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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
Vera Cristina Sgambato Cury
RELAÇÕES ENTRE A NEUROCIÊNCIA E O ENSINO E
APRENDIZAGEM DAS ARTES PLÁSTICAS
São Paulo
2007
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ii
Vera Cristina Sgambato Cury
RELAÇÕES ENTRE A NEUROCIÊNCIA E O ENSINO E
APRENDIZAGEM DAS ARTES PLÁSTICAS
Dissertação apresentada à Área de
Concentração: Artes Plásticas da Escola
de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, como
exigência parcial para a obtenção do título
de Mestre em Artes, sob a orientação da
Profa. Dra. Regina Stela Barcelos
Machado
São Paulo
2007
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iii
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
Cury, Vera Cristina Sgambato.
Relações entre a neurociência e o ensino e aprendizagem das
artes plásticas / Vera Cristina Sgambato Cury. São Paulo: V. C. S.
Cury, 2007.
236 p.
Dissertação (Mestrado) - Escola de Comunicações e
Artes/USP, 2007.
Orientadora: Machado, Regina Stela Barcelos.
Bibliografia
1.Arte 2. Ensino e aprendizagem 3. Percepção 4. Neurociência
5. Cognição 6. Imaginação I. Machado, Regina Stela Barcelos II.
Título.
CDD 21° ed. 707.7
C982r
FOLHA DE APROVAÇÃO
Vera Cristina Sgambato Cury
Relações entre a neurociência e
o ensino e aprendizagem das artes plásticas
Dissertação apresentada à Escola de
Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo, para a obtenção do título
de Mestre em Artes. Área de
Concentração: Artes Plásticas.
Aprovada em:
Banca Examinadora
Prof. Dr :
Instituição:
Assinatura:
Prof. Dr :
Instituição:
Assinatura:
Prof. Dr :
Instituição:
Assinatura:
São Paulo
2007
v
Para você... Naturalmente!
AGRADECIMENTOS
“Cada um que passa em nossa vida, passa sozinho,
pois cada pessoa é única e nenhuma substitui outra.
Cada um que passa em nossa vida, passa sozinho,
mas não vai só nem nos deixa sós. Leva um pouco de
nós mesmos, deixa um pouco de si mesmo. Há os que
levam muito, mas há os que não levam nada. Essa é a
maior responsabilidade de nossa vida, e a prova que
duas almas não se encontram ao acaso.” Antoine de
Saint-Exupéry
Agradeço a preciosa participação de todos os colaboradores deste trabalho, em
especial:
a minha orientadora, Regina Machado, que esteve sempre atenta a minha
caminhada, incentivando-me a cada descoberta;
ao Marcus Vinícius C. Baldo e à Maria Christina de Souza Lima Rizzi, pela
aprendizagem no momento da Qualificação;
ao diretor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, Luiz Roberto Giorgetti de
Britto, e ao chefe do Departamento de Fisiologia, Rui Curi;
ao prof. Luiz Eduardo Ribeiro do Valle, pelo respeito com que me acolheu em suas
aulas, reuniões e em seu laboratório;
aos professores do Curso de Mestrado;
à Rhowena Matos, pela amizade, apoio constante e parceria em diversos trabalhos.
à Márcia Higuchi Kodama, pela valiosa e inestimável colaboração ao ler e comentar
o texto;
aos amigos Altiere Carvalho, Camila Bruder, Klebert Toscano, Luiz Lana, Roberta
Areas e Vivian Guedes, por toda a atenção em ouvir, ler e discutir esta pesquisa;
vii
aos companheiros do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências
Biomédicas da USP que muito me têm ensinado na prática cotidiana e nas reflexões
continuadas sobre Arte, Ciência e Vida;
às revisoras Ana Claudia Dantas Ferreira e Rita de Sousa, sempre atentas à cada
detalhe;
ao meu filho, Daniel Cury, à minha família e amigos que souberam compreender
minhas ausências e colaborar com minhas descobertas.
viii
RESUMO
CURY, Vera Cristina Sgambato. Relações entre a neurociência e o ensino e
aprendizagem das artes plásticas. 2007. 236f. Dissertação (Mestrado). Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
Esse trabalho busca estabelecer relações entre a neurociência e o ensino e
aprendizagem da arte, mantendo o foco nas artes plásticas. Desse modo o ato de
desenhar, observar, perceber e imaginar, exercidos na ação artística, são
considerados a partir do funcionamento do sistema nervoso. O conhecimento de
como o encéfalo funciona pode dar subsídios importantes para futuras formulações
metodológicas da área.
Palavras-chave: 1. Arte; 2. Ensino e aprendizagem; 3. Percepção; 4. Neurociência;
5. Cognição; 6. Imaginação.
ABSTRACT
CURY, Vera Cristina Sgambato. Relations between neuroscience and the teaching
and learning of plastic arts. 2007. 236f. Dissertation (Master’s degree). School of
Communication and Arts. University of São Paulo, São Paulo, 2007.
This work seeks to establish relations between neuroscience and the teaching
and learning of art, having plastic arts as main focus. This way the act of drawing,
observing, interpreting and imagining are considered from the functioning of the
nervous system. The knowledge of how the nervous system, mainly the brain, works
may provide important subsidies for future methodological formulations in the area.
Key-words: 1. Art; 2. Arts Education; 3. Perception; 4. Neuroscience; 5.Imagination;
6. Cognition
x
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................. 13
I ARTE E CIÊNCIA ........................................................................................
27
II CIÊNCIA .....................................................................................................
52
2.1 Imaginando o funcionamento do sistema nervoso ..................................
52
2.1.1 A organização do sistema nervoso e processamento da informação
neural ............................................................................................................
55
2.1.2 Neurônios-espelho ............................................................................... 62
2.1.3 Emoção e o sistema límbico ................................................................ 66
2.1.4 Localização encefálica do sistema límbico .......................................... 66
2.1.5 Imaginação ...........................................................................................
69
2.2 Percepção, um panorama sensorial ........................................................
74
2.2.1 Os sistemas sensoriais ........................................................................ 78
2.3 Memória e aprendizado ...........................................................................
94
2.3.1 Plasticidade Neuronal .......................................................................... 106
2.3.2 Localização das estruturas encefálicas envolvidas no processamento
da memória ...................................................................................................
107
2.3.3 A evocação e o esquecimento ............................................................ 109
2.3.4 Enfim, o resumo... ................................................................................ 111
2.4 Aprendizado e mudança anatômica do córtex cerebral ..........................
112
III ARTE .........................................................................................................
118
3.1 A arte e a evolução da espécie humana .................................................
118
3.1.1 Hipóteses de como ocorreu o despertar .............................................. 121
3.1.2 Origens da arte .....................................................................................
127
3.1.3 Critérios para que os arqueólogos considerem um artefato como arte
127
3.1.4 Processos cognitivos simbólicos ..........................................................
135
3.1.5 Conclusão ............................................................................................ 137
3.2 Arte, percepção, observação e cognição ................................................
138
3.2.1 Observar ...............................................................................................
140
3.2.2 A observação, a arte, a ciência e o desenho ....................................... 143
3.2.3 Observar, perceber, memorizar e imaginar ..........................................
151
3.3 O ensino e a aprendizagem da arte ........................................................
152
IV PESQUISAS ............................................................................................. 164
4.1 Neurociência e educação ........................................................................
164
4.1.1 Aprendizado e neurociência .................................................................
164
4.1.2 Cooperação entre as áreas ..................................................................
167
4.1.3 Implicações educacionais ................................................................... 170
4.2 Pesquisas relacionadas com arte e neurociência ...................................
173
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 179
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..............................................................
184
GLOSSÁRIO ................................................................................................. 194
ANEXOS ....................................................................................................... 207
I HEMISFÉRIO CEREBRAL DIREITO E ESQUERDO .................................
207
II A PSICOLOGIA EXPERIMENTAL E AS TEORIAS DA GESTALT ............
218
III SANTIAGO RAMÓN Y CAJAL ……………………………………………….
225
IV LISTA DE ILUSTRAÇÕES ……………………………………………………
234
xii
“Para uma mente completa,
Estude a arte da ciência,
Estude a ciência da arte,
Aprenda a enxergar,
Perceba que tudo se conecta a tudo”.
Leonardo da Vinci
13
INTRODUÇÃO
Quando estava com nove anos de idade, tive a sorte de ter uma
professora de arte na escola. A professora Vitória dava apenas aulas de arte e
história da arte; ela era especial e especialista em uma só área: ARTE. Ela gostava,
conhecia com profundidade e valorizava o que ensinava. No meio em que eu vivia,
desenhar era considerado uma habilidade que se adquiria sozinho, se quisesse, era
algo secundário e, na maioria das vezes, dispensável.
Que experiência fantástica tive nos dois anos em que fui sua aluna.
Hoje, posso dizer que esses dois anos foram tão marcantes que, de certa forma,
nortearam a minha escolha profissional. Até hoje me lembro das atividades que
realizei em suas aulas: desenhos, pinturas, escultura com papier mâché,
modelagem em argila, sempre um novo desafio que os alunos realizavam na classe
e em casa. Quando, na aula seguinte, os alunos traziam os trabalhos realizados em
casa e expunham para a classe, eu ficava fascinada observando as inúmeras
variantes de um mesmo tema. Como era lindo ver o modo único e particular com que
cada um expressava suas percepções. Quanta vida a observação daqueles
trabalhos me transmitiram e quanto aprendi sobre minha potencialidade,
participando das aulas da Professora Vitória.
As aulas de história da arte eram dadas com slides e livros. Aqueles
livros grandes, com reprodução das obras de pintores famosos, nos quais ela
apontava o tipo de pigmento usado na época, salientava a estilo do artista e
habilmente transportava os alunos para um mundo que havia sido criado com a
imaginação do artista e poderia ser recriado com a nossa imaginação.
14
O tempo passou, os outros professores de arte se sucederam sem
deixar marcas profundas. E eu me preparava para ser médica, na verdade queria
ser psiquiatra. No colegial, optei pela área das ciências biológicas em período
integral, isso significava passar todas as tardes no laboratório, acompanhando o
professor na dissecação de animais (rato, sapo, cobra, pomba e peixe) e
trabalhando em equipe: realizando experiências, preparando lâminas para serem
observadas ao microscópio, desenhando as imagens observadas, discutindo os
resultados dos experimentos, preparando relatórios e fazendo provas e mais provas.
Meus colegas e eu nos preparávamos para sermos bons médicos, dentistas e
farmacêuticos.
Mas, conforme se aproximava a data do vestibular, percebi que não me
identificava com aquelas atividades a ponto de torná-las uma profissão. Afinal, os
momentos que mais me satisfaziam aconteciam enquanto desenhava e pesquisava
toda aquela infinidade de formas, cores e texturas das imagens que observava ao
microscópio. Eu queria poder expressar algo mais pessoal, algo que não fosse
estritamente descritivo e dedutivo.
Resolvi, nos últimos dois meses que antecediam o vestibular,
ingressar no curso de Comunicação Visual. O desafio de prestar as provas na área
de humanas, quando na verdade sempre me dediquei às atividades da área de
biológicas, foi o de passar pela prova prática: a terrível prova de desenho, que era
eliminatória!
Fui aprovada e as matérias que cursei na faculdade eram incríveis:
desenho de observação, história da arte, antropologia, sociologia, teorias da
comunicação, fotografia, desenho animado, história em quadrinhos, marcenaria,
cerâmica, cinema, escultura, xilogravura, gravura em metal, serigrafia, resistência
15
das matérias, composição gráfica, desenho geométrico, perspectiva, ergonomia
entre outras. Muitas vezes, ao me ver executando os trabalhos em casa, meu pai
perguntava: “Mas você está estudando mesmo ou será que tudo isso não é só
diversão?” E eu respondia que eu era a pessoa mais feliz do mundo, pois estudava
o que, para muitos, era considerado entretenimento. Os estágios que realizei foram
na área industrial e gráfica.
Por um tempo fui free-lancer, criando logotipos e realizando a
programação gráfica de micro empresas, enquanto cursava minha segunda
graduação: Licenciatura Plena em Artes Plásticas. Havia percebido que não me
bastava trabalhar com arte, eu queria saber como ensinar arte. Depois de todo esse
percurso, me habilitei como Arte Educadora.
Na jornada rumo à minha profissionalização, busquei sempre atuar
com realidades diversas. Assim sendo, atuei com diferentes classes sócio-
econômicas, faixas etárias distintas, tanto na rede de ensino particular quanto na
rede pública. Em cursos profissionalizantes e em cursos livres realizados no atelier.
Ao mesmo tempo, para que a prática do ensino da arte não se
automatize, existem algumas questões que precisam ser sempre reconsideradas: O
que é arte? Arte se ensina? É possível aprender através da arte? O que significa
arte para mim? Como propiciar ao aluno uma experiência significativa no ensino da
arte? Qual a importância da aprendizagem e do ensino da arte? Qual a qualidade
específica da arte?
De etapa em etapa, de formulação em formulação, os passos se
sucederam; e após tantos anos eu ainda continuo intrigada ao observar o efeito
transformador que a arte é capaz de exercer nas pessoas. Da maneira como os
alunos, independentemente da idade ou capacidade cognitiva, são capazes de
16
desenvolver uma série de habilidades, muitas vezes diferente do conteúdo que havia
sido dado.
Quanto mais me intrigava, mais atentamente observava. Ao dar aulas
na periferia de São Paulo, ou mesmo no sertão da Bahia, regiões em que os alunos
apresentam vários tipos de carência, desde econômica até nutricional, um fato
sempre me chamou a atenção: era a partir das aulas de arte que o conteúdo das
outras matérias parecia ser melhor absorvido. Como algo desta natureza é possível?
Poderia a arte desenvolver algum tipo peculiar de inteligência?
Acompanhando o trabalho desenvolvido por meus colegas arte-
educadores com crianças com dificuldade de alfabetização, adolescentes infratores,
idosos em clínica de repouso, adictos internados em clínicas de recuperação, mães
de sociedades de bairros, crianças de rua, pacientes em recuperação pós-
traumática ou mesmo emigrantes em fase de adaptação, observei o modo como
públicos tão distintos podiam ser beneficiados com o ensino e aprendizagem da arte.
Mas, como essas coisas acontecem? Como é possível que em
situações tão adversas (com poucos recursos de ordem material, nítidas deficiências
nutricionais e carências de toda ordem) uma prática adequada de ensino e
aprendizagem da arte possa gerar um aprendizado capaz de mobilizar forças que
antes pareciam inexistentes?
Ao mesmo tempo em que procurava aprimorar minha prática de
ensino, busquei elementos para melhor responder essas questões na filosofia, na
psicologia e na pedagogia. Olhar por diferentes ângulos uma mesma questão pode
ajudar a compor um entendimento mais abrangente do assunto.
Participando do VI Congresso Brasileiro de Autismo, em julho de 2003,
tomei conhecimento de pesquisadores que, em seus trabalhos, estavam utilizando a
17
técnica da Ressonância Magnética funcional (RMf), assim como outras técnicas de
neuroimagem em suas pesquisas. Com essas técnicas eles avaliaram a atuação da
amígdala, localizada no interior do encéfalo, nos estados emocionais.
Ao considerar as características de uma criança autista, que se
caracteriza sempre por desvios qualitativos na comunicação, na interação social e
no uso da imaginação e os resultados das pesquisas que demonstram o modo como
um autista distribui sua atenção visual ao explorar uma imagem, fiquei imaginando:
Como poderiam ser as aulas de arte para uma criança autista? Qual seria o
resultado da RMf de um autista que tivesse tido aulas de arte, por um determinado
período? Será que é possível investigar cientificamente como a ação artística atua
no sistema nervoso?
Não se trata de considerar o ensino e aprendizagem da arte como Arte
Terapia, mas sim como uma atividade capaz de potencializar o funcionamento
cerebral de qualquer indivíduo. Afinal, como funciona o organismo enquanto o
indivíduo realiza atividades artísticas (pintura, escultura, dança, música entre
outras)?
Pensando nestas possibilidades, comecei a estruturar uma pesquisa,
tendo como hipótese: Como o ensino e aprendizagem da arte podem potencializar o
funcionamento cerebral?
As três disciplinas que cursei na ECA foram ótimas, aprendi muito no
convívio com os professores, os pós-graduandos, o ambiente universitário e, de
certa forma, eu me sentia em casa. Percebi que, independente de estar estudando
em livros e artigos, os temas relativos à psicologia e neurociência cognitiva,
participando dos simpósios de neuropsicologia da aprendizagem, tendo contato
freqüente com profissionais que atuam nestas áreas, deveria ampliar meu
18
conhecimento do assunto cursando algumas disciplinas oferecidas pelo NEC
(Neurociência e Comportamento - Instituto de Psicologia/USP) e BMB (Instituto de
Ciências Biomédicas-ICB/USP). Inscrevi-me, então, como aluna regular em três
disciplinas: Neurofisiologia básica (BMB); Psicofisiologia da Atenção e da Memória
(NEC); e Progressos em Neurofisiologia (BMB).
Com a inscrição concluída fiquei na expectativa de ser aceita. Quais
seriam os pré-requisitos exigidos? A secretaria da pós-graduação da ECA não tinha
como responder essa questão, aliás, ao ler os títulos das disciplinas selecionadas
por mim, sugeriram que eu estava em área errada. As secretarias do NEC e BMB
informaram que somente o docente responsável pela disciplina poderia me aceitar
ou não.
Fui aceita! Porém todos os professores me preveniram que eu deveria
ficar atenta ao prazo de cancelamento da matrícula, pois este era um curso de pós-
graduação e o fato de estar numa área tão diferente da minha talvez me trouxesse
problemas. Afinal, a avaliação é realizada com provas dissertativas e a maior parte
do material a ser estudado são artigos e livros em inglês, mesmo eu tendo
proficiência nessa língua, os conceitos já seriam difíceis em português, quanto mais
em inglês.
As aulas começaram e logo uma pressão extra apareceu, era uma
pressão constante, às vezes delicada, às vezes hostil e muitas vezes sutil, por parte
dos professores para que eu cancelasse a matrícula, pois eles não gostariam de me
deixar retida, mas de forma alguma seriam condescendentes na avaliação. Sempre
frisaram que eu seria muito bem-vinda como aluna ouvinte, afinal esse é o próprio
espírito e propósito da Universidade, mas, como aluna regular, meu desempenho
deveria apresentar um rendimento compatível ao dos pós-graduandos da fisiologia,
19
nutrição, biologia, fonoaudiologia, medicina, educação física, farmácia, psicologia,
enfim, as áreas de graduação que predominantemente desenvolvem pesquisas em
neurociência.
Das três disciplinas, cancelei a matrícula de apenas uma: Progressos
em Neurofisiologia. Mas conversei com o professor e continuei assistindo
assiduamente na condição de ouvinte. Muitos dos alunos inscritos cursavam
também as mesmas disciplinas, portanto não tardou que esse convívio se
estreitasse. Quando eles perceberam que eu levava a sério e estava realmente
disposta a estudar e aprender, cada um, a seu modo, sempre me ajudou.
Respondiam-me pequenas dúvidas durante as aulas, para que eu não perdesse o
fio da meada. Respondiam-me algumas questões após a aula e outras antes das
aulas. Eu procurava variar ao máximo a quem perguntar para não exaurir nenhum
deles. Por isso, acabei conhecendo melhor a todos, desde a graduação de origem
de cada um, sua história de vida, seus sonhos e objetivos, até o modo como cada
área ordena os pensamentos para expressar uma resposta.
Depois de dois meses, uma das disciplinas passou a ter carga horária
dobrada, nas quintas-feiras a aula de Neurofisiologia Básica ia das 8:15 às 12:00h e
das 14:00 às 17:00h. Nem posso descrever o estado em que chegava a casa após
essa maratona neurofisiológica. Eu não conseguia nem falar muito menos ouvir
qualquer palavra, caía na cama e dormia e, várias vezes, acabava sonhando com
neurônios, sinapses, neurotransmissores e elementos químicos. A sensação era de
estar vivendo dentro de uma aula sem fim. Comecei a ir dormir mais cedo na quarta
feira, pois além de tudo a matéria se avolumava e o nível de complexidade
aumentava. A sorte é que eu adorava os temas, pois várias foram às aulas em que
mais da metade das palavras eram totalmente desconhecidas, em português,
20
imagine em inglês!
No começo, quando lia os artigos em inglês, compreendia 20% no
máximo, mas entendendo ou não depois participava das discussões. Enfim, no final
do semestre já entendia 40% dos artigos em inglês. Desenvolvi uma estratégia que
me ajudou muito, estivesse eu compreendendo ou não, me concentrava e mantinha
a atenção do começo ao fim. No final da aula fazia um balanço do que havia
conseguido absorver e do quanto havia percebido que desconhecia a existência.
Nunca fingi que sabia, sempre perguntei (aos alunos e professores)
expondo as dúvidas com clareza. Porém, procurava estar sempre atenta para que
minhas limitações não atrapalhassem a fluência das aulas.
Eu nem lembrava mais qual tinha sido a última prova que tinha feito na
vida. Afinal, nas artes plásticas, a maioria das matérias é prática. Quando a data das
provas estava se aproximando, alguns alunos me convidaram para ir estudar com
eles, independente do grau de conhecimento específico de cada um. Desta forma,
conseguimos estabelecer um ritmo que contemplou a todos e estudamos para as
três provas.
Claro que eu precisava estudar também sozinha, senão nunca daria
conta deste desafio. Para muitos, bastava tirar a nota necessária, mas para mim eu
precisava muito mais, eu precisava aprender e aprender rápido, pois aquele era só o
começo, além de aprender sobre o funcionamento do sistema nervoso eu precisava
relacionar este novo conhecimento à prática e ao ensino da arte, e, infelizmente, não
havia encontrado nada na literatura a esse respeito. Ou eu conseguia fazer essas
associações ou iria para casa com a nota, mas sem o objetivo do meu trabalho.
E o tempo foi passando, eu fiz as provas e tirei B em todas as
disciplinas. Comemoramos todos: os alunos, os professores e eu.
21
O mais difícil, no entanto, era conseguir conceber a forma como eles
enfocavam suas questões. Parecia tão estranho! Nos enfoques em que eu não via
interesse algum, para eles era de interesse máximo e vice-versa. A escala de
valores, as prioridades e objetivos eram totalmente diversos. Para mim, em tudo
havia cor, enquanto que, para eles, tudo era preto e branco, quando não escrito com
lápis bem clarinho! Às vezes me perguntavam alguma coisa sobre o meu trabalho,
mas nem sempre ouviam a resposta; outras vezes não entendiam a resposta.
Fomos percebendo que, embora vivêssemos no mesmo mundo, habitávamos
universos diferentes. A comunicação se estabelecia quando um prestava atenção no
outro, sem imposição de conceitos. O fluir prazeroso de informações e vivências
ocorria quando existia flexibilidade de pensamento. Porém, essa porta de
comunicação se fechava com o uso de posturas rígidas, que pretendiam impor a
suposta superioridade de uma área em relação à outra. Cada área tinha algo a
complementar e enriquecer a outra.
Já podia ir embora, tinha os créditos necessários e o conhecimento
básico suficiente para alguém da área de artes plásticas, mas ponderei: se já havia
chegado até aquele ponto, talvez fosse interessante seguir um pouco mais. Se
ativasse um pouco mais as áreas cerebrais responsáveis pela memória e
aprendizagem, como o córtex e o hipocampo, estimulando os processos bioquímicos
responsáveis pelo registro dessas memórias, eu estaria construindo memórias de
longa duração e o conhecimento adquirido com tanto esforço não seria esquecido
após um breve período. Já estava relacionando o que havia aprendido sobre
memória em minhas decisões cotidianas. Os conhecimentos adquiridos já não eram
apenas elementos estranhos, ou objetos de estudo distantes de outra área do saber.
Matriculei-me na disciplina Neurotransmisão Serotoninérgica (BMA) e
22
assisti como ouvinte as disciplinas: Comunicação celular no sistema nervoso (BMB),
Introdução aos métodos de investigação e ensino da ciência (BMB).
Na matéria matriculada apresentei meu primeiro seminário aos pós-
graduandos da área: Aprendizado, Memória e receptores serotononérgicos.(com o
detalhe de ter produzido meu primeiro power point). Um super desafio! Tirei nota A,
foi fantástico!
Fui voluntária de vários experimentos realizados no Laboratório de
Psicofisiologia da Atenção e no Laboratório de Cronobiologia. Acompanhei aulas de
neuroanatomia. Fotografei todo processo de Imunohistoquímica, um método
histológico no qual visualizamos neurônios contendo proteínas receptoras e
neurotransmissores, da serotonina (5HT) no encéfalo de ratos. Assisti defesas de
doutorado e mestrado (sempre tem um amigo terminando). O Luiz Camêlo,
doutorando em fisiologia, sempre perguntava: “Vera, quando é nossa qualificação?”,
e, em seguida, comentava sorrindo: ”Sim, pois a qualificação de Vera é a
qualificação de todos nós”. Acompanhei por dois anos as reuniões semanais do
Laboratório de Psicofisiologia da Atenção, com o Prof. Luiz Eduardo Ribeiro do
Valle.
Mas, eu sou uma Arte Educadora, que no momento estava estudando
neurociências. Por mais que o ambiente dos laboratórios já não fosse hostil ou
desconhecido; por mais que estivesse cercada de alunos e professores que aprendi
a admirar ao entender os objetivos, os métodos, a análise dos resultados de suas
pesquisas; por mais que fosse bem recebida e considerada por todos, ainda assim
sentia muita falta de poder expressar da forma artística, e não apenas científica, as
minhas opiniões, pesquisas, anotações e relatórios de atividades.
Foi então que vi uma possibilidade de suprir essa lacuna na disciplina
23
Introdução aos métodos de investigação e ensino da ciência. A primeira parte desta
aula era a apresentação de um seminário realizada por um aluno regular. Este
devia, em exatamente 20 minutos, apresentar clara e objetivamente sua pesquisa de
mestrado ou doutorado. Essa apresentação era avaliada por todo o grupo
considerando as questões como forma e conteúdo, próprias de comunicações
científicas. Após a aula, o apresentador recebia dos participantes da disciplina uma
ficha escrita com as considerações, críticas e elogios referentes à sua apresentação.
Ao invés de utilizar a linguagem escrita e seguir o roteiro de forma e conteúdo, das
fichas de avaliação, resolvi utilizar a linguagem visual. Afinal, em arte, forma é
conteúdo.
Portanto, entregava a minha avaliação uma semana mais tarde, pois
precisava de tempo para desenhar, pintar e elaborar um suporte adequado para
cada caso. Não sabia qual seria a reação dos colegas ao receberem esse tipo de
avaliação, nada convencional, mesmo assim arrisquei. O resultado foi muito
interessante. Quando entregava a avaliação, explicava algum detalhe sobre a
escolha das cores, o desenvolvimento da idéia, a coerência entre o tipo do suporte
(sempre relacionado com o conteúdo do seminário), o ritmo da apresentação, o tom
da fala, e a expressão do apresentador.
Ao superar a surpresa inicial, os comentários mais freqüentes com
relação ao tipo de avaliação que adotei eram sempre: Como a forma de uma
avaliação é tão diferente da outra!”; “Como você tem tantas idéias?”; “Nossa, vou
guardar de recordação junto com o meu trabalho.” Acabei criando um tipo de
avaliação que era sempre esperada com expectativa, recebida com um abraço
espontâneo e um agradecimento verdadeiro. Precisei enviar as últimas avaliações
pelo correio, pois as aulas terminaram e nenhum aluno queria deixar de receber sua
24
avaliação colorida.
Para comemorar a despedida desta turma tão especial, pedi ao
professor se poderia levar brigadeiro de colher no intervalo de nossa última aula.
Então, inventei seis sabores de brigadeiro: amargo com castanhas, branco com
cerejas, tradicional (para os mais conservadores), amargo com damasco, tradicional
com café, branco com raspas de chocolate ao leite. Adorei a confraternização:
colheres, pratinhos, copinhos, todos se servindo juntos, não teria o mesmo
significado se os doces tivessem sido servidos em forminhas.
Eles comentaram que nunca tinham visto tantos sabores de
brigadeiros, eu disse que também não conhecia antes de haver inventado. Então,
perguntaram se eu havia escrito as receitas, e percebi que, como tenho facilidade e
prazer em inventar coisas, geralmente se torna cansativo registrar o que já realizei.
Não havia escrito as receitas! Como, então, alguém poderia reproduzi-las? Nos
experimentos científicos sempre é necessário um protocolo metodológico de
procedimentos, para que esses possam ser replicados e os resultados obtidos
novamente analisados.
Reconheci que não havia registrado de maneira adequada
experiências ricas em minha prática de ensino. Essas poderiam ser recursos
valiosos, tanto para minhas futuras avaliações como para outros profissionais. O fato
de confiar excessivamente em minha memória e em minha fluência para inventar
algo novo em cada situação me levou a negligenciar este aspecto. Hoje, tendo
estudado a psicofisiologia da memória, considero também como incentivo para
efetuar registros adequadamente, a questão de que a memória modifica-se com
agilidade, as conexões sinápticas dentro desse sistema podem ser reforçadas ou
enfraquecidas. Além disso, podem ocorrer alterações estruturais e funcionais
25
permanentes. Portanto, registrar já não me parece engessar uma experiência, como
muitas vezes considerei.
Deste convívio surgiu o convite para participar do Curso de Verão,
realizado durante o mês de Janeiro em 2005 e 2006, e ministrado pelos pós-
graduandos do Departamento de Fisiologia /ICB. O curso fornece aos alunos da
graduação, vindos de vários estados do Brasil, uma visão integrada da fisiologia
entre seus diversos sistemas. Como o diferencial deste curso é propiciar ao aluno a
vivência do conteúdo, preparei a palestra Ciência e Arte, considerando como a
ciência e a arte se relacionam, fazendo parte do cotidiano de nossas considerações,
decisões e ações.
Seguiram-se a criação e apresentação dos seminários: Arte e Sistema
Atencional (Laboratório de Psicofisiologia da Atenção) e Percepção e Arte
(Laboratório de Fisiologia Sensorial “Roberto Vieira”).
Solicitação de uma seleção de quadros, dos grandes mestres da
pintura ocidental, que pudessem ilustrar e levar o espectador a vivenciar o tema:
“Assimetria interlateral no curso temporal da atenção voluntária”. Essa seleção de
imagens foi apresentada por Beatriz Castro-Barros, finalizando sua qualificação de
doutorado.
A participação no simpósio Neurociência no século XXI, homenagem a
Santiago Ramón y Cajal, prêmio Nobel de medicina e fisiologia em 1906, com uma
série de seis painéis apresentando a vida e obra de Cajal, cientista que sempre
integrou arte e ciência com maestria.
E com o esforço contínuo de relacionar o conhecimento das duas
áreas, de tentar expor o conteúdo contido na ação artística para leigos-cientistas e
do funcionamento do sistema nervoso para leigos-arte/educadores, acabei
26
aprendendo coisas que não estão em nenhum livro. Muitas vezes me surpreendi
aprendendo aspectos incríveis de arte ao estar estudando neurofisiologia, outras
vezes fui capaz de fazer associações de temas antes inimagináveis.
Sou uma arte educadora que, ao estudar neurociências, teve a
oportunidade de conviver e acompanhar algumas pesquisas realizadas nos
laboratórios do ICB I, e lá pude descobrir a beleza da fisiologia, do organismo
funcionando como um todo, de cada órgão exercendo sua função através de uma
constante comunicação celular.
Hoje sou capaz de conceber a arte e o ensino e aprendizagem da arte
também por uma abordagem biológica e inserida ao longo do desenvolvimento
evolutivo do ser humano. E é com esse enfoque que desenvolvi essa dissertação.
27
I ARTE E CIÊNCIA
Arte e ciência, independente de atuarem em campos distintos,
relacionam-se de diversas maneiras. Vários são os pontos convergentes e
divergentes entre essas duas áreas. Por exemplo: tanto a arte como a ciência utiliza
uma observação apurada para a realização de suas pesquisas, porém observam
seus objetos de estudo a partir de pontos de vista distintos.
Os desafios de uma área podem, muitas vezes, parecer uma questão
desinteressante para a outra, embora os resultados das pesquisas desenvolvidas
por cada uma sejam de vital importância para o ser humano e para ambas. Pois, o
conhecimento gerado nas duas áreas fornece o substrato necessário ao ser humano
para que este possa fomentar novas investigações.
A ciência procura desvendar a constituição e os mecanismos de
funcionamento de seu objeto de estudo; ocupa-se com a descrição e previsão de
fatos. Atua medindo, calculando, inferindo, dissecando, formulando e testando
hipóteses que poderão construir teorias, que, por sua vez, serão testadas
experimentalmente, podendo ser replicadas, para então serem aceitas ou refutadas.
A ciência procura saber, captar, apreender o máximo do fenômeno estudado com a
mínima interferência pessoal. Ser impessoal é importante e necessário, considerado
uma prioridade.
A arte busca a expressão, constrói seu conhecimento atuando de modo
a compreender como se manifesta seu objeto de estudo e com quais qualidades e
atributos se apresenta. É gerada a partir de uma intenção e utiliza-se de símbolos
visuais, sonoros, cinéticos ou outros para produzir suas obras. A linguagem
simbólica é estruturada numa composição organizando: a cor, a forma, o
28
movimento, o som, a emoção, o ritmo e demais atributos que possam representar a
intenção proposta. Seu propósito é interagir com o meio, relacionando-se, trocando
informações, sensações e gerando novas maneiras de ver e apreender o seu objeto
de estudo. A arte pode apropriar-se, interagir e, se necessário, interferir no
fenômeno observado.
Mas, é interessante notar que entre tantas diferenças na maneira de
conduzir suas pesquisas e apresentar seus resultados, existe um ponto central,
comum tanto à arte como à ciência. Essas duas atividades são produtos da fluidez
cognitiva, própria do ser humano; são fenômenos que vêm sendo produzidos pela
espécie humana a pelo menos 43.000 anos.
Ao exercer atividades artísticas, o homem utiliza e gera conhecimentos
que se transformam em produtos. Esses produtos irão fazer parte da formação da
cultura.
Da mesma maneira, o homem, ao exercer atividades científicas,
produz, com o resultado de suas pesquisas, outro tipo de conhecimento, que
também se transforma em produto e também irá fazer parte da cultura.
Cultura é o modo como indivíduos ou comunidades respondem às suas
próprias necessidades e desejos simbólicos. Engloba a língua, as idéias, as crenças,
os costumes, os códigos, as ferramentas, as instituições, a arte, a religião, a ciência,
enfim, toda a produção na esfera da atividade humana. Todo ser humano, sem
exceção, ao nascer trás uma herança genética e recebe uma herança cultural. Com
um patrimônio de 50 mil anos, nossa herança cultural é, no mínimo, bem vasta.
O antropólogo norte-americano Ralph Linton (1893-1959), exemplifica
a difusão cultural em um texto admirável. Ele descreve o começo do dia do homem
americano:
29
O cidadão norte-americano desperta num leito construído segundo
padrão originário do Oriente Próximo, mas modificado na Europa
Setentrional, antes de ser transmitido à América. Sai de baixo de
cobertas feitas de algodão, cuja planta se tornou doméstica na Índia;
ou de linho ou lã de carneiro, um e outro domesticado no Oriente
Próximo; ou de seda, cujo emprego foi descoberto na China. Todos
esses materiais foram fiados e tecidos por processos inventados no
Oriente Próximo. Ao levantar da cama, faz uso dos "mocassins" que
foram inventados pelos índios das florestas do Leste dos Estados
Unidos e entra no quarto de banho cujos aparelhos são uma mistura
de invenções européias e norte-americanas, umas e outras recentes.
Tira o pijama, que é vestuário inventado na Índia e lava-se com
sabão que foi inventado pelos antigos gauleses, faz a barba que é
um rito masoquístico que parece provir dos sumerianos ou do antigo
Egito. Voltando ao quarto, o cidadão toma as roupas que estão sobre
uma cadeira do tipo europeu meridional e veste-se. As peças de seu
vestuário têm a forma de vestes de pele originais dos nômades das
estepes asiáticas; seus sapatos são feitos de peles curtidas por um
processo inventado no antigo Egito e cortados segundo um padrão
proveniente das civilizações clássicas do Mediterrâneo; a tira de
pano de cores vivas que amarra no pescoço é sobrevivência dos
xales usados pelos croatas do século XVII. Antes de tomar o seu
breakfast, ele olha a rua através da vidraça feita de vidro inventado
no Egito; e, se estiver chovendo, calça galochas de borracha
descoberta pelos índios da América Central e toma um guarda chuva
inventado no sudoeste da Ásia. Seu chapéu é feito de feltro, material
inventado nas estepes asiáticas. De caminho para o breakfast, pára
para comprar um jornal, pagando-o com moedas, invenção da Líbia
antiga. No restaurante, toda uma série de elementos tomados de
empréstimo o espera. O prato é feito de uma espécie de cerâmica
inventada na China. A faca é de aço, liga feita pela primeira vez na
Índia do Sul; o garfo é inventado na Itália Medieval; a colher vem de
um original romano. Começa o breakfast com uma laranja vinda do
Mediterrâneo Oriental, melão da Pérsia, ou talvez uma fatia de
melancia africana. Toma café, planta abissínia, com nata e açúcar. A
domesticação do gado bovino e a idéia de aproveitar o seu leite são
originadas do Oriente Próximo, ao passo que o açúcar foi feito pela
30
primeira vez na Índia. Depois das frutas e do café, vem waffles, os
quais são bolinhos fabricados segundo uma técnica escandinava,
empregando como matéria-prima o trigo, que se tornou planta
doméstica na Ásia Menor. Rega-se com xarope de maple, inventado
pelos índios das florestas do Leste dos Estados Unidos. Como prato
adicional talvez coma um ovo de uma espécie de ave domesticada
na Indochina ou delgadas fatias de carne de um animal domesticado
na Ásia Oriental, salgada e defumada por um processo desenvolvido
no Norte da Europa. Acabando de comer, nosso amigo se recosta
para fumar, hábito implantado pelos índios americanos e que se
consome uma planta originária do Brasil; fuma cachimbo, que
procede dos índios da Virginia, ou cigarro, proveniente do México. Se
for fumante valente, pode ser que fume mesmo um charuto,
transmitido à América do Norte pelas Antilhas, por intermédio da
Espanha. Enquanto fuma, lê notícias do dia, impressas em
caracteres inventados pelos antigos semitas, em material inventado
na China e por um processo inventado na Alemanha. Ao inteirar-se
das narrativas dos problemas estrangeiros, se for bom cidadão
conservador, agradecerá uma divindade hebraica, numa língua indo-
européia, o fato de ser cem por cento americano (LINTON apud:
LARAIA,1988 p. 109-112).
Lendo esse texto e imaginando o percurso que o homem percorreu,
desde a idade da pedra até os dias de hoje, torna-se claro o que significa o processo
cultural para nossa civilização. Todas as ações desse homem americano”, que
pode representar a todos nós, fazem uso de invenções que, ao serem concebidas,
utilizaram ciência e arte.
Arte e ciência aparecem integradas nos produtos produzidos por uma
cultura. E todos nós estamos envoltos numa cultura. Então, se arte e ciência são
produzidas pelo homem, e fazem parte de nossa cultura, de que forma arte e ciência
ocorrem em nossas ações cotidianas?
Ou será que arte é atividade exclusiva de artistas e ciência é produzida
31
apenas por cientistas? De que modo você utiliza a arte e a ciência já disponíveis na
cultura? E, como e quando você gera arte e ciência em sua vivência cotidiana?
Para responder essas questões, é melhor retornarmos ao ponto de
partida. E, para o ser humano, o ponto de partida de suas ações vem de sua
cabeça, da sua atividade neuronal encefálica. O início das invenções humanas
normalmente está na capacidade de formular uma pergunta.
Por incrível que pareça tudo começa com uma pergunta. Cada vez que
formulamos uma pergunta, todo nosso sistema nervoso passa a trabalhar com o
potencial já armazenado, na geração de uma resposta, que para nos seja dotada de
sentido. Uma resposta que nos satisfaça e que inevitavelmente nos conduzirá a
outras perguntas. É o processo cognitivo, característico do ser humano. Através do
acionamento dessa fluidez cognitiva é que estamos aptos a fazer ciência e também
arte.
Assim como precisamos formular perguntas, também precisamos ouvi-
las para depois respondê-las. E, é no silêncio que podemos ouvir, com nitidez, as
perguntas que povoam nossa mente. Muitas vezes, quando olhamos para o céu, no
silêncio de uma noite escura e estrelada, quando sentindo a sensação de imensidão
é que ouvimos nossas próprias perguntas com maior clareza.
E olhando para o céu estrelado, que perguntas o modo de pensar
científico tem formulado ao longo do tempo? E quais são as perguntas que o modo
de pensar artístico, tem feito ao longo do tempo?
Perguntas diferentes, baseadas no foco da atenção e na motivação
com que foram formuladas, irão gerar respostas diferentes e usarão meios distintos
para concretizar suas respostas. Então, a partir das respostas obtidas, o que foi
realizado? Quais foram as obras da ciência e quais foram as obras da arte?
32
Quando o homem, ao olhar para o céu estrelado, se questionou sobre
distâncias, órbitas, formação e constituição das estrelas, possibilidades de se
locomover no espaço, do que é formado o espaço, constituição dos elementos
físicos e químicos da atmosfera, o homem construiu aviões, foguetes, mapeou o
céu, observou a órbita dos planetas, coletou dados, construiu aparelhos para darem
suporte tecnológico para suas pesquisas, enfim, explorou o espaço e levou a si
mesmo a pisar na lua e sondas espaciais a andar na superfície de Marte.
E quando o homem olhou para o mesmo céu estrelado com outro foco
atencional? Que questões surgiram ao observar um verdadeiro espetáculo de brilhos
e formas? Como expressar as diversas sensações percebidas? Que formas podem
ser transpostas para os objetos que nos cercam? Que estórias se pode inventar?
Que imagens poderiam transmitir a grandiosidade do universo? Como seriam os
habitantes de mundos distantes? Quais enigmas mantêm esse imenso quadro
celeste em constante movimento?
E a partir deste tipo de questionamento o homem criou histórias,
desenhos, esculturas, a ficção científica, poemas e poesias; obras capazes de
trabalhar com o desconhecido e colocá-lo ao alcance do entendimento humano; ao
alcance da imaginação, na qual podem ser manipulados, concebidos e
transformados. O homem trouxe a beleza e as sensações percebidas na galáxia
para conviver no cotidiano, formando peças utilitárias, criando artefatos, brinquedos
e tantos outros objetos que nos cercam.
E continuando a olhar para o céu, mas agora mais de pertinho,
admirando um céu azul sem nuvens com um bando de pássaros voando, talvez
imigrando para algum lugar distante, o que o homem teria observado? Como ele
percebeu a harmonia das aves que se movem em uma determinada direção? Quais
33
formas lhe chamaram a atenção? Que gama de cores ele notou? Que tipo de
movimento, que ritmos, noções de distâncias, percepção do espaço e do tempo ele
teve? Que perguntas teria formulado?
O homem, observando e ouvindo o canto dos pássaros, criou
instrumentos musicais e compôs melodias. Ao sentir a leveza e a harmonia do vôo,
e querer expressá-las com seu corpo, criou a dança, os passos e saltos de ballet.
Em forma de versos e poemas conversou longamente com as aves. Na pintura, um
festival de cores coloriu plumas e penas. E, na escultura, nos brinquedos e nos
utilitários, os pássaros foram desenhados e moldados das mais variadas formas.
Assim, suas reproduções viajaram por todo o mundo, perfazendo maior
quilometragem que a dos pássaros verdadeiros.
