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SAMUEL MAGOJI SANDA
ENSAIO SOBRE A FAMÍLIA
PÓS-MODERNA
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2007
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SAMUEL MAGOJI SANDA
ENSAIO SOBRE A FAMÍLIA
PÓS-MODERNA
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência para obtenção do título de Mestre em
Sociologia sob a orientação da Doutora Caterina Koltai.
SÃO PAULO
2007
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BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
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___________________________________________
___________________________________________
iv
DEDICATÓRIA
A todos aqueles que me
ajudaram direta ou
indiretamente a completar
esta longa, longa, jornada.
v
AGRADECIMENTOS
A minha querida orientadora que me
ajudou enormemente a começar e a
terminar este mestrado.
A Dra. Carmen e seus seminários
de pesquisa que me que ajudaram a
compartilhar coletivamente as
tristezas e alegrias com outros pós-
graduandos.
Ao agora Dr. Adrian Ribaric, cujas
aulas serviram de inspiração na
elaboração desta dissertação.
A Dra. Norma e suas aulas sobre
emoções e obras literárias que me
abriram novos horizontes.
A Dra. Marinês e sua adorável
mestra filha Raquel que trabalharam
dias a fio para corrigir esta
dissertação.
A meu amigo Felipe e sua futura
mestra pela disposição de fazer
a revisão final quando eu não
agüentava mais olhar para o
computador.
Aos meus pais e minha irmã que me
apoiaram nesta cara empreitada.
Aos meus futuros orientandos que
um dia ainda farei sofrer.
vi
Resumo
A presente tese teve como objetivo estudar, por meio de uma perspectiva
interdisciplinar, a família pós-moderna, dialogando com dois filmes Casamento
Grego (2002) e Um Grande Garoto (2002). O estudo consistiu de uma breve
reflexão histórica sobre o papel da família desde a sua ascensão no século XIX
até a atual época, em que as instituições encontram-se em crise ou desordem.
Parte-se da premissa que a crise pela qual a família está passando é provocada,
em parte, pela cultura narcísica que tem produzido jovens adultos que, ao
colocarem o desejo como papel central em suas vidas, são incapazes de assumir
responsabilidades, preferindo relacionamentos virtuais que possibilitam situações
mais românticas e satisfatórias. Além disso, eles são incapazes de tomar
decisões, pois vivem em constante oscilação entre atração e repulsão, esperança
e temor, e preferem recorrer a supostos especialistas de relacionamento
humanos. Como conseqüência, acabam por ceder o espaço público aos
especialistas de organizações cívicas e a falsos políticos. Uma das soluções que
aponto para atenuar a desordem instaurada na contemporaneidade é a criação de
um novo projeto político capaz de criar sujeitos transformadores que possam, por
meio de uma nova cultura, promover a criação de práticas que retomem o sentido
dos valores iluministas e democráticos.
Palavras chaves: interdisciplinar, família, desordem, narcísica, virtuais, político,
humanidade.
vii
Abstract
The present dissertation had as objective to study, through an interdisciplinary
perspective, the post-modern family, rapporting with two movies My Big Fat Greek
Weeding (2002) and About a Boy (2002). The reflection consisted of a brief
historical reflection about the function of the family since its ascension in the 19
th
century until nowadays, time in which it, like the others institutions, is in crisis or
disorder. I believe that this crisis that the family is passing through is provoked in
part by a narcissistic culture that has been producing young adults that when
setting the desire in a central role in their lives are incapables to assume
responsibilities preferring virtual relationships to keep at sight more romantic and
satisfactory possibilities. Besides, they are incapables to take decisions, because
they live in constant oscillation between attraction and repulsion, hope and fear,
preferring to appeal to the so-called specialists of human relationships, always
ready to offer their services in exchange for fees. As consequence they end up
leaving the public space to supposed civics organizations and false politicians. One
possible solution that I show to minimize this disorder is a creation of a new
political project capable of creating transforming subjects that can, through a new
culture, promote the creation of practices that recover the sense of the Illuminist
and democratic values.
Key words: interdisciplinary, family, disorder, narcissistic, virtual, political, humanity
viii
Sumário
Resumo
Abstract
Introdução ........................................................................................................ 01
Capítulo I: Sociedade e família contemporânea ............................................... 09
1.1- O mito do pai da horda: como tudo supostamente começou... ....... 11
1.2- Flashback da história da família ocidental ..................................... 14
1.3- A família moderna .......................................................................... 17
1.4- Família contemporânea .................................................................. 28
Capítulo II: O imaginário social da família ........................................................ 37
2.1- Casamento grego ........................................................................... 40
2.2- Um grande garoto ........................................................................... 49
Capítulo III: Feito a ser feito ............................................................................. 63
3.1- O sujeito do século XXI: a socialização .......................................... 65
3.2- O indivíduo autônomo e heterônimo ............................................... 69
3.3- Entre autonomia e heteronomia ..................................................... 71
3.4- O ressentimento: o novo “mal-estar” contemporâneo ..................... 74
3.5- Como criar, então este projeto político na contemporaneidade? .... 75
Considerações finais ........................................................................................ 89
Referências Bibliográficas ................................................................................ 95
1
Introdução
Vivenciamos, no início de século XXI, uma época parecida com a descrita
por Alvin Toffler, em A Terceira Onda (1980): terroristas fazendo jogos de morte
com reféns, embaixadas em chamas, governos do mundo reduzidos à paralisia ou
à imbecilidade.Diante desse cenário, o homem pós-moderno parece rumar para
seu fim ao lado de seus botes salva-vidas: igreja, família e Estado. Mas será?
Nas últimas décadas, a humanidade tem se desenvolvido tecnologicamente
de uma maneira espantosa, desenvolvemos a clonagem, descobrimos novas
formas de gerar energia, nossas produções acompanham cada vez mais nossa
imaginação e quem sabe colonizaremos o espaço daqui a alguns anos. Além
disso, não envelhecemos mais como nossos pais e esperamos estar próximos da
cura de doenças como câncer, AIDS e Mal de Alzheimer, além de termos
condições de acabar com a fome entre nós humanos.
Tendo evoluído tanto tecnologicamente, porque vivemos em tempos
obscuros? A resposta mais fácil e corriqueira seria responsabilizar o sistema, mas
qual deles? Prefiro pensar que o mundo atravessa, mais uma vez, um momento
difícil porque nos esquecemos de evoluir socialmente, ou melhor, nos
esquecemos, em meio da aceleração de tempo e conhecimento, daquilo que nos
torna humanos. Então, o que somos hoje?
Essa parece ser uma grande questão atualmente. Em que o homo sapiens
demens se tornou na pós-modernidade? Responder esta indagação, para
Castoriadis, é uma missão quase impossível, pois ela gera uma infinidade de
perguntas que exigem respostas bastante complexas. Uma das perguntas, feita
pelo autor, é:
“Qual é a parcela de todo o meu pensamento e de todas as minhas maneiras
de ver as coisas e de fazer coisas que não está condicionada e co-determinada,
em um grau decisivo, pela estrutura e pelas significações da minha língua
2
materna, pela organização do mundo que essa língua carrega consigo, pelo
meu primeiro ambiente familiar, pela escola, por todos os faça e não faça com
que freqüentemente fui assediado pelos meus amigos, pelas minhas opiniões
correntes a meu redor pelos modos de fazer que me são impostos pelos
inumeráveis que me cercam e assim por diante?” (Castoriadis, 1987/1992, p.
230).
Foi pensando nesta pergunta essencial que me aventurei a realizar, na
graduação, o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). O trabalho tinha como foco
a família, instituição esta escolhida devido ao papel que desempenha na
sociedade. Segundo Lasch (1977/1991), o papel da família é inculcar modos de
pensar e de atuar que se transformam em hábitos para seus indivíduos, ou seja,
ao fato de ela ser uma das grandes responsáveis pela produção e formação dos
indivíduos para a vida em sociedade. Sendo que toda mudança seja macro ou
micro social, cultural ou política acaba se refletindo na família, o que facilita fazer
um mapa dos principais fatores que afetam a sociedade e seus membros.
No TCC, o referencial teórico básico foi o apresentado pela psicanalista e
historiadora Elizabeth Roudinesco no livro A família em desordem (2002). Naquela
ocasião, o estudo em torno da crise da família, o enfraquecimento da função
paterna e as conseqüências da tecnologização e da cultura jovem nas relações
familiares foram alvo de minha investigação científica.
Na época, apesar das minhas pretensões juvenis, não consegui responder
à vasta pergunta acima citada. Tendo em vista a complexidade do tema, consegui,
quanto muito reproduzir as descobertas de Roudinesco e de alguns outros
autores. No entanto, a frase com a qual a autora termina seu livro “a família do
futuro tem que ser mais uma vez inventada” (2002/2003 p.199) pareceu-me
estar conectada à pergunta de Castoriadis e apontou novos caminhos.
Foi por causa dessa suposta conexão que me motivei a empreender essa
dissertação de mestrado. O resultado tornou-se possível devido às novas
bibliografias encontradas nestes três anos de pós-graduação e a utilização de
videologias ou mitologias pós-modernas. Essas novas ferramentas me
possibilitaram, num primeiro momento, a releitura crítica do meu TCC e, num
segundo momento, indicaram-me novos caminhos na minha tentativa de continuar
desvendando o imaginário social pós-moderno sobre a família, a sociedade atual e
3
o tipo de indivíduo que ela produz hoje em dia e poderá vir a produzir no futuro.
Um dos pontos norteadores de minha dissertação de mestrado é o texto de
Freud Totem e Tabu (1914/1968), no qual o autor elabora seu mito do pai da
horda que mostra como teria se dado a passagem da natureza para a cultura.
Neste texto, que suscitou inúmeras polêmicas no campo das ciências sociais,
Freud defende a tese de que sem referência paterna nenhuma cultura é
concebível, pressuposto sem o qual fica difícil entender as críticas, justificadas ou
não, feitas à família contemporânea, principalmente no que diz respeito à falência
da função paterna.
O mito traz como um dos seus principais elementos a proibição do incesto
que tem como função simbólica diferenciar o mundo animal do mundo humano. É
esta função exercida pela proibição do incesto que fez com que Roudinesco
afirme que a família pode ser considerada uma instituição humana duplamente
universal, pois associa um fato de cultura construído pela sociedade a um fato de
natureza, inscrito nas leis da reprodução biológica.
A associação entre cultura e natureza permitiu, pelo ponto de vista
freudiano, a constituição da família, necessidade da civilização que possibilitou ao
homem o ser privado da mulher e esta de o ser separada de seus filhos,
instaurando, desse modo, o que mais tarde ele veio a chamar de “moral sexual
civilizada” fundamentada na repressão pulsional necessária à manutenção dos
ideais reguladores da sociedade, conjugando obrigação ao trabalho e potência do
amor.
As transformações que ocorreram na instituição familiar, assim como as
diferentes formas de abordá-la ao longo do tempo, têm como núcleos duas
grandes ordens: biológica (diferença sexual) e simbólica (proibição do incesto e
outros interditos), o que me faz concordar, junto com Roudinesco, que não basta
definir família por meio do ponto de vista antropológico, pois é preciso saber
também qual a sua história e como se deram as mudanças que resultaram na
desordem na atualidade.
Tendo isto em mente, procurei um autor que pudesse me auxiliar no estudo
4
das principais mudanças históricas sofridas pela família. Durkheim foi a minha
escolha devido a sua teoria da “retração familiar” desenvolvida em seu curso de
1892. Esta retração, ou melhor, contração familiar não diz respeito somente ao
tamanho do grupo familiar, mas também à sua constituição e à relação com os
bens, visto que as formas primitivas de família, em que as relações do grupo
doméstico dependiam primeiramente da posse coletiva e sagrada, deu lugar a um
novo tipo de família, fundada na propriedade privada e na designação do chefe de
família que passou a ser o centro de gravidade da nova família. Nesta, o poder se
deslocou das coisas para as pessoas, ou melhor, a uma pessoa em particular, o
pai, que passou a concentrar tudo o que havia de moral e religioso na família.
Durkheim foi o primeiro a chamar a atenção para o fato de que a diminuição
da função do pai poderia gerar, num futuro próximo, indivíduos interessados em
perseguir fins apenas pessoais, desembocando numa sociedade anômica. Sua
percepção foi muito importante porque, de certo modo, ela anunciava a percepção
de alguns autores contemporâneos, tais como Lash (1977/1991) e Lipovestky
(1992), que atribuem à falência da função paterna em nossos dias, grande parte
dos problemas sociais e patologias contemporâneas.
Em outras palavras, a idéia de contração familiar de Durkheim faz pensar
que a família, tal qual a conhecemos hoje em grande parte do mundo ocidental,
constituída por pai, mãe e filhos solteiros é uma forma histórica de família criada
pela Europa moderna, fruto de uma longa evolução que se estendeu por quase
três séculos.
Roudinesco (2002) pontua três momentos da evolução familiar. O primeiro,
tradicional, vigorou durante o Antigo Regime, teria por características principais a
transmissão do patrimônio paterno aos filhos após a morte do pai e os
casamentos arranjados pela família. A célula familiar dessa época repousava
sobre uma ordem do mundo imutável e inteiramente submetida à autoridade
patriarcal, em que o casamento dos filhos, em geral em idade precoce, visava a
manutenção ou a ampliação do patrimônio e o se consideravam as
necessidades afetivas e sexuais dos noivos.
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O segundo momento teria começado no final do século XVIII com as
Revoluções Burguesas, Francesa e Industrial. Esse momento se estendeu até
meados do culo XX, quando começou a dar sinais de fraqueza. Esse tipo de
família, denominada por Roudinesco de moderna, baseia-se no casamento
fundamentado no amor romântico, na reciprocidade dos sentimentos e no
reconhecimento da importância da sexualidade. O casamento burguês foi
valorizando, cada vez mais, a divisão do trabalho entre os esposos, ao mesmo
tempo em que, com o passar do tempo, acabou repassando a educação dos filhos
para o Estado.
O terceiro tipo de família, a que se pode chamar de contemporâneo
segundo Roudinesco, ou pós-moderna, segundo outros autores, foi gerada em
movimentos revolucionários e da contracultura da década de 1960 e se
caracterizaria pela união temporária de dois indivíduos que buscam relações
íntimas ou realização sexual e pelo aumento considerável das separações. Essa
família, que se apresenta desconstruída, recomposta, mono ou homo parental,
parece estar sujeita a uma grande desordem, o que não significa, no entanto, que
tenha atingido o nível de degradação que alguns lhe atribuem, responsabilizando-
a por situações catastróficas, como professores apunhalados, crianças
estupradoras e estupradas; carros incendiados, periferias entregues ao crime e à
ausência de qualquer autoridade” (ROUDINESCO, 2002, p. 10).
Concentrei meu estudo no segundo e no terceiro períodos, visto que no
primeiro é narrada a ascensão e a queda da família burguesa. Digo queda porque
nesse período houve o controle social, cada vez mais intenso, sobre atividades
antes relegadas às famílias. Foi também nesse período, século XIX, que
emergiram movimentos tais como o feminismo. no segundo período podemos
constatar a forma como as transformações do período anterior desembocaram na
família pós-moderna.
Após aprofundar o estudo da família moderna, debrucei-me sobre a família
pós-moderna, instituição que vive num mundo de inovações incessantes que
geram uma obsolescência acelerada de conhecimento e valores, em que o modo
6
encontrado pelos seus membros para sobreviver a essas rápidas transformações
parece estar sendo o do prolongamento da juventude para que, assim como as
mercadorias ou bens simbólicos, possam estar sempre novos e adequados aos
estilos da moda.
A esta postergação das atitudes que antigamente definiam a entrada na
vida adulta, tais como o matrimônio e a procriação, alguns antropólogos tais como
Marguilis (1998), Martín-Barbero (1998), Urresti (1998) e Feixa (2000) deram o
nome de moratória social. Esta moratória, na opinião de Morin (1984), embora
permita ao indivíduo ter disponíveis todos os recursos para se capacitar para a
vida em sociedade, se prolongada além do necessário, pode acabar resultando
num sujeito anti-social chamado jovem adulto que se recusa a se comportar como
adulto e se refugia em seu mundo de eterno presente para fugir de uma realidade
que vive como opressora.
Considerando que ser adulto significa ter responsabilidades e envelhecer,
talvez possamos afirmar que os adultos estão se tornando raros. Atualmente, vê-
se com freqüência jovens adultos denominados de girlies, grups, kids adults ou
parasitas solteiros, que parecem ter em comum o aspecto jovial e a mentalidade
juvenil. Além disso, assemelham-se a controles remotos, não se ancorando em
ninguém e em parte alguma, oscilam entre sonhos e pesadelos perdendo a noção
de quando o primeiro termina e o segundo começa.
Os jovens adultos não se ancoram em nada, pois vêem os compromissos a
longo prazo como uma armadilha a ser evitada a qualquer preço, pois “ao se
comprometerem ainda que sem entusiasmo, estarão fechando a porta a outras
possibilidades românticas talvez mais satisfatórias e completas. Se você deseja
relacionar-se mantenha distância; se quer usufruir do convívio, o assuma nem
exija compromissos. Deixe todas as portas abertas” (Bauman, 2003/2004, p. 10).
Não por acaso os relacionamentos, segundo Bauman (2003/2004), vêm se
tornando, dessa maneira, cada vez mais virtuais, parecendo inteligentes e limpos,
fáceis de usar, compreender e manusear. Deste modo, eles permitem que a
pessoa mantenha no campo de visão a tecla “deletar” usada em caso de
7
emergência. É, aliás, essa característica de transitoriedade que caracteriza a
família contemporânea ou pós-moderna, fruto de divórcios, separações e
recomposições conjugais.
A característica de transitoriedade e outras mais são discutidas, no capítulo
dois da presente dissertação, por meio de filmes. A razão pela qual utilizo as
produções cinematográficas ao invés de dados estatísticos deve-se ao fato de eu
acreditar, assim como Barthes (2003), que essas produções são mitos, ou seja,
sistemas de valores que mostram toda a idéia de um povo a respeito do que é
justiça, moralidade, estética, arte, literatura etc. Essas construções sociais cujo
objetivo é realizar o desejo imemorial da humanidade de reproduzir o real têm
como seu maior representante nos tempos atuais o cinema, como bem pontuou o
historiador Elísio dos Santos (2000). Desde a sua invenção até nossos dias, o
cinema continua sendo a manifestação artística e comercial mais popular, sendo
que o mero de seus espectadores não cessa de crescer, principalmente se
levarmos em conta que filmes realizados para o cinema vêm encontrando outros
canais de circulação como a TV aberta, TV por assinatura, vídeo, DVD e internet.
Partindo deste pressuposto, estudei a família contemporânea por meio de
filmes que, em função dos processos de globalização ocorridos no Ocidente, têm
mostrado a imagem de uma família diferente da tradicional família burguesa,
conjugal ou restrita, fundada no amor romântico e sancionada pelo casamento, na
reciprocidade dos sentimentos e no desejo. Este modelo de instituição poderia ser
visto de forma majoritária até décadas atrás em filmes e em livros cujas temáticas
referiam-se aos sofrimentos causados por traições, separações, divórcios e
crianças traumatizadas pelos conflitos familiares.
A família retratada nos filmes atuais ganhou novas formas, podendo ser
constituída por mães solteiras, casamentos entre indivíduos do mesmo gênero etc.
Além disso, há a divisão cada vez menos clara entre as funções maternas e
paternas, que acabam se mesclando. É como se encontrássemos a imagem da
família em desordem, definida por Roudinesco como sendo a união temporária
entre dois indivíduos em busca de relações íntimas ou satisfação sexual,
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valorizando cada vez mais o espaço privado em detrimento do publico.
Parece-me que os filmes que tratam da família pós-moderna podem, grosso
modo, ser divididos em dois tipos: um que elogia as novas formas de família e
outro que reflete, de forma nostálgica, a família mais clássica, ainda organizada
em torno dos laços do casamento, da autoridade paterna e da velhice depositária
de tradições. É o caso, a meu ver, de um dos dois filmes que escolhi trabalhar,
Casamento grego (2002), que acompanha as agruras de um patriarca
tradicionalista grego tentando impedir o casamento de sua filha com um noivo pós-
moderno. A esse tentei opor Um grande garoto (2002), que aborda outro tipo de
família, que alguns classificariam como a família da pós-modernidade, sem
hierarquias, sem autoridades baseada na fraternidade e dissecada pelo discurso
da especialidade.
Na última parte de minha dissertação, após ter mostrado os caminhos que
levaram à família pós-moderna e ter delimitado suas principais características,
aventurarei-me a responder a uma parcela do desafio da pergunta lançada por
Castoriadis, ou seja, “quem sou eu nos tempos atuais?”. Apoiado em
considerações feitas por Castoriadis, Maturana (1993/2004), Giannotti (2004),
entre outros, busquei responder a essa pergunta por meio da retomada dos
conceitos castoriadianos de autonomia e heteronomia e do conceito de sociedade
neomatrística de Maturana, tendo como pano de fundo a utopia de poder criar um
mundo novo por meio da instituição de uma nova cultura, como proposta por
Maturana, capaz de contribuir para o projeto de autonomia de Castoriadis e de um
novo ser humano deliberativo e criador de projetos coletivos.
9
Capítulo I
Sociedade e Família Contemporânea
“A família do futuro deve ser mais uma vez reinventada”.
Elisabeth Roudinesco
Este capítulo tem como objetivo delinear algumas características da
sociedade atual e, mais especificamente, da família e do indivíduo
contemporâneos. Para tanto, apresento inicialmente uma retrospectiva histórica a
respeito da instituição familiar, na esperança de que as diferentes formas por ela
assumida ao longo da história possam me ajudar a compreender a configuração
atual da família ocidental.
Ao refletirem sobre a família contemporânea, certos autores como Lash
(1977/1991) e Lipovestky (1992), demonstram assumir uma postura catastrófica
quando afirmam que a família ocidental, fragmentada e em crise, estaria passando
por um processo inédito: o total colapso da função paterna que gera novas
patologias sociais. Em oposição a esta leitura alarmista, apóio-me em Elisabeth
Roudinesco, historiadora e psicanalista francesa, para discutir o tema em questão.
No livro A família em desordem (2002/2003), embora Roudinesco
reconheça o momento de desordem pelo qual vem passando a família ocidental
burguesa eo menospreze o que tal crise pode ter de significativo e sintomático,
a autora afirma não ver motivos para tanto medo, pois a família, instituição
presente em diversas culturas, com hábitos sexuais e educativos diferentes
daqueles que conhecemos, é universal, enquanto a crise atual é histórica e vêm
se desenvolvendo desde o século XIX.
10
Convém lembrar que Lévi-Strauss, em seu texto consagrado La famille
(1956), indicava que a família não só é universal, mas também tem por função, em
qualquer sociedade, unir, de forma mais ou menos duradoura e socialmente
aprovada, um homem e uma mulher a fim de criar uma aliança (o casamento) e
uma filiação (a prole). Para tanto, é necessária a existência de duas famílias
anteriores, uma pronta a fornecer um homem e a outra, uma mulher. Esse casal,
por meio de seu casamento, origina uma terceira e assim sucessivamente.
Dessa forma, Lévi-Strauss (1956) exige daqueles que estudam o fenômeno
familiar um pensamento menos linear e mais complexo, o que significa trabalhar
em dois planos: antropológico, focando a universalidade das estruturas de
parentesco que enfatizam o fato de que cada família provém da união de duas
famílias anteriores; e sociológico, que enfatiza a família histórica ao fazer um
estudo vertical das filiações e gerações e nas continuidades e distorções entre
pais e filhos, assim como na transmissão dos saberes e das atitudes que uma
geração herda de outra.
Qual desses caminhos trilhar e como encadeá-los? Encontrei a resposta
para essas indagações no livro de Roudinesco que aponta o mito freudiano do pai
da horda como ponto de partida tanto da antropologia quanto da sociologia para o
estudo da família. Assim, apresento a seguir um breve resumo de Totem e Tabu
(1914/1968), livro com o qual Freud inaugurou sua teoria do social e da cultura, na
qual considera que o parricídio gerou a humanidade assim como as suas
instituições.
Totem e Tabu, texto que suscitou inúmeras polêmicas no campo das
ciências sociais, é considerado fundamental dentro do pensamento freudiano, pois
nele Freud defendeu sua tese de que nenhuma cultura é concebível sem a
referência paterna. Sem conhecer tal pressuposto, dificilmente se entende as
críticas, justificadas ou não, que têm sido feitas à família contemporânea,
principalmente no que diz respeito à falência da função paterna.
A maior parte das críticas que esse texto freudiano suscitou no momento de
sua publicação foi proferida por antropólogos. Um deles, Frazer (1910), que
11
sustentou uma hipótese inversa à de Freud, que relacionava exogamia e incesto,
ao dizer que havia uma disjunção entre exogamia e totemismo. Apesar da
discordância Frazer e Freud tem a mesma leitura de Durkheim sobre exogamia e
totemismo, ou seja, a de que “o tabu que se liga ao totem deve necessariamente
implicar na proibição das relações sexuais com a mulher pertencendo ao mesmo
totem que o homem”. Quanto a Freud, esse nunca deixou de relacionar entre si os
dois tabus totêmicos: não matar o pai e não se casar com uma mulher do grupo do
totem.
Segue abaixo o mito freudiano citado.
