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ANA PAULA DE SOUZA
A SOCIEDADE METONIMIZADA NO ESPAÇO DO
ROMANCE NADA DE CARMEN LAFORET
Cuiabá
2007
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ANA PAULA DE SOUZA
A SOCIEDADE METONIMIZADA NO ESPAÇO DO
ROMANCE NADA DE CARMEN LAFORET
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em
Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato
Grosso - UFMT, como requisito parcial para obtenção do título
de Mestre em Estudos de Linguagem.
Área de concentração: Estudos Literários
Orientadora: Profª. Drª. Rhina Landos Martínez André
Instituto de Linguagens da UFMT
Cuiabá
2007
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iii
BANCA EXAMINADORA
Membros titulares
____________________________________________
Profa. Drª María de la Concepción Piñero Valverde (Examinadora Externa)
Universidade de São Paulo – USP
____________________________________________
Profa. Drª Franceli Aparecida da Silva Mello (Examinadora Interna)
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT
___________________________________________
Profa. Drª Rhina Landos Martínez André (Orientadora)
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT
Cuiabá-MT, 25 de Maio de 2007.
iv
A Maria José e Paulo, meus pais, pela
compreensão eterna e incondicional.
v
AGRADECIMENTOS
Ao final desta longa e vacilante caminhada de solidão aparente, é gratificante
olhar ao redor, re-visitar um passado ainda recente e perceber que os meus lentos e
hesitantes passos estiveram sempre sondados de bem perto por pessoas queridas,
às quais ternamente agradeço
À Profa. Drª. Rhina Landos Martínez André, pela tolerância em relação às
minhas inúmeras limitações como pesquisadora iniciante e por sempre ter
acreditado em um potencial, do qual eu mesma muitas vezes duvidei;
À Profa. Drª. María de la Concepción Piñero Valverde e à Profa. Drª. Célia
Maria Domingues da Rocha Reis, profissionais e pesquisadoras às quais admirei
silenciosamente desde a primeira vista, sem imaginar o quão importantes seriam
suas perspicazes visões sobre o meu estudo;
À Profa. Drª. Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento, por ter me apresentado
ao que mais tarde seria o cerne desta dissertação: a sofrida Espanha de pós-guerra,
a sensibilidade artística de Carmen Laforet e seu relato, Nada. À profa. Drª.
Magnólia devo ainda o entusiasmo sincero demonstrado ao saber do andamento do
meu estudo, colocando-me em contato com a Profa. Drª. Margareth Santos, quem
gentilmente cedeu sua tese de doutorado sobre Nada, o que agradeço pois,
contribuiu para o enriquecimento do meu olhar sobre o romance;
Pela atenção dos coordenadores, professores e funcionários do Programa de
Mestrado, e ao Estado de Mato Grosso que por meio da FAPEMAT, concedeu-me
uma bolsa no período de fevereiro de 2006 a fevereiro de 2007;
Ao meu irmão, Diego, pelos instantes de descontração nos momentos mais
sufocantes, além do apoio tecnológico, claro;
À Vera, amiga em todos os momentos, pelas conversas infindas, por atender
aos telefonemas intermináveis e pela partilha das angustias e esperanças do
processo.
Ao Rodney, pela estima, pela ajuda técnica ao final do trabalho e pelas
conversas.
vi
Às companheiras de orientação, Ariágda e Patrícia, por repartir os mesmos
anseios e conquistas;
À Rosy, pela especial atenção dedicada a mim e ao trabalho nos instantes
finais;
Aos colegas de turma Cláudia, Degmar e Marinete, simplesmente por
estarmos lado a lado no trajeto;
A todos aqueles a quem não mencionei: amigos, familiares, alunos, ex-
alunos, colegas de trabalho e de estudos, que acompanharam ou ao menos
compreenderam meu período de introspecção;
Finalmente, agradeço a Deus pelo maravilhoso dom da vida renovado a cada
novo dia e pelas infinitas graças e dons confiados e enviados a mim, sem que eu
fizesse por merecê-los.
vii
RESUMO
SOUZA, A. P. de. A sociedade metonimizada no espaço do romance Nada de
Carmen Laforet. Dissertação de Mestrado em Estudos de Linguagem. Orientadora:
Rhina Landos Martinez André. Cuiabá: UFMT, 2007.
Nesta dissertação, investigamos a caracterização do espaço como elemento
estrutural relevante na composição do romance Nada da escritora espanhola
Carmen Laforet. Para isto, analisamos detalhadamente as figuras de personificação,
metáforas e sinestesias que compõem os trechos descritivos de cunho
impressionista e expressionista, que constituem respectivamente a exterioridade dos
diversos ambientes de Barcelona, no início dos anos 1940, e o interior da casa da
Rua Aribau, cidade e residência onde vive a protagonista-narradora ao longo do
desenrolar da trama narrativa. Para abstrair as múltiplas significações que nos
oferece a caracterização do espaço interno da casa, bem como sua relação com os
personagens que a habitam, apoiamo-nos no que postula Gaston Bachelard em A
poética do espaço. Os ambientes externos da cidade de Barcelona são lidos na
perspectiva cartográfica do que teoriza Michel de Certeau em A invenção do
cotidiano. A metáfora da negação estabelecida pelo ambiente interno da residência
e as simbologias ora positiva, ora negativa, recriadas nos diversos lugares da cidade
de Barcelona, são compreendidas a partir do conceito de Mundo demoníaco e
Mundo apocalíptico elaborado por Northrop Frye em Anatomia da Crítica.
Encontramos evidências na composição espacial que comprovam a correlação dos
símbolos da casa e da cidade como metonímias representativas da violenta
realidade social vivida na Espanha, durante o imediato pós-guerra civil.
Palavras-chave: Nada, Carmen Laforet, espaço e romance.
viii
ABSTRACT
SOUZA, A. P. de. The metonym society in the space of the romance Nothing of
Carmen Laforet. . Master Thesis in Language Studies. Supervisor: Rhina Landos
Martínez André. UFMT, Cuiabá, 2007.
In this paper we investigate the space characterization as excellent structural
element in the composition of the romance Nothing of the Spanish writer Carmen
Laforet. For in such a way, we at great length analyze the prosopopeicas,
metaphorical and sinestesicals figures that compose the descriptive stretches of
impressionist and expressionist matrix, that they respectively constitute the exterior of
diverse environments of Barcelona at the beginning of years 1940, and the interior of
the house of the Street Aribau, city and residence where the protagonist-narrator
throughout uncurling of the tram lives narrative. To abstract the multiple meanings
the characterization of the internal space of the house offers to them, as well as its
relation with the personages inhabit who it, is supported in what it claims Gaston
Bachelard in the Poetical one of the space. The external environments of the city of
Barcelona are chores in the cartographic perspective of what Michel de Certeau
theorys in the Invention of the daily one. A metaphor of the negation established for
the internal environment of the residence, and the symbols however positive,
however negative, recreates in the diverse places of the city of Barcelona, is
understood from the concept of demonic World and apocalyptic World elaborated by
Northrop Frye in Anatomy of the Critical. Finally we try to find evidences in the space
composition that prove the correlation of the symbols of the representative house and
the city as metonyms of the violent social reality lived in Spain, during the immediate
civil postwar period.
keywords: Nothing, Carmen Laforet, space and novel.
ix
RESUMEN
SOUZA, A. P. de. La sociedad como metonimia en el espacio de la novela Nada
de Carmen Laforet. Disertación de Maestría en Estudios de Lenguaje. Orientadora:
Rhina Landos Martínez André. Cuiabá: UFMT, 2007.
En esta disertación investigamos la caracterización espacial como elemento
estructural relevante en la composición de la novela Nada de Carmen Laforet. Por lo
tanto, analizamos detalladamente las figuras de personificación, metáforas y
sinestesias que componen los trechos de descripción de estilo impresionista y
expresionista, que constituyen respectivamente la exterioridad de los diversos
ambientes de Barcelona, en el inicio de los os 1940, y el interior de la casa de la
Calle Aribau, ciudad y vivienda donde la protagonista y narradora vive a lo largo de
la narrativa. Para abstraer las múltiples significaciones que nos ofrece la
caracterización del espacio interno de la casa, y su relación con los personajes que
la habitan, buscamos apoyo teórico en lo que postula Gaston Bachelard en La
poética del espacio. Los ambientes externos de la ciudad de Barcelona son leídos
desde el punto de vista cartográfico idealizado por Michel de Certeau en La
invención de lo cotidiano. La metáfora negativa establecida por el ambiente interno
de la vivienda, y las simbologías ora positiva, ora negativa, recriadas en los diversos
lugares de la ciudad de Barcelona, son comprendidas a partir de los conceptos de
Mundo demoníaco y Mundo apocalíptico elaborados por Northrop Frye en Anatomía
de la crítica. Encontramos evidencias en la composición espacial que comprueban la
correlación de los símbolos de la casa y de la ciudad como metonimias
representativas de la violenta realidad social vivida en España, durante la inmediata
posguerra civil.