E observando o mesmo céu azul em que pássaros voam em bando, o
homem fez outras tantas perguntas. Por que o céu azul? Como é possível se
sustentar no ar? Como as aves sabem em que direção voar? De que tipo de matéria
são formadas as penas das aves?
E observando as características das aves, formulou os princípios da
aerodinâmica, desenvolveu a biologia estudando o comportamento dos animais em
seu habitat; a fisiologia, a anatomia, a física, a mecânica entre tantas outras
especialidades.
34
Ao observar as duas fotografias acima, o salto de ballet e o salto de
pára-quedas, à primeira vista pode ser que relacionemos o ballet com a arte e o
35
pára-quedas com a ciência. Porém, ao analisarmos um pouco mais, logo
perceberemos que no salto de ballet existe muito conhecimento sobre anatomia
(uma ciência), caso contrário o bailarino lesionaria seus tendões e certamente não
poderia dar mais nenhum salto.
Do mesmo modo, pode haver uma ação artística ao se executar um
salto de pára-quedas. Assim, separar arte e ciência em uma atividade não é uma
tarefa simples. E separar a ciência e a arte em objeto, sem descaracterizar
completamente esse mesmo objeto é praticamente impossível. Por exemplo, na foto
abaixo vemos uma BMW Z4; se retirarmos “toda” de ciência ou “toda” a arte utilizada
para fabricar esse modelo, a BMW Z4 continuaria sendo uma BMW Z4? Certamente,
não!
Embora arte e ciência se apresentem de modo integrado, mesclando-
se nos produtos culturais inventados pelo homem, a criação de novos produtos da
36
arte ou da ciência se realiza a partir de estratégias distintas. Os artistas criam suas
produções, geralmente nos ateliês, a partir da concepção do significado da arte. E,
os cientistas realizam suas pesquisas e descobertas a partir de métodos científicos
realizados habitualmente em laboratórios.
Em geral é um trabalho de equipe, realizado por muitas mãos.
Contudo, vale lembrar que o manusear das mãos é uma atividade coordenada pelo
encéfalo. Assim sendo, como funcionaria um encéfalo capaz de realizar tarefas tanto
artísticas quanto científicas? Será que o homem comum é capaz de fazer ciência e
arte ao mesmo tempo? Ou será que essa é uma possibilidade apenas reservada às
mentes geniais?
Robert e Michèle Root-Bernstein vêm estudando o tema criatividade
mais de uma década. Robert é professor de fisiologia na Michigan State University e
Michèle é historiadora. Suas pesquisas buscam responder as seguintes questões:
Será que temos condições de entender o que é a imaginação criativa? E, se
entendermos, será possível exercitá-la, treiná-la e educá-la?
Estes pesquisadores têm se dedicado a recolher, estudar e interpretar
as histórias contadas por pensadores, artistas, cientistas e inventores eminentes.
Num de seus estudos, analisaram cientistas de grande sucesso, entre os quais
muitos laureados com o Prêmio Nobel, e identificaram uma enorme freqüência de
vocações artísticas entre eles. Em sua publicação de 1997
1
, Root-Bernstein
enumera 73 cientistas renomados, encontrando entre eles 25 músicos e
compositores; 29 pintores, escultores, gravadores, desenhistas; 19 poetas,
novelistas e teatrólogos. A lista a seguir destaca alguns dos nomes citados nesse
trabalho:
1
Root-Bernstein, Robert. Discovering. Replica Books; 1st Replic edition, 1997.
37
Poetas, novelistas, teatrólogos
2
:
Hill, Archibald V. (1886-1977)
Richet, Charles* (1850-1935)
Ross, Sir Ronald* (1857-1932)
Sherrington, Charles* (1857-1952)
Bernard, Claude (1813- 1878)
Jenner, Edward (1749-1823)
Músicos e compositores
3
Békésy, Georg von* (1889-1972)
Monod, Jaques* (1910-1976)
Ross, Sir Ronald* (1857-1932)
Theorell, Axel Hugo Theodor* (1903-1982)
Helmholtz, Hermann von (1863-1931)
Holmes, Oliver Wendell (1809-1894)
Jenner, Edward (1749-1823)
Laennec, R-T-H (1781-1826)
Schweitzer, Albert (1875-1965)
Pintores, escultores, gravadores, desenhistas
4
Adrian, Edgar Lord* (1889-1977)
Banting, Sir Frederick* (1891-1941)
2
Todos os nomes marcados com * são ganhadores do Prêmio Nobel em medicina e fisiologia.
3
Todos os nomes marcados com * são ganhadores do Prêmio Nobel em medicina e fisiologia.
4
Todos os nomes marcados com * são ganhadores do Prêmio Nobel em medicina e fisiologia.
38
Ramon-y-Cajal, Santiago* (1852-1934)
Pasteur, Louis (1822-1890)
Jung, Carl Gustave (1875-1961)
Charcot, Jean Martin (1825-1893)
Loewi, Otto (1873-1961)
Fleming, Sir Alexander* (1881-1955)
Florey, Sir Howard* (1898-1968)
G, Edwin S.* (1868-1946)
Guillemin, Roger* (1924)
Luria, Salvadore (1912-1991)
Holley, Robert* (1922- 1993)
Em seu livro, Centelhas de Gênios, os autores demonstram a
necessidade da articulação entre arte e ciência para o fomento da criatividade e
capacidade de inovação. Já no prefácio apontam para o fato de que “o pensamento
criativo ocorre anteriormente à fala, antes que entrem em cena a lógica ou a
lingüística, manifestando-se em emoções, intuições, imagens e sensações
corporais”, comuns aos processos vivenciados por artistas e cientistas. As
ferramentas mentais utilizadas nestes processos cognitivos permitem conexões
surpreendentes entre ciências, arte, humanidades e tecnologias, pois, utilizando a
imaginação criativa, todos pensam da mesma maneira. Entre essas ferramentas
essenciais à educação em todos os níveis, estão: potencializar a imaginação,
observar, evocar imagens, abstrair, reconhecer padrões, formar padrões,
estabelecer analogias, pensar com o corpo, ter empatia, pensar de modo
dimensional, criar modelos, brincar, transformar, sintetizar.
39
Na história de nossa civilização, o homem que integrou, de modo
magistral, arte e ciência no seu viver, foi Leonardo da Vinci. Nas duas áreas ele
produziu obras de valor e relevância, que são consideradas como patrimônio da
humanidade. Através de um estudo minucioso dessas obras, temos a oportunidade
de imaginar como funcionava a mente desse mestre, como ele articulava e ordenava
o conhecimento que adquiriu observando a natureza.
Já se passaram mais de quinhentos anos desde a morte de Leonardo
da Vinci. Ele viveu bem antes de Galileu e Newton. Entrava na penúltima década de
sua vida quando Cabral descobriu o Brasil.
Para apreciar melhor e ter parâmetros para avaliar a vitalidade das
formas expressivas e do conteúdo significativo de suas obras é necessário ter esse
tempo em mente.
Leonardo (1452-1519) nasceu em Vinci,
uma pequena cidade próxima a Florença, na Itália do
século XV, época da Alta Renascença. Florença havia
se tornado um centro cultural dos mais importantes do
mundo ocidental, onde a economia, a cultura, a
ciência e as artes prosperavam.
Leonardo passou a infância imersa na natureza, “costumava passar
longas horas nos campos e bosques perto de sua casa, observando e desenhando
plantas, pássaros, morcegos, lagartas, cachorros, cavalos, até mesmo inventado
figuras de animais imaginários, como brincadeira para assustar as pessoas”
(FAYGA, 2003, p. 7).
Desde cedo demonstrou interesse em buscar respostas e compreender
os mecanismos intrínsecos de como os organismos funcionam. O desenho foi um
40
dos instrumentos que utilizou para desvendar os enigmas do universo. Todo o
conhecimento que adquiriu e a forma como este foi construído transparece em suas
obras.
Os interesses universais deste mestre se encontram em diversas
áreas, nas quais o artista desempenhou seus papéis de anatomista, botânico,
engenheiro civil e militar, arquiteto, urbanista, hidrólogo, cartógrafo, inventor e pintor.
Vários trabalhos de Leonardo não foram terminados; inúmeras de suas
invenções não chegaram a ser construídas na época. O grande legado de Da Vinci
vem através das anotações registradas em seus cadernos. Ele preencheu cerca de
5.000 páginas com esboços meticulosos, acompanhados de anotações detalhadas
escritas de forma invertida (da direta para a esquerda) que após sua morte levaram
cerca de 250 anos para virem a público.
Depois de grandes campanhas pela publicação e tradução, a partir de
1880, os manuscritos de Leonardo da Vinci tornaram-se cada vez mais conhecidos
dos estudiosos e do público; hoje vários deles podem ser consultados através da
internet. Eles são absolutamente excepcionais. O acesso aos originais desses
cadernos, mesmo que on-line, faz toda a diferença no desenvolvimento de uma
pesquisa. A pesquisa realizada a partir da consulta da fonte primária é fundamental,
principalmente quando se trata da obra de Leonardo Da Vinci, que tem sido
explorada e deturpada por cinco séculos.
Ernest Gombrich, professor e historiador da arte, ao referir-se aos
cadernos de Da Vinci escreveu:
Quanto mais se lêem esses cadernos, menos se pode entender
como um ser humano foi capaz de se destacar de forma tão excelsa
num sem-número de diferentes campos de pesquisa e de dar
41
importantes contribuições para quase todos eles. Talvez uma das
razões resida no fato de Leonardo ser um artista florentino e não um
erudito de formação acadêmica. Pensava que a função do artista era
explorar o mundo visível, tal como seus predecessores tinham feito,
só que mais completamente e com maior intensidade e precisão
(GOMBRICH, 1888, p. 221).
A única forma válida de conhecimento para Da Vinci era olhar para as
coisas reais e os fenômenos, os quais olhou com intensidade e os representou com
a maior originalidade. Sua concepção era que o ato de ver abrangia os dois sentidos
do verbo, que são olhar para e compreender. O objetivo de Leonardo, de ver no
sentido de compreender, só podia ser realizado pela análise da própria visão. O olho
era, para ele, o instrumento maior dos cinco sentidos uma concepção tradicional
muito influenciada por Platão e Aristóteles audição, tato, paladar e olfato ficavam
abaixo da visão. O olho era o mestre analítico de todas as pesquisas visuais. Para
Da Vinci, o ato de olhar e desenhar era uma maneira de compreender as leis da
natureza, e é com base nessa compreensão que o artista alimentava sua fantasia
(imaginação) para poder inventar e criar suas obras.
Os desenhos de Leonardo Da Vinci ultrapassavam as descrições de
um tema; eram também um meio de investigar, compreender e predizer o mundo
natural à sua volta. Sua ousadia e seus interesses variados lhe permitiram fazer
observações e descobertas em várias áreas científicas, da anatomia à geologia. Nas
palavras de Da Vinci, O desenho é de tamanha excelência que não apenas
demonstra as obras da natureza, mas outras infinitas, além daquelas criadas pela
natureza” (ZÖLLNER, 2005).
Leonardo explorou os segredos do corpo humano, dissecando mais de
30 cadáveres. Tarefa bastante audaciosa para a época, considerando as
42
perseguições do clero e as precárias condições de iluminação, ventilação e técnicas
de preservação dos cadáveres.
Seus primeiros desenhos anatômicos datam de 1497-1499 e refletem
grande conhecimento da anatomia da superfície do corpo humano, porém pouca
familiaridade com os órgãos internos; nessa época Da Vinci começa a planejar um
livro de anatomia com colaboração de Marcantonio Della Torre, um professor da
Universidade de Pavia, porém este projeto não chegou a se realizar. Leonardo Da
Vinci seguiu dissecando e desenhando, não só cadáveres humanos como também
animais, especialmente cavalos. Foi um dos primeiros a aprofundar os mistérios do
crescimento da criança no ventre materno.
Os desenhos anatômicos de seus últimos anos em Milão revelam que
a prática da observação minuciosa aliada a sua destreza pictórica, sua capacidade
de visualizar a forma e deduzir a função, culminaram no desenvolvimento de uma
técnica de ilustração anatômica até então inexistente.
Nas palavras de William Hunter (1718-1783), professor de anatomia da
Royal Academy of Arts em Londres de 1769 até 1772:
Eu esperava ver apenas vulgares desenhos de anatomia nos quais
um pintor pode encontrar alguma utilidade para o exercício do seu
mister. Mas para minha grande surpresa, constatei que Leonardo
adquirira um conhecimento muito vasto, e muito profundo. Quando
considero os esforços que ele dedicou a cada parte do corpo, a
superioridade do seu gênio universal, os seus profundos
conhecimentos da mecânica e da hidráulica e o cuidado que põe em
examinar todas as coisas que desenha, não tenho a menor dúvida de
que Leonardo foi, no seu tempo, o maior anatomista do mundo
(HUNTER aput: ZÖLLNER, 2005, p. 90).
43
Nada existia na natureza que não despertasse a sua curiosidade e não
desafiasse o seu engenho. Investigou as leis das ondas e correntes; passou anos
analisando o vôo de insetos e pássaros, o que iria ajudá-lo a inventar uma máquina
voadora. Esse invento era uma espécie de asa-delta onde vemos um homem
amarrado a um complicado mecanismo de quatro asas, cada um com doze metros
de comprimento. Leonardo tinha convicção de que um dia esse invento se tornaria
uma realidade.
E esse não foi o único invento de Da Vinci, existem muitos outros, por
exemplo: o helicóptero, a bicicleta, o sistema de respiração para mergulho, o martelo
pilão, as almofadas de bolas, a escada mecânica, o macaco, o robô, os blindados e
outras tantas máquinas de guerra. Várias dessas invenções não foram construídas e
testadas na época, porém hoje praticamente todas já foram estudadas e
construídas
5
, seguindo criteriosamente as anotações dos cadernos de Da Vinci, e
utilizando os materiais sugeridos disponíveis na época em que foram concebidas. O
incrível é que essas invenções, além de geniais, funcionam!
As formas de pedras e nuvens, o efeito da atmosfera sobre a cor de
objetos distantes, as leis que governam o crescimento de árvores e plantas, a
harmonia de sons, tudo isso era objeto de sua incessante pesquisa e seria a base
tanto de sua arte como de sua ciência.
Leonardo jamais aceitava o que lia sem verificar com seus próprios
olhos. Sempre que deparava com um problema, tentava realizar um experimento
que o resolvesse.
Seu modo de conceber a visão como análise e a representação como
infinitamente variada foi um legado de sua formação artística florentina. A arte
5
O Museu de Ciência e Tecnologia de Milão possui uma exposição permanente das réplicas das
invenções de Leonardo da Vinci. <http://www.museoscienza.org/Default.htm>.
44
florentina do século XV contava com a invenção da perspectiva, divulgada em um
livreto fundamental, sobre a pintura, do escritor e arquiteto Leona Battista Alberti,
escrito em 1435.
A perspectiva linear aliava procedimentos racionais com a concepção
imaginária de uma nova cena, e colocava a invenzione em união íntima com a
scienza. A invenzione era definida como a criação de algo novo, real ou plausível
(numa paráfrase do grande orador Cícero, da antiga Roma), enquanto a scienza era
um corpo de conhecimentos baseados em princípios racionais e comprováveis. Num
nível mais profundo, era uma aliança entre a fantasia (imaginação) e o intelleto (o
poder racional da mente). Em tudo isso é importante ter em mente que os termos
empregados por Da Vinci em língua italiana têm, com freqüência, diferentes
conotações hoje, e justamente por isso estão em negrito (KEMP, 2005).
Leonardo utilizou a perspectiva de um modo único e genial na
composição de seu mural A Última Ceia. Entre as obras de Leonardo, A Última Ceia
tornou-se uma das mais famosas imagens da arte ocidental. A Última Ceia é um
mural de grandes dimensões (9,10 m x 4,20 m), foi encomendada em 1495 pelo
duque Ludovico il Mouro para o refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie,
em Milão. O tamanho monumental e o tema bastante complexo o momento em
que os discípulos ouvem, consternados, Cristo anunciar que será traído por um
deles exigiram do artista a integral dedicação e intensa concentração, o máximo
empenho intelectual e emocional, enfim, sua experiência e total capacidade artística.
A pintura de um tema bíblico como a Última Ceia nasceu obviamente
de sua fantasia
6
(imaginação), Ao considerar, o olho como sendo sempre um aliado
do intelecto, Da Vinci não suprime ou diminui a importância da fantasia em suas
6
Leonardo Da Vinci utiliza o palavra fantasia com o mesmo sentido que atribuímos, nos dias de hoje,
à palavra imaginação.
45
criações. Assim sendo, também é verdade que o retratos que pintou não são
simples transcrições diretas daquilo que via.
Para poder pintar com o maior cuidado as delicadas nuances e
transições do colorido, tendo a possibilidade de fazer eventuais correções e retocar
certos trechos da imagem, Leonardo inventou uma nova técnica. Diferente do
tradicional afresco (que exige rapidez e definição imediata ao ser aplicar, em uma
única camada, o reboco ainda úmido já misturado aos diversos pigmentos) a nova
técnica incluía uma segunda camada de gesso, como suporte de uma liga de
têmpera (com óleo) para receber o colorido mais fluído e delicado das pinceladas.
Talvez só possamos apreciar totalmente a extraordinária proeza de
Leonardo nessa composição se voltarmos a refletir como os artistas
dessa geração tinham batalhado para combinar as exigências do
realismo com as do padrão convencional [...] A composição parece
ter aquele equilíbrio sem esforço e aquela harmonia das pinturas
góticas [...] subitamente sentimo-nos diante de um fragmento de
realidade tão convincente e tão impressionante [...] devemos, além
de toda técnica, admirar a profunda intuição de Leonardo sobre a
natureza íntima do comportamento e das reações dos homens, e do
poder de imaginação que o capacitou a colocar a cena ante os
nossos olhos (GOMBRICH, 1988, p. 226).
Georgio Vasari
7
relatou o processo de trabalho utilizado por Leonardo
da Vinci neste mural. Ele subia no andaime e aí ficava de pé, dias inteiros de braços
cruzados, apenas observando o que já havia feito, antes de dar outra pincelada.
Depois saía com seu bloco de anotações fazendo esboços de fisionomias e
posições diversas do corpo humano, reunindo material para compor um desenho
7
Giorgio Vasari (Arezzo, 1511 Florença, 1574) foi um pintor e arquiteto italiano conhecido
principalmente por suas biografias de artistas italianos.
46
que refletisse a personalidade de cada discípulo. As pessoas representadas nesta
ceia são retratos de várias pessoas da corte e de milaneses da época em tamanho
natural. Ao retornar ao Convento de Santa Maria delle Grazie muitas vezes
trabalhava freneticamente, durante dias, e novamente passava a observar e analisar
o que já havia pintado. Foi o resultado desse pensamento que ele nos legou e,
mesmo em seu estado deteriorado, A Última Ceia continua sendo uma das grandes
obras produzidas pelo homem, que retrata o próprio gênero humano (ZÖLLNER,
2005).
O mural levou três anos para ser concluído. Nos anos imediatos à sua
conclusão tornou-se uma sensação não só entre os artistas, que o copiaram ampla e
imediatamente em uma variedade de escalas e técnicas, como também os visitantes
importantes e curiosos que foram ver a obra em Milão, incluindo aí o rei da França e
sua corte. O comentário geral de todos era de que A Última Ceia parecia mais uma
obra da natureza que da arte.
Infelizmente, duas décadas após a conclusão do mural, a camada
colorida começou a deteriorar-se. Os problemas apontados foram a umidade
excessiva do local, a química da própria mistura da têmpera e deficiências no pré
preparo da parede antes de receber a pintura. O fato é que, restaurada e repintada
por vários séculos, nem sempre de maneira apropriada, o que podemos ver hoje é
apenas a infra-estrutura deste incrível mural, mesmo assim, até os dias de hoje
continua sendo uma das imagens mais reproduzidas no mundo inteiro.
Martin Kemp, historiador da arte e especialista no estudo da obra de
Leonardo Da Vinci há 30 anos, argumenta que,
Cada ato de olhar e desenhar era, para Leonardo, um ato de análise,
e é com base nessas análises que o criador humano pode refazer o
mundo. Assim, a máquina voadora e a Mona Lisa refazem,
47
comparativamente, o mundo natural segundo os próprios termos
desse mundo, em perfeita obediência às causas e aos efeitos
naturais. Uma é um "pássaro" artificial; a outra uma reprodução da
experiência visual da presença física da pessoa (KEMP, 2005, p. 49).
Outra de sua obra, a Mona Lisa
8
, é o retrato mais famoso do mundo.
Como Gombrich bem escreveu:
Uma fama tão grande quanto a da Mona Lisa não é uma bênção
completa para uma obra de arte. Ficamos tão habituados a vê-la em
postais e até publicidade, que se torna difícil olhá-la com os olhos
isentos como a pintura feita por um homem real, retratando uma
mulher real, de carne e osso. Mas vale a pena esquecer o que
sabemos, ou acreditamos saber, sobre o quadro, e examiná-lo como
se fôssemos as primeiras pessoas a fixar os olhos nele. O que logo
nos impressiona é o grau surpreendente com que Lisa parece viva.
Ela parece realmente olhar para nós e possuir um espírito próprio.
Como um ser vivo, parece mudar ante os olhos e estar um pouco
diferente toda vez que voltamos a olhá-la. Até mesmo em fotografias
do quadro sentimos esse estranho efeito, mas diante do original, no
Museu do Louvre, em Paris, a sensação é quase sobrenatural. Por
vezes, ela parece zombar de nós; outras vezes, temos a impressão
de surpreender uma sombra de tristeza em seu próprio sorriso. Tudo
isso tem um ar misterioso, e assim é; muito freqüentemente, é esse
efeito de uma grande obra de arte. Não obstante, Leonardo
certamente sabia como obteve esse efeito, e por que meios. O
grande observador da natureza sabia mais sobre a forma como
usamos os olhos do que qualquer pessoa do seu tempo ou antes
dele (GOMBRICH, 1988, p. 228).
Essa era a tarefa essencial de Leonardo, ver e observar a natureza
8
Mona Lisa (Óleo sobre madeira, 1503-1506, 77 cm x 53 cm). O quadro está exposto no Museu do
Louvre, em Paris. Os livros de história da arte concordam em dizer que a dama florentina pintada no
quadro era Lisa Gherardini, esposa de um influente comerciante de Florença, Francesco di
Bartolomeo di Zanoli de Giocondo. A obra é chamada por vários nomes: como Mona Lisa, o mais
conhecido, e La Gioconda.
48
com os olhos sempre novos, descobrir e comprazer-se na criação de novas
harmonias de cor e luz.
Leonardo considerava que o pintor deve deixar ao espectador algo
para adivinhar. Se os contornos não são desenhados com maior firmeza de traço, se
a forma é deixada um pouco indefinida, como desaparecendo numa sombra, a
impressão de secura e rigidez será evitada. Essa é a famosa invenção de Da Vinci,
chamada Sfumato um lineamento esbatido e cores esfumaçadas que permitem a
uma forma fundir-se com outra e deixar sempre algo para alimentar a imaginação.
Fayga Ostrower
9
, analisando a estrutura formal dessa composição,
demonstra que esta é baseada em uma proporção chamada “seção áurea”. Tanto a
silhueta triangular da figura como suas principais subdivisões que definem a altura e
a movimentação da cabeça, do corpo, das diagonais dos braços cruzados e das
mãos podem ser identificadas dentro do padrão da seção áurea (OSTROWER,
2004).
E é com técnica e poesia, com ciência e arte, que Da Vinci consegue
mostrar algo que vai além da própria pessoa retratada. À primeira vista, não se
percebe a complexidade dos múltiplos relacionamentos formais que dão sustentação
aos inúmeros significados que coexistem no conteúdo expressivo da imagem. Uma
das características da obra de Leonardo é a existência de uma poderosa síntese,
que integra todos os elementos e transmite uma extraordinária harmonia. Fayga
expressa suas impressões com as seguintes palavras:
O sorriso da Mona Lisa! Enigmático, fugidio, suave, talvez
melancólico, mas sempre um sorriso. Leonardo captou-o como se
fosse um sopro na eternidade, existindo por um instante e desde
sempre. Ainda seu olhar! Vindo do fundo da alma, parece penetrar
9
Fayga Ostrower (Polônia, 1920 - Brasil 2001) é uma renomada artista plástica brasileira, atuou como
gravadora, pintora, desenhista, ilustradora, teórica da arte e professora.
49
em nossa alma também, fala-nos de sentimentos para os quais não
existem palavras e levando-nos às infinitas distâncias do Universo. E
não é só a Mona Lisa que sorri, é a paisagem toda. Pois tudo está
imerso na misteriosa luminosidade, onde o claro e o escuro se
interpenetram de tal modo o escuro passando para dentro do claro
e o claro para dentro do escuro que se torna impossível dizer
onde termina a luz e onde começam as sombras (OSTROWER,
2003, p. 26).
Embora a Mona Lisa fosse um retrato encomendado, o quadro nunca
foi entregue. Leonardo o guardou para si, levando-o consigo por todos os lugares
onde viveu e trabalhou. Aos 64 anos, Leonardo aceitou o convite do jovem rei da
França, Francisco I, para morar em Cloux, para onde levou o quadro da Mona Lisa e
guardou até a morte. Após sua morte, o quadro permaneceu na corte francesa e
hoje está exposto no Museu do Louvre, em Paris.
Leonardo foi um grande artista entre outros grandes artistas de sua
época. Não faltaram grandes mestres nem obras-primas durante a renascença.
Desde os artistas dos Países Baixos, que demonstravam aguda observação da
natureza e suprema paciência para os pormenores e exatidão de detalhes, até
Andréa Mantegna (1431-1506), artista italiano que utilizou da perspectiva para gerar
representações imponentes e grandiosas, acentuadas por efeitos dramáticos e
teatrais. Além desses, estavam em plena atividade grandes mestres renascentistas
como, Michelangelo, Rafael, Ticiano e Boticelli. A marca desses grandes mestres é
que eles sabem detalhar o que for preciso, ou então generalizar, sem jamais perder
a justa medida e o sentido conjunto da composição. Portanto, ser grande entre os
grandes não é uma tarefa fácil.
Não obstante, algo a mais se manifestava na personalidade de
Leonardo da Vinci. Sua ousadia, seus interesses variados e seu sistema de
50
pesquisa lhe permitiram fazer observações e descobertas relevantes não só no
campo das artes, mas também em todas as áreas em que atuou.
Leonardo da Vinci era um artista-cientista, uma pessoa de uma visão
realista fantástica, que estaria em destaque em qualquer época que vivesse.
Leonardo representou um ideal que não se pode mais alcançar: o "homem da
Renascença", que era capaz de dominar simultaneamente muitas formas do
conhecimento. Leonardo foi um notável anatomista, botânico, engenheiro civil e
militar, arquiteto, urbanista, hidrólogo, cartógrafo, inventor e pintor. Com a avalanche
do conhecimento, que começou no Iluminismo e na Era Industrial, e que continua
com uma velocidade espantosa em nossa atual Era da Informação Globalizada, é
improvável que um único homem, seja ele artista e/ou cientista, possa abranger algo
que seja maior que o seu campo de especialidade.
Mas, seja qual for a especialidade à qual nos dediquemos, com certeza
nosso trabalho terá maior alcance caso seja desenvolvido com ciência e arte.
5
1
52
II CIÊNCIA
2.1 Imaginando o funcionamento do sistema nervoso
Aprender, ensinar, correr, pintar, desenhar, dançar, cantar... Cada uma
destas ações é planejada, executada e posteriormente analisada com o
funcionamento do nosso sistema nervoso. Assim sendo, é o sistema nervoso que
oferece o suporte para que possamos praticar uma ação artística.
É comum observar o encantamento das pessoas que estudam o sistema nervoso
em ação. Os gregos diziam que se maravilhar é o primeiro passo no caminho da
sabedoria, e que quando deixamos de nos maravilhar, estamos em perigo de deixar
de saber. Torna-se um espetáculo maravilhoso visualizar as inúmeras possibilidades
de conexões neurais realizadas no encéfalo para que um simples movimento possa
ser efetuado.
Não são apenas as estrelas no universo que fascinam o homem com
o seu impressionante número. Em um outro universo, o nosso
universo biológico interno, uma gigantesca ‘galáxia’ com centenas de
milhões de pequenas células nervosas que formam o cérebro e o
sistema nervoso comunicam-se umas com as outras através de
pulsos eletroquímicos para produzir atividades muito especiais:
nossos pensamentos, sentimentos, dor, emoções, sonhos,
movimentos, e muitas outras funções mentais e físicas, sem as quais
não seria possível expressarmos toda a nossa riqueza interna e nem
perceber o nosso mundo externo, como o som, cheiro, sabor, e
também luz e brilho, inclusive o das estrelas.(CARDOSO, 1998).
Mesmo leigos na área de neurociência, sem o domínio do vocabulário
53
específico normalmente utilizado, com o uso da imaginação são capazes de
visualizar a complexidade e a magnífica competência do sistema nervoso exercendo
sua função. A sensação é de estar ouvindo uma orquestra, muita bem ensaiada,
executando uma complexa sinfonia.
Portanto, apenas imagine as situações que são descritas a seguir, não
se prenda ao fato de não conhecer o vocabulário específico. Num primeiro momento
busque apenas compreender o sentido geral de como o sistema nervoso funciona,
independente de sua complexidade. Simplesmente visualize as situações que serão
descritas a seguir.
Você já deve ter batido palmas em várias situações; chamando a
atenção de alguém, acompanhando uma música ou aplaudindo um espetáculo com
diferentes intensidades e ritmos. Mesmo algo tão simples e corriqueiro, como o bater
de palmas, requer a atividade coordenada entre milhões de neurônios. Se você
estivesse realizando uma Ressonância magnética funcional
10
(RMf), as imagens
produzidas do seu cérebro em ação mostrariam áreas distintas iluminadas,
significando que estas consomem mais energia durante a atividade de bater palmas.
Em outras palavras, as áreas que aparecem iluminadas são as regiões do seu
cérebro que estão mais ativas enquanto você bate palmas.
Bater palmas ativaria grupos de neurônios em pelo menos três áreas
distintas do encéfalo
11
: o córtex frontal, ativado ao se tomar decisões
conscientemente; o córtex motor, que emite as instruções para que os braços e
mãos se movimentem; e o cerebelo, que supervisiona o processo inteiro e ajusta
suas ações para que se apresentem adequadas às necessidades externas, tais
10
Técnica utilizada atualmente para fazer exames de imagens do funcionamento cerebral, em tempo
real, enquanto a pessoa faz ou sente alguma coisa.
11
O encéfalo é formado por três órgãos: o cérebro, o tronco encefálico e o cerebelo. Portanto o
cérebro é o principal órgão constituinte do encéfalo.
54
como o posicionamento de uma mão em relação à outra.
E, se você estivesse recordando algo do seu passado, do momento em
que conseguiu andar de bicicleta sozinho, estaria ativando o hipocampo, uma das
estruturas no interior do encéfalo envolvida no processamento da memória; mas
como andar de bicicleta é também uma atividade motora, é provável que regiões
relacionadas com as áreas motoras também se iluminem.
Recordar o cheiro da terra molhada depois de uma chuva ativa áreas
relacionadas à memória e ao bulbo olfativo. E como essas memórias geralmente
trazem um componente emotivo, entra em atividade o sistema límbico, que inclui o
hipotálamo e a amígdala.
Claro que o sistema nervoso funciona continuamente. Alterando
apenas a intensidade e as modulações geradas por uma extensa atuação de
neurotransmissores e receptores nas transmissões sinápticas.
O encéfalo funciona em um sistema integrado, raramente uma parte
funciona isolada. Estas partes apenas foram descritas separadamente para facilitar
a visualização e o entendimento de suas funções e a forma como se relacionam.
Por exemplo, o homem, ao tocar um violino, ativa simultaneamente
várias áreas encefálicas (córtex motor, córtex sensorial e áreas de associação), para
realizar a mesma ação, conforme ilustra a figura a seguir.
Tocar violino é a expressão de um comportamento complexo. O
comportamento pode ser definido como qualquer tipo de movimento em um
organismo vivo. Assim sendo, o comportamento tem tanto uma causa como uma
função. Embora a flexibilidade e a complexidade de um comportamento possam
variar muito, o encéfalo é o órgão que exerce o controle destas funções. O encéfalo
pode ser comparado a um maestro, que organiza e utiliza continuamente a atividade
55
sensorial e motora para executar uma sinfonia. Neste exato momento, o seu
encéfalo está executando a sua sinfonia!
2.1.1 A organização do sistema nervoso e processamento da informação
neural
Acordar, trabalhar, comer, divertir-se, andar, dormir, sonhar, sentir e,
inclusive, imaginar, são atividades realizadas e coordenadas por nosso sistema
nervoso. O sistema nervoso é responsável pelo ajustamento do organismo ao
ambiente. Sua função é perceber e identificar as condições ambientais externas,
bem como as condições reinantes dentro do próprio corpo e elaborar respostas que
adaptem a essas condições.
56
Para realizar uma variedade tão
grande de atividades, o sistema nervoso se
ramifica por todo o corpo. Ele está subdividido
em Sistema Nervoso Periférico (SNP) e
Sistema Nervoso Central (SNC), conforme
mostra o quadro abaixo. Neste trabalho, será
enfocado apenas o funcionamento do sistema
nervoso central e como se relacionam os
neurônios, os estados mentais, o
conhecimento e a aprendizagem.
O encéfalo é formado por três componentes: o cérebro, o tronco
encefálico e o cerebelo.
O tronco encefálico regula automaticamente
funções fundamentais do organismo. Ele auxilia no ajuste da
postura, no controle da respiração, da deglutição e do ritmo
cardíaco, no controle da velocidade com que o organismo
consome os alimentos e no aumento do estado de vigília em
caso de necessidade.
57
O cerebelo, localizado abaixo do cérebro e imediatamente acima do
tronco encefálico, coordena os movimentos do corpo. Com a informação que recebe
do cérebro e a informação sobre a posição dos membros superiores e inferiores e
sobre seu grau de tônus muscular, o cerebelo auxilia o corpo a realizar movimentos
suaves e precisos.
O cérebro é
dividido em duas metades os
hemisférios cerebrais esquerdo
e direito conectadas, em sua
parte central, por fibras
nervosas conhecidas como
corpo caloso. O corpo caloso atua como ponte, permitindo que os hemisférios
troquem informações.
Cada hemisfério, por sua vez, é dividido em lobos, que se especializam
em diferentes tarefas.
Lobo frontal (frente) - Responsável
pela elaboração do pensamento e
planejamento da ação.
Lobo Parietal (alto) - Relaciona-se
com a sensação e o
processamento espacial.
Lobo temporal (lateral) - É relacionado primariamente com o sentido
de audição, possibilitando o reconhecimento de tons específicos e
intensidade do som. Tumor ou acidente afetando esta região
58
provoca deficiência de audição ou surdez. Esta área também exibe
um papel no processamento da memória e reconhecimento de
objetos.
Lobo Occipital (parte de trás) - Responsável pelo processamento da
informação visual. Danos nesta área promovem cegueira total ou
parcial.
Diferentes partes do cérebro desempenham diferentes tarefas de
processamento de informações. Esse princípio da localização funcional se revela
verdadeiro em quase todos os níveis de organização cerebral. O cérebro é um
conjunto de estruturas que se situa no topo da coluna vertebral. As estruturas
inferiores se empenham em coordenar as funções corporais básicas (respiração,
digestão, movimentos voluntários, por exemplo), a expressar os impulsos básicos
(como fome e desejo sexual) e processar as emoções primárias (medo, por
exemplo). As estruturas superiores, que evoluíram mais tarde e por cima das
estruturas inferiores, são mais desenvolvidas nos humanos que em qualquer outro
animal. A parte de evolução mais recente, o neocórtex, é uma camada fina de
neurônios que envolvem a superfície do cérebro. É aí que o pensamento ocorre e
onde residem três quartos dos neurônios de um cérebro humano.
Naturalmente, essa é uma caracterização genérica, já que cada lobo se
subdivide em redes interligadas de neurônios especializados em cada
processamento específico da informação. Tarefas complexas, como adição ou
reconhecimento de palavras, dependem da ação coordenada de várias dessas
redes neurais especializadas, localizadas em diferentes partes do cérebro. Qualquer
dano a uma dessas redes ou às conexões entre elas pode deteriorar a capacidade
59
que elas coordenam, e para
cada anomalia corresponde
um déficit específico.
A unidade
básica do sistema nervoso é
a célula nervosa,
denominada neurônio.
Sendo unidades funcionais
de informação, os neurônios
operam em grandes conjuntos, e não isoladamente. Esses conjuntos de neurônios
associados formam os chamados circuitos ou redes neurais. Por exemplo, os
neurônios da retina, que captam as imagens formadas pela luz ambiente, só se
tornam capazes de propiciar a visão se veicularem os sinais elétricos que geram em
resposta à luz a outros neurônios localizados na própria retina e depois no cérebro.
Cada um deles realiza uma pequena parte do trabalho cooperativo que ao final
possibilitará ler um livro, ver um filme ou admirar
uma obra de arte.
O neurônio, que é uma célula
extremamente estimulável, é capaz de perceber as
mínimas variações que ocorrem em torno de si,
reagindo com uma alteração elétrica que percorre
sua membrana. Essa alteração elétrica é o impulso
nervoso.
Cada neurônio pode conectar-se a
milhares de outros, permitindo que os sinais da
60
informação fluam em grande quantidade e em muitas direções ao mesmo tempo.
Existem diversos tipos de neurônios, com diferentes funções
dependendo da sua localização e estrutura morfológica, mas em geral constituem-se
dos mesmos componentes básicos:
o corpo do neurônio (soma), constituído de núcleo e pericário, que
dá suporte metabólico à toda célula;
o axônio (fibra nervosa) é o prolongamento único e grande que
aparece no soma. É responsável pela condução do impulso nervoso
para o próximo neurônio, podendo ser revestido ou não por mielina;
os dendritos são prolongamentos menores em forma de
ramificações (arborizações terminais) que emergem do final do
axônio, sendo, na maioria das vezes, responsáveis pela
comunicação entre os neurônios através das sinapses.
Além dos neurônios, o sistema nervoso apresenta-se constituído pelas
células glia, ou células gliais, cuja função é dar sustentação aos neurônios e auxiliar
o seu funcionamento. As
células da glia constituem
cerca de metade do volume do
nosso encéfalo. Há diversos
tipos de células gliais. Os
astrócitos, por exemplo,
dispõem-se ao longo dos
capilares sanguíneos do
encéfalo, controlando a
61
passagem de substâncias do sangue para as células do sistema nervoso. Os
oligodendrócitos e as células de Schwann enrolam-se sobre os axônios de certos
neurônios, formando envoltórios isolantes denominados como bainha de mielina.
O cérebro contém aproximadamente 100 bilhões de neurônios e
trilhões de células da glia. No espaço de contato entre os neurônios (sinapse
12
), o
axônio que transmite a informação secreta uma pequena quantidade de substâncias
químicas, denominadas neurotransmissores. Essas substâncias estimulam os
receptores localizados no dendrito do neurônio seguinte para que este inicie uma
nova corrente elétrica. Diferentes tipos de nervo utilizam diferentes
neurotransmissores para transmitir informações através das sinapses. O axônio
poderá estar envolto por um tipo de isolante, a bainha de mielina, cuja função é
semelhante ao isolamento dos fios elétricos.
Num dado momento, um grande número de neurônios entra em
atividade simultaneamente, e cada um dos chamados padrões de atividade
corresponde a um determinado estado mental. À medida que a eletricidade flui
através das conexões entre neurônios (sinapses), enviando a sinalização em
códigos, outro conjunto de neurônios é ativado e o cérebro passa a outro estado
mental. Ao contrário dos bits do computador, que estão ligados ou desligados, o
nível de ativação dos neurônios muda continuamente, permitindo variações
incrivelmente sutis do estado mental.
Sendo os estados mentais produzidos por padrões de atividade neural,
o conhecimento, definido como aquilo que dirige o fluxo cognitivo de um estado
mental para outro, deve ser codificado nas conexões neurais. Isso significa que a
aprendizagem se dá seja pelo crescimento de novas sinapses, seja pelo
12
Sinapses são junções formadas com outras células nervosas onde o terminal pré-sináptico de uma
célula faz contato com a membrana pós-sinaptica de outra. São nestas junções que os neurônios são
excitados, inibidos ou modulados. Existem dois tipos de sinapses, a elétrica e a química.
62
fortalecimento ou enfraquecimento das sinapses existentes. Na verdade,
evidência de ambos os mecanismos, o primeiro mais presente nos cérebros jovens;
o segundo, nos cérebros mais maduros. Vale notar que a entrada de qualquer novo
conhecimento de longo prazo no cérebro requer a modificação de sua anatomia.
2.1.2 Neurônios-espelho
Existem diversos tipos de neurônios, com diferentes funções
dependendo da sua localização e estrutura morfológica. Entre eles estão a célula de
purkinge, o neurônio estrelado, o neurônio unipolar, neurônio piramidal, neurônio
multipolar, neurônio monopolar visual, o interneurônio, o motoneurônio e tantos
outros.
Uma das descobertas mais importantes das neurociências nos últimos
tempos são os chamados neurônios-espelho. Os neurocientistas que os
descobriram são Giacomo Rizzolatti e colaboradores, da Universidade de Parma, na
Itália. Estes neurônios foram primeiramente encontrados nas áreas do córtex pré-
frontal de macacos. São neurônios que disparam (entram em atividade acentuada)
não apenas quando o animal realiza a ação (o que já era previsto que acontecesse),
mas também disparam quando o animal está apenas observando uma outra pessoa
realizar a ação (o que foi uma surpresa). O artigo relatando essa importante
descoberta foi publicado em 1996.
Desde então, várias equipes pesquisaram o papel dos neurônios
espelho no movimento e em outras funções. Agora, no entanto, o foco dos
pesquisadores está naquilo que parece ser uma função adicional dessas células - a
maneira como disparam em resposta a algo observado. A descoberta desse
63
mecanismo, feita há cerca de uma década, sugere que nós também fazemos
mentalmente tudo a que assistimos alguém fazer. Ela explica como aprendemos a
sorrir, conversar, caminhar, dançar ou mesmo jogar tênis.
Numerosas pesquisas têm demonstrado que o cérebro humano tem
múltiplos sistemas de neurônios-espelho especializados em executar e compreender
não apenas as ações dos outros, mas também as suas intenções, o significado
social do comportamento deles e suas emoções. Os neurônios-espelho já foram
encontrados nas áreas do córtex pré-motor e parietal inferior (associados a
movimentos de percepção), bem como no lobo parietal posterior, no sulco temporal
superior e na ínsula, regiões que correspondem a nossa capacidade de
compreender o sentimento de outra pessoa, entender a intensão e usar a
linguagem.
Numerosas pesquisas têm demonstrado que o cérebro humano tem
múltiplos sistemas de neurônios-espelho especializados em executar e compreender
não apenas as ações dos outros, mas suas intenções, o significado social do
comportamento deles e suas emoções. Os neurônios-espelho já foram encontrados
nas áreas do córtex pré-motor e parietal inferior (associados a movimentos de
percepção), bem como no lobo parietal posterior, no sulco temporal superior e na
ínsula, regiões que correspondem a nossa capacidade de compreender o
sentimento de outra pessoa, entender a intenção e usar a linguagem.
Encontradas em várias partes do cérebro, essas células disparam em
resposta a cadeias de ações relacionadas a intenções. Algumas são acionadas
quando uma pessoa estende a mão para pegar um copo ou observa alguém pegar
um copo; outras disparam quando a pessoa coloca o copo sobre a mesa e, outras
ainda, quando a pessoa estende a mão para pegar uma escova de dente e etc.
