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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP
FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL
CAMPUS DE FRANCA
LITERATURA E MEDICINA NA CONSTRUÇÃO
DA SENSIBILIDADE BRASILEIRA OITOCENTISTA
RODRIGO CHAGAS BRASIL
FRANCA
2005
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2
RODRIGO CHAGAS BRASIL
LITERATURA E MEDICINA NA CONSTRUÇÃO
DA SENSIBILIDADE BRASILEIRA OITOCENTISTA
Dissertação de mestrado apresentada ao
Departamento de História da
Faculdade de História, Direito e Serviço Social
da UNESP - Franca
como exigência para obtenção do título de
Mestre em Hisria
Orientador: Jean Marcel Carvalho França
FRANCA
2005
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3
Dedico este trabalho à Rossana, que me apresentou à história,
e ao Jean, que me apresentou à literatura brasileira.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço, antes de tudo, à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior), que financiou boa parte da pesquisa;
Agradeço aos funciorios do IEB-USP, aos funcionários da Biblioteca Nacional,
especialmente a Eliane Perez, aos funcionários da Sala de Leitura Vieira Fazenda, do IHGB,
especialmente ao José Luiz de Souza, aos funciorios da Sessão de Obras Raras da
Biblioteca Mário de Andrade, especialmente a Joana e ao Bruno, e a todos os funcionários da
Biblioteca da Faculdade de História, Direito e Serviço Social de Franca.
Agradeço aos meus pais, Clea e Antônio, que me incentivaram e apoiaram durante toda a
pesquisa;
Agradeço às pessoas que colaboraram indiretamente para a realização deste trabalho: João
Gomes, Néri de Almeida, João Batista e Juliana Lima;
Agradeço às inúmeras contribuições oferecidas pela Prof ª Dr. Márcia Naxara ao presente
ensaio;
Agradeço carinhosamente às pessoas que contribuíram diretamente para a realização deste
trabalho: Minisa, Karen, Ricardo, Karina, Fábio e Milton;
Agradeço à Rossana Pinheiro, que me incentivou e contribuiu imensamente para a realização
desta pesquisa;
Agradeço à Mariana e à Juliana Gracioli pelo carinho, pela amizade e pelo abrigo na cidade
de Franca;
Agradeço imensamente ao meu orientador e amigo Jean Marcel Carvalho França, que me
incentivou, apoiou e, principalmente, confiou em minhas potencialidades;
E agradeço, por fim, às pessoas que vivem comigo hoje: Dean, Keite e Letícia.
Três amigos iniciaram uma longa caminhada apenas dois concluíram o caminho. Louros
àquele que chegou primeiro, Milton, e saudades eternas àquele que se ausentou, Fábio.
5
Uma geração pode aprender muito de uma outra, mas o que é
propriamente humano, nenhuma aprende da que a precedeu.
Sören Kierkegaard
Nós não nos transformamos; nós nos formamos.
Franklin vora
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO p. 07
PRIMEIRA PARTE – A literatura e a construção da sensibilidade brasileira p. 14
Os quatro cruzados do Imperador p. 24
1844: o ano de A moreninha p. 32
A poesia de Gonçalves Dias p. 40
A geração byroniana p. 48
A polêmica sobre A confederação dos Tamoios e a contestação da confraria literária p. 52
José de Alencar p. 57
O segundo fôlego da “falange literária”: Os Timbiras e A nebulosa p. 62
Joaquim Manuel de Macedo: historiador e político p. 66
Ferdinand Wolf e a canonização da literatura brasileira p. 71
A virada literária de Joaquim Manuel de Macedo p. 73
Uma nova geração p. 78
Macedo e o prenúncio de novas estéticas p. 81
1870 e os impasses da literatura p. 83
A morte de José de Alencar p. 92
Breve entreato: a “falsa” poesia de 1870 p. 94
Os novos rumos da literatura brasileira p. 99
Réquiem para uma geração p.110
SEGUNDA PARTE – A medicina e a construção da sensibilidade brasileira p.115
A indivisibilidade entre corpo e alma p.127
O médico, suas práticas e seu templo p.135
A criação do amor filial e as transformações da família oitocentista p.145
Mulher: a alma do homem p.154
Maternidade: a missão sagrada da mulher p.161
A ultra-sensibilidade masculina: amizade infinita e pranto desvairado p.184
Janelas e varandas: refúgios de meditação p.192
BIBLIOGRAFIA p.200
7
INTRODUÇÃO
8
Propor um código aos temperamentos?
Arsênio, um jovem advogado formado em São Paulo, figurado no conto Mocinha, de
Raul Pompéia, por volta do fim do século XIX, tinha os excessos românticos na pior conta e
o julgava possível propor um código aos temperamentos. Ironicamente, certo dia,
completamente estarrecido, ele encontrou uma prova inquestionável de que sua esposa o tra
uma carta curta, com a letra dela, absolutamente dela: “não venha! não venha; porque
estamos traídos”. Perplexo e desesperado ele foi ao encontro da infame e lhe entregou a carta.
Mocinha estava sentada diante da cesta de vime das costuras. O pano em que trabalhava
desprendeu-se-lhe dos dedos. Cobriu-lhe o semblante uma palidez de morta. Nem um movimento,
nem uma exclamação. Levantou, só para o marido, um olhar indefinível, esse olhar de aço
simultaneamente límpido e mortífero, com que as mulheres se defendem na extrema emergência
1
.
Mortificado, ele se trancou em seu gabinete pessoal. Precisava de calma para encarar a
situação. As “soluções literárias” lhe vieram logo a mente: somente um desenlace sanguinário
poderia aplacar “a vertigem que lhe obscurecia o cérebro”. “Mas”, controlando-se, “ponderou
imediatamente que a simples observação do próprio temperamento provava que ele não era
dos adequados ao rompante teatral
2
. Escreveu para seu sogro uma carta direta, declarando-
lhe que não poderia mais viver ao lado de Mocinha, carta que extenuou todas as suas forças,
como se tivesse rasgado suas próprias veias.
Impeliu vagarosamente a gaveta das cartas restantes do seu amor, com o cuidado que se tem para o
esquife de um cadáver querido. Abriu outra para tirar um envelope.
Achou dentro o revólver, um brilhante revólver americano, que nunca servira. Empunhou-o
distraidamente... Estava carregado... como quem tem confiança no seu temperamento de homem
avesso às soluções teatrais, certo de que era incapaz de matar alguém, a si muito menos...
E o descarregou na fronte
3
.
Tidos como completamente ultrapassados, muitos valores românticos seriam
abjurados no final do século pela escola realista como meras quimeras, ilusões sem no
entanto deixar de influir decisivamente sobre o cotidiano da população brasileira, ainda que
em casos isolados, como o do jovem Arsênio. Os “excessos” românticos ainda presentes no
1
Obras – vol. III (Contos). 1981, p. 226.
2
Obras – vol. III (Contos). 1981, p. 226.
3
Obras – vol. III (Contos). 1981, p. 227.
9
plano da sensibilidade de nossos patrícios seriam programaticamente atacados por autores
como Aluísio Azevedo e Raul Pompéia, cujas investidas, inadvertidamente, apenas nos
comprovariam a permanência e a validade de tais temperamentos no peodo e de modo
significativo, visto que do contrário não mereceriam tanta atenção.
Por volta de 1870, os próprios românticos, notadamente Joaquim Manuel de Macedo e
José de Alencar, passariam a criticar os primeiros revezes da nova sensibilidade brasileira,
tendência que se agravaria com o passar do tempo e, provavelmente, com a
complexificação desses revezes. Em Iaiá Garcia, de 1878, Machado de Assis declararia, por
intermédio de Jorge, que a vidao deveria dispensar o colorido da poesia, mas que o
romanesco seria pérfido
4
. Na década de 80, quando a estética realista tomaria o poder, nossos
patrícios exibiriam uma gama de possibilidades existenciais e afetivas bastante ampla sem
necessariamente “controlar” seus temperamentos, mesmo em combate contra os excessos da
fantasia.
Situação muito diferente da observada no período colonial. “Os membros da família
antiga eram destituídos daquilo que poderíamos chamar modernamente de ‘profundidade
psicológica’”, comentaria Jurandir Freire Costa no clássico Ordem médica e norma familiar.
Eles eram, por assim dizer, psicologicamente extrovertidos, sentimentalmente centrífugos. Nada,
em suas intimidades afetivas, evocaria a representação que o indivíduo urbano e moderno tem de
suas necessidades psíquicas. O gosto pela exploração, reconhecimento e cultivo das peculiaridades
emocionais não era estranho ao universo familiar, mas incompatível com a solidariedade do
grupo
5
.
O indivíduo colonial possuía indubitavelmente, a nosso ver, sentimentos, desejos e
aspirações personalizadas”, defenderia-se ele, antes de qualquer possível ataque.
A interioridade a que nos referimos pertence a uma outra ordem de fenômenos. Ela diz respeito à
importância que será dada à história e às singularidades psíquicas dos indivíduos na explicação dos
móveis de sua existência social e na formação dos conteúdos afetivos e representativos de sua
consciência
6
.
Entre um hiato de oitenta a cem anos, portanto, os indivíduos brasileiros deixariam de
ser psicologicamente “chapados” para se perderem nos labirintos de suas próprias identidades.
O que se passou nesse meio tempo?
Quando a família real desembarcou no Rio de Janeiro, em 1808, encontrou um país
muito diferente da, então, fina e requintada Portugal, envolta, graças ao ouro das Minas, nos
mais novos e extravagantes luxos “europeus”. A Europa vivia um momento de gradual
4
Iaiá Garcia. 1938, p. 231.
5
Ordem médica e norma familiar. 1983, p. 96-97.
6
Ordem médica e norma familiar. 1983, p. 97.
10
sofisticação cultural
7
, centrado em festas e divertimentos variados, e a vida na Corte
resplandecia hedonismo por todas as partes: em seus modos de comer, de beber, de trajar, de
falar, de se portar no trato social e, enfim, de viver. A situação do Brasil era bem outra: a vida
social praticamente não existia, e o trato social se é que assim poderia ser chamado
restringia-se unicamente à “célula familiar”, confinada entre os limites da residência.
Os contornos da individualidade da população brasileira, o que poderíamos chamar de
um “eu”, eram extremamente difusos, tal como Jurandir Costa nos apontou pouco. A vida
dos indivíduos centrava-se em torno da figura patriarcal, e a fixação nos seus interesses
podava suas especificidades individuais, tornando-os “portadores de uma psicologia rasa, sem
relevo ou especificidade”
8
. A própria organização da “casa” colonial propiciava essa
estrutura, essa falta de intimidade, na medida em que a “família” consistia em uma
indiferenciada massa de filhos legítimos e naturais, de agregados, de escravos, de parentes
mais velhos e encostados, todos sobre o mesmo teto formando uma unidade extremamente
coesa em seus interesses. Dispersa nas numerosas relações com seus serviçais e vivendo sob o
temor do pai, a família colonial não conhecia de modo algum os laços de afetividade comuns
à família burguesa moderna, e a casa, nas palavras de Maria Beatriz Nizza da Silva, não era
considerada um lar em sua moderna acepção
9
. As limitações da vida social decorriam
igualmente dessa unidade familiar, que a tornava praticamente auto-sustentável
10
, e da
precariedade das ruas e do ambiente citadino, em geral insalubre e em condições deploráveis,
ocasionando um total descaso para com a rua e a vida exterior ao lar.
Com a chegada da Corte, essa situação alterou-se profundamente, em decorrência de
rias reformas promulgadas por D. João VI visando europeizar o Brasil ou, antes, civilizá-lo,
torná-lo emblematicamente um país - tendo início assim uma cruzada civilizatória em que
diversas classes intelectuais tiveram um papel de amplo destaque nas transformações sociais,
culturais e urbanas que o país viria a sofrer. A cidade do Rio de Janeiro, então capital
administrativa, foi o locus privilegiado dessas transformações, uma espécie de “laboratório de
experiências” que, expressivamente, de modesta urbe colonial passou a ser conhecida em
7
Ver a esse respeito a obra de Piero Camporesi, Hedonismo e exotismo: a arte de viver na época das Luzes.
1996.
8
Ordem médica e norma familiar. 1983, p. 97.
9
Vida privada e quotidiano no Brasil. 1993, p. 8.
10
Segundo Jurandir Freire Costa, “a casa brasileira até o séc. XIX era um misto de unidade de produção e
consumo. Boa parte dos víveres, utensílios domésticos e objetos pessoais de que necessita uma família eram
fabricados na própria residência”. Ordem médica e norma familiar. 1983, p. 83.
11
meados do século XIX como a Paris das Américas. Como comentaria Antonio Henriques
Leal:
é o Rio de Janeiro não só empório comercial, como também centro e cabeça da nossa vida política
e literária; aí residem o chefe do estado e o governo supremo, a maior força do nosso exército e da
marinha, a faculdade de medicina e a escola politécnica, a militar e a de marinha, as academias de
boas letras e artes, e vários institutos; é pois um imenso foco para onde convergem todas as vistas
e aspirações dos brasileiros, e de onde irradiam para as províncias a vitalidade e o movimento
11
.
Aliando-se às novas medidas deflagradas por D. João VI contra a antiga ordem social,
a classe médica foi de vital importância em todas essas transformações, incorporando, com
seu discurso higienista, “a cidade e a população ao campo do saber médico”
12
e prefigurando,
com seu discurso “científico”, as novas normas sociais almejadas, aburguesadas ou, antes,
civilizadas. “Administrando antigas técnicas de submissão, formulando novos conceitos
científicos, transformando uns e outros em táticas de intervenção, a higiene congregou
harmoniosamente interesses da corporação médica e objetivos da elite agrária”
13
, visando
reverter a situação encontrada no Brasil pela Corte de D. João - que, com seu séquito de 15
mil aristocratas aumentou a população local em quase um terço, acelerando as necessidades
de mudança e exigindo novas estruturas urbanas e sociais.
É importante notar que as diversas mudanças que tomaram lugar nas esferas urbanas e
sociais ocorreram de modo concomitante. Como insiste Jurandir Freire Costa,universo
familiar e universo citadino interpenetravam-se, modelavam-se mutuamente numa estreita
ligação de simbiose e dependência”
14
, de modo que era preciso urbanizar as cidades para a
consolidação dos novos bitos “civilizados” na mesma proporção em que esses hábitos eram
necessários para a devida urbanização das cidades. A atuação dos médicos, ao lado de outras
classes intelectuais, logo reverteu esse quadro, intervindo na casa e na intimidade das
famílias, tornando-as mais sociáveis, ao passo que a parca vida social do Rio era insuflada.
Com o intuito de “atenuar as agruras da vida e trazer o povo feliz” o intendente Paulo
Fernandes, importante figura do período joanino, não só promoveu um sem número de
festividades cívicas e religiosas como fundou em 1813 o Teatro de São João, importante
ponto de encontro da sociedade da época. Vivamente incentivada por essa medida, a iniciativa
privada passou a investir na abertura de diversos estabelecimentos comerciais, como “cafés,
bilhares, confeitarias, hotéis e restaurantes”, que somados às atividades promovidas pela
11
Antonio Gonçalves Dias: notícia de sua vida e obra. 1875, p. 75.
12
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 1983, p. 28.
13
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 1983, p. 28.
14
Ordem médica e norma familiar. 1983, p. 36.
12
Corte joanina passaram a atrair e a agitar a nobreza local
15
. Se em 1808 a vida social
praticamente não existia, em meados da década de 50 a populão carioca tinha a seu dispor
um leque extremamente variado de agradáveis atividades culturais e sociais, dia e noite e se
antes a família colonial recebia pouco, agora as festas privadas se proliferavam, oferecendo
bailes, saraus e diversão para todos.
Quanto ao seio familiar, a medicina social tratou de “civilizar” seus hábitos, alterando
os padrões de urbanidade, as relações inter-individuais e sua própria composição. A casa,
antes sombria e abafada, “infestada de miasmas”, cedeu lugar à habitações iluminadas e
frescas; a intimidade passou a ser cultivada, com o desenvolvimento e a estimulação do amor
entre pais e filhos; e os escravos foram cada vez mais afastados do convívio familiar - embora
o necessariamente das atividades familiares
16
. Segundo Jurandir Freire, a presença dos
escravos facilitava a dispersão do sentimento de intimidade, e sua presença era violentamente
condenada pelo discurso higienista, acusando-se o negro, promíscuo por natureza, de ser
portador de inúmeras doenças sicas e morais.
Esboçava-se assim uma “nova” sociabilidade, que concedendo maior autonomia aos
indivíduos desmantelou as antigas e estáticas relações familiares, onde o médico de família
ocupava um papel extremamente privilegiado - mas não . A cruzada civilizatória
oitocentista foi encampada por diversas outras classes intelectuais, entre elas os homens de
letras, cujo discurso seria profundamente influenciado pelas idéias médicas correntes.
No presente ensaio, buscaremos esquadrinhar a atuação de dicos e literatos na
construção de alguns traços da sensibilidade brasileira oitocentista, tomando como fontes,
para tanto, um conjunto de romances e teses médicas do período. Em um primeiro momento,
acompanharemos o desenvolvimento da história do romance nacional em correlação ao
desenvolvimento da sociedade brasileira, entre 1844, quando o gênero é “inaugurado” em
nossas letras, e 1882, quando uma nova estética está definitivamente firmada e os “moldes”
antigos saem de cena, buscando apontar a complexificação da realidade social oitocentista em
paralelo à complexificação das narrativas literárias que lhe faziam par. Em um segundo
momento, observaremos a atuação da classe médica sobre esse panorama social cotejando
seus discursos com as representações legadas por nossos literatos, ao mesmo tempo agentes e
15
Literatura e sociedade no Rio de Janeiro oitocentista. 1999, p. 32-33.
16
Como nota muito Jean Marcel França, “isso não significa de forma alguma que a população local, cada vez
mais europeizada, não tenha alterado suas relações com a farta mão-de-obra escrava disponível. No entanto, esse
traço constituirá durante todo o século XIX, um toque de barrie numa sociedade que se queria cada vez mais
civilizada”. Literatura e sociedade no Rio de Janeiro oitocentista. 1999, p. 25.
13
cronistas desse processo, buscando apontar as correlações entre suas falas e o desenrolar de
suas construções.
Tomaremos a trajetória literária do intelectual Joaquim Manuel de Macedo como guia
para a primeira parte deste ensaio tanto por sua posição cronológica como por sua importância
na história do romance nacional, visto que ele não foi o responsável pela criação” do
gênero em nosso país como foi um de seus maiores mestres, lançando tendências e ocupando
as graças do público por longos anos. Macedo tamm nos parece uma boa escolha por sua
ampla dedicação ao romance urbano oitocentista, e ainda por sua declarada preocupação com
a representação de usos e costumes sociais tal com ele nos indica em uma passagem do
romance histórico As mulheres de mantilha:
Tenho quase a certeza de que hoje haverá de sobra quem me censure por estas explicações do que
todos sabem, visto como ainda atualmente existe o cancro da escravidão, ainda há população
escrava, e portanto, ainda também nas famílias – nhanhãs e sinhazinhas; mas no século
vigésimo os romancistas historiadores, que são os professores de história do povo, o de
agradecer estes e outros esclarecimentos da vida íntima das famílias do nosso tempo
17
.
Tomando Macedo como guia, evidentemente tomaremos também seus romances como
fontes, concedendo ainda especial atenção aos autores que se dedicaram ao romance de
costumes urbanos, como José de Alencar, Machado de Assis, Alfredo Taunay e Aluísio
Azevedo, entre outros romancistas e poetas de menor renome.
As teses médicas oitocentistas, por sua vez, foram selecionadas conforme suas
temáticas sociais, em correspondências com as discussões românticas que nos pareciam mais
promissoras. Das vinte e oito escolhidas, somente duas foram publicadas comercialmente”: a
tese Teoria das gastralgias e das nevroses em geral, de Luís Pereira Barreto, incluída por
Roque Spencer de Barros no primeiro volume dedicado às obras filoficas do autor, e a tese
Considerações sobre a nostalgia, de Joaquim Manuel de Macedo, publicada recentemente
pela editora da UNICAMP. Todas as demais se encontram no acervo de obras raras da
Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro exceto, justamente, a tese de Macedo, que
consultamos a original, disponível na Biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
Todas as citações do presente ensaio tiveram seus textos atualizados para o português
contemporâneo, e visando estender a outros pesquisadores as fontes da pesquisa, tanto os
títulos das teses médicas quanto os nomes de seus autores serão indicados, na bibliografia,
conforme a grafia original, tal como eles estão registrados no acervo digital da Biblioteca
Nacional.
17
As mulheres de mantilha. 1965, p. 36.
14
PRIMEIRA PARTE
A literatura e a construção da sensibilidade brasileira
15
O poeta deve ser ele próprio um verdadeiro poema”
18
, comentou José de Alencar na
abertura de sua última carta sobre A confederação dos Tamoios, sintetizando mais os juízos de
sua época acerca do papel do literato no século XIX do que apresentando suas convicções
pessoais. Inflamada expressamente por Deus, a fagulha do gênio não poderia nunca ser
ignorada e se manifestaria em quaisquer circunstâncias ou ambientes, como comentaria anos
mais tarde Araripe Júnior:
foi precisamente o reconhecimento desta verdade, vagamente formulada no século passado por
Buffon o estilo é o homem –, que fez com que um autor dissesse que Rafael, ainda mesmo
metido em uma taberna e obrigado a pintar beberrões, colocar-lhes-ia sempre nos olhos uma
expressão apostólica
19
.
O espírito do poeta deve ter, por assim dizer”, prosseguiria Alencar, o privilégio da
ubiqüidade; deve estar em todo o poema e sobretudo em cada um dos caracteres importantes
da ação dramática que descreve”.
E não é isto; é preciso que se transforme a cada momento, e, como Prometeu, vida a essas
estátuas criadas pela história, ou por sua imaginação, animando-as com um raio do fogo sagrado
20
.
“A vida inteira de um artista é muito pouco ainda para a sua obra. Na arte, seja
literatura, música, pintura ou estatuária, não meios termos ou é arte ou não é arte”
21
,
comentaria muitos anos mais tarde o romancista Aluísio Azevedo. A figura do poeta, atrelada
à concepção mais plena do gênio, atravessou o século XIX intocada e flamejante, para am
das diferentes estéticas que se sucederam muitas vezes em flagrante oposição. Criatura
extravagante, sempre à frente de seu tempo, o gênio tinha como destino a glória em um futuro
inalcançável, encerrado no presente ao desprezo e à indiferença de seus pares. “Bendita a
hora”, declararia Antonio Henriques Leal, biógrafo de Gonçalves Dias:
em que nasce um gênio, aqui, ali, que importa, se for luz benéfica que esclara e guie a
humanidade? A essa outorga Deus parte de seus atributos, e ordena-lhe que trabalhe e produza, e o
mundo dá mais um passo para diante no estádio do progresso e da perfectibilidade humna,
impelido por essa nova força
22
.
18
CASTELLO, José Aderaldo. A polêmica sobre A confederão dos Tamoios. 1953, p. 58.
19
José de Alencar. 1894, p. 135.
20
CASTELLO, José Aderaldo. A polêmica sobre A confederão dos Tamoios. 1953, p. 58-59.
21
O touro negro. 1961, p. 64.
22
Antônio Gonçalves Dias: notícia de sua vida e obra. 1875, p. 03.
16
Segundo o grande repertório de lendas e mitos ligados ao romantismo brasileiro,
Joaquim Manuel de Macedo teria escrito seu primeiro poema aos onze anos de idade. De
cunho nacionalista e intitulada O sete de abril, tal composição não foi conservada e hoje se
encontra no imenso volume de poesias perdidas da humanidade’. Para além de tal perda,
pois muitas outras viriam se juntar a esse volume seja por descuido do autor, pela ação
natural do tempo ou por sua localização em publicações obscuras até hoje nunca
recuperadas
23
–, Macedo exibiria em seus primeiros escritos uma verdadeira “carta de
princípios” e parecia ter forte noção dos perigos que rondavam seu destino perigos que,
apesar de todos seus esforços, o de evitar. No poema O amor do vate, publicado em
1846, o autor nos apresenta suas expectativas e seus temas futuros:
Vate! aos ouvidos teus está tinindo
O ouro de um rival, que te prefere!...
A razão desmentindo
O mundo vil confere
A essa bruta massa, suspirada
Apreço tão subido,
Que a virtude recua envergonhada:
Glória, honra, amizade outr’ora hão sido
Farol da humanidade;
Mas nossa geração as vícios dada,
Surda à voz da verdade
Tal divisa riscou do nobre escudo,
Vendeu-se toda ao oiro – oiro hoje é tudo.
Bem ao gosto romântico do período, Macedo mostra-se reticente quanto às inclinações
de sua época que se entregou facilmente aos encantos débeis da riqueza. O autor retrata uma
galeria de tipos sociais que “vendeu-se toda ao ouro” o ministro que “honras e graças
vende”, o juiz que vota “ao crime a liberdade”, o sacerdote que se esquece de sua sagrada
missão”. Ao pobre nada resta, nem “amor, nem amizade”, visto que todas as graças recaem
sobrem o gênio da riqueza”; e mesmo o poeta, que com sua arte pode imortalizar o doce
semblante da amada, vencendo o obscuro vale da morte com seus hinos que atravessam
séculos, nada pode diante do poder doouro”. “Embalde a gratidão!” – brada Macedo:
embora “neste correr de vida” não exista um amor mais forte, o poeta sabe qual é sua
verdadeira missão:
Embalde a gratidão! – não há de o Vate
Quebrar a lira altiva,
Nem murchar a flor de gênio em selva escura,
23
Foi Tania Serra, em 1994, quem se dedicou à tarefa de compilar as composições em verso de Macedo,
pesquisando vasto número de publicações e encontrando materiais até então completamente ignorados. Segundo
ela, “tratando-se de Macedo, no entanto, crônicas e poesias esparsas ainda podem ser encontradas em jornais e
periódicos da época, de maneira que se torna impossível dizer que a pesquisa sobre seus inéditos esteja
encerrada”. Joaquim Manuel de Macedo ou Os dois Macedos: a luneta mágica do II Reinado. 1994, p. 15.
17
Só porque a beleza foi-lhe esquiva,
E não pagou ternura.
Não! que mote mais nobre à glória o chama.
Seus hinos luminosos
Vertendo em voto humilde a divindade,
Cantando a pátria, e seus heróis famosos,
Sobe à imortalidade.
Macedo antepõe assim a imortal glória literária aos efêmeros prazeres materiais,
empenhando sua pena sobretudo à nação brasileira:
Acendesse-me Deus no espírito humilde
De gênio a luz preclara!...
Que nunca a essa beleza tão mesquinha
Dera a lira, que nobre só votara
A Deus, e à pátria minha.
Antes dele, no marco inicial de nosso romantismo, o clássico Suspiros poéticos e
saudades, Gonçalves de Magalhães já colocara sua pena à serviço da Pátria:
Trabalhemos, Amigo, pela Pátria,
por amor da Pátria,
E entreguemos a Deus nosso destino.
Se à região dos astros não subirmos,
Pirilampos seremos nos desertos,
E aos nossos reunidos, luz daremos,
Que nas trevas talvez ao desgarrado
Viajor encaminhe.
Trabalhemos, Amigo, pela Pátria,
por amor da Pátria,
E entreguemos a Deus nosso destino
24
.
Desde cedo dedicado às belas letras, desde cedo dedicado à sua pátria: eis um primeiro
instantâneo que podemos tirar do escritor itaborense, confirmado por seu conterrâneo
Salvador de Mendonça aliás, o autor da lenda acerca da genialidade precoce do escritor a
que já nos referimos. Deixemos fluir sua memória:
De 1831 data a sua primeira composição poética de que tenho notícia, “O 7 de Abril”. Tinha o
poeta apenas onze anos de idade e creio que não deve ter sido indiferente ao desaparecimento de
todos os exemplares dessa produção de sua puerícia. Nos anos subseqüentes todos os seus versos
de estudante corriam de mão em mão, em todas as casas da vila, cuidadosamente copiados.
Inspirava-os sempre mais o amor da tria e do campanário que os belos olhos das moças pelas
quais dificilmente se enamorava
25
.
A glória é uma constante nos primeiros escritos do Quinquim Manuel, como o
chamava Salvador de Mendonça, quase uma obsessão literária o em um sentido
estritamente individual, mas mais amplo. Foi evocando a glória que ele concluiu seu discurso
de formatura em Medicina, no ano de 1844, certamente aos brados, e foi com um hino bíblico
intitulado O amor da glória que ele saudou a inauguração dos bustos do cônego Januário da
24
Suspiros poéticos e saudades. 1999, p. 184.
25
Cousas do meu tempo. 1960, p. 114.
18
Cunha Barbosa e do Marechal Raimundo José da Cunha Mattos, no dia seis de abril de 1848,
valorosos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do qual Macedo era
associado. O vate busca justificar a existência humana mesmo com todos os seus sofrimentos
e pesares tendo em vista a infinita bondade de Deus, que com sua grandeza despeja
numerosas graças e misericórdias sobre os homens. O amor da glória, segundo ele, provém da
combinação das diversas graças que Deus concedeu ao homem, das quais a maior certamente
é a pátria – “porque assim como o céu é a pátria da alma, a pátria é o céu do coração.
Porque o amor da glória é o desejo ardente de honrar à pátria, aos pais, à esposa, e de legar
um nome ilustre aos filhos, e de ser útil aos outros homens.
E de ser por isso lembrado pela tria, abençoado pelos pais, e amado pela esposa; e de
servir sua memória de farol aos filhos, e de ser louvado pelos outros homens.
E esse amor é como o arbusto que se cultiva no presente, e que só floresce no futuro.
E a flor, que esse arbusto desabotoa, orna o tumulo do jardineiro que o tinha cultivado.
E os odores dessa flor, que é muito bela, são sentidos unicamente pelos vindouros.
Porque a gloria é um trono, cujo primeiro degrau é o sepulcro, e é também uma coroa, que
serve só na fronte do esqueleto.
Mas esse amor é quem acende o sagrado fogo do gênio; e sonho ou ilusão dá força e animo ao
homem para trabalhar dia e noite preparando um futuro, que não será nunca presente para
ele; mas que lhe está transluzindo debaixo da laje fria do tumulo
26
.
Podemos notar nessas linhas um certo pessimismo diante da glória, uma leve
melancolia. Macedo estaria realmente resignado com essa projeção ou o que no fundo
significaria a mesma coisa – apenas correspondendo literariamente às expectativas românticas
da época? O autor sabe que em seu jovem país aqueles que se dedicam às belas letras ainda
pregam no deserto”, sem nunca receber as devidas honras por seu precioso trabalho
justamente como os ilustres homenageados do dia, Januário da Cunha Barbosa e Raimundo da
Cunha Mattos. Foi unicamente a glória que os guiou em sua árdua caminhada, cheia de
terríveis provase ingraties, quando mesmo pelo bem da pátria e dos seus semelhantes
mais se esmeravam
27
. O momento em que Macedo vive, contudo, é um momento agraciado:
Porque até bem pouco o amor da glória era entre nós o único incentivo que animava as letras.
E o sábio, que o sentiu, chorou no silencio da noite a miséria e a cegueira dos outros homens.
Porque a terra do lenho sagrado estava conquistada pelo egoísmo, e manchada pelos vícios.
E a pátria era um nome de escárnio, e a liberdade, que o Senhor Deus tinha comprado para os
homens no cimo do Calvário, era um nome vão.
E o senhor Deus viu as lagrimas do sábio, e mandou um anjo para consolar o homem junto em
sua aflição,
26
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 1848, p. 280-1.
27
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 1848, p. 281.
19
E o anjo veio pousar no ombro do sábio, e em nome do Senhor Deus lhe falou assim:
“As lágrimas do sábio são torrentes de poesia, e nunca ele se faz tão agradável ao Senhor,
como chorando sobre a miséria dos outros homens, e bradando contra seus crimes.
“Porque as plantas odoríferas desprendem mais vivos perfumes quando são maceradas.
“E os pirilampos jamais brilham tanto como em noites escuras e calmosas.
“E as lágrimas do sábio assemelham-se ao orvalho benéfico, que lenteja o seco vale, e fertiliza
os campos áridos.
“E a tua dor é a dor do homem justo; e o Senhor Deus é infinitamente bom, e o pranto de
seus filhos.
“E ele envia à terra de seu lenho um mancebo predestinado, que de marcar uma época
nova para ela.
“E esse mancebo trará sobre seus ombros a púrpura dos reis, e terá nos olhos o fogo do céu.
“E sobre sua cabeça loura descansará um diadema, no qual hão de brilhar dezoito fulgurantes
estrelas.
“E o mancebo predestinado há de hastear uma nobre bandeira, na qual, por ordem do Senhor
Deus, eu escrevi com letras de fogo – a gloria!
“E os bons e os justos o de lançar flores adiante de seus passos.
“E quando ele tiver passado hão de segui-lo cheios de entusiasmo.
“Porque ele é que pode ir na frente de todos, e é o único que terá valor para vencer os
perigos e os trabalhos da grande cruzada.
“Porque ele é o ungido do Senhor Deus
28
.
Vemos nessa longa passagem a justificativa da melancolia do poeta e de sua postura
abnegada, bem como a tradicional condenação dos ímpios e a apologia dos bons; mas quem
seria esse “mancebo predestinado” à comandar uma cruzada pela salvação do país?
Caracterizado apenas como o maior de todos os homens das terras de Colombo”, com a
alma voltada para o Senhor Deus, e o coração amorosamente inclinado para seus súditos”,
unicamente sabemos que infundirá ânimo nos espíritos daqueles que amarem a virtude, a
pátria e as letras e que os defenderá contra a prepotência dos pequenos potentados que
abusamporque a vontade do Senhor Deus é essa, e de ser cumprida
29
. A primeira
figura que nos vem a mente é a de Dom Pedro II, mas Macedo mantém seu nome envolto em
um manto de brumas meramente sugestivas. Em 1849 o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro viveu um de seus mais “faustos” dias, quando o Imperador Dom Pedro II
gentilmente cedeu uma das salas do palácio imperial para a realização das reuniões da
associação. Em clima festivo, a nova sede foi inaugurada na 212
ª
sessão histórica do Instituto,
em quinze de dezembro, e relatando na Revista Guanabara esse momento memovel Manuel
de Araújo Porto-Alegre parece retomar a pista de Macedo:
28
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 1848, p. 282-3.
29
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 1848, p. 284.
20
Abriu-se a pagina de ouro da época atual; o primeiro e o mais vivificante raio da luz criadora
derramou o seu benigno insuflo; a existência das letras prossegue de ora avante com uma nova
vida, superior à compreensão do passado, e acima de todos os fatos deste gênero nos dois mundos,
que falam a língua de Camões.
O ano de 1849 foi selado com este grande e notável acontecimento, que na vida do Senhor D.
Pedro II será sempre olhado com admiração pela posteridade: a emancipação do literato está
consumada, as suas lucubrações recompensadas, e a sua hierarquia colocada no devido grau que as
sociedades civilizadas costumam marcar-lhe.
Ao literato já não pertence essa existência secundaria na ordem social, essa vida de um crepúsculo
que só depois da morte se devia engrandecer: os serviços intelectuais do ministério das idéias
foram nivelados com os outros elementos civilizadores, e a sua gloria igualada à do general, do
magistrado e do estadista; os elos da cadeia civilizadora se acham entrelaçados fraternalmente, e
caminhando para a mesma direção. Este triunfo o solene, e que tanta luz vai derramar sobre a
historia da América, é equivalente àquela lei providencial, aquela reivindicação que pelos atos da
posteridade o tempo concede ao gênio
30
.
Porto Alegre identifica a mesma “virada” hisrica que Macedo, exibindo por um
instante a mesma postura de abnegação resignada com o presente e prestimosa esperança nas
luzes do futuro:
O egoísmo e todas as suas filiações pertencem ao presente de todas as gerações; a posteridade é de
uma imparcialidade constante para com o passado: é o tribunal da civilização, e a depositaria que
entesoura todas as riquezas que lhe foram legadas por seus antepassados: a severidade
contemporânea é adoçada pela indulgência dos vindouros: o trabalho do homem de gênio é como
um monumento visto ao longe: admira-se a sua massa imponente, a harmonia de suas linhas
gerais, os contornos de suas partes, sem se descer à analise microscópica de seus mais pequeninos
detalhes. A posteridade aceita a obra como uma herança pingue; estima-a e a considera como
produto de uma mão desconhecida que a mimoseara: não ha mais o indivíduo, não ha mais o
terrível eu, que é o gérmen de todos os senões das obras humanas.
As nações que conquistam uma parte do que pertence ao futuro, e que destarte encurtam os tempos
e apressam as recompensas, são verdadeiramente civilizadas
31
.
Vemos que não mais motivos para tristeza, que uma nova emoção começa a
animar o coração dos homens de letras. O fundador da revista Niterói sabe que vive um
momento privilegiado, um momento em que o país avança na marcha da civilização; ao que
parece, o “mancebo predestinado” finalmente chegou:
A pagina de ouro do livro da glória, da legítima e modesta glória, está aberta.
E quem é esse Messias de nova espécie, que no meio do positivismo do século marcha triunfante e
escoltado de tantos idealistas; quem é esse homem notável, essa espécie de semideus, que se eleva
tão alto, e despede de sua fronte olímpica a luz da civilização, e ilumina o escuro canto do bio
com o clarão de sua majestade, e o mostra aos outros homens nos bancos da glória; quem é este
americano, que desce do solo augusto, e depõe todos os atributos da majestade para sentar-se no
recinto da inteligência, irmanar todas as categorias civis, colocar-se no coração do filósofo, nos
lábios do poeta heróico, e nas paginas do historiador, escurecendo a gloria de muitos de seus
antepassados, e conquistando uma nova, tão grande como o mundo em que nascera?
Quem é este novo filho do céu, que começa a colher todos os epítetos consagrados aos homens que
fizeram as delicias da humanidade?!
30
O texto de Porto Alegre foi originalmente publicado na Revista Guanabara, mas dada a importância de seu
conteúdo ele foi parcialmente transcrito na ata da 212
ª
reunião histórica do IHGB – aqui consultada. Ata da 212
a
sessão do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 1849, p. 555.
31
Ata da 212
a
’ sessão do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 1849, p. 556.
21
O IMPERADOR.
Amanhã, quando a nova Fama das cem bocas, a imprensa tiver espalhado do Prata ao Amazonas
as vozes do Soberano do Brasil, o literato, até agora colocado na esteira secundaria da ordem
social, se ergue da mesa, tendo na mão as suas obras, olhará em torno de si, e dirá como
Corregio à vista de um quadro de Raphael: Anch’io sono pittore: também eu sou homem;
também me posso sentar diante do Soberano! – As minhas obras são os meus títulos de nobreza.
Certamente, que poucas emoções havemos experimentado em uma vida errante, de êxtases e de
contemplação, como a do dia 15 de Dezembro de 1849
32
!
Parece-nos possível ainda hoje sentir a comoção de Porto Alegre ao proferir palavras
tão entusiastas: sua rasgada verborragia corresponde tanto às exigências literárias do período
como à natureza do evento reportado, certamente, mas não há duvidas quanto a radiante
importância do momento. Porto Alegre e Macedo figuram a si mesmos como cruzados de
Dom Pedro II em uma sagrada missão de civilização do Brasil, levada a cabo por uma série de
outros intelectuais das letras e também de outras ciências como os citados generais,
magistrados, estadistas, filósofos e historiadores. Gonçalves de Magalhães, por sua vez,
aquele que será considerado o líder desse grupo de cruzados, dedicara ao Imperador, no dia de
sua coroação e sagração, dezoito de julho de 1841, as seguintes linhas:
Sabes o que é ser Rei? – A Deus pergunta-o.
Mais por nós, que por ti, deu-te ele o Império.
Glória imortal te espera, ou... Não; só glória,
Só glória, Imperador, te profetizo
Apraz-te a minha lira? É fraca. Eu juro
Só consagrá-la a Deus, a ti, e a pátria.
Escute o céu meus votos: serás grande;
Feliz o povo; o teu reinado egrégio
33
.
A figura do gênio legada por nossos escritores detinha características bastante
ambíguas: tratava-se de um indivíduo fenomenal e único, que traduzia em palavras e atos as
glórias de Deus e da natureza, predestinado, prodigioso e radiante, mas que, por outro lado,
estava sempre à frente de sua época, incompreendido por seus compatriotas, cujas glórias e
ritos seriam reconhecidas e destacadas unicamente no futuro, quando então seus ossos
descansassem no frio abrigo de um lúgubre sepulcro...
Ninguém poderia resistir à simples menção das primeiras premissas, é certo, mas
quem desejaria para si a funesta trajetória exposta pelas segundas? Talvez seja essa a
importância da “predestinação” da genialidade, que tornava o “calvário terrestre mais
tolerável e isentava nossos escritores de quaisquer auto-recriminações. “Mito de pranto e
32
Ata da 212
a
’ sessão do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 1849, p. 556-7.
33
Citado por Roque Spencer de Barros. A significação educativa do romantismo brasileiro: Gonçalves de
Magalhães. 1973, p. 119.
22
fogo”, como enunciaria Macedo em seu longo poema A nebulosa, o poeta não poderia nunca
fugir à sua missão, como comentaria Gonçalves de Magalhães:
seja qual for o lugar em que se ache o poeta, ou apunhalado pelas dores, ou ao lado de sua bela,
embalado pelos prazeres; no cárcere, como no palácio; na paz, como sobre o campo da batalha; se
ele é verdadeiro poeta, jamais deve esquecer-se de sua missão
34
.
Para ser grande, para produzir entusiasmo nas almas prosaicas dos leitores vulgares”,
como comentaria Antonio Henriques Leal,
importa que seja o poeta um ente singular e fantástico. Esse sentir profundo e triste, esse amor
infinito e sem reserva, essa mistura de timidez e atrevimento, esses receios e zelos às vezes sem
causa, essa irritabilidade exagerada são as modulações que ferem as cordas da lira, que irradiam
sons que enlevam, sem percebermos que quem tange o instrumento é um infeliz, um mártir de seu
gênio
35
.
O poeta Gonçalves Dias, a figura que Leal tinha em mente quando cunhara suas
palavras, confirmaria a validade das impressões do amigo na abertura de seus Últimos cantos,
publicados em 1850:
Se as minhas pobres composições não foram inteiramente inúteis aos meu país; se algumas vezes
tive o maior prazer que me foi dado sentir, – a mais lisonjeira recompensa a que poderia aspirar,
de as saber estimadas pelos homens da arte, d’aqueles, que segundo o poeta, porque a entendem, a
estimam, e repetidas por aquela classe do povo, que só de cor as poderia ter aprendido, isto é, dos
outros que a compreendem, porque a sentem, porque a advinham paguei bem caro esta
momentânea celebridade com decepções profundas, com desenganos amargos, e com a lenta
agonia de um martírio ignorado
36
.
No poema O rcere de Tasso, composto em 1835, Gonçalves de Magalhães
lamentava a ingrata sorte de todos os vates:
Ah! consola-te, ó Tasso,
Que o único não foste, que da sorte
Sorver tragos amargos
Quase é do vate estrela o infortúnio!
Como os mártires são, que só morrendo
A apoteose recebe.
Aquele a quem a Grécia ergueu altares,
Homero, mendigou de porta em porta!
37
Atrelado à mocidade, o dom da poesia elevaria seus escolhidos às altas dimensões do
divino, empolgando e impulsionando a cruzada em andamento:
Eu vos saúdo, Geração futura!
Só em vós eu confio
Crescei, crescei, mimosa planta,
Sobre a terra da Pátria só regada
Com lágrimas e sangue.
Crescei, crescei da liberdade, ó filhos
Para a Pátria salvar, que vos aguarda
38
.
34
Suspiros poéticos e saudades. 1999, p. 42.
35
Antônio Gonçalves Dias: notícia de sua vida e obra. 1875, p. 225.
36
Poesias. 1926, vol. I, p. 16.
37
Suspiros poéticos e saudades. 1999, p. 259.
23
Tanto a figura do gênio quanto as representações acerca de sua trajetória amargurada
o ficaram restritas à geração romântica, mas se espraiaram até o fim do século, para além de
movimentos estéticos ou antipatias pessoais acirradas, como elementos “estruturais” ou como
imperativos culturais que não podiam ser “deixados de lado” pela intelectualidade brasileira.
O ultra-republicano Raul Pomia, ateu convicto e declarado inimigo da geração romântica,
saudaria o compositor Carlos Gomes nos seguintes termos:
o amor que se consagra aos gênios tem sempre mescla de admiração. A mocidade contempla em
vós o dileto de Euterpe, o gênio das harmonias, e possam as minhas rudes expressões, qual tosca
cornucópia, vazar sobre vós, com as flores do amor, as palmas da admiração... Mas, silêncio!
Alguém vol olha de longe, das brumas do porvir... acena-vos com um ramo de louros. É mais
imponente do que a majestade deste lugar... Cala-te voz fraca do presente. É o vulto da
posteridade!
39
Conclamados assim à sua pátria, nossos literatos devotaram todos os seus esforços à
civilização do país, ainda que por vezes com diferentes programas. Segundo Silvio Romero,
Macedo, popularíssimo entre os anos de 1844 a 68 ou pouco mais”, morto “no meio da
quase indiferença geral dum publico alheio aos labores da inteligência”, fora “o mais operoso,
o mais fecundo de nossos escritores, um dos fundadores, senão o verdadeiro fundador do
romance no Brasil, um dos criadores do nosso teatro, um dos mestres de nossa poesia
40
. No
parecer de Antonio Henriques Leal, Gonçalves Dias,
desconhecido do público e na intimidade de dois ou três amigos entregava-se de seu vagar e com
sossego às lides literárias, fervilhando-lhe na mente mil projetos e meditando excursões arrojadas
por todas as províncias da literatura história, poemas, romances, dramas que tudo se realizaria
para glória do Brasil, como o atestava a sua força de vontade, facilidade de concepção e de
execução, seu indefeso trabalho, e atividade inexcedível, se não soprassem sobre ele desapiedadas
as furiosas rajadas da desgraça, e o não distraíssem logo em princípio de sua carreira os trabalhos
de que se encarregava para prover às necessidades da vida material
41
.
Ainda que a tarefa dos artistas seja considerada geralmente uma atividade solitária,
Macedo não alcaou uma posição de destaque sozinho, contando tanto conceitual quanto
institucionalmente com o apoio de três amigos notáveis: Gonçalves de Magalhães, Manuel de
Araújo Porto Alegre e Gonçalves Dias.
Macedo fazia parte do grupo mais íntimo do monarca, ao lado do autor dos Suspiros poéticos, do
das Brasilianas, e do dos Primeiros cantos. Mais livres eram as palestras, quando os dois
primeiros, bem mais velhos do que Pedro II, Gonçalves Dias e Macedo, não se achavam presentes;
a cordialidade era completa quando D. Pedro de Alcântara estava a sós com o escritor da
Moreninha e o poeta dos Timbiras
42
.
38
Suspiros poéticos e saudades. 1999, p. 298.
39
Citado por Eloy Pontes. A vida inquieta de Raul Pompéia. 1935, p. 37-38.
40
História da literatura brasileira tomo quinto: diversas manifestações na prosa, reações anti-românticas na
poesia. 1960, p. 1400-01.
41
Gonçalves Dias: notícia de sua vida e obra. 1875, p. 79.
42
ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira tomo quinto: diversas manifestações na prosa, reações
anti-românticas na poesia. 1960, p. 1401.
24
“O engenho”, comentaria Antonio Henriques Leal, “por mais alto que depois arranque
os vôos, não pode nos primeiros adejos literários dispensar-se do concurso e auxílio alheios, e
de seguir o gosto da sua época que o domina e avassala”
43
. Os quatro foram os maiores vultos
de sua geração, quatro lendas vivas cruzando gloriosamente as ruas da corte imperial.
Os quatro cruzados do Imperador
Gonçalves de Magalhães foi um dos maiores vultos do romantismo brasileiro, máxime
entre a primeira geração e absoluto até a década de 50 quando então o anjo da morte
concederia a um escritor uma posição de destaque superior à sua, ainda que com uma
produção literária bastante incipiente: Álvares de Azevedo. Poeta, filósofo, dramaturgo, “com
veleidades de historiador e frustrado novelista”, Magalhães dedicou toda sua vida, ele que
viveu grande parte de sua vida fora da pátria
44
, como ressalta Roque Spencer de Barros, à
grandiosidade de sua pátria, buscando abarcar todos os domínios da existência humana e
lançar as bases de uma cultura eminentemente nacional. Tido como o inaugurador oficial do
movimento romântico em nosso país, com seus Suspiros poéticos e saudades, lançado em
1836, ele foi o grande guia espiritual de toda uma geração e lançou indelevelmente seus ideais
sobre a cruzada civilizatória posta em marcha com a chegada de D. João VI ao Brasil
influenciando todos os intelectuais oitocentistas que o sucederam, como observamos
rapidamente linhas atrás.
A puerícia e a adolescência do poeta coincidiram com as do Império: tinha ele onze anos ao ser
proclamada a Independência, e vinte ao tempo do desquite amigável, por incompatibilidade formal
de gênios, entre a nação e o primeiro Imperador. Chegou à madureza, quando o Império entrava na
civilidade. Envelheceu com a monarquia. Desapareceu para sempre nas speras do desabamento
do trono
45
.
Nascido em 1811, sob os augúrios de que seria poeta, na cidade do Rio de Janeiro,
Magalhães se formou em medicina no Colégiodico Cirúrgico da corte, em 1832, seguindo
para a Europa no ano seguinte sob a égide do cônego Evaristo da Veiga. Conheceu diversas
cidades européias, estudou filosofia na França, ingressou às fileiras do Instituto Histórico
deste país e, inebriado com o efervescente ambiente cultural que o cercava, lançou em 1836,
em parceria com os patrícios Araújo Porto Alegre e Francisco de Sales Torres Homem, a
revista Niterói, com o emblema: Tudo para o Brasil, e pelo Brasilno mesmo ano em que
43
Antonio Gonçalves Dias: notícia sobre sua vida e obra. 1875, p. 508.
44
A significação educativa do romantismo brasileiro: Gonçalves de Magalhães. 1973, p. XX.
45
MACHADO, Alntara. Gonçalves de Magalhães ou O romântico arrependido. 1936, p. 05.
25
lançava o volume de poemas que já mencionamos. Lecionou filosofia no Imperial Colégio de
Pedro II, ocupou diversos cargos no quadro da diplomacia brasileira e, mesmo longe da pátria,
nunca desviou sua atenção da cruzada civilizatória que ajudou a caracterizar. No parecer de
Franklin vora, a concepção de Magalhães, profundamente cristã e filofica, iluminou por
quase meio século os campos da nossa literatura, ou antes agitou o nosso sentimento, e dirigiu
o nosso ideal”
46
.
Manuel de Araújo Porto Alegre seguiu uma trajetória muito semelhante à de
Magalhães: nascido em São José do Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, mudou-se para a
capital do Império em 1826 com o intuito de estudar com o grande Debret, na Academia
Imperial de Belas Artes, cursando também a Escola Militar e doutorando-se em medicina no
Colégio Médico Cirúrgico da corte. Graças à uma subscrição promovida pelo cônego Evaristo
da Veiga, Porto Alegre partiu para a Europa em 1831 acompanhando seu mestre Debret,
visando aperfeiçoar suas habilidades artísticas. Entregou-se ao ambiente cultural de Paris e,
em parceria com os conterrâneos Magalhães e Torres Homem, participou do lançamento da
revista Niterói. De volta ao Brasil, em 1837, assumiu o cargo de professor de Pintura
Histórica que seu mestre deixara vago seis anos atrás – ocupado até então pelo artista
Simpício Rodrigues de e passou a colaborar em diversas publicações fundando com
Joaquim Manuel de Macedo e Gonçalves Dias, em 1849, a célebre revista Guanabara, tida
como um “prolongamento da Niterói. Além de lecionar na Academia Imperial de Belas
Artes, Porto Alegre também fez parte do corpo docente do Imperial Cogio de Pedro II e da
Escola Militar abandonando, no entanto, seus dotes pedagógicos para se entregar à vida
diplomática. Foi nomeado, primeiramente, nsul brasileiro da Prússia em 1858, sendo em
seguida transferido para a Saxônia, em 1860, e finalmente para Portugal, em 1866, onde
permanecerá até o fim de seus dias, em 1879. Para além de suas produções literárias, sua
marca maior em nossa cultura ficou no plano da pintura, onde alcançou maior notoriedade.
A obra destes dois literatos, somadas à de Macedo e de Gonçalves Dias, que
acompanharemos mais adiante, pode ser compreendida como uma única e vasta empreitada,
onde todos se esforçavam por complementar e expandir as criações dos demais visando um
único e reluzente mosaico esforço baldado, contudo, por conta dos padrões estéticos da
época e pelas misteriosas ações do destino, que drenou os ânimos dos dois fundadores da
confraria Magalhães e Porto Alegre e que ceifou a vida de Gonçalves Dias antes do
esperado, legando à Macedo a tarefa de conduzir sozinho a cruzada civilizatória do grupo.
46
Primeiro discurso como orador do IHGB. 1882, p. 508.
26
Magalhães nunca depôs sua lira, propriamente, mas após a estrondosa polêmica suscitada pelo
poema épico A confederação dos Tamoios suas obras causaram pouco ou nenhum impacto em
nosso público, assim como as obras de Porto Alegre que sucederam seu poema épico
Colombo – lançado em 1866.
Tanto por suas posições cronológicas como pela força de seus textos, Gonçalves de
Magalhães e Joaquim Manuel de Macedo projetaram suas sombras sobre todos os grandes
escritores do período, ainda que o primeiro muitas vezes através do segundo sombras
dificilmente identificáveis por conta de suas posições em nosso cânone contemporâneo ou,
mais propriamente, pelo amplo desconhecimento de seus escritos. o existem textos em si,
mas apenas relações entre textos, como diria Harold Bloom
47
, e deve ser evidente que eles
também foram amplamente influenciados pelos literatos que lhes sucederam, assim como por
seus contemporâneos, mas podemos encontrar ecos de suas palavras em praticamente toda a
literatura do século dezenove seja porque todos foram influenciados pelos mesmos autores,
estrangeiros ou não, seja por conta da especificidade da intelectualidade do período e de seu
empenho conjunto em civilizar o país. No juízo de Franklin Távora:
Poesia, romance, drama, poema nacional que seriam se não fora a intuição, a constância, o
exemplo destes dois operários de grande porte?
As letras têm os seus legisladores aqueles que lhes dão o cunho das tendências do país, aqueles
que, por uma intuição nova e poderosa, levam aos domínios da arte, como levam ao da política os
representantes do povo, o sentimento nacional.
Grosseiro, fraco ou elevado, esse sentimento, numa expressão amorfa ao princípio, começa a
desenhar-se mais tarde em órgãos que revestem, pela evolução natural, forma devida à influência
das raças, do momento, enfim de muitos outros fatores internos e externos, principais ou
secundários cuja intervenção atua sobre o homem como uma lei inelutável.
Magales e Macedo foram os nossos legisladores na arte, depois de nossa independência.
Talentos maiores talvez do que eles, surgiram depois; talentos superiores o de surgir ainda. A
estes mostrar-se-á caminho mais curto para a glória, justamente por acharem desimpedida a trilha
por onde passao, lutando com o deserto e as selvas ínvias, os dois egrégios predecessores.
Outros, por novos processos, aperfeiçoarão os modelos, ou darão novos. É o trabalho da evolução.
Mas semelhante resultado, longe de amesquinhar a obra deixada por Magalhães e Macedo, avivará
o seu esforço, e por isso mesmo a sua importância e renome
48
.
Francisco de Sales Torres Homem foi uma personalidade bastante singular do período,
muitas vezes associado à primeira geração romântica por ter fundado a Revista Niterói com
Magalhães e Porto Alegre. Filho de padre, Torres Homem cursou medicina como seus amigos
e graças à intervenção de Evaristo da Veiga também viajou para a França, em 1833, como
adido à delegação brasileira, cargo que ocupou até 1836. De volta à pátria ele se lançou à
47
Um mapa da desleitura. 2003, p. 23.
48
Primeiro discurso como orador do IHGB. 1882, p. 522-23.
27
imprensa e à potica, filiado como sempre ao partido liberal, e participou da campanha pela
maioridade de D. Pedro II em 1840, sendo deportado para Lisboa dois anos depois por se
envolver em uma revolta liberal – regressando ao país no ano seguinte. Foi redator de
diversos jornais e revistas, entre elas a Minerva Brasiliense, uma das maiores publicações
literárias do período, conquistou a cadeira pública de filosofia da cidade do Rio de Janeiro
49
em 1844 e se elegeu deputado duas vezes. Em 1849 ele “incendiou” o país com o lançamento
do panfleto O libelo do povo, sob o pseudônimo de Timandro, atacando de modo devastador a
monarquia vigente e alcançando uma notoriedade vertiginosa. Com o passar dos anos,
contudo, ele passou a se empenhar por uma conciliação entre os partidos e a elogiar a figura e
o governo de D. Pedro II, “o mais justo dos monarcas”, renegando seu panfleto revolucionário
– nada mais então do que um escrito de ocasião influenciado por iias caprichosas. Caso raro
entre nossos românticos, que tinham suas convicções na mais alta conta, (inserir Macedo)
Torres Homem foi deixando de lado suas idéias liberais para abraçar a causa da coalização e
ingressou mais tarde nas hostes conservadoras. Grande orador e articulista, foi conquistando
cada vez mais a estima do governo e alcançou o Ministério da Fazenda em 1858, sendo
agraciado em 1870 com uma vaga no senado, convocado pelo próprio imperador...
Literariamente, pois, pouco legou à cultura brasileira, alcançando maior notoriedade como
agitador de nossa vida cultural.
No começo do segundo reinado nossos literatos não gozavam de muito prestígio,
como muitos deles adoravam destacar, em completa consonância com a imagem do gênio em
voga. Associada à juventude, a literatura muitas vezes era tida como um desvairio típico e
tolerável – pom apenas até certo período. Considerada uma “fase” existencial extremamente
instável, a juventude concedia uma série de “atenuantes” a ambos os sexos e era tida como
romântica por excelência estabelecendo tanto um certo “conflitode gerações como uma
certa incompatibilidade com a vida adulta. Poetas grandes ou pequenos, eram naquele tempo
todos quanto sabiam ler e escrever”
50
, comentaria Alcantara Machado, mas com o advento da
maturidade muitos deixavam suas atividades literárias de lado, tidas como extravagâncias
naturais da juventude. Inúmeros deputados zombaram de José de Alencar na câmara dos
deputados e mesmo o literato Franklin Távora condenou as empreitadas poticas de
Macedo
51
.
49
VIANNA, Hélio. Francisco de Sales Torres Homem – Visconde de Inhomirim. 1960, p. 259.
50
Gonçalves de Magalhães ou O poeta arrependido. 1936, p. 10.
51
Quaisquer, porém que fossem os artigos políticos de Macedo, quaisquer que fossem os seus serviços neste
ramo de labor nacional, eles não valem uma qüinquagésima parte dos literários. A índole de Macedo o se dava
com a luta, essência dos partidos”. Primeiro discurso como orador do IHGB. 1882, p. 515.
28
Noticiando o casamento de Gonçalves Dias, em 1853, Otaviano de Almeida lastimava
a viuvez das musas, pois o poeta deixaria a lira empoeirar-se, e o despediria d’ela mais um
canto; visto como é o casamento incompatível com a poesia, e as preocupações prosaicas
do homem casado não se compadecem com o viver airado do poeta”
52
. Referindo-se a
Sizenando Nabuco, Aluízio Azevedo nos conta um caso semelhante:
O seu primeiro ideal foi a literatura, e durante os anos acadêmicos todo o seu esforço, todos os
seus estudos fora do curso, foram a ela consagrados. Muito moço ainda, creio que aos dezenove
anos, revelou-se com um drama A túnica de Nesso, que marcou a sua primeira vitória no teatro. O
Imperador chamou o autor aos seu camarote, cumprimentou-o, e deu-lhe conselhos.
Sizenando continuou a trabalhar, sempre com êxito, mas em breve reconheceu que no Brasil a
literatura poderia ser um belo ideal de estudante, nunca porém um seguro e produtivo meio de vida
para um homem de aspirações. E rejeitou as solicitações do seu talento literário, cortou as asas da
sua imaginação, escondeu os seus manuscritos, e de um salto atirou-se à tribuna de advogado
53
.
Deus me livre de poetas!”, exclamaria uma das personagens do romance Amância,
de Goalves de Magalhães:
eu quero um doido comigo! Bem me custa aturar o Senhor, quando começa a falar sem nunca
acabar, e que para dizer uma coisa leva um dia, quanto mais a um poeta, que primeiro que diga o
que quer, procura mil rodeios, e afinal é preciso que o adivinhem
54
.
Com tom galhofeiro, o próprio Macedo admitiria que uma cabeça de estudante, uma
cabeça de poeta, uma cabeça de artista fazem três cabeças que somadas apresentam em
resultado uma grande cabeça cheia de vento e igual a zero
55
, alegando em outro romance que
durante a mocidade “os estudantes acadêmicos manifestam a nobreza e altitude de seus
corões nas belas ilusões, em que se enganam com os homens e o mundo. Eles se enganam,
porque ainda são melhores do que os homens e o mundo que os enganam”
56
. No entanto, diria
ele com maior seriedade, “a juventude é o seio da confiança: na riqueza da sua seiva, e na
lente mágica e lisonjeira com que vê o mundo, seguranças de futuro que tranqüilizam e
deleitam o coração”
57
.
Inebriados pelos sonhos da juventude, nossos primeiros literatos dedicavam sua vida
ao país sem se entregar à quaisquer desregramentos sociais ou pessoais. É somente com o
advento da chamada geração byroniana que a boemia se instaurará como prática cultural
vinculada à vida literária, exercendo pouco fascínio sobre os integrantes da primeira geração
romântica. Gonçalves Dias tinha certa propensão à caninha e ao tabagismo, mesmo em
52
Antonio Gonçalves Dias: notícia de sua vida e obra. 1875, p. 109.
53
O touro negro. 1961, p. 20-30.
54
Amância. 1865, p. 352.
55
Os romances da Semana. 1937, p. 81.
56
As vítimas-algozes. 1991, p. 205.
57
Um noivo à duas noivas. S/d, vol. I, p. 47.
29
público, o que muitos lhe reprovavam dado o caráter plebeu” do cigarro, de sua predileção,
em relação ao charuto no período “gosto” completamente instaurado no final do século,
como nos mostra Lima Barreto no Triste fim de Policarpo Quaresma
58
. Macedo apreciava
muito a cerveja, mas sempre isolado em seu gabinete de trabalho, à noite, quando escrevia.
Quanto à Alencar, Raimundo de Menezes faz questão de ressaltar que mesmo no ambiente
boêmio de São Paulo o escritor se esquivava às patuscadas e às noitadas acadêmicas,
dedicando-se com esmero aos livros, e que no Rio de Janeiro freqüentava os salões mais
badalado por “dever de ofício”, à cata de assuntopara seus folhetins, fugindo sempre às
valsas – “a dança das modas”
59
. “Sempre tive para mim”, destacaria o próprio Magalhães,
que os elevados vôos da Filosofia espiritualista eram mui próprios para exaltar e acender a mente
do poeta; como o rastejar do materialismo para abatê-la, e amesquinhá-la. Eu me aprazia na minha
juventude com Young, Harvey, Klopstock, e Caldas, e nunca achei graça nesses poetas que
arrastam a Poesia pelos lupanares, e orgias
60
.
Homens de bem, como o leitor pode perceber claramente. Goalves Dias, por
exemplo, foi praticamente requisitado por sua amada à roubar-lhe de casa, rompendo com
todas as boas normas da sociedade, mas, segundo Antonio Henriques Leal, “seu caráter de
homem de bem, a gratidão à família, mil outras considerações de brio e de pundonor”
61
o
impediram! Talvez as coisas não pudessem ser muito “diferentes”, como nos indica o seguinte
comentário de Porto Alegre sobre as atividades “revolucionárias” de Sales Torres Homem:
O Sales, o talentoso Sales, que foi criado para correr sempre atrás de um fantasma, tem-me
enchido de amargores: não contente com o Timandro, escreve agora o Boletim do povo que li o 1
o
número, e será o último para mim, pois que nele nada mais se trata do que sublevar a tropa e tirar-
lhe a obediência passiva! Lisonjeado por imbecis ambiciosos, vai se aguçando na pedra
revolucioria e convertendo-se no cutelo da morte que é a palavra e a lei dos revolucionários;
sinto muito isso porque estimo o talento do Sales e desejaria vê-lo melhor empregado
62
.
As musas que inspiraram os escritores do século dezenove eram muito ciumentas:
ainda que todos tenham se atirado à diversos gêneros literários, poesia, prosa e teatro, em
geral eles alcançaram a maestria em um deles. Gonçalves de Magalhães e Goalves Dias,
eminentes poetas, também se arriscaram a produzir romances, tarefas baldadas; e Macedo e
Alencar, que alcançaram distinções na prosa, escreveram poesias de qualidade bastante
duvidosa. Porto Alegre se destacou mais na pintura do que em qualquer outra das empreitadas
literárias que logrou publicar; A Noite na taverna de Álvares de Azevedo é tida como inferior
à suas composições poéticas, e a genialidade que Machado de Assis exibiu em seus romances
o marca nenhuma de suas produções em verso. Raul Pompéia nunca abandonou os
58
Triste fim de Policarpo Quaresma. 1997, p. 45.
59
José de Alencar: literato e político. 1965, pgs. 76 e 88.
60
Cantos fúnebres. 1864, p. 263-64.
61
Antonio Gonçalves Dias. 1875, p. 107.
62
Citado porlio Vianna. Francisco de Sales Torres Homem – Visconde de Inhomirim. 1960, p. 264-65.
30
domínios da prosa, mesmo em seus poemas as Canções sem metro; e o mesmo podemos
dizer de Aluísio Azevedo – que conhecia bem os ciúmes das musas:
a arte é honesta e se entrega a quem a ama mediante rigoroso casamento. Não quer amantes
passageiros. É egoísta e cruel: não admite que o seu idólatra volva um momento os olhos para
outro ideal; quer que ele se dê todo inteiro, todo de corpo, todo de alma; quer beber-lhe a
existência, gota a gota, instante a instante, adeixá-lo totalmente vazio, seco, inutilizado para
todas as outras aspirações da vida
63
.
A mulher foi, sem dúvida alguma, a figura que dominou as atenções do século XIX,
em todas as suas dimensões. Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar e Aluísio Azevedo
dedicaram a maior parte de suas obras ao sexo feminino, e o crítico e romancista Araripe
Júnior chega mesmo a dizer que a originalidade da obra de seu tio, Alencar, “consiste na
subordinação da natureza bravia à beleza feminil, na transformação de tudo quanto cerca a
mulher, ainda mesmo o enorme e repelente, no mimo, na graça, na candura”
64
. Em sua dupla
condição de esposa e mãe, cabia à mulher a missão de repassar ao ambiente doméstico as
normas que deveriam civilizar o país e todos os literatos brasileiros de renome do século XIX
dedicaram a maior parte de suas obras a ela. Anjo de candura, frágil e meiga como ela , a
mulher será representada nos primórdios de nosso romantismo como uma criatura sublime,
quase divina, rainha absoluta da sociedade.
Império das graças, ó sexo mimoso
Vós sois o princípio da nossa existência;
Dos nossos prazeres origem inefável;
Sem vós que seríamos?
...cantara já em 1833 Gonçalves de Magalhães, em seus Suspiros poéticos e saudades,
conclamando ainda:
Ó Anjos da terra, da Pátria ornamento,
Donzelas, esposas, e mães carinhosas,
Na luta que temos com o vil despotismo,
Mostrai-vos magnânimas.
Os vossos encantos de prêmio só sirvam
A quem ama a Pátria, ao sábio, e ao justo.
Deixai que os ociosos, e os nossos inimigos
No lodo revolvam-se.
A imagem feminina passará a sofrer diversas transformações com o advento do
realismo, mas seu papel de destaque nunca será contestado. Reiterando esse juízo, na alvorada
do século XX Afrânio Peixoto publicou o hinário Rosa mística: símbolo trágico em
63
O touro negro. 1961, p. 64.
64
José de Alencar. 1894, p. 47.
31
glorificação à Mulher, a este Onipotente feminino, o único Deus que adoro, o Espírito Santo
do Mundo”.
Os homens ainda não podem e não querem ver. Um dos maiores deles neste século, nos domínios
do pensamento, que tão longe e tão largo, que nunca recuou diante do mais absurdo paradoxo,
escreveu palavras de uma opacidade deplorável, de uma curteza mesquinha. “O homem, ensina
Zaratrusta, deve ser criado para a guerra e a mulher para descanso do guerreiro: tudo o mais é
loucura”. “A felicidade do homem tem nome: eu quero. A felicidade da mulher tem nome: ele
quer”. Que esperar dos outros, dessas mediocridades acanhadas que pululam aí afrontosamente e
que dirigem o mundo?
65
Peça inicial de uma tetralogia sobre o sexo feminino, a Rosa mística seria mais tarde
renegada pelo autor e o projeto seria abandonado, figurando em seu lugar o romance A
esfinge, onde demonstrará a mesma perplexidade dos realistas diante da mulher, criatura
certamente divina mas incompreensível. Seja como for, seu impulso juvenil guarda, em 1900,
ecos do romantismo mais esplendoroso.
Poema da vida real”
66
, como comentaria Jode Alencar, o romance deveria atender
à duas prerrogativas: entremear o colorido fugaz e vívido da realidade, a “cor local”, aos altos
vôos da imaginação, sempre em busca do progresso da civilização brasileira. No juízo de
Machado de Assis, tido como um dos maiores críticos literários do período, “a simples
narração de um fato não constitui um romance, fará quando muito uma gazetilha; é a mão do
poeta que levanta os acontecimentos da vida e os transfigura com a varinha mágica da arte”
67
.
O romancista detinha o poder de corrigir a natureza e principalmente os males da sociedade,
condenando seus vícios e apontando as vias de sua superação. O romance tem contra o seu
legítimo fim comprometer a lição da verdade pelas prevenções contra a imaginação”, diria
Macedo, “que deve ser exclusivamente a fonte de ornamentos da forma e de circunstâncias
acessórias e incidentais que sirvam para dar maior interesse ao assunto; no seu fundo, porém,
o romance precisa conter e mostrar a verdade para conter e mostrar a moral
68
.
Ainda que a “cor local” fosse imprescindível para o romance romântico a
estruturação geográfica das cenas parece buscar certa universalidade, certamente para
alcançar um número maior de leitores. Em A bolsa de seda, publicada na compilação Os
romances da Semana, Macedo dizia a seus leitores que, angustiado por não encontrar um
tema para seu folhetim dominical, rogou pragas a seus leitores, atirou as penas para baixo da
mesa, tomou seu chapéu e saiu de casa.
65
Rosa mística: símbolo trágico. 1900, p. 02-03.
66
Como e porque sou romancista. 1990, p. 41.
67
Crítica literária. 1959, p. 62.
68
As vítimas-algozes. 1991, p. 124.
32
Não sei bem onde me achava; importa pouco para esta minha scena a questão do teatro; pode
representar-se em qualquer rua, em qualquer praça ou em qualquer hotel: é uma scena que serve
em qualquer teatro, como há em certos teatros decorações que servem para todos os dramas
69
.
