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posicionamento social concreto, ou seja, pelo lugar que ocupa objetivamente na estrutura social.
Já o personagem dramático é criado pela subjetividade do próprio entrevistado. Trata-se da
maneira como, idealmente, o sujeito real gostaria de ser reconhecido e reúne aspectos e
características que o sujeito real considera preferenciais. Esse personagem ideal, entretanto,
apesar de perfeito e coeso na imaginação do sujeito real, precisa ser colocado em prática,
concretizado, através da performance do sujeito e de seu confronto com o entrevistador. Ao
tentar atuar o personagem que idealizou, o sujeito real assume o papel de ator natural. Dessa
forma, a fiel representação do personagem dramático depende do bom desempenho do ator
natural. Assim como na ficção, muitas vezes, o mau desempenho do ator acarreta no fracasso da
encenação, na dramaturgia natural os riscos são os mesmos. O que Santeiro chama de “crise da
representação” são justamente os momentos em que o despreparo cênico do ator natural ou a
interferência da realidade na cena colocam em risco toda a encenação.
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Santeiro defende a idéia de que a beata, quando mostra ao entrevistador peças da sala de
milagres e explica seus significados, não está trabalhando dentro da relação
entrevistada/entrevistador. Do seu ponto de vista, a relação que se estabelece é a de
sacerdote/fiel. Ela representa a voz da tradição e não pode ser contestada. Ao pedir que ela
explique o significados das peças e possivelmente repita o que já disse – ou porque ela já dissera
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Ismail Xavier, em seu artigo “Indagações em torno de Eduardo Coutinho” (XAVIER, 2003) também se debruça
sobre a questão da performance do depoente, analisada a partir da obra de Eduardo Coutinho. Xavier aponta para
direções próximas de Santeiro, como o desejo do entrevistado compor a melhor representação possível de si
próprio, já que tudo que revela vem de sua ação diante da câmera, e o desejo do entrevistado de se apropriar da
cena, compondo um estilo e um modo de se comunicar. Levanta também outras questões de interesse, dentro da
esfera do personagem no documentário: a tendência do entrevistado de compor sua fala segundo o que julga ser a
opinião dos interlocutores (o cineasta e a câmera, representando a opinião pública); o poder catalisador da câmera
como possível compensação da assimetria de poderes entre entrevistado e entrevistador; a dualidade entre
espontaneidade e teatro, fazer-se imagem e ser verdadeiro, presente na situação de entrevista; o desejo do
entrevistado de ser personagem clássico que se revela, por exemplo, no respeito à regra teatral clássica da quarta
parede. Ainda que seja claro em afirmar a assimetria de poderes entre o entrevistador e o entrevistado, Xavier se
aproxima da idéia de que a cena pode revelar algo inesperado, como sugerido por Santeiro, e que esta revelação
sobrevive à montagem. Ao comentar o documentário baseado na entrevista, nos moldes de Coutinho, ele afirma:
“Neste caso, a composição da cena e sua duração buscam potencializar a força do instante; produzir, no encontro, a
irrupção de uma experiência não domesticada pelo discurso, algo que, apesar da montagem e seus fluxos de sentido,
retém um quê de irredutível na atuação do sujeito, mais ou menos revelador, sempre conforme uma combinação
peculiar de método e acidente permita”. (XAVIER, 2003, p.227).