Palabras-clave: Nada, Carmen Laforet, espacio y novela.
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ..................................................................................................v
RESUMO................................................................................................................... vii
ABSTRACT ...............................................................................................................viii
RESUMEN ................................................................................................................. ix
Introdução ...................................................................................................................1
1) Espanha - anos 1940: O ambiente social como referência para o espaço ficcional3
1.1) A violência reproduzida nos lares espanhóis....................................................7
1.2) A literatura num espaço social de escassez...................................................11
2) A casa da Rua Aribau: um olhar na intimidade da sociedade espanhola de pós-
guerra........................................................................................................................23
2.1) Considerações preliminares: o espaço como elemento romanesco...............23
2.2) A casa da Rua Aribau: O mundo demoníaco .................................................28
2.2.1) Devaneios da infância: A casa da Rua Aribau entre o passado e o
presente .............................................................................................................39
2.2.2) A sala de jantar: palco dos desentendimentos familiares ........................46
2.2.3) Os personagens e seus espaços individuais ...........................................50
3) O romance Nada: A escrita narrativa como cartografia da cidade de Barcelona..65
3.1) Barcelona: imagens representativas do mundo divino ...................................69
3.2) Barcelona em companhias masculinas: as decepções e o poder curativo da
cidade ....................................................................................................................78
3.3) El Barrio Chino: um mundo demoníaco dentro de Barcelona.........................87
3.4) O adeus a Barcelona......................................................................................92
Considerações Finais................................................................................................97
REFERÊNCIAS.......................................................................................................103
Introdução
Uma renovação de estética narrativa, surgiu, na Espanha do século XX, após
a conturbada crise política que levou esse país à deflagração de um dos mais
violentos episódios da humanidade, denominado Guerra Civil Espanhola, sob o
poder repressivo da ditadura franquista.
Intitulada, por críticos e estudiosos espanhóis, como Narrativa de pós-guerra
civil, essa literatura exprimia: o sentimento espanhol de derrota, a frustração dos
ideais políticos e a angústia da falta de horizontes e perspectivas.
A estética do tremendismo, que narra ambientes e ações de forma
exacerbada, grotesca e com fortes tons de violência, é, primeiramente, empregada
no romance precursor dessa renovação narrativa La familia de Pascual Duarte
(1942) de Camilo José Cela. Seguindo pelo mesmo viés, a jovem escritora Carmen
Laforet, obtém o Premio Nadal ao entregar ao público o romance Nada.
A narrativa de título curioso revela uma história semelhante à trajetória de
vida da própria autora: Andrea, uma jovem órfã de apenas dezoito anos de idade,
desembarca na cidade de Barcelona para cursar Letras e Filosofia. Na cidade
“adorada en sus sueños por desconocida” (Laforet, 2003, p. 13), a protagonista-
narradora vai viver com a família materna em uma casa localizada na região central
da capital catalã. A residência, assim como tantos outros edifícios das principais
urbes espanholas, sobrevive ao rastro de destruição provocado pela guerra, embora
mantenha registradas, em suas paredes, as marcas da violência. Ao adentrar este
espaço irreconhecível pela sua memória infantil, Andrea descobre que não é apenas
o edifício que se encontra entre escombros. Estão também destroçadas a dignidade
e a esperança de seus familiares. Como forma de compensação para a frustração
latente no interior da casa da família, a personagem se sente reconfortada nos
diversos ambientes da cidade de Barcelona, sobretudo na universidade, lugar onde
estabelece relações de amizade e onde se permite experienciar a liberdade que sua
alma juvenil anseia.
Tendo em vista a relevância com que a autora caracteriza a ambiência
romanesca e a evidente oposição estabelecida entre os espaços interno e externo,
propusemos realizar, no presente trabalho, um estudo do ambiente, no romance
Nada. A finalidade foi ressaltar a riqueza com que esse aspecto estrutural está
2
configurado na obra, procurando abstrair dessa análise as possíveis relações que o
espaço ficcional mantém com a realidade social que o contextualiza.
O estudo está organizado em três capítulos. No primeiro, pensamos na
relevância, pelo pouco conhecimento que se tem, no Brasil, sobre a história e a
cultura espanholas, em delinear um panorama que apresente as coordenadas
históricas, sociais e culturais que permeiam a produção literária de Carmen Laforet,
nos primeiros anos de sua carreira, levantando também dados sobre sua fortuna
crítica.
No segundo capítulo e antes da análise literária, realizamos leituras
sistemáticas sobre o que teorizam alguns críticos a respeito do espaço como
elemento de constituição do romance. Nossa observação se pautou no sentido
dialético do interno para o externo. Com base no que postula o filósofo francês
Gaston Bachelard, em A poética do espaço, sobre as imagens poéticas da casa,
como correspondentes psicológicas da própria alma humana, analisamos as figuras
do ambiente interno da casa da família de Andrea. Para a interpretação dessas
figuras que se configuram, no romance, como metáforas, sinestesias e
personificações, e para evidenciar a negatividade que esse espaço simboliza na
compreensão do todo narrativo, utilizamos o conceito de Mundo demoníaco
desenvolvido por Northrop Frye em Anatomia da crítica.
No terceiro e último capítulo desta dissertação, verificamos a relação entre a
constituição do espaço ficcional da Barcelona dos anos 1940 e do espaço urbano
propriamente dito, por meio da cartografia que a narradora nos oferece da cidade,
de acordo com o conceito de leitura do espaço urbano desenvolvido por Michel de
Certeau.
Com fundamento nas figuras de estilo, que compõem os diversos ambientes
da capital catalã, pesquisamos em que medida esse ambiente coletivo estabelece
oposição em relação ao espaço interno da casa da família da protagonista, como um
pólo de positividade que pode ser entendido, a partir da metáfora do Mundo divino
de Frye. No conjunto de imagens negativas que a narradora também cria sobre o
espaço urbano de Barcelona, evidenciamos de que maneira a difícil realidade social
da Espanha, durante os anos de escassez do imediato pós-guerra, materializa-se
nos ambientes externos descritos ao longo do romance.
1) Espanha - anos 1940: O ambiente social como referência
para o espaço ficcional
Guerra
(fragmento)
Un fantasma de estandartes,
una bandera quimérica,
un mito de patrias: una
grave ficción de fronteras.
Músicas exasperadas,
duras como botas, huellan
la faz de las esperanzas
y de las entrañas tiernas.
Crepita el alma, la ira.
El llanto relampaguea.
¿Para qué quiero la luz
si tropiezo con tinieblas?
Pasiones como clarines,
coplas, trompas que aconsejan
devorarse ser a ser,
destruirse piedra a piedra.
Relinchos. Retumbos. Truenos.
Salivazos. Besos. Ruedas.
Espuelas, espadas locas
abren una herida inmensa.
Después, el silencio, mudo
de algodón, blanco de vendas,
cárdeno de cirugía,
mutilado de tristeza.
El silencio. Y el laurel
En un rincón de osamentas.
Y un tambor enamorado,
como un vientre tenso, suena
detrás del innumerable
muerto que jamás se aleja.
(Miguel Hernández, Poesía)
Enquanto o mundo assistia à deflagração da Segunda Guerra Mundial, o
Estado Espanhol, agora sob o domínio do governo ditatorial de Francisco Franco,
mantinha uma postura de neutralidade em relação ao conflito internacional que se
expandia pela Europa e atraía as atenções da comunidade mundial. Apesar da
dependência em relação aos governos nazi-fascistas da Alemanha e da Itália, ao
longo dos três anos de duração da Guerra Civil, de acordo com Antonio Domínguez
Ortiz (2000, p. 347), Franco optou por não se envolver na Segunda Guerra Mundial,
alegando o desgaste militar e econômico sofrido pelo país nos anos anteriores. A
reciprocidade entre Mussolini, Hitler e o ditador espanhol dissipava-se
gradativamente à medida que Franco percebia o interesse alemão e italiano sobre
4
territórios espanhóis e admitia a possibilidade de aceitar a ajuda econômica dos
aliados na reconstrução da nação.
O país se encontrava, sob escombros, em uma situação de penúria
econômica e de depressão social, após o término da Guerra Civil que, de 1936 a
1939, havia separado a Espanha em dois blocos opostos. Embora existissem, no
interior de cada um deles, profundas divergências políticas e ideológicas
identificamos em um dos grupos, combatentes da causa republicana coligados em
uma Frente Popular
1
que detinha o poder legítimo até o ano de 1936, quando foi
acometido por um golpe de estado organizado pelo Exército Espanhol, aliado às
diferentes agremiações da direita tradicionalista
2
.