É claro que as páginas seguintes estarão repletas de referências às ruas da corte, à
eventos históricos do conhecimento de todos e à lugares que os leitores deveriam conhecer de
cormas convinha sempre manter o cenário em suspenso, para que a imaginação de cada um
suprisse determinados detalhes, para que cada um pudesse se sentir mais próximo dos eventos
narrados.
Além disso, em inúmeros casos a narrativa que os leitores tinham em mãos não havia
sido “criada” pelo romancista, mas apenas retocadas por suas penas. Confiadas aos escritores
por amigos próximos, leitores assíduos ou mesmo por indivíduos completamente
desconhecidos, as histórias apresentadas ao público guardavam unicamente acontecimentos
realmente reais que deviam ser expostas ao mundo, senão como episódios curiosos e
edificantes, como exemplos e alertas aos incautos leitores.
É uma história curiosa a que lhe vou contar, minha prima”, diria o narrador de Cinco
minutos, publicado por José de Alencar, “mas é uma história, e não um romance”
70
. O
manuscrito intitulado Memórias de um condenado, que seria mais tarde ganharia o título de A
condessa Vésper, teria sido entregue à Aluízio Azevedo por um preso por intermédio de uma
velhinha, acompanhado de uma carta dirigida ao romancista:
ao senhor, que conta apenas vinte e três anos de idade, e conhece tão profundamente o coração
dos seus semelhantes, não será com certeza indiferente a história do meu amor, nem lhe
repugnao as confidências enviadas deste cárcere, onde um desgraçado chora e padece, menos
pelos remorsos do seu crime do que pelas saudades da suatima.
O manuscrito que a esta carta acompanha, feito ao correr da pena sob a imediata impressão dos
acontecimentos relatados é flagrante cópia da verdade, e aspira servir de medonho espelho a
outros infelizes, que se deixem como eu cegar por um amor irrefletido
71
.
Observadas estas características, vejamos como Joaquim Manuel de Macedo
“inaugurou” o romance em nossas letras.
1844: o ano de A moreninha
Superar o classicismo, o manto roto herdado de Homero que ainda cobria nossas
musas, não foi uma tarefa fácil, como podemos perceber ao tomar contato com a produção
poética de Machado de Assis, mas instaurar o romantismo em nossas letras nos custou muitos
69
Os romances da Semana. 1937, p. 08.
70
Cinco minutos. 1991, p. 13.
71
A condessa Vésper. 1959, p. 30.
33
esforços especialmente no que diz respeito ao romance, tido como a manifestação literária
mais genuína da estética que se espraiava radiante.
Ainda que Macedo seja considerado o pai do romance nacional, outros vultos já
haviam se lançado à empresa de inaugurar o gênero em nosso país, tido como a maior
expressão da moderna escola romântica. João Manuel Pereira da Silva publicou em 1839 dois
romances históricos”, O aniversário de D. Miguel em 1828 e Religião, amor e pátria;
Varnhagen publicou em 1840 o romance O descobrimento do Brasil crônica do fim do
século XV; Jose Rufino Rodrigues de Vasconcelos publicou o folhetim O homem misterioso, e
Pereira da Silva publicou Gerônimo Corte Real e ainda O sedutor nas páginas do Despertador
Brasileiro, em 1840. Gonçalves Teixeira e Sousa, que estreara com a peça Cornélia em 1840,
publicaria em 1841 a novela As duas órfãs e em 1843 seu primeiro romance, O filho do
pescador tido oficialmente como nosso primeiro romance. Como comenta Roberto Alves,
contudo, a trama confusa e mal articulada da composição empobrecem o mérito de Teixeira e
Sousa, cabendo à Macedo a posição de criador do romance nacional, dado o devido
acabamento formal e a estrutura mpida de A moreninha
72
.
Gonçalves de Magalhães, sequioso de desbravar todos os donios do romantismo,
também lançou ao público um curto romance nas páginas da Minerva Brasiliense, intitulado
Amância. Para que o leitor possa avaliar senão a superioridade, pelo menos as razões pelas
quais Macedo triunfou literariamente sobre seus pares na criação do romance nacional, cabe
aqui uma exposição das linhas iniciais da obra de Magalhães:
ia cortando a baía do Rio de Janeiro para a capital a última barca de vapor, toda iluminada e
apinhada de famílias, que na graciosa cidade de Niterói haviam passado a tarde de um domingo.
As estrelas estavam encobertas por uma nuvem escura que anunciava chuva, e em toda a extensão
da praia, tão animada durante o crepúsculo, só se ouvia agora o melancólico mugido das vagas. Ao
dia tinha sucedido a noite, e com ela desceu sobre a cidade dos prazeres campestres o silêncio e a
calma exterior, enquanto algumas casas por dentro iluminadas mostravam que ainda não tinham
cessado todos os divertimentos. Em uma dessas casas cantavam e dançavam, vendo ao través das
vidraças a claridade repentina dos relâmpagos.
No meio de uma bela companhia de moças que fazem esquecer as horas, não me importei com a
última barca de vapor que saíra, projetando voltar em uma falua quando cessasse o sarau.
Estávamos tomando chá, repetindo charadas, e contando anedotas, quando bateram à porta.
Entre quem é, disse a dona da casa.
Entrou um homem bem parecido, todo vestido de preto, e só por esse modo de trajar, qualquer que
ali o não conhecesse diria ser pessoa grave, e que não para se divertir tinha ido a Niterói.
Oh, Sr. Doctor! V
a
S
a
por aqui a estas horas! Sem dúvida veio ver algum doente? disse a dona da
casa.
72
A moreninha. 1997, p. 149.
34
De certo; e estou desesperado, não pelo doente, mas pela última barca que se foi. A noite está
tempestuosa, e não tenho remédio senão ir para a cidade em uma falua...
Meu Doutor, disse-lhe eu, terá companhia, porque também estou aqui invernado.
Quer entretanto tomar uma jaqueta? Francisca, traze de lá uma jaqueta, disse a dona da casa.
Ora Sr. Doctor, tomeu uma xícara de chá, disse-lhe uma das moças, e conte-nos alguma novidade
para entreter-nos até passar a chuva.
Que lhes hei de contar, minha priminha? Eu não sei senão casos de doentes.
Pois não! O senhor que é capaz de falar um dia inteiro sem comer nem beber, só tomando pitadas!
Veja agora se quer que o roguem!
Sr. Doctor, disse outra moça, conte aquele caso da moa que se atirou no mar e que o Sr. viu.
Enquanto entre o Dr. e as duas meças se passava esta conversação, outras pessoas em grupos
diversos riam-se e falavam de outras coisas.
Pois bem, disse o Doutor, vou contar-lhe os caso, minhas senhoras, mas quando acabar cada uma
me há de dar um abraço. Estão por isso?
s lho prometemos. Escutem, meus senhores, minha mãe, prima, maninha, venham ouvir uma
história muito bonita.
O Doutor, tomando uma pitada, assim começou
73
.
Com a grafia mais desgovernada, ainda que definitiva, visto que estamos
transcrevendo a segunda edição do romance, Magalhães passa a nos contar uma história
bastante simples, mas com todos os elementos da estética romântica e, acima de tudo,
extremamente moralizante. A trama registra as agruras de um casal de namorados em busca
da felicidade. O Capitão Jorge e a jovem Amância se amam desesperadamente, mas a moça
fora prometida por seu pai à um velho capitalista endinheirado. Indignados, os jovens
resolvem fugir juntos mas se desencontram na noite fatal, quando um bom doutor toma
conhecimento de seus intentos e resolve ajudá-los revoltado com a decisão arbitrária e
ultrapassada do pai da moça. Pouco trabalhada, a trama se encerra do mesmo modo que se
iniciara, fulminante:
Assim terminou o Dr. a sua história, e uma das moças que atenta o escutara, lhe perguntou:
– E o tal Norberto que fim levou?
Continuou a negociar e a ganhar dinheiro; e no ano passado embarcou para Portugal, afim de
gastá-lo.
E os amantes casaram-se?
Por sinal fui eu um dos padrinhos. Vivem felizes. O Capitão reformou-se, e está hoje rico, com
uma fazenda de café. tem dois filhos. E com esta me vou, que a lua saiu. Adeus, até outro
dia
74
.
O romance explora o contraste entre sensibilidades em choque, os velhos costumes
herdados da colonização portuguesa face aos novos costumes civilizados” então pautados
pelo romantismo. Ao passo que o bom doutor representa a modernidade ilustrada, defendendo
73
Amância. 1865, p. 347-49.
74
Amância. 1865, p. 391.
35
os valores “civilizados” apregoados pelo romantismo em voga, Amância e o capitão Jorge
representam a juventude no total vigor de sua individualidade, dispostos a romper com as
convenções sociais mais caras em busca de suas felicidades e no período abandonar o seio
familiar consistia em uma ousadia extrema, tanto para mulheres quanto para homens que
provavelmente passariam a viver à margem da sociedade. Por outro lado, devemos destacar
que a sentimentalidade romântica apresentada por Magalhães assumia feições aguçadas
demais, talvez mesmo exageradas, certamente pouco usuais no período, como podemos
observar em uma das cartas desesperadas do capitão à sua amada, no auge de seus receios
pelo casamento funesto:
No momento do sacrifício, à face de Deus e dos homens, tu me verás surgir como um espectro do
sepulcro, no meio dos assistentes... Ver-me-ás morrer, e o meu sangue cairá sobre ti. Com a
desesperação n’alma, e o inferno no meu peito, juro que cumprirei o que digo. Adeus, a o
momento da minha morte
75
.
A estréia de Joaquim Manuel de Macedo guarda algumas das características do
romance de Magalhães, como o contraste entre sensibilidades hisricas distintas e a
exacerbação das belezas naturais do Rio de Janeiro, mas com um tom mais ameno e
estilisticamente mais rebuscado, preocupando-se mais em “retratardo que em “prescrever”
hábitos e costumes. Observe o leitor o início de A moreninha, publicado apenas alguns meses
depois de Amância:
Bravo! exclamou Filipe, entrando e despindo a casaca, que pendurou em um cabide velho.
Bravo!... interessante cena! mas certo que desonrosa fora para casa de um estudante de medicina e
já no sexto ano, a não valer-lhe o adágio antigo: o hábito não faz o monge.
– Temos discurso!... atenção!... ordem!... gritaram a um tempo três vozes.
– Coisa célebre! acrescentou Leopoldo. Filipe sempre se torna orador depois do jantar...
– E dá-lhe para fazer epigramas, disse Fabrício.
Naturalmente, acudiu Leopoldo, que, por dono da casa, maior quinhão houvera no cumprimento
do recém chegado; naturalmente, Bocage, quando tomava carraspana, descompunha os médicos.
C’est trop fort! bocejou Augusto, espreguiçando-se no canapé em que se achava deitado.
Como quiserem, continuou Filipe, pondo-se em hábitos menores; mas, por minha vida, que a
carraspana de hoje ainda me concede apreciar devidamente o meu amigo Fabrício, que talvez
acaba de chegar de alguma visita diplomática, vestido com esmero e alinho, porém, tendo a cabeça
encapuçada com a vermelha e velha carapuça do Leopoldo; este, ali escondido dentro de seu robe
de chambre cor de burro quando foge, e sentado em uma cadeira o desconjuntada que, para o
cair com ela, põe em ação todas as leis de equilíbrio, que estudou em Pouillet; acolá, enfim, o meu
romântico Augusto, em ceroulas, com as fraldas à mostra, estirado em um canapé em tão bom uso,
que ainda agora mesmo fez com que Leopoldo se lembrasse de Bocage. Oh! V. S.
as
tomam café!...
Ali o senhor descansa a xícara azul em um pires de porcelana... aquele tem uma chávena com
belos lavores dourados, mas o pires é cor-de-rosa... aquele outro nem porcelana, nem lavores, nem
cores azul ou cor-de-rosa, nem xícara... nem pires... aquilo é uma tigela em um prato...
– Carraspana!... carraspana!... gritaram os três.
75
Amância. 1865, p. 367.
36
Ó moleque! prosseguiu Filipe, voltando-se para o corredor, traze-me café, ainda que seja no
púcaro em que o côas; pois creio que, a não ser a falta de loas, já teu senhor mo teria oferecido.
– Carraspana!... carraspana!...
– Sim, continuou ele, eu vejo que vocês...
– Carraspana!... carraspana!...
– Não sei de nós quem mostra...
– Carraspana!... carraspana!...
Seguiram-se alguns momentos de silêncio; ficaram os quatro estudantes assim a modo de moças
quando jogam o siso. Filipe não falava, por conhecer o propósito em que estavam os três de lhe
não deixar concluir uma proposição, e estes, porque esperavam vê-lo abrir a boca para gritar-
lhe: carraspana!...
76
Muito mais ágil, dinâmico e leve, o romance de Macedo nos apresenta alguns
enunciados que serão mantidos durante toda narrativa, em perfeita consonância com o
desfecho que o completa e ilumina, como se o autor tivesse plena consciência de suas
potencialidades estilísticas e de estar diante de uma obra estruturalmente perfeita ao mesmo
tempo criando e explicitando o processo criativo em curso. Após pedir trégua aos
companheiros, Filipe finalmente convida os três amigos para um agradável fim de semana na
ilha de... Segundo ele, o principal atrativo da jornada serão suas primas, beldades irresistíveis
para os estouvados estudantes. Mostrando-se reticente para com o sexo feminino, Augusto
declina o convite, até que é desafiado pelo companheiro a resistir aos encantos de suas primas,
firmando-se então uma aposta: se no espaço de um mês o mancebo se apaixonar por uma das
belas feiticeiras – o que Filipe garante – ele deverá escrever um romance, narrando a trajeria
de seus acontecimentos; do contrário, “igual pena sofrerá o primeiro acordante”
77
. Não
precisamos de muito para adivinhar o resultado da aposta: o livro nos apresenta a derrota de
Augusto na mesma medida em que retrata seu venturoso casamento com a jovem Carolina
seu verdadeiro amor de infância casualmente reencontrado. A cena final do romance se passa
em uma gruta onde, inadvertidamente, o segredo dos dois jovens fora revelado, local onde
firmam seus votos de casamento.
A chegada de Filipe, Fabrício e Leopoldo veio dar ainda mais viveza ao prazer que reinava na
gruta. O projeto de casamento de Augusto e D. Carolina não podia ser um misrio para eles, tendo
sido, como foi, elaborado por Filipe, de acordo com o pai do noivo, que fizera a proposta, e com o
velho amigo, que ainda no dia antecedente viera concluir os ajustes com a Sra. D. Ana; e, portanto,
o tempo que se gastaria com explicações, passou em abraços.
Muito bem! muito bem! disse por fim Filipe, quem s o fogo ao da pólvora fui eu, eu que
obriguei Augusto a vir passar o dia de Sant’Ana conosco.
– Então estás arrependido?...
Não, por certo, apesar de me roubares minha irmã. Finalmente para este tesouro sempre teria de
haver um ladrão; ainda que foste tu que o ganhaste.
76
A moreninha. 1997, p. 15-16.
77
A moreninha. 1997, p. 20.
37
– Mas, meu maninho, ele perdeu ganhando...
– Como?...
– Estamos no dia 20 de agosto: um mês!
– É verdade! um mês... exclamou Filipe.
– Um mês!... gritaram Fabrício e Leopoldo.
– Eu não entendo isto! disse a Sra. D. Ana.
– Minha boa avó, acudiu a noiva, isto quer dizer que, finalmente, está presa a borboleta.
– Minha boa avó, exclamou Filipe, isto quer dizer que Augusto deve-me um romance.
– Já está pronto, respondeu o noivo.
– Como se intitula?
A moreninha
78
.
Repleto de referências históricas e geográficas locais, o livro conquistou os leitores ao
retratar de modo hábil e leve a sociedade fluminense do período, com seus estudantes
desorganizados, garotas namoradeiras, jogos e danças. Com apenas 15 anos, a graciosa
Carolina é uma personagem marcante na galeria macediana: irreverente e arrojada, ela
representa uma mulher à frente de seu tempo, que Mary de Wollstonecraft a ilustre
feminista inglesa – e que com seu charme encanta todos à sua volta. Em seu romance Macedo
criou o primeiro mito sentimental brasileiro, demarcando a especificidade da mulher
brasileira, agora em de igualdade senão de superioridade com as louras ou com as
pálidas européias. “Antenado” com as tendências de seu tempo, o autor concede atenção
também à temática indianista apregoada como expressão máxima da literatura nacional,
inserindo na trama uma lenda indígena que prenuncia e se intercala com o desenvolvimento
da história: a lenda de Aoitin e Aí, cujas desventuras se entrelaçam com as existências de
Augusto e Carolina.
Em termos de comportamento, podemos identificar no romance um embate entre
tendências “clássicas” e “ronticas”, que se desenvolve na trama como uma tensão entre
concepções amorosas. O romantismo, muitas vezes ironizado na trama, como uma “novidade”
ainda pouco comum em nossa sociedade, se sai vitorioso e é a própria razão de ser da trama –
impondo-se à revelia dos próprios personagens. O romantismo de Macedo é leve mas
imperioso o amor vence todos os obstáculos e o maravilhoso atravessa as páginas do
romance, conduzido e conduzindo as malhas do próprio destino.
Segundo Tania Serra, A moreninha causou furor na corte imperial: “todos queriam lê-
lo e comentá-lo”
79
. Seguiu-se uma aceitação unânime”, comenta Franklin vora, o Brasil
78
A moreninha. 1997, p. 140-41.
79
Joaquim Manuel de Macedo ou Os dois Macedos: a luneta mágica do II Reinado. 1994, p. 36.
38
inteiro leu o livro e teve para ele a consagração que merecia tão espontânea manifestação do
gênio nacional”
80
.A obra foi um verdadeirobest-seller” – num período em que raramente um
livro vendia mais de duzentos exemplares, sua primeira tiragem de mil volumes logo se
esgotou. Esse sucesso se deu por uma arguta estratégia de Macedo, segundo Ubiratan
Machado, “pioneira das vendas domiciliares de nosso século”: “mal apanhou os exemplares
na Tipografia Americana, encarregou alguns escravos de vendê-los de porta em porta. Com os
volumes enfiados num cesto, como se fossem apetitosas guloseimas, lá partiam os
improvisados vendedores”
81
percorrendo os bairros da capital. O êxito do livro foi tão grande
que no ano seguinte sua segunda edição novamente se esgotou em pouco tempo, alcançando
pelo menos mais 150 reedições até os dias de hoje além de adaptações para os quadrinhos,
cinema e televisão. Por outro lado, Macedo nunca mais terá tamanho êxito: sua estréia marca
também sua obra máxima.
“A curiosidade do público brasileiro por si mesmo era então claramente maior do que
a sua curiosidade pela invenção literária”
82
, comentaria Wilson Martins sobre o triunfo
literário de Macedo, e sua marca maior foi a simplicidade – como notou Franklinvora:
O trabalho de Macedo é tanto mais valioso, quanto a nota do momento na literatura era a nota
plangente. Os poetas choravam na mais alegre fase da vida. Lastimavam-se no verso quando eram
na realidade felizes. Diziam-se traídos quando as amantes mais morriam por eles. Não foi esta uma
das menores enfermidades do romantismo – criar um estado ideal que contrastava com o real.
Macedo teve o raro talento de não se deixar arrastar pelo sestro que dominava os românticos. Na
Moreninha deparou-se ao público a cópia de uma feição vivaz da sociedade, tal qual era. E s
sabeis o que era a corte então: era alegre, e não triste como se fingiam os poetas; tinha e o a
descrença de hoje. A leitura amena fazia as delícias do lar doméstico, onde agora não se lê.
Estávamos numa como primavera. A Moreninha saiu do seio da família representando esse estado
da alma nacional sem exaltações mórbidas; foi uma repercussão do nosso sentimento brando e
musical
83
.
A moreninha foi publicada quando o autor ainda ocupava as cadeiras da Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, e nesse mesmo ano ele se doutora com uma tese igualmente
romântica, intitulada Considerações sobre a nostalgia. Abordando a estranha enfermidade
que assolava aqueles que se encontravam distantes de sua pátria natal, e não o melancólico
sentimento que nos arrasta para o passado, tal como o compreendemos hoje, Macedo
enveredaria ainda por dois temas extremamente polêmicos: a completa e total igualdade entre
os sexos e a abolição da escravidão.
80
Primeiro discurso como orador do IHGB. 1882, p. 513.
81
A vida literária no Brasil durante o romantismo. 2001, p. 77.
82
História da inteligência brasileira. 1977, p. 301.
83
Primeiro discurso como orador do IHGB. 1882, p. 512-13.
39
No ano seguinte, Macedo se associou ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e
publicou seu esperado e muito bem sucedido segundo romance: O moço loiro. Vemos
aqui o autor dedicando sua pena à moralização do povo brasileiro, tomando como tema a
educação familiar assunto muito em voga no período. Rachel e Honorina são duas amigas
de infância que tiveram educações totalmente distintas: a primeira, criada na cidade, foi
ensinada por seu pai a ver maldade e corrupção em tudo, inclinando-se a desconfiar de todos
que a rodeiam; já a segunda, criada no campo, foi educada para encontrar bondade e graça em
tudo, mostrando-se mais inclinada ao contato social. Uma é pura astúcia, aponta Macedo, e a
outra é pura emoção: duas qualidades que sozinhas nunca comem uma boa formação.
Como nos mostrará no decorrer da história, ambas não estavam preparadas para o convívio
social que as aguardava. A trama gira em torno da família de Honorina, que se às voltas
com um misterioso jovem que aspira pelo amor da moça o moço loiro do título. Alternando
descrições sociais, cenas de graça e ternura e momentos de pânico e terror, Macedo come
um grande mosaico da sociedade carioca oitocentista, demonstrando aos jovens a importância
dos pais e a estes a importância de uma educação amorosa mas firme, buscando normatizar as
relações familiares do período ainda eivadas de certos traços do tradicional modelo
patriarcal vivamente descrito por Gilberto Freyre em seus estudos Casa grande & senzala e
Sobrados e mucambos.
Em 1846, encontramos Macedo clinicando em Itaborano em que publica O amor
do vate, o poema-líbelo a que já nos referimos. Estaria ele insatisfeito com o reconhecimento
do público, que acolheu tão bem seus dois primeiro rebentos? A situação da literatura no país
ainda não era a ideal, o que pode ter influenciado o poeta. De qualquer modo, no próximo
ano, ele se muda para a cidade de Porto das Caixas, seguido por seu irmão, o farmacêutico
João Coutinho de Macedo
84
. Seu status como literato es se consolidando e ele recebe o
título de Cavaleiro da Ordem da Rosa valiosa conquista para sua trajetória pessoal,
especialmente porque pode ter alavancado seu matrimônio. Segundo Tania Serra o namoro
entre o escritor e Maria Catarina Sodré prima de Álvares de Azevedo teria se estendido
por dez longos anos, regulados pelo pai da noiva, Baltasar Sodré, grande usineiro da região
que não via o possível genro com bons olhos um jovem de imaginação forte sem quaisquer
perspectivas sociais. Essa longa espera fez com que a moça adoecesse, e o médico da família
receitou” o casamento como única forma de salvação de sua vida. Como já vimos a literatura
o gozava de grande prestígio, e essa situação pode ter originado O amor do vate... O terrível
84
SERRA, Tania. Joaquim Manuel de Macedo ou Os dois Macedos: a luneta mágica do II Reinado. 1994, p. 51.
40
Baltasar era um honorável membro da Ordem da Rosa e talvez o título de Macedo tenha
facilitado as coisas, ao lado da estranha enfermidade da moça provavelmente uma crise de
histeria, patologia que mais tarde será retratada por toda uma geração literária e,
pioneiramente, pelo próprio Macedo.
A poesia de Gonçalves Dias
Pouco sabemos de certo sobre o casamento de Macedo: o fato é que em 1848 nosso
autor estaria vivendo na corte imperial, casado. Segundo as indicações de Tania Serra,
Catarina deveria gozar uma vida bastante abastada no seio familiar e aparentemente seu
marido buscaria lhe proporcionar uma existência à altura, cheia de pompas e mimos. Seja
como for, em 1847, contudo, o público carioca foi presenteado com os versos de um jovem
poeta que em breve se tornaria amigo de Quinquim Manuel e completaria a plêiade suprema
da primeira geração romântica: Antônio Gonçalves Dias.
Gonçalves Dias foi sem vida alguma o maior poeta brasileiro do século XIX.
Incansável e determinado como poucos, coube à ele a tarefa de levar a cabo a criação de uma
poesia efetivamente nacional apenas esboçada e anunciada pelo autor dos Suspiros poéticos e
saudades. Ao passo que Magalhães folgaria antes com o canglor das armas, com a confusão
das pelejas, “com o estrépito dos ginetes, com o atroar dos canhões, com o estrondoar da
natureza convulsa e cortada de tempestades”, no juízo de Antonio Henriques Leal, Dias
dedilharia a “suave e doce harpa do menestrel”, entregando-se ao trinado e gorjeio das aves,
ao balido das ovelhas, ao perfume das flores e aos sons da natureza em repouso
85
. O leitor
teve oportunidade de conhecer as artes poéticas de Magalhães e Macedo, e poderá aquilatar
a superioridade dos versos de Gonçalves Dias com as passagens iniciais da célebre
composição Seus olhos:
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
Estrelas incertas, que as águas dormentes
Do mar vão ferir;
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Têm meiga expressão,
Mais doce que a brisa, – mais doce que o nauta
De noite cantando, – mais doce que a flauta
Quebrando a solidão.
85
Antonio Gonçalves Dias: notícia de sua vida e obra. 1875, p. 279.
41
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
São meigos infantes, gentis, engraçados,
Brincando a sorrir.
São meigos infantes, brincando, saltando
Em jogo infantil,
Inquietos, travessos; – causando tormento,
Com beijos nos pagam a dor de um momento,
Com modo gentil.
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Às vezes luzindo, serenos, tranqüilos,
Às vezes vulcão!
86
Ainda que seja lembrado vivamente por suas composições indianistas e ricas, muito
mais leves e belas que as de seus pares no período, Goalves Dias foi um poeta imensamente
amargurado talvez o mais trágico de nossa primeira geração. Sua trajetória nos apresentará
amplamente o calvário dos gênios que observamos linhas atrás, bem como a destruição dos
mais belos sonhos de uma juventude esplendorosa. Ao concluir o prólogo de seus Primeiros
cantos, em 1846, ele já declarara que a dedicação à poesia seria sempre digna de louvor e o
valor de sua primeira publicação residia unicamente nessa dedicação. O blico o julga;
tanto melhor se ele o despreza, porque o Autor interessa em acabar com essa vida desgraçada,
que se diz de Poeta”
87
. Na abertura de seus Últimos cantos, publicados em 1850, sua nota já
decaíra sombriamente:
Eis os meus últimos cantos, o meu ultimo volume de poesias soltas, os últimos harpejos de uma
lira, cujas cordas foram estalando, muitas aos balanços ásperos da desventura, e outras, talvez a
maior parte, com as dores de um espírito enfermado, – fictícias, mas nem por isso menos agudas,
produzidas pela imaginação, como se a realidade já não fosse por si bastante penosa, ou o espírito,
afeito a certa dose de sofrimento, se sobressaltasse de sentir menos pesada a costumada carga
88
.
Em 1853, o poeta escreveria ao amigo Alexandre Teófilo de Carvalho Leal:
Nas minhas horas de tristeza, e de pesar, que as tenho, e muito, sinto de te não ver ao meu lado:
deixo-me vencer do desânimo, e na idade que é para os outros (tinha trinta anos então), a força da
vida, a morte se me antolha às vezes como uma grande, imensa felicidade.
Admiras-te? Que lhe hei de e fazer se é culpa da minha organização? Com ela esta me parecendo
que ainda no céu teria motivos para me reputar infeliz
89
.
Gonçalves Dias nascera em agosto de 1823, no Maranhão. Começou a estudar com
sete anos de idade e seguiu para a Europa em 1837, formando-se em Direito após inúmeros
percalços. Durante esse período o poeta entrou em contato com o romantismo que se
espraiava, esboçou alguns romances e coms alguns dramas, lançando-se desde já à carreira
86
Poesias. 1926, vol. I, p. 57.
87
Poesias. 1926, vol. I, p. 07.
88
Poesias. 1926, vol. I, p. 16.
89
LEAL, Antonio Henriques. Antonio Gonçalves Dias: notícia de sua vida e obra. 1875, p. 177.
42
que o deveria conduzir à glória. Ao retornar ao Brasil, em 1845, “só em composições
poéticas, possuía o equivalente de um volume”
90
, extraviadas, no entanto, em mãos de um
amigo, como comentaria Wilson Martins.
“Para a capital do nosso império estavam, pois, a impelir o poeta seus incontáveis e
extraordinários merecimentos literários”, como comentaria Antonio Henriques Leal, e em
julho de 1846 encontraremos Dias no Rio de Janeiro, hospedado em dos melhores e mais
caros hotéis da corte uma reminiscência da vida acadêmica, na opinião de seu fiel
biógrafo
91
. Nesse ano ele dedicará e recitará um soneto em homenagem ao Imperador e em
breve ingressará às fileiras do IHGB, bem como ao corpo de docentes do Imperial Colégio de
Pedro II. Fundaa revista Guanabara, como já mencionamos, em 1849, e será enviado para
Paris em 1851, encarregado de examinar documentos históricos que interessassem ao país. De
volta à pátria, o poeta conhece o maior amor de sua vida, a jovem Ana Amélia, mas por conta
de preconceitos raciais a família da moça se nega às pretensões do casal.
Em setembro de 1853, inadvertidamente, o poeta leva ao altar a senhora Olímpia
Coriolana da Costa, com quem parte, acompanhado de uma cunhada, para a Europa em junho
de 1854, encarregado de estudar os diversos métodos de instrução pública do velho mundo,
bem como de coligir documentos importantes à história do Brasil. Após ser calorosamente
recebido pelos intelectuais de Lisboa, especialmente por Alexandre Herculano e por Castilho,
Gonçalves Dias tem a ventura de segurar em seus braços sua primeira e única filha, Joana, no
mês de novembro graça suprema de sua vida, visto que nunca nutrira grandes afeições pela
esposa. Deixemos que Antonio Henriques Leal, dedicado amigo e biógrafo do poeta, nos
conte este evento:
Nasceu-lhe a 20 de novembro, em Paris, uma filha, fruto do seu consórcio; mas tão fraca e
enfermiça, que entendeu ser-lhe útil, como também à mãe, que padecia do clima da Europa, uma
viagem d’alto mar e mudança para os ares pátrios. N’essa conformidade mandou-as para o Rio de
Janeiro em companhia do sogro. A 17 de abril de 1855 já se achavam ali, onde não houve cuidado
nem medicina que valessem à criancinha, que a 24 de agosto, dia imediato ao do aniverrio do
nascimento do poeta, já estava na mansão dos justos
92
.
Longe de sua esposa, o poeta se entrega à vida diplomática. Em 1858 ele retorna ao
Brasil para chefiar uma expedição científica ao norte do país, a célebre e mal fadada
Expedição das borboletas” que se extingue graças à combates internos das secretarias do
Império. Buscando alívio para sérios problemas de saúde, Gonçalves Dias parte novamente
para a Europa em 1862, entregando-se aos cuidados dos melhores profissionais de Vichy,
90
História da inteligência brasileira. 1977, vol. II, p. 348.
91
LEAL, Antonio Henriques. Antonio Gonçalves Dias: notícia de sua vida e obra. 1875, p. 77.
92
Antonio Gonçalves Dias: notícia de sua vida e obra. 1875, p. 115.
43
Marienbad e Dresde, seguindo mais tarde para Teplitz consolado sempre em suas andanças
pela presença dos amigos Porto Alegre e Gonçalves de Magalhães, com quem se encontra em
Berlim, Bruxelas, Schweizermühle e Paris. Desgostoso da vida e sem perspectivas de
progresso, o poeta resolve retornar uma última vez à sua pátria natal no início de setembro de
1864, desejando ao menos morrer entre as palmeiras de sua infância desejo que lhe foi
tragicamente negado: no dia três de novembro o navio Ville de Boulogne, que transportava o
poeta, naufragou na costa maranhense, há poucos metros do porto... Todos a bordo se
salvaram, menos Dias, que segundo o capitão do navio estava morto. Alguns sugerem,
contudo, que ele foi esquecido em seu leito, fraco demais para tentar se salvar... “Mísero e
mesquinho poeta!”exclamaria Antonio Henriques Leal:
Infeliz ao ver a luz, mais infeliz ainda ao despedir-se dela! Nasceu às ocultas, no meio das florestas
e de ventre impuro; morreu no mar de morte angustiada, e seu cadáver, insepulto e agitado pelas
vagas, desapareceu no meio delas!
Voltemos, no entanto, à trajetória de Macedo e ao ano de 1848, quando nossos
românticos ainda se inebriavam com seus sonhos mais risonhos: nas páginas do romance Os
dois amores ele retratará o drama de um jovem pobre, de nome expressivo, ndido, que por
sua posição social julga o ter direito à mulher amada, Celina mais abastada do que ele. A
pobreza é um tema caro ao autor, que já havia se referido a ela em O amor do vate, na
passagem em que diz que ao pobre não resta “amor, nem amizade”; aqui Macedo dirige seu
libelo à “sociedade que governa”, com sua preferência inaudita “que em tudo se mil vezes
ao rico sem mérito algum, sobre o homem que, sendo embora distinto, é todavia pobre”
93
.
Sabeis qual é”, indaga ele, “e qual será o resultado de tudo isto”?
É que hoje o pobre não tem amor às instituições, nem confiança no governo; porque as leis servem
somente de puni-lo, e o governo não cura de desprotegê-lo.
É que amanhã o pobre terá em desprezo a lei, e de desconfiar da sociedade que governa; e
depois de amanhã... e no futuro, num dia enfim que felizmente bem longe esainda, o povo pobre
que é muito mais numeroso do que o povo rico, perguntará àqueles que estão em cima se ainda
não é tempo de minorar-se o peso de sua cruz, se o seu calvário não se acaba de subir nunca.
É que hoje o pobre indiferente e sofredor, carrega o seu peso silencioso como o camelo, e um dia
mais tarde, – ai de nós se ele chegar! – levantará a cabeça, orgulhoso como o leão, e terrível como
o tigre
94
.
Com uma linguagem bastante simples mas direta o autor se dirige ao Imperador,
denunciando a corrupção dos demais setores do governo. Macedo enlaça assim os problemas
sociais de seu tempo às tradicionais narrativas amorosas, compondo um quadro bastante
verossímil da sociedade carioca. Após uma série de complicações é claro que nosso herói cai
93
Os dois amores. S/d, p. 67-68.
94
Os dois amores. S/d, p. 68-69.
44
nas graças de sua bela adorada, não sem antes ascender social e economicamente por meio de
uma herança inesperada. Como de praxe os bons são recompensados e os maus se regeneram,
com a descoberta de paternidades desconhecidas, diários roubados e baladas criptográficas
levadas ao piano, como os demais recursos folhetinescos do gênero. A secreta harmonia que
vibra os fios da trama desse romance não é tão melodiosa quanto à dos anteriores, ainda que
Wilson Martins julgue sua “carpintaria extremamente refinada”
95
.
Em 1849 as belas letras conhecem uma desejável efervescência, como já observamos,
e discursando na Academia de São Paulo a onze de agosto sobre a missão civilizadora das
universidades o jovem estudante Manuel Antônio Álvares de Azevedo nos o tom de sua
época:
bem haja aqueles de vós que tão bem a compreendem, a esses que por por nossa terra vão
acordando o amor literário, a essa mocidade que seguindo o impulso de um livro fadado a fazer
época em nossa história literária porque foi um livro criador – os Primeiros cantos do Sr.
Gonçalves Dias que veio regenerar-nos a rica poesia nacional de Basílio da Gama e Durão,
assinalada por essa melancólica Nênia de um gênio brasileiro que há dez anos sentou-se aqui nos
bancos acadêmicos
96
... bem haja essa mocidade que nos tem dado as suas inspirações de poeta, que
se ensaia na intimidade das Sociedades Literárias para os debates da tribuna e, apoderando-se da
grande alavanca da imprensa, começa a abrir as portas do Teatro Brasileiro aos talentos nacionais.
Bem haja ao Sr. Dr. Magalhães, o fundador do nosso Teatro; ao Sr. Dr. Macedo, autor desse Cego
tão poético e belo; ao Sr. Pena, mancebo tão rico de esperanças e gênio que se foi morrer na
terra estrangeira;o terem tão bem compreendido a sua missão
97
.
Devidamente instalado na corte carioca, Macedo deixa de lado a medicina para se
dedicar exclusivamente às letras, conquistando duas graças notáveis: sua nomeação para a
segunda cátedra de História e Corografia do Imperial Colégio de Pedro II, a três de abril, e um
cargo de suplência na Assembléia Provincial inaugurando assim sua carreira potica. Além
disso, em parceria com Araújo Porto-Alegre e Gonçalves Dias, Macedo funda neste ano a
revista Guanabara, tida como um prolongamento da saudosa Niterói. Segundo Roque
Spencer de Barros, a segunda, “nos seus dois únicos números, procurava oferecer as bases
teóricas para uma renovação espiritual e literária do Ps”, ao passo que a nova publicação
trataria “de consolidar a visão e os projetos românticos; aquela é um manifesto ou introdução,
esta, uma espécie de ‘comndio’, onde se abrigam as lões da nova visão do mundo, sob a
forma poética, filofica, ensaística, científica
98
.
95
História da inteligência brasileira. 1977, vol. II, p. 421.
96
Referência à uma obra do estudante Firmino Rodrigues da Silva, publicada em 1837, segundo Wilson Martins.
97
Discurso recitado na sessão acadêmica comemoradora do aniversário da criação dos cursos jurídicos no
Brasil – 14 de agosto de 1849. 1960, vol. I, p. 104-05.
98
A significação educativa do romantismo brasileiro: Gonçalves de Magalhães. 1973, p. 121.
45
Lançada no dia do aniversário do Imperador, os três literatos tiveram a feliz idéia de
levar pessoalmente um exemplar no paço de São Crisvão o que resultou em uma situação
bastante inusitada. “O Imperador reparou que Dias era o único a não usar uma comenda no
peito”, comenta Ubiratan Machado, e no dia seguinte, o poeta era condecorado com o hábito
de cavaleiro da Ordem da Rosa”.
Em vez de se alegrar, o poeta irritou-se com o procedimento imperial. Naquela época, o
condecorado tinha de comprar o distintivo. Dias recusou-se a tomar qualquer atitude, pois alegava
não querer ser confundido com tendeiros ou com negreiros, para os quais o que escrevia valia
apenas o papel, utilizado para embrulhar açúcar ou manteiga. Para sair do impasse, evitando
magoar o imperador e ao mesmo tempo convencer o homenageado de que a concessão era um
tributo ao seu talento e serviços à tria, Lisboa Serra comprou a comenda e presenteou-a ao
amigo
99
.
Aqueles que compraram os primeiros números da Guanabara foram presenteados com
mais um folhetim de Macedo, Rosa, romance de costumes que trata das relações amorosas na
corte imperial. Situada nos fins de julho do corrente ano, o que busca conferir ao texto maior
autenticidade, a trama se inicia com a chegada do comendador – e ‘velho namorador’
Sancho a casa de Maurício, que se encontra prestes à “uma retirada vergonhosa”.
– Pois ainda?!!! perguntou o recém chegado.
– Sempre! exclamou o velho Anastácio.
– E qual é hoje a ordem do dia?...
A mesma que foi ontem, e que será amanhã, respondeu Maurício; o mano faz como os nossos
deputados de todas as oposições; grita todos os dias e diz sempre a mesma coisa.
– A culpa é de todos os ministérios, porque suba quem subir, é sempre a mesma miséria.
– Mas por que ralhava agora o Sr. Anastácio?
Ora... porque, segundo ele, eu sou um doido varrido... porque estou perdendo minha filha, e
enfim porque cheguei a cometer a enormíssima loucura de aprovar o orçamento de despesa, que
ela julga que deve fazer para ir ao baile de amanhã
100
.
O ‘velho Anastácio’, como vemos, é o irmão mais velho de Maurício, morador da roça
que veio passar algum tempo na capital representando os tempos e costumes que se passaram,
figurando no romance como um contra-ponto dos novos hábitos fluminenses. O orçamento
pedido pela menina de 184$000 é considerado ridículo pelo comendador Sancho, ao que
Anastácio responde não se tratar do dinheiro, mas do futuro:
Eu digo, que a geração atual estando, como de fato está, desgraçadamente pervertida; que tendo
todos nós muito de que envergonhar-nos diante uns dos outros, não podemos contar com força
moral suficiente para regenerar a sociedade.
– Bem: e nesse caso?...
Neste caso, que não podemos preparar um futuro para nossos filhos, devemos ao menos
preparar nossos filhos para criar um futuro.
99
A vida literária no Brasil durante o romantismo. 2001, p. 97.
100
Rosa. 1954, p. 09.
46
– Fiquei na mesma.
– Eu digo, continuou o velho roceiro elevando a voz, que já que somos obrigados a deixar a nossos
herdeiros uma casa estragada pelo cupim, cumpre que leguemos ao porvir artífices capazes de
levantar casa nova.
– Cada vez o entendo menos.
– Eu digo, exclamou o velho, cujos olhos brilharam como dois vaga-lumes, que é preciso educar a
mocidade.
– Oh, meu Sr.! quer mais aulas do que as que temos?...
Aulas?... quem falou aqui em aulas?... algumas temos já, de muitas outras carecemos, e quantas
ainda se estabelecerem não serão de sobejo: a sociedade que governa as deve ao povo, que lhe
paga tributos de suor e de sangue: não é porém de instrução que eu trato agora; eu falo de
educação, Sr. comendador dos meus pecados, falo da educação, da educação doméstica e religiosa.
– Ah!...
– E sabe a quem cumpre muito particularmente dar essa educação à mocidade?... é ao sacerdote e à
mãe de família
101
.
Macedo aproveita essa discussão inicial para inserir na trama os preceitos moralizantes
da época, apresentando-nos um elemento novo em seus romances: a crítica à escravidão, já
esboçada em sua tese de doutorado. Tomando o velho Anastácio como seu porta voz”, o
autor destaca que
se a missão da mãe de família é árdua em toda a parte do mundo, no Brasil é particularmente
muito mais espinhosa, porque no Brasil cada homem guarda dentro de sua própria casa um
inimigo do coração de seus filhos, um poderoso elemento de desmoralização; em uma palavra,
porque no Brasil existe a escravatura”
102
.
Representando tanto um conflito de gerações como de costumes, campo vs cidade, o
autor nos assevera que “não é com uma vida toda passada em festas, bailes e teatros que uma
moça pode-se preparar para ser depois boa e cuidosa mãe de família”. A discussão logo é
interrompida pela mimosa jovem que vem pedir ao pai um crédito suplementar” ao
orçamento inicial, para desespero de Anastácio, e a história prossegue com seus habituais
desenlaces folhetinescos onde os bons são recompensados e os maus sofrem os piores castigos
– como o usurário André, que tem sua casa e seu capital devorados por um inesperado
incêndio, ou como o jornalista Faustino, que vendendo sua pena à três jornais da capital é
obrigado a se retirar para a Califórnia quando desmascarado. Estes detalhes nos são revelados
pelo jornal que o comendador Sancho lê ao final do livro, quando o estrepitoso movimento de
algumas carruagens chamam sua atenção para fora casa:
O comendador Sancho levantou-se, olhou, e quase que tornou a cair na cadeira desmaiado.
A carruagem que vinha adiante conduzia a Rosa e o Juca: a moça trazia na cabeça um u e uma
coroa de noiva, e estava radiante e bela como um anjo; no rosto do Juca resplandecia o amor e a
felicidade.
101
Rosa. 1954, p.11.
102
Rosa. 1954, p.12.
47
As outras carruagens levavam os pais dos noivos e as testemunhas do casamento.
Casados!... exclamou o pobre Sancho quando de falar: ei-la enfim também casada, e eu
esquecido no isolamento do celibato!...
E depois, saindo da janela, foi-se para dentro murmurando:
Eis a dona Rosinha também casada!... é a trigésima-sexta noiva que me escapa!... mas o diabo
me leve, se me escapar a trigésima-sétima
103
!...
Em meio a tantas conquistas Macedo sofre também um golpe do destino, com a
sentida morte de seu pai. O Brasil foi tomado em 1850 por uma terrível epidemia de febre-
amarela e é provel que Severino de Macedo Carvalho tenha sido mais uma de suas vítimas
assim como o filho, que no começo do ano teve poucas aparições publicas, faltando às
reuniões do IHGB e deixando de participar dos editoriais da Guanabara
104
. Tomado de
profundo descrédito pela medicina, que o de salvar seu ente querido, o autor decide
abandoná-la de vez, dedicando-se a partir de agora somente às letras onde, por outro lado,
continua aplicando seus conhecimentos, veiculando os saberes da medicina em seus
romances. Os corações e as almas de seus leitores precisavam de tanto auxílio quanto seus
corpos, e ao que parece o autor se sentia mais à vontade com a pena do que com o bisturi.
Embora tenha sido tão longo quanto todos os outros, o ano de 1852 contou com
poucas novidades, mas em junho, contudo, coma a ser publicado um estranho romance no
Correio Mercantil do Rio de Janeiro, contando a história de um jovem “Leonardo”, filho de
uma pisadela e de um beliscão. Assinada por “Um brasileiro”, a trama intitulada Memórias de
um sargento de milícias o gozou de muito prestígio em sua época, ainda que hoje seja
considerada um marco em nossa literatura. Passando-se no tempo do rei, isso é, antes da
proclamação da independência do Brasil, as páginas do romance registram as desventuras do
endiabrado Leonardo e os costumes brasileiros do período – certamente sua maior virtude.
Os folhetins causaram pouco impacto no público fluminense e mesmo com uma
tiragem pequena, seus exemplares em volume perderam-se no fundo da redação, comidos
pelos ratos ou pelo mofo”, o constituindo assim um sucesso literário. Nenhuma revista
literária se ocupou da obra: “aquilo não era literatura, concordariam. Vinte anos depois
Macedo ainda considerava as Memórias ‘um estudo ameno e preciso de antigos costumes do
país e de coisas nele passadas’”, e mesmo Bitencourt da Silva, fiel amigo do Maneco, julgava
que nas páginas do romance o talento do escritor “apenas de leve” se estampara
105
.
103
Rosa. 1954, p. 363.
104
Precisamente nos números 6 e 7, segundo Benedita de Cássia Lima Sant’Ana em A imprensa romântica de
língua portuguesa: uma leitura comparada entre os periódicos O Panorama (1837-1868) e Guanabara (1849-
1856). 2002.
105
REBELO, Marques. Vida e obra de Manuel Antônio de Almeida. 1943, p. 38.
48
Como sabemos, faltava ao romance a moralidade reclamada pelo blico e pela
crítica, inserida tardiamente na trama provavelmente como uma tentativa de redenção. A
hisria se encerra de modo abrupto, com a “reabilitação” social do jovem peralta pelo
casamento e pelo casamento sagrado: como soldado, Leonardo não poderia nunca subir ao
altar, mas “a iia de uma união ilegítima lhes repugnava”. “O amor os inspirava bem
106
,
como arremataria o narrador.
Discutimos há pouco, ainda que em breves linhas, a tipicidade dos desvarios da
juventude e As memórias de um Sargento de Milícias apenas corroboram sua
normatividade, visto que, claramente, com a avento da maturidade a “malandragem” de
Leonardo é deixada para trás. Seu pai, Leonardo Pataca, notoriamente, mesmo adulto, nos
exibe os comportamentos mais reprováveis, mas além de ser português, detentor de um
caráter distinto do nosso, portanto, representa ainda os costumes de um outro período
diferentemente de seu filho, portador de uma sensibilidade essencialmente brasileira.
Manuel Antônio de Almeida, o autor do romance, nunca mais voltou às belas letras,
senão por alguns artigos de crítica esporádicos, e faleceu em um naufrágio em 1861 –
justamente seu maior temor em vida. Formado também em medicina, foi no plano do
jornalismo que o intelectual alcançou maior notoriedade. Segundo Marques Rebelo:
natureza expansiva, imaginação brilhante, afetuosidade leal, parece que foi pau para toda obra em
matéria de redação, pois é Francisco Otaviano quem diz: “Adivinhava com alguns momentos de
atenção tudo o que o estudara e escrevia sobre assuntos examinados de relance como se de
longo espaço os tivesse aprofundado”, e Porto Alegre confirmava, “entre os seus colegas de
imprensa era Manuel Antônio de Almeida o que mais esclarecia os assuntos e com mais facilidade
encontrava o fio no drama das discuses”
107
.
A geração byroniana
No ano de 1853, Joaquim Manuel de Macedo busca trilhar a tradição gótica com o
romance Vicentina. A narrativa mescla o drama de um amor impossível às tradicionais
peripécias folhetinescas: terríveis vinganças, reencontro de filhos perdidos, mistérios
familiares que visam encobrir graves faltas do passado. Tudo começa durante a cavalgada de
Américo para a fazenda do senhor Mariano, onde pretende passar uma agradável temporada
de quinze dias, e a descoberta de uma misteriosa ermida, onde segundo os moradores locais
vive uma louca que, à beira de um precipício, entoa longas baladas banhadas pela luz da lua –
106
Memórias de um Sargento de Milícias. 1997, p. 156.
107
Vida e obra de Manuel Antonio de Almeida. 1943, p. 29.
49
“louca” que não vive só, contudo, mas acompanhada de uma anciã e de uma criança.
Desejando atender a curiosidade do visitante a família resolve convidar a fantasmagórica
tade para uma festa na fazenda, e à meia-noite a majestosa figura de uma mulher
completamente vestida de branco interrompe as festividades, atemorizando a todos.
As senhoras, pálidas e trêmulas de espanto e de terror, chegaram-se umas às outras sem poder
articular palavra! Leocádio deixou ouvir um surdo gemido e ficou quase desmaiado na cadeira; e,
durante alguns momentos, nem mesmo o dono da casa se levantou para receber a convidada
108
.
Envolta em diversas lendas e narrativas acerca do passado, a trama passa a esclarecer o
presente, condenando o luxo e a vaidade da família de Mariano e redimindo a família da
louca. Não faltam ao romance os habituais toques macedianos: primorosa descrição dos
costumes locais e elogio do campo em detrimento da cidade, mas sua marca maior é a
moralidade – qualidade não só desejada pelo público como pelos críticos da época.
O clima tico, por assim dizer, pairava no ar”: nesse ano é publicado o primeiro
volume das Obras de Álvares de Azevedo, bem como as Trovas, de Laurindo José da Silva
Rabelo. Bem entendido, Álvares de Azevedo falecera tragicamente no ano anterior,
inaugurando a chamada escola ou moda, como muitos preferem chamar byroniana, cujos
primeiros sussurros até então haviam se restringido aos donios da Faculdade de Direito de
São Paulo. José de Alencar, que concluíra seu curso de direito na cidade, vivenciou o raiar do
“movimento”:
Em 1845, voltou-me o prurido de escritor; mas esse ano foi consagrado à mania, que então
grassava, de baironizar. Todo estudante de alguma imaginação queria ser um Byron; e tinha por
destino inexorável copiar ou traduzir o bardo inglês
109
– p. 43.
A moda byroniana, no entanto, tomou vulto após a morte de Álvares de Azevedo,
contando ainda com os nomes lebres de Bernardo Guimarães, Cassimiro de Abreu e
Fagundes Varela, ainda que em períodos muito distintos. Sua marca maior foi o “mal do
século”, um certo spleen existencial que segundo alguns estudiosos não seria visto com bons
olhos pelo Imperador D. Pedro II interessado em escritores empenhados pelo país, não por
boêmios que se atiravam à todos os desregramentos (como Varela) ou que viviam perdidos
em suas contemplações.
Como já comentamos, Álvares de Azevedo era primo da esposa de Macedo, que
movido por real admiração pessoal, mera consideração familiar ou efetiva comoção literária
pela perda de um par potencialmente genial recitou um elogio fúnebre em sua cerimônia de
adeus – entoando ao final “uma poesia em que sua morte parece profetizada”, o célebre Se eu
108
Vicentina. 1954, p. 104.
109
Como e porque sou romancista. 1991, p. 43.
50
morresse amanhã, o canto do cisne”
110
. Por sua vez, desde cedo o sonhador Álvares de
Azevedo admirava os talentos e as glórias do autor de A moreninha contando inclusive com
seu renome como atrativo para uma publicação estudantil que nunca veio à lume, um jornal
que se chamaria Crepúsculo ou Estrela, como podemos observar em uma carta de nove de
setembro de 1850 destinada a Domingos Jaci Monteiro, primo e editor das primeiras obras do
poeta
111
.
Detenhamo-nos ainda um instante sobre 1853, quando a antiga Marmota na Corte, de
Francisco de Paula Brito, se transformava em A marmota fluminense, “jornal recreativo de
modas, romances e variedades” de grande influência na sociedade carioca. Mais do que a
publicação, certamente primorosa, interessa-nos a curiosa sociedade Petalógica, que
congregava ao seu redor uma gama de literatos e leitores privilegiados. A sociedade” se
reunia todos os sábados, em dois bancos situados à frente da loja de Paula Brito, congregando
os eventuais nomes de Machado de Assis, Manuel Antônio de Almeida, Casimiro de Abreu,
Gonçalves Dias, Araújo Porto-Alegre, Joaquim Manuel de Macedo, Salvador de Mendonça e
Henrique César Muzzio, entre muitos outros. Vejamos algumas lembranças de Machado de
Assis sobre a sociedade:
A Petalógica dos primeiros tempos, a Petalógica do Paula Brito – o café Procópio de certa época –
onde ia toda a gente, os políticos, os poetas, os dramaturgos, os artistas, os viajantes, os simples
amadores, amigos e curiosos, onde se conversava de tudo – desde a retirada de um ministério até à
pirueta da dançarina da moda; onde se discutia de tudo, desde o de peito de Tamberlick até os
discursos do Marquês do Paraná, verdadeiro campo neutro onde o estreante das letras se
encontrava com o conselheiro, onde o cantor italiano dialogava com o ex-ministro.
Cada qual tinha a sua família em casa; aquilo era a família da rua le ménage em ville entrar ali
era tomar parte na mesma ceia (a ceia vem aqui por metáfora) porque o Licurgo daquela república
assim o entendia, e assim o entendiam quantos transpunham aqueles umbrais. Queríeis saber do
último acontecimento parlamentar? Era ir à Petalógica. Da nova ópera italiana? do novo livro
publicado? do último baile do E...? da última pesa de Macedo ou Alencar? do estado da praça? dos
boatos de qualquer espécie? Não precisava ir mais longe; era ir à Petalógica. Os petalógicos,
espalhados por toda a superfície da cidade, lá iam, de saíam, apenas de passagem colhendo e
levando notícias, examinando boatos, farejando acontecimentos, tudo isso sem desfalcar os
próprios negócios de um minuto sequer
112
.
A literatura fluía como nunca: prova disso é a reedição de três romances de Macedo, O
moço loiro, Os dois amores e Rosa, cada um impresso por uma editora diferente, “o que
sugere urgência e, por conseqüência, larga demanda por parte do público
113
, na opinião de
Wilson Martins.
110
Elogio fúnebre transcrito por Tania Serra. Joaquim Manuel de Macedo ou Os dois Macedos: a luneta mágica
do II Reinado. 1994, p. 301.
111
Cartas de Álvares de Azevedo. 1976, p. 169.
112
Citado por Wilson Martins. História da inteligência brasileira. 1977, vol. II, p. 499.
113
História da inteligência brasileira. 1977, vol. II, p. 501.
51
Em 1854, no ano em que a populão carioca foi agraciada com a iluminação à gás,
surge a História geral do Brasil, de Francisco Adolfo de Varnhagem, cuja publicação se
estenderá até 1857. Não deve ser preciso destacar a importância da obra, que emulava em sua
totalidade o programa proposto por Karl Friedrich von Martius em sua memória Como se
deve escrever a história do Brasil vencedora, como sabemos, do concurso organizado pelo
Cônego Januário da Cunha Barbosa, em 1840. Martius foi o primeiro a notar a substancial
importância das três raças para a formação histórica do país, prevendo, contudo, desde então,
que o elemento branco buscaria sempre subjugar a potencialidade das demais e minorar sua
relevância nesse processo como efetivamente se sucedeu, inclusive na obra do próprio
Varnhagen que como único senão tomou aos índios o papel de destaque que o romantismo do
período esperava. Essa lacuna será preenchida por Macedo anos mais tarde, como veremos
adiante, mas o escritor português é tido até hoje como o pai da historiografia brasileira.
Em 1855, Macedo publica A carteira de meu tio, uma devastadora tira potica bem
ao gosto dos panfletos da época. Em meio às turbulentas discussões envolvendo a
Conciliação, conjunção de forças iniciada dois anos atrás pelo Marquês do Paraná, Honório
Hermeto Carneiro Leão, a obra satiriza a vida potica brasileira retratada em suas páginas
como um verdadeiro caos. Tributário da filosofia do eu, que busca sua satisfação pessoal
antes de qualquer coisa, nosso narrador julga que não vale a pena sequer se identificar:
eu sou sem mais nem menos o sobrinho de meu tio: não se riam, que não há razão para isso:
queriam o meu nome de batismo ou de família?... não valho nada por ele, e por meu tio sim, que é
um grande homem
114
.
As flanar pela França por cinco anos, onde fora estudar, sem assistir uma única aula
ou conhecer qualquer biblioteca por falta de tempo, o narrador comprou um diploma na
Alemanha – sem se dar ao menos o trabalho de examinar em que espécie de ciência – e voltou
ao Brasil com o esmalte da mais alta cultura, sequioso de adentrar o universo da potica
onde seu tio ocupava posição de destaque, como podemos imaginar. Radiante de alegria, seu
tio concorda sua grandiosa aspiração impondo-lhe, contudo, uma viagem pitoresca pelo país
com o intuito de conhecer seus graves problemas e adquirir maiores experiências de vida
viagem essa que deveria ser acompanhada por uma defunta, conduzida sabiamente junto ao
peito, defunta essa que estava enterrada no jardim sob o seguinte epitáfio: “aqui jaz quem
nunca viveu”. Aberto o caixão, o narrador se depara com a Constituição do Império, saudada
calorosamente quando saída do berço mas completamente esquecida em seguida.
114
A carteira de meu tio. 2001, p. 20.
52
Estas poucas linhas devem indicar ao leitor a tônica do romance, onde o narrador
tomará contato com um grandioso país imerso nas práticas poticas mais nefastas e com os
sofrimentos diários de homens comuns que sustentam a realeza da classe governante sem
quaisquer perspectivas de progresso.
Nesse mesmo ano, desde fevereiro, Macedo publica nas páginas da Marmota
fluminense mais um longo romance, O forasteiro tão bem acolhido que nesse mesmo ano
foi lançado em volume por duas editoras: um na tipografia de Paula Brito e outro na Casa
Garnier. Essa enxurrada de volumes não garantiu ao romance maior vitalidade, visto que nem
mesmo no acervo das maiores bibliotecas do país tivemos acesso à obra.
A polêmica sobre a Confederação dos Tamoios e a contestação da confraria literária
Em fins de 1854, no entanto, Gonçalves de Magalhães, o grande vulto de nosso
romantismo, havia aportado em terras tupiniquins, cioso de rever sua pátria e seus amigos,
trazendo na bagagem os originais de um extenso poema que certamente fulguraria nos céus
das letras pátrias como um grandioso monumento
115
talvez o maior de todos, como aliás
anunciavam desde 1851 Porto Alegre e Macedo nas páginas da Revista Guanabara
116
.
Transferido de seu cargo de Encarregado de Negócios Efetivos no reino das Duas Sicílias
para posto de iguais feições na Sardenha, Magalhães aproveitou o intervalo para visitar o
Brasil com o ímpeto sublime de entregar ao Imperador D. Pedro II, pessoalmente, tão valioso
tesouro nacional, a quem a composição era dedicada. A inspiração de tão interessante criação
iluminou o poeta em 1832, quando ainda vivia em Paris, e começou a tomar forma em 1847,
após dois terríveis golpes do destino: a morte de sua adorada mãe e de seus dois primeiros
filhos. Magalhães colocava todas as suas esperanças de imortalidade no poema
117
, e sua
efusiva recepção na corte parecia lhe garantir um futuro bastante risonho.
Logo foi organizada uma reunião para a apresentação do poema, no paço de o
Crisvão, e na tarde de trinta de janeiro de 1855 o poema foi recitado por extensas sete horas
diante do Imperador, que após sair do transe hipnótico resolveu “se responsabilizar pela
impressão e difusão do poema” em rica edição imperial
118
. Segundo Gonçalves Dias, que
115
MENEZES, Raimundo de. José de Alencar: literato e político. 1965. p.102.
116
BARROS, Roque Spencer Maciel de. A significação educativa do romantismo brasileiro: Gonçalves de
Magalhães. 1973, p. 112.
117
MACHADO, Alcantara. Gonçalves de Magalhães ou O poeta arrependido. 1936, p. 70.
118
MENEZES, Raimundo de. José de Alencar: literato e político. 1965. p.102; MACHADO, Ubiratan. A vida
literária no Brasil durante o romantismo. 2001, . 123.
53
ouvira uma declamação do poema em Paris, na casa do poeta Odorico Mendes, a arte
declamatória de Magalhães era tão insinuante e artística que se tornava difícil “aquilatar o
merecimento de alguma obra literária”
119
.
O público, porém, teve acesso à obra no como de junho no ano seguinte, quando
a notoriedade do evento já havia se dissipado. Ainda que os jornais mais tradicionais da corte
tenham, evidentemente, recebido o volume de modo elogioso, alguns dias depois um
misterioso “Ig” começou a estampar no Diário do Rio de Janeiro uma série de críticas
inesperadas ao poema
120
. Desejando apenas apresentar suas “impressões” de leitura, por se
julgar incapaz de criticá-lo devidamente, o autor passa a apontar um desnível entre a
criatividade do Sr. Magalhães e grandiosidade do tema em pauta, como se a poesia não
estivesse à “altura do assunto”. “Se me perguntarem o que falta”, dizia ele, de certo não
saberei responder; falta um quer que seja, essa riqueza de imagens, esse luxo de fantasia que
forma na pintura, como na poesia, o colorido do pensamento.
Parece-me que o gênio de um poeta em luta com a inspiração, devia arrancar do seio d’alma algum
canto celeste, alguma harmonia original, nunca sonhada pela velha literatura de um velho mundo.
Digo-o por mim: se algum dia fosse poeta, e quisesse cantar a minha terra e as suas belezas, se
quisesse compor um poema nacional, pediria a Deus que me fizesse esquecer por um momento as
minhas idéias de homem civilizado.
Filho da natureza embrenhar-me-ia por essas matas seculares; contemplaria as maravilhas de Deus,
veria o sol erguer-se no seu mar de ouro, a lua deslizar-se no azul do céu; ouviria o murmúrio das
ondas e o eco profundo e solene das florestas.
E se tudo isto não me inspirasse uma poesia nova, se o desse ao meu pensamento outros vôos
que não esses adejos de uma musa clássica ou romântica quebraria a minha pena com desespero,
mas não a mancharia n’uma poesia menos digna de meu belo e nobre país.
Brasil, minha pátria, porque com tantas riquezas que possues em teu seio, não dás ao gênio de um
dos teus filhos todo o reflexo de tua luz e de tua beleza? Porque não lhe dá as cores de tua palheta,
a forma graciosa de tuas flores, a harmonia das auras da tarde?
121
Polidas e brandas, as primeiras cartas dão lugar a críticas cada vez mais radicais, como
se, inebriado pela discussão ao seu redor, o autor se entregasse à uma volúpia desvairada de
orgulho e ironia. “Em tudo pois poesia, contanto que se saiba vibrar as cordas do coração,
e fazer cintilar esse raio de luz que Deus deixou impresso em todas as coisas, como o cunho
de seu poder criador”
122
, afirmaria ele na quarta carta, para nove dias depois, na quinta
missiva da série, apresentada inclusive como a última, entregar-se à seguinte indagação:
119
Citado por Ubiratan Machado. A vida literária no Brasil durante o romantismo. 2001, p. 123.
120
José Aderaldo Castello coligiu e transcreveu todas as cartas do “debate” em A polêmica sobre A confederação
dos Tamoios, lançada em 1953. As cartas de Ig foram todas publicadas no Diário do Rio de Janeiro, na seguinte
ordem: dez, onze e vinte e oito de junho, cinco e quatorze de julho, nove, doze e quinze de agosto.
121
A polemica sobre A confederação dos Tamoios. 1953, p. 05.
122
A polemica sobre A confederação dos Tamoios. 1953, p. 28.
54
acaso, meu amigo, chama poeta a um homem que, usando da linguagem da arte, desprezando
todas as belezas do estilo, como faz o Sr. Magalhães, apresenta-nos milhares de versos sem
harmonia, sem cadência, sem metrificação
123
?
Indignado, “Um amigo do poeta” desce à arena para defender Magalhães no Comércio
da tarde
124
, com a elegância e a delicadeza de um urso, seguido mais tarde por “Um outro
amigo do poeta” desta vez bem mais sóbrio e moderado
125
. Indiferente às grosserias do
primeiro, “Ig” nem se dera ao trabalho de lhe dirigir a palavra, concedendo maior atenção aos
argumentos do segundo e retomando a crítica do poema que dera por encerrada em quatorze
de julho preenchendo com seus comentários ainda mais três cartas. Novos polemistas se
lançaram ao debate, como o enigmático “Omega” ou os mal-criados “O boqui-abertoe O
inimigo de capoeiras”, “os quais escreveram apenas atestando certas rivalidades literárias de
uma época e o tom baixo a que pode ser conduzida uma polêmica”
126
, na opinião de Jo
Aderaldo Castello.
Ao que parece o ambiente literário da corte não era muito grande e todos tinham
consciência dos debates e das idéias em circulação no período, de tal modo que Porto Alegre,
Um amigo do poeta”, foi “desmascarado” simplesmente por citar dois outros grandes
literatos do período, Macedo e Goalves Dias, que, assim como Magalhães, tinham poemas
no estaleiro sem dizer nada sobre si próprio, isso é, sobre o literato Porto Alegre que, como
os demais, também preparava uma composição de alto valor nacional. A identidade que se
encobria sob o pseudônimo de Ig” as iniciais da musa do poema, Iguassu, que, revoltada
com o tratamento recebido, viera pessoalmente se vingar do vate ímprobo foi revelada
alguns meses depois, com a publicação das cartas em um volume assinado pelo jovem redator
chefe do Diário do Rio de Janeiro, um cearense chamado José Martiniano de Alencar mas
durante o fervor da batalha certos rumores apontavam o próprio D. Pedro II como Um
outro amigo do poeta”, o que teria motivado a retomada” do debate por “Ig”.
Defensor extremo do poema, como do próprio poeta e de toda confraria, D. Pedro II
percebeu logo que as cartas de Porto Alegre ficaram muito aquém do desejado e decidira
defender a composição ele próprio, visto que ninguém mais se dispusera à fazê-lo. Tanto o
poeta português Alexandre Herculano quanto o lendário Frei Monte Alverne, amigo e guia
espiritual de Magalhães, solicitados pelo Imperador, destacariam antes os problemas da
123
A polemica sobre A confederação dos Tamoios. 1953, p. 32.
124
Suas cartas foram publicadas na seguinte ordem: vinte e três, vinte e oito e trinta e um de julho, quatro, cinco
e doze de agosto – sendo esta última publicada também no Jornal do comércio.
125
Todas as cartas do “Outro amigo do poeta” foram publicadas no Jornal do comércio, nos dias seis, onze,
quinze, vinte e um, vinte e três e vinte e quatro de agosto.
126
A polemica sobre A confederação dos Tamoios. 1953, p. XI.
55
composição do que suas virtudes, ainda que tardiamente – quando a discussão já estava
encerrada. “É incontestável que o poema dos Tamoios contém muitos defeitos de estilo; uma
grande quantidade de versos carece d’harmonia e cadência; falta mecanismo no metro; o
número e a colocação das sílabas é muitas vezes mal empregado”
127
, diria Monte Alverne, e
em seu parecer, enviado à corte em dezembro, Herculano indicaria sobretudo a
inconveniência do gênero adotado pelo poeta:
Peço a V. M. I. que note um fato, que julgo provar mais do que quaisquer considerações que eu
pudesse acrescentar. Nenhum dos sumos poetas contemporâneos, Goethe, Byron, Manzoni,
Lamartine, Garret, etc., tentou, que eu saiba, a epopéia. É que os seus altíssimos intentos poéticos
lhes revelavam que o cometimento seria mais que árduo, seria impossível. A epopéia humana, que
não era do século passado (deu-nos triste documento disso o nio de Voltaire) menos é deste
século
128
.
Como sabemos, as cartas de Alencar não pretendiam realmente analisar o poema, mas
revelar as concepções estéticas e literárias do autor, contestando, ao mesmo tempo, os valores
e modelos da “confraria literárialiderada por Magalhães e o mecenato do Imperador à um
rculo tão “limitado”. Segundo ele, os méritos da “confraria” estariam antes em suas práticas
auto-canonizantes e no prestígio de que se serviam do que propriamente em suas
composições, denunciando um empenho conjunto e completamente viciado de auto-
edificação pouco crítico e sobremaneira fechado às inovações e aos literatos de valor do
período muito mais uma falange literária do que um grupo sério de escritores. Segundo
Franklin vora, no entanto:
com a Confederação dos Tamoios Magalhães não perdeu senão nos conceitos dos que julgam
pelas impressões de outros, sem examinar se são filhas de nobre paixão. Se o autor das cartas que
então apareceram, única censura hostil à produção de Magalhães, contasse adquirir celebridade por
outros meios, como lhe foi fácil posteriormente pelo trabalho incessante do seu deslumbrante
engenho, não escreveria agressão tão sem fundamento, agressão em que os vindouros o podem
encontrar idéias, mas somente artísticas declamações
129
.
A razão de ser do poema, como ressalta Roque Spencer de Barros estudando-o à luz
das reflexões apresentadas por Magalhães no ensaio Os indígenas do Brasil perante a
história, reside na fundação/exaltação mitopoética da gênese da Rio de Janeiro, futuro núcleo
civilizador do país. Magalhães estabelece um paralelo entre a defesa da região pelos Tamoios
em busca de sua especificidade com os esforços contemporâneos da civilização do país.
Segundo o próprio Magalhães:
se a redenção do gênero humano liga-se ao pecado de Adão, a fundação do Rio de Janeiro, hoje
capital de um grande Império, liga-se neste poema à defesa heróica dos Tamoios dirigida por
127
A polemica sobre A confederação dos Tamoios. 1953, p. 130.
128
Citado por Wilson Martins. História da inteligência brasileira. 1977, vol. III, p. 31.
129
Primeiro discurso como orador do IHGB. 1882, p. 521.
56
Aimbirê. Sem ela não se teria apressado Mem de Sá, e os seus, a vir fundar a cidade, para evitar
que os Franceses aqui se estabelecessem
130
.
No parecer de Roque Spencer de Barros, aquele que nos quadros de nossa
intelectualidade concedeu maior atenção à obra do autor dos Suspiros poéticos e saudades:
de um episódio em que se entrechocam natureza e civilização, europeus (portugueses e franceses)
e aborígenes, chega-se à própria origem mítica da ‘pátria’, a sua aitia’. O episódio, bem ou mal
descrito, não vem ao caso indagar, se articula com o projeto nacional de Magalhães; serve-lhe de
ponto de partida para a explicação do ‘sentido’ de nossa hisria, de nossa missão e dos alvos que
nos devemos propor
131
.