64
Descobriu-se também que os seres humanos têm neurônios-espelho
muito mais perspicazes, flexíveis e altamente evoluídos do que os encontrados nos
macacos, um fato que teria resultado na evolução de habilidades sociais mais
sofisticadas nos seres humanos.
Em entrevista ao jornal norte-americano New York Times, Rizzolatti
(apud: DOBBS, 2006, p. 46-51) disse: "Somos criaturas requintadamente sociais. Os
neurônios-espelho nos permitem captar a mente dos outros não por meio do
raciocínio conceitual, mas pela simulação direta. Sentindo e não pensando".
Em 1998, Rizzolatti e Arbib descobriram que uma das regiões
particularmente ricas em neurônios-espelho é a área de Broca
13
. Segundo Michael
Arbib, neurocientista da University of Southern California, toda a linguagem pode
estar baseada no funcionamento dos neurônios-espelho. Tal sistema, encontrado na
parte frontal do cérebro, contém circuitos superpostos para a língua falada e a
linguagem dos sinais. Num artigo publicado na revista Trends in Neuroscience, em
março de 1998, Arbib descreve como gestos de mão e movimentos complexos da
língua e dos lábios usados na formação de sentenças fazem uso do mesmo
mecanismo.
Para Vilayanur Ramachandran (MENTE & CÉREBRO, 2006, nº 161),
neurocientista da Universidade da Califórnia de San Diego, os neurônios-espelho
o fazer pela psicologia o que o DNA fez pela biologia: um sistema de referências
unificador capaz de explicar o funcionamento de nossa mente. Daí, por exemplo,
podermos compreender como os seres humanos deram “um grande salto à frente”
cerca de 50 mil anos atrás, quando adquiriram novas habilidades que tornaram
possível a cultura humana, como o uso de linguagem, de ferramentas e da arte. Até
13
Área responsável pelo processamento da linguagem.
65
então, os estudiosos vinham tratando a cultura como fundamentalmente separada
da biologia. Patricia Greenfield (MENTE&CÉREBRO, 2006, nº 161), psicóloga da
UCLA, considera que "Agora vemos que os neurônios-espelho absorvem a cultura
diretamente, com cada geração ensinando a próxima por meio do convívio social,
imitação e observação".
Dado que os neurônios-espelho são tão fundamentais para a
compreensão, faz sentido que falhas entre eles possam criar problemas profundos.
De fato, parece que déficits podem ajudar a explicar dificuldades que vão de reserva
excessiva a autismo. Alguns cientistas acreditam que o autismo pode estar
relacionado a neurônios-espelho malformados. No artigo publicado na revista
“Nature Neuroscience”, de autoria de Mirella Dapretto, neurocientista da UCLA,
revela que, embora muitas pessoas autistas consigam identificar expressões
emocionais, como a tristeza no rosto de outra pessoa, e até mesmo imitar olhares
tristes, não percebem o significado emocional da emoção imitada. Mesmo
observando outras pessoas, não sabem como é se sentir triste, com raiva,
desgostoso ou surpreso.
Os neurocientistas Gallese & Goldman, em estudo divulgado na revista
especializada Trends in Cognitive Sciences (1988, p. 493-501), sugerem que os
neurônios-espelho são acionados ao vermos alguém bocejar ou mesmo rir. Isso
explicaria tanto o riso como o bocejo contagioso. Deste modo, os neurônios-espelho
não agiriam apenas ao observar um gesto ou uma emoção, mas seriam acionados
também pelo simples som dela.
As investigações com neurônios-espelho aumentaram bastante nos
últimos cinco anos, e parece certo que irá crescer ainda mais. Se seu enorme poder
explicativo for apoiado em resultados mais robustos, esses neurônios poderão ser
66
tratados como o DNA da neurociência. Enquanto isso, os neurônios-espelho
explicam algumas maravilhas intrigantes.
2.1.3 Emoção e o sistema límbico
Não é possível entender quem somos ou como interagimos com o
mundo sem considerar a nossa vida emocional. E todas as emoções têm um
correlato neural. Feliz, triste, medroso, ansioso, exultante, abalado, desapontado,
culpado, apaixonado são alguns termos usados para descrever os estados
emocionais. Nossa linguagem, utilizada para denominar as emoções, é rica e
variada. O desafio da neurociência é estudar os componentes da comunicação
neuronal necessários para gerar os estados emocionais.
As mesmas emoções que geram alterações fisiológicas como:
alterações na freqüência cardíaca, na pressão sanguínea e nas secreções
hormonais incluem também certas reações motoras, principalmente movimentos dos
músculos faciais para produzir expressões. Assim como são também as emoções
que estão no âmago da expressão artística, desde a poesia, passando pelo cinema,
até a pintura. De fato, uma razão pela qual as pessoas apreciam a arte é que ela
evoca emoções, que independente de serem agradáveis ou desagradáveis, foram
habilmente captadas, reordenadas e transmitidas nas obras de arte.
2.1.4 Localização encefálica do sistema límbico
No interior do encéfalo, há um conjunto de estruturas coletivamente
conhecido como sistema límbico, responsável pelo comportamento emocional. As
67
principais estruturas desse sistema são a amígdala, o hipocampo, os corpos
mamilares e o giro do cíngulo. Essa região do encéfalo também tem sido chamada
de cérebro emocional e estabelece conexões com o córtex frontal.
Quando essas
conexões são danificadas ou
alteradas devido a tensão ou
medo, o discernimento social é
prejudicado, assim como o
desempenho cognitivo, porque
os aspectos emocionais da
aprendizagem, inclusive a
reação à recompensa e ao risco, ficam comprometidos. Existem exemplos clínicos,
citados por Antonio Damásio (DAMÁSIO, 1996) em que a interação entre a parte
emocional e a parte cognitiva do cérebro ficou prejudicada em casos de lesão.
Suzana Herculano-Houzel, neurocientista da Fiocruz, no Rio de Janeiro, relata que:
Damásio transformou as emoções, seu principal interresse de
estudo, em um tema legítimo da neurociência experimental. Em suas
mãos, o que antes era tradicionamente domínio exclusivo da
psicologia e da filosofia, por ser considerado assunto puramente
subjetivo e, portanto, imensurável, passou a ter bases biológicas.
Para ele, a emoção não é uma abstração mental, mas um processo
que envolve corpo e cérebro, uma idéia que ele expôs no livro O erro
de Descartes. Além de demonstrar como as emoções contribuem na
tomada de decisões, Damásio propõe que elas nascem da interação
entre o corpo e o cérebro, e sugere que emoção, na verdade, é uma
seqüência de dois processos: ter uma emoção, e depois senti-la. Ter
uma emoção seria o que acontece quando o cérebro, induzido por
uma lembrança, uma cena ou uma situação real, provoca alterações
68
no corpo aceleração dos batimentos cardíacos, suor, queda da
pressão arterial, por exemplo. Sentir a emoção, ou ter um
sentimento, é o que aconteceria no passo seguinte, quando o
cérebro registra aquelas alterações no corpo (HERCULANO-
HOUZEL, 2004, p142)
Damásio enfatizou um aspecto importante da ligação entre emoção e
fatores cognitivos, em sua hipótese do marcador somático
14
. Esta hipótese
determina que sinais “marcadores” surgidos de emoções e sentimentos agem para
guiar o comportamento e as tomadas de decisões, em um processo que se
estabelece normalmente de modo inconsciente.
Em outras palavras, a hipótese do marcador somático de Damásio
sugere como as emoções estão normalmente ligadas a pensamentos, decisões e
ações de uma pessoa. Em um estado emocional típico, certas regiões do encéfalo
enviam mensagens a muitas outras áreas encefálicas e a grande parte do restante
do corpo por meio de hormônios e do sistema nervoso autônomo. Essas mensagens
produzem uma alteração global no organismo, e esse estado alterado influencia o
comportamento, geralmente de maneira inconsciente.
Competência emocional inclui - mas não se limita a - a capacidade de
estar consciente de si mesmo, de autocontrole e compaixão, de resolver conflitos e
cooperar. Psicologicamente, o processo emocional é rápido, automático, não filtrado
pela atenção, e corresponde ao que alguns descrevem como impulsivo. Aspectos
desse processo emocional constituem o temperamento ou a personalidade do
indivíduo. Esses aspectos, geralmente, escapam à instrução cognitiva normal, mas
14
A hipótese do marcador somático tem mais ou menos a seguinte forma: Indivíduos normais ativam
os chamados "estados somáticos" (alterações na freqüência cardíaca e respiração, dilatação das
pupilas, sudorese, expressão facial, etc.) em resposta à punição associada às situações sociais. Por
exemplo, uma criança quebra alguma coisa valiosa e é punida severamente por seus pais, evocando
estes estados somáticos. Da próxima vez que ocorrer uma situação similar, os marcadores somáticos
são ativados e a mesma emoção associada à punição é sentida. De modo a evitar isto, a criança
suprime o comportamento indesejado.
69
tornam-se importantes quando se enfrenta uma situação vivencial ou educacional
nova. Algumas pessoas demonstram medo quando enfrentam uma nova situação;
outras mostram frustração; outras uma excitação positiva.
Pesquisas sobre a função da amígdala e o processo emocional estão
permitindo aos pesquisadores entender a complexidade envolvida na aquisição da
competência emocional, uma vez que ela exige uma comunicação entre a parte
emocional e cognitiva do cérebro. Em breve, esses resultados poderão sugerir
várias abordagens interessantes a serem utilizadas no sistema educacional.
2.1.5 Imaginação
A imaginação é um fenômeno cognitivo, estudado primeiramente por
Wilhelm Wundt na virada do século XX. A habilidade em criar e experimentar
situações virtuais, de combinar informações de forma pouco comum ou de inventar
imagens mentais sempre foi alvo de muita controvérsia entre filósofos e psicólogos.
No período que vai das primeiras décadas do século XX ao início dos
anos 70, a hegemonia das pesquisas behavioristas impediu a continuidade da
investigação das representações mentais. Somente com Roger Shepard, na
universidade Stanford, o tema das representações pictóricas voltou a ser pesquisado
numa série de experimentos envolvendo a rotação de imagens. Os resultados
advindos dessas pesquisas reintroduziram o tema das representações pictóricas no
centro das atenções da ciência cognitiva.
Então, Steven Kosslyn, psicólogo cognitivo da Universidade de
Harvard, partiu da iniciativa de Shepard para empreender novos testes que visavam
ampliar o número de provas empíricas sobre a existência e flexibilidade da imagética
70
mental.
Após uma série de pesquisas, Kosslyn propôs, então, uma teoria
imagética sobre as representações mentais figurativas, na qual as imagens são tão
importantes para compreensão da cognição quanto o método proposicional.
O psicólogo canadense Zenon Pylyshyn não ficou nada satisfeito com
o retorno do modelo imagético. Para Pylyshyn, o processo cognitivo é totalmente
computacional e o comportamento do sistema pode ser explicado por propriedades
intrínsecas de leis biológicas. Em outras palavras, os cientistas descutiam se a
imaginação usava regiões específicas do cérebro, ou se ela apenas reativava as
partes do cérebro usadas pelos sentidos. Conforme Suzana Herculano-Houzel
comenta:
Aos poucos, e graças à engenhosidade e insissistência de Kosslyn,
no meio dos anos 90, foi ficando claro que imaginar, ‘ver com os
olhos da mente’, é ativar a visão pelo lado de dentro: sem que haja
um estímulo para os olhos, a imaginação faz funcionar as partes do
cérebro que vêem. Kosslyn usou máquinas de imageamento
cerebral, que detectam quais partes do cérebro consomem mais
energia enquanto a pessoa faz, ou sente, alguma coisa. Mas o que
ele pediu aos seus voluntários era até então impensável num
experimento científico: que imaginassem ver as figuras que ele tinha
acabado de mostrar. Afinal, como saber o que a pessoa tinha
realmente imaginado? Era um experimento em que o pesquisador
não controlava praticamente nada. No entanto, os resultados eram
consistentes de uma pessoa para outra. Kosslyn foi experimentando
com as mais diferentes tarefas: imaginar objetos conhecidos, rostos,
figuras novas, o caminho de casa. Em todos os casos, o cérebro se
comportava como se a pessoa estivesse “vendo”, apesar de ter os
olhos fechados. Imaginar uma letra minúscula, por exemplo, ativava
uma região menor nas áreas visuais no cérebro que imaginar letras
maiúsculas - exatamente como quando vemos letras de tamanhos
71
diferentes. E agora, no final do ano 2000, foi encontrada a pista que
faltava: ver ou imaginar objetos acaba ativando os mesmos
neurônios no cérebro. O experimento foi feito por dois pesquisadores
da Caltech, associados a um neurocirurgião da Universidade da
Califórnia. Juntos eles estudaram nove pacientes que sofriam de
epilepsia intratável, e por isso foram submetidos a uma cirurgia para
a implantação no cérebro de eletrodos que permetiriam a localização
do foco da doença. Ao posicionar os eletrodos, os pesquisadores
aproveitaram para analisar a atividade de neurônios ao redor,
enquanto pediam aos pacientes para olharem figuras e depois
imaginá-las
15
(HERCULANO-HOUZEL, 2004, p152).
Imaginação é a representação mental das coisas (objetos, eventos,
ambientes, etc.) que presentemente não estão sendo percebidas pelos órgãos
sensoriais. Por exemplo, recorde uma de suas primeiras experiências na escola.
Quais foram algumas das visões, dos sons e até dos aromas que você teve naquela
ocasião? Embora essas sensações não lhe sejam imediatamente acessíveis nesse
momento, ainda assim você pode imaginá-las. De fato, a imaginação mental pode
representar coisas que jamais haviam sido observadas pelos seus sentidos em
momento algum; por exemplo, imagine o que seria estar andando no deserto do
Saara. As imagens mentais podem, mesmo, representar coisas que absolutamente
não existem fora da mente da pessoa que as cria; exemplificando, o avião antes de
haver sido criado por Santos Dumont.
A maioria das pesquisas sobre a imaginação, na psicologia cognitiva,
focalizou a imaginação visual, a representação mental do conhecimento visual
(p.ex., objetos ou ambientes) não-visível presentemente aos olhos.
Pesquisas recentes demonstraram que a imaginação pode envolver
15
Os pacientes costumam ficar acordados durante a cirurgia do cérebro, pois o cérebro não tem
receptores de dor.
72
representações mentais em quaisquer modalidades sensoriais (audição, olfato,
paladar, etc.) não apenas na modalidade visual. Imagine um alarme de incêndio, sua
canção favorita; o aroma de um perfume, de bacon frito ou de uma cebola; o sabor
de um limão, ou de seu doce favorito. Pelo menos hipoteticamente, cada forma de
representação mental está sujeita à investigação e alguns cientistas estudaram cada
uma das representações sensoriais.
Kosslyn, no momento, está conduzindo experimentos que mostram
que o cérebro emocional tem conexões com as regiões perceptivas do cérebro. Uma
dessas partes do cérebro, o lobo occiptal, não só está engajado na percepção, mas
também na construção de imagens mentais ou visualização. Pesquisas que utilizam
as técnicas de neuroimagem funcional têm mostrado, repetidamente, que o ato de
imaginar ou visualizar ativa muitas das mesmas regiões do cérebro ativadas pela
percepção.
Recentes pesquisas que utilizaram neuroimagens funcionais
mostraram que, quando os sujeitos visualizavam estímulos aversivos (por exemplo,
um rosto espancado ou um corpo queimado), certas regiões do cérebro ficavam
mais ativas do que quando o sujeito visualizava estímulos neutros (por exemplo,
uma lâmpada ou uma cadeira). Essas regiões, inclusive a ínsula anterior (dentro do
sistema límbico), são responsáveis pelo registro de mudanças autônomas no corpo.
Como o Dr Stephen Kosslyn observou em sua palestra no Fórum de Alto Nível,
realizado pela OCDE, na Espanha em 2001, a pesquisa está começando a
demonstrar que a visualização de fatos aversivos não só é registrada no cérebro,
mas também afeta o corpo alterando o sistema hormonal. Isso pode afetar
indiretamente as capacidades cognitivas, uma vez que o nível de testosterona afeta
a capacidade espacial. Vencer uma competição eleva o nível desse hormônio no
73
sangue, enquanto uma derrota baixa o nível do hormônio. Portanto, é possível que a
simples visualização de tais situações também possam afetar esse hormônio, que,
por sua vez afetaria as capacidades espaciais. Atualmente, várias equipes de
pesquisadores estão envolvidas no andamento dessa modalidade de investigação
científica.
Para os arte educadores, o uso da imaginação na aprendizagem tem
sido desde sempre uma força pedagógica. Afinal, mesmo antes de sabermos os
mecanismos neurais da imaginação, o ser humano naturalmente já a utilizava a
milênios.
Porém, o acesso aos resultados de pesquisas científicas referentes ao
processo cognitivo da imaginação pode trazer informações valiosas a serem
incorporadas na área pedagógica.
Portanto, reforço a sugestão: Imagine, apenas imagine, o
funcionamento do Sistema Nervoso!
Entre nossas características culturais únicas, a arte é talvez a mais
nobre invenção humana. Imaginem, por exemplo, a necessidade de
recrutamento de bilhões de neurônios, milhares de músculos, imensa
capacidade sensorial, visual e auditiva, a espantosa capacidade de
memória envolvida para saber de cór e executar um concerto para
tocar uma serenata de Chopin ao piano. São bilhões e bilhões de
neurônios, treinados ao longo de anos de prática, espalhados por
todas as regiões do cérebro, e trabalhando em harmonia para
produzir um resultado de uma complexidade inimaginável.
(CARDOSO & SABBATINI, 2000).
74
2.2 Percepção, um panorama sensorial
Nibil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu.
Não há nada na nossa mente, do mundo que nos circunda, que não
tenha passado pelo nosso aparelho sensorial.
O estudo de como se dá a percepção, de como se relacionam aspectos
psicológicos e neurofisiológicos na captação, interpretação e construção dos
estímulos sensoriais é de importância simplesmente fundamental. Afinal, tudo que
nós sabemos sobre o mundo vem-nos com nossos sentidos. É através da percepção
que realizamos a conexão entre o mundo exterior e o mundo interior.
As sensações são a porta de entrada do mundo em nosso organismo.
E a ordenação dessas sensações, através de uma construção dotada de um sentido
pessoal, é a percepção. Portanto, a percepção apresenta um nível de complexidade
mais alto do que a sensação, e por isso mesmo ultrapassa os limites estruturais dos
sistemas sensoriais, envolvendo também outras partes do sistema nervoso, de
funções não-sensoriais.
Através da percepção, construímos e ordenamos perceptos, compondo
um mundo que nos faz sentido e no qual podemos interagir.
Desde o tempo dos filósofos gregos, pensadores de cada geração têm
se perguntado: Como a experiência interage com a organização inata da mente?
Como percebemos o mundo, aprendemos uns sobre os outros e lembramos aquilo
que experienciamos? Nas últimas décadas, neurocientistas têm utilizado
observações experimentais de estudos biológicos da cognição para enfocar de um
modo novo, algumas das questões filosóficas clássicas a respeito da natureza da
mente e da experiência consciente. Conforme Bryan Kolb, neurocientista da
75
University of Lethbridge no Canadá, assinalou:
Talvez o princípio mais simples das funções do encéfalo seja o fato
dele ser responsável pelo comportamento. No entanto, esse princípio
tem mais coisa por trás que se possa inicialmente pensar. Para que o
encéfalo produza comportamento, ele precisa ter informações sobre
o mundo ao seu redor tamanho, formato, movimento, e assim por
diante. Sem essas informações, o encéfalo não pode saber como
orientar e direcionar o corpo para produzir uma resposta adequada,
especialmente quando a resposta necessária for algum
comportamento complexo, como apanhar uma bola. Para realizá-los,
o sistema nervoso tem órgãos projetados para receber as
informações do mundo e converte-las em atividade biológica capaz
de produzir experiências subjetivas da realidade. Para nos
movimentarmos, portanto, o encéfalo produz o que nós acreditamos
ser realidade. Essas experiências subjetivas da realidade são
essenciais para a execução de qualquer tarefa complexa (KOLB,
2002, p.38).
A questão da percepção se torna mais intrigante ao constatar que, o
que nós percebemos com nossos sentidos não corresponde exatamente às
características físicas dos estímulos ao nosso redor.
Nós recebemos ondas eletromagnéticas de diferentes freqüências, mas
percebemos cores: vermelho, verde, laranja, azul ou amarelo. Recebemos ondas de
pressão, mas ouvimos palavras e músicas. Entramos em contato com uma
infinidade de compostos químicos dissolvidos no ar ou na água, mas sentimos
cheiros e gostos.
O ser humano é constantemente bombardeado por informações
sensoriais, que o atingem através de diferentes órgãos. Nestes locais, existem
células receptoras especializadas que captam o tipo de energia correspondente e a
76
transformam em energia elétrica. Pois esta é a energia capaz de trafegar pelo
sistema nervoso e conduzir informações.
O percurso dessa sinalização elétrica em nosso organismo é ativado
por uma verdadeira orquestra neuronal. Neurônios se conectaram através das
sinapses envolvendo receptores e neurotransmissores numa comunicação
eletroquímica. Informações foram transduzidas, enviadas, transformadas e
recebidas por vias neurais, caminharam por nervos atingindo outros sistemas, até a
possível finalização em um movimento muscular. É o comportamento se formado e
se expressado numa ação, realizado em milissegundos e muitas vezes de modo
inconsciente.
Embora todo esse sistema operando seja fantástico, ainda assim é
limitado. O ser humano é capaz de captar, com o sistema sensorial, apenas uma
parcela das radiações eletromagnéticas ao redor.
Todos os seres vivos têm um conjunto de sentidos que possibilitam ao
organismo elaborar respostas e interagir aos estímulos do meio. Ao longo da
evolução da espécie, esses sentidos foram indispensáveis para desenvolver
habilidades sensitivas e propiciar a sobrevivência. Portanto, nosso sistema nervoso
foi moldado por um longo período evolutivo e reage somente a uma escala reduzida
de comprimento de ondas eletromagnéticas.
Ao se submeter a um exame de Raio-X não vemos nem sentimos a
radiação que transpassa nosso corpo. Nós não podemos ver a luz com o
comprimento de onda ultravioleta, embora as abelhas possam; assim como não
podemos detectar a luz infravermelha, embora as cascavéis possam.
Com tantos desafios e atributos, a percepção sempre constituiu um
tema de fascínio extremo, para onde convergiram a atenção e a contribuição de
77
várias áreas através dos tempos. Entre elas a filosofia, a neurociência, a física, a
fisiologia, a psicologia, a arte em geral, a educação, entre outras. Cada área
apresenta seus estudos com uma maneira própria de abordagem, coerente com os
métodos e perspectivas utilizadas.
Walter Freeman (2005), professor de neurobiologia, ao sintetizar em
um artigo os resultados de 30 anos de trabalho com seu grupo na Universidade de
Berkeley, apresenta a fisiologia da percepção como sendo o processo que permite
passar da pura e simples captação de mensagens sensoriais (forma, cor, som,
gosto, odor ou impressões táteis) ao reconhecimento de algo familiar e dotado de
sentido.
Todo o processo perceptivo ocorre no organismo com a atuação do
sistema nervoso, em particular nas regiões neurais que compõe os sistemas
sensoriais. Para facilitar a compreensão é útil a definição de conceitos utilizados na
área neurocientífica. Roberto Lent, neurocientista da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), define:
[...] sensação como sendo a capacidade que os animais apresentam
de codificar certos aspectos da energia física e química que os
rodeia, representando-os como impulsos nervosos capazes de ser
decodificados pelos neurônios. A sensação permite a existência dos
sentidos, ou seja, as diferentes modalidades sensoriais que
advêm da tradução pelo sistema nervoso das diversas formas de
energia existentes no ambiente. A energia luminosa, por exemplo,
em certas condições dá origem ao sentido da visão. A energia
mecânica vibratória pode originar o sentido da audição, mas pode
também se transformar em tato ou em dor. Sistemas sensoriais,
então, representam os conjuntos de regiões do sistema nervoso,
conectados entre si, cuja função é possibilitar as sensações.
Percepção é um tanto diferente. Trata-se da capacidade que alguns
78
animais apresentam nem todos de veicular os sentidos a outros
aspectos da existência, como o comportamento, no caso dos animais
em geral, e o pensamento, no caso dos seres humanos. O sentido da
audição nos permite detectar diferentes sons, mas é a percepção
auditiva que nos permite identificar, apreciar e lembrar uma música
(LENT, 2004, p.169).
É na espécie humana que a percepção está mais desenvolvida,
possibilitando habilidades de planejar e construir novos objetos, alguns destinados a
ampliar ainda mais a sua capacidade perceptual; indagar-se sobre a origem, o
passado e o futuro das coisas percebidas e até mesmo imaginar coisas
imperceptíveis (mesmo na ausência de qualquer estimulação sensorial
correspondente). Enfim, proporcionado ao ser humano a capacidade que o distingue
dos outros animais: a habilidade de produzir cultura.
2.2.1 Os sistemas sensoriais
Somos capazes de perceber o mundo que nos rodeia através de
nossos sistemas sensoriais. Em cada sistema sensorial, o contato com o mundo
externo ocorre através de células especializadas chamadas de receptores
sensoriais. Cada receptor é sensível a uma forma de energia física. Entretanto,
todas as formas de energia dos estímulos são transformadas em energia elétrica. O
processo pelo qual a energia do estímulo é transduzida se dá em dois estágios: a
transdução do estímulo e a codificação neural.
O Sistema Auditivo é especializado na decodificação dos sons,
converte as alterações na pressão do ar, associadas às ondas sonoras em atividade
neural transmitida para o encéfalo. Essa tarefa é realizada em várias etapas que são
79
muito bem descritas e estudadas pela neurofisiologia. (LENT, 2004; p. 243)
O som é uma criação do encéfalo e não existe sem ele. Quando uma
mão bate em um tambor não produz nenhum som, a menos que alguém esteja lá
para ouvi-lo. O ato de tocar um tambor simplesmente é capaz de produzir alterações
na pressão atmosférica. Essas alterações na pressão assumem a forma de ondas,
geradas por moléculas de ar que vibram.
A modalidade auditiva divide-se em algumas submodalidades:
discriminação de intensidade sonora, discriminação tonal, identificação de timbres,
localização espacial dos sons e compreensão da fala e sons complexos.
Além de detectar alterações muito pequenas na pressão atmosférica, o
sistema auditivo também é muito habilidoso em perceber sons diferentes ao mesmo
tempo. Enquanto você está fazendo uma atividade, é capaz de diferenciar outros
tipos de sons a seu redor, como o trânsito na rua, pessoas conversando nas
proximidades, passos no corredor, entre outros. Do mesmo modo, quando ouvimos
sica, é possível detectar os sons de diferentes instrumentos e vozes. Parece
óbvio? Isto todo mundo sabe? Saber não sabe. Percebe e constata, o que é muito
diferente! Você só pode perceber sons distintos simultaneamente, porque as
diferentes freqüências de alteração na pressão atmosférica, associadas a cada som,
estimulam os diferentes neurônios em seu sistema auditivo. É uma verdadeira
façanha neurofisiológica que só pode ser realizada se houver neurônios ativados
para essa função.
A percepção de sons é apenas o início de uma experiência auditiva.
Para obter informações sobre os eventos em seu meio, o encéfalo interpreta os sons
e analisa seus significados. Esses processos são ilustrados claramente no modo
como se usa o som para se comunicar com outras pessoas, tanto pela linguagem
80
como pela música.
A linguagem e a música diferem de outros impulsos auditivos de várias
maneiras fundamentais. São sons que transmitem um significado especial. A análise
do significado do som é mais complexa que a simples detecção de sua presença.
Para analisar e produzir o significado dos sons e da fala, o encéfalo teve de
desenvolver sistemas especiais localizados nos lobos temporais esquerdo e direito,
respectivamente.
A linguagem oral e a habilidade musical não são apenas interligadas
como sistemas complementares no encéfalo. Também são inter-relacionadas quanto
ao conceito, pois ambas se baseiam no uso do som. Desse modo, para
compreender como o ser humano se envolve em cada um desses comportamentos,
examina-se primeiramente a natureza do som e como o ouvido humano e o sistema
nervoso são estruturados para detectá-lo. Existem muitos artigos sobre essas
questões publicados em revistas especializadas.
O Sistema Somatosensorial nos diz o que se passa com o nosso
corpo, fornecendo informações sobre as sensações corporais. É formado por
submodalidades, dentre as quais as principais são: o tato, que corresponde à
percepção das características dos objetos que tocam a pele; a propriocepção, que
consiste na capacidade de distinguir a posição estática e dinâmica do corpo e suas
partes; a termossensibilidade, que permite perceber a temperatura dos objetos e do
ar que nos envolve; a dor, que é a capacidade de identificar estímulos muito fortes,
potenciais ou reais causadores de lesões em nossos tecidos. (KANDEL, 2003).
Este sistema contribui para que possamos compreender como nos
posicionamos no mundo. Permite distinguir o que o mundo faz para nós do que nós
fazemos para ele. Por exemplo, quando alguém lhe empurra para o lado, seu
81
sistema somatosensorial lhe informa que você foi empurrado. Da mesma forma,
caso você se jogue para o lado, seu sistema somatossensorial lhe informa que você
fez o movimento. O fisiologista C.S. Sherrington (KANDEL, 2003), em 1890,
descobriu a chamada sensibilidade proprioceptiva, que é fundamental para a nossa
experiência do corpo. Quando caminhamos, corremos ou saltamos, estamos
constantemente conscientes do que nosso corpo sente, e sabemos onde nos
encontramos no espaço. A maior parte do tempo temos essa consciência sem
perceber. Ao aprender uma nova habilidade, como andar de bicicleta, nadar, tocar
um novo instrumento ou dirigir um carro também temos consciência de nossa
sensibilidade proprioceptiva. Cada uma dessas habilidades exige um período de
aprendizado e prática consciente. À medida que os movimentos necessários para
andar de bicicleta ou tocar piano são dominados, eles são realizados cada vez mais
inconscientes. Quando não precisamos mais pensar como tocar uma música ao
piano, começamos realmente a produzir música verdadeiramente.
Para se ter uma idéia da extensão e importância das funções que esse
sistema exerce, basta considerar o fato de que: se perdermos a visão, a audição ou
ambas, ainda somos capazes de nos mover, entretanto, se perdêssemos a conexão
com o sistema somotossenrorial, rapidamente os movimentos ficariam tão
debilitados que poderiam inclusive comprometer a sobrevivência.
Entre os sistemas sensoriais este é o único que tem células receptoras
distribuídas por todo o corpo, tanto na superfície da pele como também internamente
nas camadas epiteliais. São os neurônios destes receptores que levam informações
até a medula espinal. Nela, duas vias somatossensoriais se projetam até o encéfalo
e, por fim, até o córtex somatossensorial.
A densidade dos receptores sensoriais varia muito nos diferentes locais
82
do corpo, não apenas na pele, mas também nos músculos, tendões e articulações.
As partes do corpo muito sensíveis ao tato ou capazes de movimentos refinados
como as mãos, pés, lábios e olhos possuem muito mais receptores
somatossensoriais.
Com estas informações, o entendimento do que é o tato, seu uso e
suas possibilidades certamente se ampliam. Seria possível dançar, se movimentar
ou saber onde e como você está sem a atuação deste sistema somatossensorial? A
resposta é simples: não!
O Sistema Gustativo permite sentir o paladar e selecionar o alimento
de acordo com o desejo e necessidades do próprio corpo. O paladar é
principalmente uma função dos botões gustativos na boca, mas é sabido que o
olfato contribui de forma significativa para a percepção gustativa. A experiência do
paladar dada pela textura do alimento é detectada por receptores táteis da boca,
assim como a presença de algumas substâncias no alimento, como a pimenta,
estimulam as terminações de dor e condicionam muito a experiência do paladar.
Para análise prática do paladar, as propriedades dos receptores foram
reunidas em quatro categorias gerais, denominadas sensações gustativas primárias.
Elas são: ácido, salgado, doce e amargo. Alguns cientistas sugerem a existência de
mais uma categoria de sabor, o umami, suscitado pelo glutamato. As centenas de
sabores diferentes que podem ser percebidas são resultado de combinações das
sensações elementares. O sabor amargo, quando ocorre em grande intensidade, faz
geralmente com que o indivíduo rejeite o alimento. Essa reação é uma importante
função objetiva da sensação do sabor amargo, porque várias toxinas mortais
encontradas nas plantas venenosas são alcalóides, que causam sensação
intensamente amarga.
83
O forte elo entre gosto e prazer, ou talvez desprazer, é a base do
fenômeno de aprendizado de aversão ou predileção a um gosto. Aprende-se
rapidamente a evitar uma comida se sua ingestão causa, ou é associada, a
disfunção gastrointestinal.
Quando o estímulo vem através do ar será decodificado pelo Sistema
Olfativo. O olfato é talvez nosso sentido mais evocativo. É comum indivíduos
considerarem esse sentido como secundário, mas essa não é a realidade, ele é
essencial para a sobrevivência sendo a forma mais eficiente de comunicação e
interpretação do meio circundante. Todos os cheiros ou odores que sentimos nos
levam a uma experiência perceptual.
A vivência individual indica sempre uma relação entre um cheiro que
sentimos e uma determinada substância emitida de perto ou a distância por uma
fonte qualquer: uma flor, um animal, um alimento. O mecanismo neural responsável
pela olfação é realizado por uma cadeia de neurônios que começa no nariz. As
paredes internas do nariz são cobertas por uma mucosa, na qual estão incrustados
os neurônios quimiorreceptores da olfação. Os sinais neurais serão então
transmitidos ao bulbo olfatório, através de um sofisticado sistema de sinalização
formado por circuitos neurais especializados.
Poucas pessoas são capazes de reconhecer sabores até familiares
como: chocolate, café ou alho; sem a colaboração do olfato. A capacidade de sentir
cheiros é muito maior que a capacidade de sentir sabores. Podemos detectar
centenas de cheiros diferentes, e nossos antepassados tinham essa capacidade
maior que a nossa, pois observa-se um grande número de pseudo-gens no sistema
olfativo.
Todos os odores e gostos que reconhecemos são registrados no
84
encéfalo com uma combinação de informações adicionais. Usualmente, o mais leve
aroma é suficiente para resgatar vívidas memórias e evocar situações vivenciadas.
O Sistema Visual. A maioria de nossas impressões sobre o mundo e
nossas memórias dele é baseada na visão. A informação visual domina nossas
percepções e molda a maneira como pensamos. “Uma razão para o fato da visão
ser tão importante é que ela nos torna capazes de perceber a informação a
distância, encarregando-se do que é denominado de percepção exteroceptiva. Não
necessitamos estar em contato imediato com o estímulo para processá-la“
(GAZZANIGA, 2006; p.168).
O sistema visual analisa a luz. Essa energia eletromagnética pode vir
diretamente de algo que a produz, com uma lâmpada ou o sol, ou indiretamente de
uma fonte luminosa, após ser refletida por um ou mais objetos. Em qualquer um dos
casos, a energia luminosa vem do mundo exterior, atravessa a pupila e entra no olho
atingindo a retina. A partir da estimulação dos receptores na retina, começamos o
processo de criação de um mundo visual.
De modo bastante sintetizado o processamento visual pode ser
exemplificado da seguinte forma: Imagine que você está observando um quadrado
laranja. O olho é apenas o primeiro componente deste sistema sensorial. No seu
interior encontra-se a retina, composta de células fotorreceptoras (cones e
bastonetes), onde se realizam os primeiros passos do processamento visual. A
retina transmite a informação visual devidamente transduzida e codificada, através
do nervo óptico e do núcleo geniculado lateral, para o córtex cerebral. No encéfalo
tem então início o processamento que permitirá:
85
§ A detecção de bordas em V1 (córtex visual primário);
§ Na Via Ventral: a visão das cores em V4, a discriminação das
formas em IT (córtex temporal inferior);
§ Na Via Dorsal: a detecção de movimentos em V5 ou MT (córtex
temporal medial) e da localização espacial.
Esquema simbolizando as principais vias visuais.
Para entender melhor a ilustração acima, na linha pontilhada
representa-se a via dorsal (“onde”), responsável pela percepção de características
tais como movimento e localização do objeto. Em linha contínua destaca-se a via
ventral (“o quê”), envolvida no processamento de cor e forma. (KANDEL, 2000).
Embora experimentemos a percepção visual como um fenômeno
consciente unificado, nossas percepções são construídas a partir de diversos
componentes. Desses componentes, apenas alguns são acessíveis à experiência
consciente. A experiência consciente parece estar associada ao processamento na
86
via ventral. Isso significa que nos tornamos conscientes do formato e da cor do
objeto como um resultado das operações neurais por meio das quais chegamos a
reconhecer e a identificar o objeto visualizado. Por outro lado, o conhecimento que
obtemos da via dorsal sobre como e onde segurar o objeto visualizado é
inconsciente. Vários experimentos e pesquisas já demonstraram esse fato.
“Forma, movimento, profundidade e cor. Simplesmente olhar o mundo
e reconhecer um rosto, ou apreciar uma paisagem requer uma atividade neuronal
imensa, maior do que a utilizada para solucionar problemas lógicos ou jogar xadrez”
(KANDEL, 2000, p. 492).
Ver cores não é apenas um prazer, é um recurso importante para
aumentar a nossa percepção de detalhes e permitir-nos identificar melhor os objetos
em meio a cenas visuais complexas. Nossa percepção das cores, formas e posição
de objetos no espaço depende de inúmeros fatores, alguns deles celulares, outros
ambientais, outros ainda de natureza cultural.
Os sistemas sensoriais foram pincelados acima isoladamente para
facilitar a compreensão e mostrar a extensão e importância de cada um. Mas, o
funcionamento é simultâneo e nenhum deles continuaria existindo se não houvesse
uma utilidade e uma função ativa no organismo. Iván Izquierdo, neurocientista
pesquisador da memória, na PUC/RS, realça, constantemente em suas palestras, o
fato de que “Não há dúvida de que a função faz o órgão”. A natureza naturalmente
vai suprimindo e substituindo o que não é útil em um organismo.
Durante a maior parte de nossa existência não nos damos conta de
nosso corpo. Muita coisa acontece com ele minuto a minuto, mas só as mais
significativas são registradas pela consciência. Embora, geralmente tenhamos a
impressão de estar no controle de todos os pensamentos e comportamentos,
87
exercendo como senhores absolutos o controle de nossa vontade.
No entanto, embora a consciência não se dê conta de tudo, o sistema
nervoso recebe e processa continuamente todas as informações sobre a posição e o
movimento das partes do corpo e do corpo como um todo, sobre o estado de nossas
vísceras, sobre a textura, a forma e a temperatura dos objetos que tocamos e sobre
a integridade de nossos tecidos. Essas informações são selecionadas, filtradas e
encaminhadas a diferentes regiões neurais, que as vão utilizar de diversas
maneiras. A parte que atingirá a consciência servirá para orientar o comportamento
e o raciocínio, podendo ser armazenada na memória para utilização posterior. A
parte inconsciente servirá para coordenar nossos movimentos de modo a manter a
postura e o equilíbrio corporal, e para ajustar o funcionamento dos órgãos e das
vísceras de acordo com as necessidades fisiológicas.
O ato de perceber e construir um repertório mnemônico fornece ao
indivíduo o certificado de posse do conhecimento adquirido. Afinal, ninguém pode
construir perceptos por você! Esta é uma atividade pessoal, única e intransferível.
Os seus perceptos são construídos a partir da atividade neuronal gerada em
determinadas áreas de seu encéfalo, quando sua atenção é dirigida ao objeto de
sua observação. A possibilidade de registrar o resultado desta experiência envolve o
acionamento dos mecanismos relacionados à formação de diferentes tipos de
memória. A formação de um representativo repertório mnemônico propicia ao
indivíduo maior variabilidade, flexibilidade e adaptabilidade na formulação de suas
ações no mundo.
A maior parte daquilo que sabemos sobre o mundo não foi
construída em nosso encéfalo ao nascer, mas foi adquirida por meio
da experiência e mantida pela memória o nome e o rosto de
nossos amigos e das pessoas que amamos, álgebra e geografia,
88
política e esportes, assim como a música de Haydn, Mozart e
Beethoven. Como resultado, somos quem somos em grande parte
porque aprendemos e lembramos. A memória, porém, não é apenas
um registro de experiências pessoais: ela permite que recebamos
instrução e é uma poderosa força para o progresso social (KANDEL,
2003; p. 14).
Para se ter uma idéia da beleza dos sistemas funcionando integrados,
processando em milissegundos uma quantidade fantástica de informações, imagine
apenas um momento do seu dia, uma pequena cena, talvez rotineira do seu
cotidiano. Imagine que você está tomando um cafezinho. Na cena rememorada
relacione a atividade neural necessária para que você possa identificar os elementos
fornecidos pela visão (a forma da xícara, a cor do café e da xícara, o movimento da
mão em relação à xícara e do líquido dentro da xícara, a localização da xícara na
mesa); pela audição (som, timbre e tons), pela somestesia (tato, propriocepção, dor
e termosensibilidade); pelo gosto advindo do paladar (doce e amargo) e pelos
cheiros, os aromas vindos vívidos da memória evocada desta cena escolhida.
Imagine tudo isso acontecendo simultaneamente, seguidamente em
todas as horas do dia. São bilhões de neurônios em atividade constante.
Propiciando a manifestação da sua vida.
Se a manifestação da vida já é bela em si, o que se poderia dizer da
vida manifestada com arte? Bons artistas deixam suas marcas ao longo da história,
que permanecem justamente por traduzirem um conhecimento útil para o homem e
para humanidade.
O sabor de uma madeleine mergulhada no chá é uma das mais famosa
evocações da experiência sensitiva na literatura. A descrição de Proust sobre a
89
natureza consciente da sensação e da memória permite profundos vislumbres sobre
o tema abordado. O texto abaixo foi escolhido por Eric Kandel, neurobiologista da
Columbia University, para ilustrar, em seu livro Princípios da Neurociência”, as
sensações expressas por uma pessoa.
[...] um dia no inverno, quando eu voltava para casa, minha mãe,
vendo que eu estava com frio, ofereceu-me chá, algo que eu
normalmente não bebia. No começo eu resisti e então, sem nenhuma
razão particular, mudei de idéia. Ela serviu um desses bolinhos
rechonchudos chamados “madeleines“, que parecem ter sido
moldados numa concha de crustáceo. Então, mecanicamente,
desanimado após um dia melancólico e com a perspectiva de um
amanhã monótono, encostei meus lábios numa colherada do chá no
qual eu tinha mergulhado um pedaço de bolinho. Tão logo aquele
líquido quente misturado com pedacinhos do bolinho tocou meu
palato, senti um calafrio e parei para entender o que estava
acontecendo comigo. Um prazer indescritível invadiu meus sentidos.
Um prazer isolado, destacado, sem alusão da sua origem. De uma
só vez as vicissitudes da vida se tornaram indiferentes para mim,
seus desastres inócuos, sua brevidade ilusória _ esta nova sensação
teve em mim um efeito de preenchimento equivalente ao do amor e
de sua preciosa essência; ou melhor, esta essência não estava em
mim, ela agora era eu (PROUST, apud: KANDEL, 2003, p. 407).
O artista gráfico holandês, Mauritius Cornelius Escher (1898-1971),
colocou a percepção como tema central de suas obras. As cenas que ele elaborou
nunca poderiam existir senão na dimensão das imagens artísticas, levando o
espectador a se equilibrar constantemente nos limites do que seria a realidade, a
ilusão e ativando vividamente sua imaginação.
