este sofreu durante sua existência. O
tratamento desta questão é a associação entre baixa qualidade, recepção e
desinteresse geral pelos intelectuais. Cabe lembrar que, segundo Maria Rita
Galvão, essa referência aos intelectuais não é exatamente correta, pois indica
o grupo que poderíamos chamar de “grande” intelectualidade, excluindo muitas
pessoas também passíveis de serem consideradas intelectuais
55
. Logo a
seguir, Galvão afirma que o “empenho em ver os clássicos estrangeiros
ignorando a produção local é ainda uma forma de se apropriar da história do
cinema tal como foi composta nos países civilizados” de “um ponto de vista que
é o dela, intelectualidade européia. Neste sentido e de um modo muito claro, o
cinema brasileiro seria fator de perturbação”
56
.
O processo de formação dessa visão (que inclui até afirmações de
inexistência do cinema brasileiro) atravessa de forma crucial todo o
pensamento sobre cinema e faz com que o lugar destinado ao cinema
brasileiro seja de uma legitimidade reduzida. A afirmação que o cinema
brasileiro construiu uma história e possui legitimidade própria infelizmente não
elide a questão de, sempre que nos referimos a uma iniciativa no campo
55
Galvão, Maria Rita. Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/
Embrafilme, 1981, p. 26.
56
Idem, p. 29.
cinematográfico no Brasil, ela ser enquadrada como uma novidade. Assim,
desta maneira, estaríamos continuamente inaugurando uma nova forma de
fazer cinema. Não é à toa que o depoimento de Anselmo Duarte inicie com a
seguinte afirmação: “A Vera Cruz foi uma espécie de Cinema novo da sua
época, no sentido de que foi uma nova forma de fazer cinema no Brasil, um
novo cinema diferente do que se fazia até então”
57
.
Importa muito saber se o cinema brasileiro sempre se renovou e
implantou ‘novas formas de fazer cinema’ a cada iniciativa estética ou
empresarial. Se cada agente que procede à implantação, do que normalmente
é chamado de nova forma ou novo modelo, realmente age como um “semi-
deus que desceu das alturas para criar o cinema nacional”
58
. Estas referências
não trazem nenhuma crítica às posições ou ao processo de memória dos
depoimentos em si, mas uma busca sobre o cuidado devido a seu uso na
construção do discurso histórico. Na exploração sobre as relações do TBC
(Teatro Brasileiro de Comédia) e a Vera Cruz, Galvão encontra processo
similar para falar do fazer teatral anterior. Cita o editorial da revista Teatro
Brasileiro de 1955, onde encontrou a assertiva que “há 20 anos atrás pode-se
afirmar com absoluta certeza, o havia teatro no Brasil”
59
, para logo adiante
citar Paulo Emílio dizendo que “naquela época todo mundo ia ao teatro (...) e
não achava as coisas tão ruins assim”
60
.
Essas peças da memória ou, como prefere Galvão, “falta de memória”,
realmente dão o que pensar. Duas ilações podem ser ainda retiradas do texto
de Galvão; a primeira é a percepção da expressão igual ao estrangeiro” como
57
Idem, p. 128.
58
Idem, p. 116.
59
Idem, p. 56.
60
Idem, p. 57.
chave dos textos da época sobre teatro; a segunda a idéia de Jean-Claude
Bernardet sobre o horror da burguesia em ver refletida na tela a imagem de
nossa realidade. Esse horror à própria imagem se instauraria como uma reação
ao contato consigo mesmo, com essa visão da realidade brasileira que o
cinema brasileiro pode proporcionar. Como em toda arte o conteúdo que
aparece nos filmes acaba funcionando como um espelho indesejável onde se
pode ver o bom e o ruim da sociedade.
A questão que se coloca rara na historiografia do cinema brasileiro é
se existe uma oposição entre cinema popular e cinema de autor. Para nos
encaminharmos para um entendimento, tentaremos conceituar o que
chamaremos de cultura de resistência. De início, propomos colocar esse
conceito num campo existente no entrecruzamento de mito do primitivo com o
conceito de aculturação.
O mito do primitivo é semelhante ao acontecido aos etnólogos quando
estudavam “prioritariamente as culturas mais ‘arcaicas’, pois, eles partiam do
postulado de que estas culturas forneciam para a análise as formas
elementares da vida social e cultural e que se tornariam necessariamente
complexas à medida que a sociedade se desenvolvesse”
61
. Aqui encontramos
um espaço definido pela própria idéia que a sociedade brasileira é primitiva e
imersa no atraso. Imagem que implica o uso geral de um sentido que se
desenvolve em toda extensão da compreensão da cultura. Esse uso é
reatualizado constantemente, construindo sempre um novo ponto de partida a
cada vez que se olha para o realizado, que se apresenta claudicante e
precário na razão mesmo de ser contaminado, como não poderia deixar de ser,
61
Cuche, Denys. A noção de cultura nas Ciências Sociais. Bauru: EDUSC, 1999, p. 110.
pela imersão cultural em que se encontra. Assim podemos nos aproximar da
idéia de ciclos e descontinuidades na história do cinema. Aqui como em outros
campos temos sempre que superar nossa posição primitiva e precária.
Estamos sempre construindo do ponto zero uma expressão, agora sim,
compatível com a cultura européia.
Aculturação tem como primeira definição, a “transformação dos modos
de vida e de pensamento dos imigrantes ao contato com a sociedade
americana”
62
. Cuche nos informa que o ‘a’ de aculturação vem do ad latino, que
significa um movimento de aproximação e somente a partir dos anos trinta
poder-se-á utilizar o conceito de maneira mais rigorosa. Falar então de
aculturação significa definir um tipo, tratando de como ela é produzida e quais
fatores intervieram. O conceito, firmado em 1936, por um grupo de
antropólogos americanos, é o de que a aculturação é o conjunto de
fenômenos que resultam de um contato contínuo e direto entre grupos de
indivíduos e culturas diferentes e que provocam mudanças nos modelos
(patterns) culturais iniciais de um ou dos dois grupos”
63
. O impacto do estudo
sobre esse tema tem larga história dentro da antropologia e dos trabalhos
sobre cultura tendo modificado os enfoques de estudo, renovando
“profundamente a concepção que os pesquisadores têm de cultura” e levando
a entendê-la com uma definição dinâmica, um processo que inverte a
perspectiva para se partir da “aculturação para compreender a cultura”
64
.
No caso do cinema, o conceito de cultura de referência que propomos,
seria o ponto de injunção desses dois fluxos de idéias sobre a cultura brasileira
62
Como criado em 1880 por J. W. Powell. Idem, p. 114.
63
Idem, p. 115.
64
Ibidem, p. 136.
e sua expressão cinematográfica. O comportamento da maioria dos olhares
sobre o cinema estaria comprometido com a referência às culturas e modelos
de produção dominantes existentes em várias cinematografias que conformam
ou do ponto de vista estético ou na ocupação do mercado. Mais ainda, o
suporte técnico e o grau de importância do cinema como instituição possuem
grande variabilidade de uma cultura para outra, fazendo com que os aspectos
de intervenção estatal tenham por base a posição relativa da indústria
cinematográfica em cada país e, as demandas possuam também capacidade
de implantação e importância muito diferentes.
Assim escolheremos dois campos conceituais que no transcurso do
tempo foram se constituindo em marcos para a compreensão e a divisão da
produção cinematográfica tanto em seus aspectos estéticos como econômicos;
o cinema comercial e o cinema de autor. Não estamos, com este primeiro
arranjo, indicando uma simplificação na apreensão das idéias complexas que
se enfeixam nesses campos. Estamos estabelecendo uma classificação onde
estas noções estão no topo e por esta razão pagam um preço em relação a
suas definições mais comuns nos estudos cinematográficos. Como sabemos,
uma categoria mais geral de uma classificação será, por necessidade
intrínseca, menos detalhada que outra que se encontre mais próxima dos
objetos individuais deste mesmo sistema classificatório.
Em uma associação também generalista podemos dizer que
simbolicamente, como representantes de cada um desses campos, duas
cinematografias se apresentam; o cinema americano, com seu modo de
produção específico, está associado ao cinema comercial e, o cinema europeu,
principalmente o francês - talvez em razão da política de autores ter sido
formulada pelos Cahiers du Cinéma - ao cinema autoral. Nunca é demais
acrescentar a essa formulação que não queremos afirmar serem estas
cinematografias objetivamente desta forma, isto é, não existam no cinema
americano filmes que podem ser chamados filmes de autor ou não
encontremos filmes comerciais no cinema francês. Para não deixar dúvidas
esta é uma associação subjetiva que nada tem a ver com a não existência de
filmes de autor na cinematografia americana ou de filmes comerciais na
cinematografia francesa. Claro, eles existem e esse fato só nos esclarece a
capacidade de convivência de mais de um modo de produção em um mesmo
mercado.
Se entendermos a função simbólica da delimitação desses campos,
poderemos perceber que nós, como um pêndulo cinematografia em busca de
seu lugar na história , buscamos sempre ocupar os dois lugares, com nossos
temas, jeito de ser e conteúdos específicos. Não
defendemos, portanto, um uso
automático, uma associação mecânica dos dois campos a essas
cinematografias, e sim a construção de um jogo simbólico e classificatório,
onde a circunscrição das forças pode ajudar a encontrar interpretações
históricas consistentes com as fontes trabalhadas.
Aqui temos que fazer uma parada estratégica, pois o conceito de autor é
um elemento escorregadio e a aproximação pela via da política dos autores,
para apreender os vários significados que o espaço da autoria encampa, pode
ser enganosa. A “política dos autores demorou a penetrar no âmbito
brasileiro”
65
, o que torna necessário explorar com cuidado o significado de
cinema autoral no Brasil durante os anos 50. Bernardet, ao citar o catálogo
65
Bernardet, Jean-Claude. O autor no cinema. São Paulo: Edusp-Brasiliense, p. 70.
História do Cinema Francês, nota que dos “vinte capítulos dezessete são
consagrados a diretores, o que é significativo: a política não se implantou como
problemática, mas ao diretor se atribui papel de destaque”
66
. Acreditamos que
temos mais significações a retirar do ‘papel do diretor’ no sentido de entender o
peso da idéia de cinema autoral. Como vimos, a apreensão simbólica se fazia
pela mescla da admiração ao modo de produção americano e pela expertise
artístico-teórica européia. Apenas para citar dois exemplos, entre tantos outros,
temos Carlos Ortiz (“marcadamente nacionalista”) utilizando para explicar o
realismo como forma de arte um “vocabulário ligado aos teóricos idealistas
franceses dos anos 20”
67
. Em uma outra passagem do mesmo texto, Bernardet
afirma que, no entender do mesmo Ortiz, “o conteúdo é brasileiro, a forma do
conteúdo americana
68
.
Na recepção americana do pensamento francês encontra-se, por
exemplo, um Ian Cameron que aceita “o cinema de diretores, sem ir, no
entanto, a tais extremos como la politique des auteurs, que torna difícil pensar
que um mau diretor faça um bom filme e quase impossível que um bom diretor
faça um filme ruim”
69
. Fica claro o início da criação da dicotomia que vai marcar
estes espaços simbólicos que nos servem como classificação. A influência
sobre a percepção dos críticos, cineastas e outros participantes do cinema
brasileiro, de um cinema de arte e de um cinema de mercado pode assim ser
afirmada. Tendo isso em vista podemos inferir uma transposição, pelo menos
no campo crítico, da repartição para o cinema popular ou de espetáculo, com
66
Idem, p. 70.
67
Galvão, Maria Rita & Bernardet, Jean-Claude. Cinema: repercussões em caixa de eco ideológicas (as
idéias de nacional” e “popular” no pensamento cinematográfico brasileiro). o Paulo,
Brasiliense/Embrafilme, 1983, p. 79.
68
Idem, p. 78.
69
Idem, p. 26.
suas ligações com o melodrama e a comédia popular e o cinema autoral, como
uma expressão da subjetividade e do ponto de vista de um criador próximo ao
sentido que existe na literatura.
Poderíamos aqui objetar que é exatamente no cinema americano que os
teóricos franceses o buscar sua principal fonte de autores. Novamente o que
vemos é a convivência de modos de produção em um mesmo espaço de
produção. Isso não implica uma negação da associação usada como forma de
delimitação simbólica, como já afirmado. Mais ainda, reforça o papel das
origens dos aportes culturais hegemônicos do cinema hollywoodiano e a
necessidade de tentar entender como e se realmente podemos falar de uma
cultura de referência que funciona de forma modelar em relação ao cinema
brasileiro. Neste caso poderíamos explorar uma posição intelectual onde o
preconceito em relação a determinados aspectos de sua própria expressão
cultural são subsumidos no jogo da cultura de referência e funcionam, como
todo preconceito, com certo automatismo. Assim o espaço de autoria se
encontra na intercessão entre o conhecimento produzido pela politique des
auteurs e a necessidade de valorizar (espelho da própria politique des auteurs
nas suas relações com Hollywood) o modo de produção americano viabilizador
do cinema americano clássico narrativo.
A definição de cinema popular será mediada por estas questões e estará
ligada ao campo do modo de produção hollywoodiano, determinando dessa
maneira seu espaço de consumo. Devemos entender que o conceito de
popular está presente na expressão de um conteúdo popular bem como no
efetivo consumo do filme pelo grande público. Ainda assim, no Brasil temos
uma aproximação entre o conceito de popular e questão do conteúdo brasileiro.
Ela está expressa na afirmação colhida por Galvão e Bernardet em uma mesa-
redonda de 1951, onde se entende que popular deve ser “um cinema que reflita
a realidade e o caráter de nosso povo”. A mesma idéia pode ser encontrada
nas características atribuídas ao filme O Cangaceiro de Lima Barreto, no qual
“pela primeira vez, no cinema, os personagens, não somente têm uma feição,
digamos física, rigorosamente brasileira, como sua conduta, suas reações,
suas tendências emocionais aproximam-se ao máximo de nosso povo”
70
. No
entanto, o tipo de cinema que tenta de alguma forma, fazer essa ponte é
encarado como incapaz de “educar o povo contra o mau gosto a que foi levado
pelo cinema americano”
71
. Retomaremos a esta questão no capítulo três.
Nesta recepção descrita acima, onde Galvão e Bernardet se utilizam de
um texto de Noé Gertel, encontramos uma fronteira fechada e intransponível. O
cinema popular (que buscamos conceituar aqui como de grande aceitação de
bilheteria e com conteúdo brasileiro, questão que só poderemos explicitar mais
à frente quando do tratamento do surgimento de outros modos de produção)
termina por ter a característica incompetência técnica e falhar do ponto de vista
de possuir o conteúdo brasileiro. Presta-se, pois, a servir de veículo a um tipo
de apropriação indébita da cultura brasileira, ocupando dessa forma o lugar de
“fator de perturbação” que habilmente lhe atribuiu Paulo Emilio em sua
observação
72
.
Essa questão aparece, em outro viés, na crença em uma oposição entre
trabalho em equipe e trabalho autoral que acaba por não explicar de maneira
satisfatória o tipo de diferença que nos propomos a tratar e antes explorada no
70
Idem, p. 64-65.
71
Ibidem, p. 71.
72
Gomes, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1996.
artigo clássico “Artesões e autores” de Paulo Emílio Salles Gomes onde,
ocupando-se de dois filmes (A morte comanda o cangaço e Bahia de Todos os
santos) e, por conseqüência de dois cineastas (Carlos Coimbra e Trigueirinho
Neto) começa por avaliar as origens sócio-econômicas dos cineastas,
condições de prestígio intelectual e crítico para refletir sobre como situações de
produção determinam essas posições. Estas últimas, as condições de
produção, serão determinantes no pensamento posterior sobre a questão e
expressas de forma atualíssima na dicotomia existente entre ser chamado
“para fazer um filme ideado pelos produtores”
73
ou de poder “dispor das
condições ideais para um cineasta (...) pois imaginou, escreveu, dialogou e
dirigiu”
74
.
Retomado por Xavier na sua introdução a Revisão crítica do cinema
brasileiro,
esclarece que, no pensamento de Glauber, existe a defesa de “uma
relação intrínseca entre autoria e cinema independente”
75
articulada à
necessidade da circunscrição do trabalho do produtor a dar “espaço para
diretores com ambição radical de auto-expressão”
76
. Assim, terminaríamos com
Glauber, apropriando-se dos termos de Paulo Emílio sem nuances para montar
uma “equação que alia autor, cinema independente e revolução opostos a
artesão, cinema industrial e conformismo”
77
Toda essa questão se instaura no desenvolvimento dos fatos dos anos
50 que operaram o mais das vezes dentro de condições onde “a ambição de
73
Gomes, Paulo Emílio Salles. Crítica de cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro:
Embrafilme/Paz e Terra, 1981, p. 335.
74
Idem, p. 338.
75
Xavier, Ismail,...”. In: Rocha, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac e
Naify, 2003, p. 18.
76
Idem. p. 18
77
Ibidem, pp. 18/19
autoria nem sempre resulta positiva”
78
. Não podemos falar de um cinema que
opere exclusivamente em um espaço autoral no período dos anos 50. Será
mais apropriado falar em manifestações autorais que surgem de uma busca do
conteúdo brasileiro e de expressões próprias que possuam originalidade.
Todos esses filmes sofrerão com a falta de organização no mercado
distribuidor/exibidor e isso dificultará enormemente sua sobrevivência.
Como a característica do cinema de autor europeu é a de possuir um
público pequeno distribuído internacionalmente, é natural esperar que apenas
com esquemas de distribuição complexos e de grande penetração se possa
manter um cinema autoral viável economicamente. Na falta dessa
possibilidade, derivamos para soluções de sustentação estatal que tem
reflexos, não só nas propostas de filmes, mas também no percurso de pensar e
entender essas idéias com viáveis. Assim, de alguma maneira, podemos ver a
influência européia, onde a existência dos cinemas nacionais se deve em
grande parte à força da intervenção estatal para a sustentação dos cinemas
nacionais no pós-guerra e ao bito de consumo adquirido no período pré-
guerra que facilitou, em alguma medida, a distribuição do cinema europeu.
Nosso mercado nacional não tinha nem uma coisa nem outra, pior que
isso, como descrito, ocupava uma posição de inferioridade simbólica que não
permitirá nem essa construção. Daí podermos demonstrar linhas de
causalidade entre o cinema de maior aceitação pelo público e seu “opositor” de
maior “relevância” intelectual e artística ou, em outra definição, a chanchada
oposta ao cinema de conteúdo brasileiro que se afasta “do melodrama,
78
Idem, p. 18.
conseguindo levar adiante o que outros esboçaram sem desenvolver”
79
. Essa
fragmentação clara no pensamento do cinema brasileiro, que expressamos
aqui apenas por alguns dos autores e fonte determinante para a criação de
espaços de experiência e atuação bastante diferentes que redundariam em
modos de produção também essencialmente diferentes e auto-contidos sob
vários ângulos.
Conteúdo brasileiro e forma cinematográfica
A construção da idéia de ‘conteúdo brasileirotem uma gestação longa e
podemos encontrar sua gênese no próprio aparecimento do cinema no país.
No entanto, não iremos tão longe, uma boa entrada são os anos trinta, quando
o estado brasileiro desperta para o uso do cinema como forma de educação e
propaganda. Ao longo deste período, o cinema brasileiro torna-se “um campo
fértil para proliferação do desenvolvimentismo, que, como ressalta Miriam
Limoeira Cardoso, definia o nacionalismo pelo desenvolvimento”, o que
implicava numa caracterização particular de nacionalismo
80
.
Várias ações o efetivadas neste período e em finais dos anos trinta,
mais exatamente em 1937 foi fundado o INCE Instituto Nacional de Cinema
Educativo - por Roquete Pinto que se destinava “a promover e orientar a
utilização da cinematografia, especialmente como processo auxiliar de ensino,
e ainda como meio de educação popular”
81
. Para termos uma idéia da
79
Idem, p 14.
80
Ramos, José Mario Ortiz. Cinema, Estado e lutas culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p. 21.
81
Conforme Lei 378, citada in Simis, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo: Annablume, 1996, p.
34.
importância do INCE na formação do cinema brasileiro, de num documento de
1942, isto é, cinco anos depois da fundação, resulta que o instituto havia
realizado projeções em mil escolas e institutos de cultura, organizado uma
filmoteca e elaborado filmes documentais divididos em 16 mm silenciosos e
sonoros, destinados a circular em escolas, e filmes populares sonoros, de 35
mm, encaminhados para o circuito de casas de exibição pública de todo país
82
.
Os mais de duzentos filmes editados até 1941 foram distribuídos não apenas
em escolas, mas também em centros operários, agremiações esportivas e
sociedades culturais
83
.
A câmera utilizada em Rio, 40 graus tem sua origem no INCE e na boa
vontade de Humberto Mauro em emprestá-la para esta utilização (com o
interesse também de ver se sua recuperação era possível, como dissemos).
A afirmação de Geraldo Santos Pereira, colhida por Simis, que o INCE “serviu
como escola para diretores e documentaristas, roteiristas, montadores,
técnicos de som e trucadores de filmes de curta-metragem, além de promover
a integração do cinema educacional do país”, mas que o teve “uma ão
decisiva na formulação de medidas de estímulo industrial ao cinema brasileiro
e, sua criação de certa forma, a retardou, por dar a falsa impressão de estar o
poder público cuidando de seu fomento, quando na verdade, atendia
unicamente ao setor educativo e cultural”
84
, nos desvenda uma parte do
problema.
82
Franco, Marília da Silva. Escola audiovisual. Tese de Doutoramento. ECA, Universidade de São Paulo,
1987, p. 36.
83
Simis, Op. cit., p. 35.
84
Pereira, Geraldo Santos. Plano geral do cinema brasileiro, história, cultura, economia e legislação. Rio
de Janeiro: Borsoi, 1973, p. 293, citado in Idem, p. 36.
Todos conhecem a continuidade, pela recepção crítica, da idéia de que o
cinema brasileiro necessita de aprimoramentos no financiamento e na
integração para sua consolidação definitiva. Neste sentido, “aspirava-se, como
no plano político mais geral, à passagem de um cinema ‘inferiorizado’,
‘subdesenvolvido’ para uma cinematografia forte, nos moldes dos ‘países
ricos’”
85
. Estas questões respondiam às necessidades, vistas pela maioria dos
textos, de construção de um parque técnico e de maquinaria que propiciasse
um modelo de trabalho estável e contínuo; de um método firme de
financiamento e a expressão do ‘conteúdo brasileiro’ que mostrasse nossa
cultura e nossa gente. Todos estes problemas podiam e deviam ser resolvidos,
no conjunto da visão que estamos descrevendo, pela mudança de
comportamentos dos empresários (que eram vistos em sua maior parte como
‘cavadores’, pessoas sem preparo) e pela entrada de outros atores no campo
empresarial. Pela ordem, seriam estes o estado, os verdadeiros financistas
(estes contribuiriam com gerência profissional e poderio econômico) e a
formação de platéias (que deixariam de apreciar um cinema popular
considerado chulo). Com essas transformações, o Brasil poderia competir de
igual para igual com qualquer produto e ganharia seu mercado. O ‘conteúdo
brasileiro’ seria uma decorrência da platéia preparada e exigente que, em
primeiro lugar, teria maior interesse em ver suas próprias coisas nas telas,
além de não aceitar o mau cinema, seja estrangeiro ou brasileiro.