Após três anos de violentos combates, a vitória dos militares insurgentes
apoiados pela direita aconteceu, segundo Ortiz (2000, p. 339), em razão do eficaz
apoio dos governos totalitários, do eficiente avanço militar e depois da morte dos
principais líderes do levante. Contribuíram com a derrocada da causa republicana,
por exemplo, a falta de unidade entre os díspares interesses dos grupos políticos
envolvidos naquela coligação, além de uma ajuda externa pouco eficaz e
financeiramente inviável, devido ao seu alto custo.
Segundo Martin Blinkhorn (1994, p. 78-9), a Guerra Civil Espanhola deixou
como saldo, ao país, a cifra de mais de um milhão de mortos e uma economia
destroçada pelos gastos gerados pelo conflito. A situação se agravou por causa das
crises da indústria, ainda incipiente, e da agricultura castigada por subseqüentes e
rigorosas secas, pela migração de trabalhadores do campo para as cidades e pelas
baixas materiais e humanas sofridas no meio rural, onde muitas das batalhas foram
travadas.
Esse delicado quadro econômico rapidamente evoluiu para uma profunda
desigualdade social. A destruição provocada pela Guerra Civil deixou a população
sem moradia e a crise agro-econômica ocasionou a falta de alimentos e de recursos
essenciais. Como medida paliativa, o governo criou um sistema de racionamento de
provisões para as famílias mais afetadas, entretanto, sua organização era
1
Segundo Martin Blinkhorn (1994, p. 12), a Frente Popular era constituída por uma ampla coligação
que reunia republicanos e o Partido Socialista. Com a deflagração da Guerra Civil, uniram-se a esse
grupo conservadores, nacionalistas, católicos bascos, catalanistas, republicanos moderados e de
esquerda, socialistas da direita e da esquerda, comunistas stalinistas e anti-stalinistas, além de
anarquistas, todos empenhados em coibir o avanço do fascismo na Espanha.
2
De acordo com Blinkhorn (1994, p. 60), o grupo que se opunha aos republicanos era denominado
insurgente, nacionalista ou fascista, e reunia militares rebelados, falangistas, carlistas, monarquistas,
alfonsistas, conservadores independentes e católicos.
5
ineficiente. A escassez de produtos inflacionou os preços, gerando um comércio
ilícito que enriquecia uma elite minoritária que se beneficiava da decadente situação
do país. O isolamento da Espanha, durante a Segunda Guerra Mundial, dificultou
ainda mais o seu processo de reconstrução.
Todos esses fatores, que levantamos como elementos desencadeadores da
agravante crise espanhola, segundo José Luis Comellas (1989, p. 313), impediam a
imediata retomada do equilíbrio social da nação, contribuindo para a instauração do
autoritarismo, como melhor veículo ideológico capaz de garantir a conformidade da
sociedade em relação à demora em restaurar o país.
De acordo com Comellas (1989, p. 308), os primeiros anos do Governo
Franco foram tempos difíceis, tempos de perseguição das liberdades políticas, com
a supressão dos diversos partidos e com a formação de um forte esquema
repressivo. O regime franquista foi um dos mais longos da história da Espanha e se
caracterizou por uma uniformidade estável e uma evolução gradual e lenta. Franco
não apresentava exatamente o perfil de um líder militar apto para permanecer no
cargo por tanto tempo. À princípio, seu maior rito foi a condução de parte do
Exército Espanhol, desde o norte da África até a tomada de determinadas regiões do
território peninsular. Posteriormente, a não-vinculação explícita da imagem do
General, com os diferentes grupos políticos que o apoiaram, favoreceu sua
continuidade na liderança. Apesar da indefinição ideológica da postura de Franco
como Chefe de Estado, seu governo tinha, como principal pilar, a ordem militar
calcada no apreço pelos tradicionais valores espanhóis de respeito à Igreja, à tria
e à Família como instituições soberanas, ideário comum entre os distintos grupos
conservadores que o ampararam.
Para JoRamón Montero (1986, p. 100-2) e demais historiadores, o período
compreendido entre 1939 e 1945 aproximadamente, foi o momento em que a
ditadura franquista mais se aproximou da feição totalitária e fascista que
predominara na Europa. Aos poucos, o Governo Espanhol foi se afastando desse
modelo, à medida que a Falange
3
começou a perder seu prestígio e Franco
introduziu a fé católica como um dos construtos ideológicos de seu regime. Essa
valorização do aspecto religioso distinguia-se claramente do perfil político dos
3
Organização política fundada em 1933, pelo General José Antonio Primo de Rivera. Constituía,
segundo Blinkhorn (1994, p. 88) um partido conservador que se inspirava no fascismo italiano. Foi um
dos núcleos do movimento nacionalista. Seus líderes exaltavam a violência, idealizavam um estado
totalitário e imperialista, além de tentar angariar apoio junto à classe trabalhadora, prometendo um
socialismo radical demagógico.
6
totalitaristas alemães e italianos, o que provocou certo distanciamento entre o Chefe
do Estado Espanhol e seus antigos aliados. Segundo Julio Rodríguez Puértolas
(1987, p. 81), a religiosidade fazia mais sentido que o ateísmo no contexto do povo
espanhol, tradicionalmente católico.
Nesse primeiro período do regime franquista, a sociedade espanhola se
encontrava claramente dividida. O topo da pirâmide estava ocupado por uma
pequena elite composta pela aristocracia tradicional e conservadora, pelos
envolvidos diretamente com a cúpula do poder político e militar e pelos novos ricos
que acumulavam capital por meio de atividades ilícitas. A corrupção se tornou
prática comum nesse segmento social que apoiava o autoritarismo como melhor
saída para a crise. O restante da sociedade estava organizado em outras duas
partes: uma reduzida e resistente classe média e uma ampla classe de miseráveis.
Dentre esses dois últimos grupos, havia uma pequena minoria que se opunha
ideologicamente ao regime, mas que se mantinha silenciosa ante a implacável
censura que impedia qualquer manifestação contrária ao sistema. Em contraposição
a esse reduzido grupo, concentrava-se uma grande massa alienada que se movia
dentro de uma atmosfera letárgica e que por esta razão o encontrava qualquer
motivação para questionar a repressão instaurada.
Parte da Igreja Católica assumiu, nesses primeiros anos, um importante papel
no apoio ao autoritarismo de Franco. Segundo Montero (1986, p. 102), por meio da
ACNP (Asociación Católica Nacional de Propagandistas), a Igreja desempenhou
uma relevante função ideológica na consolidação do autoritarismo, sobretudo entre
os anos de 1939 a 1945. As estratégias de ação desse segmento da Igreja eram as
de se aliar ao Exército e aos grupos políticos conservadores, aproximar-se da
Falange para desvesti-la de sua feição totalitarista e se impor na sociedade a partir
da retomada do controle sobre a educação escolar e de alguns setores da
economia.
A escritora Carmen Martín Gaite (1987, p. 17) lembra que, à princípio, Franco
recebeu o apoio do Papa Pio XII. Apesar de ambos manterem, entre si uma obscura
e indefinida relação, o líder da Igreja no Vaticano anunciava em seus discursos,
certa predileção pela Espanha, um país reconhecidamente católico de onde sairia a
salvação do mundo. Franco, com sua postura de apreço pelo tradicionalismo
católico espanhol, representava perfeitamente o ideal do então criado concepto de
7
españolidad
4
, que os republicanos haviam conseguido macular ao se deixar
influenciar pelo ateísmo do comunismo soviético e pelo materialismo das novas
potências econômicas, que começavam a despontar no cenário do capitalismo
internacional.
Martín Gaite além disso relata como era o cotidiano da sociedade espanhola
de pós-guerra, ou seja, a história das micro-relações estabelecidas naquele contexto
sócio-cultural. A ditadura franquista não afetava apenas as coordenadas políticas e
econômicas do país, como influenciava também nos hábitos e no posicionamento da
sociedade.
1.1) A violência reproduzida nos lares espanhóis
O país convivia com uma propaganda oficial que condenava o desperdício
econômico e exigia obediência a um padrão comportamental claramente
influenciado pela doutrina da Igreja Católica e pelos ideais dos grupos
conservadores, ambos os segmentos responsáveis pela manutenção da ideologia
do Estado junto à população.
Esta nova etapa histórica do país preconizava moderação e cautela por parte
de toda a sociedade, passível de repreensão caso houvesse qualquer desvio dos
modelos comportamentais vigentes. Menções à história recente do país estavam
proibidas, em contraposição à valorização de um passado longínquo, que remontava
ao período em que a Espanha se orgulhava de ser um Império, uma das maiores
potências políticas e econômicas do mundo. Personalidades desse passado eram
convertidas em exemplos da luta incansável e da abnegação do povo espanhol;
estavam vetadas as alusões aos problemas atuais que o recém terminado conflito
havia trazido como conseqüências para a nação. A dura realidade de miséria,
destruição, repressão e violência era escamoteada por um discurso corrente de
vitória dos nacionalistas, representados ideologicamente pela imagem positiva dos
bons que derrotaram a face da sociedade espanhola - os republicanos.