90
Segundo o médico e físico alemão Hermann von Helmholtz (1821-
1894), nossa percepção é construída por meio de inferências que
inconscientemente fazemos sobre o mundo à nossa volta. Essas
inferências são contrastadas com informações que o organismo
colhe do ambiente. Cada vez que essas expectativas não são
correspondidas, ajustamos nossos perceptos, criando novas
inferências e testando novas conjecturas (BALDO, 2003).
Escher desafia o espectador a realizar essas inferências em todas as
suas obras, sempre se renovando, evitando a mesmice e a monotonia.
A Arte como forma de linguagem visual nos comunica um conteúdo,
mas não ao nível apenas anedótico ou ilustrativo, reproduzindo algum objeto ou
episódio incidental. Seu conteúdo é bem mais profundo. Por isso nos comove e
instiga nossa formulação dos conceitos apresentados de forma pictórica. A
apreciação das gravuras de Escher é capaz de ampliar e instigar a capacidade
perceptiva do espectador.
No universo de Escher, o que sobe desce, o que está dentro está fora
e o modelo pode ser a própria representação. Os efeitos gráficos são conseguidos
com uma técnica primorosa e o uso da perspectiva, sugerindo uma representação
subvertida. Enfim, Escher traduz visualmente, em sua obra, o resultado de suas
introspecções relacionadas ao significado da percepção.
Na gravura ao lado, “Mão segurando um espelho esférico” de 1934,
Escher compõem um auto-retrato em que tanto se auto percebe, como ao mesmo
tempo mostra ao espectador suas percepções. Com uma síntese visual demonstra
seu entendimento sobre o que é a percepção.
91
Ao observar a obra temos mais informação do ambiente circundante do
que se estivéssemos sentados no próprio ambiente.
Toda a peça, as quatro
paredes, o chão, o teto,
embora deformado, está
comprimido neste
pequeno círculo. Pouco
importa a forma de como
se gira e volta. Vocês não
têm como escapar a este
ponto central (situado
entre os olhos), vocês
estão invariavelmente no
Centro de vosso Universo. (ESCHER, apud: ACILLOTTI, 2004)
Ações no mundo, transformando o
entorno, deixam uma assinatura. A assinatura do
indivíduo começa na base bioquímica de suas
memórias e termina no registro gráfico-gestual de seu nome. É a assinatura de
sua obra!
O influente escultor francês, Auguste Rodin (1840-1917) registra suas
percepções em suas obras utilizando todos os sistemas sensoriais, porém quando
consideramos uma expressão tridimensional, é importante salientar a atuação do
sistema somatossensorial. Afinal, realizando ou apreciando uma escultura
precisamos movimentar-nos fisicamente ao redor dela para que possamos perceber
suas formas. A sensação de uma forma escultural não é decifrada apenas por
92
intermédio da visão, mas principalmente pelo toque da mão deslizando sobre ela.
Rodin considerava que a escultura tinha de ser feita de dentro para fora. Ele fazia
vários desenhos de suas obras antes de modelá-los em argila, a fim de, segundo
ele, testar até que ponto suas mãos já sentiam o que seus olhos viam. Certa vez
comentou:
Para o meu trabalho de modelagem tenho de possuir não só o total
conhecimento da forma humana, mas também uma profunda
percepção em relação a todos os seus aspectos. Tenho, por assim
dizer, de incorporar as linhas do corpo humano e elas precisam
tornar-se parte de mim mesmo... Somente então posso ter certeza de
que estou compreendendo (RODIN, apud: ROOT-BERNSTEIN,
2001, p. 167).
O corpo em movimento era o meio de Rodin expressar emoção. Ele
sempre buscou expressar os sentimentos internos através da mobilidade dos
músculos. Existe um fato que reflete bem o seu modo de trabalhar: certa vez,
durante um ataque de raiva, sua esposa entrou no atelier e pôs-se a andar pela sala
aos gritos. Rodin fez o molde de seu rosto enraivecido, sem olhar para o barro.
“Obrigado, minha querida”, ele disse no final do episódio. “Foi excelente.”
Se tomarmos como exemplo sua obra O pensador, uma das esculturas
mais conhecidas no mundo. Abaixo ela é mostrada em vários ângulos.
93
Um homem nu, que Rodin pretendia fosse o representante de todos os
poetas, todos os artistas, todos os inventores, está sentado sobre uma pedra em
atitude de tensa e intensa contemplação. Rodin escreveu: “O que faz meu pensador
pensar é o fato de que ele pensa não só com o cérebro, com o cenho franzido, as
narinas dilatadas e lábios comprimidos, mas com cada músculo de seus braços,
costas e pernas, com o punho cerrado e dedos dos pés retesados.” (RODIN, apud:
ROOT-BERNSTEIN, 2001, p.167).
O espectador pode experimentar essas sensações ao apreciar a obra,
ou até mesmo imitando a postura do Pensador. Por exemplo, observe a figura do
Pensador acima. Agora, sem olhar mais para a ilustração, posicione o seu corpo
imitando da melhor forma a postura do Pensador. Por um instante mantenha a
posição do Pensador, feche os olhos e procure perceber seu corpo por dentro.
Retorne a imagem e certamente você notará que posicionou braços, mãos, pernas e
pés de maneira ligeiramente incorreta. Para conseguir imitar o Pensador, será
necessário não apenas imitar a posição correta, mas também o tensionamento
correspondente dos músculos. Ao procurar imitar o Pensador de Rodin, você
vivenciou uma experiência proprioceptiva.
Músicas, melodias, danças, esculturas, pinturas, poemas, realizadas
em todos os períodos da história da arte, traduzem uma época, foram geradas com
o funcionamento dos sistemas sensoriais e expressam sua mensagem também com
o acionamento dos sistemas sensoriais de quem as observa e com essas interage.
Por que será que duas pessoas não percebem do mesmo modo uma
música ou um quadro? O que leva a pessoa a não perceber igualmente a mesma
música se a ouvir em momentos diferentes? Fisiologicamente há duas razões para
isso. Primeiro, as capacidades sensoriais dos neurônios auditivos são ligeiramente
94
diferentes nos indivíduos, tanto pelo genoma distinto, como por diferentes
experiências e influências ambientais. Segundo, o mesmo indivíduo atravessa
diversos estados fisiológicos e psicológicos ao longo do dia e da vida, e esses
estados de consciência, estados emocionais, saúde, doença são capazes de
modificar as informações que os sentidos veiculam, provocando percepções
diferentes.
O outro componente é o aprendizado pessoal que cada indivíduo
constrói ao longo da vida. O produto da percepção está intimamente ligado com a
memória e o aprendizado que serão os temas abordados do próximo capítulo.
2.3 Memória e aprendizado
Nossas memórias registram nossas vidas. Quando uma pessoa perde
sua memória, ela não perde sua vida, mas sim as anotações de seus registros, dos
fatos memorizados e anteriormente ordenados. Com as memórias de uma vida
escreve-se uma biografia. Por exemplo:
Guimarães Rosa, sua consagração definitiva viria com o romance
Grande sertão veredas. Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1963, só
tomaria posse em 1967... ou... João Guimarães Rosa (1908-1967) nasceu em
Cordisburgo (MG). Formado em Medicina, exerceu a profissão até 1934, quando
ingressou na carreira diplomática, tendo servido na Alemanha, Colômbia e França...
ou... Joãozito, como era chamado, com menos de sete anos começou a estudar
francês sozinho, por conta própria. Somente com a chegada do Frei Canísio
Zoetmulder, frade franciscano holandês, em março de 1917, pode iniciar-se no
holandês e prosseguir os estudos de francês, agora sob a supervisão daquele
95
frade... no curso ginasial matricula-se no Colégio Arnaldo, de padres alemães e,
imediatamente, iniciou o estudo do alemão, que aprendeu em pouco tempo. Era um
poliglota, conforme um dia disse a uma prima, estudante, que fora entrevistá-lo:
Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano,
esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego
(mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães;
estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio,
do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês,
do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo
mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas
ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional.
Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e
distração. (RELEITURAS, GUIMARÃES ROSA - BIOGRAFIA)
Ao estudar, aprender, colecionar fatos e acontecimentos, armazenar e
elaborar cultura, estamos ativando o encéfalo. O encéfalo trabalha incessantemente
enquanto aprendemos e armazenamos nossas memórias.
E, onde estarão as memórias? Certamente vamos encontrá-las
passeando pelos pensamentos e brincando com a imaginação. Mário Quintana, com
seu humor característico, dizia que “imaginação é a memória que enloqueceu”. E,
Guimarães Rosa, sem falar da memória diretamente, em dois parágrafos resume, de
modo único, o tema deste capítulo.
Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas
pela astúcia que tem certas coisas passadas de fazer balancê, de se
remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em
trechos diversos: uns com os outros acho que nem não misturam.
Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa
importância. Assim é que eu acho, assim é que eu conto. O senhor
96
foi bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais
perto da gente do que outras de recente data. O senhor mesmo
sabe; e se sabe, me entende. Toda saudade é uma espécie de
velhice (ROSA, apud: MACHADO, 1989, p. 78).
Existem muitas maneiras de aprender, podemos aprender observando,
pensando, repetindo até a exaustão, brincando e inclusive estudando. O que fica na
memória é o que nós aprendemos, mas nem tudo que aprendemos ficou na
memória! Embora a memória seja um fator essencial para a consciência de si
mesmo, ela é simultaneamente repleta de mistérios.
O lingüista Noan Chomsky declarou, certa vez, que nossa ignorância
pode ser dividida em problemas e mistérios. Certamente a memória, também pode
ser dividida em problemas e mistérios. Quando nos defrontamos com um mistério,
ficamos entre maravilhados e perplexos, sem ao menos uma idéia de como seria a
explicação. Porém, quando estamos diante de um problema, podemos não saber a
solução, mas temos insights, acumulamos um conhecimento crescente sobre ele e
temos uma vaga idéia do que buscamos.
Os cientistas transformam os mistérios da memória em problemas a
serem investigados. E de pergunta em pergunta, de experimento em experimento,
(experimentos os mais diversos utilizando ratos; aplysia, a lesma marinha;
drosophila, a mosca-das-frutas; beija-flor; pombos; macacos e humanos) formaram
uma teoria a respeito do funcionamento da memória e do aprendizado.
Esses estudos (de como ocorre o aprendizado e de como as memórias
são armazenadas) iniciam-se com a filosofia, depois a psicologia, a seguir a biologia
9
7
e continua com a neurociência. Portanto, o estudo científico da memória e do
aprendizado é uma longa história.
Muitos comportamentos importantes são aprendidos. Na verdade, nós
somos quem somos, em grande parte, devido ao que aprendemos, a forma como
aprendemos e ao que lembramos. Assim, aprendizagem e memória são o suporte
para todo o nosso conhecimento, habilidades e planejamento. Com o repertório
mnemônico formamos um banco de dados para que possamos considerar o
passado, nos situarmos no presente e prevermos o futuro.
A análise de como ocorre o aprendizado e de como são armazenadas
as memórias no encéfalo, tem motivado várias pesquisas na área: da biologia, da
psicologia e da neurociência. Segundo Kandel, “A memória promete ser a primeira
das faculdades mentais a ser compreensível em uma linguagem que estabeleça
uma ponte entre as moléculas e a mente, ou seja, das moléculas às células, e daí,
aos sistemas encefálicos e ao comportamento”. (KANDEL, 2003 p.15).
Qual a relação entre aprendizado e memória? O aprendizado é o
processo através do qual nós adquirimos o conhecimento sobre o mundo, enquanto
a memória é o processo pelo qual o conhecimento é codificado, retido e,
posteriormente recuperado.
O aprendizado e a memória podem ser subdivididos, hipoteticamente,
nos principais estágios: codificação, armazenamento e evocação.
A codificação refere-se ao processamento da nova informação a ser
armazenada. A codificação envolve duas fases: aquisição e
consolidação. A aquisição registra as informações em arquivos
sensoriais e estágios de análise sensorial, enquanto a consolidação
cria uma forte representação da informação através do tempo. O
armazenamento, resultado da aquisição e da consolidação, cria e
98
mantém um registro permanente. Finalmente, a evocação utiliza a
informação armazenada para criar uma representação consciente ou
executar um comportamento aprendido com um ato motor
(GAZZANIGA, 2006, p. 320).
Como a memória possui um componente temporal, faz sentido
categorizá-la segundo o tempo pelo qual armazenamos uma informação. Uma
classificação habitual é, de acordo com o tempo transcorrido entre sua aquisição e o
momento em que são evocadas:
a memória utra-rápida (ou imediata), cuja retenção não dura mais
que alguns segundos (segundos, minutos);
a memória de curto prazo (ou curta duração), que dura minutos
ou horas e serve para proporcionar a continuidade do nosso sentido
do presente (horas ou poucos dias);
a memória de longo prazo (ou de longa duração), que
estabelece engramas
16
ou traços duradouros (dura dias, semanas,
meses, ou mesmo anos).
Roberto Lent coloca um exemplo da cena cotidiana que ilustra muito
bem essa classificação da memória:
Você se dirige à sala de aula para realizar uma prova difícil. No
caminho, alguém te intercepta e pergunta quais assuntos cairão na
prova. Você começa a responder, e precisa reter por alguns
segundos a primeira palavra para emitir a segunda com coerência; a
seguir, precisa reter a segunda para emitir a terceira, e assim por
diante. Você utilizou a sua memória ultra-rápida: se alguém lhe
16
Engrama é o somatório total das alterações no encéfalo que codificaram inicialmente uma
experiência e que então constituem o registro daquela experiência.
99
perguntar logo depois quais são exatamente as palavras que
pronunciou ao responder sobre os temas da prova, não se lembrará.
Ao chegar à sala de aula, um colega lhe pergunta se foi homem ou
mulher a pessoa que a interceptou no caminho. Você responderá
corretamente utilizando a sua memória de curta duração, e se
concentrará na prova. Alguns dias depois, tudo que restará em sua
memória daquele dia na universidade provavelmente será a prova,
ou talvez apenas as questões mais difíceis dela, que foram
armazenadas na sua memória de longa duração. (LENT, 2004, p.
593).
Também é possível classificar as memórias de acordo com o tipo de
informação: declarativa ("saber que") e de procedimentos ("saber como"); ou
semântica (a linguagem, ou outros códigos) e episódica (memória de eventos ou
episódios).
A primeira vista, ao tomar conhecimento da classificação citada acima,
poderíamos pensar que esta é uma tarefa fácil ou apenas descritiva. Mas, além dos
limites entre um tipo de memória e outro nem sempre serem definidos, também é
preciso demonstrar como um organismo armazena suas memórias nas células.
Iván Izquierdo, neurocientista que estuda a memória, na PUC/RGS,
descreve claramente essa questão:
Apesar de algumas tentativas iniciais, nunca foi realmente possível
distinguir claramente entre estes tipos de memória. Uma memória
declarativa (sabemos que pôr os dedos na tomada é perigoso) se
converte, pela repetição, numa memória de procedimentos
(automaticamente, sabemos como não colocar os dedos nas
tomadas), ou num hábito. Um conhecimento semântico o inglês
é adquirido em forma episódica (através de aulas) e pode ser
evocado em forma episódica ou não. Por outro lado, não há
evidência consistente de que os diversos tipos de memória
correspondam a representações neuronais diferentes (IZQUIERDO,
2002).
100
Tipos e características da memória
Tipos e subtipos
Características
Ultra-rápida
Dura de frações de segundos a alguns
segundos; memória sensorial.
Curta duração
Dura minutos ou horas, garante o sentido de
continuidade do presente.
Quanto ao tempo de retenção
Longa Duração
Dura horas, dias ou anos, garante o registro
do passado autobiográfico e dos
conhecimentos do indivíduo.
Explícita ou declarada
Pode ser descrita por meio de palavras.
Episódica
Tem uma referência temporal; memória de
fatos seqüenciados.
Semântica
Envolve conceitos atemporais; memória
cultural.
Implícita ou não-
declarativa
Não pode ser descrita por meio de palavras.
De representação
percentual
Representa imagens sem significado
conhecido; memória pré-consciente.
De procedimentos
Hábitos, habilidades e regras.
Associativa
Associa 2 ou mais estímulos
(condicionamento clássico), ou um estímulo a
uma certa resposta (condicionamento
operante).
Não associativa
Atenua uma resposta (habituação) ou a
aumenta (sensibilização) através da repetição
de um mesmo estímulo.
Quanto à natureza
Operacional
Permite o raciocínio e o planejamento do
comportamento.
Fonte: Lent, 2004, p. 593.
101
Nossa habilidade de lembrar eventos não se reflete na operação de um
único sistema de memória, mas em uma combinação de, no mínimo, duas
estratégias usadas pelo encéfalo para adquirir informação. Uma das estratégias é
denominada de memória declarativa (ou memória explícita), requerendo
participação consciente e envolvendo o hipocampo e o lobo temporal. A outra é a
memória não-declarativa (ou memória implícita), a qual não requer participação
consciente, utilizando estruturas não corticais.
Memória declarativa (ou explícita) Para que possamos reconhecer
esse tipo de memória em nossa realidade diária, Kandel (2003, p. 81), em seu livro
Memória: da mente às moléculas, sugeriu que se faça o seguinte exercício:
Por um momento, tente recordar o nome de um amigo, talvez um
colega de escola ou faculdade;
A seguir, lembre-se de um determinado episódio que envolva esse
amigo uma conversa importante, um evento significativo, talvez
uma viagem especial;
Recrie o episódio em sua imaginação, movendo-se mentalmente ao
tempo e ao lugar onde ele ocorreu.
Uma vez que o contexto tenha sido reconstruído, pode parecer
surpreendente a facilidade com que você recorda a cena e aquilo
que ocorreu. Assim, uma pessoa pode mergulhar em uma série de
recordações, algumas vezes acompanhadas por fortes emoções e
por uma noção irresistível de familiaridade pessoal com aquilo que
está sendo evocado. É interessante que, ao realizar um exercício de
evocação como essa, uma pessoa não depende de qualquer
capacidade retrospectiva bem desenvolvida, nem precisa de
treinamento ou instruções. Lembranças vívidas do passado são
coisas que todos possuímos e podemos lembrar diariamente, sem
esforço (KANDEL, 2003, p. 81).
102
A memória declarativa é a memória para eventos, fatos, palavras,
face, música todos os vários fragmentos do conhecimento que fomos adquirindo
durante uma vida de experiência e aprendizado, conhecimento que pode
potencialmente ser declarado, ou seja, trazido à mente de uma forma verbal ou
como uma imagem mental. A memória declarativa é também denominada memória
explícita ou memória consciente.
Quando falamos em trazer à mente um evento passado, seja
lembrança de um amigo ou um pensamento passageiro sobre um evento ocorrido
anteriormente neste mesmo dia, estamos falando da memória em seu sentido mais
comum, que nos é o mais familiar. Estamos falando da memória como uma
recordação consciente, assim também será necessário um esforço consciente para
recordá-la, ou seja, percebemos estar acessando as informações armazenadas. A
memória declarativa está sub-caracterizada em:
Episódica (a memória para determinados tempos e lugares). A
memória episódica está envolvida a eventos datados, isto é,
relacionados ao tempo. Usamos a memória episódica, por exemplo,
quando lembramos da festa de aniversário de 15 anos.
Semântica (a memória para os fatos). Abrange a memória utilizada
para descrever o conhecimento organizado do mundo. Na evocação
desse tipo de informação não precisamos lembrar de qualquer
evento passado em particular. Basta saber que certos objetos são
familiares ou que certas associações entre as características do
objeto estão corretas. Assim, a memória semântica envolve
conceitos atemporais. Usamos a memória semântica ao aprender
103
que Brasília é a capital do Brasil, ou que os neurônios se
comunicam por meio de neurotransmissores.
Nós usamos a memória episódica quando nos lembramos que vimos
ontem as primeiras flores da primavera ou que ouvimos a Sonata ao
Luar, de Beethoven, vários meses atrás. Nós usamos a memória
semântica para guardar e lembrar de conhecimentos objetivos, o tipo
de conhecimento que aprendemos na escola e nos livros. No
entanto, todas as memórias explícitas podem ser concisamente
expressas em afirmações declarativas, tais como No verão passado
visitei minha avó em sua casa de campo (conhecimento episódico)
ou O cobre é mais pesado que a água (conhecimento semântico)
(KANDEL, 2000 p. 1231).
A organização e a flexibilidade do conhecimento semântico são
surpreendentes. Consideremos uma imagem visual complexa, como a fotografia de
um cavalo. Através da experiência, essa imagem visual torna-se associada a outras
formas de conhecimento sobre cavalos, de tal forma que, enfim, quando fechamos
nossos olhos e pensamos sobre a imagem de um cavalo, a imagem é baseada em
uma representação rica do conceito de um cavalo. Quanto mais associações
tivermos feito sobre a imagem de um cavalo, melhor nós codificamos tal imagem e
melhor ainda poderemos nos recordar das características de um cavalo no futuro.
Além disso, tais associações caem em diferentes categorias. Por
exemplo, sabemos que um cavalo é um ser vivo, em vez de inanimado, que é um
animal e não uma planta, que vive em um ambiente particular e que tem
características físicas e padrões de comportamento particulares e emite um
repertório de sons. Além disso, sabemos que os cavalos são usados para realizar
certas tarefas e que eles têm nomes específicos. A palavra cavalo é associada a
104
todos esses pedaços de informações e qualquer um desses pedaços pode abrir o
acesso a todo o nosso conhecimento sobre cavalos. Como esse exemplo ilustra,
“nós construímos o conhecimento semântico através de associações feitas ao longo
do tempo. A capacidade de recordarmos e utilizarmos esse conhecimento nossa
eficácia cognitiva parece depender de quão bem essas associações
organizaram as informações que retivemos.” (KANDEL, 2000, p. 1235).
Memória não-declarativa (ou implícita) Não precisa ser verbalizada
(declarada). Essa memória é recordada inconscientemente e fortemente conectada
às condições de estímulo originais sob as quais a aprendizagem ocorreu. Kandel
descreve vários procedimentos que realizamos diariamente, de forma automatizada
e inconsciente, por isso mesmo não nos damos conta, repare,
[...] quando somos apresentados a um visitante, estendemos a nossa
mão para um cumprimento. Podemos olhar para o céu em um dia
nublado e ter alguma idéia sobre a probabilidade de chuva. Quando
lemos, como adultos, executamos habilidades complexas de
movimentos oculares e de compreensão de texto que foram
aperfeiçoadas durante milhares de horas de prática. Quão confiável
ou precisamente fazemos tais coisas depende de nossa experiência
passada e das oportunidades que tivemos para nos instruirmos e
praticarmos. Mas aprendemos de fato, e chegamos a desempenhar
essa e incontáveis outras tarefas sem perceber que estamos
utilizando a memória (KANDEL, 2003, p. 191)
Essa é a memória utilizada para procedimentos e habilidades reflexas
motoras ou perceptuais. Por exemplo, a habilidade para dirigir, jogar bola, dar um nó
no cordão do sapato, nadar, etc. Apresenta quatro subtipos:
memória adquirida e evocada por meio de "dicas" (Priming) ou
memória de representação perceptual - que corresponde à
imagem de um evento, preliminar à compreensão do que ele
105
significa. Um objeto, por exemplo, pode ser retido nesse tipo de
memória implícita antes que saibamos o que é, para que serve, etc.
Considera-se que a memória pode ser evocada por meio de "pistas"
(fragmentos de uma imagem, a primeira palavra de uma poesia,
certos gestos, odores ou sons).
memória de procedimentos - refere-se às habilidades e hábitos.
Conhecemos os movimentos necessários para andar de bicicleta,
nadar, dirigir um carro, sem que seja preciso descrevê-lo
verbalmente.
memória associativa - associa dois ou mais estímulos
(condicionamento clássico), ou um estímulo a uma certa resposta
(condicionamento operante).
memória não-associativa - está estritamente relacionada a algum
tipo de resposta ou comportamento. Empregamos a memória
associativa, por exemplo, quando começamos a salivar pelo
simples fato de olhar para um alimento apetitoso, por termos, em
algum momento de nossa vida associado seu aspecto ou cheiro à
alimentação. Por outro lado, usamos a memória não associativa
quando, sem nos darmos conta, aprendemos que um estímulo
repetitivo, por exemplo, o barulho dos pingos da chuva não traz
riscos, o que nos faz relaxar e ignorá-lo.
A memória de operacional
17
é crucial tanto no momento da aquisição
como no momento da evocação de toda e qualquer memória, declarativa ou não.
Através dela armazenamos temporariamente informações que serão úteis apenas
17
Muitos especialistas consideram memória de curta duração e memória operacional como sendo a
mesma.
106
para o raciocínio imediato e a resolução de problemas, manter uma conversação ou
para a elaboração de comportamentos, podendo ser esquecidas logo a seguir. Em
outras palavras, ela mantém a informação viva durante poucos segundos ou
minutos, enquanto ela está sendo percebida ou processada. Armazenamos em
nossa memória de curta duração, por exemplo, o local onde estacionamos o
automóvel, uma informação que será necessária até o momento de chegarmos até o
carro
18
.
2.3.1 Plasticidade neuronal
O que muda exatamente no encéfalo quando aprendemos e depois
lembramos? Tudo que acontece no encéfalo depende de alterações na
comunicação (sinalização) entre neurônios, que, por sua vez, dependem de
atividade de determinadas moléculas dentro dos neurônios.
Cada neurônio contribui para o comportamento e para a atividade
mental, conduzindo ou deixando de conduzir impulsos. O processo de memorização
é complexo, envolvendo sofisticadas reações químicas e circuitos interligados de
neurônios em diferentes regiões cerebrais.
Os neurônios, quando são ativados, desencadeiam a liberação de
substâncias químicas (neurotransmissores) nas sinapses, se comunicando
geralmente com dendritos de outros neurônios. .Assim, para que as memórias sejam
criadas, é preciso que as células nervosas formem novas interconexões e novas
moléculas de proteína.
As alterações celulares decorrentes da aprendizagem e memória são
18
Esta forma de memória é sustentada pela atividade elétrica de neurônios do córtex pré-frontal.
Esses neurônios interagem com outros, através do cortex entorrinal, inclusive do hipocampo, durante
a percepção, aquisição ou evocação.
107
chamadas de plasticidade. Toda vez que você aprende alguma coisa ou adquire
alguma experiência, as células do seu cérebro sofrem uma alteração que refletirá
em seu comportamento.
Assim sendo, a plasticidade neuronal é definida como sendo a
propriedade do sistema nervoso que permite o desenvolvimento de alterações
estruturais em resposta à experiência, e como adaptação a condições mutantes e a
estímulos repetidos.
2.3.2 Localização das estruturas encefálicas envolvidas no processamento da
memória
A memória não está localizada em uma estrutura isolada no cérebro;
ela é um fenômeno biológico e psicológico envolvendo uma aliança de sistemas
cerebrais que funcionam juntos. As principais regiões encefálicas envolvidas no
processamento da memória estão descritas a seguir.
O lobo temporal é uma região no cérebro que apresenta um
significativo envolvimento com a memória. Ele está localizado abaixo do osso
temporal (acima das orelhas), assim chamado porque os cabelos nesta região
frequentemente são os primeiros a ser tornarem brancos com o tempo.
Existem consideráveis evidências apontando esta região como sendo
particularmente importante para armazenar eventos passados.
O lobo temporal contém o neocórtex temporal, que pode ser a
região potencialmente envolvida com a memória a longo prazo.
Nesta região também existe um grupo de estruturas interconectadas
entre si que parece exercer a função da memória para fatos e eventos (memória
declarativa), entre elas está o hipocampo, as estruturas corticais circundando-o e as
108
vias que conectam estas estruturas com outras partes do cérebro.
O hipocampo ajuda a selecionar onde os aspectos importantes para
fatos e eventos serão armazenados e está envolvido também com o reconhecimento
de novidades e com as relações espaciais, tais como o reconhecimento de uma rota
rodoviária.
A amígdala, por sua vez, se comunica com o tálamo e com todos os
sistemas sensoriais do
córtex, através de suas
extensas conexões. Os
estímulos sensoriais
vindos do meio externo
como som, cheiro, sabor,
visualização e sensação
de objetos, são
traduzidos em sinais
elétricos, e ativam um circuito na amígdala que está relacionado à memória, o qual
depende de conexões entre a amígdala e o tálamo.
Conexões entre amígdala e hipotálamo, onde as respostas
emocionais provavelmente se originam, permitem que as emoções influenciem a
aprendizagem, porque elas ativam outras conexões da amígdala para as vias
sensoriais, por exemplo, o sistema visual.
O Córtex pré-frontal exibe também um papel importante na resolução
de problemas e planejamento do comportamento. Uma razão para se acreditar que
o córtex pré-frontal esteja envolvido com a memória, é que ele está interconectado
com o lobo temporal e o tálamo.
109
2.3.3 A evocação e o esquecimento
As memórias não são armazenadas de forma integral e, mesmo
estabelecidas e consolidadas, não são permanentes. Este é o fenômeno do
esquecimento: somos melhores na generalização e na abstração de conhecimentos
do que na retenção de um registro literal de eventos. O esquecimento é fisiológico e
ocorre continuamente, enfraquecendo o traço de memória do que foi aprendido. De
fato, esquecer é uma função essencial ao bom funcionamento da memória: seria
impossível, e pouco prático, evocar com riqueza de detalhes todas as informações
que necessitamos num único dia.
Para Iván Izquerdo, não existe dúvida de que o aspecto mais notável
da memória é o esquecimento. Embora possamos armazenar tantas experiências
quanto possível, podemos dizer que tão importante quanto o armazenamento de
informações é o seu esquecimento. O fenômeno do esquecimento é fisiológico e
desempenha um papel adaptativo. Imagine só se fôssemos capazes de "guardar"
tudo aquilo que vivenciamos com uma riqueza de detalhes, seria praticamente
impossível, pois levaríamos boa parte do nosso tempo recordando cada detalhe
vivenciado.
No conto Funes, o memorioso, o escritor Jorge Luis Borges relata a
história de Funes, uma pessoa que tinha uma memória fantástica e nunca esquecia
de nada. Esse personagem lembrava de absolutamente tudo e, por causa disso, não
conseguia pensar de forma genérica. E, ao não ter a capacidade de esquecer,
diminuía em muito sua capacidade de aprender.
Ainda resta considerar a diferença entre as memórias esquecidas e as
110
memórias extintas. As memórias esquecidas permanecem latentes e não são
evocadas, a menos que ocorra uma circunstância especial como a apresentação, de
uma forma muito precisa, do estímulo (da situação) utilizado para adquiri-las e/ou
com uma intensidade muito aumentada, uma "dica" muito apropriada. As memórias
extintas podem ser evocadas, as memórias esquecidas não. A extinção se produz
no hipocampo e na amígdala basolateral e requer expressão gênica, síntese de
proteínas e vários outros processos bioquímicos e tem uma clara aplicação
terapêutica no tratamento de fobias: síndrome do pânico, ansiedade generalizada e,
sobretudo, estresse pós-traumático.
A evocação da memória, por sua vez, não é simplesmente a reativação
de fragmentos distribuídos que constituem o engrama, representação da informação
no sistema nervoso. Lembrar implica num processo ativo de reconstrução e não se
assemelha a assistir a uma fita de vídeo do passado. Pode acontecer que apenas
alguns fragmentos do engrama sejam ativados, ou podemos confundir pensamentos
e associações provocados diretamente pela mesma dica, e vários estudos têm
demonstrado a falibilidade da memória humana.
Além disso, o humor e a motivação também podem influenciar o quê, e
o quanto, nós lembramos; este fenômeno é denominado de dependência de estado.
O conteúdo emocional das memórias também afeta a maneira como
são armazenadas e, portanto, a sua evocação, a facilidade com que são lembradas.
Por exemplo, as pessoas recordam especialmente bem eventos acompanhados de
elevada emocionalidade. As emoções melhoram a memória declarativa (aquela para
fatos, idéias e eventos, e toda a informação que pode ser trazida ao reconhecimento
consciente e expressa através da linguagem) através da ativação da amígdala.
111
2.3.4 Enfim, o resumo...
A memória é um processo dinâmico e está sujeita à ativação de
diferentes funções mentais e encefálicas, o que a torna bastante variável para o
mesmo indivíduo e mais ainda de indivíduo para indivíduo. O desempenho da
memória depende da combinação entre aspectos de maturação nervosa, de
contexto e da demanda atencional, emocional e motivacional da atividade realizada.
Você ainda lembra do texto do Guimarães Rosa, que foi citado no
início deste capítulo? Que memória! Talvez valha a pena recordá-lo:
Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas
pela astúcia que tem certas coisas passadas de fazer balancê, de se
remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em
trechos diversos: uns com os outros acho que nem não misturam.
Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa
importância. Assim é que eu acho, assim é que eu conto. O senhor
foi bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais
perto da gente do que outras de recente data. O senhor mesmo
sabe; e se sabe, me entende. Toda saudade é uma espécie de
velhice (ROSA, apud: MACHADO, 1989, p. 78).
Regina Machado já chamou Guimarães Rosa de o mago da palavra.
Esse brilhante escritor também pode ser considerado o mestre da memória. Não
apenas por sua excelente memória e erudição.
Mestre, pois com a simplicidade que só os sábios adquirem, codificou,
armazenou e evocou, de forma única: A Memória com Ciência e Arte.
112
2.4 Aprendizado e mudança anatômica do córtex cerebral
Aprender é mudar! Mudar por dentro e por fora. Quem aprende de
verdade muda o jeito de pensar a vida, muda a forma de falar, muda a postura do
andar!
Se pensar, falar e andar são atos coordenados pelo encéfalo, então
algo deve ser mudado também no interior do encéfalo para que a pessoa possa se
manifestar de uma maneira diferente. Será que quando aprendemos algo e o
registramos como memória(s), algo também se altera no encéfalo? Essa pergunta é
respondida por Eric Kandel, prêmio Nobel de medicina e fisiolgia em 2000:
À medida que adquirimos novas informações e armazenamos como
memórias, acredita-se que novas alterações anatômicas se
estabeleçam no encéfalo. Esse princípio simples tem profundas
implicações. Uma vez que todos somos criados em ambientes de
certo modo diferentes e temos, de alguma forma, diferentes
experiências, a arquitetura do encéfalo de cada pessoa é modificada
de forma única. Mesmo gêmeos idênticos, não terão encéfalos
idênticos, pois certamente terão experiências de vida diferentes
(KANDEL, 2003, p. 212).
Desde o começo do século XX que Ramon y Cajal
19
postulou
corretamente que “O homem é o escultor de seu próprio cérebro”. Na década de
1950, também um dos pioneiros da pesquisa em comportamento biológico, Donald
Hebb, acreditava que a memória implicava em mudanças estruturais nos circuitos
neurais. Porém, naquela época, esses cientistas ainda não dispunham de evidências
experimentais para que suas hipótese pudessem ser comprovadas.
19
Santiago Ramón y Cajal, prêmio Nobel de medicina e fisiologia em 1906, é considerado o pai da
neurociência (ver anexo III).
113
Nos últimos 20 anos houve um grande avanço nas neurociências,
especialmente em relação aos mecanismos fisiológicos e moleculares da formação,
consolidação e evocação da memória. Atualmente, está estabelecido que a
aprendizagem pode levar a alterações estruturais no encéfalo. A cada nova
experiência do indivíduo, constata-se que redes de neurônios
20
são rearranjadas,
outras tantas sinapses são reforçadas e múltiplas possibilidades de respostas ao
ambiente tornam-se possíveis. A experiência pode se dar por uma aprendizagem
ativa ou pela convivência em lugares enriquecidos com indivíduos, cores, música,
sons, livros, cheiros e outros estímulos.
Este processo de modificação sináptica é chamado de plasticidade
neuronal. Cada experiência vivenciada estimula o processo de plasticidade neuronal
em diferentes espécies, que vão desde os invertebrados até os humanos. Define-se
a plasticidade neuronal como sendo a propriedade do sistema nervoso que permite
o desenvolvimento de alterações estruturais em resposta à experiência, e como
adaptação a condições mutantes e a estímulos repetidos.
A plasticidade neuronal está presente em todas as etapas do
desenvolvimento, inclusive na fase adulta e durante o envelhecimento. A capacidade
de modificação do sistema nervoso em função de suas experiências, tanto em
indivíduos jovens como em adultos, foi reconhecida apenas nas últimas décadas
(ROSENZWEIG, 1996).
A neuroanatomista americana Marian Diamond (1987) realizou um
experimento com ratos, que tem sido muito comentado e constantemente citado. Ela
foi capaz de demonstrar que os animais que foram criados em um ambiente
20
Os neurônios são células especializadas, cuja principal função é comunicar-se com outros
neurônios e com os órgãos que realizam as ações (como os músculos e o coração). Em
conseqüência do processamento de uma fantástica quantidade de informações, a atividade integrada
dos neurônios determina e modula o comportamento dos indivíduos.
114
enriquecedor, uma gaiola cheia de brinquedos e dispositivos, tais como bolas, rodas,
escadas, rampas, etc., desenvolviam um córtex cerebral significativamente mais
espesso do que aqueles criados em um ambiente mais limitado, sem os brinquedos
ou vivendo isolados. O aumento da espessura do córtex não era devido apenas a
um maior número de células nervosas (natural da etapa do desenvolvimento do
rato); mas havia também um aumento expressivo de ramificação de seus dendritos e
das interconexões com outras células, conforme está ilustrado na figura abaixo.
Ambiente pobre em objetos
Um ambiente enriquecedor, que permite aos
ratos interagir com os brinquedos em suas
gaiolas, provoca mudanças anatômicas no
córtex cerebral.
115
O gráfico à esquerda mostra como o número
médio de ramificações observadas nas
células estelares
21
, que são encontradas na
quarta camada do córtex visual do rato, é
maior nos animais criados em ambientes
enriquecedores (reta identificada como EC,
isto é, condição enriquecedora) do que nos
animais criados juntos em grupos sociais,
(identificados como SC, ou condição de
grupo social), porém desprovidos de
brinquedos. Por sua vez, os ratos SC
apresentam um número maior de ramificações nas células estelares do que os
animais criados isolados e sem brinquedos (IC, ou grupo de condição de
isolamento). Uma diferença ainda maior pode ser vista nas ramificações de quarto e
quinto níveis. Em outras palavras: as ramificações originadas do corpo da célula não
aumentam devido a uma experiência sensorial, motora ou social mais rica; o inverso
é verdadeiro para as ramificações no ponto dos longos processos neuronais. Isso
constitui uma evidência de que as células estelares crescem e geram novas
ramificações naquelas pré-existentes, e isso é um resultado muito significativo.
As partes das células estelares que crescem são os dendritos
22
, e
consequentemente, o crescimento das ramificações dos dendritos só pode significar
que os processos de intercomunicação nas células do córtex
23
aumentaram e que
21
Células estelares são neurônios arredondados e seus axônios não deixam o Córtex, sua função é
estabelecer as conexões com as colunas corticais.
22
É através dos dendritos que um neurônio recebe os impulsos nervosos de outras células, que são
transmitidos através do corpo celular e, a partir daí, para o axônio.
23
Córtex é a camada mais externa do cérebro. A espessura do córtex cerebral varia de dois a seis
milímetros.
116
mais dendritos torna-os mais efetivos em termos de regulação da atividade dos
circuitos neuronais.
Esse aumento de densidade sináptica desenvolvido em ambientes
motivacionalmente enriquecidos foi constatado em ratos. Não está provado, ainda,
com o devido rigor científico, que o mesmo ocorra com seres humanos.
Embora ainda não existam evidências diretas, tais como as observadas
por Diamond em ratos, é do conhecimento científico o fato de que as tarefas de
ativação mental são acompanhadas por muitas mudanças, tais como mudanças no
metabolismo cerebral (consumo de glucose por células cerebrais, aumento do fluxo
e temperatura do sangue). Essas mudanças podem agora ser observadas
diretamente através de novos instrumentos de imagens computadorizadas, como,
por exemplo, as imagens por ressonância magnética funcional (RMf) e a tomografia
de emissão de pósitron (PET).
Fluxo Sanguíneo Cerebral (CBF) durante uma tarefa
de ativação mental. O sujeito controle normal, linha de
base (esquerda) e tarefa matemática (direita). Nesse
indivíduo,
o aumento da perfusão durante as tarefas
matemáticas é visível tanto na área frontal inferior e
parietal esquerda.
Fonte: Villanueva-Meyer et. cols. - Alasbimn Journal
No passado, sem as técnicas de imagem do cérebro, era difícil coletar
provas neurocientíficas diretas da aprendizagem de humanos. Até pouco tempo, os
117
cientistas acreditavam que, uma vez completado seu desenvolvimento, o cérebro
era incapaz de mudar, particularmente em relação às células nervosas, ou
neurônios.
Hoje já está estabelecido que o encéfalo, mesmo tendo uma estrutura
arquitetônica pré-estabelecida, é passível de permanentes mudanças construtivas,
assim como também são o repertório comportamental e as memórias do indivíduo.
As evidências científicas indicam que a plasticidade sináptica é a responsável pela
capacidade de transformação dos neurônios e pela aquisição das memórias, e que a
manutenção de atividades criativas e estimulantes pode melhorar a evocação da
memória. Embora alguns desses prováveis mecanismos já tenham sido
identificados, ainda há muito a ser descoberto e decifrado. A memória e a
plasticidade estão, sem dúvida, entre as mais interessantes e enigmáticas fronteiras
das neurociências.
Existem suficientes evidências que demonstram que a educação e o
entorno emocional esculpem o encéfalo e modificam sua forma de processar a
informação. Esse processo ocorre através da ativação de partes específicas do
encéfalo, em resposta a estímulos externos fundamentais, como o movimento, a
percepção e as emoções.
A compreensão das vantagens e limitações das tecnologias de imagem
do encéfalo é o primeiro passo para entender como a neurociência cognitiva poderá
colaborar com a educação. Para os educadores, os resultados advindos destas
pesquisas podem trazer uma importante contribuição para a elaboração de
currículos que levem em conta as características do funcionamento encefálico.
118
III ARTE
3.1 A arte e a evolução da espécie humana
A Terra foi formada há
aproximadamente cinco bilhões de
anos; a vida surgiu há cerca de 3,5
bilhões de anos, homenídeos,
definidos pelo hábito de caminhar
como bípedes, provavelmente
evoluíram de um macaco africano
há cerca de seis milhões de anos. A
partir dos Australopithecus,
desenvolveram-se espécies mais
parecidas com os humanos, entre
elas o Homo habilis, o Homo
erectus, o Homo de nienderthalis e
o Homo sapiens arcaico.
Um vasto período de
milhões de anos separa o
Australopithecus do Homo de nienderthalis. No decorre desse processo evolutivo, os
registros arqueológicos, não apontam nada que possamos seguramente chamar de
arte. Esses registros só aparecem com o Homo sapiens sapiens (nossa própria
espécie), que surgiu na África do Sul e no Oriente Médio a cerca de 150 mil anos
atrás. Nesta época, mais duas espécies Homo já habitavam a terra, o Homo sapiens
119
arcaico e o Homo neanderthalensis.
O comportamento dessas três espécies Homo, a 150 mil anos atrás,
não denotava muita diferença. Porém, surgem indícios de que algo singular estava
ocorrendo:
No Oriente Médio, vemos o Homo sapiens sapiens
não apenas enterrando seus mortos dentro de covas como, na
verdade, também fazem o Homo neanderthalensis mas
depositando partes das carcaças de animais junto aos mortos,
aparentemente como se fossem oferendas. Na África do Sul estão
usando torrões de ocre vermelho
24
, e também afiando pedaços de
ossos para fazer arpões. São os primeiros utensílios feitos de outro
material que não a pedra ou a madeira (MITHEM, 2002, p. 36).