Infelizmente não foi exatamente assim que as coisas ocorreram. A
própria visão do cinema como arma de propaganda é um deslocamento de sua
função já cabalmente visível na época. Também a intenção de “levar a
85
Idem, p. 21.
civilização para o interior do Brasil”
86
funcionou às avessas, pois nos dizeres de
Paulo Emílio Salles Gomes “a missão documental” trouxe “para o litoral a visão
do atraso insuportável do interior”
87
. Nos países com cinematografias fortes, o
cinema tem como característica principal, desde seus inícios, a diversão e o
espetáculo (herdado de várias formas das tradições das feiras populares). Sua
penetração deve-se principalmente a esses aspectos para somente depois de
seu sucesso como distração passar a ser visto como um veículo poderoso para
a propaganda e educação. O interesse do estado brasileiro do
desenvolvimento no âmbito do cinema educativo reforça a existência de um
tipo de modo de produção do cinema nacional com penetração em um nicho do
mercado bem demarcado.
A análise do pensamento autoritário no Brasil, de Bolivar Lamounier
(utilizada também por Simis), mostra o significado do termo organização para
autores como Oliveira Viana, Alberto Torres ou Gilberto Amado: esta tem uma
forte conotação de “dar forma ao que não a possui” e “de imprimir forma, de
produzir estrutura e diferenciação funcional numa sociedade percebida como
amorfa, amebóide”
88
. O arcabouço ideológico que atravessa a sociedade
brasileira, nesse viés, a apreendia como um espaço a ser civilizado e não
razão para excluirmos o cinema de dentro da sociedade como um todo. Daí,
toda a discussão sobre conteúdo dos filmes de propaganda girar em torno do
que apareceria, se um Brasil primordialmente agrário (uma configuração que,
por sinal, era demográfica e populacionalmente majoritária) ou a urbanidade e
a modernidade. Neste caso, a intenção era convencer que “a nossa civilização,
86
Behring, Mário, citado in Idem, p. 41.
87
Gomes, Paulo Emilio Salles. Humberto Mauro, Cataguazes, Cinearte. São Paulo: Perspectiva, 1974, p.
310.
88
Lamounier, Bolívar, citado in Simis, Op. cit., p. 43.
afinal de contas, é igualzinha à deles
89
. O entrecruzamento destas duas idéias
sobre a sociedade brasileira tem largo alcance e pode nos desvendar muitos
significados quando entendemos o cinema brasileiro via modo de produção.
O olhar que situa a sociedade brasileira como algo sem forma, com sua
parcela majoritária imersa em um atraso secular, tende também a
desconsiderar os reflexos profundos da existência cultural, diminuindo o valor
do específico para ampliar o espaço da similaridade com outras culturas. Desta
maneira, temos como marco transversal a questão do conteúdo que deve
expressar e redirecionar valores e costumes a serem reconhecidos como
‘autenticamente’ brasileiros. A implicação geral é de contínua busca de
legitimidade, no proveito das semelhanças com a cultura de referência para
alguns e, para outros, na reafirmação do “manancial para a realização de
autênticas obras de arte”
90
.
Dessa forma, temos o quadro que discute a posição do cinema nacional
mostra que a idéia de conteúdo brasileiro se apresenta em três campos; um
ideológico, onde se busca uma visão baseado na idéia de refletir “a realidade e
o caráter de nosso povo”
91
; um segundo, comercial, onde se situa o cinema
popular e o terceiro, estilístico onde encontramos a produção do documentário
com enfoque na propaganda ou no jornalismo que “poderá apresentar ao povo
brasileiro, com maior simplicidade, idéias gerais indispensáveis, iniciar sua
educação cívica”
92
. Este último será apropriado pelo Estado como único campo
a ter investimentos diretos. Importante ressaltar a diferença entre a tentativa de
refletir “a realidade e o caráter de nosso povo” e fazer filmes comerciais. O
89
Gomes, Humberto Mauro, Cataguazes, Cinearte, cit, p. 310-311, 327.
90
Galvão & Bernardet, op. cit., p. 64.
91
Idem, p. 64.
92
Ibidem, p. 72.
cinema dito comercial refletia ou o cinema americano ou algumas formas do
cinema europeu, Buscava mesmo um tipo de identificação estética para ocupar
uma franja do mercado permitida e negociada. Já o primeiro tinha uma
intenção principalmente civilizatória e subsidiariamente educacional, pois no
processo de divulgar o conteúdo aprofundava o nacionalismo. Deixo
propositalmente de fora o cinema de vanguarda diante da percepção que suas
motivações necessitam de uma aproximação própria que não cabe no escopo
deste texto.
O problema não se encontra na existência em si dos três campos (dois
dos quais desenvolvidos e que até poderiam ser divididos por outro enfoque
diferente deste trabalho) ou espaços e atuação, e sim na falta de interação e na
segmentação que toda essa divisão causa junto com a desarticulação geral da
tal idéia de conteúdo brasileiro. Encarar-se a definição de cinema brasileiro
usando principalmente o conteúdo levou inclusive, como mostrou a
historiografia, à supervalorização do argumento. Seria o argumento, nessa
visão, a pedra de toque, pois carregaria o enredo, a história que seria
apreendida, em última análise pelo público, assim os argumentos deviam ser
“escritos por brasileiros”
93
. Mesmo o fato de a maioria dos filmes possuírem
argumentos escritos por brasileiros não facilitou a tarefa de encontrar o filme
autenticamente nacional. Provou-se também ser bastante difícil unir o conteúdo
com bilheteria e sucesso de público. Toda essa tribulação tem uma relação
com a problemática de ser minoritário no mercado nacional de exibição, de
possuir um quantitativo de produção pequeno e como conseqüência ter
93
Ibidem, p. 77.
pequena diversidade de produtos, sejam comerciais, educativos, jornalísticos,
autorais ou de propaganda.
Acreditamos assim que temos um mercado onde a convivência de
modos de produção cinematográfica é a base para a existência de qualquer
dos agentes. Neste sentido, temos que entender o modo de produção
dominante, no caso Hollywood, como hegemônico e todos os outros existirão
de forma consentida ou negociada. O INCE caracteriza um modo de produção
diferenciado que possui financiamento, distribuição e organização
burocrática própria. Podemos até encontrar procedimentos técnicos próprios a
partir de depoimentos de funcionários do órgão. Cabe a investigação se a
Atlântida e a Vera Cruz também podem ser caracterizadas como um modo de
produção.
Também o documentário jornalístico pode caracterizar um modo de
produção específico. Essa afirmação se baseia no fato de que este gozava, em
vários aspectos importantes, de tratamento diferenciado em relação aos outros
dois campos delimitados. Um dos principais fatores desse status diferenciado
se estabelece pela obrigatoriedade da exibição. Apesar das reivindicações de
obrigatoriedade desde a década de 20 do século passado, apenas em 1932
temos um decreto que trata do assunto. Simis nota que, embora o decreto
“faça referência explícita apenas à obrigatoriedade de exibição dos filmes
educativos”
94
, faz menção também a outros gêneros cinematográficos,
deixando, porém, em aberto a obrigatoriedade da exibição para aqueles. É
interessante seguir o processo dos anos trinta em razão de que seu
94
Simis, op.cit., p. 108.
desenvolvimento acabará por consolidar uma diferenciação definitiva para as
formas de distribuição e importância como sustentação do filme documentário.
O “decreto ainda menciona a realização de um Convênio
Cinematográfico Educativo, que, entre outros fins, objetivava ‘a instituição
permanente de um cine jornal com versões tanto sonoras como silenciosas
filmado em todo Brasil e com motivos brasileiros, e de reportagens
95
em
número suficiente, para a inclusão quinzenal de cada número, na programação
dos exibidores”. Esta era uma tentativa de mediar diversas reivindicações dos
setores envolvidos, pois, além da obrigatoriedade de exibição para os “cine
jornais” previa a instituição de espetáculos infantis de finalidade educativa”
96
.
Como aparece em um relatório da ACPB (Associação Cinematográfica dos
Produtores Brasileiros), o Convênio não aconteceu e “degenerou em
congresso, em que tudo se discutiu e nada se convencionou”
97
. Desta forma, a
ACPB dirigiu-se ao Presidente da República na forma de um Memorial, no qual
responsabilizava a “pressão dos importadores estrangeiros sobre os
exibidores”. O texto é sugestivo, afirmando que “os programas
cinematográficos são organizados pelas empresas estrangeiras, aqui
estabelecidas, como agentes de suas matrizes, que os impõem aos exibidores,
completos, sem lugar para mais nada, com ‘Jornal’, ‘Desenho Animado’,
‘Natural’, ‘Drama’, ou ‘Comédia’. O sistema de negócio é o da sociedade na
bilheteria. O exibidor entra com o Cinema, o Importador com o programa, e
dividem o produto das entradas”
98
. Mais ainda, “segundo os produtores
nacionais, os importadores não adquirem nenhum filme nacional para suas
95
Idem, p. 108-109.
96
Ibidem, p. 109.
97
Ibidem, p. 109.
98
Ibidem, p. 109, retirado do mesmo relatório. Simis repara, em nota, que o Sindicato dos Exibidores
existia e era presidido por Luís Severiano Ribeiro.
linhas de programação para que não se desenvolva nenhuma produção
nacional que poderia ‘ameaçar-lhes o monopólio’. Assim o produtor nacional é
atualmente quase um dilletanti...”
99
.
A reação de vitória que se segue à consecução da obrigatoriedade e
constituição da DFB (Distribuidora de Filmes Brasileiros) levaria a pensar e,
certamente os contemporâneos assim o faziam, que se dava o primeiro passo
para o amadurecimento da indústria cinematográfica no Brasil. A produção
cresceu vertiginosamente, bem como o número de empresas. Segundo o
presidente da Associação, temos a informação de que “vêem-se 600 filmes
complementos com 1.800 cópias; seis filmes de grande metragem, com 36
cópias – somando tudo, cerca de 300.00 metros de filmes a percorrer os
Brasis” e “atrás da tela, cerca de 40 empresas produtoras. Cinco estúdios. Dez
instalações completas para a gravação de som. Vinte laboratórios para
revelação e copiagem. Mais de cem máquinas de tomadas de vistas e copioso
material acessório para todas as necessidades da indústria”
100
. As questões da
fiscalização e da resolução dos problemas de relacionamento como as
exibições ficavam para depois, pois a “situação dos exibidores, sempre e cada
vez mais onerados, e para os quais não chegaram os favores do governo”
101
,
era proverbialmente ruim.
Todo este movimento em torno da organização do mercado tem um grau
de miopia profunda em seu diagnóstico do problema. O incentivo para a
produção do filme educativo é rapidamente esquecido e o INCE fica isolado
nessa tarefa. É então criado o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda)
99
Ibidem, p. 111.
100
Ibidem, p. 113.
101
Ibidem, p. 114.
que na sua inserção no mercado concorre com os produtores privados
oferecendo seu filme gratuitamente. O depoimento de Primo Carbonari (colhido
também no livro de Simis, mas considerado por ela exagerado) coloca o
quadro do ponto de vista dos produtores que ganharam no processo inicial de
estabelecimento da obrigatoriedade “veio também o DIP (...) que ele criou.
Ficou o DIP de um lado e nós do outro. Foi também criada nessa época uma
receita de cinco poltronas por sessão. O governo dava as fitas de graça e nós
concorríamos com o governo, cobrando. Veja você a dificuldade de colocar o
cine jornal concorrendo com o governo”
102
. O governo possuía ainda outros
órgãos oficiais produzindo, como a SAI do Ministério da Agricultura.
A idéia de que as empresas produtoras estavam capitalizadas e a
concorrência do DIP seria menos sentida, em razão do aumento da
complexidade da legislação e do início da obrigatoriedade também para o
longa-metragem não se mostra compatível com as reações do braço comercial
do distribuidor americano. Não no Brasil, mas em vários outros mercados, a
atuação dos distribuidores americanos foi aprofundar alianças com setores da
exibição nacional para utilizar-se também dos incentivos e das
obrigatoriedades que as legislações protecionistas vão criando. A indústria
americana estava acostumada ao enfrentamento de barreiras no comércio
cinematográfico. No ano de 1947, ela tinha, no Brasil, os seguintes empecilhos:
taxas especiais, tarifas de importação, quotas, situação de discriminação
competitiva e outras condições peculiares de mercado (onde se incluí a
obrigatoriedade de exibição do complemento). Essa mesma situação de
mercado era compartilhada pela Tchecoslováquia, a Nova Zelândia, a Noruega
102
Ibidem, p. 117.
e a Austrália. Se utilizarmos este método de comparar com apenas três das
restrições, teremos todos os países da tabela pesquisada.
103
Então se todos os
países tinham pelos menos três dificultares para a importação de filmes
americanos isso não chegava a ser uma grande restrição.
Assim, o observado é o enfraquecimento das produtoras que se
desenvolveram com a obrigatoriedade da exibição do complemento jornalístico
culminando com o fechamento dos estúdios da Cinédia em 1951. Simis afirma
que o desenvolvimento da Cinédia foi moldado pela produção de chanchadas e
carnavalescos, mostrando que ao “correr por fora” da intervenção estatal
existia um cinema popular viável na bilheteria, mas considerado o avesso do
que seria o cinema industrial desejado. Voltamos aqui à questão do conteúdo
brasileiro e era exatamente neste aspecto que os carnavalescos eram mais
rejeitados. No capítulo três procuraremos focar a produção carioca
notadamente a partir do filme Rio, 40 graus - através da busca de dados e
fontes ainda não pesquisadas. Esse cinema industrial era considerado
possível, porém nunca foi atingido. Na realidade, a produção dos cinejornais
diminuiu a do longa-metragem em razão da rentabilidade imediata que este
representava para os produtores. Para comprovarmos basta notar que só
observaremos uma produção superior aos 18 filmes de longa-metragem do ano
de 1930 em 1947. Neste ano de 47 produzimos 21 filmes de longa-metragem.
O número de longas é decrescente em praticamente toda a década de 30
situando-se entre 6 e 7 filmes por ano
104
.
103
Tabela de barreiras comerciais confrontando a American Motion Pictures Association Industry em
1947, citada in Ellwood, David & Kroes, Rob. Hollywood in Europe; experiences of a cultural hegemony.
Amsterdam: VU University Press, 1994, p. 166.
104
Tabela de produção de longas-metragens na América Latina, in Paranaguá, Paulo Antonio, Cinema na
América Latina. Porto Alegre: L&PM Editores, 1985, p. 95.
Tudo isso indica que a concorrência nacional diminuiu no que mais
interessava às distribuidoras americanas e esta produção “jornalística”
empurrava as produtoras para uma dependência do complemento. O próprio
nome implica em uma destinação de lugar mercadológico, que os
cinejornais serviam como complemento para o longa-metragem estrangeiro.
Quando temos novamente um aumento da produção de longas-metragens, ele
estará associado à obrigatoriedade de exibição de três filmes de longa-
metragem por ano e beneficiará principalmente a Atlântida, empresa que será
adquirida por Severiano Ribeiro. O produtor ”se interessa por uma legislação
de amparo ao cinema nacional, mas o passa por sua cabeça que o objetivo
final possa ser o colocar os filmes brasileiros em de igualdade com os
estrangeiros”
105
.
Claro que as práticas comerciais da distribuição americana estavam
ligadas à idéia de tratar o filme como uma commodity econômica sujeita às
considerações normais de um negócio
106
e tinham como estratégia básica o da
integração vertical e cooperação horizontal que se tornava possível no exterior
pela aquisição de cadeias de cinemas. Dessa forma, o distribuidor americano
podia “controlar um grande conjunto de cinemas bem localizados onde eram
feitos os lançamentos”
107
. Essas afirmações nos servem para desconstruir a
idéia de que os filmes americanos eram produtos amortizados no mercado
interno. Um memorando de Will Hays, direcionado ao Secretário de Estado
americano Cordell Hull e intitulado “Government Cooperation in Mantaining
105
Gomes, Paulo Emílio Salles, citado in Simis, Op. cit., p. 126.
106
Jarvie, Ian, Ther postwar economic foreign policy of The American Film Industry: Europe 1945-
1950” in: Ellwood, David & Kroes, Rob. Hollywood in Europe: experiences of a cultural hegemony.
Amsterdam: VU University Press, 1994, p. 158.
107
Idem. p. 158.
Foreign Markets for American Motion Pictures”, afirma que “aproximadamente
quarenta por cento dos rendimentos dos filmes são estrangeiros, é a margem
pela qual a supremacia dos filmes dos Estados Unidos são financiados e
mantidos. Despojados desses rendimentos, os produtos para consumo interno
podem sofrer proporcionalmente. Não é muito afirmar que a preservação de
nossa qualidade é inseparavelmente baseada sobre a preservação de iguais e
ilimitadas oportunidades na competitividade nos mercados estrangeiros”
108
.
Essas informações demonstram cabalmente a importância dos
mercados estrangeiros para o cinema americano e como a indústria de nosso
vizinho do Norte levava a sério a possibilidade de competição em qualquer
mercado. Também sabemos que o nível em que a indústria brasileira se
encontrava dificultava muito uma continuidade de fornecimento de filme para o
exibidor nacional, fazendo com que este dependesse diretamente de seu
parceiro interno com produtos testados e extremamente competitivos. Temos
assim um nó, um ponto de virada no final dos anos 40 e início dos 50. As
iniciativas de regulação dividiram o esforço competitivo da produção em vários
campos de atuação estanques. O documentário educativo estava sob a guarda
dos investimentos estatais, sem ligação direta com o mercado e constituindo,
dessa forma, uma base econômica diferente para sua sobrevivência. O
complemento “jornalístico” sofria imensas pressões quanto à sua
obrigatoriedade de aquisição e quando da tentativa de efetivação por Mello
Barreto Filho do decreto 30.179 de 51, que obrigava a compra pelos
importadores deste tipo de filme, encontramos a oposição de Benedito J.
108
Ibidem. p. 162.
Duarte que fala em princípios constitucionais e liberdade de informação na
defesa dos jornais estrangeiros.
No caso do chamado filme de enredo uma luta surda entre o setor
exibidor e os produtores independentes mostra as dificuldades de circulação
para esta produção. O grupo de Severiano Ribeiro, que era proprietário da
Companhia Brasileira de Cinemas, que “compreendia seis circuitos de exibição
(60 das 120 salas do Rio de Janeiro) e programava mais de 400 dos dois mil
existentes no país”
109
, também faria uma escolha tática em sua entrada para o
campo da produção, criando uma experiência onde, pela primeira vez, um
grupo brasileiro possuía o controle vertical na indústria no Brasil. A atrofia da
produção nacional e o descompasso entre o ritmo de desenvolvimento do
comércio cinematográfico e o da produção (expressas em um relatório do
projeto de Jorge Amado para a criação do Instituto Nacional de Cinema) pode
ser explicada exatamente por essa aliança profunda entre o setor mais forte da
exibição com o distribuidor estrangeiro. É claro que este setor devia sua força
exatamente a esta “preferência comercial” que o transformava em escol do
produto mais lucrativo no mercado cinematográfico brasileiro.
A “modesta produção da chanchada carioca” seria então absorvida no
circuito de lançamento, sem nenhum problema e sem a criação de um
adversário real ao produto americano. Essa configuração era expressa na
divisão da produção em partes estagnadas e sem possibilidade de
desenvolvimento isolado. A questão do conteúdo era apropriada de uma
maneira que mais atrapalhava do que indicava caminhos no sentido de
questionar claramente o problema da legitimidade dos filmes e, ainda por cima,
109
Simis, op. cit., p. 152.
criar uma forma de rejeição aos conteúdos com maior aceitação popular. Essa
rejeição apontava sempre para um novo formato que devia ser atingido para, aí
sim, apresentar-se como real e genuinamente brasileiro. O investimento estatal
vigoroso apenas na constituição de órgãos dentro de sua estrutura que,
exatamente por essa razão se tornavam independentes do funcionamento do
mercado, aponta o grupo Severiano e sua absorção da produção como um
modo de produção em si. Todos os elementos podem ser encontrados na sua
escolha que, do ponto de vista empresarial, é totalmente justificada.
Base econômica no comércio do produto estrangeiro, espaço político
determinado associado aos outros distribuidores e reforçado pelo parceiro,
também estrangeiro, capacidade de investimento e de divulgação asseguradas
e um produto testado no que tange a sua penetração no mercado. Nada nos
leva a acreditar que a produção de chanchadas poderia se expandir a ponto de
garantir uma ocupação maior que a que possuía no mercado exibidor. Para
uma expansão de suas linhas de produção Severiano teria que assumir um
duplo risco: o de enfrentar seu parceiro americano, arriscando perder sua
hegemonia na exibição, e aliar-se a um novo conjunto da área de produção
para estender e criar novos formatos. Tudo isso, encarar de maneira solitária a
“qualidade” garantida pela exploração como sucesso da totalidade dos
mercados mundiais. Isso tudo sem o apoio do estado e com a experiência,
vinda da recepção da chanchada, de uma resistência, por parte da crítica, ao
que fosse produzido com boa aceitação popular.
Sua escolha pelo estreitamento das relações com a distribuição
estrangeira pode ser percebida pelos conteúdos de seus cinejornais. Na
década de 50, o grupo produzia três informativos para serem exibidos em seus
cinemas: Atualidades Atlântida, O Jornal da Tela e Notícias da Semana. Muito
desse material se perdeu ou foi canibalizado na busca de imagens de época
durante os últimos cinqüenta anos. O pesquisador Eduardo Giffoni, curador do
arquivo da Atlântida, fez um levantamento minucioso dos filmes remanescentes
na organização do acervo. Boa parte o está em condições de visualização e,
por essa razão, apelamos para a análise das listas de conteúdo como uma
primeira aproximação destes conteúdos. A metodologia de análise foi a
seguinte: nas várias listas de cada noticioso foi feita uma separação temática
sobre o assunto a ser tratado (pelo curador Giffoni e a partir dos rolos
remanescentes). Portanto, a partir da temática cinema era possível saber com
razoável grau de acuidade o que foi divulgado. Claro que, infelizmente, muito
se perdeu, mas acredito que temos aqui uma boa amostra dos conteúdos
jornalísticos que serve como índice do interesse e do consórcio entre o grupo
Severiano e o interesse estrangeiro.
Essa associação é conhecida da historiografia de cinema, mas em
nossa opinião, deve ser entendida de forma diferente do que comumente se
interpreta. Não seria nem a falta de “um nítido empenho capitalista em passar
do lucro comercial ao industrial”, nem a diferença entre Rio e São Paulo, onde
este último é mais pujante e que teria, portanto, capacidade de “alçar vôos
artísticos e ideológicos mais altos”
110
. A abordagem mostra uma confusão na
base econômica e simbólica do cinema brasileiro, onde muitas poucas
iniciativas podiam efetivamente obter sobrevivência em um mercado
excessivamente ocupado pelo produto estrangeiro. Esquadrinhando este
terreno, veremos que vários modos de produção o aparecendo ao longo dos
110
Sousa, José Inácio de Melo, citado in Idem, p. 179.
anos e das oportunidades que surgem. Essas configurações lutam por espaço
e sobrevivência. Nesta direção a Atlântida seria um modo de produção onde
encontramos todos os elementos singulares para essa afirmação: forma de
financiamento estável (Severiano), distribuição garantida e mesmo um proto-
sistema de procedimentos técnicos. Mais ainda, podemos observar o
estabelecimento do estrelismo constituído pela “triangulação
herói/mocinha/vilão entre atores que formariam o núcleo central da maioria das
comédias posteriores, numa relação de redundância necessária a um esquema
de produção ininterrupta”
111
.
A idéia da co-existência em um mesmo mercado, ao mesmo tempo, de
vários modos de produção pode servir como solução para explicar não só a
persistência de algumas expressões cinematográfica, mas também seu
desaparecimento. A princípio, podemos falar de um modo de produção no
âmbito do INCE, de um no âmbito da Atlântida, um referente aos cinejornais e
claro o modo de produção hollywoodiano hegemônico e determinante para
compreender o funcionamento do mercado no Brasil.
