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MARINEZ SANTINA NAZZARI
FRICÇÕES LINGÜÍSTICAS NA CUIABÁ CONTEMPORÂNEA
: A DANÇA DAS INTERPRETAÇÕES ENTRE
PROFESSORES DE PORTUGUÊS.
Cuiabá-MT
2005
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MARINEZ SANTINA NAZZARI
FRICÇÕES LINGÜÍSTICAS NA CUIABÁ CONTEMPORÂNEA
: A DANÇA DAS INTERPRETAÇÕES ENTRE
PROFESSORES DE PORTUGUÊS.
Dissertação apresentada, como exigência parcial para
obtenção do grau de Mestre em Estudos de
Linguagem, à Comissão Julgadora da Universidade
Federal de Mato Grosso, sob a presidência da Profª.
Drª. Maria Inês Pagliarini Cox
Cuiabá-MT
2005
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3
N337f Nazzari, Marinez Santina.
Fricções lingüística na Cuiabá contemporânea – a
dança das interpretações entre professores de portu-
guês./ Marinez Santina Nazzari. – Cuiabá: a autora,
2005.
00p.
Orientadora: Maria Inês Pagliarini Cox.
Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de
Mato Grosso. Instituto de Linguagens. Campus Cuiabá.
1. Lingüística. 2. Análise do Discurso. 3. Língua
Portuguesa. 4. Ensino básico. 5. Prática docente. 6. Fric-
ção lingüística. I. Título.
CDU 81’42
4
AGRADECIMENTOS
A Deus, por ter me contemplado com uma vida cheia de presenças
maravilhosas.
À professora Maria Inês Pagliarini Cox, pela acolhida em seu grupo de
pesquisa, pela firmeza e sensibilidade na orientação e pela compreensão nas
minhas dificuldades.
À professora Helena Nagamine Brandão, por aceitar o convite para examinar
este trabalho, pelas contribuições dadas à época da qualificação e por tudo que tem
nos ensinado como analista de discurso.
Ao professor Roberto Leiser Baronas, pelo muito que já contribuiu no meu
aprendizado, pela generosidade e disposição em dialogar sempre.
Aos professores do MeEL, pelas aulas valiosas e aos funcionários da
secretaria, pela gentileza no atendimento.
À Roseli, pela amizade iniciada no mestrado e pelas tantas sessões de
estudos.
À Manuelli e ao Donizete, os amigos do Anahi.
Aos meus ex-companheiros de vereança e aos funcionários da Câmara
Municipal de Denise-MT, pelo carinho que sempre me dispensaram.
Ao povo de Denise-MT, pela confiança e as oportunidades com que sempre
me privilegiou.
Aos alunos, professores e funcionários da Escola Joaquim A . C. Marques,
especialmente à Maria Ramalho e ao Aderbal, por partilharem comigo a história de
aluna e professora.
Aos professores da Escola MA e da Escola CJ, por me concederem as
entrevistas que tornaram possível este trabalho.
Ao povo do Estado do Mato Grosso, pelo salário que me proporcionou a
dedicação exclusiva ao curso de mestrado.
5
DEDICATÓRIA
A Santin e Filomena, os dois maiores amores que ganhei da vida.
A Jorge Luiz, muito mais que o amado irmão, meu amigo especial.
A Francisco Paulo, presença amorosa, inteligente e leal.
A Jorge Eduardo, Maria Eduarda e Ulisses, a esperança.
A Joaninha, não conhece as letras, mas sabe todas as metáforas da vida.
A Angelito (Baiano), o doutor de agramática.
6
RESUMO
NAZZARI, M. S. Fricções lingüísticas na Cuiabá contemporânea – a dança das
interpretações entre professores de português.
Esta pesquisa, inspirada na escola francesa de Análise de Discurso, foi desenhada
em torno das seguintes questões: a) Como os professores de língua portuguesa que
atuam no ensino básico, em duas escolas particulares de Cuiabá-MT, significam o
fenômeno da variação/fricção lingüística no cenário regional?; b) Como tais
professores se situam/posicionam em relação ao discurso da lingüística? As práticas
enunciativas de tais professores revelam que posições de sujeito no embate entre o
discurso da Tradição Gramatical e o discurso da Nova Crítica? Quem quer que se
proponha a fazer Análise de Discurso está em busca de desembaraçar significados
que circulam nas práticas discursivas que atravessam uma dada formação sócio-
histórica. Assim, entende-se que a pesquisa qualitativa é especialmente indicada
para captar instantes de um fluxo discursivo por onde sentidos circulam. Afinal, a
principal característica da pesquisa qualitativa é sua preocupação como o
significado, com os discursos que os atores sociais colam no suposto real. Para
ouvir o que os professores dizem, na forma como eles dizem, escolheu-se, dentre as
opções oferecidas pela pesquisa qualitativa, como método de captação do discurso
dos sujeitos, a entrevista episódica. Os sujeitos ouvidos são professores de duas
escolas particulares: Escola MA e Escola CJ. A decisão de eleger professores de
escolas particulares como sujeitos da pesquisa justifica-se: pela existência em uma
dessas escolas (Escola CJ) de orientação sistemática por um profissional da área da
lingüística; pelo fato de ser o ensino particular um locus pouco investigado por
pesquisas da área educacional; pela percepção de que a prática dessas instituições
apresenta características mais conservadoras e pouco receptivas às mudanças na
educação e pelo fato de ser a escola particular um espaço privilegiado de
convívio/conflito entre as diferentes lingüísticas. Foram entrevistados cinco
professores de língua portuguesa do ensino fundamental (5ª a 8ª séries) e ensino
médio. Destrinçando, com recursos da Análise de Discurso, o diálogo-duelo de
vozes que ressoam interdiscursivamente nos enunciados recortados para análise,
descobriu-se que entre os professores da Escola CJ, onde, há cinco anos, funciona
sistematicamente um grupo de orientação, coordenado por um professor do curso de
Letras da Universidade Federal de Mato Grosso, o discurso da Nova Crítica ressoa
de modo mais intenso. Já entre os professores da Escola MA, onde não há qualquer
orientação, os sentidos veiculados pelo discurso da Tradição Gramatical
predominam.
Palavras-chave: heterogeneidade e fricções lingüísticas, nova crítica, ensino de
português, educação lingüística
7
ABSTRACT
NAZZARI, M. S. Linguistic frictions in the contemporary city of Cuiabá: The dance of
interpretations among teachers of Brazilian Portuguese language.
This research, inspired by the French school of Discourse Analysis, was
designed around the following questions: (a) How do teachers of Brazilian
Portuguese language who teach in two private schools in the city of Cuiabá, Mato
Grosso understand the phenomenon of linguistic variation/friction in the regional
scenario? (b) How do these teachers position themselves towards the discourse of
Linguistics? What positions do their enunciative practices reveal regarding the battle
between the discourse of the Grammar Tradition and the discourse of the New
Criticism? Whoever decides to carry out Discourse Analysis is in search of unraveling
meanings that circulate in discursive practices which cross a given social and historic
formation. Thus, it is understood that qualitative research is especially indicated to
capture instants of a discursive flux where meanings circulate. After all, the main
characteristic of qualitative research is its concern with meaning and the way the
social actors’ discourses attach to the alleged real. In order to hear what the teachers
say in the way they say it, the episodic interview was chosen among the options
available for qualitative research. The interviewees were teachers from two private
schools: The MA School and the CJ School. The decision of selecting teachers of
private schools is justified by the following aspects: teachers in one of these schools
(CJ School) have received systematic orientation by a professional of the Linguistics
area; the private school is a locus rarely investigated by researchers of the
educational area; there is a perception that private schools are characterized as
having conservative practices and as being less receptive to educational changes as
well as being a privileged space of living together/conflict between the different kinds
of Linguistics. Five teachers of the Brazilian Portuguese language from 5th to 8th
grades and High School were interviewed. Disentangling with Discourse Analysis
resources the duel of voices that resonate interdiscursively in the selected utterances
for analysis, it was found that among teachers of the CJ School, where for five years
a group of teachers has been systematically receiving orientation from a professor of
the Federal University of Mato Grosso, the discourse of the New Criticism echoes
more intense. Among the teachers of MA School whose teachers do not have any
kind of guidance the meanings expressed by the Grammar tradition are predominant.
Keywords: heterogeneity and linguistic frictions, new criticism, Brazilian Portuguese
language instruction, linguistic education.
8
SUMÁRIO
Notas iniciais.....................................................................................
Capítulo Um
Aproximações metodológicos.........................................................
1.1 A polêmica entre a tradição gramatical e a nova crítica...............
1.2 O aparelho de escuta...................................................................
1.3 O locus e os sujeitos da pesquisa................................................
1.4 A construção do corpus................................................................
Capítulo Dois
Aproximações teóricas ao discurso...............................................
2.1 A noção de discurso: primeira aproximação................................
2.2 A noção de ideologia...................................................................
2.3 A noção de sujeito.......................................................................
2.4 As noções de condições de produção e formação discursiva.....
2.5 A noção de interdiscurso.............................................................
2.6 A noção de texto em Análise do Discurso...................................
2.7 Materialidade lingüística e análise de discurso...........................
Capítulo Três
Aproximações interpretativas........................................................
3.1 Interpretações por professores da Escola MA............................
3.1.1 A gente não tem muito problema.............................................
3.1.2 Os cuiabanos não existem mais aqui......................................
3.1.3 A gente não chama nem mais de erro.....................................
3.2 Interpretações por professores da Escola CJ.............................
3.2.1 Falante não erra na própria língua...........................................
3.2.2 As minhas turmas não apresentam tanto isso.........................
3.2.3 Eu sou cuiabana e eu procuro me policiar...............................
3.2.4 Eu sempre falo pra eles (...) adequado, inadequado...............
Notas finais......................................................................................
Bibliografia......................................................................................
Anexos.............................................................................................
9
Escova
Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na
terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não
batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro
escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram
arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor.
E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas
civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo
pensei em escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que
as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos
clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já
sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades
remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então
escovar as palavras para escutar o primeiro asgar de cada uma. Para
escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a
fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras,
dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. Logo a
turma perguntou: o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto?
Eu respondi a eles, meio entresonhado, que eu estava escovando
palavras. Eles acharam que eu não batia bem. Então eu joguei a
escova fora. (Manoel de Barros – Memórias Inventadas).
10
NOTAS INICIAIS
Tenho que laspear verbo por verbo até alcançar o meu aspro.
(Manoel de Barros).
Que lugar a lingüística ocupa no discurso de professores de língua
portuguesa na contemporaneidade? Mais precisamente, há ressonância da
lingüística no discurso de tais sujeitos quando o tema em questão é a
heterogeneidade do português brasileiro? Não é outro o problema que me mobiliza
nesta investigação e me põe a escuta de professores de português. Não é
certamente uma questão original; inúmeros lingüistas envolvidos com educação têm
se perguntado pelas razões de a lingüística não ter provocado mudanças
substantivas nos dizeres e fazeres sociais com a língua nas diversas esferas da vida
cotidiana.
Poderia fazer uma extensa lista de estudos e publicações que apontam o
baixo impacto do discurso da lingüística nos modos de significar a língua e a forte
resistência da ortodoxia gramatical agora deslocada para os comandos
paragramaticais que encontraram na mídia um forte aliado. Contudo, para indiciar o
tom desse vigoroso debate, que tem envolvido lingüistas renomados, trago alguns
fragmentos oportunos para a ocasião. Faraco (2001: 39) diz: “Depois de 40 anos de
sua introdução oficial nas universidades brasileiras, a lingüística permanece invisível
e inaudível”. É acompanhado por Possenti (2001: 07) nessa desalentadora
constatação: “Faz muito tempo que a lingüística está no mercado, mas ainda não se
popularizou. A rigor, é como se não existisse. (...) é como se não tivesse havido a
revolução copernicana nos estudos da linguagem.”
Tais trabalhos, em conjunto, constatam que os conhecimentos produzidos
pelas ciências lingüísticas, apesar de já disseminados nas academias e nos centros
de pesquisa, ainda não afetaram a prática de professores do ensino básico e muito
menos o senso comum. Nem resultados contundentes de investigações, como a que
vem sendo desenvolvida, há quase trinta anos, por pesquisadores do Projeto Norma
Urbana Culta (NURC), mostrando que as formas efetivamente depreendidas da fala
das pessoas com formação universitária completa, origem urbana e residência em
metrópoles brasileiras não correspondem às formas prescritas pela gramática
11
normativa, conseguem desestabilizar a hegemonia do discurso conservador que se
arvora em defesa da pureza do português, supostamente ameaçado por forças
centrífugas
1
que não cessam de corrompê-lo, dentre elas a lingüística. Apesar de a
norma padrão não se encarnar efetivamente na fala de ninguém, é ela ainda “a
norma subjetiva” que enforma a percepção e a avaliação do desempenho lingüístico
dos falantes dentro de uma comunidade (Lucchesi, 2002: 65).
Não tendo, pois, o discurso da lingüística ressoado significativamente para
além dos muros dos centros de pesquisa das universidades, continua a imperar no
mundo da escola básica e no mundo da vida em geral o discurso da gramática
normativa, que comparece em todas as situações de uso da língua e se instala como
referência do que é “certo” ou “errado”.
A linguagem é uma prática simbólica, ou seja, uma prática social e, como tal,
está sujeita a avaliações por parte dos grupos que compartilham ou dividem um
determinado espaço social. Nas interações entre os sujeitos agem também atitudes
explícitas ou implícitas de aprovação ou reprovação em relação à alteridade
lingüística. As variedades lingüísticas não têm o mesmo valor social. Daí Bourdieu
(1983: 99) referir-se ao espaço de enunciação como mercado lingüístico que se
define por “leis de formação de preços que fazem com que nem todos os produtores
de produtos lingüísticos sejam iguais”. Tais leis de formação de preços vigoram não
apenas na avaliação de um falante por outro, mas também nos processos de auto-
avaliação, fazendo com que “os sujeitos rejeitem suas próprias práticas discursivas –
avaliadas como inferiores, como não língua – em favor de um modelo de
comportamento lingüístico que não tem nada a ver com sua identidade cultural”
(Baronas, 2001: 114).
A concepção de língua como um sistema heterogêneo e dinâmico, submetido
às normas do mercado lingüístico, remete, necessariamente, as reflexões feitas
1
As forças centrífugas são as tendências internas da própria língua, que, quando usada, é
transformada pelos falantes. Podemos elencar como exemplos a transformação de determinados
ditongos em monotongos, das palavras proparoxítonas em paroxítonas, o rotacismo. Já as forças
centrípetas são as de ação externa e que tentam frear as centrífugas. São agentes das forças
centrípetas, conforme Bagno (2003: 123-124), as academias, os aparelhos burocráticos, a literatura, a
escola etc.
12
neste estudo à “teórica da ação e do conflito”. Do ponto de vista dessa corrente
sociológica, inaugurada por Weber (1970), são as disputas sociais, os conflitos e as
ações dos sujeitos que estabelecem e mantêm a configuração social, econômica,
política e cultural de cada época.
Se as regras para a vida em comum são estabelecidas pelos sujeitos na
arena social por meio de ações e de embates, elas precisam ser compreendidas
como resultados de relações assimétricas de poder. Quer dizer, as relações sociais,
as interações, são instâncias de conflito, mais do que de consenso. Tendo por base
a tensão que preside as relações sociais, opto por falar em “fricções lingüísticas” ao
me referir ao contato entre as variedades dialetais, acompanhando a denominação
usada no projeto guarda-chuva
2
que recobre esta investigação.
Dessa forma, a expressão “fricções lingüísticas” nomeia o embate entre as
variedades lingüísticas em um determinado mercado, onde umas são valorizadas e
rendem mais dividendos e outras desvalorizadas. O prestígio ou estigma das
variedades depende do lugar sócio-econômico-cultural ocupado pelos sujeitos que
as utilizam. Tal denominação exprime adequadamente a natureza colidente das
relações entre os interlocutores, com status quo diferente, ao interagirem num
mesmo mercado lingüístico. É apropriada, portanto, como noção basilar para o
estudo do mercado lingüístico cuiabano, cenário de minha pesquisa.
A comunidade cuiabana, em sua configuração atual, começou a se engendrar
no início do século XVIII, a partir de um processo de mestiçagem, envolvendo,
sobremaneira, os povos indígenas, que aqui viviam, e os bandeirantes paulistas
(portugueses e mamelucos), originários do Planalto de Piratininga. Até meados do
século XX, manteve seus traços culturais predominantemente orais e rurais,
priorizando a vida gregária, cultivando os causos, as conversas nas calçadas, as
brincadeiras de roda e dança entre as crianças e os jovens. Nesse nicho cultural,
com difícil contato com seu exterior, uma forma peculiar de fala floresceu, herdando
traços de português arcaico, via dialeto caipira, interiorizado pelos bandeirantes. Tais
traços foram mantidos ou transformados na pronúncia de aloglotas, resultando no
falar cuiabano. Muito provavelmente, insulado na região da Baixada Cuiabana
3
, o
2
Trata-se do projeto “Práticas e atitudes de profissionais da palavra em relação ao fenômeno das
fricções lingüístico-culturais em sociedades complexas (o caso da cidade de Cuiabá)”, que vem sendo
desenvolvido por uma equipe, sob a coordenação da Profa. Maria Inês Pagliarini Cox, desde 2003.
3
A Baixada Cuiabana compreende os municípios banhados pelo Rio Cuiabá, berço da colonização
do Estado.
13
falar local não era alvo de avaliações negativas, uma vez que não tinha que disputar
o espaço com outras variedades lingüísticas de prestígio.
Contudo, esse mercado lingüístico teve as leis de formação de preço de suas
variantes profundamente alteradas nas últimas quatro décadas, em razão de um
intenso fluxo migratório originário, principalmente, dos estados do Sul e Sudeste que
mudou completamente a geografia humana do Estado de Mato Grosso.
O processo massivo de imigração de outros estados do Brasil para Mato
Grosso começou com a Marcha para o Oeste, iniciada por Getúlio Vargas, e
intensificou-se durante os governos militares, que viram, no incentivo à colonização
das regiões Centro-Oeste e Norte, uma forma de atenuar as disputas pela terra nas
regiões Sul e Sudeste, de atender a exigência de expansão da fronteira agrícola e,
ainda, de povoar e, assim, proteger as fronteiras da Amazônia Brasileira.
Mato Grosso passou a ser, então, o eldorado para muitos paranaenses,
paulistas, mineiros, gaúchos, pequenos e médios agricultores, que, derrubando
extensas áreas da mata nativa e cultivando a terra virgem, sonhavam transformar-se
em fazendeiros. Porém, as características do solo, a precária infra-estrutura, as
doenças tropicais encarregaram-se de transformar muitos sonhos em pesadelos.
Junte-se a isso a implantação do modelo agrícola de monocultura que engoliu as
terras dos pequenos proprietários, empurrando-os para a capital em busca de
empregos e melhores oportunidades. Sonhos desfeitos, bairros populares e favelas
não cessam de proliferar nos arredores de Cuiabá.
Muitos imigrantes vieram/vêm diretamente para a capital, atraídos pela
grande oferta de vagas para mão de obra especializada, demanda gerada pelo
processo de expansão do comércio e início da industrialização no Estado. Levas de
profissionais liberais formados em outros estados brasileiros acorrem para Cuiabá,
para aqui “fazer a vida”. Assim, também os bairros de classe média e alta brotam da
noite para o dia, abrigando uma população jovem, formada, principalmente, de pais
“estrangeiros” e filhos mato-grossenses.
Os números do Anuário Estatístico (2002), referidos por Palma (2005: 150),
nos permitem visualizar a rapidez com que chegavam os migrantes a Cuiabá: “em
1970 a população da cidade de Cuiabá era de 100.866 habitantes, em 1980 de
212.929 habitantes e em 2000 de 483.346 habitantes”.
Instala-se, dessa forma, uma tensa disputa pela ocupação do espaço
econômico, social, político, cultural e lingüística: de um lado, os imigrantes,
14
enunciando o discurso do colonizador, e, de outro, os cuiabanos, chamando os de
fora de pau-rodados, pessoas sem eira nem beira, em busca de oportunidades, que
param (se enroscam na curva do rio) onde encontram condições de sobrevivência,
ou seja, em Cuiabá.
Apesar de os imigrantes constituírem, nas três últimas décadas, o estrato
social que detém a maior e melhor fatia do poder econômico do Estado de Mato
Grosso, representado, privilegiadamente, pelos donos do agro-negócio, a elite
cuiabana conseguiu se manter no controle do poder político até a década de 2000.
Esse quadro, entretanto, se alterou na última eleição: um imigrante sulista,
conhecido como o maior produtor individual de soja do mundo, praticamente sem
currículo político, fez-se governador do Estado. Essa sobreposição de poder
econômico e poder político, sem dúvida, vai provocar mudanças na correlação de
forças entre as variedades dialetais em interação no mercado lingüístico mato-
grossense.
O falar local que havia florescido, a salvo de estigmas, em quase dois séculos
de escassos contatos com o resto do país, vê-se confrontado com outros falares que
saem das bocas dos imigrantes que aqui se estabeleceram, fazendo ecoar o
discurso da colonização. Investidos do papel de ‘Desbravadores do Sertão Bravio’
que vêm para alavancar o progresso, os novos mato-grossenses sentem-se
inclinados a cultivar não apenas as terras virgens do Estado, mas também a alma, a
cultura, a língua do povo cuiabano, considerada inculta, atrasada, errada. Assim, as
relações que se estabelecem entre os antigos e os novos mato-grossenses são
tensas. Essa tensão resulta em fricções lingüísticas em todas as esferas da vida
social em Cuiabá.
“Fricções lingüísticas” é o tema nuclear do projeto de pesquisa coordenado
pela Professora Maria Inês Pagliarini Cox (conforme rodapé 2). Tal projeto desdobra-
se em quatro subprojetos que esquadrinham as práticas discursivas de jornalistas,
fonoaudiólgos, professores e escritores quanto aos sentidos com que envolvem a
heterogeneidade lingüística do português, notadamente, o falar cuiabano. A questão
que atravessa todos os subprojetos indaga: Que efeitos os conhecimentos
produzidos por um século de lingüística imprimem nas práticas discursivas de tais
profissionais, formadores de opinião pública, ao significarem a alteridade lingüística?
A pesquisa, cujas descobertas pretendo relatar neste texto, filia-se a este
projeto, inscrevendo-se no subprojeto que investiga as práticas discursivas de
15
professores de português de todos os níveis de ensino. Com o propósito de
descobrir como professores de português que trabalham em Cuiabá
contemporaneamente significam as fricções lingüísticas no mercado simbólico
regional, escolhi professores de duas escolas particulares. Três razões me levaram
a escolher professores de escolas particulares: a existência em uma dessas escolas
de orientação sistemática por um profissional da área da lingüística, há mais de
cinco anos; a percepção de que a prática dessas instituições apresenta
características mais conservadoras quanto à tradição gramatical e o possível contato
de professores com uma maioria de alunos originários da população dos novos
mato-grossenses.
Escolhi a entrevista como uma estratégia de interlocução, uma forma de me
aproximar não só do que os sujeitos dizem sobre a língua, sobre as fricções
lingüísticas, mas também, da forma como eles o dizem, obtendo o material, os fatos
lingüísticos a serem analisados. Por intermédio das entrevistas, pude reunir um
conjunto de textos, certamente representativos das práticas discursivas de tais
professores.
O processo de análise, ancorado em conceitos da análise de discurso da
vertente francesa, consistirá, como recomenda Orlandi (2002: 65), primeiro, na de-
superficialização do discurso, dos sentidos que parecem evidentes e, segundo, no
mapeamento de estruturas lingüísticas que podem indicar a manutenção do sentido
único ou que evidenciam a produção de novos sentidos, acontecimentos discursivos
que correspondem a uma nova discursividade sobre o fato das fricções lingüísticas
em Cuiabá.
Este trabalho compõe-se de Notas Iniciais, três Capítulos e Notas Finais. No
Capítulo Um, explicito os procedimentos metodológicos da coleta do corpus empírico
e da constituição do corpus discursivo. No Capítulo Dois, revisito conceitos da
análise de discurso francesa que serão mobilizados na análise. No Capítulo Três,
focalizando as perguntas de pesquisa, procuro fazer falar os sentidos que os dois
grupos de professores atribuem à heterogeneidade lingüística. Nas Notas Finais,
reflito sobre o processo de interpelação dos professores por um interdiscurso em
que os significados que circulam na formação discursiva da Nova Crítica se batem
com aqueles que circulam na formação discursiva da Tradição Gramatical.