Outro marco acontece a aproximadamente 60 mil anos, no Sudoeste
da Ásia, o Homo sapiens sapiens constrói embarcações e faz a primeira travessia
até a Austrália. No Oriente Médio as lascas de pedras agora são longas e finas:
parecem de fato camadas de lâminas. Porém, é na África e na Europa, por volta de
50 mil anos atrás, que rapidamente o cenário se transforma
25
. A restrita série de
ferramentas de pedra agora deu lugar a uma grande diversidade de objetos
fabricados com vários materiais diferentes, incluindo osso e marfim. O Homo sapiens
sapiens começa a mudar o entorno que lhe cerca com comportamentos inéditos
construindo moradias, costurando vestimentas com agulhas de osso, esculpindo,
pintando nas paredes, enterrando os mortos e criando ornamentos. O Homo sapiens
arcaico e o Homo neanderthalensis aos poucos desaparecem, o Homo sapiens
24
O ocre vermelho é uma forma de minério de ferro.
25
Na áfrica do Sul o arqueólogo norueguês Christopher Henshilwood descobriu a Caverna Blombos,
com uma coleção impressionante de ferramentas sofisticadas e artefatos ornamentais que datam de
75 mil anos. As descobertas de Blombos oferecem forte evidência de que pelo menos um grupo de
Homo sapiens possuía a mentalidade moderna antes de 50 mil anos. Os artigos foram publicados em
2001 e 2002.
120
sapiens agora claramente estabelece o ritmo e se torna a única espécie de Homo
sobre a face da terra.
Esse período do Paleolítico Superior (cerca de 50 mil anos atrás),
marcado por abruptas transições no comportamento da espécie humana, é
denominado pelos arqueólogos de explosão cultural, ou despertar do ser humano ou
o big bang da cultura humana.
Ainda que existam diversas discordâncias sobre como e quando
surgiu o despertar cultural, existe consenso entre os arqueólogos com relação aos
seguintes fatos referentes a esta época:
a produção de ferramentas mais especializadas, nas quais a forma e
o tipo de pedra são adequados à tarefa a ser realizada;
o aparecimento de sofisticadas formas de representação artística,
variando de estatuetas às pinturas nas cavernas de Chauvet
26
, na
França;
uma explosão nos artigos cuja função é decorativa ou ornamental:
os dentes, os escudos, os pingentes perfurados;
as primeiras evidências de sepultamento de indivíduos com objetos
depositados em seus túmulos.
Como a explosão cultural foi realizada pelo Homo sapiens sapiens não
a partir do momento em que este surge no mundo, mas após terem transcorridos
26
No dia 18 de dezembro de 1994, Jean-Marie Chauvet e mais dois exploradores descobriram uma
caverna, na França, que foi, posteriormente, batizada de Chauvet em homenagem a seu descobridor.
A exploração revelou quatro câmaras de galerias em uma extensão de cerca de 500 metros. Juntas,
as quatro câmaras continham mais de 300 animais pintados e gravados, juntamente com pontos,
padrões geométricos e gravações a mão por meio de estêncil. Essas pinturas foram datadas entre 32
mil e 31 mil anos atrás. É possível realizar uma visita virtual a essa caverna acessando o seguinte
endereço: <http://www.culture.gouv.fr/culture/arcnat/ chauvet/en/>.
121
pelo menos 70 mil anos, surge a seguinte pergunta: O que teria ocorrido com o
Homo sapiens sapiens? Qual(is) evento(s) teria propiciado tamanha mudança
comportamental?
Infelizmente não há resposta conclusiva para essa questão. Para
situar-nos melhor é necessário lançar novamente um olhar no caminho sinuoso da
evolução. A evolução humana percorreu um caminho de desvios e viradas e
encontrou impasses ocasionais. A parte mais antiga da nossa história ainda
permanece bastante obscura. Dizemos que foi quando criaturas com aparência de
macacos se acostumaram a caminhar sobre as duas pernas. A partir dessa
inovação essencial, a evolução humana pode ser vista como uma série de pelo
menos três, ou talvez quatro eventos repentinos e profundos espaçados ao longo de
grandes períodos de tempo em que pouca coisa ocorreu.
Richard Klein, paleantropólogo na Universidade de Stanford,
argumenta o seguinte:
Até 50 mil anos atrás, a anatomia e o comportamento
humanos parecem ter-se desenvolvido de maneira relativamente
lenta, mais ou menos harmoniosa. Após o período de 50 mil anos, a
evolução anatômica cessou, enquanto a revolução comportamental
se acelerou de forma acentuada. Pela primeira vez havia
desabrochado entre seres humanos a capacidade para a produção
de cultura, baseada numa quase infinita aptidão para inovar (KLEIN,
2002, p.19).
3.1.1 Hipóteses de como ocorreu o despertar
Qual teria sido o(s) eventos(s) ocorridos com o Homo sapiens sapiens
que proporcionou o surgimento do despertar cultural?
122
Muitos arqueólogos que tentaram explicar o despertar cultural
defendem uma causa estritamente social, tecnológica ou demográfica, é o caso de
Randall White, Sally McBrearty e Allison Brooks, que postulam que a circunstância
que talvez mais tenha estimulado comportamentos culturais avançados foi o
crescimento populacional. A presença de mais pessoas aumentava a pressão sobre
recursos, forçando nossos ancestrais a divisar maneiras mais inteligentes de obter
comida e material para a fabricação de ferramentas. Mais gente também elevava as
chances de encontros entre os grupos. Contas, pintura corporal e mesmo
manufatura de ferramentas estilizadas podem ter funcionado como indicadores da
filiação e do status de um indivíduo em um clã, o que teria sido importante em
situações de disputa por recursos escassos.
Nos últimos anos, um número pequeno, mas crescente, de
arqueólogos como Christopher Henshilwood, passou a rejeitar as teorias que
pregam uma grande explosão cultural em favor de um modelo fundamentalmente
diferente. Segundo eles, não houve atraso entre o desenvolvimento do corpo e da
mente. Em vez disso, argumentam, o comportamento humano moderno
desenvolveu-se durante um longo período, num processo mais apropriadamente
descrito como evolução do que revolução.
Steven Mithen, arqueólogo da Universidade de Reading, constrói um
argumento em que compara o funcionamento da mente com o funcionamento do
canivete suíço, para explicar essa questão:
Observamos realmente uma explosão cultural
começando há cerca de 43 mil anos na Europa, com a produção dos
primeiros trabalhos artísticos, e eu sugeriria que isso pode ser
explicado por novas conexões entre os domínios das inteligências
técnica, social, naturalista. Os três processos cognitivos, antes
isolados, agora funcionavam juntos, criando o novo processo
cognitivo que podemos chamar de simbolismo visual, ou
simplesmente arte (Mithen, 2002, p. 262).
123
Uma pequena minoria, a exemplo de Richard Klein, defende uma
causa biológica, apoiada na suposição de uma mutação genética.
Os próprios arqueólogos salientam que, ao contrário do despertar em
si, suas explicações são mais uma questão de crenças pessoais ou de filosofia que
de provas.
As mudanças expressas pelo comportamento
27
, no período do
despertar cultural, que são estudadas através de indícios e vestígios nas pesquisas
arqueológicas, apontam uma relação direta com o desenvolvimento neurofisiológico
de nossos ancestrais. Afinal, não é possível o ser humano planejar e executar uma
ação sem haver uma atuação neuronal correspondente e competente para a
finalidade em questão. Portanto, alguns fatores devem ter favorecido um
desenvolvimento maior da capacidade cognitiva, que até então vinha sendo
demonstrada.
Uma explicação neurológica para a explosão cultural após o marco de
50 mil anos não atende a um importante critério para avaliação da validade de uma
hipótese científica: ela não pode ser testada ou refutada pela experimentação ou
pelo exame de fósseis humanos relevantes. Os encéfalos humanos chegaram ao
tamanho atual centenas de milhares de anos antes, mas os crânios pouco revelam
sobre o funcionamento dos encéfalos que eles continham. Não há nada nos crânios
datados de um período anterior em torno de 50 mil anos atrás que mostre a
ocorrência de uma mudança neurológica significativa. A hipótese neurológica, no
entanto, corresponde a um critério científico importante: constitui a explicação mais
27
As duas transformações comportamentais realmente impressionantes, associadas exclusivamente
ao Homo sapiens sapiens, aconteceram muito depois do tamanho do encéfalo humano moderno ter
evoluído. A primeira foi o despertar cultural entre 50 mil e 30 mil anos atrás e inclui o aparecimento
dos artefatos artísticos, da tecnologia complexa e da religião. A segunda foi o início das atividades
agrícolas com o cultivo de plantas e domesticação de animais, cerca de 11 mil anos atrás.
124
simples e econômica para a evidência arqueológica disponível. E, é nessa
evidência, mesmo incompleta e imperfeita, que devemos confiar para reconstruir o
nosso passado evolutivo.
É ponto pacífico que temos de observar o encéfalo para compreender
os processos cognitivos em qualquer espécie. Os cientistas que estudam a evolução
do encéfalo sugerem que um aumento relativo no tamanho desse órgão,
possivelmente aumentou a quantidade de informações que o encéfalo humano
poderia processar, o que permitiu o desenvolvimento de modelos mentais mais
sofisticados. O encéfalo é um órgão de processamento de informação, e desde o
Australopithecus, o encéfalo humano aumentou quase três vezes de tamanho. O
aumento desse órgão só se tornou possível graças às mudanças ocorridas na
circulação sanguínea, o que permitiu que um encéfalo de maior tamanho fosse
adequadamente resfriado e nutrido. Tal evolução foi estimulada provavelmente pela
seleção natural de padrões de comportamento mais complexos.
Porém, a partir do Homo sapiens sapiens que surgiu há cerca de 150
mil anos atrás, o tamanho do encéfalo, determinado pelas medidas dos crânios
pertencentes aos fósseis encontrados, não mais apresenta alterações anatômicas.
O renomado neurocientista Eric Kandel, da Columbia University,
argumenta:
Os seres humanos têm a capacidade única de
comunicar para os outros aquilo que aprenderam, e, assim, podem
criar culturas que podem ser transmitidas de geração em geração. As
realizações humanas parecem expandir-se sempre, porém o
tamanho do encéfalo humano aparentemente não aumentou de
forma significativa desde que o Homo sapiens apareceu, de acordo
com os registros fósseis, há diversas centenas de milhares de anos.
O que determinou mudanças culturais e progressos durante esses
milhares de anos não foi um aumento do tamanho do encéfalo,
tampouco uma mudança em sua estrutura. Foi, antes de tudo, a
capacidade intrínseca do encéfalo humano de capturar o que
aprendemos pela fala e pela escrita e de ensinar tais coisas a outros
(KANDEL, Memória, p.14).
125
Na constituição do encéfalo existe um elemento vital, responsável pela
habilidade cognitiva referente à simbolização, é o córtex pré-frontal, a partir do qual
vários comportamentos podem ser formulados. Conforme comenta Antonio
Damásio, neurologista da Universidade de Iowa, essa é uma área do cérebro
considerada como o centro executivo, responsável pelo pensamento abstrato e
simbólico, por planejar o futuro, dirigir a atenção para uma tarefa, modular o afeto e
as emoções, assim como adiar uma gratificação e lidar com as frustrações. Além
disso, essa área está intimamente ligada às funções de resolver problemas novos,
planejar a ação futura, a atenção, a memória, a percepção e o seqüênciamento
temporal. É também a área na qual se apresenta a maior diferença, ao comparamos
o encéfalo da nossa espécie e dos outros animais (DAMÁSIO, 2001).
Porém, somente com o desenvolvimento do córtex pré-frontal ainda
não haveria possibilidade do Homo sapiens sapiens manifestar os comportamentos
registrados durante o despertar cultural. O córtex pré-frontal funciona de maneira
integrada com outras estruturas encefálicas, responsáveis pelo mecanismo
neurofisiológico da atenção, da percepção, da memória e de nossas ações
(comportamentos).
Como Marcus Vinícius Baldo, professor de Fisiologia Sensorial do
Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, ICB/USP, apontou:
O sistema nervoso evoluiu de tal forma que uma
grande complexidade estrutural e funcional foi alcançada não tanto
pelas vias aferentes, responsáveis por canalizar as informações
sensoriais, ou pelas vias eferentes, responsáveis por emitir as
respostas motoras, mas por circuitos que intermedeiam essas vias
de entrada e saída. Os complexos circuitos neurais que se localizam
entre as vias sensoriais e motoras são os principais responsáveis
126
pela riqueza, flexibilidade e plasticidade de nossos comportamentos.
Isso se manifesta na enorme diversidade de estímulos que podem
ser reconhecidos por nossos sistemas sensoriais, na multiplicidade
de graus de liberdade com que nossas ações são organizadas pelos
sistemas motores e, sobretudo, pela rica plástica relação que se
estabelece entre esses dois conjuntos. Não só possuímos um grande
repertório de respostas comportamentais para um conjunto de
estímulos oriundos do ambiente, mas podemos, além disso, alterar e
ajustar respostas já existentes, ou ainda criar novas respostas,
tornando nosso repertório comportamental cada vez mais otimizado
e adaptado ao ambiente (BALDO, In: CURI (org), 2007).
O neurocientista V. Ramachandran, considerando que uma das
descobertas mais importantes das neurociências nos últimos tempos são os
chamados neurônios-espelho
28
, especula que estes poderiam ter um significado
importante no surgimento do despertar:
A mudança possivelmente ocorrida no Homo sapiens
foi uma adaptação genética que deu a neurônios-chave a capacidade
de espelhamento que eles têm agora, abrindo caminho para avanços
acelerados na compreensão, comunicação e aprendizado. Pela
primeira vez, a informação podia ser espalhada, ampliada e
modificada para criar a dinâmica intelectual e social da cultura. Os
neurônios-espelho foram cruciais no desenvolvimento de habilidades
sociais elaboradas, redes sociais e infra-estrutura de conhecimento
que chamamos cultura do uso de ferramentas ao deleite com
Shakespeare, da caça colaborativa ao hip-hop (Scientific American,
ano XIV, nº 161, p. 51).
As considerações expostas acima expõem o contexto em que se insere
a hipótese neurológica, a evolução do encéfalo humano e o aparecimento das
28
Os neurônios são a unidade básica do sistema nervoso e operam em grandes conjuntos, como
unidades funcionais de informação. Esses conjuntos de neurônios associados formam os chamados
circuitos ou redes neurais que constituem o encéfalo. O neurônio-espelho é um tipo específico de
neurônio descoberto em 1996.
127
funções cognitivas modernas. Aliás, uma explicação de como esse novo fenômeno
extraordinário surgiu continua sendo ao mesmo tempo a questão mais intrigante e
desconcertante da biologia.
3.1.2 Origens da arte
Ao buscar as possíveis origens da arte, podemos recuar com
segurança a cerca de 50 mil anos, quando surgem os artefatos considerados
artísticos pelos arqueólogos, no início do período Paleolítico Superior. Esta época,
considerada o despertar do ser humano, representa de fato o momento no qual o
homem demonstra a sua capacidade cognitiva de trabalhar com símbolos, a sua
habilidade absolutamente moderna de produzir cultura.
O registro arqueológico mostra que a arte do Paleolítico Superior não é
um produto de circunstâncias confortáveis, realizada num tempo ocioso; ela foi
criada por indivíduos que viviam sob condições de grande estresse. O florescimento
da arte paleolítica na Europa ocorreu em condições ambientais extremamente duras,
na época da última glaciação. As paisagens se tornaram extremamente gélidas na
medida em que as placas de gelo começaram a retrair-se e o clima alterna-se
drasticamente entre períodos de clima úmido e períodos de clima frio e seco,
terminando com um rápido período de aquecimento global, há 10 mil anos.
3.1.3 Critérios para que os arqueólogos considerem um artefato como arte
A definição de arte é específica de cada cultura e também difere
através dos tempos. Na verdade, muitas das sociedades que criam maravilhosas
pinturas rupestres não têm uma palavra que denote a arte nas suas línguas. Para a
128
inclusão de algum artefato na categoria arte, os arqueólogos consideram que este
deve ser uma representação figurativa ou indique pertencer a um código simbólico,
por exemplo, pela repetição dos mesmos motivos. A fase mais inicial do Paleolítico
Superior oferece um vasto panorama de exemplos dos dois casos. Vários sítios
foram explorados na Ásia, na Europa e na África, nos permitindo uma visão
amplificada do possível significado da arte para o desenvolvimento do ser humano.
Em relação à arte figurativa da Europa Central podemos citar quatro
sítios datados com cerca de 33 mil anos: Vogelherd, Hohlenstein-Stadel,
Geibenklösterle, todos na Alemanha, e Stratzing/Krems-Rehberg, na Áustria. A
maior coleção individual, dez estatuetas, é originária de Vogelherd Cave, e consiste
em dois mamutes, um cavalo, três felinos, um baixo relevo de cabeça de mamute,
um baixo relevo de leão, um bisão totalmente esculpido, uma cabeça de leão e uma
figura antropomórfica.
escultura de um cavalo, Vogelherd
homem-leão, Vogelherd Vênus, Willendorf
As pinturas rupestres da caverna de Chauvet, na França, descobertas
em 1994, foram datadas com carbono-14 e têm cerca de 30 mil anos de idade. A
gruta de Chauvet se abre numa sucessão de vastas salas por uma extensão de 500
metros. Ela não era habitada, uma vez que fragmentos de sílex talhado e os restos
de animais trazidos pelo homem são raros. Em compensação, fragmentos muito
numerosos de carvão vegetal, provenientes provavelmente de tochas e fogueiras
para iluminação ou para fabricação de pigmentos, estão presentes no chão. Cerca
de 425 figuras de animais foram encontradas, isoladas ou reunidas em grandes
129
composições. Esses animais frequentemente representados em movimento,
distinguem-se por seu naturalismo e dinamismo. A natureza dos animais
representados e as técnicas utilizadas tornam essas figuras excepcionais. Os mais
abundantes são os rinocerontes (65), os leões (74) e os mamutes (66). Os cavalos,
as renas, os bisões e uma coruja; representados em menor número, são igualmente
pinturas extraordinárias.
Essa caverna
está no mesmo nível da
caverna de Lascaux, e
certamente da de Altamira, na
Espanha, no que diz respeito
à natureza espetacular da
sua arte.
130
Steven Mithen, arqueólogo da Universidade de Reading, faz um breve
inventário que traça um panorama da produção artística deste período:
Na África, descobriram-se placas de pedra de 27,5 mil
anos de idade onde foram pintadas representações de animais, e
contas de cascas de ovos de avestruz de 39 mil anos de idade. Na
Ásia Oriental, as primeiras contas datam de 18.000 a 13.000 anos
atrás e provêm da caverna de Longgupo, na China. Gravações em
argila nas paredes de cavernas da Austrália forma datadas de 23.000
15.000 anos atrás, e é provável que parte da arte rupestre seja tão
antiga quanto 40.000 anos. Nos abrigos em rochas de Mandu Mandu
descobriu-se uma coleção de vinte mil contas feitas de conchas e
datadas de 34.000 30.000 anos atrás (MITHEN, p. 43).
As evidências arqueológicas mostram que, por volta de 30 mil anos
atrás, a capacidade de realizar arte era um atributo universal da mente humana
moderna. E isso implica na capacidade de gerar símbolos visuais. Embora a
definição de um símbolo visual seja notoriamente difícil, Steven Mithen (2002, p.
255) aponta pelo menos cinco propriedades cruciais para que um objeto possa ser
considerado um símbolo visual:
A forma do símbolo pode ser arbitrária em relação ao referente.
Essa é uma das características fundamentais da linguagem, mas
também se aplica aos símbolos visuais. Por exemplo, o símbolo “2”
não se parece com dois em nada.
Um símbolo é criado com a intenção de comunicar.
Pode ocorrer uma defasagem espaço-temporal considerável entre
um símbolo e seu referente. Por exemplo, eu poderia desenhar uma
imagem de algo que aconteceu há muito tempo, ou de algo que
131
penso que possa acontecer no futuro.
O sentido específico de um símbolo pode variar entre indivíduos e,
de fato, entre culturas. Isso freqüentemente depende dos seus
conhecimentos e experiências.
O mesmo símbolo pode tolerar um certo grau de variabilidade, seja
ele imposto deliberadamente ou não. Por exemplo, somos capazes
de entender a letra de diferentes pessoas, embora as formas
específicas de cada letra não sejam iguais.
Um bom exemplo de símbolos visuais, que podem ser considerados
arte em rochas, durante o paleolítico, é a imagem de uma série de curvas
encaixadas em formato de U em Natal Drakensberg, que estão circundadas por
pequenos insetos voadores (Lewis-Willians, 1995). A pintura representa uma
colméia, provavelmente refletindo a grande predileção que todos os caçadores-
coletores têm pelo mel. Entretanto, Lewis-Williams também explica como é provável
que essa imagem tenha um significado entrópico e também reflita o trabalho de
xamãs. Mithen considera que
Realmente, não há como duvidar que as imagens criadas no
Paleolítico Superior também possuíam significados múltiplos e
simbólicos complexos, que envolvem as cinco propriedades já
relacionadas. Os arqueólogos têm mais chances de reconstruir o
sentido “externo” da arte que os significados “internos”, os quais
exigem um acesso ao mundo mitológico perdido da mente da pré-
histórica (MITHEN, 2002, p. 258).
132
Randall White
29
, arqueólogo especialista no estudo da arte portátil (do
tipo que se encontra no solo) do Paleolítico Superior, sugere que a dificuldade em
definir o que é arte tem sido um sério impedimento para explicar sua origem. Dentre
as várias pesquisas que já realizou encontra-se um estudo detalhado no sítio de La
Souquette, no sudoeste da França. Neste local foram encontradas peças
consideradas ornamentos pessoais; são uma produção de contas de marfim que
foram gravadas imitando conchas do mar. Após extenso levantamento da
distribuição desses itens por toda Europa, e pesquisa demonstrando o tempo e o
esforço extraordinários para que cada conta de marfim fosse manufaturada (cerca
de três horas cada), White enfatiza que deveríamos conceber essas contas como
objetos de arte, em vez de banalizá-las chamando-as de simples objetos
decorativos.
Randall White acredita que as contas de marfim, as conchas
perfuradas, os dentes furados de animais e outros ornamentos ou
objetos de arte portáteis são tão simbólicos quanto os rinocerontes
de carvão vegetal desenhados pelos artistas aurignacianos do início
do Paleolítico Superior nas paredes da caverna de Chauvet, ou do
bisão multicor pintado pelos magdalenianos no final do Paleolítico, no
teto de Altamira. As populações do Paleolítico Superior quase
sempre retratavam os animais que caçavam ou comiam, a julgar
pelos fragmentos de comida encontrados nos sítios. Mas também
mostravam comumente espécies que pouco caçavam e deviam ser
raras na paisagem. Portanto, a escolha dos temas das pinturas era
29
A pesquisa de White, arqueólogo da Universidade de Nova York, mostra que a produção de contas
dos primeiros aurignacianos exigia tempo e esforço extraordinários, o que ressalta a possibilidade de
terem um sentido simbólico. O processo de manufatura envolvia passos múltiplos, a saber: modelar
uma haste em marfim ou em pedra macia, buscando um formato semelhante ao de um lápis; inserir
sulcos ou ranhuras com a distância de um a dois centímetros entre elas em volta da haste; aplicar
pressão para quebrar as pré-formas cilíndricas de contas entre os sulcos; criar um furo para que elas
pudessem ser penduradas, seja com o ato de goivar cada pré-forma no interior a partir das
extremidades, ou seja com o método de perfuração rotativa; e, finalmente, usar um abrasivo natural
para tornar as contas uniformes, raspando-as para que adquirissem um formato padronizado. Os
experimentos de White mostram que uma única concha geralmente exigia cerca de uma a três horas
de trabalho, mas alguns sítios do Paleolítico Superior contêm centenas ou até mesmo milhares de
conchas.
133
arbitrária, e provavelmente ligava-se às crenças locais sobre a forma
de natureza se organizar ou sobre a relação entre a natureza e a
sociedade. As populações do Paleolítico Superior eram igualmente
arbitrárias ao produzir ornamentos ou objetos de arte portáteis, e a
escolha variava amplamente ao longo do tempo e do espaço. No
primeiro intervalo aurignaciano, antes do período de 30 mil anos
atrás, os povos produziram contas de marfim e colares de dentes de
animais, sobretudo na França e na Rússia; perfuravam conchas para
pendurá-las em áreas que hoje compreendem a Espanha, a França,
e a Itália; produziram esculturas tridimensionais de animais,
essencialmente na Europa Central; e gravavam em blocos de
calcário apenas numa área pequena do sudoeste da França. Já que
nenhum dos objetos era utilitário, a escolha do que produzir estava
quase com certeza enraizada nas variadas crenças locais sobre a
ordem natural ou social (WHITE In: KLEIN, 2004 p. 219).
Contas, pingentes e outros objetos usados como adornos, com
freqüência são descobertos em túmulos, de maneira
marcante nos túmulos de 28 mil anos de idade de Sungir,
na Rússia. Neste local foram encontrados os túmulos de
um homem de 60 anos e de dois adolescentes, de sexo
masculino e feminino. Cada um desses indivíduos foi
adornado com milhares de contas de marfim,
provavelmente
anexadas às
vestimentas. Randall
White estudou esses
túmulos e fornece as seguintes descrições:
O homem foi adornado com 2.936
contas e fragmentos dispostos em linhas
encontradas em todas as partes de seu
134
corpo; sua cabeça foi aparentemente coberta por um capelo
adornado com contas e vários dentes de raposa. Seus braços e
antebraços foram ambos decorados por uma série de (25 ao todo)
braceletes de marfim polido de mamute, alguns exibindo traços de
tinta preta… Ao redor de seu pescoço exibia um pequeno pingente
liso de xisto, pintado de vermelho, mas com um pequeno ponto preto
em um dos lados… O que se presume ser um rapaz estava coberto
de contas em linha 4.903 delas de aproximadamente 2/3 do
tamanho das contas do homem, embora exatamente do mesmo
formato. Ao contrário do homem, no entanto, ele tinha em torno de
sua cintura aparentemente os restos de um cinto decorado
mais de 250 caninos de raposa polar. Sobre seu peito encontrava-se
um pingente de marfim escarvado na forma de um animal. Em sua
garganta repousava um alfinete de marfim, aparentemente o fecho
de algum tipo de capa. Sob seu ombro esquerdo havia uma grande
escultura de um mamute de marfim. À sua esquerda repousava um
segmento médio de fêmur humano muito robusto e extremamente
polido, cuja cavidade medular estava preenchida de ocre vermelho. À
sua direita… via-se uma pesada lança de marfim, feita a partir de
uma presa lanosa de mamute aprumada… Próxima a ela está um
disco entalhado de marfim disposto verticalmente no solo. Aquela
que presumivelmente era uma moça tinha 5.274 contas e fragmentos
(com tamanho de também aproximadamente 2/3 daquele das contas
do homem) cobrindo seu corpo. Ela também usava um capelo de
contas e trazia igualmente um alfinete de marfim em sua garganta,
mas no seu túmulo não se encontrava nenhum dente de raposa, nem
trazia pingentes em seu peito. Todavia, de ambos os lados
encontrava-se um número de pequenas “lanças” de marfim, mais
apropriados ao tamanho de seu corpo do que do rapaz que a
acompanhava. Também ao seu lado estão dois bastões furados
feitos de chifre de veado, um dos quais decorado com trilhas de
pontos escarvados. Finalmente, ela estava acompanhada por uma
série de três discos de marfim perfurados no centro e treliça,
semelhante à aquela adjacente ao dos restos do presumido rapaz.
(In: MITHEN, 2002, p. 278).
135
Realmente é difícil estabelecer uma divisão entre o que é uma artefato
artístico, um ornamento, um instrumento ou uma ferramenta. As interpretações
variam de acordo com a concepção de arte que for adotada. Muitas ferramentas
podem, na verdade, ser considerados um tipo de instrumento totalmente novo: um
artefato de arte. E todos os tipos de artefatos refletem uma integração entre a
capacidade criativa, o ambiente social e o meio ambiente do indivíduo.
3.1.4 Processos cognitivos simbólicos
Em fevereiro de 2006, na Rádio BBC de Londres, um programa de
entrevistas e debates (disponível na internet) cujo tema era: The day we learned to
think, reuniu um grupo de renomados arqueólogos. Entre eles estavam Richard Klein
(Stanford University), Alison Brooks (George Washington University), Terrence
Deacon (University of Califórnia, Berkeley), Randall White (Universidade de Nova
York), Jean-Jaques Hublin (University of Bordeaux) e Chris Henshilwood
(Universidade de Bergen, Noruega). A discussão girou em torno das evidências
encontradas em vários sítios arqueológicos que assinalam quando deixamos de ser
animais e nos tornamos realmente humanos.
Richard Klein considera que:
[...] se tivesse que apontar um fato isolado que pudesse ser
considerado uma marca do homem moderno, essa seria a
capacidade de inovar, a criatividade, a habilidade de introduzir e
inventar coisas novas o tempo todo. Nenhuma outra espécie
demonstra essa característica em seu comportamento (KLEIN, apud:
BBC, 2006).
Já para Radall White, “Considera-se um marco evolutivo as evidências
da aquisição e manipulação da linguagem através dos símbolos. A aquisição da
136
habilidade de falar, de conferir significado ao mundo ao redor, de pensar, as
maneiras de comunicar e socializar informações” (WHITE, apud: BBC, 2006).
Os dois arqueólogos, embora desenvolvam distintas linhas de
raciocínio e argumentos no decorrer de suas pesquisas, e cheguem a conclusões
diferentes para explicar o despertar cultural; nesta ocasião sintetizaram em suas
falas as habilidades consideradas marcantes na evolução da espécie humana. O
que essas proezas comportamentais têm mais claramente em comum é possuir
como fundamento a aquisição de processos cognitivos simbólicos. Esses processos
naturalmente só existem a partir de um encéfalo suficientemente desenvolvido,
capaz de dar suporte neurológico a esses comportamentos.
Segundo Ian Tattersal, curador da divisão de antropologia do Museu
Americano de História Natural, em Nova York:
Esses processos cognitivos simbólicos referem-se à habilidade de
abstrair elementos da experiência e representá-los com símbolos
mentais individuais, como elementos distintos. Ao separar os
elementos dessa forma, os seres humanos são capazes de recriar
constantemente na mente o mundo e aspectos individuais dele. E o
que torna isso possível é a habilidade de formar e manipular
símbolos mentais correspondentes aos elementos que percebemos
dentro e fora de nós mesmos. Membros de outras espécies em geral
apresentam níveis altos de raciocínio intuitivo, reagindo a estímulos
do ambiente de forma um tanto complexa, mas apenas os seres
humanos são capazes de combinar e recombinar símbolos mentais
de forma arbitrária e fazer questões como “E se?”. É a habilidade de
fazer isso, acima de todo o resto, que constitui a base de nossa
propalada criatividade (Scientific American, Especial Evolução, p.
72).
137
Com a utilização dos processos cognitivos simbólicos, o ser humano
habilita-se a produzir arte. Portanto, podemos sugerir que a arte, é um fenômeno
cultural produzido e reconhecido através do sistema cognitivo do ser humano. Esse
sistema provavelmente teve sua evolução neurofisiológica com o desenvolvimento
do córtex pré-frontal e uma crescente elaboração de nossos circuitos neurais,
indispensáveis para que o Homo sapiens sapiens apresentasse a capacidade de
formular e executar os comportamentos expressos no decorrer do despertar cultural.
3.1.5 Conclusão
No estudo dos seres humanos modernos, é importante reconhecer que
grande parte de nosso comportamento não é inato ao sistema nervoso, mas, sim,
culturalmente aprendido. A capacidade de produzir cultura, baseada numa forte
aptidão para inovar, acabou desenvolvendo uma capacidade sem precedentes do
ser humano se adaptar ao ambiente, provavelmente pela conjunção do
desenvolvimento neurofisiológico do ser humano e da cultura por este produzida.
Isto deu origem ao círculo cada vez mais rápido de feedback positivo, e nestas
condições a evolução cultural ganhou um ritmo espantoso e continuamente
acelerado, que continua até os dias de hoje.
Nosso ancestral, o Homo sapiens sapiens, com o utilização do
encéfalo, desenvolveu a capacidade de formular representações simbólicas, como a
fala e a linguagem, a arte pictórica, a escultura, a música, os adornos corporais, as
ferramentas, a ciência, a domesticação de animais, a agricultura, e as crenças
espirituais, como os ritos funerais. Todas essas invenções são produtos de um
processo cultural, e são transmissíveis entre seres humanos através do
aprendizado.
138
3.2 Arte, percepção, observação e cognição
Entre nossas características culturais únicas, a arte é talvez a mais
nobre invenção humana. Ou, de outra forma, a arte é uma das mais inquietantes e
eloqüentes produções do homem.
O ser humano tem produzido arte há cerca de 50 mil anos. Ao longo
desse período, a arte tem apresentado diversos formatos, já que está intimamente
vinculada ao seu tempo. Por isso que, ao buscarmos definições para arte, podemos
esbarrar em conceitos até contraditórios e que pouco a pouco foram sendo
incorporados pela cultura.
Luigi Pareyson, filósofo da arte italiano, em seu livro Os problemas da
estética, argumenta sobre as definições da arte. Ele considera:
As definições mais conhecidas da arte, recorrentes na história do
pensamento, podem ser reduzidas a três: ora a arte é concebida
como um fazer, ora como um conhecer, ora como um exprimir. Estas
diversas concepções ora se contrapõem e se excluem umas às
outras, ora, pelo contrário, aliam-se e se combinam de várias
maneiras. Mas permanecem, em definitivo, as três principais
definições da arte (PAREYSON,1989, p. 32).
Na Antiguidade a arte foi entendida como um fazer em que era,
explícita ou implicitamente, acentuado o aspecto executivo, fabril, manual. Desde
essa época estabeleceu-se um equívoco, que é a falta de distinção entre a arte
propriamente dita e o ofício ou a técnica do artesão.
Na época do romantismo, prevaleceu a terceira definição da arte, a arte
como expressão, que fez com que a beleza da arte consistisse não na adequação a
139
um modelo ou cânone externo de beleza, mas na beleza da expressão, isto é, na
íntima coerência das figuras artísticas com o sentimento que as anima e suscita.
A concepção da arte como um conhecer aparece em todo decurso do
pensamento ocidental. Nessa definição, Pareyson argumenta que
[...] a arte é interpretada como conhecimento, visão, contemplação,
em que o aspecto executivo e exteriorizador é secundário, senão
supérfluo, entendendo-o ora como a forma suprema ora como a
forma ínfima do conhecimento, mas, em todo caso, com visão da
realidade: ou da realidade sensível na sua plena evidência, ou de
uma realidade metafísica superior e mais verdadeira, ou de uma
realidade espiritual mais íntima, profunda e emblemática
(PAREYSON,1989, p. 34).
Essas três concepções revelam características essenciais da arte,
contanto que não sejam isoladas entre si ou absolutilizadas.
Considerando o fato de que, em todas as operações humanas também
podemos encontrar um caráter expressivo, um caráter cognitivo e um caráter
executivo, o que, afinal, distinguiria e qualificaria a arte como tal?
Essa dupla exigência de reconhecer a presença da arte em todas as
atividades humanas e especificar a arte, propriamente dita, como atividade distinta
das demais, dá lugar a muita discussão e é um importante problema no campo da
estética.
O fazer, o expressar e o conhecer fazem parte da concepção, mas não
são a manifestação artística. A arte tem como ponto de partida a intenção, e:
[...] qualifica de modo especial e característico as três funções
citadas. Por exemplo, ela revela, frequentemente, um sentido das
coisas e faz com que um particular fale de modo novo e inesperado,
140
ensina uma nova maneira de olhar e ver a realidade; e estes olhares
são reveladores sobretudo porque são construtivos, como o olho do
pintor, cujo ver já é um pintar e para quem contemplar se prolonga no
fazer (PAREYSON,1989, p. 31).
Entre as modalidades que a arte apresenta, estão as artes plásticas, a
arte dramática, a arte literária, a arte musical e a dança.
As artes plásticas, também consideradas como artes visuais, incluem
tradicionalmente o desenho, a pintura, a gravura, a escultura, o desenho industrial e
a arquitetura. No decorrer do processo de formação da cultura, naturalmente o
campo de atuação das artes visuais amplia-se, e outras manifestações artísticas que
possam ser analisadas sob o ângulo da visão podem ser incluídas. Neste caso, são
consideradas também outras modalidades de arte, tais como: a fotografia, as artes
gráficas, os quadrinhos, a cenografia, a publicidade, o cinema, a televisão, o vídeo, a
computação gráfica e outros tipos de mídia que tenham como característica a
visualidade.
Nossa concepção do que significa ver e observar irá moldar a forma
como observamos, interpretamos e ordenamos nossa maneira de pensar. Ao
aprofundar a maneira de ver, observar, expressar e comunicar as imagens que nos
rodeiam (desenhadas, pintadas, gravadas, impressas, modeladas, fotografadas,
filmadas, televisionadas, etc) temos a oportunidade de compreendê-las e,
consequentemente, transformá-las. Assim, ao invés de meros espectadores de um
cenário visual, passamos a interagir ativamente com o ambiente que nos cerca.
3.2.1 Observar
O que significa o ato de observar para a vida de uma pessoa? Qual a
importância da observação na vida do ser humano?
141
A manutenção da vida depende da eficácia com que um indivíduo
possa exercer sua habilidade de observar. Ela envolve a observação das reações
advindas do funcionamento do próprio corpo, do relacionamento do corpo com o
meio que o cerca (possibilitando desde atitudes básicas de sobrevivência, como
atravessar uma rua movimentada, até o relacionamento social adequado) e culmina
na atitude introspectiva que propicia a formulação de pensamentos e idéias.
Portanto, podemos sugerir que a qualidade de vida de uma pessoa é diretamente
proporcional a qualidade de suas observações.
Para que a observação se realize é necessário que o sistema
atencional seja acionado. William James, psicólogo do séc. XIX, descreveu a
atenção da seguinte forma:
Todo mundo sabe o que é atenção. Vai tomando conta da mente, de
forma clara e viva, e para aquele que assim não se encontra, vários
objetos ou raciocínios parecem simultaneamente possíveis.
Focalização, concentração da consciência são sua essência. Isso
implica a retirada de algumas coisas de forma a lidar efetivamente
com outras, e é uma condição que é oposta ao estado confuso,
aturdido, dispersivo... (JAMES, apud: GAZZANIGA, 2006, p. 263).
A Atenção pode ser direcionada de diversas maneiras e com diferente
intensidade, conforme a condição que o observador apresenta. A atenção pode ser
capturada involuntariamente, em milissegundos, por uma campainha que toca ou
por uma luz que pisca intensamente; como também pode ser deliberadamente
dirigida ao foco de um interesse pessoal e neste permanecer por minutos ou horas.
A atenção voluntária é aquela que a pessoa, deliberadamente, dirige a
142
um objeto. Esse objeto
30
pode ser tanto externo (referente ao meio exterior do
organismo) como interno (referente ao meio interno do organismo).
A atenção voluntária e/ou involuntária é que aciona e modula o
funcionamento sincronizado de várias regiões encefálicas, a partir da necessidade
ou demanda do organismo.
Ancorada na motivação e no objetivo, a atenção de uma pessoa pode
permanecer por horas focalizada em um determinado objeto. Neste caso, a atenção
propiciou e manteve a concentração. Os objetos (físicos ou abstratos) que se
encontrão a nossa volta, só adquirem existência para nós a partir da atenção que
dedicamos a eles.
Observar é apenas uma das maneiras que a pessoa tem de prestar
atenção. Para a maioria das pessoas, a noção de observar se restringe aos
aspectos da percepção visual. Ao ouvir a sugestão OBSERVE, é quase automático
fixar o olhar buscando alguma informação. Mas observar, que é apenas uma das
maneiras de dirigir a atenção, é realizado com a participação de todos os sentidos.
Observa-se com todos os sentidos (o visual, auditivo, olfativo, gustativo, táctil e
proprioceptivo), mesmo que tenhamos a impressão que de estarmos apenas
olhando algo.
O ato de observar é parte integrante da vida e é essencial para
sobrevivência. Assim sendo, é observando que se aprende, se ensina e se pratica
qualquer atividade todos os dias de uma vida.
Quando observamos com as mãos, formamos uma imagem tátil, bem
como uma imagem de movimento da mão. Quando observamos com o nariz,
formamos uma imagem olfativa, que pode desempenhar um papel importante num
30
A palavra objeto está sendo utilizada no sentido psicológico do termo. Refere-se a qualquer coisa
(física ou abstrata) na qual se deposite a atenção.
143
invento científico ou artístico e assim por diante. O que conseguimos observar,
conseguimos imaginar; e o que conseguimos imaginar, conseguimos conceber.
A partir da observação aprendemos a andar, falar, interpretar o
significado dos gestos, brincar, escrever, desenhar e tantas quantas sejam as
atividades realizadas pelo ser humano.
3.2.2 A observação, a arte, a ciência e o desenho
Uma observação apurada se faz necessária tanto para as atividades
artísticas como para as atividades científicas. Existem muitos recursos para
desenvolver, dirigir, focalizar e ampliar a capacidade de observar (de dirigir a
atenção), e uma delas é o desenho.
O desenho é uma notação gráfica realizada a partir das observações
(prévias ou posteriores) de um objeto observado. Nesse sentido, o desenho é um
instrumento valioso para a ação cognitiva. Pois, enquanto se está desenhando,
também se está conhecendo o objeto desenhado. Não apenas a forma, mais alta,
mais arredondada, menos acentuada..., mas inclusive as qualidades intrínsecas do
objeto observado.
Em se tratando das artes visuais, a palavra observar nos remete,
naturalmente, à lembrança do desenho de observação.
Picasso relatou como aprendeu a desenhar com seu pai, que era
professor de arte:
Lembro de meu pai me dizendo: ‘Vejo de bom grado a idéia de você
se tornar pintor, mas não deve começar a pintar enquanto não
souber desenhar bem, e isso é muito difícil’. Então ele me deu o pé
144
de uma pomba para praticar. Apareceu depois para olhar meu
trabalho e criticá-lo. Meu pai me obrigou a desenhar o pé da pomba
muitas e muitas vezes. Por fim chegou o dia em que ele me deu
permissão para ir em frente e desenhar o que eu quisesse... Quando
eu estava com 15 anos, conseguia desenhar rostos e corpos, e
composições muito grandes, muitas vezes sem modelos;
simplesmente porque, ao praticar com o pé da pomba, aprendi a
captar o mistério das linhas, e até de nus. Tendo aprendido a
observar uma coisa, aprendi a observar e descrever todas as outras
(PICASSO, apud: ROOT-BERNSTEIN, 2001, p. 42).
Desenhar significa concentrar a atenção no objeto (imaginário ou real)
e coordenar o sistema motor com o sistema sensorial na execução de uma ação. Ou
seja, os olhos (e os outros órgãos sensoriais) têm de ser treinados, tanto na
observação (percepção dirigida) quanto na notação, conjuntamente. O ato de
observar enquanto se desenha aciona mecanismos neurais que possibilitam que a
pessoa possa compreender o objeto observado de outra forma. Esse é um
aprendizado que exige tempo e esforço, e as lembranças das horas empreendidas
numa tarefa dessa natureza podem lhe remeter a doces ou tortuosas recordações.