Diante disso veremos o surgimento de um outro modo de produção que
estará tentando dar vazão à busca de maior expressividade artística aliada à
necessidade de baixos custos de produção. Terá também que se adaptar a
condições de produção precárias existentes fora do cinema industrial. Esse
será marcado pelo aporte neo-realista e pela produção cooperativa. No
próximo capítulo discutiremos com mais vagar o modo de produção de
substituição de importações, cujo exemplo emblemático é a união de uma
111
Vieira, João Luiz, “A chanchada e o cinema carioca (1930-1955)”. In Ramos, Fernão P. (org.). História
do cinema brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987, p. 159.
empresa produtora (a Atlântida) com um grupo que detinha a maior parte da
exibição dos anos 40/50 no mercado brasileiro: o Grupo Severiano Ribeiro.
Capítulo 3
MODO DE PRODUÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO DE IMPORTAÇÃO
DE FILMES
A criação da Atlântida Cinematográfica, em 1941, por Moacir Fenelon e
os irmãos Paulo e José Carlos Burle, é certamente um dos principais marcos
da história do cinema no Brasil. Infelizmente, são poucos os estudos sobre a
Atlântida propriamente dita: ela está inserida no movimento geral e no contexto
de uma época, onde a chanchada é o ponto de articulação das análises intra-
textos que, por sua vez, são a base da historiografia sobre cinema no Brasil.
Neste sentido, a chanchada
112
não foi produzida apenas pela Atlântida,
tampouco começou. O marco é, portanto, 1933, com o filme da Cinédia
Acabaram-se os Otários.
Mas, estes marcos cronológicos são descobertos ou inventados
exatamente para que possamos didaticamente estabelecer um ponto de
partida. A comédia foi e é, no cinema brasileiro, uma tendência ativa e
duradoura, suas várias aparências o devem nos enganar quando queremos
realizar uma ligação com os fundamentos que sempre permitiram sua
existência e realização.
Não estamos aqui desvalorizando os inúmeros e meritórios trabalhos
realizados no viés da interpretação e da análise fílmica. Penso, porém, que
112
Gosto da definição de Jean-Claude Bernardet que, na revista Cinema declarou: “Acho que a
chanchada é o nome geral que se a todas as comédias e comédias musicais de apelo
popular feitas no Brasil entre 1900 e 1960 mais ou menos, em que apareciam astros do tipo
Oscarito”.
inequivocamente ainda temos muito que examinar sobre essa que, talvez ainda
hoje, seja a mais duradoura experiência de produção / distribuição / exibição
com sucesso no Brasil. Ela deverá ainda ser objeto de muitos textos para ter
todos os seus aspectos explorados. No nosso caso, desenvolvemos uma
visada que implica o compromisso com a aplicação de um método e, mais que
isso, de tentar uma descrição de como a produção da Atlântida se consolidou
como um modo de produção e co-existiu concomitante com outros modos
diferentes, exatamente no trinômio citado acima: produção, distribuição,
exibição.
Todas essas formas de sobreviver no mercado cinematográfico
brasileiro estão articuladas, sempre, à convivência com o cinema hegemônico,
que tudo determina e submete. Neste viés da compreensão da complexidade
desta co-existência, as iniciativas são adaptações que surgem de
necessidades, e não da produção ou de uma expressão artística ligada a um
conteúdo determinado. Claro que o conteúdo, no que se refere ao cinema, tudo
influencia, porém, devemos também dar atenção aos espinhos de uma
realidade adversa e com um alto grau de invariabilidade. Não achamos
exagero afirmar que, quando partimos de questões que subordinam a análise
ao nosso trinômio essencial, o cinema brasileiro se estabelece ou como uma
reação ao massacre da concorrência estrangeira ou como uma tentativa, sendo
– de uma ou de outra forma – refreado pelos influxos comerciais externos.
Comecemos então do início da Atlântida de sua fundação e para isso
vamos nos utilizar de informações disponibilizadas pela própria companhia.
Sua fundação foi em 18 de setembro de 1941,
“com um objetivo bem definido: promover o
desenvolvimento industrial do cinema brasileiro.
Liderando um grupo de aficcionados, entre os quais o
jornalista Alinor Azevedo, o fotógrafo Edgar Brazil, e
Arnaldo Farias, Fenelon e Burle prometiam fazer a
necessária união de um cinema artístico com o cinema
popular.”
113
nesta primeira aproximação encontramos diferenças sobre a data da
fundação. Dependendo da fonte, a data muda, Vieira cita, em seu capítulo no
volume História do Cinema Brasileiro, a data de 13 de outubro
114
. Entretanto,
não sendo este nosso foco, aceitarei aqui o relato presente em Vieira que nos
dá conta que com
“o intuito de dar continuidade a sua carreira
cinematográfica, Moacir Fenelon pretendia reconstituir,
em novos moldes de depois do incêndio, o que havia
sido a experiência da Sonofilmes. Decidiu então
organizar uma produtora cinematográfica através do
lançamento de ões populares, mobilizando pra sua
fundação os irmãos Paulo e José Carlos Burle, além
do Conde Pereira Carneiro, proprietário do Jornal do
Brasil, onde Burle trabalhava como cronista de
rádio”
115
A Atlântida, como sabemos, foi a produtora com maior longevidade do
período. É possível analisá-la como uma única e contínua forma de produzir e
de se relacionar com as questões levantadas acima? Isso significa indagar se
uma produtora, que persistiu durante 21 anos, de 1941 a 1962, e produziu
sessenta e seis filmes
116
, sempre se apoiou nos mesmos mecanismos de
113
Texto presente no site da companhia no endereço
http://www.atlantidacinematografica.com.br/sistema2006/historia_texto.asp
114
Vieira, João Luiz. “A chanchada e o cinema carioca”, in: Ramos, Fernão P. História do
cinema brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987, p. 154. A data que encontramos no livro de
Sérgio Augusto, Este mundo é um pandeiro (São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 19), é
a mesma que está oficialmente no site da empresa, 18 de setembro de 1941.
115
Vieira, op. cit., pp 153/154.
116
Dados da própria Atlântida, extraídos do site citado na nota 3.
financiamento, na mesma organização empresarial, forma de distribuição e
exibição e, sempre obteve o mesmo tipo de recepção.
A metodologia aqui proposta lida com aqueles vários níveis referentes a
produção e a base econômica. Em primeiro lugar, a organização empresarial e,
em segundo, o espaço simbólico de recepção, para depois, em terceiro, as
questões de estilo e, no quarto momento de análise, articular a totalidade dos
elementos. Quando seguirmos este roteiro, creio que poderemos responder
àquelas perguntas.
Retomando o fio na origem da empresa, um fato onipresente e citado
por quase todos os historiadores e comentaristas é o seu manifesto de
fundação. Dele, Autran cita:
quem se propuser, fundado em seguras razões de
capacidade, a contribuir para seu desenvolvimento industrial, sem dúvida estará
fadado aos maiores êxitos."
117
Vieira ressalta uma parte maior do mesmo trecho e nessa passagem
consta que
“o cinema, pelos aspectos variados que apresenta,
principalmente pela natureza industrial de suas
realizações, já se firmou no mundo contemporâneo
como um dos mais expressivos elementos de
progresso. A tal ponto que os grandes povos de hoje
lhe dedicam ação permanente, entregando-se com
esforço ao estudo dos métodos técnicos, financeiros e
comerciais que lhe são próprios. No Brasil o cinema
ainda representa muito menos do que deveria ser e,
por isso mesmo, quem propuser, fundado em seguras
razões de capacidade, a contribuir para o seu
desenvolvimento industrial, sem vida estará fadado
aos maiores êxitos. E também prestará indiscutíveis
serviços para a grandeza nacional.”
118
117
Manifesto da Atlântida citado in Autran, Arthur, “A questão da indústria cinematográfica
brasileira na primeira metade do século”,
http://www.mnemocine.com.br/cinema/historiatextos/arturBras.htm
118
Citado in Vieira, op. cit., p. 154.
Encarado como uma declaração de princípios e guardadas as
proporções de objetivo de cada texto é sintomático que os dois tenham
escolhido a mesma parte. A importância do trecho reside no conteúdo que é
compartilhado pelas duas citações: o “desenvolvimento industrial”. Essa
intenção de finalmente criar uma empresa que se estabilize com a produção de
cinema de qualidade é, no momento da fundação da Atlântida, o desejo de
todos os agentes que atuam no cinema brasileiro. Podemos incluir mesmo o
Estado que propõe várias ações substantivas, tentando fornecer material de
qualidade ao público. O manifesto ainda fala de prometida instalação de
estúdios totalmente equipados com câmeras e com nova maquinaria. Todas
essas promessas dificilmente poderiam ser cumpridas, dadas as condições de
mercado que o cinema brasileiro enfrentava. Uma série de motivos impediria
mesmo a estabilização financeira da empresa nestes primeiros anos e a
principal delas é a associação, corrente na época, de que conteúdo de
qualidade tinha que ser sério e que os filmusicais ou as chanchadas deviam
ser, em princípio, evitados já que “nenhum dos idealizadores da Atlântida”
cogitava “produzir comédias musicais” e “elas se impuseram como alternativa
inevitável”
119
.
Sérgio Augusto indica que o momento era bastante delicado para o
aparecimento de um estúdio cinematográfico, pois, quando o cinema brasileiro
se deu conta, restavam no Rio, seu principal centro produtor, três estúdios
de filmagem: os da Cinédia, os da Brasil Vita Filmes e os de Lulu de Barros”
120
.
Esta situação de penúria gerou a necessidade da criação de alternativas para a
continuidade da produção. Entretanto, o mesmo Sérgio Augusto declara
119
Augusto, op. cit., p. 105.
120
Idem, p. 103.
preferir marcar o período em que ocorreu a sanção de uma “lei de proteção ao
filme nacional que de maneira decisiva motivaria a fundação da Atlântida”
121
. O
decreto n
o
21 240 de 1932, que “institui a obrigatoriedade da exibição embora
esse decreto faça referência explícita apenas à obrigatoriedade de exibição
dos filmes educativos”
122
, é o citado por Sérgio Augusto como aquele que
determinou a obrigatoriedade da exibição do longa-metragem. Vamos tomar,
então, como ponto de partida o decreto citado acima e seguir, ancorados nas
reflexões de Simis, para afirmar que o decreto de 1932 possibilitou, de
imediato, a exibição do complemento, que foi realmente posta em prática
em 1934 depois da realização do Convênio Cinematográfico Educativo, nos
dias 3, 4 e 5 de janeiro de 1933. Exibidores e produtores chegaram a um
acordo “reduzindo para 100 metros lineares a medição mínima, e a
obrigatoriedade foi então estendida para todos os outros gêneros de curtas-
metragens”
123
. Essa medida criaria euforia e para atender
“à obrigatoriedade era preciso apresentar oito filmes
por semana, com três cópias cada um. Constitui-se
então uma distribuidora, a Distribuidora de Filmes
Brasileiros – DFB para evitar que a fiscalização ficasse
prejudicada e para que não houvesse concorrência
entre as distribuidoras, rebaixando os preços.”
124
O decreto 1949 de 1939
“institucionalizava a produção oficial dos filmes
do DIP e exercia maior controle sobre as atividades de imprensa e
propaganda”. O decreto estabelecia ainda a obrigatoriedade de um tamanho
mínimo de 100 metros lineares, “embora isentasse o exibidor da inclusão do
curta nos programas que exibissem um filme nacional natural ou de enredo de
121
Ibidem, p. 31.
122
Simis, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo: AnnaBlume, 1996, p. 108.
123
Idem, p. 111.
124
Ibidem, p. 112.
mais de mil metros e pela primeira vez estabelecia a exibição compulsória do
longa-metragem.”
125
Desta forma, vemos que os antecedentes imediatos à fundação da
Atlântida formavam um caudal que permite especificar várias formas de
produção que vão se especializando em um nicho de ocupação. A passagem
acima referida do livro de Simis estuda exatamente esse processo que, de
maneira sinótica, é a criação da obrigatoriedade do complemento de 100
metros lineares e também um rápido aumento de uma produção concorrente
do Estado pela via do próprio DIP e da produção do Ministério da Agricultura ao
ponto de criarem-se “tendências opostas: a pulverização das produtoras e a
concentração da produção”
126
. Podemos ver a construção de um efeito o
desejado pela legislação. Parece, num primeiro momento, que aumenta o nível
de proteção oferecido ao cinema brasileiro. Mas, na realidade, o complemento
passa crescentemente para a esfera da produção estatal. Neste sentido, as
produtoras privadas perdem importante fonte de renda. Os produtores viam-se
assim entre dois pólos: por um lado, o Estado ocupando parte da produção dos
complementos; por outro, o cinema estrangeiro, tomando o mercado de longas-
metragens.
A mencionada obrigatoriedade, assinada por Getúlio Vargas, é um
dos principais pontos de partida para a fundação da Atlântida e não é difícil
imaginar que, após o crescimento exponencial na produção de complementos,
os produtores pensassem num crescimento da produção de longas-metragens.
Este é o cerne de uma das explicações possíveis do desenvolvimento do
processo. Neste momento, se abrem a possibilidades de vertentes que
125
Ibidem, p. 120.
126
Ibidem, p. 121.
poderão vir a se tornar modos de produção. As chanchadas o podem ainda
ser chamadas de modo de produção de substituição de importações no período
anterior à obrigatoriedade e isso por uma simples razão: a de compartilhar,
nesta circunstância, das mesmas dificuldades de exibição de qualquer outro
filme lançado.
Mais adiante nos dedicaremos aos desdobramentos dessa afirmação,
mas é importante retermos que a obrigatoriedade tem duas conseqüências
relevantes. Por um lado, mais direta e obviamente, garantir um mercado para
as produções que o o objeto da reserva. Não podemos esquecer que esta
alteração do decreto é resultado de lutas políticas levadas a cabo não somente
pelos produtores
127
, mas também pelos interessados na participação
fundamental do Estado na produção e os exibidores que são encontrados
normalmente junto aos distribuidores estrangeiros. Além disso, uma segunda
conseqüência é a de que aquele decreto
contribuiu para o crescimento da
produção nacional na medida em que garantiu a exibição dos filmes, embora tornasse
a legislação cada vez mais complexa, afora haver propiciado a intervenção maior do
estado”
128
Para terminarmos esse pequeno rol de fatos pertinentes às análises da
legislação superveniente ao período, temos o aumento do número de filmes a
serem exibidos obrigatoriamente, de um para três. Junto a esta ampliação
também será acrescentada a metragem do complemento, passando de 100
para 180 metros lineares, tudo isso constante do decreto lei 4.064 de 1945. A
nosso ver, este diploma legal funciona como a chave que fecha um ciclo e abre
127
O quadro da composição acionária da DFB Distribuidora de Filmes Brasileiros é ótimo rol
quando nos referimos aos combatentes dos produtores. São eles: Adhemar Gonzaga,
Armando de Moura Carijó, Alberto Botelho, Ernesto Simões, Jaime de Andrade, Aníbal Pinto de
Paiva e Fausto Muniz.
128
Simis, op. cit., p. 121.
outro. Rapidamente veremos as empresas, que antes estavam vivendo da
obrigatoriedade do complemento, enfrentar dificuldades financeiras e de
manutenção. Na década de trinta existe o que a historiografia chama de
“primeiras tentativas mais sérias de uma possível industrialização da atividade
cinematográfica no país com as experiências cariocas da Cinédia (1930, da
Brasil Vita Filme (1934 e da Sonofilmes (1937)”
129
. São exatamente essas
empresas que se ressentem da mudança apontada aqui e que, ou deixam de
existir, ou diminuem muito sua atuação. Citando novamente Vieira na abertura
do capítulo Atlântida do texto intitulado “A chanchada e o cinema carioca (1930
– 1950)”:
“A década de 1940 se inicia com bons e maus
presságios. A Cinédia diminui seu ritmo de produção e
em 1942, aluga seus estúdios para a RKO a fim de
possibilitar a realização de It’s all true, a experiência
brasileira de Orson Welles. Paralelamente, a Brasil
Vita Filme encontra-se completamente envolvida na
produção de Inconfidência mineira, iniciada em agosto
de 1936, antes portanto da conclusão dos estúdios de
Carmem Santos que ficaram prontos em 1937.
Para completar a Sonofilmes, de Downwy e Byingtron,
sofre um incêndio paralisando suas atividades.”
130
No espaço de tempo que estamos tratando e imediatamente anterior à
fundação, temos ainda a criação do INCE, em janeiro de 1937, que acontece
no rastro do crescimento da ação direta do Estado na produção.
A ação de Fenelon é, portanto, a origem de um dos três modos que co-
existiram nos anos 40 e 50 do século passado. Não poderei esquadrinhá-los
todos aqui e Nos ateremos à questão do modo de produção de substituição de
129
Vieira, op. cit., p. 131
130
Idem, p. 153.
importação que a Atlântida se tornará, a partir da aquisição por Luis Severiano
Ribeiro em 1947.
Esquecido pelos estudos do audiovisual, Moacir Fenelon
131
é uma das
figuras centrais dos acontecimentos do cinema no Rio de Janeiro da época.
Fenelon tinha participado da Sonofilmes, juntamente com o americano Wallace
Downey, empresa que contribuiu para a “esquematização da comédia musical
carnavalesca, reconhecida como o gênero de ‘chanchada’”
132
. Essa comédia
musical, feita na Sonofilmes tem como base a atuação de Downey no rádio e a
busca de sinergia com este meio de comunicação hegemônico no Brasil
naquele momento. A Sonofilmes é uma antecipação ao esquema Severiano/
Atlântida, pois ensaia o privilégio da capacidade de circular e realizar
lançamentos no circuito de exibição. Como vemos no texto de Vieira, na parte
em que explora a primeira leva de filmes (a trilogia de frutas tropicais, nomes
que tanto renderam aos críticos brincadeiras), o filme Banana da Terra, o
primeiro
“da série, feito em 1938, e lançado como de
hábito às vésperas do carnaval (1939), conseguiu,
graças às ligações entre Alberto Byington (sócio
de Downey que também veio de São Paulo) e os
norte-americanos, distribuição pela Metro-
Goldwyn-Mayer e, conseqüentemente, ótimo
lançamento no espetacular cinema Metro
Passeio.”
133
131
Importante confirmar a necessidade do acompanhamento da trajetória de trabalho e
formação dos técnicos, diretores e produtores de cinema como fonte histórica privilegiada para
a consolidação dos estudos sobre cinema e até para a compreensão dos resultados estéticos
presentes nos filmes. Fenelon, que começou em 1929 como engenheiro de som, é um exemplo
tradicional de diretor formado em vôo e com aportes de conhecimento vindos de várias fontes
diferentes. Sua atuação como diretor de quinze filmes e também como diretor de fotografia,
engenheiro do som do primeiro filme falado no Brasil e produtor de Agulha no palheiro ainda
está para ser estudada em profundidade.
132
Barro, ximo. “Atlântida, 60 anos - As primeiras páginas de uma história de cinema”,
Revista E, n. 46,
http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?Edicao_Id=98&Artigo_ID=1099&IDCat
egoria=1239&reftype=2
133
Vieira, op. cit., p. 150.
Estamos no âmbito do primeiro nível analítico de um modo de produção
e este abrange os aspectos da organização empresarial. O que vemos são
várias tentativas de consolidação de empresas produtoras que se debatem
contra um ambiente adverso, pois tem problemas com o escoamento de seu
produto. A Atlântida não é, a princípio, uma organização diferente, a não ser na
origem, onde a venda de ações indica qual será um caminho para a
produção de cinema no Brasil: a criação de uma empresa com sócios
capitalistas, e não a cooperação entre trabalhadores de cinema.
O acesso aos equipamentos foi, logo de cara, difícil e a “câmera, reles
imitação da Mitchell americana e imprópria para filmes sonoros foi comprada à
Aba Filmes de Fortaleza”, os refletores foram construídos e “a maior parte do
capital foi consumida na arrumação do estúdio, todo forrado de flanela para
isolar os sons da rua”
134
. Para dar uma idéia da claudicância deste aspecto na
empresa, é importante destacar a afirmação de Barro:
“a construção de um estúdio moderno foi substituída
pelo aluguel de um antigo local de jogos proibidos, o
frontão, onde se praticava o extinto jogo de pelota
basca. A cancha dos pelotários se tornou o palco de
filmagem. As arquibancadas, depósito de material
elétrico e negativos. A parte administrativa, sala de
produção e maquiagem. Outros cubículos foram
construídos para as demais necessidades. O
tratamento acústico foi resolvido capeando teto e
paredes com esteiras de peri-peri. Para economizar
mais um funcionário ficava sentado no teto, de
binóculos em punho, acompanhando o tráfego de
aviões... A mera utilizada era do tempo do cinema
mudo. As extraordinárias habilidades artesanais de
Fenelon improvisaram um motor síncrono, responsável
por captar o som direto. No entanto, o ruído emanado
da peça intrometida foi solucionado com um sistema
de blimpagem (uma cabine acomodava a câmera e
134
Augusto, op. cit., p. 106
fazia o isolamento sonoro), também invenção de
Fenelon que, se por um lado resolvia o problema
acústico, encobertava as lentes, impedindo a
realização de closes”.
E continua:
“Grande parte do estilo estático, quase teatral, que
marcou muitos filmes da Atlântida não se deve a
motivos estéticos, mas sim, a empecilhos que
obstavam a correção do foco. Nas raras vezes que a
câmera ou os intérpretes se locomoviam, um barbante
era ligado entre eles para que não saíssem do limite
do alcance do foco. Na montagem, o corte do som
corria paralelo ao da imagem. Não havia mixagem
com mais de uma banda de áudio. Diálogo não tinha
música. Música não tinha ruídos. Ruídos não tinham
diálogos.”
135
Vejamos a análise do segundo nível, no que diz respeito aos aspectos
do espaço simbólico da recepção e das formas de legitimação do cinema
produzido pela Atlântida. Podemos ainda recorrer ao artigo de Barro. Segundo
o autor:
“tanto Fenelon quanto Burle ousavam se manter fiéis
ao Manifesto repleto de boas intenções que marcou o
lançamento da produtora. Segundo a carta original, o
público merecia filmes sérios e era com eles que
ambos ansiavam erguer o empreendimento.
Acreditavam que, se bem produzidos, os filmes de
conteúdo cativariam a audiência e lotariam as salas de
exibição. Com o passar dos anos (e foram poucos) a
expectativa inicial se mostrou malograda.
Os filmes sérios dirigidos ora por Burle, ora por
Fenelon, pouca popularidade alcançaram,
ocasionando rombos financeiros que não podiam
chegar ao conhecimento dos acionistas. Essa situação
de penúria levou-os, finalmente, a lançar mão de um
filme carnavalesco, tão repudiado no início, traindo
mesmo que involuntariamente os espíritos retos e
crédulos dos seus redatores.”
136
135
Barro, op. cit.
136
Idem.
Não é unicamente aqui que encontraremos esse primeiro movimento, a
construção de um contato com a realidade do que era ou não era consumido.
De toda forma, esse contato tinha que insurgir-se contra um campo intelectual
que era, na sua maior expressão, refratário a reconhecer, na recepção por
parte do grande público, indício de alguma qualidade intrínseca. em nossa
dissertação de mestrado, ao esquadrinhar a construção do campo simbólico de
recepção do cinema afirmava.
”Uma das raízes do conceito de bom cinema” está
indissoluvelmente ancorada no conceito de belas-artes
e a produção tem de ser esteticamente aceitável. O
cinema deve ser visto, ou melhor, experimentado
esteticamente pelo público. No caso do descolamento
da avaliação estética dos desejos do público este
deverá ser ensinado a apreciar e sancionar a visão da
crítica.”
137
Infelizmente nem o público nem os representantes do cinema dominante
acompanhavam essas posições, o que colocava o cinema brasileiro em uma
posição de desvantagem em sua recepção. Não discutimos aqui as diferenças
formais entre os filmes e, menos ainda, deixamos de reconhecer a importância
do projeto ideológico e político do grupo fundador da Atlântida, expresso na
tentativa da melhoria geral da qualidade das produções. Mesmo sem
problematizar a questão acerca da noção de qualidade, enquanto construção
histórica e marcada, no caso, por uma aceitação tácita entre cultura popular e
erudita temos que registrar que nenhuma empresa cinematográfica sobreviveu
produzindo um mesmo tipo de filme. Não devíamos estranhar que se tentasse
variar os gêneros produzidos.