16
CAPÍTULO UM
APROXIMAÇÕES METODOLÓGICOS
Palavras têm espessuras várias:
vou-lhes ao nu, ao fóssil...
(Manoel de Barros)
O desenho de minha pesquisa foi esboçado em torno das seguintes questões:
a) Como os professores de língua portuguesa que atuam no ensino básico, em duas
escolas particulares de Cuiabá-MT, significam o fenômeno da variação/fricção
lingüística no cenário regional?; b) Como tais professores se situam/posicionam em
relação ao discurso da lingüística? As práticas enunciativas de tais professores
revelam que posições de sujeito no embate entre o discurso da Tradição Gramatical
e o discurso da Nova Crítica?
Essas perguntas, além de orientarem a coleta dos dados, mais
precisamente, a escuta dos discursos que circulam na boca de professores de
português, também direcionam a escolha dos procedimentos metodológicos
adequados à abordagem analítica. É importante destacar que, ao estabelecer as
questões acima, tinha em vista o construto teórico da Análise do Discurso da
vertente francesa, sobretudo no que diz respeito a dois aspectos fundamentais: à
significação, que tem uma dimensão histórica, para além daquela puramente
lingüística; e ao sujeito, que é permeado pela ideologia no processo de significação.
Antes de esmiuçar os procedimentos metodológicos que adotei na
realização desta pesquisa, vou perfilar, em rápidas pinceladas, os dois discursos a
que me refiro com freqüência nas páginas deste texto.
17
1.1 A polêmica entre a Tradição Gramatical e a Nova Crítica
Desde o final da década de 1970, um novo discurso sobre o ensino de língua
materna vem sendo engendrado, sob o impulso das descobertas das novas frentes
disciplinares da lingüística que expandiram o estreito domínio da lingüística da
língua que muito pouco havia perturbado o velho ensino gramatical, lastreado na
tradição lógica greco-romana.
O que principalmente caracteriza o discurso da Tradição Gramatical é: a
concepção da linguagem verbal como expressão do pensamento; a redução da
língua à norma padrão de que decorre a polarização lingüística estanque certo
versus errado; a primazia da modalidade escrita; a confusão entre língua, escrita,
norma padrão e gramática; o postulado de que a reflexão sobre unidades
lingüísticas descontextualizadas não-superiores à frase, amparada na
metalinguagem da gramática tradicional, resulta em bom uso da língua. Sob esses
imperativos, o ensino se faz prescritivo e purista, excluindo todos os usos lingüísticos
que não se conformam ao esquadro da norma padrão, numa atitude de recusa
radical do polilingüismo do português brasileiro ou de qualquer outra língua.
No início do século XX, a lingüística, então nascente, rompe com vários
princípios da longeva tradição gramatical. Postula que a linguagem verbal é por
vocação, e não por acidente, um instrumento de comunicação; que a língua não é
igual à norma padrão, mas sim um sistema de uso coletivo a que se chega por meio
de procedimentos indutivos e descritivos de pesquisa e que a língua é
primordialmente oral. Contudo, o sistema homogêneo oposto à fala heterogênea, na
consagrada dicotomia saussureana langue/parole, não chega a representar uma
ameaça ao monolingüismo da norma padrão e a desestabilizar o paradigma de
ensino da Tradição Gramatical. Como a gramática tradicional, a lingüística imanente,
predominante na primeira metade do século XX, não transcendeu o nível da frase e
não superou a prática de isolar a forma do uso e de privilegiar a forma, na suposição
de que a língua é primeiro “forma” e depois “uso”. À margem da lingüística, o ensino
de língua materna não se desviou de sua fórmula: ensino prescritivo da norma
padrão + ensino da metalinguagem da gramática tradicional.
Porém, no começo da década de 1960, Labov, nos Estados Unidos, funda a
sociolingüística, reconceituando a língua como um sistema heterogêneo, composto
de variantes lingüísticas que se correlacionam a fatores extralingüísticos. A língua se
18
apresenta, dessa forma, como um mosaico de subsistemas e normas lingüísticas.
Essa concepção abala o reinado absoluto do princípio categórico de avaliação dos
usos lingüísticos em certos e errados, dando lugar a um princípio relativista que os
avalia em adequados e inadequados em função de variáveis contextuais. Embora a
sociolingüística admita que a heterogeneidade lingüística é inerente ao sistema,
continua a privilegiar a forma. Não sem razão, define “variante” como alteração da
forma que não afeta o sentido.
A hegemonia da forma, opondo-se a uso e a sentido, só é abalada pela
análise de discurso, que também entra em cena na década de 1960, não nos
Estados Unidos, mas na França, ligada ao nome de Pêcheux. Subsumindo a
concepção interacional de linguagem, a análise de discurso inverte a direção dos
estudos lingüísticos e desloca a ênfase do sistema para o uso e da forma para o
sentido. As unidades do uso não são frases, palavras, morfemas ou fonemas
isolados e descontextualizados, mas textos que atualizam gêneros discursivos
próprios das esferas de atividades que caracterizam uma dada formação sócio-
histórico-ideológica.
Destarte, fomentado pelos novos ramos da lingüística, o discurso da Nova
Crítica propõe que o ensino de língua materna inverta o eixo reflexão=>uso para o
eixo uso=>reflexão=>uso. O uso é elevado à condição de principio e fim do ensino
de língua materna; a reflexão, apenas um ingrediente auxiliar no domínio do uso.
Esse novo paradigma atribui à escola a função de potencializar a competência
comunicativa dos alunos e não de curá-los dos maus hábitos lingüísticos adquiridos
no ambiente familiar. Assim, as aulas de gramática devem ceder seu lugar a aulas
de usos da língua oral (escuta e produção de textos orais) e usos da língua escrita
(leitura e produção de textos escritos). O objeto de ensino não são as frases e seus
constituintes e nem a metalinguagem usada para descrevê-las, mas sim os gêneros
discursivos e os textos que os atualizam, tomados como unidades de trabalho.
Além do estímulo das ciências lingüísticas nascentes, o discurso da Nova
Crítica nutre-se também da crise do ensino gramatical diante de sua impotência em
fazer dos filhos das classes populares, que massivamente ingressam na escola
pública, usuários da norma padrão. Críticas e discussões sobre o ensino da língua
materna nos moldes tradicionais vinham sendo feitas desde a segunda metade do
século XX, com a intensificação do processo de urbanização e de industrialização do
Brasil. A vida na cidade e o trabalho na indústria não combinam com analfabetismo e
19
iletramento; exigem das camadas populares o domínio mínimo da modalidade
escrita da língua portuguesa.
Contemporaneamente, o problema do acesso à escola está próximo da
superação. De um lado, as lutas dos trabalhadores pela democratização do ensino
público, ao longo da segunda metade do século XX, e, de outro, a própria percepção
das elites econômicas de que a mão de obra para o Brasil moderno, urbano e
industrial não podia ser de todo analfabeta tiveram como resultado a expansão da
rede escolar com a criação de vagas para quase todas as crianças e jovens. Nas
últimas décadas, cada governo que assume o comando se “esmera” em propor “o”
programa que irá erradicar o analfabetismo do país. A iminente solução para o
problema da quantidade de vagas para escolarização básica não encerra, contudo,
a crise da educação pública no Brasil. Uma outra crise já se patenteia com todo vigor
e, ironicamente, desencadeada pela solução da primeira. Diante da intensificação do
fluxo das classes populares na escola, o Estado e a sociedade civil vêem-se
confrontados com a contundente questão do fracasso escolar em suas três faces –
evasão, repetência e má formação.
Como a escola produz o fracasso? A escola produz o fracasso ignorando as
diferenças culturais e lingüísticas entre os alunos. Trocando em miúdos, a clientela
mudou, mas, a pretexto de uma suposta igualdade formal, a escola continua a
realizar o mesmo ensino que destinava à educação dos filhos das elites. A
pedagogia insiste em permanecer indiferente às diferenças. Como diz Perrenoud
(2001:19), “há várias décadas a escola vem transformando as desigualdades sociais
e culturais em desigualdades de resultados escolares, devido à sua indiferença
pelas diferenças”. É em Bourdieu que Perrenoud se ancora para sustentar sua tese
de que a indiferença às diferenças gera fracasso escolar:
Para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os
mais desfavorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore no
conteúdo do ensino transmitido, nos métodos e nas técnicas de
transmissão e nos critérios de julgamento, as desigualdades culturais
entre crianças das diferentes classes sociais: em outras palavras,
tratando todos os alunos, por mais desiguais que sejam de fato, como
iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar, na
verdade, sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura. A
igualdade formal que regula a prática pedagógica serve, na verdade,
de máscara e de justificativa à indiferença para com as
desigualdades
reais diante do ensino da cultura ensinada ou, mais exatamente,
exigida. (Bourdieu, 1966 apud Perrenoud, 2000:25).
20
O paradigma da Tradição Gramatical que se revelara “eficiente” para ensinar
a norma padrão aos filhos das elites que já vinham para a escola falando variedades
lingüísticas bastante próximas daquela que deveriam aprender pela educação
formal, redunda em um descomunal fracasso quando aplicado aos filhos das classes
populares. Desejando, pois, realizar uma educação sensível aos saberes lingüísticos
e culturais trazidos por essa clientela, o discurso da Nova Crítica se alinha com o
discurso progressista, que viceja no cenário sócio-político convulsionado dos anos
70, fortalecendo o debate em torno de uma educação para o povo, gratuita, de
qualidade e comprometida com a formação de cidadãos politicamente emancipados
que possam trabalhar na construção de uma sociedade livre, justa e igualitária.
1.2 O aparelho de escuta
Quem quer que se proponha a fazer análise de discurso está em busca de
desembaraçar significados que circulam nas práticas discursivas que atravessam
uma dada formação sócio-histórica. Assim, entendo que a pesquisa qualitativa é
especialmente indicada para captar instantes de um fluxo discursivo por onde
sentidos circulam. Afinal, a principal característica da pesquisa qualitativa é sua
preocupação com o significado, por assim dizer, com os discursos que os atores
sociais colam no suposto real.
Como insiste Erickson (1990), o objeto da pesquisa qualitativa não é o
comportamento (puro ato físico), mas a ação (ato físico mais as perspectivas de
significado compartilhadas pelos atores sociais engajados na interação):
O objeto da pesquisa social interpretativa é a ação, não o
comportamento. Isso se deve a um postulado acerca da natureza da
causa na vida social. Se as pessoas agem com base em suas
interpretações das ações dos outros, então as interpretações são em si
mesmas causais para elas. Isso não é verdadeiro com relação à
natureza, e, assim, nas ciências naturais, os cientistas não têm de
descobrir os significados do ponto de vista dos atores sociais. A bola de
bilhar não interpreta o seu ambiente. Mas os homens em sociedade
sim, e diferentes homens o interpretam diferentemente. Eles atribuem
significados às ações dos outros e agem de acordo com as suas
interpretações. Assim, a natureza da causa na sociedade humana
torna-se muito diferente da natureza da causa no mundo físico e
biológico, como também a natureza da uniformidade nas ações sociais
rotineiras. Porque tais ações baseiam-se em interpretações, estão
21
sempre abertas à possibilidade de reinterpretação e mudança.
(Erickson, 1990: 98)
Os investigadores que optam pela pesquisa qualitativa estão, pois,
interessados no modo como as pessoas significam suas vidas, suas práticas.
Destarte, como o propósito é captar as perspectivas interpretativas dos sujeitos, os
pesquisadores comumente não partem de hipóteses prévias que possam enviesar a
coleta dos dados, a serem recolhidos na forma de textos. Consoante Bogdan &
Biklen (1994: 51), os investigadores qualitativos lançam mão de estratégias e
procedimentos que lhes permitam tomar em consideração as experiências do ponto
de vista do informador. Para tanto, podem recorrer a técnicas como observação
participante, história de vida, entrevistas não-diretivas etc. Por meio dessas técnicas,
obtêm um volume qualitativo de dados originais e relevantes, não filtrados por
conceitos operacionais, nem por índices quantitativos. “Os dados são colhidos,
interativamente, num processo de idas e voltas, nas diversas etapas da pesquisa e
na interação com seus sujeitos” (Chizzotti, 2001: 89).
Convicta de que era preciso ouvir o que os professores dizem, mas também
a forma como eles dizem, escolhi dentre as opções oferecidas pela pesquisa
qualitativa, como método de captação do discurso dos sujeitos, a entrevista. A
entrevista apresenta-se como um recurso bastante adequado para a coleta de
“dados descritivos na linguagem do próprio sujeito, permitindo ao investigador
desenvolver intuitivamente uma idéia sobre como os sujeitos interpretam aspectos
do mundo” (Bogdan & Biklen, 1994: 134). Dentre as modalidades de entrevista,
optei, em vista dos objetivos da investigação, pela entrevista episódica, tal como fora
desenvolvida por Flick (2003: 115).
Na entrevista episódica, as palavras-chave são: memória episódica e
semântica, o que permite ao sujeito mesclar, nas narrativas, situações vividas e
conceitos. A narrativa, neste caso, é vista como uma forma de significar
experiências, episódios vivenciados, e de refletir sobre as questões conceituais que
envolvem os acontecimentos. Segundo o autor para atender seus princípios, o
roteiro da entrevista episódica deve: “1) mencionar situações concretas em que se
pode pressupor que os entrevistados possuam determinadas experiências; 2) ser
suficientemente aberta para permitir que o entrevistado selecione os episódios ou
situações que ele quer contar, e também para decidir que forma de apresentação ele
22
quer dar (por exemplo, uma narrativa, uma descrição). O ponto de referência deve
ser a relevância subjetiva da situação para o entrevistado” (Flick, 2003: 117).
Como se trata de um trabalho filiado à tradição de estudos em análise de
discurso, não posso deixar de discutir o estatuto que a entrevista assume nesse
quadro disciplinar. Concordo com Rocha et alii (2004: 162), que, no campo da AD, a
entrevista seja tratada como “um dispositivo de produção de textos a partir de uma
ótica discursiva – produção situada sócio-historicamente, como prática linguageira
que se define por uma dada configuração enunciativa que a singulariza”. Nessa
perspectiva, a entrevista não é vista como um instrumento que permite extrair a
realidade ou a verdade dos sujeitos entrevistados, mas como uma forma de aceder a
uma “massa de textos” que o pesquisador supõe já existir, mas que não são
imediatamente disponíveis. “Em outras palavras, só se entrevista quem já ‘sabe’ algo
a respeito de determinado tópico (isto é, quem é capaz – ou quem vem sendo capaz
– de produzir texto(s) a respeito do que se deseja saber)” (Rocha et alii, 2004: 173).
Cabe ao pesquisador armar estratégias de interlocução que incitem os
entrevistados a produzirem textos interpelados por discursos que já haviam gerado
uma massa de textos anteriormente. O dispositivo “entrevista” torna possível
retomar/atualizar/condensar esses discursos. Contudo, não se pode perder de vista
que os textos gerados – retomados/condensados – por esse dispositivo resultam de
um processo de enunciação conjunta entre entrevistado-entrevistador,
singularizando-se, assim, em relação aos textos anteriores, pela inscrição dos
rastros dessas condições de produção.
Re-significando, pois, a entrevista em AD como uma forma de entrar no
universo discursivo para construir um espaço discursivo, consoante Maingueneau
(1997), Rocha et alii (2004: 177) recomendam a articulação de três momentos:
1. o momento da preparação: momento em que, lançando mão dos
saberes que possuímos acerca do outro e com base em objetivos
determinados, produzimos uma espécie de ‘roteiro’ condutor de algo
que se poderia considerar uma “interação antecipada” com o outro que
se pretende entrevistar;
2. o momento da realização da entrevista: situação que estará
assentada nas bases definidas por um roteiro, responsável por
atualizar, sob o signo da interação entrevistador-entrevistado, textos já
produzidos anteriormente em diferentes situações de enunciação;
3. o momento que se segue à entrevista: situação na qual o
pesquisador estará em condições de finalmente decidir sobre um
23
corpus sobre o qual trabalhará, a partir do conjunto de textos
produzidos.
Atenta a essas recomendações, organizei o roteiro das entrevistas em
blocos temáticos que exigiram, por parte dos professores, a lembrança de situações
do dia-a-dia aliada à teorização
4
, ou seja, a enunciação, mediante processos de
interpelação, de discursos que gera(ra)m uma dispersão de textos na formação
sócio-histórica onde os entrevistados se situam. Os dois primeiros blocos,
denominados de Perfil Acadêmico e de Perfil profissional, compreendem questões
relacionadas à grade curricular da graduação em Letras cursada pelos sujeitos desta
pesquisa, principalmente ao espaço que essa grade reserva à lingüística; à
formação em nível de pós-graduação; às leituras que esses profissionais fazem na
área específica da linguagem; ao conhecimento dos Parâmetros Curriculares
Nacionais de Linguagem
5
e à situação de trabalho. O bloco Prática docente
compreende questões sobre as situações da sala de aula, especificamente sobre as
reações às variedades estigmatizadas. Já o bloco Crenças e Conceitos compreende
perguntas centradas no aspecto conceptual da língua, nas imagens que o professor
pensa que a sociedade tem dele e nas imagens que ele próprio tem de si enquanto
falante. O conjunto das questões objetiva uma aproximação do(s) discurso(s) acerca
da língua que são atualizados pelos professores nos eventos enunciativos da
entrevista.
O processo de gravação da entrevista iniciava-se com uma apresentação do
roteiro guia ao entrevistado, conforme recomenda o método: “A primeira parte da
pesquisa concreta é a instrução do entrevistado. Para fazer com que a entrevista
funcione, é importante explicar o caráter das perguntas para o entrevistado e
familiarizá-lo com esta prática” (Flick, 2003: 119). As entrevistas foram
documentadas mediante uso de ficha individual para cada entrevistado (a)
6
,
objetivando, principalmente, o registro de dados factuais e impressões observadas
ao longo do inquérito e a identificação dos sujeitos e dos textos.
1.3 O locus e os sujeitos da pesquisa
4
As questões que compõem o roteiro das entrevistas podem ser encontradas no Anexo I.
5
Vale destacar que os PCNs são ou representam neste momento uma tentativa, um gesto oficial de
implantação de uma abordagem discursiva no ensino da língua portuguesa.
6
Anexo II
24
A pesquisa foi realizada em duas escolas particulares, aqui referidas como
Escola CJ e Escola MA.
A Escola CJ oferece seus serviços à sociedade cuiabana há sessenta anos,
atendendo a educação infantil, ensino fundamental e médio. É uma escola
confessional, administrada por religiosas da ordem salesiana. Durante muito tempo,
foi um colégio para meninas e moças, que funcionava também em regime de
internato, oferecendo, até pouco tempo atrás, a formação em magistério de segundo
grau. Hoje conta com mais ou menos 1.800 alunos, de ambos os sexos, originários
principalmente das classes média alta e alta. Atualmente, a escola possui orientação
pedagógica específica para cada área de conhecimento.
A Escola MA está no mercado, há quinze anos. Funciona em duas unidades,
uma destinada ao ensino fundamental (com 400 alunos) e a outra ao ensino médio e
à preparação para o vestibular (com aproximadamente 2000 alunos). Produz o seu
próprio material, na forma de apostilas, mas não mantém serviço de orientação
pedagógica para as áreas específicas do conhecimento. Sua clientela advém das
classes média, média alta e alta. Além de alunos que residem em Cuiabá com suas
famílias, a Escola MA atende muitos alunos do interior que vêm para a capital fazer
o ensino médio e se preparar para o vestibular.
Dentre as razões que me levaram a eleger professores de escolas
particulares como sujeitos da pesquisa, enumeram-se: a existência em uma dessas
escolas (Escola CJ) de orientação sistemática por um profissional da área da
lingüística, há mais de cinco anos; o fato de ser o ensino particular um locus pouco
investigado por pesquisas da área educacional; a percepção de que a prática
dessas instituições apresenta características mais conservadoras e pouco receptivas
às mudanças na educação e o fato de ser a escola particular um espaço privilegiado
de convívio/conflito entre as diferentes lingüísticas.
Entrevistei cinco professores de língua portuguesa do ensino fundamental
(5ª a 8ª séries) e ensino médio, nessas duas escolas particulares da cidade de
Cuiabá-MT, quatro deles já com graduação em Letras e uma ainda por concluir o
curso. Apresento a seguir um perfil dos sujeitos, com informações colhidas durante
as entrevistas, focalizando a formação acadêmica (graduação e pós-graduação), a
relação que mantêm com a literatura produzida sobre o ensino da língua e com os
PCNs. Julguei relevante a indicação do Estado Brasileiro de origem de cada um,
bem como a informação se nasceu na área rural ou urbana, já que esses
25
indicadores podem ser relevantes para a compreensão dos significados que
atribuem às variedades lingüísticas.
Sujeito AD
7
-MA
AD tem 30 anos e nasceu em Minas Gerais, na região urbana de Teófilo Otoni.
Terminou o curso de Letras em 1997, na UFMT, habilitando-se em língua
portuguesa e literatura. Em 2000 concluiu um curso de especialização na área de
lingüística aplicada ao ensino de língua portuguesa. Quando indagada sobre as
leituras que realiza na área de linguagem, disse que lê sistematicamente a Revista
Nova Escola e alguns escritores do tempo da faculdade, não especificando quais. O
contato com os PCNs, confidenciou a professora, se deu na escola pública, onde
trabalha como professora efetiva, no ensino médio. Afirmou que acha as propostas
neles veiculadas interessantes, mas infelizmente que nesse tipo de escola, (...) hoje
é difícil de se realizar. Sobre a implementação dos PCNs na escola privada, onde
trabalha, diz: Não. Aqui na escola, no ensino médio, a gente trabalha com apostila,
que é unidades. Tem que cumprir esse conteúdo à risca, senão você é até chamado
a atenção. Então, não casa PCN aqui não.
Sujeito FL-CJ
FL tem 27 anos e nasceu no Estado de São Paulo, na região urbana de Barretos.
Graduou-se em Letras em 1999, habilitando-se em língua portuguesa e literatura,
pela UFMT. Em 2001 concluiu um curso de especialização na área de Descrição do
Português Brasileiro. Atualmente é mestranda em Educação Pública pela UFMT.
Sobre as leituras na área, enumerou: A Linguagem no Coração da Escola (João
Wanderley Geraldi); Gramática e Interação (Luís Carlos Travaglia); Porque (Não)
Ensinar Gramática na Escola (Sírio Possenti); Norma Lingüística (Marcos Bagno); O
Texto na Sala de Aula (João Wanderley Geraldi); Leitura e Realidade do Brasil
(Ezequiel Theodoro da Silva); Vigotsky. Sobre os PCNs, relatou que seu primeiro
contato com o documento aconteceu ainda na graduação. Na escola particular onde
trabalha, há estudos semanais, orientados por uma lingüista. Também leu os PCNs
para o mestrado. Afirmou que a escola particular onde trabalha vem tentando
implementar os PCNs.
26
Sujeito MZ-CJ
Mz tem 48 anos, é natural de Cuiabá-MT. Nasceu na área urbana, mas viveu, na sua
infância, na zona rural. Cursou Letras na Universidade Federal do Mato Grosso com
habilitação em língua portuguesa e literatura. Na escola particular ministra aulas de
língua portuguesa para turmas de 7ª série. Relatou que sua motivação para ser
professora de língua portuguesa veio, inicialmente, do fato de que tinha um
professor, quando fazia o segundo grau, que falava muito errado (fazia variação). É
também professora efetiva na rede estadual, onde exerce o papel de coordenadora
pedagógica. Quando indagada sobre as leituras que faz na área de linguagem
referiu-se às obras estudadas pelos professores da escola particular em reuniões
semanais, mas disse não lembrar-se de nenhum nome. Com os PCNs teve seu
primeiro contato na escola pública, mas é na escola particular que tem desenvolvido
estudos e trabalhos sobre eles.
Sujeito RT-MA
RT tem 30 anos e nasceu em São Paulo, na região urbana de Ribeirão Preto. É
graduada em Publicidade e está cursando o terceiro semestre de Letras, em uma
universidade particular (habilitação em língua portuguesa e literatura). Sobre as
leituras que realiza na área citou: Halliday, Ingedore Koch, Fávero, Massaud de
Moisés, todos relacionados ao estudo do texto, destacando os conceitos de
enunciação, enunciado, coerência, coesão. Confessou não conhecer os PCNs.