Tanto tempo e esforço empregados para aprender a desenhar, será
que vale a pena? Será que esse foi um tempo bem empregado ou totalmente
desperdiçado? Qual a utilidade de traçar algumas linhas num papel se a pessoa
nem ao menos deseja ser artista?
Grandes mestres, tanto artistas como cientistas, compreenderam que a
facilidade manual está intrinsecamente ligada à maestria da observação - e vice-
versa. Na verdade, muitos acreditam que aquilo que a mão não consegue desenhar,
os olhos não conseguem enxergar e a mente formular.
Ramón y Cajal, prêmio Nobel em fisiologia e medicina em 1906,
145
relatou, em sua autobiografia, que sua capacidade de observar acompanhava seu
prazer em desenhar desde a infância:
[...] eu estava com oito ou nove anos e tinha uma irresistível vontade
de desenhar, de colorir as paredes recém pintadas da vila com todo
tipo de desenhos, cenas militares e touradas... mas como não podia
desenhar em casa, pois meu pai considerava o desenho uma
distração nefasta... saía ao campo... e desenhava cavalos, carretas,
vilarejos e paisagens que me parecessem interessantes... e que
guardava como ouro em pó... traduzindo meus sonhos no papel,
tendo meu lápis como uma varinha mágica, eu criei o mundo que
desejei, habitado por todas aquelas coisas que nutriam meus
sonhos... tudo passava através de meu lápis agitado (RAMÓN y
CAJAL, 1939, p.18).
O tempo passou, e Cajal, até o final de sua vida, nunca deixou de
desenhar. Para ele o desenho era ao mesmo tempo tanto uma maneira de entender
o tema escolhido como também uma ferramenta capaz de dar suporte à sua
imaginação. E como tudo isso era realizado com prazer, esse ciclo se auto-
alimentava gerando o que é denominado como um ciclo de feedback positivo.
Ao tornar-se médico e assumir a Cátedra de Anatomia, Cajal passou
infinitas horas desenhando e estudando. Ele desenhava o que observava tanto na
dissecação dos cadáveres como nas lâminas ao microscópio. Desenhou todas as
ilustrações de seus estudos de anatomia geral. A maioria das pessoas
provavelmente supõe que ele desenhava diretamente a partir do que via, mas não
era assim. Cajal relatou que passava a manhã preparando e observando dúzias de
seções do cérebro ou da coluna vertebral. E então, depois do almoço, desenhava
aquilo de que se lembrava. Em seguida, comparava seus desenhos com os
preparados. Analisava as diferenças, depois desenhava de novo, repetindo esse
146
processo muitas e muitas vezes. Só quando os desenhos que fazia de memória
captavam a essência do que ele tinha visto numa série inteira de preparados é que
os considerava prontos.
Seus desenhos captavam tão acuradamente a essência da anatomia
neurológica que, até hoje, mesmo com toda a tecnologia da fotografia digital, muitos
autores de livros didáticos ainda os preferem, por sua clareza e concisão. Ao
contrário de uma fotografia, que é a imagem de um espécime único, cheio de
detalhes desnecessários, os desenhos de Cajal mostram aos estudantes o que eles
devem procurar em meio ao aglomerado de detalhes de seus próprios espécimes.
E foi através dessa prática que, e passo em passo, de desenho em
desenho, de investigação em investigação, Cajal chegou a formular, testar e
comprovar a Teoria Neuronal, com a qual recebeu o premio Nobel
31
.
Como Cajal bem sabia, só olhar, mesmo que pacientemente, não
basta. Parte do ato de ver é saber o que olhar ou procurar. Desse modo, o
verdadeiro talento consiste em fazer uma discriminação visual que seja ao mesmo
tempo sintética e abrangente. E o desenho pode se tornar uma ferramenta valiosa
nesse processo.
Cajal descreve sua incessante busca científica com uma metáfora,
onde compara as mariposas com os neurônios contidos na massa cinzenta
encefálica. “Como el entomólogo a caza de mariposas de vistosos matices, mi
atención perseguía, en el vergel de la sustancia gris, células de formas delicadas y
31
O estudo detalhado do sistema nervoso teve início no século XIX. Antes das descobertas de Cajal,
os conhecimentos sobre a estrutura individual do sistema nervoso e as conexões entre os neurônios
eram puramente especulativos. Essa falta de conhecimento era principalmente devido ao fato que os
métodos apropriados para visualizar os neurônios não eram apropriados ou mesmo disponíveis.
Entretanto, em 1873, Camillo Golgi desenvolveu um método que pela primeira vez tornava possível
observar os neurônios em sua totalidade em preparações histológicas: soma (corpo), dendritos e
axônios. Dessa forma, os neurônios marcados com o método de Golgi indicaram os seus detalhes
morfológicos refinados, e conduziram, finalmente, à sua caracterização e classificação, bem como ao
estudo de suas possíveis conexões, feito por Cajal.
147
elegantes, las misteriosas mariposas del alma cuyo batir de alas, quién sabe si
esclarecerá, algún día, el secreto de la vida mental”. (RAMÓN y CAJAL, 1939, p.
20).
Com seu “lirismo científico”, como ele mesmo denominava, Cajal foi
capaz não só de observar, classificar e descrever o neurônio, como também
visualizou, formulou e comprovou a maneira pela qual os neurônios se comunicam.
Na época essa formulação foi surpreendente. (ver anexo)
Kandel apropriadamente percebeu que “o que distinguiu Cajal de seus
contemporâneos foi sua capacidade de superar a descrição anatômica. Ele tinha
capacidade de olhar para a estrutura estática - uma secção anatômica no
microscópio - e obter noções sobre o seu funcionamento.” (KANDEL, 2003, p. 41).
Observar, e traduzir de alguma forma o que observamos, é realmente
uma faculdade mental, uma tarefa cognitiva. Não conseguimos sensibilizar a
atenção se não soubermos para o que olhar e como olhar. Como escreveu Rudolf
Arnheim, “As operações cognitivas chamadas de pensamento não são privilégio de
processos mentais superiores ou ulteriores à percepção, mas os ingredientes
essenciais da percepção propriamente dita.” (ARNHEIM, 1980).
A observação, quando acompanhada pelo desenho, disciplina e reforça
a atenção; assim como desenvolve tanto a capacidade de observação (sistema
sensorial) quanto de manipulação (sistema motor).
Na verdade, muitos de nossos maiores cientistas fizeram os cursos
regulares de educação artística, entre os quais Louis Pasteur,
Joseph Lister, Frederick Banting, Charles Best, Albert Michelson, sir
W. Lawrence e sir W. Henry Bragg, Mary Leakey, Desmond Morris,
Konrad Lonrenz e Bert Holldobler. Embora as aulas de desenho para
cientistas e médicos sejam muito mais raras hoje em dia do que no
148
passado, ainda se reconhece que, nas palavras do médico Edmundo
Pellegrino, ‘A habilidade do médico começa com o olho - seu
principal instrumento de diagnóstico... O médico e o artista estão
unidos por sua necessidade de uma percepção visual especial. Os
dois vêem; mas, para ambos, a visão precisa transcender as
aparências. Como diz Paul Klee, A arte não transforma o visível;
torna visível. O médico precisa ir além das imagens para
compreende o que aflige o paciente (ROOT-BERNSTEIN, 2001, p.
55).
O observar que transcende as aparências poderia ser considerado
imaginação? A partir de que ponto uma observação pode tornar-se imaginação?
Esses limites não são nítidos. Talvez porque ao observar naturalmente ativemos a
imaginação e vice-versa.
É observando e imaginando que novas idéias são concebidas. Essa
parece ser uma maneira de estimular e despertar a mente para várias invenções. E
era assim que agia Leonardo da Vinci. Leonardo da Vinci recomendava a si mesmo
e aos outros:
Observem uma parede cheia de manchas, ou feita com vários tipos
de pedras; se você tiver de criar um cenário, poderá descobrir uma
semelhança com diferentes tipos de paisagens, ornadas com
montanhas, rios, rochas, árvores, planícies, amplos vales e colinas
em varias disposições: ou, também, poderá ver batalhas e figuras em
ação ou estranhos rostos e trajes, e uma infindável variedade de
objetos que podem ser reduzidos a formas completas e bem
desenhadas (DA VINCI, apud: KEMP, 2005).
Da Vinci era um grande observador, nenhum de seus precedentes ou
contemporâneos produziu nada comparável em alcance, brilho especulativo e
intensidade visual. Em seus cadernos de anotações, muitos de seus desenhos são
149
acompanhados de palavras, assim como longos textos que escreveu raramente
deixavam de ter ilustrações. Leonardo era um supremo visualizador, um mestre
manipulador de esculturas mentais, e quase tudo que escreveu se baseava na
prática de sua observação e representação.
Para Da Vinci, nenhum conhecimento era válido se não fosse derivado
da experiência. Ele atribuía grande valor ao experimento - embora não da maneira
sistematicamente moderna, “ciência experimental”. Ficava tão satisfeito com as
provas derivadas de suas observações dos fenômenos em seu estado natural e com
os resultados de experimentos pensados, quanto com os testes controlados usando
situações especificamente planejadas. Às vezes, quando realmente realizava um
teste planejado, escrevia “sperimentata” sob o desenho correspondente para
indicar que os resultados observados eram conclusivos.
Contudo, é interessante notar que essa forma rigorosa de observar não
suprimia sua imaginação. Ao contrário, tão grande era a fertilidade de sua
imaginação - que ele chamava de fantasia - que esse modo de observar de “pés no
chão” preparou uma sólida base da qual Leonardo pode alçar vôo, de modo
surpreendente. O ideal que estabeleceu para sua fantasia era o de expressar
grandes verdades sobre a base segura do conhecimento de todas as coisas
naturais.
Desde o primeiro momento, ao conceber uma obra, Leonardo da Vinci
exercia sua fantasia de um modo extraordinário e inovador. Ele produzia um vulcão
cerebral no papel. Observando seus cadernos de anotações, notamos que, em
algumas páginas (ao contrário de outras), ele escrevia furiosamente, sobrepondo
alternativas em emaranhados densos e pulando de uma parte da folha para outra,
cheio de idéias, algumas sugeridas de modo instantâneo, acidental, dentro da
150
própria confusão gráfica. Como escreveu:
Oh pintor! Quando compuseres tua narrativa pintada, não desenha
os membros das tuas figuras com contornos firmes, ou acontecerá
contigo o que acontece com muitos pintores que desejam que cada
pequeno traço de carvão seja definitivo... Já refletiste sobre os
poetas que, ao compor seus versos, são incansáveis em sua busca
da bela literatura e não se importam em apagar alguns daqueles
versos a fim de melhorá-los? Portanto, pintor, decide de modo geral
a posição dos membros de tuas figuras e atenta primeiro para os
movimentos apropriados às atitudes mentais das criaturas na
narrativa, mais do que a beleza ou à qualidade de seus membros.
Deverias entender que se essa composição rudimentar termina por
ser adequada à tua intenção, ela ficará ainda mais satisfatória ao ser,
subseqüentemente, adornada com a perfeição condizente a todas as
tuas partes (DA VINCI, apud: ZÖLLNER, 2005, p. 60).
Ele percebia claramente que a fantasia (imaginação) abre para o
observador um leque de possibilidades, que posteriormente serão selecionadas
durante o processo da invenção.
O observar dá sentido a uma sensação e ativa a imaginação. Esse
sentido poder ser registrado de diversas formas: desenhando, escrevendo,
compondo música, falando, atuando, dançando... Se considerarmos, por exemplo, a
literatura, temos que escrever e ler já exige um aprendizado, mas para se tornar um
escritor ou poeta, esse aprendizado terá de se estender aos outros domínios. Os
domínios da imaginação, da fantasia, da invenção e da criação.
Escrever, como toda e qualquer atividade, também requer uma
capacidade de observação aguçada. O escritor, assim como o pintor, ou o ator, ou o
cientista, ou o estudante, ou o professor... não só vive experiências, ele as analisa
também e as transforma em suas obras. O desenvolvimento da trama verossímil
151
depende de um vasto conhecimento de como os outros reagem a palavras, gestos e
atos. Estimular a sensação no leitor também depende da percepção da sensação
em si mesmo.
Não é por acaso, que tantos poetas e romancistas estudaram as
artes visuais, entre eles William Blake, J.W. von Goethe, G. K.
Chesterton, Thomas Hardy, Mikhail Lermontov, Alfred, lord
Tennyson, Theodore H. White, Henry Miller e e.e.cummings.....
William Makepeace Thackeray, por exemplo, não fazia apenas
anotações escritas para seus livros, usava também lápis e pincel,
com as irmãs Brontë, Antoine Saint-Exupéry, George Du Maurier e J.
R. R. TolKien desenhavam a ação que queriam descrever com
palavras (ROOT-BERNSTEIN, 2001, p. 54).
3.2.3 Observar, perceber, memorizar e imaginar
Nós construímos o conhecimento através de associações feitas ao
longo do tempo. A capacidade de recordarmos e utilizarmos esse conhecimento -
nossa eficácia cognitiva - parece depender de quão bem essas associações
organizaram as informações que retivemos.
Inicialmente, todo conhecimento do mundo é adquirido por meio da
observação, da atenção dedicada ao que é visto, ouvido, cheirado, saboreado ou
sentido por dentro do corpo. Essas percepções do mundo são importantes para
conseguir discernir tipos de ação, abstrair seus princípios, fazer analogias entre as
propriedades das coisas, criar modelos de comportamento e inovar de maneira
produtiva. Com os resultados dessas ações registramos nossas memórias, formando
um repertório mnemônico, com o qual formulamos novas respostas para os desafios
que nos rodeiam, gerando assim um ciclo de aprendizado constante. Mas o que guia
152
o modo de formular as respostas advém da fluência imaginativa. Da imaginação que
é elemento imprescindível no processo cognitivo e que atua desde a facilitação da
comunicação humana até a construção de surpreendentes invenções.
O artista e coreógrafo Oskar Schlemmer, em 1942, perto do final da
sua vida, percebendo como o seu observar demonstrava a expressão de sua
individualidade, comentou:
Recentemente terminei uma série de pinturas, inspiradas no que vejo
bem à minha volta: vistas de minha janela emoldurando as janelas
vizinhas, feitas à noite, entre as nove e as nove e meia, logo depois
do black-out. Quando a noite está caindo e se contrasta com
fragmentos de bege-laranja-marrom-branco-preto do interior, produz
efeitos óticos incríveis. Estou vivenciando com intensidade
desconhecida os efeitos místicos da natureza, e observo que, com o
passar dos anos, a gente continua aprendendo a ver de maneiras
novas e diferentes (SCHLEMMER, apud: ROOT-BERNSTEIN,
2001, p. 57).
E, com o conhecimento neurocientifico atual, seguramente podemos
dizer que, enquanto Schlemmer observava e pintava seus quadros, também estava
esculpindo o seu cérebro com o movimento de sua imaginação.
3.3 O ensino e a aprendizagem da arte
Seria, prática da observação, a melhor recomendação a quem deseja
passar a vida aprendendo? Sob o meu ponto de vista, a melhor recomendação seria
aprender a praticar a observação com arte e a arte da observação.
Observar com arte significa observar de um modo sempre novo. É
153
como se você estivesse olhando pela primeira vez aquilo que já viu milhares de
vezes, e isso acontece quando o observador se atenta para as qualidades do objeto
observado, ou melhor, aos atributos deste objeto, aquilo que oferece sustentação
para a existência daquela forma. Esse tipo de observar “renovado” mantém acesa a
chama da capacidade de apreender. Manifesta um modo individualizado, particular
de prestar atenção.
A arte da observação consiste em, além de observar, ser capaz de
vivenciar, experimentar e estabelecer empatia com o que se está observando. Esse
tipo de observação conduz o observador a realizar descobertas. Nesse mesmo
sentido, o bioquímico Szent-Györgyi afirmou que “A descoberta consiste em ver o
que todos vêem e pensar o que ninguém pensou”
32
. (ROOT-BERNSTEIN, 2001, p.
52).
O físico alemão Albert Einstein
33
praticava a arte da observação e
afirmou categoricamente que, no trabalho criativo, “a imaginação é mais importante
que o conhecimento”.
32
O bioquímico Albert Szent-Györgyl descobriu a vitamina C através de algumas observações
igualmente rotineiras: "Suponho que fui levado por meu fascínio pelas cores; elas me dão um prazer
infantil. Comecei com a pergunta, 'Por que a banana fica marrom quando é cortada?'". Acabou
descobrindo que as plantas têm compostos chamados polifenóis que interagem com o oxigênio para
produzir cor marrom ou preta - seu equivalente de uma casca de ferida. Essa observação levou
Szent-Györgyl à seguinte "Há duas categorias de plantas - aquelas que ficam pretas são danificadas,
e aquelas que não têm mudança de cor... Por que não há mudança de cor em algumas plantas
danificadas?". A resposta era que essas plantas têm vitamina C, um composto semelhante ao açúcar,
que impede a oxidação dos polifenóis e sua transformação em compostos protetores marrons ou
pretos. Você pode avaliar o teor de vitamina C de diferentes frutas com bastante precisão
simplesmente notando quais as que ficam marrons quando danificadas (banana, por exemplo) e as
que não ficam (laranja, por exemplo) (ROOT- BERNSTEIN, 2001, p. 50).
33
Einstein era um mestre na arte, que teve também expoentes em Galileu e Maxwell, de construir
experimentos mentais produzidos apenas na imaginação e que estão além de nossa capacidade de
realizá-los diretamente no laboratório para refletir sobre os princípios básicos da física. Já em 1895,
com 16 anos, começou a refletir sobre a questão do éter e a propagação da luz. Concebeu de início
um experimento mental que o acompanharia por 10 anos: o que ocorre se acompanharmos uma
onda luminosa com a mesma velocidade dela? Ela ficaria ‘congelada’, em uma estranha forma de
onda não movente? Para Einstein, esse experimento mental juvenil foi o primeiro passo para a teoria
da relatividade especial. Em 1902, com dois amigos, Habicht e Maurice Solovine (1875-1958), criou
um ‘clube’ informal, a Academia Olímpia. Leram e discutiram longamente vários autores clássicos,
incluindo obras de físicos e filósofos. Nessa última categoria, entre os que mais o influenciaram,
estava Poincaré.
154
Vários educadores percebem o quanto a ação artística acrescenta ao
aluno, favorecendo a construção do conhecimento a partir da individualidade e da
experiência:
As artes fornecem um dos mais potentes sistemas simbólicos das
culturas e auxiliam os alunos a criar formas únicas de pensamento.
Em contato com as artes e ao realizarem atividades artísticas, os
alunos aprendem muito mais do que pretendemos, extrapolam o que
poderiam aprender no campo específico das artes. E, como o ser
humano é um ser cultural, essa é a razão primeira para a presença
das artes na educação escolar (FERREIRA, 2001, p. 32).
Ana Mae Barbosa, arte educadora brasileira, publicou, em 1975, o livro
Teoria e Prática da Educação Artística. Neste livro, no capítulo IV, Arte-Educação:
uma Experiência Programada, a autora descreve, sempre relacionando a teoria e a
prática da ação artística, o trabalho que realizou na Escolinha de Arte de São Paulo,
no período de agosto de 1970 a junho de 1971. Considerando o relato, A teoria
posta em prática (p. 77-81) de Ana Mae, fui relacionando as atividades descritas
com o funcionamento do sistema nervoso (quadro abaixo). A intenção de realizar
esse tipo de análise é mostrar, ao alcance da imaginação do leigo, o intenso
trabalho neuronal necessário para realizar uma atividade artística.
155
Ana Mae (trecho de aula) Comentários
“Colocando a teoria em prática,
nossa primeira tarefa consistiu em
despertar a percepção relacionada
com o fenômeno do movimento, que
é um agente capaz de produzir e
modificar imagens. Procuramos
enfatizar o aspecto dinâmico do
objeto, levando as crianças ao
Jockey Clube de São Paulo, onde
tiveram oportunidade de observar
cavalos em movimento, correndo,
treinando, comendo, etc. A
concentração em um objeto
cavalo fez com que fosse
ressaltada a sua diversidade de
ação. O ponto de apoio do
observante deslocou-se para a ação,
para o movimento, ao invés de se
deter apenas nas qualidades do
objeto. A fluência foi a habilidade
mental que se pretendeu
desenvolver, exercitando o
pensamento visual no sentido de
captar o maior número possível de
diferentes categorias de ação”.
Despertar a percepção está colocado no sentido de
gerar, construir novos perceptos, tendo como foco
atencional o movimento dos cavalos. Quando
focamos nossa atenção voluntariamente, estamos
acionando determinadas áreas encefálicas e
aumentando nestas a quantidade de potenciais de
ação, intensificando a comunicação neuronal que
ali se estabelece. Desta atividade neuronal,
conforme sua intensidade e continuidade, é
possível a formação de memória de longa duração,
crescimento de dendritos e modificação anatômica.
A ênfase no movimento aciona os neurônios de MT
(medial temporal) ou V5 localizados na via dorsal,
que terão sua atividade potencializada. Produzir e
modificar imagens significa realizar uma atividade
intensa em todas as vias do sistema visual com a
participação efetiva do córtex frontal. Ao observar o
movimento também o sistema motor se coloca em
alerta, basta lembrar da função dos neurônios-
espelho. Se a atividade proposta fosse apenas o
desenho de observação, a área encefálica mais
intensamente ativada seria na via ventral, que é
especializada no reconhecimento da cor e da forma
dos objetos, determinando o que é que estamos
olhando. Nesta atividade, perceptos também se
formam, mas a atividade encefálica é mais
localizada e envolve menor número de vias.
“Outra preocupação foi explorar o
objeto em diferentes contextos e
observar as modificações em sua
aparência, embora suas qualidades
permanecessem as mesmas. Nesse
sentido, organizamos uma visita a
duas lojas de objetos variados
roupas, sapatos, flores, carros,
brinquedos, bicicletas etc. e
depois a um jardim público, próximo
a ruas bem movimentadas, onde as
crianças puderam observar os
mesmos objetos em outro contexto:
em uso e em ação, no caso de
roupas, automóveis, etc.; e em seu
ambiente natural, no caso das flores
e folhagens. O objetivo era expô-las
a diferentes aspectos de uma mesma
realidade, enfatizando a fluência
perceptiva.”
O sistema nervoso tem uma maneira própria de
trabalhar. Conhecer como este sistema opera
possibilita potencializar o seu desempenho. As
Teorias da Gestalt, propostas por psicólogos
experimentais, muito contribuíram para o
entendimento de como a percepção se processa.
(ver anexo Gestalt). Na descrição da atividade
acima foram vivenciadas as constantes das forças
de organização que os gestaltistas chamam de leis
de organização da forma perceptual. São esses
princípios que explicam porque vemos as coisas de
determinada maneira e não de outra. O ato de
observar e comparar nas diversas cenas cotidianas,
o texto e o contexto; a figura e o fundo; direciona o
sistema atencional que procede uma busca por
varredura. Além disso, ao manter a concentração
no tema proposto, o sistema nervoso tem
possibilidade de gerar perceptos reforçados, uma
vez que serão gerados com a ativação neuronal
sincronizada de uma maior variedade de vias.
156
Ana Mae (trecho de aula) Comentários
“Tendo idêntico objetivo em mente,
tivemos uma sessão de observação
visual e táctil, com desenho opcional
de materiais e objetos existentes na
sala de aula e usados pelas crianças
em suas atividades. Foi escolhido
então pelo grupo um dos materiais
observados o papel para que
fosse estudada sua função em
diferentes contextos, caminhando-se
nesta segunda etapa para o
exercício da flexibilidade adaptativa.”
A atenção direcionada às sensações advindas de
dois sistemas sensoriais (visual e somatosensorial)
reforça a possibilidade de associações a serem
registradas. Os eventos registrados a partir da
ativação de várias vias estão altamente conectados
e interligados. Portanto, deixam vários registros na
memória, o que facilitará sua evocação. Vale notar
a participação ativa do córtex frontal no que se
refere ao planejamento e à escolha da próxima
atividade.
“Primeiro fomos a uma fábrica de
papel, onde dois níveis dinâmicos
foram observados: o movimento das
máquinas e a dinâmica da
transformação do produto. Seguiu-se
uma visita a uma empresa editora,
onde as crianças observaram o uso
do papel, desde o desenho das
estórias em quadrinhos até o
processo de sua impressão gráfica.
Essa experiência teve como
resultado uma clara definição do
relativo valor do material, não só do
ponto de vista qualitativo, como
também do ponto de vista
quantitativo. As crianças, por
exemplo, descobriram que, enquanto
em uma fábrica o estrago de algumas
resmas de papel é insignificante,
numa editora, trezentas folhas de
papel de desenho que se estraguem
representam uma perda.”
Observar significa direcionar a atenção
voluntariamente; em toda ação voluntária, há a
participação do córtex frontal. Mas, o sistema
límbico (sistema responsável pelo processamento
emocional) não é desativado enquanto realizamos
tarefas cognitivas. Razão e emoção estão sempre
presentes, ainda que em proporções variadas, na
atividade encefálica. O processo de observar um
ciclo produtivo completo (da fabricação do papel até
a impressão gráfica) facilita a comparação dos
estágios de produção. Para que essa comparação
se concretize, é necessária a participação ativa de
vários sistemas integrados atuando
simultaneamente, entre eles: o hipocampo, o córtex
frontal, córtex entorrinal e o sistema límbico.
“De volta à escola, elas desenharam
suas próprias estórias em
quadrinhos, estimuladas
principalmente pelo fato observado
de que, salvo raras exceções, as
revistas em quadrinhos editadas no
Brasil são meras traduções de
revistas americanas. A estrutura da
linguagem da estória em quadrinhos
ação em seqüência deu
movimento ao esquema infantil.
Nessa experiência, os elementos
imaginativos foram manipulados em
alto grau, e acentuadas as diferentes
definições valorativas do objeto (no
caso, o papel)”.
Nesta atividade vários sistemas estão interagindo
de modo coordenado: o sistema sensorial, o
sistema motor, o córtex frontal, o sistema límbico e
áreas relacionadas a linguagem. Todos esses
sistemas estão sendo acionados a partir da atuação
da atenção voluntária. A atenção, a percepção e a
memória estão atuando de maneira integrada,
ativando a imaginação. Essa imaginação, quando
selecionada e devidamente registrada, apresenta-
se no resultado desse trabalho, que pode ser
considerado como um registro da manifestação da
individualidade.
157
Ana Mae (trecho de aula) Comentários
“Levando em conta o nível de
desenvolvimento do grupo, seu
estágio de pensamento analítico e
reversibilidade perceptiva, visamos,
na segunda fase de nosso projeto,
ao desenvolvimento da percepção
analítica, levando à abstração como
a um dos processos mentais básicos.
Primeiramente, ajudados por um
especialista, as crianças trabalharam
em fotografia, ampliando partes dos
resultados obtidos e, portanto,
secionando as representações
globais”.
Ao enfocar o todo e as partes, está sendo utilizada
uma das leis da Gestalt: o princípio da unidade.
Nesta, uma unidade pode ser consubstanciada num
único elemento, que se encerra em si mesmo, ou
como parte de um todo. As unidades formais, que
configuram um todo são percebidas através de
relações entre os elementos que as constituem.
(ver anexo Gestalt)
“Em seguida, foi sugerido que
trabalhassem a folha de papel como
se fosse uma casca de tartaruga, e
também foi usada uma técnica
semelhante ao Randon Kunst (arte
acidental), que consiste em espalhar
formas incontroladas no papel e
procurar, entre a desordem, os
borrões obtidos, uma forma figurativa
simplificada. Em certo sentido, existe
um resíduo figurativo nesses
exemplos. Nos dois primeiros casos,
partimos do abstrato e, no segundo,
de formas abstratas chegamos à
representação figurativa. Também
foram realizadas inúmeras
experiências com luz, usando-se
flash-light, lâmpadas de diferentes
coloridos, papéis e outros materiais
de transparência diversa. Depois de
produzir uma multidão de efeitos,
elas [as crianças] tentaram alguns
para colagem, desenho, pintura etc”.
Essas atividades são realizadas com uma intensa
estimulação do sistema visual, destacando-se tanto
a via ventral (discriminação de cor e forma), como a
via dorsal (discriminação do movimento e da
localização). Ao mesmo tempo, o sistema motor é
acionado para a realização dos movimentos. O
córtex frontal está atuando no planejamento e
julgamento das ações e o sistema límbico dosando
a emotividade envolvida no perceber e no fazer.
158
Ana Mae (trecho de aula) Comentários
“Em seguida, elas foram levadas a
uma experiência de análise mais
profunda, procurando abstrair os
objetos, retirando deles apenas
linhas e usando essas linhas em
novo contexto. Depois dessas
experiências, as crianças mudaram
sua atitude em relação ao trabalho
abstrato em arte. Antes elas agiam
como se a Arte abstrata fosse uma
espécie de nonsense ou jogo, em
lugar de trabalho. Quando tinham
preguiça, jogavam tinta sobre o papel
e diziam: “Isto é Arte Moderna”. Para
elas, abstração era o mesmo que
jogar tintas, mas depois deste
programa, elas começaram a
respeitar a arte abstrata como uma
pesquisa.”
O físico Werner Heisenberg definiu abstração como
“a possibilidade de considerar um objeto ou grupo
de objetos de um ponto de vista ao mesmo tempo
em que desconsidera todas as outras propriedades
do objeto. A essência da abstração é escolher uma
característica que, em contraste com outras
propriedades, é considerada particularmente
importante”. Essa definição pode ser aplicada a
qualquer disciplina. A atividade proposta
evidenciava a linguagem visual, portanto:
discriminação de bordas (V1), forma (IT), cor (V4),
movimento (MT ou V5), localização (de V1 por toda
via dorsal) serão enfocadas não apenas informando
a imagem do objeto observado, mas também
reconstruindo de outra forma. Cada um dos
elementos existentes da cena visual será focalizado
de forma preferencial, gerando novas possibilidades
de entendimento cognitivo e traduzindo esse
conhecimento em novas imagens. Na abstração
pictórica, além da intensificação da atividade
neuronal do sistema visual, é também necessário
uma ampla fluidez cognitiva que dê suporte para a
construção não habitual das imagens.
Observação: O quadro elaborado pela autora deste trabalho a partir de trechos das aulas de Ana Mae
comentados.
Embora o relato se refira às atividades realizadas em 1971, ele
continua atual e pertinente. As citações mais recentes do trabalho de Ana Mae
Barbosa não contradizem suas citações anteriores, como, por exemplo, quando ela
diz que:
Por meio da Arte é possível desenvolver a percepção e a
imaginação, apreender a realidade do meio ambiente, desenvolver a
capacidade crítica, permitindo ao indivíduo analisar a realidade
percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar a
realidade que foi analisada (BARBOSA, 2003, p.18).
Esse tipo de comentário, que relaciona a experiência pedagógica com
o funcionamento do sistema nervoso, pode não ser agradável, mas não restringe
159
nem retira da experiência em si, sua poesia. Apenas considera que toda ação
humana parte de um alicerce neurofisiológico. A fisiologia do sistema nervoso pode
ser considerada uma base, uma plataforma de lançamento, que dá sustentação
neuronal à imaginação. E é com a imaginação que alçamos vôo e realizamos
nossas viagens mais fantásticas.
A seguir encontram-se expostos vários desenhos de cavalos. Essas
imagens foram selecionadas na internet de acordo com os seguintes critérios:
pertencerem a épocas distintas, foram produzidas por pessoas de diferentes faixas
etárias, com diferente formação profissional, independente do gênero.
Observe essas imagens. O que revelam esses desenhos de cavalos?
160
161
162
Cada desenho revela a individualidade de quem o desenhou, seu modo
característico de se relacionar com o cavalo, o entorno ambiental, o entorno
emocional, expectativas e sonhos. Esses desenhos, assim todos os outros, partem
de uma realidade interna (referente ao autor) e externa (referente ao meio),
expressam em seu traçado a imaginação de quem os criou, e ativam a imaginação
de quem os observa.
Precisamos interpretar o que percebemos com a imaginação para criar
compreensão. Toda ciência e toda a arte são demonstrações desse fato. O cavalo
não é apenas um animal que pasta; que tem crina e rabo; que foi domesticado; que
serve como meio de transporte; é também um animal de estimação, um parceiro nas
batalhas e guerras; uma obra de arte... Pensar no cavalo de diversas maneiras faz
com que ele seja percebido de diferentes maneiras. A fotografia, o desenho, a
própria escrita, não passam de papel recoberto com um pouco de tinta ou sais de
prata. O que fazemos com cada uma dessas coisas ocorre em nossa cabeça, de
acordo com nossa capacidade de recriar as sensações, as emoções e as
percepções do que elas devem simbolizar. Seus significados são ficções inventadas
que só têm um halo de verdade se estiverem conectadas ao que consideramos
verdadeiro por experiência vivencial. O pensamento produtivo ocorre quando a
imaginação interna e a experiência externa coincidem, e é a partir daí que
construímos o que percebemos como sendo a realidade.
Ler um romance, olhar uma escultura ou ouvir uma peça musical
como se fossem apenas objetos _’algo’ a ser analisado _ é perceber
somente a Ilusão. A Realidade só pode ser vivenciada quando
entendemos que a arte nasce da vida e se relaciona com ela. Há
mais de sessenta anos, o filósofo de educação John Dewey afirmou
em seu clássico Art as Experience’ que a educação artística
163
convencional falha exatamente da mesma forma que a educação
científica _ por ocultar, em vez de revelar, as ligações entre a teoria e
a prática. Para Dewey, quanto mais considerarmos os objetos
artísticos distintos da experiência original que os fez surgir, tanto
mais isolamos a arte num reino separado e a ameaçamos com a
irrelevância. Desse modo, as ‘formas refinadas e intensificadas da
experiência que são as obras de arte’ desconectadas dos ‘eventos,
das ações e dos sofrimentos do cotidiano que são universalmente
reconhecidos como elementos constituintes da experiência’ (ROOT-
BERNSTEIN, 2001, p. 31).
O que parece um simples desenho feito por alguém habilidoso tem
como suporte um trabalho cognitivo de fundamental importância para o ser humano.
O ensino e a aprendizagem da arte possibilita que a construção de perceptos seja
significativa em quantidade e qualidade, estabelecendo um maior número de
conexões na formação de memórias. Essas, quando evocadas, fornecem um
repertório mnemônico com o qual formulamos nossas ações e interagimos com o
meio que nos cerca. A imaginação fornece o tempero deste processo, ela poderá
tornar esse “prato” uma iguaria sem precedentes ou um “prato” insosso, sem
qualquer atrativo.
164
IV PESQUISAS
4.1 Neurociência e educação
A Neurociência tornou-se uma das mais prósperas áreas de pesquisa
multidisciplinar dos nossos tempos. O objetivo da neurociência é compreender os
processos mentais pelos quais percebemos, agimos, aprendemos e nos lembramos.
Busca explicar o comportamento em termos das atividades neurais, e como o
sistema nervoso organiza suas milhões de células nervosas individuais para gerar o
comportamento.
De um modo esquemático, podem-se considerar seis grandes
disciplinas que a constituem: a neurobiologia molecular, que tem como objeto de
estudo as diversas moléculas de importância funcional no sistema nervoso; a
neurobiologia celular, que aborda as células que formam o sistema nervoso, sua
estrutura e função; a neurofisiologia, que considera populações de células nervosas
situadas em diversas regiões do sistema nervoso, que constituem sistemas
funcionais; a neuroanatomia, que realiza uma abordagem dos sistemas funcionais,
focalizando os aspectos morfológicos; a neurociência comportamental ou
psicofisiologia, que se dedica a estudar as estruturas neurais que produzem
comportamentos como o sono, os comportamentos sexuais, emocionais, etc; e,
finalmente, a neurociência cognitiva, que trata das capacidades mentais mais
complexas, geralmente típicas do homem, como a linguagem, a autoconsciência, a
memória, etc. Os limites entre essas disciplinas não são nítidos, portanto é preciso
saltar de uma para a outra sempre que se tentar compreender o funcionamento do
sistema nervoso.
165
Com avanços significativos em vários campos, o estudo do encéfalo
tem atraído profissionais de diversas áreas, como físicos, engenheiros, matemáticos,
fisioterapeutas, fonoaudiólogos, biólogos, psicólogos e demais profissionais
envolvidos com medicina e pesquisas biomédicas.
Esse engajamento multidisciplinar foi uma conseqüência natural da
tomada de consciência de que, para entender algo tão complexo como o encéfalo, é
necessário usar a criatividade e a observação a partir de vários ângulos do saber, a
capacidade de diálogo permanente entre diferentes pontos de vista, a seriedade e a
competência profissional aliada à aplicação de tecnologias de ponta.
As pesquisas neurocientíficas estão apenas começando a encontrar
aplicação no campo do aprendizado. A aproximação entre neurociência e educação
cria uma maior probabilidade de que descobertas valiosas possam ser utilizadas
mais rápida e apropriadamente no campo educacional.
Alguns passos nesta direção foram dados pela Organização de
Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE), que lançou em 1999 o projeto
Ciência da Aprendizagem e Pesquisa do Cérebro”. O objetivo desse projeto é
estimular a colaboração entre as ciências da aprendizagem e a pesquisa
neurocientífica, assim como entre pesquisadores e promotores de políticas públicas.
A partir dos fóruns realizados pela OCDE, respectivamente, em Nova
York, em junho de 2000; em Granada, em fevereiro de 2001; e em Tóquio, em abril
de 2001; foram obtidas significativas conclusões que emergiram de intensos debates
entre neurocientistas, psicólogos, educadores, profissionais da saúde e políticos.
Dentre as questões de caráter geral, desenvolvidas com o apoio da OCDE, também
estão pesquisas sobre a aprendizagem permanente e função cerebral em relação a:
nutrição, sono, consumo de drogas, administração do estresse, exercício físico e
166
controle emocional. Este projeto continua em desenvolvimento e é possível se
manter atualizado através do site oficial da OCDE.
4.1.1 Aprendizado e neurociência
Como as pessoas aprendem? O que acontece no cérebro quando
adquirimos conhecimentos, habilidades ou atitudes? Essas questões interessam aos
homens há séculos. Hoje, os cientistas estão começando a entender como o cérebro
jovem se desenvolve e como o cérebro maduro aprende. A neurociência, entre
outras disciplinas, vem contribuindo para o avanço desse conhecimento.
O termo cognição quer dizer, literalmente, “conhecimento”.
Neurocientistas cognitivos estudam a natureza do pensamento, da linguagem, da
memória, da emoção e da motivação. Este estudo é delicado, pois esses processos
mentais não podem ser vistos. Eles só podem ser deduzidos a partir do
comportamento.
A suposição de uma base neurológica para as construções cognitivas
possui riscos, mas isso não quer dizer que não deva ser pesquisada. A cognição
implica na habilidade de responder a estímulos, sejam externos ou internos,
identificá-los e planejar respostas significativas para eles. Se tomarmos, por
exemplo, que embora as pessoas falem sobre memória como uma coisa unitária, no
funcionamento encefálico a construção da memória não se revela unitária em nada.
Esta se apresenta de diferentes formas, utilizando lógica distinta e diferentes
circuitos no encéfalo, que partem basicamente da sinalização neuronal.
Para colaborar nas pesquisas realizadas nesta área, fornecendo mais
elementos que possam ser analisados como dados, conta-se com o
167
desenvolvimento de novas tecnologias. Técnicas como a neuroimagem funcional,
que inclui tanto a ressonância magnética funcional (RMf), a tomografia por emissão
de pósitrons (PET), aliadas à espectroscopia no infravermelho próximo (NIR), entre
outras, que estão permitindo aos cientistas compreender, com maior clareza, o
funcionamento do encéfalo e a natureza da mente.
4.1.2 Cooperação entre as áreas
Embora conhecimentos e resultados valiosos já estejam disponíveis,
pode levar anos para que as descobertas dessa nova ciência possam ser pronta e
seguramente aplicadas na educação. O avanço, porém, será mais rápido se as
várias disciplinas que compõem a área da aprendizagem se comunicarem e
cooperarem.
É natural haver problemas de comunicação entre diferentes áreas.
Neurocientistas, psicólogos, educadores e artistas são comunidades que não
compartilham um vocabulário profissional comum, aplicam diferentes métodos e
lógicas, exploram diferentes questões, perseguem objetivos diferentes. Só a
consciência dessas diferenças culturais e o convívio é que podem reduzir os pré-
conceitos e promover o entendimento destes setores. Esse é o desafio de uma
equipe multidisciplinar. Uma das dificuldades a ser enfrentada é a falta de uma
linguagem comum entre as diversas disciplinas que trabalham com o aspecto
cognitivo. Termos como plasticidade, inteligência e estimulação constituem um
exemplo. A esses, seria fácil acrescentar uma longa lista: habilidade, atitude,
controle, desenvolvimento, emoção, imitação, capacidade, aprendizagem, memória,
mente, natureza, criação, criatividade entre outras.
168
A título de exemplo, temos que plasticidade e periodicidade são termos
que precisam ser entendidos de maneira que um não exclua o outro. O senso
comum e a neurociência confirmam que nosso cérebro é plástico; continua a
desenvolver-se, a aprender e mudar, até a senilidade ou a morte. Portanto, a idéia
de educação permanente faz sentido. Nunca é tarde para aprender; desde que o
aprendiz tenha confiança, auto-estima e motivação.
No entanto, existem períodos receptivos, espécie de janelas de
oportunidade, quando o cérebro fica particularmente receptivo a certos estímulos e
muito apto a aprender. Um exemplo óbvio é a extraordinária velocidade com que as
crianças aprendem sua primeira língua. Todas as crianças, a não ser as portadoras
de grave deficiência, fazem isso praticamente no mesmo tempo em qualquer parte
do mundo, mesmo que depois venham a ser classificadas como alunos rápidos ou
lerdos, inteligentes ou fracos, de sucesso ou fracasso. Também podem existir
períodos receptivos para aprender uma segunda língua, desenvolver a linguagem
musical, teatral, visuoespacial e expressiva, adquirir habilidades sociais, como o
trabalho em equipe, e até mesmo optar entre ser um aprendiz competente ou
dependente.
A neurociência cognitiva também ajuda a compreender a distinção
entre nossas diferenças individuais e o que é comum a todos os cérebros. Homens e
mulheres, por exemplo, parecem usar o cérebro de forma diferenciada, mas não se
sabe, ao certo, quais as implicações disso. Há diferenças significativas de
amadurecimento entre o encéfalo de uma criança, de um adolescente e de um
adulto. Já são suficientes as evidências demonstrando que a educação e o entorno
emocional esculpem o encéfalo e modificam sua forma de processar as
informações.
169
Naturalmente, os cientistas são cautelosos, em especial na
divulgação de suas conclusões em um campo tão sensível quanto o encéfalo
humano. É conveniente que se estabeleça a distinção entre:
o que está comprovado (a plasticidade do encéfalo);
o que é provável (períodos receptivos);
o que se tornou especulação inteligente (as implicações de gênero);
o que se tornou uma série de concepções errôneas ou
simplificações manipuladas pela mídia (a função dos hemisférios
direito e esquerdo).
Parece provável que, nos próximos anos, a neurociência
cognitiva venha a oferecer respostas confiáveis a importantes questões sobre a
aprendizagem humana, tais como:
Qual o ambiente e o programa mais adequados à aprendizagem
das crianças pequenas? É aconselhável oferecer a elas um
treinamento intensivo em alfabetização e matemática elementar?
Quais os períodos mais receptivos no desenvolvimento do cérebro?
Que implicações eles têm para um currículo de aprendizagem
relacionado à idade?
Por que algumas crianças apresentam extrema dificuldade na
alfabetização e no aprendizado da matemática? O que se pode
fazer para prevenir ou remediar problemas como dislexia ou
acalculia?