1.1 O mito do pai da horda: como tudo supostamente começou...
Era uma vez uma horda de sapiens que, no início dos tempos, era
governada por um homo tiranus que mantinha sob seu jugo todos os machos e
todas as meas do grupo e impedia pela força bruta que os demais machos
usufruíssem das fêmeas, tornando-se, conseqüentemente, o pai de todos. Um dia,
após longos anos de repressão, alguns filhos do tirano, inconformados com o fato
de o pai possuir todas as fêmeas, uniram-se para destroná-lo. Essa primeira
rebelião falhou e os filhos foram banidos da comunidade. Mais tarde, ainda
inconformados, unidos pelo ódio ao tirano, os machos arriscaram uma segunda
investida e conseguiram assassinar o chefe da horda primitiva. Quando este foi
morto, transformou-se em pai e os filhos converteram-se em irmãos de fato.
Como salienta Enriquez (1990) em seu livro Da Horda ao Estado, aquilo
que começa como um conto de fadas, do tipo “era uma vez”, aos poucos chama
nossa atenção para o fato inédito de que o ódio partilhado transformou seres
submissos em irmãos e o chefe da horda em pai. Neste texto, que Lacan
considera o único mito moderno, Freud defende a idéia de que o primeiro
agrupamento realmente humano só pode se constituir a partir de um crime
cometido em conjunto. É por esse motivo que, do ponto de vista freudiano, o pai
só existe morto, real ou simbolicamente.
Após o assassinato os irmãos devoraram o corpo do pai morto para
12
incorporarem e se apoderarem da sua força e, nesse momento de festim
canibalesco os irmãos se reconhecem como tais. Como lembra Enriquez (1990)
na obra citada, o festim é o segundo momento forte da história, pois, ao comerem
juntos a mesma carne, os irmãos se identificaram definitivamente como irmãos,
tornando-se iguais, porque estavam unidos pelo sangue.
Cabe ressaltar que, por mais que os filhos odiassem o pai pelo fato de ele
representar um obstáculo aos seus anseios de poder e à realização de seus
desejos sexuais, também o amavam e admiravam. Dessa ambivalência odiar e
amar o mesmo objeto ao mesmo tempo – deve-se encontrar a explicação da culpa
que os filhos passaram a sentir uma vez saciado o ódio. Movidos pela culpa do
parricídio, eles decidiram renunciar a posse das fêmeas e transformaram o pai
num totem ou, em outros termos, no fundador do grupo. Convém salientar que, ao
instaurarem o totemismo, os irmãos inauguraram uma nova organização social na
qual o pai morto se tornou muito mais poderoso do que quando estava vivo.
Assim, aquilo que era proibido pela força bruta do pai como a posse das fêmeas
passou a ser vedado pelos próprios filhos.
A proibição da morte do totem teve como uma de suas finalidades, além de
diminuir o sentimento de culpa evitar que um dos irmãos desejasse se apoderar
de todas as fêmeas do clã, o que levaria a uma luta de todos contra todos, pois
nenhum dos irmãos tinha força suficiente para assumir o lugar do pai. Por tal
motivo, todos decidiram renunciar ao motivo do parricídio, ou seja, às mulheres do
clã, que passaram a funcionar enquanto moeda de troca, instaurando desse modo
à proibição universal do incesto.
A respeito do valor do mito freudiano, Lévi-Strauss tece os seguintes
comentários em seu livro As Estruturas Elementares do Parentesco (1976):
“[...] como todos os mitos o que é apresentado com tão grande força dramática
em Totem e Tabu admite duas interpretações. O desejo da mãe ou da irmã, o
assassinato do pai e o arrependimento dos filhos não correspondem, sem
dúvida, a qualquer fato, ou conjunto de fato, que ocupam na história um lugar
definido. Mas traduzem, talvez, em forma simbólica, um sonho ao mesmo
tempo duradouro e antigo. O prestígio deste sonho, seu poder de modelar, sem
que se saiba, os pensamentos dos homens, provém justamente do fato dos
atos por ele evocados nunca terem sido cometidos, porque a cultura sempre e
em toda parte se opôs a isso As satisfações simbólicas nas quais, segundo
13
Freud se expande o sentimento do incesto não constituem, portanto, a
comemoração de um acontecimento. São outra coisa e, mais do que isso, são a
expressão permanente do desejo de desordem, ou antes, da contra-ordem” (p.
531-532).
Enriquez afirma que as duas interpretações de Lévi-Strauss sobre o mito do
pai da horda permitem aos etnólogos e sociólogos abordarem o texto freudiano
sob uma nova ótica, pois chama a atenção para o fato de que o sonho de
assassinato do pai é antigo e perdura até os dias atuais. Esse sonho explica
principalmente porque o incesto, conscientemente condenado, continua
inconscientemente desejado.
Freud pôde ser reconhecido, na presente dissertação, como um seguidor
de Durkheim porque sua clínica lhe permitiu estabelecer um elo entre os dois
tabus totêmicos: não matar o totem e não se casar com uma mulher do grupo do
totem. Ao reconhecer o pai no lugar do animal totêmico, Freud (1914/1968)
discutiu que estas duas medidas a proibição do assassinato e do incesto
correspondem aos dois desejos reprimidos do Complexo de Édipo: matar o pai e
casar-se com a mãe.
O assassinato do pai da horda funda, portanto, a culpabilidade e inaugura a
Era das regras sociais e do direito, formuladas em nome do pai morto. Convém
lembrar que, segundo Freud, a instauração de um sistema de repressão coletivo
marcou a passagem da natureza para a cultura, o que mais uma vez não contradiz
Durkheim, para quem o sagrado emana do coletivo.
De acordo com Freud (1927), a Kultur, que alguns optam por traduzir como
“cultura” e outros preferem o termo “civilização”, definida por ele como sendo a
totalidade das obras e organizações cuja instituição nos afasta do estado animal
de nossos ancestrais e que serve a dois fins: a proteção do homem contra a
natureza e a organização dos homens entre si. Nesse sentido, pode-se afirmar
que a família foi a primeira instituição fundada pelos humanos com o intuito de
protegê-los contra a natureza e organizá-los entre si.
Em síntese, ainda que seja uma construção mítica, a proibição do incesto,
tal qual descrita por Freud, está ligada a uma função simbólica que consiste em
diferenciar o mundo animal do mundo humano, arrancando uma pequena parte do
14
humano do continuum biológico que caracteriza o destino dos mamíferos. Tal
afirmação permite a Roudinesco (2002/2003) argumentar que a família pode ser
considerada uma instituição humana duplamente universal, que associa um fato
de cultura, construída pela sociedade, a um fato de natureza, inscrita nas leis da
reprodução biológica.
Do ponto de vista freudiano, a constituição da família foi uma necessidade
da civilização que possibilitou ao homem não ser privado da mulher e a esta de
não ser separada de seus filhos, instaurando, desse modo, o que mais tarde o
autor veio a chamar de “moral sexual civilizada”. Esta se fundamenta na repressão
pulsional necessária à manutenção dos ideais reguladores da sociedade,
conjugando obrigação ao trabalho e potência ao amor. Com Freud (1914/1968)
parece concordar a antropóloga Gough (1980), que considera a família como
essencial para o aparecimento da civilização, permitindo um grande salto para
frente no que diz respeito à cooperação, ao conhecimento voluntário, ao amor e à
criatividade.
As transformações que ocorreram na instituição familiar, assim como as
diferentes formas de abordá-la ao longo do tempo, têm girado em torno de duas
grandes ordens: a biológica (diferença sexual) e a simbólico (proibição do incesto
e outros interditos). Tendo em vista tais considerações, coloco-me ao lado de
Roudinesco (2002/2003) ao entender que não basta definir família apenas por
meio do ponto de vista antropológico, mas também é preciso saber qual a história
dessa instituição e como se deram as mudanças que resultaram na aparente
desordem a ela atribuída na atualidade.
1.2 Flashback da história da família ocidental
Com o objetivo de entender a história da família ocidental e salientar suas
principais transformações, num primeiro momento, remeto-me a Durkheim e a sua
“teoria da retração familiar”. Tal teoria, desenvolvida no curso que ministrou em
1892, foi retomada em 2001, no livro Lacan et les sciences sociales por
Zafiropoulos que tenta identificar na psicanálise as influências da sociologia de
15
Durkheim. Tal inspiração não é pequena, visto que Durkheim foi o primeiro indicar
as conseqüências daquilo que denominou como “lei da retração familiar”, em que
chamava a atenção para a degradação da potência do pai, em particular, e das
estruturas familiares, em geral, o que, segundo ele, inevitavelmente leva à
produção de indivíduos interessados em perseguir fins pessoais e, portanto, em
anomia.
Se essa percepção de Durkheim, transcrita para o seu texto La famille
conjugale (1892), parece importante é porque de certo modo ela parece anunciar
a percepção de alguns autores modernos, como Horkheimer e Adorno (1973),
preocupados com a falência da função paterna e as patologias sociais e
individuais que dela decorrem. Em outras palavras, a idéia de contração familiar
de Durkheim indica que a família, tal qual a conhecemos hoje em dia em grande
parte do mundo ocidental constituída pelo pai, mãe e filhos solteiros –, não
passa de uma forma histórica criada pela Europa moderna, fruto de uma longa
evolução que se estendeu por quase três séculos e que pode ser definida como
um resto da antiga família patriarcal, constituída por pai, mãe e gerações de
descendentes, salvo as filhas e seus descendentes, cujos laços de parentesco
decorriam, da propriedade coletiva dos bens.
Durkheim (1892) insiste no fato de que esse processo de contração familiar
não diz respeito somente ao tamanho do grupo familiar, mas também à sua
constituição e à relação com os bens. As formas primitivas de família, em que as
relações do grupo doméstico dependiam primeiramente da posse coletiva e
sagrada, cederam lugar a um novo tipo de família, fundada na propriedade privada
e na figura de um chefe de família, que passou a ser o centro de gravidade do
novo grupo familiar. Neste, o poder se deslocou das coisas para uma pessoa
particular, o pai, que passou a concentrar tudo o que havia de moral e religioso na
família.
A fragilidade dessa nova forma de família, cujo funcionamento sofria
influência da Igreja e do Estado, acabou desembocando na família moderna ou
conjugal e, quanto mais se avança na história, mais essa família conjugal ou dos
16
esposos se torna o elemento essencial e permanente da família. Segundo
Durkheim, só essa contração do grupo doméstico, vista ao longo da história, pode
explicar as características da família moderna e a decadência da potência paterna
a partir do século XVIII, quando, a partir da Revolução Francesa, a instituição
familiar deixou, segundo Roudinesco (2002/2003), de ser conceitualizada como
paradigma de um vigor divino ou de Estado.
A partir de agora, apresentarei a versão proposta por Roudinesco
(2002/2003) a respeito da ascensão e a queda da família ocidental burguesa por
meio da pontuação histórica. Para a autora, três foram as fases da família que
merecem destaque: tradicional, moderna e contemporânea.
A primeira etapa, denominada tradicional, teria vigorado durante o Antigo
Regime. Caracterizava-se por casamentos arranjados e pela transmissão do
patrimônio aos filhos quando ocorria a morte do pai. A célula familiar desta época
repousava sobre uma ordem de mundo imutável e inteiramente submetida à
autoridade patriarcal, para a qual o casamento dos filhos, em geral em idade
precoce, visava a manutenção ou ampliação do patrimônio, sem que se
considerassem as necessidades afetivas e sexuais dos noivos.
A fase seguinte, da família moderna, teria começado no final do século
XVIII, com a Revolução Burguesa e se estendido até meados do culo XX,
quando começou a apresentar sinais de fraqueza. Esta família fundava-se sobre o
casamento baseado no amor romântico, na reciprocidade dos sentimentos e no
reconhecimento da importância da sexualidade. O casamento burguês, ao mesmo
tempo em que paulatinamente valorizava a divisão do trabalho entre os esposos,
repassou a responsabilidade pela educação dos filhos para o Estado.
Por fim, a fase da família contemporânea, gerada nos movimentos
revolucionários e de contracultura ocorridos durante a década de 60, caracteriza-
se por dois aspectos: a união temporária de dois indivíduos que buscam relações
íntimas ou realização sexual; e o aumento considerável das separações. Essa
família, desconstruída, recomposta, mono ou homo parental, parece estar sujeita a
uma grande desordem. Isso não significa, no entanto, que ela tenha atingido o
17
nível de degradação que alguns lhe atribuem, responsabilizando-a por situações
catastróficas como “professores apunhalados, crianças estupradoras e
estupradas; carros incendiados, periferias entregues ao crime e à ausência de
qualquer autoridade” (ROUDINESCO, 2002/2003, p. 10). Certamente, diferente
das que a antecederam, a família contemporânea apresenta alguns problemas
específicos que serão abordados ao longo do trabalho.
Terminada essa pontuação histórica, por meio da qual expus a historicidade
da família discorrerei a seguir sobre a família burguesa em suas versões moderna
e pós-moderna com o intuito de entender o que mudou nas últimas décadas. É
mister evocar o lembrete feito por Adorno e Horkheimer em Temas básico de
sociologia (1973), no artigo que dedicaram à família, de que é possível abordar
a família moderna e sua crise se tivermos em mente que ela é fruto da realidade
social em suas sucessivas concretizações históricas e que o social a perpassa
naquilo em que ela tem de mais íntimo. Assim, é possível entender a sua tão
decantada crise por meio das contradições da sociedade burguesa, ressaltando
que a família permaneceu encravada nessa sociedade como uma instituição
essencialmente feudal, fundada sobre o princípio do sangue e do parentesco
natural.
1.3 A família moderna
A família dita moderna é fruto de duas feridas narcísicas infligidas pelos
efeitos das Revoluções Francesa e Industrial sobre o sujeito ocidental entre
meados do século XVIII e o início do XX. Tais feridas, que consistem na perda da
origem divina do homem e na perda da plenitude do eu, deram início ao desmonte
da figura mítica do pai e a ingerência de certas instituições estatais no âmbito
privado. As duas revoluções citadas deram início àquilo que Lasch (1977/1991)
denominou controle social sobre as atividades até então relegadas aos indivíduos
ou às suas famílias.
A Revolução Francesa, marco da História Contemporânea n opinião de
Roudinesco (2002/2003), longe de acabar com a família, colocou-a no centro da
18
nova sociedade, pois não passou despercebido aos revolucionários o fato de que,
enquanto átomo da sociedade civil, a família, com suas inúmeras funções, era a
base do Estado, havendo continuidade entre o amor à família e à Pátria. Não por
acaso, o Estado s-revolucionário passou a se interessar cada vez mais pela
família, tornando-a alvo de uma política que permitisse o surgimento de uma
individualidade cidadã e democrática.
Para que essa individualidade pudesse se concretizar, foi preciso, num
primeiro momento, transformar a figura absolutista do pai em algo mais igualitário,
processo que se iniciou com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
na França, promulgada pela Assembléia Nacional, e foi progredindo ao longo do
século XIX por meio da evolução jurídica que corroeu de maneira progressiva as
prerrogativas paternas. Isso ocorreu, por exemplo, com o fim do direito
testamentário que, ao possibilitar a divisão do patrimônio, dissolveu o poder do
patriarca, pois permitiu que seus filhos tivessem acesso à herança antes de sua
morte. Em outros termos, essa lei representou o assassinato simbólico do pai.
Um dos objetivos desta lenta evolução foi o fortalecimento do poder do
Estado, que acabou se tornando o avalista da autoridade paterna, ou seja, nesta
nova sociedade burguesa, a partir do momento em que precisou prestar contas ao
Estado, o pai deixou de se assemelhar a um Deus todo poderoso, autorizado a
exercer uma brutal opressão sobre mulher e filhos, mesmo que tentasse justificá-
la como um meio de despertar neles a autoconsciência.
Ao mesmo tempo em que se acompanham as conseqüências da Revolução
Francesa, fazem-se sentir os efeitos da Revolução Industrial que, em seu primeiro
estágio, retirou a produção do âmbito doméstico, visto que os capitalistas
passaram a considerá-la antieconômica, o que os levou a coletivizá-la em fábricas
sob sua própria supervisão. Foi assim que, no estágio seguinte, os donos de
fábricas apropriaram-se das habilidades e dos conhecimentos técnicos dos
antigos artesãos, reagrupando e administrando suas habilidades sob uma direção
supostamente científica que se encarregou de parcelar o processo de produção e
atribuiu uma função específica a cada operário. Dessa maneira, tal forma de
19
direção guardava para si o conhecimento do processo produtivo como um todo,
criando um gigantesco aparato gerencial composto por especialistas.
O efeito combinado da revolução política e econômica permitiu a entrada
maciça das mulheres no mercado de trabalho, fato este que produziu grandes
transformações na estrutura familiar, visto que, por meio do trabalho, as mulheres
conquistaram a capacidade de serem chefes de família. Não é de se admirar,
portanto, que pouco tempo depois as mulheres tenham conquistado também o
direito ao divórcio, até então exclusivo dos homens. Essas importantes conquistas
femininas começaram a abalar o pátrio poder, até então, intocável e intocado.
Com a introdução do divórcio, o casamento deixou de ser um pacto
indissolúvel e garantido pela presença divina para se tornar, pelo menos
formalmente, um contrato quase livremente consentido entre homens e mulheres,
supostamente baseado naquilo que veio a ser chamado de amor romântico. Digo
quase livremente consentido porque, embora houvesse a possibilidade de escolha
do cônjuge, esta ainda era determinada pelos pais, principalmente quando havia
patrimônio em jogo. Talvez a liberdade com relação à união matrimonial apenas
fosse encontrada nas camadas mais baixas da escala social, nas quais, por não
haver patrimônio, os filhos podiam escolher o cônjuge mais livremente.
Os casamentos arranjados, segundo Perrot (1950/1991), tinham por
objetivo absorver todas as funções: não da aliança, mas também do sexo, o
que significava que o casamento transportava a lei e a dimensão jurídica para o
dispositivo da sexualidade que leva a economia do prazer e a intensidade das
sensações (sentimentos) para o regime da aliança. Como conseqüência as
tragédias que os casais passaram a vivenciar resumiam a se conflitos entre
aliança e desejo, uma vez que, quanto mais cerradas às estratégias matrimoniais
para assegurar a coesão familiar, maior o sufocamento do desejo. Além disso,
quanto mais forte o individualismo, mais ele se insurgia contra as escolhas do
grupo e os casamentos arranjados.
Nesse contexto, como salienta a autora, a família passou a ser submetida a
movimentos contraditórios. Se, por um lado, seus membros iam se tornando, cada
20
vez mais livres uns em relação aos outros, por outro lado, o Estado e seus
representantes passaram a se interessar cada vez mais pela família enquanto
instituição. Assim, a socialização da produção, anteriormente citada, tornou-se a
premissa do que viria a ser a socialização da reprodução, ou seja, o controle da
vida privada pelo Estado por meio de agentes (médicos, psiquiatras, professores,
orientadores infantis, funcionários da justiça de menores) que passaram a
expropriar ou supervisionar certas funções da família. A partir desse momento, o
Estado passou a cercar cada vez mais a família em cujos mistérios parecia querer
penetrar, principalmente no que dizia respeito às famílias pobres, tidas como
incapazes de desempenhar o papel que lhes cabia em relação aos filhos.
Este fato não se restringiu à Europa. Como aponta Lash, em seu livro
Refúgio num Mundo sem Coração (1977/1991), o mesmo aconteceu nos Estados
Unidos, país no qual os principais alvos da intervenção de planejadores e políticos
foram as famílias de imigrantes, vistas como obstáculos para o que se concebia
como progresso social, entendido em parte como homogeneização. Segundo
esses interventores, a instituição familiar, ao conservar suas tradições religiosas
de origem, suas línguas e dialetos maternos, assim como seus saberes
comunitários e tradições, favorecia o desenvolvimento comunitário ao mesmo
tempo que dificultava e retardava o fortalecimento do Estado nacional.
Mas para que a família fosse útil para a constituição deste Estado nacional
forte era preciso, primeiro, que se transformasse a maneira de se entender a
criança. Segundo Perrot (1950/1991), durante muito tempo a criança o passou
de um pequeno adulto e o conceito de infância não existia. No Antigo Regime, por
exemplo, a aristocracia entregava seus filhos às mães de leite, dando conta deles
somente quando chegavam à idade adulta. A ascensão da moral burguesa mudou
esse estado de coisas e a criança passou a ser vista como um ser dotado de
atributos especiais, tais como susceptibilidade, vulnerabilidade e inocência, razão
pela qual necessitava de um período de cuidados e proteção. Ao ganhar esse
tempo, a criança deixou de ser “o filho”, para ser “o bebê”, “a criança de oito anos”
e “o adolescente”.
21
Essa concepção de infância colaborou para o surgimento de uma nova
idéia de família, pois, ao tentar proteger a criança de más influencias e evitar que
ela fosse corrompida por adultos, criou-se outro padrão de cuidados para com ela,
baseado em amor e compreensão. A nova educação dos filhos levou à
intensificação dos laços emocionais entre pais e filhos, e a frouxidão do nculo
com os familiares não pertencentes ao núcleo imediato. Dessa maneira, na
medida em que a família tornava-se mais nuclear, a relação entre pais e filhos ia
sendo emocionalmente sobrecarregada.
Tal valorização da infância acabou gerando tensões nas famílias burguesas
que, para se adequarem à nova realidade, foram obrigadas a rever a posição
ocupada pela mulher neste sistema familiar. A aquele momento, a atividade
feminina estava fortemente relacionada aos cuidados com a casa e à educação
dos filhos. No entanto, a ingerência do Estado na esfera familiar fez com que a
família se visse obrigada a mudar, pois, caso contrário, as mulheres acabariam se
convertendo em parasitas, consumidoras improdutivas sob a tutela do Estado,
como relata Lash (1977/1991), ao retomar o discurso de uma feminista da época,
A fim de evitar que suas mulheres virassem meras peças decorativas, as
famílias burguesas procuraram maneiras de torná-las úteis, passando a ser
concomitantemente alvo de degradação e exaltação (LASH, 1977/1991). Por um
lado, a degradação ocorreu a partir do momento em que o lar deixou de ser um
centro de produção para se tornar o lugar de devoção aos filhos e, assim, as
mulheres foram despojadas de muitas de suas ocupações tradicionais. Por outro
lado, a exaltação manifestava-se quando, devido às novas exigências educativas
da época, tornou-se necessário oferecer uma educação mais esmerada às
mulheres para que elas viessem a exercer melhor suas tarefas domésticas e
serem melhores companheiras de seus maridos.
Essa domesticidade implicou na ampliação da educação da mulher e em
uma minuciosa reforma de pensamento, por meio da qual a mulher passou a ser
instada a renunciar sua sensibilidade em prol do bom senso. A domesticidade
burguesa, cuja finalidade era manter as mulheres no lar, acabou provocando uma
22
desordem geral na medida em que as encorajou a terem aspirações que o
casamento e a família tradicional não podiam satisfazer. Dessa forma, deu-se
início ao movimento feminista.
O sistema familiar burguês, que alcançou seu pleno desenvolvimento no
século XIX, baseava-se no casamento de companheirismo, centrado na educação
doméstica das crianças, na quase emancipação das mulheres pelo mercado de
trabalho e no isolamento da família nuclear em relação ao parentesco. Nesse
contexto, a sociedade em geral parecia mostrar sinais de que estava entrando em
uma nova fase como mostrava alguns jornais e revistas norte-americanas do final
do século XIX que relatavam o aumento do mero de divórcios, a queda da
natalidade entre as pessoas de melhor nível sócio-econômico, a instável posição
da mulher na sociedade e a chamada Revolução Moral.
Por volta do início do século XX, algumas mudanças tornaram-se evidentes:
as mulheres eram cada vez mais incitadas a exigirem direitos até então exclusivos
dos homens como o voto e a educação; os jovens transformaram-se em um
público consumidor; e os pais foram instados a satisfazer todos os desejos de
seus filhos. Essa última tarefa, sendo impossível, serviu para minar a confiança
dos pais em serem capazes de prover a felicidade de seus rebentos, fazendo com
que apelassem cada vez mais para as novas descobertas da tecnologia moderna,
pois, aparentemente, ela poderia proporcionar à criança em crescimento
alimentação adequada, cuidados médicos apropriados e habilidades sociais
necessárias para atuar no mundo moderno.
Adorno e Horkheimer, no texto A família (1973), resumem os aspectos
discutidos anteriormente ao salientar que a família burguesa, que, durante muito
tempo, foi a instituição por meio da qual a sociedade formou os homens de que
necessitava, dirigia-se para uma crise. Se é verdade que a família pôde ser o lugar
do aprendizado de valores e da ideologia burguesa, tal fato estava deixando de
acontecer. Durante muito tempo, a família burguesa monopolizou a ão
econômica e educativa, ao mesmo tempo em que sua figura central, o pater
família, funcionou como modelo para os filhos, aos quais restava, num primeiro
23
momento, identificarem-se com ele e, num segundo, afastarem-se dele. Quando a
pressão paterna não era dura demais e vinha acompanhada pela doçura materna,
formavam-se homens capazes de lidar tanto com a autoridade quanto com a
liberdade, aprendendo a se responsabilizarem pelos próprios sucessos e
fracassos.
A mesma dinâmica social que, num primeiro momento, permitiu a
constituição e a reprodução da família burguesa, começou, na sociedade industrial
avançada, a ameaçá-la internamente, tornando-a cada vez menos apta a
preencher suas funções de instrução e educação. Na sociedade a criança
descobria cada vez mais cedo a fragilidade do pai, dificultando a interiorização das
exigências familiares que, apesar de todos os seus aspectos repressivos,
contribuíam para a formação de um indivíduo autônomo. Ao mesmo tempo em
que a criança foi condenada a descobrir a privatização da socialização, o pai foi
sendo substituído por poderes coletivos, tais como a classe escolar, o time
esportivo, o clube ou o Estado.