137
Mendonça, Leandro José Luz Riodades, O Campo Da Moderna Crítica Cinematográfica
Fundamentos em Moniz Vianna, Ciência Moderna, no prelo.
Entretanto, a chanchada estava incluída para alguns -entre o rol dos
filmes que se deveria evitar ser produzida. Havia, de fato, uma apropriação
demeritória sobre o popular. Aliás, como nos esclarece Chartier:
“O ‘popular’ não está contido em conjuntos de
elementos que bastaria identificar, repertoriar e
descrever. Ele qualifica, antes de mais nada, um tipo
de relação, um modo de utilizar objetos ou normas que
circulam na sociedade, mas que são recebidos,
compreendidos e manipulados de diversas maneiras.
Tal constatação desloca necessariamente o trabalho
do historiador, já que o obriga a caracterizar, não
conjuntos culturais dados como populares em si, mas
as modalidades diferenciadas pelas quais eles são
apropriados.”
138
Ainda segundo Chartier, é preciso romper “uma definição ilusória da
cultura popular”, posto que a noção de apropriação, empregada como
instrumento de conhecimento, pode “reintroduzir uma nova ilusão: a que leva a
considerar o leque das práticas culturais como um sistema neutro de
diferenças, como um conjunto de práticas diversas, porém equivalentes”
139
Afinal de contas, é sempre pertinente lembrar que “tanto simbólicos como as
práticas culturais continuam sendo objeto de lutas sociais, onde estão em jogo
sua classificação, sua hierarquização, sua consagração (ou ao contrário, sua
desqualificação”
140
Não se trata aqui de apostar no mercado enquanto espaço privilegiado
para a categorização de cinema popular,e sim o de “tentar articular
popularidade e bilheteria”
141
e resistir a caracterização do “caráter popular do
138
Chartier, Roger, “Cultura Popular: revisitando um conceito historiográfico” in: Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 8, n 16, 1995, p. 6.
139
Idem
140
Ibidem, pp6/7
141
Galvão,Maria Rita& Bernadet, Jean-Claude. Cinema. Repercussões em Caixa de Eco
Ideológica. São Paulo, Brasiliense, 1983 p. 74.
cinema (...) como uma necessidade da luta política” e que “depende da correta
posição do cineasta, mas sem relação específica com a produção e
comercialização"
142
As questões de escala não era desconhecidas e é
importante trazer à luz a posição de Carlos Ortiz que defendia o aumento de
produção como forma de superação do problemas da qualidade, ao afirmar que
tínhamos “que avolumar nossa produção de filmes, solidificar nossa indústria
cinematográfica incipiente. A qualidade virá depois. A quantidade gera
qualidade e vice-versa. Isto no cinema como em tudo mais.”
143
Mesmo assim,
ainda estamos diante um discurso tolerante onde a “qualidade torna-se
abstrata, indefinida.”
144
Continuamos acreditando que boa parte da crônica cinematográfica
buscava um produto impossível de ser produzido em qualquer esquema de
produção brasileiro. Uma assertiva bastante clara é aquela que destaca a
especificidade de todo espaço de produção nacional e é uma das limitações de
que o conceito de modo de produção tenta dar conta. Ela é inerente a qualquer
sistema produtivo no campo cultural que, por definição, não consegue replicar
totalmente o produto de outro sistema produtivo, inserido em outro contexto
cultural. A despeito da existência de um processo de replicação muito próximo
do original, mantém-se, a meu ver, a marca indelével do processo de cópia que
a tudo contamina e desvaloriza.
Toda essa discussão sobre conteúdo acaba tendo uma impropriedade
teórica, ao não agregar - como problema - os elementos reais do modo de
produção e suas vicissitudes. A práxis, da maioria dos analistas, de usar
142
Idem, p 74.
143
Ibidem, p 81.
144
Ibidem, p 82.
apenas o aspecto estético, relegando a espaços subordinados os processos
originários (técnicos ou não) da obra cinematográfica e, aspectos que são
apenas aparentemente comerciais, como a distribuição (onde temos a
circulação do filme e seu acesso ao público
145
), impede a compreensão do
contexto histórico de construção de uma obra. A necessidade de abarcar tal
contexto é mais visível nos mercados ou cinematografias que se debatem
contra modelos hegemônicos, pois a impossibilidade e/ou dificuldade de
implantação redunda em profunda perda da força simbólica da produção
possível e da auto-estima dos agentes produtores. Esses dois resultados são
encontrados no procedimento tentado por Fenelon e Burle. Foram necessários
os fracassos de três filmes para que se pense na construção de um rol de
produções, a partir do gosto do público. É claro que dentro de uma lista de
projetos de uma grande produtora, podemos ter filmes arriscados, do ponto de
vista da bilheteria por razões estéticas ou temáticas, pouco importa. Mas uma
pergunta se coloca: com que bases foram produzidos os tais filmes sérios do
período inicial da Atlântida?
Essa pergunta é extensa demais para ser respondida totalmente aqui.
De qualquer forma, é importante destacar que todo o esforço feito pela
Atlântida, quando de sua fundação, estava permeado por um discurso
desvalorizador de tudo que remetesse ao cinema popular. Para corroborar
vejamos o que nos diz Watson Macedo e Carlos Manga através de declarações
coletadas por Augusto;
145
Desde os anos 30, o cinema americano consegue, exatamente pela escala com que é
distribuído, manter a rentabilidade de obras que, num espaço de exibição mais restrito, seriam
inviáveis. Isso acontece pelo fenômeno de determinadas expressões não conseguirem
amealhar o interesse de um grupo grande de espectadores numa comunidade, mas
conseguem vários grupos pequenos em várias comunidades. Assim o aumento da exposição
da obra é uma forma de viabilizar economicamente, estéticas e temáticas mais que não seriam
consideradas populares.
“’Eu tinha horror a comédia. Foi preciso uma semana
para eles me convencerem a estrear como diretor
dessa maneira.’ Essa ojeriza à comédia, segundo o
próprio cineasta teria acompanhado toda suas
trajetória na Atlântida. Seu discípulo Carlos Manga, no
entanto, o desmente: ’Macedo venerava o gênero. Ele
disse isso motivado por um sentimento de
vergonha’”
146
.
O próprio Manga, em fala presenciada por mim, no CCBB do Rio de
Janeiro, afirmou que a pressão sobre os envolvidos na produção das
chanchadas era enorme e negativa, todo o gênero era classificado como sub-
cinema e a virulência dos textos críticos imensa. Existia todo um conjunto de
críticos e era uma vergonha ser co-participante destes filmes, considerados “de
segunda”. Os filmes de “segunda”, eram muitas vezes chamados de “cavação”
e era essa linhagem crítica que desprezava as chanchadas. Importante
destacar ainda a inexistência de um grupo crítico que os elogiassem. O que se
tinha então era um tipo de condescendência e um olhar que vez ou outra
tolerava sua existência, um mal necessário, uma fase a ser superada.
Sem estender toda a reflexão sobre a história deste pensamento em
relação ao cinema no Brasil - constantemente realizando um retorno aos
mesmos pontos de partida e chegando a lugares visitados já centenas de
vezes - não poderemos fugir da questão da subjetividade. A discussão sobre a
formação do gosto é árdua, profunda e gigantesca. Não se conseguirá aqui dar
conta das inúmeras possibilidades e vertentes já construídas a seu respeito, de
maneira que, com leves pinceladas, tentarei indicar as direções que,
sugestivamente apóiam nossa posição. Como encontramos em Eagleton,
“na esfera do juízo estético, surgem objetos que, ao
mesmo tempo, parecem reais e são, no entanto,
146
Augusto, Op. cit., p. 110
inteiramente dados ao sujeito; verdadeiros pedaços da
Natureza imaterial que se deixam, no entanto,
prazerosamente manipular pela mente. Apesar de sua
existência contingente, esses objetos apresentam uma
forma, de alguma maneira, misteriosamente
necessária, e nos saúdam e comprometem com uma
graça desconhecida às coisas em si, que
simplesmente nos dão as costas. Na representação
estética percebemos, por um momento, a
possibilidade de um objeto o-alienado, aquele
oposto à mercadoria, que, como no fenômeno
‘aurático’ de Walter Benjamin, devolve nosso olhar
terno e sussurra que foi criado somente para nós. Num
outro sentido, no entanto, este objeto estético, formal e
dessensualizado, que age como um canal de contato
entre os sujeitos, pode ser entendido como uma
espécie de versão espiritualizada da mercadoria
mesma a que ele resiste.”
147
Essa condição de duplicidade que se instaura no objeto filme suporta
questões políticas e simbólicas que, no mais das vezes parecem, como o
próprio objeto, surgidas da representação. Essas injunções são realmente fruto
das relações objetivas e de poder que o filme e a sua recepção criam na
sociedade em que penetram e têm suas raízes voltadas para o aspectos
políticos. O desdobramento do argumento de Eagleton é pertinente à existência
da liberdade de ação e
“ser inteiramente livre e racional em síntese, ser um
sujeito – significa ser inteiramente autodeterminado,
obedecendo apenas às leis que eu proponho a mim
mesmo, e tratando a mim mesmo e à minha ação
como um fim mais eu um meio. A subjetividade livre é,
assim, uma questão numenal, completamente ausente
do mundo fenomenal”.
148
Não é necessário continuar aqui a discussão sobre a cisão definitiva
existente no sujeito freudiano e kantiano. O importante é perceber que a leitura
sobre o cinema brasileiro que perdurou durante as décadas de 40 e 50 - ainda
147
Eaglaton, Terry. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p. 61.
148
Idem, p. 61.
encontrada em algumas críticas contemporâneas - parte de uma posição
ingênua que indica valores de avaliação estética baseados na comparação
com as cinematografias estrangeiras. isso invalidaria seus juízos, porém
ainda podemos elencar a dificuldade da convivência de dois objetos de ordem
tão distinta, como a chanchada e o cinema hollywoodiano. Por último, a prática
comprovou o inegável deleite do público - mesmo em um espaço dominado por
outro tipo de produção de experimentar seu próprio ponto de vista cultural,
ainda que espaçadamente. A crítica de época, entretanto, nem desejava nem
tampouco podia defender o cinema brasileiro que carregava junto a si uma
expressão artística que tinha a marca do chulo e do vulgar (sem carga
negativa, pois essas duas características têm, no caso, muito mais relação com
aspectos de classe). Foi preciso a chegada de Paulo Emilio Salles Gomes para
que essa posição encontrasse alguma expressão.
Não é difícil imaginar que junto aos ciclos e surtos, com o quais a
historiografia clássica do cinema brasileiro trabalhou, encontremos essa
rejeição simbólica observada no caso da chanchada. Muito já se escreveu
sobre a “mentalidade importadora”
149
que é obviamente um ponto central nesta
visão excludente. A Atlântida não produziu somente chanchadas e a afirmação
de Bernardet que “para o público brasileiro, cinema é cinema estrangeiro”, cai
como uma luva quando falamos da construção de uma mentalidade. Nesta
mesma passagem, continua Bernardet
“Brasil era fundamentalmente um país exportador de
matérias-primas e importador de produtos
manufaturados. As decisões, principalmente políticas e
econômicas, mas também culturais, de um país
exportador de matérias-primas, são obrigatoriamente
reflexas. Para a opinião pública, qualquer produto que
149
A expressão é um subtítulo do livro Brasil em tempo de cinema, de Jean-Claude Bernardet
(Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978).
supusesse uma certa elaboração tinha de ser
estrangeiro, quanto mais o cinema. O mesmo se dava
com as elites, que tentando superar sua condição de
elite de um país atrasado, procuravam imitar a
metrópole. As elites intelectuais, como que vexadas
por pertencer a um país desprovido de tradição
cultural e nutridas por ciências e artes vindas de
países mais cultos, só nessas reconheciam a autêntica
marca de cultura”
150
.
Neste esforço por entender como funcionava uma crítica que rejeitava
totalmente a produção brasileira de cinema Bernardet afirma ainda:
“se omitirmos alguns raros casos isolados, a
chanchada possibilitou, de modo prolongado,
esse tipo de experiência. Experiência mais que
limitada. Assim o publico não tem o hábito de ver-
se na tela, e as identificações com personagens
nunca o baseadas em elementos de sua
realidade, de seu comportamento, vida,
sociedade, etc. (...) No setor da crítica
cinematográfica o fenômeno é quase o mesmo.
Os críticos pertencem a essa elite que via
cultura em produções estrangeiras as quais na
maioria dos casos, exigiam deles apenas um juízo
acertado. O próprio objeto do trabalho profissional
do crítico era desvinculado de sua realidade.”
151
Com essa compreensão da recepção devemos avançar para o aspecto
estilístico que compõe o próximo passo de nosso percurso. Esse aspecto no
caso do modo de produção de substituição de importações é informado por
muitos textos que levantaram o que de mais representativo ele continha, ou
seja, sua característica paródica, suas relações íntimas com o teatro de revista,
o rádio e com a música popular e, principalmente com o carnaval. A paródia ao
cinema dominante pode ser exemplificada pela indicação de Vieira de Carnaval
150
Bernardet, op. cit., p. 20.
151
Idem, p. 20.
no Fogo, como “filme paradigmático do período”
152
. Os dados ligados à trama
são os seguintes intriga policial, troca de identidades, lutas e perseguições,
final feliz e números musicais . Segundo Vieira,
“esquema narrativo básico, Macedo acrescentou
personagens que sustentavam uma relação triangular
entre herói, mocinha e vilão, notadamente no clima de
cumplicidade que girava tanto ao redor dos bons,
como é o caso dos cômicos Oscarito e Grande Otelo,
e também de Adelaide Chiozo, a amiga da mocinha,
quanto do lado dos maus, possibilitando variações que
se seguiram até o final da produção da Atlântida em
1962”
153
.
A exploração das cnicas de estilo cinematográfico, nos informa
Bordwel, implica reconhecer que o
“estilo é o uso das cnicas do meio de maneira
sistemática e significante, Essas técnicas cobrem
grandes domínios: mise en scène (espaço nico,
iluminação, atuação dos atores e o tempo, lugar e
circunstâncias da narrativa)”
154
.
Interessam-nos, de uma maneira mais direta, as noções que estariam de
alguma forma classificadas dentro do ponto que se refere às regras de uso e
apropriação de fluxos vindos de outras cinematografias. Assim, a trilha que
devemos seguir para compreender esta resposta ao ambiente dominado pelo
cinema estrangeiro é a absorção de muitas informações do cinema americano.
A principal é, sem dúvida nenhuma, a redundância conseguida exatamente
nesses elementos de estilo citados. Na linha do espaço cênico temos os
cenários que se pretendiam luxuosos; na atuação, a prática de fixar atores em
152
Vieira, Op cit., p 154.
153
Idem, p. 161
154
Bordwell, David. On the History of film style. Cambridge: Harvard University Press, 1997, p.
4.
determinados papéis. Um exemplo claro pode ser encontrado em José Lewgoy,
que fica destinado ao papel de vilão, e Anselmo Duarte ou Cyl Farney, no de
mocinho. Esta ação provocou, junto com o trabalho das revistas de divulgação,
uma espécie de star system brasileiro que ajudou de maneira determinante a
circulação dos filmes. Vieira em um trabalho sobre a eficácia do star system no
Brasil vai afirmar que
“todos os atores conseguiram marcar, bem junto ao
público, esses determinados tipos que ganharam
poucas nuances de filme para filme e que exatamente
pela repetição de suas principais características
alcançaram o sucesso previsto.
E como a redundância passou a ser a mola propulsora
das chanchadas, é nesta tipificação personagem/ator
que também encontrou na publicidade do filme os
elementos principais sobre os quais trabalhar, como
não poderia deixar de ser.”
155
É importante ressaltar que, do ponto de vista do enredo, a chanchada
tinha um modelo que buscava responder por sua pouca variabilidade a um
desejo de consumo popular e ajudava a fixar os atores em personagens. Como
nos coloca Catani:
“Os roteiros das chanchadas acabavam obedecendo a
um princípio de elaboração esquemático, que se
manteve intacto em praticamente todas as produções.
As situações básicas eram as seguintes: mocinho e
mocinha se metem em situação delicada, cômico (o
amigo do mocinho, da mocinha ou de ambos) tenta
protegê-los; vilão leva vantagem, inicialmente; vilão
perde a vantagem e é derrotado, com a participação
decisiva do mocinho e do cômico”
156
.
155
Vieira, João Luiz. Foto de cena e chanchada: a eficácia do “star system” no Brasil.
Dissertação de Mestrado. UFRJ, 1977, p. 22.
156
Catani, Afrânio M. História do cinema brasileiro: quatro ensaios. São Paulo: Panorama do
Saber, 2004, p. 85.
Sobre essa temática dos elementos estilísticos temos ainda um
depoimento de Carlos Manga, no qual demonstra uma preocupação com
respeito ao modelo parodiado. Neste sentido, indica que o filme
Matar ou Correr respeita mais o original (Matar ou
morrer / High Noon do Fred Zineman) porque a paixão
de fazer um filme de cowboy foi tão grande, que na
hora de criticar eu acabei fazendo bem feito. A
vontade de mostrar que sabia fazer causou um total
desequilíbrio da direção, eu não tive coragem (...)
Toda vez que o Oscarito não estava em cena, eu
levava a sério.”
157
Aqui vemos uma radiografia do fundamento do modo de produção pela
voz de Manga. Num primeiro plano a admiração pela técnica do cinema
americano e pelos gêneros. Fica claramente demonstrada uma configuração
da falta de estima que se desdobrava sobre a posição do diretor, que era
encarado como o “culpado” pelo resultado final. O ator cômico estava a salvo
do desgaste já que, afinal de contas, tinha feito seu trabalho a contento e, mais
ainda, como a relação com o humor do rádio e do teatro de revista é básica no
sistema: ele (o ator), na realidade, se escorava nestas relações provenientes
daqueles veículos. De toda forma, o humor não era normalmente prejudicado
pela claudicância dos meios técnicos ou expressivos. Ao contrário, em muitas
situações as desvantagens sentidas pelo diretor poderiam se tornar vantajosas
para o ator na construção de uma personagem.
No entanto, sabemos que o estilo e os conteúdos dos filmes da Atlântida
tiveram uma variação bastante grande no período de 1941 a 1962. Contamos
desde Moleque Tião, que José Sanz indica como “introduzindo os preceitos do
157
Depoimento a João Luiz Vieira em Filme Cultura Ano XVI. Número,41/42.Rio de Janeiro,
Embrafilme, 1983, p.36..
neo-realismo”
158
, até o cinema socializante (expressão cunhada por Benedito J.
Duarte)
159
ou sério que intercalava com o lançamento de carnaval. Como
afirma Nelson Pereira do Santos,
“era sempre a chanchada e tinha o filme de meio
de ano, que era o filme do tipo A Sombra da Outra
do Macedo. Outro tipo de produção independente
... filmes bastante preocupados do ponto de vista
da dramaturgia. Mas que não colavam também. O
que colava era a chanchada, do ponto de vista
comercial.”
160
O engraçado disso tudo é que todo mundo sabia da predileção do
público pela chanchada em detrimento do filme sério e as duas expressões têm
laços de influência estética irrefutáveis com o cinema americano. Ora, os
principais diretores da Atlântida também demonstram sua admiração pelo
produto dominante, assim como os principais críticos. Esse possível ponto de
contato, ao contrário do que podíamos esperar, não ajuda o dialogo entre os
dois campos e até os afasta.
Uma das questões em torno das quais gira esse afastamento são os
defeitos dos filmes da Atlântida que estariam ligados à incompetência dos
realizadores. Como a posição da crítica é de dominância sobre o meio de
comunicação, ela mesma não se submete à avaliação e não pode ser chamada
de incompetente. No entanto, quando temos uma recepção tão calorosa por
parte do blico, o mínimo que se espera é um cuidado maior na análise.
Imediatamente vem a mente a explicação de Mario Civelli ao afirmar que
“O público perdoa uma fotografia mais ou menos.
O blico não liga muito para qualidade de som,
158
Catani & Souza, op. cit., p. 39.
159
Idem.
160
Nelson Pereira dos Santos em entrevista ao autor.
isto é, não se importa se o som é feito com
aparelhos de fama internacional, se a modulação
dos baixos e dos agudos é perfeita. O público
quer discernir o que os atores dizem e o que a
orquestra toca.”
161
Assim, os tais defeitos do filmes podem até ser absorvidos como “estilo”
e parte integrante de uma técnica estilística ou a falta dela, imposta pelas
condições mesmas de rentabilidade e ocupação periférica do mercado de
exibição. A palavra defeito é definida no Aurélio como imperfeição, deficiência,
deformidade e esses sentidos da palavra invocam um padrão de comparação
que podemos afirmar com certeza ser o filme hollywoodiano. Vejamos uma
digressão de David Neves sobre as imperfeições da chanchada:
“Pelo seu artificialismo imanente compreende-se
a chanchada a priori, isto é, as próprias
deficiências do veículo eram elementos risíveis e
se inseriam no contexto. É muito importante este
fato, porque explica o despeito intrínseco do
público pelas nossas coisas de cinema. Os
defeitos se transferiram da chanchada para outros
filmes ditos sérios e o reflexo condicionado
permaneceu. A solução para as descontinuidades
visuais do cinema brasileiro é fator premente na
solução do problema de sua não aceitação pelo
público. O vício se repete de filme para filme e o
que cada vez mais é considerado essencial e
aprovado pelos laboratórios baseados em dados
industriais decadentes e pelos homens formados
na escola "expressionista" da chanchada, como
Toni Rabatoni, não passa, na realidade, da mais
arcaica forma fotográfica de visualização”.
162
Aqui o defeito não apenas é signo de rejeição ao cinema brasileiro como
passa pelas produções e gerações como um tipo de doença contagiosa. Já por
161
Civelli, Mario. “Experiências pessoais sobre o cinema nacional”. A cena muda, Rio de
Janeiro, n. 21, 22 maio 1952, p. 35.
162
Neves, David. “Cinema Novo no Brasil”, Contracampo, n. 39/40,
http://www.contracampo.com.br/39/ cinemanovonobrasil.htm
outro viés de busca, ligado ao Cinema Novo, esse raciocínio classifica de
maneira generalista e não se ao trabalho de apontar o parâmetro de
comparação. Essa categorização dos defeitos da chanchada segue um padrão
e encontra suas raízes na comparação negativa e no caráter paródico na
relação com o cinema americano. Quando a comparação vem do campo do
Cinema Novo as reclamações estão calcadas nesta mesma relação com o
cinema americano, ainda que por outro viés. Senão vejamos, Neves destaca
serem os elementos do cinema industrial,
“iluminação e enquadramento expressionistas. O
enquadramento tende especialmente para a
estratificação e a rigidez. O personagem está evidente
e explicitamente à disposição do espectador e, como
num palco, sua dicção tem o volume bastante
acentuado. Da última fila do cinema o espectador
sonolento verá e ouvirá com perfeição o que ele tem a
fazer ou a falar.”
163
Se os alegados defeitos são realmente defeitos é uma reposta que não
podemos dar aqui. Certamente o desenvolvimento de estudos sobre campo
estilístico da chanchada e da produção da Atlântida como um todo, num viés
complementar à compreensão de sua inserção em um único modo de
produção de substituição de importações, talvez nos mostre outra face dessas
que eram e são encaradas como deficiências na comparação com o cinema
americano com o qual se articulava em mais de um sentido, não apenas
mercantil e expressivo. Infelizmente um olhar parcial e competitivo no processo
de sua avaliação acabou por relegar essas especificidades ao lugar das coisas
que devem ser evitadas para se conseguir um “bom filme”. Perdeu-se assim
163
Idem.
um valioso aspecto da comunicabilidade com o público e todo um campo de
identificação com tipos e fazeres brasileiros.