Quais os limites do cérebro humano? É possível a qualquer pessoa
igualar o desempenho de um Mozart ou um Einstein, com boa
educação no ambiente correto?
170
O que significa desaprender? Como se pode corrigir, eficazmente,
maus hábitos, incompetências ou concepções errôneas?
Qual o papel da emoção na aprendizagem? Como facilitar a
cooperação entre sistema límbico (emocional) e córtex cerebral
(cognitivo) diante do desafio da aprendizagem?
Quais regiões do encéfalo são predominantemente desenvolvidas
ao executar atividades artísticas?
Qual o período receptivo ideal para o desenvolvimento da
linguagem visuoespacial?
4.1.3 Implicações educacionais
A compreensão das vantagens e limitações das tecnologias do
imageamento encefálico, assim como a necessidade de conduzir rigorosos
protocolos cognitivos, é uma etapa importante para se entender como a
neurociência cognitiva poderá fornecer dados para a elaboração de currículos
escolares, que estejam apoiados na atividade encefálica. Será preciso mesclar
pesquisas do campo da psicologia, da neurociência e da educação em geral; para
produzir uma nova geração de pesquisadores e educadores capazes de analisar
questões significativas, tanto na área educacional com científica.
Mas, existem limites quanto ao tipo de temas a serem
pesquisados no momento, pois os atuais métodos de pesquisa neurocientífica
restringem necessariamente os tipos de questões com possibilidades de serem
pesquisadas. As perguntas do tipo “Como os indivíduos aprendem a reconhecer
palavras escritas? são possíveis de serem respondidas com o atual conhecimento
171
da neurociência. Porém, a questão “Como os indivíduos comparam os temas de
diferentes histórias? é bem mais complexa de ser respondida atualmente.
Isso ocorre porque a primeira pergunta nos remete a estudos em que
os estímulos e reações podem ser mais facilmente controlados e comparados aos
de outra tarefa. A segunda pergunta envolve muitos fatores que não podem ser
separados durante a experimentação. Por essa razão, as tarefas educacionais que
os educadores gostariam de ter respondidas continuarão sendo alvo de amplas
pesquisas multidisciplinares, por apresentarem múltiplas variáveis, tornando-se
assim mais complexas do que aquelas que podem ser convenientes à neurociência
cognitiva.
Os pesquisadores também enfatizam a necessidade metodológica de
testar o aprendizado não apenas depois de alguma intervenção educativa (que se
costuma fazer), mas também posteriormente, a intervalos, em especial no caso de
comparações relativas à idade. Esses estudos longitudinais tiram os projetos de
pesquisa do laboratório e os insere em situações da vida real, o que dificulta saber
quando os resultados poderão ser interpretados e colocados à disposição da
educação.
Na análise de dados científicos, é importante manter padrões críticos
ao julgar as afirmações sobre a neurociência cognitiva e suas implicações para a
educação. Alguns pontos sempre devem ser considerados, como:
O estudo original e seus primeiros objetivos.
Quando se trata de um único estudo ou de uma série deles.
Se o estudo teve um resultado na aprendizagem.
A população pesquisada.
172
É importante enfatizar a importância de se adquirir uma condição crítica
e esclarecida para analisar os resultados fornecidos nas descobertas científicas. É
necessário desenvolver um julgamento crítico das alegações sobre aprendizagem e
ensino com base em pesquisas do funcionamento do sistema nervoso.
Teremos melhores condições de chegar a adequados currículos,
baseados na atividade do sistema nervoso, se forem aceitos os seguintes princípios:
A popularidade de uma alegação neurocientífica não significa,
necessariamente, que ela seja válida;
A aprendizagem não está totalmente sujeita ao controle da
consciência ou da vontade;
A metodologia e a tecnologia da neurociência cognitiva estão ainda
em formação;
O sistema nervoso, em especial o encéfalo, passa por mudanças
naturais de desenvolvimento durante a vida;
Muitas pesquisas da neurociência têm buscado compreender ou
resolver patologias ou doenças relacionadas com o encéfalo;
Uma ciência satisfatória da aprendizagem deve considerar fatores
emocionais e sociais, além dos cognitivos.
Os dados da neurociência cognitiva, aliados ao conhecimento das
áreas educacionais específicas pesquisadas, podem ajudar a refinar as hipóteses,
eliminar as ambigüidades e apontar direções para as pesquisas sempre mais
abrangentes. Enfim, transpor com maior facilidade a distância entre o laboratório e o
sistema de ensino.
173
4.2 Pesquisas relacionadas com arte e neurociência
Embora seja extremamente antiga e persistente a presença de
manifestações artísticas nas sociedades humanas, como pintura, escultura,
desenho, música, dança, entre outros, apenas recentemente os cientistas dirigiram
seus esforços, de uma maneira mais sistemática, no sentido da investigação dos
mecanismos neurobiológicos subjacentes à complexa e sofisticada capacidade
cognitiva referente à produção da arte e da apreciação estética.
As razões para que essas pesquisas só estejam sendo realizadas
recentemente referem-se à inexistência anterior, tanto de teorias abrangentes
capazes de dar conta da complexidade do funcionamento cerebral quanto de
tecnologia adequada para esse tipo de investigação científica.
A percepção e a cognição humana apresentam um estágio de
complexas construções de atividades neurofisiológicas enquanto o indivíduo está
realizando uma ação artística. Assim, as pesquisas que estão investigando os
processos mentais envolvidos na dança, na música, nas artes visuais e na
apreciação estética, tanto podem fornecer dados para compreensão da cognição
humana como subsídios para arte educadores.
Abaixo estão relacionados artigos, que se encontram à disposição na
internet, de cientistas renomados que têm desenvolvido pesquisas relacionadas à
percepção humana; aos processos cognitivos e à função da estética no organismo.
Sempre é bom lembrar que a maioria dos artigos são escritos por neurocientistas,
que embora tenham afinidade e simpatia pelo campo da arte, apresentam limitada
vivência com a ação artística. Portanto, é bom ler com paciência para não correr o
risco de rejeitar o artigo na íntegra, caso não concorde com algumas considerações
174
sobre a função e o significado da arte.
Algumas pesquisas realizadas na área de estética e percepção:
The science of art: A neurological theory of aesthetic experience (1999)
Vilayanur Ramachandran e William Hirstein - Center for Brain and
Cognition, University of California, San Diego, La Jolla, USA.
Neste artigo, os autores sugerem oito princípios universais referentes a
percepção e apreciação estética da arte. As leis destacadas são: Enhancement of
features that deviate from average, Grouping of related features, Isolation of a
particular visual clue, Contrasting of segregated features, Dislike of unnatural
perspectives, Perceptual problem solving or deciphering ambiguous scenes,
Metaphor , Symmetry.
Eles partem de uma sólida base neurofisiológica e levantam
interessantes questões, porém a pouca vivência com a ação artística acabou
gerando acaloradas discussões entre a comunidade artística.
Art and the Brain
Semir Zeki - Department of Cognitive Neurology, University College,
London.
Este artigo analisa o sistema visual e sua participação no processo
cognitivo, buscando relacioná-los com o que considera ser a função da arte e
apreciação estética. O autor tem renome internacional, um vasto trabalho em
neurobiologia e apreciação estética; vêm contribuindo enormemente para o avanço
das pesquisas nesse setor. O artigo cita vários artistas e suas obras usando uma
linguagem clara e acessível.
175
The artist like a neuroscientist
Patrick Cavanahag Vision Sciences Laboratory, Departament of
Psychology, Haward, USA.
O artigo faz a análise de diversas pinturas considerando como os
artistas se utilizam de técnicas para conseguir determinados efeitos de reflexos,
coloração, sombras e contornos; independente dos conceitos da física. Do resultado
desta comparação, Cavanahag considera a possibilidade de obter dados para
avaliar a fisiologia do sistema visual a partir da análise pictórica de quadros
disponíveis nos museus a séculos.
Luminance and night vision - Cap. 3
Margaret Livingstone Professor of neurobiology, Haward Medical
School.
Este é um capítulo de um livro à disposição na internet. A autora é uma
cientista de destaque na área da visão, ela analisa o processo neurofisiológico da
visão com exemplos retirados dos quadros de Picasso, Monet, e outros artistas.
Para melhor entendimento, é bom um conhecimento prévio do funcionamento do
sistema visual.
Existem muitas pesquisas relacionando música e neurociência,
algumas já trazem importantes resultados que poderão ser usados na educação em
geral, na musicoterapia e na neurociência cognitiva. Outras tantas estão em
andamento. Muitas vezes é possível considerar os resultados já apresentados nesta
área e inferir possibilidades a serem pesquisadas nas artes plásticas.
176
Cérebro, música, cognição: variações sobre um tema inesgotável.
Cláudio Guimarães dos Santos é médico e neurocientista da Universidade
Federal de São Paulo; trabalha na reabilitação de pacientes com disfunções
cognitivas.
Este trabalho traça um percurso relacionando a linguagem musical com
a linguagem verbal e considera a especialização dos hemisférios cerebrais. Ao
utilizar uma linguagem também apropriada para leigos, o texto se torna bastante
sugestivo e aguça no leitor a vontade de se aprofundar nos temas apresentados.
Music, the food of neuroscience?
Robert Zatorre - Cognitive Neuroscientist, Montreal Neurological
Institute; James McGill Professor of neurosciense, Montreal Neurological Institute.
Neste artigo os autores fazem considerações sobre as áreas corticais e
sistemas neurofisiológicos envolvidas ao tocar, ouvir e criar músicas. Essas
atividades envolvem praticamente todas as funções cognitivas. Zatorre procura
explicar como a música poderia dar subsídios neurocientíficos para compreensão do
discurso verbal, da plasticidade neuronal e até eventualmente suposições sobre a
origem das emoções.
One year of musical training affects development of auditory cortical-
evoked fields in young children.
Laurel Trainor - Professor na Universidade McMaster, Canadá.
Este artigo apresenta o resultado da pesquisa avaliando o desempenho
cerebral de crianças com quatro a seis anos de idade, submetidas a lições musicais
pelo método Suzuki, criado pelo pedagogo japonês Shinichi Suzuki (1898-1998).
177
Esse desempenho mostrou ser superior quando comparado a pessoas sem
treinamento especial.
Na área da dança, pesquisas apontam as relações existentes entre o
sistema motor, sistema sensorial, apreciação estética e a importância dos neurônios
espelhos.
The dancing brain.
Ivar Hagendoorn Filósofo, coreógrafo de formação não acadêmica,
fotógrafo.
Esse artigo procura relacionar a apreciação estética da apresentação
de um ballet com aspectos neurofisiológicos do funcionamento do sistema nervoso.
Some speculative hypotheses about the nature and perception of dance
and choreography.
Ivar Hagendoorn Filósofo, coreógrafo de formação não acadêmica,
fotógrafo.
Continuando a desenvolver o tema do artigo citado acima, o autor
aprofunda sua investigação, fornecendo um trabalho mais sedimentado na literatura
científica.
Reflexo Revelador
David Dobbs escreve sobre ciência, medicina e cultura. É
colaborador da Scientific American Mind e do New York Times Magazine.
Esta reportagem foi publicada na revista Mente & Cérebro ano XVI, nº
161, junho 2006. Com uma linguagem própria para o público leigo, aborda a questão
dos neurônios-espelho, suas funções e implicações cognitivas. A compreensão
destas questões é fundamental para todas as áreas de expressão artística.
178
The human mirror neuron system: A link between action observation
and social skills.
Lindsay M. Oberman, Jaime A. Pinedo Center for Brain and
Cognition, University of California, San Diego, La Jolla, USA.
Neste artigo os autores apresentam o resultado da pesquisa, na qual
avaliaram a ação do sistema neurônios-espelho (MNS), não apenas no
processamento de atividades motoras como também nas atividades que apresentam
relevâncias sociais. A linguagem é clara, simples e direta, permitindo que o leitor-
leigo tenha possibilidade de saber como se realiza uma pesquisa nesta área.
179
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Chegar ao fim é construir um começo.
O fim é o lugar de onde partimos”.
T. S. Eliot
Uma vez num Congresso de Arte Terapia realizado em Porto Alegre, Ana
Mae Barbosa disse: “O ensino e a aprendizagem da arte é um caminho para
recuperar o que há de humano no ser humano”. Na ocasião essa frase teve um
grande impacto sobre mim, a ponto de ser um dos motivadores da escolha dessa
dissertação. Hoje após passar por todo processo do mestrado observo o quanto
essa frase é exata. E tem clara sustentação na própria história da evolução da
espécie humana.
Quando buscamos entender o modo como adquirimos conhecimentos, e
como isso acontece no nível celular, naturalmente somos levados a considerar a
evolução da espécie humana. Como foi dito anteriormente nesse trabalho, a
característica que nos distingue de outras espécies e que nos torna humanos é a
capacidade de realizar processos cognitivos simbólicos. O marco evolutivo de nossa
espécie é a aquisição e manipulação da linguagem por meio de símbolos, o que diz
respeito também a arte, que não é outra coisa a não ser uma forma de linguagem.
Portanto, podemos considerar que arte e cognição estão intrinsecamente ligadas.
Arte é um fenômeno cultural, recorrente no mínimo a cerca de 50.000 anos. É
uma manifestação essencial para a humanização da espécie Homo sapiens, cujo
aparecimento é concomitante a época em que nos tornamos humanos.
O ser humano ao realizar uma ação artística utiliza bilhões de neurônios,
milhares de músculos, requesita a ação de todo sistema sensorial e toda sua
180
capacidade de memória. Todos esses sistemas passam a trabalhar como uma
orquestra regida pelo sistema atencional, que por sua vez foi ativado a partir de
uma intenção. São bilhões de neurônios, espalhados por todas as regiões do
encéfalo, que trabalhando em harmonia irão produzir um resultado de uma
complexidade incontestável. Além dos processos descritos acima, precisamos
considerar que os sistemas neurofisiológicos citados não se formaram em uma
semana ou um ano, eles são o resultado de um processo evolutivo de milhares de
anos. Conhecer e poder visualizar as etapas neurofisiológicas envolvidas em uma
ação artística é simplesmente fantástico.
O estudo da neurociência me possibilitou vislumbrar de outra maneira o
alcance e a importância da arte na vida das pessoas, ou seja qual a atuação da
ação artística no funcionamento do organismo.
Muitas vezes as pessoas, em geral, por não terem tido uma experiência
significativa com a ação artística e a correspondente construção desse
conhecimento, formam uma visão deturpada do significado e importância desta
ação. E porisso consideram a arte apenas como objeto de museu ou fruto de uma
ação acidental e aleatória separada da vida, o que é um equívoco. Esse equívoco
restringe, quando não impossibilita o reconhecimento da importância e do significado
que a arte exerce na edificação de uma civilização.
Em consequência disso, cabe em grande parte aos arte educadores, serem
capazes de mostrar a necessidade e importância do ensino e aprendizagem da arte,
ao meio que os cerca. Ao traçar a trajetória evolutiva da espécie humana e associar
o funcionamento do encéfalo, busquei evidenciar a presença da arte nesse
processo. Sendo a arte uma expressão de vital importância para todo e qualquer ser
humano, podemos perfeitamente entrever a importância do ensino e da
181
aprendizagem da arte, embora ainda não tenhamos como comprová-lo com
resultados científicos.
Assim procurei acrescentar alguns elementos de reflexão, que contribuissem
para a formação de uma concepção ampla sobre a importância que um arte
educador tem ao exercer o seu ofício.
Se o arte educador percebe a importância da ação artística no processo
cognitivo e tem argumentos fundamentados em pesquisas arqueológicas e
neurocientíficas sobre a recorrência da arte na evolução humana, nunca mais será o
último a se manifestar e o último a ser reconhecido numa reunião pedagógica.
Esse foi o ângulo de visão considerado ao realizar esse trabalho. Procurei
tornar viável um diálogo entre o ensino e aprendizagem da arte e a neurociência.
Um diálogo pressupõe uma troca produtiva de experiências, vivências e resultados.
Não se trata simplesmente de escrever sobre o assunto consernente a essas duas
áreas do conhecimento. Para estabelecer essa conversa entre duas áreas tão
distintas, algumas vezes me coloquei como tradutora intérprete de conceitos, em
outras busquei salientar os pontos que lhes são comuns entre elas, os pontos de
conflito, ou mesmo os sempre fascinantes pontos complementares.
Após várias tentativas, considerei que os arte educadores entenderiam
melhor esse trabalho se eu partisse de uma visão geral sobre o funcionamento do
sistema nervoso, abordando temas como a emoção e a imaginação. Deste modo o
sistema nervoso, os neurônios, a percepção e os outros temas não foram aqui
descritos segundo meras transcrições dos livros ou artigos neurocientíficos. Sempre
que possível procurei apresentá-los inseridos no mundo da arte e fazendo
referências ao ensino e a aprendizagem.
182
Acredito que valendo-se de associações e analogias, o leitor será capaz de
enriquecer substancialmente esse texto e gerar para si uma visão mais abrangente
da maneira como o organismo, o ser humano e sua respectiva ação artística se
articulam para construir uma civilização.
A vida em um organismo se manifesta a partir da interação deste com o meio
que o cerca. A morte acontece quando essas trocas deixam de ser efetivas. Assim
também o ser humano ao se relacionar com o ambiente capta sensações, dirige sua
atenção de diversas maneiras e constrói perceptos. Esses perceptos carregam os
significados que em si foram impressos e passam a ser ordenados e armazenados
na memória. E no ato contínuo da vida, o ser humano utilizando o processo aqui
descrito formula e reformula-se sempre em novas ações. Esse é o processo comum
inerente a todas as pessoas independente da raça, cor, idade ou crença religiosa.
Porém é possível acrescentar algo mais a esse processo. Esse algo a mais,
abrangente e profícuo, é acrescentado por meio do contato com a arte.
Talvez já esteja próximo o tempo em que se possa também demonstrar, com
base no conhecimento neurocientífico, aquilo que mentes brilhantes como John
Dewey, Herbert Read, Viktor Lowenfeld, Elliot Eisner, Ana Mae Barbosa, entre
outros, argumentam: Como a arte e o ensino e aprendizagem da arte são essenciais
ao desenvolvimento do ser humano.
Uma questão como essa, há alguns anos atrás, só poderia ser investigada
através da prática filosófica. Afinal, técnicas como a neuroimagem funcional não
haviam sido criadas, a neurociência cognitiva ainda engatinhava e os neurônios-
espelho não haviam sido descobertos.
Nos dias de hoje, com o avanço tecnológico e o resultado de pesquisas sobre
a psicofisiologia da memória, da percepção e da atenção (três faculdades mentais
18
3
essenciais para a realização da ação artística), já é viável imaginar pesquisas que
venham a investigar a seguinte hipótese: Se a toda ação realizada pelo ser humano
corresponde um correlato neuronal próprio, então, deve existir um correlato neuronal
que seja próprio de uma ação artística.
Mas por enquanto isso é apenas hipótese, algo que podemos apenas
imaginar e desejar. Do mesmo modo que um dia o homem já imaginou e desejou
viajar pelo espaço e colocar os pés na lua.
184
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GLOSSÁRIO
Abordagens gestálticas à percepção da forma modo de estudo da percepção
da forma, baseado na noção de que a forma total difere da soma de suas partes
individuais; uma gestalt (forma) é a totalidade distintiva de um todo integrado, em
oposição à mera soma das várias partes.
Ação artística É a ação realizada a partir de uma intenção e nela estão contidos
tanto o fazer (executar), o conhecer (a cognição) e o exprimir de tal forma que
qualifica de modo especial e característico essas três funções da arte. A ação
artística revela frequentemente, um sentido das coisas e faz com que um particular
fale de modo novo e inesperado, mostrando uma nova maneira de olhar e ver a
realidade.
Aferente adjetivo que qualifica um elemento que chega a um ponto de referência
qualquer do sistema nervoso.
Agnosia um déficit grave na capacidade para perceber a informação sensorial,
geralmente relacionado à modalidade sensorial visual; estranhamente, os agnósicos
têm sensações normais, mas carecem da capacidade para interpretar e reconhecer
o que sentem, usualmente em conseqüência a lesões cerebrais.
Amigdala pequena estrutura em forma de amêndoa, situada dentro da região
antero-inferior do lobo temporal. Interconecta-se com o hipocampo, os núcleos
septais, a área pré-frontal e o núcleo dorso-medial do tálamo. Essas conexões
garantem seu importante desempenho na mediação e controle das atividades
emocionais de ordem maior, como amizade, amor e afeição, nas exteriorizações do
humor e, principalmente, nos estados de medo e ira e na agressividade. A amigdala
é fundamental para a auto-preservação, por ser o centro identificador do perigo,
gerando medo e ansiedade e colocando o animal em situação de alerta, aprontando-
195
se para se evadir ou lutar. A destruição experimental das amigdalas (são duas, uma
para cada um dos hemisférios cerebrais) faz com que o animal se torne dócil,
sexualmente indiscriminativo, afetivamente descaracterizado e indiferente às
situações de risco. O estímulo elétrico dessas estruturas provoca crises de violenta
agressividade. Em humanos, a lesão da amigdala faz, entre outras coisas, com que
o indivíduo perca o sentido afetivo da percepção de uma informação vinda de fora,
como a visão de uma pessoa conhecida. Ele sabe quem está vendo, mas não sabe
se gosta ou desgosta da pessoa em questão.
Amnésia perda grave de memória, geralmente afetando mais a memória
declarativa do que a memória procedural.
Aprendizado alterações relativamente permanentes no comportamento de um
organismo que é resultado de uma experiência.
Assimilação processo equilibrador pelo qual uma pessoa incorpora a nova
informação aos esquemas cognitivos existentes.
Atenção relação cognitiva entre a quantidade limitada de informação que
realmente controlamos mentalmente e a enorme quantidade de informação
disponível através de nossos sentidos, memórias armazenadas e outros processos
cognitivos.
Atenção dividida processo pelo qual uma pessoa distribui os recursos atentivos
disponíveis para coordenar a execução de mais de uma tarefa ao mesmo tempo.
Atenção seletiva processo pelo qual uma pessoa tenta seguir a pista de um
estímulo ou de um tipo de estímulo e não prestar atenção a outro.
Bainha de mielina fita espiralada, disposta em torno de alguns axônios
periféricos e centrais, que tem a função isolante e contribui para aumentar a
velocidade de condução do impulso nervoso.
Bulbo olfativo local no cérebro que funciona como um centro organizador de
196
sinais olfativos. São duas zonas do cérebro, situadas debaixo da parte anterior de
cada um dos hemisférios cerebrais. É a sede central de elaboração das impressões
olfativas transmitidas pelo nervo correspondente.
Células estelares são neurônios arredondados; seus axônios não deixam o
córtex. Essas células servem para estabelecer as conexões com as colunas
corticais.
Células piramidais projetam seus axônios para outras áreas do cérebro e
medula espinhal, são neurônios excitatórios e a maioria dentre os neurônios de
projeção do córtex cerebral.
Cerebelo vem do latim e significa "pequeno cérebro”. O cerebelo fica localizado
ao lado do tronco encefálico. É parecido com o córtex cerebral em alguns aspectos:
o cerebelo é dividido em hemisférios e tem um córtex que recobre estes hemisférios.
É a parte do encéfalo responsável pela manutenção do equilíbrio e postura corporal,
controlo do tónus muscular e dos movimentos voluntários, bem como pela
aprendizagem motora.
Cérebro é o principal constituinte do encéfalo; além de ser, ainda, o principal
órgão do sistema nervoso central e o centro de controle de muitas atividades
voluntárias e involuntárias do nosso corpo. Ele também é responsável por ações
complexas, como pensamento, memória, emoção e linguagem.
Circuitos nervosos são conjuntos de neurônios que se comunicam entre si
através de junções denominadas de sinapses.
Codificação processo pelo qual um input sensorial físico é transformado numa
representação que pode ser armazenada na memória.
Cognição ato ou processo de conhecer. Inclui a atenção, a percepção, a
memória, o raciocínio, o juízo, a imaginação, o pensamento e o discurso.
197
Comportamento Segundo a Análise do Comportamento, comportamento é toda
e qualquer interação de um organismo vivo com o seu ambiente. Isto é, tudo o que
fazemos (abrir uma porta, pensar, perceber, ler etc.) numa relação com o ambiente,
pode ser interpretado como comportamento (e consequentemente, estudado pela
Análise do Comportamento). Desta forma, comportamento não é exatamente um
sinônimo de resposta, mas a relação entre a resposta e o ambiente. Ação, atividade
e atitude são alguns dos termos que, dependendo do contexto, podem ser
considerados como equivalentes a comportamento ou resposta.
Conhecimento declarativo informações reais que as pessoas conhecem sobre
objetos, idéias e eventos, no ambiente.
Conservação a capacidade para considerar mentalmente a estabilidade de uma
dada quantidade, apesar das mudanças observadas na aparência do objeto ou da
substância.
Corpo caloso localiza-se no fundo da fissura inter-hemisférica, ou fissura sagital,
é a estrutura responsável pela conexão entre os dois hemisférios cerebrais. Essa
estrutura, composta por fibras nervosas de cor branca (freixes de axónios envolvidos
em mielina), é responsável pela troca de informações entre as diversas áreas do
córtex cerebral.
Córtex cerebral a palavra córtex vem do latim e significa "casca". Isto porque o
córtex é a camada mais externa do cérebro. A espessura do córtex cerebral varia de
dois a seis milímetros. O lado esquerdo e direito do córtex cerebral são ligados por
um feixe grosso de fibras nervosas chamado de corpo caloso. O córtex cerebral está
dividido em mais de 40 áreas funcionalmente distintas, sendo a maioria pertencente
ao chamado neocórtex.
Córtex motor é responsável pelo controle e coordenação da motricidade
voluntária. Traumas nesta área causam fraqueza muscular ou mesmo paralisia. O
198
córtex motor do hemisfério esquerdo controla o lado direito do corpo, e o córtex
motor do hemisfério direito controla o lado esquerdo do corpo. Cada córtex motor
contém um mapa da superfície do corpo: perto da orelha, está a zona que controla
os músculos da garganta e da língua, segue-se depois a zona dos dedos, mão e
braço; a zona do tronco fica ao alto e as pernas e pés vêm depois, na linha média do
hemisfério.
Córtex olfativo localizado ventral e lateralmente ao hipocampo; apresenta duas
ou três camadas celulares.
Córtex pré-motor é responsável pela aprendizagem motora e pelos movimentos
de precisão. É na parte em frente da área do córtex motor, correspondente à boca,
que reside a Área de Broca, relativa à linguagem. A área pré-motora fica mais ativa
do que o resto do cérebro quando se imagina um movimento, sem o executar. Se se
executa, a área motora fica também ativa. A área pré-motora parece ser a área que
em grande medida controla o sequenciamento de acções em ambos os lados do
corpo. Traumas nesta área não causam nem paralisia nem problemas na intenção
para agir ou planejar, mas a velocidade e suavidade dos movimentos automáticos
(ex. fala e gestos) fica perturbada. A prática de piano, tênis ou golfe envolve a zona
pré-motora - sobretudo a esquerda, especializada largamente em atividades
sequênciais do tipo série.
Dendritos parte do neurônio, estas estruturas se ramificam como galhos de uma
árvore e servem como o principal aparato para receber sinais de outras células
nervosas. Eles funcionam como "antenas" do neurônio e são cobertos por milhares
de sinapses. A membrana dendrítica sob a sinapse (a membrana pós-sinaptica) tem
muitas moléculas de proteínas especializadas, os receptores, que detectam os
neurotransmissores na fenda sinaptica. Uma célula nervosa pode ter muitos
dendritos que se ramificam muitas vezes, sua superfície é irregular e coberta em
espinhas dendríticas, que é o local onde as conexões sinapticas são feitas.
Desenvolvimento cognitivo trata-se de mudanças qualitativas no pensamento,
que ocorrem ao longo da duração média de vida, em associação à progressiva
maturidade fisiológica (maturação) e experiência (aprendizagem).
199
Eferente adjetivo que qualifica um elemento que sai de um ponto de referência
do sistema nervoso.
Emoção é uma resposta neuronal e fisiológfica ao estímulo potencialmente
emocional.
Engrama é o somatório total das alterações no encéfalo, que codificaram
inicialmente uma experiência e que, então, constituem o registro daquela
experiência.
Evocação um processo de memória freqüentemente empregado em tarefas de
memória, no qual se solicita que a pessoa produza (não apenas o reconheça como
correto) um fato, uma palavra ou outro item de memória.
Figura-fundo um princípio gestáltico da percepção da forma: a tendência a
perceber que um objeto em um campo perceptivo ou um aspecto deste parece
proeminente (denominado de figura), enquanto outros aspectos ou objetos recuam
para o plano de fundo (denominado de fundo).
Gestalt embora não haja equivalente preciso em português para a palavra alemã
gestalt, o sentido mais geral que se pode dar ao termo seria uma espécie de
disposição ou configuração de uma organização específica das partes que
constituiria um todo particular.
Habituação tendência a acostumar-se a um estímulo e gradualmente notá-lo
cada vez menos.
Hipocampo é uma área do sistema límbico que é muito importante na memória,
aprendizado e estados emocionais. É uma região do córtex que está dobrada sobre
si e possui apenas três camadas celulares; localiza-se medialmente ao ventrículo
lateral. Tem particular envolvimento com a formação da chamada memória de longa
duração (aquela que persiste, às vezes, para sempre). Quando ambos os
200
hipocampos (direito e esquerdo) são destruídos, nada mais é gravado na memória.
O indivíduo esquece, rapidamente, a mensagem recém recebida. Um hipocampo
intacto possibilita ao animal comparar as condições de uma ameaça atual com
experiências passadas similares, permitindo-lhe, assim, escolher qual a melhor
opção a ser tomada para garantir sua preservação.
Hipotálamo também constituído por substância cinzenta, é o principal centro
integrador das atividades dos órgãos viscerais, sendo um dos principais
responsáveis pela homeostase corporal. Ele faz ligação entre o sistema nervoso e o
sistema endócrino, atuando na ativação de diversas glândulas endócrinas. É o
hipotálamo que controla a temperatura corporal, regula o apetite e o balanço de
água no corpo, o sono e está envolvido na emoção e no comportamento sexual.
Tem amplas conexões com as demais áreas do prosencéfalo e com o mesencéfalo.
É aceito que o hipotálamo desempenha, ainda, um papel nas emoções.
Especificamente, as partes laterais parecem envolvidas com o prazer e a raiva,
enquanto que a porção mediana parece mais ligada à aversão, ao desprazer e à
tendência ao riso (gargalhada) incontrolável. De um modo geral, contudo, a
participação do hipotálamo é menor na gênese (criação) do que na expressão
(manifestações sintomáticas) dos estados emocionais.
Imaginação representação mental de objetos, de eventos, de ambientes e de
outras coisas que não são imediatamente perceptíveis aos receptores sensoriais.
Impulso nervoso é a transmissão de um sinal codificado de um dado estímulo ao
longo da membrana do neurônio, a partir do ponto em que ele foi estimulado. É o
evento como a informação é processada. A direção normal do impulso no organismo
é do corpo celular para o axônio.
Inteligência capacidade para aprender a partir da experiência e adaptar-se ao
ambiente circundante.
Interdisciplinariedade é a união dos componentes distintos de duas ou mais
disciplinas, conduzindo a novos conhecimentos que não seriam possíveis se não
fosse esta integração. A interdisciplinariedade ocorre quando as disciplinas se
integram e colaboram entre si.
201
Lobos são as principais divisões físicas do córtex cerebral.
Luminância quantidade de energia que emerge de uma fonte.
Mapas cognitivos representações mentais do ambiente físico, particularmente
quanto às relações espaciais entre os objetos no ambiente.
Memória os meios pelos quais as pessoas recorrem ao conhecimento passado, a
fim de utilizá-lo no presente; os mecanismos dinâmicos associados à retenção e à
recuperação da informação.
Memória de trabalho uma fração da memória que pode ser considerada como
uma parte especializada da memória de longo prazo; mantém apenas a fração
ativada mais recentemente deste tipo de memória e transfere esses elementos
ativados para dentro e para fora da memória de curto prazo.
Memória episódica codificação, armazenamento e recuperação de eventos ou
episódios que a pessoa que recorda vivenciou, em um determinado tempo e lugar.
Memória explícita uma forma de recuperação da memória na qual uma pessoa
age conscientemente para evocar ou reconhecer determinada informação.
Memória implícita uma forma de recuperação da memória na qual uma pessoa
usa a informação lembrada, sem estar conscientemente inteirada da lembrança
dessa informação.
Memória semântica codificação, armazenamento e recuperação de fatos (por
exemplo, conhecimento declarativo a respeito do mundo); em alguns modelos, os
fatos não descrevem as experiências singulares da pessoa que evoca os fatos (cf.
com memória episódica).
Mente - é a resultante gerada a partir do funcionamento encefálico. Pode ser tratada
através de remédios antidepressivos, antipsicóticos ou ansiolíticos, e de
202
diferentes tipos de psicoterapia. As funções mentais podem referir-se a
localizações anatômicas mais ou menos específicas: fazer, lembrar e extinguir
memórias é função importante do hipocampo. A mente é função do corpo e dele
depende para existir, sofrer e se manifestar. Nas funções mentais participam: a
percepção, o nível de alerta, a seleção do que queremos perceber, recordar ou
aprender, a decisão sobre o que queremos fazer ou deixar de fazer, a vontade,
a compreensão, os sentimentos, as emoções, os estados de ânimo e tudo
aquilo que é englobado sob os conceitos de inteligência e consciência.
Multidisciplinariedade ocorre quando as disciplinas trabalham lado a lado em
distintos aspectos de um único problema.
Neocórtex córtex mais complexo; separa-se do córtex olfativo mediante um sulco
chamado fissura rinal; apresenta muitas camadas celulares e várias áreas sensoriais
e motoras. As áreas motoras estão intimamente envolvidas com o controle do
movimento voluntário.
Nervo conjunto de fibras nervosas, aglomeradas em paralelo, geralmente situado
no sistema nervoso periférico, formando longos cordões revestidos de tecido
conjuntivo.
Neurônio lula especializada do sistema nervoso capaz de conduzir sinais
elétricos.
Neuroreceptores receptores encontrados na célula nervosa. Têm como missão,
receber mensagens químicas específicas e traduzi-las nas correspondentes
respostas neuronais pós-sinápticas. Acredita-se que a superfície externa do
neuroreceptor serve para reconhecer e unir-se ao neurotransmissor, enquanto a
superfície interna efetua as alterações intracelulares esperadas.
Neurotransmissor substância sintetizada pelo neurônio, armazenada em
vesículas e liberada para o espaço extra-celular com a função de transmitir
informação entre um neurônio e outra célula situada na proximidade.
203
NIR Espectroscopia no infravermelho próximo. Método não-invasivo de captação
de imagem, que permite medir a concentração de hemoglobina desoxigenada no
cérebro por absorção do infravermelho próximo (a luz do infravermelho próximo, de
comprimento de o0nda entre 700nm e 900 nm, pode penetrar parcialmente no tecido
humano).
Núcleo aglomeração de neurônios do sistema nervoso central, identificável ao
microscópio por suas características morfológicas, e geralmente tem uma única
função.
Percepção o conjunto de processos psicológicos pelos quais as pessoas
reconhecem, organizam e fornecem significação (no cérebro) às sensações
recebidas dos estímulos ambientais (nos órgãos dos sentidos).
Percepção subliminar forma de processamento pré-consciente, na qual as
pessoas são capazes de detectar a informação sem estarem conscientes de que
estão fazendo isso.
Percepto representação mental de um estímulo que é percebido.
PET Tomografia por emissão de pósitrons. Técnica em que, com a utilização de
um radionuclídeo, produz-se a emissão de pósitrons e cria-se uma imagem da
atividade cerebral. A tomografia por emissão de pósitrons produz imagens
tridimensionais e coloridas da atividade química do encéfalo.
Plasticidade uma característica da cognição humana, pela qual parecemos ser
ilimitadamente capazes de modificar nossos processos e produtos cognitivos,
melhorando nossa eficácia nas tarefas com as quais nos deparamos.
Plasticidade neural é a propriedade do sistema nervoso que permite o
desenvolvimento de alterações estruturais em resposta à experiência, e como
adaptação a condições mutantes e a estímulos repetidos.
204
Pós-imagem imagem negativa de um objeto muito claro fixado durante um tempo
prolongado, e observado em seguida com os olhos fechados ou em algum ambiente
escuro.
Potencial de ação é um fenômeno de natureza eletro-química e ocorre devido a
modificações na permeabilidade da membrana do neurônio.
Priming processo pelo qual estímulos iniciais específicos ativam vias mentais que
aumentam a capacidade para processar os estímulos subseqüentes, relacionados
aos estímulos priming sob certo aspecto.
Raciocínio refere-se a como nós chegamos a conclusões. Com base em
informações tiramos inferências ou conclusões.
Representação do conhecimento forma mental pela qual as pessoas conhecem
as coisas, as idéias, os eventos, etc. que existem fora de suas mentes.
RMf Ressonância magnética funcional. Utiliza-se um scanner para monitorar
indiretamente a atividade neural por meio de mudanças químicas do sangue (como
o nível do oxigênio) e investigar aumentos de atividade dentro das áreas cerebrais
associadas a vários estímulos e tarefas mentais.
Semântica o estudo das significações, sob forma de linguagem.
Sentimento é quando a emoção atinge a consciência e é codificada.
Simbólica significa uma forma de representação que foi escolhida
arbitrariamente para representar algo e que não se assemelha perceptivamente a
tudo o que está sendo representado.
Sinal estímulo a ser detectado; segundo a teoria da detecção de sinal, há quatro
pares de estímulo-resposta possíveis: um acerto, um erro, um alarme falso ou uma
rejeição correta.
205
Sinapse região de proximidade entre dois neurônios, ou entre um neurônio e uma
célula muscular, por onde passa a informação neural. São nestas junções que os
neurônios são excitados, inibidos ou modulados. Existem dois tipos de sinapses, a
elétrica e a química.
Sinapses Elétricas ocorrem onde o terminal pré-sináptico está em continuidade
com o pós-sináptico. Íons e pequenas moléculas passam por eles, conectando então
canais de uma célula à próxima, de forma que alterações elétricas em uma célula
são transmitidas quase instantaneamente à próxima. Os íons podem gerar fluxos em
ambos as direções destas junções, embora eles tendam a ser unidirecionais.
Sinapses nervosas são os pontos onde as extremidades de neurônios vizinhos
se encontram e o estímulo passa de um neurônio para o seguinte por meio de
mediadores químicos, os neurotransmissores. As sinapses ocorrem quando as
terminações nervosas (axônios) que estão em "contato" com os dendritos, o contato
fisíco não existe realmente, pois ambas estruturas estão próximas, mas há um
espaço entre elas (fenda sináptica). Dos axônios são liberadas substâncias
(neurotransmissores), que atravessam a fenda e estimulam receptores nos dentritos
e assim transmitem o impulso nervoso de um neurônio para o outro
Sinapses Químicas o modo de transmissão não é elétrico, e sim carreado por
neurotransmissores, substâncias neuroativas liberadas no lado pré-sináptico da
junção. Existem dois tipos de junções químicas. O tipo I é uma sinapse excitatória,
geralmente encontrada em dendritos; o tipo II é uma sinápse inibitória, geralmente
encontrada em corpos celulares. Substâncias diferentes são liberadas nestes dois
tipos de sinapses.
Sistema Límbico é um grupo de estruturas que inclui hipotálamo, tálamo,
amígdala, hipocampo, os corpos mamilares e o giro do cíngulo. Todas estas áreas
são muito importantes para a emoção e reações emocionais. O hipocampo também
é importante para a memória e o aprendizado.
Sistema motor conjunto de regiões interligadas ao sistema nervoso, que se
encarregam de diferentes aspectos da motricidade.
206
Tálamo todas as mensagens sensoriais, com exceção das provenientes dos
receptores do olfato, passam por ele antes de atingir o córtex cerebral. Esta é uma
região de substância cinzenta localizada entre o tronco encefálico e o cérebro. O
tálamo atua como estação retransmissora de impulsos nervosos para o córtex
cerebral. Ele é responsável pela condução dos impulsos às regiões apropriadas do
cérebro, onde eles devem ser processados. O tálamo também está relacionado com
alterações no comportamento emocional, que decorrem, não só da própria atividade,
mas também de conexões com outras estruturas do sistema límbico (que regula as
emoções).
Timbre percepção da combinação característica de freqüências e seus
harmônicos, emitidos por uma determinada fonte sonora.
Tom percepção de uma freqüência pura emitida por uma fonte sonora.
Transdução é a conversão de uma forma de sinal físico ou químico em outra. Em
biologia celular a transdução de sinais refere-se a um processo seqüencial iniciado
pela ligação de um sinal extracelular a um receptor e culminando em uma ou mais
respostas celulares específicas.
Tronco conjunto de fibras nervosas paralelas, semelhante ao nervo, mas mais
calibroso que este.
207
ANEXOS
I HEMISFÉRIO CEREBRAL DIREITO E ESQUERDO
Quando o psicólogo Roger Sperry (1913-1994) ganhou o prêmio Nobel
de medicina e fisiologia, em 1981, por seus estudos sobre a especialização
hemisférica, houve um grande interresse da mídia pelo tema.
A descoberta da especialização hemisférica, ao ser levada ao público
pelos meios de comunicação, incorporou uma visão exageradamente simplista da
questão: um dos hemisférios seria "verbal", o outro "espacial"; um usaria a Razão, o
outro a Emoção, e assim por diante. Essas dicotomias exageradas levaram,
inclusive, a recomendações não-científicas do tipo: "pense com o hemisfério direito",
"aja com o hemisfério esquerdo". Essas recomendações são totalmente infundadas.
Betty Davis, professora de desenho americana, desenvolveu o método
de desenho Desenhando com o lado direito do cérebro, apoiada nas pesquisas de
Roger Sperry. O método de Betty Davis é interessante e ajudou muitos estudantes a
desenvolverem suas potencialidades. Porém, não tem comprovação científica
experimental que seja aceita na comunidade científica. O fato das pessoas
aprenderem a desenhar a partir das estratégias criadas por Betty Davis, não
significa que suas justificativas e considerações a respeito do funcionamento dos
hemisférios cerebrais estejam corretas.
Após 25 anos de equívocos gerados pela mídia e por leigos
irresponsáveis, torna-se difícil desfazer esse engano com poucas palavras. Por isso,
recorro ao neuroanatomista Roberto Lent, que, em seu livro Cem Bilhões de
208
Neurônios, relata com clareza esse tema: a especialização hemisférica. Creio que
essa leitura contribuirá, de forma adequada, para suprir essa lacuna de informação.
Trecho retirado de LENT, 2004, p. 642- 646
“Quando Paul Broca apresentou à Societé Anatomique os seus
pacientes afásicos, contribuiu ao mesmo tempo para fortalecer o conceito de
localização de funções no sistema nervoso e lançar a idéia de dominância
hemisférica, precursora da concepção moderna de especialização funcional dos
hemisférios cerebrais. Durante muitas décadas os neurologistas pensaram que o
hemisfério esquerdo, sede do ‘centro que fala’ (como pensava Broca), era
dominante sobre o hemisfério direito. Este, portanto, exerceria apenas funções
coadjuvantes e secundárias.