4
Conceito ideológico criado e sustentdo pela propaganda oficial, sobretudo nos primeiros anos da
ditadura franquista. Este conceito traduzia a imagem idealizada do cidadão espanhol autêntico, ou
seja, católico, conservador, respeitador das normas de moral impostas e das instituições soberanas
como a Igreja, o Estado e a Família. Um trabalhador incansável e consciente da necessidade de seu
sacrifico individual para a reconstrução coletiva do país. (Martín Gaite, 1987, p. 19)
8
O trabalho infatigável do cidadão espanhol era colocado como único meio de
contribuir para com a reconstrução, o apenas da economia, como também do
sentimento de moralidade do país. A necessidade de economizar os escassos
recursos materiais se estendia às relações afetivas das pessoas, configurando uma
psicopatologia social. Era como se viver plenamente constituísse também uma forma
de desperdício imperdoável. Esse cuidado com os gastos desnecessários, tanto de
dinheiro como de energia vital, manteve-se perene na sociedade espanhola por
décadas, mesmo depois de passado o período de maior pobreza.
A economia de sentimentos afetava diretamente o contato entre os seres
humanos, o que se traduzia em frígidas e ríspidas relações familiares e em um
convívio superficial. As pessoas construíam para, e entre, si, máscaras de felicidade
aparente, que ocultavam a realidade de casais que se suportavam em
relacionamentos arruinados, tudo em prol da manutenção do bom exemplo de vida
conjugal para os filhos. Estes últimos, que passaram pelo desconforto de atravessar
a infância e a adolescência durante esse obscuro período da história espanhola,
foram os mais prejudicados pela economia de afeto e amargaram o ressentimento
pela falta de atenção orgulhosamente negada por seus pais. Por essas razões,
constatamos que, a atmosfera familiar reproduzia, no interior dos lares espanhóis, a
mesma asfixia tensa e pesada que cerceava, a espontaneidade das relações
sociais, para além das paredes do ambiente doméstico.
Nenhum outro segmento da sociedade espanhola sentiu mais o peso da
manutenção desse discurso de equilíbrio aparente, de laboriosidade e de respeito às
sacralizadas instituições espanholas, do que a classe média. Responsável pela
produção e pelo consumo que alavancava a crise econômica e enriquecia a elite
minoritária, era na classe média que o discurso oficial repercutia e se perpetrava
como importante recurso de sustentação do status quo, uma vez que, para a classe
miserável, o ideal de trabalho e sacrifício não fazia sentido algum se comparado às
desumanidades vividas cotidianamente.
No seio desta classe, a figura da mulher representava uma peça fundamental
no tocante à disseminação da ideologia oficial, pois era ela a responsável por
reproduzi-la no interior do microcosmo familiar. Nesse período da história da
Espanha, houve grande retrocesso em relação às conquistas femininas iniciadas
nas primeiras décadas do século XX. Esse retorno ao antigo e tradicional perfil da
9
mulher autenticamente
5
espanhola, era visto de forma positiva, pois o discurso oficial
fazia crer que, ao negar a modernidade, o país se preservava de uma série de
problemas enfrentados pelas nações estrangeiras.
A partir de então, o objetivo mais digno para o qual a mulher devia se dedicar
era o matrimônio, instituição social intocável que devia transmitir uma aparência de
felicidade constante, ainda que dissimulada. Como mães, estas mulheres eram
conduzidas a reproduzir na relação com os filhos a mesma lógica da contenção
econômica, o que se refletia na escassez de afetividade. As crianças e os jovens
espanhóis eram educados sob a austeridade que a própria sociedade demonstrava
e exigia das pessoas. Entretanto, nem todas as jovens conseguiam, naqueles anos
do imediato pós-guerra, encontrar um esposo, uma vez que a Guerra dizimara boa
parte da população masculina em idade produtiva. A Espanha era um país de
mulheres viúvas e solteiras que repentinamente se viram responsáveis pelo sustento
de suas famílias.
Convenientemente, essas mulheres se converteram em mão-de-obra útil para
um mercado de trabalho praticamente devastado de trabalhadores. Pensando nessa
contingência econômica, a Falange criou uma organização intitulada Sección
Femenina, um aparato ideológico que, além de contribuir para a valorização do perfil
feminino estabelecido pelo discurso vigente, responsabilizava-se também pela
formação cnica e profissional das mulheres em fase produtiva. A Sección
Femenina se organizou institucionalmente por meio das Escuelas Municipales del
Hogar, cujo ingresso era obrigatório para as mulheres solteiras ou viúvas, com idade
entre 17 a 35 anos, que desejassem continuar os estudos ou ser admitidas como
profissionais em carreiras públicas ou em empresas privadas vinculadas ao Estado.
Em geral, a vida das mulheres mantenedoras de lares era bastante penosa, o que
fazia com que a maioria delas continuasse desejando o matrimônio como
oportunidade de deixar a sacrificada e desvalorizada condição de solteira.
Pilar Primo de Rivera
6
, Delegada Nacional da Sección Feminina, em suas
aparições públicas, ocupava-se de enfatizar o perfil ideal para a mulher espanhola:
5
Nesse período, propagava-se o ideal de que a mulher espanhola era a mujer muy mujer, ou seja,
alguém que apesar de valorizar a própria feminilidade, era consciente de sua posição inferior naquela
sociedade predominantemente machista. Esta mulher atendia a um perfil comum: devia ser católica,
boa mãe e esposa exemplar, dedicada à família, servil ao esposo, aos irmãos e aos pais, além de ser
trabalhadora e prendada. Devia observar, sobretudo, a conduta cristã e posicionar-se contrária à
extravagância disseminada pelo feminismo. (Martín Gaite, 1987, p. 27)
6
Filha do General José Antonio Primo de Rivera, ex-ditador espanhol. Pilar Primo de Rivera fundou a
Sección Femenina da Falange e foi sua Delegada Nacional por 43 anos, todo o tempo de existência
da instituição, sendo a principal porta-voz do modelo de mulher ideal para a Espanha da época.
10
donas de casa modestas, econômicas, submissas, prudentes e preservadoras da
moral e das tradições que o feminismo ameaçava. Segundo a ideologia sustentada
pelo franquismo, as mulheres deviam abdicar do cuidado extremado com a beleza
física, zelando apenas por uma imagem higiênica e agradável, porém discreta. A
mulher que insistisse em resgatar os valores da emancipação feminina, geralmente
associados e reduzidos à futilidade e ao consumismo atribuído às mulheres
estrangeiras, era considerada uma traidora do concepto de españolidad.
Nesse contexto, a relação entre os gêneros tornou-se significativamente
complexa. Com a proibição da educação mista, os universos masculino e feminino
foram afastados e a amizade entre rapazes e moças era vista com acentuado
preconceito. A exploração da prostituição expandiu-se devido à pobreza extremada
da classe miserável e instigada por uma cultura machista que permitia aos homens
jovens o prazer barato como forma de auto-afirmação de sua masculinidade. Em
contrapartida, no ambiente familiar da classe dia, extremamente matriarcal, havia
uma supervalorização das figuras femininas, protegidas por pertencerem às boas
famílias. Entretanto, podemos observar que esta mesma sociedade que resguardava
as suas mulheres de bem, também as culpava pelo desequilíbrio familiar, o qual era
considerado um fracasso no desempenho do papel social feminino.
Diante de todo esse cenário de miséria material que se constatava na
destruição das cidades e do campo, na fome e na desigualdade social, vemos uma
sociedade submersa numa profunda crise de valores que redundava em posturas de
violência extremada ou de profunda alienação. Esse status quo, benéfico para a
classe dominante, era mantido por um discurso oficial que procurava ocultar a
crueldade de toda a realidade por meio da repressão e da disseminação de um
pensamento acrítico, segundo o qual, somente o trabalho exaustivo, a economia e o
silêncio seriam capazes de levar o país à restauração.
A dificuldade da sociedade espanhola em sobreviver e estabelecer relações
minimamente humanas de convívio permeia os diferentes processos de produção
artística da época, conforme veremos a seguir, dando especial atenção à arte do
fazer literário.
11
1.2) A literatura num espaço social de escassez
Ao pensarmos as diferentes manifestações artísticas, na Espanha, no início
dos anos 1940, consideramos o ambiente social que, à princípio, parecia avesso e
estéril à sensibilidade estética. A privação dos contingentes sicos para a
população como o alimento e a moradia, dificultavam o investimento econômico para
as artes em geral. A dignidade humana, esfacelada pelo desemprego e pelas
humilhantes condições de vida, repercutiu num silêncio de quem, privado do direito
de se expressar, acabou por se habituar ao vazio expressivo e a aceitar com
naturalidade a ausência do desejo de manifestação criativa.