Os efeitos da substituição do pai eram temidos por Adorno e Horkheimer
(1973) porque os autores acreditavam que os jovens, na falta de um pai com
quem pudessem se identificar poderiam se submeter a qualquer autoridade desde
que essa lhes oferecesse proteção, vantagens materiais, satisfação narcísica e
possibilidade de descarregar sobre outros o sadismo, em que a desorientação
inconsciente e o desespero encontrassem uma cobertura. Foi o que aconteceu,
segundo eles, na Alemanha nazista, primeiro país a viver a crise da família no
período entre guerras.
Cabe salientar aqui que, ao longo deste período, tanto o poderio industrial
quanto o conhecimento tecnológico mostraram seu esplendor nos campos da
morte nazista, momento em que veio à tona, segundo Bauman (1989/1996), o
lado mais obscuro da sociedade judaico-cristã. Nesta época, as crueldades
passaram a ser administradas de modo mais efetivo do que jamais foram
anteriormente, visto que a técnica e a especialidade se tornaram valores absolutos
das sociedades modernas, comprovando que criação e destruição são aspectos
24
inseparáveis daquilo que chamamos civilização.
Após duas guerras mundiais, iniciou-se, na década de 50, um período que
Hobsbawm (1994/2000) chamou de “Era de Ouro”, marcada pelo extraordinário
avanço de pesquisas científicas que transformaram a vida cotidiana,
principalmente no chamado Primeiro Mundo, mas também em outras latitudes. O
pai desses anos dourados foi o “Estado do bem estar social” com políticas de
pleno emprego, sistema de controle governamental e administração de economias
mistas e cooperação com movimentos trabalhistas organizados. Esse Estado
possibilitou que se intensificasse a industrialização e a modernização dos países
ocidentais desenvolvidos e que as economias arruinadas pela guerra se
recuperassem.
O Estado do bem estar social teve como uma de suas principais
características reforçar o que havia começado no final do século XIX: controle
público sobre os pais exercido pelo saber de especialistas. Concomitantemente ao
surgimento desse Estado surgiu uma nova ideologia que teve por finalidade
convencer a mulheres e homens a confiarem não na tecnologia, mas também
em conselhos de especialistas externos, o que, por sua vez, acabou por minar a
capacidade de as famílias proverem a si mesmas, justificando, desse modo, a
contínua expansão dos serviços de saúde, educação e bem-estar. As novas
modalidades de exercício médico, cada vez mais fundamentadas em métodos de
rastreamento e de controle, propunham-se a designar modelos de comportamento
designados como justos e naturais, abarcando desde as maneiras de comer ou
arrumar a casa até as de procriar, morrer, respeitar os pais, criar os filhos ou
regulamentar a relação entre os sexos.
Ao mesmo tempo, a Revolução Tecnológica, baseada na crença de que
tudo o que era novo era revolucionário, foi entrando na consciência do consumidor
em tal medida que a novidade se tornou o principal recurso de venda para todos
os produtos, desde detergentes até computadores.
A crítica a respeito do controle estabelecido por especialistas e pelo Estado
na socialização de crianças foi feita inicialmente por Adorno e Horkheimer (1973) e
25
continuada por Lash (1977/1991) praticamente um discípulo destes frankfurtianos.
Este último autor foi um dos primeiros cientistas sociais a alertar sobre os efeitos
nocivos da publicidade a respeito das profissões assistenciais que pretendeu
libertar as pessoas das antigas coações, mas acabou expondo-as a novas formas
de controle, mais sutis do que as anteriores. Ao se proporem obrar para libertar a
vida das pessoas da repressão do Estado e da Igreja, tais profissões acabaram
submetendo as pessoas ao controle médico e psiquiátrico por um lado e à
manipulação publicitária, por outro. Saíram de cena o legislador e o sacerdote e
entraram os médicos, que vieram ocupar a função de novos guardiões da
estabilidade psíquica do indivíduo e que se propuseram a eliminar do matrimônio o
irregular, o imprevisível e o incontrolável. Mais uma vez a intenção de trazer
benefícios à população teve conseqüências opostas às pretendidas.
Esses autores frankfurtianos, ao apontarem para os riscos de substituir a
socialização familiar pelo controle do Estado, previram a crise da função paterna
amplamente discutida atualmente. Segundo eles, o controle cada vez mais intenso
do Estado, que se arvorou como substituto da figura paterna, acabou minando a
capacidade de autodeterminação e autocontrole das famílias, solapando uma das
principais fontes de coesão social para criar formas ainda mais constrangedoras
do que as antigas, no que diz respeito a seu impacto sobre a liberdade individual e
política.
No final dos anos 60, com o fim da Era de Ouro e da morte do Estado do
bem estar social, iniciou-se a ascensão de uma nova ordem e, de um novo pai, o
mercado. Segundo Hobsbawm (1994/2000), tal encerramento não foi provocado
pela ganância dos xeques do petróleo ligados à Organização dos Países
Exportadores de Petróleo (OPEP) ou pelas mudanças na configuração da
economia do mundo nem tampouco, mas porque a economia mundial, após a
crise de 1929, não conseguiu recuperar seu antigo ritmo de crescimento.
A partir desse momento, começou a se delinear um novo tipo de família,
nomeada por Roudinesco (2002/2003) de contemporânea e por outros autores
(citar) de pós-moderna. Esta é, de acordo com a autora, uma família em
26
desordem, baseada na união temporária de dois indivíduos em busca apenas de
relações íntimas. Com isso, aumentaram consideravelmente os casos de
separação, divórcio e recomposições familiares. Essa nova família foi se
desenvolvendo em uma sociedade cada vez mais dominada pelas leis do
mercado, que foi aos poucos se transformando no novo pai e assumindo o lugar
que um dia fora do Estado. Coube ao mercado instituir uma cultura juvenil que se
dispôs a curar a ferida narcísica da perda da plenitude do eu por meio do discurso
da felicidade.
O mercado ao substituir a família assim como o Estado para Lash, em seus
livros Refúgio Num Mundo Sem Coração (1977/1991) e em suas obras seguintes,
O Mínimo Eu (1987) e A Cultura do Narcisismo (1983), acabou aumentando os
efeitos psíquicos e sociais da crise da família burguesa. Ele ressalta que esses
novos sintomas eram previsíveis, visto que não seria possível desautorizar a
instituição familiar encarregada de inculcar na criança os primeiros modos de
pensar e atuar que, com o passar do tempo se transformam em hábitos,
impunemente. O discurso da felicidade propagado pelo Mercado ao desmoralizar
esta que foi historicamente a principal instituição responsável pela reprodução de
padrões culturais, transmitindo às gerações subseqüentes normas éticas, faz com
que o mundo pós-moderno enfrente novas formas de mal estar na civilização,
novos sintomas, próprios das sociedades pós-modernas que podem desembocar
na dissolução da comunidade tais como o desinvestimento generalizado das
instituições, o culto da singularidade e o individualismo exacerbado. Talvez o
parecer de Lash seja um pouco exagerado, porém é necessário reconhecermos
que suas previsões, guardadas as devidas proporções, mostraram-se acertadas,
no que diz respeito à inequívoca relação entre deserção do pai de família e o
sofrimento contemporâneo do filho.
Após essa breve pontuação histórica sobre a família, principalmente a
ocidental burguesa, e antes de retomar a terceira fase, que é da família
contemporânea, segundo Roudinesco de modo mais aprofundado, terminarei esse
capítulo voltando a uma visão mais antropológica da família por meio de Murdock
(1949). Esse autor considera universal a família moderna ou nuclear, pois as
27
quatro funções nela encontradas sexual, econômica, reprodutiva e educativa
apresentariam-se em qualquer sociedade, sendo que nenhuma das sociedades
conseguiu encontrar um substituto adequado para exercer estas funções a não ser
a família.
As quatro funções cumpridas pela família nuclear, portanto, são pré-
requisitos universais para a sobrevivência de qualquer sociedade. Foi pensando
nisso que Murdock, em seu livro Estrutura Social, afirmou a universalidade das
funções:
“Se não se logra assegurar a primeira e a terceira (sexual e reprodutiva), a
sociedade extinguir-se-ia; sem a segunda (econômica) a vida não poderia
existir; quanto à quarta (educativa), sem ela a cultura desapareceria. É assim
que a imensa utilidade da família nuclear e a razão de sua universalidade
começam a perfilar-se com força” (1949, p. 11).
As funções da família, tal qual expressas por Murdock (1949), podem ser
comparadas às quatro funções da cultura descritas por Malinowski, em seu livro
póstumo Uma Teoria Científica da Cultura (1970). Para ele, a primeira função da
cultura é oferecer proteção aos seus membros contra fatores externos (ataque de
animais, cataclismo, violência humana) por meio do lar, da municipalidade, do clã
e da tribo. A segunda, a divisão sexual do trabalho, está relacionada à
transformação que vai se operando na solidariedade social. A terceira função é
auxiliar o crescimento dos indivíduos por meio da transmissão dos costumes, do
respeito à autoridade e da ética, visto que são esses ensinamentos que preparam
a criança para a vida em sociedade. Malinowski lembra que uma das funções da
família é preparar os filhos para se separarem dela, possibilitando a constituição
de novas famílias e, para isso, contam com a ajuda dos ritos de iniciação que
existem em todas as sociedades e que têm por função ajudar o adolescente a
deixar sua família de origem e sua infância para entrar no mundo dos adultos. Por
fim, a quarta função a que se refere Malinowski é a higiene, que consiste, além do
adestramento das normas de orientação fisiológica, em ensinar o indivíduo a
separar os valores considerados sujos dos limpos. Em outras palavras, essa
função expressa a consciência coletiva de uma sociedade, isto é, o conjunto de
crenças e sentimentos comuns.
28
No último bloco deste capítulo, que representa a terceira fase da
Roudinesco, veremos a família s-moderna e seu mundo fast, dominado pela
técnica, jovens adultos e relacionamentos virtuais.
1.4 Família contemporânea
A família chamada contemporânea ou pós-moderna, fruto dos movimentos
revolucionários e da contracultura da década de 60, tem como principais
características a juvenilização de seus membros, a liberalização dos costumes, a
perda da autoridade paterna, o fortalecimento da autoridade materna e os
relacionamentos virtuais.
Em 1968, jovens do mundo inteiro, de Nova Iorque a quio, passando por
Paris e São Paulo, atearam fogo ao planeta, como se uma palavra de ordem
universal tivesse sido dada, a calçada e o paralelepípedo se tornaram os símbolos
de uma geração em revolta que, como cantava Jim Morrison em We want the
world and we want it now
1
, queria transformar o mundo no menor tempo possível.
Devido ao desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, toda uma
geração assistiu, num turbilhão de sons e imagens, a emergência dos Beatles e
dos Rolling Stones, a invasão de Praga pelos tanques russos, Carlos e Smith no
pódio dos Jogos Olímpicos do México, de punhos erguidos e luvas negras em
sinal de protesto contra o racismo, e o rosto eternamente jovem de Che Guevara.
Alimentada por essas imagens, surgiram novos atores sociais como os
jovens, as mulheres e as minorias sexuais que, segundo Hobsbawm (1994/2000),
acabaram criando um estilo de mobilização e contestação social que desembocou
em novos padrões de comportamento, aos quais se deu o nome de contracultura
e que consistiu numa verdadeira revolução cultural que afetou modos e costumes,
de homens e mulheres urbanos ao supostamente libertá-los do poder regulador
das grandes instituições coletivas (Estado, família, escola, igreja) em prol de um
novo enquadramento social, no qual os indivíduos teriam liberdade para compor e
recompor suas orientações e seus modos de vida.
1
“Nós queremos o mundo e o queremos agora”
29
O caminho para a contracultura teve seu início na década de 50, nos
Estados Unidos, com a Geração Beat, formada por jovens intelectuais, em sua
maioria escritores e poetas, que contestava o consumismo, o otimismo do pós-
guerra americano, o anticomunismo generalizado e a falta de pensamento crítico.
Esses referenciais se alastraram pelo mundo todo, influenciando
consideravelmente o movimento estudantil de 1968 que, segundo alguns autores,
teria sido o ápice da Geração Beat, pode ser entendida também como apenas
uma de suas vertentes. Como afirma Koltai (1998), o movimento de 68 ao mesmo
tempo em que tentou ressuscitar, pela última vez, o ideal revolucionário,
investindo em valores públicos e sociais, os liquidou em nome do direito das
pessoas à diferença, ao incitarem os indivíduos a se rebelarem contra as
autoridades e limitações burocráticas, incompatíveis com o livre desenvolvimento
do indivíduo.
Na opinião de Lipovetsky (2002/2004), ao mesmo tempo em que o
movimento de 68 ainda apresentava resquícios de um movimento do século XIX,
espelhando-se em suas lutas, anunciava o século XXI, submetendo a
esperança revolucionária cultura narcísica da autonomia. Olhando para trás, tem-
se a impressão de que entre essas vertentes do movimento de 68 somente as
reivindicações da esfera privada se afirmaram, desembocando naquele que Lasch
chamou de “homem psicológico da sociedade pós-industrial” (1977/1991). Esse
sujeito narcísico conhece apenas as regras do jogo social que lhe permitem
manipular os outros e se manter afastado de um verdadeiro engajamento social.
Como lembra Lipovetsky, a sensibilidade política dos anos 60 cedeu lugar a uma
sensibilidade terapêutica em que só o bem estar pessoal contava.
Esses valores juvenis difundidos pelas economias de mercado acabaram
sendo incorporados pela sociedade pós-moderna, que estabeleceu a juventude
como estágio final do desenvolvimento humano, independentemente da idade
cronológica da pessoa. Em outras palavras, num mundo fast, em que incessantes
inovações geram a obsolescência acelerada de conhecimentos e valores, a
juventude permite aos seres humanos, às mercadorias e aos bens simbólicos
estarem sempre novos e adequarem-se aos estilos da moda para que possam
30
captar as mais significantes mudanças do mundo a sua volta. Tal fenômeno faz
parte das discussões de Hobsbawm (1994/2000) quando discorre a respeito das
relações travadas entre juventude e tecnologia avançada. A esse respeito, o autor
afirma:
“Qualquer que fosse a estrutura de idade da administração da IBM ou da
Hitachi, os novos computadores eram projetados e os novos programas criados
por pessoas na casa dos vinte anos. Mesmo quando essas máquinas e
programas eram à prova de erro, a geração que não crescera com eles tinha
uma aguda consciência de sua inferioridade em relação às gerações que o
haviam feito. O que os filhos podiam aprender com os pais tornou-se menos
óbvio do que o que os pais não sabiam e os filhos sim. Inverteram-se os papéis
das gerações” (p. 320).
A capacidade de adaptação do indivíduo pós-moderno é concomitante ao
prolongamento da juventude que alguns autores Marguilis (1998), Martín-Barbero
(1998), Urresti (1998) e Feixa (2000) chamam de “moratória social”, referindo-se
ao período em que o indivíduo tem disponíveis todos os recursos para se
capacitar para a vida em sociedade, postergando atitudes que antigamente
definiam a entrada na vida adulta, tais como o matrimônio e a procriação. Embora
concebida como um período de amadurecimento necessário à vida em sociedade,
a moratória tem sido cada vez mais longa e o amadurecimento cada vez mais
lento devido, em grande parte, à falta de referências simbólicas fortes e às
exigências do mundo do trabalho. A conseqüência disto é que se observam
atualmente jovens adultos que se recusam a adotarem comportamentos
correspondentes à sua faixa etária, retirando-se ao mundo fantasioso da infância.
Essa é a interpretação realizada por Morin (1984) ao ressaltar que ser
adulto hoje em dia parece ter virado algo sem graça e pouco sedutor, pois significa
assumir compromissos e responsabilidades. Em contrapartida, permanecer jovem,
tanto psicologicamente quanto fisicamente, significa não envelhecer e não ter que
respeitar tabus, salvaguardar a virgindade de filhas, fazer culto aos ancestrais ou
transmitir ética paterna às crianças. Segundo o autor, a principal razão que leva
homens e mulheres a deixarem de ser adultos é a buscar da auto-realização no
amor e no bem estar da vida privada, num eterno desfrute do tempo presente.
Esses jovens adultos, segundo alguns psicanalistas como Neder Bacha (2006) e
Outerial, dividem-se em dois tipos: os kids adults (adultos adolescentes), adultos
31
que se recusam a amadurecer e preferem se divertir eternamente, tornando-se
pais irresponsáveis e omissos; e os grups ou grown-ups (crescidos ou adultos)
que Neal Pollack, em seu livro Alternadad: The true story of a family´s struggle to
raise a cool kid in América (2007), define como sujeitos que adoram crianças, mas
não pretendem se aniquilar para criar os filhos, como fizeram seus pai e avós. Os
grups, fenômeno cultural que une gerações entre vinte e setenta anos no estilo, no
comportamento e no gosto, vestem o mesmo tipo de roupas, fazem os mesmo
programas e têm amigos ou amigas em comum. Os filhos costumam ser mais
legais que os pais ou apenas mais jovens. A frase que melhor exemplifica os
grups é “a mãe ou o pai se parece com os seus filhos ou filhas”.
Em entrevista para a revista O Globo (2006), os psicanalistas José Outerial
e Márcia Neder Bacha vêem como problemática a ausência de diferença
geracional no relacionamento entre pais e filhos. Na tentativa de eliminar essa
diferença, mães e filhas imaginam ser possível compartilhar segredos e
intimidades o que, por ser impossível, faz gerar um relacionamento doloroso e
angustiante. Outerial afirma que “A intimidade sem limites e sem a clareza dos
papéis, além de ser vivida intimamente como invasiva, proporciona um campo
fértil para o florescimento da rivalidade entre mãe e filha. Isso poderá acabar
destruindo as relações afetivas” (p. 33). Insistindo na importância de se manter a
distinção entre as gerações, Outeiral chama a atenção para o fato de que a
adolescência, ao avançar sobre a infância, promove a erotização precoce de
crianças, tornando-as sôfregas consumidoras, o que pode levar, num futuro
próximo, a uma geração de kids adults e girlies (menininhas), ou seja, adultos que
abdicam de suas funções para adotar uma estética e um comportamento infantil.
A respeito desse assunto, o professor Masahiro Yamada (1999), da
Universidade de Tóquio, alega que ao adotar uma estética e um comportamento
infantil, os jovens adultos poderão transformar-se em solteiros parasitas (parasite
single), ou seja, jovens incapazes de fundarem suas próprias famílias,
continuando a viver com seus pais ou com um deles, parasitando-os. O professor
parece ter razão em suas reflexões, pois, cada vez mais, nas grandes metrópoles,
encontramos esses tais parasitas, que inspiraram filmes e livros. Sair da casa
32
dos pais para montar sua própria casa implica na perda de conforto, do qual esses
jovens o querem abrir mão. Talvez esse grupo não tenha se dado conta de que
não ganho sem perda e que, para construir algo novo, é preciso aceitar perder
alguma coisa, no caso o conforto da casa paterna. No mundo atual, no entanto,
muitos optam por continuar parasitando os pais e gastar o que ganham com o
próprio prazer, adquirindo bens de consumo, especialmente em uma época em
que os custos para manter uma casa são altos, principalmente em capitais, onde
uma pessoa pode gastar dois terços do seu salário com a estrita sobrevivência,
além do esforço que implica cuidar das próprias coisas.
Quanto aos pais, alguns preferem ter seus filhos em casa para protegê-los,
e por acreditarem que o adiamento de uma vida independente possibilita a seus
filhos saírem da casa parental em melhores condições, na esperança não
confessada de que esses os ajudarão na velhice, saldando a dívida para com os
pais. Outros pais não aceitam a situação descrita e enxergam esses jovens como
parasitas, principais responsáveis pela recessão econômica e pelo declínio da
taxa de natalidade.
A juvenilização do mundo, embora tenha contribuído muito para a
transformação da família e do comportamento de seus membros, o foi o único
fator importante para tal mudança. Não se pode desconsiderar a parte que coube
aos movimentos sociais das cadas de 60 e 70, principalmente o feminista. Com
esse movimento, as mulheres, cada vez mais insatisfeitas de pertencerem ao
ambiente doméstico constituído pela maternidade e pela execução de tarefas
domésticas –, passaram a reivindicar uma participação maior no mundo,
desejando se realizarem individual e profissionalmente. Nessas condições, a
maternidade, vista por certos grupos feministas como um empecilho para o pleno
desenvolvimento da mulher, começou a ser questionada e planejada. Em um
primeiro momento, esta foi adiada para depois da conclusão dos estudos e, em
um segundo momento, para depois da realização profissional.
Pesquisas realizadas nessa época, nos Estados Unidos, revelaram que as
mulheres americanas se sentiam mais insatisfeitas em suas vidas familiares do
que os seus maridos. Este sentimento de insatisfação levou um número elevado
33
de mulheres a desejarem o divórcio, como costuma acontecer em momentos de
grandes transformações sociais. De tabu, o divórcio transformou-se em uma
reivindicação feminina, principalmente entre as mulheres que conseguiram se
inserir no mundo do trabalho, mulheres ativas, capazes de sustentarem a si
mesmas e, se necessário aos filhos, por mais que essa posição de únicas
provedoras lhes pesasse.
Ao longo da década de 60 e 70, saiu de cena o clássico “até que a morte
nos separe” e ganhou espaço um novo tipo de relação conjugal, na qual as
pessoas se autorizavam a romper a promessa de se manterem juntas até a morte.
O divórcio, ao perder sua nódoa de vergonha, amainou o significado que tinha até
então de fracasso de um projeto, assim como os filhos de pais separados
deixaram de carregar este estigma.
O direito ao divórcio foi uma conquista e uma vitória que, no entanto, vem
se banalizando ao se tornar a solução natural de casais que se deparam com as
primeiras dificuldades da vida a dois, de modo que, em nossos dias, o casamento
acaba sendo compreendido como um mero encontro temporário entre dois
indivíduos em busca de relações íntimas ou realização sexual. Essa característica
de transitoriedade vem caracterizando, cada vez mais, a família contemporânea
ou pós-moderna, fruto de divórcios, separações e recomposições conjugais.
O casamento contemporâneo deixou de se fundamentar na junção de dois
patrimônios ou no exercício de uma atividade profissional comum. Seu
fundamento atual é, como vimos, o amor que varia com o tempo, visto que esse
sentimento parece ter se transformado em problema, pois a tendência dos casais
é ficarem juntos apenas enquanto tudo vai bem. O sujeito de nossas sociedades
liberais, com a onipotência que o caracteriza, ao procurar a satisfação e o prazer
imediato, torna-se incapaz de renúncias exigidas pela constituição de uma família.
O primado do eu” sobre o “nós conjugal” desvaloriza a fidelidade e a constância
em prol da auto-realização das potencialidades, colocando a existência conjugal
em novos termos. Não se trata mais de o indivíduo se instalar na vida a dois, mas
de vivê-la sabendo que o outro é tem a liberdade de reivindicar, a qualquer
34
momento, sua alteridade radical, deixando para trás a época em que a
cumplicidade cultivada ao longo dos anos fazia os cônjuges acreditarem que
envelheceriam juntos, partilhando as lembranças de uma vida.
No mundo dessa nova conjugalidade, Bauman (2003/2004) afirma que o
amor se tornou líquido, ou seja, o principal infortúnio da atualidade passou a ser
os relacionamentos que escorrem como água. Em seu livro Amor líquido
(2003/2004), o autor menciona que a furiosa individualização faz os
relacionamentos parecerem bênçãos ambíguas, visto que as pessoas são
induzidas pela mídia a agirem como controles remotos, ou seja, mudando de uma
relação para outro como se estivessem trocando de canal. Segundo ele, o sujeito
pós-moderno vive numa constante oscilação entre sonho e pesadelo, perdendo a
noção de quando o primeiro termina e o segundo começa, pois, na maior parte do
tempo, esses dois avatares (sonho e pesadelo) coabitam dentro de sua
consciência em diferentes níveis.
As frustrações provocadas pelos relacionamentos, segundo Bauman
(2003/2004) estão entre os principais motores do atual “boom do
aconselhamento”. O sujeito contemporâneo, cada vez mais incapaz de tomar
decisões, em constante oscilação entre atração e repulsão, esperança e temor,
acaba recorrendo aos supostos especialistas de relacionamento humanos, sempre
dispostos a oferecerem seus préstimos em troca de honorários. Esperam ouvir
deles algo como:
“A solução do problema da quadratura do rculo: comer o bolo e ao mesmo
tempo conservá-lo; desfrutar das doces delícias de um relacionamento
evitando, simultaneamente, seus momentos mais amargos e penosos; forçar
uma relação a permitir sem desautorizar, possibilitar sem invalidar, satisfazer
sem oprimir” (BAUMAN, 2003/2004, p. 9).
A essência do que ensinam estes especialistas, de acordo com Bauman, é
que o compromisso em longo prazo é uma armadilha a ser evitada. Exemplo disso
é o conselho que um especialista aos leitores de determinada revista: “Se você
deseja relacionar-se mantenha distância; se quer usufruir do convívio, não assuma
nem exija compromissos. Deixe todas as portas abertas” (BAUMAN, 2003/2004,
p.10). Dessa forma, o especialista afirma que as pessoas, ao se comprometerem,
35
estarão comprometendo outras possibilidades românticas talvez mais satisfatórias
e completas.