“Abrir a cortina do passado, tirar um Brasil-nação de lá: esta a tarefa indiscutível do
escritor romântico
132
, comentaria Flora Süssekind, apontando que a funcionalidade da
composição, no panorama mais vasto do romantismo brasileiro, residia em sua dimensão
genealógica de construção do passado, articulada sobremaneira aos intentos patrióticos da
geração de Magalhães.
Alcântara Machado, que confessadamente nem sequer se deu ao trabalho de ler o
poema, julga que as cartas de Ig “representam obra de justiça implacável, mas necessária
133
.
Araripe nior, mais comedido, admite que a publicação” do poema teve a particularidade”
de incitar Alencar à “violência e à injustiça, senão em tudo, ao menos em alguns reparos”
134
.
Távora, avaliando a composão em 1882, quando finalmente Magalhães baixara ao reino dos
mortos, encerraria seu parecer de modo enfático:
a verdade, senhores, é que a Confederação dos Tamoios é um belo poema nacional, superior ao
Uraguai pela vastidão e pelo intuito, superior ao Caramuru pela harmonia do verso e unidade da
ação, superior aos Timbiras por estar completo; não temos uma epopéia nacional que com ele
rivalize. O primeiro lugar, pertence-lhe
135
.
130
Citado por Roque Spencer de Barros. A significação educativa do romantismo brasileiro: Gonçalves de
Magalhães. 1973, p. 169.
131
A significação educativa do romantismo brasileiro: Gonçalves de Magalhães. 1973, p. 169-70.
132
O escritor como genealogista: a função da literatura e a língua literária no romantismo brasileiro. 1994, p.
454.
133
Gonçalves de Magalhães ou O poeta arrependido. 1936, p. 74.
134
José de Alencar. 1894, p. 37.
135
Primeiro discurso como orador do IHGB. 1882, p. 521.
57
José de Alencar
JoMartiniano de Alencar foi em tudo um epígono de Macedo, que antecipando uma
intuição nietszcheana tinha consciência de que agradecemos mal aos mestres permanecendo
eternamente seus discípulos”. As semelhanças entre suas vidas e suas obras são tão grandes
que ocupariam um livro: ambos foram os expoentes máximos de suas gerações no plano do
romance; ambos tiveram uma relação bastante tímida com a poesia; ambos buscaram e em
certa medida conquistaram aclamação blica no teatro; ambos se afastaram da literatura
para trilhar os tortuosos caminhos da potica, retornando às letras após profundas decepções;
ambos fundaram periódicos críticos e colaboraram em diversas revistas e gazetas; ambos
inflexionaram suas carreiras literárias contra a sociedade que os cercava; e ambos acabaram
suas vidas “abandonados” pelo público. Ambos dedicaram suas vidas ao país, laboriosos e
infativeis. “Não fez outra coisa, na passagem pela terra, senão ler e escrever”
136
, comenta
Raimundo de Menezes sobre Alencar, e segundo Silvio Romero “não ficou recanto de nosso
viver histórico-social em que ele não tivesse lançado um raio de seu espírito
137
.
Não temos nenhum registro de que eles tenham se conhecido pessoalmente, ainda que
provavelmente tenham se esbarrados nos ambientes literários razoavelmente limitados do Rio
de Janeiro. Além disso, por questões estéticas e mesmo editoriais, eles certamente
acompanhavam os passos literários um do outro, em um diálogo silencioso mas acirrado.
Observadas acuradamente, suas obras guardam aproximações que extravasam os limites da
literatura atingindo dimensões espantosas.
Como já observamos, foi a glória literária de Macedo que instigou o jovem cearense
ao universo das letras pátrias. Alencar chegou à capital do império no final de 1850, após se
doutorar em direito em São Paulo, e como todos os jovens provincianos ele se deliciou com a
agitada” vida cultural da corte mas por pouco tempo. Desajeitado, franzino e carrancudo,
sua figura não agradava às moças e seu espírito pouco afeito às convenções sociais certamente
logo se enfadou do cotidiano dos salões fluminenses. Além disso, a intelectualidade cientifica
e literária patrocinada” pelo imperador lhe inspirava pouca confiança o que o indispunha
contra Macedo. Alencar nunca atacou o pai da Moreninha diretamente, mas por diversas
vezes o atingiu ao dirigir críticas severas ao IHGB e à “falange” liderada por Magalhães.
136
José de Alencar: literato e político. 1965, p. 13.
137
História da literatura brasileira – tomo quinto: diversas manifestações na prosa, reações anti-românticas na
poesia. 1960, p. 1465.
58
Pela força de seu gênio, “o mais caprichoso dos artistas americanos”
138
não se
emancipou do estro literário de Macedo como se tornou a figura central de uma segunda
tradição literária em nosso país – que se em termos de conteúdo nada diferia da primeira, dada
a forte unidade que a todas subsumia, antepunha-se à figura do Imperador e à figura do Brasil
representada pelo grupo de Magalhães, ainda que se empenhando tanto quanto eles ou ainda
mais pela glória da pátria. “Não se considerando sucessor literário de nenhum de seus
conterrâneos”, comentaria Araripe nior, “seu primeiro grito foi de revolta”, referindo-se às
cartas sobre A confederação dos Tamoios. Segundo Silvio Romero, “fez-se chefe de grupo e
aninhou em torno de si os novos e os descontentes: isto mesmo parcamente, porque era um
temperamento aristocrático e pouco expansivo”
139
. Seja como for, se tomamos Macedo como
o vulto maior do qual ele se “libertou” é porque nos interessamos sobremaneira pela história
do romance enquanto gênero literário pois Alencar reestruturou o programa literário da
primeira geração romântica de modo a sobrepujar também Gonçalves de Magalhães e
Gonçalves Dias em seus donios mais estritos: o indianismo.
Sem vida alguma, a marca maior de José de Alencar em nossa literatura no século
dezenove se deu na manifestação mais autêntica de nossa nacionalidade, segundo as
percepções críticas da época e Araripe Júnior chega mesmo a dizer que ele foi o único
representante sério do indianismo em nosso país
140
. O indianismo, contudo, pouco floresceu
além da década de 50, no juízo de Silvio Romero porque o “senso popular” desprezava tal
poesia, porque ela não falava de suas esperanças
141
e Araripe Júnior admite que neste
domínio Alencar pelejou sozinho: “o autor do Guarani condenou-se a ser uma linha forte
isolada; em torno dela não se moveram as vocações literárias do país”
142
. Vale dizer que ele
acrescentava, pesaroso: “muitíssimo mais influíram sobre a mocidade Álvares de Azevedo,
Cassimiro de Abreu, Castro Alves, Varela, se terem produzido a décima parte das obras que
ele deixou”
143
.
Seja como for, as dimensões da obra de Alencar que nos interessam são aquelas dizem
respeito ao cotidiano da população urbana do Rio de Janeiro, donios em que dialogou
extensamente com Joaquim Manuel de Macedo e influenciou Machado de Assis de modo
138
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. José de Alencar. 1894, p. 09.
139
ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira tomo quinto: diversas manifestações na prosa, reações
anti-românticas na poesia. 1960, p. 1401.
140
José de Alencar. 1894, p. 102.
141
A literatura brasileira e a crítica moderna. S/d, p. 45-46.
142
José de Alencar. 1894, p. 181.
143
José de Alencar. 1894, p. 182.
59
que no presente ensaio concederemos especial atenção à Cinco minutos, Lucíola, Diva, A pata
da gazela, Sonhos d’ouro e Senhora.
No ano em que lançara seu grito de revolta contra a confraria literária de Magalhães, o
jovem escritor demarcou sua estréia na literatura com o folhetim Cinco minutos, idealizado
como um presente de natal para os assinantes do Diário do Rio de Janeiro e publicado,
primeiramente, nas páginas do jornal entre os dias vinte e dois e vinte e nove de dezembro, e
logo em seguida num folheto de 60 páginas não assinado
144
.
Inserido na senda da literatura fantasiosa que marca os primórdios de nosso
romantismo, o amor viceja em suas linhas como a seiva que anima toda a vida, que não tem
interesse algum além de si mesmo e que, principalmente, não se deixa conter por qualquer
obstáculo mesmo o obstáculo supremo da existência humana: a morte. Tendo como ponto
de partida mais um acaso do destino, a trama se desenrola à partir de um inusitado encontro
no interior de um ônibus. O narrador, indômito e original como bom representante de sua
geração, não aceita que dois simples ponteiros possam determinar o curso de sua vida,
chegando assim cinco minutos atrasado à estação do Rossio. Perfeitamente resignado ele
espera o próximo carro e segue calmamente para casa quando um misterioso vulto coberto de
sedas começa a se reclinar para ele o que em um primeiro momento o deixa perplexo e em
seguida extasiado. Julgando-se ao lado de uma admiradora e já fora de si ele deposita um
beijo no ombro da desconhecida, que se retrai espantada mas logo o chama de volta para si
seguindo ambos seu caminho em um breve idílio amoroso. Nas nuvens, o narrador mal
percebe a partida da desconhecida em uma parada, guardando apenas uma frase “suspirada
quase imperceptivelmente”: não se esqueça de mim, um verso da ópera Il trovatore que
jamais abandonará sua mente.
Convicto de ter se encontrado o amor de sua vida, ele passa a refazer o mesmo trajeto
e a procurá-la em todas as partes, perseguindo todos os vestidos de seda preta que porventura
encontrasse pelo caminho, sempre em vão até que reconhece seu vulto intuitivamente em
um camarote durante uma representação de Giuseppe Verdi, o autor da gloriosa ópera
sussurrada por ela. Ele a requesta com ardor, alucinadamente, recebendo apenas o silêncio
como resposta, e furioso, num impulso vingativo, passa a mortificá-la com palavras amargas.
Ao fim do ato ela se retira, visivelmente comovida, voltando-se um instante para lhe dizer,
entre lágrimas, que ele nunca saberá o que a fez sofrer com palavras tão injustas.
144
MENEZES, Raimundo de. Jose de Alencar: literato e político. 1965, p. 118.
60
Tem início para ambos uma série de encontros e desencontros entremeados por cartas
e por lances do destino: sua amada chama-se Carlota, tem dourados 16 anos e uma paixão
indescritível por ele, mas é tima de um verme que destrui sua vida, “apesar dos meus
dezesseis anos, apesar de minha organização, apesar de minha beleza e dos meus sonhos de
felicidade como ela lhe narra em uma das missivas. Sua mãe é o anjo protetor de sua
existência, zelando por sua saúde como se zelasse por um tesouro de valor inestimável, mas
mesmo todos os seus esforços o poderiam vencer a fatalidade que lhe cercava. “As almas
como as nossas quando se encontram se reconhecem e se compreendem”
145
, diz ela evocando
o romantismo inebriado que os perpassa, julgando contudo que
deve ser cruel, bem cruel, meu amigo, quando, tendo-se apenas encontrado, uma dessas duas almas
irmãs fugir deste mundo, e a outra, viúva e triste, for condenada a levar sempre no seu seio uma
idéia de morte; a trazer essa recordação, que, como um crepe de luto, envolverá a sua bela
mocidade; e fazer do seu coração, cheio de vida e de amor, um túmulo para guardar as cinzas do
passado
146
!
Tão nobre abnegação arrebata o narrador, que declara que seu amor arderá
eternamente e que ele nunca precisará de qualquer garantia ou esperança, visto que ele as tem
todas em seu coração, sereno e sagrado. O grave estado de saúde de Carlota exige uma
viagem para a Europa e, desejando poupar a seu amado um longo martírio cujo final trágico
seria iminente, ela parte para o porto da corte deixando-lhe uma última missiva, dispensando-
lhe sinceramente de qualquer compromisso, dado que sua hora está marcada, mas
convidando-o a cruzar os desertos do velho continente caso suas juras de amor fossem
verdadeiras, caso ele estivesse realmente disposto a compartilhar a curta existência que lhe
restava. Seu navio partirá em vinte e quatro horas, cabendo a ele decidir o futuro de ambos.
Nosso narrador encontrava-se em Petrópolis, e precisava tomar uma barca para chegar
ao porto. Completamente desvairado ele se entrega à uma série de extravagâncias, tomando
primeiramente uma montaria por um preço absurdo com o intuito de chegar ao porto local,
tarefa baldada porque ele chega atrasado, assistindo ainda a morte de seu valoroso cavalo.
Desesperado, ele requisita em seguida os serviços um pobre barqueiro que retornava de sua
jornada de trabalho para o conduzir à corte, esforço novamente baldado porque a fadiga e
algumas garrafas de vinho literalmente derrubam o pobre homem, que adormece e os deixa à
deriva. Como desgraça pouca é bobagem, quando ele finalmente chega ao porto, após uma
série de causalidade, as rodas do paquete já fendiam as águas e seu vulto avançava rumo ao
horizonte, com um lenço abanando-lhe melancolicamente.
145
Cinco minutos. 1991, p. 30.
146
Cinco minutos. 1991, p. 31.
61
Um mês de extremas agonias consumiu nosso herói até a partida da próxima
embarcação dessa vez bem sucedida: eles se encontram em Nápoles e sua simples
companhia é o suficiente para o fim dos tormentos de Carlota. No Golfo de Íschia, cenário
romântico por excelência, seus lábios se tocam pela primeira vez e a doença da moça se esvai,
contrariando os desalentadores prognósticos da medicina... O romance termina com a
descrição dos “problemas” que rondavam o casal: os ciúmes que ela tinha dos livros dele, que
lhe ocupavam por muito tempo, e os ciúmes que ele nutria pelas flores dela, que recebiam
mais amor do que ele problemas ínfimos, como o leitor pode perceber, que atestavam a
felicidade completa do casal. Em suas últimas páginas um verdadeiro mimo de graça e
imaginação – um post-escriptum de Carlota:
Tudo isso é verdade, D***, menos uma coisa.
Ele não tem ciúmes de minhas flores, nem podia ter, porque sabe que só quando seus olhos não me
procuram é que vou visitá-las e pedir-lhes que me ensinem a fazer-me bela para agradá-lo.
Nisto enganou-a; mas eu vingo-me roubando-lhe um dos meus beijos, que lhe envio nesta carta.
Não o deixe fugir, prima; iria talvez revelar a nossa felicidade ao mundo invejoso
147
.
A “estréia” de Alencar apresenta todas as características do gênero: paixões secretas,
amores inabaláveis, loas à idílica vida no campo, em detrimento das cidades “de plástico”,
cartas dramáticas, cenários facilmente reconhecíveis... Retomaremos mais tarde a
“funcionalidadeliterária e existencial dos absurdos” na narrativa; por ora convém destacar
as feições inabaláveis do amor que permeiam a obra. Ser romântico estava em voga, como
Macedo já ironizara, e ambos os personagens emanam e desejam preservar a flama do amor
mais puro em seus corações, o que delineia “o caminho das pedras” que ambos precisam
percorrer. “Muitas vezes toma-se um capricho por amor”
148
, observa Carlota em certa
momento, e as adversidades enfrentadas podem ser interpretadas como “testes” que avaliam a
autenticidade de suas paixões efetivamente tão autênticas que afastam a gélida sombra da
morte.
A sociedade descrita por Alencar já exibe certos requintes que nada deixam a desejar,
ainda que pintada com cores rubras. Na “primeira vez que fui a um baile”, nos conta Carlota,
“fiquei deslumbrada no meio daquele turbilhão de cavalheiros e damas, que girava em torno
de mim sob uma atmosfera de luz, de música, de perfumes”.
Tudo me causava admiração; esse abandono com que as mulheres se entregavam ao seu par de
dança, esse sorriso constante e sem expressão que uma moça parece tomar na porta da entrada para
deixá-lo à saída, esses galanteios sempre os mesmos e sempre sobre um tema banal, ao passo
147
Cinco minutos. 1991, p. 60.
148
Cinco minutos. 1991, p. 30.
62
que me excitavam a curiosidade, faziam desvanecer o entusiasmo com que tinha acolhido a notícia
que minha mãe me dera da minha entrada nos salões.
Estavas nesse baile; foi a primeira vez que te vi.
Reparei que nessa multidão alegre e ruidosa tu não dançavas nem galanteavas, e passeavas pelo
salão como um espectador mudo e indiferente, ou talvez como um homem que procurava uma
mulher e só via toilettes
149
.
Alencar era já um romântico em estado puro, como nos indicara em uma de suas
críticas ao poema de Magalhães:
Há duas sublimes enfermidades do espírito humano, a saudade e a nostalgia, uma é a lembrança
da pátria, outra é a lembrança do passado: como se chamará a saudade que sente das ilusões
perdidas que por muito tempo encantaram a nossa existência, a nostalgia que sente o homem longe
do mundo que sonhou?
150
Infância é cera”, comenta seu sobrinho Araripe Júnior, “e, se esta se consolida sem
alteração profunda, as impressões então recebidas tornam-se indeléveis”
151
. Logo ele se
indisporá com a vida da corte, refugiando-se nos recantos então sossegados da Tijuca e
afastando-se cada vez mais da vida social que o cercava. Por ora, o cearense estava ainda
empenhado na composição de uma obra estritamente nacional, visando superar a lacuna
legada por Magalhães. A “falange” literária, no entanto, ainda daria mostras de sua
criatividade.
O segundo fôlego da ‘falange literária’: Os timbiras e A nebulosa
Magalhães não foi o único a se dedicar à composição de um poema de proporções
épicas: como observamos linhas atrás, seus três fiéis companheiros também tinham obras “no
estaleiro”, provavelmente em uma empreitada conjunta pela grandiosidade da pátria. O
“fracasso” de A confederação dos Tamoios não desanimou seus amigos mas aumentou
imensamente as expectativas pelos poemas em “andamento”. Representante absoluto do
indianismo em nossas letras, todos esperavam que Gonçalves Dias alcançasse êxito onde
Magalhães falhara. Os Timbiras, no entanto, aquela que segundo Wilson Martins “deveria ser
a grande epopéia indianista que estava no programa da escola romântica brasileira”
152
, foi tão
mal sucedida quanto a primeira empreitada da confraria.
O poema começara a ser esboçado em 1847 e teve seus quatro primeiros cantos
impressos em Dresden, onde o poeta exercia fuões diplomáticas, igualmente dedicados ao
149
Cinco minutos. 1991, 34-35.
150
CASTELLO, José Aderaldo. A polêmica sobre A confederão dos Tamoios. 1953, p. 30.
151
José de Alencar. 1894, p. 08.
152
MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. 1977, vol. III, p. 52.
63
Imperador. Recitadas no Instituto Histórico por Porto Alegre e Macedo, suas linhas iniciais
revelavam seus altos intentos:
Os ritos semibárbaros dos Piagas,
Cultores de Tupã, e a terra virgem
Donde como dum tronco, enfim se abriram
Da cruz de Cristo os piedosos braços;
As festas, e batalhas mal sangradas
Do povo Americano, agora extinto,
Hei de cantar na lira. – Evoco a sombra
Do selvagem guerreiro!... Torvo o aspecto,
Severo e quase mudo, a lentos passos,
Caminha incerto, – o bipartido arco
Nas mãos sustenta, e dos despidos ombros
Pende-lhe a rota aljava... as entornadas,
Agora inúteis setas, vão mostrando
A marcha triste e os passos mal seguros
De quem, na terra de seus pais, embalde
Procura asilo, e foge o humano trato
153
.
Apesar do renome do poeta, a composição causou pouco efeito nos rculos literários
do período mesmo porque incompleta. Os Timbiras deveria ter dezesseis cantos, e Antonio
Henriques Leal, amigo de Dias, afirma que em 1853 tivera contato com doze deles. Quando
voltava de sua viagem derradeira à Europa, em 1864, Dias trazia na bagagem o poema
completo – levando-o consigo para o fundo do mar.
O destaque do ano fica por conta de Macedo, que obteve enorme sucesso com seu
longo poema A nebulosa, a epopéia romântica máxima – seo única – da literatura brasileira.
Dividido em seis cantos e um epílogo, esse longo poema guarda certos ecos do romance
Vicentina tanto em sua temática nebulosa’ quanto em cenas e situações extremamente
parecidas. A trama gira em torno de um misterioso Trovador que se muda para um rochedo na
Baía da Guanabara, supostamente assombrado por um espírito feminino intitulado “a
Nebulosa”. Ignorando tais boatos o Trovador acaba conhecendo a verdadeira moradora do
local, uma mulher tida por doida que entoa longas baladas à beira de terríveis precipícios. Ele
passa a acompanhar as canções da moça com sua harpa, apaixonando-se perdidamente mas
a Peregrina, como é apelidada, vota ao desprezo o amor do rapaz. Uma estranha figura
acompanha ocultamente as desventuras do mancebo: a Nebulosa, que por sua vez se apaixona
pelo seu semblante trágico. Completamente desencantado, no sexto canto o rapaz posta-se à
beira de um alto precipício e, à meia-noite, início à sua última canção o Hino da morte.
Em estrofes de seis versos rimados, com um refrão, o vate se despede lancinantemente da
vida, e ao final de cada estrofe uma das cordas da harpa se rompe. Quando a última corda
153
Citado por Hélio Lopes. A divisão das águas: contribuição ao estudo das revistas românticas Minerva
Brasiliense (1843-45) e Guanabara (1849-1856). 1978, p. 221.
64
arrebenta o rapaz é interrompido pela Peregrina, que declara seu amor arrebatado e, em um
último abraço, os dois se lançam ao precipício, pranteados pela natureza que início a uma
terrível tempestade. O poema foi declamado inteiro diante do Imperador, que sugeriu ligeiras
alterações e custeou sua publicação no ano seguinte, promovendo ainda o poeta ao oficialato
da Ordem da Rosa – uma honraria inestimável para o período.
Por toda essa trajetória, Macedo gozava então de uma notoriedade extrema. Vejamos
como dele se lembrava Alfredo Taunay, seu aluno no Imperial Cogio de Pedro II:
Com que atenção ouvíamos aquele homem rodeado da auréola, então muito brilhante, de primeiro
romancista brasileiro.
O autor da Moreninha e do Moço Loiro! dizíamos com orgulho e cheios de respeito.
Neste ano de 1858 foi que apareceu a Nebulosa, e o Miguel José Tavares lia nos trechos com
indizível entusiasmo. Por causa desse poemeto, prodigiosamente medíocre, recebeu o Macedinho
o oficialato da Ordem da Rosa e isto nos pareceu a consagração de um talento hors ligne, credor da
admiração de toda a culta Europa
154
.
Porto Alegre seria o último dos quatro companheiros a intentar uma epoia – e apesar
do malogro de A confederação dos Tamoios e de Os Timbiras, em 1866 Machado de Assis
festejava com antecedência o lançamento do Colombo:
O assunto de Colombo devia ser tratado por um americano; folgamos de ver que esse americano é
filho deste país. Não é somente o seu nome que fica ligado a uma idéia grandiosa, mas também o
nome brasileiro. Como se houve o Sr. Porto Alegre na concepção do poema? conhecemos
alguns fragmentos, que, embora formosos, não nos podem dar todo o conjunto da obra. Mas o
nome do Sr. Porto Alegre é uma fiança. O autor da Brasilianas é um espírito educado nas boas
doutrinas literárias, robustecido por fortes estudos, afeito à contemplação dos modelos clássicos.
Junte-se à isto um grande talento, de que tantas provas possui a literatura nacional. Estamos certos
que as nossas esperanças serão magnificamente realizadas. Os fragmentos conhecidos são
primorosos; por que o não será o resto?
155
Impresso em Viena, onde Porto-Alegre exercia funções diplomáticas ao lado de
Gonçalves de Magalhães, que corrigiu os quarenta e nove cantos da composição, o Colombo
também foi dedicado ao Imperador D. Pedro II e pretendia narrar a grandiosa descoberta do
navegador Genovês que “descobriu” o novo mundo como uma “legenda dos séculos”. Apesar
das esperanças de Machado de Assis, a epopéia causou pouco impacto no período e tanto
Wilson Martins quanto Hélio Lopes dedicaram mais atenção à suas falhas do que à suas
virtudes.
Macedo e Porto-Alegre, ainda em 1857, literalmente trocam de cargo no IHGB: este é
eleito primeiro-secretário e aquele assume a função de orador da instituição, posto que
154
Memórias. 1960, p. 56.
155
Crítica literária. 1959, p. 105-06.
65
ocupará praticamente até o fim de sua vida
156
. Macedo dedicará praticamente 37 anos de sua
vida ao Instituto, alcaando a vice-presidência da instituição e a presidindo interinamente no
ano de 1877, quando o Visconde do Bom Retiro partiria para a Europa com D. Pedro II. Em
1920 Max Fleiuss comentaria: “não houve até hoje quem aqui mais trabalhasse em tais
lugares”
157
.
José de Alencar, que se insurreicionara contra a confraria de Magalhães, demarcaria
seu nome em 1857 com O guarani. Empenhado ele mesmo em uma epopéia indianista
quando da polêmica travada com a confraria patrocinada pelo Imperador, Os filhos de Tupã,
caberia-lhe o recurso de trilhar as sendas do romance histórico, tal como aconselhara ao autor
de A confederação dos Tamoios em uma de suas cartas. Estampada no Diário do Rio de
Janeiro em apenas quatro meses, entre janeiro e abril, a hisria de Ceci e de Peri corresponde
à visão do autor sobre a formação de nossa nacionalidade, resultante da síntese entre as
culturas indígenas e portuguesas. O sucesso do folhetim foi imenso, mas o público pouco se
interessou pelo volume: de sua tiragem inicial de mil exemplares, trezentos foram lançados ao
fogo por conta de problemas de truncagem e os demais tiveram como destino os
alfarrábios
158
, como comentaria o próprio José de Alencar.
Em 1858 Macedo conquista novas posições: é eleito Deputado Provincial para a 12
ª
Legislatura e também é promovido à primeira cátedra de História e Corografia do Imperial
Colégio de Pedro II, firmando-se definitivamente. Gonçalves de Magalhães publica Os fatos
do espírito humano, um tratado de filosofia espiritualista com laivos do pensamento de seu
antigo mestre, o Frei Francisco de Monte Alverne, cujo sucesso lhe garantiu a valiosa posição
de primeira obra de alta filosofia nacional. Macedo e Magalhães, em seus planos literários,
são considerados os chefes paradigmáticos do período.
Em 1859 o crítico Antônio Joaquim de Macedo Soares publica uma antologia de
cantos nacionais intitulada Harmonias Brasileiras, cujas linhas buscam apontar um novo
cânone para o período. Tomando como critério de seleção o tom nacionalista da produção de
cada poeta, o cosmopolitismo representado por Gonçalves de Magalhães não
corresponderia nem às aspirações da mocidade ou às tendências da época, bem como o
156
Foram poucos os anos em que Macedo não ocupou a venerável tribuna do instituto, entoando um último
adeus àqueles que partiram: 1870, 1872 e 1876. Seu último discurso se proferido em 1879, ainda que
oficialmente continue ocupando a função até a data de sua morte.
157
Macedo no Instituo Histórico. 1920, p. 06.
158
Como e porque sou romancista. 1991, p. 62.
66
byronismo, completamente descaracterizado por todos aqueles que sucederam Álvares de
Azevedo. “Em outras palavras”, segundo Wilson Martins:
Gonçalves Dias assumira o lugar de ‘chefe da literatura brasileira’ até então ocupado por
Magales, enquanto o byronismo já começava a ser visto como um simples parêntesis episódico,
sem ligações orgânicas com nossa inteligência artística
159
.
Os tempos, pois, como observamos, estavam mudando. À medida que os excessos
ultra-românticos passavam a ser condenados a poesia social entrava em voga. Contrariando
estas tendências, contudo, Magalhães seria em breve canonizado internacionalmente, como
veremos adiante, e demonstrando a natural defasagem entre o gosto do público e a apreciação
dos críticos, a população carioca foi presenteada nesse mesmo ano com a segunda edição de
Vicentina – provavelmente incentivada pelo sucesso de A nebulosa.
Joaquim Manuel de Macedo: historiador e político
Em 1861 Macedo publica as Lições de História do Brasil, bem como Os romances da
semana, uma coletânea de ‘romancetes’ publicados no Jornal do Commercio. Elaboradas
especialmente para os alunos do Imperial Colégio de Pedro II, além de preencher uma lacuna
quanto às obras didáticas do período, as Lições de história do Brasil podem ser consideradas a
‘auto-consciência histórica’ de uma época, visto que passaram a figurar como a versão oficial
de nossa história pátria difundida para o senso comum até 1930 quando então a obra foi
retirada de circulação. Como sabemos, o autor tomou como base para sua narrativa a História
geral do Brasil, de Francisco Adolfo de Varnhagem, inserindo, contudo, algumas novidades.
Segundo Humberto Fernandes Machado e Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, a História
geral do Brasil antes de sua separação e independência de Portugal, de Varnhagen, teria
encontrado “uma recepção bastante fria no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”.
Nascido no Brasil mas educado em Portugal, Varnhagen, membro do IHGB e diplomata do
Império, tinha colocado a ênfase na influência civilizadora da colonização portuguesa e quase não
tinha considerado a importância da contribuição do índio para a formação do Brasil. Cometera,
assim, dois pecados capitais naquele momento
160
.
No parecer de ambos Macedo seria o verdadeiro autor de nossa história oficial,
selecionando, entre 1500 e 1822, os fatos mais relevantes para a construção e afirmação de
uma idéia de Brasil efetivamente nacional – conforme o gosto romântico da época. Apelidada
carinhosamente” por Wilson Martins de Varnhagen para crianças”
161
, sua primeira edição
159
História da inteligência brasileira. 1977, vol. III, p. 104.
160
O Império do Brasil. 1999, p. 265-6.
161
História da inteligência brasileira. 1978, vol. IV, p. 12.
67
percorria nossa história até o ano de 1581, destinando-se aos alunos da quarta-série, mas sua
segunda edição, publicada em 1863, abrangeria o período de 1581 a 1822, alcançando até a
sétima-série.
Macedo não publicou nenhum romance entre O forasteiro, em1856, e O culto do
dever, em 1865, ao que tudo indica embrenhado em severos impasses morais e estéticos, tal
como nos indicia a coletânea Os romances da Semana, lançada em 1861. Enfaixando uma
série de escritos publicados anteriormente no Jornal do Comércio, a obra não só nos apresenta
textos de uma euforia decrescente como nos mostram um escritor distanciado de suas próprias
criações, como demonstram certos comentários acrescentados às histórias. No primeiro,
prefaciando O fim do mundo, menos significativo talvez, Macedo diz:
Hoje, relendo essas breves e risonhas ginas que em 1856 escrevi, sinto verdadeira tristeza,
porque nelas encontro de mistura com inocentes gracejos os nomes de pessoas, algumas das quais
a morte arrancou do mundo, e entre eles o do meu amigo o comendador Manuel Moreira de
Castro, de quem recebi provas de estima e confiança extrema.
O que então nos fez rir, fez-me entristecer agora
162
.
No segundo, prefaciando O veneno das flores, solicita o autor:
Tenho-vos feito ler não sei quantos romances alegres e brincões; em compensação, permiti que eu
agora vos ofereça um outro de um gênero absolutamente diverso.
Será um romance triste; mas tão simples como breve: tolerai-o: e se nem com a tolerância
quiserdes animar-me, não o leias
163
.
O tom dos “romances” apresentados decai de um romantismo leve e fantástico para
narrativas cada vez mais negativas, não acompanhando o abandono das histórias alegres
que caracterizaram os primórdios de nosso romantismo tal como podemos notar nas
trajetórias do próprio Macedo e de Alencar como sugerindo uma conscientização mais
aguda da realidade brasileira, cada vez mais crítica. Ainda que não seja possível determinar a
data de todas os “romances”, e nem apontar se o volume traz todos as publicações de Macedo
no jornal ou apenas “as melhores”, o que apenas uma pesquisa mais extensa poderia
averiguar, parece-nos possível tomar essa oscilação de humor como indicativa de um período
de transição estética – senão espiritual – que culminará em O culto do dever, em 1865.
A bolsa de seda, a primeira narrativa, nos apresenta as desventuras de um jovem
sonhador chamado Constancio que após um sonho marcante decide se apaixonar
urgentemente por uma “alma caridosa” em um período em que o país era assolado por uma
grave epidemia de lera e a caridade estava em alta. O romance se passa no mesmo período
162
Os romances da Semana. 1937, p. 44-45.
163
Os romances da Semana. 1937, p. 252-53.
68
em que se desenrolaram as peripécias narradas por Alencar em Cinco minutos, e as duas
narrativas guardam um tom bastante parecido, com rapazes que se lançam desesperadamente
em busca de vultos desconhecidos e desperdiçam dinheiro à rodo em suas trajetórias. Bastou
apenas a visão de uma moça descendo de um carro encoberta por um véu para que o mancebo
se extasiasse, sentimento que atingiu seu ápice quando seguindo sua pista ele a encontrou
prestando cuidados à uma família pobre o que podia ser interpretado como um sinal
divino. Ele passa a perseguir o vulto misterioso dia e noite sem sucesso, tomando como único
indício uma bolsa de seda que ela estava tecendo para um leilão – encontrando no fim de suas
buscas ninguém menos do que sua própria irmã, que em casa zombava de suas aspirações e
que já havia oferecido ao rapaz todos os indícios de que o amor entre eles seria impossível...
O fim do mundo, seu segundo romance, é a história mais fantástica já legada pela pena
de Macedo, figurando como personagem principal seu amigo Martinho Corrêa Vasques, um
famoso ator dramático do período. Em 1856 os astlogos previam a passagem de um cometa
pela Terra, “e não poucos terroristas, improvisando-se profetas” determinaram o dia treze de
junho “como o prazo fatal de um horroroso cataclisma, cujo resultado seria nada menos que o
fim do mundo
164
. Inconformado com a idéia de morrer, o endiabrado Martinho elaborou um
plano completamente absurdo: construir uma escada para a Lua, seguindo o raciocínio “assim
como o capoeira quebra o corpo tratando de livrar-se de uma facada, assim eu escaparei da
cauda do cometa, fugindo em direção oposta àquela que ele segue”
165
. Se seu plano pode
parecer absurdo, sua realização ultrapassa as barreiras do non-sense: no dia aprazado, o rapaz
passa a empilhar uma série de montes e montanhas formando uma base, sobre a qual deposita
em seguida todos os grandes bancos do país, confiando sempre na alta dos juros... Sua
escada” não chegou a levá-lo para a Lua, como imaginava, mas o manteve afastado da cauda
do cometa por tempo suficiente para que ele se salvasse. De volta à Terra, ele encontrou todas
as casas intactas, exceto pelas janelas, que o calor excessivo tinha derretido”
166
, mas todos os
seres vivos paralisados, para seu imenso horror. Desnorteado, ele se e a passear” pelo
centro do Rio de Janeiro em busca de algum sobrevivente, flanando inclusive pela lendária
Petalógica, onde encontrou personalidades como o saudoso Paula Brito, o bacharel Gonçalves
(provavelmente Gonçalves de Magalhaes) e o barão de Tautphoeus. Já fatigado por seu
lúgubre passeio, inusitadamente ele se depara com uma alma viva no Alcazar Lírico: uma bela
corista por quem havia se apaixonado anos atrás. Sabendo que ele fora o único sobrevivente
164
Os romances da Semana. 1937, p. 44.
165
Os romances da Semana. 1937, p. 54.
166
Os romances da Semana. 1937, p. 61.
69
da tragédia a moça resolve morrer, frustrando os planos de re-povoação do ator, que já se
imaginava um novo Adão diante de sua Eva. Desesperado ele a abraça e busca reanimá-la,
mas assim que desperta a moça foge correndo, e no momento em que partia para buscá-la...
ele se caído no chão, despertando de um penoso pesadelo.
O romance de uma velha conta a divertida disputa entre a sexagenária Violante e sua
sobrinha Clemência por três namorados, cada qual contando com seus “dotes” pessoais: uma
fortuna de trezentos contos de réis no caso da primeira, e a formosa beleza da juventude no
caso da segunda. D. Violante é uma costumeira inimiga do progresso: em seu juízo, o Rio de
Janeiro está completamente degradado e o amor definitivamente morto, soterrado pelo
dinheiro. “Minha sobrinha”, diz ela, “agora não há mais amor, cálculo; o mais
amantes, calculistas; o há mais amadas, calculadas
167
. Romanesca e vaidosa, a
jovem contesta os pensamentos exagerados e anacrônicos de sua tia, firmando-se uma aposta
em que à perdedora caberia o “castigo” de entrar para o convento da Ajuda. Após inúmeras e
engraçadas reviravoltas ambas se saem vitoriosas e derrotadas, pois comprovam que de fato
os patifes estavam interessados apenas em dotes financeiros e que não cabia a nenhuma delas
a ventura de se casar com um indivíduo assim.
A narrativa Uma paixão romântica poderia ser tomada como um receituário da paixão
romanesca, delimitando passo a passo os elementos que instilavam nas almas de nossos
patrícios esse doce sentimento inefável. O estudante Luciano fora prometido quando criança
em casamento à infanta Dyonisia por suas famílias, mas as reviravoltas da vida acabaram
afastando os dois e na idade adulta a simples menção da iia deixava o rapaz enfurecido,
entusiasta da liberdade como todos os moços de sua geração. Decididos a levar seu plano
original a um bom termo, os pais dos jovens em conjunto passam a tecer ao redor do mancebo
uma rede de intrigas à qual ele se entrega com furor, desposando no fim a adorável Dyonisia
exatamente como seus pais previam.
Inocêncio, o “romance” menos trabalhado do volume, exibe a destruição gradual do
sonhos de um jovem eivado dos mais puros sentimentos patrióticos e das virtudes mais
valiosas na capital do império, onde noções como pátria e virtude o fazem qualquer sentido.
Abrigado por seu padrinho, o tico Geraldo “Risota”, o mancebo chega ao Rio de Janeiro
com os sonhos mais puros e com as apties mais favoráveis ao progresso do país, sendo em
tudo preterido em nome do dinheiro e da habitual potica de “apadrinhamentoa que ele não
se julga digno de aceitar.
167
Os romances da Semana. 1937, p. 87.
70
O veneno das flores, por fim, a narrativa mais amarga da coletânea, figura o drama da
inocente Juliana, que se vê no auge de seu esplendor e de sua felicidade ao completar
dezessete anos, formosa, querida por todos e noiva de um jovem encantador, Jorge de
Almeida. Ela brilhava no meio de trinta lindas gentis e faceiras jovens, como Vênus no seu
esplendor matutino: não tinha rivais; era uma princesa formosa cercada de sua corte
magnífica”
168
. A mimosa menina é adorada em segredo pelo pobre Fábio que, ciente da
impossibilidade de sua ventura, tributa a ela a maior estima e todos os cuidados, empenhando-
se em preveni-la do caráter de seu futuro noivo, segundo certos boatos um libertino de marca
maior. Julgando-o um mero invejoso, com intenções de afastá-la de seu futuro gracioso, ela
o lhe qualquer atenção e inadvertidamente se entrega mais e mais ao pérfido Jorge.
Acreditando que as flores têm os perfumes mais adoráveis, a donzela é deflorada pelo
farsante e abandonada à própria sorte, sendo em seguida, evidentemente, estigmatizada por
toda a sociedade. “Aquela que pouco antes era a donzela vaidosa que se supunha a mais bela
de entre as mais belas das suas rivais, reconhecia agora que lhe era impossível colocar-se a
par da menos bonita das jovens, que apenas a olhavam com inveja nos seus dias de
triunfo”
169
. Segregada, confinando no peito um segredo abomivel, Juliana começa a
definhar lentamente, incapaz de suportar a sociedade que lhe reprime e a maldade do
pretendido noivo que em breve se casa com outra. Cética, como muitas no período, na
expressão severa do narrador, a moça nem sequer cogita buscar alívio para suas dores cruéis
nas infindáveis graças de Deus, entregando-se resolutamente ao suicido. No coração do
crente nunca se apaga de todo a esperança; o coração do incrédulo é um negro abismo, em
cujo fundo mora o demônio do desespero”
170
.
Os panoramas figurados nestas histórias exibem uma percepção cada vez mais crítica
da realidade brasileira, onde seus valores mais caros são progressivamente soterrados pela
ganância, pela corrupção e pela falta de fé, como se no intervalo entre 1855 e 1861 a
sociedade tivesse se deteriorado, como se suas clássicas histórias para mocinhas não valessem
mais a pena ou, possivelmente, como se Macedo não pudesse mais apresentar histórias para
mocinhas ao público... Mesmo levando-se em conta a probabilidade de que histórias mais
leves tenham sido publicadas no Jornal do comércio durante o período em questão, a
coletânea que o autor entregou ao público demonstra um entusiasmo decrescente e críticas
sociais cada vez mais acerbas, prenunciando a virada programática de 1865.
168
Os romances da Semana. 1937, p. 256.
169
Os romances da Semana. 1937, p. 338.
170
Os romances da Semana. 1937, p. 340.
71
A potica também interessa ao intelectual carioca, que já fora eleito para uma cadeira
da Assembléia Provincial do Rio de Janeiro em 1854, reelegendo-se até 1859; mas agora é
hora de intentar vôos mais altos, e em 1863 Macedo alcança um posto na Assembléia Geral.
Além de ocupar cargos de destaque no IHGB, como já citamos, o escritor também é membro
da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, do Conselho Diretor de Instrução Pública da
Corte e cio do Conservatório Dramático do Rio de Janeiro. “Como homem blico,
portanto, o Dr. Macedinho esmuito bem cotado”
171
. Sua carreira literária segue no mesmo
ritmo: no ano passado quatro de seus romances foram reeditados. O escritor está, portanto, à
todo vapor – e na verdade até sem tempo, pois aproveita o período das aulas para revisar seus
textos, enquanto os alunos desenham mapas no quadro negro como nos revela seu antigo
aluno José Viera Fazenda, mais tarde bibliotecário do IHGB
172
.
Ferdinand Wolf e a canonização internacional da literatura brasileira
Em 1863 os franceses foram agraciados com o volume Le Brésil littéraire – histoire de
la littérature brésilienne, de Ferdinand Wolf.
O império do Brasil viu nestes últimos anos sua influencia aumentar, a ponto de atrair a atenção
de toda a Europa civilizada. Naturalistas, etnógrafos, historiadores, homens de estado, tomaram-
no por objeto de seus estudos, de que resultou um numero considerável de obras importantes.
Apenas por um aspecto o Brasil continuou até agora uma terra desconhecida dos Europeus: sua
literatura indígena e nacional conservou-se na obscuridade. Mal aparece entrevista em algumas
obras sobre a literatura portuguesa, vindo inclusa como exíguo apêndice.
No entanto, a literatura do Brasil fez tais progressos, sobretudo de trinta anos a esta parte, que
não se lhe pode recusar por mais tempo o lugar que lhe compete na história das literaturas
nacionais.
O Brasil literário pode ser tomado, como pensavam as más nguas da época, como o
cânone supremo da confraria literária sustentada e protegida pelo Imperador que aliás,
patrocinou também a publicação da obra... Trata-se de um monumento bastante tardio à
primeira geração romântica, fragmentada e literariamente pouco influente no país.
Gonçalves de Magalhães não publicou nada de significativo desde A confederação dos
Tamoios; o poema nodal de Porto Alegre, O Colombo, ainda estava em fase de composião;
Gonçalves Dias morreria no ano seguinte, levando consigo os cantos que deveriam completar
Os Timbiras; e após a publicação de O forasteiro, em 1856, Macedo publicara apenas a
coletânea Os romances da Semana, entregue de corpo e alma à potica.
171
SERRA, Tania. Joaquim Manuel de Macedo ou Os dois Macedos: a luneta mágica do II Reinado. 1994, p.
111.
172
Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. 1924, p. 248.
72
O Brasil literário, de Ferdinand Wolf, não foi a primeira obra publicada no exterior
sobre nossa literatura pátria, como foi também a primeira obra sistematicamente escrita sobre
nossa literatura, visto que a planejada História da literatura de Joaquim Norberto de Souza
Silva nunca veio à lume e, por outro, lado Silvio Romero lançaria sua versão sobre o tema
em 1888. O que interessa ao austríaco Ferdinand Wolf é a contribuição de cada autor para a
nacionalidade de nossa literatura, apontando dois vultos como nossos maiores baluartes:
Gonçalves de Magalhães e Joaquim Manuel de Macedo. A importância do primeiro é
fenomenal: Wolf se porta diante dele como Hegel diante de Napoleão Bonaparte, isso é, como
se estivesse diante do espírito absoluto de nossa literatura. “O verdadeiro romantismo com
efeito não é mais que a expressão do gênio de um país, desembaraçado de todos os entraves
da conveão”
173
, comentaria ele para retomar em seguida:
O nativismo recebera do romantismo sua consagração ideal, o desenvolvimento interior tinha
tomado muita consistência para que se pudesse realizar este princípio, uma literatura nacional
verdadeira tornou-se então possível. Faltava que aparecesse um espírito de elite para procurar
dar a vitória ao nativismo, para dar um corpo ao que estava no ar, para pronunciar o que estava nos
lábios de todos, para emancipar a forma como o espírito o havia sido previamente; o faltava
numa palavra mais que a aparição do homem do século. E como sempre acontece nas épocas em
que o coração de um país está prestes a transbordar, este homem apareceu também no Brasil e foi
Domingos José Gonçalves de Magalhães, chefe da escola verdadeiramente nacional
174
.
É certo, como ficamos sabendo no prefácio da obra, que o autor foi profundamente
assessorado” e “aconselhado” pelo próprio Gonçalves de Magalhães, por Ernesto Ferreira
França e por Manuel de Araújo Porto-Alegre, um grande amigo do primeiro responsável,
segundo as más línguas da época, pela fantasmagórica posição do poeta na obra de Wolf. Seja
como for, Magalhães era assim alçado internacionalmente à constelação dos grandes astros
literários brasileiros, por mais que em nosso país sua aura já estivesse se dissipando. Macedo,
por sua vez, é apontado como o mestre do romance nacional, ainda que Wolf o tenha sido
apresentado à José de Alencar certamente como uma retaliação às cartas sobre A
confederação dos Tamoios e conceda especial atenção em seu livro à “epopéiaA nebulosa
considerada, ponderadamente, apenas um poema rico e descritivo. Magalhães e Macedo,
ao lado de Gonçalves Dias e Porto Alegre são sagrados como os maiores heróis de nossa
literatura, ainda que em nosso país a situação fosse outra. Uma nova geração está em
formação e em breve tomará de assalto as belas letras nacionais.
173
O Brasil literário. 1955, p. 207.
174
O Brasil literário. 1955, p. 209.
73
A virada literária de Joaquim Manuel de Macedo
Em 1862 se falava de realismo no Brasil e a majestade literária de Macedo passava
a ser contestada pela crítica da época, sensibilizada pela pena de Alencar. Tais críticas,
somadas às novas influências literárias e aos novos cargos ocupados, como aquele da
Assembléia Geral, incentivam o autor a novos experimentos, e sua prosa passa a assumir
novos contornos, mais críticos e cortantes. É possível que sua carreira potica também
influencie este quadro, pois em 1864 ele vai recusar um ministério oferecido pelo próprio
Imperador, como comenta Salvador de Mendonça:
quando o Conselheiro Francisco José Furtado trabalhava para organizar o gabinete liberal de 31 de
agosto de 1864, convidou o Dr. Macedo para a pasta de Estrangeiros. Macedo recusou-se por saber
que essa era a pasta imediatamente gerida pelo Imperante e o querer sujeitar-se à mera
referência de decretos. Como o Presidente do Conselho comunicasse ao Imperador a recusa de
Macedo, o Chefe do Estado ordenou ao organizador do gabinete que mandasse o Dr. Macedo ter
com ele, embora não fosse essa a praxe. E insistindo pessoalmente com o deputado fluminense
para que aceitasse a pasta do Império, desde que não queria a de Estrangeiros, por se aquela
também a Instrução Pública em que ele tão bons serviços podia prestar, Macedo, depois de outras
desculpas, disse afinal: “Admita-se que eu tenha as qualidades que Vossa Majestade me atribui;
mas não sou rico, requisito indispensável a um ministro que queira ser independente, e eu não
estou para sair do Ministério endividado ou ladrão!”.
À vista desta razão foi o Imperador quem cedeu, e eu sei quanto cresceu em sua estima o
desistente
175
.
Macedo acredita tanto em sua “cruzada civilizatória” que recusa os louros óbvios da
glória pública em detrimento de seus ideais: não usa a condecoração da Ordem da Rosa obtida
com a publicação de A nebulosa, por se julgar pouco qualificado para tanto; recusa uma pasta
ministerial, tão desejada por Alencar, por medo de ser subjugado à corrupção política reinante
no país, tão flagrantemente denunciada em alguns de seu melhores romances; e, ainda, como
se tais atitudes não bastassem, como se impaciente diante da sociedade, seus romances
também se tornam menos condescendentes, substituindo elogios por críticas amargas.
Talvez sua publicação seguinte, como nos indica Tania Serra, possa oferecer subsídios
para a compreensão dessa transição. Em O culto do dever, lançado em 1865, Macedo
apresenta um código de conduta “adequado a um ‘homem de bem’, espécie de paradigma
moral do ser humano superior
176
, cuja máxima maior consiste na total obediência ao dever:
nem dinheiro, nem bem-estar pessoal, mas o dever e a honra. Diretamente inspirada pela
Guerra do Paraguai, iniciada nos fins de 1864, essa obra visa insuflar o patriotismo da
população brasileira apresentando-nos o drama de Angelina e Teófilo. Na primeira parte da
175
Cousas do meu tempo. 1964, p. 115-16.
176
Joaquim Manuel de Macedo ou Os dois Macedos: a luneta mágica do II Reinado. 1994, p. 125.
74
obra, vemos os esforços de Domiciano, o pai da moça, para sustentar o seu lar, enquanto o
jovem Teófilo estuda em Portugal. É Domiciano quem encarna a “voz” do autor e expõem
suas idéias acerca do culto do dever, trabalhando para além de seus limites em nome do bem-
estar da filha. Na segunda parte, quando Teófilo retorna de Portugal, a guerra estoura e o
jovem se diante de um terrível dilema moral: seu casamento, que o livraria da guerra e
garantiria à jovem uma vida tranqüila, ou a defesa da pátria. Estimulado pela própria noiva o
rapaz se sacrifica “ao culto do dever” e parte para o campo de combate. Essa obra, que nunca
foi re-editada, figura como um divisor de águas na ficção macediana, que passa a ser dividida
por Tânia Serra em duas fases: o Macedo “das mocinhas”, que narra a estabilização da classe
dia brasileira e o cotidiano da população carioca, profundamente marcada pela evasão
romântica; e o Macedo dos adultos”, cujas obras são voltadas para as famílias e para a elite
cultural do país, repletas de críticas ácidas e de personagens psicologicamente mais densas,
em um esforço de atingir um público mais maduro.
Tania Serra estabelece uma total identidade entre o escritor e Domiciano: assim como
o personagem, Macedo prefere viver de modo modesto, com seus próprios recursos, do que
viver abastadamente, dependendo dos favores de outros – o que teria originado sua recusa da
pasta ministerial. Ademais, o modo como Domiciano se desgasta no trabalho para dar à filha
o mesmo conforto de sempre se assemelha aos amplos esforços do autor para o sustento de
sua esposa – inclusive prenunciando seu próprio fim: o personagem morre deixando a filha na
miséria, legando-lhe apenas uma carta em que apresenta suas idéias acerca do culto do dever;
o mesmo acontecerá com Macedo, que deixaria esse romance como uma “carta” para a
esposa, justificando o triste fim de seus dias.
De um modo geral, observamos que a intelectualidade das décadas de 30 e 40 não se
mostrará tão entusiasmada” na cada de 60, seja porque seus sonhos juvenis se foram com
o tempo, seja porque a cruzada civilizatória encampada então lhes pareceria agora menos
promissora. O Brasil se civilizava e se tornava mais moderno, certamente, mas o a par de
seus áureos anseios. Visitando o Rio de Janeiro em 1871, Magalhães notou “alguns pequenos
progressos materiais, mas a respeito de potica, de moral e de religião”, comentaria ele, “a
decadência é mui sensível e assustadora”
177
. Em 1877, em uma missiva destinada à seu amigo
Porto Alegre, o diplomata escreveria:
quanto às coisas do Brasil, eu também não as vejo cor de rosa. Mas observo que apesar de
tudo ele vai prosperando, que tem vencido grandes dificuldades, e que não nada que
177
Cartas de Gonçalves de Magalhães a Manuel de Araújo Porto Alegre (I). 1934, p. 117.
75
nos contente. Somos mais inclinados à crítica que ao louvor e isso nos faz ver as coisas
pelo lado mau”
178
.
Ainda que condicionada por imperativos de ordem pessoal, a virada literária de
Macedo deve ser inserida em um quadro mais amplo de transformações estéticas e culturais.
Seja lançando novas diretrizes, seja apenas antecipando uma tendência mais geral e
inexorável, Macedo é o primeiro, entre os grandes literatos do século XIX, a cobrar do
público uma maior adesão aos princípios veiculados em seus romances e à criticar
severamente suas faltas morais com uma literatura mais engajada atitude sobremaneira
ligada à ruína dos ideais da “geração entusiasta”. Como veremos, ainda que brevemente, uma
nova geração com ideais próprios começa a tomar vulto no final da década de sessenta,
tomando de assalto todas as esferas do pensamento oitocentista. Fenômeno “singular” como o
de Macedo, ou ligado às mesmas tendências históricas, Alencar também se voltará “contra”
seu blico usual, passando a investir em uma literatura pouco afeita aos padrões do período
mas estritamente conjugada à suas concepções existenciais e estéticas. Como comentaria Eloy
Pontes: “os artistas, sobretudo, o podem seguir em linha reta até o fim. A desordem nos
esforços é a marca indelével que os realça”
179
.
Pouco dissemos sobre a trajetória de Alencar, mas foi ele quem, efetivamente, mais
contribuiu para a história do romance em nosso país nesse intervalo. Com Lucíola, publicado
em 1862, e com Diva, lançado em 1863, o escritor cearense legara ao publico fluminense duas
dádivas literárias de valor excepcional. Cada vez mais densas e realistas, as tramas de José de
Alencar passam a se distanciar da tipicidade característica aos primórdios do romantismo para
se ater à individualidades excepcionais, singulares. O maravilhoso ainda move os fios do
destino, mas o cotidiano de suas personagens passa a assumir um colorido mais detalhado e
preciso à medida que os diálogos e as sensações de suas personagens passam a ser mais
trabalhadas.
Cada vez mais distante da vida social da corte, Alencar se entregara ao teatro e à vida
política, fonte de amarguras supremas para sua personalidade aristocrática”. Lucíola,
demônio da luxúria, e Diva, anjo da castidade, atraíram severas críticas ao romancista. Com O
gaúcho, publicado em 1870, Alencar adentrará um universo literário absurdo, caracterizado
por Araripe Júnior como “uma espécie de sala de hospício de alienados”
180
. Hostis e
honrados, socialmente desajustados mas essencialmente virtuosos, os personagens de Alencar
178
Cartas de Gonçalves de Magalhães a Manuel de Araújo Porto Alegre (II). 1934, p. 493.
179
A vida inquieta de Raul Pompéia. 1935, p. 113.
180
José de Alencar. 1894, p. 162.
76
buscam demonstrar ao mundo a natural defasagem entre essência e aparência ainda que
cada vez mais inverossímeis. Seus romances passarão a vender como nunca, mas seu espírito
continuadescontente. À partir de O tronco do i, lançado em 1871, ele passará a assinar
suas obras com a alcunha de Sênio – completamente desiludido com a sociedade. Com
Senhora, o terceiro perfil feminino que viria a se somar à Lucíola e Diva, Alencar atacaria
uma das instituições brasileiras mais sagradas: o matrimônio. O escritor nunca abandonará o
romantismo, mas suas personagens guardarão matizes cada vez mais realistas e seus esforços
contribuíram muito para o aperfeiçoamentodo romance brasileiro, influenciando de modo
expressivo a obra de Joaquim Manuel de Macedo e de Machado de Assis.
Araripe Júnior considera que a monstruosidade dos personagens de seu tio refletia as
agruras de seu nio. Diva e Lucíola traem a existência de um verme corrosivo, que em sua
alma se introduzira, primeiro por emulação de escolas, depois por vaidade e desejo de armar
ao público, e no fim por terem-lhe acirrado o temperamento
181
. Canho, a hei de O gaúcho,
seria “simplesmente um pesadelo concretizado, um fantasma saído das profundezas de uma
alma alquebrada, projetando-se, por um esforço da fantasia, com todas as incongruências
agitadas na imaginação onde gerou-se, em um cenário real, mas descrito de oitiva”
182
.
Acompanhando os sinais do tempo, as personagens de Macedo, bem como as
personagens dos demais literatos a partir de então, passarão a exibir características
nitidamente distintas das representadas nos primórdios do romantismo – como podemos
observar, por exemplo, no que diz respeito à idade. Se nossos literatos retrataram em seus
primeiros romances a juventude em seu gracioso esplendor, passarão agora a apresentar
personagens mais velhas e a abordar problemas próprios à idade adulta, seja porque o público
envelheceu como eles, seja porque a sociedade não se encontra mais na alvorada de seus anos
ou seja ainda porque o público não se interessa mais pelas traquinagens da mocidade
mocidade esta, aliás, diferente da observada na década de 40. Como veremos com mais
cuidado na segunda parte deste trabalho, a cruzada civilizatória oitocentista reorientou certos
padrões culturais ligados à juventude herdados da sociedade brasileira colonial, e essa guinada
literária rumo à idade adulta está antenada à estas transformações – especialmente no que toca
ao casamento. Durante os anos da colônia e ainda nas primeiras décadas do império, nossos
patrícios “subiam ao altar” muito cedo, o que atendia, por um lado, às necessidades
populacionais do país, mas que trazia, por outro, uma série de infortúnios aos jovens
181
José de Alencar. 1894, p. 84.
182
José de Alencar. 1894, p. 142.
77
conjugues prática cultural que tomou novos contornos sob a égide dos novos tempos, ditos
civilizados”, passando o matrimônio a ser indicado para indivíduos mais “maduros”.
Carolina, a emblemática figura central de A moreninha, de Macedo, foi “retratada”
quando tinha quinze anos de idade, e seus endiabrados visitantes não contavam mais de
dezoito; tanto o não identificado narrador de Cinco minutos, publicado por José de Alencar,
como sua amada, a jovem Carlota, contavam apenas dezesseis anos de idade. Félix, o
personagem principal do romance Ressureição, lançado por Machado de Assis em 1872,
exibirá trinta e seis anos, e Lívia, sua “amada”, contará vinte e quatro. Estácio, traçado por
Machado em Helena, no ano de 1876, vivera vinte e sete verões quando conheceu Helena,
ainda no esplendor de seus dezesseis anos. Ao passo que o degenerado protagonista de A pata
da gazela, publicado em 1870 por Alencar, Horácio de Carvalho, contaria vinte e nove anos,
Aurélia Camargo, a intrépida protagonista de Senhora, contaria dezoito, e seu amado,
Fernando Seixas, não chegara ainda aos trinta. Em Um noivo à duas noivas, de 1872, Macedo
figurará um triangulo formado por Otávia, com trinta anos, Germano, com trinta e seis, e
Júlia, com dezesseis. Irene, figura central de A baroneza de Amor, lançado pelo escritor de
Itaborái em 1876, contará vinte e três anos, ao passo que o Capitão Avante, seu par literário,
contará vinte e cinco. O narrador das Memórias póstumas de Brás Cubas, publicado por
Machado em folhetins em 1880 e em volume no ano de 1881, falecera com sessenta e quatro
anos; Rubião, o curioso protagonista de Quincas Borba, lançado por Machado em 1891,
contará quarenta e um anos, ao passo que Cristiano de Almeida e Palha contará trinta e dois, e
sua esposa, Sofia Palha, algo entre os vinte e sete e os vinte e oito anos.
Em 1867, as questões sociais estarão em alta: Macedo publica, sob o pseudônimo de
Mínimo Severo, a novela em versos Voragem, o primeiro volume de Mazelas da atualidade –
romances de improviso, “publicada pela Semana Ilustrada, de Henrique Fleiuss, que a
ofereceu como brinde aos seus assinantes”
183
. Voragem, o primeiro romance da segunda fase
literária de Macedo, narra a história da lebre cortesã Irene, a ‘Voragem’ que destrói sem
qualquer problema moral a vida de alguns homens da sociedade fluminense após devorar”
suas fortunas. Carregando nas tintas, o autor retrata as orgias e depravações da época de modo
bastante direto, aproximando-se do realismo e do naturalismo o que justificaria o uso de um
pseudônimo. Nesse ano ele lança ainda o primeiro volume das Memórias de um sobrinho de
183
SERRA, Tania. Joaquim Manuel de Macedo ou Os dois Macedos: a luneta mágica do II Reinado. 1994, p.
134.
78
meu tio, uma inspirada continuação de seu romance de 1855 e reconhecidamente sua melhor
produção ficcional.
Uma nova geração
Deixemos de lado, por algumas linhas, as atribulações existenciais e estéticas de
Macedo para nos determos sobre alguns eventos mais amenos e singulares de nossa história
literária, envolvendo outras figuras notáveis de nosso panteão literário – um verdadeiro
encontro de gigantes.
No dia dezoito de fevereiro de 1868, Machado de Assis, com apenas 29 anos, recebeu
uma missiva que se iniciava com as seguintes linhas:
Recebi ontem a visita de um poeta.
O Rio de Janeiro não o conhece ainda; muito breve o há de conhecer o Brasil. Bem entendido, falo
do Brasil que sente; do coração e não do resto.
O Sr. Castro Alves é hospede desta grande cidade, alguns dias apenas. Vai a São Paulo concluir o
curso que encetou em Olinda.
Nasceu na Bahia, a pátria de tão belos talentos; a Atenas brasileira que não cansa de produzir
estadistas, oradores, poetas e guerreiros.
Podia acrescentar que é filho de um médico ilustre. Mas para quê? A genealogia dos poetas
começa com seu primeiro poema. E que pergaminhos valem estes selados por Deus?
O Sr. Castro Alves trouxe-me uma carta do Dr. Fernandes da Cunha, um dos pontífices da tribuna
brasileira. Digo pontífice, porque nos caracteres desta tempera o talento é uma religião, a palavra
um sacerdócio.
Que jubilo para mim! Receber Cícero que apresentar Horácio, a eloqüência conduzindo pela mão a
poesia, uma glória esplêndida mostrando no horizonte da tria a irradiação de uma límpida
aurora!
Mas também quanto, nesse instante, deplorei minha pobreza, que não permitia dar a tão caros
hóspedes régio agasalho. Carecia de ser Hugo ou Lamartine, os poetas-oradores, para preparar esse
banquete da inteligência.
Se, ao menos, tivesse nesse momento junto de mim a plêiade rica de jovens escritores à qual
pertencem o senhor, o Dr. Pinheiro Guimarães, Bocaiúva, Muzzio, Joaquim Serra, Varela,
Resende Muniz e tantos outros!... Entre estes, porque não lembrarei o nome de Leonel de Alencar,
(seu mano) a quem o destino fez ave de arribação na terra natal? Em literatura não suspeição:
todos nós, que nascemos em seu regaço, não somos da mesma família?
Mas a todos o vento da contrariedade os tem desfolhado por aí, como flores de uma breve
primavera.
Um fez da pena espada para defender a pátria. Alguns têm as asas crestadas pela indiferença;
outros, como douradas borboletas, presas da teia da aranha, se debatem contra a realidade de uma
profissão que lhes tolhe os vôos
184
.
184
Citada por Raimundo de Menezes. José de Alencar: literato e político. 1965, p. 233-34.
79
Assinada por ninguém menos que Jo de Alencar, a extensa carta não nos
apresenta novos detalhes acerca das concepções artísticas do escritor como nos indica o
promissor alvorecer de uma nova geração.
Com efeito, no dia anterior Alencar recebera a inesperada visita de um jovem esguio e
extravagante que o tratava por Mestre”. O Correio Mercantil anunciara sua chegada, quatro
dias antes, e Alencar ouvira falar muito neste rapaz de gênio, apressando-se a recebê-lo e
chegando mesmo a abraçá-lo após ler sua carta de apresentação. Entusiasmado, Alencar
chama sua esposa e ambos ouvem o lido poeta recitar o drama Gonzaga e uma série de
poesias. Desgostoso da vida, o quadragenário Alencar tinha diante de si um vulcão em
erupção, e não mediu esforços para apresentar o poeta baiano a seu amigo Machado de Assis,
pedindo-lhe que se tornasse o Virgílio do jovem Dante”:
Nesta capital da civilização brasileira, que o é também de nossa indiferença, pouco apro tem o
verdadeiro mérito quando se apresenta modestamente. Contudo, deixar que passasse por aqui
ignorado e despercebido o jovem poeta baiano, fora mais que uma descortesia. Não lhe parece?
um poeta o saudou pela imprensa; porém, não basta a saudação; é preciso abrir-lhe o teatro, o
jornalismo, a sociedade, para que a flor desse talento cheio de seiva se expanda nas auras da
publicidade. Lembrei-me do senhor. Em nenhum concorrem os mesmos títulos. Para apresentar ao
público fluminense o poeta baiano, é necessário o ter o foro de cidade na imprensa da corte,
como haver nascido neste belo vale do Guanabara, que espera um cantor.
Seu melhor título, porém, é outro. O senhor foi o único de nosso modernos escritores, que se
dedicou sinceramente à cultura dessa difícil ciência que se chama crítica. Uma porção de talento
que recebeu da natureza, em vez de aproveitá-lo em criações próprias, teve a abnegação de aplicá-
lo a formar o gosto e desenvolver a literatura pátria.
Do senhor, pois, do primeiro crítico brasileiro, confio a brilhante vocação literária, que se revelou
com tanto vigor.
Seja o Virgílio do jovem Dante, conduza-o pelos ínvios caminhos por onde se vai à decepção, à
indiferença e finalmente à glória, que são os três rculos ximos da divina comédia do
talento
185
.
A poesia de Castro Alves, talvez a mais emblemática da geração que se levanta,
guarda ainda muitos laivos da estética romântica mas já nos indica certos traços de um novo
programa recebendo de Fausto Cunha o epíteto de “realismo romântico”. vimos que suas
concepções acerca da missão do artista em nada se afastavam das prerrogativas estipuladas
por Magalhães e sua plêiade, antes as reatualizando e reiterando sua validade em sua época.
Efetivamente, a figura do gênio tem um papel central na organização do único volume de
composições que o jovem autor laou ao público, as Espumas flutuantes, em outubro de
1870. Arrastando a cruz da angústia, como destacaria na composição Os anjos da meia noite,
Castro Alves tinha plena consciência de que alcançaria no futuro um posto no panteão da
glória – no entanto, como repetiria uma voz fúnebre: “Teu Panteão – a pedra mortuária”.
185
Citada por Raimundo de Menezes. José de Alencar: literato e político. 1965, p. 233-34.
80
E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito
Um mal terrível me devora a vida:
Triste Ahasverus, que no fim da estrada,
Só tem por braços uma cruz erguida.
Sou o cipreste, qu’inda mesmo florido,
Sombra de morte no ramal encerra!
Vivo que vaga sobre o chão da morte,
Morto – entre os vivos a vagar na terra.
Do sepulcro escutando triste grito
Sempre, sempre bradando-me: maldito!
186
Ultra-trágico como um autêntico romântico, Castro Alves deixaria para trás dois
marcos da geração de Magalhães: a crença no poder do Monarca e as idealizações amorosas.
Republicano fervoroso, o poeta julgaria seu país conspurcado por duas escravidões: a dos
negros pelos brancos, evidentemente, e a de todos ao Imperador. Como sabemos, suas
composições abolicionistas não foram incluídas nas Espumas flutuantes e viriam à lume
mais tarde, mas ele será sempre lembrado como um ardente defensor da liberdade. Quanto à
sua poesia lírica, ela se mostra mais candente que a de Gonçalves Dias, o único entre sua
geração a se entregar às graças do amor mas ao passo que o autor dos Primeiros cantos
desejava, ainda que apenas retoricamente, unir suas harpa ao coro mais amplo do conjunto
celestial, Castro Alves preferia antes se lançar aos prazeres do mundo:
Morrer – é ver extinto dentre as névoas
O fanal, que nos guia na tormenta:
Condenado – escutar dobres de sino,
– Voz da morte, que a morte lhe lamenta –
Ai! morrer – é trocar astros por círios,
Leito macio por esquife imundo,
Trocar os beijos da mulher – no visco
Da larva errante no sepulcro fundo
187
.
Uma nova geração, da qual ele é um eminente representante, começa a tomar vulto,
expressando novas idéias sociais e literárias. A Academia de Direito de São Paulo morada
a todo um corpo de intelectuais que mais tarde terão influência decisiva na história do país:
Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Ferreiras de Meneses, o próprio Castro Alves, Rodrigues
Alves e Afonso Pena, para ficarmos apenas com os mais conhecidos. A situação potica
brasileira se encontrava bastante tensa e a própria monarquia passava a ser programaticamente
questionada, como atesta o panfleto anônimo A conferência dos divinos, onde Dom Pedro II é
retratado como um comandante superficial, esnobe e odiável contracenando com Nero e
com um ‘César Desconhecido’ num fórum romano completamente idealizado. Segundo Silvio
Romero:
186
Espumas flutuantes. 1997, p. 30-31.
187
Espumas flutuantes. 1997, p. 30.
81
Rejeitando o velho romantismo lamuriento e pantafaçudo, os moços fazem uma poesia de
combate, interessam-se pelos problemas sociais, e todos eles, todos os jovens literatos o
republicanos. Ao passo que os seus antecessores faziam versos aos príncipes, nascidos ou
falecidos, e aos imperantes nos dias de seus anos, eles combatem os reis e lhes almejam a queda. É
esta a face mais viva, mais rutilante dos novos pelejadores
188
.
Ao passo que o entusiasmo da geração romântica se esvai lentamente, esse grupo de
jovens sempre os jovens! intelectuais se lança à cruzada civilizatória oitocentista
embalado pela ventura e pelo entusiasmo “signos brilhantes da aliança de Deus com a
juventude”
189
, como bradaria Castro Alves. Devemos notar que em 1905 Silvio Romero irá se
referir à essa geração como a mais tua e pretensiosa que se poderia imaginar”
190
, mas
dentre em pouco ela destronará o romantismo com o apoio de suas palavras...
Em meio a tal clima, é publicado o volume Literatura Pantagruélica: os avestruzes no
ovo e no espaço (ninhada de poetas), atribuído à uma inusitada parceria entre Alencar,
Macedo e Machado até hoje não confirmada. De qualquer modo, Alencar encenaria ainda A
expiação, tida como a segunda parte de As asas de um anjo, e após lançar o segundo volume
das Memórias de um sobrinho de meu tio, Macedo publicaria nesse ano um novo romance, A
luneta mágicauma das poucas obras bem sucedidas de sua segunda fase.
Macedo e o prenúncio de novas estéticas
A crítica social sempre esteve presente nos romances do escritor de Itaboraí, ainda que
com tons mais amenos, mas o público não perdoará sua virada brusca a partir de agora suas
obras terão uma baixa vendagem e, em geral, não serão re-editadas. Antes tão bem recebidos
pela crítica especializada, seus romances serão agora violentamente criticados, como é o caso
de As vítimas-algozes: quadros da escravidão, publicado em 1869, um libelo anti-
escravagista apontado como “impróprio para os mais jovens”por levar a escola realista para
além de seus limites... Macedo publicará ainda O rio do quarto, igualmente marcado por um
tom naturalista, mas desta vez revestido de um cunho histórico. É verdade que a prosa de
Macedo percorria então caminhos novos, nesse caso prenunciando o naturalismo, mas a
verdade é bem outra: o público está se rebelando contra suas obras. Uma nova geração de
escritores caracterizados por Wilson Martins como “jovens lobos sedentos de sangue”
191
188
História da literatura brasileira – tomo quinto: diversas manifestações na prosa, reações anti-românticas na
poesia. 1960, p. 1690.