Chegando ao nosso quarto estágio, tentamos reunir os elementos que
se sobressaem em sua relação com a questão da distribuição, como a
característica principal e articuladora deste modo de produção. A recepção
daqueles filmes, considerados pouco sérios pela crítica, foi o motor de
construção de seu interesse pelo sistema de exibição e distribuição.
Retornando ao ano de 1944, o apelo público do filme que salva a companhia
de soçobrar Tristezas não pagam dívidas apresenta a primeira comédia de
um longo ciclo de produção. Também é o primeiro filme da dupla Oscarito e
Grande Otelo. o atuam ainda da maneira como foram consagrados mais
tarde, ainda que naquele filme eles tenham representado papéis secundários.
Este filme, além de “salvar a lavoura”
164
, foi o primeiro distribuído pela
UCB - União Cinematográfica Brasileira, que será então a distribuidora de
todos os outros 62 filmes que serão produzidos pela Atlântida. Os primeiros
filmes foram distribuídos pela DFB - Distribuidora de Filmes Brasileiros (Astros
em Desfile, 1942, e É Proibido Sonhar, 1943) ou pela CNF - Cooperativa
Nacional de Filmes (Moleque Tião, 1943); sobre o documentário Brasil
Desconhecido (1944) não temos a informação da distribuição. Foram
produzidos 14 filmes até 1947, ano em que Severiano Ribeiro entrou como
sócio da produtora. Essa mudança é considerada o marco para a fase mais
prolífica da empresa e, no nosso caso, essa segunda Atlântida é certamente a
legítima representante do modo de produção de substituição e importações.
164
Barro, op. cit.
Ao analisar a história das chanchadas, separando-a em fases, Catani
demonstra que se pode
“Observar duas fases distintas na trajetória das
chanchadas no Cinema Brasileiro. A primeira vai até
aproximadamente o início dos anos 40. Grosso modo.
Essas películas têm argumentos, motivos e situações
homogêneos, carnavalescos (e às vezes juninos),
Filmes típicos dessa época são Alô, Alô, Brasil
(direção Wallace Downey, 1935), Alô, Alô, Carnaval!
(direção Adhemar Gonzaga, 1936), ambos produzidos
pela Waldow – Cinédia. (...)
A segunda fase pode ser situada a partir dos anos 40
prolongando-se até o começo da década de 60. Nesse
período argumentos, roteiros, situações e enredos
tornam-se mais heterogêneos...”
165
Os filmes da primeira fase são anteriores à Atlântida. em relação à
segunda fase, Catani faz uma pausa para explicar a novidade de fundação da
Atlântida e sua posterior aquisição pelo grupo Severiano Ribeiro. Essa pausa
não é gratuita, pois o surgimento da companhia tem a função de catalisar as
reações em uma linha de produção de conteúdo que já existia desde os
primórdios do cinema brasileiro. Algumas páginas antes no mesmo texto de
Catani encontraremos uma descrição da dificuldade em achar uma “definição
de Chanchada”
166
. Não podemos deixar de notar que, na introdução ao livro, A
chanchada no cinema brasileiro, este autor, a partir de Jean-Claude Bernardet,
indicia uma divisão em quatro fases. Essa mesma divisão da história das
chanchadas acrescentada de uma fase portanto em 5 fases será
encontrada noutras fontes de data posterior. Neste caso, o período da Atlântida
estaria inserido nas terceira e quarta fases
167
, exatamente da mesma forma
165
Catani, op. cit., p. 83.
166
Idem, p. 80.
167
Um bom exemplo dessa corrente de pensamento pode ser encontrado no verbete da
Wikipedia sobre o tema. As cinco fases seriam: Primeira fase - As comédias mudas, Segunda
que na introdução anteriormente citada. O texto, utilizado em muitos trabalhos
sobre os ciclos de produção e o pensamento industrial do cinema brasileiro,
merece ser citado aqui.
“Tudo indica que Jean-Claude Bernardet não se
engana ao afirmar que as origens da chanchada estão
na base do cinema brasileiro, e aí, em alguns filmes
cômicos. O ano de 1929 (quando é realizado
Acabaram-se os Otários, direção de Luiz de Barros)
define uma segunda fase, com as seguintes
características: experimentam-se os filme sonoro de
ficção; utiliza-se um cômico popular, o caipira Genésio
Arruda; as músicas ficam a cargo de Paraguaçu, e o
filme faz enorme sucesso, permanecendo 76 dias em
exibição nos cinemas da capital carioca.
A terceira etapa tem início por volta de 1944-45,
quando a chanchada, o filme carnavalesco, consolida-
se definitivamente graças a Tristezas Não Pagam
Dívidas (1944) e Não Adianta Chorar (1945). Nessa
fase observa-se: a fundação da Atlântida Empresa
Cinematográfica do Brasil S/A; a instituição dos meses
de dezembro a março como espaço privilegiado do
filme brasileiro; o crescimento do mercado exibidor
que teria seu auge nos anos 50 e a imposição do
carnavalesco ao público.
A quarta etapa começaria em 1949, quando surge a
possibilidade de crítica da chanchada pelo ‘espírito’
burguês, exemplificado nos filmes da Vera Cruz. Essa
empresa cinematográfica produz até 1954, ano em
que a chanchada atinge seu ápice. Depois houve uma
queda gradativa, até o esgotamento do gênero, no
início dos anos 60.”
168
Interessante que essa segunda divisão, descrita no esquema de cinco
ou de quatro fases, reconhece uma cisão no interior do período de existência
da Atlântida e a coloca exatamente no momento da compra das ações por
Severiano. Quando olhamos para a história do cinema vemos uma linha de
desenvolvimento da comédia popular, onde essas duas décadas (40 e 50)
estão incluídas e funcionam como um centro de gravidade com poder de trazer,
fase - Os filme musicais, Terceira fase - Os carnavalescos da Atlântida, Quarta fase - A
chanchada, Quinta fase - As chanchadas B.
168
Catani, op. cit., p. 9-10; Catani & Souza, Op. cit., p. 39.
do desenvolvimento da comédia, duas fases para seu interior. Como a análise
do modo produção proporciona outras marcações, o fato de a mudança de
conteúdo, percebido na produção de Tristezas Não Pagam vidas é
acompanhada por outro fato de igual importância, ou seja, o advento da
distribuição desta primeira comédia ser feito pela UCB. Esta junção do aspecto
da distribuição é que nos permite dizer que naquele momento já se havia
iniciado um outro modo de produção específico.
Na leva dos primeiros três filmes não existe nenhuma comédia, e sim um
documentário e dois dramas. Nesta marca está o momento de olharmos para
adiante e vermos que, através das duas décadas seguintes de produção da
Atlântida, foi estabelecido um padrão que fica bastante claro quando
dedicamos atenção ao gênero produzido, sua periodicidade e as relações com
a arrecadação e mesmo expansão. O que começa com a busca dos ideais do
manifesto de fundação e dura até É proibido sonhar será inflectido com a
produção de Tristezas não pagam dívidas e abrirá uma seqüência de produção
de quatro comédias. Certamente, esse encadeamento tem suas razões na
bilheteria dos filmes, necessária para a continuidade da empresa que, como
todos sabemos, enfrentava dificuldades financeiras, depois das produções
iniciais mal sucedidas.
Após isso, temos Vidas solidárias, de 1945, um drama; depois dele, um
ciclo de duas comédias e este é o padrão que se institui. Podemos observar
pequenas alterações que não comprometem de nenhuma forma a sustentação
deste padrão até 1956. Cronologicamente teremos em 1947 a substituição de
uma das comédias por um filme de aventura, Asas do Brasil, dirigido por
Moacir Fenelon. o é estranho imaginar a tentativa, mesmo que tímida, de
inserção de outros gêneros populares a partir dos modelos oriundos do cinema
americano dominante, com a intenção de diversificar a produção. Este também
é o ano da entrada de Severiano como sócio majoritário, e, se antes temos a
UCB como distribuidor, a entrada do grupo Severiano não altera o padrão.
Neste sentido, o desdobramento natural seria encontrarmos uma mudança de
padrão na produção da Atlântida neste momento, mas não é o que acontece. A
produtora agora sob a administração do grupo Severiano - havia
encontrado um modus operandi que atendia a seus vários interesses: a
legislação mencionada, a verticalização de todo o processo da cadeia
produtiva e, por conseguinte, o que vemos é a manutenção do traçado, ou seja,
duas comédias, um drama.
Nos anos de 1948 e 1949, o que realmente ocorre é uma alteração no
número de filmes produzidos, que passam de três para cinco, mas esse
patamar não se mantém, voltando a dois filmes até 1952, que é o ano em que
se observa uma primeira alteração de monta. Na verdade, a produção vis à vis,
comédia drama, tem uma pequena alteração nestes anos, mas é comum o
aumento do mero de dramas. Foram produzidos, até o filme Amei um
bicheiro (1952), de Jorge Ileli e Paulo Wanderley, dez comédias e seis dramas
o que faz pender a balança um pouco acima da situação dois para um. Isso se
dá pela maior produção de comédias de 1948, quando a empresa produziu três
fitas cômicas, situação compensada em 1949, que terá o número invertido com
a produção de três dramas contra duas comédias. Entre essas duas situações,
temos um filme paradigmático na definição da especificidade do gênero –
Carnaval no Fogo, de Watson Macedo.
No ano de 1952, quando temos a entrada de Carlos Manga como
assistente de direção, é o momento em que acabará a proporção de um drama
para duas comédias. Passamos a ver um aumento do número de comédias,
porque, depois de Amei um Bicheiro, teremos um aumento de produção para
cinco filmes ao ano; em 1953, todas as produções serão deste tipo. em
1954 será produzido um drama, A Outra Face do Homem, de J. B. Tanko, e,
em 1955, dois: Paixão nas Selvas, de Franz Eichhorn, e Chico Viola não
Morreu, de Román Viñoly Barreto. Conclui-se que, se retirarmos o ano atípico
de 1953, no biênio de 1954/1955, temos oito produções e são cinco comédias
para três dramas. O que demonstra que apesar de uma ligeira modificação
quando olhamos para produção anual, ainda é possível sustentar a existência
do esquema de duas comédias para um drama.
Em 1956, temos um conhecido fenômeno de bilheteria, o filme Colégio
de Brotos, de Carlos Manga, que obteve uma recepção excelente e cabe
transcrever uma nota do texto de Vieira onde este afirma que
“Vale a pena destacar aqui o célebre exemplo de
Colégio de Brotos (1956) de Carlos Manga, que na
semana de lançamento conseguiu levar mais gente ao
cinema do que a produção norte-americana O
Exorcista, na década de 1970.”
169
Deste ponto em diante não será produzido mais nenhum drama pela
Atlântida. Serão vinte filmes até cessar a produção em 1962 e todos são
comédias, quase um terço do total de produção. Fazendo uma recapitulação
em relação ao sentido cronológico que estamos desenvolvendo, retornemos à
participação da UCB no ano de 1944. Com essa participação podemos puxar o
169
Vieira, op. cit., nota 53, p. 185.
marco da influência de Severiano para um período anterior a 1947. Com isso
sabemos que ele acompanhou a rentabilidade da empresa e amealhou, desde
1944, boa parte da rentabilidade dos filmes produzidos. O dinheiro da Atlântida
já escoava para os cofres do distribuidor, antes dele se tornar sócio majoritário.
A UCB era uma companhia distribuidora de grande importância e de
propriedade de Severiano Ribeiro. Como nos informa Gatti,
“uma empresa fundamental para o desenvolvimento
industrial do cinema nacional: A União
Cinematográfica Brasileira UCB, de propriedade do
grupo da família Severiano Ribeiro. A UCB seria
responsável pela distribuição nacional, associada com
agências regionais no Sul e Sudeste do país, das
chanchadas e de filmes de carnaval entre 1946 e
1947, quando o produtor e distribuidor Luís Severiano
Ribeiro Júnior assume o controle acionário dos
estúdios da Atlântida Cinematográfica. A UCB foi a
mais influente distribuidora de filmes brasileiros por
cerca de três décadas, tornando-se uma das mais
longevas distribuidoras de filmes brasileiros”
170
Sua importância nas décadas de 40 e 50 era enorme, e não apenas pela
sua atuação na chanchada carioca; para a Maristela, ela distribuiu oito filmes
(Carnaval em Lá Maior, Mulher de Verdade, O Canto do Mar, Simão, O Caolho,
Meu Destino É Pecar, O Comprador de Fazendas, Presença de Anita, Suzana
e o Presidente) dos catorze produzidos pela companhia e sua presença é
notada mais no início da década de 50 quando distribui os seis primeiros
filmes. Depois vai sendo gradualmente substituída pela Columbia Pictures.
Para confirmar a busca de controle e de ocupação do mercado, de uma
maneira que não incomodasse o seu principal fornecedor que era o cinema
170
Gatti, André. Verbete “Distribuição”, in: Ramos, Fernão P. & Miranda, Luiz Felipe (org.).
Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo: Editora Senac, 2000, p. 175.
norte-americano, encontramos em Catani uma passagem na qual se explica
sua atuação:
“1947 presenciou a entrada do truste exibidor de Luís
Severiano Ribeiro Jr. como produtor de filmes,
integrando-se ao mercado já dominado por ele nos
setores de exibição e distribuição. A estratégia da
participação do exibidor na produção tinha a sua
lógica. A seção Cinegráfica de O Cruzeiro acusava,
atrás da anônima assinatura de operador, que
Severiano durante a guerra havia comprado cotas da
Distribuidora de Filmes Brasileiros (DFB) e da
Distribuidora Nacional (DN), que eram duas das três
firmas especializadas na distribuição de filmes
brasileiros no eixo Rio-São Paulo. Severiano trazia o
cabedal dos territórios de exibição do Rio-Leste-
Nordeste-Norte do país, agora acrescido de um
laboratório cinematográfico que pretendia ser o melhor
do Brasil”.
E continua:
“O passo seguinte da estratégia do exibidor foi
aproveitar-se da exibição corrente do meio
cinematográfico, propondo co-produções a quantos
projetos houvesse. Operador fazia as contas dos
lucros do magnata da exibição: entrava com 50% do
capital na produção que em parte seria coberto por
trabalho de laboratório; terminada, a fita entrava em
exibição em seus cinemas, de onde retirava uma
participação de 50% da renda bruta que lhe cabia na
qualidade de exibidor. Abocanhava de 20 a 30% da
renda do filme como redistribuidor para outros
territórios através de sua coligada União
Cinematográfica Brasileira (UCB), por último, retirava
50% dos lucros do filme como co-produtor. Conclusão
de Operador: É por isso que além de seu laboratório,
vem pensando também na criação de um pequeno e
moderno estúdio, onde não só poderia realizar os seus
filmes, como o alugará aos produtores independentes,
que por sua vez lhe entregarão as distribuições,
continuando o complicado círculo vicioso do qual saíra
sempre o mais beneficiado. Operador destacava as
intenções do truste em setembro. No número 9 da sua
seção, datada de 18/10/47, ele nos informou que
Severiano Ribeiro invertera a sua rota de construção
de estúdios próprios pela compra de cotas da
Atlântida, tornando-se seu acionista majoritário”
171
.
171
Catani, op. cit., p. 9-10; Catani & Souza, Op. cit., p. 50-52.
Devemos lembrar ainda a produção de cinejornais, que arrecada
também uma parcela do preço do ingresso. A verticalização é a pedra de toque
do modo de produção de substituição de importação. Essa afirmação se
sustenta, em primeiro lugar, pela direção na formação do negócio; antes de
tudo um exibidor, depois percebendo o percentual destinado ao distribuidor,
fazendo o movimento de entrada neste mercado. Após isso, tendo acesso à
lucratividade das produtoras e filmes, escolhe o viés que se apresenta mais
lucrativo e adquire a maior representante, na época, da produção de comédias.
Essa ampliação exponencial de vender a si mesmo alavancava seus
espaços de exibição para vender também seus parceiros estrangeiros no
mercado brasileiro. Eram as salas que exibiam os filmes mais populares,
brasileiros ou estrangeiros. Numa primeira aproximação, poderíamos pensar
que a entrada de Severiano como sócio majoritário alterou radicalmente a linha
de produção da Atlântida, mas isso não aconteceu. Apenas dez anos depois de
sua entrada é que temos uma mudança drástica nas produções da companhia
cinematográfica. Essa transformação se dá mais pela mudança geral do
consumo de cinema no Brasil - que ganha velocidade após a metade da
década de 50 - e pelo desenvolvimento e consolidação dos gêneros que
sustentavam o modo de produção. Desta maneira, o modo de produção de
substituição de importações não foi um produtor unicamente de comédias, pois
um terço de sua produção eram dramas, filmes sérios, documentários e mesmo
um filme de aventura. Muito ainda pode ser explorado no viés da influência da
distribuição no tripé clássico da economia cinematográfica exibição,
distribuição e produção como fica claro quando percebemos a importância da
distribuição da UCB na Maristela, mas ai já escapa às intenções deste trabalho.
Penso que foi possível a sobrevivência, por duas décadas, da Atlântida
(e sua aquisição pelo grupo Severiano Ribeiro) por estarem amalgamadas, no
modo de produção de substituição de importação, duas grandes virtudes. A
primeira, a viabilidade econômica, pela via do acordo com o cinema
hegemônico que se expressava via legislação e no fato de Severiano ser o
distribuidor privilegiado do cinema americano. A segunda virtude reside na
herança da comédia popular assumida pela Atlântida, aprofundando e levando-
a a patamares nunca antes conseguidos pela produção cinematográfica no
Brasil.
O capitulo seguinte explora a construção e consolidação de outro modo
de produção de cinema no Brasil, a partir de um olhar mais atento com a
experiência do filme Rio, 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos.
Capítulo 4
O MODO DE PRODUÇAO COOPERATIVADO: O EXEMPLO DE
RIO 40 GRAUS
Temos que, de início, apresentar as dificuldades do enfrentamento da
descrição sobre cinema popular e a sua posição na historiografia do cinema
brasileiro. Sabemos que esse é um extenso e multifacetado debate, com
inúmeras variedades de abordagens. Neste sentido, não é nossa intenção
resolver aqui os problemas que envolvem a definição de cinema popular, posto
que a principal preocupação do presente trabalho é metodológica, sendo sua
finalidade última a construção de uma ferramenta de análise que possa ajudar
a interpretar o conjunto de fontes existentes sobre o tema.
Uma primeira clivagem se impõe, pois as fontes são de dois tipos, ou
seja, há duas formas de produção intelectual a tratar. Uma primeira, com
origem nas pessoas ou personagens que produziam na época, como críticos,
diretores, roteiristas etc., e tinham, em suma, um tipo específico de militância.
Tais agentes disponibilizaram relatos que têm uma característica voltada ao
testemunho, normalmente dado através de depoimentos e biografias e, como
não poderia deixar de ser, são de inquestionável interesse.
Um segundo tipo de conteúdo a ser trabalhado tem uma grande
importância e outra procedência. Tem ainda outra vertente de valor, outro locus
e outro interesse. Refiro-me aqui à produção universitária que é extremamente
relevante quando falamos da década de 50.
A assertiva presente em alguns trabalhos sobre o cinema nacional nas
décadas de 40 e 50, ou seja, de que o tema é amplamente conhecido e coberto
pelos dois tipos gerais aqui referidos é, a meu ver, açodada, que muito das
práticas e das informações dos agentes ainda não foram coletadas ou estão
dispersas. A despeito dos enormes avanços sobre o conhecimento daquele
passado do cinema do país, ainda temos poucas análises sobre o período que
levem em conta o enfoque aqui proposto e que nos auxilie, por exemplo, na
construção analítica sobre o cinema em suas relações com o momento atual.
É digna de nota a existência de bons trabalhos no campo universitário
sobre o audiovisual e inestimáveis textos de pesquisadores produzidos em São
Paulo e no Rio de Janeiro. Esses textos encontram sustentação em um
compromisso com o objeto tratado e contêm atributos valiosos e pertinentes no
campo da produção acadêmica. Respeitam e estabelecem uma forma de
discussão que se organiza em progressão, onde um texto pode e deve apoiar-
se sobre as conclusões de um antecessor e dirigem-se em direção à
especialização.
A importância deste preâmbulo é que a própria análise aqui apresentada
utiliza como guia estes atributos, vale dizer, ter um trabalho anterior como base
e ponto de partida e, por conseguinte, desdobra-se em uma discussão com
propostas e no sentido de abertura de outras conclusões Desta maneira, o
trabalho de Mariarosaria Fabris, Nelson Pereira dos Santos: um olhar neo-
realista?, é princípio e fundamento privilegiado no exame dos filmes Rio, 40
graus e Rio, Zona Norte. A partir dele, abriram-se novas possibilidades de
análise que com ele guardam uma relação lógica. Não poderia ser diferente
que praticamente toda a produção intelectual acadêmica tem esta
característica de apropriar-se de conclusões disponíveis no corpo de
pensamento consolidado e tentar acrescentar mais solo para,
posteriormente, desse ponto outro trilhar.
Antes, portanto, de iniciar a exploração do filme Rio, 40 graus, temos no
trabalho de Fabris um conjunto de conclusões que nos projetam, em parte, um
problema fundamental, o de ser “óbvio como diz Jean-Claude Bernardet
que compreender o cinema realista brasileiro dos anos 50 como uma mera
assimilação do neo-realismo, ou um prolongamento do movimento italiano o
satisfaz a ninguém”
172
. Fabris ilumina, com seu trabalho, a necessidade de
aditarmos informações, argumentativas e analíticas quando falarmos dos filmes
e do período. Essa é uma necessária amplificação de elementos para o
julgamento, acerca da recepção do neo-realismo no Brasil e sua decisiva
influência nos trabalhos de nossos cineastas e críticos. O alcance desse ânimo
tematiza questões importantíssimas para a estética e para a economia do
cinema.
A força da recepção do neo-realismo vem de encontro às questões
levantadas por vários pesquisadores que tem interpretado idéias-força da
época. Uma que trabalha com a oposição entre a produção industrial e a
produção desorganizada e sem condições. os que enfocam a problemática
do conteúdo brasileiro. ainda a oposição entre cultura popular e cultura
erudita. Como exemplo, temos Ortiz enfatizando que a
172
Citado por Fabris, Mariarosaria. Nelson Pereira dos Santos: um olhar neo-realista?. São Paulo: Edusp,
1994, p. 88. É importante ressaltar que, além de Jean-Claude Bernardet, esse tipo de reflexão foi
desenvolvido também por Glauber Rocha, asseverando assim o alto grau de aceitação da interpretação e
toda a problemática que aparecia com esta nova forma de filmar e produzir cinema.
“oposição Vera Cruz / chanchada não corresponde a
uma contraposição entre cultura burguesa / cultura
popular. Trata-se na verdade, de produções voltadas
para públicos diferentes (...) produzir um cinema mais
sofisticado não se está tomando como parâmetro o
filme de autor, por exemplo o neo-realismo italiano,
mas uma dramaturgia que se assenta na conquista
tecnológica e na produção industrial de caráter
empresarial”
173
O modo de produção que surge na compressão destas colisões
estabelece uma ligação privilegiada exatamente com o neo-realismo; como
expresso no texto de Fabris, os “jovens críticos e futuros cineastas, muitos dos
quase se preparavam para renovar o cinema brasileiro” sob a influência das
idéias neo-realistas que os “haviam entusiasmado não pelo humanismo que
as impregnava, mas também porque eram a expressão de um cinema factível,
de um modelo de cinema que, sem grandes aparatos técnicos, permitia
resultados, no mínimo satisfatórios”
174
.