Sujeito AR-CJ
AR tem 30 anos e nasceu em Mato Grosso, na região urbana de Cuiabá. Graduou-
se em Letras em 1996, na UFMT, habilitando-se em língua portuguesa e literatura.
Fez o curso de especialização, tendo como área de concentração A Língua
Portuguesa voltada para a leitura (como conferir sentido à linguagem). Sobre as
leituras feitas, disse que dá prioridade para obras que tratam da prática da
linguagem, aquelas que combinem o ensino da língua com a prática da língua, com
o cotidiano da língua. Não se lembrou de nenhum autor ou obra para citar
nominalmente. Conhece os PCNs e afirma que a escola particular onde trabalha
vem buscando implementá-los.
7
As siglas identificam os sujeitos da pesquisa.
27
1.4 A construção do corpus
O discurso, como expõe Orlandi (2002: 15), “etimologicamente, tem em si a
idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim,
palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se
o homem falando”. Tendo como parâmetro essa noção de discurso, o pesquisador
chega a uma constatação fundamental em relação ao exercício analítico: não é
possível mensurar o discurso, objeto empírico, virtual, já que ele “se estabelece na
relação com um discurso anterior e aponta para outro” (Orlandi, 2002: 62). O
discurso se realiza empiricamente numa relação necessária entre duas
materialidades: a lingüística e a social. Essas materialidades amalgamam-se e
corporificam-se em textos, que constituem, para o analista, a porta de acesso ao
discurso que nunca se mostra por inteiro. Como se lê no trecho seguinte:
O texto é, para o analista de discurso, o lugar da relação com a
representação física da linguagem: onde ele é som, letra, espaço,
dimensão direcionada, tamanho. É material bruto. Mas é também
espaço significante (Orlandi, 2004: 61).
O analista de discurso debruça-se sobre textos, mas não os toma como
totalidades fechadas, pois está interessado nos discursos que os atravessam.
Textualizando-se os discursos se atualizam, mas eles sempre têm uma anterioridade
e uma posteridade. Assim, quem faz análise de discurso observa textos para
capturar o discurso. O discurso transborda as fronteiras dos textos.
Para a AD, os textos podem se tecer por diferentes linguagens e diferentes
matérias sígnicas – imagem, som, letra, gestos etc. Apesar de o discurso
materializar-se em textos por meio de diferentes linguagens e circular por intermédio
de diferentes portadores, o exercício da análise requer um material escrito ou fixado
numa superfície que se preste ao exame, ou seja, a sucessivas leituras e
comparações. Maingueneau (2004: 205) considera que “a análise do discurso,
mesmo quando estuda produções orais, deve transcrevê-las convertendo-as em
escrita. Coloca-se assim o sistema de transcrição conveniente, que varia conforme
os objetivos da pesquisa: da transcrição ortográfica usual aos sistemas que
consideram os fenômenos paraverbais e não verbais”. Atenta a essa recomendação,
transcrevi integralmente as entrevistas gravadas em meio eletrônico (fitas k7),
usando o sistema ortográfico. Considero importante ressaltar que, para a análise do
28
discurso, a transcrição de textos orais já é considerada uma interpretação. O que
ocorre, no caso do analista, é que o dispositivo de análise relativiza essa
interpretação. (Orlandi, 2002).
Uma vez transcritos e disponíveis os textos das entrevistas, procedi ao
trabalho de composição do corpus discursivo, sobre o qual incidirão as análises.
Entendo como oportuna uma reflexão teórica sobre o corpus em Análise do
Discurso. Segundo Orlandi (2001: 52):
Há um dispositivo teórico estabelecido pela teoria do discurso e há o
dispositivo analítico construído pelo pesquisador em seu campo de
pesquisa, sua filiação disciplinar, onde contam: a questão que ele
formulou, o material coletado (superfície lingüística), a maneira como foi
construído o objeto discursivo a partir do corpus constituído, a
delimitação e a montagem do material de análise, as noções que vão
ser mobilizadas, orientadas pela pergunta que faz o analista na
compreensão de seu objeto de estudo, em vista de sua finalidade.
Mariani (1998: 52) produz um roteiro para o trabalho de organização do
corpus discursivo e das análises. Dentre outras categorias usadas para a construção
do corpus, a autora fala dos recortes operados nos textos. Discorrendo sobre os
recortes de fragmentos textuais sobre os quais incidem as análises, retoma a noção
de recorte como “unidade discursiva”, trabalhada por Orlandi (1984:14, apud Mariani,
1998: 240): “Por unidade discursiva entendemos fragmentos correlacionados de
linguagem-e-situação. Assim, um recorte é um fragmento da situação discursiva”.
Tendo, então, como referência esse tripé conceitual – discurso, texto e
recorte – realizei a varredura no corpus empírico em busca da constelação de sub-
temas que circundam o tema nuclear dessa pesquisa: o embate entre o discurso da
Tradição Gramatical e o discurso da Nova Crítica na significação das fricções
lingüísticas no cenário mato-grossense contemporâneo. À guisa de ilustração, trago
aqui um conjunto de enunciados recortados das entrevistas transcritas em que os
sujeitos enunciam suas posições acerca do tema “certo/errado”:
8
“Certo e errado com essas palavras não. Eu falo que o aluno ele
usou um termo adequado, ele usou um termo inadequado. Até
porque o aluno ele vem com um ranço de certo e errado. Ele chega:
Professora, mas isso não é certo? Não existe na língua nada certo.
Todas as variedades lingüísticas que você falar tá correto, só que
tem termos, tem situações que não cabe, tem situações que não
8
As entrevistas completas podem ser encontradas no Anexo III.
29
cabe essa palavra. Então, você tem que observar: Em que
situações, em que contextos você vai usar essa palavra? Ela é
condizente com o tipo de texto que você tá fazendo? Não é
condizente? Isso que você tem que observar. Agora, termo errado
não tem. É um texto técnico? É um texto narrativo? É um texto
cômico? É uma piada? Então você tem que observar que cada
palavra, ela cabe em determinada circunstância, mas falar de certo e
de errado, isso não”. (AD-MA)
“Bom. Só na circunstância de correção de prova e dentro de
questões que exigem um certo e um errado. Na situação de
produção textual, de interpretação de texto, de opinião pessoal, não.
Tudo tem que ser respeitado dentro do limite possível de
significação de um texto, é claro. Mas na situação assim, por
exemplo, de indicar a flexão de um verbo, é certo ou errado, não tem
variação naquele momento, porque o ensino vem, o ensino é voltado
pra norma culta. Não ensina outra variação se não for a padrão,
realmente.” (FL-CJ)
“Só na parte de produção. Escrita. Na produção escrita. A minha
preocupação maior com este certo ou errado é na escrita. Se bem
que o ano passado nós estudamos um autor, e eu sou assim
desligada, eu leio, mas eu sou desligada de nomes e números, e ele
colocou o certo... Há dois anos atrás eu não aceitava utilizar muito o
pronome pessoal com sujeito não sendo objeto. Então, nós fizemos
um estudo e vimos que realmente isso era possível e agora eu já
aceito nas produções deles, já não grifo, já procuro aceitar. O
importante do estudo dessas obras que são inovadoras, que vão
trabalhando a linguagem atual, é essa aí, que você vai aprendendo
aceitar. Mas olha, foi duro: Oh, meu Deus do céu! Vou ter que tirar,
colocar o verbo direitinho, colocar o objeto de tê-la, fazer aquela
coisa bonita!” (MZ-CJ)
“Eu passo pros meus alunos, que a gente não chama nem mais de
erro, eu digo assim, a gente convive com alguns fenômenos
lingüísticos. Agora, então tá certo professora, você escrever na
prova craro, bicicreta? Porque a gente tem no falar cuiabano, aqui
da nossa região. A gente tem alunos que vieram da região sudeste,
da região sul. Mas em sala de aula seria considerado erro porque?
Porque enquanto eles tiverem a vida acadêmica deles vai ser
cobrada na produção de texto, vai ser cobrada em prova, é a
linguagem formal. É a nossa gramática normativa. E eu como
professora, tenho obrigação de corrigi-los, eu digo isso a eles. Mas
fora esse momento, pode ser usado, até por mim mesmo em sala de
aula? As gírias, a linguagem coloquial e aí entre alguns desses
fenômenos. Tranqüilamente, apesar de que alguns não fica bem. Eu
digo pra eles: Você vai falar craro aqui dentro da escola? Mas eu
tento passar essa noção pra eles, que o errado é você não saber
adequar a sua linguagem ao momento certo, ao lugar certo. Se você
30
tá conversando com pescador ribeirinho totalmente aceitável você
adequar a sua linguagem a que ele tá acostumado a usar. Agora, de
repente numa sala de aula, numa palestra, num discurso pra várias
pessoas não caberia aí esse tipo de linguagem. Então, eles têm
essa noção das variações lingüísticas, mas aqui, dentro da escola,
eles sabem que é exigido deles a linguagem formal.” (RT-MA)
“Eu sou contra a correção, você corrigir as pessoas, principalmente
em público. Isso desde que eu dava aula pra criança. Não gosto, se
alguém faz isso perto, principalmente quando faz em tom irônico, eu
corto mesmo. Não gosto disso porque acho que isso faz com que a
pessoa, se é tímida, ela se intimide mais e passe a não falar, o que é
pior. Então, o que que eu tento... a questão da variedade é
trabalhada com eles. Eles sabem: adequado, não adequado. Agora,
a variedade justamente vem, pra que eles tenham a noção que junto
com a variedade (...) eu trabalho ortografia. Pra que que existe
ortografia? Seria, isso colocar na sala: Seria ótimo que cada um
escrevesse como quisesse. Não era?. Ah não eu vou escrever
açúcar com s porque eu acho mais fácil. Eu não, vou colocar
cedilha. Eu acho que... Pra levá-los a percepção de que tem que ter
um sistema que rege uma língua pra não virar uma anarquia total.”
(AR-CJ)
31
CAPÍTULO DOIS
APROXIMAÇÕES TEÓRICAS AO DISCURSO
Só penso coisas com efeitos de antes.
Nas minhas memórias enterradas
Vão achar muitas conchas ressoando...
(Manoel de Barros)
O sujeito e o sentido são temas nucleares nas reflexões que têm lugar no
campo da chamada Análise de Discurso Francesa. Aliás, é com o propósito de
explicar como se dá a produção dos sentidos por sujeitos históricos atravessados
por ideologias e pelo inconsciente que a Análise do Discurso se patenteia entre as
ciências que estudam o funcionamento da linguagem. Michel Pêcheux constrói os
dispositivos teóricos da Análise Discurso, estabelecendo um diálogo com três
regiões epistêmicas: o materialismo histórico, a lingüística e a psicanálise.
Com base no materialismo histórico, entendido por Pêcheux e Fuchs (apud
Indursky, 1997: 17-18), na companhia de Althusser, como “teoria das formações
sociais e de suas transformações, aí compreendida a teoria das ideologias”, os
autores propõem a noção de discurso como instância prática da ideologia e a noção
de sujeito como efeito do processo de interpelação ideológica. A ideologia se torna o
sítio do sentido, que se desloca definitivamente do signo em estado de léxico.
Por intermédio da lingüística, “como teoria ao mesmo tempo dos mecanismos
sintáticos e dos processos de enunciação” (Pêcheux e Fuchs, apud Indursky, 1997:
17-18), a Análise de Discurso quer saber como acontecem, como são os processos
lingüísticos que produzem os efeitos de sentidos. A Análise de Discurso pode
recorrer a instrumentos e conceitos da lingüística imanente como recursos auxiliares
à descrição das superfícies textuais, mas não pode perder de vista as limitações
desse paradigma na compreensão da interdependência entre o lingüístico e o
histórico-social que age na constituição do sentido. Referindo-se a isso, Brandão
(1997: 22) assim relembra o movimento de superação de uma semântica lingüística
por uma semântica discursiva:
32
Na leitura que faz de Saussure, Pêcheux aponta nele a existência de
um nível de funcionamento das línguas em relação a elas próprias, de
cuja descrição ocupar-se-ia uma lingüística da língua quando fala de
fonologia, morfologia e talvez da sintaxe. Mas o sentido, objeto da
semântica, segundo Pêcheux, escapa às abordagens da lingüística;
daí a necessidade de se pensar uma semântica que, partindo do
funcionamento autônomo desses níveis, leve em conta os processos
discursivos: “o liame que liga as ‘significações’ de um texto às
condições sócio-históricas deste texto não é secundário, mas
constitutivo das próprias significações”. Assim, em vez de uma
semântica lingüística, Pêcheux propõe uma semântica do discurso.
Da teoria da enunciação, a Análise de Discurso se apropria da concepção de
linguagem como atividade intersubjetiva e da compreensão de que, no estudo da
significação, os enunciados necessariamente se curvam à enunciação, quer dizer,
se remetem ao fora da língua, às condições de produção. Contudo, as noções de
atividade lingüística, de sujeito e de condições de produção não significam da
mesma forma na bacia semântica da teoria da enunciação e na da análise de
discurso. A respeito dessa tradução inspirada numa posição materialista, lê-se
também em Brandão que
(...) a AD francesa, apesar das várias fisionomias assumidas,
apresenta uma identidade comum constituída pelo seu enraizamento
na lingüística e pela preocupação com o embricamento entre um modo
de enunciação e o lugar histórico social de onde emerge essa
enunciação. Isto é, seu objetivo é apreender a linguagem enquanto
discurso, a instância que materializa o contato entre o lingüístico
(sistema de regras, de categorias) e o não-lingüístico (lugar de
investimentos sociais, históricos, psíquicos...) pela atividade de
sujeitos que interagem em situações concretas (Brandão, 1997: 24).
Pêcheux e Fuchs (1975: 8, apud Indursky, 1997: 18) concebem, pois, a teoria
do discurso “como teoria da determinação histórica dos processos semânticos”.
Ocupa-se a teoria do discurso da definição do conjunto de conceitos e categorias
que funcionam como ferramentas necessárias à Análise de Discurso. Visa a articular
o campo lingüístico, incluídos aí os processos lingüísticos em todos os níveis, ao
campo histórico-social que abrange elementos exteriores à língua. Sobre a teoria do
discurso, Pêcheux assinala que se trata da “construção de meios de análise
lingüística e discursiva e supõe uma reflexão sobre aquilo que opera na e sob a
33
gramática, na margem discursiva da língua” (Pêcheux, 1981: 7, apud Indursky, 1997:
30).
A contribuição da psicanálise na elaboração da teoria do discurso pode ser
sentida na compreensão da noção de sujeito. Amparada pela psicanálise, que
postula a divisão do sujeito entre o consciente e o inconsciente, a Análise de
Discurso realiza uma crítica contundente do sujeito uno e consciente postulado pela
teoria da enunciação. Como expõe Authier-Revuz (1982: 136), “O sujeito não é uma
entidade homogênea, exterior à língua, que lhe serviria para ‘traduzir’ em palavras
um sentido do qual seria a fonte consciente”. Há sempre uma não coincidência
entre o que o sujeito pensa e quer dizer e o que de fato ele diz.
Nas seções seguintes, revisito noções que serão mobilizadas na leitura dos
discursos que circulam na massa de textos coletada pela pesquisa de campo.
2.1 A noção de discurso: primeira aproximação
O termo discurso significa diferentemente nas diversas disciplinas que
integram o campo da lingüística pragmática. Nessa seção, busco abeirar a noção no
escopo da chamada Análise de Discurso Francesa, procurando desembaraçá-la dos
sentidos que circulam na sua vizinhança.
O discurso precisa ser pensado em sua dupla face, ou seja, como articulação
entre representação de mundo e estrutura lingüística. Em Análise do Discurso, o
conceito de “representação” dá lugar ao conceito de “interpretação” e este último
remete-se ao conceito althusseriano de ideologia: “Uma ideologia é um sistema de
representações (imagens, mitos, idéias ou conceitos, conforme o caso) dotado de
uma existência e de um papel histórico em uma sociedade dada”. (Althusser, apud
Maingueneau, 2005: 18). No discurso, entrelaçam-se de modo inextricável a
linguagem e a história. Conforme Courtine (1981), a contribuição de Pêcheux para
as ciências lingüísticas foi desenvolver a idéia de que a linguagem é uma forma
material da ideologia fundamentalmente importante. O discurso é assim uma das
instâncias práticas da ideologia – a ideologia se corporifica por meio da linguagem.
Na vida social, somos levados inapelavelmente a interpretar/significar a
realidade, ou melhor, o que imaginamos ser a realidade, o mundo. Esse mundo é,
na verdade, uma formação sócio-histórica que se tece no embate de forças pela
manutenção/transformação da ordem estabelecida. Uma das formas de circulação
34
dos modos de interpretar os embates sociais é o discurso. O discurso é uma prática
intersemiótica, integrando linguagens outras que não só a verbal. Numa
aproximação ampla, é possível dizer que todas as práticas simbólicas constituem
meios de circulação de sentidos que tanto podem assegurar a manutenção de certas
representações quanto deslocá-las:
Análise de Discurso concebe a linguagem como a mediação
necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa
mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a
continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e
da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do discurso está na
base da produção da existência humana (Orlandi, 2002:15).
Pêcheux refere-se à produção de sentido como um ritual ideológico, uma
prática social, uma maneira de, em interação com os outros indivíduos de uma
formação social, significá-la. A esse ritual ideológico, a essa prática social, ele
chama discurso. O discurso, nos termos de Courtine (1982, apud Indursky, 1997:
39), materializa o contato entre o ideológico e o lingüístico, representando, no
interior da língua, os efeitos das contradições ideológicas e, inversamente,
manifestando a existência da materialidade lingüística no interior da ideologia.
A dupla face do discurso, enquanto objeto teórico, é também enfaticamente
reafirmada por Zoppi-Fontana (1997: 34):
(O discurso) é entendido como um objeto teórico, integralmente
lingüístico e integralmente histórico, isto é, como o espaço teórico que
permite estudar a relação entre a língua (o sistema de signos
lingüísticos) e a ideologia (como determinação histórica do sentido
pelas relações de forças que se confrontam numa dada formação
social).
A noção de ideologia é, pois, fundamental para a compreensão do que seja
discurso. Não existe sentido fora da ideologia. O signo, extraídas as correntes
ideológicas que o atravessam, é mero sinal, pode ser reconhecido mas não diz
nada.
2.2 A noção de ideologia
35
A exigência à interpretação que é posta para o sujeito é um efeito da
ideologia. Ao ser chamado a interpretar, o sujeito não o faz livremente. Ele se vê
enredado por uma teia de significações que enformam a interpretação. Quer dizer,
toda atividade interpretativa realizada por um sujeito é ideologicamente dirigida.
Portanto, a ideologia atua duplamente: ela interpela o indivíduo a significar e o
direciona em sua interpretação/significação. Quando o sujeito se posiciona é como
que ‘guiado’, induzido pela ideologia, que é a matriz pela qual interpreta e representa
a realidade, embora esse assujeitamento seja, via de regra, “esquecido”. Zoppi-
Fontana (1998: 51), numa mesma direção, fala da ideologia “como uma injunção a
interpretar os sentidos numa certa direção, determinada pela relação da linguagem
com a história”.
A concepção de ideologia que mais influenciou a Análise de Discurso foi
certamente a proposta por Althusser. O diálogo que Pêcheux trava com os trabalhos
de Althusser é intenso e marca muito de seus conceitos, dentre os quais o de
sujeito. Ecos da teoria da “ideologia em geral”, apresentada pelo autor em Ideologia
e Aparelhos Ideológicos de Estado (1985), tonalizam fortemente certos conceitos da
Análise de Discurso. Nessa teoria, Althusser postula que a ideologia: 1) representa a
relação imaginária de indivíduos com suas reais condições de existência; 2) têm
uma existência material, ou seja, existe sob a forma de práticas; 3) interpela os
indivíduos em sujeitos.
O primeiro aspecto acentua o inevitável processo de produção, pelos homens,
de formas simbólicas para representar sua relação com a realidade concreta. As
relações que os homens entretêm com as condições reais de sua existência são
necessariamente ideológicas – isso significa que sempre há interpretação, que não
há o acesso direto à coisa mesma, nua de significados. Quer dizer, a realidade só
significa à medida que é discursivizada. O segundo aspecto acentua o caráter
prático das ideologias, posição que contrasta com a tendência idealista de vê-las
apenas em sua existência espiritual, em uma suposta imaterialidade. As ideologias
dão lugar a práticas, a ações de sujeitos sociais. Os discursos são uma forma de
existência prática da ideologia. O terceiro aspecto mostra que o sujeito visto como
causa sui, à maneira dos idealistas, é um efeito ideológico. Desde que os homens
passaram a ser interpretados como responsáveis por seus atos, história tão antiga
que já ganhou ares de eternidade, o termo sujeito sofreu um completa inversão de
sentido: de “sujeito a” passou a ser significado como “sujeito de”. A forma-sujeito da
36
interpelação implica, pois, o esquecimento da sua determinação pela ideologia. Por
estar sujeito à interpelação pela ideologia jurídica dominante é que o indivíduo age
como um “sujeito de”.
Se, num primeiro momento, a Análise de Discurso esteve mais ligada a uma
concepção de ideologia como mascaramento da realidade social, hoje, boa parte
daqueles que se dizem analistas de discurso adotam uma concepção mais ampla de
ideologia como visão de mundo que vigora e circula por meio da linguagem numa
determinada formação social em um determinado momento histórico. No atual
estado da Análise de Discurso, predomina, portanto, a idéia de que não há um
discurso ideológico, mas a de que todos o são. Não existe um fora da ideologia. Em
Análise de Discurso, falar em ideologia é, pois, falar em interpretação numa dada
direção, é falar em fechamento do sentido.
Contudo, não se pode pensar no efeito da ideologia sobre o corpo social
como o de uma máquina lógica que produz autômatos. A ideologia existe sempre no
plural, daí o mundo social se caracterizar pela tensão entre ordem e desordem. Nem
mesmo a mão de ferro dos regimes fundamentalistas consegue fazer do corpo social
um corpo ideologicamente uníssono, sem dissensão. No jogo desigual, contraditório,
das formações ideológicas, a ideologia dominante está sujeita a falhas que tornam
possível a transformação. Assim, as transformações sociais podem ser pensadas
como efeito dos conflitos entre classes sociais, grupos sociais, instituições, sistemas,
sem o recurso às vanguardas esclarecidas, conscientes, que ressuscitam o conceito
de “sujeito de”.
Um último aspecto a respeito da teoria da ideologia precisa aqui ser
lembrado. Trata-se de seu caráter operatório. Brandão (1997: 27), citando Ricouer,
diz ser a ideologia “operatória e não temática, porque, ‘operando atrás de nós’ é a
partir dela que pensamos e agimos sem, muitas vezes, tematizá-la, trazê-la no nível
da consciência.”. Nesse sentido, é possível estabelecer uma correlação entre
ideologia e inconsciente.
2.3 A noção de sujeito
Os sentidos que envolvem a noção de sujeito na Análise de Discurso resultam
da articulação entre as teorias da enunciação, da ideologia e do inconsciente.
37
A teoria da enunciação, cuja fundação é atribuída a Benveniste, se erige em
torno da figura do sujeito. Definido a enunciação como “a colocação em
funcionamento da língua por um ato individual de utilização” (Benveniste, 1974: 80),
o autor faz do eu, do enunciador, a condição de existência da enunciação. Na
perspectiva da teoria da enunciação, o “eu” é um signo vazio, cujo significado
depende de sua apropriação por um enunciador particular. “Eu” é aquele que diz eu.
Nesse aspecto, a teoria da enunciação representa uma ruptura em relação à
lingüística da língua que, ancorada na noção de signo como unidade de dupla face,
pressupunha que os sentidos pertenciam às palavras em estado de sistema e não
às palavras sendo usadas. Embora a Analise de Discurso difira radicalmente na
compreensão da noção de sujeito, ela compartilha com a teoria da enunciação a
idéia de que os sentidos precisam ser estudados em relação à discursivização da
língua. Uma e outra contribuem, pois, para a virada pragmática da lingüística.
Em Benveniste, o “eu” que enuncia reveste-se de sentidos engendrados no
escopo do idealismo, tais como unidade, identidade, interioridade, liberdade,
originalidade. Esses sentidos fazem pensar que sujeito da enunciação, ao dizer, diz
o que pensa, diz o que sabe, diz o que quer – diz-se a si mesmo. Afinal, “Não há
outro testemunho objetivo da identidade do sujeito que não seja o que ele dá assim,
ele mesmo sobre si mesmo.” (Benveniste, 1976: 288).