Vários estudiosos desse período histórico e artístico da Espanha, entre os
quais Angel Basanta (1985, p. 11) e Rodríguez Puértolas (1987, p. 84), afirmam que,
durante o imediato pós-guerra, a vida cultural no país sofreu significativa alteração,
sobretudo por conta do exílio e do desaparecimento de artistas e intelectuais
perseguidos pelo autoritarismo franquista. Pese a isso, o isolamento político ao qual
a Espanha foi submetida, acarretou também um isolamento cultural. A circulação no
país da produção literária internacional estava censurada, assim como estavam
proibidas as obras escritas por autores espanhóis exilados. O governo fomentava a
tradução e a leitura de literatura estrangeira de qualidade questionável, além de
incentivar uma produção literária de apologia declarada ao regime franquista. A
criação de prêmios literários como o Nadal
7
em 1945, procurava estimular a
produção literária ante aquele cenário de completa estagnação.
Isto nos conduz a entender que, dentro desse contexto, dois posicionamentos
artísticos podiam ser observados: a atitude evasiva daqueles que preferiam ignorar
os últimos acontecimentos históricos e a realidade vivida; uma postura oposta,
nutrida pela necessidade de ao menos relatar o cotidiano da violência velada e
consentida.
Os escritores que permaneceram no país habituaram-se a uma produção
literária sufocada pela arbitrariedade, o que gerou um forte sentimento de auto-
censura. Segundo Basanta (1985, p.11), a inacessibilidade à produção literária
internacional, e à boa parte da literatura espanhola, fez com que os jovens escritores
7
Prêmio instituído no ano de 1945 para estimular a criação literária e artística na Espanha. O país
vivia um momento de crise no setor cultural devido ao exílio e a morte de vários de seus melhores
artistas durante a Guerra Civil. Carmen Laforet foi a primeira autora a receber o prêmio por sua
inaugural obra Nada, publicada no mesmo ano de fundação do prêmio que é, ainda nos dias atuais,
um dos mais tradicionais naquele país.
12
da geração literária que começava a despontar, assumissem uma postura de
autodidatismo e criassem uma forma diferente de expressar esteticamente o que se
vivia durante aqueles anos de opressão, sem ferir, no entanto, os limites da censura.
Essa nova geração de escritores foi denominada por vários estudiosos como
Generación de 1936, uma vez que a maior parte de seus autores viveu o horror da
Guerra Civil durante sua juventude e começou sua produção literária durante o
conflito, intensificando-a após o seu término, em 1939. Esse grupo de autores
encontrou na prosa, a força expressiva para uma literatura realista, porém, isenta de
partidarismos políticos e de crítica social aguda. Seu objetivo consistia apenas em
registrar um valioso testemunho da vida na Espanha durante o imediato pós-guerra.
No decorrer do levantamento de informações críticas, constatamos que
estudiosos da literatura espanhola concordam em afirmar que, após a Guerra, a
primeira obra a romper o silêncio criativo no país foi o romance La familia de Pascual
Duarte (1942) de Camilo José Cela. De acordo com Rodríguez Puértolas (1987, p.
93-4, 109), Cela parte da tradição do romance picaresco
8
espanhol para, com uma
linguagem apurada embora repleta de violência e ironia, criar um relato
autobiográfico de um assassino brutal. O protagonista Pascual Duarte relata seus
crimes e sofrimentos procurando se redimir por meio de um raciocínio determinista
que, segundo o crítico, justifica seu comportamento como sendo reflexo do ambiente
social desequilibrado do qual fora vítima durante toda a sua vida. Ao retomar certos
tons formais da narrativa espanhola realista do culo XIX e ao optar pela violência
expressiva e narrativa do estilo tremendista
9
, Cela procura renovar sua escritura
oferecendo ao leitor certa multiplicidade de pontos de vista e perspectivas. Esse
romance apresenta também elementos existencialistas, ao tratar do vazio da
existência humana e da inadequação do ser ao seu entorno social. Segundo Oscar
Barrero Pérez (1992, p. 59), a narrativa de Cela apresenta o processo de
desumanização do ser por meio de uma visão completamente negativa do homem,
8
Segundo Felipe B. Pedraza Jiménez e Milagros Rodríguez Cáceres (1991, p. 62-3), a picaresca é
um gênero romanesco que surgiu na Espanha no século XVI. Nessas narrativas o protagonista,
advindo de classes sociais inferiores, relatava à maneira de autobiografia os infortúnios pelos quais
passara ao longo da vida na luta pela própria sobrevivência. Esse personagem constituía, portanto,
um autêntico anti-herói, que se opunha ao ideal medieval do herói das novelas de cavalaria. Tinha
como características a inteligência e a sagacidade para livrar-se dos problemas imediatos sem
importar-se com a nobreza de seus atos, justificados sempre pelas agruras às quais fora submetido
durante sua existência.
9
Oscar Barrero Pérez (1987, p. 263-5), define o tremendismo como uma técnica narrativa que
enfatiza o grotesco, o repulsivo e a violência das relações humanas com a finalidade de chocar o
leitor. Através da ótica do tremendismo tem-se uma visão pessimista do mundo e do homem,
reduzido à condição primitiva de animal e sujeito às degradantes imposições do meio social.
13
que se relaciona afetivamente de maneira superficial, tornando-se incapaz de
expressar sentimentos de nobreza e elevação de espírito.
Outra obra que surge nesse cenário sócio-cultural é o
romance Nada, um relato autobiográfico escrito pela jovem autora
Carmen Laforet que, aos 23 anos de idade, vence a primeira convocatória do Premio
Nadal e publica sua primeira obra.
No romance de Laforet, o enredo recupera a memória recente da protagonista
Andrea, narrando o decorrer de um ano na vida da jovem órfã que, aos 18 anos de
idade, deixa uma pequena cidade no interior da Espanha para estudar em
Barcelona. Nesta cidade, a personagem se vê obrigada a conviver com parte de sua
família materna, pessoas com as quais não mantinha contato desde a infância.
Trata-se de seres que representam a decadente classe média espanhola e que
demonstram, em sua constituição psicológica perturbada, as conseqüências da
violência da recém terminada Guerra Civil. Num retrato realista da penúria material e
humana provocada por um regime arbitrário, a realidade do entorno social se traduz
em desentendimentos brutais pelo domínio do poder nas micro-relações familiares.
Ao longo da narrativa, a protagonista atravessa o caminho de transição entre a
adolescência e a vida adulta. Esse processo, naturalmente conturbado em sua
própria essência, torna-se potencialmente doloroso para Andrea, que acumula mais
decepções que encantos ao ter sua existência cindida entre um decadente espaço
doméstico de relações humanas degradadas e o espaço universitário, lugar onde a
jovem não encontra mais que superficiais amizades que reforçam a inferioridade de
sua condição social.
Segundo Domingo Ródenas de Moya (2001, p. 220-1), as obras La familia de
Pascual Duarte de Cela e Nada de Laforet, tornaram-se importantes referências
para a literatura espanhola de sua época sendo consideradas, na ocasião de suas
publicações, acontecimentos sócio-literários que romperam com o modelo narrativo
e o padrão temático vigentes. Para o crítico, trata-se de romances que re-
significaram todo um cenário cultural e literário sufocado pelo silêncio imposto por
uma censura institucionalizada:
La primera nota discordante en la calma amordazada de los
primeros años cuarenta la dio Camilo José Cela con su Pascual
Duarte, inspirado en una estética feísta, llena de sordidez y violencia,
que pronto se conoció como tremendismo. La segunda, con ecos de
14
escándalo, la dio Carmen Laforet con Nada. (Ródenas de Moya,
2001, p. 221)
Uma das principais inovações estéticas constatadas nessas narrativas foi a
de propor o abandono do realismo tradicional, para apresentar um encontro entre
ficção e realidade social. Essa junção está representada por meio de descrições
agressivas e exacerbadas da degradante condição humana vivida pela população
espanhola, durante os anos que sucederam o fim da Guerra Civil
.