O neo-realismo é, em si mesmo, o surgimento de uma nova proposta
estética ligada de maneira peculiar a uma proposta de forma de filmar e
produzir . Neste sentido,
“apesar do interesse pela retomada econômica da
industria cinematográfica italiana e da defesa dos
filmes identificáveis com seu projeto cultural, o
discurso crítico que a esquerda desenvolveu a respeito
do cinema raras vezes o focalizou em seu duplo
aspecto de produto estético e comercial. Por isso,
somos levados a concordar com Francesco Pinto
quando afirma que ‘o neo-realismo, apesar de ser
ideologicamente hegemônico, nascia politicamente
vencido: logo nos anos em que ele externou sua
capacidade máxima nos planos produtivo e teórico,
evidenciava-se mais claramente a divisão entre
controle da mensagem e gestão do aparelho’.
Portanto, ‘ele pagava (...) por sua incapacidade de
superar o estágio da pura e simples intervenção
173
Ortiz, Renato. A moderna tradição brasileira, São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 70.
174
Fabris, op. cit., p. 59.
intelectual, continuando a produzir mensagens
populares, consideradas como valores alternativos,
sem levar em conta a máquina industrial que as havia
fabricado”.
175
O sistema de produção na Itália realmente era dominado por outras
forças e uma das explicações expostas foi a forma como os católicos
controlaram os “pontos–chave da indústria cinematográfica” e prestaram “todo
seu apoio às indústrias americanas, por meio da presença de eclesiásticos
nas comissões censórias”
176
. É importante robustecer essas afirmações, assim
com o faz Fabris, com o exame de Lino Micciché, para quem “o olhar’ neo-
realista e, sobretudo, a teleologia daquele olhar determinaram todo o modo de
olhar (e o modo de produzir) do cinema italiano, e não somente de alguns
mestres”
177
. Desta maneira, fica clara que a questão no cinema neo-realista
passa pela associação da economia do cinema com um resultado estético
específico. Essa associação é realmente o tema de reflexão naquele momento
histórico. Não está claro, porém, para a maioria das pessoas que essa não é
uma simples coincidência. A falta de meios de produção aqui é necessária.
Não importa examinar se os cineastas italianos queriam ou não realizar com
meios mas ‘profissionais’ ou hollywoodizados. Importa sim perceber que, de
fato, essa associação forma esquemas novos, fora dos padrões industriais e
possibilita conteúdos diferenciados assim efetivando os resultados vistos nos
filmes.
no Brasil teremos uma recepção própria dessas idéias e filmes que
nos interessa explorar com a intenção de expor como, no bojo mesmo de trazer
175
Idem, p. 29- 30.
176
Idem, p. 30.
177
Citado por Idem, p. 56.
o conteúdo humanístico, sem os grandes aparatos técnicos de um cinema
factível, como já dito acima, acaba por criar um novo modo de produção.
Inicialmente temos que procurar, nos vários lugares, essa influência
estrangeira essencial. É quase ocioso explicar que a recepção do neo-realismo
no Brasil não se interpenetra apenas com a produção de Nelson Pereira dos
Santos e que esses filmes e seu esquema peculiar ecoaram durante muitos
anos em nosso espaço nacional e em nosso mercado onde a dominação
estrangeira era e é ainda mais nociva que na Itália.
Enquanto naquele país, na opinião de Lino Micciché, “o neo-realismo
representou uma transgressão que eclodiu à margem de uma situação de
continuidade na cinematografia italiana do pós-guerra”
178
, aqui ele explode no
centro das discussões sobre como produzir um cinema essencialmente
brasileiro e, mesmo nas tentativas de construção de um cinema industrial
representadas pela Vera Cruz, ele será discutido e de alguma maneira
apropriado. Junto com a apropriação de um modelo técnico de produção de
cinema hollywoodiano, os seus ideadores apreciavam também “as realizações
européias, identificadas com o cinema culto, que lhes permitiam aprofundar e
refinar seus conhecimentos”. Desta maneira, se dirigiam críticas “aos grandes
estúdios norte-americanos, estas visavam não os recursos técnicos
empregados, mas o mau uso que deles se fazia”
179
.
Como um dos principais interesses são os aspectos da fabricação dos
filmes é importante chamar à arena as “conclusões de uma mesa-redonda
sobre a produção cinematográfica nacional”, onde era apontado como causa
178
Idem, p. 55.
179
Idem, p. 42.
da pouca qualidade do cinema nacional o uso do expediente de “baixar o
cinema ao povo em vez de levar o cinema o povo ao cinema”. Como vemos a
interpretação moderna em tudo deve as proposições existentes na época e
encontramos uma continuidade na visão a respeito do cinema popular como
possuidor de uma marca indelével da baixa qualidade. Entretanto, nem a Vera
Cruz, que é a tentativa mais próxima de um cinema industrial no Brasil
consegue uma profissionalização completa. O fato de “de renegar o cinema
artesanal” não impede que conte na sua equipe com um grande número de
amadores, de improvisadores”. Mais que isso, ela estava “voltada para a
produção e, pelo menos no começo, o se preocupou em entender a
importância da distribuição e da exibição (...), acabando por confiar a
distribuição de seus filmes a companhias estrangeiras”. “O cinema nacional,
portanto, era entendido como tal enquanto produção e não enquanto conquista
de mercado”
180
.
Mais uma vez retornamos as relações entre a produção, distribuição e
exibição como essenciais para entendermos os modos de produção que viriam
a se implantar no cinema brasileiro. Claro que, com essa afirmação que
termina o último parágrafo, expõem-se questões que acompanham os
problemas inerentes às tentativas de produção em série que, é importante
lembrar, no texto clássico de Galvão e Bernardet também vemos demonstrado
o incomodo com a “standartização (...) que impede a realização de filmes de
valor”
181
. Essas percepções da standartização revelam uma reação estética e
econômica que funciona como uma das fontes desse chamado cinema popular.
180
Ibidem, p. 40 e 43. .
181
Galvão, Maria Rita & Bernardet, Jean-Claude. Cinema: repercussões em caixa de eco ideológicas (as
idéias de “nacional” e “popular” no pensamento cinematográfico brasileiro). São Paulo:
Brasiliense/Embrafilme, 1983, p 195.
Ela se expressará também nas proposições feitas pelos vários realizadores e
suas possibilidades de aceitação e/ou realização através das estruturas
existentes.
Como exemplo, temos os depoimentos que, menos que se preocupar
com os problemas de produção e distribuição, dirigem às questões temáticas a
raiz das dificuldades encontradas. Partindo de uma posição que, em alguns,
era ideológica e, em outros, talvez estivesse ligada aos objetos e assuntos que,
como autor gostaria de tratar, tentam se utilizar da estrutura industrial para
redirecioná-la para outro tipo de atitude. Nesta direção, temos Roberto Santos
que afirma:
“A produção dos grandes estúdios era bem-cuidada e
tecnicamente muito boa; apenas os temas dos seus
filmes eram falsos. Nós então pensávamos que
poderíamos aproveitar o aparato técnico e de
produção das grandes empresas para fazer filmes
autênticos e íamos bater à porta da Maristela, da
Multifilmes, da Vera Cruz com as nossas idéias no
bolso, crentes de que elas nos dariam a oportunidade
de concretizá-las. Era uma posição realmente
contraditória a nossa. Porque pensar em novos temas
radicalmente diversos da linha de produção das
empresas e supor que se podia contar com elas, ou
mesmo atuar dentro delas, para modificar a linha de
produção que elas tentavam impor, é um negócio meio
incongruente, incoerente mesmo. que não se tinha
consciência disso na época ou eu, pelo menos, não
tinha”
182
.
Tais percepções ligam-se às interpretações ou previsões do que vai
fazer sucesso com o púbico. A discussão sempiterna do que vai ser aceito e o
que é arte, melhor dizendo, se o consumo de determinado filme se deve a
hábitos arraigados ligados a um tipo de produção ou a sua relativa facilidade de
entendimento e comunicação com uma maioria a ser atingida. Óbvio também
182
Citado por Fabris, op. cit., p. 60.
que ninguém tem resposta definitiva para essas questões, mas não é absurdo
esperar que essas produtoras, ligadas ao cinema industrial, tentassem
responder à pressão no mercado de distribuição e exibição. Havia, portanto,
pouca margem de manobra, ou pior, nenhuma, como alguns pensam ter
acontecido com a Vera Cruz. Temos, neste caso, o depoimento de Anselmo
Duarte que nos diz que, em razão da “péssima venda dos filmes, Zampari foi à
falência e entregou os filmes por uma bagatela para a Columbia, a mesma que
vendia as fitas”
183
.
Em depoimento a Maria Rita Galvão, Alberto Cavalcanti queixa-se
bastante da atuação de Franco Zampari no que toca às atividades comerciais
relativas à distribuição dos filmes. Logo no início deixa claro que deveria ser
“consultado nas modalidades dos contratos de distribuição”
184
e, mais adiante
reclama que o “contrato de distribuição era firmado com a Universal”. Sua
argumentação gira em torno de uma questão a respeito de adiantamento sobre
a renda, oferta da Columbia e que ele defendia. Sabemos que, posteriormente,
a Vera Cruz assinaria com a Columbia e o fato de existir o adiantamento não é
realmente o assunto central. Essa soma adiantada será depois descontada da
arrecadação total do filme bem como serão abatidas todas as despesas
decorrentes do lançamento e dos custos de distribuição. Apesar de ser
importante ter um adiantamento é corrente ser outra a grande demanda
contratual, no que diz respeito à distribuição. Especificamente são as formas
contratadas de prestação de contas e de fiscalização dos tais gastos de
distribuição, sem o que a produtora não tem instrumentos para aferir o que
183
Duarte, Anselmo. Anselmo Duarte em depoimento a Cristina Magalhães. Rio de Janeiro: Editora Rio,
2005, p. 52.
184
Galvão, Maria Rita. Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1981, p. 97.
realmente foi gasto e recebido no processo de acerto de contas necessário
com o distribuidor.
A parte todo o ressentimento que aflora no depoimento de Alberto
Cavalcanti, podemos, através de seu conteúdo, nos aproximar de várias das
questões já tratadas. A acreditar pelo menos em parte em suas palavras,
vemos uma iniciativa industrial com muitos problemas de fluxo de sua produção
de títulos, nepotismo e para piorar um tipo de administração familiar que é
perigosa em qualquer iniciativa empresarial. Vale a pena utilizar os números
fornecidos por ele para os dois primeiros anos: em 1950, dois filmes e dois
documentários e, em 1951, apenas um filme e um documentário. Com todo o
investimento feito é claro que se terá dificuldade de retorno apenas com essa
produção. Outro ponto advém da sua explicação para a escolha de tantas
nacionalidades na formação da equipe da Vera Cruz, uma vez que, usando
suas próprias palavras,
“escolhi técnicos de nacionalidades diferentes, para
que o estilo de produção não fosse prejudicado por um
grupo de mesma origem, que lhe impusesse o seu
próprio estilo”
185
.
Apoiando essas conclusões temos também uma posição de Alex Viany,
o qual, discorrendo sobre o desenvolvimento das condições de surgimento de
novas propostas de produção e analisando o caso da companhia
cinematográfica paulista, também em depoimento a Maria Rita, acredita que
“esse sistema, (Vera Cruz) para o Brasil não tinha
nenhuma razão de ser. Se mesmo no período áureo
dos estúdios o cinema hollywoodiano estava longe de
ser meu ideal de cinema, o que poderia ser um cinema
185
Idem, p. 109.
daquele tipo feito no Brasil, senão uma contrafação
medíocre de filmes já medíocres em si?”
186
Como podemos perceber, estamos mergulhados a o pescoço no
primeiro nível de análise previamente indicado. Para reviver o tema
apresentado em capítulo anterior, temos um primeiro nível de análise proposto
quando da divisão de cunho didático que fiz do conceito de modo de produção.
Essa divisão foi necessária para simplificar a construção da aplicação de um
método de análise para o cinema brasileiro. Senão vejamos novamente sua
descrição. Este primeiro nível se refere à base econômica e será composto
com elementos singulares. Em primeiro lugar, usaremos o nível de organização
empresarial e esse patamar organizacional das companhias cinematográficas
reflete sobre as outras variáveis. A primeira delas, com grande amplitude, é a
condição de penetração no mercado exibidor nacional e internacional.
Devemos começar com essa para passarmos posteriormente a outros dados
que naturalmente se agregarão a ela. São eles a legislação reguladora e o
investimento estatal. Nesta ordem, que carrega um tanto de arbítrio, teremos
em seqüência a inovação técnica e acesso aos meios de produção.
Objetivamente creio ser mais proveitoso, no que tange à clareza, a
realização de comparações entre as várias condições peculiares de produção
que compõem essas variáveis, para que se possa demonstrar como, no
processo histórico, temos claramente uma relação de causalidade onde, a
partir de um, temos decorrente o outro, seja por mecanismos de resistência
seja pelas estruturas de exclusão. O surgimento da Companhia
186
Idem, p. 197. É interessante notar que Alex Viany era considerado por Cavalcanti um adversário. Este
declara, no depoimento já citado, que Viany, como jornalista, foi remunerado para realizar uma campanha
difamatória contra ele. Podemos então afirmar ser um outro lado da moeda.
Cinematográfica Vera Cruz detona um conjunto de reações nos rios atores e
podemos ver, no curso de suas escolhas, o diálogo entre o existente e os
que estão no movimento de propor formas alternativas para produção,
distribuição e ocupação do mercado. Viany, com essa proposição que
acabamos de citar, quase antecipa suas ações posteriores, aparentes em sua
atuação em filmes como O saci (1953), de Rodolfo Nanni. Esse filme tinha
como objetivo outra forma de produção e de ocupação do mercado, colocando-
se como alternativa às principais formas empresarias ao que então existiam.
Em outras palavras, aparece como uma linha de transição para a fabricação de
outro conteúdo, esse realmente brasileiro e outro modelo de empresa
cinematográfica. Isso tudo indicava a gestação de um novo modo de produção.
Assim, o processo de enfileirar vários depoimentos tenta referir as ações
dos agentes à época e, de certa maneira, perceber como se organizam
enquanto uma reação ao que seria o centro desse primeiro nível na proposta
industrial da Vera Cruz. A transformação teve conseqüências bastante
relevantes no produto final. Nesta direção, Anselmo Duarte afirma, sobre o
advento da Vera Cruz, “que todo mundo queria trabalhar lá”, já que eles
“tinham uma equipe competentíssima e pagavam muito bem”, tendo ele em
1951 saído da Atlântida “com um salário de 13 mil cruzeiros” e ido “para a Vera
Cruz com 50 mil”
187
. No conjunto das entrevistas, temos vários momentos onde
se fala desses salários fora de padrão, porém um exemplo que compara bem,
inclusive com ganhos de fora do cinema, é a fala de Gini Brentani, filha do
diretor–geral da Arno, que faz o confronto de seu salário de 3 mil cruzeiros
187
Duarte, op. cit., p. 49.
como secretária com o de seu pai que era de 5 mil
188
. Isso mostra como para
determinadas parcelas dos trabalhadores de cinema os salários, incompatíveis
com a realidade de qualquer outro empregador, eram um atrativo poderoso
para a mão de obra, alterando parâmetros e impactando de forma feroz o
mercado como um todo.
Na exposição de Viany também aparece esse processo de
parametrização do caso Vera Cruz, mas de forma negativa, como uma reação.
Isso fica claro quando expõe que
“seria uma eventual segunda Americana,
grandiloqüente e totalmente ignorante com relação aos
problemas do cinema brasileiro que nós, cariocas,
conhecíamos tão bem. E ficou logo claro que a melhor
gente daquela época, a gente que tinha experiência e
consciência dos problemas, não teria vez na Vera
Cruz. Era um absurdo inqualificável que uma
companhia daquelas importasse uma porção de
estrangeiros quando, por exemplo, um grande
fotógrafo como Edgar Brasil estava aí a disposição”
189
A posição de Viany é complementada pela análise seguinte:
“Do lado positivo, deve-se ressaltar, houve uma
sensível melhora no nível técnico e artístico de nossos
filmes depois do aparecimento dos estúdios de São
Bernardo. Além disso, com todas as falhas de
estrutura, programa e administração, não há dúvida de
que, num sentido histórico, a Vera Cruz precipitou a
industrialização do cinema no Brasil. Do lado negativo,
entretanto, houve um abrupto encarecimento da
produção, nem sempre justificado pela melhoria
técnica e artística. Muita gente diz, provavelmente com
razão, que a Vera Cruz quis voar muito alto e muito
depressa, construindo estúdios grandes demais para
seu programa de produção, ao mesmo tempo em que
descuidava de fatores tão importantes como a
distribuição, a exibição, a administração e a
arrecadação
.”
190
188
Galvão, op. cit., p. 111.
189
Idem, p. 197.
190
Viany, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1993, p. 97.
Alguns outros alertaram para esses problemas visíveis na execução do
projeto industrial e apesar do reconhecimento de Viany de ser sua posição
minoritária, cremos que talvez ele não estivesse assim tão solitário.
Analiticamente, podemos traçar uma fronteira de resistência aos métodos
utilizados pelo projeto de organização industrial do cinema brasileiro. Esta pode
ser observada também na conclusão de Viany, que, assumindo ser ainda de
uma maneira desorganizada, propunha uma organização para o cinema
brasileiro totalmente diferente “independente, o-empresarial, e fora de
estúdios”
191
.
Observamos, portanto, uma concentração de depoimentos, entrevistas e
mesmo interpretações de estudiosos da história do cinema brasileiro em torno
da influência do neo-realismo sobre o cinema que sucede de várias maneiras a
Vera Cruz e a Atlântida. Alex Viany é um fundamento desses preceitos e
pensamentos. A continuidade de seu discurso desloca as forças do neo-
realismo para o centro do problema, demonstrando ser “preciso não esquecer
de que era época do neo-realismo”, quando se “forjaram as idéias que
tornaram possível o desenvolvimento de um pensamento e de uma prática
cinematográfica”
192
. Também Nelson Pereira dos Santos vai afirmar na revista
Fundamentos, ao discorrer sobre ecos do neo-realismo na Vera Cruz, que “o
verdadeiro realismo não se acha somente na forma; está, antes de tudo, no
assunto e no seu tratamento”
193
. Deste ponto, Fabris organiza os discursos e
mostra que “as idéias do cinema neo-realista, visto como cinema voltado para
191
Idem.p.
192
Idem, p 198.
193
Santos, Nelson dos. Caiçara negação do cinema brasileiro”. Fundamentos, o Paulo, v. III, n. 17,
jan. 1951, p. 45.
as questões sociais, voltam a circular com maior intensidade e começa-se a
relacionar os resultados artísticos alcançados pelo neo-realismo com o seu
sistema de produção”
194
.
O que vemos aqui é uma afluência de idéias-força sobre o que poderia
dar certo no Brasil como proposta e essa corrente monta a idéia de cinema
independente que perdurará nas próximas três décadas. Independência
empresarial e conteúdo brasileiro é a formulação geral expressa, em parte, no
texto de Galvão, ao indicar:
“Para ser qualificado de independente um filme deve
ter um conjunto de características que freqüentemente
nada têm a ver com seu esquema de produção tais
com temática brasileira, visão crítica da sociedade,
aproximação da realidade cotidiana do homem
brasileiro. Misturam-se aos problemas de produção
questões de arte e cultura, de técnica e linguagem, de
criação autoral, e a ‘brasilidade’.”
195
Esse esforço ordena os mesmos elementos, de maneira um pouco
diversa, e nos ajuda na exploração desse primeiro nível da definição de modo
de produção defendida aqui. Não é somente nesta ocasião que encontramos
essa classificação. Fabris faz um resumo dos temas debatidos no II Congresso
Nacional do Cinema Brasileiro, onde coloca como foco dos trabalhos o
seguinte:
“1. Necessidade de uma legislação protecionista para
assegurar ao cinema brasileiro seu próprio mercado
(...);
2. Compreensão dos sistemas de produção,
distribuição e exibição, a fim de acabar com algumas
distorções como a concentração da distribuição nas
mãos de empresas estrangeiras que boicotavam a
194
Fabris, op. cit., p. 69.
195
Galvão, Maria Rita. “O desenvolvimento das idéias sobre Cinema Independente”. Cinema/BR, São
Paulo, n. 1, setembro 1977, p. 16.
produção nacional e favoreciam a dominação do
mercado pelos filmes estrangeiros, sobretudo norte-
americanos (cuja exibição era praticamente financiada
pelo governo brasileiro, ao cobrir a diferença entre o
câmbio oficial e o câmbio livre) (...);
3. Definição de filme brasileiro: realizado em estúdios
e laboratórios nacionais, com capital cem por cento
brasileiro; argumento, roteiro, diálogos e direção de
brasileiro ou estrangeiro radicado no Brasil; equipes
técnica e artística que obedeçam à lei dos dois terços,
sendo intérpretes principais brasileiros;
4. Desenvolvimento de uma temática nacional: retratar
o homem brasileiro e por homem brasileiro entendia-
se o homem do povo – em seu trabalho, em seu modo
de pensar, em seu jeito de andar, falar, vestir, se
mexer, ser, existir.”
196
Os enfoques salientados deixam clara a indicação de que tudo se
associava para que um outro tipo de organização empresarial aparecesse, para
permitir o surgimento do verdadeiro cinema brasileiro. Não é difícil perceber
que o fundo geral de toda a produção de um determinado grupo se encaminha
para esse novo modo de produção, mas sem uma consciência completa dessa
transformação. Isso pode ser demonstrado por algumas incongruências dentro
do grupo e alguns raciocínios empregados. Uma contradição era a tentativa de
bater às portas do sistema industrial da Vera Cruz para transformá-lo por
dentro ou fazer outro tipo de filmes, como lembrou Roberto Santos. Essas
pessoas percebiam a necessidade de realizar uma profunda renovação na
forma de produção e isso passava por criar suas próprias possibilidades de
produção. Como nos expõe Viany, o grupo era composto por ele, Nelson
Pereira dos Santos, Rodolfo Nanni, Carlos Ortiz, Ortiz Monteiro, Flávio
Tambellini e Luís Giovannini.
196
Fabris, op. cit., p. 73-74.
Rio, 40 Graus, um modo de produção.
Nesta parte do trabalho, assumimos a necessidade de partirmos de um
exemplo concreto no caso Rio, 40 Graus para podermos discutir os outros
níveis de análise propostos no estudo sobre modo de produção.
O filme O saci era uma escolha possível, porém, como já em parte
exposto aqui, O filme Rio, 40 Graus realiza tal transição. A obra está de
entremeio no ano de 1955 e carrega algumas das relações estéticas com o
neo-realismo na busca de um novo conteúdo e de uma nova expressão deste
conteúdo brasileiro. Além do mais, tem seu principal atributo na exigüidade de
recursos aplicados na sua produção e características de exibição que vão
desde a dependência da distribuição de uma major, no caso a Columbia, até a
recepção, mediada pela proibição de sua exibição pela polícia. O objetivo aqui
é descer a esses outros níveis de análise enfrentando certo grau de
incompletude, pois o caso é desenvolver metodologicamente o mecanismo
conceitual aplicado. Como está claro, pode-se utilizar fontes antigas para
perguntarmos algo novo.
Voltando ao primeiro nível extensamente explorado, temos então um
conjunto de pessoas a partir das quais apareceram as novas formas
organizacionais da produção de cinema. Afinal, como em todo fazer humano, é
necessário gente para a criação do novo. O caso que aqui nos serve de base e
nos ancora usa o principal formato e que passará a estar presente
diuturnamente no cinema brasileiro. A forma que foi utilizada em Rio, 40 graus
é cooperativa. Como estrutura não é de nenhuma maneira uma descoberta do
cinema, e sim uma apropriação de um modelo antigo existente, existente no
Brasil. O pretexto para seu surgimento no cinema tem razões similares às
encontradas no seu emprego original, fora do cinema, ou seja, permitir a
produção e/ou o consumo sem a posse de grandes somas ou meios físicos. No
caso do cinema, a ausência de grandes capitais disponíveis, principalmente
após a falência da Vera Cruz, implicou a busca de alternativas, entre elas, a
associação de vários profissionais para a realização de filmes.