A explicação para esse conselho é que um relacionamento indesejável pode
acabar se tornando impossível de romper. As relações devem ser virtuais a fim de
se adequarem ao líquido cenário da vida moderna, em que se espera e se deseja
que possibilidades românticas surjam e desapareçam numa velocidade crescente
e em volume cada vez maior, aniquilando-se mutuamente e tentando impor aos
gritos a promessa de ser a mais satisfatória e a mais completa. Diferentemente
dos relacionamentos presenciais autênticos, originais, pesados, lentos e confusos
é fácil entrar e sair dos relacionamentos virtuais inteligentes, limpos, ceis de
usar, compreender e manusear e que, além disso, permitem manter no campo de
visão a tecla “deletar”, para ser utilizada em casos de emergência.
Para Bauman, os relacionamentos virtuais estão obedecendo à Lei
Gresham, que consiste no estabelecimento de um padrão que orienta todos os
outros relacionamentos. Os compromissos tornam-se, dessa maneira,
irrelevantes, pois quando as relações deixam de ser honestas e parece improvável
que se sustentem, as pessoas se inclinam a substituir as parcerias pelas redes. A
razão para esta troca é que as redes permitem aos indivíduos manterem-se
conectados em alta velocidade, porém, embora isso possa ser uma aventura
estimulante, com o tempo vira uma tarefa cansativa:
“Mais importante, a desagradável incerteza e a irritante confusão, supostamente
escorraçadas pela velocidade, recusam-se a sair de cena. A suposta facilidade
do desengajamento e do rompimento (a qualquer hora) não reduzem os riscos,
apenas os distribuem de modo diferente, junto com as ansiedades que
provocam” (2003/2004, p.13).
Dessa forma, a família vive, hoje em dia, nas sociedades liberais, um
momento paradoxal. Se, por um lado, a família se apresenta totalmente
desestruturada ou desordenada, pois, para o indivíduo pós-moderno constituir
família é sinônimo de sofrimentos diários devido à restrição da liberdade individual,
por outro lado, ela parece ser uma das principais reivindicações daqueles que,
durante séculos, foram excluídos dela, os homossexuais, como se dessa maneira
desejassem eliminar de suas memórias os traços de sofrimentos passados. Cada
36
vez mais, em nossas sociedades ocidentais, homens e mulheres homossexuais
vêm manifestando o desejo de se normalizar, constituir família, reivindicando o
direito ao casamento, à adoção e à procriação assistida. Esse desejo por essa
instituição por parte estes homens e mulheres mostra de modo negativo ou
positivo, a ausência desoladora ou a presença sufocante da família, que
permanece inscrita, indelevelmente no espírito, na alma, na identidade, na vida
destes indivíduos.
O presente capítulo teve por objetivo chamar a atenção para as
transformações pelas quais passou a família moderna até entender o estado de
suposta desordem no qual ela se encontra em nossos dias, fruto de
transformações necessárias, mas freqüentemente desordenadas tais como o
feminismo e a revolta da juventude. Constituir família implica, no entanto, na perda
de uma parte da liberdade individual e aceitação de certas responsabilidades que
obrigam o sujeito a se tornar adulto. Entendemos por isso que ele aceite
abandonar a moratória social, aceite a realidade, por mais que ela lhe possa
parecer com sua parte de depressão nervosa, overdoses, atentados suicidas,
terrorismo etc. É preciso primeiro reconhecer o mundo tal qual ele é para poder,
em seguida, criticá-lo e tentar forjar e conquistar a própria autonomia e lugar por
um mundo mais autônomo, pois, como afirma Castoriadis (1997/2002), não
indivíduo autônomo num mundo heterônomo e vice-versa.
A família foi e continua sendo produto da ação humana e não de forças
sociais abstratas, razão pela qual continua, apesar de tudo, sendo o lugar onde o
ser humano pode se constituir enquanto tal. Tal reflexão é o que tentarei ilustrar
no capítulo seguinte através da análise de dois filmes que retratam de certo modo
a configuração da crise familiar: Um grande garoto (2002) e Casamento Grego
(2002).
37
Capítulo II
O imaginário social da família
“Naquela época o povo estava disposto a ser controlado. Daria qualquer coisa em
troca de uma vida tranqüila. Desde então, começamos a dirigir. Decerto não foi
muito bom para a verdade. Mas foi ótimo para a felicidade. Não se pode tirar
algumas coisas do nada. A felicidade tem seu preço. Você tem que pagar por ela,
Watson – pagar porque está interessado demais na beleza. Eu estava interessado
demais na verdade; por isso, também paguei”.
Aldous Leonard Huxley
Pretendo, neste capítulo, ilustrar cenas da família contemporânea a partir
de dois filmes recentes, Casamento Grego (2002), norte-americano, e Um grande
garoto (2002), britânico. A escolha do corpus cinematográfico se deu em virtude
de acreditar que os filmes são mitologias, ou seja, “construções sociais que m
por objetivo realizar o desejo imemorial da humanidade de reproduzir o real”
(Barthes, 2003).
Os mitos, no sentido proposto por Barthes, surgiram a partir do momento
em que o primeiro homo sapiens começou a se comunicar e a utilizar técnicas
para recriar o mundo em que vivia, tais como pinturas rupestres. Exemplos de
técnicas posteriores são a perspectiva nos quadros renascentistas, as fotografias,
os filmes, entre outras.
Pensando deste ponto de vista, tudo pode ser mito? A resposta é “sim”,
pois, segundo Barthes (2003), teórico da semiótica, assim como o universo é
infinitamente sugestivo, cada objeto do mundo pode passar de uma existência
fechada a um estado oral, aberto à apropriação da sociedade, uma vez que não
leis que impeçam as pessoas de falarem algo. O mito é, portanto, uma
38
mensagem que pode tomar forma de fotografia, cinema, reportagem, esporte,
espetáculos, publicidade etc.
Na ordem da percepção, a imagem e a escrita, por exemplo, não solicitam o
mesmo tipo de consciência, e a própria imagem propõe diversos modos de leitura.
A imagem se tornou, na pós-modernidade, mais imperativa do que a escrita, uma
vez que impõe a significação de uma só vez, sem analisá-la ou dispersá-la. Esta
síntese significativa faz com que a imagem, nos tempos atuais, passe a ter um
valor próprio, completo, postulando um saber, um passado, uma memória, uma
ordem comparativa de fatos, idéias e decisões. Retomando as palavras de
Barthes (2003), vale salientar que:
“O sentido passa a ser para a forma como que uma reserva instantânea de
história, como uma riqueza submissa, que é possível aproximar e afastar numa
espécie de rápida alternância: é necessário que a cada momento a forma possa
reencontrar raízes no sentido e se alimentar; e, sobretudo, é necessário que
possa se esconder nele. É esse interessante jogo de esconde-esconde entre o
sentido e a forma que define o mito” (p. 209).
Esse jogo de esconde-esconde entre sentido e forma é que faz com que o
indivíduo consuma o mito inocentemente, pois o como um sistema indutivo e
não como um sistema semiológico. O sujeito se em uma espécie de processo
causal em que o significante e o significado são relações naturais. Dizendo de
outra forma, “todo o sistema semiológico é um sistema de valores; ora, o
consumidor do mito considera a significação como um sistema de fatos: o mito é
lido como um sistema factual, ao passo que é apenas um sistema semiológico”
(BARTHES, 2003, p. 223).
Nos tempos atuais, o sistema semiológico mais consumido são os filmes,
como bem pontuou o historiador Elísio dos Santos (2000). Desde a sua invenção
até nossos dias, os filmes são o a manifestação artística e comercial mais popular,
sendo que o número de seus espectadores não cessa de crescer, principalmente
se levarmos em conta fora o cinema os outros canais de circulação que os
divulgam: a televisão, vídeo, DVD e internet.
Hoje, com ou sem efeitos de alta tecnologia e a despeito do canal utilizado
para a distribuição de filmes, o cinema continua encantando as platéias com a sua
39
magia de fazer o público sonhar coletivamente, “um sonho com a duração do filme
que propõe divertir, entreter, falar de mundos e personagens irreais, mas também
desvelar criticamente a realidade que cerca o espectador” (SANTOS, 2000, p. 31).
Partindo desse pressuposto, pretendo analisar a família contemporânea por
meio dessas mitologias que são os filmes. Em função dos processos de
globalização, as películas freqüentemente nos devolvem, pelo menos no que diz
respeito ao Ocidente, a imagem de uma família diferente da tradicional burguesa,
conjugal ou restrita, fundada no amor romântico e sancionada pelo casamento, na
reciprocidade dos sentimentos e no desejo. Este modelo de instituição podia ser
visto de forma majoritária adécadas atrás, em filmes e em livros cujas temáticas
giravam em torno dos sofrimentos causados por traições, separações, divórcios e
crianças traumatizadas pelos conflitos familiares.
A atual produção cinematográfica parece retratar uma família diferente da
tradicional. A instituição apresentada por esses mitos pós-modernos ganhou
novas formas, além da tradicional, podendo ser constituída por mães solteiras, por
casamentos entre indivíduos do mesmo gênero etc. Além disso, uma divisão
cada vez menos clara entre as funções maternas e paternas, que se mesclam. É
como se encontrássemos nos filmes a imagem dessa família em desordem que
Roudinesco definiu como sendo a união temporária de dois indivíduos em busca
de relações íntimas ou satisfação sexual, valorizando cada vez mais o espaço
privado em detrimento do publico.
É possível dividir os filmes que tratam da família pós-moderna em dois
tipos: o primeiro reflete nostalgicamente sobre a família clássica, organizada em
torno dos sagrados laços do casamento, da autoridade paterna e da velhice
depositária de tradições e o segundo elogia as novas formas de família. Ambas as
tipologias têm um filme representante que será analisado nessa dissertação.
Casamento grego
2
pode ser classificado como o primeiro tipo de filme, que
representa a visão utópica sobre a família. No subitem seguinte, descreverei as
2
Casamento grego (My Big Fat Greek Wedding) recebeu uma indicação ao Oscar, na categoria de melhor
roteiro original. Além disso, ganhou duas indicações ao Globo de Ouro nas seguintes categorias: melhor filme
40
agruras de um patriarca tradicionalista grego que tenta impedir de várias maneiras
o casamento de sua filha com um noivo pós-moderno.
2.1 Casamento Grego
O enredo de Casamento Grego (2002) tem como foco Fourtoula Portokalos
(Toula), mulher de trinta anos descendente de uma família tradicional grega. Ela
se apaixona por Ian Miller, que, entre diversos defeitos apontados pelos membros
da família da namorada, tem a falha de não ser grego. Este fato se mostra
suficiente para Ian não ser aceito pelo clã Portokalos, formado pelos pais de
Toula, seus irmãos e demais parentes, entre os quais 21 primos de primeiro grau.
Parte do filme exibe as peripécias de Toula na tentativa de fazer com que
seu clã aceite sua escolha amorosa, apesar de esta ir contra as tradições
familiares que seus irmãos parecem ter aceitado mais facilmente. Sua irmã mais
velha, Athena, por exemplo, cumpriu o mandato familiar e cultural do clã, tendo se
casado com um grego e dado os esperados herdeiros à família. Inclusive seu
irmão mais novo parecia pouco rebelde, pois aparentemente não via nada de
errado em reduzir sua vida ao trabalho e à procura de garotas gregas virgens para
se casar. Coube a Toula introduzir algumas mudanças ao clã, sendo uma delas a
aceitação de um noivo xeno, ou seja, não grego. A luta de Toula para tornar seu
amor palatável à família nos permitirá abordar os conflitos entre indivíduo e
sociedade, tradição e modernidade.
A vida da família Portokalos gira em torno do restaurante familiar Dancing
Zorbas, nome que remete ao livro de Kazantzakis e ao filme, ambos com o mesmo
título, Zorba, que significa “o grego”. A organização do restaurante lembra as
oficinas que perduraram até a Revolução Industrial, pois todos os membros da
família ali trabalharam ou trabalham, tendo aprendido o ofício com a geração
anterior, além de a produção ser toda familiar e artesanal, sem recorrer à
de comédia, trilha sonora e atriz (Nia Vardalos). Concorreu também ao Independent Spirit Awards, na
categoria de melhor revelação (Nia Vardalos) e a uma indicação ao MTV Movie Awards, na categoria de
melhor revelação feminina (Nia Vardalos).
41
produção industrial. A administração financeira, igualmente familiar e tradicional,
lembra um sistema familiar de produção.
A postura dos pais de Toula nos remete aos artesãos do século XIX, tal
qual descritos pela historiadora Perrot, em A história da vida privada IV
(1950/1991), que consideravam seus negócios como segredos de família e
contratos de casamentos a alianças e diversificação das firmas. Isso pode ser
exemplificado pelos primos e pela irmã de Toula, que se casaram com pessoas da
comunidade grega, donas de comércio, aprovados pelos patriarcas das famílias
dos cônjuges.
O patriarca da família Portokalos, Gus, é um típico chefe de família
tradicional grega que, o acreditava que qualquer mal, de psoríase a
envenenamento, podia ser curado com limpa-vidro (Windex), mas tinha certeza de
que garotas direitas gregas deviam se casar com rapazes gregos e ter filhos
gregos. Além disso, que gregos deveriam ensinar não gregos a serem gregos.
As concepções de Gus se assemelham às dos pais do século XIX,
descritos por Perrot (1950/1991), que acreditavam que seus filhos deveriam
tornar-se chefes de família, dedicando-se ao Estado, à ciência, ao trabalho,
enquanto suas filhas destinavam-se a serem esposas e terem suas vidas
resumidas à moralidade objetiva da família.
O pai de Toula designava, assim como os seus antecessores, muitas
tarefas a seus filhos, vigiava suas relações e mostrava uma grande reticência a
respeito das amizades extra-familiares que estes pudessem vir a estabelecer,
ainda que anódinas, de modo a tentar controlar as relações de seus filhos e o
futuro deles. Tais táticas burguesas, que ocorriam até meados da década de 50,
segundo o historiador Proust, em A história da vida privada V (1987/2003), tinham
como objetivo manter o controle sobre a vida privada das pessoas. Por meio de
casamentos viabilizados pela prática de apresentações, a entrada de um cônjuge
indesejado era dificultada, uma vez que o casamento tornava-se assunto de
família.
42
Nesta família patriarcal imperava o respeito pelos mais velhos,
considerados depositários privilegiados da experiência a ser transmitida aos mais
jovens. A matriarca da família Portokalos, trazida da Grécia por Gus para viver
com o resto do clã num bairro de classe média de Chicago (Estados Unidos da
América), encarrega-se da emissão de sua experiência, contando aos netos
histórias sobre a Grécia, país mítico do qual ela e o marido emigraram e cuja
presença tentam resguardar de diferentes maneiras, por exemplo através da
arquitetura da casa que construíram para si em formato partenom, com colunas
gregas e estátuas de deuses do Olympo, além da bandeira nacional hasteada no
jardim.
Entre outros fatores, o formato da residência dos Portakolos contribuiu para
que Toula, desde pequena, sentisse-se diferente das outras meninas americanas
de seu bairro, loiras e delicadas, com as quais sonhava parecer-se. Toula gostaria
de ser igual aos outros moradores de seu bairro, mas, aparentemente, tudo a
diferenciava: aparência física, casa, comida, escola. Enquanto suas colegas
americanas eram loiras, comiam pão de forma e estudavam no Brownie's, o
colégio do bairro, ela era morena e tinha costeletas, comia moussaka e estudava
na escola grega, para que pudesse escrever uma carta em grego para sua futura
sogra.
Por um lado, a família de Toula a educava como mandava a tradição,
fazendo de tudo para que ela continuasse a ser grega, embora vivesse nos EUA.
Por outro lado, Toula sonhava em ser americana como suas vizinhas, o que para
ela significava ser bonita e feliz, como ela suponha que as outras fossem.
Entendia que seu sonho só poderia se tornar realidade se ela conseguisse fugir do
destino que sua família havia traçado para ela, mas não via como poderia realizar
tal projeto, pois cada vez que dava um passo nessa direção, por menor que fosse,
e tentava mudar de vida, seu pai perguntava-lhe porque queria abandoná-lo. A
incipiente autonomia da filha não o magoava como o ameaçava, visto que
interpretava o desejo de sua filha de adotar os hábitos norte-americanos como um
abandono, não só das tradições, mas dele próprio.
43
Antes de prosseguir, talvez valha a pena ressaltar a justeza das percepções
de Taylor (1994) quando afirma que um indivíduo, para perceber a si mesmo e a
sua individualidade, depende de estruturas cognitivas, esquemas corporais,
afinidades comuns e outras qualificações inscritas num quadro que emerge no
decurso de interações com os membros de seu grupo e de outros grupos sociais.
Em outras palavras, pode-se afirmar que foi a interação de Toula com modelos
identitários diferentes do seu que a fizeram se sentir diferente, estrangeira, e
despertaram nela o desejo de mudança, descortinando outras formas de ser e
viver.
Viver em um país estrangeiro pode ser um ônus ou uma vantagem. O
estrangeiro, ao mesmo tempo, atrai, repele e fascina. Não é, pois, por acaso que o
encontro com o estrangeiro e a percepção de si como estrangeira tenham levado
a personagem central a questionar sua identidade, comparando seus valores e
crenças com as de seus vizinhos e questionando sua própria forma de ser e viver.
Esse questionamento levou Toula a entrar em conflito com os seus
parentes, conflito de gerações ou conflito cultural poderíamos nos perguntar?
Provavelmente um pouco de ambos. Toula vivia entre dois mundos: o familiar,
ainda fortemente baseado na tradição, e o social, obedecendo às exigências do
presente. Dessa forma, o conflito geracional tomou, na maioria das vezes, a forma
de um conflito cultural. A relação de Toula com sua e, Maria Portakolos, ilustra
o entrecruzamento desses dois tipos de conflito, como veremos a seguir.
A mãe de Toula que, no melhor estilo de uma sociedade patriarcal,
parecera sempre concordar em tudo com o chefe de família, num determinado
momento se mostra descontente com as resoluções de seu marido e resolve
convencê-lo a autorizar a ida da filha para a universidade. Tarefa nada cil, visto
que, nessas famílias, as filhas eram educadas para se casarem, procriarem,
cuidarem da casa e dos filhos, freqüentarem a igreja. Terem uma profissão não
era uma atividade presente nessa lista, portanto a ida de Toula para a
universidade não fazia parte dos projetos do pai dela. Podemos imaginar que, ao
defender o desejo da filha de estudar e ter uma vida diferente daquela que ela
44
própria tivera, a e de Toula estaria realizando, por procuração, algo que ela
desejara para si mesma, mas não tivera condições de realizar.
Parece-nos interessante retomar a fala da mãe de Toula na hora do embate
com o marido para defender os interesses da filha. Maria é uma dona-de-casa que
trabalha muito, apesar de se tratar de um trabalho que não aparece e que,
portanto, não é valorizado. Sua fala começa tentando tornar visível o invisível, ao
explicitar para o marido que ela não dirige o restaurante, cozinha, limpa a casa,
lava a roupa, aulas na igreja, como criou três filhos e que faltava ajudá-lo a
amarrar os sapatos. Seu monólogo termina quando ela se dirige à filha e fala que
por mais que o marido seja a cabeça da casa, a mulher é o pescoço e ela vira a
cabeça pra onde quiser.
A postura de Maria indica três aspectos. Em primeiro lugar, o fato de as
mães apostarem nos estudos das filhas aponta para a possibilidade de essas
enveredarem por caminhos diferentes que aquelas foram obrigadas a seguir,
devido às tradições. Em segundo lugar, parece-me mais fácil acreditar em um
fator de mobilidade social, tal qual os estudos, do que em transformações do lugar
de esposa e mãe. Por fim, em terceiro lugar, Maria demonstra que o poder
manifesta-se também nas entrelinhas.
Após a ajuda materna, Toula investe nos estudos que para ela representam
não esperança na mobilidade social, como lhe permitem romper com o seu
destino substancial na moralidade objetiva da família, como diria o historiador
Braverman (1987). Toula esperava, por meio de seus estudos universitários,
entrar em contato com outro mundo e outros modelos identitários que a ajudariam
a se libertar do domínio absoluto que sua família exercia sobre ela. Ao entrar na
universidade, Toula deu um passo importante nesse sentido, abrindo caminho
para que sua vida não se restringisse à reprodução do destino das mulheres de
sua família. Ao contrário de sua mãe e sua irmã mais velha, que se viram
obrigadas a pautar suas vidas em torno da família dando a luz, cuidando das
crianças, ritmando suas atividades em função dos filhos e ajudando no trabalho
em estabelecimentos familiares controlados pelos homens da família, Toula pôde
45
aspirar outra coisa, não se sentindo mais fadada a assumir um trabalho não
remunerado no restaurante da família.
Após graduar-se, Toula começa a trabalhar na agência de turismo de seu
tio Taki, que é administrada por sua tia Voula. Mesmo Toula sendo da família, os
tios aceitam contratá-la após conversarem e obterem a anuência do patriarca
Portokalos. O primeiro passo de Toula pela busca de uma maior autonomia foi
entrar na universidade; o segundo foi trabalhar assalariadamente em um local que
não o restaurante familiar; o terceiro, e talvez mais importante passo, foi dado ao
se apaixonar por Ian, um professor norte-americano que trabalha numa escola
perto da sua agência.
Ian parece ser o avesso da família Portakolos, pois é filho único de uma
família pequena e pouco religiosa que nada conhece da cultura grega. Assim, é
encarado como um forasteiro pela família de Toula, pouco habituada a conviver
com o diferente. Toula decide defender seu namoro, que se desenrolou no ritmo
dos romances de folhetim: namoro, oposição do c Portakolos, sofrimento,
convencimento e finalmente a vitória do amor.
O patriarca Portakolos não aprova a escolha da filha, reclama de tudo,
principalmente de Ian não ter pedido permissão para namorar sua filha e de ele
não ser grego, ou seja, trata-se de um xeno, um estrangeiro. Esse comentário de
Gus remete à xenofobia, ao medo do estrangeiro, como algo universal. Era de se
esperar que uma família de imigrantes como a Portakolos, ela própria uma minoria
nos Estados Unidos, que abandonou seu país de origem pudesse ser menos
xenófoba e mais grata para com o país que a acolheu, no entanto, mostra-se tão
xenófoba como outra qualquer e opta por viver confinada entre quatro paredes,
cercada exclusivamente por gregos por acreditar que assim pode preservar sua
identidade e se proteger do diferente, vivenciado como algo amedrontador. De
acordo com Taylor (1994), Gus teme o namorado de sua filha por vê-lo como uma
ameaça à estabilidade das crenças e valores da sua família. O medo de
rompimento com o seu mundo faz com que ele veja Ian como uma imagem
46
depreciativa, discriminatória e agressiva contra sua cultura, seus valores e as
metas que estabelecera para si próprio e sua família.
Tentando defender sua família contra o xeno que põe em risco a
integridade de seu ambiente, Gus tenta apelar para a tradição do casamento
arranjado, apresentando uma série de pretendentes a Toula que recusa todos e
força seu pai a aceitar sua escolha. A contrapartida é que o futuro noivo aceite ser
batizado na Igreja Ortodoxa Grega, ou seja, se converta.
A demanda paterna para que o noivo de Toula seja batizado na Igreja
Ortodoxa pode ser entendida como uma demanda de reconhecimento da
identidade ou do direito à diferença, na qual se busca uma reparação dos atos
cometidos contra um determinado grupo étnico. A reparação, no caso, é contra a
descaracterização da comunidade que tem posto os seus valores em cheque, ou
seja, a coesão do grupo ao aceitar Ian com uma cultura e crenças diferentes como
a dessacralização do casamento e das tradições, que são defendidas de forma
quase que religiosa pelos gregos. Essa reparação, na forma de batismo, tem
como efeito, segundo o sociólogo Semprini (1999), apagar o mal e a injustiça que
foram infligidos ao grupo étnico, a fim de que esse possa reconstruir sua
identidade fragmentada ou descaracterizada.
Nesse caso é possível afirmar que o batismo na Igreja Ortodoxa é uma
prova dada pelo noivo de que o casamento continua sacro, pois mantendo seus
aspectos religiosos e políticos, não se reduz a um mero contrato civil. Para o clã
Portokalos, assim como ocorria nas demais famílias de meados do culo XX
retratadas por Proust (1987/2003), casar-se significava formar um lar e lançar as
bases de uma realidade social definida pela coletividade. Em outras palavras, para
os Portokalos as pessoas deveriam se casar para dar sustento, auxílio e deixar
herança para os filhos. Outro fator que explica a importância dos valores familiares
para os gregos apresentados no filme é o fato de eles serem julgados em função
do papel que desempenham para o êxito da sua família.
Após o batismo grego de Ian, o filme mostra a oposição entre os ritos da
família nuclear do noivo, que comemora o noivado com um jantar privativo, e a
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comemoração da família tradicional da noiva, que envolve a família extensa, ou
seja, participam os pais do noivo e todo o clã Portokalos. Pode-se afirmar que a
comemoração privativa representa a dessacralização do casamento, sendo vista
como uma formalização de uma relação entre dois indivíduos, e que a festa de
noivado oferecida pelo clã Portokalos se assemelha às festas indígenas à la
quarup, nas quais celebra-se, além da união, o fortalecimento da identidade do
grupo pelo casamento.