Contudo, Pêcheux e seus seguidores, no desvio da filosofia idealista aberto
pela psicanálise e pelo materialismo histórico, contestam veementemente a
concepção de sujeito uno, livre, onipotente, onisciente, grávido de si mesmo. A nós,
analistas de discurso, soa impensável a crença de que o sujeito é a origem do
próprio verbo. O enunciador imaginar-se a fonte do que diz é interpretado por eles
como um efeito ideológico que age inconscientemente. As fronteiras entre
Benveniste e Pêcheux, mais e melhor, entre a teoria da enunciação e a análise de
discurso, no que diz respeito à noção de sujeito encontram-se assim descritas em
Cox (1989) e em (Zoppi-Fontana, 1997):
Embora a teoria da enunciação e a análise do discurso difiram
radicalmente na conceituação do agente da prática discursiva
enquanto sujeito, um ponto há que é comum entre elas: ambos
concebem a linguagem como atividade, como prática. Mas enquanto
Benveniste pensa no agente da atividade lingüística como um “sujeito
de” (real, substantivo), como causa, Pêcheux pensa nele (no agente-
suporte) como efeito, como uma forma-sujeito (o agente atua conforme
38
às formas de existência histórica das relações de produção, mas, pelo
concurso das relações sociais e jurídico-ideológicas “aparece” como
“um sujeito de”) (Cox, 1989: 213).
O sujeito não é mais entendido como origem e fonte do dizer, em
absoluto controle estratégico e intencional do sentido de “seus”
enunciados: pelo contrário, assume-se a determinação ideológica do
sujeito por formações discursivas que o precedem e excedem, dentro
das quais se constituem as diferentes posições de sujeito que
permitem ao sujeito sua enunciação. A mesma determinação
ideológica opera sobre o sentido (de uma palavra, de uma frase, de
um texto), o qual não está na língua (como produto de um
planejamento estratégico a partir de uma intenção significativa ou de
comunicação): pelo contrário, postula-se que o sentido é produzido
materialmente a partir dos processos discursivos que delimitam/opõem
as FDs que atravessam uma formação social (Zoppi-Fontana,
1997: 35).
As noções de inconsciente e ideologia são, portanto, fundamentais no
processo de re-significação da noção de sujeito. Com a psicanálise, a Análise de
Discurso aprende que o sujeito consciente, o ego, é o efeito inconsciente de um
processo de identificação com o Outro. Aprende que o sujeito é fragmentado,
descentrado, cindido entre o consciente e o inconsciente, irresponsável, incoerente,
contraditório. O efeito de ordem, de identidade, de autonomia de que se reveste o
ego resulta de um espelhar-se no Outro que se inicia na infância.
Para explicar o funcionamento desse mecanismo que faz o sujeito acreditar-
se inteiro, centrado, coerente e consciente, a psicanálise usa a metáfora do espelho.
Nos termos da teoria lacaniana, a origem da identificação com o discurso do Outro
vem da infância, quando a criança não se percebe como um todo, não tem
consciência de seu corpo completo, precisando do Outro (do olhar da mãe) para
reconhecer-se. Ela se percebe, se vê através da mãe, do olhar da mãe.
Transportada para o campo da Análise de Discurso, a metáfora do espelho sugere
que o sujeito precisa do discurso do Outro, precisa de uma máscara, para
apresentar-se como eu. Attié (1987), citado por Barbosa (2003: 106), assim explica
o processo de identificação que constitui o “eu”:
Tanto o espelho como o código lingüístico teriam, então, uma função
de unificação e generalização. Tanto a imagem especular de um corpo
unificado quanto a formação do eu dependem de algo que é exterior a
eles, o que os torna alienados: ‘o eu como uma síntese a priori só
39
existe imaginariamente’ (Perrone-Moisés, 1982: 81). Assim como foi
necessário o olhar do outro (a mãe) para que a criança construísse
uma imagem idealizada de seu corpo, será necessário a presença de
um outro (código lingüístico) para que se constitua o Eu. O Eu nada
mais é, então, que um efeito de linguagem. (Attié, 1987: 21)
Com o materialismo histórico, mais precisamente, com Althusser , a Análise
de Discurso aprende que o “sujeito de” – uno, livre, responsável, agente – é o efeito
dissimulado do processo de interpelação pela ideologia, que produz a ilusão da
autonomia. Na modernidade, é hegemônica a ideologia antropocêntrica (liberalismo,
individualismo etc.). Interpelados por ela, os homens se imaginam sujeitos do
conhecimento, da história, do discurso, dos próprios atos. Quer dizer, o “sujeito de” é
o efeito de uma ideologia que mascara os mecanismos de interpelação. Dessa
forma, para significar, o sujeito sofre o efeito de duas ilusões: ele se imagina a fonte
do seu dizer e responsável pelo que diz e imagina, igualmente, que os sentidos
evidentemente não podem ser outros. Essas duas formas de ilusão são conhecidas
na Análise de Discurso como Esquecimento nº. 1 e Esquecimento nº. 2.
O Esquecimento nº. 1 pode ser definido como a ilusão de o sujeito ser a
origem do sentido. Há o “esquecimento” de que os sentidos já existem, já foram ditos
antes, o esquecimento de que é o interdiscurso (outros discursos já proferidos) que
sustenta o discurso do sujeito. Esse esquecimento ideológico/inconsciente, essa
ilusão de ser origem é assim descrita em Orlandi ( 2002):
O esquecimento número um, também chamado esquecimento
ideológico: é uma instância do inconsciente e resulta do modo pelo
qual somos afetados pela ideologia. Por esse esquecimento temos a
ilusão de ser a origem do que dizemos quando, na realidade,
retomamos sentidos preexistentes.(Orlandi, 2002: 35)
Já o Esquecimento nº. 2 caracteriza-se pela ilusão de se ter o domínio do que
se diz. O sujeito recalca os outros sentidos, o sentido somente pode ser aquele.
Corresponde ao intradiscurso, ao fio do discurso do sujeito, à forma como ele
organiza os outros discursos.
O esquecimento nº. 2 é parcial e semiconsciente. Há uma seleção
feita pelo falante, em relação aos processos de produção de uma
língua determinada, em que ele vai delimitando o que diz e,
conseqüentemente, excluindo o que seria possível dizer, naquela
mesma situação. Esse esquecimento dá ao sujeito a impressão, a
40
ilusão de realidade do pensamento, ou seja, o discurso se apresenta
como reflexo de seu conhecimento objetivo da realidade. Nessa
perspectiva, a escolha entre as várias construções (as paráfrases
possíveis) é significativa. Formam-se, ao longo do dizer, famílias
parafrásticas – o que não se diz mas que se poderia dizer naquelas
condições – e que fazem parte do que se diz (Orlandi, 1987: 10-11).
Por meio do esquecimento nº. 2, o sujeito tem a ilusão da relação referencial
biunívoca entre significado e coisa no mundo, tem a ilusão de que diz as palavras
verdadeiras sobre o mundo, de que mundo estará dito para todo o sempre, de que
depois dele não haverá mais história. Esquece-se de que o que faz é interpretar e
significar o mundo e de que as interpretações são sempre parciais e mediadas pela
linguagem, e portanto, de que a história é um processo sem fim. Sobre a relação
linguagem-realidade, diz Zoppi-Fontana (1997):
Assumimos a posição de filiação teórica que nega um acesso direto à
“realidade” e que define a relação entre o sujeito e o mundo como uma
relação mediada pela linguagem, enquanto matéria significante.
Porém, a relação da linguagem com o mundo tampouco é direta, a
linguagem não reflete o mundo nem se abre a ele como uma janela
transparente. ( Zoppi-Fontana, 1997: 49)
Em resumo, o esquecimento nº. 1 faz o enunciador funcionar como um
“sujeito de”, aparecer como fonte de seu dizer. E o esquecimento nº. 2 faz o
enunciador acreditar que os sentidos são evidentes, a linguagem é transparente e o
real pode ser nomeado/dito definitivamente.
Para que haja sentido é preciso que o sujeito interprete e esse é um sinal da
presença da ideologia, pois, ela é uma injunção à interpretação. Contudo, o sujeito
não percebe (ou se esquece de) que o sentido impõe-se-lhe pela interpelação
discursiva. Acredita que o sentido vem de si, ou melhor, tem a ilusão de que ele está
na realidade e de que pode captá-lo, retratá-lo. Acredita que as palavras que usa
correspondem a sentidos literais. A ideologia o faz pensar que o sentido está nas
palavras (efeito de transparência) e esquecer-se de que os sentidos lhe são dados
pelas formações discursivas, que, por sua vez, os disponibilizam pelo interdiscurso
ou pela memória histórica. Parece-lhe evidente a liberdade do sujeito, quando o que
ocorre é a filiação a uma forma-sujeito – eu sou livre para dizer o que quero, mas
tenho que fazê-lo pela língua e a língua é pura historicidade (memória,
interdiscurso).
41
2.4 As noções de condições de produção e formação discursiva.
Na primeira fase da Análise do Discurso, a noção de condições de produção
definiu-se no encalço das teorias enunciativas, para quem o significado só podia ser
estudado no dobrar-se do enunciado sobre a enunciação. No escopo dessas teorias,
o contexto de enunciação era entendido como situação empírica e desenhava-se em
torno do eu-aqui-agora. Quer dizer, o contexto ligava-se ao instante mesmo da
enunciação, tendo no centro um sujeito enunciador imaginado livre, autônomo, uno.
Embora a noção de condições de produção em Análise do Discurso se apresentasse
fortemente vinculada à idéia de contexto empírico da enunciação, ela se afastava do
presenteísmo e do princípio da subjetividade fundadora que marcavam as teorias da
enunciação.
Na perspectiva da Análise do Discurso, supõe-se que o sentido de um
enunciado aflora não apenas das circunstâncias imediatas, do eu-aqui-agora, mas
do contexto sócio-histórico-ideológico que transcende o instante da enunciação.
Assim, quando analisa um enunciado, a Análise do Discurso pergunta: que
condições históricas permitiram que aquele sentido fosse produzido por um sujeito,
afetado pelas instituições e pelas vozes de outros discursos.
As condições de produção desembocam, pois, nas formações imaginárias,
erigidas não em torno de um sujeito suposto possuir uma identidade essencial, mas
em torno de um sujeito chamado a ocupar lugares sociais e a representar papéis. No
quadro das formações imaginárias, a identidade essencialista dá lugar a processos
de identificação. Para Pêcheux (1969: 18), “as condições de produção remetem a
lugares determinados na estrutura de uma formação social”. São indivíduos
investidos de personas sociais que põem a língua em funcionamento. As formações
imaginárias são jogos projetivos que envolvem os sujeitos do discurso num processo
de ante-visão que é constitutivo da enunciação: Que imagem faço do destinatário e
que imagem penso que ele faz de mim para lhe falar dessa forma? Que imagem
faço do objeto do discurso e que imagem penso que o destinatário faz dele para lhe
falar dessa forma? Orlandi (1998) assim retoma a formulação de Pêcheux acerca
das formações imaginárias:
42
Todo falante e todo ouvinte ocupa um lugar na sociedade e isso faz
parte da significação. Os mecanismos de qualquer formação social
tem regras de projeção que estabelecem a relação entre as situações
concretas e as representações (posições) dessas situações no interior
do discurso. São as formações imaginárias. O lugar assim
compreendido, enquanto espaço de representações sociais é
constitutivo das significações (Orlandi, 1988:19).
Courtine (1981) vê nessa proposição primeira das formações imaginárias uma
forte ressonância da teoria dos papéis tal como postulada pela sociologia
funcionalista e pela psicologia social, principalmente pela teoria dramatúrgica da
interação de Erving Goffman. Essa compreensão, nos termos de Brandão (1991:
37), faz com que o plano psicossociológico domine o plano histórico. As
determinações históricas do discurso são transformadas em meras circunstâncias. A
partir da segunda fase da Análise de Discurso, a noção de condições de produção é
ressignificada mediante a incorporação da noção de formação discursiva.
A noção de formação discursiva é de Foucault (1969), designando a
regularidade de objetos, modalidades enunciativas, conceitos e escolhas temáticas
para um conjunto de enunciados dispersos. O autor (1986:43) confessa tê-la
proposto para evitar o uso de “palavras demasiado carregadas de condições e
conseqüências, (...), tais como ‘ciência’, ou ‘ideologia’, ou ‘teoria’”. A noção de
formação discursiva leva-o às noções, dela conseqüentes, de discurso e prática
discursiva, assim definidas pelo autor:
Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em
que se apoiem na mesma formação discursiva: ele não forma uma
unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo
aparecimento ou utilização poderíamos assinalar na história; é
constituído de um número limitado de enunciados para os quais
podemos definir um conjunto de condições de existência (Foucault,
1986: 135)
(Prática discursiva) é um conjunto de regras anônimas, históricas,
sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma
dada época e para uma determinada área social, econômica e
geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função
enunciativa. (Foucault, 1986: 136)
Pêcheux se apropria dessas noções, mas nem por isso abre mão do conceito
de ideologia. Vê, pois, como possível a articulação das idéias de Foucault e
43
Althusser. Para Pêcheux, as formações discursivas estão inextricavelmente ligadas
a formações ideológicas. Pêcheux e Fuchs (1975, apud Indursky, 1997: 32)
entendem as formações ideológicas com um “complexo de atitudes e de
representações que não são nem ‘individuais’ nem ‘universais’, mas se relacionam
mais ou menos diretamente a posições de classes em conflitos umas com as
outras”. A formação discursiva é vista, no universo da Análise de Discurso, como
“aquilo que em uma dada formação ideológica... determina o que pode e deve ser
dito” (Orlandi, 2002:43). Na leitura de Orlandi (1998), uma formação discursiva
(...) constitui o domínio do saber que funciona como um princípio de
aceitabilidade discursiva para um conjunto de formulações (o que pode
e o que deve ser dito) e, ao mesmo tempo, como princípio da exclusão
do não-formulável (Orlandi, 1998: 108).
As formações discursivas devem ser compreendidas como sítios históricos de
significados. Assim, o que parece ser um mesmo enunciado pode não dizer a
mesma coisa se produzido em formações discursivas diversas (efeito de antonímia).
Também é possível que enunciados aparentemente diferentes signifiquem a mesma
coisa se produzidos em uma mesma formação discursiva (efeito de sinonímia). As
formações discursivas são instâncias de materialização de sentidos inscritos em
formações ideológicas que caracterizam uma dada formação social num momento
histórico dado. Reunindo vários aspectos, Brandão (1991) chega à seguinte
definição de formação discursiva:
Conjunto de enunciados marcados pelas mesmas regularidades, pelas
mesmas ‘regras de formação’. A formação discursiva se define pela
sua relação com a formação ideológica, isto é, os textos que fazem
parte de uma formação discursiva remetem a uma mesma formação
ideológica. A formação discursiva determina ‘o que pode e deve ser
dito’ a partir de um lugar social historicamente determinado. Um
mesmo texto pode aparecer em formações discursivas diferentes,
acarretando, com isso, variações de sentido (Brandão, 1991:90).
Como sítios dos sentidos, as formações discursivas não apresentam
contornos definidos, não são fechadas em si mesma. Nas enunciações singulares,
os enunciadores trabalham ininterruptamente para produzir um efeito de coerência
discursiva, tão caro à razão ocidental que interpreta as contradições e os desvarios
44
do sentido como sintoma de loucura. Sobre essa característica das formações
discursivas, diz Orlandi (1998):
As formações discursivas não têm fronteiras categóricas. Como diz
Courtine (1982), o fechamento de uma formação discursiva é
“fundamentalmente instável, não consistindo em um limite traçado de
uma vez por todas, separando um interior e um exterior do seu saber.
Ela se inscreve entre diversas formações como uma fronteira que se
desloca em função de luta ideológica”. Esse saber ou o conjunto das
formações, é o que chamamos “interdiscurso”. Ele delimita o conjunto
do dizível, histórica e lingüisticamente definido (Orlandi,1998: 11-12).
A prática discursiva mostra que o sujeito, quando produz sentidos, o faz
identificando-se com uma formação discursiva. Ele adere a uma formação
discursiva. Entretanto, essa adesão nunca é perfeita, sempre há falhas que
permitem a irrupção das contradições. A não-coincidência entre a posição-sujeito
ocupada pelo enunciador e a forma-sujeito da ideologia materializada na formação
discursiva revela a heterogeneidade de qualquer discurso, sempre habitado pela
sombra do Outro. A memória do dizer, ou seja, o interdiscurso age incessantemente
na produção dos sentidos.
2.5 A noção de interdiscurso
A hipótese do primado do interdiscurso em relação ao discurso inaugura a
terceira fase da AD, a fase atual. Nos termos de Maingueneau (2005: 33), essa
hipótese inscreve-se na “perspectiva de uma heterogeneidade constitutiva, que
amarra, em uma relação inextricável, o Mesmo do discurso e seu Outro”. O
interdiscurso, como heterogeneidade constitutiva, funciona por meio dos
esquecimentos no. 1 e 2, conceitos explorados na seção 2.3.
A noção de heterogeneidade fora amplamente explorada por Authier-Revuz
(1982, 1984). A autora, num diálogo profícuo com os trabalhos que postulam a
precedência do interdiscurso sobre o discurso, com os trabalhos de Bakhtin sobre
dialogismo e polifonia e com os trabalhos psicanalíticos que rompem com a idéia de
um sujeito indiviso e auto-fundante, visualiza dois tipos de heterogeneidade: a
constitutiva e a mostrada. A heterogeneidade constitutiva nomeia os processo reais
de constituição do discurso, ou seja, nomeia o Outro do discurso que, conquanto
45
onipresente, não é localizável, representável. A heterogeneidade constitutiva age por
trás de um sujeito inconsciente, um sujeito dividido, um “Isso fala”, que opera pela
falha. Já a heterogeneidade mostrada nomeia a representação dos processos de
constituição do discurso pelo discurso. É o Outro do discurso que se faz presente
sob condições, é localizável e representável. A heterogeneidade mostrada implica
um sujeito investido da função-autor, que, acometido da ilusão de ser a fonte do seu
dizer, conscientemente, busca demarcar a fronteira entre o que ele acredita ser seus
“próprios enunciados” e aqueles que atribui ao Outro. Na heterogeneidade mostrada,
o “Isso fala” dá lugar a um “Como diz o outro”. Trata-se de um mecanismo de defesa
em relação ao outro: o autor se ocupa em reconstruir a imagem de um sujeito uno,
autônomo, que se sente dono e responsável pelos enunciados que saem de sua
boca ou de sua pena. A heterogeneidade mostrada pode ser marcada (discurso
direto, aspas, itálicos etc) ou não-marcada (discurso indireto livre, ironia, pastiche,
imitação, jogos de palavras etc).
O interdiscurso também se confunde com a noção de memória discursiva. A
memória discursiva, nos termos de Orlandi (2000: 31), é “o saber discursivo que
torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do preconstruído, o já-dito que
está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra”.
No interdiscurso reside, pois, a identidade presente, passada e futura dos
enunciados. É nesse espaço do já-dito que está a base do dizível, que se
disponibilizam os dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma
situação discursiva dada.
Para refinar a noção de interdiscurso, Maingueneau (2005) retoma a tríade:
universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo.
Pelo termo “universo discursivo”, o autor designa o conjunto de todos os
discursos que circulam e interagem numa conjuntura histórica dada. Embora o
universo discursivo seja finito, dificilmente pode ser captado em sua totalidade. O
universo discursivo é o continente donde se recortam os campos discursivos,
passíveis de apreensão.
O “campo discursivo” é “um conjunto de formações discursivas que se
encontram em concorrência, delimitando-se reciprocamente em uma região
determinada do universo discursivo”. (p.35). Os campos podem ser delimitados por
fronteiras de várias naturezas. Os campos não são zonas insulares; os contornos a
que se chega dependem do ponto de vista do observador. Os campos discursivos
46
podem, por exemplo, corresponder às fronteiras disciplinares: campo da filosofia,
campo das Letras, campo da Matemática etc. Circunscrito o campo discursivo, pode-
se então isolar o espaço discursivo.
O “espaço discursivo” é “o subconjunto de formações discursivas que o
analista julga relevante para seu propósito colocar em relação”. (p 37). O recorte dos
espaços discursivos funda-se num conhecimento textual e histórico. Contudo, a
hipótese que gerou o recorte de um espaço discursivo é confirmada ou refutada
apenas à medida que a análise avança. As polêmicas explícitas, que mostram a
heterogeneidade, podem ser uma pista para o recorte do espaço discursivo. Porém,
não se pode perder de vista que a heterogeneidade constitutiva, inúmeras vezes,
não se manifesta na superfície discursiva.
Segundo Maingueneau (2005), o reconhecimento do primado do interdiscurso
remete aos fundamentos semânticos do discurso:
(...) um sistema no qual a definição de rede semântica que
circunscreve a especificidade de um discurso coincide com a definição
das relações desse discurso com seu Outro. (...) o Outro não deve ser
pensado como uma espécie de ‘envelope’ do discurso, ele mesmo
considerado como envelope de citações tomadas em seu fechamento.
No espaço discursivo, o Outro não é nem um fragmento localizável,
uma citação, nem uma entidade exterior: não é necessário que seja
localizável por uma ruptura visível da compacidade do discurso. (...)
Disso decorre o caráter essencialmente dialógico de todo enunciado
do discurso, a impossibilidade de dissociar a interação dos discursos
do funcionamento intradiscursivo. Essa imbricação do Mesmo e do
Outro retira à coerência semântica das formações discursivas qualquer
caráter de ‘essência’, caso em que sua inscrição na história seria
assessória; não é dela que a formação discursiva tira o princípio de
sua unidade, mas de um conflito regrado. (Maingueneau, 2005: 38-39)
O interdiscurso compreende, pois, o conjunto das formações discursivas
colocadas em relação num dado espaço discursivo, inscrevendo-se no nível da
constituição do discurso, à medida que trabalha com os deslocamentos de sentido
de uma formação discursiva a outra. Ao perfilar o dizer legítimo, uma formação
discursiva simultaneamente projeta no Outro a região do dizer ilegítimo, ou seja, do
interdito. Daí, Maingueneau (2005: 40) dizer que os enunciados têm direito e avesso.
Pelo direito, os enunciados se relacionam com o Mesmo da formação discursiva que
os torna possíveis e, pelo avesso, eles se relacionam com o Outro que rejeitam.
47
Aprofundando o caráter constitutivo do interdiscurso, Maingueneau (2005: 37)
distingue o discurso segundo do(s) discurso(s) primeiros. O discurso segundo se
constitui a partir do discurso primeiro que funciona como seu Outro. Na sua tradução
por um discurso segundo, o discurso primeiro se vê ameaçado em seus
fundamentos. O autor afirma haver para o discurso segundo uma fase de
constituição e uma fase de conservação. Na fase de constituição, a presença do
Outro é evidente. Na fase de conservação, mesmo que a presença do Outro
constitutivo deixe de ser mostrada pelo discurso segundo, a relação com suas
estruturas semânticas permanecem e podem ser analiticamente apreendidas.
Ao tratar da polêmica como um processo de interincompreensão no espaço
discursivo, Maingueneau (2005: 103-105) refere-se aos discursos em interação
como discurso agente e discurso paciente: “discurso-agente (é) aquele que se
encontra em posição de tradutor” e “discurso-paciente (é) aquele que é assim
traduzido”. O discurso-agente interpreta, traduz, os enunciados de seu Outro (o
discurso-paciente) pela grade de suas categorias negativas, os sentidos rejeitados.
Quer dizer, diante do imperativo da coerência semântica interna da formação
discursiva, o enunciador-agente é levado a construir simulacros do Outro.
No caso específico deste estudo que elegeu o campo discursivo das Letras,
recortando como espaço discursivo a polêmica entre os discursos da Tradição
Gramatical e da Nova Crítica nas práticas discursivas de professores de português,
o último se apresenta como o discurso-agente que constrói simulacros do primeiro
no nível do intradiscurso. Como afirma Maingueneau (2005: 113),
A polêmica aparece exatamente como uma espécie de homeopatia
pervertida: ela introduz o Outro em seu recinto para melhor conjurar
sua ameaça, mas esse outro só entra anulado enquanto tal, simulacro.
Ela mantém, pois, um duplo laço com o simulacro: pelo fato de que ela
mesma é apenas um simulacro de guerra, como o indica seu nome,
uma guerra de papel, e pelo fato de que ela não cessa de traduzir o
Outro em seu próprio simulacro.