Desta maneira, podemos afirmar que o que comumente é apontado na
historiografia do cinema brasileiro como o aparecimento do cinema
independente é, também, o afloramento de um novo modelo de organização
empresarial. Este modelo se encaixa exatamente, como nhamos
demonstrando, com o fracasso da proposta industrial da Vera Cruz, e
responde, pelo menos em parte, às assertivas sobre o que faz sucesso junto
ao público, o cinema de “baixos custos”, identificado - por muitos - como um
cinema de “baixa qualidade”
Outro aspecto da maior relevância é a posição do Estado brasileiro não
absorvendo as demandas por produção dita comercial, que deveria ser
bancada junto ao mercado de salas. Essa posição era a expressão do negócio
como espaço de legitimação, o que criava uma contradição capital que o novo
modo de produção procurava superar. No Brasil, em relação ao
desenvolvimento dos espaços estatais, sempre existiu um maior cuidado na
criação de ambientes de controle do que de fomento. Contemplado em sua
longa duração, as atuações do Estado revelam a dificuldade no processo de
incluir, entre suas instituições, órgãos capazes de interagir com pertinência no
campo cinematográfico.
Foi necessária uma luta de longo curso com muitos avanços e recuos,
principalmente no que diz respeito às fontes de financiamento (se taxas e
impostos que recaíssem sobre a própria atividade ou recurso do tesouro
nacional), e tipo de atuação (educativa, fomentadora etc.) e aos poderes de
que disporia
197
. A batalha foi intensa e somente em 1966 foi finalmente criado o
INC em substituição ao INCE. Este o INCE tinha uma atuação bastante
diversa no apoio à produção.
Dessa maneira, entre Estado e governo, na linha de resistência entre um
e outro, na percepção de um Estado, naquele momento, como fechado em seu
próprio esquema de produção, o modo de produção cooperativo não tinha
outra saída além da negação do modelo industrial que ele procurava substituir
pela via da produção de um novo conteúdo. Seus artífices defendiam
ideologicamente a transformação do tipo de cinema que substituiria o que vinha
sendo consumido no Brasil.
A preocupação com o conteúdo era a força motriz da independência e
determinante para a maioria das outras escolhas já que se observava uma
percepção no mínimo difusa da necessidade de o seguir os meios de
produção disponíveis. No primeiro congresso de 1952, temos um ponto
específico no qual se “considera prejudicial que os filmes brasileiros sejam
distribuídos no país por empresas estrangeiras”
198
, mas o outro elo a ser unido
a esse modelo, onde a empresa produtora é quase que inexistente é,
197
A seqüência de propostas, que surge com o fim do governo de Getúlio Vargas em 1945, vai ser
exemplo do sentido adotado aqui. O tema é melhor explorado no livro de Anita Simis, Estado e cinema
no Brasil (São Paulo: Annablume, 1996), onde são citados o projeto de Jorge Amado quando da
Constituinte de 1946, o substitutivo a este do deputado pessedista Brígido Tinoco, seguido, no novo
governo de Getúlio, pelo projeto pedido a Alberto Cavalcanti.
198
Catani, Afrânio. “A aventura industrial e o cinema paulista”. In: Ramos, Fernão P. (org.) História do
cinema brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987, p. 281.
exatamente, a continuidade da distribuição por empresa estrangeiras. Rio, 40
graus é distribuído pela Columbia.
O problema da distribuição ultrapassa as possibilidades de um produtor
individual ou de um grupo de produtores e configura uma questão de estado e
de governo. O governo brasileiro na época administrava um jogo de forças
adverso para o elo da produção e mesmo hoje, 50 anos depois, ainda não
temos a possibilidade de, pela via do Estado, assegurar uma política que
garanta alguma simetria na ocupação do mercado. Além do que a distribuição
tem, como característica principal, funcionar profundamente articulada com a
exibição. As propostas de inverter a reserva de mercado, fazendo uma
restrição à distribuição de filmes estrangeiros são normalmente inexeqüíveis,
pois interrompem o fornecimento contínuo de filmes para os exibidores,
inviabilizando toda a cadeia produtiva. Na mesma linha, temos a questão de
que as empresas distribuidoras têm caráter de funcionamento internacional
tendo necessidade de capitais difíceis de serem obtidos.
Na direção acima exposta, é possível concluir que, a despeito de o filme
Rio, 40 graus ter feito relativo sucesso nas primeiras semanas de exibição, isso
foi decorrência da excelente divulgação, fruto de sua proibição pelo organismo
de censura
199
. Não implicava, portanto, em alguma proposta diferente ou que
se tivesse conseguido uma melhor condição de penetração no mercado
exibidor, sendo mais eficiente que os outros lançamentos. Essa nem era uma
preocupação central da produção. Nelson Pereira dos Santos afirma que
199
Aqui excluídas, é claro, as motivações que derivam das questões estéticas e de conteúdo que m sua
influência. Mas é inegável o impacto da publicidade e posteriormente de um lançamento em um mero
razoável de salas.
“não havia aquela pressão de fazer um filme para
entregar para o exibidor no dia tal. Não tinha nenhum
compromisso com o esquema de distribuição e de
exibição. Era totalmente independente...”
200
.
Isso demonstra que o plano implicava conseguir fazer o filme para
depois pensar em como levá-lo às salas. Não que não se tivesse em mente as
necessidades de exibição, até pelo contrario, o que se tentava era uma
alternativa ao modelo existente, a qual, porém, não estava organizada para
propor novas opções nesse aspecto.
Para explicar o início dessa nova proposta, temos um discurso sobre
como se deu o processo de formação da empresa e como se desenhou um
projeto de risco, onde a participação do trabalho servia como capital. Nelson
pondera que
O caso do Rio, 40 graus tinha uma base muito racional
e pragmática. Foi o seguinte: a participação de outro
colega de turma, outro paulista, chamado Ciro Freire
Cury que era funcionário do Banco do Brasil da
CACEX. Foi meu colega no colégio do estado e
fizemos teatro juntos e cineclube. Depois encontrei
com ele no Rio e ele montou o esquema da
cooperativa que era uma tradição de um teatro
carioca. Alguns filmes tinham sido feitos neste
sistema, o trabalho como capital. A equipe e os atores
capitalizavam com seu trabalho. Agora muito bem
organizado com os documentos, controle do
orçamento. Foi perfeito, quando acabou o filme e a
Columbia pegou a distribuição, a primeira renda do
filme pagou 68% do investimento.
201
Neste aspecto o modo cooperativo aproveitava o que pré-existia, porém
em nada modificava os esquemas de distribuição e exibição já em pauta.
Temos que levar em conta as dificuldades que deveriam ser superadas para ao
200
Entrevista ao autor sobre a temática do modo de produção.
201
Idem.
menos iniciar um movimento de tal ordem. No caso do investimento estatal,
nesse momento ele não existia, mas não é difícil depreender que sem ele esse
esforço em cooperar para a geração de um conteúdo diferenciado estaria
fadado ao desaparecimento. Portanto, a afirmação de que o investimento
estatal na produção de um conteúdo de alto valor cultural (como acreditavam
todos) era inevitável.
Além disso, nos documentos referentes aos projetos de intervenção
estatal, sempre estava prevista a proteção pelos mecanismos da subvenção
pelo menos para importação de filme virgem. E outra medida sempre
demandada era a exibição forçada, ou reserva de mercado para o filme
nacional. Esse tipo de estruturação provocava forte oposição do setor de
exibição e das distribuidoras estrangeiras. Com o tempo, o que ficou mais fácil
de sustentar na seara política foi o investimento direto na produção deixando-
se de lado as necessárias intervenções nos outros elementos da cadeia
produtiva. A possibilidade de financiamento direto do governo, praticamente a
fundo perdido será um dos sustentáculos para o desenvolvimento desta forma
de organização empresarial, onde a empresa conta menos que a idéia e o valor
cultural do conteúdo do filme.
Como característica do modo cooperativo, fica a sua ligação com um
determinado objetivo estético e talvez seja o motor mais duradouro no cinema
brasileiro. Ele
“era uma tentativa de rompimento com o que estava
sendo feito naquele momento. Era um rompimento ,
como paulista, com a Vera Cruz e com a Chanchada.
Até então o cinema brasileiro que se dizia sério não
tinha resultados nem comerciais e nem de estima”
202
202
Idem.
A legislação reguladora do período tem muito a nos dizer sobre a
ausência ou a incompletude da presença do Estado em assuntos relativos a
política para o cinema, no entanto, não é nossa tarefa aqui esquadrinhar tal
legislação. É possível, no entanto, partirmos da questão do tabelamento dos
ingressos e a política de câmbio fixo para demonstrar as dificuldades
enfrentadas pelo cinema como um todo. Aparentemente podem parecer
aspectos de menor importância, mas na época são o motor da dominação
estrangeira e redundam em uma contradição comercial para o cinema nacional.
São duas faces da uma mesma moeda que enfraqueciam enormemente
qualquer penetração no mercado pelo cinema nacional, que são fatores que
deprimiam o preço do ingresso, tornando muito difícil a cobertura dos custos no
circuito de salas. Para exemplificar:
“em 1955, o preço dos ingressos nos cinemas
lançadores era 5,5 vezes mais barato do que aquele
cobrado em 1939 (...) de fato o regime de tabelamento
dos ingressos de cinema não acompanharam o
aumento da inflação. Considerando-se que o salário
mínimo de 1952 era de CR$ 1.200,00, um ingresso de
CR$ 8,10 representava 0,67% daquele valor enquanto,
supondo que o ingresso de 1939 que custava CR$
6,00, o houvesse sofrido majoração pelo prazo de
um ano, ainda assim representaria 2,5% do salário
mínimo de 1940.”
203
A associação entre câmbio e tabelamento do preço dos ingressos
implica afirmar que uma coisa era afetada pela outra, pois a cobertura da
diferença existente entre os dois valores vinha da diferença cambial
conseguida pela remessa dos lucros através do câmbio oficial depreciado em
203
Simis, op. cit., p. 184.
relação ao paralelo em mais de 100% (os valores do dólar eram CR$ 18, 82 no
câmbio oficial e CR$ 35,00 no paralelo).
Outras disposições podem ser lembradas com respeito à legislação e
talvez a mais importante seja a reserva de mercado, a cota de tela. Ela deveria
fortalecer a produção nacional e acabou por propiciar o aparecimento de um
modo de produção que se consubstancia na produção da Atlântida e
semelhantes. Neste caso, ela a reserva de mercado - funcionou como um
engodo que facilitou as benesses dos exibidores e importadores sob a cortina
do prejuízo causado pela exibição compulsória. Para estabelecer um marco
temporal, em 1945, com a portaria 131/45 do DNI, era exigida a exibição de
três filmes de longa-metragem. Em 1951, foi instituída a exibição de um filme
nacional para cada oito filmes estrangeiros o que dá, mais ou menos, a média
de um filme por bimestre ou 42 dias por ano. Esta proporção, associada ao
preço baixo dos ingressos em si, já explica tudo. Este quadro legislativo
adverso não é compartilhado por todos os modos de produção. A produção da
Atlântida, que é um modo em si, se beneficia desses aspectos e isso pode ser
comprovado pela aquisição da empresa por Luis Severiano Ribeiro, como visto
no capítulo três.
Finalmente temos as questões técnicas e de acesso aos meios de
produção. Boa parte deste aspecto já está discutido em outra parte do trabalho
e, como deve ficar claro, um certo grau de carência técnica era compartilhado
por todo cinema brasileiro. No caso específico do filme Rio, 40 graus, faço coro
às palavras de Nelson Pereira dos Santos na entrevista realizada com ele onde
afirma ser o filme um caso especial que não se repete nem em Rio, Zona
Norte, que a “economia era a partir da sobrevivência da equipe”. Porém aqui
se cria um aprofundamento da dificuldade de acesso aos equipamentos que vai
se estender por todo o cinema independente, até ser apropriado como proposta
política. Desta maneira, podemos ver, neste primeiro passo, o longo caminho
da constituição de uma alternativa, onde este acesso não fosse o necessário
para, como já apontado, a consecução de um conteúdo relevante.
No segundo nível, que trata do espaço simbólico da recepção, temos
uma grande estrutura articulada em passagens e vasos comunicantes
essenciais. O objetivo central de qualquer expressão é sua chegada ao público,
sendo praticamente impossível justificar a existência da realização artística,
sem a crítica deste aspecto. Ele é a realização dos objetivos do filme em si e,
como no caso do conjunto legislativo e normativo de que falávamos pouco,
temos inúmeras características que funcionam de maneira compartilhada e
ainda devemos unir a isso uma imensa variedade de outros elementos. Esta
asserção implica dizer que o campo da recepção não se reduz ao exame do
acesso ao sistema de exibição e distribuição. Apesar de este ser um aspecto
fundamental, pois possibilita o acesso do público, o espaço teórico da recepção
se expande concentricamente, partindo desta entrada para açambarcar cada
vez mais elementos, tornando-se virtualmente impraticável tratá-lo sem algum
tipo de recorte.
Cumpre introduzir rapidamente o termo recepção que é claramente
generalizante, entretanto - como exposto - não podemos senão tomá-lo como
ponto de partida para nos dedicarmos a especializá-lo para a análise que dele
se servirá. Os estudos da recepção no campo comunicacional se caracterizam
pela
“adoção de teorias de vários campos de conhecimento
para dar conta de um lado, até então, ausente no
circuito da comunicação: o público.”
204
Complementando este pensamento, passamos a uma definição de ser a
recepção
“uma ação complexa, contraditória, multidimensional,
vivida cotidianamente por sujeitos históricos. É, pois,
também no sentido de uma prática histórica que esses
estudos devem ser concebidos.”
205
.
Esta definição, especialmente objetiva para a pesquisa na área de
comunicação, pode ser complementada pela seguinte afirmação:
“a recepção não é um processo redutível ao
psicológico e ao cotidiano, mas é profundamente
cultural e político. Isto é, os processos de recepção
devem ser vistos como parte integrante das práticas
culturais que articulam processos tanto subjetivos
como objetivos, tanto micro (ambiente imediatamente
controlado pelo sujeito) como macro (estrutura social
que escapa a esse controle)”
206
.
O reconhecimento da complexidade das operações realizadas pelo
receptor/público e a localização do espaço de construção das pesquisas sobre
estas ações junto ao da interpretação histórica redundaram na exposição de
“cinco correntes principais: pesquisa dos efeitos,
pesquisa dos usos e gratificações, estudos de crítica
literária, estudos culturais e estudos de recepção.”
207
204
Barbosa, Marialva. “Um painel sobre a pesquisa em Comunicação na Região Sudeste: uma questão de
transdisciplinaridade”. In: Kay, Patrícia & Aronchi, José Carlos. A interdisciplinaridade na
Comunicação: pesquisa e profissionalização. Mogi das Cruzes: Universidade de Mogi das Cruzes, 1999,
p. 20.
205
Idem, p. 24.
206
Lopes, Maria Immacolata V. “Estratégicas metodológicas de pesquisa de recepção”. INTERCOM, São
Paulo, v. XVI, n. 2, jul.-dez. 1993.
207
Barbosa, op. cit., p. 20.
Nos estudos do audiovisual temos, no campo dos estudos da recepção,
um mapeamento recente realizado por artigo de Fernando Mascarello com o
objetivo de concluir pela marginalização dos trabalhos sobre as audiências
cinematográficas. Utilizando como base a obra de alguns autores
internacionais, Mascarello localiza os textos que tratam do tema como um
campo específico dos
“estudos contextualistas da espectatorialidade
cinematográfica”, e nela identificando cinco vertentes
principais de trabalhos: (1) o debate “mulher x
mulheres” na teoria feminista do cinema, (2) os
“estudos da intertextualidade contextual”, (3) os
“estudos históricos de recepção”, (4) os estudos
etnográficos das audiências e (5) a “política da
localização”
208
O que podemos ver é um ambiente de debates onde não poderíamos
classificar a recepção utilizada aqui. Claro que quando se fala de recepção
necessariamente se trata das questões do espectador. Este estudo, entretanto,
tem o objetivo de tratar a multiplicidade intrínseca da própria idéia da existência
de um modo de produção no cinema brasileiro. Nesta direção, a inclusão dos
aspectos da espectatorialidade serve como apoio para as forças movidas pela
organização no primeiro nível sobre a alavanca das questões estilísticas.
Assim, o espaço simbólico da recepção agora é tratado na direção de uma
recepção pela crítica que cria formas de legitimação para o conteúdo estético.
O filme Rio, 40 graus conta, como afirmamos, com a sorte de ter
acontecido sua proibição. Esse evento o divulga enormemente, mas o
implica em uma condição estruturante, vale dizer, o modo de produção que ele
208
Mascarello, Fernando. “Mapeando o inexistente: os estudos de recepção cinematográfica, por que não
interessam à universidade brasileira?”. Cartografias: estudos culturais e comunicação. Programa de Pós-
Graduação em Comunicação, Famecos/PUCRS. Revista eletrônica,
http://www.pucrs.br/famecos/pos/cartografias/fernando_mascarello_03_11_06.php#referencia.
inaugura não possui de forma organizada nenhum tipo de sistema ou apoio
voltado para sua divulgação. Até pelo contrário, o sistema cooperativo, na
forma que encontramos aqui, acaba por não conseguir reunir as condições que
permitam o desenvolvimento desta função de interface com os mecanismos de
divulgação. Sem o acúmulo de capitais necessário para contar com recursos
que admitissem a atuação fora da frente de produção, isto é, comprando o
espaço publicitário, por exemplo, tem que resolver o lançamento de outra
maneira. Esse aspecto foi suprido por uma, sim condição estruturante,
compartilhada por todos os que atuam no mercado de cinema brasileiro na
época: a intermediação do capital estrangeiro através de um acordo com a
Columbia. A necessidade de se inserir na máquina legitimadora do cinema
comercial estabeleceu os limites de penetração que afetaram ao longo do
tempo as possibilidades de afirmação do conteúdo produzido por aquele
cinema. Esse contra-senso tem como conseqüência uma inconsistência e esta
concorre no desenvolvimento de uma inviabilidade econômica crônica que será
suprida no correr do tempo pelo financiamento do Estado.
Junto a essas circunstâncias e, em contraposição a elas, vemos que
Rio, 40 graus teve importante recepção, amplificada como já dissemos pela
proibição do filme. Além disso, o filme beneficiou-se da recepção da crítica
cinematográfica, que parecia estar aguardando
uma obra que fizesse essa
exposição de um conteúdo brasileiro considerado autêntico. Essa busca de
uma relação com a realidade brasileira contraposta à modelagem cultural
determinada pelo cinema americano, era, o que na nossa opinião, conformou o
campo cinematográfico a partir do início dos anos quarenta.
Assim, o pensamento crítico brasileiro tem seu desenvolvimento como
sub-campo do campo intelectual deste período e passa a existir numa relação
de co-dependência com o campo da produção
209
. O jogo passa a incluir os
ganhos de estima e a crítica vai conquistando espaço no jornal e no seio
intelectual, passando a um status que anteriormente não existia. No período de
dez anos, que vai do final da guerra a 1955, a crítica de cinema crescerá de
importância e passará a gozar de uma capacidade cada vez maior de
influenciar, não só a recepção dos filmes, como o tom das idéias políticas. Este
advento vem também no esteio da profissionalização crescente, o que gera
todo um conjunto que se auto-referencia e passa a se ver como classe.
Podemos observar também um reflexo da divisão existente na
intelectualidade brasileira que se aprofunda no pós-guerra. Esta separação,
que existe em praticamente todos os outros campos da sociedade brasileira,
implica, no campo crítico, a cisão e defesa de métodos críticos diferentes e
direções distintas: um lado mais associado à defesa da existência da arte pura
e outro com uma visão, à época, ligada ao jdanovismo. Nesta batalha, no
entanto, os dois lados concordam com a busca de uma expressão própria e
condenam a imitação como expediente cinematográfico.
Nesse pensamento crítico, encontramos nos anos 50 e no espaço da
crítica de esquerda a repercussão e a “aplicação das idéias do italiano Guido
Aristarco (1918-1996) por Alex Viany (1918-1992), ambos destacados
irradiadores do pensamento cinematográfico de viés marxista”
210
. Esse viés, de
209
Boa parte deste argumento está desenvolvida em minha dissertação de Mestrado, A crítica de cinema
em Moniz Vianna (ECA, Universidade de São Paulo, 2001), a ser publicada em livro pela editora Ciência
Moderna (no prelo).
210
Autran, Arthur. “Alex Viany e Guido Aristarco: um caso das idéias fora do lugar”. Sinopse, o Paulo,
v. IV, n. 8, abr. 2002, p. 63.
forte conotação ideológica, está bem demonstrado na passagem onde Viany
afirma:
“Trata-se, penso eu, de facilitar-lhe crítica] o
acompanhamento da evolução estética do cinema, de
alertá-la para as possibilidades artísticas que se abrem
ao cinema com a descoberta de novos processos
mecânicos e com a enunciação de questões estéticas
subordinadas a doutrinas filosóficas e políticas”
211
.
E complementa com a idéia de que, na relação entre forma e conteúdo,
no cinema o segundo predomina sobre a primeira”
212
, o que nos remete
novamente para a centralidade do conteúdo.
Encontraremos este alicerce
também na seguinte afirmação de Nelson:
Quando se fala em conteúdo brasileiro parece piada,
mas naquele tempo os filmes, as novelas eram
completamente apátridas, eram completamente fora
de qualquer espaço social, cultural
, era um espaço
doido onde as histórias aconteciam. Não tinham
nenhuma relação com nenhum lugar e muito menos
com o Brasil.”
213
O tratamento do tema de forma tão especial quanto em Rio, 40 graus
catapultou o filme para o centro da disputa política, onde a crítica de cinema
tinha papel secundário. Encontramos, em Salem, a defesa da liberação do
filme feita por Jorge Amado, que
“denunciava depois o golpe de direita em preparação,
sendo o gesto do chefe de policia parte deste
processo. Vale lembrar que o presidente Getúlio
Vargas (que voltara ao poder em 1950 mediante
eleições livres), se suicidara a 24 de agosto de 1954,
quando justamente forças de direita contrárias ao
caráter nacionalista e populista de seu governo -
articulavam seu afastamento, numa manobra golpista.
(...)‘Começam como o filme de Nelson Pereira dos
211
Citado in Autran, op. cit., p. 65.
212
Idem, p. 65.
213
Entrevista ao autor sobre a temática do modo de produção.
Santos para se lançarem, em seguida, contra o teatro
e o livro, os quadros e a música’ (...) Jorge
conclamava a todos a se unirem na luta contra ‘o terror
e o obscurantismo’, declarando: Rio 40 graus precisa
ser exibido. Porque é bom filme, obra de talento e de
sensibilidade, honesto, brasileiro, patriótico, e porque,
ao proibi-lo, estão os homens do golpe iniciando sua
luta frontal’(...).”
214
Criava-se assim todo um sistema de divulgação que amplificava a
importância da crítica e engajava o filme brasileiro na reflexão social. Este
engajamento se tornará com o tempo o atributo principal que o filme deve
possuir e construirá uma estética que se apropriará desta característica como
um de seus pilares. A utilização do conceito de modo de produção significa
achar e descrever um conjunto de categorias utilizáveis para a articulação de
um determinado número de obras. No desenvolvimento deste aspecto
simbólico e a aliada à questão do engajamento, temo que considerar a
recepção mediada pela proibição do filme, o que permitiu um nível de
divulgação inexistente para outros filmes produzidos na época.