189
Espumas flutuantes. 1997, p. 14.
190
História da literatura brasileira – tomo quinto: diversas manifestações na prosa, reações anti-românticas na
poesia. 1960, p. 1400.
191
MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. 1977, vol. III, p. 301.
82
está buscando e consolidando seu espaço, e o autor, cada vez mais identificado com o Império
por suas obras de encomenda, é considerado passado. É assim que dele se lembra Taunay,
prosseguindo a citação tão graciosa que apresentamos mais acima: Pobre Macedo! Vi-o,
depois, tão ludibriado pelos novos que iam chegando, depreciado em todos os seus livros,
repelido pelos editores”
192
.
Com As vítimas-algozes quadros da escravidão, supostamente uma obra de
encomenda, Macedo toma para si a tarefa de esclarecer a classe senhorial brasileira dos
imensos prejuízos desta nefanda instituição em todas as esferas da existência do país tanto
no cotidiano das relações humanas como no futuro da própria civilização brasileira.
Em Simeão o crioulo, Macedo aborda a situação em que são lançados os escravos
criados no seio da família, longe do pantanal de cios e horrores da senzala mas igualmente
distantes de uma posição definida na sociedade. Criado como um membro da família após a
morte de sua mãe, que fora ama da filha do casal, Simeão nunca conheceu os terríveis
grilhões da escravidão, mas “não o fizeram aprender ocio algum, nem lhe deram tarefa, e
ocupação na fazenda: abandonando-o à quase completa ociosidade”
193
. Envenenado por
seus irmãos cativos ele abomina seus senhores por sua condição de escravo e, conhecendo
todos os “segredos” de sua morada, lidera um trágico massacre em busca de sua liberdade.
Pai-Raiol – o feiticeiro, nos apresenta a sinistra aliança do “charlatão” Pai-Raiol com a
lasciva Esméria em busca da destruição da família de seus senhores, conduzida nas sombras
pelo odioso envenenador e levada adiante pela bela mulata – que com a habitual dissimulação
imposta por sua condição
194
conquistou facilmente as graças da família. Valendo-se de seus
preciosos dotes físicos, estimulada pelo feiticeiro, Esméria tomou primeiramente o lugar de
sua senhora na “mente” de Paulo Borges pois Macedo faz questão de ressaltar a natureza
puramente carnal das relações entre ambos, visto que “para o escravo a lascívia é que é
amor”
195
e lentamente se apossou de todos os domínios de sua vida, desestruturando a
harmonia de seu lar e conduzindo sua esposa e seus filhos à morada dos anjos... Lucinda a
mucama, discute a perniciosa influência dos escravos na intimidade familiar, apresentando a
perversão da jovem Cândida, cujo nome não poderia ser mais expressivo, sob a companhia de
sua criada particular Lucinda a fonte límpida em contato com o charco. Após transformar a
192
Memórias. 1960, p. 56.
193
As vítimas-algozes. 1991, p. 19-20.
194
“Ninguém dissimula melhor do que o escravo: sua condição sempre passiva, a obrigação da obediência sem
limite e sem reflexão, o temor do castigo, a necessidade de esconder o ressentimento para não excitar a lera
ameaçadora do senhor, o hábito da mentira, enfim, fazem do escravo o tipo da dissimulação”. As vítimas-
algozes. 2001, p. 59.
195
As vítimas-algozes. 1991, p. 143.
83
inocente mocinha em uma consumada namoradeira, a maliciosa mucama passou a investir na
escolha do seu senhor e não alimentou as brasas de um relacionamento impuro como
chegou mesmo a permitir que o pérfido Dermany violentasse sua senhora, supostamente
garantindo assim um casamento que nunca se realizaria de outra forma.
Ainda que esteja narrando apenas “histórias verdadeiras”, amplamente conhecidas por
todos
196
, é inegável que Macedo carregou nas cores de seu romance. Todas as narrativas têm
um final trágico, sem “concessões” para os personagens “bonzinhos”: os escravos malignos
encontram a morte ou a prisão, mas depois de destruírem a vida de seus senhores ou de
desestruturarem suas economias, suas reputações e seus destinos.
A Providência marcava por diversos modos a punição dos criminosos; mas de envolta com essas
punições acendia uma luz que somente os cegos não vêem, a luz do infortúnio, da desmoralização,
da miséria moral, que em vingança implacável a escravidão impõe à sociedade escravagista
197
.
Estamos diante de uma obra evidentemente romântica, mas com elementos mais sérios
e com cenas de violência e erotismo pouco usuais, que se diluem da primeira para a última
narrativa, como se o autor temesse chocar demais seus leitores ou perdesse seu impulso
realista supondo-se que as histórias foram escritas na ordem em que foram publicadas no
livro.
1870 e os impasses da literatura
Em 1870, um conjunto de novas idéias começa a se avultar nos horizontes intelectuais
brasileiros, sobremaneira o positivismo de Auguste Comte, cujo principal representante em
nosso seio foi o pensador Luís Pereira Barreto mas o império francês sobre nossa
intelectualidade estava com seus dias contados. Da Alemanha passam a soprar ventos cada
vez mais fortes, e diversas teorias e pensadores germânicos passam a figurar em nossas
páginas. Os donios da potica também se agitam: A província, de Tavares Bastos, figura
como a primeira formulação do programa republicano no país emulado posteriormente pelo
Manifesto Republicano, publicado em dezembro por Quintino Bocaiúva, Salvador de
Mendonça e Saldanha Marinho. Para os românticos, o advento destas idéias está ligado à
crescente desmoralização de nossos costumes e ao esquecimento de Deus, mas para os
impávidos representantes do progresso as páginas da história estavam apenas sendo viradas...
196
As vítimas-algozes. 1991, p. 01.
197
As vítimas-algozes. 2001, p. 310.
84
Em termos de sensibilidade, tomando a história do romance nacional como um amplo
catálogo de representações, podemos notar a consolidação de padrões e comportamentos
“sugeridos” pelas obras das décadas anteriores, tanto pelo abandono de certas questões quanto
por sua naturalização nas páginas de nossos romancistas, bem como a problematização de
novos temas e a complexificação de assuntos ainda em pauta, indiciada pela observação de
aspectos “em aberto” de determinadas questões.
Literariamente a década de 70 foi agitada e conturbada. A crítica é unânime em
conceder a primazia literária à Alencar, dando seguimento à seus “show de horrores” e se o
público estava interessado em seus romances altamente “fantasiosos” não é de se estranhar
que a prosa moralizante de Macedo passe a ser deixada de lado. De qualquer modo, é nesta
década que a primazia de ambos começa a ser questionada por um crítico tão furioso quanto
apaixonado: Silvio Romero. Dois novos romancistas passam a ocupar as horas e a atenção do
público fluminense, Alfredo d’Escragnole Taunay e Machado de Assis, buscando expandir as
fronteiras do romantismo, justamente como seus mestres Macedo e Alencar – e com o avançar
do século novas estéticas passam a se esboçar nos domínios da poesia, como veremos em
breve.
Wilson Martins toma o ano de 1872 como um divisor nas águas de nossa literatura,
um ponto de encontro, confluência e dispersão entre a geração dominante e a geração
ascendente, cada uma delas carregando consigo um ‘programa’ diferente, se não oposto, ao da
outra”
198
. Os intelectuais do período, por outro lado, tomavam o ano de 1870 como baliza de
novas idéias, práticas culturais e literárias apontando o fim da guerra contra o Paraguai
como o índice dessa “ruptura”, raciocínio inspirado por um dos clássicos “ídolos da história”
que dominavam o pensamento historiográfico da época. Seja como for, encontraremos na
produção literária deste período certa inflexão romântica, uma série de críticas programáticas
e mesmo literárias ao romantismo e uma tortuosa peregrinão vacilante em direção ao
realismo, acompanhando talvez movimentos espirituais mínimos da populão fluminense.
Esse processo de amadurecimento foi marcado por diversos impasses, ditados tanto pela
prevalência de fórmulas antigas quanto por limitões artísticas pessoais e mesmo históricas –
impasses que possivelmente acompanhavam as transformações da sociedade brasileira,
ansiosa por novas feições mas ainda presa” à antigas convenções culturais em processo
bastante lento mas extremamente perceptivo.
198
História da inteligência brasileira. 1977, vol. III, p. 368.
85
O casamento dominou absolutamente a atenção dos romancistas do período: todos os
quatro romances de Machado de Assis da cada, tidos como sua produção romântica, tem o
matrimônio como eixo principal, bem como o único romance “urbano” de Franklin vora, O
sacrifício. Alencar enfocou o tema com esmero nos Sonhos d’ouro e em Senhora, e dos seis
romances publicados por Macedo na época quatro foram dedicados ao assunto e de modo
paradigmático. Como veremos, seja unicamente por uma questão de primazia histórica ou
efetivamente pela forca de seu gênio, senão por uma aguda percepção dos problemas sociais
que o rondavam, tanto os romances Ressurreição, de Machado de Assis, quanto os Sonhos
d’ouro, de Alencar, desenvolvem tramas derivadas da apresentada por Macedo em Nina, e O
sacrifício, de Távora, segue praticamente os mesmos moldes expostos em A baronesa de
Amor sem mencionar ainda A mocidade de Trajano, obra de estréia de Alfredo Taunay, que
como as produções de Machado e Alencar nos apresenta reflexões suscitadas primeiramente
nas páginas de Nina. As tradições a que estavam filiados conferem matizes distintos às
discussões mais amplas sobre o tema, naturalmente, seguindo Macedo, Taunay e Távora por
caminhos diversos dos trilhados por Alencar e Machado, fundamentalmente no que concerne
ao papel social da mulher e à certos predicados românticos (dos quais Machado, em especial,
busca se desvencilhar) – mas a preponderância do assunto nos indica sua relevância no
período.
Bem entendido: quando nos referimos às diferentes nuanças esboçadas pelos
representantes de cada tradição não sugerimos que suas posições acerca do matrimônio
entrassem em conflito, pois todos o tinham na mais alta conta, mas nos referimos às ênfases
com que as duas tradições observarão o assunto: a linhagem de Macedo quebrando lanças
pela mais completa observação e conservação das normas sociais vigentes, tais como
esboçadas pelo seu “culto do dever”, e a linhagem de Alencar discutindo já novas
configurações para a instituição sem extravasar, no entanto, as delimitações da norma. Não
devemos perder de vista, de qualquer modo, os impasses estéticos e sociais a que todos
estavam submetidos, evocados logo de saída pelo tema em questão: tudo nos indica que o
casamento, bem como seu fundamento maior, o amor, não passava por bons momentos.
O romance Nina pode ser compreendido como uma revisão de A moreninha diante das
novas perspectivas de Macedo: se o capricho e a independência feminina podiam parecer
adoráveis na década de 40, agora eles serão apresentados como problemas de caráter
detestáveis. Nicolina é uma jovem de dezoito anos que domina as atenções de sua família e de
seus rculo de amigos, noiva do promissor Dr. Vidal, que unicamente por uma questão de
86
capricho decide encenar uma paixão pelo provinciano Firmiano, irremediavelmente
apaixonado por ela. Cada vez mais interessado na escola realista, Macedo deixa para trás as
risonhas idealizações do passado para se ater unicamente à esmagadora evidência dos fatos:
o qualquer lugar na trama para o desajeitado, feio e pouco instruído Firmiano,
especialmente diante da eminência do Dr. Vidal. Após suscitar as mais áureas esperanças no
coração do mancebo, Nina reata seu noivado com o antigo noivo frustrando quaisquer
perspectivas dos leitores por um final feliz.
Tanto os romances Ressurreição, de Machado de Assis, quanto os Sonhos d’ouro, de
José de Alencar, seguirão a mesma trilha, indicando o destronamento do sentimento com
relação à razão e aos imperativos sociais. Ambos abordarão situações inticas às esboçadas
por Macedo: em Ressurreição encontraremos um “triânguloformado pela romanesca Lívia,
pelo sonhador Menezes e pelo amargurado Félix, e nos Sonhos d’ouro nos depararemos com a
tade formada pela caprichosa Guida, pelo pobre mas virtuoso Ricardo e pelo endinheirado
corretor Bastos mas ao passo que Machado desestruturará completamente a vida de suas
personagens, Alencar levará, após, inúmeras e imensas dificuldades, de modo quase
inverossímil, o casal Guida e Ricardo ao altar.
Macedo, sem dúvida alguma mais experiente que os dois, aparentemente tinha plena
consciência dessas dificuldades, retornando ao debate com o romance A misteriosa, publicado
em 1872. Trata-se de um dos seus melhores textos, leve, curto e bastante divertido, onde ele
se dedica à uma espirituosa sátira ao “desvairado comportamento romântico – julgando
implicitamente, contudo, que apesar de todas as críticas o gênero não poderia ser
completamente abandonado, visto que ainda pautava o comportamento (e agradava ao
paladar) de muitos jovens fluminenses...
Em 1855 os leitores fluminenses acompanharam as peripécias de um jovem
extravagante que se lançara, nos enleios da mais exaltada paixão, em busca de um vulto
misterioso com que se encontrara em um ônibus. Macedo retomará essa disposição inicial
como uma homenagem à José de Alencar mas reiterará, apesar do final amargo de Nina, as
prerrogativas da sensibilidade romântica no período. Desejando oferecer um exemplo aos
leitores de Macedo, um jovem identificado apenas por “Fileno” lhe contara em um manuscrito
sua triste hisria: após se apaixonar por um delgado vulto que saltara de um ônibus, o
mancebo se atirara à sua pista pela cidade do Rio de Janeiro, completamente enfeitiçado pelo
amor. Esquiva, a dama de sua adoração entregou-se aos prazeres da mesa durante toda a tarde,
sem lhe dirigir palavra. Após inúmeros incidentes e o aparecimento de um rival, nosso
87
desvairado herói finalmente conseguiu ficar à sos com a elegante dama, apenas para descobrir
que ela não passava de sua antiga professora de francês, “velha e de terrível aspecto”
199
...
Segundo Macedo, o Rio de Janeiro estaria repleto de Filenos, jovens dados aos arrojos
românticos mais descabelados identificando já um res do romantismo, mais tarde atacado
programaticamente pelas escolas realistas...
Ressurreição é, surpreendentemente, menos romântico do que os romances seguintes
de Machado, mas não consegue, estruturalmente, superar os imperativos da escola e do
período, reiterando inadvertidamente a posição de Macedo: a insuperabilidade da
sensibilidade romântica. Lívia é uma personagem essencialmente romântica, tida por todos e
por si mesma como uma desvairada, mas no fim é o seu modo de ser que prevalece. Felix, o
homem novo do período, tão diferente do sonhador Menezes, “um homem complexo,
incoerente e caprichoso, em quem se reuniam opostos elementos, qualidades exclusivas e
defeitos inconciliáveis”
200
, é quem não está em seu tempo e é condenado à eterna solidão
talvez o personagem mais romântico do livro:
Dispondo de todos os meios que o podiam fazer venturoso, segundo a sociedade, Felix é
essencialmente infeliz. A natureza o pôs nessa classe de homens pusilânimes e visionários, a quem
cabe a reflexão do poeta: “perdeu o bem pelo receio de o buscar”. Não se contentando com a
felicidade exterior que o rodeia quer haver essa outra, das afeições íntimas, duráveis e
consoladoras. Não a de alcançar nunca, porque o seu coração, se ressurgiu por alguns dias,
esqueceu na sepultura o sentimento da confiança e a memória das ilusões
201
.
Dez anos se passaram: “longos e enfastiados para uns, ligeiros e felizes para outros”.
Menezes e Rachel se casaram. “A piedade os uniu; a união os fez amados e venturosos”
202
.
Lívia envereda pelo outono da vida, espiritualmente formosa mas fisicamente abalada. Não
esqueceu até hoje o escolhido de seu coração, e à proporção que volvem os anos, espiritualiza
e santifica a memória do passado”
203
. Romântica incorrigível, abandonou a sociedade e vive
no recôndito de seu lar, amparada pelo amor do filho, a quem se dedica com esmero. Felix,
por sua vez, sofreu muito com o rompimento definitivo, mas se sofreu profundamente, sofreu
por pouco tempo. O amor extinguiu-se como lâmpada a que faltou óleo
204
.
Machado explora uma diversidade de temperamentos e possibilidades existenciais
mais amplas do que Alencar e Macedo, mas ainda regulados pela natureza e pelo tempo. Não
estamos diante de espíritos chapados”, movidos por sentimentos e desejos inalteráveis e
199
A misteriosa. 1944, p. 119.
200
Ressurreição. 1938, p. 11.
201
Ressurreição. 1938, p. 234-35.
202
Ressurreição. 1938, p. 231.
203
Ressurreição. 1938, p. 232.
204
Ressurreição. 1938, p. 233.
88
incorrigíveis, mas por uma série de indivíduos com características próprias e únicas com
desenvolvimentos temporais distintos apontando a mesma complexidade existencial
mencionada nos romances que acabamos de abordar. Lívia e Felix o se transformam com a
passagem do tempo, não ouviram a si mesmos, mas Rachel sim: com o passar do tempo as
impressões de seu primeiro amor foram se apagando
e o coração da moça não achou melhor convalescença que desposar o enfermeiro. Se lho
dissessem no tempo em que ela adoecera por amor do médico, levantaria desdenhosamente os
ombros, e com razão. Donde se colhe quão acertado é aquele provérbio oriental que diz que a
noite vem pejada do dia seguinte. Qual fosse a aurora que a sua noite trazia no seio não o
adivinhara Rachel, mas a sua atual opinião é que o a podia haver mais bela em toda a escala do
tempo
205
.
Em 1852 Manuel Annio de Almeida dissera que o primeiro amor é sempre o
último, isto é, que amamos verdadeiramente a pessoa com quem estamos agora: e
Machado de Assis acredita que o dito jocoso de outrora se aplica ao seu momento hisrico
diferentemente de Alencar, que no romance Senhora, de 1875, reafirmará ainda a validade
dessa máxima estritamente romântica.
Ao lado de Nina, Macedo publicou ainda em 1870 dois romances: As mulheres de
mantilha e A namoradeira. Em 1872 ele publicaria mais três: Um noivo à duas noivas, Os
quatro pontos cardeais e A misteriosa que observamos rapidamente linhas atrás. Em uma
carta escrita à Gonçalves de Magalhães, Joaquim Norberto comentou esse período da vida do
escritor:
O Macedo está em Itaboraí. Deu agora em escrever à vapor. Produz muito, escreve romances e
dramas aos centos, mas com pouco cuidado no seu estilo e enredo, de modo que o vaidoso Alencar
vai lhe tomando os louros ganhos na áurea quadra dos Porta Alegre, Magalhães e Gonçalves Dias.
Está armando ao dinheiro para pagar dívidas, segundo me disse
206
.
O tempo respeita aquilo que é feito com tempo, comentara Machado de Assis, e
os romances de Macedo sofrerão muito com seu pouco cuidado estético bem como por sua
insistência moralizante. Referindo-se à década de 70, Guimarães nior apontara a falta de
seriedade de sua época:
os tipos de que lancei mão para esses ligeiros contos são grotescos e ridículos; meio único de
divertir o leitor que o gosta de obituários e prefere o riso franco, rápido, efêmero, como o
folhetim que lho arrancar dos lábios, à cruel e sensaborona tristeza, que é afinal de contas partilha
de todos nós, os lidos e leitores da terra!
207
Um noivo à duas noivas representa a maior investida de Macedo no universo dos
romances psicológicos, aborda um problema de profunda amplitude existencial e coloca em
205
Ressurreição. 1938, p. 231.
206
PORTO ALEGRE, Manuel de Araújo. Inéditos. 1961, p. 157-58.
207
A família Agulha. S/d, vol. I, p. VI.
89
cena o último elemento que mais tarde integrará o “cotidiano” naturalista o cientificismo.
Seja captando tendências estrangeiras ou mesmo vagos murmúrios nacionais, ao lado de
nomes tradicionais como Shakespeare e Dumas o autor figura uma série de fisiologistas
modernos como Lavater e Gall que em breve estarão na ordem do dia lançando-se ainda ao
estudo de uma questão simplesmente obrigatória para as próximas gerações: a frágil
sensibilidade feminina, enfocando um de seus principais fantasmas, o histerismo, vivenciado
na trama com boa parte das cores que em breve serão exploradas e ampliadas por outros
romancistas. Casado ele mesmo com uma histérica, a julgar pelas condições que envolveram
seu casamento, Macedo mergulha no universo dos estudos científicos em busca de maior
precisão literária e se mostra em dia com as discussões do período sem no entanto
comprometer a moralidade da narrativa, que ainda se sobrepõe à suas dimensões estéticas.
Nenhum dos autores vindouros evocará seu nome como uma influência, assim como nenhum
crítico ou historiador literário percebeu este passo de sua obra, mas entre os grandes escritores
de nosso país ele foi o primeiro a desenvolver essa tendência de seu período.
Publicado em 1872, Um noivo à duas noivas nos apresenta o intrincado envolvimento
amoroso do sensual Germano de Castro com duas mulheres, Otávia e lia, respectivamente
e e filha, em uma trama extremamente lenta e desenvolvida com exemplar desenvoltura,
fugindo aos lugares comuns do folhetim do período ainda que sem se alçar ao patamar da
alta literatura. Extremamente reflexivo, denso e pesado, o romance deixa de lado a escrita
correta sobre linhas tortas de Deus para evocar as fatalidades do destino e se encerra com um
tom inimaginável para a prosa macediana.
O maior mérito do romance, sem vida alguma, situa-se no enfoque dedicado às
características psicológicas de cada personagem, esquadrinhadas conforme seus sexos, suas
idades e suas posições sociais compondo panoramas completamente distintos e individuais.
Detendo-se por páginas e páginas em uma única cena, avaliando as reações dos personagens
com relação às ações dos demais, bem como suas impressões e percepções íntimas, Macedo
busca situar cada um deles em um plano único, singular e específico, diferentemente do plano
chapado em que habitualmente todos estavam situados sem perceber as maquinações que os
envolviam e onde naturalmente as reviravoltas folhetinescas soavam ainda mais ridículas do
que se fossem enunciadas. lia exibe a mentalidade de uma menina mimada e inocente, mas
Otávia conhece os imperativos da sociedade e as prerrogativas e limites de sua posição de
viúva, subordinadas, de qualquer forma, à sua condição de mulher e mãe. Poderíamos mesmo
dizer que Macedo traça o “esboço” de um estudo de personalidades, guiado pelas concepções
90
científicas do período. Se o comportamento dissoluto de Germano poderia ser atribuído à
certas disposições orgânicas, “que Lavater pretenderia distinguir nas bossas de seu crânio
208
,
Otávia não é seduzida unicamente pelos pérfidos encantos do dissimulado libertino, mas por
conta de suas próprias condições fisiológicas ou mais propriamente por conta de sua idade:
ela amava, e o se esqueça que ela amava aos trinta e três anos, quando a mulher sente que
a idade vai-se adiantando, e que à medida que se adianta, prenuncia o crepúsculo, que precede
o ocaso...
209
.
Na história das paixões amorosas da mulher, e na apreciação fisiológica dos seus extremos e
estupendos arrojos a idade, ou as épocas da idade da vítima do homem são circunstâncias que
nunca se devem esquecer.
A explicação do maior número dos tristes e completos rendimentos da mulher à sedução do
homem, por qualquer motivo algoz do coração e do crédito, se acha quase sempre metade no amor
fingido do homem que especula e que incendeia, e metade na idade que se precipita, ou na idade
que já prevê e receia a decadência próxima, ou na idade enfim da mulher que principia a ser, mas
não se submete a ser velha
210
.
Criada em uma verdadeira estufa de amor filial, Júlia nunca conheceu qualquer
contrariedade à suas vontades, ainda que tenha perdido o pai muito cedo – o que mais
contribuiu para o universo de felicidade que a cercava, na esperança de uma natural
compensação por sua perda. Macedo vai figurar em sua sensibilidade e em sua esmerada
educação a gênese de todas suas complicações, apontando em nossa degradada organização
social e nos papéis designados às mulheres a fonte de sua ruína, em um jogo de luz e sombras
típico à complexidade da vida:
Julia extremava-se pela sensibilidade exaltada, pela grandeza e generosidade da alma, pela pureza
dos sentimentos, pela confiança da inexperiência de quem não suspeita o mal, porque não é capaz
de fazê-lo, e enfim pelo arrebatamento de sua ardente imaginação que criava e a impelia à querer
nesta terra os tesouros do céu, a perfeita felicidade que dão o amor sem nuvens e a virtude sem
jaça, tesouros que ela julgava possíveis e fáceis, e que contava achá-los no coração de Germano,
porque os tinha no seu
211
.
Em 1873, à pedido do governo Macedo escreve as Noções de corografia do Brasil,
destinada a representar o Brasil em Viena e vertida para três línguas: francês, inglês e italiano.
A obra corresponde à mais acabada expressão do ufânico sentimento romântico do ‘vasto e
opulento Império’ do Brasil”, responsável por delinear “aspectos étnicos, psicológicos e
morais da população brasileira” aptos a sustentar a afirmação de sua grandeza. O Brasil era a
única monarquia de todo o continente americano e o autor parece se perguntar: “se temos um
208
Um noivo à duas noivas. S/d, vol. I, p. 86.
209
Um noivo à duas noivas. S/d, vol. I, p. 209.
210
Um noivo à duas noivas. S/d, vol. I, p. 210.
211
Um noivo à duas noivas. S/d, vol. I, p. 61-62.
91
Império majestoso e um Imperador que sabiamente o conduz, por que haver República”
212
?
Além disso, essa fachada visa chamar a atenção da comunidade internacional, atraindo
imigrantes e, conseqüentemente, mão-de-obra civilizada, apta a dar seguimento ao processo
civilizatório em cursoum problema bastante sério no período.
O ano seguinte será marcado pelo tratado As três filosofias, de Luís Pereira Barreto,
tido como a maior obra do positivismo brasileiro. Macedo publica cada vez menos e recebe
mais medalhas do governo: não produz nada entre 1874 e 1875, mas recebe, a “9 de maio de
1874, por serviços prestados à pátria, a comenda da Ordem de Cristo e também nova
promoção na Ordem da Rosa”
213
. O seu passado glorioso não significa mais nada, o público
o aprecia mais seus livros, o país parece relutar em aceitar suas iias. O “cruzado” não
desiste de sua missão, em consonância com seu particular culto ao dever” e, enquanto seus
romances são lentamente deixados de lado, exercendo pouca inflncia, portanto, sobre a
juventude, ele encontra outras formas de contribuir para a “cruzada civilizatória” brasileira: os
livros de encomenda que citamos. É estranho e curioso notar que, à medida que perde o
prestígio do público, ele passa a ser requisitado pelo governo que está disposto a servir de
braços abertos, com todos seus esforços. Mas o tempo é feroz demais, e Macedo, além de se
ver em uma situação socialmente ambígua, enfrentará ainda alguns reveses do destino.
Em 1876, Macedo volta à literatura com A baronesa de amor, um perfil de mulher
completamente alencariano. Novamente requisitado pelo governo, o autor lança também o
Ano biográfico brasileiro, uma coletânea de 365 biografias de celebridades brasileiras
destinada a representar o Brasil na Filadélfia, em uma exposição “comemorativa do
centenário da Independência americana”
214
. Com suas biografias, uma para cada dia do ano, o
autor firma a galeria final de nossas grandes personalidades, em um período em que o regime
imperial era contestado como nunca. Em conjunto, suas três obras de encomenda
correspondem à imagem que o país gostaria de exibir ou, mais propriamente, a imagem que as
elites gostariam de exibir. Mas as jovens gerações conheciam outro semblante de seu país e
viam o autor como um representante oficial do Império que precisava ser derrubado...
Retomando a tradição regionalista, Franklin Távora publica O cabeleira. Retratando o
ambiente citadino, Machado lançava Helena, no mesmo ano em que Goalves de Magalhães
212
SERRA, Tania. Joaquim Manuel de Macedo ou Os dois Macedos: a luneta mágica do II Reinado. 1994, p.
188.
213
SERRA, Tania. Joaquim Manuel de Macedo ou Os dois Macedos: a luneta mágica do II Reinado. 1994, p.
193.
214
SERRA, Tania Rebelo Costa. Joaquim Manuel de Macedo ou Os dois Macedos: a luneta mágica do II
Reinado. 1994, p. 194-5.
92
tornava à filosofia, com A alma e o cérebro. Ainda neste ano Macedo é promovido à vice-
presidência do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, mas sela seu destino de modo
implacável: em trinta e um de agosto assina uma letra de um conto de réis, com mais dois
endossantes, Anastácio de Miranda Coelho e Carlos Fleiuss, a ser paga dentro de quatro
meses à um negociante inglês chamado John Bradshaw. Aquele que recebeu o dinheiro,
Fleiuss, contudo, não a pagou... Pouco se sabe de concreto sobre tais circunstâncias, mas ao
que parece o escritor assumiu sozinho a responsabilidade por essa dívida, acabando-se em
trabalhos a fim de cobrir os juros que cresciam dia a dia.
A morte de José de Alencar
Com a morte de José Alencar, em1877, toda uma era vem a baixo. Tomado por uma
grave enfermidade, o romancista leiloara todos os seus bens, no ano anterior, e acompanhado
da esposa Georgiana e de seus seis filhos, partira para a Europa em busca de um tratamento
para sua saúde. Embora tenha programado uma estadia de dois anos no exterior, ele passou
apenas oito meses visitando a Inglaterra, a França e Portugal, retornando logo ao Brasil.
Decidido a infernizar a vida do Imperador antes de morrer, o que aconteceria em dezembro, o
autor lançou o periódico O protesto, que em seus cinco números vociferou em alto e bom tom
todos os impropérios possíveis, publicando ainda o romance A encarnação e o panfleto Festa
macarrônica. Vejamos o tom de um de seus ataques ao IHGB, exibido em O protesto:
Outro discurso, e discurso de outra sombra
O presidente interino do Instituto Histórico figurou a sessão solene daquela sociedade um painel
buonarótico. Recomendamos este novo termo ao Sr. João Cardoso, procurador fiscal da Sociedade
Regenerativa da Língua Portuguesa.
Miguel Ângelo entre outras obras pintou na Capela Sistina um Purgatório, onde por sinal meteu
certos cardeais com quem embirrava. Não é este decerto o painel do Instituto.
Eu daqui o estou vendo cheio de vultos homéricos, de Aquiles, de Heitores, de Ájaxs, uns
romanticamente arrepiados como o Sr. Homem de Melo; outros classicamente rapados como o Sr.
Cândido Mendes.
O Sr. Macedo declarou-se a única sombra no meio dessa luminária geral; e carregando a mão
chamou-se de infeliz figura, ruga de velho em cara de moço, e não sei que horrores mais.
Cúmulo da modéstia! Eu que vi uma vez a galeria viva do Instituto posso assegurar que o Sr.
Macedo, apesar de já não ser o herói da Moreninha, fica um Antínoo no meio de seus concios.
Também o Sr. Macedo usou de uma comparação geológica. O Sr. do Bom Retiro é uma Itatiaia, e
ele a colina mais baixa. Qual junto de um penedo outro penedo. A planície e que estamos por
saber quem é.
O ilustre presidente deu-nos o júbilo de ouvir que o Imperador ao partir DEZ VEZES recomendou:
“Cuidem do nosso Instituto.” Dez vezes! Foram contadas, e arquivadas no livro de ouro. Aposto
que os ministros não se benzeram com esta augusta insistência a propósito dos negócios públicos.
93
“Nosso Instituto!...” Fraternal democracia, disse o Sr. Macedo; e eu exclamo: “Oh! terna, oh!
sublime, oh! deliciosa fraternidade!”
Ficamos cientes de que o Sr. Conde d’Eu, ouvindo os elogios do Instituto pôde dizer: – Res nostra
agitur. Em português: – Isto aqui é nosso. Nós é que temos direito de fazer a história.
Eu porém, como beócio, acredito que Sua Alteza prefere a espirituosa língua natal a aquele latim
de artinha; e se alguma citação mental ele fez na sessão solene foi a de Voltaire: – Et voilà comme
on écrit l’histoire
215
.
Os leitores que compraram o periódico de Alencar foram presenteados também com o
folhetim Exhomem, publicado descaradamente pelo autor sob o pseudônimo de ‘Synerius’.
Significando exatamente “o que já foi homem”, seu folhetim atacava mais uma vez a classe
clerical, e mais precisamente a questão do celibato; segundo a crítica especializada, se
concluído, o romance teria inaugurado o realismo em nossas letras. Ao saber de sua morte o
Imperador se limitaria ao comentário: “era um homenzinho teimoso”.
“Não sei que escritor disse algures que o Tamisa era a morte dos poetas”
216
, comenta
Araripe Júnior, julgando que as feições caóticas e a agitadíssima vida científica e cultural de
Londres teriam sido demais para o escritor cearense. Seu sobrinho acreditava que uma alma
tão sensível e poética quanto a de Alencar não poderia suportar tanta modernidade e tanto
desespero por originalidade, que já se esboçava por aqui.
Calcule-se uma sinfonia de Beethoven, de repente interrompida por uma descarga elétrica; calcule-
se uma paisagem de Wateau, de repente invadida por uma turba de sátiros doidos, esgrudelhados:
pois não seria outra a da exercida no autor da Iracema pela irrupção desse bando...
217
É impossível não imaginar que estas palavras também caberia ao autor de A
moreninha tal como, em alguma medida, o próprio Araripe Júnior faria mais tarde. Poderia
Macedo acompanhar as tendências de seu tempo? Teriam Macedo e Alencar se conhecido
pessoalmente? Não é difícil imaginar que, vivendo no mesmo meio, ambos tivessem sido
apresentados por amigos comuns, que o jovem Alencar tenha tido impulsos de conhecer o
escritor que admirava, ou que o próprio Macedo tenha se rendido à curiosidade de conhecer o
Alencar maduro que influenciou sua obra; no entanto, não temos nenhum relato sobre
quaisquer relações entre ambos. Temos as farpas que Alencar lançou para os “meios” em que
Macedo vivia. Macedo teria comparecido ao enterro de Alencar?
Em 1878 o escritor itaboraíense escreve uma última obra de “encomenda”, totalmente
afinada com sua produção ficcional: Mulheres célebres, “obra adotada pelo Governo Imperial
para a leitura nas escolas de Instrução primária do sexo feminino do Município da Corte”,
215
Citado por Wilson Martins. História da inteligência brasileira. 1977, p. 531.
216
José de Alencar. 1894, p. 172.
217
José de Alencar. 1894, p. 176.
94
como está escrito na folha de rosto de sua primeira e única edição
218
. O livro traz a biografia
de 25 mulheres célebres da história ocidental, como Cornélia, a mãe dos Gracos, Joana D’Arc
e D. Maria Joaquina Dorotéia de Seixas, a famosa Marília de Dirceu. Macedo que dedicou
boa parte de sua obra à formação e à educação das mulheres, como podemos notar pela
simples menção de alguns títulos como A moreninha, Rosa, Nina, Vicentina, A baronesa de
amor, A namoradeira, A misteriosa e As mulheres de mantilha produz agora uma obra
modelar para as jovens do belo sexo, repleta de grandes exemplos que podem ser seguido sem
restrições. Nesse ano o Dr. Macedinho retorna à potica, com nova ascensão do Partido
Liberal, eleito para a Assembléia Geral, mas vive cada vez mais recluso. No ano seguinte ele
publicaria as Memórias da rua do Ouvidor, famosa coletânea de crônicas sobre a fisionomia
da capital do Império, mas teria todos os seus bens leiloados como desenlace da letra fatal.
Breve entreato: a “falsa” poesia de 1870
Como temos acompanhado até aqui, a geração que começou a tomar vulto no final da
década de sessenta e tomou de assalto a literatura brasileira na década de setenta abandonou
programaticamente determinadas características da cruzada romântica sem alterar, contudo,
seus predicados progressistas, antes os levando ao extremo. O industrialismo, a ênfase
civilizatória e, principalmente, a confiança nas luzes da ciência estavam na pauta do dia como
nunca até então, e o cientificismo que já se esboçava no plano dos romances encontrará na
poesia sua morada definitiva ainda que em um movimento isolado, em termos literários,
visto que socialmente antenado à mentalidade do período, e de vida bastante curta.
Darwin, Moleschott, Büchner, Lyell, Vogt, Virchow, Comte, Mill, Spencer, Buckle,
Draper e Bogehot, entre muitos outros pensadores, estão na pauta do dia. Estes nomes”,
comentaria o furioso crítico Silvio Romero:
exprimem a grande transformação das ciências da natureza, invadindo a esfera das ciências do
homem. Todos sabem que a religião, a linguagem e a história, o direito, a política e a literatura são
agora tratados por método bem diverso d’aquele porque o eram, há trinta anos
219
.
Filha unicamente do engenho humano, completamente dissociada de sua aura
“sobrenatural”, divina, a poesia deveria estar em dia com os padrões de seu tempo, atrelada à
grandiosidade da ciência e às suas inúmeras descobertas no século XIX, “logo espalhada aos
218
SERRA, Tania. Joaquim Manuel de Macedo ou Os dois Macedos: a luneta mágica do II Reinado. 1994, p.
208.
219
Cantos do fim do século. 1878, p. VI-VII.
95
quatro ventos pela voz dos livros, das revistas e dos jornais”
220
. Moderníssimo, ele mesmo
tomou para si a tarefa de lançar ao público uma amostra dessa nova arte em seu volume de
poemas Cantos do fim do século, lançado em 1878 mas apresentando composições escritas
entre 69 e 73. Segundo ele:
nesta altura, sua primeira obrigação, entre nós, de ser o completo abandono de meia dúzia de
lebres questões, que hão sido o eterno martelar dos autores brasileiros. Por este modo, esquecer-
se-há de índios e de luzos para lembrar-se da humanidade; não indagar se é nacional para melhor
mostrar-se humano, cumprindo-lhe o maior desprezo de quantas musas imperceptíveis,
cinqüenta anos, trazem de ferro em punho a turba laureada de nosso heróis das letras!
221
Dedicado à América, com uma epígrafe bastante sintomática de Thomaz Hood,
“Work, work, work!”, o livro é dividido em duas partes: A humanidade e A natureza. Na
primeira, Romero esquadrinha os arcanos maiores da história com o prisma cotidiano da
ciência, deixando para trás uma série de idealizações românticas” e “atrasadas” para nos
legar figuras demasiadamente humanas, tal como poderiam ser compreendidas por qualquer
indivíduo. Deus, o Diabo, Jesus, Maomé, o Monarca, as Cruzadas, a Religião, a Alma e a
Morte, bem como personalidades históricas como Mazzini e Saladino o re-apresentadas ao
público através de leituras extremamente pessoais mas, em seu juízo, completamente
razoáveis e poéticas. A figura de Jesus, por exemplo, guarda muitos tros de sua habitual
sacralidade, mas é traçada conforme padrões estritamente humanos:
Era justo, sublime, – era inefável;
Mostrava a candidez da estrela d’alva,
Pensamento profundo como os mares
Eternos, impassíveis, que meditam!
Seu nome? – Ele era um Deus! exclama Pathmos,
Abrindo do Vidente o Apocalipse.
– Ele era a humanidade sublimada! –
Diz dos séculos a voz embevecida;
De luto brada o Gólgota: – Eu o confirmo
222
.
Em O céu, do mesmo modo, o autor nos oferece uma visão pragmática e
completamente material da dimensão tão adorada por nossos românticos idealistas, tratada
agora simplesmente como a esfera sica que circula a humanidade:
Quem há aí que não deixe o pranto inútil,
Se as centelhas da luz provam que é fútil
A fumaça que o vento esvaece?
Quem não gosta de ver uns seios túmidos
De camélias, ainda túmidos
Do orvalho que amanhece?
220
Cantos do fim do século. 1878, p. VII.
221
Cantos do fim do século. 1878, p. XIV.
222
Cantos do fim do século. 1878, p. 25.
96
Do céu nos basta a abobada dourada
Basta o íris, chega a nuvem esmaltada;
Para que mais que o sol e os corações?
Em febre a sede santa das estrelas...
Todos nós queremos vê-las,
Ah! quimeras!... ilusões!...
223
Ao lado do abandono das idealizações celestes, meras “quimeras” e “ilusões”, o autor
nos indica ainda uma percepção um tanto quanto ousada da sensualidade humana – ao mesmo
tempo índice da passagem dos tempos e ênfase pessoal por uma naturalização do humano,
antes recalcada pelo romantismo e por padrões culturais, na sua opinião, avessos à natureza
dos indivíduos.
Seguindo a dessacralização da poesia, condizente com o progresso da humanidade, no
poema A civilização o autor reitera ainda, como não poderia deixar de ser, a validade da
cruzada civilizatória oitocentista, mas já em outros moldes:
Sim: o grito de guerra seja um brado
De apóstolo que ensina ao povo rude;
Muito pranto, sorvido em alegrias,
Não faça mais da vida um alaúde.
A nossa alma não chama-se proscrita,
Que padece do céu a nostalgia,
Denomina-se a crente arrebatada
Que dos astros o canto preludia
224
.
Os intelectuais, os artistas, tal como os figuravam os românticos, conservam ainda a
sabedoria de tragar as amarguras que a sorte atroz atira-lhes na arena”
225
, mas não devem
mais carregar o fardo da genialidade impossível e nem manter seu olhar fixo nas estrelas
inalcançáveismas nas decias e nos conflitos terrestres.
A segunda parte da obra, A natureza, mal parece ter saído da pena do irado polemista:
tratando de temas estritamente bucólicos, como A estrela, A nuvem, A flor, O veneno, O
abismo, A camélia ou ainda O pampa, o autor se entrega ao lirismo mais inusitado, como
podemos notar em O espinho:
A flor se enlaça em sonhos delicados,
E o espinho, o que faz? Sofre, soluça?
Não! Quem guarda uma bela adormecida,
Escuta-lhe o ressonar efluvioso,
Tendo em paga o perfume de seu colo,
E o orvalhoso suor de seu corpinho, –
Pode sofrer, chorar? Fora loucura!
223
Cantos do fim do século. 1878, p. 64-65.
224
Cantos do fim do século. 1878, p. 102.
225
Cantos do fim do século. 1878, p. 100.
97
Espreitar tanto encanto concentrado
N’um botão se entreabrindo, e, ainda demente,
Dizer: “a vida é negra, só de lágrimas
Me nutro...” Oh! isso fora em olhos vividos
De uma criança ler a morte!
226
Cantando a grandiosidade da terra ou a imensidão do mar, as composições de Romero
guardam descrições de uma doçura inacreditável, como nos versos iniciais dos poemas A
manhã e A nuvem:
Mas eis chega a manhã... tudo radia
As idéias se alargam mais ainda
Para prender nas fibras transparentes
A sorte, a vida, o mundo, a glória infinda
227
Oh! como o céu está lindo
Trajado de ouro e de azul
Como oscula a flor sorrindo
Lânguida em aragem do sul!
228
Como comentaria mais tarde o próprio Romero, “em cada um dos temas idealizados
nos Cantos do fim do século disfarçamos simbolicamente a idéia científica sob as roupagens
do lirismo
229
.
A ciência é toda grave; sem método deve ser o jogo de princípios incontestáveis; a prosa é sua
natural expressão, prova severa como as corrões que saber ter as idéias claramente definidas
numa cabeça de sábio. Nada pode emprestar à arte, além da grande intuição do mundo e da
humanidade. E é quanto a ela basta para alçar o vôo, despreocupada e fecunda.
O poeta deve ter as grandes idéias que a ciência de hoje certifica em suas eminências; não para
ensinar geografia ou lingüística, pré-história ou matemática; mas para elevar o belo com os
lampejos da verdade, para ter a certeza dos problemas, além das miragens da ilusão
230
.
Esse apelo à ciência, ou melhor dizendo, esse diálogo necessário com a ciência,
exigido pelas continncias do período, não deveria se deixar corromper pelo pedantismo, não
deveria se entregar à didática a poesia deveria ser riso e derio, não deveria jamais despir
sua roupagem de encantos, deixar aquele ar de gracejos que parecem sair dos lábios de uma
deusa”
231
.
Romero não desejava encabeçar qualquer movimento nem lançar as diretrizes de uma
nova estética, apenas oferecer uma humilde contribuição às tendências de seu tempo mas
em 1881 o escritor Isidoro Martins Júnior lançaria um ensaio de poesia moderna”, ou, mais
226
Cantos do fim do século. 1878, p. 158-59.
227
Cantos do fim do século. 1878, p. 208.
228
Cantos do fim do século. 1878, p. 139.
229
História da literatura brasileira – tomo quinto: diversas manifestações na prosa, reações anti-românticas na
poesia. 1960, p. 1666.
230
Cantos do fim do século. 1878, p. XXII.
231
Cantos do fim do século. 1878, p. XXII.
98
propriamente, como ele mesmo reconsideraria, “um ensaio de poesia científica”
232
.
Inegavelmente influenciado por Silvio Romero, bem como pelas tendências do período, seu
volume de poesias também integrará às belas letras todo o vocabulário científico em voga no
período com matizes ainda mais poéticos do que os de seu êmulo.A arte de hoje”,
comentaria ele:
se quiser ser digna do seu tempo, digna do século que deu ao mundo a última das seis ciências
fundamentais da classificação positiva, deve ir procurar as suas fontes de inspiração na Ciência;
isto é: na generalização filosófica estabelecida por Auguste Comte sobre aqueles seis troncos
principais de todo o conhecimento humano
233
.
O volume se inicia com a aparição da Poesia, a mágica sereia do mar do coração e do
sentimento:
Ela me apareceu correta e flamejante:
Vestia simplesmente a túnica vibrante
Das austeras Judites, das rubras heroínas,
Que nas mãos ideais, nervosas, pequeninas,
Empunhavam outrora as lanças e as espadas
Tinha: – No largo olhar cintilações iriadas;
Sobre a régia cabeça uma abundante coma
Anegrada: da cor das saturnais de Roma.
Um rebelde barrete, ereto, escarlate,
Dava-lhe à testa grega uns longes de rebate
Surgiu em minha frente à hora do crepúsculo:
Quando a Terra põe luto e o Sol é como um músculo
Cortado, à ensangüentar o mármore do espaço.
Trazia em seu perfil, de uma pureza de aço,
Os traços marciais, profundos, puritanos,
Que há nos bustos senis dos deuses espartanos
E nas telas pagãs, onde se encontram atletas
Brandindo herculeamente envenenadas setas
Era uma alta mulher serena e gloriosa
Como essas criações da idade esplendorosa,
Artística, imortal, chamada Renascença,
As quais tinham vigor e uma bondade imensa
Nas linhas sensuais, nítidas, varonis.
Havia em toda ela a frescura do liz.
E a forte majestade atlética do mar.
Na púrpura do lábio andava-lhe à pairar,
Como um astro no azul, o beijo cor dos sois
Que serve para estrelar a testa dos heróis.
E quando me avistou curvado e pensativo,
De pé, no negro chão, como um derviche esquivo,
Ou como um menestrel sombrio e lacrimoso...
232
Visões de hoje. 1886, p. 09.
233
Visões de hoje. 1886, p. 09-10.
99
Ela veio para mim num passo harmonioso
Cheio de intrepidez, como o passo da História
234
.
Tal como prefiguravam os poetas do romantismo, Martins Júnior seria invocado pela
própria Poesia à lutar pelo progresso da pátria, com uma verve inaudita em seu tempo. Após a
aparição da musa, o vate sucumbiria à uma estranha vertigem e seria acometido por quatro
visões, por quatro sínteses, onde observaria, como em um extenso painel, a hisria da ciência,
da política, da religião e da arte, de seus primórdios obscuros à hora atual, coordenadas pelas
leis inexoráveis da evolução. Diante destes panoramas, os contendores de seu tempo deveriam
compor estrofes-bisturis capazes de “anatomizar o cadáver do Mal”, guiados pelas
concepções de uma época em que a Ciência seria mais serena que Jesus... Sua descrição do
quadro de degradação do país, sob os augúrios de um clown mascarado a papos de tucano”,
evidentemente o Imperador D. Pedro II, guarda, apesar da distância temporal, as mesmas
cores indicadas por Macedo:
Não há mais pundonor na tua gente. O ouro
Desposta como um rei, possante como um touro,
Está feito o talismã com que se vence tudo,
Com que se compra a seda, as rendas, o veludo,
E compram-se também crenças, convicções,
Sentimentos, ideais: o luxo e os corações!
235
Inebriado pelo entusiasmo da geração de 60, senão pelo natural entusiasmo típico à
juventude, Martins Júnior nos lega com As visões de hoje um último manifesto literário em
prol da civilização do país em seu período. Como veremos, um desespero inúmeras vezes
mais “doentioque o spleen de Álvares de Azevedo se abaterá sobre nossos patcios durante
a década de 80.
Os novos rumos da literatura brasileira
A década de 80 comprovou que a história não passava de uma grande loureira
236
,
como comentaria Machado de Assis nas Memórias póstumas de Brás Cubas tanto social
quanto literariamente.
Existencialmente, encontraremos neste período a realização plena das transformações
sociais apregoadas pela cruzada civilizatória oitocentista mas nos depararemos também com
sua desagregação formal. Atrelada por nossos ronticos à divindade imperial, ela passara no
234
Visões de hoje. 1886, p. 23-25.
235
Visões de hoje. 1886, p. 43.
236
Memórias póstumas de Brás Cubas. 1997, p. 21.
100
final da década de 60 a tomar feições republicanas sem quaisquer críticas à seus imperativos
morais, isto é, à instauração do amor filial, à defesa do sexo feminino e ao elogio do
casamento e da maternidade, à civilização dos costumes brasileiros, enfim, e na véspera da
queda do trono, quando podemos identificar a completa normatividade de todas estas
transformações, nem mesmo suas feições republicanas importarão mais – pois a própria
crença na civilização do país passará a ser contestada. Com o desmoronar do Império,
desejado por tantos, desmoronará também o impulso conjunto pelo progresso do país.
Literariamente, o realismo que se esboçara na década de setenta alcançará sua
autonomia, à revelia de críticos como Silvio Romero que abjuram os traços literários do
momento. Diferentemente dos românticos, que em grande medida colocaram as armas do
classicismo à favor de sua corrente literária, os realistas passaram a criticar ferozmente os
males “herdados” do romantismo, sem questionar as prerrogativas sociais dele herdadas, antes
as reiterando em bloco no entanto, sem quaisquer dimensões programáticas. A literatura,
que tomara para si a tarefa de civilizar o país, abandonará em grande medida suas atribuições
sociais para se ater, estritamente, aos domínios da arte.
Os escritores de iias são redatores de catálogos, não são artistas”
237
, diria Raul
Pomia, um dos avatares da nova era: todo o problema de moralidade é estranho à arte.
Toda a utilidade social é alheia ao fim da composição
238
. Muitos naturalistas darão
seguimento à cruzada civilizatória da literatura, especialmente Aluízio Azevedo, mas os
problemas sociais serão deixados de lado, em grande medida, pelo grupo que formará a
Academia Brasileira de Letras, com Machado de Assis à sua frente para nada dizermos
acerca das hostes parnasianas. Olavo Bilac, um de seus mestres, será tomado no século XX
por uma verve patriótica inaudita, rompendo com os princípios da “arte pela arte” um caso
isolado, no entanto.
Para além das transformações da mentalidade do período, ou antes sobre elas
influindo, as novas feições do romance realista não guardavam mais espaço para narrativas
moralizantes. A descrição de O Ateneu, publicado por Raul Pompéia em 1888, destaca todas
as características da nova estética:
o romance é vazado em moldes inteiramente modernos, sem intriga, de pura observação e fina
crítica, passando pelas escabrosidades com a delicadeza e o fino trato de um artista de raça,
acentuando os ridículos com a nitidez de uma fotografia
239
.
237
Citado por Eloy Pontes. A vida inquieta de Raul Pompéia. 1935, p. 219.
238
Citado por Eloy Pontes. A vida inquieta de Raul Pompéia. 1935, p. 327.
239
Citado por Eloy Pontes. A vida inquieta de Raul Pompéia. 1935, p. 190.
101
Como comentaria Eloy Pontes: o romance abandonava a indumentária espetaculosa,
as invencionices sentimentais, as arquiteturas cenográficas, para se ater às realidades, que o
espírito de análise, a observação direta e as experiências dos laboratórios sugeriam”
240
. Ao
invés de abordar problemas sociais ou mesmo pessoais mais gerais, solúveis, limitados ao
momento histórico das personagens, o romance realista passará a abordar questões
existenciais individuais mais profundas como a dúvida, no caso do célebre Dom Casmurro,
de Machado de Assis, ou como o preconceito racial, tratado com esmero nas páginas de O
mulato, de Aluízio Azevedo. As personagens realistas, por assim dizer, deixarão de ser o
centro do universo, tal como nas narrativas românticas: o mundo nunca deixade girar por
conta de suas ausências, mesmo porque elas representam uma parte mínima, ainda que
extremamente significativa, da realidade. Elas não serão mais as rainhas” dos salões ou os
mancebos mais honrados do Rio de Janeiro: integrarão o cotidiano banal que comem a
totalidade de uma sociedade qualquer sendo por isso apreciáveis literariamente, justamente
por conta de suas individualidades completamente palpáveis, mundanas. As tramas se
encerrarão unicamente sobre seus semblantes: ao passo que Macedo e Alencar, entre outros,
revelavam aos leitores os destinos de todas as personagens de suas histórias, aos realistas será
indiferente o desenrolar das trajetórias das personagens “acessórias”.
A percepção da existência própria ao período nos oferece um interessante índice de
distinção entre as duas estéticas. Nossos primeiros literatos reconheciam que diversos males
sociais rondavam o país e que inúmeras agruras aguardavam todos os indivíduos, mas
julgavam que o Brasil estava no rumo da civilização e que a vida era um valor supremo
senão neste, em um outro plano, muito mais promissor e glorioso. Ao se encontrar com
Pandora, a personificação da Natureza, o personagem Brás Cubas, de Machado de Assis,
descobriu que após a morte lhe esperava apenas a “voluptuosidade do nada”
241
, e no romance
Quincas Borba o escritor menciona, com certo pesar, que a vida “comem-se rigorosamente
de quatro ou cinco situações, que as circunstâncias variam e multiplicam aos olhos”
242
.
Abandonando as tendências hereditárias do homem para o país do maravilhoso
243
”,
nossos literatos passam a ver o século dezenove – período de intensas revoluções e do
progresso civilizatório mais promissor como um século de tremendas catástrofes e de uma
240
A vida inquieta de Raul Pompéia. 1935, p. 09.
241
Memórias póstumas de Brás Cubas. 1997, p. 30.
242
Quincas Borba. 1997, p. 163.
243
CARVALHO, Horácio de. O cromo. 1888, p. 130.
102
nevrose geral
244
estarrecidos agora com a inexorável passagem do tempo e com o absurdo
do nada.
É certo que Machado de Assis abrira seu romance de estréia, Ressurreição, com
uma reflexão bastante funesta sobre a passagem do tempo
245
, mas em 1872 suas notas
dissonavam do espírito da época e não haviam ainda adquirido a mordacidade de seus
romances “maduros”. Objetivo e irrevogável, o tempo se instaura com uma intensidade
avassaladora e a atualidade assume foros cada vez mais precisos e cortantes. Assim como o
romance de Machado, O Ateneu de Raul Pompéia também exibe em sua primeira página
algumas considerações sobre o tempo:
Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a saudade
dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas as
datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das aspirações que se transformam, alentadas
perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de esperança, a atualidade é uma.
Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de
púrpura ao crepúsculo – a paisagem é a mesma de cada lado beirando a estrada da vida
246
.
O cromo, de Horácio de Carvalho, possivelmente o romance mais equilibrado da
década, publicado em 1888, registra com precisão o impacto do nada sobre nossos patrícios
tomando como esteio as reflexões do Dr. Lins Teixeira - “folha sem alma no rio da
existência”
247
. Amante inebriado da ciência e ilustrado como poucos, o Dr. Teixeira
compreendia que os sofrimentos espirituais cresciam “na razão direta da complexidade e
aperfeiçoamento dos organismos”
248
e que “o nada das grandes coisas”, o “valor
constantemente, absolutamente relativo de tudo”
249
, não lhe permitia qualquer vôo metasico,
restando-lhe apenas o tédio da existência, a “nostalgia do Nada que nos precedeu, ou essa
aspiração budica, pessimistica do Nirvana, do mesmo Nada que nos vai suceder
250
.
A história da vida no planeta, em todos os planetas do espaço, seria eternamente isto: antes a
eternidade inconsciente, o nada, a matéria bruta em suas transformações constantes; no meio um
pedacinho de consciência (a vida), a brilhar na escuridão de uma noite sem aurora, como o lapso
de luz de errante vaga-lume; depois... depois ainda o nada, a eterna INCONSCIÊNCIA para todo o
sempre! E lá se ia a imaginária imortalidade da alma, outro edifício humano em que se trabalhara
com afinco depois da vinda de Platão, edifício modernamente derrocado pelo escalpelo da
Fisiologia, que invadiu triunfante os velhos domínios teológicos. E se ia Deus com toda a sua
244
CARVALHO, Horácio de. O cromo. 1888, p. 99.
245
Discutindo o primeiro dia do ano, Machado diz: “aqueles para quem a idade desfez o viço dos primeiros
tempos, não se terão esquecido do fervor com que esse dia é saudado na meninice e na adolescência. Tudo nos
parece melhor e mais belo fruto da nossa ilusão –, e alegres com vermos o ano que desponta, não reparamos
que ele é também um passo para a morte”. Ressurreição, 1938, p. 09.
246
O Ateneu. 1997, p. 11.
247
O cromo. 1888, p. 55.
248
O cromo. 1888, p. 199.
249
O cromo. 1888, p. 121.
250
O cromo. 1888, p. 56.
103
majestade nunca vista, com todos os seus atributos incompatíveis, com toda a sua glória
inimitável
251
.
Materialista convicto e adepto do naturalismo, ainda que um de seus representantes
mais comedidos, Horácio de Carvalho atrelava a falta de sentido da vida à natureza
estritamente animal e biológica dos homens: “O homem, enquanto tiver um sistema-nervoso,
de ser sempre um animal, sempre! sempre! igual ao porco, igual ao cavalo, seja ele o
último dos ignorantes ou o maior dos sábios”
252
.
Porque fizeste as tuas cidades, as tuas bibliotecas, as tuas torres, as estradas de ferro, o telegrafo, o
telefone; porque vais dominar o mundo com a descoberta da direção do aeróstato, conquistando
mais terreno à Natureza, descobrindo-lhe mais segredos; porque criastes as matemáticas, a
astronomia, a física, a química, a biologia, a sociologia e a moral; porque fizeste uma literatura,
porque criaste uma Arte crês tu, vil animal, que o teu espírito, conjunto das funções de teu
rebro, possa ser imortal, viver separado dele, no tempo e no espaço!? Olha para os teus irmãos,
para todos os outros animais! são como tu, vivem como tu, sentem, pensam, gozam, sofrem,
morrem como tu!... Para eles um termo final – para ti não admites um termo
253
!
A consciência da realidade adquirida com a passagem dos tempos e com o progresso
das ciências concedia à época uma imagem bastante criteriosa da existência humana,
exuberante e complexa e como nunca, mas completamente circunscrita à si mesma, isso é,
sem quaisquer possibilidades de transcendência. Outra personagem de O cromo, a radical
Esther, ilustrada aluna do Dr. Teixeira, também compreendia que as potencialidades do
humano se restringiam à suas dimensões propriamente físicas e biológicas ou, de um modo
mais direto, “o que via no homem era a sua escravidão completa, a sua absoluta passividade à
Natureza”
254
.
Então! Onde estava essa liberdade do homem? esse livre-arbítrio? Porque não se lembrava do
que queria? Então era liberdade preferir entre duas cousas a que mais lhe agradava? Não havia
nisso uma escravidão dos sentidos à maneira simpática com as nossas vísceras ou a nossa
intelectualidade escolhia instintivamente as coisas de que precisava? Nesses casos não seria o
motivo, que determinava as preferências, uma força superior à Vontade e portanto de que a
Vontade dependia? E se a Vontade dependia, onde estava a sua liberdade
255
?
As Canções sem metro, de Raul Pompéia, registram com esmero a negatividade que se
abatera sobre o período. Escritas entre 1883 e 1895, mas publicadas unicamente em volume
após a morte do escritor, suas canções em prosa invadem os domínios mais obscuros da
existência humana e nos indicam um niilismo simplesmente inimaginável pelos escritores que
o sucederam especialmente se levarmos em conta a obra de escritores como Macedo e
Alencar. Avalie desde já o leitor nossas impressões pelo prólogo da composição:
251
O cromo. 1888, p. 123.
252
O cromo. 1888, p. 408.
253
O cromo. 1888, p. 416.
254
O cromo. 1888, p. 291.
255
O cromo. 1888, p. 290.
104
Viver, viver! Vibra o abismo etéreo, a música das esferas; vibra a convulsão do verme, no segredo
subterrâneo dos túmulos. Vive a luz, vive o perfume, vive o som, vive a putrefação. Vivem à
semelhança os ânimos.
A harpa do sentimento canta no peito, ora o entusiasmo, um hino, ora o adágio oscilante da
cisma. A cada nota, uma cor, tal qual nas vibrações da luz. O conjunto é a sinfonia das paixões.
Eleva-se a gradação cromática até à suprema intensidade rutilante; baixa à profunda e escura
vibração das elegias.
Sonoridade, colorido: eis o sentimento.
Daí o simbolismo popular das cores
256
.
Alma eternamente atormentada, certamente um neurastênico, que no dizer de Eloy
Pontes “só sentia bem no fogo das lutas”
257
, sempre inconformado com a tranilidade das
aulas, Raul Pomia inverte completamente o “simbolismo popular das cores” com um
pessimismo espiritual assustador:
VERDE, ESPERANÇA
A impetuosa alegria da terra, à passagem de Flora, a primavera verde, compromisso maternal do
outono e da opulência.
Náufragos no mar!
Sem o, sem rumo. Em roda, o gume afiado do horizonte, a reverberação do sol nas águas e o
silencio solene das calmarias. A vela do barco, flácida, pendente – imagem do abatimento. Ligeira
viração, depois; denso nevoeiro... quatro dias! sudário de brumas que envolve o barco elimina o
Céu. Vão acabar, assim, amortalhados na bruma. Um ramo, apenas, sobre as águas, um ramo cor
da esperança. Salvos! Adivinha-se o continente salvador, através da névoa e o panorama verde
das florestas
258
.
Precisos e cortantes, os belíssimos cromos que comem o volume traçam um
panorama lúgubre da existência em que a vida nada oferece de positivo aos seres humanos.
Em harmonia com os estados espirituais dos indivíduos, as cores, as estações e as instituições
sociais apenas representam seus aspectos mais tristes e sombrios, relegando o homem à
solidão mais angustiante apartado dos seus e de qualquer esperaa de salvação, como nos
indica a fria composição Rumor e silêncio:
Ouvis, embaixo o rumor da cidade, a grita dos homens, o estridor dos carros, o tropel dos
ginetes, o fragor das indústrias? Ouvis da outra banda a voz do arvoredo, os pássaros saudando a
tarde, o vento angustiando a harpa eólica das frondes? Ouvis esse clamor ingente que as ondas
mandam? É a sinfonia da vida!
Diz-se, então, que o silêncio é a morte.
Multiplicai esses rumores. Agravai o tumulto industrial dos homens na paz com as perturbações
estrepitosas da guerra; reforçai as vozes da floresta e do mar; juntai-lhes a solene toada das
catadupas, o pungente mugir dos oceanos, lanceados pelo temporal, as explosões elétricas do
raio, a crepitação fragorosa dos gelos derrocados pelo primeiro sopro da primavera polar, o
garganteio monstruoso dos vulcões inflamados; fazei rugir o coro das catástrofes humanas e dos
cataclismas geológicos.
256
Canções sem metro. 1964, p. 112.
257
A vida inquieta de Raul Pompéia. 1935, p. 103.
258
Canções sem metro. 1964, p. 112-13.
105
Dizei, depois, onde mais intensa é a vida e maior o assombro, se embaixo ou em cima, no
zimbório diáfano que a noite vai conquistando agora, na savana imensa onde transita a migração
dos dias e viajam as estrelas, onde os meteoros vivem, onde os cometas se cruzam como espadas
fantásticas de arcanjos em guerra – na mansão dos astros e do sagrado silêncio do infinito
259
?
Raul Pomia foi sem dúvida um indivíduo trágico, que em termos conscientes
abjurava completamente todos os valores do romantismo. Inadvertidamente, e talvez isso
imprima sobre sua face a sombra da tragédia, o autor foi no realismo uma figura mais
romântica do que boa parte de nossos românticos. Impulsivo, introspectivo e em combate
declarado contra tudo e todos, Pompéia ponteou toda sua obra com a desesperança mais negra
do coração humano, invertendo boa parte dos predicados aceitos até então e nos indicando
uma ruptura definitiva com as luzes risonhas do passado. Praticamente todos os seus contos
são permeados pela tragédia mais acerba, assim como seu romance de estréia, Uma tragédia
no Amazonas, escrito quando o autor tinha apenas quinze anos período em que já lia
Buckner e Spencer, traduzindo A origem das espécies do original. Segundo Capistrano de
Abreu:
o talento de Raul Pompéia é ultra-trágico. Não há uma só pessoa que não morra na Tragédia. Por
que? Disse-me um seu companheiro que para demonstrar que não Providência. Disse-me ele
que por ser a morte a única coisa séria da vida. Escolham o que quiserem. O certo é que, até pouco
tempo, não havia um conto seu, mesmo microscópico, em que não morresse alguém. Agora ele
contenta-se em mutilar ou desfigurar os personagens. é um progresso. Além de
correcionalmente trágico, Pompéia é refratário ao cômico. Já lhe viram alguma página espirituosa?
Sabem algum dito engraçado seu? Lembram-se de alguma gargalhada sua, franca e gostosa? Por
minha parte, respondo: Não – a todos os quesitos. Na sua concepção de romance, ainda
resquício de romançalhão. Ainda roubos, assassinatos e coups de main. O deus ex-machina
põem de vez em quando a calva à mostra
260
.
Eloy Pontes, provavelmente seu maior biógrafo, julgava Raul Pomia um perfeito
neurastênico, vítima de seu próprio talento: o escritor sempre teve enormes dificuldades para
se relacionar com as pessoas, especialmente do sexo feminino, e um orgulho acima de todas
as provas. Rompeu uma longa amizade com Capistrano de Abreu porque este perdeu os
originais de um artigo que se encarregara de publicar. Com o tempo sua “insociabilidade” se
agravou, alcançando seu zenith durante o advento da república, quando a política tomou o
lugar da literatura em seu coração: participou da fundação do Partido Republicano Nacional,
compondo seu programa e redigindo um manifesto inflamado, e se bateu em duelo com Olavo
Bilac por adversidades poticas. A potica, terra de ninguém em nosso país, como Macedo e
Alencar já haviam percebido, nunca foi uma atividade fácil, e as afrontas vinham de todas as
partes. Florianista radical, Pomia foi atacado violentamente por seu amigo Luiz Murat, o
que destruiu completamente seu espírito. Deu início à publicação de uma rie de artigos de
259
Canções sem metro. 1964, p. 134-35.
260
Citado por Eloy Pontes. A vida inquieta de Raul Pompéia. 1935, p. 44-45.
106
crítica literária no jornal A notícia, o assinados justamente por temer eventuais críticas”,
mas por algum motivo qualquer o periódico atrasou a publicação do segundo artigo, o que ele
interpretou como mais uma afronta, uma afronta mortal. No dia de natal de 1895 ele buscou
na morte um alívio para sua consciência. A descrição de seu suicídio é de um colorido e de
uma intensidade que merece ser aqui reproduzida:
Ergueu-se. Foi à mesa. Garatujou estas linhas, rápidas e incisivas: “‘À Notícia’ e ao Brasil declaro
que sou um homem de honra”. Pôs o nome no fim, nervosamente, datando-as. Depois, estendendo-
se, de novo, na chaise longue, varou o coração com uma bala. Ao estampido a irmã Alice, que
tinha acompanhado os passos do enfermo, sentira, de longe, a desgraça. Partiu aos gritos, pela
casa, para cair à porta, abatida por uma crise de nervos. D. Rosa correra aos aposentos do filho, a
tempo de ampará-lo. Do pequeno orifício no peito o sangue esguichava contra a parede próxima.
Raul Pompéia disse ainda: “ver a Alice”. Depois quis água. D. Rosa pretendeu dar-lhe leite em
pequenas colheradas. Ele, porém, não se movia. Era cadáver
261
.
É certo que nossos românticos, notadamente Gonçalves de Magalhães e Gonçalves
Dias, como observamos com maior minúcia, não tinham o mundo na mais alta conta para
nada dizermos acerca da geração byroniana. “Basta a mais rápida vista d’olhos lançada sobre
o mundo”, comentara Macedo, “para tornar transparente o extenso quadro da miséria
humana
262
”. Na longa composição Os mistérios, Magalhães se refere ao mundo como um
vasto cemitério consagrado à morte”
263
e admite a fugacidade da existência, farta de dores e
balda de bens “se a não vem dourá-la”
264
. Fazendo coro com Magalhães, no poema
Espera Gonçalves Dias também enumera os pesares da existência, apontando do mesmo
modo a figura de Deus como um bote de salvação suprema cuja garantia residia justamente na
amplitude dos tormentos vivenciados:
Quem há no mundo que aflições não passe,
Que dores não suporte?
Mais ou menos d’angustias cabe a todos,
A todos cabe a morte.
A vida é um fio negro d’amarguras
E de longo sofrer:
Semelha a noite; mas fagueiros sonhos
Pode de noite haver.
Porque então maldiremos este mundo
E a vida que vivemos,
Se nos tornamos do Senhor mais dignos,
Quanto mais dor sofremos
265
?
261
A vida inquieta de Raul Pompéia. 1935, p. 287.
262
Considerações sobre a nostalgia. 1844, p. 04.
263
Cantos fúnebres. 1864, p. 56.
264
Cantos fúnebres. 1864, p. 40.
265
Poesias. 1926, vol. I, p. 262.
107
Os literatos da década de 80, por sua vez, intensificando o desencantamento do mundo
prefigurado por Silvio Romero nos Cantos do fim do século, tomados por uma melancolia
doentia que faria o spleen de Álvares de Azevedo parecer um sentimento à toa, não acreditam
em qualquer via de salvação e indicam o mesmo abandono espiritual mencionado por Raul
Pomia – demarcado com esmero na composição A flor da decadência, de Fontoura Xavier:
Sou como o guardião dos tempos do mosteiro!
Na tumular mudez dum povo que descansa,
As criações do Sonho, os fetos da Esperança
Repousam no meu seio o sono derradeiro.
De quando em vez eu ouço os dobres do sineiro:
É mais uma ilusão, um féretro que avança...
Dizem-me – Deus... Jesus... outra palavra mansa,
Depois um som cavado – a enxada do coveiro!
Minh’alma, como o monge à sombra das clausuras,
Passa na solidão do pó das sepulturas
A desfiar a dor no pranto da demência.
– E é de cogitar insano nessas coisas,
É da supuração medonha dessas lousas
Que medra em nós o tédio – a flor da decadência
266
!