O casamento segue todas as normas de um casamento clássico: véu,
grinalda, limusine na porta, arroz na cabeça. Durante a festa, o pai da noiva
anuncia sua recente descoberta a respeito da família de seu genro: a raiz da
palavra Miller, sobrenome de Ian, é milo, que, em grego, significa maçã. Sendo
que Portokalos (portokali), sobrenome de Toula, significa laranja, ambas as
famílias têm nome de fruta e, a partir da constatação dessa semelhança, Gus
conclui que as duas famílias são gregas.
Após as bodas, o casal ganha uma casa do patriarca Portokalos que se
situa ao lado da casa dele. Este ato pode parecer inocente se pensarmos que o
dote cedido por Gus é uma maneira de fornecer meios para a nova família formar
um novo lar, porém, por outro lado, parece existir o desejo de manter as regras de
residência, descritas por Lévi-Strauss, em Estruturas elementares do parentesco
(1976), que consistiam em colocar os recém-casados perto dos pais do noivo ou
da noiva para garantir a manutenção das redes pessoais. Em outras palavras o
dote oferecido pelo patriarca grego tem por objetivo manter as relações familiares
que definem os indivíduos que as englobam para que a identidade grega não se
perdesse com a inclusão daqueles que não pertencem à comunidade e, dessa
maneira, o meio social se torna inseparável das coisas que nele habitam.
Corte e ação. Algumas cenas depois Toula aparece levando sua filha para
a mesma escola grega que ela freqüentara. Assim como ela, sua filha reclama e
diz que quer estudar na Brownie´s, ao que Toula responde: Eu sei, eu sei, mas
lhe prometo que quando você crescer vai poder se casar com quem quiser”. Essa
48
fala de Toula indica que ela se apropriou da herança paterna, tornando-a sua para
transmiti-la a partir de sua própria experiência vivida.
Esse final do filme Casamento grego transmite a impressão de que não
porque temer, como o fazem os alarmistas, a destruição da instituição familiar ou
de determinadas culturas. As formas familiares mudam ao longo do tempo, mas
como lembram Lash (1977/1991) e Castoriadis (1987/1992), essa instituição será
sempre capaz de expressar a consciência coletiva de um grupo sobre os seus
membros, ou seja, um conjunto de valores morais compostos por similitudes tais
como idioma, crenças, costumes, território que influenciam no comportamento dos
membros da família no passado, presente e futuro. Nos termos de Lasch
(1977/1991), a família:
“Não só confere normas éticas, proporcionando à criança sua primeira instrução
sobre as regras sociais predominantes, mas também molda profundamente seu
caráter utilizando vias das quais nem sempre ela tem consciência. A família
inculca modos de pensar e de atuar que se transformam em hábitos. Devido à
sua enorme influência emocional, afeta toda a experiência posterior da criança”
(p. 25).
Já Castoriadis nos lembra, em As Encruzilhadas do Labirinto II (1987/1992),
de que:
“Somos todos em primeiro lugar, fragmentos ambulantes da instituição de nossa
sociedade, fragmentos complementares, suas partes totais, como diria um
matemático. A instituição produz indivíduos conforme suas normas, e estes não
apenas são capazes, mas de certo modo obrigados a, reproduzir a instituição. A
lei reproduz os elementos de tal modo que o próprio funcionamento desses
elementos incorpora e reproduz – perpetua a lei” (p. 230).
Considerando as reflexões de Castoriadis, é possível afirmar que, ao longo
do filme, acompanhamos Toula circulando entre autonomia e heteronímia, ora
tentando criar suas próprias leis, ora tendo que obedecer rigorosamente às leis
que vêm do Outro, pois, ao mesmo tempo em que tenta encontrar um caminho
singular, vê-se conclamada a reproduzir cegamente os valores familiares
herdados. A impossibilidade de uma ruptura total com a cultura grega se deve ao
fato de Toula ser formada por um conjunto de significações que se manifestam no
seu modo de pensar, agir, vestir-se etc. Por mais inovadora que ela tenha sido ao
freqüentar a universidade, formar-se, ter um trabalho assalariado e casar-se com
um xeno, parte deste magma de significações que a originou permaneceu, ou
seja, no final, Toula reproduz um pouco do ser grego aos seus filhos.
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A seguir, por meio do filme inglês Um grande garoto (2002), abordarei outro
tipo de família, classificada como a família da pós-modernidade, sem hierarquias,
sem autoridades, baseada na fraternidade e dissecada pelo discurso da
especialidade.
2.2 Um grande garoto
O filme About a Boy (2002) ou Um grande garoto (título em português)
retrata a realidade da família pós-moderna. Adaptação do livro com título homônio
do escritor britânico Nick Hornby, de 1998, o filme conta a história de Will, um
homem de trinta oito anos, um kid adult, que inventa ter um filho para poder
freqüentar as reuniões de pais e mães solteiros, constituídas majoritariamente por
mulheres. Tais reuniões são, portanto, um lugar aparentemente ideal para Will
conhecer novas mulheres e estabelecer facilmente relacionamentos com data
para terminar o momento em que as mães solteiras começam a falar sobre
compromisso. Entre seus diversos casos amorosos, o protagonista se envolve
com Fiona, uma mulher separada cujo filho Marcus, um garoto de 12 anos, vai
transformar sua vida.
O filme não é inteiramente fiel ao livro, pois omite algumas informações
importantes, tais como a origem das personagens principais, Will, Marcus e Fiona.
Objetivando explicar determinados aspectos do enredo, eventualmente vou me
remeter a trechos do livro que deu origem ao filme.
É no livro que temos acesso à história de Marcus. O menino nasceu em
Cambridge, na Inglaterra, filho de um casal que não oficializou sua relação. A mãe
dele, Fiona, foi abandonada pelo pai quando o menino tinha 12 anos de idade. A
separação é difícil, principalmente para Fiona que, a partir desse momento, vê-se
obrigada a sustentar a si e ao seu filho. Terapeuta musical, ela aceita uma
proposta de trabalho em Londres, na esperança de mudar de cidade para
reconstruir sua vida mais facilmente, além de poder conhecer novas pessoas.
Assim, Fiona tenta convencer seu filho de que a mudança será boa para ambos e
que ele também poderá viver novas aventuras; o garoto não gosta da proposta,
50
mas a aceita por não ter outra opção.
Fiona tenta começar um novo relacionamento afetivo, mas não tem
sucesso, pois, apesar da quantidade de namorados, uns são mais insatisfatórios
do que os outros. Ressentida com os homens em geral, ela tenta impor ao filho
seus valores alternativos, impedindo-o de ter acesso a divertimentos tais como
assistir televisão, ouvir certas músicas como as do rapper Snoop Doggy Doggy,
“um machista” nos dizeres da mãe, ou jogar videogame. Ao invés disso, Marcus
deve ler livros e ater-se às músicas que soem bem aos ouvidos maternos, como
Joni Mitchell e Bob Marley.
A respeito da educação dada por Fiona a Marcus alguns comentários
podem ser tecidos, visto que essa parece ser uma questão importante em nossos
dias, especialmente quando a família tenta transferir a responsabilidade pela
educação para a escola e essa tenta devolvê-la à família. Fiona parece saber que
educar uma criança é transmitir-lhe valores e é o que ela faz ao tentar inculcar no
filho o gosto pela leitura e pela boa música, insistindo para que ele não se
satisfaça com o que parece mais fácil. A questão é a forma como ela o educa,
pois, ao estabelecer com o filho uma relação simbiótica, trata-o como se fosse um
objeto de sua propriedade, algo inerte, sem desejos próprios, e Fiona acaba
isolando-o dos garotos da sua faixa etária dele e da comunidade em que vivem.
A educação peculiar recebida por Marcus, na contramão dos valores da
cultura de massa na qual está inserido, assim como sua aparência andrógena que
poderia ser considerada usual aos adolescentes em plena mutação, mas não o é
na medida em que está aliada ao corte de cabelo e roupas hippie dos anos 60, o
torna diferente dos demais e faz dele alvo de preconceito na escola, o que dificulta
sua possibilidade de fazer amigos.
A adolescência, período no qual se deixou de ser criança e ainda não se
é adulto, propicia a vida em grupo e leva os adolescentes a se unirem pela
semelhança, fazendo com que se vistam com as mesmas roupas, ouçam as
mesmas músicas, andem sempre em bando e falem um dialeto próprio. Marcus,
no entanto, era um adolescente diferente dos demais, pois não se vestia de
51
maneira sui generis como não tinha o direito de gostar daquilo que os outros
gostavam, muito menos de brincar com videogame como seus colegas. Tudo isso
fazia dele alvo de preconceito, que, segundo Sarlo (2000), o destino de um
adolescente como esse podia ser a exclusão, uma vez que as comunidades de
adolescentes, para esconderem a própria insegurança e manterem a coesão
interna do grupo, procuram reprimir o diferente. Dessa maneira, Marcus torna-se
motivo de chacota e bode expiatório.
Marcus tem consciência de que a aversão que seus colegas têm para
consigo não vem apenas do fato de ele ser diferente dos demais, uma vez que
pensa “toda criança é diferente”, mas pela visibilidade dessa diferença. Além
disso, Marcus considera sua mãe esquisita pela maneira de se vestir, de se
alimentar e usufruir a vida. O menino tenta entender as escolhas maternas, mas
ao invés responder às perguntas do filho, Fiona discursa a respeito do que acha
certo e errado, reafirmando sempre que Marcus não tem autonomia para fazer
coisas diferentes das que ela deseja. Exemplos disso ocorrem quando Marcus
pergunta o motivo de eles serem vegetarianos e Fiona responde que era ela quem
cozinhava e, portanto ela quem decidia e a ele cabia apenas comer aquilo que ela
fazia; outro exemplo ocorre quando ele a questiona sobre a maneira de eles se
vestirem e Fiona afirma que as pessoas o deveriam ser julgadas por sua
aparência – seja pelas roupas que vestiam ou pelo seu corte cabelo – nem
tampouco por conta de seus gostos. Por mais que essa afirmativa seja correta,
Fiona não responde ao que o filho lhe pergunta.
Essa é uma das características do diálogo entre Fiona e seu filho, onde a
resposta fica além ou aquém do perguntado. O mesmo ocorre quando ela lhe
anuncia que mudarão de cidade e quando Marcus lhe pergunta o que ela acharia
de ele ir ao McDonald´s. A essa questão, Fiona afirma que ficaria desapontada,
mas espera que ele faça aquilo que acha certo, pois deve pensar por conta
própria, mesmo que desaponte alguém, inclusive ela.
Levando em consideração as esquisitices da mãe e suas próprias
esquisitices, Marcus não se sente bem na escola. O incômodo é tão grande que
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ele prefere ficar em casa ouvindo música. Ele não deixa vidas quanto às suas
dificuldades de adaptação ao afirmar a si mesmo que:
“Existem pessoas que conseguem se divertir por aí. Eu estava começando a
perceber que eu não era uma delas. Eu não me ajustava. Não me ajustava na
minha escola antiga e muito menos na nova. Eu soube que alguns pais
ensinam os filhos em casa, mas minha mãe não faria isto a não ser que eu
pagasse. Porque era só ela e eu e ela tinha que trabalhar. Ela ganha 400 libras
por semana, onde eu iria arrumar esta grana? Se eu fosse como aquele menino
ator, Haley Joel Osment, eu poderia pagar, mas se eu tivesse que ser bom de
teatro, não ia funcionar. Eu era uma droga no palco e odiava ficar de na
frente dos outros. Então, basicamente, tinha que ir para escola” (trecho retirado
de About a Boy).
Nesta fala, podem-se reconhecer sinais de que a vida para Marcus nem
sempre é fácil e que a e, apesar de suas afirmações em contrário, tem grande
dificuldade em viver, trabalhar e cuidar de si e do seu filho. Marcus, ainda que lide
relativamente bem com as intempéries da sua vida, é afetado pelo estado
emocional da mãe, que vive chorando sem razão aparente, fazendo com que o
garoto se sinta impotente por não conseguir ajudá-la ou torná-la mais feliz.
A ação do filme começa na primavera, depois do início do ano escolar,
quando Marcus se encontra com Will, um homem jovem que vive sozinho, mas
não solitariamente, como ele costuma dizer. Sua e falecera cedo e a relação
que mantinha com seus irmãos se rompeu depois da morte do pai, figura central
em sua vida, que sustentara a família durante anos com os royalties de a música
natalina de sucesso Santa's Super Sleigh (O super trenó do Papai-Noel), escrita
em 1938. Seu pai lhe deixou uma boa herança, de modo que Will não precisa
trabalhar. Desde que largara a escola, começara a levar uma vida que julga livre,
sem preocupações, dedicada aos seus hobbies: ouvir música pop, atravessar
Londres de carro, ir ao cinema, comprar CDs e roupas, assistir televisão (jogos,
shows, novelas), ler revistas, cortar o cabelo, beber e consumir drogas como chá
de cogumelos mágicos jogar e conversar em pubs e ir para cama com lindas
mulheres.
Para Will, os homens são ilhas num mundo que o passa de um
arquipélago onde cada qual pode viver segundo seus próprios valores. Segundo
suas próprias palavras:
53
“Cem anos atrás você dependia das pessoas, não havia TV, nem CDs ou DVDs,
nem vídeos ou cafeteiras expressos. Na verdade, eles não tinham nada legal. Ao
passo que hoje você pode se tornar uma ilha paradisíaca. Com os suprimentos
certos e com a atitude certa, você pode ser um imã tropical e ensolarado para
jovens turistas suecas. Eu gosto de pensar que eu sou radical (cool), gosto de
imaginar que sou Ibiza” (trecho retirado de About a Boy).
Will se assemelha ao personagem da obra de Júlio Verne, A Ilha Misteriosa,
o homem-criança que reinventa o mundo, povoa-o, fecha-o e nele se encerra,
coroando esse esforço enciclopédico com a postura burguesa da apropriação
pantufas, cachimbo e lareira enquanto lá fora a tempestade, isto é, o infinito,
uiva inutilmente. Will, assim como Verne, parece um maníaco da plenitude que
não cessa de completar o mundo, de mobiliá-lo, transformá-lo num receptáculo
pleno como um ovo. Procura retrair o mundo, reduzindo-o a um espaço conhecido
e fechado que pode ser habitado confortavelmente a ponto de não necessitar de
ninguém, a não ser dele próprio. Assim como a nave Nautilus, símbolo da clausura
em As mil léguas submarinas, Will tenta fazer da sua vida um perfeito ambiente de
aconchego, iludindo-se com o fato de que, ao assegurar sua auto-suficiência por
meio da posse de certos bens, estaria ao mesmo tempo garantindo o controle da
sua vida.
A cultura contemporânea reforça esse tipo de pensamento. É para esse
modo de ver o mundo que Bucci e Khel chamam a atenção no livro Videologias
(2004), no qual juntam seus conhecimentos de jornalismo e psicanálise para se
debruçarem sobre os mitos contemporâneos propagados pelas mídias, que
representam para eles uma interpretação do imaginário contemporâneo. São as
mídias, na opinião dos autores, as responsáveis pela visibilidade e composição de
sentidos nos plano do olhar, lembrando que todo sistema de comunicação e
linguagem necessita de seu suporte de imagens num grau que não se registrou
em nenhum outro período histórico. As videologias seriam as responsáveis pela
divulgação da tirania da fantasia que permeia a cultura atual, uma cultura juvenil
reforçada pelos discursos científicos e as novas tecnologias, (nanotecnologia,
genética, transgênicos etc.) que fazem com que homens e mulheres acreditem
que o Nautilus não é uma utopia, mas um objeto palpável. Afinal, o que todos os
humanos querem, segundo Freud em Mal-estar na civilização (1968), é serem
54
felizes mesmo que nada no mundo esteja disposto a tornar este objetivo realizável
como catástrofes, doenças e mortes. Estas forças naturais fazem com que o
homem aspire à felicidade, mas inspire a infelicidade que se obstina a destruí-lo.
O homem pós-moderno, a fim de fugir das catástrofes e exigências do
mundo, parece cada vez mais destinado a apelar para a moratória social, que
consiste na postergação da idade do matrimônio e da procriação para a
capacitação e interação na sociedade. Esse período de reclusão do mundo
externo tem como objetivo dar ao indivíduo, segundo Sarlo (2000), todos os
recursos disponíveis para se capacitar para a vida em sociedade, ainda que, nos
dias atuais, a falta de referências e as exigências crescentes do mundo fazem
com que este momento de preparação para a vida adulta se prolongue por tempo
indeterminado. É esta indeterminação que faz com que o indivíduo viva o seu dia-
a-dia de maneira regular e previsível, sem esforço ou choque, e se retire do
mundo externo se enclausurando no conforto de seu casulo, de seu mundo
privado, eliminando assim qualquer possibilidade de se desenvolver em um ser
adulto.
Nos dias de hoje, em uma sociedade dominada pela tecnologia, a moratória
social tende a ser mais prolongada graças às novas técnicas como a cosmética,
cirurgias estéticas e terapias new age. A eterna juventude, com estas novas
técnicas deixou de ser uma utopia para se tornar uma realidade, ou melhor, uma
pseudo-realidade na qual uma série de invenções pós-modernas fizeram brotar
nos seres humanos o sentimento de onipotência, fazendo com que se esqueçam
que a manutenção estética da juventude o é sinônimo de independência. É
como se as pessoas acabassem acreditando que se tornaram independentes do
mundo a sua volta, pois imaginam não necessitar de mais nada. Tendo
aparentemente tudo, os indivíduos s-modernos têm dificuldade de lidar com
suas incompletudes, sonham em ser deuses e vivem a ilusão de que não
precisam de ninguém, pois podem obter tudo com o clicar de um botão ou
tomando uma pílula.
Esta sensação de completude faz, segundo Bauman, em Globalização
55
(1999), com que o homem pós-moderno troque sua felicidade pela segurança,
sendo que, ao fazer essa permuta com o intuito de proteger seu mundo particular,
ele acaba desenvolvendo aquilo que a psicanálise chama de “boa consciência de
si”, que o protege dos golpes, desferidos pelo mundo externo, que tentam limitar a
sua liberdade individual. Ao adquirir este tipo de consciência, o indivíduo tem a
impressão de estar sempre certo, independentemente do que pensam ou digam
os demais, e assim o homem se fecha em um monólogo, abandona o diálogo e vai
cortando as pontes com o coletivo. O indivíduo, ao se exilar do todo, vive uma
crise de solidão, na medida em que perde seus referenciais e sua identidade, e
tenta criar uma nova identidade para si próprio através de referências veiculadas
pelas mídias que lhe permitem viver a ilusão de que é possível ser o próprio
artesão das representações do mundo em que vive.
Esta idéia está presente na cena em que Will inventa atividades para ocupar
seu tempo, a começar por decompor as horas em frações de meia hora. Em sua
opinião, ver as horas passarem é intimidante e, além disso, a maioria das
atividades que ele se propõe a fazer ao longo do dia exigem apenas meia hora.
Assim, por exemplo, tomar banho equivale a uma unidade de tempo, assistir
Countdown equivale a outra unidade, pesquisar na internet equivale a duas
unidades, fazer exercícios a três unidades, conseguir deixar o cabelo
cuidadosamente despenteado a quatro unidades. O tempo, dessa maneira
computado, passa mais rápido e não deixa espaços vazios, de forma que, ao fim
do dia, após ter completado todas as suas tarefas, pode se perguntar o que faria
se, além de tudo isso, tivesse que trabalhar. Afinal “como as pessoas arranjam
tempo?” Pergunta-se Will.
Podemos supor, nos servindo de Marcuse (1999), que Will divide sua
programação em atividades de duas ordens, uma social e outra tecnológica. As
atividades sociais são tomar banho, cortar cabelo e fazer exercícios; as
tecnológicas são assistir programas de televisão e pesquisar na internet. Chamo a
atenção aqui para a televisão, pois desde a sua invenção, o homem estabeleceu
um comportamento mecânico para seguir sua programação.
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Will leva uma bronca de sua amiga Christina quanto à maneira como
conduz sua vida, sem nunca ter trabalhado ou estabelecido uma relação amorosa
estável apesar de ter 38 anos. Após falar isso, Christina o surpreende com convite
para ser o padrinho da segunda filha dela e do marido John, uma menina a quem
deram o nome de Imogen. Will se pergunta qual o motivo dessa escolha, pois,
segundo a própria Christina ele era um desastre, um homem de 38 anos, que
nunca teve um emprego fixo ou um relacionamento que durasse mais de dois
meses, não sabia dar sentido à vida, já que não tinha construído nada em sua vida
para mantê-lo à tona e não devia estar bem, embora afirmasse o contrário.
Num primeiro momento, Will emudece, sem saber o que responder,
imaginando que seus amigos estavam brincando com ele, pois não conseguia
pensar em pior padrinho para Imogen, pois, segundo ele, “a largaria de cabeça pra
baixo no batizado e esqueceria todos os aniversários até ela completar dezoito,
então eu a levaria para beber e tentaria levá-la para a cama”. Os pais da criança,
no entanto, parecem decididos mudar a vida de Will e, para tanto, acreditam que,
além de se casar, ele precisa ser pai. Assim, sugerem apresentá-lo a Angie, uma
jovem mãe solteira. A sua primeira reação à idéia é reiterar que não tem vocação
para ser pai, mas pouco depois começa a se perguntar se mães solteiras não
poderiam vir a ser sua salvação, idéia que se reforça após o seu primeiro
encontro com Angie e seu filho.
Nas primeiras semanas em que saem juntos, Will desempenha a
personagem de um homem legal, redentor. Leva Angie e seu filho para visitar o
Museu de Ciência e História Natural, os convida para passeios de barco e para
comer no McDonald´s. Neste interlúdio, Will começa a achar que andar ao lado de
uma bela mulher e com um garoto saltitante na frente, sendo admirado por todos,
não era ruim e que esse tipo de relacionamento tinha algumas vantagens, como,
segundo suas palavras “o sexo era bom, havia bastante massagem no ego e ser
pai honorário era até que fácil”.
Havia, no entanto, problemas, como o fato de ter que se submeter à
flexibilidade de horários de Angie, sempre envolvida em problemas com babás, e
57
de ter que dormir na casa dela, pois Angie não podia dormir fora de casa. Além
dessas questões, segundo Will, ela tinha poucos CDs, não tinha TV a cabo nem
aparelho de DVD, o que o obrigava a assistir TV aberta e filmes antigos. Essas
queixas de Will apontam para a extrema dependência dos seres humanos para
com as suas invenções, que criam uma atmosfera de ilusão e conformismo em
torno deles.
Esse primeiro relacionamento de Will com uma mãe solteira termina, mas o
protagonista conclui que sair com mães solteiras pode ser uma boa opção, pois é
fácil impressionar uma mulher com a vida desestruturada, que se sente
abandonada, solitária e carente e que tem se deparado com homens que não
gostam de sair com filhos de outros homens. Assim, afirma Will, bastava encontrar
uma mulher com essas características para ele ser a melhor pessoa do mundo. A
partir dessa constatação, Will decide investir em mães solteiras, mas precisava
descobrir onde e como encontrá-las.
Após procurar, sem sucesso, as mães solteiras em corredores de
supermercados, Will as encontra no SPAT (Single Parents Alone Together
3
),
uma associação de pais e es solteiros cujo público majoritário são mulheres e
seus filhos. Para poder se associar, Will cria a identidade de pai solteiro
abandonado, juntamente com o filho Ned, de dois anos, por sua esposa que fugira
com seu melhor amigo. Ser traído pelo cônjuge e o melhor amigo ou amiga era
uma história comum entre os freqüentadores da associação.
Will, no entanto, não se sente confortável no papel de pai solteiro, pois ora
se sente muito jovem, ora muito velho, ora muito inteligente, ora muito estúpido
por ser o pai solteiro de um menino de dois anos, além de oscilar entre excesso de
egoísmo e de carinho. Pelo fato de não saber nada sobre crianças, beber e se
drogar em demasia, não conseguia se enxergar como pai.
Após um período freqüentando a associação, Will se aproxima de Suzie,
melhor amiga de Fiona e nutricionista abandonada pelo amante no sexto mês de
gravidez, que educa sozinha a criança cujo pai se recusou a reconhecer. A
3
“ Pais solteiros – Sozinhos Unidos”
58
Associação de Pais Solteiros Sozinhos Mais Juntos realiza um piquenique no
Regent's Park; Will e Suzie vão juntos, acompanhados por Marcus, filho de Fiona,
que é convidado pela nutricionista para que a amiga fique um pouco sozinha.
Ao buscar Suzie para irem ao piquenique, Will teme ser desmascarado e
toma algumas providências. Depois de pensar em matar seu filho imaginário de
doença ou acidente de carro, decide dar consistência à fantasia e, assim, compra
um assento de carro para bebê, o instala no carro e faz com ele pareça ter sido
usado por um menininho de dois anos, sujando-o com farelos de salgadinhos e
gotas de refrigerante. Com este ato, Will espera provar que Ned não é um
fantasma.
Depois de dar esse tratamento ao assento, Will encontra-se com Suzie e
Marcus e chama a atenção para o assento vazio enquanto se desculpa pela
ausência de Ned, explicando que a e da criança o buscou sem aviso para
passar o final de semana.
Esse dia no parque é lembrado por Marcus como Dead Duck Day (Dia do
Pato Morto), pois, como o menino não tem paciência para alimentar aos poucos as
aves do lago com pequenos pedaços de pão, atira acidentalmente o pão feito por
sua mãe, duro e inteiro, na cabeça de um pato, que morre imediatamente; Marcus
é repreendido pelo guarda do parque, mas Will o ajuda a se safar. Ao voltar para
sua casa, Marcus se depara com Fiona caída no chão devido a uma tentativa de
suicídio; ela é levada para o hospital. No dia seguinte, Marcus encontra o bilhete
de suicídio de sua mãe e decide fazer o possível para que ela não se lembre do
ocorrido na esperança de que a cena não se repita.