Um século depois as evidências mostraram que não era bem assim, e
o conceito de dominância hemisférica se tornou ultrapassado. Percebeu-se que não
há um hemisfério dominante e outro dominado, mas sim dois hemisférios
especializados. Um dos hemisférios se encarrega de um grupo de funções, o
segundo encarrega-se de outro. Ambos, no entanto, trabalham em conjunto,
utilizando-se dos milhões de fibras nervosas que constituem as comissuras cerebrais
e se encarregam se pô-los em constante interação. O novo conceito - especialização
hemisférica -, de certo modo, confunde-se com dois outros relacionados: o de
lateralidade e o de assimetria. Lateralidade hemisférica é um conceito
essencialmente funcional: significa que, enquanto algumas funções são
representadas igualmente em ambos os hemisférios (como a visão, por exemplo),
outras são representadas apenas de um lado (como a fala). Assimetria é um
209
conceito mais geral, que engloba o de lateralidade e apresenta-se sob várias
modalidades: assimetrias morfológicas, funcionais e comportamentais. Significa que
os hemisférios não são simétricos, quando vemos sob esses diferentes ângulos: sua
forma à direita é diferente da esquerda, a representação funcional idem, e assim
também os comportamentos que os hemisférios controlam.
A descoberta da especialização hemisférica, ao ser levada ao público
pelos meios de comunicação, incorporou uma visão exageradamente simplista da
questão: um dos hemisférios seria "verbal", o outro "espacial"; um usaria a Razão, o
outro a Emoção, e assim por diante. Essas dicotomias exageradas levaram,
inclusive, a recomendações não-científicas do tipo: "pense com o hemisfério direito",
"aja com o hemisfério esquerdo", e outras tantas...
Pessoas com o Cérebro Dividido
Depois de Broca, uma grande explosão de conhecimento sobre a
especialização dos hemisférios surgiu a partir da década de 60, com as pesquisas
que levaram o psicólogo Roger Sperry (1913-1994) a merecer o prêmio Nobel de
medicina e fisiologia em 1981, por seus estudos sobre a especialização hemisférica
e as comissuras cerebrais.
As comissuras cerebrais são três (fíguras 19.17): o corpo caloso, a
comissura anterior e a comissura do hipocampo. O corpo caloso é a maior delas,
possuindo cerca de 200 milhões de fibras que interconectam a maior parte do cortéx
cerebral de ambos os hemisférios. A comissura anterior põe em contato as regiões
inferiores e ventrais do lobo temporal, e a comissura do hipocampo conecta as
regiões temporais mediais.
Embora se pudesse imaginar, até os anos 60 ninguém sabia ao certo o
210
uso das comissuras, porque os experimentos realizados em animais até essa
ocasião não eram muito esclarecedores, a não ser para revelar o óbvio: que as
comissuras transmitiam informações entre os hemisférios cerebrais. Acresce que
alguns indivíduos haviam sido submetidos à transsecção cirúrgica do corpo caloso
por indicação terapêutica, sem que os neurologistas pudessem detectar qualquer
alteração funcional ou sintoma proveniente dessa cirurgia tão radical. Era espantoso
que um feixe contendo 200 milhões de fibras não fizesse falta!
As cirurgias de transsecção das comissuras cerebrais são
recomendadas para pacientes com epilepsias muito graves. Esses pacientes podem
ter dezenas de crises convulsivas por dia, o que, além de lhes inviabilizar a vida
social, vai aos poucos causando a morte de vários contingentes crescentes de
células nervosas. Verificou-se empiricamente que a interrupção do corpo caloso
impede que o foco epiléptico - local de origem da crise - se espraie para o hemisfério
oposto, e com isso se generalize. O número de crises então diminuiu, e a epilepsia
pode ser controlada com medicamentos.
Sperry imaginou um experimento engenhoso utilizando, como sujeitos,
dois indivíduos com o cérebro dividido, isto é, os pacientes cujas comissuras haviam
sido interrompidas cirurgicamente. Depois de recuperado da operação, o paciente se
senta em frente a uma tela translúcida (figura 19.18A) sobre a qual o pesquisador
pode projetar diapositivos com imagens variadas. Por trás da tela, o paciente tem
acesso manual a diferentes objetos que correspondem de algum modo às imagens
projetadas. O experimento começa com o indivíduo fixando um ponto bem no centro
da tela. Em seguida, o pesquisador projeta à esquerda do ponto de fixação
(hemicampo visual esquerdo) uma letra (R, por exemplo), e à direita outra (L, por
exemplo). A imagem da letra permanece na tela por penas 150 ms, um tempo tão
211
breve que impede que ele involuntariamente retire os olhos do ponto central de
fixação. Com isso, a letra R projetada no hemicampo visual esquerdo será
exclusivamente representada no hemisfério direito, e a letra L projetada no
hemicampo direito será representada exclusivamente no hemisfério esquerdo. O
pesquisador pode, então, perguntar ao indivíduo o que ele viu na tela (figura
19.18B). Ele dirá: L. Mas se for solicitado para encontrar com a mão esquerda o
objeto correspondente (letras de plástico atrás da tela), pegará a letra R e não a L.
Parece impossível, mas a explicação é simples: só o hemisfério esquerdo viu L;
portanto o paciente só consegue falar o que o hemisfério da linguagem viu. Mas
como o hemisfério direito viu R e é ele que comanda a mão esquerda, a resposta
nesse caso será diferente.
Esse déficit que o paciente comissurotomizado apresenta faz parte da
síndrome de desconexão inter-hemisférica, um termo que expressa a incapacidade
dos hemisférios de trocar informação. Sperry e seis colaboradores tiraram partido
dessa síndrome, desenvolvendo um modo eficiente de lateralizar estímulos, isto é,
de fazê-los incidir exclusivamente sobre um dos hemisférios. Tornou-se possível
então apresentar a cada hemisfério separadamente cálculos matemáticos, figuras
tridimensionais para montar mentalmente, imagens com conteúdo emocional e toda
sorte de estímulos. Além do sistema visual, estímulos auditivos lateralizados podem
ser apresentados simultaneamente através de fones de ouvido e estímulos
somestésicos apresentados às mãos. A resposta do hemisfério esquerdo é aferida
através da fala, e a do hemisfério direito através de ações da mão esquerda. Foi
possível revelar que as comissuras são responsáveis por unificar os campos
sensoriais, especialmente os dois hemicampos visuais, e é delas também a
responsabilidade de sincronizar o processamento funcional de ambos os
212
hemisférios. Ao falar, por exemplo, simultaneamente veiculamos informações
cognitivas e afetivas, e isso resulta da atividade coordenada de ambos os
hemisférios através das comissuras. Finalmente, o trabalho de Sperry provocou uma
intensa discussão de interesse filosófico. Se temos dois hemisférios e eles são
diferentes, será que isso significa que temos dois cérebros? E se temos dois
cérebros, isso significa que temos duas mentes?
O estudo da especialização hemisférica não se restringiu aos
indivíduos com o cérebro dividido. Afinal, não se pode esquecer que eles são
doentes epilépticos graves, e talvez as funções que eles revelam nos experimentos
de Sperry não sejam inteiramente normais.
Outros estudos foram feitos com indivíduos normais, sempre utilizando
estímulos lateralizados. A forma de revelar a especialização hemisférica, entretanto,
tem de ser diferente porque os indivíduos normais dispõem de comissuras que
distribuem a informação para o hemisfério oposto. Para contornar essa dificuldade,
utiliza-se a cronometria mental. Quando um hemisfério processa uma informação
que recebe diretamente, e ele mesmo comanda a resposta (neste caso geralmente
manual), o tempo de reação do indivíduo tende a ser mais curto do que quando ele a
recebe no hemisfério oposto. A diferença é atribuída ao tempo de passagem pelas
comissuras. Nos últimos anos, as técnicas de imagem morfológicas e funcionais,
bem como os métodos de registro eletro e magnetofisiológico, foram empregados
em indivíduos normais para identificar a existência de assimetrias hemisféricas,
associadas aos estudos morfológicos tradicionais realizados em cérebros de
indivíduos falecidos. Os resultados, de um modo geral, confirmaram e ampliaram os
resultados originalmente obtidos por Sperry e seus colaboradores.
213
Os Hemisférios não são Iguais
Os experimentos utilizando pessoas com o cérebro dividido,
complementados com os que empregam indivíduos normais, revelaram que as
especialidades dos hemisférios podem ser bem diferentes (figura 19.19). Revelaram,
também, que raramente a especialização hemisférica significa exclusividade
funcional. O hemisfério esquerdo controla a fala em mais de 95% dos seres
humanos, mas isso não quer dizer que o direito não participe: ao contrário, é a
prosódia do hemisfério direito que confere à fala nuances afetivas essenciais para a
comunicação interpessoal. O hemisfério esquerdo é melhor na realização mental de
cálculos matemáticos, no comando da escrita e na compreensão dela através da
leitura. O hemisfério direito, de sua parte, é melhor para a percepção de sons
musicais e no reconhecimento de faces, especialmente quando se trata de aspectos
gerais (homem ou mulher? adulto ou criança?). O hemisfério esquerdo também
participa do reconhecimento de faces, mas sua especialidade é descobrir
precisamente quem é o dono de cada face (José ou Joaquim?). Da mesma forma, o
hemisfério direito é especialmente capaz de identificar categorias gerais de objetos e
seres vivos (livros, cães), mas é o esquerdo que detecta as categorias específicas
(um exemplar de Cem Bilhões de Neurônios, um pastor alemão). O hemisfério direito
é melhor na detecção de relações espaciais, particularmente as relações métricas,
quantificáveis, aquelas que são úteis para o nosso deslocamento no mundo (a que
distância estou do carro da frente?). O hemisfério esquerdo não deixa de participar
dessa função, mas é melhor no reconhecimento de espaciais categoriais qualitativas
(acima de, abaixo de, dentro, fora...). Finalmente, não vamos esquecer as
habilidades motoras: o hemisfério esquerdo produz movimentos mais precisos da
mão e da perna direitas (na maioria das pessoas) do que o hemisfério direito é
214
capaz de fazer com a mão e a perna esquerdas.
Talvez a principal generalização que se possa fazer dos estudos que
revelaram que as especialidades funcionais dos hemisférios seja a de que o
hemisfério direito comanda e percebe funções globais, categoriais, enquanto o
hemisfério esquerdo se encarrega das funções mais específicas. De certo modo,
essas diferentes especialidades se baseiam em diferentes estratégias de operação,
que no final das contas podem ser devidas à segregação lateral de neurônios e
circuitos com distintos modos de funcionamento.
Observe a (figura 19.20). Ela representa um quadro famoso do pintor
espanhol Salvador Dalí. À primeira vista você identifica pessoas no centro da tela,
observadas por uma mulher no primeiro plano à esquerda. As pessoas estão de pé
em uma construção incompleta, e a mulher de torso nu se apóia em uma mesa com
dois objetos. Essa descrição provavelmente lhe basta para uma percepção global do
quadro. Mas se você observar novamente com cuidado, o grupo de pessoas bem no
centro subitamente se transforma em um rosto humano, o busto de Voltaire! É
preciso um outro olhar para perceber isso.
Na observação do quadro de Dalí você utilizou duas estratégias de
percepção: a primeira foi mais global, a segunda foi mais específica. Possivelmente
o hemisfério direito participou mais da primeira estratégia, enquanto o esquerdo
predominou na segunda. Evidências desses diferentes modos de operação dos
hemisférios foram obtidas por psicólogos empregando estímulos lingüísticos ou
pictóricos (figura 19.21) apresentados a pacientes com grandes lesões do hemisfério
direito e outros do hemisfério esquerdo. Os pacientes eram solicitados a observar
um estímulo e depois desenhá-lo numa folha de papel. Os que tinham apenas o
hemisfério esquerdo funcionando viram os detalhes do estímulo, ou seja, os
215
componentes miúdos da figura maior. O contrário ocorreu com os que tinham
apenas o hemisfério direito funcionando: detectaram a configuração global, mas não
os detalhes. Desse e de outros experimentos semelhantes surgiu a hipótese de que
talvez predominem no hemisfério esquerdo neurônios detectores de freqüências
espaciais, capazes de detectarem estímulos finos e pequenos. No hemisfério direito,
predominariam detectores de freqüências espaciais mais baixas, melhores para
perceber os estímulos maiores.
Além das assimetrias perceptuais e lingüísticas, as assimetrias
comportamentais também refletem a especialização dos hemisférios cerebrais. De
todas, a mais conhecida é a preferência manual.
A grande maioria dos seres humanos (95% ou mais) é destra, ou seja,
prefere utilizar a mão direita para as tarefas motoras de maior precisão. A minoria é
de canhotos, e uma proporção muito pequena é constituída de ambidestros. Além da
preferência manual, há uma preferência para uso dos pés, outra para uso dos olhos,
e elas não estão necessariamente relacionadas. Da mesma forma, não parecem
estar relacionadas a preferência manual e a lateralidade lingüística. É verdade que a
maioria dos destros tem a linguagem representada no hemisfério esquerdo, mas a
maioria dos canhotos também... Apenas uma proporção pequena dos canhotos tem
a representação situada no hemisfério direito, e uma menor ainda na linguagem
bilateral.
Muitos mamíferos (ratos, gatos, macacos) apresentam também
preferência de uso de uma das patas em detrimento da outra. No entanto, na
população a distribuição dessa assimetria é aleatória: metade dos indivíduos usa
mais a pata esquerda, enquanto a outra metade prefere a pata direita.
A preferência manual humana reflete a diferença de estratégias
216
funcionais dos hemisférios. Quando apontamos um lápis, por exemplo, usamos uma
das mãos para segurá-lo (movimento de pequena precisão) e a outra para cortar a
madeira com o canivete (movimento de maior precisão). A mão que segura o lápis é
comandada pelo hemisfério direito (mesmo na maioria dos canhotos) e a mão que
faz a ponta é comandada pelo hemisfério esquerdo. A diferença de estratégias para
o comando manual é também evidenciada num fenômeno estranho que se observa
em alguns indivíduos com o cérebro dividido: o conflito intermanual. Na ausência de
comunicação entre os hemisférios, as mãos "não se estendem": iniciam movimentos
opostos, à revelia do indivíduo. Uma das mãos pega uma caneta para escrever, mas
a outra intercepta, retira a caneta e a coloca de volta sobre a mesa!
Uma dificuldade para o estudo da determinação neurobiológica das
assimetrias comportamentais é que elas são suscetíveis a influências ambientais. Os
jogadores de futebol, por exemplo, podem ser treinados a utilizar os dois pés para
chutar, embora originalmente prefiram utilizar um deles. As crianças canhotas de
antigamente muitas vezes tornavam-se destras, forçadas pelos pais, que
acreditavam ser a mão direita necessariamente mais hábil e precisa que a
esquerda.”
(LENT, 2004; p.642- 646)
217
figura 19 . 17 figura 19. 18
figura 19. 21 figura 19. 19
figura 19. 20
218
II A PSICOLOGIA EXPERIMENTAL E AS TEORIAS DA GESTALT
No ensaio que deu à Teoria da Gestalt seu nome, Christian von
Ehrenfels, filósofo vienense do fim do séc XIX, demonstrou que, se 12 observadores
escutassem cada um dos 12 tons de uma melodia, a soma de suas experiências não
corresponderia à experiência de alguém que a ouvisse inteira. Portanto, o todo é
diferente da soma das partes e estas não podem fornecer uma real compreensão do
todo.
Considerando estes argumentos filosóficos, Max Wertheimer (1880-
1943), Kurt Kofka (1886-1937) e Wolfgang Köhler (1887-1967), em Universidades da
Alemanha, dão início a uma sistemática investigação científica para realizar a
comprovação experimental desta afirmação filosófica.
Os resultados desta pesquisa são pulicados em 1912, por Max
Wertheimer, em artigo que descrevia o experimento que haviam realizado para
explorar certos aspectos da percepção do movimento. Numa sala escura, fizeram
reluzir em rápida sucessão dois pontos de luz próximos um do outro, variando os
intervalos de tempo entre os clarões. Descobriram que, quando o intervalo entre os
clarões era menor que 3/100 de segundo, eles pareciam simultâneos. Quando o
intervalo era de 6/100 de segundo, o observador dizia ver o clarão mover-se do
primeiro ponto ao segundo. Quando o intervalo era de 20/100 de segundo ou mais,
os pontos de luz foram observados como o eram de fato, ou seja, dois clarões de luz
separados.
A descoberta crucial do experimento refere-se à percepção de
movimento quando os clarões estavam separados por aproximadamente 6/100 de
segundo. O movimento aparente não era função dos estímulos isoladamente, mas
219
dependia das características relacionadas à organização neural e perceptiva do
campo. Os resultados deste experimento levaram a algumas reformulações
fundamentais no estudo da percepção, durante as décadas de 1920 e 1930 do
século XX.
A partir da publicação desse artigo, estava implantada a Gestalt
34
como
Escola de Psicologia Experimental. Por volta de 1933, refugiando-se do nazismo, os
três pesquisadores emigram para os Estados Unidos. Lá aturam em Universidades
distintas, influenciando, difundindo e ramificando a psicologia da gestalt.
A psicologia da gestalt
35
, após sistemáticas pesquisas, apresenta uma
teoria nova sobre o fenômeno da Percepção. Segundo esta teoria, o que acontece
no cérebro não é idêntico ao que acontece na retina. A excitação cerebral não se dá
por pontos isolados, mas por extensão. A primeira sensação já é de forma, já é
global e unificada.
O postulado da psicologia da gestalt no que se refere às relações
psicofisiológicas pode ser definido como sendo todo o processo consciente, toda
forma psicológicamente percebida, e está estreitamente relacionada com as forças
integradoras do processo fisiológico cerebral. A hipótese da gestalt para explicar a
origem dessas forças integradoras, é atribuir ao sistema nervoso central um
dinamismo auto-regulador que, à procura de sua própria estabilidade, tende a
organizar as formas em todos coerentes e unificados.
Essas organizações, originárias da estrutura cerebral, são
espontâneas, não arbitrárias e independem da vontade.
34
A palavra Gestalt, de origem alemã, é um substantivo comum usado para configuração ou forma. O
sentido mais geral que se pode dar ao termo seria uma espécie de disposição ou configuração de
uma organização específica das partes que constituiria um todo particular.
35
É importante não confundir a Psicologia da Gestalt e as teorias da gestalt com a Gestalt Terapia,
estruturada por Frederick Perls.
220
Leis da Gestalt
As leis de organização da Gestalt têm guiado os estudos sobre como
as pessoas percebem componentes visuais como padrões organizados ou
conjuntos, ao invés de suas partes componentes. De acordo com essa teoria, há oito
fatores principais que determinam como nós agrupamos coisas de acordo com a
percepção visual. Os teóricos da Gestalt propuseram uma série de princípios para
percepção, tais como: proximidade, semelhança, continuidade, fechamento,
unificação, segregação, unidade e pregnância da forma.
A utilização das leis da Gestalt na sintaxe visual
A partir das leis da gestalt, foi criado o suporte sensível e racional,
espécie de abc da leitura visual, que permitiu e favoreceu toda e qualquer
articulação analítica e interpretativa de forma do objeto, sobretudo com relação à
utilização das demais categorias conceituais. A seguir, são colocados os
rebatimentos operados sobre as leis da Gestalt, que dão embasamento científico a
este sistema de leitura visual:
a. Unidade - Uma unidade pode ser consubstanciada num único
elemento, que se encerra em si mesmo, ou como parte de um todo.
Ainda, numa conceituação mais ampla, pode ser entendida como o
conjunto de mais de um elemento, configurando o "todo"
propriamente, ou seja, o próprio objeto.
ü As unidades formais que configuram um todo são percebidas,
geralmente, através de relações entre os elementos (ou
subunidades) que as constituem. Uma ou mais unidades formais
221
podem segregadas ou percebidas dentro de um todo por meio de
diversos elementos, tais como: pontos, linhas, planos, volumes,
cores, sombras, brilhos, texturas e outros, isolados ou combinados
entre si.
b. Segregação - Segregação significa a capacidade perceptiva de
separar, identificar, evidenciar ou destacar unidades formais em um
todo compositivo ou em partes deste todo. Naturalmente, pode-se
segregar uma ou mais unidades, dependendo da desigualdade dos
estímulos produzidos pelo campo visual (em função das forças de
um ou mais tipos de contrastes).
ü A segregação pode ser feita por diversos meios, tais como:
elementos dos pontos, linhas, planos, volumes, cores, sombras,
brilhos, texturas e outros. Para efeito de leitura visual, pode-se
também estabelecer níveis de segregação. Por exemplo,
identificando-se apenas as unidades principais de um todo mais
complexo, desde que seja suficiente para o objetivo desejado de
análise e/ou interpretação da forma do objeto.
c. Unificação - A unificação da forma consiste na igualdade ou
semelhança dos estímulos produzidos pelo campo visual, pelo
objeto. A unificação se verifica quando os fatores de harmonia,
equilíbrio, ordenação visual e, sobretudo, a coerência da linguagem
ou estilo formal das partes ou do todo estão presentes no objeto ou
composição. Importante salientar que, obviamente, a unificação se
dá também em graus de qualidade, ou seja, varia em função de uma
222
melhor ou pior organização formal.
ü Nesse caso se poderá atribuir índices qualitativos numa dada
leitura. Em tempo, dois princípios básicos concorrem também
fortemente para a unificação da organização formal, que são as leis
de proximidade e semelhança quando presentes em partes ou no
objeto como um todo.
d. Fechamento - O fator de fechamento é importante para a formação
de unidades. As forças de organização da forma dirigem-se
espontaneamente para uma ordem espacial que tende para a
formação de unidades em todos fechados. Em outras palavras,
obtém-se a sensação de fechamento visual de forma pela
continuidade numa ordem estrutural definida, ou seja, por meio de
agrupamento de elementos de maneira a constituir uma figura total
mais fechada ou mais completa. Importante não confundir a
sensação de fechamento sensorial, de que trata a lei da Gestalt,
com o fechamento físico, contorno dos elementos dos objetos,
presente em praticamente todas as formas dos objetos.
e. Continuidade - A boa continuidade, ou boa continuação, é a
impressão visual de como as partes se sucedem através da
organização perceptiva da forma de modo coerente, sem quebras ou
interrupções na sua trajetória ou na sua fluidez visual. É também a
tendência dos elementos de acompanharem uns aos outros, de
maneira tal que permitam a boa continuidade de elementos como:
223
pontos, linhas, planos, volumes, cores, sombras, brilhos, degradês e
outros. Ou de um movimento numa direção já estabelecida. A boa
continuidade atua ou concorre, quase sempre, no sentido de se
alcançar a melhor forma possível do objeto, a forma mais estável
estruturalmente.
f. Proximidade - Elementos ópticos próximos uns dos outros tendem a
ser vistos juntos e, por conseguinte, a constituírem um todo ou
unidades de um todo. Em condições iguais, os estímulos mais
próximos entre si, seja por forma, cor, tamanho, textura, brilho, peso,
direção e outros, terão maior tendência a serem agrupados e a
constituírem unidades. Proximidade e semelhança são dois fatores
que, muitas vezes, agem em comum e se reforçam mutuamente,
tanto para constituírem unidades como para unificar a forma.
g. Semelhança - A igualdade de forma e de cor desperta também a
tendência de se constituir, isto é, de estabelecer agrupamentos de
partes semelhantes. Em condições iguais, os estímulos mais
semelhantes entre si, seja por forma, cor, tamanho, direção, e
outros, terão mais tendência a serem agrupados, a constituírem
partes ou unidades. Em condições iguais, os estímulos originados
por semelhança e em maior proximidade terão também maior
tendência a serem agrupadaos, a constituírem unidades.
Semelhança e proximidade são dois fatores que, além de
concorrerem para a formação de unidades, concorrem também para
224
promoverem a unificação do todo, daquilo que é visto, no sentido de
harmonia, ordem e equilíbrio visual.
h. Pregnância da Forma - A pregnância é a Lei Básica da Percepção
Visual de Gestalt e assim definida: "Qualquer padrão de estímulo
tende a ser visto de tal modo que a estrutura resultante é tão simples
quanto perimitam as condições dadas [...] As forças de organização
da forma tendem a se dirigir tanto quanto o permitam as condições
dadas, no sentido da harmonia e do equilíbrio visual". (FILHO, 2000)
ü Continuando, uma boa pregnância pressupõe que a organização
formal do objeto, no sentido psicológico, tenderá a ser sempre a
melhor possível do ponto de vista estrutural. Assim, para efeito
desse sistema, pode-se afirmar e estabelecer o seguinte critério de
qualificação ou julgamento organizacional de forma:
i. Quanto melhor for a organização visual da forma do objeto em
termos de facilidade de compreensão e rapidez de leitura ou
interpretação, maior será o seu grau de pregnância.
ü Naturalmente, quanto pior ou mais confusa for a organização visual
da forma do objeto, menor será o seu grau de pregnância. Para
facilitar o julgamento da pregnância, pode-se estabelecer um grau
ou índice de pontuação como, por exemplo: baixo, médio, alto, ou
ainda uma nota de 1 a 10, respectivamente, no sentido da melhor
para a pior qualificação.
225
II SANTIAGO RAMÓN Y CAJAL
SANTIAGO RAMÓN Y CAJAL
“No soy en realidad un sabio sino un
español.”
Santiago Ramón y Cajal nasceu em 1º de maio
de 1852 em Petilla de Aragón, uma pequena vila
ao norte da Espanha, e faleceu no dia 17 de
outubro de 1934 em Madrid, aos 82 anos. É
considerado o pai da neurociência moderna, pois seus estudos constituem, até os dias
atuais, a base do conhecimento neste campo.
Graduou-se na Faculdade de Medicina em Zaragoza em 1873, aos 21 anos. Em
seguida, ingressou no Exército Espanhol, servindo como médico em Cuba, onde contraiu
malária e tuberculose, retornando à Espanha em 1875. Em 1877 obteve o grau de Doutor
em Medicina, em Madrid, passando a lecionar Histologia em Zaragoza e depois assumindo
a direção do Museu de Anatomia.
Em 1879 casou-se com Silveria Fañanás García, sua companheira de toda a vida,
com quem teve sete filhos.
“Hay pocos lazos de amistad tan fuertes que no puedan ser cortados por um cabello
de mujer”
Lecionou Anatomia em Valência (1883), Histologia em Barcelona (1887), assumiu a
disputada Cátedra de Histologia em Madrid (1892) e dirigiu o Laboratório de
226
Investigação Biológica (1901), que constituiu o embrião do atual Instituto Cajal, um
dos maiores centros de Neurociência do mundo.
Cajal permaneceu em intensa atividade científica até 1932, quando se
aposentou, aos 80 anos de idade. Entre 1933 e 1934, lançou suas duas últimas
obras; Neuronismo o reticularismo? e um livro de memórias El mundo visto a los
ochenta años.
“El arte de vivir mucho es resignarse a vivir poco a poco”
O DESENHO, A PINTURA , A FOTOGRAFIA E A MICROGRAFIA
“...eu estava com oito ou nove anos e tinha uma irresistível vontade de desenhar, de
colorir as paredes recém pintadas da vila com todo tipo de desenhos, cenas militares e
touradas... mas como não podia desenhar em casa, pois meu pai considerava o desenho
uma distração nefasta... saía ao campo... e desenhava cavalos, carretas, vilarejos e
paisagens que me parecessem interessantes... e que guardava como ouro em pó...
traduzindo meus sonhos no papel, tendo meu lápis como uma varinha mágica, eu criei o
mundo que desejei, habitado por todas aquelas coisas que nutriam meus sonhos... tudo
passava através de meu lápis agitado.” Ramón y Cajal, Recuerdos de mi vida.
“Nos desdeñamos u odiamos porque no nos comprendemos porque no nos
tomamos el trabajo de estudiarnos.”
227
Embora desenhasse com freqüência, sua desenvoltura ainda não lhe
satisfazia. Ao estudar em Huesca (1861), Cajal recebeu aulas de desenho e pintura,
podendo assim aprimorar sua técnica, tornando-se um aluno talentoso.
Quando Cajal se formou em medicina, a
micrografia desenvolvida naquele tempo não tinha uma
boa resolução e, virtualmente, a única maneira de
ilustrar as observações era por meio dos desenhos,
que estavam abertos ao ceticismo.
Alguns dos desenhos de Cajal foram
considerados como interpretações artísticas melhores
que cópias exatas de suas preparações e estão
abrigadas no Museu de Cajal, no Instituto de Cajal, em Madrid.
Ao aliar arte e ciência,
Cajal, sem sabê-lo, adquiriu uma
competência que o levaria à
formulação da sua Teoria
Neuronal alguns anos mais
tarde.
“O que distinguiu Cajal de seus contemporâneos foi sua
capacidade de superar a descrição anatômica. Ele tinha
capacidade de olhar para a estrutura estática _ uma secção
anatômica no microscópio_ e obter noções sobre o seu
funcionamento.”
Eric Kandel
228
“Los débiles sucumben, no por ser débiles, sino por ignorar que lo son.”
Em 1870, desenhou o Álbum Anatômico. Este álbum, unido às centenas de
desenhos científicos, tornou-se referência no meio científico e um verdadeiro legado
ao mundo das artes.
“Razonar y convencer, ¡qué difícil, largo y trabajoso!
¿Sugestionar? ¡Qué fácil, rápido y barato!”
“En el orden de investigaciones en que vamos a entrar procuraremos ante
todo ser fieles intérpretes de los hechos, y no imponer a la naturaleza nuestros
prejuicios, sujetándola al estrecho molde de nuestras concepciones. Aspiremos a
comprender la organización tal cual es, no como quisiéramos que fuera; achaque
general del espíritu humano, que tiende siempre a contemplar en las obras de la
naturaleza una imagen de su propia inteligencia”. Historia de mi labor, Ramón y
Cajal, 1905.
Cajal apreciava a filosofia, tinha uma disciplina
intelectual admirável e um hábito por exercício físico desde a
juventude. Tais predileções auxiliaram as suas longas e
incansáveis horas de observação ao microscópio.
“Lo peor no es cometer um error, sino tratar de justificarlo,
em vez de aprovecharlo como aviso providencial de
nuestra
ligereza o ignorancia.”
229
CAJAL E A FOTOGRAFIA
A sensibilidade artística de Cajal o levou a introduzir-se no mundo da
Fotografia em Huesca (1868).
Com seu interesse pela arte de reproduzir imagens e sua dedicação
constante, em 1883, aplicou a fotografia à gravura pela primeira vez na Espanha,
realizando as chamadas Fotos Litográficas. Seu prestígio foi tão grande que, em
1900, foi nomeado Presidente Honorífico de la Real Sociedad Fotografica de
Madrid. Em 1912 publicou o livro La fotografia de los colores. Seu interesse pela
fotografia não foi unicamente circunstancial. Assim, anos mais tarde chegou,
inclusive, a fabricar emulsões para placas fotográficas, criando um pequeno negócio,
que mesmo com êxito não levou adiante.
PRÊMIO NOBEL DE FISIOLOGIA E MEDICINA 1906
O estudo detalhado do sistema nervoso teve início no século XIX. Antes das
descobertas de Cajal, os conhecimentos sobre a estrutura individual do sistema
nervoso e as conexões entre os neurônios eram puramente especulativos. Essa falta
de conhecimento era principalmente devido ao fato de que os métodos existentes
para visualizar os neurônios não eram apropriados ou mesmo disponíveis.
Entretanto, em 1873, Camillo Golgi desenvolveu um método que, pela primeira vez,
tornava possível observar os neurônios em sua totalidade em preparações
histológicas: soma (corpo), dendritos e axônios. Dessa forma, os neurônios
marcados com o método de Golgi indicaram os seus detalhes morfológicos
refinados, e conduziram, finalmente, à sua caracterização e classificação, bem como
ao estudo de suas possíveis conexões, feito por Cajal.
230
“para ser fuerte hay que luchar com los fuertes.”
Cajal conheceu o método de Golgi em 1887. Isso trouxe mudança radical em
sua carreira científica, inclusive em suas descrições do sistema nervoso, que
passaram a ser baseadas em suas observações com a utilização do método de
Golgi. O livro clássico “Histology of the Nervous System” contém a síntese desses
estudos, sendo ainda um livro de referência em todos os laboratórios do
neurociências.
Durante esse período de intensas observações, Cajal encontrou muitas
evidências que favoreceram a teoria da “Doutrina neuronal”, que contrastou com o
outro princípio que prevalecia na época, a “Teoria reticular”.
A teoria reticular continha a idéia de que o sistema nervoso era constituído
por uma rede difusa de neurônios e que suas fibras eram anastomosadas. Cajal
propôs, então, que o princípio organizacional e funcional fundamental do sistema
nervoso é o neurônio. Além disso, comprovou que a comunicação entre os
neurônios se dá por contigüidade e não por continuidade, como estudiosos
afirmavam, terminando assim com a teoria reticularista. Assim, surge a forma de
conexão entre os neurônios, conhecida hoje como sinapse.
Por todos esses feitos, em 1906, foi concedido o prêmio Nobel de Fisiologia
ou Medicina para Golgi, por descobrir a técnica com nitrato de prata e Cajal
compartilhou o prêmio Nobel por suas brilhantes interpretações, bem elaboradas,
das preparações do sistema nervoso com esse método.
“La gloria, em verdad, no es outra cosa que um olbido aplazado.”
231
NFLUÊNCIA DE CAJAL NA DIVULGAÇÃO DA CIÊNCIA
“¿No tienes enemigos? ¿Es que jamás dijiste la verdad o jamás amaste la
justicia?”
Cajal, em um dos seus discursos, falou e se auto-avaliou: “No soy en realidad
un sabio, sino un patriota; tengo más de obrero infatigable que de arquitecto
calculador... La Historia de mis méritos es muy sencilla: es la vulgarísima historia de
una voluntad indomable resuelta a triunfar a toda costa... Mi fuerza fue el sentimiento
patriótico; mi norte, el enaltecimiento de la toga universitaria; mi ideal aumentar el
caudal de ideas españolas circulantes por el mundo, granjeando respeto y simpatía
para nuestra ciencia...” Ramón y Cajal, Recuerdos de mi vida.
“Se conocen infinitas clases de necios; la más deplorable es la de los
parlanchines empeñados en demostrar que tienen talento.”
O mestre, ao completar seus 70 anos, deixou a cátedra da Universidade de
Madrid, à qual se dedicou durante 30 anos. Por isso, uma das maiores homenagens
da sua vida foi o grande livro “El Libro Homenaje a Cajal”, constituído por trabalhos
científicos e feitos honoríficos, firmados pelos mais representativos cientistas do
mundo, tais como: Sherrington, Von Monarold, P. Marie, Lugaro, Marinesco,
Houssay, Lewis, Kravs, P. Ramón (seu irmão), De Castro, Lafora, Ramón Fañanás,
Pittaluga, entre outros.
Cajal manteve colaboração com diversos cientistas renomados, sendo
sempre fiel a sua vida e sua obra científica. Essa multiplicidade integrativa,
característica desenvolvida em sua personalidade, pontuou a sua fundamental
influência e marco no saber neurocientífico.
Temos diante de nós um cientista espanhol que inseriu a Espanha na ciência
européia, considerado mundialmente o Pai da Neurociência Moderna pelos seus
feitos.
“Sólo son desgraciados el loco incapaz de escoger sus ensueños y el enfermo
a quien el dolor impide soñar.”
232
OBRA CIENTÍFICA E LITERÁRIA
“Cada hombre es escultor de su próprio cerebro.”
Cajal demonstrou sua vivacidade mental nas múltiplas facetas que
desenvolveu. A literatura cultivada desde sua adolescência foi outro de seus
talentos. À parte de ser um grande leitor, escreveu um bom número de livros não
apenas científicos; inclusive três deles relatam suas memórias. A partir deles,
penetramos em suas recordações e podemos mapear toda trajetória de seus
pensamentos, suas aspirações e suas realizações.
-Mi infancia y juventud, 1901.
- Cuentos de vacaciones (narraciones pseudocientíficas), 1905.
-Recuerdos de mi vida, 1917.
-Charlas de café. Pensamientos, anécdotas y confidencias, 1921
-Historia de mi labor científica, 1905.
- La fotografía de los colores. Bases científicas y reglas prácticas, 1912.
-El mundo visto a los 80 años. Impresiones de un arterioesclerótico, 1934.
“De todas las reacciones posibles ante una injuria, la más hábil y económica
es el silencio.”
“Como el entomólogo a caza de mariposas de vistosos matices, mi atención
perseguía, en el vergel de la sustancia gris, células de formas delicadas y elegantes,
las misteriosas mariposas del alma cuyo batir de alas, quién sabe si esclarecerá,
algún día, el secreto de la vida mental”. Ramón y Cajal, Recuerdos de mi vida.
Com seu lirismo científico como ele mesmo designava, inspirou a
vocação científica de várias gerações. Trabalhou enormemente para a divulgação da
ciência.
Disse em sua autobiografia: “dejando a un lado exageraciones de
233
pensamiento e incorrecciones de forma, trasciende de ellas algo como un aroma
confortador de confianza juvenil y de fe robusta en el progreso social y científico.
Hallo también atrayente cierto sentimiento de curiosidad frescamente satisfecha, y
un fervor de pasión hacia el estudio de los arcanos de la vida, que en vano
buscaríamos hoy en los escritos primerizos de la ponderada, ecuánime, circunspecta
y financiera juventud intelectual”..
“Nada me inspira más veneración y asombro que um anciano que sabe
cambiar de opinión.”
O seu vasto acervo científico inclui obras como: Manual de Histología Normal
y Técnica Micrográfica; Manual de Anatomía Patológica General, em 1890; Les
nouvelles idées sur la fine anatomie des centres nerveux, em 1894; Textura del
sistema nervioso del hombre y de los vertebrados, em 1897-1904; Die Retina der
Wirbelthiere, em 1894.
Publicou seus valiosos trabalhos sobre a estrutura do sistema nervoso,
incluindo ainda músculos e tecidos e assuntos sobre patologia geral em revistas
científicas européias, o que destacava seu potencial e seu brilhantismo científico. Foi
membro de várias sociedades científicas importantes da Itália, Alemanha, Portugal,
Inglaterra, França, dentre outros países.
“El silencio de los envidiosos es el mejor elogio a que puede aspirar un autor.”
234
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Página 34: Salto de Ballet. Fonte: Aleksander Kurkov-Jean de Brienne. Raymonda,
Mariinsky Theatre, 1994. Disponível em: <http://www.russian-
konkurs.ru/eng/photo_video_archiv04.html>.
Salto de Paraquedas. Fonte: <http://www.mccallsmokejumpers.org/his
tory/history.asp>.
Página 35: BMW Z4. Fonte: <http://www.fondochachi.com/Motor/Bmw/Bmw_Z4__
Coupe.jpg>.
Página 39: Retrato de Leonardo da Vinci. Fonte: <www.ucmp.berkeley.edu/history/
images/vinci.gif>.
Página 50: Página do caderno de Leonardo:estudos da anatomia uterina e do feto.
Fonte: <www.ucmp.berkeley.edu/history/images/vinci.gif>.
Mona Lisa - Fonte: <http://cv.uoc.es/~991_04_005_01_web/fitxer/monali
sa.jpg>.
Caderno vôo com asas - Fonte: <http://www.nitido.com/art/gallery/codex/
Articulated%20Wing%20-%20Codex%20Atlanticus.jpg>.
Última Ceia - Fonte: <http://www.salesianos.pt/images/notev/ultimaceia
251.jpg>.
Página 55: Violino. Fonte: Gazzaniga, 2006, p. 99.
Página 56: Corpo com nervos. Fonte: <http://www.corpohumano.hpg.ig.com.br/sist_
nervoso/sist_nervoso.html>.
Cerebro,cerebelo, tronco. Fonte: <http://www.msd.es/publicaciones/mm
erck_hogar/seccion_06/seccion_06_059.html>.
Hemisférios cerebrais. Fonte: <http://www.public.iastate.edu/~design/
ART/NAB/brainb1.html>.
Página 57: Hemisferio e cabeça. Fonte: <http://www.public.iastate.edu/~design/
ART/NAB/brainb1.html>.
Lobos. Fonte: <http://www.msd.es/publicaciones/mmerck_hogar/seccion
_06/seccion_06_059.html>.
235
Página 59: Áreas e funções. Fonte: LENT, 2001 p. 290.
Neurônio. Fonte: <http://www.msd.es/publicaciones/mmerck_hogar/sec
cion_06/seccion_06_059.html>.
Página 60: Transmissão sinaptica. Fonte: <http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/
linguagem/0402/09.htm>.
Página 67: Sistema límbico. Fonte: <http://www.tsbvi.edu/Outreach/seehear/summer
05/smell.htm>.
Página 85: Cérebro vias visuais. Fonte: Ilustração adaptada a partir da Figura 1 de
BALDO, 2003.
Página 91: M. Escher: Mão segurando espelho esférico. Fonte: <http://www.mces
cher.com/>.
Assinatura de M. Escher. Fonte: <http://www.mcescher.com/>.
Página 92: O pensador, Rodin. Fonte: <http://www.musee-rodin.fr/welcome.htm>.
Página 96: Assinatura de Guimarães Rosa. Fonte: <http://www.releituras.com/ guima
rosa_bio.asp>.
Página 108: Quadro da Memória, LENT, 2000.
Página 114: Ratinhos na gaiola. Fonte: <http://www.cerebromente.org.br/n11/mente/
eisntein/rats-p.html>.
Página 115: Gráfico, artigo Marion Diamond. Fonte: <http://www.cerebromente.org.br
/n11/mente/eisntein/rats-p.html>.
Página 116: Ressonância Magnética. Fonte: <http://www.cerebromente.org.br/n11/
mente/eisntein/rats-p.html>.
Página 118: Quadro esquema evolutivo, Ian Tarttesall. Fonte: <http://www.nws.it/chi
siamo/testo/p_14.htm>.
Página 128: Escultura de cavalo. Fonte: <http://www.nature.com/news/2004/040705
/images/vogelherd.jpg>.
Escultura homem-leão. Fonte: <http://perso.orange.fr/coherence/pix/vo
gelherd_250.jpg>.
Escultura Vênus. Fonte: <http://www.pantheon.org/areas/gallery/myth
ology/other/willendorf_venus.jpg>.
236
Página 129: Caverna de Chauvet. Fonte: <http://www.yale.edu/terc/democracy/may
1text/images/Chauvet%20panorama.jpg.
Caverna de Chauvet. Fonte: <http://www.beyondbooks.com/art11/imag
es/00013610.jpg>.
Página 133: Conchas. Fonte: <http://www.newscientist.com/data/images/ns/cms/
dn9392/dn9392-1_650.jpg>.
Sepultamento de Sungir. Fonte: <http://www.dominiosfantasticos.hpg.ig.
com.br/sungirussian25k.jpg>.
Página 159 - 161: Cavalos. Fontes:
<http://www.rohdefineart.com/images/baronsw.jpg>.
<http://www.physics.udel.edu/~jlp/horselizwa.jpg>.
<http://us.geocities.com/xlgallery/IMG/hlebn-horse.gif>.
<http://www.dogonitgallery.com/horse/horse003.jpg>
<http://www.scifer.org/images/RunHrseCU.3-5-3.83.jpg>.
<http://www.kulacrosse.com/clipartstable/subs/standing/horse.gif>.
<http://www.artchive.com/artchive/l/leonardo/leonardo_rearing_horse.jpg>.
<http://www-img.fitzmuseum.cam.ac.uk/img/pdp/pdp2/PD.121-1961.jpg>.
<http://www.tarpits.org/education/guide/art/page13a.jpg>.
<http://www.rpi.edu/~brownm/horse-horse.jpg>.
<http://members.tripod.com/ran_venice/images/davinci_a%20rider%20on%20a%20r
earing%20horse.jpg>.
Página 217: Especealização hemisférica. Fonte:
LENT,2000, p 646
Página 225 - 233: Fotos e desenhos de Ramón y Cajal. Fonte:
<http://www.aragob.es/culytur/rcajal/escuela.htm>
237
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