Esse desespero que rondava os literatos do período está ligado à ruína do processo
civilizatório idealizado pela geração entusiasta que se levantou com D. Pedro II e à percepção
cada vez mais crítica dos problemas sociais brasileiros – antenados, de qualquer modo, à crise
espiritual que se abateu praticamente sobre todo o ocidente no final do século XIX. O
processo civilizatório posto em marcha com a chegada de D. João VI, no plano da construção
da sensibilidade brasileira, não cessará sua marcha por conta desse descrédito pela vida, mas a
crença na prosperidade do país será profundamente influenciada por esse niilismo.
Antonio Arnoni Prado notou que a idéia de pátria atravessou incólume o desmoronar
do Segundo Reinado”
267
, sem atentar contudo as dimensões simbólicas que passaram a
revesti-la. Se tanto monarquistas quanto republicanos adoravam sua pátria com o mesmo
fervor e se dedicavam a ela, sem restrições, todos os seus esforços, tinham diante de si
horizontes diferentes. Como comentará Eloy Pontes, “à partir de 1889 caímos numa espécie
de marasmo precoce, imposto pelas razouras da democracia”
268
. A República brasileira não
conseguiu, como a Monarquia o fizera, atrelar seus ideais à um esforço conjunto pelo
progresso da nação. Se a população brasileira tivesse de crer em alguma instituição,
266
Citado por Silvio Romero. História da literatura brasileira tomo quinto: diversas manifestações na prosa,
reações anti-românticas na poesia. 1960, p. 1669.
267
Nacionalismo literário e cosmopolitismo. 1994, p. 599.
268
A vida inquieta de Raul Pompéia. 1935, p. 10.
108
comentaria Oliveira Vianna, esta seria a Monarquia, ou antes, o Monarca, o Imperador,
entidade feita de carne e osso”
269
, que ela sabia estar vivo e presente na corte. Quanto à
intelectualidade, classe talvez mais decisiva nesse processo, muitos daqueles que pelejaram
pelo advento da República ingressaram às hostes monarquistas após 1889 como Afonso
Celso, talvez o mais emblemático de todos.
Certo, o sentimento da nas antigas instituições havia desaparecido e Nabuco bem o frisou
quando disse uma vez que, nos últimos anos do Império, havia mais coragem em se dizer alguém
monarquista do que em ser republicano. Mas é certo também que o sentimento republicano não
estava de modo algum generalizado na consciência das elites – e, muito menos, na consciência das
massas
270
.
Devemos notar, contudo, que esse desespero não se abateu sobre a população
brasileira de um modo geral, visto que muitos ainda levarão adiante os impulsos patrióticos de
Magalhães e companhia. O que podemos observar, sumariamente, é uma divisão de estados
de ânimo até então inexistente. Todos os românticos acreditavam no progresso no Brasil
mas à partir deste período nossos intelectuais passam a conviver em campos distintos,
divididos entre entusiastas e niilistas. Canaã, de Graça Aranha, Os sertões, de Euclides da
Cunha, e Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, registram um descrédito
imenso pelo progresso do país, mas fazem par ao romance Porque me ufano de meu país, de
Alfonso Celso, e à parceria patriótica de Olavo Bilac e Coelho Neto, que nos legaram obras
como A terra fluminense, Contos pátrios e A pátria brasileira.
Deixemos de lado esta discussão mais ampla acerca da cruzada civilizatória brasileira
e da sensibilidade de nossos patcios, que deve ser levada à cabo em um estudo próprio, e
voltemos às características mais específicas da estética realista. Talvez as representações
femininas legadas pelos escritores do período nos ofereçam o índice mais significativo da
transição entre as duas estéticas e das mentalidades que as acompanhavam: literalmente do
céu à lama. Com os impasses literários da década de setenta a figura feminina sofrera certas
revoluções mas ainda resistira impávida. Macedo e Alencar passaram a observar suas
personagens femininas de modo mais severo e a exibir mulheres mais decididas e inteligentes,
como a baroneza de Amor e a lebre Aurélia Camargo, mas ainda resguardando a imagem
imaculada dos primórdios do romantismo para a maior parte das representantes do gênero.
Machado de Assis e Aluízio Azevedo, os maiores representantes da nova estética, nos
apresentarão mulheres mais fortes e mesmo maquiavélicas, em diversos sentidos superiores
aos seus conjugues.
269
O ocaso do Império. 1959, p. 100.
270
VIANNA, Oliveira. O ocaso do Império. 1959, p. 99.
109
Se em seus primeiros romances Machado nos apresentara perfis femininos bastante
românticos ao lado de mulheres mais maduras, indicando já uma maior complexidade de
personalidades, seus romances realistas nos apresentarão mulheres impávidas e
dominadoras cuja palma da vitória cabe à Capitu, sem sombra de vidas, sem desmerecer
no entanto os perfis de Sofia Palha e das diversas “amadas” de Brás Cubas. Mais
condescendente, ou menos ressentido que o bruxo de Cosme Velho, Azevedo ainda
demarcará certas oposições entre suas personalidades femininas cabendo destaque, apesar
de tudo, às femme-fatalles, eminentemente à pérfida condessa Vésper e à desvairada Filomena
Borges. Raul Pompéia nos apresentará mulheres muito parecidas com as pintadas por
Machado, criaturas extremamente fortes opiniões oriundas, segundo Eloy Pontes, de
decepções, contrariedades e desgostos, argumentação que inclusive permite ao crítico
defender a “masculinidade” do escritor, muitas vezes até então posta em cheque... Em suas
anotações íntimas encontramos os seguintes “elogios”:
A mulher é uma criatura inferior. Faltam-lhe todas as qualidades, que constituem a nobreza
humana. Sua prática são os seus ódios, a inteligência é curta e incapaz, as paixões são violentas,
mas efêmeras e disparatadas. Prefere bestialmente a força à graça. Falta-lhe absolutamente o
instinto artístico; o seu amor é apetite material; quando se deprava deixa a perder de vista a
depravação dos homens; é cruel; não conhece senão vaidade; é religiosa por covardia ou loucura.
Não tem talento, não tem gosto, não tem coração, não tem dignidade. O seu pudor é uma
coquetterie e uma esperteza. Deseja o homem como aozinha de marfim acabada de baleia, que
por há, para matar comichões. A comichão é a sua alma. Se o fossem o amor do homem e a
maternidade a mulher seria uma aberração.
Pelo menos a maternidade, tão sagrada (e talvez unicamente por ser tão sagrada),
sobreviveu ao bombardeio... Mas como se tanto “veneno” não bastasse, ele ainda arremata
suas reflexões com uma injúria cruel: por isso nada pior neste mundo do que uma velha”
271
.
No conto A tona d’água, de 1882, o escritor nos apresentará uma jovem simplesmente
inimaginável na prosa de Macedo ou Alencar, a apaixonada Rosália que não abandonou a
família para fugir com seu amante como ainda vibrou com o final trágico de sua odisséia
particular, à bordo de uma singela barcarola:
Pela segunda vez depara com o ferro; mas agora com atenção. Aquele aço não brilha, entretanto
cai sobre ele o luar. A jovem estende languidamente a mão e o segura. Violento palpita-lhe o
coração.
Pressentimento... Ela fita profundamente o semblante amoroso do companheiro e murmura:
– Sangue?!...
O mancebo faz um movimento brusco. A canoa estremece. O remeiro vai cantando...
O moço, que se afastara da jovem, pega-lhe nervosamente nos formosos braços, apenas velados
por brandos filós e diz-lhe, com os dentes cerrados, fora de si:
– Teu pai vinha matar-te, desgraçada!
271
Citado por Eloy Pontes. A vida inquieta de Raul Pompéia. 1935, p. 296.
110
E Rosália atira-se sobre ele e solta um grito de furor:
– Assassino, eu te amo
272
!
As mulheres conquistavam cada vez mais espaço na sociedade, como observaremos
com mais cuidado na segunda parte deste trabalho, e a estética realista registrará esse processo
de modo vivo e às vezes amargo como observamos rapidamente nas últimas linhas. Seja
como for, as representações da mulher brasileira legadas pelos escritores do período guardam
uma grande distância da imagem veiculada no alvorecer do romantismo mas a mulher, “o
advogado natural da espécie perante os sentidos”
273
, segundo Raul Pomia, continuará a
dominar, exatamente como antes, a atenção máxima de nossos literatos.
Mas é hora de determos nossas palavras, pois aquele que nos serviu de guia nessa
narrativa “desabou para sempre na infindável noite em que não há estrelas nem esperanças de
aurora”
274
, ignorado como um qualquer à indiferença impávida do tempo.
Réquiem para uma geração
A primeira sessão ordinária do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de 1882, no
dia nove de junho, foi marcada pelo pesar.
Às 7 horas da noite, reunidos na sala do Instituto os Srs. Visconde de Bom Retiro, Joaquim
Norberto de Souza Silva, Manoel Duarte Moreira de Azevedo, Joaquim Pires Machado Portella,
Tristão de Alencar Araripe, Jo Ribeiro de Souza Fontes, Maximiano Marques de Carvalho,
Antonio Henriques Leal e Conde de Baependy, anunciou-se a chegada de S. M. o Imperador, que,
recebido com as honras do estilo, tomou assento. O Sr. Presidente [Visconde de Bom Retiro] abriu
a sessão, e em seguida disse: que sendo essa a primeira vez que o Instituto se reunia este ano
depois do falecimento do ilustrado e benemérito consócio o Dr. Joaquim Manoel de Macedo, de
sempre saudosa memória, julgava bem interpretar os sentimentos de todos propondo, que, obtida a
nia imperial, se levantasse a sessão, conforme a praxe nunca interrompida, em demonstração de
profundo pesar por tão lamentável acontecimento, permitindo-se entretanto ao Sr. Joaquim
Norberto ler as palavras, que havia destinado recitar por ocasião de descer ao túmulo o cadáver
daquele pranteado consócio. Sendo tudo unanimemente aprovado, leu o Sr. Joaquim Norberto o
seguinte discurso.
“O poeta idolatrado do povo brasileiro, que fez as delicias da geração entusiástica, a qual se
levantara com o presente imperador, quando essa brilhante plêiade composta de Araújo Porto
Alegre, de Magales, de Gonçalves Dias e de outros astros radiantes, perlustrava com suas
inspirações o céu da pátria, apartou-se de nós, e para sempre! Foi pedir à terra de seu berço, que
ele amou tanto, um punhado de argila como a mortalha mais digna de seus restos, e seu espirito já
sulca os espaços celestes embalado pelas ondas harmônicas, que produzem os astros, que gravitam
no infinito.
O Dr. Joaquim Manoel de Macedo, para quem hoje só temos lagrimas de saudade, era um talento,
que se fazia admirar pela sua fecundidade sempre brilhante, e que se reproduzia em todos os
estilos.
272
Obras – vol. III (Contos). 1981, p. 84.
273
Citado por Eloy Pontes. A vida inquieta de Raul Pompéia. 1935, p 296.
274
AZEVEDO, Aluísio. O touro negro. 1961, p. 29-30.
111
Menino sublime – saiu do berço entre risos e flores, tendo nas mãos a Moreninha e o Moço louro,
e para logo o acolheu o povo como o primeiro romancista do país. Desde então produções como os
Dois amores, Vicentina, Rosa, e outras condignas de seu grande talento, vieram ocupar na
literatura pátria o competente lugar de honra, e nem ficao somenos às bonitas produções
românticas, que nos deu depois José de Alencar, pois basta a Nebulosa para o aureolar com a
majestade de seus raios. [...]
Prostrado sobre o leito da morte, revestia-se o seu semblante de uma serenidade santa, como se
refletisse a luz sidérea da eternidade. Via os seus amigos, estendia-lhes a destra, balbuciando seus
nomes e lhes dirigia um olhar brilhante, eloqüente, expressivo, como si quisesse tomar um raio da
lua e escrever sobre a superfície da baía de Niterói, não os versos divinos da Nebulosa, mas
aquelas palavras que dão testemunho de sua santa resignação:
Já sou demais nesta terra! Devo morrer!...
Demais? sim, demais!... Era já a harpa sem cordas. Os companheiros de suas lides, os cantores de
Colombo e dos Timbiras, mestres, discípulos, amigos, admiradores de seu gênio, todos ou quase
todos haviam baixado ao sepulcro, um em terra estranha, outro ao tocar as praias da pátria, tendo
por túmulo o fundo do Oceano, e muitos e muitos no próprio ninho paterno. Restava a inveja em
pé ante ele, a inveja, que esquecia os seus triunfos, e que nem curvou-se ao passar do seu féretro!
E eu, que o precedi no berço uns dezoito dias, sobrevivo-o para chorá-lo, como ele chorou comigo
o ente, que me foi tão caro nesta vida, pedindo a Deus que o fizesse anteceder na morte à sua
esposa egoísmo, dizia ele, do santo amor conjugal. E quem soube enriquecer a empresários
teatrais, trabalhando às mais das vezes só por amor das letras, quem soube proporcionar tantos
lucros aos editores de suas obras, morre legando apenas a sua amável consorte a menos das
cobiçadas heranças – a pobreza!
Receba ele agora do Instituto Histórico, que tanto abrilhantou com os seus escritos, o adeus da
externa saudade.
Disputaram-lhe a glória, e ela lhe pertence. Deifica-o esplêndida apoteoses. Convertem-se as suas
produções em estrelas brilhantes como a constelação do seu céu. É sua a posteridade!”
Concluída a leitura deste discurso, levantou-se a sessão
275
.
Com efeito, Macedo morreu no dia onze de abril, em sua terra natal, a pacata Itaboraí,
após longos padecimentos. Segundo os relatos de um de seus antigos alunos, Macedo sofreria
de alguma perturbação mental que lhe causava enorme sofrimento:
vinham-lhe aquelas temerosas lacunas de memória, e ele quase chorava... Abateu-se-lhe aos
poucos, em longos anos, o refulgente edifício, e nas ruínas de uma simples animalidade uma
lanternazinha não se apagou: Macedo falava, e julgava encarnar a sua criação de Moço Loiro
276
.
Pouco sabemos sobre a possível loucura de Macedo: Tania Serra julga que seus
contemporâneos teriam abafado a questão para não ofender mais a honra do escritor, tão
debilitada. Ao que tudo indica, seu enterro foi bastante simples, mas cinco anos depois um
mausoléu foi inaugurado em sua campa, uma última retribuição de seus conterrâneos. No dia
sete de julho do mesmo ano, seus companheiros do IHGB propuseram que seu busto
adornasse a sala de reuniões do instituto, o que foi unanimemente aceito.
A quarta reunião ordinária da instituição, realizada no dia vinte e um de julho, foi
igualmente dedicada à morte de um grande bastião de nossas letras: Gonçalves de Magalhães.
275
Acta da 1
ª
sessão ordinária do IHGB, realizada em 9 de junho de 1882. 1882, p. 437-41.
276
Citado por Tania Serra. Joaquim Manuel de Macedo ou Os dois Macedos: a luneta mágica do II Reinado.
1994, p. 231.
112
O poeta morreu em Roma, no dia dez do mesmo mês, como embaixador brasileiro.
Inaugurador do romantismo em nosso país, Magalhães foi o último a se desprender de seu
cárcere de pó”. Com sua morte, o romantismo estava oficialmente encerrado.
Muitos resquícios do romantismo, no entanto, ainda pairavam no ar e sua “árvore”
continuava a dar frutos poucos e de “gosto amargo”, conforme a crítica, mas ainda
desejados pelo público. Em 1887, cinco anos depois, portanto, segundo Eloy Pontes, “a
sociedade ainda se constituía de grandes damas e senhores de escravos”, “os pagens e as
mucamas formigavam nos lares abastados” e “as iaiás liam Joaquim Manuel de Macedo e
Alencar. A literatura mantinha seus aspectos românticos”
277
. Aluísio Azevedo, por sua vez,
comentaria, em 1883, que o público navegava ainda em 1820, ao passo que a crítica
especializada o admitia qualquer manifestação literária fora dos padrões da atualidade
278
...
A sentimentalidade romântica, na mira dos literatos desde a década de 70, mantinha
ainda inúmeras de suas prerrogativas, atacadas programaticamente por Aluísio Azevedo
inadvertidamente, talvez o maior herdeiro da antiga estética em sua geração. A mente de
Gabriel, personagem principal do romance A condessa Vésper, foi um dos palcos “realistas”
em que se travou mais um agitado embate” entre a razão e a emoção, quando da primeira vez
que ele foi acometido pela idéia do suicídio. Apartado de sua amada, o rapaz se dirigia para a
estação das barcas de Niterói:
Ia perfeitamente decidido a morrer; mas, pelo caminho, à medida que se aproximava do seu triste
destino, assistia-lhe um estranho interesse por tudo que o cercava. Ele, que naqueles últimos
tempos o ligava importância a coisa alguma, sentia agora reviver no seu organismo, mais forte
do que nunca, a sensação do mundo exterior. A gente que passava, homens, mulheres e crianças,
todos lhe prendiam a atenção diretamente, como se de súbito em cada um deles descobrisse a seu
respeito íntimas correlações na luta pela existência.
E quanto mais se avizinhava da morte, mais preso se sentia à vida, sem coragem todavia para
arrostá-la de frente. E, cheio de inveja por todos aqueles destinos que pela última vez lhe passavam
furtivamente defronte dos olhos, comparava com eles a sua sorte e, sucumbindo por dentro à
compaixão de si mesmo, julgava-se a mais desgraçada e desprezível das criaturas humanas.
Sim! Era preciso morrer!...
Além disso, considerava o mísero, afirmei a Gaspar, sob palavras de honra, que partiria com ele
para a Europa dentro de poucos dias; jurei igualmente que nunca mais me aproximaria de
Ambrosina, e não tenho ânimo de ir, nem de ficar aqui sem ela!
E caminhava resolutamente para o ponto das barcas.
– Sim, sim, disse-lhe então dentro uma voz assustada e débil, que vinha do fundo do coração; tudo
isso é verdade, mas tu bem podias dizer adeus àquela infeliz, antes de partires para sempre... Ela,
coitada, está muito mal, e talvez se reanimasse um pouco só com saber que o teu último
pensamento lhe foi consagrado... Seria uma obra de caridade!
277
A vida inquieta de Raul Pompéia. 1935, p. 189.
278
O touro negro. 1961, p. 49.
113
Nada disso! intervinha por sua vez a Razão, com uma voz terrível. Nada de imprudência! Se
fores, será capaz muito de perdoar tudo e... Adeus, dignidade! Adeus vergonha!
Juro-te que não! replicava o Coração, sempre com a sua vozinha hipócrita; prometo que não
havemos de demorar ao lado d’Ela! Aquilo é chegar, fazer as despedidas, e pedir as suas ordens
para o outro mundo!
Sim! sim! bradava a Razão. te conheço as lábias, meu finório! o é a mim que embaças!
Está bem aviado quem se guiar por ti!
E o Coração protestou, jurou, suplicou, e afinal começou a soluçar.
A Razão reagiu ainda, apresentou seus melhores argumentos; mas o diabo do Coração, tanto fez,
tanto chorou, tanto prometeu, que a tola da Razão teve de ceder, e Gabriel tomou o caminho da
Praia do Russell
279
.
Silvio Romero, furioso avatar do realismo, admitia em 1904, aliás com certo júbilo,
que a “nova geraçãosurgida na década de 70 se esfacelara e declarava sem temor que a
escola romântica fora “mais rica em produções de mérito do que qualquer das quatro ou cinco
que a substituíram”, concluindo seu juízo com uma sentença arrebatadora: “e até do que
todas elas juntas”
280
.
Um grupo de imbecis, tomados de não sei que prurido de exibição, entendeu de cindir a evolução
do pensamento brasileiro em duas fases inteiramente desacordes, onde deveriam campear, também
radicalmente inarmônicas, – a antiga e a nova geração.
Em vez de idéias, de doutrinas, de sistemas, de teorias, faziam-se os tais maganos portadores de
uma folha de papel, enrolavam-se na certidão de idade e investiam contra a gente descuidada!...
Eram os novos hyksos da ignorância e da estolidez. Eu previ logo o esfacelamento desse bando de
ciganos, que passavam pela zona literária a tocar seus tachos e chocalhos velhos; mas incapazes de
fixar pousada e trabalhar seriamente. Um pouco experimentado, conhecera antes vários bandos
desses talentos, desses gênios de arribação, fáceis em surgir e desaparecer, como nuvens de
gafanhotos. Predisse ser a praga de pouca duração; os coleópteros haviam de afugentar-se, e nós
outros tínhamos de ficar intactos em nossos postos.
O tempo, o portentoso fator darwiniano, o magnífico aliado que sabe matar o que não presta e dar
vida ao que tem valor, sem o menor esforço, em diminuto lapso, deu com a traquitana embaixo, e
hoje vemos por desdentados, trôpegos, gafentos os grandiosos tolos da nova geração, daquela
apolínea turma de heróis, que se propunham fazer o sol mais dourado, o céu mais azul, e o sei
que outras brincadeiras deste gênero
281
...
Podemos identificar certos traços e sinais do realismo na década de 70, mas eles não se
igualam de modo algum às características românticas que “sobreviveram” ao movimento e se
prolongaram ainda por quase duas décadas. Martins nior, que publicara as moderníssimas
Visões de hoje, retornará ao romantismo com seus Estilhaços, em 1885, e Olavo Bilac
revisará, em 1909, as Lições de história do Brasil de Macedo, sem alterá-las
significativamente... Em termos de comportamento e de estruturas mentais, então, as
reminiscências do romantismo serão imensas: praticamente todos os romances realistas
representarão a realização plena das “reformas” instauradas com a chegada de D. João VI e
279
A condessa Vésper. 1959, p. 200-02.
280
História da literatura brasileira – tomo quinto: diversas manifestações na prosa, reações anti-românticas na
poesia. 1960, p. 1649.
281
História da literatura brasileira – tomo quinto: diversas manifestações na prosa, reações anti-românticas na
poesia. 1960, p. 1630.
114
encampadas pela geração de Magalhães bem como alguns de seus revezes, como
observaremos com mais cuidado na segunda parte deste ensaio. O romance Hortência,
publicado por Marques de Carvalho em 1888, não nos legará uma série de representações
inebriadas pela sensibilidade mais romântica como reiterará o alcance da cruzada civilizatória
oitocentista para além dos limites da corte imperial, figurando sua trama na distante região do
Pará um dos maiores centros culturais do país no período, certamente, mas
significativamente afastado do Rio de Janeiro, de qualquer modo.
Se hoje o fantástico é recebido com certo desdém, porque o humano experimentou
possibilidades demais e não sabe para onde conduzir suas potencialidades, o século XIX o
vivenciou de um modo bem outro expandindo-se consideravelmente. “A inverossimilhança
era, por paradoxo, o valor romanesco por excelência, a chave da evasão estética para um
público que balbuciava realmente as suas primeiras letras na prosa de ficção”
282
.
Digamos, simplesmente, que o cavalo do narrador de Cinco minutos não morreu em
o: os comportamentos tidos como “extravagantes” nos primórdios do romantismo se
tornarão triviais durante a década de 60 e, dada sua normatividade, passarão a ser combatidos
à partir dos anos 70... Em uma sociedade tão “rústica” quanto a brasileira no alvorecer do
segundo reinado, que maravilhas não proporcionaram os romances de Macedo e Alencar,
expandindo com suas inverossimilhanças e com o maravilhoso o universo mental de nossos
patrícios, ainda em formação?
282
MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. 1977, vol. II, p. 301.
115
SEGUNDA PARTE
A medicina e a construção da sensibilidade brasileira
116
Como é feliz o homem em apreciar da Natureza os produtos! Prolongai um olhar sobre a terra,
observai este solo que habitamos, e vede como a Criação se reproduz cada vez mais encantadora!
Às vezes a ilusão seráo plena que vos julgareis transportado ao fabuloso jardim das Hespérides,
onde o sumo dos pomos de ouro vos refresca as faces ardidas pelo sol escaldante! Como é sublime
a Criação! Quanto extasia, arrebata, e enleva a alma, quando a Aurora envolta em seu róseo manto,
as auríferas portas do Ocidente abre a Febo, que apressado solta o dia da mortalha noturna, e açoita
as trevas por trás dos montes com a basta e dourada coma! Quando a harmônica orquestra dos
anjos, repetida por pulmosos cantores, saúda fulgurosa o alvorecer da manhã! Quando o firo
cobiçoso da brilhante matizada corola, que o copado arbusto atavia, lhe faz expandir celeste
eflúvio! Quando começa a decair o dia, o solene adormecer da Natureza, quando Febo cansado se
retira ao palácio da Amphitrite, e que o véu das trevas se descobre e estende recamando-se de
faróis, que desferem uma luz melancólica e misteriosa!
283
A passagem acima poderia certamente figurar em qualquer um dos folhetins
românticos do século XIX, mas integra a introdução da tese médica Princípio nervoso,
defendida pelo Dr. Alexandre Mendes Calaza na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em
1853. A continuação da passagem nos revelaria sua natureza científica, sem no entanto se
distanciar do pensamento romântico do período:
Como desafia a sensibilidade, como é ebreativo o contemplar esses simbólicos quadros, esses
deliciosos panoramas, fiéis transuntos do quanto o espírito humano de mais sublime imaginar
pode! É no centro desta sedutora natureza, tão pródiga de belezas, o cheia de encantos, que o
filósofo naturalista estabelecendo o paralelo entre os homens e os outros animais, reconhece o
quanto lhe é superior, e os fisiologistas interrogando a vida vão encontrar o mistério dessa
superioridade no seu princípio animador, no princípio nervoso
284
.
Temporalmente atreladas ao movimento romântico em nosso país, visto que a primeira
foi defendida em 1834, as teses médicas oitocentistas poderiam ser compreendidas como um
outro gênero literário dadas suas semelhanças com as demais produções do período. Uma
tese com o título Considerações sobre o amor dispensa maiores comentários, e não poderia se
iniciar de modo menos enfático:
Vamos falar d’amor; desse manancial de prantos e prazeres; dessa fonte de risos, e de dores, onde
as gerações, umas as as outras, vem molhar os bios! Vamos falar d’amor, dessa divindade da
melhor quadra da vida, e de quem no desfolhar da idade, o homem se despede com uma lágrima de
saudade! Amor! delicioso sentir! Canteiro de venturas, e infortúnios, palavra de mágica harmonia,
que ecoas em nossa alma, como a esperança em hora d’agonia! Quem, quem deixará de querer-te?
Tu roubaste ao céu sua ambrosia para derramá-la na terra, tu esmaltas e douras a cadeia que nos
prende à galé; e se tu não foras, os homens renunciariam a vida de amargores! Paixão divina,
somos teu filho, e bem quiséramos mostrar-te ao mundo como saíste das mãos de Deus, e
283
CALAZA, Alexandre Mendes. Princípio nervoso. 1853, p. I-II.
284
Princípio nervoso. 1853, p. I-II.
117
reivindicar teus direitos esquecidos por uma civilização: e mostrarmos como médico, a tua
utilidade ao homem
285
.
Vibrante nas páginas dos romances oitocentistas, o amor também ocupou a mente de
diversos doutores do período inspirados pelas mesmas musas que regiam o destino de
nossos escritores. Tido como o “alimento da vida”
286
pelo Dr. Laurindo Marques de Ataíde
Marcorvo, o amor seria, para o Dr. José Luiz da Costa, “a paixão que mais tem concorrido
para a civilização da humanidade, e por conseqüência podíamos igualmente concluir, a mais
conveniente a sua saúde”
287
.
Descrevendo a situação das crianças criadas por amas “mercenárias”, isso é, que
prestariam serviços às desalmadas mães que não desejavam amamentar pessoalmente seus
filhinhos, ou àquelas que, infortunadamente, não podem se entregar à tão elevada missão
situações que por si só renderiam lacrimosos romances o Dr. José Ribeiro dos Santos
Zamith expressa-se do seguinte modo:
o aspecto das pobres crianças submetidas a esta alimentação insuficiente é inteiramente
característico; seu corpo é magro, seus olhos encovados, suas feições desfeitas, o seu rosto
enrugado, parecem pequenos velhos. O pouco de alimento que elas tomam não serve senão para
alimentar sua diarréia; elas respiram para darem gritos de dor. Não se compreende como estas
pobres crianças podem viver neste estado; são verdadeiros cadáveres ambulantes
288
.
A descrição de certos males por nossos doutores atingia, por vezes, um patamar tão
exasperante que o leitor deveria entrar em pânico de imaginá-los, tamanho o colorido da
linguagem como no caso do onanismo descrito pelo Dr. Candido Teixeira de Azeredo
Coutinho:
A nefanda masturbação, horror dos vícios e caos que por milhões de vezes tem levado aos túmulos
as mais belas constituições da mocidade, é infelizmente abraçada e idolatrada nos nossos colégios
pelos jovens inexperientes e completamente néscios de suas funestíssimas conseqüências! e o que
mais espanta é ver-se que várias pessoas de ambos os sexos, sabendo que ela pode causar e causa a
tísica, raquitismo e muitos outros males, fogem à luz, às vozes da razão, e aos exemplos fatais que
sabem e presenciam; prestam-lhe obstinado culto, que deixa de ser exercido quando já, no
profundo marasmo da morte, tem-se perdido toda a sensibilidade, movimento e consciência,
assistindo apenas a tais desgraças – o cadáver, teatro asqueroso das cenas de tão hediondo vício
289
.
Nem todos carregavam suas sentenças com as graciosas metáforas do romantismo,
como o autor da Dissertação acerca da origem da vida, o austero Dr. Augusto Tiago Pinto, e
outros ainda não se julgavam capazes de alcançar os donios habitados pelos literatos, como
285
COSTA, José Luiz da. Considerações sobre o amor. 1848, 05.
286
Algumas considerações higiênicas e médico-legais sobre o casamento e seus casos de nulidade. 1848, p. 42.
287
Considerações sobre o amor. 1848, p. 29.
288
Do aleitamento natural, artificial e misto em geral, e particularmente do mercenário em relação às condições
da cidade do Rio de Janeiro. 1869, p. 33.
289
Esboço de uma higiene dos colégios aplicável aos nossos. 1857, p. 25.
118
o Dr. Frederico Augusto dos Santos Xavier
290
, mas muitos foram aquele que nos legaram
passagens extremamente espirituosas, eivadas do romantismo mais exaltado, como o Dr.
Laurindo Marcorvo em sua tese Algumas considerações higiênicas e médico-legais sobre o
casamento e seus casos de nulidade:
A reciprocidade nos direitos e nos deveres conjugais é uma condição essencial de harmonia e de
felicidade.
Muito se engana o traidor, quando pensa que o véu do segredo envolve seus desvios... Muito se
ilude, quando, tomadas todas as precauções, prevenidas todas as hipóteses de suspeita, em vez de
colher flores no próprio jardim, onde as há belas, puras, perfumosas, e sem o menor perigo, vai
colhê-las furtivamente em jardins alheios, e em vez do aroma delicioso, que esperava achar nas
que mais belas lhe pareciam, sorve o veneno, que inseto peçonhento havia deposto nas pétalas
dessas flores!...
Se ao menos esse veneno fosse concentrar-se no coração do insensato, e se convertesse em
reomorso... mas não... vai transmitir-se à inocente família, e fazer talvez a desgraça de uma família
inteira!
291
As teses médicas oitocentistas não apenas guardam semelhanças lingüísticas e
temáticas com os romances do período como são guiadas pelo mesmo estro civilizatório que
acompanhamos na primeira parte deste ensaio. Estudante de medicina, coube à Joaquim
Manuel de Macedo, provavelmente por conta de sua notoriedade no período, a tarefa de
proferir o discurso de formatura do ano de 1844 – evento que tradicionalmente contava com a
augusta presença de D. Pedro II abençoando os jovens formados. As as ovações de praxe,
onde exalta a especificidade do momento vivido, nosso autor passa ao panegírico da classe em
que está prestes à ingressar:
E o futuro?... O futuro saudamos nós com todo esse fogo da esperança, que sempre flameja no
coração da mocidade. Não que menor se nos afigure a importância e magnitude de nossa missão;
não que impotente vaidade nos encha de sobeja ardidez para desafiarmos trabalhos e tormentas;
mas porque umnio lisonjeiro, que no dia de hoje nos embala e para nós sorri, abrindo o livro da
vida do Médico, talvez só dele nos mostra a página de ouro, a bela página, que faz sempre a
ventura e o encanto dos cultivadores da Medicina. Sim! Nós saudamos o futuro com todo o ardor
da esperança! s almejamos representar o papel, que nos deverá competir, nessas cenas
eloqüentes, em que hoje uma família inteira, que rodeia o leito de um moribundo, anelante corre a
receber o Médico, que entra; silenciosa... suspensa entre a dúvida e a esperança embebe nele os
olhos, como num ser da mais sublime natureza; ansiosa acompanha a pena, que formula; trêmula
recebe esse papel, que lhe é como uma sentença de vida ou de morte; opressa partir esse
homem, que lhe parece o juiz de seu presente e de seu porvir, da vida do moribundo, e da fortuna
dessa casa; e o amanhã?... amanhã o Médico chega, e a família outra vez o rodeia... o pai, o esposo
está salvo!... e os filhos e a esposa caem nos braços do salvador, e exclamam: – És o nosso anjo! –
Tu salvaste meu Pai! Tu me conservaste meu Esposo! Nós desejamos mostrar bem depressa a
nossos Mestres, que as lições, que recebemos, não foram soltas e perdidas, como os perfumes, que
290
“Não procuraremos”, comentaria ele, “pintar o quadro do casamento, porque nos faltam essas brilhantes cores
de que só dispõem os escritores distintos, que com suas hábeis penas tem descrito os sentimentos, as aspirações e
os destinos do homem e da mulher sobre a terra; não os acompanharemos nos ardentes arroubos da imaginação
explicando a origem do casamento nos desígnios do Criador, nem como o poeta descrevendo as cenas
arrebatadoras do amor que, na frase de um escritor notável, terminam para sempre pela união de duas almas que
juntas sofrerão os mesmos tormentos e juntas desfrutarão os mesmos prazeres. Dos casamentos sob o ponto de
vista higiênico. 1876, p. 09-10.
291
Algumas considerações higiênicas e médico-legais sobre o casamento e seus casos de nulidade. 1848, p. 38.
119
as flores exalam, e que as brisas levam; que antes ficaram impressas em nossas almas, como essas
doces recordações do tempo da infância, que duram sempre, e que se ruminam ainda na caba do
ancião... lá no invernar da consciência. s ardemos por mostrar, que sabemos perdoar as
impertinências do menino, sofrer os caprichos do velho, e respeitar o pudor das donzelas; que
compreendendo devidamente a honra e o dever do Médico, nossas almas sabem ser um túmulo
para o segredo das famílias; e em nossos corações soa tão fortemente o gemido exigente do rico,
como o ai abafado do pobre. Tal é a nossa saudação do futuro
292
.
A citação é longa, certamente, mas o leitor notará que oportuna. Após o panegírico da
classe médica, que como ingresso cobrou a cada aluno seis longos anos de estudo, o autor
dirige suas palavras para a mais ilustre figura do auditório, invocando sua glória e sua sagrada
missão:
E agora, permita V.M.I., que nós rendamos os mais ferventes agradecimentos a V.M. pela graça,
que se dignou a fazer-nos, honrando com Sua Augusta Presença o ato do nosso doutoramento.
Senhor, o Monarca de uma nação livre, que ama e protege as Letras, é o representante das belas
idéias do século, e, ainda mais, era a necessidade palpitante de nosso país. Oh! não será infrutífero
o sagrado esforço, com que V.M.I. trabalha por espancar de todo as trevas, e fazer em um céu alvo
e sereno brilhar para o Brasil o sol da civilização em seu mais vivo esplendor: imenso... rtil...
rico... tão rico, que a própria ambição ainda não achou sonda, que tocasse o fundo de seu vasto mar
de riquezas, o Brasil terá, não tarde, de representar o nobre papel, que lhe cabe entre as nações. Se
fracos e desalentados somos nós para servir em tão grande obra, ao menos, Senhor, nós vemos
com entusiasmo essa cabeça loira de uma juventude esperançosa, que se ergue para responder ao
forte empenho de V.M.I.; nós sentimos ferver nessa cabeça uma imaginação ardente, como o sol
de nossa pátria: seu pensamento livre, como o favônio matinal de nossas campinas, animado pela
alta proteção de V.M.I., vai arrojar vôos de gênio: é o futuro, Senhor, que se quer vingar do
passado!... é uma brilhante cruzada, que se levanta à voz de V.M.I.! é uma coorte mais inspirada e
briosa!... a ela a vitória; pois que sua bandeira é sagrada!... a ela os triunfos; pois sempre o delírio
do poeta e do herói, que exprime essa imagem flamante, que está sempre diante dos olhos do gênio
em toda a vida... até o túmulo... e a quem ele deixa, além do túmulo, o cuidado de eternizá-lo!... a
ela o triunfo; pois que seu único interesse, seu grito de guerra, e seu alvo, é esse mote de fogo, que
terminando aqui, Senhor, repetiremos com efusão de nossas almas: - à Glória! à Glória!!
293
Vemos nessa passagem que em 1844 Macedo já tinha consciência da cruzada em
curso e que com seu habitual patriotismo desejava aderir à suas valorosas fileiras. Nosso autor
tem então vinte e quatro anos e já é um homem célebre: seu romance A moreninha acaba de
ser lançado e causou certo furor na corte imperial. o vimos elogiar as belas letras diversas
vezes, mas e quanto à seu panegírico da classe médica? Tendo em vista sua comprovada
verborragia não teríamos problemas em levar tal interpretação adiante mas a verdade é bem
outra. Como já fez com outros temas, Macedo retomará seu elogio da classe médica em um
outro contexto, desta vez destinado à um público muito mais amplo.
Deus legou aos homens pensamentos grandes, importantes e sagrados, em sua passagem, de
padecimentos para ele e de salvação para nós; em sua passagem por este mundo, dizemos, cada
passo que deu, cada ação que fez, cada palavra que pronunciou, foi uma lição de virtude angélica,
uma amostra do caminho do u, um pensamento de santidade; e o cumprimento de cada um
desses pensamentos é o emblema, o mote de cada classe da sociedade; entre eles, se fosse possível
dar-se mais beleza a uma do que a outras idéias do Espírito Divino, seria um dos mais sublimes e
292
Discurso transcrito por Tania Serra em Joaquim Manuel de Macedo ou Os dois Macedos: a luneta mágica do
II Reinado. 1994, p. 251-2.
293
Discurso transcrito por Tania Serra em Joaquim Manuel de Macedo ou Os dois Macedos: a luneta mágica do
II Reinado. 1994, p. 252.
120
difíceis a caridade. – E os missionários dessa virtude angélica, são especialmente os médicos. A
medicina é o sacercio da caridade.
O negociante de receitas, aquele que, merde seu título, anda por curando, se pode, os seus
doentes, tendo em vista somente o pobre interesse; que presta o seu conselho a troco de ouro;
que morde os outros médicos, como em concorrentes que lhe diminuem o ganho; esse, que não
compreende o gemer da alma da humanidade; que não sabe o que é o sofrimento mal gemido, as
angústias abafadas do homem pobre; esse, que enquanto receita com a mão direita, tem a
esquerda estendida para receber dinheiro; esse, que define a medicina – somente um meio de vida;
esse, que não entende que a religião de Jesus Cristo, a nobreza de sua ciência, e a honra do
coração marcam-lhe o posto ao pé de quem geme, e não unicamente ao de quem paga; esse... é
apenas um mercador de receitas.
Mas aquele que, no exercício da medicina, não faz distinção entre rico e pobre, e vê indivíduos
que de seus cuidados carecem; aquele que combate as enfermidades, disputando contra a morte dia
por dia, hora por hora, instante por instante, o campo da vida; que invade corajoso a atmosfera da
peste; que se expõe com marcial bravura ao contágio mortífero, respirando aqui ar miasmático e
envenenado, banhando-se ali em suor tido e peçonhento, para caridoso levar socorros a infelizes,
de quem sabe não receberá um ceitil; aquele que nem mesmo desanima, nesse viver trabalhoso,
ante o monstro que tantas mil vezes fere o coração do dico a ingratidão; que paciente se
amolda à impertinência da infância, ao capricho da velhice e ao pudor da virgindade; que não
conhece no homem os padecimentos da maria; que entende e fala também o idioma da
sensibilidade, o eloqüente dizer da alma; aquele que tem na caba a medicina para curar, nas
mãos metade do ouro que recebeu do rico para espalhar sobre a miséria da pobreza; nos lábios
consolações salutíferas para com elas abrandar os tormentos do infeliz; e no coração uma sepultura
para eternamente encerrar os segredos das famílias; esse sim... esse é médico.
E se acaso se orgulha de sê-lo, tem, de sobra, razão para orgulhar-se
294
.
Visando um blico mais vasto que a seleta platéia de seu discurso de 1844 Macedo
rearticula seu elogio à classe médica nas páginas do romance Os dois amores, em 1848
público este, portanto, justamente mais necessitado de suas notáveis palavras. Essa
glorificação evidentemente não é gratuita mas faz parte da “estratégia de ação” do autor dento
das coordenadas maiores dacruzada civilizatória em marcha. O discurso higienista da
classe médica espraiava-se para além de seus domínios imediatos e se diluía em todos os
setores da sociedade, tomando no presente caso as belas letras como forma de divulgação e
realização de seus saberes na mesma medida em que era influenciado e respaldado pelos
padrões da literatura vigente.
Muitos foram aqueles que se dedicaram às musas da literatura e também às musas da
medicina. Dos quatro grandes vultos da primeira geração romântica três passaram pela
academia de medicina mas ou a arte de Hipócrates não oferecia muitos atrativos para os
homens da época ou, como bons românticos, eles tinham maior afinidade com os enlevos do
espírito do que com a vida prática: Magalhães optou pela poesia e pela filosofia, Macedo pelo
romance e Porto Alegre pela pintura. Manuel Antônio de Almeida também se formou em
medicina, mas foi no jornalismo que ele encontrou sua redenção. Marques Rebelo, biógrafo
de autor, comenta que “doutorar-se em medicina, numa época em que ser doutor importava
294
Os dois amores. S/d, p.7-9.
121
muito, era o recurso em moda para os que não podiam ir bacharelar-se em São Paulo. Não era,
portanto, uma verdadeira vocação”
295
. Segundo Ubiratan Machado:
a dificuldade de se obter uma colocação decente na sociedade imperial levou, também, muitos
jovens a estudarem medicina sem qualquer vocação. Não queriam clinicar, mas obter um diploma
que lhe abrisse portas, mesmo que essas portas conduzissem a caminhos que nada tinham a ver
com a profissão
296
.
Gonçalves de Magalhães, por sua vez, figurara um distinto doutor nas páginas do
romance Amância, e talvez suas reflexões nos ajudem a compreender a aproximão entre as
duas esferas. Passeando pelas ruas do Rio de Janeiro, extasiado com tanta beleza, o bom
doutor foi acometido por um desejo singular:
desejei então ter uma fantasia de poeta; e como que minha alma extática poetizava em silêncio,
sem achar palavras que exprimissem a infinidade de seus pensamentos, o vagos como o espaço,
tão serenos como a noite, e tão brandos como o murmúrio das mansas vagas, que preguiçosamente
deslizavam morrendo sobre a praia da Glória. Oh! Os poetas têm momentos deliciosos! Momentos
de embriagues celeste, a que nada se pode comparar! Oh, poetas! Ministros da Divindade, que
convosco ri-se, com vossos cânticos se apraz! Em daria metade da minha monótona existência
para gozar na outra metade desses vossos delírios de inefável deleite! O riso mais angélico da
inocência, que docemente salpica os bios da infância, apenas é para o médico uma abstração;
mas a vossos olhos o que não revela esse riso? o que não diz à vossa imaginação criadora? O amor
é um objeto de especulação para o egoísta, um instinto sensual para o comum dos homens, mas
para s, oh poetas, é uma fonte perene de suaves melodias, é uma divindade pura, uma flagrância
contínua, uma harmonia inesgotável do coração, um êxtase infinito, uma adoração de todos os
sentidos e de todas as faculdades, um sacrifício d’alma, uma elevação a Deus! Feliz o poeta,
porque ele sabe gozar o amor puro, verdadeiro e endeusado! Feliz a bela que inflama o coração
do poeta; porque só ela entre todas as belas, recebe o tributo digno da beleza!
297
vimos como no início do segundo reinado as lucubrações ardentes dos literatos
estavam associadas aos desvarios “inocentes” da juventude, e as teses médicas ofereceriam
aos estudantes uma última empreitada “literária” antes do advento da vida “madura”, onde
o poderiam mais compor versos.
Ademais, e talvez isso importe mais do que o fascínio que a literatura exercia sobre a
juventude, o próprio pensamento da época não guardava restrições às duas classes
intelectuais, isto é, ambas tinham à sua disposição o mesmo conjunto de idéias e de
conhecimentos, conduzidos, de qualquer modo, pelo entusiasmo civilizatório deflagrado com
a chegada de D. João VI. Não competia aos intelectuais do período a extrema especialização
típicas aos dias de hoje vigorando antes uma ampla aspiração pelo conhecimento, tal como
comentaria o Dr. Alexandre Stockler Pinto de Menezes: e, pois, se vê que o imortal Auguste
295
Vida e obra de Manuel Antônio de Almeida. 1943, p. 18.
296
A vida literária no Brasil durante o romantismo. 2001, p. 172.
297
Amância. 1865, p. 351-52.
122
Comte tem muita razão, querendo que o médico e o padre fossem ao mesmo tempo filósofos,
isto é, abrangessem o conjunto do saber humano”
298
.
As belas letras ocupavam papel de destaque nesse panorama científico, e nossos
doutores dominavam tanto os grandes nomes da medicina quanto da literatura. Brito Broca
comentou certa vez que nossos literatos oitocentistas “não se conformavam em escrever prosa
ou verso sem entremear por toda parte, nem sempre com muita adequação, nomes de autores,
personagens de romances ou de poemas”
299
, mas seu juízo pode ser estendido aos jovens
doutorandos sem qualquer restrição. Safo, Hicrates, Vitor Hugo, Lamartine, Alexandre
Dumas e muitos outros pensadores e escritores de todos os tempos tinham morada certa nas
teses médicas oitocentistas. Nas vinte e duas páginas de sua Dissertação acerca da origem da
vida, o Dr. Augusto Tiago Pinto mencionou nada mais nada menos que oitenta e um autores!
No ideário médico do século XIX, Anaxágoras e Hipócrates seriam tão confiáveis quanto
Lamarque e Buffon, para nos mantermos aos mencionados pelo Dr. Augusto Pinto.
A cientificidade própria às primeiras teses médicas amalgamava indistintamente
praticamente todos os conhecimentos existentes no mundo, das sagradas escrituras às idéias
mais modernas que circulavam no período. As barreiras entre as diversas ciências não
guardavam ainda a exclusividade que conhecemos hoje ou mesmo as especificidades que
começarão a se manifestar à partir da década de setenta, como se todo o conhecimento tivesse
uma fonte única e inequívoca a irrigar todos os seus ramos sem quaisquer restrições. Ainda
que muitos estudiosos da cultura brasileira ridicularizem a cientificidade do período, julgando
que em nosso país a ciência passou a se esboçar à partir de meados do segundo reinado,
nossos intelectuais, eminentemente modernos, não sentiam qualquer dificuldade em amparar
suas idéias na Bíblia ou mesmo nas teorias do pai da medicina o ilustre Hipócrates, nascido
460 anos antes de Cristo. Efetivamente, seja no Brasil ou mesmo na Europa, onde muitos
buscavam as luzes do saber, as faculdades não dispunham de muitas especialidades,
oferecendo um número reduzido de cursos que em sua totalidade preenchiam à contento todos
os horizontes do conhecimento mesmo porque, como pensava Gonçalves de Magalhães,
todas as ciências devem estar em harmonia, ou o verdade nelas”
300
.
Epistemologicamente, não há diferença formal entre o conhecimento do período e o nosso,
visto que todas as épocas estão na plenitude de suas potencialidades. Para além do desprezo
298
Da responsabilidade legal dos alienados. 1887, p. 05.
299
O que liam os românticos? 1959, 0. 164.
300
Factos do espírito humano. 2001, p. 76.
123
de nossos intelectuais, notadamente Eduardo Campos Coelho e Gabriela dos Reis Sampaio
301
,
aos quais certamente poderíamos acrescentar muitos outros, nossos doutores não se julgavam
atrasados sequer à intelectualidade francesa, tida como a mais avançada do século. Sabiam
eles que muito estava por ser feito e que nossos centros de pesquisa não eram tão avançados,
mas tal como o país, e em nome dele, a medicina nacional tinha um futuro glorioso à sua
espera.
Se durante os primórdios do romantismo muitos doutores “desejavam” ser poetas, à
partir da década de 70 muitos literatos “desejarão” ser médicos. Já vimos Macedo citar
Lavater em 1872, mas no romance A família Agulha, publicado em 1870, Guimarães Júnior
tomara um compêndio médico como fonte de referência para o estudo da gravidez: “Debay,
nos seus cursos de higiene militante, apresenta os mais fabulosos casos a propósito desse
tempo excepcional no excêntrico organismo da mulher”
302
. Com o passar do tempo, as
ciências integrarão cada vez mais o universo das belas letras e as teses médicas serão
requisitadas por inúmeros literatos de tal modo que alguns romances poderiam ser tomados
propriamente como estudos científicos, como é o caso de O cromo, lançado por Horácio de
Carvalho em 1888, cujo sub-título indicava sua filiação cientificista: estudo de
temperamentos.
E ia descer os degraus, quando a porta da sala se abriu e D. Eufrásia apareceu, toda desfigurada e
em susto, a gritar que a filha estava em delírio.
Correram todos para o quarto.
Com efeito, tinha a rapariga entrado em luta com a visão horrível, com a tremenda alucinação
visual da cobra que a perseguia.
Desde os primeiros momentos viu logo o médico que havia uma complicação na moléstia de sua
doente, complicação resultante de um desequilíbrio funcional dos centros nervosos.
Isso o assustou a princípio; pareceu-lhe vento em fogueira. Se o combustível era pouco,
desapareceria rapidamente. O fato que acabava de observar filiava-se para ele àqueles que os
neurologistas denominam de eretismo cerebral, cerebração inconsciente, etc., em que,
involuntariamente, em relação à vontade, e, espontaneamente em relação ao cérebro, este vibra, e
desdobra, sem antecedentes de associação de idéias, as imagens que contém sua parte afetada,
apresentando casos de verdadeiras alucinações sensoriais. Se isto continuasse, prejudicaria em
extremo a cura da anemia cerebral, porque gastaria o sangue depauperado da enferma na feitura de
301
Ainda que julgue não estar cometendo qualquer desvio presentista, “isto é, a uma ilegítima avaliação dos
resultados da medicina do século XIX com os critérios da medicina do final do século XX”, Eduardo Coelho se
arrisca a afirmar que “os médicos sabiam que não sabiam, estavam cientes de que não curavam e da nulidade das
suas terapias”. As profissões imperiosas: medicina, engenharia e advocacia no Rio de Janeiro 1822-1930.
2003, p. 110, nota n. 12. Gabriela Sampaio, por sua vez, comenta que “nas primeiras décadas do estabelecimento
das faculdades de medicina, lutou-se principalmente por sua institucionalização, sendo aos poucos,
principalmente após a década de 1870, que a preocupação com a produção científica passou a ser primordial”, e
que a crença na medicina científica não era ainda algo consolidado, mesmo no final do Império
301
. Nas
trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. 2001, pgs. 144 e 149, respectivamente.
302
A família Agulha. S/d, vol. I, p. 101.
124
imagens, pensamentos, idéias e outros fatos mentais. Convinha portanto corta a causa pela raiz.
Mas, se a causa era moral, de que serviria um remédio físico?
E conservava-se imóvel, vendo-a, estudando-a nos menores movimentos, nas mais insignificantes
particularidades.
Era uma cascavel enorme, que para ela avançava, com as presas de fora, trêmula a bipartida
língua.
– Uma impressão talvez da infância, pensou o médico consigo.
Num desespero enorme, debatia-se a moça a fugir da visão horripilante. Fitava-a de olhos fixos,
acompanhando-lhe no espaço a suposta evolução, tirando-a do pescoço, onde ela se enrolava, com
mãos rápidas, nervosas, e gritando de uma maneira horrorosa, com o rosto desfeito nas expressões
do pânico.
– Que diabo fazer? pensava o doutor, sacudido por aquela situação, quase bestificado.
E teve uma idéia: – impor-se pelo terror
303
.
Tido como o romance mais “científico” da literatura brasileira, O cromo nos apresenta
o estranho envolvimento do Dr. Teixeira Lins com sua discípula e paciente Esther em uma
São Paulo às vésperas da queda do trono e de sua ascensão definitiva sobre o Rio de Janeiro.
Qualquer leitor de folhetins do período perceberia facilmente que o dico se via diante de
um caso de histeria, apesar de diagnosticar a moléstia da moça como um caso de anemia
cerebral durante todo o romance. Severamente influenciado por O homem, de Aluísio
Azevedo, bem como outros dois lançamentos do mesmo ano, A carne, de Júlio Ribeiro, e
Hortência, de Marques de Carvalho, o mérito de O cromo residiria justamente em sua
abordagem da histeria – uma doença tão complexa que nem sequer teria sido realmente
descoberta” na trama, ainda que tratada exemplarmente.
Lembrou-se de casos parecidos com aquele, de mulheres nevropatas e histéricas nos hospitais de
Paris, e em cujas crises o terror, imposto até com armas de fogo, tinha sido de resultados
espantosos.
O segredo da coisa estava em desviar a atenção da doente da imagem que a absorvia, essa espécie
de hipnotismo espontâneo, de auto-sugestão.
E de um pulo, com os olhos estatelados, a fronte carregada como a de um assassino, convencido
do bom êxito de sua tentativa, – deu um formidável berro, cara a cara com a doente, prendendo-lhe
os pulsos com força e sacudindo-a brutalmente.
Ela ficou estupefata, a olhá-lo espantada, como se acordasse de um pesadelo, ou como se fosse a
primeira vez que visse um homem. Reparava-o traço por traço, todo o semblante, todos os
contornos do rosto, até que afinal ano pode tirar os seus olhos dos olhos dele, que se enterravam
nos dela, agudos e ferozes, a refletir a luz como um reverbero, umedecidos, espelhados pela
intensidade da emoção.
– Então! Que era aquilo? perguntou ele e começou a falar.
Não havia palavras que a deixassem bem convencida de que era falso o que ela vira, de que tudo
aquilo era delírio, de que a tal cobra tinha existência no pensamento dela.
E quis fazê-la deitar-se, e não conseguira.
agora, depois que ele afrouxara, dirigindo-lhe mansamente a palavra, havia ela tirado os olhos
dos olhos dele, que tinham voltado à sua expressão natural.
303
O cromo. 1888, p. 60-61.
125
Ela se desprendia do fio moral com que ele a prendera um momento antes, e, mais senhora de si, ia
voltando de novo, a pouco e pouco, às mesmas excitações, sentada no leito, segura pelos outros
para se não levantar em camisa, para se não decompor aos olhos do médico, acusando de novo os
sintomas caractesticos do medo: o olhar atônito; as pálpebras, em espasmo nervoso, muito
abertas, arqueadas quase em círculo; os músculos frontais, contraídos sobre os supercílios; a boca,
em desânimo, caída nos cantos, mole e também um pouco aberta; desfeitas as faces e decomposta
a fisionomia toda.
Seu colo arquejava numa excitação extraordinária, e os seus braços começavam a bater no ar, a
arrancar de si o monstro, que neles se enroscava espiralando.
E pegou a gritar, e agarrou a camisa pela cintura, tentando desfazer-se da cascavel.
O dr. Teixeira lembrou-se de hipnotizá-la. Não seria difícil consegui-lo, pois a experiência que
acabara de fazer dera bom resultado. Mas a um novo grito, a um novo berro, quereria ela prestar-
lhe atenção, esquecer-se um momento, um só que fosse, da visão que tinha em mente?
Os gritos da moça eram terríveis, cortantes
304
.
De um preciosismo impressionante, a cena que estamos observando o nos indica
vivamente a complexidade do caso de Esther, como registra um delicado esforço literário de
apropriação do universo médico, legando-nos um quadro bem amplo de representações acerca
da percepção da figura do médico no período e de suas relações com a família brasileira.
Então, cara a cara, deu-lhe o doutor outro grito formidável... e ela não o ouviu.
O médico empalideceu.
A situação era desesperadora para os da família. Havia lágrimas e dores imensas. Todos julgavam
que era chegada a hora da morte.
E o dr. Teixeira perguntou se não havia um metal qualquer que produzisse som, uma lata, um
bronze, uma campainha, fosse o que fosse?
Nada! absolutamente nada!
E ele entrou pela casa a dentro, ligeiro, esquadrinhando, perguntando, nervoso quase como a
própria doente.
Passou a mão numa lata de querosene vazia e num pedaço de pau, e subindo em cima da cama,
meteu o pau na lata com toda a força que tinha.
A moça levantou os olhos para cima e ficou de novo estupefata, a olhá-lo espantada.
Ele atirou a lata a um canto e desceu, do alto daquele barulho, como uma estrela salvadora,
tomando-lhe os pulsos com força, sacudindo-a novamente e repreendendo-a com severidade. Os
seus olhos estavam dilatados, agudos e ferozes, enterrando-se nos dela que pararam, tranqüilos,
mansos como o cristal de um lago, presos aos dele, imóveis, enquanto lhe ouvia a palavra
sugestiva, que lhe desviava as imagens opressoras, substituindo-as por outras aproximadas,
gradualmente, até chegar, como ele queria, a uma outra imagem inteiramente diversa, que o
relembrasse nem de longe as primeiras.
E fê-la ver o que ela supunha cobra, não passava de um cinto que lhe estava atado à cintura, e até
com muita elegância.
Para tornar o efeito seguro, mesmo porque eram as primeiras experiências que ele fazia, tinha
mandado que lhe rodeassem a cinta com um cadarço. E nele pegando, junto à pele da rapariga,
puxava-o para um e outro lado, mostrando-lhe que era um cadarço, e que ela se havia enganado
305
.
Como uma “estrela salvadora”, extremamente criativa, o Dr. Lins Teixeira conseguira
lentamente superar a crise de delírios da moça, mas não a mostia que manteria seu
304
O cromo. 1888, p. 61-63.
305
O cromo. 1888, 63-64.
126
domínio sobre ela por mais alguns meses, curada apenas pelas “setas do cupido”... Seja como
for, não nos custa observar o final da cena que estamos acompanhando e a eficácia das
medidas do médico:
E como os seus olhos não se movessem ele desceu-lhe as pálpebras, e as pálpebras não se
levantaram.
– Abrisse-os! ordenou com império.
Ela os abriu.
– Levantasse os braços!
Ela os levantou.
O dr. Teixeira estava que o cabia em si de alegre.
– Que se deitasse!
Ela deitou-se.
Se quando ela acordasse viesse a se iludir mais uma vez que fosse, com a cobra, ele lhe
cortaria a caba.
Depois acrescentou:
– Queria agora, ordenava que ela desse uma risada, muito boa, muito chique.
E o rosto da doente se iluminou e ouviu-se no grande quarto uma risada cristalina, bela,
comunicativa.
Todos riram-se também.
Finalmente o médico ordenou-lhe que dormisse uma hora, muito sossegadamente, muito
quietinha, sem sonhos, sem sobressaltos, acordando ao fim desse tempo.
Ela, fechando as pálpebras, imobilizou-se num sono delicioso
O dr. Teixeira era desses médicos para quem o bom êxito da maior parte das curas dependia em
muita da influência moral, especialmente nas moléstias do sistema nervoso
306
.
Valorosamente empenhada na cruzada civilizatória deflagrada com a chegada de D.
João VI, a medicina contribuiu imensamente para a construção da sensibilidade brasileira
oitocentista cujo desenvolvimento acompanhamos brevemente na primeira parte deste ensaio.
Compete-nos agora avaliar os subsídios de que a classe médica lançou o e as
representações que ela nos legou acerca desse processo, cotejando seus discursos com os
registros dos literatos do período profundamente influenciados, como veremos, por suas
ações. Para compreendermos tanto o pensamento como, especialmente, a medicina do século
XIX, devemos, antes de tudo, observar com mais cuidado a completa e total indivisibilidade
entre as dimensões sicas e espirituais do ser humano ou a tese da indivisibilidade entre
corpo e alma.
306
O cromo. 1888, p. 64-65.
127
A indivisibilidade entre o corpo e a alma
Entre os médicos do século XIX era generalizada a crença de que o homem era a
criatura suprema de Deus, animado pelo amor a “domar feras, serenar mares, espalhar
tormentas, inventar artes, e ciências, chamar os astros à terra para interrogá-los, investigar as
entranhas da terra, e converter o mundo em um vasto jardim!
307
”. “Possuindo uma inteligência
que abarca a imensidade, remontando ao infinito
308
, comentaria o Dr. José Mariano de
Amorim Carrão, as idéias do homem, qual fluído elétrico”, voariam de nação em nação,
como que escurecendo a veloz carreira dos tempos, e levando em si o cunho do Gênio”
309
.
“Mas”, acrescentaria o Dr. Carrão:
se pela sua organização, a ainda mais por esse Raio Divino, que o aclara, é o homem superior aos
outros animais, não deixa contudo de estar sujeito a numerosas e terríveis paixões, que
escurecendo-lhe a razão, degradam-no do seu verdadeiro ser, arrojam-no à precipícios, cujos males
mui tarde conhecerá ele.
demasiado zelo na sua educação pode, apartando-o da errada vereda para onde muitas vezes
arrastam-no as suas inclinações, prevenir as funestas conseqüências, que necessariamente hão-de
provir da pratica de ações a que o homem pode avezar-se
310
.
Para todas as esferas do pensamento do século XIX, o fim único do homem na terra
seria a propagação da espécie, preceito amparado, segundo o Dr. Laurindo Marques de Atde
Marcorvo, no conhecidíssimo preceito do Autor da Natureza”: crescei-vos e multiplicai-
vos
311
. “Todas as paixões humanas concorrem para o mesmo fim”, no parecer do Dr. Jo
Luiz da Costa, “a civilização da espécie humana, a sua redenção”
312
, e evidentemente a saúde
seria uma condição necessária a esse processo. O instinto de conservação, ainda segundo ele,
seria “inato no homem”, um princípio reator de sua organização, para lutar contra a morte: é
a força mediatriz da natureza, que nas doenças o impele a curar-se, e busca eliminar o agente
malificente”
313
. Do mesmo modo, o Dr. Jode Amorim Carrão apontaria que “a base da
felicidade física consiste na saúde, que não é outra coisa mais do que a regularidade nas
funções”
314
. “Compenetrado então do seu dever”, comentaria ele, “redobra o homem de
esforços, trabalha para a sua felicidade e para a dos seus semelhantes, único fim que lhe é
dado a preencher na terra”
315
. “A saúde consiste na harmonia de todas as funções corporais e
307
COSTA, José Luiz da. Considerações sobre o amor. 1848, p. 13.
308
Algumas considerações sobre o homem. 1848, p. 01.
309
Algumas considerações sobre o homem. 1848, p. 02.
310
Algumas considerações sobre o homem. 1848, p. 02.
311
Algumas considerações higiênicas e médico-legais sobre o casamento e seus casos de nulidade. 1848, p. 17.
312
Considerações sobre o amor. 1848, p. 13.
313
Considerações sobre o amor. 1848, p. 15.
314
Algumas considerações sobre o homem. 1848, p. 05.
315
Algumas considerações sobre o homem. 1848, p. 02.
128
cerebrais”, retomaria o Dr. Alexandre Stockler Pinto de Menezes às vésperas da queda do
trono, demonstrando sua validade para além dos domínios do romantismo: a moléstia é a
desarmonia dessas funções e como tal afeta todo o organismo
316
. Sua confiança na
correspondência entre as dimensões sicas e morais dos indivíduos o levaria a afirmar que o
dico atua no maior número de casos, mais pela confiança que inspira do que pelas drogas
que receita”
317
como, aliás, tivemos oportunidade de observar nas passagens de O cromo
mencionadas há pouco.
Segundo o Dr. Cândido Teixeira de Azeredo Coutinho, o organismo tenderia para a
plenitude da vida, como a alma para o ideal”
318
. Diferentemente de nossos literatos, que
agiam “apenas” sobre o espírito de nossos patcios, ou mais propriamente sobre sua
moralidade, os médicos deveriam atuar tanto sobre o corpo quanto sobre o espírito dos
cidadãos brasileiros. É claro que, como as próximas linhas indicarão, ao influenciar o espírito
de seus leitores, os escritores do período influenciavam também suas dimensões físicas, mas
nossos médicos deveriam cuidar ativamente dos dois donios seja com sua atuação direta
sobre os pacientes, seja influenciando as demais esferas do pensamento brasileiro, alcançando
assim, entre outros, os discursos dos literatos e dos educadores, classes cuja atuação seria
fundamental para o sucesso de suas intervenções.
Gonçalves de Magalhães, o um iminente poeta mas considerado também um dos
maiores, senão o maior, pensador do nosso romantismo, sintetizaria o pensamento da época
em seu célebre tratado Fatos do espírito humano, oferecendo-nos algumas chaves para a
compreensão das idéias do período. Segundo suas palavras, discutindo a tese que temos em
pauta, “a simplicidade não é o caráter da verdade nas humanas coisas; complicadíssimo é o
nosso corpo, intrincadíssimos são os nossos órgãos dos sentidos, e a menor das funções vitais
de tal concurso de situações depende, que espanta a quem seriamente as estuda”.
Não menos complicadas que as do corpo são as funções do espírito, e o mais simples de seus atos
deriva de um concurso de faculdades. A unidade da natureza, como nas obras de arte, não provém
da simplicidade dos meios empregados, senão da coordenação e harmonia das partes em relação ao
sujeito e ao objeto
319
.
Desse modo, nossos dicos tinham diante de si a tarefa ou mesmo o dever de
intervir tanto sobre o corpo quanto sobre o espírito de seus pacientes, estendendo sua atuação
sobre duas instituições essenciais à vida social brasileira: o casamento e a educação
316
Da responsabilidade legal dos alienados. 1887, p. 15.
317
Da responsabilidade legal dos alienados. 1887, p. 14-15.
318
Esboço de uma higiene dos colégios aplicável aos nossos. 1857, p. 26.
319
Factos do espírito humano. 2001, p. 107.
129
concorrendo ainda para a fomentação dos dois sentimentos que deveriam conduzir o estro
civilizatório de suas marchas, o patriotismo e a religião. Nas palavras do Dr. Coutinho:
O estado de civilização de uma nação se reflete no povo; a moralidade é o apanágio da civilização,
e é um absurdo dizer-se que a imoralidade progride com ela; a educação é o corretivo da natureza
humana; e a classe que fornece maior número de pessoas à prostituição é sem dúvida a de
indivíduos sem educação, e os fastos criminais das plenas provas de que é a falta de educação que
leva às prisões maior número de condenados. O cristianismo é a civilização, e esta ainda é
imperfeita em nossos dias, mas é esta a religião que criou a família, restabelecendo o casamento e
profligando a poligamia: as instituições antigas com seus cultos às nus Afrodisíacas dormem
nas estantes das bibliotecas e cobrem-se de poeira nos museus da Itália
320
.
Ainda segundo o Dr. Coutinho, “desde tempos remotos até nossos dias, a conservação
e o aperfeiçoamento da espécie humana são considerados uma necessidade indispensável”.
Nos esplendores da civilização atual, nos desertos da Arábia, no centro da Grécia belicosa e no
tempo das grandezas da Roma antiga, embora se revista do espírito religioso, ou se ostente no
patriotismo espartano, tome a forma de prinpio humanitário, é sempre a higiene ditando os
preceitos para a conservação e o aperfeiçoamento das forças humanas.
Moisés foi o primeiro que nos antigos tempos prescreveu regras tendentes à saúde do povo que
conduzia e doutrinava, há três mil anos, nos desertos da Arábia: esse povo bárbaro que as idéias
religiosas tinham arrancado ao cativeiro do Egito, indócil e pronto à revolta, submetia-se
pacificamente à prescrição do legislador hebreu: a sabedoria deste fez com que os preceitos
sanitários, sem os quais a multidão barbara que ele conduzia teria perecido, fossem severamente
observados; a palavra Deus era o meio mais profícuo de fazer manter as suas prescrições por um
povo indisciplinado caminhando para a terra da promissão; as tribos barbaras recebiam as palavras
do seu chefe como inspiradas por um nio divino, e os preceitos sanitários eram recebidos como
emanações da divindade
321
.
A religião e o temor de um Deus seriam “a base de toda a moral
322
, segundo o Dr.
Antenor Guimarães, e seu colega Cândido Coutinho acreditava que “quando os princípios
magníficos de Cristo houverem criado raízes na mocidade, o futuro será certo e a civilização
caminhará à seu termo
323
.
O casamento, união que converteria o mundo inteiro quase num paraíso, se fosse bem
compreendido”
324
, segundo o Dr. Marcorvo, recebeu especial atenção da classe dica, como
veremos mais adiante. Por ora, compete ao Dr. Antônio Nunes de Gouvêa Portugal declamar
o interesse dos médicos sobre a sagrada instituição:
o casamento e [as] boas qualidades hereditárias preparando de antemão o organismo concorre em
muito para que vingue e cresça o fruto da concepção, e para que a espécie se perpetue e aperfeiçoe;
por isso trataremos de examinar suas influencias, que, não sendo tomadas em consideração como o
devem ser, trarão mil males para o ente que se vai formar, e daí para sua educação física, que, uma
vez pervertida, perverterá a moral, pois que o físico e o moral estão muito ligados
325
.
320
Esboço de uma higiene dos colégios aplicável aos nossos. 1857, p. 24-25.
321
Esboço de uma higiene dos colégios aplicável aos nossos. 1857, p. 03.
322
Dissertação sobre a higiene dos colégios. 1858, p. 56.
323
Esboço de uma higiene dos colégios aplicável aos nossos. 1857, p. 25.
324
Algumas considerações higiênicas e médico-legais sobre o casamento e seus casos de nulidade. 1848, p. 35.
325
Influência da educação física do homem. 1853, p. 03.
130
Segundo o Dr. Antenor Augusto Ribeiro Guimarães, inspirado pelo mesmo
patriotismo que inflamava a mente de nossos literatos oitocentistas, a sociedade necessitaria
de homens de ferro, e a educação atual deveria
ter em vista a produção de homens sãos, ágeis, e elegantes e evitar um desenvolvimento do corpo a
tal ponto exagerado, que ultrapasse as proporções compatíveis com a grande capacidade intelectual
de que são em geral dotados os Brasileiros
326
.
Os médicos deveriam, assim, atentar para as próprias condões dos casamentos e
continuar tutelando os membros da família em formação, seja acompanhando o cotidiano dos
conjugues, seja “patrulhando” a educação das crianças futuros membros da sociedade que
mais tarde deveriam prolongar e aperfeiçoar a trajeria de seus pais.
Ainda que não estivessem propriamente interessados em “dominar a sociedade
brasileira, como apontaria e em alguma medida mesmo “desejaria Jurandir Costa em
inúmeras passagens do clássico Ordem médica e norma familiar, alguns de nossos médicos
apresentavam iias bastante exclusivistas acerca de seus domínios. “Os resultados que
provém da aplicação dos preceitos higiênicos são incalculáveis; e é no médico que as
famílias encontrarão o seguro intérprete dessas leis”, nas palavras do Dr. Frederico Augusto
dos Santos Xavier. É com os seus conselhos”, continuaria ele, que elas poderão constituir-
se com segurança, resistindo ao jogo da vida e garantindo às gerações por vir a tranqüilidade
na certeza da saúde”
327
.