Quando Fiona se recupera, tenta convencer o filho de que estava bem e
que daquele momento em diante um cuidaria do outro. Marcus se dá conta de que
ambos são incapazes de resolverem os próprios problemas e que nenhum dos
dois poderia ficar doente ao mesmo tempo, pois, caso isso acontecesse, não
haveria ninguém para cuidar do outro. Assim, o menino conclui que eles não
poderiam continuar vivendo em uma bolha, precisavam de outras pessoas. A
questão que se impõe é como fazer uma família crescer sem ninguém por perto?
59
A solução encontrada pelo garoto é Will, o homem escolhido para tornar sua e
feliz. A escolha parece ao menino adequada, afinal Will e Fiona estão na faixa dos
30 anos, podiam ainda ter filhos e Marcus havia gostado de Will, pois pressente
que ele não é mau nem violento.
Marcus acredita que não está em busca de um pai, e que apenas deseja ter
outras pessoas à sua volta para sair da relação dual com a mãe. Considera-se
que a função do pai é separar o filho da mãe; o próprio garoto entende dessa
maneira quando assiste um documentário sobre família na companhia de sua mãe
e ouve uma especialista afirmar que todo mundo deveria ter um pai e uma mãe. O
garoto aproveita a oportunidade para abordar o tema com sua mãe, mas ela não
atenção ao assunto e termina a discussão. Marcus se lembra que, quando
pequeno, acreditava que para ser pai ou mãe as pessoas tinham que se casar,
assim como para guiar é preciso ter carta de motorista, e que ficou sabendo
tardiamente que seus pais não eram casados.
Objetivando encontrar um marido para sua mãe, Marcus começa a seguir
os passos de Will e percebe que o filho dele não existe. Essa informação serve
para o menino chantagear Will para que este aceite sair com sua mãe; o acordo é
feito e Marcus passa a freqüentar a casa de Will. Nessas ocasiões, os dois se
conhecem melhor e Will percebe a tristeza e o desespero do garoto por o ter
amigos, por não ter um bom desempenho na escola e por querer uma figura
paterna.
No primeiro encontro, Will e Fiona passeam no parque. Ela, que protegia o
meio ambiente e acreditava em aromaterapia e vegetarianismo, era hippie demais
para Will, que logo se deu conta do porquê Marcus era tão esquisito. Segundo
Will, a única coisa que achava excitante na mãe de Marcus era o fato de ela ter
tentado se matar.
Will acreditava que “ao mesmo tempo em que as pessoas podem te fazer
feliz podem também te fazer infeliz”. Essa crença provavelmente se devia ao fato
de saber que ao interagirem com ele, as pessoas poderiam conscientizá-lo do
homem egoísta e profundamente solitário que ele era, levando-o a se dar conta de
60
sua incompletude. Will pode ser descrito como aquele homem egocêntrico por
excelência de Todorov (1996), que reconhece o outro se este lhe permitir
satisfazer certas pulsões como objeto sexual ou o auxiliar na realização de uma
tarefa, caso contrário, ele considerará a outra pessoa rival ou descartável.
Essa característica pode ser reconhecida em Will quando ajuda Marcus a
se diluir na massa ao convencê-lo de que não precisa usar coisas de que não
gosta para agradar sua mãe, permitindo ao menino usar roupas próprias à sua
idade e mudar seu corte de cabelo. Por outro lado, usa o garoto para facilitar seu
encontro com Rachel, que conhecera numa festa de ano novo. Separada,
inteligente, culta, ambiciosa e bonita, Rachel é ilustradora de livros infantis e tem
um filho de 12 anos; no entanto, em face de tantos predicados da ilustradora, Will
se sente desinteressante por não trabalhar e não ter filhos, daí a importância de
Marcus.
No primeiro encontro de Will e Rachel, ele vai acompanhado de Marcus, a
quem apresenta como seu filho, e ela leva seu filho, Ali. Quando os meninos ficam
a sós, Ali diz a Marcus que se ele não impedir que Will continue encontrando
Rachel, ele o mataria, alegando que a mãe “é dele”. Diante dessa ameaça,
Marcus sai correndo e Will vai atrás dele e o convence a voltar para casa de
Rachel e aceitar as desculpas de Ali. Esse incidente serve para Will se convencer
de que não pode insistir na mentira e que deve contar a verdade a Rachel,
confessando não ser o pai de Marcus.
No livro, Rachel perdoa a mentira de Will, por ele lhe dizer a verdade e
porque considera que o relacionamento de Will e Marcus tem algo de verdadeiro,
pois ele realmente se importa e entende o menino. Enquanto no filme ela não
perdoa e acaba o relacionamento. Mas o mais importante seja no filme ou no livro
é o efeito dessa conversa, que faz com que Will se conta de que chegara a
hora de deixar de lado a moratória e se tornar adulto, encontrando um estilo de
vida que se definiria não mais exclusivamente pelo “ter” mas pelo que ele poderia
“ser”.
Uma cena do filme que simboliza a transformação de Will é a do concerto
61
escolar. Marcus participa do evento com o intuito de alegrar a mãe, que dava
indícios de uma nova depressão, podendo levar novamente a uma tentativa de
suicídio. O garoto começa cantando sozinho e sem acompanhamento instrumental
a música “Killing me Softly”, mas o público se mostra insatisfeito: gritando e
vaiando o pobre garoto. Quando tudo parece perdido, Will, com a sua guitarra, se
junta a Marcus e ambos fazem um dueto que agrada ao público.
Devido ao convívio com Marcus e Fiona, Will aos poucos percebe que sua
vida poderia se tornar mais interessante, pois embora não lhe faltasse nada, a
forma como estava vivendo deixara de fazer sentido. Isso fica claro no final do
filme, quando todos os personagens principais se reúnem na casa de Will para
passar a noite de Natal juntos. O dono da casa, embora em certos momentos
continue falando que todo homem é uma ilha, aos poucos reconhece alguns
aspectos importantes: a vida apenas vale a pena quando compartilhada; para criar
a sua ilha ele precisa do outro; as relações são possíveis e fundamentais; Marcus
é alguém muito importante para ele. Marcus faz suas próprias reflexões e conclui
que no futuro não haverá mais casais e sim pessoas reservas, pois “duas pessoas
é pouco, por isso é preciso ter sempre uma de reserva para quando uma cair, a
outra não ficar sozinha”; assim, para ser feliz, é preciso estabelecer relações
outras pessoas.
O enredo de Um grande garoto proporciona a constatação de que nessa
época da pós-modernidade (ou modernidade tardia), na qual se vive a cultura
pautada no hedonismo, egoísmo radical, delírio consumista, apatia em relação às
questões coletivas e um crescente desinteresse por discussões políticas, o ser
humano é constitutivamente social, ou seja, não existe fora do social
(MATURANA, 1997), pois continua necessitando do outro humano para ser
humano. É essa razão que faz com que Will só se realize quando soma
cooperativamente seus interesses aos de Marcus; apenas depois dessa parceria
Will consegue abandonar seu mundo pseudoparadisíaco, sua moratória social. É
por meio do contato estabelecido com o garoto e outras pessoas que Will
questiona seu estilo de vida e, aos poucos, perde o medo de firmar compromissos.
Assim aceita a idéia de que é um humano e que, como os demais, tem que
62
aprender a viver no mundo real, aquele em que algo sempre falta, definido por
Maturana como mar da insegurança e imprevisibilidade.
Em resumo, por meio da análise dos dois filmes discutidos, pode-se afirmar
que a família atual, mesmo não sendo mais a tradicional almejada pelo patriarca
Portakolos, continua existindo enquanto instituição, ainda que esteja adquirindo
novas formas: formal ou não, unindo pessoas vindas de origens diferentes ou não.
Segundo Castoriadis (1987/1992), a reprodução desta instituição considerada até
hoje como célula mater da sociedade ocorre porque o ser humano reproduz tudo
aquilo que lhe é ensinado socialmente, mesmo sem ter consciência disto. Exemplo
desse aspecto é a propagação dos valores gregos de Toula para com sua filha,
mesmo que ela tenha se casado com um xeno; outra ilustração é o
comportamento de Will, que consegue se tornar adulto e abandonar sua
moratória social após ter se aproximado de Marcus.
No capítulo a seguir abordarei os dois tipos de sujeitos produzidos pela
família contemporânea, classificados por Castoriadis, como autônomos e
heterônomos, assim como suas atuações na sociedade. Além disso, procurarei
mostrar que o mundo autônomo castoradiano, ou seja, um mundo de igualdade,
liberdade e fraternidade pode ser construído por meio da cultura neomatrística de
Maturana.
63
Capítulo III
Feito a ser Feito
“Nenhum grande homem vive em vão.
A história da Humanidade não é mais do que
a biografia dos grandes homens.
Thomas Carlyle
Vivenciamos, nesse início de século XXI, uma época semelhante àquela
prevista por Alvin Toffler, em seu livro a Terceira Onda (1980). O autor, nos
estertores do culo passado, imaginava que a humanidade viveria um sombrio
período de terror, com reféns ameaçados de morte, embaixadas em chamas e
governos reduzidos à paralisia e à imbecilidade.
Face a esse cenário, semelhante a um filme de ficção científica, tal seu
grau de catastrofismo e dramaticidade, tudo leva a crer que nada mais resta ao
homem pós-moderno a não ser ficar à deriva em seus botes salva-vidas igreja,
família e Estado no mar tempestuoso da heteronomia, de mudanças violentas
em que valores se estilhaçam e se destroem. Porém, apesar dele não vislumbrar
saída para a sua situação, o homem pós-moderno pode aportar em terra firme,
segundo Castoriadis (1987/1992), desde que repense suas escolhas e seja capaz
de elaborar um novo projeto político, capaz de instaurar sujeitos autônomos ao
invés dos heterônimos presentes em nossa atualidade.
De acordo com Castoriadis, embora o sujeito heterônomo tenha existido em
todas as sociedades ele pode ser considerado o protótipo dos valores capitalistas
que dominam as instituições e as relações da sociedade contemporânea. o
sujeito autônomo, oposto ao heterônomo, tornou-se capaz de refletir de maneira
64
original e agir em prol de um projeto político criativo, ou seja, o sujeito autônomo
apenas existe em uma sociedade autônoma. A autonomia também pode ser
considerada expressão da cultura neomatrística do biólogo Maturana (2003), que
valoriza a deliberação e a cooperação e desmerece a competição, característica
da cultura patriarcal, que impossibilita a constituição de seres autônomos.
Se Castoriadis (1987/1992) insiste na constituição de sujeitos autônomos é
porque ele os considera primordiais para a formação de um projeto de
humanidade que tenha por objetivo instaurar, de fato, na sociedade os valores
propostos pela Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade, tanto
individual como coletivamente. Na opinião do autor, tal projeto pode ser posto
em prática por sujeitos capazes de deliberar, compreender e refletir sobre o
mundo em que vivem e que, ao agirem como donos de habilidades, virtuosismos e
técnicas, tornam-se livres porque podem trabalhar a favor de mudanças no
coletivo sem terem que abrir mão de suas características particulares, resistindo,
desse modo, a comportamentos de massa.
Acredito não estar dando um passo grande demais ao afirmar que
Castoriadis chegou a formular seu tipo ideal de indivíduo autônomo a partir de
certos personagens históricos que, apesar das dificuldades próprias da época em
que viveram, foram capazes de enfrentá-las e influenciar as gerações futuras com
as suas obras. São exemplos de indivíduos autônomos que, por meio de seus
trabalhos criaram condições para pensar que outro mundo era possível, Leonardo
da Vinci, gênio renascentista; Lorde Byron, poeta romântico; Virginia Woolf,
escritora do século XX; e Dian Fossey, cientista de nossos dias.
Considerar a possibilidade de outro mundo é tão difícil em nossa cultura
ocidental pós-moderna quanto foi na época das personagens acima citadas. Hoje,
como no passado, instituir outro tipo de humanidade implica na capacidade de
opor-se ao pensamento dominante de uma época. Nos nossos dias, esse
pensamento consiste em enfatizar a competição, o sucesso e a instrumentalização
de todos os atos humanos em detrimento da valorização e do fortalecimento de
laços sociais.
65
Quando se valoriza a instrumentalização, segundo Castoriadis (1999),
acontecimentos cotidianos como abusos e fanatismos passam a ser considerados
esperados ou, quanto muito, meros erros de coexistência atribuídos pela
população à incapacidade governamental. O que a população parece não levar
em conta é que os indivíduos que compõem uma sociedade são cidadãos que
podem interferir na escolha do governo que desejam para si por meio de eleições
democráticas e conscientes e por meio da fiscalização das ações daqueles que
elegeram. O que tem ocorrido, contudo, é que as eleições se transformaram em
mero espetáculo pseudodemocrático devido ao conformismo generalizado. Assim,
o projeto de autonomia vem se exaurindo face à domesticação da razão humana
pela instrumentalidade racional.
A conseqüência da falta de um projeto de autonomia pode ser observada
na diferença de atitude política entre indivíduo heterônomo e autônomo. Quando o
primeiro apenas se queixa de que o governo do país em que vive é incompetente
e não realiza o que lhe cabe, o segundo, ciente de seu poder, fiscaliza e participa,
uma vez considera que as leis são feitas pelos homens e não por uma entidade
superior. Para o sujeito autônomo, sempre é possível enfrentar a crise e tentar
fazer com que a sociedade seja mais justa ou democrática.
Para aprofundar os dois conceitos aqui introduzidos, é preciso relacioná-los
ao tema trabalhado nos capítulos anteriores, ou seja, a família e as
transformações contemporâneas nos processos de socialização do indivíduo. Tal
associação poderá nos ajudar a compreender porque a humanidade tem optado,
na maioria das vezes, por trilhar o caminho da heteronomia ao invés da sonhada
autonomia, que Marcuse (1999) associou à redução do tempo de trabalho
alienante a favor do maior tempo dedicado ao lazer e ao ócio.
3.1 O sujeito do século XXI: a socialização
Podemos definir o começo do século XXI como a continuação do último
ciclo heterônomo. Iniciado no final do século anterior, essa fase refere-se ao
momento a partir do qual as mídias passaram a assumir um papel determinante
66
na formação dos indivíduos. A indústria cultural se tornou, nos tempos atuais, a
maior responsável pela globalização dos indivíduos e tem enfatizado a cultura
juvenil. Esta produz personalidades narcísicas ao instaurar o dever de ser feliz em
seus indivíduos, que passam a consumir mercadorias supostamente fornecedoras
de felicidade e bem-estar ao invés de investir na esfera pública e na política.
Castoriadis nomeou esse indivíduo narcísico, consumista e apolítico de
heterônomo. Este sujeito, propagado pelas mídias por meio de videologias
(imagens, notícias, músicas etc.), é formado pela família, considerada uma
instituição em que certos indivíduos exercem as funções paterna e materna ao
emitirem as leis da cultura às novas gerações. Essa transmissão vem conhecendo
tempos de turbulência, como se, em nossas sociedades atuais, faltassem adultos
capazes e desejosos de sustentar tal tarefa. Com a propagação da cultura jovem,
parece que não interesse pelas funções educativas que fazem com que uma
geração insira outra na sociedade. A idade adulta parece ter se transformado em
um momento constrangedor, pois prevalece em nossos dias é o dever de manter-
se eternamente jovem física e psiquicamente.
A atual crise ou desordem nas instituições vem contribuindo, segundo
alguns pensadores franceses (ANGENOT, 1998; BRUNET, 2003; MELMAN, 2003;
MORALI, 2003), em sua maioria psicanalistas, para o surgimento de indivíduos
heterônimos que, ao o interiorizarem os pactos sócio-culturais, concebem
apenas seus direitos para com a sociedade, desconsiderando seus deveres. Os
autores chamam tais indivíduos de ressentidos, uma vez que, sistematicamente,
atribuem ao outro a responsabilidade por seus infortúnios ao invés de procurar a
causa em si mesmos. Para estes autores, uma das formas de manifestação do
mal-estar contemporâneo é a vitimização, própria de indivíduos heterônomos.
Estes têm como objetivo o ressarcimento do próprio prejuízo ou da comunidade
fechada à qual pertencem, ao invés de desejarem a emancipação de todos: o
ressentido, perdido na própria dor narcísica, não tem um projeto coletivo.
Nos dois primeiros capítulos, vimos que o ser humano necessita de uma
família para se constituir. Esta constituição, para Castoriadis (1999), passaria por
67
diferentes níveis: vivente (as primeiras fases da vida do ser humano), psique
humana, indivíduo socialmente fabricado, sociedade particular e suas instituições.
Em todos esses níveis, o autor constata uma relativa autofinalidade, que é a
criação de um mundo próprio.
Este mundo próprio criado pelo indivíduo tem como base o mundo
imaginário coletivo da sociedade, que funciona para o indivíduo como um sistema
de interpretação das significações imaginárias sociais. Estas significações não se
esgotam em referências racionais ou reais e são introduzidas por uma criação
social, pois existem somente quando instituídas e compartilhadas por um coletivo
impessoal e anônimo. Com tais significações imaginárias sociais, cada sociedade
cria o seu próprio mundo, um modo de representar, uma estética, uma lógica e,
como conseqüência, um ser. É o que indica Castoriadis na afirmação: “O homem
existe na e pela sociedade sendo que esta é sempre histórica o que faz com
que tome uma forma (organização, ordem) particular e singular” (1987/1992, p.
220-221).
A sociedade é, portanto, criação, dela mesma: autocriação. Reconstitui-se
com pedaços, fragmentos do passado (locais de referências, valores, normas, leis,
etc.) que formam um tecido, que impregna, orienta e dirige toda vida da sociedade
e dos membros que a constituem, chamado magma de significações imaginárias
sociais (Estado, tabu, pecado, Deus, virtude, etc.).
A família, principal produtora de indivíduos para a sociedade, pode ser
pensada como uma instituição que tem como função reproduzir os valores sociais
encontrados neste magma, ela é responsável pela sociabilidade (aprendizagem e
educação), em formar o caráter, expressar a consciência coletiva de um grupo, ou
seja, o conjunto de valores morais compostos por similitudes: idioma, crenças,
costumes e território.
O psiquismo humano é incapaz, por si , de produzir instituições e
significações imaginárias sociais. Como lembra Castoriadis, o bebê é
completamente autocentrado e encontra sua finalidade em si mesmo, como
indivíduo, espécie e ecossistema; apesar disso, se o deixarmos sozinho, ele
68
morrerá ou se tornará criança-lobo, perdendo irreversivelmente a capacidade de
ser humano. Assim, apenas com a socialização o bebê poderá abandonar seu
auto-centramento mortífero e se constituir como ser humano.
A tarefa de socializar, no entanto, não é simples e tem várias etapas. Na
primeira, a mãe, porta-voz da sociedade perante o bebê, mantém com ele uma
relação quase exclusiva, período no qual o amamenta e protege dos perigos do
mundo externo. Na segunda fase, o bebê é colocado diante da necessidade de
parar de acreditar que o seio materno está sempre à sua disposição e que forma
um par exclusivo com a mãe, ao mesmo tempo em que a mãe tem que abrir mão
da posse integral do bebê para que o pai ocupe seu espaço. A partir deste
momento, em que o bebê se colocado perante a necessidade de reconhecer
que a mãe não é exclusivamente sua e que ela deseja para além dele é que
começa, de fato, o que podemos chamar de processo de socialização, que
começa com ele se dando conta que existe uma relação anterior a ela, da qual ele
estará sempre excluído. Caso não aceite isso, jamais será um indivíduo
socializado.
O ponto central dessa segunda fase é que não pode haver apenas dois, é
preciso que haja um terceiro termo para quebrar o face a face, para impedir a
fusão, a dominação da mãe sobre o filho ou vice-versa.
Aqui, como em Totem e Tabu (1914/1968) de Freud, não vida possível
sem renúncia. A primeira delas será a da mãe, figura necessária à socialização da
psique, ou seja, nos termos de Castoriadis à interiorização das significações
imaginárias sociais. Após esta renúncia a história do sujeito poderá começar de
fato, pois ele pode se situar num mundo humano e social e não apenas no mundo
das florestas, oceanos e estrelas.
Ser um indivíduo socializado significa aceitar, antes de tudo, a sublimação
dos prazeres da representação privada para investir em objetos que existem
socialmente. Exemplo dessa sublimação ocorre quando a criança se instada a
deixar de chupar o dedo e substituir esse prazer por outros, mais aceitos
socialmente, como falar, atividade social por excelência que lhe permite se
69
comunicar com o outro.
Deixar de chupar o dedo, uma das primeiras renúncias impostas ao
humano, é seguida por muitas outras, pois a vida humana em sociedade é a
eterna possibilidade de substituir um prazer privado por um prazer partilhado
como, por exemplo, o do trabalho coletivo, fruto da sublimação da libido humana.
Esta renúncia ocorre, como já foi dito, através da presença de um outro que
cumpre a função paterna de forma limitada por uma representação da coletividade
instituída. Se não houvesse essa limitação da atuação paterna, a criança seria
sempre escrava de seu pai ou sua inimiga, cheia de um ódio inextinguível. A
aceitação da filiação não pode se dar senão pela assimilação da limitação do pai,
ou seja, de que esse é um pai entre outros, ele próprio barrado pela coletividade e
instituições no qual está inserido. assim o indivíduo adulto, desenvolvido e
consciente, ainda que ciente de sua indesenraizável solidão, na perpétua
diferença entre a alteridade de tempo próprio e o tempo comum, poderá afirmar:
"faz sol, e estou infinitamente triste, ou estou muito alegre, ainda que chova”
(CASTORIADIS, 1999, p. 107).
Observa-se, dessa maneira, que, ao nascer, o ser humano não é autônomo
nem heterônimo, ele se transforma em um ou outro em função da maneira pela
qual é acolhido pela comunidade, da educação que recebe e dos valores
presentes na sociedade em que vive. Ao nascer, ele apenas recebe o básico (leis
e normas sociais) para se transformar em um humano, membro de uma sociedade
humana. Em nossos dias, o bebê freqüentemente deixa de receber esse básico
devido à aceleração do tempo e à crise das significações imaginárias sociais que
impedem a sociedade de metabolizar novas informações, que se tornam
rapidamente obsoletas, favorecendo o aparecimento da forma contemporânea de
heteronomia.
3.2 O indivíduo heterônimo e autônomo
O conceito de heteronomia, tal qual entendido por Castoriadis, supõe que a
instituição da sociedade seja obra de uma fonte transcendente e não de si própria.
70
Dessa forma, a sociedade se alienaria de seu próprio produto, ou seja, das
instituições, consideradas criações humanas que podem ser questionadas e
modificadas. A heteronomia, assim entendida, presente em sociedades primitivas
e modernas, não pode ser sinônimo de exploração e dominação de classe, ainda
que estas sejam manifestações da heteronomia capitalista.
Na visão de Castoriadis, sociedades heterônomas produzem indivíduos
heterônomos enquanto sociedades autônomas produzem indivíduos autônomos,
ou seja, seres capazes de se responsabilizar por suas vidas e transformar
conscientemente a sociedade em que vivem.
A autonomia foi, segundo o autor, uma das significações imaginárias que,
junto com o predomínio da racionalidade, marcou o Ocidente moderno. Tudo
indica, no entanto, que em nossas sociedades liberais, a partir do final da década
de 1950, o projeto de autonomia entrou em um eclipse prolongado, em grande
parte, gerado pela crise da família e pelo fato de a socialização dos indivíduos ser
feita por meio da mídia e seus ocos modelos de sucesso, o que explicaria em
parte a desagregação das normas e valores e a heteronomia crescente dos
indivíduos.
De outra maneira, posso afirmar, apoiando-me em Castoriadis, que a
família deixou de ser o efetivo elo entre instituição social e formação da psique
individual, ou seja, deixou de ser o centro normativo que ensinava às crianças a
diferença entre o certo e o errado, o lícito e o ilícito. A família contemporânea
parece menos apta para transmitir uma história familiar, de modo que o sujeito
nela formado tem cada vez menos condições de se ver como herdeiro de uma
história coletiva, incapaz de se visualizar no futuro e em projetos potencialmente
coletivos. O mundo, para ele, esgota-se no aqui e agora, em um eterno presente.
Este exílio da história coletiva tem criado
“um novo tipo antropológico de indivíduo que emerge pela avidez, pela
frustração e pelo conformismo generalizado materializados em pesadas
estruturas: a corrida louca e potencialmente letal de uma tecnociência
autonomizada, o onanismo consumista, televisual e publicitário, autonomização
da sociedade, rápida obsolescência cnica e moral de todos os produtos, das
riquezas que, crescendo sem cessar, se esvaem entre os dedos das mãos”
(CASTORIADIS, 1999, p. 82).
71
Reencontramos, nessa definição, o indivíduo heterônimo “perpetuamente
distraído, zappando
4
de uma fruição para outra, sem memória e sem projeto,
pronto a responder a todas as solicitações de uma máquina econômica que, cada
vez mais, destrói a biosfera do planeta para produzir ilusões denominadas
mercadorias” (CASTORIADIS, 1999, p.82).
É contra este tipo de indivíduo, fruto de uma cultura funcional e
heterônoma, que deve se posicionar todo projeto político que vise uma sociedade
autônoma, uma sociedade que reconhece a necessidade de leis e está ciente de
que suas instituições e suas leis são sua obra e seu produto, razão pela qual pode
questioná-las e modificá-las (CASTORIADIS, 1986/1987, p. 41).