Comparando-se o discurso a um tecido, a uma teia, pode-se dizer que o
intradiscurso é o ‘fio do discurso’, é a sua parte aparente, a sua superfície, enquanto
o interdiscurso são os fios de sustentação entrelaçados. O que está em evidência,
no intradiscurso, é a formulação de um discurso a partir da realidade presente.
48
A memória histórica discursiva, ou seja, o interdiscurso, não está atrelado a
uma única formação discursiva, mas transita entre várias formações discursivas. A
interdiscursividade tem, pois, um lugar privilegiado no estudo do discurso:
Tudo o que o discurso formula já se encontra articulado nesse meio-
silêncio que lhe é prévio, que continua a correr obstinadamente sob
ele (...) É preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso
em sua irrupção de acontecimento, nessa pontualidade que aparece e
nessa dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sabido,
esquecido, transformado, apagado até nos menores traços (...)
(Foucault, 2000: 28).
A linguagem, na condição de discurso, se constitui por dois aspectos: um
material que é a superfície lingüística, a parte visível ‘a olho nu’, e o outro que é
constitutivo, atravessado pela história e pela ideologia e que, ao contrário do
primeiro, não está disponível ao observador desprovido de arsenal teórico
apropriado de análise. A esse nível, aqui designado como interdiscurso, é que
análise de discurso pretende chegar, tendo o texto como ponto de partida, como
porta de entrada. É pelo intradiscurso, pelo dito, pelo eixo horizontal, que se chega
ao interdiscurso, ao não-dito, ao eixo vertical, às instâncias de produção e
sedimentação dos sentidos.
2.6 A noção de texto em análise de discurso
Considerando que o discurso é a linguagem em funcionamento, um processo
envolvendo o lingüístico e o histórico, e que esse processo pressupõe o que já foi
dito e o ainda por dizer, deve-se levar em conta a maneira como ele se apresenta na
prática, ou seja, como esse discurso se mostra materialmente, como se
superficializa.
Como argumenta Orlandi (2002: 09), o processo de produção do discurso
acontece em três momentos: constituição, formulação e circulação.
A constituição relaciona-se à dimensão vertical da linguagem, ou seja, à
memória discursiva, ao interdiscurso. Já a formulação está relacionada à dimensão
horizontal que corresponde ao intradiscurso, à organização material do discurso, ao
texto.
49
Como explica a autora, “Formular é dar corpo aos sentidos” (Orlandi, 2002:
09). “Sendo atualização da memória discursiva, a formulação se faz materialmente
pela colocação do discurso em texto, pela textualização” (Orlandi, 2002: 11).
O texto, dessa forma, é concebido como exemplar do discurso, relacionado a
uma formação discursiva que o regula, que, por sua vez, está ligada a uma formação
ideológica. “É nessa remissão à ideologia que encontramos o que é sistemático,
regular, em relação ao funcionamento do discurso” (Orlandi, 1998: 10-11).
No quadro da Análise de Discurso, discurso e texto diferem não apenas em
termos de propriedades como constituição, memória e verticalidade versus
formulação, atualização e horizontalidade, mas também como objeto teórico (o
discurso), versus objeto empírico (o texto) que se apresenta como unidade de
análise.
Respondendo à necessidade de estabelecer bases para a análise,
defini o texto como unidade de sentido em relação à situação
discursiva. Pela consideração da materialidade do discurso e seus
efeitos em sua manifestação concreta, tomo o texto, em sua
representação linear e bidimensional, como contrapartida do discurso:
considero o discurso no domínio teórico (efeito de sentidos entre
locutores), enquanto o texto é seu correspondente no domínio da
análise (como unidade significativa). Desse modo tenho procurado
estabelecer o estatuto analítico do texto no próprio seio das ciências
da linguagem (Orlandi, 2001: 73).
O texto é a unidade de análise da Análise de Discurso. Não se define pela
sua extensão, mas por se apresentar como uma unidade de sentido em relação a
uma situação. É definido como um objeto empírico, lugar do jogo de sentidos, do
trabalho da linguagem, do funcionamento da discursividade.
É relevante observar que o texto, entendido como fixação de um processo
discursivo, organiza a relação da língua com a história na produção de sentidos e do
sujeito em sua relação com o contexto histórico-social. “A historicidade do texto na
perspectiva da Análise do Discurso, não está no contexto fora da linguagem, mas na
maneira como o discurso se textualiza, no modo como esta exterioridade está
simbolizada. Ela é interna ao próprio texto” (Orlandi, 1996:12).
Para a Analise de Discurso, se “o discurso é uma dispersão de textos, o texto
é uma dispersão do sujeito”. (Orlandi, 2000: 70). Diversas posições-sujeito
correspondentes a diferentes formações discursivas podem se manifestar ao longo
50
de um texto. A completude do dizer é um efeito da relação do sujeito com o texto,
deste com o discurso e da inserção do discurso em uma formação discursiva
determinada. Esse movimento é que produz a impressão de unidade e transparência
do dizer.
Da relação entre o já-dito e o que se está dizendo é que se compõe o texto. O
já-dito, a memória, a constituição, o eixo vertical, o dizível é o interdiscurso. O que se
está dizendo, a formulação, eixo horizontal, o dizer é o intradiscurso. O fato de que o
discurso e, conseqüentemente, o texto é formado no embate de formações
discursivas faz ressoar nele a diversidade de vozes, de sujeitos.
Embora textos sejam a unidade de análise para a Análise de Discurso, não
constituem um ponto de partida absoluto, já que desde o início os sentidos que nele
circulam são vistos como frutos do diálogo entre intradiscurso e interdiscurso. Os
textos também não são o ponto de chegada, pois atingido o processo discursivo,
desaparecem como “referências específicas para dar lugar à compreensão de todo o
processo discursivo do qual eles – e outros que nem conhecemos – são parte”
(Orlandi, 2002: 72).
2.7 Materialidade lingüística e análise de discurso
Ancorada nos pressupostos de que a língua é passível de uma pluralidade
significante e de que os significados são dados pelas formações discursivas, a
pergunta que a Análise de Discurso faz frente a um texto não é o que ele significa,
mas como ele significa. Ela constrói ou produz conhecimento sobre os sentidos do
discurso, debruçando-se sobre o texto, “porque o vê como tendo uma materialidade
simbólica própria e significativa, como tendo uma espessura semântica: ela o
concebe em sua discursividade” (Orlandi, 2001: 18). Não se pode perder de vista
que o objeto específico da Análise do Discurso é o discurso e não a língua, mas que
sua unidade de análise é o texto. É por meio da análise de elementos lingüísticos do
texto que se torna possível o acesso ao funcionamento discursivo.
Para Pêcheux, todos os processos discursivos são produzidos no interior das
ideologias, o que consiste na injunção à interpretação e na interpretação em uma
dada direção. Em função da interpretação, uma exigência apresenta-se ao analista
(ele também sujeito submetido às ideologias), a exigência de um dispositivo de
51
análise que lhe permita relativizar sua interpretação, descrever os processos
discursivos e contemplá-los.
De posse do dispositivo teórico, o primeiro movimento do analista é o de ir
além das evidências, além da ilusão de transparência da linguagem, que consiste
em mergulhar nas inúmeras possibilidades do dizer, na discursividade, que nada
mais é do que a espessura da linguagem, a sua não transparência. Ao se evidenciar
o processo discursivo, é possível estabelecer as relações de sentidos ali produzidos
com sentidos de outros discursos, ou seja, o processo de construção dos sentidos
materializados, textualizados.
A materialidade lingüística do discurso é a estrutura lingüística que se
mantém regular e que pode indicar a manutenção do sentido ou a sua ruptura.
Possenti (2004: 18-20) afirma que os sentidos, as ideologias, se materializam na
língua mediante um trabalho, nem sempre consciente, “com” e “sobre” os recursos
de expressão:
O discurso é entendido como um tipo de sentido – um efeito de
sentido, uma posição, uma ideologia – que se materializa na língua,
embora não mantenha uma relação biunívoca com recursos de
expressão da língua. É pela “exploração” de certas características da
língua que a discursividade se materializa. (...) O discurso se constitui
pelo trabalho “com” e “sobre” os recursos de expressão, que produzem
determinados efeitos de sentido em correlação como posições e
condições de produção específicas. Freqüentemente, se não sempre,
esta investidura de recursos de expressão não é clara para o locutor
ou para o ouvinte/leitor – quer dizer, os interlocutores podem não ter
acesso consciente às manobras que executam e os efeitos que assim
(se) produzem. (...) As estruturas discursivo-ideológicos se realizam no
texto de uma certa forma, e a presença ou ausência de um traço não é
uma questão de acaso.
Essa possibilidade de materialização dos sentidos existe graças à
característica da língua que é a de estar disponível, de abrir espaço para o jogo da
atribuição de significados pela ideologia sob determinadas condições de produção.
Os sentidos estarão sempre relacionados às posições ideológicas dos sujeitos.
Se os sentidos são construídos em cada situação particular de interpretação,
se são determinados pela história, pela ideologia, eles não existem, portanto, na
estrutura congelada dos significantes, impossibilitando a postulação do sentido
literal, aquele inscrito nos dicionários, colado às palavras. Porém, os sentidos são
52
espartilhados pela materialidade lingüística, que limita a sua proliferação ilimitada.
Maingueneau (1997: 151) ressalta a esse respeito que
O analista do discurso certamente lida com palavras que figuram nos
dicionários, mas não é nele que encontrará todos os elementos que
lhe são necessários para apreender o valor de uma palavra em uma
formação discursiva determinada (1997: 151).
Indursky (1997), acompanhando Orlandi (1983 e 1988), diz que unidades de
qualquer extensão podem ser mobilizadas pelo discurso em funcionamento.
Entretanto, tais unidades precisam ser vistas não com a realidade do sentido, mas
como indícios dos sentidos.
Para proceder à análise da relação discurso-língua, Orlandi propõe
que se identifiquem as marcas lingüísticas responsáveis pelas
diferentes formas de funcionamento dos discursos. Tais marcas
“podem derivar de qualquer nível de análise lingüística (fonológico,
morfológico, sintático, semântico) ou de unidades de qualquer
extensão (fonema, morfema, palavra, sintagma, frase, enunciado,
partes de um texto, texto). E a autora adverte que as marcas
lingüísticas, na análise discursiva, não funcionam mecanicamente,
devendo-se “tomá-las como pistas” que não são encontradas
diretamente. Para atingi-las é preciso teorizar. Além disso, a relação
entre as marcas e o que elas significam é (...) indireta. No domínio
discursivo não se pode, pois, tratar as marcas ao modo “positivista”,
como na lingüística.(Indursky, 1997: 23)
Não são as marcas lingüísticas puras que interessam ao analista de discurso,
mas sim “o modo como elas estão no texto, como elas se encarnam no discurso. Daí
o interesse do analista pela forma-material que lhe permite chegar às propriedades
discursivas” (Orlandi, 2002: 90). Também não é pelo conteúdo explicitamente
veiculado por um termo que a teoria por ele se interessa, mas sim pela memória,
pela discursividade que carrega.
Inicialmente a Análise de Discurso trabalha sobre a materialidade discursiva,
objetivando “desconstruir” a ilusão de sentido único, que é produzido pelo
esquecimento n.º 2. Esse procedimento que visa a evidenciar o trabalho da ideologia
e da história se inicia com o processo de de-superficialização, que consiste na
transformação da superfície lingüística em um objeto discursivo. Coloca-se o texto
disponível em contraponto com outros possíveis, sempre levando em conta que
53
entre as inúmeras possibilidades de formulação, os sujeitos dizem x e
não y, significando, produzindo-se em processos de identificação que
aparecem como se estivessem referidos a sentidos que ali estão,
enquanto produtos da relação evidente de palavras e coisas. Mas,
como dissemos, as palavras refletem sentidos de discursos já
realizados, imaginados ou possíveis. É desse modo que a história se
faz presente na língua (Orlandi, 2002: 67).
Por meio de processos lingüísticos que conduzem à manutenção do mesmo
sentido (a paráfrase) ou que fazem irromper novos sentidos (a polissemia), é
possível evidenciar a historicidade na língua, que se camufla na ilusão de sentido
único e eterno. A paráfrase é a re-atualização, pelo uso de formas lingüísticas
diferentes ou não, dos efeitos de sentido já discursivizados anteriormente. A
paráfrase é responsável por um efeito de sinonímia.
Os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo o dizer
há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória. A
paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços do dizer.
Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. A
paráfrase está ao lado da estabilização (Orlandi, 2002: 36).
Enquanto a paráfrase promove apenas uma interpretação e a circulação de
um sentido dominante, apagando e silenciando outros (Orlandi, 1996), a polissemia
é a erupção de outro sentido, é a possibilidade do acontecimento discursivo (produz
a ruptura e abre uma nova discursividade): “na polissemia, o que temos é o
deslocamento, a ruptura de processos de significação. Ele joga com o equívoco”
(Orlandi, 2002: 36).
Os conceitos trabalhados neste capítulo são as ferramentas que me permitem
cumprir a tarefa de abeirar a discursividade, desfazer as ilusões constitutivas dos
sentidos e procurar responder às questões postas pela pesquisa que aqui se relata,
acerca do embate entre o discurso da Tradição Gramatical e o discurso da Nova
Crítica em torno da significação das fricções lingüísticas no cenário mato-grossense
contemporâneo.
54
CAPÍTULO III
APROXIMAÇÕES INTERPRETATIVAS
Traços de letras que um dia encontrou nas pedras de
uma gruta, chamou: desenhos de uma voz. (Manoel de
Barros)
Como ponto de partida para uma primeira aproximação interpretativa da
massa de textos que reuni, ouvindo, por meio da técnica da entrevista episódica,
professores de língua portuguesa de duas escolas particulares, perfilo o “campo
discursivo”, para poder, então, aproximar-me do contorno do “espaço discursivo”, o
intrincado das formações discursivas que se encontram em relação, ou seja, o
interdiscurso que funciona como memória dos sentidos postos em circulação pelos
enunciados.
Lembrando, com Maingueneau (2005: 35), que o campo discursivo “é um
conjunto de formações discursivas que se encontram em concorrência”, não
constituindo uma zona insular dada de antemão, mas passível de circunscrição
mediante pontos de vista, opto pelo ponto de vista disciplinar. Assim, o campo
discursivo aqui delimitado é o das Letras. Mais explicitamente, é o complexo das
formações discursivas que se encontram em concorrência no campo das Letras. O
campo discursivo das Letras é o sítio de significações que me permite chegar ao
recorte do espaço discursivo examinado neste discurso.
Recordando, também com Maingueneau (2005: 37), que o espaço discursivo
“é o subconjunto de formações discursivas que o analista julga relevante, para seu
propósito, colocar em relação”, assinalo que é meu objetivo perscrutar o diálogo
entre o discurso da Tradição Gramatical e o discurso da Nova Crítica nos modos de
significar a heterogeneidade lingüística do português tal como se configura no
mercado lingüístico mato-grossense contemporâneo. Interessa-me apreender o
duelo, os conflitos de vozes que ressoam interdiscursivamente nos enunciados
recortados para análise.
55
O discurso da Nova Crítica se caracteriza como um discurso segundo em
relação ao discurso primeiro, aquele da Tradição Gramatical. Como é ainda um
discurso em fase de constituição e não de conservação, a presença do outro – o
discurso da Tradição Gramatical – é quase sempre evidenciada sob a forma de
heterogeneidade mostrada, configurando-se como um sítio de significações do qual
o enunciador se quer afastar. Constituindo-se, pois, como polêmica, como
interincompreensão, o discurso da Nova Crítica funciona como um “discurso-agente”
em relação ao discurso da Tradição Gramatical que funciona como “discurso-
paciente”. Assim, o discurso da Nova Crítica assume a posição de tradutor do
discurso da Tradição Gramatical. E a propósito do fenômeno da heterogeneidade
lingüística, o discurso da Nova Crítica traduz a interpretação que lhe é dada pelo/no
discurso da Tradição Gramatical por meio da grade de suas categorias negativas, ou
seja, dos sentidos negados, excluídos. Aos olhos do regime de verdade
9
do discurso
da Nova Crítica, os sentidos atribuídos ao fenômeno da variação lingüística pelo
discurso da Tradição Gramatical são considerados “ilegítimos”.
Se o discurso da Nova Crítica, como já foi dito anteriormente, é um discurso
em fase de constituição, então, ele coexiste e disputa com o discurso da Tradição
Gramatical, não sem forte resistência do último, a posição de detentor dos sentidos
verdadeiros, ou seja, legítimos. Tendo em vista que esses dois discursos coexistem
e se batem pelas suas verdades no campo discursivo das Letras, entendo que eles,
como memória discursiva, inscrevem seus efeitos de sentidos nos enunciados
produzidos pelos professores de português ouvidos nesta pesquisa.
A hipótese de fundo é que entre os professores da Escola CJ, onde, há cinco
anos, funciona sistematicamente um grupo de orientação, coordenado por um
professor do curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso, o discurso da
Nova Crítica ressoe de modo mais intenso. Já entre os professores da Escola MA,
onde não há qualquer orientação, a hipótese de fundo é que os sentidos veiculados
pelo discurso da Tradição Gramatical predominam. Essas hipóteses orientam, pois,
a organização da análise em duas sessões: uma examinando os enunciados
produzidos por professores da Escola MA e outra, pelos da Escola CJ, contendo
cada uma delas, subseções temáticas que, em conjunto, permitirão abeirar
9
Emprego o termo “regime de verdade” no sentido que lhe é dado por Foucault (1982:14): “um
conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o
funcionamento dos enunciados”.
56
respostas possíveis para as perguntas de pesquisa aqui relembradas: a) Como
professores de língua portuguesa que atuam nos ensino básico, nas escolas
particulares MA e CJ, na cidade de Cuiabá, significam o fenômeno da
variação/fricção lingüística no cenário regional?; b) Como tais professores se
situam/posicionam em relação ao discurso da lingüística? Que posições de sujeito
as práticas enunciativas revelam no embate entre o discurso da Tradição Gramatical
e o discurso da Nova Crítica?
Revendo a massa de textos resultante das entrevistas, com a finalidade de
recortar enunciados exemplares a serem interpretados neste capítulo, percebi que
cinco questões constantes do roteiro-guia produziram os enunciados mais
significativos para o tema deste estudo: 1) Como você lida com as variedades
lingüísticas que circulam na sala de aula?; 2) Quando o aluno fala [‘kraru], o que
você pensa e como você reage?; 3) Quando o aluno fala [do6], [ma6], o que você
pensa e como você reage?; 4)Você costuma usar os conceitos de certo e errado?
Em que circunstâncias? e 5) Do ponto de vista lingüístico como você vê a cidade de
Cuiabá?.
Quer dizer, as respostas a tais perguntas pareciam fornecer as pistas
interpretativas mais promissoras. Em vista dessa percepção, optei por concentrar
minha análise no conjunto de enunciados provocados por essas cinco questões.
3.1 Interpretações por professores da Escola MA.
Das respostas produzidas para tais perguntas pelos professores da Escola
MA, recortaram-se os seguintes enunciados, cuja leitura deve preceder a
aproximação interpretativa:
E1 (a presença das variedades lingüísticas na sala de aula)
Aqui na escola particular quase não tem. Porque os cuiabanos não existem
mais aqui. Todos nasceram aqui, mas são filhos de paranaenses, de
gaúchos. Então, a gente não tem muito problema. É um ou outro aluno que
puxa, assim, o sotaque... A gente trabalha assim, não tem muita dificuldade,
até porque o pessoal que nasce aqui eles não querem falar as variedades
daqui, não querem falar o cuiabanês. Entendeu? Eles preferem aprender a
língua voltada mais para São Paulo, mais sulista, que eles acham mais
interessante, mais bonito. Então, quem é cuibano da geração de hoje, que
tem quatorze, quinze anos, não fala mais cuiabano. Essa rejeição sim, eles
têm, porque eles acham vergonhoso. Eles acham que cuiabano fala feio, eles
acham que cuiabano fala errado. Por que? Porquê a maioria dos professores
57
que eles têm também não são mais daqui e eles não priorizam a língua daqui.
Então eles falam:- Professora é errado. Eu falo: - Na língua não existe nada
errado, existe termos inadequados e você ter sotaque, isso não é inadequado.
Isso é o lugar onde você foi criado, você tem que respeitar. E na escola tem o
projeto cuiabanidade, aqui no Master, que é um resgate da própria cuiabania.
Mas você observa que, principalmente o aluno do ensino médio que é o que
eu lido hoje, eles evitam , evitam, evitam falar cuiabano. Eles acham ridículo
cuiabano. Entendeu? Eles não querem falar.
E2 (reações do professor diante do rotacismo)
Se o aluno fala “framengo” eu observo assim, dentro da sala de aula, se eu
sei que ele tem problema de ortografia eu vou falar pra ele: - Olha, você tem
algum problema de, na fala, de linguagem? Você não consegue falar o “l”?
Porque nós temos alunos aqui, principalmente os cuiabanos, eles não falam o
“l”, só falam o “r”. Então, eu pergunto: - Isso é o que? Isso é um regionalismo?
- Oh Professora! Eu tenho dificuldade, o “l” não sai. Então, a gente transforma
isso numa situação mais cômica, porque se você reprime à toa: não é “fra” é
“fla”, o aluno nunca mais vai falar. Ele vai ficar sempre com vergonha de
pronunciar algo que seja com “r”. Mas eu questiono se é problema de fala, se
não. Se é porque ele foi educado assim, falando desse jeito. Mas assim, nada
pro aluno ficar deprimido. - Ai professora, não vou falar mais. A gente leva
sempre na esportiva, que eu acho que é a única forma da gente aprender
melhor. Então, é assim uma questão muito, isto é, muito tranqüila. Eu não
reprimo ninguém. Eu levo sempre na esportiva, falo que não está falando
errado, que ele está usando um termo inadequado, que o termo adequado é
esse, de uma forma, assim, mais tranqüila pro aluno ficar, assim, constrangido
na hora de falar. (AD).
E3 (reações do professor diante do rotacismo)
Eu passo pros meus alunos, que a gente não chama (variedades lingüísticas)
nem mais de erro, eu digo assim: - A gente convive com alguns fenômenos
lingüísticos. Agora... - Então está certo professora você escrever na prova
“craro”, “bicicreta”? Porque a gente tem no falar cuiabano, aqui da nossa
região, a gente tem alunos que vieram da região sudeste, da região sul. Mas
em sala de aula seria considerado erro. Por que? Porque enquanto eles
tiverem a vida acadêmica deles vai ser cobrada a produção de texto, vai ser
cobrada em prova, é a linguagem formal. É a nossa gramática normativa. Eu
digo pra eles: - Você vai falar “craro” aqui dentro da escola? Mas eu tento
passar essa noção pra eles, que o errado é você não saber adequar a sua
linguagem ao momento certo, ao lugar certo. Se você está conversando com
pescador ribeirinho totalmente aceitável você adequar a sua linguagem à que
ele está acostumado a usar. Agora, de repente numa sala de aula, numa
palestra, num discurso pra várias pessoas não caberia aí esse tipo de
linguagem. Então, eles tem essa noção das variações lingüísticas, mas aqui,
dentro da escola, eles sabem que é exigido deles a linguagem formal. (RT).
E4 (reações do professor diante da palatalização)
Quando ele (o aluno) fala “ma6” eu sempre procuro: - Ah! Tcha por Deus! Aí
eu sempre procuro utilizar a linguagem dele também. Eu falo: - Observe
gente, nós temos aqui um aluno que tem a variante! Olha que interessante ele
58
não perdeu as raízes. Eu vou valorizar, que o que é mais importante é você
não perder suas raízes. (AD).
E5 (uso dos termos certo/errado em sala de aula)
Certo e errado, com essas palavras, não. Eu falo que o aluno ele usou um
termo adequado, ele usou um termo inadequado. Até porque o aluno ele vem
com um ranço de certo e errado. Ele chega: - Professora, mas isso não é
certo? - Não existe na língua nada certo. Todas as variedades lingüísticas que
você falar está correto, só que tem termos, tem situações que não cabe, tem
situações que não cabe essa palavra. Então, você tem que observar: Em que
situações, em que contextos você vai usar essa palavra? Ela é condizente
com o tipo de texto que você está fazendo? Não é condizente? Isso que você
tem que observar. Agora, termo errado não tem. (AD).