Voltando-nos especificamente para a crítica em torno da obra laforetiana,
destacamos, como um dos elementos relevantes, a preocupação dos estudiosos de
sua narrativa, com a relação estabelecida entre os relatos ficcionais da autora e sua
própria trajetória de vida. Em Nada, por exemplo, a característica autobiográfica está
no fato de que a história de Andrea guarda estreita analogia com um determinado
período da juventude de Laforet, quando a escritora também deixou o interior do
país para dar continuidade aos seus estudos na capital catalã. Esse detalhe
biográfico apresenta uma habilidade de Laforet como narradora: sua forma
perspicaz e criativa de se nutrir de personagens e histórias de sua própria vida
cotidiana para construir seres ficcionais e enredos romanescos. Em Nada, Andrea
sugere ser a própria Laforet aos dezoito anos de idade e recém chegada a
Barcelona. O choque que a personagem sofre ao redescobrir a cidade arrasada pela
guerra e pela escassez do pós-guerra, parece ser o mesmo sentimento que invade a
jovem escritora que, assim como sua heroína, precisa viver junto à família materna,
percebendo as cicatrizes que a violência deixara nas pessoas. Sobre a relação
autobiográfica entre escritora e personagem, comenta a própria Laforet numa
entrevista compilada e publicada pela jornalista Imaculada de la Fuente:
El ambiente, el tipo de personajes, era mi vida en Barcelona y, por
lo tanto, no necesitaba preparar un personaje de mi edad y viviendo
en un tiempo determinado en una determinadísima ciudad que yo vi
(te digo esto porque muy bien que sabes que eso no quiere
decir que yo pensase hacer biografía). (…) a Andrea no tuve que
inventármela, por el hecho de que tenía la edad que yo tenía al llegar
a Barcelona y la misma capacidad de sorpresa. (Laforet apud De la
Fuente, 2005, p. 13)
Conforme percebemos nesse depoimento, a autora sempre fez questão de
esclarecer que seus romances não eram apenas autobiografias. Segundo Joaquín
15
Entrambasaguas, o assunto que merece ser discutido, não é a possível classificação
dos romances laforetianos como autobiografias. Para o estudioso, que se
ressaltar a forma como a escritora transforma aspectos de sua vida particular, em
ricos elementos para a ficção:
Difícil o imposible es probar lo que de autobiografía deja un autor
en su creación, y más aún si éste lo niega, como corrientemente ha
hecho Carmen Laforet, (…) la autobiografía es el fundamento de las
dos novelas
10
de Carmen Laforet, (…) en lo que tienen de motivos,
de líneas generales, para que la autora los eleve, transformándolos,
a la categoría de creación literaria. (Entrambasaguas apud De La
Fuente, 2005, p. 12)
Segundo a crítica especializada na obra de Laforet, outro elemento
romanesco construído com propriedade pela autora, são as personagens, sobretudo
aquelas que representam os papéis femininos. Ao criá-las, a autora se desvencilha
do arquétipo das protagonistas das chamadas novelas rosas
11
. De acordo com
Teresa Rosenvinge (2005, p. 7), estudiosa dedicada às personagens femininas da
narrativa laforetiana, a escritora se tornou uma espécie de precursora do romance
feminista em plena Espanha franquista. A importância de suas personagens
femininas para a literatura e para a sociedade espanhola da época, dá-se pelo fato
de que se trata, ou de mulheres pouco convencionais para o seu contexto, ou de
arquétipos perfeitamente reconhecíveis naquela realidade sócio-cultural. Laforet
representava, por meio dos papéis femininos, uma visão realista e livre de
idealismos sobre o cotidiano da mulher espanhola. Sua preocupação estava em
relatar a amargura diária imposta às mulheres, vítimas da repressão de um discurso
oficial que pretendia torná-las repetidoras e mantenedoras do respeito aos valores
morais e religiosos de subjugação feminina, conforme explica Rosenvinge:
Para medir el valor exacto que tiene la obra de Carmen Laforet
hay que recordar que lo que escribió fue escrito en la peor España
posible, en un país maniatado donde las mujeres solteras y casadas
10
O estudioso se refere aos dois primeiros romances de Laforet: Nada e La isla y los demonios.
11
Literatura popular de qualidade questionável que circulava entre o público leitor feminino na
Espanha nas primeiras décadas do século XX. Segundo a professora Valéria de Marco (2000, p.
251-2), as protagonistas das novelas rosas apresentavam perfis bastante corriqueiros. Tratava-se de
mulheres geralmente jovens, castas, ingênuas, virtuosas e laboriosas que passavam boa parte da
ação narrativa preocupadas em empreender uma difícil batalha contra o mal, da qual saiam sempre
vitoriosas. Como prêmio, obtinham o casamento perfeito com um herói idealizado, o que coroava os
romances com um clássico e previsível final feliz.
16
eran ciudadanas de segunda a las que se les exigía obediencia,
recato, sumisión, laboriosidad, etcétera. Mujeres de las que se
dudaba cuando osaban traspasar la frontera entre el mundo de lo
privado, la casa y la familia, y lo público, ya a las que se quiso educar
sólo para ser estupendas amas de casa, deliciosas y poco más.
Carmen Laforet demostró lo que las mujeres eran escribiendo sobre
ellas, mujeres de carne y hueso, mujeres reales con las que creó un
extenso retrato literario al que siempre se deberá acudir cuando
alguien quiera saber cuál fue el papel de las mujeres durante el
franquismo y cuál fue el papel que se les quitó. (Rosenvinge, 2005, p.
10)
No caso específico do romance em estudo, verificamos que a protagonista
Andrea é uma personagem que atrai de forma especial a atenção da crítica, por ser
a primeira personagem a apresentar o anti-convencionalismo que Laforet atribuiria
às suas heroínas ao longo de sua produção literária. Segundo Martín Gaite (1999, p.
102-5), a originalidade da construção da protagonista do romance Nada é um dos
maiores méritos dessa narrativa. Desprovida de atributos de beleza física, frustrada
em todas as suas tentativas de envolvimento com o sexo oposto e com um
comportamento nada habitual para o seu tempo, a jovem estudante é uma perfeita
anti-heroína. Andrea surge no cenário ficcional de Nada com a dupla função de
narrar e protagonizar. Entretanto, o curioso desse romance está no fato de que, as
vivências e experiências da personagem são postas em segundo plano. Andrea não
protagoniza de fato sua própria história. O valor literário da personagem se encontra
além de seu papel de protagonista. O aspecto primordial de sua concepção está em
seu perspicaz olhar sobre o entorno social, ou seja, em sua função de observar e
narrar. Andrea é, antes de mais nada, uma relatora da realidade cio-histórica
conflituosa que a envolve, o que a torna mais que uma simples narradora -
transforma-a em testemunha de uma sociedade caótica, conforme explica Martín
Gaite:
Precisamente lo innovador de Nada está en que Carmen Laforet ha
delegado en Andrea para que mire y cuente lo que sucede a su
alrededor, en que no la ha ideado como protagonista de novela a
quien van a sucederle cosas, como sería de esperar, sino que la ha
imbuido de las dotes de testigo. (Martín Gaite, 1999, p. 104–5)
A riqueza da narrativa laforetiana é de uma sensibilidade intensa e particular,
pois a autora transpõe às linhas da ficção, a frustração da personagem que é
17
consciente da sua impossibilidade em protagonizar sua própria vida e entende a sua
limitação reduzida apenas à obrigação de observar:
Poco a poco me había ido quedando ante mis propios ojos en un
segundo plano de la realidad, abiertos mis sentidos solo para la vida
que bullía en el piso de la calle de Aribau. Me acostumbraba a
olvidarme de mi aspecto y de mis sueños. (Laforet, 2003, p. 42-3)
12
Neste fragmento da narrativa, a protagonista relata o conflito interior sofrido
no momento em que percebe que sua existência se resume à sua condição de
narradora e, finalmente, compreende que será por meio desta função que os
transtornos das pessoas atormentadas pelos sofrimentos da guerra e expostas à
miséria do pós-guerra tornar-se-ão públicos. Essa contingência lhe é imposta e a
protagonista sequer resiste, entregando-se ao papel para o qual fora destinada,
abdicando de seus desejos e expectativas. A consciência da personagem evolui e
chega ao final do romance sob a forma de uma constatação definitiva: Unos seres
nacen para vivir, otros para trabajar, otros para mirar la vida. Yo tenía un pequeño y
ruin papel de espectadora. Imposible salirme de él. Imposible libertarme.” (p. 208)
Os diversos ambientes de degradação aos quais Andrea é exposta ao longo
da narrativa, exercem sobre ela um poder destrutivo o intenso que a personagem
se prisioneira de sua condição de narradora. A partir disso analisamos que,
constituir a natureza psicológica de uma protagonista-narradora com tais aspectos
de profundidade, produz um efeito bastante relevante para a literatura de um país
destroçado por uma miséria capaz de se personificar em diversas feições. Por isto,
Ródenas de Moya afirma e considera Andrea uma personagem mais complexa do
que o protagonista criado pelo precursor de Laforet no romance La familia de
Pascual Duarte:
En efecto, Andrea es una opaca caja de resonancia de lo que
sucede a su alrededor; conocemos el entorno social y humano en el
que se mueve pero nos sustrae el alma de la muchacha. (...) La
complejidad de la narradora de Nada supera con creces la del
bárbaro Pascual Duarte de Cela y puede considerarse el primer brote
de inquietud técnica en la narrativa de posguerra. (Ródenas de
Moya, 2001, p. 222)
12
Todas as citações referentes ao romance em estudo serão extraídas da seguinte edição da obra:
LAFORET, Carmen. Nada. Barcelona: Ediciones Destino S. A., 2003. Repetiremos, portanto,
somente o número da página correspondente a cada citação.