Cabe salientar que nesta sociedade autônoma (democrática) a esfera
pública não é objeto de apropriação privada de grandes grupos particulares, como
na sociedade heterônima. Nela os poderes legislativo, judiciário e governamental
pertencem efetivamente ao povo e são exercidos por ele. Mas este povo não é um
povo qualquer, é um povo autônomo que exerce estes poderes com sabedoria,
pois tem capacidade de interrogar, de fazer reflexões, de deliberar sobre a
liberdade e a responsabilidade.
3.3 Entre autonomia e heteronomia
As definições acima discutidas podem ser ilustradas através do artigo de
José Arthur Giannotti intitulado Uma outra sociabilidade, publicado pela Folha de
S. Paulo, em 2004. Embora o autor não se sirva do arcabouço teórico de
Castoriadis, chama a atenção para o fato de que uma sociedade autônoma
precisa de leis, nem que seja para contestá-las, para se manter enquanto tal.
A parábola relatada por Giannotti no artigo gira em torno do comportamento
de uma jovem senhora que abordou o autor em uma praça pública reservada a
exercícios físicos. Enquanto perambulava perto de uma prancha para exercícios
abdominais, Giannotti foi abordado por uma jovem senhora, que lhe perguntou se
4
Mudando.
72
ele iria usar a prancha, ao que ele respondeu negativamente. A resposta foi o
bastante para que ela se apropriasse do instrumento e nele deitasse para ler. Tal
acontecimento serviu de pretexto para Giannotti refletir a respeito do
comportamento da senhora, perguntando-se que tipo de sociabilidade ele
representaria. “Não cabe dizer que seu comportamento não seja social, que
levou em conta seus próprios interesses, mas também seria inapropriado qualificá-
lo de legítimo ou legal. Que tipo de sociabilidade representa?”.
Segundo o autor, tudo apontava para o fato de que, para esta senhora, o
"outro" existia quando no campo de sua ação direta, acessível às relações face
a face. Aparentemente, não ocorreu à senhora que poderia estar prejudicando
alguém que desejasse se servir da prancha para a finalidade de fazer ginástica.
Esse alguém se veria obrigado a pedir que a senhora desocupasse o aparelho
público – para poder usufruí-lo. Giannotti entende que a senhora, ainda que
aceitasse tacitamente as regras da boa convivência, se reservava ao direito de
decidir sobre a aplicação do aparelho. O autor afirma:
“Ao passear pela praça, as aceitava tacitamente sem que, por isso, as seguisse
como se desejasse a regra pela regra, instituída em nome da necessidade de
preservar o espaço público. Agiu tendo em vista o bem das pessoas com as
quais pudesse negociar o sentido social de seu comportamento” (2004).
Nesse trecho acima, Giannotti nos faz lembrar que, para Aristóteles a norma
social, não pode ser boa ou má, a não ser estipulando para quem ela vale. Quem
freqüenta a praça pública, não pressupõe que as normas lá vigentes tenham
validade apenas para aqueles com quem possa entrar em acordo. A norma vem a
ser social na medida em que vale para todos os membros de uma comunidade, de
modo que a sua legalidade depende de um acordo prévio, relativo ao próprio
sentido do sistema normativo.
O banco da praça, por exemplo, existe para que todos possam se sentar
sem que haja necessidade de uma pessoa pedir permissão a outra para fazê-lo.
Em caso de não haver mais ninguém presente, é possível, inclusive, deitar-se
nele, que teoricamente não se estaria prejudicando ninguém. Essa moralidade
objetiva faz com que as pessoas queiram a norma na qualidade de suas
condições sociais de existência. Em outras palavras, as pessoas querem ter o
73
direito de avaliar a conveniência de tomar certas liberdades como as de se sentar
ou se deitar no banco, porém isto não lhes permite avaliar a legalidade e a
aplicabilidade da norma pública. Por essa razão, o Estado de Direito toma
decisões no lugar de cada indivíduo da sociedade.
Segundo Giannotti, com a ação da senhora, a norma pública passa a
manter a sua validade somente no nível discursivo, pois, na prática, seu sentido é
reformulado de acordo com as circunstâncias. Essa reformulação retira a
aplicabilidade da norma em seu habitat natural, onde ela é válida. Do ponto de
vista da senhora, ela justificou sua ação não por meio de uma lei universal, mas
pela validação e universalização de uma situação particular, reivindicando para si
uma exceção, o que vem a ser para Kant fonte de imoralidade. Giannotti
exemplifica esta passagem em seu artigo pressupondo que, as normas sociais
provêem de um contrato originário, segundo o qual a senhora não devia se deitar
na prancha, mas ela se legitima a fazer justamente o contrário porque acredita
estar reafirmando o contrato no nível dos relacionamentos diretos. Contudo,
embora negociasse com os outros usuários da praça, ela sabia que o seu ato era
uma exceção.
Dito de outra maneira, com a ação da senhora, o contrato universal civil
responsável pela instalação do poder jurídico regulador de qualquer sociabilidade
passaria a depender de um outro contrato, que a pessoa tece por meio de sua
própria sociabilidade. Ou seja, a lei passaria a ser reformulada de acordo com as
necessidades de certos grupos particulares, pois ninguém abriria mão das suas
liberdades particulares, uma vez que não teriam seus direitos assegurados. Logo,
embora os membros da sociedade devam obediência às leis, pelo fato de muitas
pessoas não as acatarem, eles deixariam de ver razão para segui-las,
perguntando-se porque não fazer como os outros, que não as obedecem.
Esse tipo de raciocinar, de agir, segundo Giannotti, aumenta a incerteza no
meio social e faz com que o medo e a violência espreitem as zonas de
interferência de cada esfera particular. Este tipo de sociabilidade tende a ver a Lei
que provém do contrato originário, como uma necessidade imposta de fora: um
74
dever que não me diz respeito. A contestação da lei estatal cria uma zona de
violência difusa, difícil de ser controlada. A conseqüência imediata disso é a perda
das fronteiras entre o contrato civil e o contrato social uma vez que, de um lado, os
ordenamentos jurídicos e suas aplicações se tornam cada vez mais sensíveis às
necessidades sociais, e de outro lado, os movimentos sociais se globalizam e
encontram leis cada vez mais universais.
Até que ponto esse processo o abriria espaço para o medo e para a
nova violência do terror?”. A pergunta, que se encontra no final do artigo de
Giannotti, pode ser respondida de diferentes maneiras. Uma delas é nomear o
medo e a violência como manifestações de um mal-estar contemporâneo ou de
ressentimento, como discutido anteriormente. Julgo esse mal-estar um dos
principais responsáveis pelo esvaziamento do blico, pela perda do projeto
político e do conceito clássico de cidadania. Segundo Janoski (1998), cidadania é
a pertença ativa e passiva dos indivíduos de um Estado-Nação que têm direitos e
obrigações universais em um específico nível de igualdade. A pertença é passiva
quando outorgada pelo Estado, com a idéia moral do favor e da tutela, e ativa
quando institui o cidadão como portador de direitos para abrir novos espaços de
participação política.
3.4 O ressentimento: “mal-estar” contemporâneo
O ressentimento, manifestação do mal-estar contemporâneo, é segundo Koltai
(2004), expressão passional, pois, a constatação da falta se transforma na
necessidade de uma justa e integral reparação. Um sujeito que vive apenas no
plano dos direitos, esquecendo-se totalmente dos deveres, teria o ressentimento
como sentimento típico. Apenas se pode esperar desse sujeito o conforto de uma
posição subjetiva assegurada no direito de ser ressarcido. A reparação pelo objeto
perdido o é um acontecimento desejante, pois acaba criando uma demanda
infinita, que não como livrar completamente o homem das dores do mundo,
tais como infelicidade e depressão. O dever da felicidade, presente em nosso
mundo contemporâneo, é um mandato impossível de ser obedecido, não sendo
75
“possível veicular a louca esperança de livrar o humano de seus sofrimentos por
meio de uma nova Providência divina, que agora repousaria sobre as respostas
equívocas e silêncio do outro” (KOLTAI, 2004, p.5).
O pensamento típico do sujeito contemporâneo não razão para acatar
as leis sociais, visto que muitos não o fazem – pode ser entendido como indício de
que esse sujeito, ao se dar conta que não tem como obter a plena satisfação que
lhe fora prometida, torna-se indiferente ao mundo que o cerca, desertando do
político e refugiando-se no ressentimento.
O refúgio no ressentimento parece encontrar apoio em medidas
politicamente corretas (PC). Estas, para Semprini (1997/1999), embora tenham
como objetivo acabar com comportamentos racistas, etnocêntricos e sexistas,
desembocam freqüentemente no oposto, pois, ao forçar coexistência, respeito à
igualdade e valorização da diferença, acabam abrindo espaço para ideologias
sectárias e integristas. Tais medidas PC, ao acatar reivindicações das minorias de
reparação por danos sofridos, em vez de preparar um futuro em que essas
injustiças possam não mais se reproduzir, reforçam aquilo que gostariam de
combater, pois as minorias se satisfazem apenas com a reparação e acabam
abrindo mão de um projeto político com vistas à autonomia.
Veremos no subitem seguinte como autores como Wanderley e Maturana
se posicionam face a esse homem pós-moderno e qual projeto potico vislumbram
para sua libertação e crescente autonomia.
3.5 Como criar, então, este projeto político na contemporaneidade?
Wanderley (2000) escolhe a educação como eixo central de seu projeto
político emancipatório, pois a considera como o principal instrumento de
universalização dos valores e das práticas modernas. É ela que se encarregará da
formação de novos cidadãos.
A educação cívica ou educação para a cidadania, segundo o autor, seria
capaz de agir sobre o desencanto, com a política partidária e as instituições
76
políticas e conseqüente fatalismo, acabando com a falta de civismo e
naturalização das injustiças, fatos esses que caracterizariam a não cidadania de
parte expressiva da população. Mas para que sua proposta seja válida, essa
educação deve contemplar o humano em suas três dimensões: a de indivíduo,
cidadão e sujeito, assim como as instituições que o abrigam: família, escola,
igreja, e comunidades, assim como os meios de comunicação.
As três dimensões que a educação deveria abordar estão relacionadas ao
tema da cidadania e, embora se interliguem, apresentam características próprias.
No que tange ao indivíduo, a educação cívica deve ensiná-lo desde cedo que ele
não é não é um mero “complexo biopsíquico (genes, DNA, memória), em suas
dimensões cognitivas (neurocerebral), de subjetividade (sentimento, emoção, dor,
paixão, etc.), como produtor e reprodutor. Uma síntese entre exterioridade e
interioridade (o eu subjetivo e a mim objetivo)” (WANDERLEY, 2000, p. 161). Mas
sim um ser capaz, por meio de suas ações de transformar o mundo a sua volta.
No que diz respeito à dimensão de cidadania, esta se constituirá quando o
indivíduo ao saber da sua capacidade de transformação começa a participar da
vida sociopolítica de um Estado-Nação, uma vez que passa a ser:
“dotado de direitos (que tem por objeto uma intervenção, uma ão positiva,
uma prestação do Estado ou de particulares, diferentemente da noção de
liberdade, que é a não interferência de outrem nas esferas individuais próprias)
e obrigações (cumprimento das normas constitucionais, legais e outras”
(WANDERLEY, 2000, p. 162).
A terceira e última dimensão, a de sujeito, nos remete ao fato de que,
mesmo condicionado pelo meio, pelas estruturas, pelos processos sociais, pela
ação de outros indivíduos-cidadãos, o ser humano consegue criar uma história
pessoal, unindo subjetividade e objetividade, dando um sentido ao conjunto de
experiências da sua vida, combatendo os poderes e domínios que o afetam,
integrando o vivido, o percebido e o imaginado. Em outras palavras, sujeito é
“alguém dotado de autonomia e liberdade, com capacidade de fazer escolhas”
(WANDERLEY, 2000, p. 162).
Para Wanderley, o caminho para um novo projeto de humanidade passa
por uma educação cívica capaz de contemplar essas três dimensões que se
77
irradiariam pelas instituições a ponto de formar sujeitos. para Maturana
(1993/2004), se quisermos viver em um mundo diferente, devemos mudar, antes
de tudo, os nossos desejos. Para tanto, precisamos modificar nossas
conversações por meio de uma cultura neomatrística.
A existência humana, segundo Maturana, só acontece no espaço relacional
do conversar, ou seja, aquilo que temos de humanos existe como o resultado das
transformações anatômicas e fisiológicas que ocorreram em torno da
conservação, “do viver na linguagem, a convivência em coordenações de
coordenações de ações e emoções” (MATURANA, 1993/2003, p.31).
É por isso que, para esse autor, a história da humanidade segue o curso
determinado pelas emoções e, em particular, por desejos e preferências que, no
incessante entrelaçamento de nossa biologia com nossa cultura, determinam as
nossas ações. São elas, portanto, que definem o que constitui um recurso, uma
possibilidade ou aquilo que vemos como uma oportunidade.
Toda atividade humana realiza-se nesse domínio de ações especificado por
alguma emoção particular, sendo o amor a básica, pois ele nos torna seres
humanos sociais. É o amor que constitui o domínio da aceitação do outro em
coexistência próxima. Sem o desenvolvimento adequado do sistema nervoso no
amor, não é possível aprender a amar e não é possível viver no amor:
“Do mesmo modo, o desenvolvimento salutar de nossa consciência individual e
social, bem como a elaboração adequada de nossas capacidades emocionais e
intelectuais e, em especial, de nossas capacidades de amar, com tudo o que
isso implica depende de nosso crescimento no brincar. E também de que
aprendamos a brincar por meio da intimidade de nossas relações de aceitação
mútua com nossa mãe e pai” (MATURANA, 1993/2004, p. 245).
O brincar deixou de ser, no entanto, na cultura ocidental moderna,
característica fundamental generativa na vida humana integral, visto que, em
nosso mundo, é enfatizada a competição, o sucesso e a instrumentalização de
todos os atos e relações. Não é por acaso que o autor atribui, em parte, a essa
desvalorização do brincar a perda de um grau de bem-estar social e individual,
pois crime, abuso, fanatismo e opressão mútua tornaram-se modos
institucionalizados de viver, ou meros erros ocasionais de coexistência.
78
Para Maturana, o único meio de recuperar esse mundo de bem-estar, tanto
individual quanto coletivo, seria a adoção de uma cultura neomatrística, entendida
por ele como o ressurgimento, na atualidade, da antiga cultura matrística que teria
precedido à cultura patriarcal na Europa. A cultura matrística criou um mundo em
que agricultores e pastores vivam em harmonia e por isso não precisavam
fortificar seus povoados, usar armas e estabelecer diferenças hierárquicas entre
homens e mulheres.
A cultura matrística era movida pelo pensamento sistêmico, que é
caracterizado pela reflexão frente ao diferente. Devido a essa característica, um
de seus princípios era o fato de as relações interpessoais se sustentarem no
acordo cooperação e co-inspiração, principalmente no que diz respeito à relação
entre os sexos, não havendo, inclusive, oposição entre mulheres e homens nem
subordinação de uns e outros. O viver matrístico se apresentava como um
processo natural, no qual a sexualidade de mulheres e de homens estava
associada a um ato de sensualidade e ternura, marcada pela cooperação e modos
naturais de convivência. As deusas, mais do que detentoras de autoridade e
poderes, apresentavam-se como evocação de gerações anteriores e como
conservação da harmonia de toda a existência.
Com a chegada de povos indo-europeus na Europa, cerca de sete ou
seis mil anos, a cultura matrística foi praticamente substituída pela cultura
patriarcal. Não foi inteiramente extinta porque permaneceu viva nas relações entre
mulheres e na intimidade das interações mãe-filho na infância. Essas interações
ocorrem até o momento em que a criança, ao entrar na vida adulta, vê-se obrigada
a adotar valores patriarcais dominantes. Quando isso ocorre, o filho ou filha passa
a negar a biologia do amor, deixando para trás a sensibilidade e dignidade da sua
existência, aceitando de maneira intrínseca a superioridade masculina que
caracteriza a cultura patriarcal.
O adulto das sociedades patriarcais se constitui, deste modo, como alguém
que, segundo Maturana (1993/1994), vê-se forçado a coordenar emoções e ações
que valorizem guerra, competição, luta, hierarquia, autoridade, poder, procriação,
79
crescimento, apropriação de recursos e justificação racional do controle e da
dominação dos outros por meio da apropriação da verdade. Tudo isso leva o
adulto a destruir e alterar o mundo natural no qual vive: mestre da tecnologia
propõe-se a controlar e explorar o mundo, julgando ser seu direito, na medida em
que vive a ilusão de que, por ser o ser mais inteligente da Terra, tem o direito de
destruí-la. Como conseqüência, nós, adultos de sociedades patriarcais, “vivemos,
em tensão e exigência, porque em nosso afã de ser melhores, competimos e
usamos os outros e não o nosso próprio fazer como a medida do nosso valor,
afirmando que a competição leva ao progresso e que este é um valor”
(MATURANA, 1993/2004, p. 113).
Apesar de convivermos com a autoridade e a subordinação, nós, seres
humanos, sabemos o que é participação e equanimidade por devido ao contato
com a cultura matrística na infância. Este contato faz com Maturana tenha
esperança de que os indivíduos desejem recuperar a infância e viver em
democracia:
“Sustento que nós, membros da cultura patriarcal européia, queremos a
democracia quando desejamos recuperar a dignidade, o auto-respeito e o
respeito pelos outros. Também afirmo que queremos recuperar tudo isso
somente à proporção que o vivemos em nossa infância” (MATURANA,
1993/2004, p. 109).
O desejo de democracia, no dizer de Maturana, pode fazer com que a
cultura matrística seja retomada de modo mais amplo na s-modernidade, que
a democracia, entendida como expansão das conversações matrísticas da
infância, foi, ao longo da história, a única ameaça real ao patriarcado, que as
conversações matrísticas se opõem a todos os aspectos das conversações
patriarcais. Em outras palavras:
Apesar da pressão patriarcal para negá-la e voltar a total patriarcalidade, o
modo de pensar implícito na democracia se expandiu a todos os domínios das
relações humanas, às emoções, ações e reflexões. Criaram-se espaços nos
quais o acordo, a cooperação, a reflexão e a compreensão substituíram a
autoridade, o controle e a obediência como formas de coexistência humana”
(MATURANA, 1993/2004, p. 90).
Maturana reconhece que a democracia tem se expandido pelo mundo e
que, hoje em dia, muitas nações optaram por ela como forma de governo. Estas
nações, no entanto, estão longe daquilo que o autor caracteriza como a verdadeira
80
democracia: uma coexistência neomatrística responsável, baseada no respeito
mútuo e no respeito à natureza que implica a sua realização.
A razão para estas nações estarem longe da real democracia, segundo
Maturana, é que as pessoas pertencentes a estas nações são patriarcais por
origem e por isso elas não entendem que a democracia, não é um produto da
razão humana, mas sim uma obra de arte, uma produção de nosso emocionar. É
uma forma de viver que segue o desejo neomatrístico de uma convivência
humana dignificada na estética do respeito recíproco. Além disso, a democracia
não pode ser nem estabilizada ou defendida, mas sim vivida.
“Viver em democracia significa viver de acordo com ela no processo de gerar
acordos públicos para todas as ações que se deseja que nela ocorram. É um
ato de responsabilidade pública, que surge de um desejo de viver tanto na
dignidade individual quanto na legitimidade social que ela implica como forma
matrística de vida. Falha-se quando não se realiza essa maneira de viver na
realidade” (MATURANA, 1993/2004, p. 103).
Maturana afirma que a nostalgia pelo respeito recíproco constituiu o
fundamento emocional que permitiu o surgimento da democracia na Grécia,
abrindo uma fenda na cultura patriarcal. Por meio dessa abertura, pode emergir,
em nossa vida adulta, o emocionar infantil matrístico que estava oculto. É este
emocionar matrístico que dá origem à democracia.
Recuperar a cultura matrística na atualidade seria recuperar a democracia,
da igualdade colaborativa da relação entre os sexos que caracterizou, como
vimos, a cultura matrística. Homens e mulheres viveriam como colaboradores
iguais, participando da criação de uma convivência mutuamente acolhedora e
libertadora que se prolongaria desde a infância até a vida adulta.
Para Maturana, essa convivência seria capaz de desenvolver nos
indivíduos a consciência de responsabilidade pelos próprios atos, capacitando-os
a se darem conta de que um novo mundo depende de seu fazer:
“Acredito que isso só é possível pela recuperação do modo de viver matrístico.
É ele que de fato vivemos quando, honestamente, nas relações neomatrísticas
de uma vida honesta, nas conversações que constituem a vida democrática,
tornamo-nos responsáveis por nossa racionalidade e responsabilizamo-nos por
nossos desejos” (MATURANA, 1993/2004, p. 114).
Os dois projetos apresentados, embora sejam diferentes, são importantes
81
para evitar o desânimo em relação à política, à ação humana e seu poder, traços
de uma cultura globalizada que, por meio do discurso cientifico, intensifica o
sentimento de vazio e isolamento ao reforçar a segregação e o desenvolvimento
tecnológico em detrimento do sujeito.
Instaurar um projeto de humanidade que de encontro ao conformismo
generalizado de nossa época é evitar a premissa de que o mundo foi sempre
desse jeito, embora:
“suspeitamos que por si sós nem a vida humana, nem o mundo de intenções e
afetos, de relões e de coisas que ela, põe em jogo fazem sentido, mas
diferentemente daqueles que nos procederam passamos a aceitar que isso de
fato deva ter sido sempre assim” (CASTORIADIS, 1986/1987, p. 540).
Em outras palavras, nós, pós-modernos acreditamos
“que não adianta buscar sentido para o que somos e vivemos e para aquilo que
nos rodeia que sob o peso da provisoriedade e da precariedade que
experimentos cotidianamente em relação a tudo, essa busca, quando o é vã,
é no mínimo insuportavelmente frustrante” (CASTORIADIS, 1986/1987, p. 541).
Um projeto político que procure resgatar o desejo pela contestação é
primordial à toda civilização. Recuperar a contestação, além de desenvolver a
autonomia, é redescobrir a história cultural da sociedade, ou seja, quais sentidos o
homem constrói para si, para seu mundo, individual ou coletivamente.
Contestar, ou melhor, deliberar, é ir contra a funcionalidade, é radicalizar a
sociedade, seus valores, normas, leis instituídas, levando-a ao ponto de ruptura
com o mundo próprio “pelo menos nos termos em que o indivíduo e a sociedade o
haviam construído para si” (CASTORIADIS, 1986/1987, p. 541). A conseqüência
do questionamento daquilo que foi instituído no mundo produziu, ao longo de toda
história cultural da humanidade, a filosofia e o projeto democrático, as religiões
monoteístas, a vazão moderna, o próprio capital, que podem ser entendidos como
respostas oferecidas às perguntas feitas pelos nossos ancestrais como “quem
somos nós?” e “o que será de nós?”.
Estas construções sociais ajudam os seres humanos a liberarem o seu
imenso potencial, que se encontra aprisionado na sociedade. Esta o reprime, de
forma extremamente mutiladora a fim de manter a sua integridade, seus valores e
seu tipo ideal de indivíduo que garantirá a sua continuidade.
82
Apesar de haver um tipo de sujeito predominante em cada sociedade,
gostaria de chamar a atenção para aqueles que se diferenciam na sociedade, pois
estes indivíduos investiram em ideais tais como democracia, igualdade e
autoquestionamento e foram capazes de agir de maneira diferente da previsto e,
assim, apostaram em uma sociedade e em indivíduos diferentes, menos
massificados e mais criativos. A estes sujeitos eu atribuo o termo de autônomos
desenvolvido por Castoriadis, pois são sujeitos expressivos, capazes de
transformar o mundo como expressão de si mesmos.
Acredito que foram estes sujeitos transformadores que existiram ao longo
da história que fizeram com que Castoriadis compreendesse que a verdade está
sempre por se fazer, que para atingi-la devemos criá-la, o que quer dizer, antes de
qualquer coisa imaginá-la. Além disso, acredito que esses grandes homens e
mulheres históricos impressionaram suficientemente o autor a ponto dele se
indignar com “o quão pouco fazemos com as nossas possibilidades, vivendo como
prisioneiros, esquecendo que é possível afrouxar gradualmente os laços que nos
imobilizam, até finalmente nos libertarmos deles” (CASTORIADIS, 1986/1987, p.
323).
As personagens históricas Leonardo da Vinci, Lorde Byron, Virgínia Woolf e
Dian Fossey foram citadas anteriormente por simbolizarem as possibilidades
humanas de transformação. Elas me permitem ilustrar o conceito de autonomia
porque fizeram a diferença no mundo em que viveram a ponto de serem
lembrados até os dias de hoje. Eles, contudo, apenas foram capazes de modificar
o ambiente com suas obras porque souberam conviver com outros seres humanos
socialmente conscientes, o que lhes permitiu adquirir condições necessárias para
se desenvolverem como seres autônomos, favorecendo o surgimento de
consciências espaciais, temporais e sociais.
O renascentista Leonardo da Vinci talvez seja o melhor exemplo do que
entendemos por um sujeito autônomo ou transformador. A frase, “Uma vida bem
vivida é uma vida longa”, que costuma a ele ser atribuída, resume, de certo modo,
sua vida misteriosa, da qual no fundo pouco se sabe, salvo ter nascido em 15 de
83
abril de 1452, em Anchiano, filho da união ilegal de uma camponesa de 16 anos,
Catarina, e de um advogado, Piero da Vinci, que, por imposição de sua família,
casou-se com uma mulher considerada de boa família, sem, no entanto,
abandonar seu filho ilegítimo, de cuja educação se encarregou.