E6 (uso do certo/errado em sala de aula)
Lá fora pode usar as variantes que eles quiserem, mas dentro da escola, nos
textos das provas, a não ser que seja um texto que aí cabe o uso, vou fazer
uma história em quadrinhos, vou fazer uma narrativa como se eu fosse um
sem-terra, aí ele sabe que entra essa questão das variantes, que não vai ser
corrigido porque encaixa na questão, no tema do texto. A gente trabalha isso
com eles. (RT).
E7 (imagem lingüística de Cuiabá)
A cidade hoje perdeu totalmente o cuiabanês que se falava há trinta anos
atrás. Acho que por aí mesmo. Então, vejo assim, que Cuiabá hoje é uma
cidade, que lingüisticamente falando, não existe mais. Então, ela está
absorvida pelo paranaense, pelo paulista, pelo gaúcho, pelo mineiro, pelo
goiano. Então (...) a gente fala assim: - Eu vou pra Cuiabá, lá vou comê
petche com matchitche debatcho do Cotchipó da Ponte. Ninguém mais fala
isso, não existe isso mais. Então as pessoas chegam aqui com a sua própria
linguagem, continuam com essa linguagem que elas já tem e os que moram
aqui, que nasceram aqui, aprendem isso e aí acham que isso é o mais
correto, é o mais certo, que tem que ser assim. (AD).
E8 (imagem lingüística de Cuiabá)
Não só lingüístico, mas essa questão, eu como professora, eu vejo a cidade
de Cuiabá como está todo, a maioria dos estados do Brasil. Eu acho que está
muito distorcida... Aqui dentro a gente tem políticos que na televisão, no
discurso, em manifestos eles não sabem usar a nossa língua
adequadamente. São erros bárbaros que não são admissíveis na questão de
estar falando pra massa. A gente não estaria admitindo isso na pessoa que
chegou a um cargo alto como chegou. Políticos, médicos, professores de
outras disciplinas que muitas vezes acham que não têm a obrigação de
dominar o nosso idioma adequadamente, mas ele como professor tem esse
papel na sala de aula, não importa que ele seja um professor de matemática,
ele tem a obrigação de estar corrigindo numa prova ou mesmo oralmente um
aluno ou a si próprio e a gente ainda vê isso, mesmo em escolas particulares.
(RT).
59
Dentre os muitos efeitos de sentido que ressoam nesse conjunto de
enunciados, alguns se presentificam com mais regularidade, patenteando o
processo de interpelação dos sujeitos por determinados discursos. Afinal, para fazer
sentido aquilo que o sujeito atualmente diz precisa inscrever-se naquilo que já foi
dito em outro momento, que não é dito no enunciado presente, mas que possibilita
sua construção.
No processo de de-superficialização dos sentidos, alguns aspectos da
materialidade lingüística dos enunciados se impõem ao analista.
3.1.1 “A gente não tem muito problema...”
O que significa referir-se à “variação lingüística” como “problema”,
“dificuldade” (E1)? Significa ler o fenômeno da variação lingüística pela grade
semântica do discurso da Tradição Gramatical que estabelece uma equivalência
entre “língua” e “norma padrão”. Esse discurso significa a língua portuguesa como
sendo homogênea ou invariável. Portanto, ser heterogênea e variável, ou seja, não
ser um decalque da norma padrão, é “problema”, “dificuldade”. O que não é espelho
da norma culta, não é língua, é, sim, um “problema” a espera de solução, mais e
melhor, um mal à espera de cura.
Em E2, as palavras “problema” e “dificuldade” são também usadas para
designar um fenômeno de variação lingüística em nível fonético – o fenômeno do
rotacismo -, que tanto pode ser interpretado como “um regionalismo” aprendido na
comunidade social onde o aluno adquiriu sua língua materna, como uma patologia
de linguagem, a exemplo do trecho “em problemas de fala”. Ler o processo
fonológico de rotacismo como um distúrbio de fala é algo recorrente entre aqueles
que falam interpelados pelo discurso da Tradição Gramatical. Em texto divulgado
pela Internet, Pasquale Cipro Neto (2005: 01 e 02) assim se refere ao rotacismo que
ele também designa como um “problema”, em negrito e de forma silabada, para dar
o devido destaque à pronúncia “correta” a ser memorizada:
Muitas pessoas no Brasil dizem "pobrema". A pronúncia oficial, no
entanto, deve ser sempre como se grafa a palavra: pro-ble-ma. (...) A
ciência que se ocupa desses desvios de pronúncia é a fonoaudiologia.
Em depoimento ao programa, a fonoaudióloga Sandra Pela fala a
respeito do assunto: "Para a produção efetiva dos sons da fala,
algumas estruturas são necessárias. O ar vem dos pulmões, passa
60
pela laringe e produz som nas pregas vocais. Esse som é então
modificado no trato vocal ou na caixa de ressonância. O trato vocal é
que dá a característica específica de cada som. (...) Quando esse
mecanismo da fala está alterado, temos um fenômeno que é
conhecido, atualmente, como dislalia ou distúrbio articulatório.
Antigamente era chamado de rotacismo. No caso das crianças, o
problema pode ser decorrência de um atraso no desenvolvimento e de
alterações na habilidade motora ou no comando do sistema nervoso
central. No caso dos adultos, podemos pensar em trocas articulatórias
dos fonemas - como falar ‘Cráudia’ em lugar de ‘Cláudia’ (...). A
pessoa faz essa alteração muitas vezes em decorrência do seu meio
cultural". Como vimos, o problema tem explicação científica e há
solução para ele. A pessoa pode fazer um tratamento para aprender a
empostar a voz, a pronunciar melhor as palavras. O importante é que
ninguém seja discriminado por isso.
Fazendo vista grossa a todos os equívocos relativos aos domínios da
lingüística e da fonoaudiologia que o excerto encerra, interessa-me destacar os
sintagmas nominais que o “gramático” usa para se referir ao rotacismo: “esse(s)
desvio(s) de pronúncia”, “dislalia”, “distúrbios articulatórios”, “o problema”, “essa
alteração”, todos usados no discurso terapêutico (da medicina, da psicologia, da
fonoaudiologia) para designar uma anormalidade, de natureza patológica, que pode
e deve ser tratada, curada, já que está relacionada a “atraso no desenvolvimento”,
ou a “alterações na habilidade motora ou no comando do sistema nervoso central”,
ou ainda a maus hábitos adquiridos no meio cultural. Também o termo “tratamento”
faz ressoar o discurso médico.
Essa aliança do “discurso normativo” da Gramática com o “discurso da
normalidade” das ciências ligadas à saúde mascara as relações de força e os
conflitos que se estabelecem entre as variedades lingüísticas numa comunidade
social. Trata-se, pois, de uma estratégia ideológica que, sobrepondo o “normal” ao
“normativo, legitima a equivalência entre “norma padrão” e “língua”. A patologização
da alteridade lingüística produz um efeito de transfiguração das relações de força
que faz com que a norma lingüística própria dos falantes de uma classe social se
apresente como uma norma universal da língua, como a boa língua, como a língua
saudável. Essa aliança torna a violência simbólica operada pela classe dominante
menos visível, já que a fala do outro precisa, não sujeitar-se à vontade da classe
dominante, mas ser curada de sua anormalidade.
O sujeito que enuncia E1 e E2 divide-se entre significar o rotacismo como um
“regionalismo” ou como um “problema de fala”, revelando, pois, um processo de
61
interpelação por um interdiscurso em que formações discursivas contraditórias – a
da gramática tradicional que exclui da língua toda sorte de alteridade lingüística e a
da (socio)lingüística que inclui na língua a alteridade lingüística – co-habitam o
mesmo espaço enunciativo.
3.1.2 “Os cuiabanos não existem mais aqui...”
O que significa dizer “Aqui na escola particular quase não tem (variação
lingüística), porque os cuiabanos não existem mais aqui”? Um dos sentidos
carreados pelo enunciado E1 é o de que a “variação” é sinônimo de “falar cuiabano”.
Como “variação” é também sinônimo de “problema” (conforme seção 3.1.1), “o falar
cuiabano” é um “problema” que os professores da Escola MA quase não têm que
enfrentar, já que os cuiabanos quase não existem mais na escola particular: “É um
ou outro aluno que puxa, assim, o sotaque”. Ser cuiabano não é nascer em Cuiabá,
mas ser filho de pais de origem cuiabana. Quem nasce em Cuiabá, mas é filho de
paranaenses, de gaúchos, não é cuiabano genuíno.
O que significa, pois, dizer “os cuiabanos não existem mais aqui (na escola
particular)” ? Pode significar que a população de cuiabanos genuínos seja hoje a
minoria no estado (os índices do censo comprovam isso), mas pode também
significar que a maioria das famílias cuiabanas não tem poder aquisitivo para custear
escola particular para seus filhos. Nesse segundo sentido, parece ecoar a memória
das interações entre imigrantes e mato-grossenses genuínos, na tessitura de uma
formação social em que os primeiros, desde o início, vão assumindo o domínio do
poder econômico. Fora a elite cuiabana que conseguiu se manter no controle do
poder político até 2002, quando um imigrante, símbolo mor do poder econômico, foi
eleito Governador de Mato Grosso, a grande maioria dos cuiabanos se viu
totalmente excluída dos benefícios do crescimento econômico do Estado e diminuída
no seu status quo.
Em E1 e E7, ressoa muito fortemente o discurso da colonização. Os
imigrantes, vindos principalmente do sul e do sudeste, regiões do país consideradas
as mais desenvolvidas e civilizadas, chegaram/chegam a Mato Grosso com espírito
semelhante ao do colonizador europeu que aportava no Brasil nos séculos XVI, XVII,
XVIII e XIX. Sentem-se imbuídos da missão de colonizar não só a terra inculta, mas
também a “gente inculta” do sertão mato-grossense. No contato entre o imigrante e a
62
população originária de Mato Grosso, parece repetir-se o processo de
ocidentalização que abraçou predatoriamente as culturas e línguas locais durante a
colonização no Novo Mundo: “A cidade hoje perdeu totalmente o cuiabanês que se
falava há trinta anos atrás... Vejo assim, que Cuiabá hoje é uma cidade, que
lingüisticamente falando, não existe mais... Ela está absorvida pelo paranaense, pelo
paulista, pelo gaúcho, pelo mineiro, pelo goiano... As pessoas chegam aqui com a
sua própria linguagem, continuam com essa linguagem que elas já tem e os que
moram aqui, que nasceram aqui, aprendem isso e aí acham que isso é o mais
correto, é o mais certo, que tem que ser assim” (E7). Esses enunciados revelam o
jogo desigual de forças entre o falar cuiabano e os outros falares trazidos pelos
imigrantes que, pela sua mais valia, passam a ser imitados pelos filhos da terra.
No mercado lingüístico cuiabano, em sua configuração atual, o cuiabanês, diz
a professora AD, é “evitado”, “rejeitado”, “motivo de vergonha” para a geração jovem
aqui nascida, que não se quer falando assim. Para essa geração, o falar cuiabano
soa “feio”, “errado” e “ridículo” perto da “língua... sulista”, mais “interessante”, mais
“bonita”. Tal avaliação, injustificável do ponto de vista exclusivamente lingüístico,
justifica-se do ponto de vista do status sócio-econômico dos novos mato-grossenses.
Numa pesquisa feita no final da década de 1970 e começo da década de 1980,
Palma (2005: 140) ouviu da boca de imigrantes:
nós, de fora, devemos ajudar os cuiabanos a mudar todo esse jeito de
falar, porque, por exemplo, eles usam ELE quando se referem a
mulher...
deveria haver uma campanha para mudar essa fala... a gente que vem
de fora leva susto...
esse petche do cuiabano é horrível...
Aos ouvidos do colonizador, o falar cuiabano soa “horrível”, “errado”, a ponto
de despertar-lhe a compaixão e o desejo de realizar uma cruzada, “uma campanha”,
para mudar “esse jeito de falar” que chega a assustá-lo. Diante de julgamentos que
tais, muitos daqueles que tinham o falar cuiabano como língua materna, foram
cultivando uma atitude de baixa estima em relação a ele, um propósito deliberado de
silenciá-lo na esfera pública, como se lê nesse depoimento, citado também por
63
Palma (2005: 140): “cá entre nós, quando saio de casa, fico fazendo força pra não
falar esse tche e dje... senão é aquela gozação”.
A avaliação do falar cuiabano é mais ou menos negativa consoante o status
do traço lingüístico que se põe em relevo. Traços estigmatizados, como o rotacismo,
por exemplo, são lidos como problemas de fala, ou como marcador de classe social
baixa, pouco escolarizada, origem rural, estilo não monitorado. Tais traços não
podem circular no espaço enunciativo da sala de aula (E2, E3 e E6): “eles têm essa
noção das variações lingüísticas. Mas aqui dentro da escola, eles sabem que é
exigido deles a linguagem formal”. Os enunciadores, então, fazem emergir o
discurso sobre “o papel que a escola exerce no nosso meio social, o de inibir
padrões de comportamento lingüísticos que não se ajustem ao modelo prescrito pela
norma culta” (Palma, 2005: 144). Essa recusa da alteridade lingüística na esfera de
atividade discursiva escolar materializa-se deiticamente através dos pares “lá
fora”/”aqui dentro”: “lá fora pode usar as variantes que ele quiseram, mas dentro da
escola ...” (E6); “mas em sala de aula seria considerado erro” (E3); “Você vai falar
“craro” aqui dentro da escola ?” (E3). Fora da escola, eles podem usar traços
estigmatizados, quando forem, por exemplo, conversar com um pescador ribeirinho,
numa espécie de condescendência com os falantes das classes baixas (E3). Nessas
situações podem transgredir as normas gramaticais, podem lançar mão de
estratégias de “hipocorreção”. Dentro da escola, os traços estigmatizados só podem
aparecer na caracterização de personagens de narrativas, quando a personagem
representa um tipo social oriundo das classes baixas e pouco escolarizadas como
“um sem-terra”, por exemplo. Apenas se estiver vestindo a persona de “um sem-
terra”, o aluno poderá usar traços estigmatizados. Quer dizer, a alteridade lingüística,
avaliada negativamente, pode figurar no texto escolar sob a forma de
heterogeneidade mostrada, como fala do Outro (E6). Quando o aluno fala/escreve
em seu próprio nome, no espaço escolar, deve silenciar os traços estigmatizados
que, porventura, haja em sua língua materna. Tais traços são admissíveis na escola
pública, mas, na escola particular, não.
Não apenas os alunos devem silenciar os traços estigmatizados de sua língua
materna, quando enunciam em seu próprio nome no espaço da sala de aula, mas
também os professores de outras disciplinas “têm obrigação de dominar o nosso
idioma adequadamente”, assim como “têm obrigação de estar corrigindo numa prova
ou mesmo oralmente um aluno ou a si próprio”, mesmo que seja um professor de
64
matemática. RT é ainda mais radical na defesa do “nosso idioma”. Sua fala é
marcada por um ethos de indignação diante dos “erros bárbaros”, inadmissivelmente
cometidos pelos políticos quando falam às massas. Aqueles que chegaram ao topo
da pirâmide social, que ocupam altos cargos políticos, uma vez personas públicas,
não podem servir de mau exemplo para os usuários da língua portuguesa,
principalmente por meio de veículos de largo espectro como a televisão.
Contudo, se se tratar de traços dialetais de prestígio, como a palatalização da
consoante fricativa em final de sílaba, que está presente também no falar carioca,
considerado chique, a avaliação muda radicalmente, a exemplo de E4. O enunciador
de E4, simulando-se um falante cuiabano, por meio da locução interjetiva – Ah! Tcha
por Deus! -, incorporada ao fio do intradiscurso na forma de heterogeneidade
mostrada, rememora o discurso da cuiabanidade, da preservação das origens, das
raízes, da identidade regional. O discurso da cuiabanidade foi engendrado, nas
últimas duas décadas, pela elite genuinamente mato-grossense, como uma espécie
de defesa de seu território cultural, ameaçado pela entrada das culturas dos
imigrantes, exibidas portentosamente, a exemplo das tradições gauchescas.
Assim, diante de traços dialetais estigmatizados, os enunciadores se mostram
completamente assujeitados aos sentidos com que o discurso da Tradição
Gramatical envolve o fenômeno da heterogeneidade lingüística. Contudo, diante de
traços dialetais de prestígio, eles se mostram permeáveis ao discurso da
preservação da identidade lingüística regional. Uma certa esquizofrenia parece, pois,
presidir a interpretação da cuiabanidade lingüística, ora ela precisa ser silenciada,
ora ela deve ser preservada.
3.1.3 “A gente não chama nem mais de erro...”
Quase todas as vezes que os termos “certo” e “errado” figuram nos
enunciados, eles reverberam efeitos de sentido negativos. Os enunciadores
conscientemente assinalam sua desfiliação do discurso da Tradição Gramatical no
que diz respeito ao uso da categoria de avaliação certo/errado: “a gente não chama
(variedades lingüísticas) nem mais de erro, eu digo assim: - A gente convive com
alguns fenômenos lingüísticos” (E3-RT); “Certo e errado com essas palavras não...
Até porque o aluno ele vem com ranço de certo e errado” (E5-AD). Nesses
enunciados ressoam interdiscursivamente o discurso da Tradição Gramatical e o
65
Discurso da Lingüística. Quando RT diz, em nível de posto, “a gente não chama nem
mais de erro”, diz em nível de pressuposto “a gente chamava de erro”. Efetivamente,
RT, ao dizer que não chama mais as “variedades lingüísticas” de “erro”, mas de
“fenômenos lingüísticos”, não parece fazê-lo por adesão ao discurso da Lingüística,
mas apenas como estratégia de evitação e eufemização de um termo com uma
carga semântica altamente negativa no espaço enunciativo do ensino da língua
contemporaneamente. Também AD parece evitar o uso das palavras certo/errado
mais como estratégia de eufemização do que por sentir-se convencida de que em
matéria de língua não existe nada certo e nada errado, tudo é relativo. Ao dizer:
“Certo e errado com essas palavras, não”, AD deixa transparecer que tais palavras,
das quais se afasta por meio do demonstrativo “essas”, tornaram-se incômodas,
pesadas, difíceis de serem pronunciadas.
A aura negativa que passa a envolver os conceitos de certo/errado, nos
embates entre o discurso da Tradição Gramatical e o discurso da Lingüística, faz AD
e RT optarem pela categoria adequado/não adequado para avaliar o uso lingüístico
de seus alunos. O conceito de “adequação” que gerou a categoria avaliativa
adequado/inadequado foi proposto pelo sociolingüista americano Dell Hymes na
década de 1960. Dell Hymes (1972) cunhou esse termo simultaneamente à
proposição do conceito de competência comunicativa, complementar ao conceito de
competência lingüística proposto por Chomsky.
Enquanto o conceito de competência lingüística responde apenas pela boa
formação gramatical das sentenças, gerando a categoria avaliativa
gramatical/agramatical (que não equivale à categoria certo/errado), o conceito de
competência comunicativa, além das regras sintáticas de formação de sentenças,
inclui as normas sociolingüísticas que regulam o uso da língua. Como afirma Bortoni-
Ricardo (2004: 73), “o falante não só aplica as regras para obter sentenças bem
formadas, mas também faz uso de normas de adequação definidas em sua cultura.
São essas normas que lhe dizem quando e como monitorar o seu estilo". Quer dizer,
o conceito de competência comunicativa põe as muitas normas lingüísticas de uma
língua em co-relação com a situação, com o interlocutor e com o assunto. A
“adequação” resulta, pois, da sintonia entre normas lingüísticas e normas sócio-
culturais, ao passo que a “inadequação” resulta da falta de sintonia entre esses dois
termos. Essa lição da sociolingüística é uma das primeiras incorporadas pelo discurso
da Nova Crítica e também é a primeira que cala fundo no conjunto de crenças e
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concepções de professores de língua materna, educados no/pelo discurso da
Tradição Gramatical e, portanto, submetidos, na sua forma de pensar e significar, ao
imperativo da categoria certo/errado. Deixar de falar em certo/errado e passar a falar
em adequado/inadequado é o primeiro sintoma da interação entre o antigo e o novo
paradigma de ensino de língua materna. Entretanto, essa mudança de nome pode
ser apenas uma mudança de rótulo e não uma mudança no modo de significar os
usos da língua que não se encaixam no esquadro da norma padrão. Nos enunciados
E3-RT e E5-AD, vezes há em que a categoria adequado/inadequado é interpretada
no encalço do conceito sociolingüístico de competência comunicativa, como em: “mas
eu tento passar essa noção pra eles, que o errado é você não saber adequar a sua
linguagem ao momento certo, ao lugar certo” (RT); “não existe na língua nada certo,
nada errado, todas as variedades lingüísticas que você falar está correto, só que tem
termos, tem situações que não cabe essa palavra. Então, você tem que observar: em
que situações, em que contextos você vai usar essa palavra? Ela é condizente com o
tipo de texto que você está fazendo? Não é condizente?” (AD). Contudo, vezes há
em que seus sentidos deslizam para aquele de certo/errado, sendo apenas uma
forma de abrandá-lo: “Eu não reprimo ninguém. Eu levo sempre na esportiva, falo
que não está falando errado, que ele está usando um termo inadequado, que o termo
adequado é esse, de uma forma, assim, mais tranqüila nada pro aluno ficar, assim,
constrangido na hora de falar” (AD). Em E3, RT restringe a aplicação da categoria
adequado/inadequado à oralidade e aos usos lingüísticos exteriores à escola, à vida
acadêmica: “Mas em sala de aula seria considerado erro. Por que? Porque enquanto
eles tiverem a vida acadêmica deles vai ser cobrada a produção de texto, vai ser
cobrada em prova, é a linguagem formal” (RT). Enfim, na escola e na escrita, nada de
adequado/inadequado, perspectiva de significado que é coroada pela sentença “É a
nossa gramática normativa”, em que o pronome “nossa” produz um efeito de sentido
de desconfiança em relação ao discurso da lingüística e de adesão plena ao discurso
da gramática. Enfim, quando não está refletindo explicitamente sobre a categoria de
avaliação certo/errado, como em E8, RT sofre cegamente o processo de interpelação
pelo discurso da Tradição Gramatical e nomeia, sem preocupação de adoçar as
palavras, os “erros bárbaros” que estão distorcendo “a nossa língua”, “o nosso
idioma”, não só na cidade de Cuiabá, mas em todo o Brasil, e fazendo um grande
estrago já que a mídia televisa encarrega-se de propagar e ensinar o mau uso da
língua.
67
3.2 Interpretações por professores da Escola CJ
Das respostas produzidas para as cinco perguntas pelos professores da
Escola CJ recortaram-se os seguintes enunciados, cuja leitura deve preceder a
aproximação interpretativa:
E9 (a presença das variedades lingüísticas na sala de aula)
Olha, eu sou contra a correção, você corrigir as pessoas, principalmente em
público. Isso desde que eu dava aula pra criança. Não gosto, se alguém faz
isso perto, principalmente quando faz em tom irônico, eu sabe, como eles
falam: corto mesmo. Não gosto disso porque acho que isso faz com que a
pessoa se é tímida ela se intimide mais e passe a não falar, o que é pior... A
questão da variedade é trabalhada com eles, eles sabem: adequado, não
adequado. Agora, a variedade justamente vem, pra que eles tenham a noção
que junto com a variedade, sempre que eu trabalho variedade eu trabalho
ortografia, pra levá-los a percepção de que tem que ter um sistema que rege
uma língua pra não virar uma anarquia total. Agora, isso eu só consigo
mostrando o campo da variedade... (AR).
E10 (reações do professor diante do rotacismo)
Uma pessoa que fala “pobrema”, como você disse, “craro”. Uma pessoa que
fala “bicicreta”. Eles tem muito preconceito em relação a isso. E aí, você vai
trabalhando: - Não é assim, na oralidade. Porque tem questões genéticas,
inclusive, que influenciam na oralidade. Mas a oralidade não quer dizer
inteligência, não quer dizer argumento. A pessoa pode ser muito inteligente e
falar pobrema. Eu falo: - Eu conheço doutores que falam “pobrema”, que fala
“craro”, que fala “bicicreta”. Por que? Porque teve um meio, enfim, todos os
motivos que levam a pessoa ter esta ou aquela oralidade. E a questão da
variedade se foca mais no problema da norma culta, só. Não é um problema
do regionalismo de nada. Eu falar “pobrema”: - Ah está errado! Tudo bem. Eu
falo: - Vocês não podem cometer isso na escrita e dependendo do seu meio
você também, não vai falar assim. Porque se você está num meio, você
arranja um emprego em que todas as pessoas falam de uma determinada
forma, você também vai buscar isso. (AR).