18
Com a publicação desse romance, Laforet conseguiu romper o silêncio do
poeta exilado Juan Ramón Jiménez
13
que, homenageado na epígrafe do romance
14
,
destaca outro aspecto da obra: o fato de se tratar de uma narrativa sem assunto
15
.
Para o poeta, Nada é um romance que não possui um enredo de núcleo único, é
escrito como se houvessem várias histórias que se entrelaçam com temáticas de
relevância pouco aparente. Podemos ler essa fragmentação do enredo de Nada,
como signo representativo da própria dispersão de toda a sociedade espanhola que,
por sua vez, provocava o esfacelamento da subjetividade de cada indivíduo que a
compunha.
Ressaltamos que, apesar do caráter de denúncia que o romance propõe, sua
autora nunca teve ligação com vertentes políticas ou ideológicas. Sua narrativa é
isenta de partidarismos e é despretensiosa politicamente, conforme afirmam os
escritores espanhóis Imaculada de la Fuente e Agustín Cerezales. Este último,
escritor e filho da autora (2005, p. 8), amplia a questão e esclarece que, apesar da
isenção partidária, toda a produção narrativa de Laforet traz consigo uma constante
necessidade de relatar a realidade social do seu entorno, independentemente da
sociedade na qual estivesse inserida e de quais fossem os problemas observados. A
sensibilidade artística da escritora esteve sempre voltada para as classes ou grupos
mais oprimidos pelo poder, fosse ele econômico ou institucional. Segundo De la
Fuente, a oposição velada que Laforet parece sustentar contra o regime autoritário
instaurado na Espanha, não está calcado em convicções políticas. Sua postura de
denúncia parte da sensibilidade de uma jovem artista que consegue transpor à
experiência narrativa uma vivência obscura e sufocante que afeta não somente ela,
como a toda a sociedade espanhola de seu tempo:
Yo lo que creo es que ella es una chica que se educa en la
libertad, no vivió la Guerra Civil. Y yo creo que Carmen no está
alerta, no tiene una prevención ante el franquismo, es decir, que ella
no tiene una defensa política ante el franquismo. Le viene encima,
como se le viene encima a tanta gente que no está preparada ni
politizada. Y ella sin hacer una crítica al franquismo, crítica que no
hace, lo que ocurre es que por la vía de la experiencia se da cuenta
13
Um dos poetas mais expressivos da literatura espanhola, pertencente à Generación de 98. Retirou-
se para o exílio logo após o fim da Guerra Civil Espanhola e o início da ditadura franquista.
14
Carmen Laforet utilizou como epígrafe para o romance um fragmento do poema Nada de Juan
Ramón Jiménez que transcrevemos a seguir: A veces un gusto amargo/ un olor malo, una rara / Luz,
un tono desacorde, / Como realidades fijas / Nuestros sentidos alcanzan / Y nos parecen que son / La
verdad no sospechada ... (Laforet, 2003, p. 11).
15
Expressão empregada pelo próprio poeta ao emitir o primeiro parecer sobre o romance.
19
de que ella no respira y ahí entonces está su antifranquismo. (De la
Fuente, 2005, p. 10)
Essa capacidade de perceber a tensão social subjacente e manifestá-la
esteticamente, paradoxalmente aliada à juventude de Laforet, parece constituir um
antagonismo que merece destaque na opinião de vários críticos, entre os quais,
Barrero Pérez, que se surpreende pela visão desiludida e realista da jovem escritora,
refletida na construção de uma atmosfera romanesca negativa e desesperançada.
Este seria, segundo o crítico, o elemento dissonante, no contexto da literatura da
época, e o que confere à autora um status de precursora da narrativa espanhola que
seria produzida a partir dos anos 1950:
(…) sorprendió a ciertos medios por el doble motivo de su juventud y
el pesimismo de su planteamiento, al final del cual quedaba una
sensación de vacío que no parecía propia de una muchacha de 23
años que viviera en una España en que los jóvenes todavía cantaban
al amor o evocaban sus experiencias bélicas. En Nada, por el
contrario, se hablaba de psicologías atormentadas (en la línea del
tremendismo), de frustración, desilusiones y fracasos, de desamor y
soledad. (…) De alguna forma, C. Laforet, mucho más que un Cela
que ya parecía maduro tras su primera novela, fue la avanzadilla de
los jóvenes neorrealistas que surgirían en el panorama literario hacia
1950. (Barrero Pérez, 1992, p. 65).
Rodríguez Puértolas também ressalta a singularidade da composição do
universo ficcional de Nada, por causa do impacto que sua publicação produziu nos
leitores de sua época, ao apresentar personagens vazios, bárbaros e atormentados,
envoltos em um contexto existencial tão injustificável quanto a vida deles próprios -
uma esfera de sufocamento, isolamento e mesquinhez:
En ese mundo de Nada, deprimente y oscuro, la falta de
comunicación humana es uno de sus rasgos distintivos, un mundo
cerrado en mismo y sin conexiones con el exterior; en este hecho,
precisamente, a pesar de sus pretenciones realistas, radica la
absoluta falta de una explicación lógica del porqué de la existencia
de estos seres situados al margen de la vida de la calle y de la
ciudad, de una sociedad que no vemos en absoluto y que, sin duda
les ha conformado y deformado. Como acaso también la censura ha
conformado y deformado a Nada. (Rodríguez Puértolas, 1987, p.
113)
20
Tendo em vista este breve apanhado histórico e crítico acerca da obra em
estudo, podemos ressaltar que a latente denúncia da crise social vivida, na
Espanha, durante o imediato pós-guerra e exposta nas páginas desse romance, é
um ponto de culminância das opiniões dos diversos estudiosos que se dedicaram à
análise de Nada.
Esta característica está expressa nos mais diversos componentes estéticos
da narrativa e o objeto de nosso estudo consiste em verificar de que maneira estas
coordenadas cio-históricas e culturais estão plasmadas na composição espacial
do romance.
Para uma análise da ambiência romanesca da obra Nada, não podemos
ignorar a dicotomia que se estabelece à princípio na oposição entre os dois espaços
fundantes da narrativa - o ambiente doméstico e o urbano, conforme afirma Ródenas
de Moya (2001, p. 238): “El espacio narrativo, en Nada, está inequívocamente
dividido en dos, el espacio interior, sombrio y torvo de Aribau, y el espacio exterior
de las calles barcelonesas(…)”. (sublinhado nosso)
Desse modo, Laforet estabelece ante os olhos do leitor um paradoxo entre o
interior da casa da rua Aribau, em oposição evidente ao externo da cidade de
Barcelona. O primeiro ambiente, descrito a partir de sensações visuais, olfativas e
auditivas que enfatizam a escuridão, a sujeira, o odor, a desorganização e o aspecto
de envelhecimento e inutilidade dos objetos, constitui o que Salvatore D’Onófrio
(2004, p.97-8), entende como representação de um espaço atópico
16
: um símbolo
negativo da estada de Andrea na cidade de Barcelona e sua existência angustiante
entre aquelas pessoas degeneradas espiritualmente.
Em contrapartida, os ambientes externos da cidade de Barcelona, apesar das
destruições deixadas pela Guerra Civil e constatadas pela protagonista em seus
passeios por suas ruas e demais espaços aparecem, na maioria das vezes, por
meio de sensações positivas de luminosidade, cor, brilho, cheiros e sabores
agradáveis. Estes lugares são, conseqüentemente, o que D’Onófrio classifica como
espaços utópicos
17
, pois indicam um sentido positivo, simbolizado por lugares
idealizados, desejáveis e, portanto, agradáveis para quem os ocupa. A cidade de
Barcelona, na significação da narrativa, guardaria a liberdade e a oportunidade de
16
De acordo com o teórico, a palavra tópico vem do grego topos que significa lugar. Acrescida do
prefixo a (atópico), essa palavra assume uma conotação negativa, ou seja, passa a representar um
lugar desagradável à sensibilidade de quem o ocupa.
17
A palavra tópico acrescida do prefixo u (utópico) estabelece um sentido de positividade.
21
novas experiências vividas por Andrea. Nos diferentes espaços da capital catalã, a
protagonista se permitiria dar vazão à imaginação, como se essa atitude de busca
pela liberdade representasse o desejo de um país que precisava tomar lego e se
reconstruir sobre as cinzas e os escombros da violência embora, muitas vezes,
esses espaços também se deixem abater pela melancolia que pairava em toda
aquela sociedade.
Esse possível contraponto entre os ambientes e a simbologia dos lugares
ficcionais, faz-nos questionar a função do espaço como forma de testemunho de
uma realidade social consternada. Tanto quanto as ações narrativas, a ambiência
parece relatar com precisão e veracidade o que se pretende denunciar.