Da Vinci viveu durante a Renascença, nos séculos XV e XVI. Ao contrário
do homem medieval, que compreendia que Deus era a razão de todas as coisas,
o pintor acreditava, assim como outros renascentistas, no poder humano de julgar,
de criar e construir. Apresentando esse ponto de vista em uma época influenciada
pela Igreja Católica, ele poderia ser encaminhado para o julgamento da Inquisição
e ser considerado herege. Por essa ameaça, especula-se que Da Vinci optou pela
clandestinidade para expressar o que realmente acreditava.
Para Da Vinci, Matemática, Física, Botânica e Anatomia não eram ciências
independentes da arte, mas parte integrante dela. Em sua opinião, não existiam
diferenças essenciais entre ciência e arte, pois ambas eram instrumentos para se
descrever o Universo criado por Deus, sugerindo sua tendência à
interdisciplinaridade.
As mais importantes descobertas de Da Vinci permaneceram ignoradas nos
seus manuscritos, até recentemente, quando foram compilados e publicados. O
conteúdo destes envolvia desde o funcionamento do corpo humano (asseverou
que o coração funciona como uma bomba hidráulica) até submarinos. A maior
parte destes documentos, contudo, foram destruídos porque na opinião de Da
Vinci, “havia muita maldade nos corações humanos para que lhe pudesse confiar
um segredo de tal natureza sem que praticassem assassinatos no fundo dos
mares!” (PEATTIE, 1980, p. 232).
As lendas sobre Da Vinci são inúmeras e inspiram a construção de mitos a
seu respeito, como o livro transformado em filme, Código da Vinci (2006), exemplo
contemporâneo mais evidente de que as histórias sobre o artista ainda despertam
numerosas curiosidades e muitas polêmicas.
Se o pintor preparou a base do que seria um cientista interdisciplinar, Lorde
Byron antecipou as concepções do século XX sobre independência nacional e
84
identidade individual, além de ter caracterizado uma época que serviu de
inspiração para grupos urbanas atuais como os góticos, neo-góticos, darks etc.
A libertinagem parece ter sido uma característica da família de Byron, vivida
com freqüência na Abadia de Newstead. Seu pai, Mad Jack, deserdado pelo seu
avô em função da vida desregrada que vivia, acabou se casando com Catherine
Gordon, uma rica escocesa que não conseguiu fazê-lo abandonar sua vida de
malandro tampouco seus vícios. Desse curto matrimônio nasceu, em 22 de janeiro
de 1788, George Gordon, o futuro Lord Byron. Seu pai abandonou o domicilio
conjugal quando ele tinha dois anos, data a partir da qual ficou inteiramente
entregue às exigências caprichosas de sua mãe, que procurou as melhores
referências para que Byron fosse alguém melhor que seu pai. Porém,
constantemente Catherine demosntrava a seu filho sentimentos de ira e
infelicidade.
Além disso, Byron portava uma característica que o marcaria com
fortemente: era coxo. Tal defeito foi um obstáculo na sua vida, este fazia com
que ele se sentisse envergonhado perante os outros. Na tentativa de consertar a
formação do pé direito com a qual seu filho nascera, sua mãe o submetia a
tratamentos dolorosos que se mostravam infrutíferos.
Para compensar essa deficiência, Byron tentou arduamente ser um bom
boxeador, cavaleiro e nadador. Adotou como hábito uma espécie de andar
deslizante para disfarçar seu coxeio e gostava de dramatizar falando sempre que
ira mandar amputar o que o incomodava. Na adolescência, sua relação com a
sua mãe culminou na saída de Byron de Southwell para Londres, onde tornou-se
poeta e alcançou a maioridade.
Em Londres, durante as noites, Byron acompanhava em festas seus amigos
da universidade de Cambridge, onde era considerado um estudante
imaginativamente rebelde. Enquanto todos dormiam, ele escrevia; porém, além de
boêmio, era político e famoso poeta que se vestia de preto e fingia se alimentar
apenas com água com gás e bolachas (na realidade, dirigia-se a tabernas
obscuras para ingerir pratos mais nutritivos, com carne e batatas). Sua figura tinha
85
presença e autoridade que fazia com que levasse a paz a disputas locais. Suas
aventuras com mulheres casadas e empregadas eram tema de conversa na
cidade em que vivia; mas eram, segundo Peattie (1980), ignoradas entre as
pessoas pertencentes à alta da sociedade, que consideravam o adultério um de
seus passatempos mais favoritos.
Byron casou-se com Anne Isabella (Annabella) Milbanke (1792-1860), com
quem teve sua primeira filha. Dias do nascimento da criança, ele foi informado
pelo sogro que sua esposa queria a separação. Foi durante a separação que
Anabella afirmou suspeitar da relação incestuosa entre Byron e sua irmã Augusta.
Byron acabou se separando e, não resistiu às acusações da sociedade inglesa,
que o culpava pelo fim do casamento e o suposto incesto, deixou a Inglaterra.
Após sair de Londres, Byron foi para o continente. Durante sua estada na
Suíça, Byron escreveu o “Canto III de Child Harold, O prisioneiro de Chillon” e o
poema dramático “Manfredo”, cujo conteúdo supõe incógnitas sobre o suposto
incesto escritas em versos demoníacos. em Genebra, escreveu o “IV canto de
Child Harold” e “Beppo”, uma história veneziana na qual ridiculariza a alta
sociedade de Veneza. Um ano depois, Byron começou o inacabado poema sobre
o herói-cômico Don Juan.
Nos seus últimos anos de vida, Byron foi para a Grécia e morreu naquele
país em 19 de abril de 1824, deixando seu nome e seu prestígio como uma das
principais armas gregas de independência. Em seus últimos momentos de vida,
pronunciou a seguinte frase “Pensa mesmo, então, que temo pela minha vida?
Porque deveria deplorá-la? Não a aproveitei além de todos os limites”.
Virgínia Woolf, outra personalidade que pode ser exemplo de
transformação, foi capaz de perceber a vida tal qual ela era vivenciada
esteticamente, como apresentou em sua vida e obras, principalmente Mrs.
Dalloway, cuja festa é a visão do invólucro da vida, que cerca e cria a consciência.
Este livro recentemente foi lembrado no filme As horas (2001), baseado na obra
de Michel Cunningham, que conta várias histórias, inclusive sobre a vida da
autora.
86
Escritora no século XX procurou dar voz às experiências e percepções
femininas em um mundo dominado pela realidade masculina. Abandonou a
narrativa linear e assimilou ao seu estilo o fluxo de pensamento e os monólogos
interiores, apresentando aos seus leitores a vida sem limites que sob a
superfície. Os temas relação homem e mulher; razão e instituição; diferença entre
isolamento do personagem puro e valor social e humano de se viver são
interligados por meio da tessitura urbana do romance, que diz respeito às
coincidências nas vidas dos habitantes de uma comunidade complexa.
A escritora britânica nasceu em 25 de janeiro de 1882, em Londres, filha de
Julia Jackson Duckworth e de Leslie Stephen crítico literário e fundador do
Dictionary of National Biography. Woolf cresceu e foi educada pelo seu pai em sua
casa localizada em Hyde Park Gate, pois sua mãe morreu jovem. Stella, sua meia
irmã, ocupou o lugar de sua mãe, mas morreu dois anos depois.
Nesta mesma época, seu pai começou a ficar debilitado devido ao câncer e
morreu em 1904. A morte de seu pai e de seu irmão Toby, dois anos depois, fez
com que Woolf tivesse prolongadas crises psicológicas, que tentou amenizar
refugiando-se junto à sua irmã Vanessa e seus dois irmãos, em Bloomsbury.
Nesta casa, ela participava de uma comunidade intelectual chamada de
Bloomsbury que proporcionou à vida cultural britânica um centro experimental
intelectual e artístico, com seu estilo de vida exuberante. Bloomsbury era uma
casta social, uma atitude ativa e artística em relação à vida e aos valores, uma
rede intricada de amigos, parentes, casamentos e ligações amorosas.
Bloomsbury continha movimentos artísticos importantes e idéias
fundamentais, como a da arte significante, defendidas por Roger Fry, que
organizou a famosa exposição pós-impressionista nas Grafton Galleries, em 1910.
Clive Bell, casado com Vanessa, irmã de Virginia, definiu o espírito de Bloomsbury
como “uma sede de verdade e beleza, honestidade intelectual, refinamento, senso
de humor, curiosidade, repulsa à vulgaridade, à brutalidade e à ênfase excessiva
[...]” (BRADBURY, 1990). Tratava-se de uma revolta moderna que levava a uma
nova concepção de arte que estava associada a novas idéias sobre as relações
87
pessoais, à emancipação sexual e à natureza da consciência. As convicções do
grupo não se exprimiam apenas na arte, mas também na política, no feminismo,
na teoria econômica e na historiografia e biografia. O livro mais importante
adotado pelo movimento era “Vitorianos eminentes”, de Lytton Strachery.
Publicado em 1919, relata a sarcástica história da seriedade moral e da
respeitabilidade vitorianas. Esse livro foi o grande divisor de águas, segundo
alguns autores da época, pois marcou o fim da era vitoriana.
Em 1941, Virginia Woolf vivia agoniada com seus surtos de loucura.
Profundamente atormentada pela guerra e pelo bombardeio de Londres, a qual
chamava de “a jóia entre as jóias”, suicidou-se, afogando-se durante uma crise de
depressão, perto de Monk´s House. Com a chegada de mais uma guerra
ameaçadora, toda uma era chegava ao fim (BRADBURY, 1990). Vinte e um anos
depois de sua morte, a peça do dramaturgo norte-americano Edward Albee “Quem
tem medo de Virgínia Woolf?” (1962) procurava encenar o pensamento da
escritora britânica e suas obras que tinham por objetivo descobrir quem tinha
medo de enfrentar a vida sem ilusões, da verdade, da realidade ou ilusão.
A antropóloga Dian Fossey, conhecida como a rainha dos macacos e a
mulher solitária da floresta, não inspirou uma época, não foi um gênio em várias
disciplinas nem uma grande escritora, porém, durante quase duas décadas,
desenvolveu uma campanha apaixonada para salvar da extinção os gorilas da
montanha nos montes Virunga, na África Oriental, que inspira vários estudantes e
cientistas.
“Nem o destino nem os acontecimentos me trouxeram a África”, escreveu Dian,
“Nem idéias românticas. Eu tinha o desejo de ver e viver com os animais
selvagens num mundo que ainda não estivesse completamente alterado pelo
homem“ (PEATTIE, 1996, p.208).
Graças às suas pesquisas sobre o modo de vida e comportamento dos
gorilas, Dian derrubou o mito, inspirado por Hollywood, do temível e feroz King
Kong. Aprendeu características sobre o funcionamento da sociedade dos gorilas
como, por exemplo, indivíduos apertarem os braços para significar amizade e
abaixarem-se para não parecerem ser mais altos do que o chefe do grupo.
Sua dedicação determinada em proteger estes primatas a fez entrar em
88
conflito com caçadores clandestinos e com o governo de Ruanda, que esperava
abrir um parque aberto às visitas de turistas, ao que Dian se opunha firmemente,
afirmando que “Os seus gorilas não eram animais de jardim zoológico e ameaçava
em qualquer turista que se aproximasse da sua estação” (PEATTIE, 1996, p.209).
Esta dedicação inabalável, no entanto, fez com que ela tivesse muitos inimigos,
entre eles o assassino desconhecido que a matou em dezembro de 1985.
Embora Dian Fossey tenha falecido, seu trabalho ainda vive seu livro
Gorillas in the Mist é considerado um dos melhores livros sobre primatas a ponto
de influenciar pesquisadores de todo o mundo a lutarem pela preservação do
habitat natural dos gorilas de Ruanda.
Por fim, a intenção deste último capítulo foi refletir, na companhia de
autores como Castoriadis, Giannotti e Maturana alternativas que reativem o
pensamento que vise a sociedade mais justa para sair do ciclo atual de
heteronomia. Minha hipótese norteadora foi que isso pode ser almejado pela ação
de sujeitos transformadores capazes de criar brechas nos sistemas sociais,
político e econômicos, possibilitando a emancipação de todos e não de
minorias e não pela imposição de novas formas de governo ou pela invenção de
novos modos de produção.
89
Considerações Finais
A opção, nesse último capítulo, pelo termo de “Considerações Finais” ao
invés de “Conclusão” indica que o tema abordado nessa dissertação está
permanentemente inacabado, ou seja, o é possível que seja "concluído" em
uma dissertação de mestrado.
Após ter passado quatro anos estudando, interdisciplinarmente, a família e
seus indivíduos, acredito ter encontrado uma resposta, ainda que parcial, para a
pergunta: “quem somos nós hoje?”.
Assim como nossos antepassados, os seres humanos, do ponto de vista
biológico, são “um complexo biopsíquico (genes, DNA, memória), em suas
dimensões cognitivas (neurocerebral), de subjetividade (sentimento, emoção, dor,
paixão, etc.), produtores e reprodutores. Uma síntese entre exterioridade e
interioridade (o eu subjetivo e o mim objetivo)” (WANDERLEY, 2000, p. 161).
No que diz respeito à diferença entre os sexos masculino e feminino, ainda
hoje, homens e mulheres pertencem a realidades diferentes. o substrato
biológico que distingue o ser humano em sexos, no entanto, a maneira como a
diferença é vivida é psíquica e depende, em grande parte, da cultura em que
vivemos. São os valores culturais e as formas de socialização transmitidas às
novas gerações que determinam o tipo de ser humano de que a sociedade
necessita.
A cultura em que vivemos, por muitos denominada de pós-moderna,
estabeleceu a juventude como estágio final do desenvolvimento humano, para
aumentar a nossa capacidade de adaptação em um mundo de rápidas
transformações por meio do adiamento da idade adulta. Esta extensão foi
considerada por alguns autores (MARGUILIS, 1998; MARTÍN-BARBERO, 1998;
90
URRESTI, 1998 e FEIXA, 2000) de “moratória social”, período em que o indivíduo
tem disponíveis todos os recursos para se capacitar para a vida em sociedade,
adiando atitudes que antigamente definiam a entrada na vida adulta, tais como
matrimônio e procriação.
Este período tem se tornado cada vez mais longo e por isso têm surgido
denominações específicas para esses jovens adultos que postergam a entrada na
vida adulta. Psicanalistas como Bacha (2006) e Outerial (2006) referem-se a eles
como kids adults (adultos adolescentes), adultos que se recusaram a amadurecer,
optando por se divertir eternamente, o que os torna pais irresponsáveis e omissos;
ou como grups ou grown-ups (crescidos ou adultos), adultos que não têm intenção
de se tornarem pais ou mães, mesmo que gostem de crianças. Podemos incluir
nesta lista de jovens adultos um terceiro grupo, solteiro parasita (parasite single),
formado por indivíduos desinteressados em fundar suas próprias famílias, pois
parece-lhes mais cômodo viver na casa dos pais, que oferece conforto e
possibilidade de economia, assim, os solteiros parasitas disponibilizam seus
ganhos a objetos de consumo, vistos como fontes de prazer.
Atualmente, indícios de que ser adulto ter compromissos e obrigações
– não é mais uma escolha freqüente como forma de vida. A valorização da
juventude e a recusa de envelhecer vêm se tornando imperativos categóricos e,
por isso, temos a impressão em que menos adultos parecem dispostos a exercer
funções que lhes cabem, entre elas a transmissão de valores sociais e éticos.
a impressão de que o mundo se esgota no aqui e agora e que o ser
humano está condenado a viver eternamente no presente, por isso o sujeito
contemporâneo não se considera herdeiro de uma história coletiva, capaz de
elaborar projetos para o futuro. É basicamente por isso que muitos têm analisado
a instituição familiar de nossos dias, julgando-a em crise ou, pelo menos, em
desordem, o que não significa falida ou em vias de extinção.
O filme Casamento grego (2002) é exemplo das mudanças familiares atuais
e a questão da transmissão de valores culturais e sociais. Ao retratar os conflitos
de uma família de imigrantes, o filme retrata mudanças familiares ao longo de três
gerações. Vimos que, mesmo tendo deixado de ser a família tradicional almejada
91
por seu patriarca, a família constituída por Toula e seu noivo xeno não deixou de
cumprir as funções atribuídas à instituição familiar, pois continuou a transmitir os
valores que lhe eram próprios às novas gerações. Essas, por sua vez, mesmo que
contestem saudavelmente os valores, acabarão por reproduzi-los, ainda que
muitas vezes inconscientemente.
A família Portakolos é exemplo, enfim, de como a instituição familiar se
funda na perda relativa da liberdade individual de seus membros e na aceitação
de certas responsabilidades que obrigam o sujeito a se tornar adulto. Atualmente,
a perda de liberdade e aceitação de responsabilidades estão cada vez mais
difíceis de serem suportadas pelo sujeito contemporâneo, que se ilude de que
merece viver se for fiel ao seu desejo do aqui e agora.
Maturana afirma que a história da humanidade seguiria um curso
determinado pelas emoções e por desejos e preferências em particular. Segundo
ele, são as emoções que determinam, em qualquer momento, o que fazemos ou
deixamos de fazer, muito mais do que a disponibilidade dos recursos naturais ou
oportunidades econômicas, os quais tratamos como condições do mundo cuja
existência seria independente do nosso fazer. Nossos desejos e preferências
surgem em nós a cada instante, no entrelaçamento de nossa biologia com nossa
cultura e determinam nossas ações. São eles, portanto, que definem o que
constitui um recurso, o que é uma possibilidade ou aquilo que vemos como uma
oportunidade.
A sociedade contemporânea parece ter incorporado a hipótese de
Maturana, uma vez que coloca o desejo como o motor da vida de seus indivíduos.
Para Pondé (2007), o desejo como papel central em nossas vidas seria uma
tentativa de organização da agonia humana ao redor da aposta sistemática no
desejo de felicidade como critério de vida moral e existencial. O desejo seria,
desse modo, uma aposta utilitária para higienizar o sofrimento, no entanto, ao
tentar acabar com a dor, a aposta acaba implicando na própria dissolução do
humano real, como discute Pondé:
“A identificação que a tradição utilitária (de Jeremy Bentham a Stuart Mill) faz
entre liberdade e condições científicas de possibilidade para a realização do
92
desejo de sucesso e bem-estar (a noção de progresso) é altamente significativa
do esvaziamento do sentido daquilo que é mais essencial na condição humana,
o sofrimento e a agonia. a negação pura e simples da realidade justifica o
não reconhecimento desse tormento: devido à ciência utilitarista da eficácia na
vida, ser infeliz tornou-se prova de incompetência” (2007, p. 40-41).
Este dever de felicidade faz com que, segundo Maturana, acabemos tendo
o desejo de enriquecimento ilimitado que gera miséria, uma vez que passamos a:
“destruir e alterar o mundo natural no qual somos seres vivos porque somos
induzidos por nosso orgulho de mestres do tecnológico, a querer controlá-lo e
explorá-lo, argumentando que esse é o nosso direito, visto que somos os seres
inteligentes da Terra. Vivemos em tensão e exigência porque, em nosso ade
ser melhores, competimos e usamos os outros e não o nosso próprio fazer
como a medida do nosso valor, afirmando que a competição leva ao progresso
e que este é um valor” (MATURANA, 1993/2004, p.113).
Esta constante tensão e exigência da pós-modernidade acabaram fazendo,
segundo Koltai (2004), com que alguns indivíduos contraíssem o mal-estar
contemporâneo chamado de ressentimento, que tem feito com que estes vivam no
plano apenas dos direitos e não dos deveres. Como conseqüência eles passam a
adotar o papel de vítimas, pois acham que tudo é culpa dos outros e por isso
devem ser ressarcidos constantemente pelas suas infelicidades e tropeços. Em
outras palavras eles acreditam cegamente que é seu direito serem felizes, mas
como ser feliz todo tempo é um mandato impossível de ser obedecido, uma vez
que não é “possível veicular a louca esperança de livrar o humano de seus
sofrimentos por meio de uma nova Providência divina, que agora repousaria sobre
as respostas equívocas e silêncio do outro” (KOLTAI, 2004, p.4).
Outra conseqüência da crença no direito à felicidade, segundo Bauman
(2003/2004), é a transformação do amor em líquido, pois não se aceitam
frustrações nos relacionamentos, o que faz com que as pessoas prefiram, hoje em
dia, não se comprometer em suas relações, a fim de não fechar nenhuma porta e
mantê-las sempre abertas para novas possibilidades, pretensamente, mais
satisfatórias e completas. É como se o mundo pós-moderno fosse habitado por
milhares de personagens como Will, personagem do filme Um grande garoto
(2002), que acreditava que “ao mesmo tempo em que as pessoas podem te fazer
feliz podem também te fazer infeliz”, como se tudo estivesse nas mãos do outro e
o sujeito não tivesse nenhuma responsabilidade com as escolhas de sua vida.
93
Movidos pela crença de que a relação seguinte será melhor do que a atual,
a tendência dos casais é ficarem juntos apenas enquanto tudo vai bem. O sujeito
de nossas sociedades liberais, com a onipotência que o caracteriza, ao procurar a
satisfação e o prazer imediato, torna-se incapaz de renúncias exigidas, não
pela família, como pela própria sociedade. O primado do “eu” sobre o “nós
conjugal” desvaloriza a fidelidade e a constância em prol da auto-realização das
potencialidades, colocando a existência conjugal em novos termos. O indivíduo
sabe que seu parceiro tem a liberdade de reivindicar, a qualquer momento, sua
alteridade radical e abandonar a época em que a cumplicidade cultivada ao longo
dos anos fazia os cônjuges acreditarem que envelheceriam juntos, partilhando as
lembranças de uma vida.
Dessa forma, a família atual vive um momento paradoxal. Por um lado,
apresenta-se desestruturada ou desordenada, pois constituir família tem sido para
o indivíduo pós-moderno sinônimo de sofrimentos diários devido à restrição da
liberdade individual; por outro lado, ela parece ser uma das principais
reivindicações de homossexuais que, durante séculos, foram excluídos da família.
Cada vez mais, em nossas sociedades ocidentais, homens e mulheres
homossexuais vêm manifestando o desejo de se normalizar, constituir família,
reivindicando o direito ao casamento, à adoção e à procriação assistida. Esse
desejo sugere a ausência desoladora ou a presença sufocante da família, que
permanece inscrita, indelevelmente no espírito, na alma, na identidade, na vida
destes indivíduos.
Apoiado em Castoriadis, posso afirmar que vivemos em uma época de
conformismo generalizado, somos mais heterônomos do que autônomos,
perpetuamente distraídos, zappando de uma fruição para outra, sem memória e
sem projeto, prontos para responder às solicitações econômicas que, cada vez
mais, destroem o planeta para produzir ilusões denominadas mercadorias.
Sair da heteronomia e do conformismo que a caracteriza parece-me
possível através da constituição de um projeto político que vise uma sociedade
autônoma, capaz de produzir indivíduos que invistam em ideais tais como
94
democracia, igualdade e autoquestionamento. A estes indivíduos que agem em
função desses valores eu atribuo o termo “autônomos”, na medida em que são ou
foram capazes de transformar o mundo como expressão de si mesmos. São
exemplos de sujeitos autônomos Leonardo da Vinci, Byron, Virgínia Woolf, Dian
Fossey e tantos outros que levaram Castoriadis a compreender “o quão pouco
fazemos com as nossas possibilidades, vivendo como prisioneiros, esquecendo
que é possível afrouxar gradualmente os laços que nos imobilizam, até finalmente
nos libertarmos deles” (CASTORIADIS, 1986/1987, p. 323).
Acredito que o caminho para a autonomia mencionada por Castoriadis está
na intersecção entre os projetos propostos por Wanderley e Maturana que visam a
educação cívica e a cultura neomatrística. O ponto em comum destas alternativas
para um novo mundo está no fato de que ambas poderiam ser concretizadas
por meio do pensamento complexo que Morin define como a união de todos os
saberes que permitiria nos aproximar de um conhecimento mais amplo em relação
a quem somos, conhecer a nossa relação com o cosmos e a natureza e saber que
estamos separados da natureza por conta de nossa consciência e cultura. Morin
sintetiza tais afirmações:
“Ninguém nos ensina a incerteza. Hoje, nos dão certezas. Precisamos
aprender a enfrentar a incerteza. Enfrentá-la é uma verdade na vida de cada
indivíduo, assim como para o planeta. Ninguém nos ensina a compreensão
humana. São esses os temas fundamentais que necessitam evidentemente de
uma cultura polidisciplinar. Enquanto estivermos orientados a apenas uma
disciplina, não poderemos tratar realmente desses problemas. No fundo a
verdadeira questão é a que coloca Jean-Jacques. Rousseau em seu livro sobre
educação, Émile, onde dizia que faria seu educador aprender a viver. Aprender
a viver é algo que não se aprende pelo exterior. Podemos é ajudar alguém a
aprender a viver. Acredito ser esse o objetivo” (MORIN, 2007, p. 14).
Espero que essa dissertação proporcione aos leitores reflexões sobre o
mundo em que vivem, afinal o objetivo generalizado dos estudos das ciências
sociais e humanas, além de contribuir com novos conhecimentos, é fazer com as
pessoas reflitam a respeito dos temas abordados e, se possível, aprendam de que
outro tipo de humanidade é possível.
95
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