E11 (reações do professor diante do rotacismo)
Na verdade, as minhas turmas não apresentam tanto isso (rotacismo) porque
eu lido com uma classe social bem alta, colégio de classe alta, praticamente é
o que eu dou aula. Mas eu tive o caso de um aluno. Um aluno que era um
aluno bolsista, que era o único aluno negro. Então, já era completamente
estigmatizado e o único que falava uma variação. Uma variável regional
mesmo, o dialeto cuiabano... A princípio o conteúdo de quinta série, ele, eu
começo sempre com a língua, a história da língua portuguesa, se a língua é
68
falada igual em todos os lugares, a diferença de Portugal e aqui. Então, eu
sempre faço um histórico com eles e é bem gostoso. Aí, dentro disso eu
trabalho as variações. Então, eu peço pra cada um contar de onde que veio,
como é que o pai fala diferente, como que o avô fala diferente, então, não cria
tanto preconceito. E no caso desse ano tive alguns problemas porque era
esse menino (...), ele tinha muitos problemas de disciplina também. Isso tem
tudo a ver com fracasso escolar, uma outra situação. Então assim, ele ficou
mal visto pela sala. Então, a sala acabou pegando no pé por causa dessas
coisinhas. Então, eu tinha que o tempo inteiro ficar interferindo, mas ele
também não ajudava em muitas coisas, até porque não tinha como ele ajudar
nas limitações dele. Mas eu não vejo como erro não, de forma alguma, são
variações, não tem erro nenhum, falante não erra na própria língua. (FL).
E12 (a presença das variedades lingüísticas na sala de aula)
Olha, eu procuro mostrar primeiro aquilo que eu vejo, que eu percebo, para
todos os alunos e a partir dessa (linguagem) que eles trazem, da bagagem
cultural que eles trazem, aí eu já coloco a parte da lingüística como é exigida,
pelo menos na sociedade mais aprimorada. Aí eles fazem a escolha deles,
mas pra mim eles procuram fazer dentro da, da, da norma culta. Agora, para
a vida eles já sabem o que que eles podem usar, se quiserem usar...
Inclusive, eu deixo bem claro pra eles que quando eu me encontro num grupo
de amigos, ou na chácara, ou... É totalmente diferente. Então, eu uso também
a linguagem informal, que as vezes até os meus sobrinhos falam: - Nossa!
Nem parece que a tia é professora de português! Por que? Porque eles já
acham que a gente tem que falar tudo certinho, tudo perfeitinho sempre. (MZ).
E13 (reações do professor diante do rotacismo)
Eu digo assim que, na linguagem oral, nenhum problema, agora, na escrita
ele tem que saber a grafia correta, porque não é todo mundo... Então, eles
sabem. Eu falo: - No sul eles usam muito o tu.. Eles gostam de comparar com
a nossa região aqui. E como é que eles falam? Eles usam a forma verbal
correta? Então, cada região tem a sua característica, tem o seu, a sua
maneira de falar e a gente tem que aceitar. Agora, nós não podemos exigir a
grafia correta, por exemplo, até a própria pessoa pode não saber, das
pessoas que tem uma certa idade e não tiveram acesso às informações que
vocês estão tendo. Mas vocês tem a obrigação. Pode até falar, mas a
escrita... E assumir também, porque não adianta você falar e depois partir pra
briga com o outro coleguinha. (MZ).
E14 (reações do professor diante da palatalização)
Para mim é tudo igual, são variações fonéticas, são diferenças de fone, não
tem problema nenhum. (FL).
E15 (reações do professor diante da palatalização)
Eu mesmo quando entrei aqui, porque cuiabano fala [do6]. [do6], [do6]. [dojs] é
[do6]. É [do6], [tre6], [axo6], é nossa linguagem. Aí, você pega quem fala
69
[axojs], [dejs], por exemplo, e quando eu vim pra cá teve um aluno que: - Ah
professor, não é [do6] não, é [dojs]. Eu falei: - Fala [de6] pra mim. Ele falou: -
[dejs]. Eu falei: - Porque que você pode colocar um i no [dejs] e eu não posso
tirar um i do [do6]? Ai ele ficou. Eu disse: - Você fala [dejs]. Eu não falo [dejs]
eu falo [de6], agora, [dojs] eu falo [do6]. Aí eu vou e explico, mas deixando
bem claro sempre essa diferença que existe com o sistema escrito. Porque
tem que ter, eles tem que ter essa noção, senão, vira uma catástrofe.
Imagine, todo mundo escrevendo é... - Nossa! Falo: - O sistema escrito é
diferente. Tanto que eu coloco sempre essa situação. Falei: - O pobrema não
é você falar pobrema, o pobrema é você falar pobrema e escrever
pobrema.(AR).
E16 (reações do professor diante da palatalização)
Na sala de aula é motivo, as vezes, até de zombaria por parte dos alunos,
principalmente aqueles por exemplo da nossa região, quando tem assim um
número muito grande de alunos que vem de outras regiões, então, há esse
impasse, principalmente na hora da leitura oral, na hora da comunicação oral.
Então, eu coloco pra eles de uma forma assim bastante clara que essas
variações existem desde há muito tempo e que vão continuar existindo. Só
que eu mostro que nessa região de onde eles zombam também o sotaque é
diferente e, no entanto, a gente convive com isso numa boa. (MZ).
A zombaria é dos que vem de fora com relação aos daqui?
Aos daqui. Os daqui eles percebem, mas não demonstram, não tem essa
ojeriza, essa, essa... Mas os de fora sim. (MZ).
E17 (Uso dos termos certo/errado em sala de aula)
Eu sempre falo pra eles, principalmente em oralidade, adequado, inadequado.
Falo: - Você tem que perceber que situação você tá usando a sua linguagem.
Então, isso foi uma das coisas que lá no inicio você perguntou, o curso de
letras modificou essa noção, que que é certo que que é errado? Eu falo: -
Mesmo na escrita, mesmo na norma ortográfica que você tem um parâmetro a
seguir, mas se você for um escritor, por exemplo, você não escreve uma carta
pra sua prima do mesmo jeito que você escreve uma carta, por exemplo, pro
chefe da sua empresa. São situações diferenciadas... (AR).
E18 (uso dos termos certo/errado em sala de aula)
Só na circunstância de correção de prova e dentro de questões que exigem
um certo e um errado. Na situação de produção textual, de interpretação de
texto, de opinião pessoal, não. Tudo tem que ser respeitado dentro do limite
possível de significação de um texto, é claro. Mas na situação assim, por
exemplo, de indicar a flexão de um verbo, é certo ou errado, não tem variação
naquele momento, porque o ensino vem, o ensino é voltado pra norma culta.
Não ensina outra variação se não for a padrão, realmente. (FL).
E19 (uso dos termos certo/errado em sala de aula)
Só na parte de produção. Escrita. Na produção escrita. A minha preocupação
maior com este certo ou errado é na escrita. Se bem que o ano passado nós
70
estudamos um autor, e eu sou assim desligada, eu leio, mas eu sou desligada
de nomes e números, e ele colocou o certo... Há dois anos atrás eu não
aceitava utilizar muito o pronome pessoal sujeito como objeto. Então, nós
fizemos um estudo e vimos que realmente isso era possível e agora eu já
aceito nas produções deles, já não grifo, já procuro aceitar. O importante do
estudo dessas obras que são inovadoras, que vão trabalhando a linguagem
atual, é essa aí, que você vai aprendendo aceitar. Mas olha, foi duro: - Oh,
meu Deus do céu! Vou ter que tirar, colocar o verbo direitinho, colocar o
objeto de tê-la, fazer aquela coisa bonita! (Mz).
E20 (imagem lingüística de Cuiabá)
(Cuiabá) Uma mistura hem! É um caldeirão. Bom, do ponto de vista do falante
a gente tem uma diversidade enorme de falares em função dos dialetos.
Tanto o dialeto de origem, que é o cuiabano, quanto os que chegaram por
causa da imigração. Agora, do ponto de vista cultural, eu vejo um problema,
porque não há valorização do dialeto cuiabano, que é o da origem, que tem
que ser o mais valorizado. E eu vejo pouco espaço em Cuiabá pra divulgação
de pesquisas nessa área, que tinha que ter mais espaços. (FL).
E21 (imagem lingüística de Cuiabá)
Olha, bem diferente da Cuiabá antiga. Por que? Porque antigamente em
Cuiabá nós... Havia mais comunicação. Eu falo assim a nível de vizinhos, de
comunidade. Comunidade de bairro. Nos bairros a gente sentava,
conversava, havia apresentações, brincadeiras. Hoje você não tem nada. É
você entrar no seu apartamento. Olhe, apartamento praticamente não existia!
Então, hoje é você entrar no seu apartamento, ligar a sua televisão, o seu
computador, ligar na Internet, quer dizer, aquele meio social que a gente tinha
não existe mais...
E o falar cuiabano?
Olha, é divino. Eu sempre, eu procuro, eu sou cuiabana e eu procuro me
policiar, porque por incrível que pareça, os alunos acham que o cuibano, por
ser cuiabano não sabe, não poderia dar aula de língua portuguesa, porque
fala arrastado, fala né, tem sotaque cuiabano. Mas eu, fora da sala de aula,
sou cuiabana mesmo. - Tcha por Deus! E falo mesmo. Agora, na sala de aula,
no ambiente da escola, a gente já procura evitar, mas eu falo cuiabano. Aí
fala: - Eu sou cuiabana, sou cuiabana igual a todo mundo. Então, eu tenho na
minha família, eu sou filha de... Meu pai era de Santo Antônio e minha mãe da
Bahia, mas ficou um tempo no Rio, então, sotaque diferente. E nós fomos
criados praticamente no sítio, mas a minha mãe dava aula pra gente. Então, o
sotaque dela era diferente e nós acabamos não ficando com tanto sotaque
cuiabano, apesar de conviver com cuiabanos. Eu não sei porque... Acho que
minha mãe era professora também e não sei se corrigia. Não sei não, porque
as pessoas que trabalhavam em casa falavam exatamente o cuiabano da
região ribeirinha. ... Alguns falam: - A senhora não é cuiabana. Falo: - Sou. É
que vocês, ainda, não me viram.(MZ)
E22 (imagem lingüística de Cuiabá)
71
Eu acho (Cuiabá) uma cidade muito rica. Rica porque ela tem, a cidade, as
pessoas elas apresentam diferentes maneiras e formas de utilizar a
linguagem. Desde o regional, que hoje está ficando difícil de encontrar, você
encontra pessoas como eu com traços da língua nativa, mas não tem mais
uma língua nativa. É muito assim, mas ainda tem. Você vai em alguns bairros,
assim, mais tradicionais, as pessoas mais idosas, junto com o novo, junto com
o que vem de fora, porque é interessante como que os jovens de hoje, os
adolescente, eles tem uma linguagem toda moderna, mas tem traços do
tradicional, assim como o “vote”. Quem vem de fora pega isso fala, quem é
daqui, jovem, idoso. Então, é uma junção e é uma riqueza. Falo: - Aqui você
vê traços lingüísticos do país inteiro, do país inteiro praticamente. A
linguagem... E hoje já se melhorou muito a questão do preconceito, de se
achar: - Ah, porque falar assim é feio, porque falar assim é errado. Ainda tem,
mas diminuiu um pouco. Então, é de uma riqueza, assim, pra estudos, pra
você observar que eu acho, assim, impressionante. Em poucos lugares se vê
tanta mescla de fatos lingüísticos como se vê aqui. Geralmente nos outros
estados tem também, mas é uma coisa mais homogeneizada, mais igual aqui
não, aqui, no mesmo bairro, você encontra gente gaúcha, mineira, paulista,
nortista, enfim, de tudo, que não perde a raiz, mas que se junta hoje, aqui. A
palavra “vote”, hoje, é a palavra de todos os sotaques.(AR).
Dentre os sentidos que se insinuam na materialidade lingüística dos
enunciados elencados acima, evidencio aqueles que envolvem a concepção de
língua e variação, os traços estigmatizados e não-estigmatizados do falar cuiabano,
as fricções lingüísticas no cenário regional, o uso dos conceitos de certo/errado e de
adequado/inadequado em sala de aula.
3.2.1 “Falante não erra na própria língua...”
Como professores da Escola CJ significam a língua e o fenômeno da
variação? Embora seus enunciados revelem também um processo de interpelação
contraditório, parece-me que o processo de imersão na bacia semântica do discurso
da Nova Crítica encontra-se mais adiantado. Nenhum deles se refere à variação
pelos termos “dificuldade” ou “problema”, nem mesmo o professor que relaciona o
uso do rotacismo a “questões genéticas”. Contudo, poucas vezes conseguem pensar
que a variação não é um fenômeno exclusivo da oralidade. Todos eles vêem a
língua oral como variável e todos eles dizem trabalhar explicitamente as variedades
lingüísticas dos/com os alunos: “a questão da variedade é trabalhada com eles, eles
sabem: adequado, não adequado” (AR-E9); “eu começo sempre com (...) a história
72
da língua, se a língua é falada igual em todos os lugares (...), aí dentro disso eu
trabalho as variações” (FL-E11).
Além de buscarem significar, diante dos alunos, a variação lingüística como
algo “normal” e não como “erro” – “eu não vejo como erro não, de forma alguma, são
variações, não tem erro nenhum, falante não erra na própria língua” (FL-E11) –, os
professores se dizem praticantes de uma pedagogia culturalmente sensível. Quer
dizer, buscam levar em conta as variedades lingüísticas que os alunos aprendem
ouvindo a mãe, o pai, o avô, aqueles com quem convivem no dia a dia, buscam
igualmente cultivar no grupo uma atitude de respeito em relação ao modo de falar do
outro, combatendo, assim, o preconceito lingüístico tão insidioso nos bandos de
adolescentes: “Então, eu peço pra cada um contar de onde veio, como que o pai fala
diferente, como que o avô fala diferente, então, não cria tanto preconceito” (FL-E11);
“eu procuro mostrar primeiro aquilo que eu vejo, que eu percebo, para todos os
alunos, e a partir dessa (linguagem) que eles trazem, da bagagem cultural que eles
trazem...” (MZ-E12).
Um conflito subjetivo parece permear os enunciados de MZ (E12) que só
consegue assumir o viés relativista em relação às variedades, quando se trata de
considerá-las como usos em contextos menos monitorados, mais descontraídos,
como “grupo de amigos”, “reunião familiar na chácara”. Quer dizer, ela admite as
variedades, desde que não seja na escola e para interagir com ela: “(...) para a vida
deles, já sabem o que eles podem usar, se quiserem usar (...) Aí eles fazem a
escolha deles, mas pra mim eles procuram fazer dentro da, da, da norma culta”. No
enunciado E12, MZ também traz à tona a força reativa da opinião pública leiga que
permanece colada aos sentidos do discurso da Tradição Gramatical, defendendo
uma visão de língua invariável e imutável e de professor de português como alguém
que deve “falar tudo certinho, tudo perfeitinho sempre”, não deve tirar o fraque da
língua nem enquanto descansa: “Inclusive, eu deixo bem claro pra eles que quando
eu me encontro num grupo de amigos, ou na chácara, é totalmente diferente. Então,
eu uso também a linguagem informal, que, às vezes, até os meus sobrinhos falam: -
Nossa! Nem parece que a tia é professora de português! Por que? Porque eles já
acham que a gente tem que falar tudo certinho, tudo perfeitinho sempre”. (MZ). O
purismo da opinião pública leiga, estimulado e reforçado pelos comandos
paragramaticais que encontraram nos mass media uma forte ressonância, é uma
73
das forças reativas que retardam a expansão do discurso da Nova Crítica e nos
fazem temer e nos precaver diante do risco de sermos lingüisticamente impuros.
Uma forte polarização entre a oralidade e a escrita, como foi dito no início
desta seção, timbra a compreensão do fenômeno da variação lingüística. A variação
da oralidade se opõe à invariância da escrita. Assim, a oralidade, pela sua
heterogeneidade, é significada como assistemática, como caótica, como algo que
pode derivar para “anarquia”, para a “catástrofe”, se não for contida pelo freio da
escrita, da ortografia, que é uniforme, sistemática: “sempre que eu trabalho
variedade, eu trabalho ortografia, pra levá-los à percepção de que tem que ter um
sistema que rege uma língua pra não virar uma anarquia total (...) eles têm que ter
essa noção, senão vira uma catástrofe. Imagine, todo mundo escrevendo é... Nossa!
Falo: - O sistema escrito é diferente...” (AR-E9/E15); “Eu digo assim que, na
linguagem oral, nenhum problema, agora, na escrita ele tem que saber a grafia
correta (...) Pode até falar, mas a escrita...” (MZ-E13). Numa redução da escrita à
ortografia, MZ pensa que a variação na escrita, quer dizer, na “grafia”, só é tolerável
entre as pessoas com mais idade e que não tiveram acesso às informações: delas
não se pode “exigir a grafia correta”. Porém, dos alunos, que têm acesso às
informações, deve-se exigir a grafia correta. Eles “têm a obrigação” de saber. Essa
polarização entre a oralidade e a escrita, exprime-se com todas os fonemas em: “O
pobrema não é você falar pobrema, o pobrema é você falar pobrema e escrever
pobrema” (AR-E15).
A escrita também pode significar outra coisa que a mera ortografia, pode ser
sinônimo de “norma padrão”, que, por sua vez, no espírito purista, é sinônimo de “a
língua”. Os professores do CJ dão pistas da incorporação do modo sociolingüístico
de significar a variação lingüística, principalmente pela adoção do léxico
especializado. Falam em “variação”, “dialeto”, “preconceito”, “variável”,
“estigmatizado”, “adequado/não-adequado”, “preconceito”, “história da língua”.
Contudo, assombrados por fantasmas da Tradição Gramatical, ainda se enxergam
“aprimorando” a linguagem dos alunos.
3.2.2 “As minhas turmas não apresentam tanto isso...”
74
Como os professores significam fenômenos estigmatizados, como o
rotacismo, e não estigmatizados, como a palatalização da fricativa em posição de
travamento de sílaba?
Veja-se o enunciado E11. À primeira vista, sou tentada a pensar que FL
significa o rotacismo apenas como um traço de variação social, associado,
primordialmente, a falantes das classes baixas. Aliás, esse é o sentido dominante
que circunda o fenômeno em comunidades sociais cujo imaginário sobre a língua
seja discursivizado pela Tradição Gramatical. O rotacismo, no universo semântico
purista desse discurso, recende a pobreza, caipirismo, analfabetismo, ignorância.
Esses sentidos parecem atravessar o enunciado de FL, ao dizer que suas “turmas
não apresentam tanto isso (rotacismo)”, porque são turmas de “classe social bem
alta”, já que é um “colégio de classe alta”. Essa linha interpretativa é coroada com a
apresentação do caso de um aluno – o único da turma que faz rotacismo – que
destoa do padrão dos demais, por ser bolsista na escola (ou seja, por ser pobre), por
ser o único negro e por falar uma variedade regional, o falar cuiabano. Quer dizer, o
caso lembrado por FL é o protótipo do falante estigmatizado associado ao rotacismo,
pela sua condição de classe sócio-econômica, pela sua origem étnica (não sem
razão o rotacismo é considerado um traço de “pretoguês” por aqueles que defendem
a hipótese crioula de formação do português brasileiro), mas também por ser um
falante nativo do dialeto cuiabano. Destarte, FL associa também, ao que tudo indica,
o rotacismo com o falar regional e não só com variação social. Quer dizer, ela
consegue, talvez sem muita clareza, enxergar no rotacismo a sobreposição das
propriedades de ser um marcador de classe social e ser um indicador regional
10
.
Em tal enunciado alguns sentidos/questões emergem. Dentre os filhos da
classe alta que constituem a clientela da escola não há cuiabanos? Nesse caso,
haveria uma certa sinonímia entre “lido com uma classe social bem alta” (FL-E11) e
10
Emprego os conceitos de marcador e indicador social de acordo com a definição dada por Possenti
(2002: 321 e 322 ): “Entende-se por marcadores as formas
lingüísticas que... distingem falantes de
classes diversas de uma mesma região e indicam, por exemplo, formalidade maior ou menor.
Certamente são exemplos de marcadores algumas marcas de flexão verbal (“nós vai” vs. “nós
vamos”) e de concordância nominal (“dois erros/ dois erro”). Entende-se por indicadores os traços de
linguagem (dialetal) que distinguem um grupo de outro – digamos, de uma região de outra - , mas não
distinguem um subgrupo de outro da mesma região. São exemplos de indicadores o /s/ chiado dos
cariocas e o conhecido /r/ retroflexo (“R caipira”) usado em ampla região de São Paulo e outros
estados. São indicadores porque não distinguem , por exemplo, os falantes de classe média, ou
mesma alta, dos falantes da classe baixa”.
75
“os cuiabanos não existem mais aqui”(AD-E1). Ou então, dentre os filhos da classe
alta que estudam na Escola CJ, há cuiabanos, mas eles silenciam sua língua
materna. Quer dizer, o falar cuiabano é coisa da população nativa pobre,
estigmatizada, fadada ao fracasso escolar, à discriminação social. Apesar de todos
esses efeitos de sentido, que deslizam para a formação discursiva da Gramática
Tradicional, FL, após narrar o caso gerador de conflitos que teve que administrar no
cotidiano das aulas, é contundente na significação do rotacismo pela via da
sociolingüística como variação e não como erro: “Mas eu não vejo como erro não, de
forma alguma, são variações.” (E11).
Também nessa última perspectiva de interpretação, AR (E10) polemiza a
interpretação normativa que, segundo Brito (2005: ), “tem efeito perverso em nível
de representação do que seja língua, escamoteando o fenômeno da variação e
inculcando na sociedade uma idéia de que existe um padrão lingüístico superior e
que a maioria, principalmente os pobres, fala mal e pensa pior”. AR, após falar que
os alunos têm muito preconceito com quem fala “craro”, “bicicreta” e “probrema”,
rememora, na forma de auto-citação, o diálogo que costuma ter com a turma para
ressignificar o rotacismo com um traço que não é metonímia de falta de inteligência
ou de argumento: “Eu falo: – eu conheço doutores que falam ‘probrema’, que fala
‘craro’, que fala ‘bicicreta’”.
Contudo, esse contradiscurso é rapidamente silenciado pela polaridade entre
a oralidade e a escrita. A fala é projetada como área livre para variação, como
espaço em que o rotacismo pode ser não só tolerado, mas compreendido como um
traço dialetal que não merece ter o estigma que têm, ao passo que a escrita é
subsumida como o lugar que privilegia a regra, a norma padrão: “Eu falar pobrema: -
Ah está errado! Tudo bem. Eu falo: - Vocês não podem cometer isso na escrita e
dependendo do seu meio você também, não vai falar assim...(E10). O verbo
“cometer” está relacionado ao discurso legalista, cometer pressupõe delito, infração.
“Na linguagem oral nenhum problema, agora, na escrita tem que saber a grafia
correta,...” (E12). “O pobrema não é você falar pobrema. O pobrema é você falar
pobrema e escrever pobrema” (E15). A relação entre escrita e lei é evidente nessa
citação irônica, que brinca com o termo estigmatizado “probrema”. Errar a escrita de
uma palavra é infringir uma lei. Daí MZ dizer tão categoricamente que o aluno “tem
que” ou “tem a obrigação de” saber a grafia correta: ”Eu digo assim que, na
76
linguagem oral, nenhum problema, agora, na escrita ele tem que saber a grafia
correta (...) vocês têm obrigação. Pode até falar, mas a escrita...” (MZ-E13)
Nos enunciados que respondem a perguntas sobre os traços não
estigmatizados, os sentidos construídos advém do domínio da
sociolingüística/lingüística. Ao serem interpelados sobre a palatalização, os
professores enunciam: “Para mim é tudo igual, são variações fonéticas, são
diferenças de fone, não tem problema nenhum” (E14-FL); “Porque você pode colocar
um i no “dez” e eu não posso tirar um i do “dois” ? ... Eu disse: - Você fala [dejs] eu
falo [de6]. Agora, “dois” eu falo [do6]. Aí eu vou e explico, mas deixando bem claro
sempre essa diferença que existe com o sistema escrito...” (E15-AR); “Eu coloco pra
eles assim de uma forma bastante clara, que essas variações existem desde há
muito tempo e que vão continuar existindo...” (E16-MZ). Nos relatos que os
professores fazem dos episódios em que ocorrem discussões sobre o uso de
variantes não estigmatizadas, aparece uma atitude vigorosa de defesa da variação
lingüística, atitude menos comum e menos contundente quando se trata de explicar
a “normalidade” do rotacismo, por exemplo. O rotacismo é significado como uma
variante que pode estar presente na fala das classes baixas e com pouca
escolarização, devendo ser evitado na escola. Ao contrário, as variantes não
estigmatizadas são tratadas com atitude não só de tolerância, como também, de
enaltecimento nas discussões relatadas pelos professores. Arremato com Brito
(2005: 06): “Como nas sociedades complexas há sempre mais de uma variedade
com que os sujeitos interagem, a chamada norma culta, por ser a variedade
lingüística de segmentos mais favorecidos, tem maior prestígio e menos formas
estigmatizadas, sendo, por isso, considerada mais correta”.