A higiene, estendendo sempre os seus domínios, procurando com passo seguro e certo a felicidade
dos conjugues, marcha com vantagem, e vai, depois de celebrado o casamento, entrar na vida
íntima dos esposos, oferecendo preceitos que serão de grande utilidade em referencia as relações
conjugais
328
.
Detentor único dos conhecimentos que concederiam às famílias a chave da felicidade,
nossos médicos o deveriam ser consultados apenas sobre a viabilidade dos casamentos, mas
deveria acompanhar também o cotidiano dos conjugues, tutelando suas relações do princípio
ao fim. No entanto, e justamente contestando as “paranóia” de Jurandir Costa, a influência dos
doutores sobre a vida de nossos patrícios não era tão ampla quanto eles desejavam, como
lastimaria o Dr. Frederico Xavier:
Infelizmente, como já dissemos no correr deste nosso trabalho, pouco apro se à higiene, vasto
ramo das ciências médicas que tem por fim prolongar a vida; e assim, o médico nunca pode obter
das famílias essa confiança tão necessária para reconhecer a sua história, máxime, quando for
consultado em questão de casamento, não podendo muitas vezes dar esses conselhoso úteis, que
serviriam de base futura para a vida dos contraentes, derramando nesse os sãos princípios da
higiene
329
.
326
Dissertação sobre a higiene dos colégios. 1858, p. 42.
327
Dos casamentos sob o ponto de vista higiênico. 1876, p. 71.
328
Dos casamentos sob o ponto de vista higiênico. 1876, p. 63.
329
Dos casamentos sob o ponto de vista higiênico. 1876, p. 71.
131
Está fora de dúvida que a educação deve ter por fim o aperfeiçoamento de todas as
partes do nosso ser,sico, moral e intelectual, mas de um modo conveniente, à partes
intimamente ligadas e que concorrem todas para o mesmo fim a sua vida total
330
, diria o
Dr. Antenor Guimarães, e como a sombra segue o corpo, “todos os males herdados na
infância acompanham o homem até o túmulo
331
, comentaria o Dr. Zeferino Justino da Silva
Meireles.
Levando-se em conta a reciprocidade entre as dimensões sicas e morais do ser
humano, tanto o momento da concepção de um novo indivíduo, o período de sua gestação e
também sua amamentação deveriam ser objeto dos maiores cuidados. Segundo o Dr.
Frederico dos Santos Xavier, “as paixões paternas, os prazeres, os cios concorrem
poderosamente para a vida futura dos filhos” e muitas deficiências mentais legadas às crianças
devem ser “atribuídas ao estado de saúde dos pais no momento da cópula”
332
.
Quanto à mulher grávida, o Dr. José Joaquim Ferreira Monteiro Barros apontaria que
ela deveria evitar as grandes cidades,
onde os tumultos e cenas multiplicadas se reproduzem a cada passo, algumas das quais a podem
afetar de uma maneira grave, como a notícia de roubos, mortes, assassinatos: onde o constante
dobrar dos sinos, anunciando aos vivos o passamento de alguns, produz sobre a mulher terríveis
efeitos, que podem provocar o aborto, como muitas vezes tem acontecido, e outras complicações,
além do desânimo e susto em que são lançadas por semelhante motivo
333
.
Por sua vez, o Dr. Thomas JoXavier dos Passos Pacheco Costa acreditava que a
educação moral das crianças deveria ser iniciada quando elas completassem quarenta dias de
vida – quando o recém-nascido “coma a conhecer os objetos que o cerca”. Devemos
aproveitar, prosseguiria ele, sua
flexibilidade natural para se lhe formar o espírito, e o coração. A primeira infância é a idade da
imitação, são bebidas com o leite, para assim dizer, as boas, e as más idéias; e os hábitos, que se
adquirem então, são tanto mais difíceis de destruir-se para o futuro, quando mais profundas são as
suas raízes. O que é natural, dificilmente se pode reformar, e com muita razão se diz, que, se os
homens têm qualidades, ou vícios, é sua ama de leite, quem primeiro deve ser louvada, ou
censurada, porque ela foi sua primeira instituidora
334
.
“Se remontarmos à história”, complementaria o Dr. Zeferino Meireles, que dedicou ao
assunto sua tese de doutorado:
veremos os antigos atribuir a crueldade de Calígula, desse monstro sanguinário, à fereza de sua
ama, que para obrigá-lo a mamar untava os bicos dos peitos com sangue. Veremos Ambroise Paré
330
Dissertação sobre a higiene dos colégios. 1858, p. 06.
331
Breves considerações sobre as vantagens do aleitamento materno. 1847, p. 15.
332
Dos casamentos sob o ponto de vista higiênico. 1876, p. 10.
333
Considerações gerais sobre a mulher, e sua diferença do homem; e sobre o regime que devem seguir no
estado de prenhes. 1845, p. 18.
334
Considerações gerais sobre os cuidados que se devem prestar aos recém nascidos quando vem no estado de
saúde e sobre as vantagens do aleitamento maternal. 1840, p. 16.
132
e Rosen fazer menção de leoas aleitadas por vacas tornarem-se tão doces como estas, e cães
nutridos por leoas herdarem a ferocidade destas
335
.
A primeira infância das crianças deveria ser repleta de cuidados, mas ínfimos em
comparação à adolescência, ou mais propriamente, à puberdade, como, “época cheia de
perigos, que a melhor vigilância o pode de todo impedircomo comentaria o Dr. Antenor
Guimarães. Segundo ele:
o estímulo moral, fonte de sofrimentos e de felicidades íntimas, exerce um poder absoluto sobre o
organismo. A poesia reveste a idade crítica, os fenômenos morais continuadamente sucedem uns
aos outros, e circunscrevem os indivíduos em um drama íntimo, onde o amor, a saudade, o
entusiasmo, e a dor tem cores diversas e expreses diferentes; um desejo concentrado,
indefinido e novo se ostenta ora em uma melancolia profunda, ora em um fervido entusiasmo
336
.
Ainda que estas considerações fossem lidas para ambos os sexos, caberia às
mulheres um maior número de atribulações e transformações. Nas palavras do Dr. Antônio
Gonçalves de Lima Torres:
a mulher admira-se dos seus novos atributos; sentimento inteiramente desconhecido para ela a
torna mais tímida e reservada; vaga solicitude a impele para um bem que ignora; está na mais
risonha época da vida, não conhece a miséria, nem a necessidade, e supõe que os prazeres durarão
sempre. Os olhos lânguidos e ternos anunciam os seus desejos, temores e receios: o sentimento da
própria fraqueza, e as novas sensações que experimenta fazem com que não se aproxime dos
companheiros da infância sem abaixar os olhos. O coração lhe transborda de amor, e se anuncia
pelo pudor, u misterioso dos desejos. Esta paixão não deve ser um capricho, mas sim a
necessidade, a satisfação de procriar; a mulher não deve entregar-se ao homem para o prazer brutal
do momento; este prazer o é o amor para aquele que ama verdadeiramente; quem ama, o
busca manchar o objeto do seu culto e adorações, nem corromper o coração ainda puro de
sensualidade com o sórdido bafo da imunda luxuria
337
.
Nossos literatos conheciam muito bem as atribulações próprias à juventude,
retratando-as com intensidade nas páginas de seus romances. Esse conjunto de iias legado
por nossos doutores pode ser observado com esmero na paixão que o jovem Leonardo Pataca
inspirou à desenxabida Luisinha, nas clássicas Memórias de um Sargento de Milícias:
Desde o dia em que Leonardo fizera a sua declaração amorosa, uma mudança notável se começou
a operar em Luisinha; a cada hora se tornava mais sensível a diferença tanto do seu físico como do
seu moral. Seus contornos começavam a redondar-se; seus braços, até ali finos e sempre caídos,
engrossavam-se e tornavam-se mais ágeis; suas faces magras e pálidas, enchiam-se e tomavam
essa cor que sabe ter o rosto da mulher em certa época da vida; a cabeça, que trazia
habitualmente baixa, erguia-se agora graciosamente; os olhos aaqui amortecidos começavam a
despedir lampejos brilhantes; falava, movia-se, agitava-se.
A ordem de suas idéias alterava-se também; o seu mundo interior, até então acanhado, estreito,
escuro, despovoado, começava a alargar os horizontes, a iluminar-se, a povoar-se de milhões de
imagens, ora amenas, ora melancólicas, sempre porém belas.
Até então indiferente ao que se passava em torno de si, parecia agora participar da vida, de tudo
que a cercava; gastava horas inteiras a contemplar o céu, como se só agora tivesse reparado que ele
era azul e belo, que o sol o iluminava de dia, que se recamava de estrelas à noite
338
.
335
Breves considerações sobre as vantagens do aleitamento materno. 1847. p, 15-16.
336
Esboço de uma higiene dos colégios aplicável aos nossos. 1857, p. 22.
337
Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases de sua vida. 1848, p. 16-17.
338
Memórias de um Sargento de Milícias. 1997, p. 90.
133
Referindo-se à identidade entre corpo e alma, o romancista registrou ainda esta
interessante passagem:
quanto ao moral, se os sinais físicos não falham, quem olhasse para a cara do Sr. José Manuel
assinalava-lhe logo um lugar distinto na família dos velhacos de quilate. E quem tal fizesse não se
enganava de modo algum; o homem era o que parecia ser. Se tinha alguma virtude, era a de não
enganar pela cara
339
.
Outro romancista que concedeu especial atenção à identidade entre corpo e alma foi
José de Alencar. Observamos na primeira parte deste ensaio a desvairada paixão de um jovem
o identificado por um vulto com quem se encontrara em ônibus, descrita nas páginas do
romance Cinco minutos mas não mencionamos que, apesar de inflamado pela paixão mais
ardente, ele se convenceu de ter encontrado o amor de sua vida após conhecer o semblante
da jovem misteriosa. Oras, para alguém tão apaixonado, a beleza física do ente adorado não
deveria ser tão significativa assim, poderíamos pensar mas justamente por conta das
correlações entre as dimensões sicas e morais dos indivíduos, a beleza física seria um índice
indispensável acerca da moralidade do ser amado. Vejamos, de qualquer modo, a cena em que
ele finalmente desvela, literalmente, a beleza do vulto que inflamara sua paixão:
Lancei-me para a saleta onde havia luz, e coloquei o lampião sobre a mesa do gabinete em que
estávamos.
Para mim, minha prima, era um momento solene; toda essa paixão violenta, incompreensível, todo
esse amor ardente por um vulto de mulher, ia depender talvez de um olhar.
E tinha medo de ver esvaecer-se, como um fantasma em face da realidade, essa visão poética de
minha imaginação, essa criação que resumia todos os tipos.
Foi, portanto, com uma emoção extraordinária que, depois de colocar a luz, voltei-me.
Ah!...
Eu sabia que era bela; mas a minha imaginação apenas tinha esboçado o que Deus criara
340
.
Alencar retomaria essa discussão nas páginas do hilário A pata da gazela,
desenvolvendo com maior clareza suas idéias acerca do tema. O romance segue a mesma
trilha esboçada no folhetim de 1855, quando dois vultos encapuzados entram em um coche e
deixam cair um embrulho, recolhido pelo jovem Horácio de Almeida, o primeiro
conquistador do Rio de Janeiro
341
, com grande curiosidade. Tratava-se de um sapatinho que,
estava completamente convencido “o leão das modas”, só poderia pertencer à mais esplêndida
maravilha da capital fluminense. Figurado na década de 70, o tom da narrativa incide sobre a
febre materialista que corromperia o século enfocando a adoração de nossos patcios pelos
pés femininos – elevada no romance à categoria de “fetiche”.
339
Memórias de um Sargento de Milícias. 1997, p. 74.
340
Cinco minutos. 1991, p. 32.
341
A pata da gazela. 1992, p. 39.
134
Era uma botina, já o sabemos”, diria Alencar, “mas que botina! Um primor de pelica
e seda, a concha mimosa de uma pérola, a faceira ir do lindo chapim de ouro da
borralheira”
342
. Endinheirado e desgastado pelos prazeres da vida, o dandy Horácio passará a
tributar sua vida à adoração da botina, dedicando seu tempo útil à encontrar o que lhe
servira de modelo - “vê-lo e morrer”
343
. Em uma das cenas mais marcantes do romance,
Alencar nos indicaria o grau de veneração que o jovem tributava à botina encontrada
casualmente:
Recolhendo, Horácio acendia duas velas transparentes e colocava-as a um e outro lado da
almofada de veludo escarlate, sobre uma mesinha de charão, embutida de madrepérolas. Tirava de
um elegante cofre de platina a mimosa botina, e com respeitosa delicadeza deitava-a sobre a
almofada, de modo que se visse perfeitamente a graciosa forma do pé que habitara aquele ninho de
amor.
Então acendia o charuto, sentava-se numa cadeira de espreguiçar, defronte, porém distante, para
que o fumo não se impregnasse na botina; e ficava em muda e arrebatada contemplação até alta
noite
344
.
A trama se complexifica quando o leão das modas conta sua desventura ao amigo
Leopoldo Castro que por sua vez se apaixonará por uma moça e fora incumbido de buscar-
lhe uma encomenda em um sapateiro. Inadvertidamente, o rapaz viu que se tratava de uma
bota enorme, horrível, que só poderia servir à uma pessoa da pior espécie.
O Castro, que não admirara o matiz da rosa, notou a mácula e desgostou-se dela. Ele sentia-se com
forças para amar o feio e o desgracioso, mas o o disforme, o horrível. Essa aberração da figura
humana, embora em um ponto só, lhe parecia o sintoma senão o defeito, de uma monstruosidade
moral
345
.
“Mas por que de ser assim”, questionava-se José de Alencar?
A mutilação é um fato humano; o aleijão é um fato natural. Essa aberração do princípio criador,
esse desvio da forma primitiva, indicam sem dúvida um vício na esncia do organismo. Não se
tem verificado que nos corpos mal conformados de nascença habita sempre uma alma enferma?
Nos corcundas sobretudo, porque a espinha dorsal é o tronco da inteligência. A deformidade de um
membro, de um ramo apenas, não denota eiva tão profunda do espírito, é certo, mas revela que a
alma não é nobre e superior. Não se concebe o anjo dentro de um aleijão
346
.
No final das contas os dois jovens perceberiam que haviam se enganado acerca de suas
amadas, cabendo à Horácio a desventura de encontrar o “aleijão” e à Leopoldo a ventura de se
casar com a dona do mimoso visto que ele resolvera, por sua conta e risco, ignorar as
idéias acerca da correspondência entre o sico e o moral dos indivíduos. “Não amo a sua
beleza material”, refletiria o moço:
342
A pata da gazela. 1992, p. 14-15.
343
A pata da gazela. 1992, p. 31.
344
A pata da gazela. 1992, p. 30.
345
A pata da gazela. 1992, p. 33.
346
A pata da gazela. 1992, p. 45.
135
o que eu adoro nela é a beleza moral, a alma nobre e pura, a criatura celeste, a luz, o anjo.
Qualquer que fosse o invólucro de seu espírito imaculado, creio que havia de adora-la tanto, como
a adorei desde o momento em que primeiro a vi
347
.
Voltemos, sem mais demora, à cruzada civilizatória da classe médica. Por conta de
seus inumeráveis atributos caberia à mulher, como membro fundamental da família brasileira,
uma posição de destaque na condução das amplas reformas existências necessárias ao
progresso do país. Antes de observar seu glorioso papel e as transformações da família
oitocentista, contudo, devemos nos aproximar primeiramente da figura do médico, “juiz
íntegro e órgão sublime da sociedade”
348
.
O médico, suas práticas e seu templo
Todas as épocas estão no auge de suas potencialidades científicas, levando-se em
conta que a realidade é situada sempre à partir do momento presente e das especificidades de
cada cultura, mesmo que em diálogo com países e com práticas mais avançadas” e por
mais arcaica” que a medicina praticada em nosso país no século dezenove possa parecer,
assim como os literatos do período nossos médicos se julgavam na alvorada da modernidade,
detentores dos conhecimentos mais nobres e sofisticados. Evidentemente a medicina
oitocentista era muito distinta da que observamos na atualidade, tanto científica quanto
tecnologicamente”. Observemos, antes de tudo, alguns aspectos de sua dimensão material.
Comecemos com a figura do dico, inúmeras vezes mais divinizada, mas
curiosamente representada de modo muito mais humano do que nos dias de hoje. O asséptico
vulto de branco que nos vem à mente cai logo por terra, visto que segundo Augusto Paulino
eles atuavam vestidos como estavam, levantando
apenas ligeiramente as mangas do paletó e da camisa (retirando ou arregaçando os punhos) e
iniciava a operação. Alguns, para evitar salpicar a roupa de sangue, vestiam por cima do paletó um
outro mais largo e mais usado (em geral uma sobrecasaca já imprestável) e, algumas vezes,
colocavam um estreito e pequeno avental ou toalha em sua frente
349
.
Além disso, “foram pobres de instrumentos os cirurgiões antigos. Aliás, muito de
acordo com e em relação com a espécie de cirurgia que praticavam”
350
, como comenta
Lycurgo Santos Filho de modo levemente desdenhoso. Os mais abastados importavam
“instrumentos” de Portugal ou da França, no fundo apenas ligeiramente superiores aos
347
A pata da gazela. 1992, p. 44.
348
XAVIER, Frederico Augusto dos Santos. Dos casamentos sob o ponto de vista higiênico. 1876, p. 12.
349
Citado por Lycurgo Santos Filho. História da medicina no Brasil: do século XVI ao século XIX. 1947, vol. II,
p. 214-15.
350
História da medicina no Brasil: do século XVI ao século XIX. 1947, vol. II, p. 215.
136
nacionais, que seriam usados, como os demais, geralmente até a exaustão. Via de regra as
cirurgias eram realizadas nas casas dos próprios pacientes, sobre a mesa da sala ou em seus
leitos pessoais
351
, evidentemente sem anestesia descoberta” somente em 1846 (mas já
ministrada no Brasil no ano seguinte), muito distinta, de qualquer forma, da que conhecemos
hoje. Diante destas “condições” o leitor não deve se admirar com a exultante taxa de
mortalidade pós-operatória do período, que “subia invariavelmente a 80 e 90%”,
principalmente por conta de infecções e supurações atribuídas à chamada podridão dos
hospitais, tratada pelo Dr. Antônio José de Melo, entre outros, em sua tese de doutorado.
“A ‘doença dos hospitais’ causou mais mortes entre os internados que do que todas as
demais afecções reunidas”, segundo o historiador da medicina Lycurgo Santos Filho:
A inobservância dos mais comezinhos prinpios de higiene, a falta de assepsia, o não isolamento
dos doentes contagiosos, contribuíram para criar nos hospitais uma atmosfera de tal modo
impregnada de toda a sorte de germes patogênico, que as enfermarias tornaram-se, na verdade, o
único lugar para onde não deveriam ser encaminhados os portadores de ferimentos, fraturas
expostas, recém-operados, etc.
A “podridão de hospital” declarava-se às vezes “de cama em cama”, logo após os cirurgiões e
enfermeiros realizarem curativos, ‘de cama em cama’, sem sequer lavarem as próprias mãos,
quanto mais o material e instrumentos utilizados
352
.
“Foi somente em 1867”, retomaria ele mais tarde,
que Lister, após longa observação, aconselhou que antes de cada intervenção, o instrumental
cirúrgico e as mãos do operador sofressem desinfecção prévia numa solução fenicada. Notara o
grande cirurgião inglês, que quanto maior limpeza houvesse, maior probabilidade de salvação teria
o operado
353
.
A “novidade” foi logo incorporada ao arsenal de conhecimentos dos nossos doutores e
em breve “o cirurgião não mais operou com instrumentos sujos e os por lavar”. Tanto suas
“ferramentas” quanto seu local de trabalho passaram a ser esterilizados com a solução de
Lister, borrifada no ambiente antes e depois das operações. Contudo, Lycurgo ressalta que
esse processo foi adotado primeiramente nas maiores capitais, vigorando no interioras
antigas condições” de modo que “os pacientes procuravam, a conselho dos médicos
assistentes, os hospitais dos grandes centros para intervenções de alta cirurgia
354
.
As iias que “circulavam” no período também podem nos alarmar em um primeiro
momento, seja por conta de concepções que hoje podem soar extremamente extravagantes,
351
“As intervenções cirúrgicas, nos culos passados, realizavam-se em qualquer local, geralmente na casa do
paciente. O operado sentava-se num banco ou permanecia no próprio leito ou era ainda deitado sobre a mesa da
sala de jantar”. BARBOSA GUERRA, citado por Lycurgo Santos Filho. História da medicina no Brasil: do
século XVI ao século XIX. 1947, vol. II, p. 213.
352
História da medicina no Brasil: do século XVI ao século XIX. 1947, vol. II, p. 175.
353
SANTOS FILHO, Lycurgo. História da medicina no Brasil: do século XVI ao século XIX. 1947, vol. II, p.
212.
354
História da medicina no Brasil: do século XVI ao século XIX. 1947, vol. II, p. 213.
137
seja pela presença habitual do fantástico que inundava as manifestações literárias que lhe
faziam par. Segundo uma proposição do Dr. Antônio Nunes de Gouvêa Portugal o baço não
era considerado essencial à vida”
355
, e o Dr. Thomas Jo Xavier dos Passos Pacheco e
Costa, certamente como muitos outros, não encontrava mal algum em utilizar tesouras
enferrujadas na secção do cordão umbilical de recém-nascidos o que particularmente
corrobora, e em alguma medida ameniza, as precárias condições materiais mencionadas
acima. A secção do coro umbilical, segundo ele, deveria
ser feita quatro dedos travessos do abdômen com uma tesoura bem apropriada, ou com um bisturi,
e que não esteja enferrujada, o porque haja algum inconveniente, mas porque, se o menino
adoecer, seus pais não deixarão de achar no estado do instrumento a causa da sua moléstia
356
.
Um dos grandes recursos de nossos médicos foram os casos notáveis. Desejando
convencer seus leitores da terrível influência da hereditariedade, o Dr. Frederico Augusto dos
Santos Xavier nos relata o seguinte caso, amparado, inclusive, no estudo de um colega
francês:
Sanson cita a observação de um indivíduo de nome Appleton, que sucumbiu a uma hemorragia,
deixando filhos e netos em número de 17, os quais apresentavam predisposição para essa moléstia,
da qual mais tarde a maior parte deles foi vítima
357
.
O Dr. Vicente Maia, por sua vez, também tomando um autor estrangeiro como guia
para suas lucubrações, refere-se ao “caso de uma jovem de quatorze anos, mencionado pelo
Dr. Wendt, que apesar de sua índole cil e de suas excelentes características morais, laou-
se sobre seu pai e devorou seu coração quando do aparecimento das primeiras regras!”
358
. “Se
algumas mulheres são regradas aos quatro, cinco anos, e menos”, comentaria o Dr. Antônio
de Lima Torres, outras, às vezes, por toda a vida sentem a falta desta função. Kahleis, refere
que uma mulher foi menstruada pela primeira vez depois do terceiro parto
359
.
Ainda mais contundentes que os relatos notáveis eram as estatísticas, que, como ainda
hoje, provavam indiscutivelmente qualquer tese. Dando seguimento à passagem que
observamos há pouco, o Dr. Xavier se entrega à inexorabilidade dos números:
se recorrermos às estatísticas feitas com toda a reflexão, notaremos 165 casos de artro-reumatismo,
provocando-se em 81 a herança; e em 431 alienados, 337 que adquiriram de seus pais esta terrível
enfermidade
360
.
355
Influencia da educação physica do homem; Do aparelho em que figura ou deve figurar o baço e que
deduções se podem tirar de sua estrutura para seus usos e funções. 1853, p. 26.
356
Considerações gerais sobre os cuidados que se devem prestar aos recém-nascidos quando vem no estado de
saúde, e sobre as vantagens do aleitamento maternal. 1840, p. 04.
357
Dos casamentos sob o ponto de vista higiênico. 1876, p. 36.
358
A menstruação na etiologia das nevroses e psicoses. 1897, p. 87.
359
Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases de sua vida. 1848, p. 14.
360
Dos casamentos sob o ponto de vista higiênico. 1876, p. 37.
138
As pesquisas estatísticas ainda não estavam muito desenvolvidas em nosso país, o que
muito lamentavam os doutores do período, mas a utilização de estatísticas elaboradas por
terceiros era bastante recorrente em suas teses e em especial àquelas que se referiam à
alienados. Com o passar do tempo estes padrões se transformarão e nossas teses passarão a
exibir diversos gráficos e mesmo algumas análises de casos específicas e individuais em
anexos. Apesar disso, devemos notar que em 1897 o Dr. Vicente Maia não deixou de
conceder atenção às reflexões do Dr. Negrier, que julgava que o tamanho dos ovários estava
em completa consonância com comportamentos sexuais desviantes, conduzindo à
masturbação, à ninfomania e aos delírios eróticos
361
...
“Juízes da vida e da morte”
362
, os médicos não tinham poderes ilimitados diante da
natureza, e alguns acreditavam mesmo que deveriam apenas “auxiliá-la”, afastando os
obstáculos “que porventura possam embargar sua marcha para a saúde”, segundo pensava o
Dr. Reginaldo Celestino de Torres Quintanilha
363
como também pensava o “doutorFélix,
que cuidou da jovem Rachel nas páginas do romance Ressurreição, de Machado de Assis.
As receber um tratamento completamente diverso do que fora até então ministrado pelo
dico da família, que aliás julgava o caso perdido, a situação da moça passou a apresentar
melhoras consideráveis e quinze dias depois ela entrava em convalescea. “No sentir dos
pais, era Felix o salvador da filha. Fora ele quem lhes restituíra a esperança, e a realizara com
os seus bons conselhos e diligente desvelo
364
, como nos narra Machado, mas referindo-se à
cura da donzela o próprio Félix, um médico da alma
365
, na opinião de Machado, limitaria-se
ao comentário: “auxiliei a natureza, nada mais”
366
. Outro que julgava que a ciência não
poderia corrigir a natureza foi o Dr. Cunha, apresentado nas páginas do romance A família
Agulha, de Guimarães Júnior, que acreditava, como o Dr. Félix, que se não corrigia, pelo
menos “auxiliava”
367
.
“A cura, ou a passagem da moléstia à saúde é o resultado de uma alteração íntima que
se opera no organismo”, julgava o Dr. Quintanilha, alteração “necessariamente subordinada
ao poder, que preside à todos os fenômenos da vida”
368
como demonstrou Machado de
361
A menstruação na etiologia das nevroses e psicoses. 1897, p. 79.
362
MACEDO, Joaquim Manuel de. Um noivo à duas noivas. S/d, vol. III, p. 194.
363
Como se deve compreender a cura das moléstias, e qual é a influência que nestas possam ter os meios
terapêuticos? 1853, p. 04.
364
Ressurreição. 1938, p. 107.
365
Ressurreição. 1938, p. 61.
366
Ressurreição. 1938, p. 123.
367
A família Agulha. S/d, vol. I, p. 99.
368
Como se deve compreender a cura das moléstias, e qual é a influência que nestas possam ter os meios
terapêuticos? 1853, p. 03.
139
Assis com o caso de Rachel, figurando na paixão da moça pelo próprio Félix essa força
poderosa capaz de salvar uma vida, ainda que ela fosse a causa íntima de sua perdição...
Outro caso de cura pelo poder supremo da vida, o amor, foi retratado por Jo de
Alencar no romance Cinco minutos. O Dr. Valadão, que cuidara da jovem Carlota,
diagnosticara que a tísica que lhe devorava a saúde não teria cura, mas o amor suscitado pelo
o identificado narrador foi capaz de um verdadeiro milagre. As o primeiro beijo trocado
entre eles, no Golfo de Íschia, onde a moça buscava uma solução impossível, ela
foi pouco e pouco restabelecendo-se, ganhando as forças e a saúde; sua beleza reanimava-me e
expandia-se como um botão que por muito tempo privado de sol se abre em flor viçosa.
Esse milagre, que ela, sorrindo e corando, atribuía ao meu amor, foi-nos um dia explicado bem
prosaicamente por um médico alemão, que fez-nos uma longa dissertação a respeito da medicina.
Segundo ele dizia, a viagem tinha sido o único remédio, e o que nós tomávamos por um estado
mortal não era senão a crise que se operava, crise perigosa, que podia mata-la, mas que felizmente
a salvou
369
.
Se, por feliz compensação, muitas vezes produz a natureza curas inesperadas”,
comentaria o Dr. José Carrão, discutindo os martírios de sua profissão,
milhares d’outras fica o médico triste espectador de um mal, que, destruindo toda a força orgânica
da criança, deixa-a, no fim de algum tempo mais ou menos longo, frio cadáver, pouco delícias
da terna e carinhosa mãe, que lamenta agora a perda do seu adorado filho!
370
O medico, “o sacerdote da ciência”
371
, integrante de um exército de “valentes
atletas”
372
, nos juízos ebreativos do Dr. Frederico Xavier, tinha uma importante missão no
panorama da cruzada civilizatória que temos elaborado até aqui, como já deve ser evidente.
Se grande é a missão do médico representando na sociedade um grandioso papel”, refletiria
ele,
concorrendo com sua inteligência para resolver questões da mais alta importância, quer como
conselheiro das famílias, quer como perito nos tribunais judiciários; se tendo em uma das mãos o
livro da ciência, e na outra a balança da justiça, depois de acurado estudo, respeita somente os
ditames da consciência, não menos brilhante é a sua missão como higienista, sectário desse ramo
da medicina, que tem por fim cuidar dos interesses privados e públicos, prodigalizando à
sociedade o fruto de suas lucubrações, e concorrendo muitas vezes à prosperidade dos povos.
Mas com que grande numero de dificuldades não tem ele de lutar, suportando a indiferença de uns,
não satisfazendo as exigências de outros e o egoísmo de muitos? Necessitando de um espírito forte
e desprevenido, que o abriguem da calúnia, arrostará com coragem os golpes da maledicência, e
firme no juramento que prestou, exibirá a sua opinião com calma e prudência. É então que ele se
eleva, e que em toda a sua plenitude se reconhece a sua abnegação e caráter acima de todas as
dúvidas e suspeitas que muitas vezes inimigos gratuitos procuram fazer sobre ele pairar
373
.
369
Cinco minutos. 1991, p. 58.
370
Algumas considerações sobre o homem. 1848, p. 08.
371
Dos casamentos sob o ponto de vista higiênico. 1876, p. 11.
372
Dos casamentos sob o ponto de vista higiênico. 1876, p. 40.
373
Dos casamentos sob o ponto de vista higiênico. 1876, p. 70.
140
Se influentes na sociedade, por vezes em suas próprias casas os médicos não reinavam
absolutos: “o dr. Amâncio não receitava para sua família, alegando que não tinha sobre ela a
necessária força moral. De fato: as filhas não lhe tomavam os remédios e nem acreditavam na
sua medicina. O médico da casa era o dr. Silveira, colega do dr. Amâncio
374
. Personagem do
romance O cromo, o Dr. Amância não exercia entre os seus o imperioso domínio que
certamente devia exercer sobre seus clientes – restando-lhe, contudo, a possibilidade de
requisitar os serviços de outros doutores, então tão respeitados e influentes quanto ele.
Inúmeros foram os dicos figurados nas páginas de nossos romances oitocentistas, e
mencionar todos seria uma tarefa extenuante, para não dizer impossível. Aluísio Azevedo
figurou diversos doutores nas páginas de seus romances, mas concedeu posição de destaque
ao Dr. Cobalt, célebre por ter descoberto a histeria, moléstia que o romancista apresentou em
praticamente todos os seus romances.
O Dr. Cobalt, durante esse tempo, apresentou à Academia Francesa um livro de fisiologia e de
filosofia, revolucionando a ciência de então com as suas novas idéias materialistas. A obra fez
grande alvoroço e foi condenada a um tempo pela Sorbona, pelo Papa e pelo Parlamento. Mas ele,
sustentando entusiasticamente pelos discípulos de Moraud, Picard e Hecquet, não desanimou e
prometeu voltar a campo, armado agora para a luta com um novo trabalho, ainda mais formidável
que o primeiro, em que se propunha provar que as famosas convulsões, provocadas pelo milagroso
diácono Paris, no cemitério de Saint-Médard, nada mais eram do que fenômenos nervosos de
histeria, moléstia que só então começou a ser estudada e conhecida em França
375
.
Um “médico apaixonado pela sua ciência”
376
, o Dr. Cobalt não acreditava que a
moléstia que estava estudando assomava unicamente as mulheres, e passou a observar com
extremo cuidado o jovem Ângelo, um religioso por quem sua amiga, a pérfida Alzira, se
apaixonara. Sua grande oportunidade surgiu quando a moça faleceu e o mancebo se
apresentou em seu velório. Deixando-o à sós com o cadáver de Alzira, o Dr. Cobalt se postou
à observar escondido o encontro” dos dois e, como suspeitava, viu o Ângelo beijar os frios
lábios da moça perdida. As beijar o cadáver de Alzira Ângelo caiu ao chão, sem sentidos,
produto semvida de um profundo abalo nervoso”, no julgamento do médico.
Vou tratar dele. Hei de curá-lo e estudar o caso, que me parece muito bonito. O que me convém
saber é qual era o seu estado patológico antes desta crise, e qual o valor dos agentes estranhos que
poderiam ter contribuído para ela. Como sabem, a nossa ciência neste ponto ainda está muito
atrasada em toda a Europa. Quase nada se conhece desse grande mundo, extraordinário, fantástico,
impalpável, quase incompreensível; esse mundo de fenômenos psíquicos fornecido pelas afecções
nervosas! Basta dizer-lhes que entre nós a histeria é ainda um mistério; a sugestão magnética é um
divertimento!! as suas singularíssimas manifestações escapam ao médico e são exploradas pelo
clero, que as explica como obra do diabo e receita para todos os casos os milagres de Saint-
Médard! Estamos mais atrasados que nas épocas empíricas de Platão; mas, tempo virá, meus
amigos, em que esta mesma França, ignorante de hoje, há de dar sobre este assunto as mais belas
374
O cromo. 1888, p. 386.
375
A mortalha de Alzira. 1961, p. 117.
376
A mortalha de Alzira. 1961, p. 131.
141
lições de ciência. O futuro vingará minha obra, tão ferozmente amaldiçoada pela Sorbona e pelo
Parlamento! Juro-lhes que a histeria, com todo o seu carnavalesco e brilhante cortejo de loucuras,
não será um mistério no século XIX!
377
.
vimos que José de Alencar figurara em Cinco minutos um médico que diagnosticara
o fim dos dias da jovem Carlota, o Dr. Valadão, legando-nos uma simpática apreciação da
classe médica nas palavras da própria Carlota: “o poder da ciência, o olhar profundo, seguro,
infalível, desse homem que lê no corpo humano como em um livro aberto, tinha visto no meu
seio um átomo imperceptível”
378
. Em Diva ele nos apresentará o Dr. Augusto, para quem a
medicina seria um verdadeiro sacerdócio
379
, bem como o Dr. Amaral, que fora certa vez
espancado” pela jovem Emília durante um simples exame.
Alfredo Taunay figurou no personagem principal de Inocência o “doutor” Cirino
Ferreira de Campos, filho de um boticário que lhe legara todos os seus conhecimentos e lhe
concedeu assim, inadvertidamente, o tulo de doutor. “Em localidade pequena, de simples
boticário não há mais que um passo”, explicaria o narrador.
Cirino, pois, foi aos poucos, e com o tempo, criando tal ou qual prática de receitar e, agarrando-se
a um Chernoviz, seboso de tanto uso, entrou a percorrer, com alguns medicamentos no bolso e
na mala de garupa, as vizinhanças da cidade à procura de quem se utilizasse de seus serviços
380
.
O Dr. Lins Teixeira, protagonista de O cromo, que conhecemos páginas atrás, foi
descrito por Horácio de Carvalho nos seguintes termos:
O dr. Teixeira, alma de seleção, tinha 33 anos de idade, dos quais os últimos 10 consumira-os ele
conscientemente, e sem tréguas, no culto de Hipócrates. Muito modesto, tinha o dr. Teixeira uma
grande reputação merecida, como médico e como homem de bem, em toda a extensão do
vocábulo. A natureza dera-lhe um rebro forte, de brilhante talento e invejáveis sentimentos
morais. Pelo vigor da imaginação a sua alma era uma alma de poeta
381
.
Além dele, Horácio nos apresentou ainda o Dr. Vergueiro, o Dr. Campos, o Dr.
Miranda, o Dr. Azevedo e o Dr. Mesquita, debruçando-se com esmero sobre o Dr. Barreto:
que dico! que operador! Era um tigre, de virar a gente às avessas e tornar à concertar. Em
operação, então cortava a carne como quem corta manteiga! E, em cima de tudo, ainda
filósofo
382
. Ricardo, irmão de Esther, não escondia sua admiração pelo médico Carlos
Botelho, filho do barão do Pinhal, formado na Europa, “um rapagão bonito”, “sim senhor,
isso é que era também uma verdade”.
377
A mortalha de Alzira. 1961, p. 144.
378
Cinco minutos. 1991, p. 37.
379
Diva. 1993, p. 60.
380
Inocência. 1947, p. 29.
381
O cromo. 1888, p. 52-53.
382
O cromo. 1888, p. 230.
142
Afinal de contas o que ele lhe invejava eram os bigodes: uns bigodes chiques, cor de peles de
lontras preparadas, curvos e graciosos, uns bigodes educados que ficavam onde os dedos os
deixavam, como os animais bem ensinados
383
.
Horácio de Carvalho nos legou ainda um registro acerca das relações entre os médicos,
indicando-nos que quando um novo formado desejasse abrir uma clínica em uma região
pequena, como a Campinas em que o romance se passava, seria de bom tom entrar
previamente em contato com os práticos da região.
Falava-se agora em um novo médico que ia para lá. Ele tivera a delicadeza de escrever ao dr.
Teixeira, pedindo informações, solicitando a sua amizade e proteção, caso julgasse que a clínica do
lugar dava para dois médicos, sem que o dr. Teixeira fosse prejudicado, e caso o aconselhasse a
que fosse
384
.
Joaquim Manuel de Macedo também nos legou uma infinidade de doutores, mas
parece-nos mais interessante analisar o caso de histeria que ele estampou nas páginas de Um
noivo à duas noivas, que teve início quando Júlia, aconselhada por sua mãe e por seus avós,
rompeu seu noivado com o sensualista Germano. A moça começou a definhar à olhos vistos e
os médicos consultados identificaram os primeiros indícios de uma tísica que poderia se
desenvolver, caso a situação não se resolvesse. Temendo pela saúde da menina, sua família
resolveu abrir as portas da casa ao pretendido e eles reataram o noivado. “Naturalmente o
moral reage com benigna influência sobre o sico”, comentaria Macedo,
e como por encanto, o que era possível observar-se em repentinas melhoras, observou-se
repentinamente na jovem doente. A face animou-se, os olhos retomaram seu doce brilho normal,
os lábios perderam a leve contração que negava o sorriso, o abatimento gera cedeu à ação viva da
força vital acordada e como que desprendida pelo espírito que, das paixões contraentes passara às
expansões da felicidade
385
.
“Recebendo no confessionário da medicina a confidência do amor contrariado de
Julia”, os médicos compreenderam “a origem das melhoras inesperadas, e não hesitaram em
aconselhar ainda, não imediato casamento de Julia e Germano; mas o seu ajuste solene e a
freqüência do noivo na casa do barão”.
Não era o poder da ciência médica, era o milagre de amor que lograria curar a interessante e
apaixonada donzela
386
.
Os médicos admirados e esclarecidos”, concluiria Macedo, “tomavam nota daquela
ação poderosa da vida moral sobre o a vida física, notando como a matéria parecia render
preito de vassalo obediente ao espírito, seu rei dominador”
387
.
383
O cromo. 1888, p. 231.
384
O cromo. 1888, p. 398.
385
Um noivo à duas noivas. S/d, vol. III, p. 78.
386
Um noivo à duas noivas. S/d, vol. III, p. 80.
387
Um noivo à duas noivas. S/d, vol. III, p. 110.
143
Lima Barreto, por sua vez, inseriu quatro médicos nas páginas do Triste fim de
Policarpo Quaresma: o Dr. Segadas, um clínico afamado no lugar, que não podia admitir
que Quaresma Tivesse livros: ‘se não era formado, para quê? Pedantismo!’”
388
; o Dr.
Bulhões, que nutria grande estima e mesmo certa veneração pelos talentos musicais do
trovador” Ricardo Coração dos Outros; o Dr. Campos, que além oferecer seus serviços aos
moradores das redondezas também ocupava a presidência da mara da província de Curuzu,
onde Quaresma passou a buscar sossego após sair do sanatório em que fora internado; e o Dr.
Armando Borges, que se casara com a afilhada de Quaresma. Distante dos áureos quadros do
romantismo, Lima Barreto derramará sobre o semblante e sobre as práticas destes doutores
comentários muito pouco lisonjeiros. Sobre o Dr. Campos, por exemplo, ele dirá o seguinte:
Não nascera em Curuzu, era da Bahia ou de Sergipe, habitava, porém, o lugar mais de vinte
anos, onde casara e prosperara, graças ao dote da mulher e à sua atividade clínica. Com esta, não
gastava grande energia mental: tendo de cor uma meia dúzia de receitas, ele, desde muito,
conseguira enquadrar as moléstias locais no seu reduzido formulário
389
.
O Dr. Armando Borges foi o que recebeu maior atenção do romancista, sendo descrito,
contudo, com cores ainda menos coloridas que o anterior:
Médico e rico, pela fortuna da mulher, ele não andava satisfeito. A ambição de dinheiro e o desejo
de nomeada esporeavam-no. Já era médico do Hospital Sírio, onde ia três vezes por semana e, em
meia hora, via trinta e mais doentes. Chegava, o enfermeiro dava-lhe informações, o doutor ia, de
cama em cama, perguntando: “Como vai?” “Vou melhor, seu doutor”, respondia o sírio com voz
gutural. Na seguinte, indagava: “Já está melhor?” E assim passava a visita; chegando ao gabinete
receitava: Doente n
o
1, repita a receita; doente 5... quem é?”... “É aquele barbado”... “Ahnn!” E
receitava.
Mas médico de um hospital particular o fama a ninguém: o indispensável é ser do governo,
senão ele o passava de um simples prático. Queria ter um cargo oficial, médico, diretor ou
mesmo lente da faculdade
390
.
Comprovando a infalibilidade dos dicos oitocentistas, Lima Barreto nos
apresentaria ainda o caso de histeria de Ismênia, filha do General Albernaz.
A filha enlouquecera de uma loucura mansa e infantil. Passava dias inteiros calada, a um canto,
olhando estupidamente tudo, com um olhar morte de estátua, numa atonia de inanimado, como que
caíra em imbecilidade; mas vinha uma hora, porém, em que se penteava toda, enfeitava-se e corria
à e, dizendo: “Apronta-me, mamãe. O meu noivo não deve tardar... é hoje o meu casamento”.
Outras vezes recortava papel, em forma de participações, e escrevia: Ismênia de Albernaz e Fulano
(variava) participam seu casamento.
O general consultara uma dúzia de médicos, o espiritismo e agora andava às voltas com um
feiticeiro milagroso; a filha, porém, não sarava, não perdia a mania e cada vez mais se embrenhava
o seu espírito naquela obsessão de casamento, alvo que fizeram ser da sua vida, a que não atingira,
aniquilando-se, porém, o seu espírito e a sua mocidade em pleno verdor
391
.
388
Triste fim de Policarpo Quaresma. 1997, p. 17.
389
Triste fim de Policarpo Quaresma. 1997, p. 107.
390
Triste fim de Policarpo Quaresma. 1997, p. 116-17.
391
Triste fim de Policarpo Quaresma. 1997, p. 130.
144
Além dos doutores formados, o escritor nos apresentaria ainda a “rival” do Dr.
Campos em Curuzu, a sinhá Chica, uma famosa rezadeira da região.
Não havia quem como ela soubesse rezar dores, cortar febres, curar cobreiros e conhecesse os
efeitos das ervas medicinais: a língua-de-vaca, a silvina, o cipó-chumbo – toda aquela drogaria que
crescia pelos campos, pelas capoeiras, e pelos troncos das árvores.
Além desse saber que a fazia estimada e respeitável, tinha também a habilidade assistir partos. Na
redondeza, entre a gente pobre e mesmo remediada, todos os nascimentos se faziam aos cuidados
de suas luzes
392
.
Os tempos mudavam, e a figura do médico perdia sua “aura” de santidade para se ater
à sua respeitável posição de soldado da ciência, quando sua cruzada civilizatória teria se
desvanecido...
Quanto ao hospital, o templo dos médicos, poucas referências encontraremos nos
romances oitocentistas. Como já vimos, o usual seria o atendimento domiciliar pelo dico
da família, e quando este não estivesse disponível, um outro seria chamado para o lar da
família necessitada. A população do sertão, distante de tudo e muitas vezes de todos, tinha a
seu dispor, ainda que sem qualquer regularidade, indivíduos como o “doutor” Cirino figurado
em Inocência, que desbravavam imensos caminhos em busca de doentes e a população
carente, tanto dos centros urbanos como das proncias, poderia dispor ainda das rezadeiras,
como nos indicou Lima Barreto. O hospital, retomando as palavras de Lycurgo Santos Filho,
seria o último lugar procurado por um enfermo.
Seja como for, encontraremos uma rápida referência à uma casa de saúde nas páginas
de A carteira do meu tio, publicado por Joaquim Manuel de Macedo, e algumas referências
breves em O cortiço, de Aluísio Azevedo, com as quais ficamos sabendo que o hospital
fechava às oito horas da noite
393
. Marques de Carvalho foi o único que dedicou alguma
atenção ao templo de nossos doutores, já em um período em que a medicina progredira
significativamente e durante o período em que os saberes médicos mais atraíam nossos
literatos, a década de 80. De qualquer forma, como veremos, a instituição ainda não gozava de
boa reputação.
Enveredou Hortência pela rua Nova, seguindo-a em toda a sua extensão. Foi sair ao lado das
paredes de uma enorme construção em andamento, onde trabalhavam centenas de operários nus da
cintura para cima, expondo ao sol a lisa pele das costas. Seguiu para o largo do Palácio, que
atravessou transversalmente, caminhando por sinuosa vereda trançada entre forte capinzal que
crescia na praça. E logo chegou à calçada do Colégio. Estava a poucos passos do largo da Sé,
defronte do edifício do hospital. O hospital! Esta palavra ressoou-lhe no cérebro como o eco
doloroso de um enorme grito de angústia, exalado pela ilimitada garganta da humanidade
sofredora. Tinha para ela um sentido especial, fora da razão comum dos termos usuais com a
392
Triste fim de Policarpo Quaresma. 1997, p. 155.
393
O cortiço. 1997, p. 136.
145
significação indefinida de uma entidade misteriosa e impressionadora; dava-lhe à mente a
sensação moral dos males da sociedade, como se ela devesse recebê-los e suportá-los, para atenuá-
los caridosamente por sua parte, cumprindo a sina ditada pelo destino inelutável. Passaram-lhe
repentinamente pelo espírito, numa velocidade solícita e fantástica de mirabolante caleidospio,
mil cenas de sangue, dessas que se dão em todos os hospitais e casas de saúde. Eram amputações
de membros esmagados, dilacerações de ventres proeminentes, profundos rasgões em seios
túmidos, na apojadura, espasmódicas contrações de dor, e rostos lúgubres, de uma lividez de
moribundo, gritos dilacerantes, estertores sinistros, um interminável arquejar aflito e horrendo de
peito que perde o alento vital. Crianças gritavam agudamente, mulheres soluçavam, homens
proferiam blasfêmias imorais entre gestos enérgicos e reles. E aquilo mesmo era a vida: crianças
que apareciam no mundo, adultos que se aniquilavam num derradeiro esforço impotente da
vontade presa à terra
394
.
Descontando a verborragia naturalista e extremamente fatalista de Marques de
Carvalho, podemos notar que em 1888 os hospitais ainda não pareciam muito atraentes
àqueles que necessitavam de cuidados médicos, mas saberemos, por outras passagens, que, ao
menos no Pará, onde o romance se passa, eles ficavam abertos o dia inteiro e que contavam
com “socitas enfermeiras”
395
classe à que Hortência desejava fazer parte. empregada,
ela “sentia-se menos desgraçada no meio da labutação: o espetáculo de desditas e
falecimentos a que assistia dava-lhe ensejos de estabelecer cotejo entre os seus males e os do
próximo e julgar-se, com verdade, menos infeliz do que supunha”
396
.
Muito distantes, portanto, do templo asséptico, reconfortante e seguro de nossos dias,
estavam os hospitais brasileiros no século XIX. A norma seria o recurso ao médico da família,
que acompanharia sua evolução e conheceria cada membro em particular, estendendo sua
tutela para além de meras “consultas ocasionais”. Como observamos, nossos médicos não
se interessavam unicamente pela saúde sica de nossos patcios, mas desejavam alcançar
todas as esferas de seu cotidiano. Vejamos agora as transformações que a classe médica
imprimiu sobre o semblante da família brasileira oitocentista.
A criação do amor filial e as transformações da família oitocentista
O amor foi a pedra de toque do século dezenove, permeando praticamente todas as
esferas sociais do cotidiano brasileiro “a paixão que mais tem concorrido para a civilização
da humanidade”
397
, como mencionou o Dr. José Luiz da Costa. Essência do cristianismo,
tido primordialmente como uma religião civilizadora, o amor foi um dos principais recursos
de que lançaram mão nossos médicos em sua cruzada, mediatizando tanto as relações entre os
394
Hortência. 1997, p. 51-52.
395
Hortência. 1997, p. 34.
396
Hortência. 1997, p. 152-53.
397
Considerações sobre o amor. 1848, p. 29.
146
membros da família, em sua dimensão filial, quanto as relações desta com o país, em sua
dimensão patriótica. Para compreendermos com maior clareza as transformações da família
brasileira no século XIX e para aquilatar com maior propriedade as conquistas de nossos
dicos, em parceria com os literatos, nesse plano, devemos entra em contato, ainda que
brevemente, com as feições da sociedade colonial brasileira.Tomando o desenvolvimento do
romance nacional como correlativo ao desenvolvimento da sensibilidade de nossos patrícios,
observamos apenas o hiato temporal que se estendeu dos anos 40 até a década de 80 e, ainda
que alguns literatos tenham dedicado certa atenção ao período colonial, devemos recorrer a
outras fontes para delimitar a situação do país antes da chegada da corte de D. João VI.
Primeiramente, devemos notar que, praticamente abandonados à si próprias, as
famílias se concentravam sobre si mesmas como unidades autônomas, pouco ou nada
recorrendo às demais esferas da sociedade. Livres de quaisquer laços simbólicos com seu
meio e com poucos recursos sociais à sua disposição, a casa colonial tinha de se provir de
tudo por sua própria conta. Como comentaria Gilberto Freyre, a família, não o indivíduo,
nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de corcio, é desde o século XVI o
grande fator colonizador no Brasil
398
. Jurandir Costa, outro estudioso do período, diria que
a mulher quase não tinha necessidade de ausentar-se da casa para obter o que precisava. O
comércio procurava atender à família in loco, sustentando o sistema econômico que inibiu e
paralisou durante tanto tempo o desenvolvimento urbano do Brasil. O que não era produzido na
casa era oferecido nas portas pelos vendedores
399
.
A constituição da família colonial, por sua vez, em nada se assemelhava à estrutura
nuclear típica ao século XIX, era antes constituída por um grande emaranhado de escravos,
filhos naturais e agregados que pulverizavam e impediam possíveis manifestações
sentimentais, com todas suas atenções direcionadas à figura do pai chefe supremo e
inabalável da família. Quanto mais distante emocionalmente de sua família, mais poder um
senhor patriarcal acumularia, segundo Jurandir Costa.
Mulheres e filhos ouviam-no, de tempos em tempos, para obedecer. Não havia necessidade de
contato permanente e prolongado para que a ordem, na residência colonial, produzisse seus efeitos.
O medo à punição bastava. As relações sentimentais íntimas era, em conseqüência, dispensáveis
400
Mulheres e crianças tinham pouca mobilidade e mesmo valor nessa configuração
social, restritas sempre ao jugo da figura paterna. Sem necessidade de deixar o lar para o
provimento da casa, as mulheres viviam reclusas, dedicadas ao marido e à organização das
inúmeras atividades domésticas requeridas pelo grande contingente que a cercava. Quanto às
398
Casa grande & senzala. 2001, p. 92.
399
Ordem médica e norma familiar. 1983, p. 103.
400
Ordem médica e norma familiar. 1983, p. 96.
147
criaas, elas viviam soltas pelos grandes sobrados, aos cuidados indiferentes de mães ou
escravas, ignoradas pelos pais. Em casa, até os cinco anos, comentaria Gilberto Freyre, os
meninos de família andavam nus do mesmo modo que os muleques; mais tarde é que vinham
as roupas pesadas e solenes distinguir os filhos-família dos mulecotes da senzala”
401
.
Os viajantes que aqui estiveram no século XIX são unânimes em destacar esse ridículo da vida
brasileira: os meninos, uns homenzinhos à força desde os nove ou dez anos. Obrigados a se
comportarem como gente grande: o cabelo bem penteado, às vezes frisado à Menino Jesus; o
colarinho duro; calça comprida; roupa preta; botinas pretas; o andar grave; os gestos sisudos; um
ar tristonho de quem acompanha enterro
402
.
“À menina”, continuaria ele, “a esta negou-se tudo o que de leve parecesse
independência. Até levantar a voz na presença dos mais velhos. Tinha-se horror e castigava-se
a beliscão a menina respondona ou saliente; adoravam-se as acanhadas, de ar humilde”
403
.
Submissas ao pai, seriam depois igualmente submissas ao marido. Como comentaria Jurandir
Costa:
A criança, até o século XIX, permaneceu prisioneira do papel social do filho. Sua situação
sentimental refletia a posição que este último desfrutava na casa. A imagem da criança frágil,
portadora de uma vida delicada merecedora do desvelo absoluto dos pais, é uma imagem recente.
A família colonial ignorava-a ou subestimava-a. Em virtude disto, privou-a do tipo e quota de
afeição que, modernamente, reconhecemos como indispensáveis a seu desenvolvimento físico e
emocional
404
.
Dado o reduzido contingente populacional do período, as mulheres se casavam cedo.
“Aos doze, treze, quatorze anos”, comentaria o historiador. “Com filha solteira de quinze anos
dentro de casa já começavam os pais a se inquietar e a fazer promessa a Santo Antônio ou São
João. Antes dos vinte anos, estava a moça solteirona”
405
. Casamentos em geral arranjados,
determinados pela vontade do pai, sem qualquer consulta à futura esposa.
Não havia tempo para explodirem em tão franzinos corpos de menina grandes paixões lúbricas,
cedo saciadas ou simplesmente abafadas no tálamo patriarcal. Abafadas sob as carícias de maridos
dez, quinze, vinte anos mais velhos; e muitas vezes inteiramente desconhecidos das noivas.
Maridos da escolha ou da conveniência exclusiva dos pais. Bacharéis de bigode lustrosos de
brilhantina, rubi no dedo, possibilidades políticas
406
.
Haviam casos de raptos românticos e amores sinceros, mas poucos. Gilberto Freyre
nos relata um caso de fuga, por volta de 1680, que nos demonstra, como revés, a pouca
importância que as afeições pessoais tinham no período.
401
Casa grande & senzala. 2001, p. 466.
402
Casa grande & senzala. 2001, p. 465.
403
Casa grande & senzala. 2001, p. 474.
404
Ordem médica e norma familiar. 1983, p. 155.
405
Casa grande & senzala. 2001, p. 400.
406
Casa grande & senzala. 2001, p. 395.
148
Ocorreu a fuga bem na spera do seu casamento com ilustre bacharel da escolha dos pais. Estes
ofereceram logo ao noivo ludibriado a mão de outra filha, que foi imediatamente aceita. De modo
que o casamento realizou-se tranqüilamente, sem outro incidente que o perturbasse
407
.
Assim, tanto por conta da escassez de habitantes, quanto pela rarefação do meio social, a
sociabilidade do período colonial se restringia à poucos eventos, praticamente de natureza
religiosa. A vida dos aristocratas do açúcar seguia morosa, sem quaisquer distrações ou
divertimentos externos. “Os dias se sucediam iguais; a mesma modorra; a mesma vida de
rede, banzeira, sensual. E os homens e as mulheres, amarelos, de tanto viverem deitados
dentro de casa e de tanto andarem de rede ou de palanquim”
408
. Segundo Jurandir Costa:
A família colonial recebia pouco. A recepção era um item da conduta social desvalorizado e pouco
exercitado. Numa sociedade em que prevalecia a mentalidade rural e religiosa a festa privada”
perdia parte de seu sentido. A família restringia sua sociabilidade ao comparecimento a festejos
públicos, em especial aos religiosos
409
.
O quadro apresentado na primeira parte deste ensaio serve de contraste gritante a toda
essa configuração. A vida social oitocentista atingira tal grau de aceleração durante a década
de 50 que nossos médicos aconselhavam às mulheres grávidas o sossego do campo. As
criaas se atiravam à todas as traquinagens possíveis, como os peraltas apresentados nas
páginas das Memórias de um Sargento de Milícias ou das Memórias póstumas de Brás Cubas,
e os jovens aos desvarios da juventude descritos por Macedo ou Alencar. Donzelas
extrovertidas e agitadas como a Carolina, figurada em A moreninha, seriam inimagináveis no
universo colonial, bem como um sem número de pais amorosos. Toda essa revolução
existencial foi alcançada com a cruzada posta em marcha com a chegada de D. João VI, na
qual, entre outras classes intelectuais, nossos literatos e doutores tomaram parte ativa.
Primeiramente, coube ao culo XIX desenvolver o patriotismo, descrito pelo
doutorando Joaquim Manuel de Macedo como “o doce visco que conglatina o homem com o
lugar, em que respirou o primeiro ar de vida”. Segundo ele, o patriotismo
é um poderoso e apertado laço tão belo, como necessário, que nos fraterniza, e nos arrebanha em
povo, como em pequeno quadro se observa um grupo de indivíduos coligados em famílias; é um
sentimento grande e majestoso, para o qual todo coração humano tem um escaninho, e toda alma
um sagrado fogo, que o sopro da virtude aviva de contínuo
410
.
Em seguida, competiria ao século, embalado pelas luzes do romantismo, em nosso
país antes um movimento de renovação espiritual do que literário e estético, desenvolver
aquilo que hoje chamamos de “amor filial”, semeado pela própria religião católica, tida como
a única e verdadeira”. Em O gaúcho, Jode Alencar diria que “quando Deus encarna as
407
Casa grande & senzala. 2001, p. 395.
408
Casa grande & senzala. 2001, p. 483.
409
Ordem médica e norma familiar. 1983, p. 104.
410
Considerações sobre a nostalgia. 1844, p. 09.
149
almas, para semear a terra, imprime-lhes dois emblemas indeléveis: a consciência da
divindade e a intuição da maternidade; o verbo divino e o verbo humano”
411
, demonstrando
como estas idéias faziam parte indelével do cotidiano oitocentista. Como comentaria o Dr.
Antônio Gonçalves Torres:
A natureza pôs no coração da mãe a fonte das virtudes dos filhos; a nossa religião é a de nossa
mãe; o ensino frio das escolas o se grava senão na memória, e Jesus Cristo quer colocado o
seu santuário no coração. Não são pois os mestres, mas sim ela, quem deve dar esta educação
412
.
À mulher coube um papel de destaque neste amplo quadro de reformas sociais e
existenciais, como veremos com mais cuidado em seguida. O poder antes depositado na figura
paterna patriarcal será transferido para este anjo de candura sob as vestes da mais doce
submissão, quando na verdade ela passaria a governar a sociedade e o mundo. Como nos
adiantaria Joaquim Manuel de Macedo, “é a mulher que faz o marido, preparando-o antes de
casar, e completando-o depois de casada”
413
. Joana, apresentada no romance A namoradeira,
seria “uma das últimas filhas do antigo e condenado sistema de educação da mulher, e
representava legitimamente, tanto na austeridade dos costumes, na vida modesta e recolhida,
como na obediência absoluta e irrefletida a vontade do homem à que pertencia”. As palavras
de Macedo poderiam mesmo ser consideradas a fonte de que Gilberto Freyre se serviria, dada
sua recorrência no período:
Joana era esposa como tinha sido filha, voluntária escrava de seu marido, como fora escrava
voluntária do pai: tinha por todo seu mundo a sua casa, por toda a felicidade na vida o amor e a
estima de Ursini; por seu primeiro dever a submissão mais completa ao senhor do seu destino, e
com o trabalho assíduo e o maior zelo nos cuidados domésticos enchia tranqüila e satisfeita os dias
que lhe iam correndo
414
.
Rosina, a filha do casal, por sua vez, escaparia aos “erros da antiga educação
amesquinhadora e deprimente da mulher”
415
, mas correria ainda os riscos da educação
moderna, tão cheia de vícios e corrompida pelo dinheiro, como julgavam praticamente todos
os românticos do século XIX em consonância com a classe médica, como veremos
oportunamente. Seja como for, a situação feminina era outra, muito distinta da esboçada no
período colonial.
Antônio Manuel de Almeida registrou nas Memórias de um Sargento de Milícias um
dos inúmeros últimos” remanescentes da antiga mentalidade colonial, o patife José Manuel,
411
O gaúcho. 1964, p. 54.
412
Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases de sua vida. 1848, p. 08.
413
Os quatro pontos cardeais. S/d, p. 63.
414
A namoradeira. S/d, vol. I, p. 39.
415
A namoradeira. S/d, vol. I, p. 43.
150
aquele que, como vimos páginas atrás, “se tinha alguma virtude, era a de não enganar pela
cara”
416
.
Tinha-se JoManuel tornado para Luisinha um verdadeiro marido-dragão, desses que aquele
tempo os conta tão perfeitos, que eram um suplício constante para as mulheres. Depois que se
havia mudado de casa de D. Maria, nunca mais Luisinha vira o ar da rua senão às furtadelas, pelas
frestas da rótula: então chorava ela aquela liberdade de que gozava outrora; aqueles passeios e
aquelas palestras à porta em noite de luar; aqueles domingos de missa na Sé, ao lado de sua tia
com o seu rancho de crioulinhas atrás; as visitas que recebiam, e o Leonardo de quem tinha
saudades, e tudo aquilo enfim a que não dava nesse tempo muito apreço, mas que agora lhe parecia
tão belo e tão agradável
417
.
Como o narrador complementaria, “tendo-se casado com José Manuel, para seguir a
vontade de D. Maria”, Luisinha “votava a seu marido uma enorme indiferença, que é talvez o
pior de todos os ódios”
418
.
Outra revolução na mentalidade do século dezenove registrada tanto por médicos
quantos por literatos se deu no plano da escolha dos conjugues tema central do romance
Amância, como já observamos, mas também presente em inúmeras páginas de Macedo,
Alencar e Aluísio Azevedo, defendida com esmero por nossos doutores. Segundo o Dr.
Marcorvo, “a família bem constituída é um reflexo da Santíssima Trindade”:
a ventura que se goza na paz do lar doméstico é uma prelibação de néctar celestial um lampejo
da eternidade feliz
419
.
A família, antes dissipada em uma rede sem fim de escravos e agregados, passará
agora a se centrar nos conjugues e em seus filhos, formando assim a “trindade” mencionada
pelo Dr. Marcorvo ainda que atrelada à escravidão, mal que ocupará a mente de todas as
classes intelectuais do período e, portanto, também de nossos médicos e literatos. A figura da
famigerada “ama escrava” será o principal empecilho encontrado pelos doutores, mas eles
encontrarão uma saída bastante sagaz para sua erradicação.
Por fim, todo esse quadro deveria ter como esteio a educação, na qual tanto nossos
literatos quanto nossos médicos influíam de modo indireto com suas recomendações
tornando-se menos curiosas” as diversas teses sobre a higiene dos colégios legadas pelos
doutorandos pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Segundo o Dr. Cândido de
Azeredo Coutinho:
A Europa, e especialmente a França e Alemanha, não podiam ser indiferentes à higiene das
primeiras idades; nestes países cultos é a inncia cercada de cuidados, e a desampara quando
adulta se confunde na massa comum da população; os auspícios que recebem as pobres mães
próximas a darem à luz o produto da concepção, as creches que recebem os meninos durante que
416
Memórias de um Sargento de Milícias. 1997, p. 74.
417
Memórias de um Sargento de Milícias. 1997, p. 145.
418
Memórias de um Sargento de Milícias. 1997, p. 145.
419
Algumas considerações higiênicas e médico-legais sobre o casamento e seus casos de nulidade. 1848, p. 31.
151
seus parentes na ocupação nos trabalhos diurnos, as casas de expostos, as leis severas contra o
infanticídio, as diferentes instituições caridosas para a inncia, os surdo-mudos e os cegos que
recebem dos homens de coração apoio e proteção, sem o que tantas vidas se consumiriam inúteis a
si e à sociedade; professores que cursam aulas especiais, tudo isto se observa e se pratica na
Europa.
Não é somente a educação científica que merece cuidado, a educação física é convenientemente
dirigida, a ginástica, e as belas artes fazem parte importante da educação, desenvolvendo o corpo e
corrigindo as naturezas ásperas; o sentimento do belo, do justo, e do honesto é inoculado na
mocidade pelo complexo dos diferentes ramos do ensino
420
.
É certo que ele acrescentaria que “os cuidados que se devem prestar à infância são
quase desconhecidos entre nós; no que é relativo à educação a higiene ainda não prestou o seu
apoio, e seus preceitos ou são ignorados, ou desprezados em nossos colégios”
421
, mas a
educação em nosso país apresentava melhoras significativas como nos acalmaria o Dr.
Antenor Guimarães:
Era quase geral o grito pela reforma radical no nosso sistema de educação; seu fundo, sua forma, a
parte das famílias, e da instituição pública, eram, e continuam com razão a ser ainda atacadas.
Palpitava a necessidade de uma renovação geral nos prinpios, nos métodos e nos agentes que
devem formar o bom homem social. Felizmente vai este importante assunto despertando algum
interesse em todos aqueles, que nutrem algum sentimento pelo bem da humanidade
422
.
A primeira manifestação oficial” da estética romântica em nosso país, Os suspiros
poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, no apresenta em 1836 uma sensibilidade
muito distinta da legada pelo Brasil colonial. Ainda que suas palavras não conseguissem
exprimir todos os seus sentimentos, como o vate lamentaria no poema Invocação à saudade,
seus poemas expõem sensações e situações geralmente inimagináveis nos anos anteriores a
começar pela própria introdução da obra.
Quem ao menos uma vez separou-se de seus pais, chorou sobre a campa de um amigo, e armado
com o bastão de peregrino, errou de cidade em cidade, de ruína em rna, como repudiado pelos
seus; quem no silêncio da noite, cansado de fadiga, elevou até Deus uma alma piedosa, e verteu
lágrimas amargas pela injustiça, e misérias do homem; quem meditou sobre a instabilidade das
coisas da vida, e sobre a ordem providencial que reina na história da Humanidade, como nossa
alma em todas as nossas ações; esse achará um eco de sua alma nestas folhas que lançamos hoje a
seus pés, e um suspiro que se harmonize com o seu suspiro
423
.
Como sabemos, o extenso volume de poemas foi escrito durante os anos em que ele
viveu na Europa, e uma de suas últimas composições, escrita em 1833, narra sua despedida do
seio familiar. Suas linhas iniciais são dedicadas, como não poderia deixar de ser, à mãe do
poeta:
Choram por mim... Por mim a mãe querida
Em soluços – adeus – nem dizer pode...
Debalde balbucia; os lábios tremem,
E a dor a voz lhe embarga...
420
Esboço de uma higiene dos colégios aplicável aos nossos. 1857, p. 06-07.
421
Esboço de uma higiene dos colégios aplicável aos nossos. 1857, p. 07.
422
Dissertação sobre a higiene dos colégios. 1858, p. 05.
423
Suspiros poéticos e saudades. 1999, p. 40.
152
Banhado tem o rosto
De cristalino pranto, e cor de sangue
Os olhos já cansados
424
.
Em seguida, vem a figura do pai, ainda semelhante à usual no período colonial, mas
observada com uma veneração tocada por novos ares:
Lá vejo o caro pai sisudo e grave,
A quem anos as faces enrugaram,
E a fonte encaneceram;
A mão ao filho estende, e a benção lança:
“Boa viagem, diz, boa viagem;
Deus te guie, e te traga
Na sua santa guarda,
Sempre digno de mim, da Pátria digno”.
Memorandas palavras!
Palavras de meu pai... n’alma do filho
Ausente, eternas ficarão gravadas
425
.
Seus irmãos, por sua vez, receberiam as seguintes palavras:
Ternos irmãos – adeus – me estão dizendo
Com tão fúnebre acento,
Como se eu condenado à morte fosse.
Um por um os abraço, e adeus lhes digo.
Quero partir... forcejo; os olhos cerro...
Porém a dor, que o coração me preme,
Forças me tira, e me franqueia os passos;
Em borbotões rebentam
Lágrimas que enxugar em vão pretendo
426
.
O poeta lamentaria unicamente que nenhum de seus amigos o acompanhasse até o
porto, indicando assim a importância da amizade no período como observaremos em breve.
Seja como for, não podemos deixar de indicar a nota vibrante do volume, mais um sinal dos
novos tempos: “nada por mim, por minha Pátria tudo
427
.
Até aqui temos discutido o processo de construção da sensibilidade brasileira
indistintamente, mas homens e mulheres tinham papéis sociais muito bem definidos na
composição da sociedade oitocentista papéis sociais que foram em grande medida
delimitados e reiterados por médicos e literatos nas páginas de suas composões. Ao
descobrir que fora ludibriado em uma de suas maiores conquistas, quando julgava possuir a
bolsa de seda de seu adorado anjo de caridade, o personagem Constancio de A bolsa de seda
sentiu bem o peso da cisão sexual que o cercava: “Vi... vi, e, coisa extraordinária, não
desmaiei! tive naquele momento pena de não ser mulher; se eu o fosse, teria arranjado um
424
Suspiros poéticos e saudades. 1999, p. 361.
425
Suspiros poéticos e saudades. 1999, p. 361-62.
426
Suspiros poéticos e saudades. 1999, p. 362.
427
Suspiros poéticos e saudades. 1999, p. 87.
153
faniquito a propósito
428
. Do mesmo modo a ilustrada Esther, de O cromo, lamentava os
domínios circunscritos ao seu gênero:
essa formosa rapariga, nos seus momentos de entusiasmo pela separação de São Paulo, lastimava-
se de ter nascido mulher. Desejava ser homem para agitar as massas, acordar o espírito público, de
há muito narcotizado por um garrafão de clorofórmio – o sr. d. Pedro II
429
.
Cada sexo deveria se restringir à suas características, por assim dizer, inatas, sob o
risco de se “descaracterizarem” existencial e, mais propriamente, socialmente. Pouco
disseram sobre os homens “afeminados” nossos doutores, mas dedicaram muitas linhas às
mulheres – a figura de maior importância do século XIX. Segundo o Dr. José Luiz da Costa:
As Zenobias, as Semíramis, que endossaram couraças: as Borgias, as Fredegondes, as Brunéhauts,
as Margaridas de Borgonha, as Joannas de Nápoles, cujos nomes recordam crimes horríveis; não
são a mulher que formou a natureza para amiga, e consolação do homem: são organizações
masculinas, que trouxeram por engano órgãos sexuais feminis; também foram elas, mais devassas
do que ternas, mais libertinas que amantes
430
.