Assim, latu sensu, a audiência cria hábitos de consumo que são de
muitas formas direcionados e conformados pela disponibilidade do produto e
pelo acesso possível a estas mesmas obras. Essa característica da indústria
cinematográfica está de alguma maneira contida na frase supracitada de
Nelson Pereira dos Santos que nos diz que o cinema brasileiro não tinha
ganhos de estima. O valor simbólico do cinema brasileiro em seu próprio
mercado era e é ainda baixíssimo. Essa constatação centraliza os esforços de
todos os que produzem e produziram cinema no Brasil e cria um tipo de
horizonte de desejo para toda a produção nacional.
214
Salem, Helena. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira,1987, p. 118-119.
Esse ponto de fuga é representado por várias expressões que o
desde a reconhecida necessidade de industrialização até as alternativas de
produção, expressas em muitas iniciativas ao longo da história do cinema
brasileiro. Recoloca a questão de cinema popular e nos desloca para questões
de base que têm de ser resolvidas se queremos uma explicação que não
desarticule, na primazia do olhar, os outros dados do campo tratado.
Para finalizar, os espectadores de cinema são o elo fraco da corrente
estudada na recepção e não por falta de poder, que muito se discutiu e
discute partindo exatamente de sua ação de consumir ou não determinados
produtos. A falta da ligação entre a platéia e produção é a raiz da carência das
análises de recepção cinematográfica. É quase como se sua existência não
interviesse no processo como um todo e pudéssemos agir com descaso em
relação ao sucesso junto ao blico dos filmes. Esta penetração ou não de um
filme era e é sempre associada à ignorância, incompetência e incapacidade
crítica desse mesmo público que, por sua vez, também recebeu no
período
entusiasmadamente o cinema americano.
Retornando a Fabris, vemos que “segundo Guido Aristarco, a verdadeira
novidade do neo-realismo não residia nas filmagens em cenários reais ou no
uso dos dialetos e dos atores não profissionais”
215
e as relações entre técnica e
estética contornam o terceiro nível de análise de um modo de produção.
Devemos nos ater ao que realmente chamamos de estética de um filme para
criar aqui outro espaço que tratará a questão autoral e seus reflexos na obra no
sentido de estabelecer limites a uma pretensa liberdade total. Esse vôo autoral
encontraria fronteiras apenas nas possibilidades da criatividade. Não creio que
215
Fabris, op. cit., p. 91.
seja assim, mas, claro que não tento aqui dizer que existem obras impossíveis,
e sim que, para que essas obras possam se materializar, terão que aparecer
junto os meios técnicos de sua execução, depois as condições econômicas de
sua realização e por fim a capacidade de fruição, seja ela coletiva ou individual
(necessária até para a guarda de um obra para ser apreciada em outro
momento histórico).
O que falta ver é a inflexão ideológica do próprio modo de produção, que
não é de nenhuma forma neutra, determinando de várias maneiras o resultado
estético produzido. Essa dependência entre modo de produção e resultado
estético pode começar a ser estudada pela declaração de Nelson sobre a Vera
Cruz e sua importância no desenvolvimento do pensamento sobre o conteúdo:
“O que tinha a Vera Cruz? Ela tinha um nimo, com
aqueles técnicos estrangeiros
, os filmes eram
construídos em uma linguagem cinematográfica. Eram
filme que estavam... que tinham uma montagem, quer
dizer o específico fílmico estava presente naqueles
filmes, está presente naqueles. É uma linguagem
articulada
, mas não tem o conteúdo ou relação com a
história cultural, a não ser O Cangaceiro. O que é a
chanchada? É a relação com uma história cultural
específica que é o teatro de revista, rádio, cantor de
rádio, o show
, mas nenhuma linguagem. A utilização
do equipamento filmando aquele ator não é nem
jornalismo. Depois alguns roteiristas foram
consertando um pouco a chanchada, o Alinor Azevedo
e depois o Watson Macedo. Então a idéia é a
linguagem universal do cinema e a nossa herança
cultural. Todo mundo procurando isso
. Rio, 40 Graus
foi feliz e depois o Cinema Novo completou essa
jogada. Quer dizer inclusive
, a linguagem não
dominada
, mas como renovada em um certo sentido.
Um pouco como a música do Tom Jobim
, ele é um
músico americano também, ele influenciou o Jazz, ele
influenciou o mundo inteiro. Essa é que é a coisa que
era o Glauber também.”
216
216
Entrevista ao autor sobre modo de produção.
Sabemos que o jogo entre poder econômico e criatividade artística no
Brasil sempre acaba numa separação entre os dois. Esta já se encontra
expressa na declaração acima e diz também, é claro, que o acesso aos meios
de produção determina a indicação de uma busca de alternativas técnicas.
Melhor seria se disséssemos da possibilidade gestada por uma “política da
falta”, de um agir diferente e uma outra normalidade, à margem do sistema. O
modo de produção se afirma então como uma mudança de base que não só
explica a técnica, como também explicita as novas relações que se tenta
estabelecer com a herança cultural. Neste viés, a técnica de deter um caráter
de meio que parece ser o principal sentido a ela atribuída em todos os
discursos sobre o cinema. Essa função de meio ou maneira de conseguir um
resultado tem seus fundamentos numa construção voltada, quase que
exclusivamente, para a exploração de aspectos da arte cinematográfica que
são resquícios do tempo em que o cinema lutava para se afirmar como uma
arte. Como entretenimento, ele sempre teve posição garantida desde seu
surgimento.
Lembremos também que, quando se fala de técnica no cinema, não nos
referimos apenas a maquinismos, e sim a todo um complexo imbricado de
relações que vão sim, desde o uso dos aparelhos que atravessam as formas
artesanais e mutáveis para especificar questões bem gerais e que têm de ser
negociadas na produção de todo o filme. O termo technè designava entre os
gregos, tanto a técnica no seu sentido atual, como as atividades artísticas e
sua oposição era com o termo theoria que designava o campo do
conhecimento em seu recorte racional e científico. Em continuidade ao
raciocínio temos que
“recorrendo às noções cibernéticas, esse princípio não
deve ser entendido como um fechamento, uma vez
que um sistema aberto comporta a auto-regulação e a
sua homeostasia (ou equilíbrio dinâmico) é garantida
pelo processamento correcto dos dados externos ao
sistema. Sendo assim, um alto vel de tecnicidade
tem necessariamente uma certa margem de
indeterminação que faz apelo à participação humana.
O pensamento actual desmente que o automatismo
exclua o homem, posicionando-o numa
irresponsabilidade espectadora. O objecto de alta
tecnicidade é uma estrutura aberta e o conjunto desse
tipo de objectos pressupõe o homem como
organizador e intérprete vivo”
217
.
Tal afirmação nos remete à necessidade do homem em um sistema técnico
para complementar a estrutura e nesta direção não há realmente oposição
entre a liberdade autoral e a submissão a fatores técnicos e seu conseqüente
desdobramento como uma peia ou retenção que medeia os sentidos possíveis
fazendo que com a assunção do sistema tenhamos impossibilidades inerentes.
Já tivemos, no curso desse e de outros capítulos, o uso de vários
elementos que o, por seu caráter técnico, importantes para entendermos a
maneira como se deu a construção do filme. Da mesma forma, neste capítulo
temos outros tantos para citar, como por exemplo, a câmera utilizada na
captação em Rio, 40 graus ou o problema da luz do sol. Sobre estes “detalhes”
técnicos Nelson comenta que a luz ficou metálica e Hélio também comenta a
dificuldade de lidar com os rebatedores. Sendo a iluminação praticamente toda
rebatida, temos uma idéia do desdobramento desse tipo de escolha que, além
de ser estética, é ligada ao modo de produção, que ele não é apenas a
expressão da carência de recursos, mas também a expressão das escolhas
217
Lopes, Anabela de Sousa. “O papel da técnica na recepção estética”. http://www.bocc.ubi.pt/pag/lopes-
anabela-papel-recepcao-estetica.pdf, BOCC, p. 2.
que estas situações, que o são gratuitas nem generalizantes, impõem ou
facultam.
Em suas primeiras observações sobre o filme, Fabris coloca:
“Ao libertar a ‘cidade maravilhosa’ da imobilidade do
panorama, Nelson Pereira dos Santos rompe os
limites da representação ficcional e amplia os
horizontes de sua paisagem, revelando com seu vôo
rasante (a câmera, que planava durante a
apresentação dos créditos, praticamente mergulha
para focalizar de perto o morro e sua favela) o lado
pobre e ‘feio’ da Capital Federal”
218
.
Ao perceber esse protagonismo da cidade do Rio de Janeiro, expõe-se
não uma mudança de foco, mas uma transformação da representação em si.
Também na escolha dos “locais de lazer dos outros”
219
, vemos um
redirecionamento da representação para que incluísse uma temática
impossível para o cinema de entretenimento e permitida nas produções não
dirigidas a um grande público. O fato de eventualmente atingir uma porção
significativa dos espectadores ou de conseguir os ganhos de “estima”
representados pela recepção da crítica é subsidiário aos processos de filmar.
Esses criam, com sua própria existência, as questões onde estão de alguma
maneira determinadas as técnicas estilísticas e a apropriação dos fluxos de
outras cinematografias.
A unificação de todos estes níveis em um quarto nível implica o
processo de recolocar ou reanalisar os dados já tratados. Nosso quarto nível,
na realidade, serve para a associação das significações implicadas pela
construção teórica desenvolvida. Durante todo o tempo, temos notado que
218
Fabris, op. cit., p. 93.
219
Idem, p. 94.
esses elementos não são exclusivos de um modo de produção, e sim
compartilhados e mutuamente influentes. Nessa direção, um elemento discreto
pode ter funções diferentes, dependendo da articulação geral. Quero com isso
afirmar que ele deve, no escopo de seu uso como elemento de um modo de
produção, ser apreendido no sentido da demanda.
Um exemplo bastante claro desta última assertiva é que a carência de
equipamentos de captação e iluminação representa coisas diferentes se
falamos da Atlântida ou do cinema independente. Neste sentido, encontramos
boa parte desses elementos compartilhando seus efeitos em mais de um modo
de produção, às vezes em uma mesma direção, em outras por direções
diversas.
Creio termos que aceitar o fato de, no processo de diagnóstico sobre
quaisquer condições que porventura possam ser defendidas na existência de
um modo de produção, se estabelecer uma cesura. Ela surge na exclusão das
configurações que não nos interessam e, no mesmo movimento, nos lembra o
que o enraíza na direção proposta. Assim, no julgamento, devemos interagir
com as condições sociais, econômicas e estéticas que incidem objetivamente
sobre os desdobramentos que são de mesma natureza. Quando Fabris
assinala, em Rio, 40 graus, a “contraposição maniqueísta entre ricos e pobres”
e sua semelhança com Milagre em Milão (Miracolo a Milano, 1951), de Vittorio
De Sica”
220
, ela demonstra uma das características do modo de produção, ou
seja, a busca pelo conteúdo brasileiro, assumindo, por assim dizer, uma
postura política militante que o afeta na expressividade. Da mesma forma,
quando a autora cita o preceito zavatiniano do pedinamento (ato de seguir
220
Idem, p. 101.
alguém de perto), segundo o qual ‘era necessário sair do argumento “pensado
antes” para entrar no argumento “pensado durante””), nos mostra um método
assumido pelo filme que se classifica nos influxos de outras cinematografias
que podem também ser encontrados na percepção de estilemas emprestados
ao neo-realismo”
221
.
Neste sentido, como afirma João Guilherme Barone Reis e Silva:
“Casos exemplares de filmes como Rio 40 graus
(1955) e Vidas secas (1961), ambos de Nelson
Pereira dos Santos, (...) estabeleceram os padrões
técnicos e estéticos adotados pelo Cinema Novo”
222
Da mesma forma, Glauber Rocha ressalta:
“Nenhum diretor moderno do Brasil (e a grande
característica do novo cinema brasileiro é o nível
intelectual de seus diretores) prefere uma Mitchell
pesada em lugar de uma Arry-Flex leve. É simples, o
movimento de câmera passou a ser feito na mão: é
esteticamente mais sugestivo, abre novos horizontes
do movimento. É mais rápido e mais barato. Os
nossos fotógrafos Mario Carneiro, Luiz Carlos
Barreto, Waldemar Lima, Fernando Duarte, Rucker
Vieira, Hélio Silva, Hans Bantel, José Rocha, não
necessitam das geringonças de Chick Fowle, Rudolf
Icsey ou Tony Rabatony, porque são iluminadores
modernos: não usam contraluz, crepúsculos, difusores
e outros artifícios falsificadores”
223
Em suma, a idéia do “argumento pensado durante” se reforçará
como
elemento central para o entendimento do processo de consolidação desse
modo de produção cooperativo. A referida mudança sobre a preferência técnica
e a formação intelectual dos diretores sugere como se modificaram as
221
Idem p. 102 e 106.
222
Silva, João Guilherme Barone Reis e. Comunicação e indústria audiovisual: cenários tecnológicos &
institucionais do cinema brasileiro na década de 1990. Tese de Doutoramento. Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, 2005, p. 145.
223
Rocha, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naif, 2003, p. 171- 174.
condições materiais de produção do cinema brasileiro. Quando Glauber se
refere a este conjunto de diretores, coloca todo o resto sob a rubrica de
antigos. Ao operar com esta escolha, Glauber consolida uma determinada
visão, ao legitimar e consagrar como moderno aquele modo de produção que,
como vimos, foi inaugurado pela genial obra de Nelson Pereira dos Santos.
Considerações finais
O trabalho de pesquisa é longo e árduo. Temos inicialmente muitos
objetivos e a pretensão de cumprir muitas tarefas e cobrir uma grande
extensão. Na conclusão, percebemos que muito do que pretendíamos estava
além de nossas possibilidades, principalmente quando falamos de recursos e
tempo. O conceito de modo de produção exerceu sobre nós uma grande
fascinação e a idéia de unificar, sob um mesmo termo, aspectos da base
material a outros de constituição menos pesada, como a fruição estética, nos
pareceu um caminho fértil. Queríamos dar conta de perguntas que estão
bastante tempo. Uma das principais pode ser enunciada da seguinte
maneira: quando e porque o cinema brasileiro se divorciou de seu público e de
sua economia? Em outras palavras, como um país de dimensões continentais,
que alimenta (com seus recursos de bilheteria) filmes e filmes da produção
estrangeira, não conseguiu estruturar seus próprios meios e sistemas de
produção? Essas perguntas iniciais estavam precedidas da inquietação
adquirida após a conclusão de nosso mestrado. Em nomes delas, lançamos-
nos neste novo projeto e produzimos o presente trabalho.
Entre escritos e citações sobre o que seria um “modo de produção”
estão, na maioria das vezes, termos - processo de produção, sistema de
produção - que tentam dar conta de interações complexas entre elementos
como a técnica, o financiamento, o comércio e o resultado final das produções,
ou seja, o filme. A própria constatação sica de que o cinema, em sua
materialidade, depende de processos técnicos e estes têm normas e
procedimentos estabelecidos nos indicam uma direção importante para a
compreensão de qual cinema se pode produzir em determinado país. Como
arte ligada intrinsecamente à indústria, trabalhamos com a certeza de que se
tornava imprescindível entender ou ao menos esquadrinhar as restrições
impostas pelas características acima.
Parece-nos claro que tal como qualquer outro conceito complexo - o
de modo de produção tem, em princípio, alto grau de imprecisão. Neste
sentido, na primeira aproximação investigativa para a presente pesquisa
pensávamos poder especificar a existência de apenas um modo de produção
ou, pelo menos, um modo de produção dominante. Este caminho foi o primeiro
a ser explorado e nos utilizamos de uma metodologia comparativa entre o
cinema brasileiro e outras cinematografias. Tínhamos, naquele momento, fortes
indícios que encontraríamos similaridades entre as situações vividas noutros
países, onde o cinema americano tivesse a mesma penetração do que a
verificada no Brasil. Uma primeira possibilidade estava no cinema europeu e
em sua tradição de produção e de resistência. Passamos então um ano
realizando pesquisas bibliográficas sobre a história e o mercado dos cinemas
português e italiano. Esta direção se mostrou infrutífera e a comparação
acabou por escandir demais o campo de estudo, imergindo o conceito de modo
de produção em problemas muito diversos dos pretendidos inicialmente. De
qualquer forma, naquela trajetória investigativa foi possível deslindar alguns
aspectos do conceito de modo de produção operados pelo presente estudo,
principalmente nos aspectos relativos às abordagens marxistas clássicas e as
novas leituras oriundas deste recorte teórico.
Nossas pesquisas para Portugal e principalmente para o Brasil fizeram
emergir a idéia de que não se podia falar de um modo de produção único ou
mesmo dominante, e sim de muitos modos de produção concomitantes,
coexistindo num mesmo período histórico. Nunca é demais lembrar que o
trabalho voltava-se para o interesse na construção historiográfica inclusiva dos
problemas econômicos que tanto afligem o cinema brasileiro. Por conseguinte,
para fazer jus a esta proposta, nossa pesquisa assumia a espinhosa tarefa de
tentar reconstruir as informações sobre a bilheteria de pelo menos alguns dos
filmes e outras questões relativas à dimensão econômica então delineada.
O que parecia possível de ser tentado - através de um processo de
cruzamento das informações, ainda que esparsas, sobre determinados filmes -
tornou-se, entretanto, uma tarefa incompleta, posto que estas fontes
praticamente inexistem. Elas foram, na maior parte das vezes, esquecidas nos
porões dos arquivos e, em outras, apagadas num processo mais geral de
deslegitimação da importância destas informações econômicas para a análise
e construção historiográfica sobre o cinema brasileiro. Essa é uma das faces
da importância ou diríamos desimportância - atribuída, ainda hoje, aos
estudos sobre a história do cinema brasileiro. Neste sentido, nunca é demais
lembrar que os próprios filmes produzidos outrora estão, em sua maioria,
fadados à destruição. Pareceu-nos que a amplificação não apenas do conjunto
de fontes, mas também de conjunto de filmes cobertos pela história do cinema,
teria um efeito expressivo para o aumento da importância real da história do
cinema para a sociedade como um todo. Uma frase de Sérgio Santeiro exposta
em 1976 nos parece ainda atual, ao afirmar que “o grosso da análise” realizada
nos trabalhos do campo audiovisual está “ocupado pelos filmes que se
identificam com a posição do cinema de autor em detrimento das produções
meramente comerciais e que, na realidade são as que constituem a maioria da
produção cinematográfica”
224
.
Essa oposição entre cinema de autor e cinema comercial, apesar de
certo grau de naturalidade, decorre do formato que tomou o desenvolvimento
histórico do campo analítico estabelecido em torno da reflexão cinematográfica,
em sua função central de interpretar e avaliar os filmes. É importante que
tenhamos em mente que o eles, os filmes, o centro desta mesma reflexão.
Não devemos esquecer, entretanto, que devemos encarar a existência de
produção considerada de baixa qualidade como fato corriqueiro, comum a
todas as cinematografias e não pode ser de nenhum modo estranho que
encontremos o cinema comercial associado a estes conteúdos “menores”. Esta
circulação pode ser atribuída às ligações necessárias entre boa recepção
comercial e o gosto popular. O que incomodou, a nosso ver, a interpretação
deste tipo de cinema no Brasil foi sua colagem com o sistema de
representação dominante, claramente ligado ao cinema americano e que é,
com razão, encarado como grande responsável por todas as dificuldades de
mazelas enfrentadas pelo cinema brasileiro. Nas relações de mercado é
impossível evitar o contato e, muitas vezes, o contágio entre as formas de
representação e este fato tornou-se fatal para a produção comercial brasileira.
Este sistema de representação dominante ligado ao cinema americano
tenta de muitas maneiras dominar a produção de sentido na sociedade como
um todo e, por isso mesmo, tem o efeito de impressionar tudo a sua volta. Seus
meios mais comuns de conseguir o sucesso comercial estão baseados na
replicação e na estandardização. Estes são mecanismos normais presentes no
224
Santeiro, Sérgio. “A noção de cinema brasileiro”. In: Bernardet, Jean-Claude. Brasil em tempo de
cinema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 167.
aspecto industrial do cinema que acabam por estar no centro da reação que, a
nosso ver, se armou contra o que era sentido como uma impossibilidade de
produzir cinema no Brasil com os conteúdos que se desejava, isto é, sem a
clara contaminação sistêmica causada pela convivência forçada. Essa reação
se consubstanciou na emergência do cinema de autor nos anos 50 que veio no
bojo de um surto de industrialização do país. Depois teremos mudanças
profundas da posição do Estado em relação ao cinema durante os anos 60 e
70 que suportaram e desenvolveram essa reação.
Todo este contexto serviu de justificativa para o trabalho de recorte e de
circunscrição necessário à nossa pesquisa. O objetivo era especificar a idéia
de modo de produção numa direção, conseguindo, por este meio, criar uma
sensação de continuidade entre dois movimentos expressivos considerados
separados e, por fim, tentar trabalhar a contradição existente entre os setores
da cadeia produtiva do cinema. Assim, tentaríamos como entender os
mecanismos de dissociação entre o setor de exibição e o de produção que são
encontrados neste período. A separação existe no próprio campo da produção
que, enquanto setor econômico, tornou-se cindido pela mesma clivagem
operada pela dicotomia excludente entre cinema de baixa qualidade e cinema
de alta qualidade ou, se quisermos, cinema de autor e cinema comercial.
Este é o motivo da escolha do campo da comédia popular representado
pela produção da Atlântida, antes e depois da verticalização representada por
Severiano, no nosso esforço de discutir um modo de produção; o mais
duradouro tipo de produção do cinema brasileiro e com fortes raízes em
expressões cômicas correlatas do teatro. Esta produção poderia se prestar à
necessidade de incluir problematizações de questões sobre o cinema popular.
O espaço de sentido sobre cinema popular e, por conseguinte, o enunciado
sobre o que é cultura popular “é uma categoria erudita”
225
. O trabalho,
entretanto, não se centrou na temática, ainda que seja impossível falar de
modo de produção sem tocar nas questões relativas ao complexo e espinhoso
tema de categorização e classificação do que é popular. Noutro viés, os
projetos políticos dos grupos que estão incidentalmente por trás da produção
trariam grande complexidade à aplicação do conceito tratado, de forma que
foram apenas superficialmente atingidos. No entanto, para os limites do tempo
que dispomos foi possível, apenas, tangenciar tal questão.
O espaço que coexistia com o campo da comédia popular era o do
cinema autoral. Também neste caso não foi o foco do trabalho deslindar e
explicar estas expressões cinematográficas por meio de sua característica
autoral. Nem mesmo é essa fonte de definição do conceito de modo de
produção analisado na presente pesquisa. O que fizemos foi usar esta
categoria, mais ligada as análises de conteúdo, para delimitar um espaço de
trabalho, onde pensávamos encontrar um modo de produção coexistente.
Estava claro de muitas maneiras que, nos anos 50 do século passado, estas
produções e o discurso sobre elas se opunha de maneira ideológica, política e,
principalmente, pelos meios de produção ao cinema existente na comédia
popular.
Neste estudo, optamos pelo emprego da expressão cinema cooperativo
para refletir sobre como se especificou o cinema representado por Rio 40
Graus. A nosso ver, a característica de cooperativa tende a ser mais importante
que outras na descrição e definição do modo de produção. Pensamos, por fim,
225
Chartier, Roger. “Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico”. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, v.8, n. 16, 1995, p. 1.
que, apesar de algumas lacunas presentes no texto que agora oferecemos ao
leitor, alcançamos o objetivo maior que norteava nosso estudo: o de discutir um
conceito de modo de produção para ressaltar aspectos ainda pouco revelados
acerca da fascinante história do cinema brasileiro.
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ENTREVISTA
Entrevista feita pelo autor com Nelson Pereira dos Santos, em setembro de
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