3.2.3 “Eu sou cuiabana e eu procuro me policiar...”
Nesta seção, procuro abeirar o modo como as fricções lingüísticas que têm
lugar no mercado simbólico regional são significadas nos enunciados aqui reunidos.
A uma pergunta explícita sobre o cenário lingüístico de Cuiabá, os professores falam
em “mescla”, “mistura”, “junção”, “riqueza”. Falam também que nesse cenário há
“uma diversidade enorme de falares (...) por causa da imigração” (FL-E20); que por
77
aqui há “traços lingüísticos do país inteiro (...) praticamente” (AR-E22); que, num
mesmo bairro, “você encontra gente gaúcha, mineira, paulista, nortista, enfim, de
tudo, que não perde a raiz, mas que se junta hoje aqui” (AR-E22). Tais enunciados
parecem significar a convivência das variedades como uma convivência pacífica,
simétrica, democrática, como um jogo de forças equilibradas. Essa imagem de um
mercado lingüístico equilibrado é coroada pelo enunciado de AR sobre o termo
“Vote” – uma interjeição reconhecida como marca registrada do falar cuiabano. Quer
dizer, se um signo cuiabano como “a palavra ‘Vôte’, hoje, é palavra de todos os
sotaques” (E22), a imagem que emerge desse cenário é a do diálogo e não a do
duelo, é a da junção e da mescla e não a da separação e da colisão.
Contudo, em outros momentos da enunciação, percebe-se o jogo desigual e
contraditório de forças entre as variedades lingüísticas. A variedade nativa – o falar
cuiabano – aparece como “desvalorizado”, “motivo de preconceito”, “motivo de
zombaria”, “motivo de estranhamento” entre as demais variedades que circulam no
mercado lingüístico regional. Em E21, MZ revela-se um sujeito que vive o dilema de
identificar-se com o falar cuiabano que avalia como “divino” e desidentificar-se: “Eu
sou cuiabana e eu procuro me policiar, porque, por incrível que pareça, os alunos
acham que o cuiabano, por ser cuiabano não sabe, não poderia dar aula de língua
portuguesa, porque fala arrastado, (...) tem sotaque cuiabano. Mas eu, fora da sala
de aula, sou cuiabana mesmo. - Tcha por Deus! E falo mesmo. Agora, na sala de
aula, no ambiente da escola, a gente já procura evitar, mas eu falo cuiabano...”
(E21). Assim, MZ só pode ser “cuiabana mesmo”, fora da escola, na escola procura
se policiar, fazer silenciar sua identidade lingüística. MZ assume o lugar de falante
nativo, a partir do olhar do que vem de fora, do aluno da escola particular, fazendo
uma interdição ao seu próprio falar nos espaços sociais em que predominam
falantes não cuiabanos. Para dizer de outro modo, MZ, em E21, cinde-se sob o olhar
do outro que, tal uma polícia introjetada, tal um superego, exerce sua vigilância
ubíqua.
Já em E15, AR, também um professor cuiabano, rememora um episódio que
o envolveu quando entrou na Escola CJ. É um episódio em que se presentificam
fricções lingüísticas entre o falar cuiabano e uma outra variedade de português em
interação nos encontros cotidianos entre professores e alunos em escolas de
Cuiabá. Um aluno corrigiu a pronúncia de AR, ao falar a palavra <dois>. O aluno
repetiu o modo como o professor pronunciou a palavra, dizendo-lhe: “Ah, professor,
78
não é [do6] não, é [dojs]”. Diante dessa posição do aluno, AR reage diferentemente
de MZ. Ele leva o aluno a estranhar sua própria fala, solicitando que ele pronuncie a
palavra <dez> [de6]. Cumprindo sua expectativa, o aluno pronuncia [dejs]. Então o
professor o desafia de modo contundente: “Por que você pode colocar um “i” no
<dez> e eu não posso tirar um “i” do <dois>?” Quer dizer, AR não aceita a avaliação
negativa de seu modo de falar e aproveita a oportunidade para tentar mudar as
crenças da turma sobre a alteridade lingüística. O episódio é, pois, uma ocasião para
um trabalho de educação lingüística.
Quando se refere ao sotaque cuiabano como motivo de zombaria, MZ é
explícita ao enunciar que a zombaria é dos de fora em relação aos daqui; os daqui
percebem as diferenças, mas não têm ojeriza por elas. Apesar de MZ mostrar-se
mais subjugada à opinião dos de fora, vezes há em que reage à altura da
provocação: “Eu falo: No sul eles usam muito o ‘tu’. Eles gostam de comparar com a
nossa região aqui. E como é que eles falam? Eles usam a forma verbal correta?
Então, cada região tem a sua característica, tem a sua maneira de falar e a gente
tem que aceitar” (MZ-E13). A desigualdade sócio-econômica entre os novos mato-
grossenses, principalmente os originários do sul e sudeste, por assim dizer, o
ocidente do Brasil, e os antigos mato-grossenses genuínos da terra resulta em
desigualdade de status entre as variedades lingüísticas aqui ouvidas. Não se pode
dizer que as muitas vozes aqui ouvidas formam um afinado coral, pois elas
desafinam. Afinal, como diz Gnerre (1998: 6-7), “uma variedade lingüística “vale” o
que “vale” na sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da
autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais”.
3.2.4 “Eu sempre falo pra eles (...) adequado, inadequado...”
Diante da pergunta sobre um possível uso da categoria de avaliação
“certo/errado”, os professores do CJ, excetuando-se por MZ, parecem estar já mais
embebidos pelos sentidos que circulam no discurso da Nova Crítica. A categoria
“adequado/inadequado”, decorrente do conceito de competência comunicativa,
engendrado no universo da sociolingüística, conforme exposição feita na seção
3.1.3, soa-lhes mais familiar: “Eu sempre falo pra eles, principalmente em oralidade,
79
adequado, inadequado” (AR-E17). Ar atribui essa mudança de concepção à sua
formação em Letras. Antes de fazer curso de Letras, seu parâmetro de avaliação da
língua era “certo/errado”. O curso de Letras o modificou, fazendo-o assumir o viés
relativista da sociolingüística que avalia a consonância entre a forma lingüística e a
situação de uso da linguagem. Nem mesmo a invariância da ortografia que costuma
toldar a visão da natureza proteiforme da língua, impede AR de enxergar que
“mesmo” na escrita há variações de registro e estilo: “Eu falo: mesmo na escrita,
mesmo na norma ortográfica que você tem um parâmetro a seguir, mas se você for
um escritor, por exemplo, você não escreve uma carta pra sua prima do mesmo jeito
que você escreve uma carta, por exemplo, pro chefe da sua empresa. São situações
diferenciadas...” (E17).
Também FL (E18) admite variação no texto escrito, desde que seja respeitado “o
limite possível de significação de um texto, é claro”. Para ela, a categoria
“certo/errado” se aplica apenas a questões de prova que só apresentem essas
alternativas, ou seja, que exijam marcar excludentemente o certo ou errado.
Arrematando sua exposição, FL cita o caso da flexão verbal para exemplificar uma
situação em que ainda se usa a categoria de “certo/errado”: “Mas na situação assim,
por exemplo, de indicar a flexão de um verbo, é certo ou errado, não tem variação
naquele momento, porque o ensino (...) é voltado pra norma culta”. A seu ver isso é
assim porque não se ensina a gramática de outra variedade que não a padrão. Quer
dizer, quando trabalha com produção de textos, FL pode se ancorar numa
concepção de língua como um complexo de variedades lingüísticas. Contudo,
quando trabalha com aspectos gramaticais sente-se subjugada, sem espaço para se
mexer, à concepção de língua como sinônimo de escrita padrão. Apenas essa
modalidade de uso da língua é contemplada/analisada pelas gramáticas tradicionais
que são a fonte onde bebem os fazedores de livros didáticos e apostilas (o material
didático mais encontrável no dia a dia das escolas particulares). É como se as
demais variedades lingüísticas fossem caóticas (aliás os termos “anarquia” e
“catástrofe”, explorados anteriormente, são um eco desse modo de pensar a língua
oral), não se organizassem também por uma gramática. Embora muitas variedades
orais tenham sido descritas pela lingüística, elas são completamente ignoradas por
aqueles que preparam material didático para o ensino de língua materna.
MZ (E19), dos três, é a que se mostra mais abalada pela mudança nos modos de
significar a língua. Em seus enunciados aflora uma subjetividade agônica, dividida
80
entre duas posições: uma subserviente ao discurso da Tradição Gramatical e outra
desestabilizada pelo discurso da Nova Crítica. A primeira posição subsume ainda
que a escrita é invariável e imutável, justificando, pois, o não abandono dos critérios
de “certo/errado” na avaliação da produção escrita: “a minha preocupação maior
com este certo ou errado é na escrita”. A segunda, resultante do contato e da
aproximação com o modo de significar a língua em circulação no discurso da Nova
Crítica, começa a admitir, contraditoriamente, que nem mesmo a língua escrita é
imutável e invariável.
MZ conta um episódio, vivido por ela num dos momentos de discussão do
grupo de professores de sua escola, em que o uso de pronomes era o alvo do
debate. Refere-se a um autor, lido pelo grupo, que apresentava o uso do pronome
pessoal do caso reto (pronome sujeito) em função de objeto como um uso normal no
português, contrariando a regra gramatical que ordena o uso de pronome pessoal do
caso oblíquo em funções completivas como a de objeto. Essa narração revela um
sujeito em conflito, um sujeito incomodado pelo novo, um sujeito que resiste diante
do imperativo de aprender a ressignificar a variação e a mudança lingüística. Nesta
seqüência: “Há dois anos atrás eu não aceitava utilizar muito o pronome pessoal
sujeito como objeto. Então, nós fizemos um estudo e vimos que realmente isso era
possível e agora eu já aceito nas produções deles, já não grifo, já procuro aceitar...
Mas olha, foi duro: Oh, meu Deus do céu! Vou ter que tirar, colocar o verbo
direitinho, colocar o objeto de “tê-la”, fazer aquela coisa bonita!” (E19), os advérbios
de tempo “agora” e “já” são a arena de uma batalha de sentidos, os sentidos antigos
duelando com os novos sentidos, os sentidos sedimentados com os sentidos em
movimentos sísmicos, os sentidos familiares e evidentes com os sentidos
estrangeiros, os sentidos ditos com os sentidos não-ditos. MZ padece, sofre – “Mas
olha, foi duro!” – para aprender a aceitar que o português pode ser outro coisa que
não apenas a norma padrão, essa ainda significada como “direitinha”, “certinha”,
“perfeitinha” e “bonita” (MZ-E12/E19). Diante do dilema vivido por MZ, somos
obrigados a concordar com quem disse que não existe aprendizagem sem dor.
Aprender a ruptura dos sentidos sobre a língua, cristalizados por uma tradição de
mais de dois mil anos, dói muito.
81
NOTAS FINAIS
Sou puxado por ventos e palavras
(Manoel de Barros)
Este estudo nucleou-se pelo desejo de descobrir como professores de língua
portuguesa se posicionam em relação ao diálogo-duelo travado pelo discurso da
Nova Crítica, discurso agente, com o discurso da Tradição Gramatical, discurso
paciente, no que diz respeito aos gestos de interpretação dirigidos ao fenômeno das
fricções lingüísticas no mercado simbólico cuiabano. Filiando-me teoricamente à
Analise de Discurso Francesa, subsumi que os discursos materializam diferentes
posturas ideológicas postas em movimento pelos interlocutores nos mais diversos
eventos enunciativos. Isso significa assumir que o que os falantes dizem não brota
do nada, mas irrompe de um burburinho que constitui a memória discursiva, o
grande Outro, o interdiscurso. Significa assumir que os enunciados são sempre
dialógicos, constituindo-se, nos termos de Fiorin (2002: 43), numa “relação polêmica
com o Outro, o que quer dizer que rejeita um enunciado, atestado ou virtual, de seu
Outro no espaço discursivo”.
No caso específico desse estudo, procurei ouvir os ecos que ressoam mais
alto nos enunciados produzidos por dois grupos de professores, um que vem
discutindo sistematicamente o novo paradigma de ensino sob a orientação de um
professor universitário da área de Letras, e outro que não conta com esse tipo de
programa de formação continuada na própria escola. Tais professores fazem ressoar
em seus enunciados ecos da ideologia purista, encarnada no discurso da Tradição
Gramatical, que historicamente justificou o ordenamento aristocrático,
fundamentalista e monoteísta do mundo e a suposição da verdade absoluta e
eterna, ou ecos de uma ideologia pluralista, encarnada no discurso da Nova Crítica,
que pode justificar o ordenamento democrático e politeísta do mundo e a suposição
das verdades relativas e efêmeras ou, ainda, ecos de uma mistura de ideologias,
própria de uma subjetividade em conflito.
Para realizar uma síntese das interpretações cogitadas em cada uma das
seções do Capítulo Três, retomo uma a uma as questões que orientaram a
pesquisa.
82
Primeira Questão: Como professores de língua portuguesa que atuam no
ensino básico em Cuiabá, mais particularmente, nas escolas privadas MA e CJ,
significam o fenômeno da variação/fricção lingüística no cenário regional?
A perspectiva de significado predominante entre os professores da Escola
MA, quando enunciam acerca do tópico “variação/fricção lingüística”, tem como
matriz semântica a Tradição Gramatical que vê a língua como “um bloco acabado,
estático e homogêneo” (Lara, 2002: 98), transformando em equivalentes entidades
muito diferentes como “língua”, “escrita”, “norma padrão” e “gramática”. Quer dizer,
esse discurso reduz o todo da língua a uma parte, ou seja, à parte supostamente
não corrompida pela plebe ignara. Em sua versão mais radical, o discurso da
Tradição Gramatical ordena que o uso lingüístico desobediente ao prescrito seja
proscrito, banido da face da terra. Toda ideologia purista é intolerante com a
diferença, com o outro; além de etnocida pode se tornar genocida. A esse propósito,
Carboni (2005: 262) rememora uma narrativa bíblica, do Livro dos Juízes, em que os
efraditas eram indicados por seus inimigos, os guileaditas, para morrer, pelo modo
como pronunciavam a consoante fricativa – como sibilante [s] ou como chiante [6]:
No Antigo Testamento, o Livro dos Juízes relata um episódio da
história de duas tribos de Israel, os guileaditas e os efraditas, que
praticavam línguas muito próximas. Em ocasião de uma guerra, para
impedir que seus então inimigos, os efraditas, atravessassem o rio
Jordão, os guileaditas os obrigavam a pronunciarem a palavra "6ibolet"
('espiga').
Incapazes de expressar-se com perfeição no padrão superior da
língua de Guilead, os efraditas diziam 'sibolet', pois tinham uma
fricativa sibilante [s] no lugar da fricativa chiada [6]. Devido a essa
variante fonética, "morreram quarenta e dois mil dos de Efraim" [Bíblia
Sagrada. Lisboa: Sociedade Bíblica de Portugal, 2001: p. 262].
Essa narrativa, ainda muito atual, é uma metáfora emblemática do que se
passa com as pessoas que falam variedades de uma mesma língua numa formação
social estratificada como a nossa. Os falantes podem não ser condenados à morte
física imediata, mas são condenados à exclusão social que pode significar
condenação à morte lenta – antes de conseguirem atravessar o Rio Jordão. Alguns
gatos pingados conseguem atravessar o Rio Jordão, esses costumam se apresentar
como exemplo de que o paradigma gramatical deu/dá/dará certo, dando lugar a uma
atitude reativa que freia o curso da mudança.
Não é essa versão radical do discurso da Tradição Gramatical que se
presentifica nos enunciados dos professores do MA. Se, por um lado, numa aliança
83
cruel com o discurso terapêutico que camufla as relações de poder subjacentes ao
complexo de variedades lingüísticas, eles interpretem a variação como “problema”,
“dificuldade”, “patologia”, “distúrbio”, “mau hábito”, por outro, admitem que, na
oralidade, ela é normal. Se, por um lado, a interditam na escrita, por outro, a liberam
sob condições – caracterização, nas produções de texto, de personagens originárias
das camadas pobres e pouco escolarizadas, por exemplo. Se, por um lado, a
interditam na escola, por outro, deixam que os alunos escolham o que querem usar
fora da escola, nas situações informais.
Quando o tópico é “o falar cuiabano”, o discurso da Tradição Gramatical é
reforçado pelo discurso Iluminista do colonizador, que não cessa de repetir o gesto
etnocida de ocidentalização inaugurado pelos colonizadores do Novo Mundo, no
início do século XVI. Entre os professores do MA, traços do falar cuiabano
estigmatizados são significados pelo viés interpretativo purista e iluminista. Como
sinal de atraso cultural, devem ser silenciados pelos sons de uma língua menos
bárbara, mais desenvolvida, mais bonita. Traços não estigmatizados, por sua vez,
encorajam alguma reação contra as práticas predatórias das hordas de imigrantes
vindas do Sul, em nome da preservação da identidade cultural e lingüística
cuiabana.
Se a discursivização do tópico “variações/fricções lingüísticas” pelos
professores da Escola MA revela-se fortemente enraizada na Tradição Gramatical, a
realizada pelos professores da Escola CJ indicia um progressivo desenraizamento
dessa formação discursiva em direção àquela da Lingüística sobre a qual vem se
engendrando o discurso da Nova Crítica. Na Escola CJ soam outros “acordes”, que,
se não chegam alterar o “tom” maior impingido pelo discurso hegemônico, provocam
deslizamentos de sentidos, indicando que os sujeitos professores mostram-se mais
porosos à ressignificação da heterogeneidade Lingüística pelo viés da
Sociolingüística. Eles não se referem à variação como “problema”, “dificuldade”,
falam da variação como algo normal nas línguas. Além disso, demonstram uma certa
familiaridade com o léxico da Sociolingüística de que se apropriou o discurso da
Nova Crítica. Falam em “variação”, “variedade”, “preconceito lingüístico”, “situações
de uso da língua”, além do critério de avaliação “adequado/inadequado”.
Quando o tópico é o “falar cuiabano”, os professores da Escola CJ sentem-se
encorajados a combater de modo mais veemente a interpretação estigmatizadora e
discriminatória que o colonizador faz da língua materna dos cuiabanos, rebaixada à
84
condição de uma língua menor. Se essa perspectiva de significado é atualizada por
algum aluno no espaço enunciativo da sala de aula, a estratégia para desacreditá-la
é fazer com que o aluno estranhe sua suposta língua correta. Combater o
preconceito lingüístico que vigora entre os alunos é uma atitude sempre nomeada
pelos professores. Porém, como os professores da Escola MA, os da Escola CJ são
mais resistentes em admitir variação na escrita, mas, mesmo assim, admitem que,
dependendo da situação de uso, ela é possível e admissível.
Segunda questão: As práticas enunciativas dos professores revelam que
posições acerca do embate entre o discurso da Tradição Gramatical e o discurso da
Nova Crítica?
Desde que a Análise de Discurso postulou o primado do interdiscurso sobre o
discurso, a noção de sujeito clivado ganhou um reforço adicional. Se a postulação
das formações discursivas autônomas, previamente dadas, autorizava a pensar no
processo de interpelação dos indivíduos em sujeitos de seu discurso como
produzindo uma identidade una, a postulação do interdiscurso, por natureza
contraditório, só autoriza a pensar no processo de interpelação como produzindo um
sujeito clivado, num jogo proteiforme de identificações. Quer dizer, as posições de
sujeito não são dadas de antemão ou de modo absoluto, mas se constroem no
trabalho incessante, sempre recomeçado e nunca acabado, para se
definir/delimitar/constituir a identidade de uma formação discursiva em relação às
demais que jogam num mesmo espaço discursivo e para, sob a ilusão da unidade do
sujeito, transformar/recobrir as contradições de sentido com efeitos de coerência.
Assim, a noção de interincompreensão, como processo de tradução do discurso do
Outro pela grade dos sentidos negativos, segundo o discurso do intérprete, perpassa
também a noção de clivagem do sujeito, dividido entre posições contraditórias.
Pelo que os enunciados dos professores das escolas MA e CJ me dizem, nas
linhas e entrelinhas, no espaço enunciativo das aulas de língua portuguesa, não se
consegue mais manter o suposto fechamento e a suposta coerência semântica do
discurso da Tradição Gramatical. As contradições desse discurso foram nomeadas,
tornaram-se feridas expostas e perturbam a calmaria de sentidos conservados em
formol desde tempos imemoráveis. Dessa forma, mesmo enunciadores que ainda
comungam dos sentidos da Tradição Gramatical, como AD-MA, RT-MA e também
MZ-CJ, evitam signos muito fortemente criticados pelo discurso da Nova Crítica. A
adoção da nomenclatura “adequado/ inadequado” em substituição a “certo/errado” é
85
um sintoma desse mal-estar que ronda a cena das aulas de língua portuguesa
contemporaneamente, evidenciado o conflito das posições de sujeito e indiciando a
ruptura dos sentidos. Os professores da Escola MA se apropriam desses signos,
mas os compreendem/traduzem pela matriz semântica da Tradição Gramatical,
minimizando, contudo, os efeitos de sentido negativos que circundam os termos
“certo/errado”. Embora continuem a significar a variação como erro, não pronunciam
mais, ao menos explicitamente, as palavras “certo/errado”. Há, pois, uma
eufemização daquilo que é considerado “politicamente incorreto” no espaço
enunciativo do ensino de língua portuguesa como língua materna.
Como os sentidos polemizados, criticados, recusados são os do discurso da
Tradição Gramatical, quanto mais o enunciador adere aos sentidos do discurso da
Nova Crítica, mais seu ethos de enunciador se patenteia como o de alguém
investido do poder de mudar as crenças do Outro. A esse respeito, é exemplar o
episódio em que AR-CJ narra o modo como reage à avaliação negativa, mais
precisamente, como “erro”, que um aluno faz de um traço dialetal presente em sua
fala. O ethos do enunciador cuiabano, quando responde, de uma forma ou de outra,
à avaliação que o imigrante faz de sua fala, é um se ele falar do lugar da Tradição
Gramatical e outro se falar do lugar da Nova Crítica. O ethos do enunciador AR-CJ é
do segundo tipo, um ethos altivo que fala cuiabano em público, não se retrai diante
de avaliações negativas, enfrentando-as com argumentos convincentes que
procuram mudar a posição dos enunciatários. Já o ethos do enunciador MZ-CJ é do
primeiro tipo, um ethos retraído que perdeu a auto-estima e a segurança lingüística e
se policia para não falar cuiabano em público, temendo ser alvo de gozação,
zombaria. Em sua própria terra natal, sente-se sob a vigilância panóptica do grande
olho colonizador/civilizador do Ocidente que só dá trégua quando MZ se refugia no
território íntimo de sua família, de sua casa – único espaço em que sua língua
materna pode sair da prisão imaginária a que se viu condenada no mercado
lingüístico regional que subestima o falar cuiabano.
Acompanhando a dança das interpretações, sinto-me encorajada a dizer que,
entre os professores da Escola CJ, é mais visível a compreensão das
variações/fricções pelo viés do discurso da Nova Crítica. Isso me leva a pensar que
o modelo de formação continuada adotado pela escola, interação cotidiana do grupo
de professores com um especialista em lingüística, é eficaz, principalmente quando
o que se espera é a mudança de concepções, atitudes e práticas em relação à
86
língua e ao seu ensino. Afinal, quebrar sentidos cristalizados por mais de dois
milênios de Tradição Gramatical e incorporados como uma segunda natureza exige
paciência e insistência. O imediatismo de muitos programas de formação
continuada, quase sempre custeados com dinheiro público, costuma render
resultados trágicos.
87
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