Discutindo alguns casos de hermafroditismo, o Dr. Marcorvo descreve a camponesa
Elisabeth Rocca no seguintes termos:
Elisabeth era bastante alta, de aspecto assaz agradável, de compleição vigorosa, e casada; tinha
algum buço, o pescoço magro, a cartilagem tiróide notavelmente saída, e o peito largo, posto que
nenhum vestígio houvesse de mama, e o bico do peito fosse tão pequeno e rudimentar como no
homem. As suas coxas eram delgadas, a voz grave, as feições muito pronunciadas, os olhos pretos,
o olhar pronto e seguro, e a inteligência mui desenvolvida; enfim ela não tinha nenhuma dessas
formas que caracterizam uma mulher
431
.
“Geralmente as faculdades afetivas predominam na mulher”, comentaria o Dr. José
Monteiro Barros, “e as faculdades intelectuais no homem; a observação de um e de outro sexo
em todas as circunstâncias de sua vida, suas respectivas funções em as sociedades, são a prova
desta verdade”
432
.
O destino marcado pela natureza aos dois sexos parece vir em apoio do que temos dito sobre a
predominância dos sentimentos na mulher: o homem concebe por seu espírito, e executa com a
força de seu braço; a mulher, mais fraca a todos os respeitos, é a mais própria a prodigalizar à
família os cuidados que ela reclama de sua ternura e do seu afeto
433
.
E não pensemos que os dicos de outrora reproduziam em suas teses apenas
impressões ingênuas acerca do papel da mulher na sociedade, posto que suas observações
muitas vezes estavam coordenadas à uma complexa organização da realidade como nos
428
MACEDO, Joaquim Manuel de. Os romances da Semana. 1937, p. 23.
429
CARVALHO, Horácio de. O cromo. 1888, p. 383.
430
Considerações sobre o amor. 1848, p. 19.
431
Algumas considerações higiênicas e médico-legais sobre o casamento e seus casos de nulidade. 1848, p. 15.
432
Considerações gerais sobre a mulher, e sua diferença do homem; e sobre o regime que devem seguir no
estado de prenhes. 1845, p. 07.
433
Considerações gerais sobre a mulher, e sua diferença do homem; e sobre o regime que devem seguir no
estado de prenhes. 1845, p. 07.
154
sugerem certas reservas do Dr. José Monteiro Barros, comentando algumas idéias do célebre
Dr. Gall:
Com efeito, Gall observa que as mulheres têm geralmente a cabeça mais volumosa na parte
posterior, e a fronte mais estreita; e sabemos que ele atribui às partes posteriores do rebro as
faculdades afetivas, e às partes anteriores as faculdades intelectuais. Muitos filósofos, fazendo
abstração da organização primitiva da mulher, têm observado sua fraqueza física como o resultado
do gênero de vida que a sociedade lhe impõe, e sua inferioridade nas ciências dependente
unicamente de sua educação: mas nós pensamos de outra maneira, e julgamos que o nosso
estado social deve ser considerado aqui antes como efeito do que como causa. O que é certo é, que
algumas mulheres que se nos apresentam para provar esta oposição, são todas pouco próprias para
o fim santo ao qual a natureza as destina, e para as funções a que se devem restringir para a
perfeita execução deste mesmo fim. A felicidade da mulher dependerá sempre da impressão que
ela fizer sobre o homem, e pensamos que aqueles que lhe tiverem verdadeiro afeto o desejarão
-las com a arma ao ombro, marchando a passo dobrado para a guerra, ou discorrendo do alto de
uma tribuna sobre os interesses das nações; isto, que não está em relação com as suas faculdades,
lhes ficaria mal
434
.
Como nossos patcios faziam questão de ressaltar as especificidades cabidas à cada
sexo nos deteremos por alguns instantes sobre cada um deles em particular. “Limite-se”,
como diria o Dr. José Joaquim Firmino nior, “cada sexo ao que for compatível com a sua
organização; não busquem transgredir as raias de seus deveres, e sua felicidade será
completa”
435
.
Mulher: a alma do homem
A mulher, tema central do pensamento brasileiro oitocentista, recebeu da pena de
nossos doutores todas as atenções e cuidados possíveis. Como no caso dos literatos, sua
imagem será bastante idealizada no início do Segundo Reinado, passando a ser recoberta por
uma aura de mistério indevassável com o passar das décadas por conta de sua sensibilidade
extremamente esquisita
436
, como diria, entre muitos outros, o Dr. JoMonteiro Barros. Jo
de Alencar, aquele que primeiro se dedicou a esquadrinhar os recônditos da psicologia
feminina em nossas letras, completamente convencido de que a mulher seria toda sentimento,
abandonaria, no romance Senhora, de 1875, a tarefa de investigar seu universo mental,
alegando que “ninguém sabe que maravilhas ou que monstros vão surgir desses limbos”
437
.
Nossos doutores, certamente em parceria com outras classes intelectuais, passarão a
construir a imagem da mulher calcada no amor, alegando que ambos teriam sido criados em
434
Considerações gerais sobre a mulher, e sua diferença do homem; e sobre o regime que devem seguir no
estado de prenhes. 1845, p. 08.
435
Dissertação sobre a menstruação, precedida de breves considerações sobre a mulher. 1840, p. 08.
436
Considerações gerais sobre a mulher, e sua diferença do homem; e sobre o regime que devem seguir no
estado de prenhes. 1845, p. 05.
437
Senhora. 1997, p. 78.
155
conjunto
438
, e que sua vida se resumiria em amar e ser amada
439
. Como declararia o Dr. José
Luis da Costa:
a mulher é um composto de paixões exalantes, que a impele a viver pegada ao homem, como a
trepadeira a um tronco; não tendo senão um fim em sua existência, ela emprega todas as forças de
sua alma, converte todos os seus afetos, algumas vezes os mais estranhos, em conseguir esse fim,
sem mesmo atender à sua conveniência individual
440
.
Antes atreladas ao jugo do senhor patriarcal, as mulheres seriam “libertadas” em nosso
país tanto pelas luzes do novo século como pela religião de Cristo, onde ela ocupa um lugar
eminente. “A religião de Maomé conserva enclausuradas as mulheres do Oriente; elas vivem
em lupanares domésticos onde a ignorância está a par da bestialidade”, comentaria o Dr.
Cândido Coutinho. “O cristianismo liberta a mulher que brilha no lar doméstico pela
educação, pela graça e pela virtude”
441
.
Responsável pela sagrada missão da maternidade, a mulher foi escolhida” pela classe
dica, senão por todo o pensamento do século XIX, como figura principal de suas
estratégias” civilizatórias por conta de sua eminente função educadora, responsável tanto
pela criação dos filhos quanto pela re-educação de seus maridos, como Macedo nos adiantou
rapidamente linhas atrás. Tida como “a alma do homem
442
por José de Alencar, com quem
poucos poderiam fazer par em nossas letras no terreno do estudo feminino, a mulher seria o
objeto de veneração máxima do dandy Horácio de Almeida, “a nus deste Olimpo em que
vivemos”
443
:
A mulher era para ele a obra suprema, o verbo da criação. Toda a religião como toda a felicidade,
toda a ciência como toda a poesia, Deus a tinha encarnado nesse misto incompreensível do
sublime e do torpe, do celeste e do satânico: amálgama de luz e cinzas, de lodo e néctar
444
.
vimos como Afrânio Peixoto, escondido pela alcunha de Júlio Afrânio, dedicaria
igual veneração à figura feminina na virada do século, com sua Rosa mística e
encontraremos uma veneração semelhante nas páginas das teses dicas oitocentistas. “A
mulher é soberana; governa o mundo”, julgaria o Dr. Marcorvo. “Seu trono é o amor; seu
cetro a beleza; seu diadema a virtude, em suas diversas manifestações, especialmente na
438
BARROS, José Joaquim Ferreira Monteiro. Considerações gerais sobre a mulher, e sua diferença do homem;
e sobre o regime que devem seguir no estado de prenhes. 1845, p. 16.
439
BARROS, José Joaquim Ferreira Monteiro. Considerações gerais sobre a mulher, e sua diferença do homem;
e sobre o regime que devem seguir no estado de prenhes. 1845, p. 10.
440
Considerações sobre o amor. 1848, p. 18-19.
441
Esboço de uma higiene dos colégios aplicável aos nossos. 1857, p. 25.
442
Sonhos d’ouro. 1964, p. 155.
443
A pata da gazela. 1992, p. 17.
444
A pata da gazela. 1992, p. 20.
156
pureza; sua glória natural é a constituição da família”
445
. No parecer do Dr. José Luis da
Costa:
em todas as quadras da vida, a mulher se distingue do homem, pelo maior desenvolvimento de
paixões exalantes: na inncia, quando os dois sexos se assemelham por seus caracteres físicos, a
mulher é mais risonha, estranha menos, é mais sensível aos afagos: na meninice, não tem a
inquietação do homem, nem os seus jogos, nem as suas inclinações, em vez de cobrir-se com uma
barretina de papel, de fazer um pau espingarda, entretém-se dia e noite com uma boneca, a quem
dá o nome de filha, fala-lhe como se animada fosse, etc., etc.: na juventude, isto é, quando se veste
de graças, quando as rosas vem manchar-lhe as faces, o garbo adornar-lhe o corpo, e o sentimento
alumiar-lhe os olhos: oh! quanto amor não exala a mulher! Então, desabrocham todas as paixões
até ali em botão, que lhe o um espírito angélico, que a divinizam, que a faz adorar de joelhos!
Então torna-se esse ente prestigioso, cheio de poesia, que enche a imaginação humana, que se lhe
imprime n’alma, ou para melhor dizer, que se mistura à sua alma, que se envolve em uma
atmosfera de amor, como o sol de luz, como de aromas a rosa
446
.
Na mulher o sentimento do amor, esta afeição universal que ateia o facho de todas as
existências, que aformoseia e exalta a vida, é mais profundo e mais arraigado que no homem”,
determinaria o Dr. Marcorvo.
Agradar é sua partilha; ser adorada é o cúmulo de toda a sua felicidade; a linguagem do coração, à
qual cede na maior parte dos casos, é por ela melhor compreendida, que a no coração do
homem, penetra os seus mais secretos pensamentos, e conhece o mágico poder de um olhar
despedido de seus feiticeiros olhos, de uma palavra desprendida de seus melífluos lábios, por isso
que suas faculdades afetivas são suscetíveis de maior elevação e do desenvolvimento de
qualidades que não são o apanágio de seu sexo
447
.
“Considerando na mulher as suas formas graciosas e angélicas, a delicadeza das suas
fibras”, suspiraria por sua vez o Dr. Antônio de Lima Torres,
deve-se esperar dela as mais puras e santas afeições. Essa criatura delicada, e frágil, que implora o
nosso apoio pela sua fraqueza, suporta calma e resignada longo pungir de dores junto do leito de
sofrimento de seu filho, pai ou esposos moribundos! Que é da sua extrema delicadeza? Desaparece
em presença das torturas, que martirizam entes o caros ao seu coração; comprida rie de noites
lá está no seu posto de honra, o lugar onde ouve gemer, onde sabe que há quem sofra!
448
.
Podemos observar em todas estas passagens a glorificação das características
estritamente femininas sempre em contraposição aos caracteres que deveriam caber aos
homens. Ela foi formada para sentir como o homem foi criado para pensar”, refletiria o Dr.
José Luis da Costa. Superior a ele em sagacidade, e prontidão em compreender, é contudo
muito inferior ao raciocínio, e reflexão: aquelas que tem apresentado uma inteligência
superior, tem sido sempre às custas de suas qualidades feminis”
449
como outros doutores
haviam apontado pouco. Esther, a jovem que se lançara aos profundos estudos da ciência,
no romance O cromo, seria definida pelo Dr. Teixeira, seu mestre, como um cérebro de
445
Algumas considerações higiênicas e médico-legais sobre o casamento e seus casos de nulidade. 1848, p. 31.
446
Considerações sobre o amor. 1848, p. 20.
447
Algumas considerações higiênicas e médico-legais sobre o casamento e seus casos de nulidade. 1848, p. 05-
06.
448
Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases de sua vida. 1848, p. 05.
449
Considerações sobre o amor. 1848, p. 20.
157
homem sobre um sistema nervoso de mulher”. “Com efeito”, justificaria o narrador, “o poder
de compreensão e conservação de iias marcava naquela moça um fato admivel de ordem
mental entre mulheres
450
. No julgamento sintético do Dr. Antenor Guimarães, “uma
descrição da organização da mulher então nos faria ver que os seus destinos se encerram nas
palavras – beleza, maternidade e fraqueza”
451
.
É certo que nem todos pensariam assim, como nos comprova a seguinte passagem da
tese Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases de sua vida,
defendida pelo Dr. Antônio de Lima Torres: em 1848
A despeito dos bárbaros prejuízos de outrora, a que tem de ser a nossa glória, a companheira da
nossa vida, tem pensamentos, alma, inteligência, e as frívolas questões sobre a sua inferioridade
entraram no número das pouco cavalheiras, e mesmo podemos dizer ridículas
452
.
Aqueles que não julgavam a mulher sequer uma criatura humana, continuaria ele,
“hoje o crêem firmemente, pois que Jesus Cristo escolheu uma Mulher para nela Humanizar-
se”
453
. Fazendo par com estas afirmações, o Dr. Marcorvo, no mesmo ano, e provavelmente
influenciado pelos mesmos autores, senão pelos mesmos professores, declamaria a
superioridade feminina nos seguintes termos:
A mulher é superior ao homem. Para que negá-lo?
Mil argumentos o provam. Bastem-nos dois:
O homem foi feito de barro; a mulher foi tirada da costela, isto é, do osso e da carne do homem,
ou, como diz Lacordaire, do escudo natural que cobre o coração do homem.
Jesus Cristo – Deus humanado – não tem pai na terra, tem Mãe!...
Notai bem: este argumento não é poético, nem lisonjeiro, é lógico e concludente
454
.
Inferior ao homem em certos aspectos, para muitos, caberia à mulher, de qualquer
forma, por suas inumeráveis outras virtudes, a sagrada missão da maternidade, como
retomaria o Dr. Marcorvo:
Há diversas fontes de amor. A maior de todas é a beleza. Há diversas belezas. A maior de todas é a
beleza da mulher ente misterioso, que, na escala da criação, está entre os homens e os anjos;
farol criado por Deus para nos guiar durante a peregrinação desta vida, fazer a nossa ventura neste
mundo, e ensinar-nos o caminho certo da Jerusalém celeste...
A obediência moral nasce da vontade; a vontade nasce do coração; o coração é formado pela
mulher: é um jardim, cujas flores são os instintos, as inclinações, os afetos.
Ninguém sabe cultivar esse jardim com tanto cuidado, delicadeza e gosto, como a jardineira
natural – a Mãe
455
.
450
O cromo. 1888, p. 125.
451
Dissertação sobre a higiene dos colégios. 1858, p. 50.
452
Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases de sua vida. 1848, p. 08.
453
Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases de sua vida. 1848, p. 08.
454
Algumas considerações higiênicas e médico-legais sobre o casamento e seus casos de nulidade. 1848, p. 33.
455
Algumas considerações higiênicas e médico-legais sobre o casamento e seus casos de nulidade. 1848, p. 32.
158
Do sexo feminino “deve sair uma geração inteira, que se de ir perder com milhares
d’outras lá na eternidade dos séculos”
456
, como comentaria o Dr. Annio de Lima Torres. “A
natureza, ao mesmo tempo [em] que se esmerou, atendendo às graças, teve por fito objetos
mais nobres e essenciais à saúde do indivíduo e a conservação da espécie”
457
, “objetos” aos
quais, levando-se em conta todos os predicados indicados acima, somente a mulher poderia
atender:
a natureza pôs no coração da mãe a fonte das virtudes dos filhos; a nossa religião é a de nossa mãe;
o ensino frio das escolas não se grava senão na memória, e Jesus Cristo só quer colocado o seu
santuário no coração. Não são pois os mestres, mas sim ela, quem deve dar esta educação
458
.
Palavras que seriam decalcadas por Joaquim Manuel de Macedo em seu romance
Nina: “não é o pai, nem o mestre, nem o padre, é a mãe, ou a ama, ou enfim a mulher
encarregada dos cuidados da criação, quem prepara o coração do menino, semeando nesta
terra vigem os germens dos sentimentos que serão as fontes e as bases da sua vida moral”
459
.
“A mulher tem mais influência sobre os costumes dos homens, do que geralmente se
presume: é um poder que por isso que vem acobertado com a dedicação de uma mãe, e a
ternura de uma esposa, encontra menos resistência da parte dele”, segundo o Dr. José Luis da
Costa.
Formosa, cheia de graça e voluptuosidade, animada pelo amor e o desejo de ser amada; a mulher
rodeia de agrado e de encanto, o homem a quem ama, consagra-lhe sua vida, para que ele faça a
sua felicidade, e para melhor obrar sobre seu espírito, enche-o de venturas, derrama toda a sua
graça em tudo que os rodeia, como um astro radioso colora e enriquece tudo que recebe seus
raios
460
.
Do mesmo, demonstrando a validade destas idéias no rculo médico, o Dr. Marcorvo
diria:
a mulher, como Deus a quer, seja mãe, filha, esposa ou irmã, exerce um poderoso e benéfico
impulso no futuro da sociedade; tem um poder de origem divina, uma soberania legítima, benéfica,
providencial
461
.
“A mulher emprega a sua vida completa em completar uma outra por meio da
educação da prole, preenchendo assim um dos fins do casamento, talvez o mais nobre de
todos, o desenvolvimento do físico e do moral, da inteligência e do caráter do filho”
462
arremataria o Dr. Antônio de Lima Torres.
456
Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases de sua vida. 1848, p. 10.
457
Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases de sua vida. 1848, p. 10.
458
Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases de sua vida. 1848, p. 08.
459
Nina. 1951, p. 07.
460
Considerações sobre o amor. 1848, 23.
461
Algumas considerações higiênicas e médico-legais sobre o casamento e seus casos de nulidade. 1848, p. 33.
462
Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases de sua vida. 1848, p. 25.
159
Veremos com maior atenção tanto a sagrada tarefa da maternidade quanto à
importância do casamento na sociedade oitocentista em breve; por ora, parece-nos acertado
discutir a percepção mútua de literatos e médicos quanto à educação feminina em nosso país.
Encarregadas da educação de toda uma nação, as mulheres deveriam, por sua vez, ser também
educadas de acordo com sua valorosa missão talvez a tarefa mais árdua que nossos
intelectuais lograram empreitar. Se muitos foram os problemas” herdados dos tempos
coloniais, inúmeros outros se apresentaram à sociedade brasileira no culo XIX,
correspondentes, sem dúvida, à complexificação social conquistada com a “modernidade”. Se
antes do advento do Império a educação feminina poderia ser tida como retrógrada e precária,
dicos e literatos se viam, na época do progresso, diante de um sistema de ensino
corrompido e viciado” – em consonância com a melancolia romântica típica ao período.
Segundo o Dr. Antônio Luis da Silva Peixoto existiriam mais mulheres alienadas na
França do que na Inglaterra justamente por conta do vício de educação das primeiras:
a preferência que se às artes de puro gosto, a leitura de romances, que sendo ainda elas mui
jovens as obriga a desenvolverem uma atividade prematura, superior ao seu desenvolvimento, faz
nelas desenvolverem-se desejos, para os quais ainda não estão elas preparadas, desperta-lhes idéias
de uma perfeição imaginária, e que não encontrarão senão nos romances; a grande freqüência de
espetáculos, de círculos, abuso de música, e a falta de ocupação fazem aumentar em França o
número das alienadas. Na Inglaterra ao contrário as mulheres recebem uma educação mais forte,
elas passam uma vida mais recolhida, mais interior, entregam-se mais aos seus serviços e mais se
edificam; elas não ocupam no mundo um lugar tão importante como as primeiras
463
.
“Não devemos fazer consistir a sua beleza, nos atrativos sicos”, comentaria o Dr.
Antônio de Lima Torres. “Torna-se mister ainda dar-lhe educação moral, cuidar dos dotes da
sua alma; lembremo-nos sempre, de que o tempo rouba as graças, destrói os encantos, a morte
ceifa tudo, e que só as virtudes são lembradas além do tumulo
464
. Concorrendo para a
educação do sexo feminino, segundo ele, estaríamos concorrendo para a educação de todos:
dando-lhe altos e nobres pensamentos, acabaremos de uma vez com as nossas mesquinhas
ambições, com as nossas paixões mundanas
465
. Por sua vez, o Dr. Antônio de Gouvêa
Portugal diria que “educação moral que se às meninas no nosso país não é das melhores,
pois que muito cedo principiam elas a sorver tragos de prazer nos salões dos bailes e nos
teatros”
466
. Entoando a mesma ária, coube ao Dr. José de Amorim Carrão registrar que:
a educação das meninas não é certamente a mais conveniente entre nós, parece até que nos
colégios elas recebem uma educação toda contrária aos preceitos da higiene; a missão da mulher
na sociedade não entra na consideração das diretoras em vem vez de dirigirem a educação com o
fim de preparar boas mães de famílias, a instrução física e moral o é completada neste sentido:
463
Considerações gerais sobre a alienação mental. 1837, p. 05.
464
Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases de sua vida. 1848, p. 08.
465
Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases de sua vida. 1848, p. 08.
466
Influência da educação física no homem. 1853, p. 22.
160
poucas saem dos colégios, e que em um futuro pouco remoto podem ter o doce prazer de
amamentar seus filhos; às vezes, ou quase sempre, são obrigadas a procurar o primeiro alimento
para o fruto de suas entranhas em uma mulher mercenária, incapaz de bem as substituir; entretanto
estes colégios finalizam habilmente os seus trabalhos anuais com um esplendido baile: o luxo dos
vestidos depende da riqueza dos parentes, os quais enxergam um prazer na ostentação das pompas
da moda em uma menina de onze a doze anos; a vaidade se aninha nestas almas juvenis – o desejo
de brilhar, de sobressair, e de aparecer as acompanha em todas as fases de suas vidas, sacrificam
muitas vezes à vaidade a saúde, o repouso e a família! é uma luta interminável com a higiene;
acusemos uma mulher nestes casos; mas como, e porque? Inocentes vítimas de uma educação
imperfeita morrem sem ao menos saberem a causa de seus males!
467
.
Juízos que encontraremos também nas páginas de A namoradeira, de Joaquim Manuel
de Macedo:
criamos e educamos nossas filhas tão vâmente preocupados da idéia de prepará-las para agradar e
cativar os homens com os adornos do espírito, com a beleza do rosto, com a gentiliza do corpo e
com os enfeites dos vestidos, que por isso elas recebem de nós uma segunda natureza na vaidade.
Não nasceram vaidosas, não: poderiam não tê-lo sido; mas os pais plantam a vaidade no berço das
filhas
468
.
A vaidade, sentimento inato às mulheres, segundo o pensamento da época, seria a pior
característica destas “Vênus adoráveis, inoculado e desejado pela sociedade corruptora que
as libertara da escravidão colonial... “O que é a vaidade na mulher”, questionaria-se
Machado de Assis, “senão essa mesma vertigem que alucina o homem sob o nome de glória?
Sede insaciável de luz, embriagues de admiração, na qual muitas vezes afogam-se a honra e a
virtude”
469
, prosseguiria ele, desatento às inúmeras críticas veiculadas pela sociedade à
vaidade feminina, indiferente à sede de glórias masculina...
ndida, uma das personagens de As vítimas-algozes, seria apresentada por Macedo
como uma donzela modelo, graças à “prática prudente de não ter sido a menina levada até
então aos bailes, e às sociedades sem caráter de reunião limitada a famílias de íntima amizade
e confiança”
470
. Alencar, já bastante descrente da sociedade, em um período de grandes
críticas ao romantismo, nos relataria que D. Camila, figurada em Senhora, felizmente
tinha dado a suas filhas, a mesma vigorosa educação que recebera; a antiga educação brasileira,
bem rara em nossos dias, que, se não fazia donzelas românticas, preparava a mulher para as
sublimes abnegações que protegem a família, e fazem da humilde casa um santuário
471
.
Libertadas do jugo patriarcal e criadas conforme os modelos que temos apresentado, as
mulheres brasileiras do século XIX passariam verdadeiramente a dominar” seus pais e
mais tarde desde cedo, criadas em verdadeiras estufas de amor filial. Da repreensível
negligência dos pais, d’essa mal entendida força de amor que os cega”, diria o Dr. José de
Amorim Carrão, “nascem talvez numerosos e nocivos hábitos, origem de tantos cios, contra
467
Esboço de uma higiene dos colégios aplicável aos nossos. 1857, p. 09.
468
A namoradeira. S/d, vol. I, p. 07.
469
Iaiá Garcia. 1938, p. 33.
470
As vítimas-algozes. 1991, p. 161.
471
Senhora. 1997, p. 33.
161
os quais ainda clamam lebres escritores, e debalde procuram desarraigar do seio da
Sociedade”
472
. Retomando todas estas iias, o Dr. José Monteiro Barros diria:
não podemos deixar de lembrar a força que uma educação bem cuidada pode ter sobre o
melhoramento do moral da mulher; desgraçadamente nós, em vez de inspirarmos os sentimentos
de virtude, e estes em nossas filhas, somos os primeiros a favorecer com escandalosa
condescendência as tendências para o mal, com o fim ridículo, e pouco calculado, de lhes
procurarmos uma feliz existência, cercada de grandezas e adorações!
473
Passemos então à mais sagrada missão da mulher, a maternidade, e às transformações
que sofreram o casamento, prerrogativa básica dessa função, e a criação da prole, resultado de
tão desejado enlace, sob os auspícios das novas luzes do século.
Maternidade: a missão sagrada da mulher
Tanto as construções da maternidade quanto da necessidade do casamento alcançaram
tamanho êxito na sociedade brasileira oitocentista que se entranharam à vida social do país
como prerrogativas inquestionáveis, inerentes à própria essência dos indivíduos. Se alguns
inimigos da pátria se eximiam ao casamento, os detestáveis celibatários, praticamente
nenhuma mulher sequer imaginar a possibilidade de não ser mãe um dia.
A “construção desta missão feminina alcaou tamanho êxito que nossas patcias
nem sequer conseguiam desejar ou mesmo imaginar um futuro diferente para si mesmas. Ana
Rosa, a protagonista de O mulato, romance de Aluísio Azevedo, era bastante radical quanto a
isso, indignada quanto ao fato de que “havia por aí mulheres que eram contra o casamento”!
Não! Ela não podia admitir o celibato, principalmente para a mulher!... “Para o homem ainda
passava... viveria triste, ; mas em todo caso era um homem... teria outras distrações! Mas uma
pobre mulher, que melhor futuro poderia ambicionar que o casamento?... que mais legítimo prazer
do que a maternidade; que companhia mais alegre do que a dos filhos, esses diabinhos tão
feiticeiros?...Além de que, sempre gostara muito de crianças; muita vez pedira a quem as tinha
que lhes mandasse a fazer-lhe companhia, e, enquanto as pilhava em casa, não consentia que mais
ninguém se incomodasse com elas; queria ser a própria a dar-lhes a comida, lavá-las, vesti-las, e
acalentá-las. E estava constantemente a talhar camisinhas e fraldas, a fazer toucas e sapatinhos de
lã, e tudo com muita paciência, com muito amor, justamente como, em pequenina, ela fazia com as
suas bonecas
474
.
Algumas personagens de Macedo, temporalmente anteriores às de Azevedo, como
sabemos, tinham idéias mais “avançadas” e o pensavam necessariamente em se casar, ainda
que fatalmente se entregassem aos sublimes laços do himeneu após encontrarem o homem
de suas vidas, claro. Nos romances posteriores à geração estritamente romântica de Macedo,
472
Algumas considerações sobre o homem. 1848, p. 07.
473
Considerações gerais sobre a mulher, e sua diferença do homem; e do regime que devem seguir no estado de
prenhes. 1845, p. 11.
474
O mulato. 1969, p. 41-42.
162
contudo, torna-se mais difícil encontrar essas “mulheres independentes”. Aparentemente
nossas patcias “modernas”, por assim dizer, foram tomando cada vez maior consciência de
sua sagrada missão, o que comprova a eficiência dos discursos médicos e literários.
Poderíamos pensar, certamente, que nossos escritores “realistas” simplesmente optavam por
o representar essas “exceções à regra”, julgando-as heróicas demais para sua época, o que
faziam suplantando os últimos impulsos românticos de sua imaginação; mas isso
comprovaria nossa hipótese, de qualquer modo, demonstrando que as primeiras não passavam
de tipificações que fugiam à norma – agora, indubitavelmente, ainda mais ferrenha.
Para o alcance de tamanho êxito o pensamento do século XIX precisou primeiro
erradicar a terrível prática dos casamentos arranjados, herdada dos tempos coloniais. Como
diria a Augusta, personagem de O cortiço, “isto de casamentos empurrados a força acabam
sempre desgraçando tanto a mulher como o homem
475
.“A liberdade de escolha é condição
natural do casamento
476
, confirmaria o Dr. Antônio de Lima Torres. Como ele acrescentaria,
poucos seriam os remanescentes da antiga mentalidade em 1848:
não contamos com esses, que sacrificam tudo ao ouro, a a sua própria filha, querendo vê-la
arrastar vida de luxo, que a desgosta, contanto que, vivendo vida menos ruidosa no centro de
família, que a estime, porque este não será apontado como grosso capitalista, nem contará entre
os seus maiores fidalgos de alta linhagem! Felizmente, tão raros são esses hoje, que poucos os
terão conhecido
477
.
Em 1858, contudo, o Dr. Antenor Guimarães ainda lastimava essa terrível prática:
pouco se atende principalmente entre nós as conveniências da idade, do gosto e do temperamento.
Os ricos e fidalgos procurando para suas filhas um esposo nas mesmas circunstâncias
encontram-no na idade madura quando já enervado pelos prazeres e muitas vezes afetado de
moléstias.
A ma pela sua parte, reprimindo os impulsos de seu corão, e levada pelas instigações de sua
mãe, que se crê amestrada, considera a fortuna como o melhor bem, dá pouco apreço às qualidades
físicas e morais e precipita-se nos braços de um velho rico, quase sempre doentio e nojento
478
.
Nas classes inferiores”, continuaria ele, “a influência do dinheiro não é menos
tinica, e a necessidade traz consigo talvez mais freqüentemente a violação do trono
nupcial”
479
. Tal costume “doentio”, no entanto, havia de lhes proporcionar inúmeros
inconvenientes, como ele asseveraria à seguir:
Os especuladores de casamentos talvez estranhem levar em conta a vida dos filhos, que hão de
vir; mas bem tarde se arrependerão de ter preferido a fortuna ao real elemento da prosperidade; seu
475
O cortiço. 1997, p. 61.
476
Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases de sua vida. 1848, p. 21.
477
Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases de sua vida. 1848, p. 22.
478
Dissertação sobre a higiene dos colégios. 1858, p. 16.
479
Dissertação sobre a higiene dos colégios. 1858, p. 16.
163
coração se despedaçará à vista dos males presentes e dos que prevem; as moléstias e a morte
acometerão desapiedadamente a sua casa e lhe prepararão uma velhice triste e solitária
480
.
É certo que Brás Cubas pouca ou nenhuma importância deu à proposta de casamento
que seu pai lhe oferecera, no século do progresso
481
, mas a e de Luciano, personagem da
narrativa Uma paixão romântica, incluída na coletânea Os romances da Semana, publicado
por Macedo, horrorizada, afastaria de seu filho qualquer idéia acerca de tão terrível decisão:
“não seremos nós, meu filho, que exigiremos jamais de ti um sacrifício doloroso: um
casamento que te repugna, não poderia fazer a tua felicidade, que é tudo quanto no mundo
desejamos”
482
.
Afastada a sombra dos casamentos arranjados, caberia à nossos doutores cuidarem das
condições do himeneu, visando tanto a felicidade dos noivos quanto da futura prole
ocupando-se, para tanto, das qualidades sicas e das idades dos noivos, como já se
pronunciaram o Dr. Coutinho e o Dr. Marcorvo. “Abisma com efeito ver o pouco cuidado que
se presta à melhoração da raça humana”, comentaria por sua vez o Dr. Antenor Guimarães,
estendendo-se assim:
e entretanto muitos que se admiram do grande número de figurinhas que cada vez mais cresce,
e desta multidão de raquíticos, escrofulosos, tuberculosos e malucos que povoam os hospitais, sem
atender que é isto devido aos vícios de educação e maneira porque se contraem a maior parte dos
casamentos
483
.
O casamento descansa sobre o reconhecimento mútuo dos direitos dos dois
contraentes”, diria o Dr. Antônio de Lima Torres, “porque é com esta condição, que pode
haver amor e concurso para a procriação, e conservação da espécie”
484
. “O casamento, pois, é
essa união legal e sagrada entre dois entes que se idolatram”, como comentaria o Dr.
Marcorvo, “com o fim de satisfazerem suas necessidades sicas, perpetuarem sua espécie e
educarem seus filhos, e prolongarem a vida compartindo os dissabores e doçuras dela”
485
.
Assim, nossos dicos passarão a discorrer sobre a idade em que o casamento deveria se
realizar, visando sobretudo erradicar um dos costumes herdados dos tempos coloniais. Como
observamos, nos anos da colônia nossas patcias se casavam bem cedo, o que, se por um
lado correspondia às necessidades populacionais do período, por outro lhes acarretava dois
grandes males: uma acelerada decrepitude sica e a quase geral entrega dos filhos à amas
escravas. notamos, na primeira parte deste trabalho, que por volta da década de 70 os
480
Dissertação sobre a higiene dos colégios. 1858, p. 17.
481
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias póstumas de Brás Cubas. 1997, p. 72.
482
Os romances da Semana. 1937, p. 145.
483
Dissertação sobre a higiene dos colégios. 1858, p. 16.
484
Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases de sua vida. 1848, p. 21.
485
Algumas considerações higiênicas e médico-legais sobre o casamento e seus casos de nulidade. 1848, p. 01-
02.
164
brasileiros subiam ao altar mais “maduros” mas essa conquista foi possível com os
preceitos de nossos dicos e literatos, certamente em parceria com outras classes
intelectuais.
“Debaixo de qualquer ponto de vista que seja encarada esta questão”, apontaria o Dr.
Frederico Xavier:
é necessário que os contraentes se achem na época da vida em que o seu vigor é maior e há
aptidões mútuas em igualdade de forças para a propagação. Se estudarmos todas as fases da vida
do homem e da mulher, reconheceremos que aos 24 ou 25 anos está o homem habilitado a contrair
casamento e a mulher aos 19 ou 20 anos
486
.
Confirmando estes juízos, o Dr. Antenor Guimarães comentaria que “raramente são
fortes os filhos de pais de menos de 22 anos e de mais de 45, e de mães de menos de 18 ou de
mais de 40”
487
. “Os filhos que em geral descendem de conjugues muito moços não oferecem
o vigor e a constituição que apresentariam se os progenitores se tivessem casado na idade
mais conveniente e exigida pela higiene”
488
, diria o Dr. Frederico Xavier. O Dr. Antônio de
Gouvêa Portugal registrou que a mulher deveria se casar entre os dezoito e os vinte e oito, ao
passo que os homens deviam se casar entre os vinte e dois e os quarenta anos”
489
. Os
casamentos não convém em começo da puberdade”, explicaria ele,
porque não estando os órgãos no grau de desenvolvimento necessário, não passarão inlumes
quando se tenha tomado um estado como o de casado, em que uma das mais importantes vai tomar
campo, a geração. Muita gente seduzida pelos encantos, brilhos e aparatos da cidade, que só traduz
magias, enlevos e paixões; da idade, cujo retrato excede ao de um lindo botão de rosa ao
desabrochar, em que o sangue fervendo nas veias, e os olhos cintilando de expressão, tudo impõe,
prende e comove; em que a linguagem muda dos olhos vence em muito a linguagem da palavra;
em que emblemas de guerra se apresentam para denotar que soa a hora de uma função sair a
campo; em que a natureza, prevendo que certas partes se envergonharão de estar descobertas, por
isso as reveste de pelos; em que duas bandeiras de paz se desenrolando e aparecendo pouco a
pouco tenderão a trazer a conciliação e a paz futura que se manifestará pelo troco de um choro, por
um sorriso do inocente filho, quando amamentado por sua mãe; muita gente, dizíamos nós, tem
crido ser esta a melhor idade para o casamento, como se fosse esta a melhor idade para o bem
pensar!
490
Por outro lado, os casamentos tardios também não seriam nada aconselháveis. Em seu
parecer, “na velhice os casamentos não convém, porque os órgãos em geral estão
enfraquecidos e as funções destes se acham em grande parte perturbadas, ou completamente
abolidas em alguns dentre eles”
491
. O Dr. Frederico Xavier comentaria:
quando a ciência o se pronunciasse contra os casamentos tardios, bastavam os fatos que se
observam, algumas vezes, de velhos em avançada idade unirem-se à virgens no vigor dos anos, ou
486
Dos casamentos sob o ponto de vista higiênico. 1876, p. 28.
487
Dissertação sobre a higiene dos colégios. 1858, p. 17.
488
Dos casamentos sob o ponto de vista higiênico. 1876, p. 29.
489
Influência da educação física no homem. 1853, p. 07.
490
Influência da educação física no homem. 1853, p. 07.
491
Influência da educação física no homem. 1853, p. 07.
165
jovens prenderem-se pelos laços do matrimônio à velhas que não podem apresentar atrativo algum,
nem cumprirem o que a natureza lhes impõe.
As conseqüências que dimanam de tais uniões o reprovadas pela ciência, pela sociedade e pela
moral
492
.
Mais verborrágico, o Dr. Antônio de Gouvêa Portugal se expressaria nos seguintes
termos:
seria bom que em nosso pais não se dessem casamentos entre pessoas que uma desproporção
muito considerável tenham em suas idades; por exemplo: um velho rabugento não iria procurar
uma senhora dos quatorze aos vinte anos, bem certo de que os seus milhões ou contos de réis dão-
lhe direito a viver a par de um anjo. A mulher geralmente gostando de riquezas, por causa dos
prejuízos de uma educação moral e pelas pompas falsas deste mundo, deixa-se prender, obtém
em verdade a riqueza, e muito ufana fica de si, como se não tivesse obtido também a sífilis e outras
moléstias e males que tenderão a fazê-la infeliz. Demais, quem reserva casamentos para tal idade,
ou já chafurdou nos prazeres da libertinagem, ou está louco
493
.
Prenúncio das glórias do paraíso, quando reflexo da Santíssima Trindade, o casamento
traria inúmeras venturas na terra aos seus contraentes – conclamado, aliás, pela própria
natureza. No parecer do Dr. Vicente Maia:
após os candores da infância, abre-se no cenário da vida da mulher uma nova fase, em que
resplandecem os mais belos capítulos do romance sexual, aliados ao papel sublime da
maternidade.
À princípio um ser infantil, ligeiramente diferençado do sexo contrário, experimenta, ao explodir
da puberdade, sensíveis metamorfoses, que sintetizam a estabilidade do seu organismo, há pouco
solicitado, por uma imperiosa necessidade de evolução. Abre o cortejo destas transformações o
aparecimento do fluxo menstrual, oriundo de órgãos, aentão latentes e onde o berço de um
futuro ser se prepara
494
.
“O homem isolado”, por sua vez, nas palavras do Dr. Frederico Xavier,
sem o apoio da mulher que com ele participa dos prazeres e desgostos da vida, que o auxilia,
modificando os seus sofrimentos, e concorrendo à tornar-lhe menos espinhosa a peregrinação pelo
mundo, em pouco tempo seria presa da moléstia; e mais tarde, depois de engolfado nos prazeres,
quando procurasse o arrimo da família, iria levar um germe viciado à geração (p. 05) futura, por
cujos males seria ele o único responsável.
O homem entregue a si próprio, carecedor de tudo que adoce as suas privações, concentra-se; e,
refletindo no que é, reconhece a necessidade e a vantagem de unir-se a um ser de sexo diverso, de
constituir uma família, e de lançar para longe esse vácuo que em si existe. É então que um
sentimento belo e admirável nele se origina, sentimento que tem sido objeto de importantes
considerações de distintos escritores, tão poeticamente descrito por Mme. de Stael – o amor
495
.
A regularidade da vida em família corresponderia à felicidade dos conjugues e de seus
filhos, que mais tarde prestariam à seus pais os devidos tributos demarcados pelo amor filial
em expansão. Como continuaria o Dr. Xavier:
entrai no albergue do pobre -de esse grupo composto de esposo, mulher e filhos, ressentindo-
se por toda a parte a miséria; olhai para as suas fisionomias, e vereis desenhada a alegria,
contemplando os risos dos filhinhos, aos quais distribuem o alimento do dia. A miséria os poderia
492
Dos casamentos sob o ponto de vista higiênico. 1876, p. 32.
493
Influência da educação física no homem. 1853, p. 06.
494
A menstruação na etiologia das nevroses e psicoses. 1897, p. 07.
495
Dos casamentos sob o ponto de vista higiênico. 1876, p. 05-06.
166
acabrunhar, mas, lembrando-se de que esses seres constituem a epopéia da união conjugal,
resignam-se, e no meio da pobreza, vivem felizes, tendo por conforto a religião
496
.
Todas essas “vantagens” passariam à integrar o imaginário da população brasileira de
tal forma que o casamento lhes pareceria uma instituição irrecusável, conclamada pela própria
natureza, como mencionamos. Horácio de Carvalho registrou esse chamado” nas páginas
do romance O cromo, em ambos os sexos. Vejamos primeiro o caso do Dr. Lins Teixeira, que
dedicara longos dez anos ao estudo mas que o escapou à sina de seu tempo:
tinha necessidade de alguma coisa mais, que não estava nos livros, que os livros não podiam dar, e
que nem estava na ave que canta, na aurora que arrebata, na estrela que deslumbra, na música
enfim solene e terna da Natureza infinita. Precisava de um não sei que, que não sabia o que era, e
nem onde estava, mas que era uma coisa que se não define e que estava na própria espécie
precisava talvez de uma mulher, que lhe fosse a companheira da existência, porque a vida sem a
mulher era um nome vão, um crime de lesa-Natureza perante as leis fatais do Universo
497
.
Desperto”, o Dr. Teixeira se entregava à fantasia e imaginava “um lar alegre,
vivificado pelo barulho das crianças, risos, choros, gritos, gargalhadas, notas cristalinas,
concertos de aves no ninho sonho! sonho do amor na vida, suprema felicidade da
existência”
498
. Nesse tempo, enquanto ele receitasse ou estivesse visitando os seus doentes”
sua esposa “cuidaria dos anjos no remanso da família, toda amor e cuidados, e iria esperá-lo à
porta quando ele voltasse!”
499
. Esther, por sua vez, estava irremediavelmente apaixonada por
um sujeito que vira em um baile, cuja imagem se fixara em sua mente.
Dormira abraçada com os seus pensamentos, os seus maiores algozes. Eles lhe haviam plantado no
espírito a erva brava das impressões daninhas. A sua sensibilidade, o seu coração, apercebiam-se
de coisas até esse dia: um querer indefinido e um não querer caprichoso; um desejar vago, com
medo de muito desejar; um devaneio que não era cisma, ou cisma que o tinha perspectiva; um
estado dúbio finalmente, um despertar de sentimentos embrionários, primeiros balbucios, talvez,
de um coração que se ia completar, de uma criatura que surpreende em si mesma os uivos
instintivos da carne, as primeiras revoluções do cio
500
.
O rapaz não vivia em sua cidade, a então pacata Campinas, mas em São Paulo, e
quando ela tomou um trem para a capital paulista pela primeira vez, viajou embalada por
sentimentos e sensações muito semelhantes às do Dr. Teixeira. Esperando encontrar o rapaz
desconhecido e provocando a memória,
via-o loiro, loiro como o Nazareno, embelezado por sua fantasia, apaixonado por ela, noivo, depois
esposo, depois pai! Sentia mesmo com antecedência, por um fenômeno de concentração mental,
por uma espécie de pré-sensação dos instintos maternosessa adorável ternura das mães, uma das
mais belas páginas do livro da Natureza
501
.
496
Dos casamentos sob o ponto de vista higiênico. 1876, p. 24.
497
O cromo. 1888, p. 56.
498
O cromo. 1888, p. 70.
499
O cromo. 1888, p. 70-71.
500
O cromo. 1888, p. 19.
501
O cromo. 1888, p. 215.
167
Encerrando essa discussão, o Dr. Antônio de Gouvêa Portugal nos legaria a seguinte
passagem:
o casamento, diz Michel Lévy, consolida a vida em sua carreira e prolonga sua duração média. As
estatísticas oferecidas por Hufeland, Deparcieuz, Odier e Casper, provam que o termo da vida é
maior para os indivíduos casados do que para os celibatários; que o número dos alienados diminui
naqueles em relação a estes, e assim também o número dos suicidas. Falret assevera que os dois
terços dos indivíduos que se suicidam são celibatários. Geoget nos mostra dentre o número de
1726 mulheres alienadas que 980 são celibatárias, 291 viúvas e só 397 casadas. Dentre 764
homens alienados, continuam o mesmo, 492 são celibatários, 59 viúvos e 201 casados. À vista
destes fatos, pergunta Georget, se o celibato predispõem à loucura? Michel vy responde
afirmativamente. Quanto aos crimes cometidos, inda os casados ficam com menor porção do que
os celibatários. No nosso país não temos dados estatísticos que nos esclaram a tal respeito, mas o
senso comum mostra que o mesmo deve dar-se
502
.
Nas páginas dos romances oitocentistas, muitos foram os jovens salvos da ociosidade
e de um futuro bem pouco promissor pelo casamento, verdadeira máquina de estabilização
social. Em Como e porque sou romancista, o próprio Alencar declararia que no dia vinte de
junho de 1864 deixara “a existência descuidosa e solteira para entrar na vida da família onde o
homem se completa”
503
. Aqueles que se entregassem à uniões inviáveis, pelo contrário, teriam
um destino bastante cruel, como Aluísio Azevedo nos assegurou em seu romance A condessa
Vésper ao descrever as relações de Gabriel com a Rita Beijoca – que só pela alcunha revela ao
leitor boa parte de suas “qualidades”. Após ser “abandonado” por sua amada, a terrível
Ambrosina, e ainda por cima trocado por uma mulher, a já não tão cândida Laura, Gabriel deu
em beber e a se meter em todas as pândegas possíveis – o que o levou a conhecer a dita moça,
quando, depois de uma ceia “de estrondo” no ‘Frères Provençaux’ em que ele nem sequer
conseguia voltar para casa, tomou aposentos nesse hotel, guardando a seu lado por
companheira de desregramento, a mulher que o acaso lhe deu àquela noite, a Rita Beijoca,
uma loura vinte anos mais velha que a mesma devassidão
504
. E assim teve início para o
mísero Gabriel
essa deplorável existência cor de goivo e cheirando a morte, bem conhecida de alguns moços ricos
do Rio de Janeiro acordar à uma da tarde, fazer duas de toilette e outras tantas de Rua do
Ouvidor, vermutear até o momento de se abrir na távola predileta a primeira banca de roleta, jantas
às horas da ceia, e cera depois da meia-noite
505
.
Note o leitor, de passagem, que este parágrafo é sucedido por uma frase curta, mas
incisiva: “a ausência de Gaspar”, o pai de criação do jovem desvairado, “favorecia toda essa
desgraça”. A Rita Beijoca representava uma figura obrigatória nestes “ambientes” decaídos,
uma espécie de cortesã que, no dizer do próprio Azevedo, apesar de simples hóspede no
502
Influência da educação física no homem. 1853, p. 07-08.
503
Como e porque sou romancista. 1990, p. 68.
504
A condessa Vésper. 1959, p. 243-44.
505
A condessa Vésper. 1959, p. 244.
168
hotel, podia a justo título dizer-se o braço direito” de seus espertos gerentes, visto que recebia,
“sobre as despesas extraordinárias a que obrigasse os fregueses de boa lã, certa percentagem
que lhe era abatida nas próprias contas”
506
situação que é retratada pelo infortúnio de um
mineiro que acabara de chegar de sua província com a “intenção de assistir pacificamente às
festas do carnaval do Rio” e que, às três e meia da tarde, resolveu entrar no hotel dos
Príncipes para jantar. O pobre homem “comeu com apetite e achou até muito bom o que lhe
serviram”, mas logo caiu nas graças de uma mulher bonitona que “olhava para ele com meiga
insistência”, a Rosa Cantagalense, por assim dizer uma “especialista” na arte de depenar os
incautos clientes que adentrassem seus temerosos donios. Graças ao recatado mineiro ela
pôde provar “uma salada de ananás cozido em madeira, um pudim negro e borgonha para
destemperar o cliquot
507
, sem contar a champanha e os habituais charutos, cigarrilhos, cafés
e licores que ordinariamente sucediam estes banquetes, iguarias de preço elevado que o turista
dificilmente pediria por conta própria mas que fariam a fortuna dos gerentes “bem
amparados”. E observe o leitor que estas “comensais” não tinham limites, pois que após
ajudar o bom mineiro a se livrar de seus cobres a Rosa ainda acompanhou com chalaça um
quarteto bastante animado, como veremos na seqüência...
No domingo de carnaval o quarto de Gabriel foi assomando por dois outros patifes, o
Costa Mendonça e o Juca Paiva, dois belos rapagões, que ninguém sabida donde tiravam os
cabritos que vendiam”. O primeiro “era bonito e perfumado, tresandando a mulheres”,
ostentando jóias caras e roupas bem feitas, muito conhecido pelas surras que levou de “uma
tal Aninha Rabicho, célebre entre os libertinos dos dois sexos”, a sujeita a quem ele de corpo
e alma pertencia desde os seus primeiros passos na vida de pândega fluminense”. Já o outro, o
Paiva, “tinha o ar mais sério e a roupa menos apurada”, visto que herdara de seus abastados
pais apenas “uma medíocre fortuna e uma rara ignorância”. “A fortuna comeu-a ele logo que
se emancipou”, comentaria o autor, mas “a outra, porém, é que se o deixou tragar assim tão
facilmente, e a cada nova aurora reflorescia mais grimpadora e viçosa”
508
. O “quarteto” se
lançou às mais desvairadas dissipações materiais e sensoriais oferecidas pelo carnaval carioca,
ceando no Hotel dos Príncipes com a Rosa Cantagalense, entregando-se após as duas da
manhã aos Tenentes do Diabo” e decidindo, após as quatro, vagar para a Tijuca. Exaustos de
tantas libertinagens, Gabriel e Mendonça cederam aos apelos do sono e se deixaram prostrar
sob as almofadas do carro em que seguiam, ao passo que a Rita Beijoca e o Juca “pegaram-se
506
A condessa Vésper. 1959, p. 245.
507
A condessa Vésper. 1959, p. 246.
508
A condessa Vésper. 1959, p. 244.
169
a beijos”
509
. Pois além de viver com uma mulher mais velha, devassa e dissipadora, Gabriel
tinha de suportar cenas como essas? É certo que ele estava dormindo, e que aquilo que não foi
vivido fenomenicamente não conta mas parece ser justamente isso o que Azevedo deseja
destacar: para além dos males conscientes, os desregrados do Rio de Janeiro sofreriam ainda
uma grande variedade de males secundários e desconhecidos, de toda espécie. O epidio
reflete bem o ideário acerca do cotidiano vazio e desagregador em que viviam aqueles que se
abstinham das comodidades de um lar familiar o que desde o começo foi destacado com a
frase: “a ausência de Gaspar favorecia toda essa desgraça”
510
.
Observadas as melhores condições para o casamento, discutidas amplamente pela
classe médica, a mulher poderia se entregar à sagrada missão da maternidade. “Mãe! que
nome mais sublime, que nome de maior magia”, exclamaria o Dr. Zeferino Meireles.
A mãe é essa fonte fecunda e sagrada da vida; a mãe é esse ser vivificante que nos aquece em seu
regaço, nos aleita em seu seio, nos recolhe em seus braços e protege (p. 09) nossa infância com sua
inesgotável ternura; a mãe, enfim, é esse ser o mais respeitável da natureza.
Quanto é nobre e sublime essa missão da mulher! Que objeto mais digno no mundo das vistas da
Divindade, do que uma mãe, que amamenta seu filho! Os seus deveres, posto que trabalhosos, não
deixam contudo de ser um manancial de delícias. Que prazer maior para uma mãe do que
contemplar suspenso em seu peito o tenro filhinho!
511
.
“Que tesouro de sentimento e de delicadeza que é um coração de mãe, meu amigo!”,
exclamaria por sua vez Jode Alencar nas páginas do romance Cinco minutos. Que tato
delicado, que sensibilidade apurada, possui esse amor sublime!
512
. Macedo, em Um noivo à
duas noivas, nos legaria as seguintes palavras:
Ah!... velha, bem velhinha, ainda mesmo rude, anacrônica no trajar, desfigurada e trêmula pela
idade, pelos trabalhos, pelas modéstias, velhinha, bem velhinha a mãe é um anjo!...
E custa tão pouco fazer sorrir, encher de alegria, felicitar uma mãe!!!
513
Maria Benedita, personagem do romance Quincas Borba, de Machado de Assis,
quando grávida,
considerava-se a si mesma um templo divino e recatado, em que vivia um deus, filho de outro
deus. A gestação ia cheia de tédios, de dores, de inmodos que ela ocultava o mais que podia ao
marido; mas tudo isso dava maior apreço à criaturinha futura. Acolhia o mal com resignação, – se
é que não o agasalhava com alegria, uma vez que era a condição da vindo do fruto. Fazia
cordialmente o ofício da espécie
514
.
509
A condessa Vésper. 1959, p. 247.
510
A condessa Vésper. 1959, p. 244.
511
Breves considerações sobre as vantagens do aleitamento maternal. 1847, p. 09-10.
512
Cinco minutos. 1991, p. 35.
513
Um noivo à duas noivas. S/d, vol. I, p. 79-80.
514
Quincas Borba. 1997, p. 150.
170
A construção do mito da maternidade alcançou tal grau de perfeição que mesmo
grávida de seu próprio irmão, a personagem Hortência, figurada no romance de mesmo título,
publicado por Marques de Carvalho em 1888, julgava-se extremamente venturosa, exibindo
todas as representações relativas à expectativa de um filho, já após a queda do romantismo.
Por certo que lhe seria doce o prazer de possuir um filho, a inocente reprodução encantadora da
sua pessoa e do homem que primeiro a gozara, do ente a quem mais amava e ao qual dera
deliberadamente as flores todas da sua virgindade e dos seus puríssimos afetos. Ver aquela
criancinha a dormitar tranqüila na entorpecida inconsciência da primeira idade; trazê-la ao colo,
pendente dos fartos seios arredondados na turgidez da apojadura alimentá-la, assim com o seu
sangue; acarinhá-la docemente, longamente, com todos os requintes e quindins das es
rejubiladas com a posse do primeiro filho; depois, depois – oh! primeira delícia da primeira
compensação! receber-lhe o mpido olhar brilhante como um pedaço de u estrelado e o mudo
sorriso fascinador que parece conter milhares de místicos poemas de agradecimento; auxiliá-la, em
seguida, a ensaiar os indecisos passos; fazê-la aprender as principais palavras do primeiro uso; e,
por fim, receber dela as dulcíssimas cacias dos beijos e as leves maciezas dos afagos, que são
como os ósculos mudos das mãos que abençoam tudo isto constituía para Hortência mil fontes
de grandes esperanças festivas, para cujo acolhimento o seu enorme afeto por aquele entezinho em
formação preparava alegres madrigais de beijos sonoros e meigas canções embaladoras, duma
ternura intensa e boa de santa mãe amorável
515
.
Tarefa completamente conjugada à missão suprema da mulher, quando não ainda
superior a esta, o aleitamento materno foi um dos temas mais explorados pela literatura
dica do período, em total sintonia com a ação de nossos literatos. É sobre o seio materno
que a criança recebe as primeiras lições de sensibilidade”, diria o Dr. Zeferino Meireles.
Para uma verdadeira mãe tudo é prazer na ação de aleitar; que doces emoções não deve sentir seu
coração quando o filho, em sinal de reconhecimento, da ternura, amor e cuidados de que é ele
objeto, com suas tenras mãozinhas acariciar seus peitos, e quando de seus lábios colher o seu
primeiro e infantil sorriso!
516
Todos os autores médicos ou moralistas que m escrito sobre o aleitamento são
unânimes em reconhecer a superioridade do aleitamento materno”, afirmaria o Dr. José
Ribeiro dos Santos Zamith. Se consultarmos a história nós veremos os poetas decantar os
seus encantos, os naturalistas e os filósofos demonstrar a sua importância, os médicos
aconselhar o seu uso
517
.
Tanto a história da humanidade quanto a própria natureza selvagem exibiriam
exemplos vivos desta nobre tarefa olvidada por nossas patrícias. Seguindo o lebre Virey, o
Dr. Meirelles asseverava que “nunca as baleias, as leoas, as panteras recusaram as mamas a
seus filhos; isto estava reservado à mulher, não para a pobre e desculpável pela sua miséria,
515
Hortência. 1997, p. 143.
516
Breves considerações sobre as vantagens do aleitamento materno. 1847, p. 10.
517
Do aleitamento natural, artificial e misto em geral, e particularmente do mercenário em relação às condições
da cidade do Rio de Janeiro. 1869, p. 05.
171
porque esta não é tão desnaturada; mas para a rica, rodeada de todos os favores”
518
.
Recorrendo ainda ao esclarecedor “livro de ouro” do passado, o Dr. diria:
revolvei a história e vereis as antigas Gregas e Romanas, cuja beleza foio célebre, ao menos nas
felizes épocas da liberdade desses povos, aleitar por si mesmas seus filhos: vereis ainda hoje as
belas Circassianas e Georgeanas, entregar-se a esse dever sagrado; e no entanto tem nelas
degenerado a beleza das formas, seus tecidos ter-se-ão enlanguescido? não; são ao contrário as
mais formosas do universo; são elas a quem os déspotas do Oriente procuram para embelezar seus
serralhos
519
.
Além de descerem ao último degrau da escala social, as senhoras que se furtassem à
nobre missão da amamentação estariam ainda sujeitas à terríveis males sicos:
o útero, que antes da prenhes estava em um estado de inação, sem falar do estímulo periódico da
menstruação, torna-se depois da concepção a sede de uma excitação permanente, atraindo por
conseqüência um grande afluxo de líquidos que vão concorrer para a nutrição e desenvolvimento
do feto; este estado, a que chamamos prenhes, dura pouco mais ou menos nove meses, época em
que o produto da concepção vem à luz. É neste tempo que a excitação do útero achando-se
bastante exaltada pelo trabalho do parto, atrai uma maior quantidade de fluidos, que não sendo
mais admitidos com a mesma facilidade em conseqüência das mudanças de forma e estado que se
operam, tenderiam a sobrecarregar o organismo, e acumular-se em diferentes órgãos, se a natureza,
previdente como é em todos os seus atos, o tivesse de antemão destinado órgãos que servissem
como de depósito ou excretores desses líquidos: esses órgãos o as mamas. Mas se a mulher,
desprezando o inocente fruto de seus amores, arredá-lo de seus peitos e infringir assim a ordem da
natureza, pensais que ficará impune esse ultrage? Quanto vos enganais! A falta de estímulo
exercido pela criança o entretendo a secreção e a super-excitação do útero pelo trabalho do
parto, faz que se agrave mais este último órgão pelo afluxo de líquidos, que não tendo saída, aí se
acumulam e muitas vezes o causa de metrites, de peritonites, flebites e muitas outras lesões.
Longe de por esse meio iníquo conservar a graça e frescura das mamas, acumulando-se nelas o
leite, sentireis intensíssimas dores; serão elas muitas vezes a sede de erisipelas, flemões, abscessos
e algumas vezes se converterão em cancros
520
.
Aquela que aparta seu filho de seus seios, “que faz calar em seu coração a poderosa
voz da natureza, e que despreza enfim esse imperioso dever, não tem direito ao sagrado título
de mãe, não é verdadeiramente e”
521
e deveria mesmo ser apartada da sociedade, na qual
o cumpriria qualquer papel
522
. Segundo o Dr. José de Amorim Carrão:
no estado natural entre os povos, que um civilização mal entendida não tem corrompido nem
degenerado, só há uma espécie de aleitamento. A mãe compenetrada da sua alta missão aleita por
seus próprios seios a seu filho sem pensar em entregá-lo a mães estranhas, e esta admirável
harmonia que reina entre a composição íntima do leite materno e as necessidades gradual e
insensivelmente crescentes, mantém ao mesmo tempo em um estado de saúde perfeito os dois
entes que ficam por este modo ligados um ao outro pelos laços sagrados da natureza
523
.
Assim, como confirmaria o Dr. Thomas Pacheco e Costa, muitos males estavam
reservados àquelas que se furtassem à tão nobre tarefa: “a experiência mostra, que as
conseqüências cruéis do parto o muito mais raras entre as mulheres, que têm nutrido, do que
518
Breves considerações sobre as vantagens do aleitamento maternal. 1847, p. 12.
519
Breves considerações sobre as vantagens do aleitamento maternal. 1847, p. 11.
520
Breves considerações sobre as vantagens do aleitamento materno. 1847, p. 12-13.
521
Breves considerações sobre as vantagens do aleitamento materno. 1847, p. 11.
522
Breves considerações sobre as vantagens do aleitamento materno. 1847, p. 01.
523
Algumas considerações sobre o homem. 1848, p. 01.
172
naquelas, a quem a sua fraqueza o tem permitido o cumprir este dever da maternidade”
524
.
Segundo o Dr. Antenor Guimarães, “as mães que abandonam seus filhos à uma estranha
acreditam conservar assim a frescura de seus encantos, mas enganam-se; fazem-se pelo
contrário velhas antes do tempo
525
. “Mas se a e, desprezando a sua conservação, expuser-
se a esses perigos e sair incólume”, arremataria o Dr. Zeferino Meireles, outros males a
surpreenderão; será vítima do remorso, será ferida no âmago do coração”
526
.
Seja por conta do luxo, da vaidade ou mesmo de impossibilidades sicas, também
listadas, consideradas e, evidentemente, lamentadas, por nossos doutores, muitas mulheres
entregavam seus filhos à amas mercenárias, um verdadeiro flagelo. Primeiro, porque a estas o
filho teria mais afeição, como já destacou Macedo. Em segundo, porque como as qualidades
morais seriam passadas às crianças com o leite, os costumes da ama se fariam notar nos
futuros cidadãos brasileiros e como geralmente as amas saíam dos funestos palcos da
escravidão, o futuro do “fruto de seus amores” estaria condenado.
O recurso às amas de leite, geralmente escravas, tão presente na vida social do Brasil
oitocentista, como sabemos, tinha origem na época colonial, por razões muitas vezes diversas
das apontadas por nossos doutores em suas teses. Desconhecendo os imperativos das modas
francesas ou inglesas, por motivos históricos evidentes, como comentou Gilberto Freyre
527
, e
ignorantes das dimensões culturais da sagrada missão materna a que estavam destinadas desde
seu nascimento, mesmo porque essa missão seria constrda mais tarde, nossas patrícias se
entregavam à tarefa da maternidade muito cedo, com doze ou treze anos, período em que,
como nossos doutores notaram com clareza, não estavam fisicamente preparadas para
amamentar seus filhos vendo-se praticamente obrigadas a entregar “o fruto de seus amores”
às negras escravas da casa. Essa neglincia interpretativa de nossa classe dica estava
ligado à reformulação da própria estrutura da família brasileira oitocentista que, procurando se
espelhar na Santíssima Trindade, deveria dar fim à escravidão e aos agregados, responsáveis
pela pulverização das relações pessoais no período colonial. Quando necessárias, as amas
deveriam ser escolhidas com muito cuidado – cuidados aos quais nossos doutorandos também
dedicaram especial atenção, buscando orientar as desafortunadas mães que não poderiam
conhecer as “mil blandícias indizíveis” do aleitamento materno.
524
Considerações gerais sobre os cuidados que se deve prestar aos recém nascidos quando vem no estado de
saúde, e sobre as vantagens do aleitamento maternal. 1840, p. 12.
525
Dissertação sobre a higiene dos colégios. 1858, p. 27.
526
Breves considerações sobre as vantagens do aleitamento materno. 1847, p. 13.
527
Casa grande & senzala. 2001, p. 413.
173
Seja como for, antes de observarmos a importância da infância e da adolescência no
período, devemos notar o contraste conquistado por estes cuidados com relação à aparência
física de nossas patrícias senão real, o que não teremos nunca como comprovar, pelo menos
no plano das representações. Entregando-se ao casamento muito cedo e gestando inúmeras
criaas, as brasileiras dos tempos coloniais adquiriam muito cedo o aspecto de velhas,
literalmente acabadas, como nos refere Gilberto Freyre. No século XIX, por outro lado,
aquelas que não se entregassem à amamentação, como vimos acima, é que teriam seus corpos
desgastados, e nas páginas da literatura a beleza seria conquistada com a idade
especialmente para Machado de Assis, que nos legou este brilhante retrato de Sofia Palha,
personagem do romance Quincas Borba. Segundo ele, Sofia
era daquela casta de mulheres que o tempo, como um escultor vagaroso, não acaba logo, e vai
polindo ao passar dos longos dias. Essas esculturas lentas são miraculosas; Sofia rastejava os vinte
e oito anos; estava mais bela que as vinte e sete; era de supor que aos trinta desse o escultor os
últimos retoques, se não quisesse prolongar ainda o trabalho, por dois ou três anos
528
.
Como ressaltaria o Dr. Antônio de Lima Torres, na idade adulta
a graça feminina é cercada de uma auréola de majestosa dignidade; a mulher exprime a satisfação,
e o seu caráter é o da confiança em si mesma; a frescura, o colorido da cutis e os encantos da
puberdade vão desaparecendo; todavia ela conserva o encanto das formas exteriores, e atinge o
maior grau de desenvolvimento possível, o que lhe novo gênero de beleza,o menos
importante ou mais ainda, do que o que tinha na puberdade
529
As fases da vida de uma mulher seriam tão distintas umas das outras que Horácio, o
leão de A pata da gazela, decifraria a idade da portadora da botina que encontrou com grande
facilidade: “esta botina é de moça; e moça em todo o viço da juventude: a sola apenas roçada
junto à ponta, o salto quase intacto, não estão descrevendo com a maior eloqüência a sutileza
do passo ligeiro? Eu sinto, posso dizer, eu vejo, esse andar gentil, que manifesta a deusa
530
”,
dizia o mancebo, grande conhecedor do belo sexo, concluindo ainda:
quando toda a seiva se precipita para o coração, quando germinam os botões que mais tarde se
abrirão em flor, nesse momento de assunção é que a mulher tem este andar sublime e augusto. É
o andar do passarinho, que, roçando a relva, sente o impulso das asas; é o andar do astro nascente,
caminhando para a ascensão; é o andar do anjo, que, mesmo tocando a terra, parece prestes a fugir
ao céu; é, finalmente, a elação d’alma que aspira de Deus os eflúvios do amor, do amor, único
ambiente do coração!
531
As crianças, “esses diabinhos tão feiticeiros”, ocupavam um papel de grande destaque
na organização social do Brasil oitocentista – de tal modo que as Memórias póstumas de Brás
Cubas, de Machado de Assis, encerram-se com as lamentações do narrador sobre a ausência
528
Quincas Borba. 1997, p. 41.
529
Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases de sua vida. 1848, p. 19.
530
ALENCAR, José de. A pata da gazela. 1992, p. 16-17.
531
ALENCAR, José de. A pata da gazela. 1992, p. 17.
174
de filhos, aos quais ele poderia ter legado a miséria da existência
532
. O cromo, por sua vez,
encerra-se quando Esther comunica ao Dr. Lins Teixeira que eles esperavam um filho.
Ela parou, e numa pré-sensação de maternidade, anunciou-lhe baixinho, quase como uma prece
que no seu jardim, naquele mês, não se tinham desabrochado as rubras flores de Hypáthia. [...]
E dos olhos dele, amorosos, fixos nos dela, caíram de jubilo as primeiras lágrimas de pai
533
.
Machado de Assis figurara a importância das crianças no romance Ressurreição, no
momento em que o amargurado Félix encontra pela primeira vez o filho de Lívia:
Luis encarou o médico; depois olhou para a mãe, e fez um gesto para descer. Lívia pô-lo no chão.
– Posso ir à chácara?
– Podes; leva-o, Clara.
Luiz deitou a correr seguido pela mucama. A mãe acompanhou-o com os olhos a vê-lo
desaparecer do terraço.
Durante esta cena, Felix parecera completamente estranho a tudo que o rodeava. Não ouvia as
repreensões da moça, nem a tagarelice da criança; ouvia-se a si mesmo. Contemplava aquele
quadro com deleitosa inveja, e sentia pungir-lhe um remorso.
– É mãe, repetia o moço consigo; é mãe!
Olhe, dizia a moça, debruçada sobre o parapeito que dava para a chácara; veja como ele vai
correndo...
Felix debruçou-se também; o menino correia efetivamente adiante de Clara que o acompanhava de
longe. De quando em quando, parava o menino aguardando a mucama; mas tão depressa esta se
lhe aproximava, a criança negaceava o corpo, e deitava a correr outra vez. A mãe parecia
esquecida de tudo mais; Felix contemplava-a com religioso respeito. Estiveram assim calados
alguns segundos. De repente Lívia voltou-se para o médico:
– Vê? disse ela; a pouco se reduz a minha felicidade: o senhor e aquela criança.
Dizendo isto, deixou pender a fronte: Felix beijou-a ardentemente, mas não pode dizer nada. A
comoção embargou-lhe a voz: a reflexão impoz-lhe silêncio
534
.
Lívia, por sua vez, percebeu logo o encanto que o menino provocara em Félix. Em
outra passagem Machado comentará: “Lívia não o contemplava só com olhos de mãe; via nele
como que o elo de outro entre uma quimera desfeita e uma quimera realizada”
535
. Criadas
conforme os preceitos higiênicos veiculados pelo período, as crianças passaram a conquistar
uma posição simplesmente inimaginável durante o período colonial, muitas vezes mesmo
tiranizando seus pais. Para além das muitas mocinhas veiculadas por Macedo, Lima Barreto
nos legou um interessante registro dessa situação ao apresentar as relações entre o ex-
quitandeiro Coleoni e sua filha Olga. Ele aceitava bem a tirania da filha, segundo o
romancista, mas
havia momentos que se aborrecia um tanto com os propósitos da menina. Gostando de dormir
cedo, tinha que perder noites e noites no rico, nos bailes; amando estar sentado em chinelas a
532
Memórias póstumas de Brás Cubas. 1997, p. 235.
533
O cromo. 1888, p. 485.
534
Ressurreição. 1938, p. 71-72.
535
Ressurreição. 1938, p. 203.
175
fumar cachimbo, era obrigado a andar horas e horas pelas ruas, saltitando de casa em casa de
modas, atrás da filha, para no fim do dia ter comprado meio metro de fita, uns grampos e um
frasco de perfume.
Era engraçado vê-lo nas lojas de fazendas, cheio de complancia de pai que quer enobrecer o
filho, a dar opinião sobre o tecido, achar este mais bonito, comparar um com outro, com uma falta
de sentimento daquelas coisas que se adivinhava até no pagá-las. Mas ele ia, demorava-se e
esforçava-se por entrar no segredo, no mistério, cheio de tenacidade e candura perfeitamente
paternais.
Até ele ia bem e calcava a contrariedade. contrariavam bastante, as visitas, as colegas da
filha, suas mães, suas irmãs, com seus modos de falsa nobreza, os seus desdéns dissimulados,
deixando perceber ao velho empreiteiro o quanto ele estava distante da sociedade e das amigas e
das colegas de Olga
536
.
A percepção romântica acerca da morte das crianças também nos parece um índice
bastante significativo das transformações da sensibilidade brasileira especialmente se
observarmos a tradição colonial doenterro dos anjos”. Antes do advento do império, e
mesmo ainda por algum tempo, em certas localidades “menos civilizadas”, a morte das
criaas não só não era lamentada como se constituía em um motivo para festividades.
Gilberto Freyre e Jurandir Costa estudaram diversos viajantes que nos legaram uma série de
relatos acerca dessa tradição e, evidentemente, do espanto que ela causava aos estrangeiros
que aqui aportavam, tal como a seguinte descrição de John Luccock:
Em uma dessas ocasiões foi ouvida uma mãe que assim se exprimia: “ó como estou feliz! ó como
estou feliz, pois que morreu o último dos meus filhos! Que feliz que estou! Quando eu morrer e
chegar diante dos portões do céu, nada me impedirá de entrar, pois que ali estarão cinco
criancinhas a me rodear e a puxar-me pela saia e exclamando: Entra Mamãe, entra! Ó que feliz que
estou!” repetiu ainda, rindo a grande.
Se isso fosse um exemplo isolado de sentimentos maternais estranhos, poderia ainda
ser considerado efeito de um desvio mental passageiro”, comentaria ainda o viajante,
buscando atenuar a extravagância do caso, acrescentando “que a satisfação em tais momentos
é geral demais, e por demais ostensiva, para que deixe lugar à desculpa dessa espécie”
537
.
Gilberto Freyre afirmaria: a verdade é que perder um filho pequeno nunca foi para a família
patriarcal a mesma dor profunda que para uma família de hoje. Viria outro. O anjo ia para o
céu. Para junto de Nosso Senhor, incansável em cercar-se de anjos”
538
. Leila Algranti
comenta que o coronel Costa Aguiar, que viveu no culo XVIII, o expressou qualquer
sinal de pesar ao ser referir à morte de uma filha de três meses, mas que suas linhas dedicadas
à um filho que se formara em Coimbra denotavam algum orgulho – mais pela atenção
dedicada do que propriamente por evidências precisas
539
.
536
Triste fim de Policarpo Quaresma. 1997, p. 52.
537
Citado por Jurandir Freire Costa. Ordem médica e norma familiar. 1983, p. 160-61.
538
Casa grande & senzala. 2001, p. 419-20.
539
Famílias e vida doméstica. 1997, p. 139.
176
Imersos em uma outra sensibilidade, mesmo porque seus avatares, Gonçalves de
Magalhães e Gonçalves Dias vivenciaram a perda de seus filhos como fatalidades
inestimáveis, registrando seus sentimentos em composições elegíacas valiosíssimas.
Magalhães, aquele que julgara que as graças do amor nunca seriam derramadas sobre sua
existência, teve seus dois primeiros filhos levados pelo anjo da morte em Nápoles, e assistiu
ainda a morte de um terceiro em Turin, sendo contudo agraciado com a ventura de tomar em
seus braços mais duas crianças diferentemente de Gonçalves Dias, cuja única filha foi
ceifada no ano de 1855, distante de sua presença, tragédia ainda maior porque ele a amava
mais do à sua esposa e porque sabia que, provavelmente, nunca mais poderia ter filhos, dada a
sífilis genital que lhe atormentava e que efetivamente o conduziu à beira da morte e à viagem
fatídica em que seu espírito se despediu deste mundo. À minha filha, escrita em 1861, nas
solidões da Amazônia, decanta sua dor e suas saudades pela ausência da consolão suprema
de sua vida:
O nosso índio errante vaga;
Mas por onde quer que vá,
Os ossos dos seus carrega:
Por isso, onde quer que chega,
Da vida no amplo deserto,
Como que a pátria tem perto,
Nunca dos seus longe está!
Tem para si que a poeira
D’aquele que choram morto,
Quando a alma já descansa
Da eternidade no porto,
Nenhures está melhor
Do que na urna grosseira,
Que a cada momento enxergam,
Que de instante a instante regam
Com seu prantear d’amor!
Ando, como ele, incessante,
Forasteiro, vago, errante,
Sem próprio abrigo, sem lar,
Sem ter uma voz amiga,
Que em minha aflição me diga
Dessas palavras que fazem
A dor no peito abrandar!
E sei que estás morta, filha!
Sei que a dor de te perder
Enquanto eu for vivo, nunca,
Nunca se há de esvaecer!
Mas qual teu jazigo, e onde
Jazem teus restos mortais...
Esse lugar que te esconde,
Não vi, não verei jamais!
177
Não sei se aí nasce a relva,
Se algum arbusto s’enflora
A cada nova estação;
Se a cada nascer da aurora,
O orvalho lágrimas chora
Sobre esse humilde torrão!
Se aí nasce o triste goivo,
Ou só espinhos e abrolhos;
Ou se também de alguns olhos
Recebes pia oblação!
Sei que o pranto que se verte
Longe do morto, não basta!
É pranto que a dor não gasta,
Que nenhum alívio traz!
Sei que ao partir-me da vida,
Minha alma andará perdida
Para saber onde estás!
Irei beijar teu sepulcro,
Chorar meu último adeus;
Depois, remontando aos céus,
Direi a Deus: “Aqui estou!”
Tu, d’entre o coro dos anjos,
Dos serafins resplendentes,
Então as asas candentes,
Que a vida não maculou,
Desprega! – e meiga e humilhada
Ao trono do Eterno vai
E na linguagem dos anjos
Dize a Jesus: “É meu pai!”
Ele humanou-se! – quis ser
Filho também de mulher;
Mas d’homem não; porque os céus
Não tinham bastante espaço
Para um homem pai de Deus!
Bem sabe ele quanta glória
Sente o pai que um anjo tem!
Julgará que, pois perdida
Teve uma filha na vida,
Não a perca lá também!
540
Entremeada às imagens indígenas em que Dias se distinguiu em nossas letras, a figura
do anjinho inocente herdada dos tempos coloniais permanece a mesma, com as asas
candentes que a vida nunca maculou, mas a dor de sua perda nunca se de esvaecer sem
qualquer espaço para alegrias ou quaisquer consolações. Goalves de Magalhães dedicou à
seus três filhos mortos a longa composição Os mistérios, mas no poema Lembranças
dolorosas, dedicado ao amigo Porto Alegre, ele já narrara a perda do terceiro filho com
grande vivacidade:
540
Poesias. 1926, vol. I, p. 292-94.
178
Do derradeiro, angélico cadáver
Sinto ainda a frieza penetrar-me
O coração, e os braços que o apertaram
No lacrimoso amplexo... A cada instante
Vivo se me afigura o tenro filho,
E a cada instante nos meus braços morre!...
Assim me tiraniza o amor paterno;
E assim o pranto e as ânsias se renovam
Dessa morte cruel que inda estou vendo,
E tantas me recorda... reavivando
Dores d’alma, que o tempo amortecera
541
.
Como Gonçalves Dias, no entanto, o fundador do romantismo em nossas letras
também ressaltará a pureza que revestia o último certamente como os dois anteriores anjo
que subiu ao céu antes da hora:
Porque, deixando agora a térrea crosta,
Sem que da vida te manchasse o lodo,
Como mimosa pérola extraída
De rude concha vai brilhar num trono;
Porque, malgrado a Fé, que eterna vida
No descanso dos Anjos te promete,
Devo eu chorar, carpir, como se a morte
Grande bem para sempre te roubasse?...
Quem bem? – Esse sofrer que vida chama
Na dos homens linguagem mentirosa,
Com que se douram de pomposos nomes
Tantas misérias, e nefando crimes!
542
Após a morte de seu filho, o Franco, um dos maiores peraltas de O Ateneu, sua mãe
visitou a instituição, “muito pálida, delgada, num idiotismo sombrio, insanável de melancolia
e mudez, pestanas caídas, olhar na terra, como quem pensa encontrar alguma coisa”
543
. É
claro que esse afeto desmedido se restringia aos filhos legítimos, ou mais propriamente, aos
filhos de paternidade confirmada, visto que até mesmo as crianças adotadas seriam tratadas
com esmero – como veremos em seguida. O nascimento de Zulmira, filha do Miranda e de D.
Estela, personagens de O cortiço, de Aluísio Azevedo, ao invés de consolidar definitivamente
a união do casal “veio agravar ainda mais” uma situação de desespero e ódio ocasionado,
justamente, pela esposa, como convinha ao figurino naturalista do período...
D. Estela era uma mulherzinha levada da breca: achava-se casada havia treze anos e durante esse
tempo dera ao marido toda sorte de desgostos. Ainda antes de terminar o segundo ano de
matrimônio, o Miranda pilhou-a em flagrante delito de adultério; ficou furioso e o seu primeiro
impulso foi de mandá-la para o diabo junto com o cúmplice; mas a sua casa comercial garantia-se
com o dote que ela trouxera, uns oitenta contos em prédios e ações da vida pública, de que se
utilizava o desgraçado tanto quanto lhe permitia o regime dotal. Além de que, um rompimento
brusco seria obra para escândalo, e, segundo a sua opinião, qualquer escândalo doméstico ficava
muito mal a um negociante de certa ordem
544
.
541
Cantos fúnebres. 1864, p. 34-35.
542
Cantos fúnebres. 1864, p. 58.
543
POMPÉIA, Raul. O Ateneu. 1997, p. 143.
544
O cortiço. 1997, p. 16.
179
A chegada da menina tornou-se uma nova fonte de tormento para ambos, pois Estela
amava-a menos do que lhe pedia o instinto materno por supô-la filha do marido, e este a
detestava porque tinha convicção de não ser o pai
545
.
Na dolorosa incerteza de que Zulmira fosse sua filha, o desgraçado nem sequer gozava o prazer de
ser pai. Se ela, em vez de nascer de Estela, fora uma enjeitadinha é natural que a amasse, e então a
vida lhe correria de outro modo; mas, naquelas condições, a pobre criança nada mais representava
que o documento vivo do ludíbrio materno, e o Miranda estendia até à inocentezinha o ódio que
sustentava contra a esposa
546
.
No ambiente “espiritual” do século XIX, toda e qualquer criança foi representada
como uma graça divina, mesmo as “adotadas”. Leonardo Pataca, como sabemos, foi criado
por um barbeiro, identificado no romance Memórias de um Sargento de Milícias apenas como
compadre visto que apadrinhou o garoto. Após ser expulso de casa, o Leonardo ficou aos
cuidados do compadre, que logo se apegou ao menino desvairadamente, e isso no tempo do
Rei – antes do advento do romantismo, portanto.
O pequeno, enquanto se achou novato em casa do padrinho, comportou-se com toda a sisudez e
gravidade; apenas porém foi tomando mais familiaridade, começou a pôr as manguinhas de fora.
Apesar disto porém captou do padrinho maior afeição, que se foi aumentando de dia em dia, e que
em breve chegou ao extremo da amizade cega e apaixonada. Até nas próprias travessuras do
menino, as mais das vezes malignas, achava o bom do homem muita graça; não havia para ele em
todo o bairro rapazinho mais bonito, e não se fartava de contar à vizinhança tudo o que ele dizia e
fazia; às vezes eram verdadeiras ações de menino malcriado, que ele achava cheias de espírito e de
viveza; outras vezes eram ditos que denotavam muita velhacaria para aquela idade, e que ele
julgava os mais ingênuos do mundo
547
.
Um caso biográfico dessa natureza é o do mulato Tito Lívio de Castro, que foi
abandonado com quinze dias no máximo, segundo Romero, às portas do português Manuel da
Costa Pais, que por ser solteiro, entregou-o a uma distinta senhora de sua amizade às suas
custas até os quatro anos, quando então o tomou definitivamente sob sua guarda, dedicando-se
daí então única e exclusivamente ao menino, que se formou em Letras e em Medicina. Após
sua morte, aos 26 anos, seu padrasto nada mais fez do que, auxiliado por Silvio Romero,
publicar as obras do moço, deixando toda sua herança para esse fim.
Em 1869, como já observamos, Macedo já tratava alguns temas românticos com um
olhar mais agudo, representando costumes distintos do que exibira em seus primeiros
romances mas mantendo o amor filial ainda completamente intacto. Em As vítimas-algozes
ele destacaria a impossibilidade de qualquer ressentimento, conflito ou desarmonia entre pai
e mãe” romper os laços sagrados da natureza materializados nos filhos, pelas próprias
condições de sua dependência de ambos e pela necessidade da proteção e da provincia” a
545
O cortiço. 1997, p. 17.
546
O cortiço. 1997, p. 23-24.
547
ALMEIDA, Antônio Manuel de. Memórias de um Sargento de Milícias. 1997, p. 21.
180
que estavam naturalmente submetidos os pobres anjinhos
548
. Raul Pomia nos legaria ainda
um último relato acerca da força do amor filial, retratando um funesto caso de suicídio em
uma crônica de agosto de 1890.
Uma bela jovem de alma impetuosa educada para a afeição na escola da miséria, onde se aprende
que a simpatia é a única ventura dos desamparados da sorte, apenas desviada mais ou menos
regularmente do caminho de necessidades que trilhava, adotara desde muito para o seu afeto de
mãe sem filho o filho de uma vizinha. Indisposições que sobrevieram entre ela e ae da criança
deram lugar a que, com o fito de magoar-lhe, retirassem o filho adotado. Mas já a planta de
ternura, que lhe haviam deixado radicar no peito, crescera de exuberante viço e, quando lha
arrancaram cruelmente, foram-se as raízes sangrando. A pobre moça, a pobre mãe, a verdadeira,
que a outra o era apenas de fato, mãe de puro amor, privada do filho do seu coração, mais amado,
quem sabe, do que se o fora das suas entranhas, não pode resistir à dolorosa separação. Revestida
de sombria calma, chorando o menos possível, de medo que lhe fosse obstáculo a indiscrição das
lágrimas, a infeliz planejou em algumas horas a terminação da sua angústia; e, logo que se achou
em segurança contra todo socorro, uniu ao peito um sapatinho, algumas roupas do filho querido,
que pareciam comunicar-lhe ainda o calor do pequenino corpo que não mais abraçaria, galgou uma
cadeira, deixou-se pender do nó corredio de um braço
549
.
Ele falaria ainda da “violência do temperamentoda moça, que sabia se entregar à
vida de modo intenso
550
, mas, descontando sua habitual verborragia, a passagem nos indica a
intensidade que as relações afetuosas já havia conquistaram no período.
Se por um lado a construção do casamento foi instaurada com o mais completo êxito,
por outro deu origem também a certos revezes. Confirmando ou em consonância com
certos preceitos moralizantes oitocentistas, a crise espiritual que se abateu sobre nossos
patrícios no final do século esvaziou determinadas dimensões do casamento que, se enquanto
prática social ainda ocupava posição de destaque no cotidiano brasileiro, simbolicamente
passou a perder sentido como podemos observar no desesperançoso Triste fim de Policarpo
Quaresma, de Lima Barreto. Ainda que o himeneu fosse um imperativo para todas as
personagens femininas jovens do romance, nenhuma delas conseguia apreender suas
dimensões existenciais, como podemos observar primeiramente com a frágil Ismênia:
Noiva havia quase cinco anos, Ismênia se sentia meio casada. Esse sentimento junto à sua
natureza pobre fê-la não sentir um pouco mais de alegria. Ficou no mesmo. Casar, para ela, não era
negócio de paixão, nem se inseria no sentimento ou nos sentidos: era uma idéia, uma pura idéia.
Aquela sua inteligência rudimentar tinha separado da idéia de casar o amor, o prazer dos sentidos,
uma tal ou qual liberdade, a maternidade, até o noivo. Desde menina, ouvia a mamãe dizer:
“Aprenda a fazer isso, porque vose casar...” ou senão: “Voprecisa aprender a pregar botões,
porque quando você se casar...”
A todo instante e a toda hora, vinha aquele – “porque, quando vose casar...” – e a menina foi
se convencendo de que toda a existência tendia para o casamento. A instrução, as satisfações
íntimas, a alegria, tudo isso era inútil; a vida se resumia numa coisa: casar.
De resto, não era dentro de sua família que ela encontrava aquela preocupação. No colégio, na
rua, em casa das famílias conhecidas, só se falava em casar. “Sabe, D. Maricota, a Lili casou-se;
548
As vítimas-algozes. 1991, p. 109.
549
Citado por Eloy Pontes. A vida inquieta de Raul Pompéia. 1935, p. 314-15.
550
Citado por Eloy Pontes. A vida inquieta de Raul Pompéia. 1935, p. 315.
181
não fez grande negócio, pois parece que o noivo não é grande coisa”; ou então: “A Zezé está
doida para arranjar casamento, mas é tão feia, meu Deus!...”
A vida, o mundo, a variedade intensa dos sentimentos, das idéias, o nosso próprio direito à
felicidade, foram parecendo ninharias para aquele cerebrozinho; e, de tal forma casar-se se lhe
representou coisa importante, uma espécie de dever, que não se casar, ficar solteira, tia, parecia-lhe
um crime, uma vergonha
551
.
Por mais que justifique a falta de sentido do casamento para a jovem em virtude de sua
“inteligência rudimentar”, podemos perceber os imperativos sociais em torno do casamento
em todas as dimensões do cotidiano, “no colégio, na rua, em casa das famílias conhecidas”, e
se ela se entregou ao casamento por conta de sua “fraqueza”, outras não tinham essa
desculpacomo no caso da personagem Olga, afilhada de Policarpo Quaresma, que nem
sequer sabia se gostava muito do noivo.
Queria sentir que gostava, mas estava que não. E porque casava? Não sabia... Um impulso do seu
meio, uma coisa que não vinha dela não sabia... Gostava de outro? Também não. Todos os
rapazes que ela conhecia, não possuíam relevo que a ferisse, não tinham o quê, ainda
indeterminado na sua emoção e na sua inteligência, que a fascinasse ou subjugasse. Ela não sabia
bem o que era, não chegava a extremar na percepção das suas inclinações a qualidade que ela
queria ver dominante no homem. Era o heróico, era o fora do comum, era a força de projeção para
as grandes coisas; mas essa confusão mental dos nossos primeiros anos, quando as idéias e os
desejos se entrelaçam e se embaralham, Olga podia colher e registrar esses anelo, esse modo de se
lhe representar e de amar o indivíduo masculino
552
.
Vivendo a última década do século dezenove, Ismênia e Olga conheciam a
importância suprema do casamento, tal como as jovens de outrora, mas não se sentiam tão
inebriadas com sua realização como se à prática cultural faltassem determinadas dimensões
simbólicas fundamentais. A instituição do matrimônio está perfeitamente firmada, como
podemos notar facilmente, mas destituída de sua aura sagrada, esvaída com o romantismo
de tal modo que Olga “não foi para a igreja em virtude de uma determinação certa de sua
vontade. Continuava a o encontrar dentro de si motivo para aquele ato, mas, aparentemente,
nenhuma vontade estranha à sua influíra para isso”. “A inércia da sociedade, a sua tirania e a
timidez natural da moça em romper que a levaram ao casamento. Tanto mais que ela, de si
para si, pensava que se não fosse este, seria outro a ele igual, e o melhor era não adiar”.
Era por isso que ela o ia para a igreja, em virtude de uma determinação certa de sua vontade,
embora sem perceber o constrangimento de um comando fora dela
553
.
Certamente a personagem mais reflexiva da trama, Olga é a única que após
experimentar as agruras” do casamento consegue perceber sua falta de sentido. Tomando
conhecimento do mal fadado caso de Ismênia, que enlouqueceu após a fuga do marido, Olga
551
Triste fim de Policarpo Quaresma. 1997, p. 38.
552
Triste fim de Policarpo Quaresma. 1997, p. 61.
553
Triste fim de Policarpo Quaresma. 1997, p. 88.
182
via bem o que fazia o desespero da moça, mas via melhor a causa, naquela obrigação que
incrustam no espírito das meninas, que elas se devem casar a todo o custo, fazendo do casamento o
pólo e fim da vida, a ponto de parecer uma desonra, uma injúria, ficar solteira.
O casamento já não é mais amor, não é maternidade, não é nada disso: é simplesmente casamento,
uma coisa vazia, sem fundamento nem na nossa natureza nem nas nossas necessidades.
Graças à frouxidão, à pobreza intelectual e fraqueza de energia vital da Ismênia, aquela fuga do
noivo se transformou em certeza de não casar mais e tudo nela se abismou nessa idéia
desesperada
554
.
Além disso, como complementaria Lima Barreto, é de dever falar em casamentos,
mas bem podiam ser esquecidos, porque a nossa gente pobre faz uso reduzido de tal
sacramento e a simples mancebia, por toda a parte, substitui a solene instituição católica”
555
prática que, nas palavras de Manuel Antônio de Almeida, 1852, “é seguramente uma das
coisas que produziu o triste estado moral da nossa sociedade”
556
.
Libertas do jugo patriarcal, muitas mulheres cairiam no século XIX em novas
armadilhas, como destacaria Joaquim Manuel de Macedo em diversos romances de sua
segunda fase. Como comentaria Franklin Távora em O sacrifício, quase um decalque de A
baroneza de Amor, de Macedo, uma mulher casada não se pertence; pertence ao marido, ou
antes à fatalidade do dever, sempre mais cruel para a mulher do que para o homem”
557
. – nova
submissão que Estela, a luxuriosa personagem de O cortiço também vivenciou:
– Você quer saber? afirmava ela, eu bem percebo quanto aquele traste do senhor meu marido me
detesta, mas isso tanto se me como a primeira camisa que vesti! Desgraçadamente para nós,
mulheres de sociedade, não podemos viver sem o esposo, quando somos casadas; de forma que
tenho de aturar o que me caiu em sorte, quer goste dele quer não goste!
558
Problemas da modernidade... Seja como for, as mulheres conquistavam cada vez mais
espaço na sociedade oitocentista, para desespero de muitos moralistas. O Dr. Vicente Maia,
por exemplo, consideraria:
De dia a dia tende ela a emancipar-se.
O preparo de uma futura esposa, o cultivo da escultura, da pintura, da música, enfim, de todas as
belas artes, adaptáveis à sublime delicadeza de seu sexo, representam hoje um círculo
limitadíssimo de sua instrução. O requinte desta, na atualidade, está no cultivo de ciências e artes
que jamais poderão ser-lhe confiadas: a mulher-médica, a mulher-naturalista, a mulher-política, a
mulher-jurídica constituem o luxo do século presente. Daí novos deveres, novas excitações
implantadas em seu organismo, cuja resistência de fatalmente baquear, denunciando-se por um
desequilíbrio dos centros nervosos e de todas as funções deles tributárias
559
.
A vida morosa dos anos coloniais ficara para trás as mulheres do século dezenove,
pelo menos as “retratadas” por nossos romancistas, gastaram muitas horas em passeios, festas
554
Triste fim de Policarpo Quaresma. 1997, p. 149.
555
Triste fim de Policarpo Quaresma. 1997, p. 156.
556
Memórias de um Sargento de Milícias. 1997, p. 156.
557
O sacrifício. 1969, p. 98.
558
O cortiço. 1997, p. 28.
559
A menstruação na etiologia das nevroses e psicoses. 1897, p. 11.
183
e visitas, imersas já em uma outra sensibilidade. Algumas já tomavam a ousadia de sair
sozinhas às ruas, ainda que às escondidas, como poderíamos observar em Diva, de José de
Alencar
560
, ou em Ressurreição, de Machado de Assis
561
. Em O sacrifício, Franklin vora
nos exibiria algumas características da amizade feminina ao representar um encontro entre
diversas damas: “após Virgínia, entraram Sinhazinha, D. Carolina e Paulo. Sinhazinha correu
para Maurícia, abraçou-a e cobriu-lhe as faces de beijos. Havia alguns meses que a não vida, e
estava muito saudosa”
562
.
– Há quanto tempo não nos vemos, D. Maucia! – disse Sinhazinha. E como está mudada a
senhora!
– Acha-me mudada? – Há de ser assim mesmo. Porque não veio ao casamento de Virgínia? –
perguntou-lhe.
– Não pude, mas aqui estou para lhe dar os parabéns e mil beijos.
E as duas moças abraçaram-se e beijaram-se graciosa e ternamente
563
.
Quando grávida, Maria Benedita, personagem do romance Quincas Borba, de
Machado de Assis, retirara-se da corte mas quando retornou, foi calorosamente recebida,
especialmente por sua amiga D. Fernanda:
D. Fernanda não cabia em si de contente. As cartas de Maria Benedita os davam por felizes; ela
não pôde ler desde logo nos olhos e nas maneiras do casal a confirmação do escrito. Pareciam
satisfeitos. Maria Benedita não reteve as lágrimas, quando abraçou a amiga, nem esta as suas, e
ambas se apertaram como duas irmãs de sangue
564
.
Poderíamos ainda mencionar a amizade desvairada de Leocádia pela Rita Baiana
565
,
descrita nas páginas de O cortiço, de Aluísio Azevedo, ou ainda os beijos – ainda inocentes –
depositados pela cocote Leónie nos lábios de Pombinha
566
, mas uma das cenas mais sublimes
legada quanto à liberdade e à amizade feminina reside no romance Senhora, de José de
Alencar. A trama se encerra com uma carta enviada por uma grande leitora” do autor, Eliza
do Vale, à sua amiga Paula Adelaide, com a seguinte introdução:
Passamos ontem a manhã na cascata de Itamarati. Luísa mostrou-nos tuas cartas, que lemos à
sombra dos velhos ipês, copados de flores, e ao rugido da torrente nas fragas do rochedo.
O sítio convidava ao devaneio. Por isso, e tamm pela novidade, o assunto predileto da conversa
foi tua opinião acerca do último romance.
Discutimos em palramento as tuas observações e não sei porque que incumbiram-me da resposta.
Talvez por ser a única da roda, que ainda não conhecia o livro
567
.
560
Diva. 1993, p. 52.
561
Ressurreição. 1938, p. 96-97.
562
O sacrifício. 1969, p. 109.
563
O sacrifício. 1969, p. 109-10.
564
Quincas Borba. 1997, p. 149.
565
O cortiço. 1997, p. 50.
566
O cortiço. 1997, p. 113.
567
Senhora. 1997, p. 173.
184
Moldados por nossas patcias e igualmente tangidos pelos novos ares, os homens do
século dezenove também nos exibirão uma sensibilidade muito distinta da legada pelos anos
coloniais. Vejamos agora seu semblante.
A ultra-sensibilidade masculina: amizade infinita e pranto desvairado
Ainda que nossos dicos tenham dedicado poucas páginas ao estudo do sexo
masculino, poderíamos traçar seu perfil conforme os moldes que tomamos para a avaliação
das mulheres mas nos parece mais promissor, visando delimitar alguns traços da
sensibilidade brasileira oitocentista, investigar duas características dos homens “modernos”
muito recorrentes na literatura do século XIX – a amizade e o pranto. As lágrimas das
personagens femininas de nossos romances poderiam certamente encher um oceano sem
causar qualquer espanto, mas o inusitado pranto masculino corresponderia já a uma
sensibilidade muito distinta da herdada dos tempos coloniais inimaginável em um senhor
colonial. Quanto à amizade, ainda que Joaquim Manuel de Macedo nos afirme, em seu
romance histórico As mulheres de mantilha, que nos anos da colônia ela era muito mais
valorosa do que no presente, no século dezenove, portanto, podemos imaginar que tanto pelas
condições de sociabilidade do período quanto pelas dimensões espirituais que revestiam as
duas épocas, suas práticas guardavam caracteres distintos dos apresentados por nossos
patrícios oitocentistas.
vimos o pesar legado pela morte de um filho. Gilberto Freyre nos relatará que os
senhores de engenho mandavam matar seus próprios filhos:
eram senhores, os das casas-grandes, que mandavam matar os próprios filhos. Um desses
patriarcas, Pedro Vieira, já avô, por descobrir que o filho mantinha relações com a mucama de sua
predileção, mandou matá-lo pelo irmão mais velho
568
.
Em outra passagem:
foi um eclesiástico que avisou a Dona Verônica Dias Leite, matrona paulista do século XVII, que a
filha estivera por algum tempo à janela. Crime horrendo de que resultou – conta a tradição – a mãe
ter mandado matar a filha. Antônio de Oliveira Leitão, patriarca às direitas, este o precisou do
enredo de ninguém nem de frade nem de escravo: tendo visto tremular no fundo do quintal da
casa um lenço que a filha tinha levado para enxugar ao sol, maldou logo que era senha de algum
don-juan a lhe manchar a honra e o teve dúvida sacou de uma faca de ponta e com ela
atravessou o peito da moça
569
.
568
Casa grande & senzala. 2001, p. 53.
569
Casa grande & senzala. 2001, p. 475.
185
Muito provavelmente tais casos foram raros, mas não deixaram de despertar a atenção
do célebre sociólogo. Destituídos de seu poder pela doce submissão das mulheres
“modernas”, que apenas escondiam assim suas estratégias de dominação íntima e familiar, e
tocados pelos novos ares do romantismo, os homens do século dezenove foram muito
sensíveis ou foram representados como tal. Talvez o encontro de Maurícia com suas amigas
narrado por Franklin Távora páginas atrás guarde algo de comovente mas pouco tocante em
relação à certas manifestações das amizades masculinas.
A amizade entre Gonçalves de Magalhães e Porto Alegre foi uma das mais duradouras
e apreciáveis do período. “Acabo de receber a tua carta de 5 do corrente e recebi também em
devido tempo a do mês passado, que ficou sem resposta, porque, deixando isso de um dia para
outro, passou-me afinal a lembraa, apesar de me lembrar de ti todos os dias”
570
, escreveria
Magalhães em abril de 1875. vimos que Gonçalves Dias se casara graças à influência do
autor do Colombo; Magalhães foi padrinho de Paulina Faulhaber, filha de Porto Alegre, e este
também apadrinhou um dos filhos do autor dos Suspiros poéticos e saudades, visto que era
tratado por compadre. “Se vieres a Roma, o que estimarei muito, dirige-te diretamente para
esta casa, porque quero fartar-me de te ver de manhã até a noite”
571
. Dispomos apenas das
cartas escritas por Magalhães, mas ao que tudo indica eles se comunicaram mensalmente até o
final de 1877, quando Porto Alegre provavelmente sofreu um derrame e perdeu os
movimentos e a fala
572
. “Sinto o mais que é possível o estado lastimoso a que chegou o meu
bom amigo Santo-Angelo. Os olhos se me enchem de grimas quando nele penso”,
responderia Magalhães à esposa do amigo, em janeiro de 1878. Paulo Porto-Alegre, filho do
poeta, assumiu a comunicação entre as famílias desde então, buscando manter os laços que as
uniam.
Em 1835 Magalhães dedicou ao amigo Francisco de Sales Torres Homem o poema
Uma noite no Coliseu, onde narra as visitas noturnas dos dois mancebos aos destroços de
Roma. Certa noite, no entanto, eles foram assaltados por três vultos negros e, em perigo, “só
pelo Amigo cada qual temia”
573
. O poema Em resposta ao meu amigo, contudo, dedicado à
Porto Alegre, também datado de 1835, nos legaria um registro muito mais significativo:
570
Cartas de Gonçalves de Magalhães a Manuel de Araújo Porto Alegre (II). 1934, p. 488.
571
Cartas de Gonçalves de Magalhães a Manuel de Araújo Porto Alegre (II). 1934, p. 491.
572
Segundo o médico da família do autor, em novembro de 1877 ele teria sido acometido de “hemiplegia direita,
paralisia da língua e outros sintomas de congestão e hemorragias capilares no rebro”. Cartas de Gonçalves de
Magalhães a Manuel de Araújo Porto Alegre (III). 1934, p. 372, nota n. 01.
573
Suspiros poéticos e saudades. 1999, p. 246.
186
Sempre a teu lado
Vivi contente;
A ti ligado,
Uma vontade
Só nos unia;
Vera amizade
Nos apertava.
Se triste estava,
Tu me alegravas;
Em ti vivia,
Contigo ria.
Se me dizias:
Sou teu amigo,
Eu como um eco
Te repetia.
Era um exemplo
Nossa união.
Mas quis a sorte,
Sempre inimiga,
Atormentar-nos
E separar-nos
Por algum tempo;
Desde esse instante
A dor pintou-se
No meu semblante;
Mas só a morte
Dará um corte
Ao laço santo,
Que nos prendeu;
Se poder tanto
O justo céu
Lhe concedeu.
Vai, meu suspiro,
Vai ver o amigo,
Que te deseja
No seu retiro.
A Roma adeja,
Deixa-a, e te inclina
À Palestrina;
Chega ao abrigo
Onde ele pousa;
Aí repousa,
Suspiro meu
574
.
Outra amizade simplesmente inimaginável no período colonial foi estabelecida pelo
narrador do romance O Ateneu com o jovem Sanches, apresentada por Raul Pompéia.
Vizinhos ao dormitório, eu, deitado, esperava que ele dormisse para vê-lo dormir e acordava mais
cedo para-lo acordar. Tudo que nos pertencia, era comum. Eu por mim positivamente adorava-o
e o julgava perfeito. Era elegante, destro, trabalhador, generoso. Eu admirava-o, desde o coração,
até à cor da pele e à correção das formas. Nadava como as toninhas. A água azul fugia-lhe diante
em marulho, ou subia-lhe aos ombros banhando de um lustre de marfim polido a brancura do
corpo. Dizia as lições com calma, dificilmente às vezes, embaraçado por aspirações ansiosas de
asfixia. Eu mais o prezava nos acessos doentios da angústia. Sonhava que ele tinha morrido, que
deixara bruscamente o Ateneu; o sonho despertava-me em susto, e eu, com alívio, avistava-o
tranqüilo, na cama próxima, uma das mãos sob a face, compassando a respiração ciciante. No
recreio, éramos inseparáveis, complementares como duas condições recíprocas de existência. Eu
574
Suspiros poéticos e saudades. 1999, p. 280-81.
187
lamentava que uma ocorrência terrível não viesse de qualquer modo ameaçar o amigo, para fazer
valer a coragem do sacrifício, trocar-me por ele no perigo, perder-me por uma pessoa de quem
nada absolutamente desejava. Vinham-me reminiscências dos exemplos históricos de amizade; a
comparação pagavam bem
575
.
Para além de certos traços “mórbidos”, típicos à escrita e, talvez, ao temperamento do
narrador, senão do autor, vemos que a amizade entre Sanches e ele era infinita, muito distinta
da que estabelecera com outros rapazes, como Egbert, de quem ele apenas fora amigo”.
Sem mais razões, que a simpatia não se argumenta”. Faziam as lições juntos, conversavam
muito, mas o narrador experimentava a necessidade deleitosa da dedicação” que de
ser dedicada ao Sanches.
No campo dos exercícios, à tarde, passeávamos juntos, voltas sem fim, em palestra sem assunto,
por frases soltas, estações de borboletas sobre as doçuras de um bem-estar mútuo, inexprimível.
Falávamos baixo, bondosamente, como temendo espantar com a entonação mais alta, mais áspera,
o favor de um gênio benigno que estendia sobre nós a amplidão invisível das asas. Amor unus erat.
Entravamos pelo gramal. Como ia longe o burburinho da alegria vulgar dos companheiros! Nós
dois sós! Sentávamo-nos à relva. Eu descansando a cabeça no joelho dele, ou ele aos meus.
Calados, arrancávamos espiguilhas à grama. O prado era imenso, os extremos escapavam na
primeira solução de crepúsculo. Olhávamos para cima, para o céu. Que céus de transparência e de
luz! Ao alto, ao alto, demorava-se ainda, em cauda de ouro, uma lembrança do sol
576
.
Sabemos pelos registros de Eloy Pontes que Raul Pompéia tinha muitas dificuldades
para se relacionar com as pessoas, o que o biógrafo atribuía à constituição de sua família o
que, se pode o significar muito, nos indica a validade de certas representações ainda em
1935.
O Dr. Antonio Pompéia, tinha temperamento de misantropo, que os métodos fechados das famílias
antigas agravaram. Sua conduta, em casa, sempre fora carrancuda. Nunca admitiu, por exemplo,
que as filhas pusessem o fora do portão desacompanhadas da vigilância materna ou chegassem
às janelas para olhar a rua por curiosidade. Os filhos cresceram nessa atmosfera de recato
excessivo, de quase segredo familiar. D. Rosa Pompéia fortalecia o sistema retrógrado do marido,
sem prejzo dos carinhos que opulentavam a intimidade da família
577
.
“Teve sempre amigos”, retomaria Eloy Pontes em outra passagem. “Nunca teve
íntimos”
578
. O que não indica que ele não conhecia ou que não podia imaginar as venturas da
amizade, como observamos. Nas páginas do romance Ressurreição, de Machado de Assis,
encontraremos Félix e Menezes andando de braços dados
579
, e nas Memórias póstumas de
Brás Cubas, veremos o narrador lançar os braços ao pescoço de Quincas Borba dizendo:
“sublimes é tu”, após ouvir sua exposição acerca do Humanitismo, um novo “sistema
filoficoem fase de gestação
580
. A amizade seria uma ampla necessidade, sempre presente
575
O Ateneu. 1997, p. 114.
576
O Ateneu. 1997, p. 114-15.
577
A vida inquieta de Raul Pompéia. 1935, p. 14.
578
A vida inquieta de Raul Pompéia. 1935, p. 160.
579
Ressurreição. 1938, p. 25.
580
Memórias póstumas de Brás Cubas. 1997, p. 231.
188
nos momentos de solidão. Atribulado por inúmeros problemas, e principalmente desanimado
por diversas críticas à suas canções, na janela de sua casa, Ricardo Coração dos Outros
refletia sobre sua existência e relembrava sua infância, quando era querido por todos.
Por que então aquele encarniçamento, aquele ódio contra ele ele que trouxera para esta terra de
estrangeiros a alma, o suco, a substância do país!
E as lágrimas lhe saltaram quentes dos olhos afora. Olhou um pouco as montanhas, farejou o mar
longe... Erra bela a terra, era linda, era majestosa, mas parecia ingrata e áspera no seu granito
onipresente que se fazia negro e mau quando não era amaciado pela verdura das árvores.
E ele estava ali só, com sua glória e o seu tormento, sem amor, sem confidente, sem amigo,
como um deus ou como um apóstolo em terra ingrata que lhe não quer ouvir a boa nova.
Sofria em não ter um peito amado, amigo em que derramasse aquelas lágrimas que iam cair no
solo indiferente
581
.
Na Ilha das Enxadas, onde cumpria funções burocráticas, o ufanista Policarpo
Quaresma passava longas horas entregue à si mesmo, “e então se lamentava por estar sozinho,
por não ter um companheiro com quem conversar, que lhe fizesse fugir àqueles tristes
pensamentos que o assediavam e se estavam transformando em obsessão
582
. Sensação que
também invadiu o Dr. Lins Teixeira, nas páginas de O cromo:
uma necessidade inadiável de se expandir, de falar francamente a um amigo, de arrancar o
coração, pô-lo numa salva, e, de bisturi em punho, fazer-lhe a autópsia à vista do amigo, mostrar-
lhe o estado penoso daquele músculo, chorar, pedir conselhos, pedir remédios... ele que era médico
e que descria nesse momento da sua terapêutica
583
.
Situação semelhante à de Menezes, que após concluir um inusitado romance correu à
casa de Felix. “Custou-me muito”, disse ele ao amigo, “mas era o necessário; foi agora há
pouco; corri para cá; precisava de alguém com quem desabafasse. Isto é ridículo, bem sei;
mas que queres? Eu sofro... tenho um coração miserável, e deixo-me levar por ele...”
584
. Em
outra passagem, Machado de Assis comentaria: que importa o tempo? amigos de oito
dias e indiferentes de oito anos”
585
.
É quase doçura a confidência dos pesares”
586
, escreveu Raul Pompéia, e muitos
foram aqueles que desafogaram suas mágoas no “peitodos amigos como o pintor Jacques
Despois, em visita ao Dr. Lins Teixeira:
O pintor abanou a cabeça tristemente, e malgrado seu, as lágrimas desceram-lhe das lpebras
numa queda súbita.
581
BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 1997, p. 80.
582
BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 1997, p. 163.
583
CARVALHO, Horácio de. O cromo. 1888, p. 192.
584
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Ressurreição. 1938, p. 57.
585
Ressurreição. 1938, p. 27.
586
Obras – vol. III (Contos). 1981, p. 176-77.
189
Ia envergonhar-se do fato, quando o médico o abraçou, pedindo pelo amor de Deus que o se
envergonhasse de um sentimento tão nobre! O doutor também ficara com os seus olhos úmidos de
lágrimas
587
.
Gonçalves Dias, romântico de primeira hora, também tinha uma sensibilidade
apuradíssima. Como observamos rapidamente, ele se apaixonara desesperadamente por uma
moça chamada Ana Amélia, cuja mão seria recusada pelos pais da donzela por conta da cor
do poeta. Eis sua descrição do momento em que tomou conhecimento da decisão fatal,
narrada ao amigo Antonio Henriques Leal em uma carta:
Tinha essa carta contra o peito, ou a apertava contra mim; ela queimava-me, e eu pude conter-me,
porque essa prolongação de martírio se me assemelhava a um prazer. Ali tinha o meu futuro, as
minhas esperanças, a minha condenação, ou o prêmio que Deus quisesse dar-me de uma juventude
trabalhada e infeliz, e de uma vida sem merecimento talvez, mas não sem grimas nem sem
coragem.
Então realmente começaria a vida para mim; e um momento, um sopro de felicidade celeste me
teria feito esquecer todos os meus pesares e ainda aqueles a que tu não tens recusado lágrimas!
.............................................................. retirei-me a meu quarto. Como o sentenciado que procura
espaçar a leitura de sua sentença; ou porque me adivinhasse o coração, ou porque o receio me
tirasse a coragem, despi-me lentamente, li primeiro todas as mais cartas e ainda hesitei chegando
àquela.
Li-a enfim! tornei a lê-la quatro e mil vezes, e daquela leitura me ficou a idéia da repulsa, a
consciência de quanto eu a amava pelo que sofria, da grandeza da perda pelo sentimento dela.
Lágrimas e soluços me revelaram toda a intensidade do meu amor e da minha infelicidade; tive de
conter os meus soluços, de abafar a minha dor para que mos não conhecessem. Estava fora de
mim, chorava e delirava e repetia comigo palavras incoerentes, absurdas, expressões amargas ou
carinhosas de quanto eu sentia, como se dessa forma pudesse adquirir a mentida seguridade com
que vivera e revocara a imagem de meus sonhos, e colocá-la de novo, como dantes, em frente da
minh’alma para que continuasse a presidir a todos os atos da minha vida íntima, à elaboração de
todos os meus projetos, a todas as criações de uma glória, se tal nome lhe cabe, solitária e
estéril!...
588
Em 1855 ele a reencontrou casualmente em Lisboa, completamente outra, pobre,
abatida, com as feições desfeitas e trocadas as galas dos tempos felizes em rigoroso e
profundo luto!”
589
. Toda a vertigem de sua passada ventura voltou e as chamas da paixão o
incendiaram novamente. Completamente desesperado ele voltou para casa e coms a poesia
Ainda uma vez adeus, que deixou seu amigo Manuel Odorico Mendes fora de si. Quando se
encontraram em Paris, algum tempo depois, Mendes atirou-se nos braços do poeta,
declarando-lhe que nunca poesia alguma lhe fizera derramar mais doridas e sinceras lágrimas do
que essa, sendo que nisso resumia o maior e melhor elogio que dela lhe podia fazer. É que almas
assim privilegiadas, e afinadas pelo sentimento do belo, adivinham e descobrem o que é dor real, e
que irrompe involuntária do peito de quem a sofre!
590
Exageros de um amigo sentimental, podem pensar os leitores, ou ainda do biógrafo,
arrebatado como um romântico da primeira geração... Registros de certas sensibilidades
587
CARVALHO, Horácio. O cromo. 1888, p. 202-03.
588
Citado por Antonio Henriques Leal. Antonio Gonçalves Dias. 1875, p. 105-06.
589
Citado por Antonio Henriques Leal. Antonio Gonçalves Dias. 1875, p. 114.
590
Citado por Antonio Henriques Leal. Antonio Gonçalves Dias. 1875, p. 114-15.
190
masculinas da época, de qualquer modo, inquestionáveis em si, para além de quaisquer
dúvidas contemporâneas. No poema À minha musa, Gonçalves Dias nos falaria sobre a
importância das lágrimas:
O azul do céu, nem da lua
A doce luz refletida,
Nem o mar beijando a praia,
Nem a terra adormecida,
Nem meigos sons, nem perfumes,
Nem a brisa mal sentida,
Nem quanto agrada e deleita,
Nem quanto embeleza a vida;
Nada é melhor que este pranto
Em silêncio gotejado,
Meigo e doce, e pouco a pouco
Do coração despegado;
Não soro de fel, mas santo
Frescor em peito chagado;
Não espremido entre dores,
Mas quase em prazer coado!
591
“Como é doce chorar”, exclamaria o Trovador, de A nebulosa, longa composição de
Joaquim Manuel de Macedo:
Do homem a face lágrimas não mancham;
Mil vezes antes se afogando em pranto
Da dor o coração acalma o fogo
592
.
No poema A dor, que abre a compilação dos Cantos fúnebres, Gonçalves de
Magalhães registraria:
Ah! quem não chora?... Nunca penas faltam
Da dor aos filhos, – que a chorar já nascem
Neste vale da morte! – E que ventura
Não é o coração dilacerado
Ver simpática lágrima nos olhos
De piedoso amigo? e num piedoso amplexo
Unir-se à sua, no encontro das faces?
Que conforto não é a voz ouvir-lhe,
Bem triste, e assim mais grata; – ou no silêncio
Do seu retiro, meditar sozinho,
E repetir então lutuosos carmes,
Que sobre campos, ou da noite às sombras,
Algum vate exala, – lembrando às turbas
A Eternidade e Deus?
593
A amizade foi um dos sentimentos mais caros ao poeta Gonçalves Dias, entoada no
poema Quadras da minha vida:
591
Poesias. 1926, vol. I, p. 84.
592
A nebulosa. S/d, p. 18.
593
Cantos fúnebres. 1864, p. 03-04.
191
Amizade! união, virtude, encanto –
Consórcio do querer, de força e d’alma
Dos grandes sentimentos cá da terra
Talvez o mais recíproco, o mais fundo!
Quem há que diga: – eu sou feliz! – se acaso
Um amigo lhe falta? um doce amigo
Que sinta o seu prazer como ele o sente!
Que sofra a sua dor como ele a sofre?
594
“Assim compreendia Gonçalves Dias a amizade”, comentaria Antonio Henriques Leal,
e a praticava. De todos quantos amava nenhum se lhe antepunha no entranhado afeto ao sr. dr.
Alexandre Teófilo de Carvalho Leal, que lh’o retribuía por igual. Eram a encarnação viva do tão
conhecido e falado, mas pouco imitado mito de Castor e Pollux ou do de Orestes e Pilades.
Chamavam-se irmãos e o eram no que há de puro e intenso nesta afeição, de verdadeiro e terno e
santo na acepção mais sublimada e lata d’este doce termo
595
.
Além disso, nossos patrícios oitocentistas não viam qualquer inconveniente em
admirar a beleza de outros homens, como o parasita Botelho, figurado em O cortiço, que não
acobertava as infidelidades do jovem Henrique com D. Estela como lhe aconselhava uma
vida sexualmente dissoluta unicamente porque o achava “bonito
596
. No romance Quincas
Borba, encontraremos certo cocheiro que uma vez conduziu o galante Carlos Maria e que,
interpelado por Rubião, descreveu-o nos seguintes modos: “era da Rua dos Inválidos, bonito,
um moço de bigodes e olhos grandes, muito grandes. Oh! eu também se fosse mulher, era
capaz de apaixonar-me por ele...
597
. Por esse período, Rubião desconfiava que o garboso
rapaz estivesse envolvido com Sofia Palha, por quem estava apaixonado, mas ao descobrir
que ele se casaria em breve com outra moça, Maria Benedita, ele chegou a admitir a beleza do
futuro marido: “não é feio rapaz, é muito mais bonito do que ela”
598
.
Sinais de uma sensibilidade bem outra, desenvolvida com o avanço do século,
embalada pelo romantismo e construída por médicos e literatos, entre outras classes
intelectuais. É certo que por volta da década de 70 muitos passariam a “combater” essa
sensibilidade desvairada, origem de muitos males, mas como temos observado, tanto a
sensibilidade como muitas construções românticas persistiriam ainda por muito tempo. Se
muitos homens buscavam a companhia de um amigo para escapar à solidão ou para se
desafogarem de suas lágrimas, muitos outros preferiam a solidão, quando poderiam se
encontrar com si próprios. Quando fosse possível, estes poderiam se refugiar nas montanhas
da Tijuca
599
, ou ainda flanar por bairros “excêntricos e desertos”, onde ninguém os pudesse
594
Citado por Antonio Henriques Leal. Antônio Gonçalves Dias: notícia de sua vida e obra. 1875, p. 210.
595
Antônio Gonçalves Dias: notícia de sua vida e obra. 1875, p. 210-11.
596
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 1997, p. 29.
597
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Quincas Borba. 1997, p. 87.
598
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Quincas Borba. 1997, p. 109.
599
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias póstumas de Brás Cubas. 1997, p. 69-70.
192
encontrar
600
, como nos mostrou Brás Cubas – mas no meio da vida social da corte tais atitudes
seriam muitas vezes interpretadas como um sinal de incivilidade. Assim, nossos patrícios
encontravam em janelas e em varandas a possibilidade de se furtarem à sociedade sem
quebrar o protocolo.
Janelas e varandas: refúgios de meditação
Os progressos das dimensões materiais do Rio de Janeiro, para o dizer do Brasil, se
davam na mesma medida que as transformações da vida social e sentimental de nossos
patrícios, em um processo de recíproca inflncia, evidentemente, e é hora de remediar a
pouca atenção que a eles concedemos ao longo deste ensaio. Os progressos” da culinária, da
indumentária e da decoração de ambientes que observaremos no século XIX, por exemplo,
demandavam condições inexistentes na colônia e denotavam ao mesmo tempo uma
sofisticação existencial própria à complexificação da sociedade oitocentista. Como notou
Leila Algranti, as atividades cotidianas de nossos patrícios coloniais estavam ligada à luz
solar:
levanta-se com o nascer do sol, descansava-se quando ele estava a pino e dormia-se quando ele se
punha. As velas de sebo, por economia, apagavam-se cedo e impediam uma convivência maior
entre os membros da família
601
.
Os animados serões e as inúmeras atividades sociais noturnas do século XIX,
responsáveis pela necessidade do desenvolvimento de um trato social mais elaborado, assim,
se tornariam possíveis com as transformações do sistema de iluminação, substitdo
primeiramente por candeeiros de querosene e mais tarde pela iluminação à gás, exigindo ao
mesmo tempo toda uma nova organização material envolvendo a culinária (o que servir), a
indumentária (o que vestir) e a decoração dos ambiente (como receber, agradar e, por que o
dizer, se ostentar aos visitantes), sem falar na movimentação de coches, da requisição de aulas
de canto e do aprendizado de diversos instrumentos, entre muitos outros predicados – e
demonstrando já um novo padrão de “civilidade”, muito mais “sociável”.
Talvez possamos tomar o piano como um índice dessa “correspondência” entre os
progressos” materiais oitocentistas e a vida sentimental de nossos antepassados apontando,
ao mesmo tempo, a eficácia das representações legadas pelos romancistas do período.
Segundo Luiz Felipe de Alencastro, os pianos foram introduzidos no cotidiano brasileiro à
600
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias póstumas de Brás Cubas. 1997, p. 54.
601
Famílias e vida doméstica. 1997, p. 115.
193
partir da metade do século XIX, graças aos capitais antes investidos na compra de escravos
proibida” justamente em 1850. Inúmeros bens de consumo passaram a ser importados da
Europa – figurando de modo radiante entre todos, como um verdadeiro fetiche, o piano.
De alto valor agregado e de imediato efeito ostentatório as duas características que fazem desde
então a felicidade respectiva dos importadores e dos consumidores brasileiros de renda
concentrada , o piano apresentava-se como o objeto de desejo dos lares patriarcais. Comprando
um piano, as famílias introduziam um móvel aristocrático no meio de um mobiliário doméstico
incaracterístico e inauguravam o salão: um espaço privado de sociabilidade que tornará visível,
para observadores selecionados, a representação da vida familiar. Saraus, bailes e serões musicais
tomavam um novo ritmo
602
.
Para além de suas dimensões ostentatórias e do colorido que imprimiu sobre a vida
social dos lares brasileiros, os pianos passariam propriamente a integrar a vida psíquica de
nossos patrícios, especialmente do sexo feminino. Inúmeras personagens apresentadas
durante a década de 70, nascidas em geral durante a década de 50 e criadas, portanto, desde
pequenas na presea do instrumento, derramarão sobre as teclas dos pianos sua sensibilidade
de um modo nunca registrado até então. Ao sair de um baile, a mimosa Carlota, de Cinco
minutos, publicado por Alencar, apanhou uma “pequena constipação”, de que aliás não fez
caso. “Minha mãe teimava que eu estava doente, e eu achava-me apenas um pouco pálida e
sentia às vezes um ligeiro calafrio, que eu curava sentando-me ao piano e tocando alguma
música de bravura”
603
uma ligação ainda bastante simples, mesmo porque datada de 1856.
Em Senhora, de 1875, ele diria que o piano “é para as senhoras como o charuto para os
homens, um amigo de todas as horas, um companheiro cil, e um confidente sempre
atento”
604
. Quando Aurélia Camargo tocava, tocava por inspiração, e o canto eram as
emoções de sua alma que ressoavam espontaneamente como os harpejos da brisa no seio da
floresta”
605
. Dona Flor, personagem do romance Um noivo à duas noivas, lançado por
Macedo em 1872, temerosa de uma caçada de tigres” em que seu amado estava envolvido,
o conseguia se lançar ao instrumento
606
. Ao retornar de um baile, o cotidiano de Esther,
figurada em O cromo, publicado por Horácio de Carvalho em 1888, sofreu inúmeras
alterações: “fugia de todos; andava sempre só. E, no piano, as músicas que tocava pareciam
feitas para defunto
607
. D. Estela, personagem de O cortiço, lançado em 1890 por Aluísio
602
Vida privada e ordem privada no Império. 1997, p. 47.
603
Cinco minutos. 1991, p. 36.
604
Senhora. 1997, p. 99.
605
Senhora. 1997, p. 130.
606
Um noivo à duas noivas. S/d, vol. I, p. 262.
607
O cromo. 1888, p. 88.
194
Azevedo, deixava de se dedicar ao instrumento quando seu escravo de estimação estava
ausente
608
.
Raul Pomia, com sua habitual mordacidade, nos apresentará um caso bastante
curioso no conto Caricaturas reais: um vizinho original, envolvendo a filha do vizinho do
narrador, que também tocava piano.
Tocava piano não exprime bem. A donzela repetia, rias vezes ao dia, repisava, remoia, uma
certa e determinada música, invariável, pertinaz, uma espécie de balada, lânguida, desafinada,
medonha!
O piano era um memovel tacho, de não sei que fabricante, dialico. Produzia sons novos,
inauditos, fenomenais, que davam idéia de fabuloso armazém de ferros velhos em revolução,
harmonias assombrosas, não sonhadas por Wagner. Por um efeito incrível de contágio, parece que
a enfermidade dos donos se comunicara ao piano. Eu era capaz de jurar que aquele piano estava
tísico, tão perfeitamente ético como o magro vizinho. Havia notas tossidas, havia escalas
escarradas... Ninguém imagina!
Deste monte de horrores, o pianista tinha a habilidade de extrair a sua música, a tal peça eterna e
desesperadora.
Era um prodígio desafinado de doçuras, enxame de moscas sonoras zumbindo na clave de sobre
pieguices requebradas e sentidas da clave de sol, como sobre compotas. Via-se na música da filha,
o gênio do pai. Estava presente todo o alfenim da magra sentimentalidade dos vates da antiga
escola
609
.
Para bonança do narrador, um belo dia o piano se calou... A casa do vizinho estava
toda fechada, com as cortinas cerradas... Mas eis que quando todos já se davam por salvos a
melodia ressurge – abafada, desta vez, pelas cortinas.
Nunca me pareceram tão profundamente irritantes aqueles sons”, nos conta ele. “As
notas não cantavam mais nem suspiravam estertoravam. Era como uma série arquejante de
derradeiros suspiros, ao longe. Uma agonia longínqua e interminável”. Num instante,
contudo, “a agonia acabou. A música subiu, num crescendo de círio expirante e morreu de
chofre, como se lhe houvessem faltado as cordas do piano”. No dia seguinte ele descobriria o
óbvio: seu vizinho caíra de cama e, adivinhando a proximidade da morte, pedira à filha que
embalasse seus últimos instantes com a melodia querida
610
.
Maurícia, a protagonista do romance O sacrifício, publicado por Franklin Távora em
1879, foi aquela que teve sua sensibilidade afinada” ao piano com maior precisão. Com a
partida de seu amado Ângelo, ela foi tomada por uma imensa e permanente melancolia que
obscureceu a luz de sua vida. “Poucas vezes, descia à sala, onde costumava-se reunir-se D.
Carolina, Virgínia e outras senhoras. Deu em tocar e cantar músicas tristes. Perdia a noite em
608
O cortiço. 1997, p. 26.
609
Obras – vol. III (Contos). 1981, p. 168.
610
Obras – vol. III (Contos). 1981, p. 169.
195
grandes abstrações”
611
. Ao saber da morte de seu ex-marido, no entanto, o responsável pelo
afastamento de seu amado e razão suprema de sua desventura, sua alma se libertou das trevas
que lhe inundavam e ela voltou a ser feliz. “Quando pela primeira vez depois da lúgubre
notícia, ela s as mãos ao piano para tocar, foi uma música de escolhidas harmonias, que
rebentou, em notas animadas, daquele gigante cofre de suas predileções”
612
.
Encontraremos nas janelas e varandas oitocentistas mais uma correlação entre o
mundo material e a sensibilidade de nossos patrícios. Seguindo os passos de Jurandir Costa,
comentamos na abertura deste ensaio que “os membros da família antiga eram destituídos
daquilo que poderíamos chamar modernamente de ‘profundidade psicológica’”
613
, pouco
dados à introspecção pessoal visto que permanentemente requisitados pelo mundo exterior.
Se as representações acerca da vida social durante o século XIX nos legam um panorama
muito mais vasto e colorido do que o apresentado na época colonial, registrarão também uma
via de fuga requisitada pela necessidade da reflexão – as janelas e varandas.
Inúmeros são os relatos acerca da correlão entre melancolia e isolamento, mas em
meio à agitada vida social da corte, ou mais propriamente, em festas, saraus e reuniões de
todo tipo, nossos patrícios recorriam à estas regiões afastadas do burburinho animado para se
entregarem à profundas reflexões – índice de uma nova sensibilidade.
Foi por se entregar à doces enleios que o narrador de Cinco minutos não notou a
partida do vulto com que se encontrara em um ônibus, e foi por se extasiar com as belezas do
Rio de Janeiro que narrador de Amância cruzou ruas que não conhecia e encontrou a pobre
moça. Brás Cubas nos conta que quando o conseguia dormir, o bater de um pêndulo o
atormentava à noite toda, indicando que de toque em toque ele perdia um instante de vida
mas após beijar Virlia pela primeira vez, inebriado pela felicidade, mesmo sem conseguir
dormir o bater no pêndulo não o incomodou.
As fantasias tumultuavam-me cá dentro, vinham umas sobre as outras, à semelhança de devotas
que se abalroam para ver o anjo-cantor das procissões. Não ouvia os instantes perdidos, mas os
minutos ganham. De certo tempo em diante não ouvi coisa nenhuma, porque o meu pensamento,
ardiloso e traquinas, saltou pela janela fora e bateu as asas na direção da casa de Virgília. Aí achou
ao peitoril de uma janela o pensamento de Virgília, saudaram-se e ficaram de palestra. Nós a
rolarmos na cama, talvez com frio, necessitados de repouso, e os dois vadios ali postos, a
repetirem o velho diálogo de Adão e Eva
614
.
611
O sacrifício. 1969, p. 140.
612
O sacrifício. 1969, p. 141.
613
Ordem médica e norma familiar. 1983, p. 96.
614
Memórias póstumas de Brás Cubas. 1997, p. 110
196
Em frente à sua casa, irritada por uma série de reflexões, Sofia Palha foi
cumprimentada por “um rapaz alto” que passava por ali.
Sofia cortejou-o também um pouco espantada da pessoa e da ação.
– Quem é este sujeito? pensou ela.
E entrou a cogitar donde é que o conhecia, porque, em verdade, a cara não lhe era estranha, nem as
maneiras, nem os olhos plácidos e grandes. Onde é que o teria visto? Percorreu rias casas, sem
acertar com a verdadeira; afinal pensou em certo baile, no mês anterior, em casa de um
advogado que fazia anos. Era isso; viu-o , dançaram uma quadrilha, por simples
condescendência dele, que não dançava nunca; lembrava-se de lhe ter ouvido muitas palavras
agradáveis, relativamente à beleza da mulher, que, dizia ele, consistia principalmente nos olhos e
nos ombros. Os dela, como sabemos, eram magníficos. E quase não se tratou de outro assunto,
os ombros e os olhos; a propósito de uns e outros contou várias anedotas sucedidas com ele,
algumas sem interesse, mas falava tão bem! e o assunto era tão dela! É verdade; lembrava-se agora
que, apenas ele a deixou, Palha veio ter com ela, sentou-se na cadeira, ao lado, e disse-lhe o nome
do rapaz, por que ela não ouvira bem à pessoa que lho apresentara: era Carlos Maria, o próprio
do almoço do nosso Rubião.
É a primeira figura do salão, disse-lhe o marido com orgulho de ver que se ocupara tanto com
ela.
– Entre os homens, explicou Sofia.
Entre as senhoras é tu, acudiu ele mirando-se no colo da mulher, e circulando depois os olhos
pela sala, com uma expressão de posse e domínio, que a mulher conhecia e que lhe fazia bem.
Quando acabou de recordar tudo, iria longe o rapaz; foi ao menos uma interrupção na série de
tédios que lhe tomavam a alma
615
.
Machado de Assis, retrataria nessa cena a passagem do tempo alongando as reflexões
justamente para representar, de modo mais fiel, a passagem do tempo, buscando externar ao
leitor a mesma sensação física de Sofia, justificando o afastamento do rapaz quando do
retorno” da moça à si. A reflexão retirava, ainda que por instantes, os indivíduos de si
mesmos, tornando-os alheios ao que se passava ao seu redor. Em sociedade isso seria muito
indelicado, ainda que recorrente, dadas as inúmeras intrigas, revoluções íntimas e decisões
vitais inerentes à festas, bailes e reuniões de todo tipo e uma possibilidade de “escape”
seriam as janelas e varandas. Em As vítimas-algozes, Macedo figurou a situação de Frederico,
que após “flagrar” sua pretendida em doce enleio com outro
foi acelerado abrigar-se ao recanto de uma janela, agarrado a cujo parapeito experimentou e sofreu
em convulsivo tremor, a reação violentamente demorada dos diversos afetos que tempesteavam em
seu ânimo
616
.
As descobrir que Aurélia Camargo se casara com ele unicamente por um capricho,
Seixas “parou um instante a contemplar a doce palidez da natureza. Essa calma suave da noite
penetrou-o. Relaxaram-se-lhe as fibras da alma”.
Apoiando a fronte à ombreira da janela, deixou cair as lágrimas que lhe assoberbavam o seio
617
.
615
Quincas Borba. 1997, p. 57.
616
As vítimas-algozes. 1991, p. 227.
617
ALENCAR, José de. Senhora. 1997, p. 93.
197
Em outro momento, em uma festa na casa de Aurélia, ele buscaria a paz de uma
varanda para se entregar às reflexões que seu espírito exigia.
Por meio da noite, a moça ao atravessar a sala quando voltava de despedir-se de uma senhora, viu
Seixas recostado a uma janela pela parte de fora.
A pretexto de fumar, o mo tinha saído ao jardim; e para de todo não seqüestrar-se da sociedade,
tomara aquela posição da qual parecia acompanhar com a vista o que se fazia na sala; mas era
como se não ali não estivesse pela preocupação que nesse momento o reconcentrava.
Essa primeira pausa que lhe deixavam os deveres da sociedade depois da entrada de Aurélia na
sala, seu pensamento a aproveitou para bem compenetrar-se dos fatos que se acabavam de passar e
aos quais buscava uma causa ou explicação
618
.
Pontos em que podiam se isolar dos demais ou simplesmente descansar um pouco, as
varandas e sacadas também abrigavam aqueles que desejavam fumar grande recurso contra
a melancolia no ideário romântico, como sabemos. Alencar nos indicou há pouco que o
charuto seria “um amigo de todas as horas”, um “confidente sempre atento
619
, e como alento
aos tormentos do amigo Menezes, Félix diria: “fuma. observei que o fumo impede as
grimas, e ao mesmo tempo leva ao cérebro uma espécie de nevoeiro salutar”
620
nevoeiro
que impediria a reflexão, e o cogitar das angústias...
Com a complexificação da realidade, também se desenvolveriam a sensibilidade e os
romances brasileiros oitocentistas, que tomamos tanto como uma fonte de representações
como elementos constituintes e constitutivos dessa realidade. Nesse sentido, a complexidade
literária alcançada no fim do século nos exibiria uma sociedade e, principalmente, uma
complexidade existencial muito mais ampla que a legada pelo período colonial, ou mesmo
mais ampla do que a que observáramos na década de 40. Em 1875, o Dr. Luís Pereira Barreto
julgava a sociedade brasileira tão complexa quantos os grandes países europeus,
praticamente à beira de uma crise nervosa coletiva
621
- percepção que integrou o rculo
decadentista do fim do século e o coração de jovens que “de cogitar insanos nessas coisas” se
perderiam nos labirintos de suas psiques.
É certo que uma obra literária não exprime necessariamente o fulgor de sua época,
mesmo porque sempre dependente de dotes artísticos pessoais Amância, de Goalves de
Magalhães, e A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, foram publicadas no mesmo ano,
e comentamos a distância formal que as separava. Contudo, é indubitável que os romances
do fim do século são mais complexos que os publicados na alvorada do romantismo em
consonância com a sociedade e com a realidade às quais estavam ligados. Assim, os
618
ALENCAR, José de. Senhora. 1997, p. 49.
619
Senhora. 1997, p. 99.
620
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Ressurreição. 1938, p. 58.
621
Teoria das gastralgias e das nervoses em geral. 1967, p. 50.
198
brasileiros do fim do século XIX exibirão sensibilidades e características muito distintas das
observadas na sociedade colonial, como tentamos delimitar ao longo das últimas páginas.
Cabe destacar que se tomamos literatos e médicos como guias para essa investigação,
muitas outras classes intelectuais fizeram parte da cruzada civilizatória oitocentista como
buscamos apontar diversas vezes. É possível que uma pesquisa que tome por fonte as teses
jurídicas, por exemplo, aponte uma trajetória semelhante à que exibimos, senão mais refinada.
Investigamos apenas duas classes de representações acerca desse processo outras vias de
acesso ainda são possíveis.
Além disso, como deve ser evidente, conferimos especial atenção às dimensões
espirituais e sentimentais da construção da sensibilidade oitocentista, restando ainda outras
lacunas – especialmente a econômica, tomada por Aluísio Azevedo como uma mola de
propulsão avassaladora. Se no romance Filomena Borges ele esquadrinhou o desenvolvimento
das sensibilidades de suas personagens avaliando suas dimensões existenciais e sentimentais,
em O cortiço ele registrará a influência do meio econômico como estímulo – senão como uma
força estritamente coercitiva de civilização, tomando tanto a sofisticação de João Roo
quanto o desenvolvimento do próprio cortiço em vila como figuras inescapáveis à seu tempo,
impulsionadas por imperativos sociais inerentes ao progresso da sociedade brasileira.
Vale ainda ressaltar que esse processo passou por significativas transformações ao
longo dos anos, escapando ao controle dos agentes envolvidos em sua “condução”. Assim
como Arsênio julgava impossível impor um código aos temperamentos e o escapou aos
arquétipos disponíveis” no período, a construção do casamento e a instituição do amor filial
fugiram às determinações de dicos e literatos que por sua vez nem sempre estiveram em
grande harmonia. Muitas foram as contravenções literárias às normatizações médicas, e uma
das mais célebres cabe à Alencar. Seu sobrinho Araripe Júnior nos narra que:
os últimos capítulos dos Cinco minutos foram compostos sob a influência de uma discussão, em
que entrava um médico, na qual buscaram demonstrar-lhe a impossibilidade da cura de Carolina
[evidentemente um pequeno lapso de Araripe], que apesar de tudo o autor, escutando unicamente
seu capricho deu por pronta no golfo de Íschia
622
.
Inúmeros médicos, por sua vez, condenavam abertamente a leitura de romances,
responsáveis, segundo eles, pela propagação de idéias extravagantes que corromperiam os
espíritos de seus leitores como, aliás, muitos outros romancistas apontariam no fim do
século. Muitos outros, pelo contrário, não só se entregavam às belas letras como distração mas
também como fonte de iias. Ao examinar a filha do Dr. Amâncio, de O cromo, o Dr.
622
José de Alencar. 1894, p. 77, nota de rodapé.
199
Silveira lembrou-se, por associação de idéias, de um romance que havia lido Charlot
s’amuse
623
, inspirando-se em suas páginas para cuidar da moça. “Amanda, alta, clara e
magrinha, andava agora tossindo muito e apaixonada por um rapaz que lhe fazia a corte. O
dico havia dito ao pai que apressasse a coisa”
624
. Toda a demora seria prejudicial”,
garantia ele, certamente diante de um caso brando de histeria.
Enfim, parece-nos apropriado mencionar também que as conquistas oitocentistas não
foram absolutas. D. Francisca de Basto Cordeiro nos conta que, em algum ponto entre 1890 e
1891, viajou ao lado de Machado de Assis e sua esposa Carolina para Barbacena, onde em
determinada ocasião tomaram pouso em uma grande fazenda, extremamente agradável, cujo
dono não sabia como se exceder em obséquios para com os visitantes ressaltando, contudo,
que “nenhuma mulher da família sentou-se à mesa, nem apareceu à sala durante a lauta
refeição”
625
. Quase uma herança dos tempos coloniais, já na República...
Joaquim Manuel de Macedo morreu na miséria, tal como muitas vezes prefigurara em
seus sonhos de glória mas hoje, ele não ocupa uma posão de destaque em nosso panteão
literário. Nem todas as profecias podem se realizar. Sua obra, no entanto, certamente chegou
muito mais longe do que ele próprio poderia imaginar. Sua dedicação ao culto do dever não
foi em vão. A geração romântica da qual ele fez parte se entregou com afinco à cruzada
civilizatória iniciada em 1808, transformando significativamente as feições da sensibilidade
brasileira. No fim do século XIX, médicos e literatos abandonarão seus postos nesta cruzada,
desestruturando-a formalmente – mas os anos já haviam se passado. O país era outro.
623
O cromo. 1888, p. 386.
624
O cromo. 1888, p. 385-86.
625
Citado por Raimundo Magalhães Júnior. Ao redor de Machado de Assis. 1958, p. 187-88.
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