A pesquisadora Adriana Minardi, autora do artigo Trayectos urbanos: paisaje
de la posguerra en “Nada”, de Carmen Laforet, el viaje de aprendizaje como
estratégia narrativa, explica como a autora realiza, na escrita, a transposição do
olhar de Andrea sobre o ambiente circundante. Essa estratégia empregada por
Laforet é, segundo Minardi, o que possibilita ao leitor ler os lugares e deles extrair as
informações sobre o contexto que está representado na dinâmica do macro-espaço
social, re-significado no micro-espaço narrativo:
Si Andrea habla, es porque habla sobre, no porque se cuestione
acerca de si misma; Andrea no necesita un destinatario que
construya el sentido, no persuade; Andrea muestra con sus trayectos
los efectos del entorno. No habla pero termina hablando por medio
de un contexto. Hace hablar a la ciudad, hace hablar al espacio de lo
interno (la casa de la calle de Aribau) y de lo externo (Barcelona, sus
calles, y la universidad). El viaje es la metáfora clave y la estrategia
textual que posibilita la denuncia de lo que se silencia. La mirada
provee lecturas, enmascaradas bajo la descripción; Andrea justifica
su enunciación mediante la mediación de la mirada. Nadie habla, se
describe lo que resulta visible; en fin, se enmascara lo obtuso con la
mediación: la de lo obvio. (…)
Esto se refleja en Nada pero la funcionalidad política del olvido
también fue permeable; en esa permeabilidad funciona el desvío, en
tanto desconstrucción que permite la lectura de los espacios como
huellas, en tanto esquema indicial de una situación socio-histórica.
La memoria de la guerra civil se recupera como instancia presente.
Se recupera in praesentia en la Barcelona herida y emergente.
(Minardi, 2005, p. 1) (sublinhado nosso)
Assim como nos sugere Minardi, nesse estudo pretendemos ler as pegadas
deixadas pela narradora protagonista na configuração espacial do romance, a fim de
22
verificar como a autora os constrói esteticamente, bem como quais poderiam ser
seus significados no contexto interno do romance e no externo, ou seja, na
perspectiva da realidade social que o envolve.
2) A casa da Rua Aribau: um olhar na intimidade da sociedade
espanhola de pós-guerra
A casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou
ilusões de estabilidade. Incessantemente reimaginamos a sua
realidade: distinguir todas essas imagens seria revelar a alma da
casa; seria desenvolver uma verdadeira psicologia da casa. (...)
Portanto, no plano de uma filosofia da literatura e da poesia em
que nos colocamos, um sentido em dizer que “escrevemos um
quarto”, que “lemos um quarto”, que “lemos uma casa”.
(Gaston Bachelard, A poética do espaço, p. 33-6)
2.1) Considerações preliminares: o espaço como elemento romanesco
Antes de analisar a espacialidade no romance Nada, teceremos algumas
considerações a respeito da ambiência como categoria estrutural do texto em prosa,
a fim de revisar a teoria que orienta a análise da composição espacial da narrativa,
bem como os pressupostos que encaminharão o nosso estudo, estabelecendo
nossa postura analítico-metodológica.
O teórico Gilberto Defina (1975, p. 105), apresenta uma concepção preliminar
de ambiente narrativo ao afirmar que o espaço ficcional é “(...) a localização, o
cenário, a situação no espaço, o ‘decor’ da obra narrativa (...)”, o lugar “(...) onde os
fatos narrados acontecem. O meio, onde reina o clima no qual se desenvolve a
ação, a estória”. A conceituação de Defina nos parece válida, à medida que pontua,
de maneira inicial, uma forma de compreender o ambiente romanesco como o
elemento que proporciona o cenário no qual o enredo se desenvolve.
Entretanto, para além dessa concepção do espaço narrativo como moldura
para o desenrolar da trama ficcional, há uma outra funcionalidade para esse aspecto
estrutural do romance que é destacada por diversos teóricos, entre os quais
D’Onófrio (2004, p. 96-7), para quem o ambiente romanesco é duplamente funcional
à medida que atua como parte do imaginário do escritor ajudando-o, na composição
da instância ficcional da obra, e opera como um recurso estético capaz de vincular a
narrativa à realidade social que a envolve, conferindo verossimilhança ao texto
ficcional.
24
Esta segunda percepção sobre o espaço narrativo, mais completa e
aprofundada, parece-nos adequada para a compreensão da ambiência do romance
Nada. A obra apresenta uma configuração espacial complexa, detalhadamente
elaborada e reconhecidamente importante para um entendimento mais profícuo da
narrativa, devido à relevância das coordenadas sócio-históricas que influenciam o
romance que propõe à sociedade, uma retroprojeção de sua própria imagem.
O ambiente, como categoria estrutural da obra narrativa, é apresentado ao
longo dos textos, por meio de descrições que o autor realiza dos espaços por ele
imaginados. Por isso, para realizar um percurso interpretativo seguindo as marcas
espaciais de um romance e tentando desvendar a multiplicidade de seus sentidos,
devemos nos ater a uma análise detalhada dos trechos descritivos, pois, segundo
Vítor Manuel de Aguiar e Silva, é por meio desse recurso textual que o escritor
transmite ao leitor os signos para uma compreensão do espaço romanesco:
(...) a descrição é um elemento textual privilegiado de que o narrador
dispõe para produzir o “efeito de real” a que se refere Barthes e por
isso mesmo os indícios e sobretudo as informações da diegese se
encontram com tanta freqüência e com tanta relevância nas
descrições. Pode-se designar esta função da descrição como função
indicial e informativa. Esta função manifesta-se (...) na caracterização
do espaço social um espaço indissociável da temporalidade
histórica -, quer na pintura do espaço telúrico e geográfico a
topografia, na terminologia antes mencionada -, em geral
representado nas suas conexões com o espaço social e concebido
como um factor que condiciona ou determina os estados e as ações
dos personagens. (Aguiar e Silva, 1986, p. 740-1)
Nesse fragmento, Aguiar e Silva extrapola a função da descrição meramente
ilustrativa e corrobora a afirmação de D’Onófrio sobre a relação entre espaço
ficcional e espaço real como forma de atribuir ao texto um tom verossímil. Além
disso, o teórico acrescenta que a composição espacial, em alguns casos, pode ser
elaborada em consonância com a caracterização dos personagens, definindo suas
atitudes ao longo do desenvolvimento das ações narrativas. Para Boris Tomachevski
(apud Dimas, 1985, p. 41), por exemplo, a criação poética do ambiente literário - a
descrição, no caso particular da prosa - é de fundamental importância, pois esta não
se configura apenas como elemento estético da obra, ela interage também e
25
inclusive como um componente ideológico, trazendo para o interior da ficção a
sociedade retratada a partir da visão de mundo do artista.
Uma leitura das descrições narrativas do romance Nada coloca-nos diante da
recriação de ambientes sociais reais da Barcelona do início dos anos 1940. Temos
como exemplares daquela organização social a casa da Rua Aribau, onde Andrea
vive com seus familiares, além dos diversos ambientes da cidade de Barcelona,
como a universidade, as ruas, as praças, as igrejas, os parques e as praias. Desse
modo, percebemos que a casa e os diferentes lugares da cidade, possibilitam ser
lidos como signos, unidades particularizantes que pertencem a um campo semântico
maior. É como se os símbolos da casa e da cidade representassem, num todo
completo, a sociedade espanhola de s-guerra. Nesse sentido, o que observamos
é o desenvolvimento de um possível processo de metonimização, a configuração de
uma figura de linguagem que, no dizer de vários teóricos, pode ser entendida como
um recurso de transnomeação
18
. Na definição de D’Onófrio (2004, p. 47-8), a
metonímia é “(...) um tropo construído o por similaridade, mas por contigüidade
semântica (...)” cujo “sentido novo conferido pela conotação metonímica é inerente,
co-natural e, portanto, contíguo ao próprio objeto;”. De acordo com Nilce Sant’anna
Martins (2003, p.102), sempre entre os substantivos envolvidos no processo
metonímico, “uma relação de interdependência, coexistência e similaridade”. Desse
modo, podemos dizer que parece haver no romance Nada, uma analogia entre a
casa, que é uma unidade na composição da cidade, e ambos esses símbolos
sugerem a materialização, no contexto intrínseco à obra, da sociedade espanhola de
pós-guerra.
Na narrativa em estudo, tanto as imagens ficcionais da casa como as da
cidade de Barcelona, estão fundamentadas em descrições realizadas a partir de
aspectos sensoriais que, ora ressaltam sentimentos positivos, ora recriam imagens
negativas. Essa polarização dos espaços literários entre o bom e o mau, o u e o
inferno, simbologias tão presentes no inconsciente coletivo da sociedade ocidental,
recebem, no campo da teoria literária, a distinção por meio dos termos locus
amoenus e locus horrendus respectivamente, conforme esclarece Aguiar e Silva:
18
Segundo Massaud Moisés (1999, p. 334-5), o termo metonímia vem do grego metonymía, e
representa a junção do termo meta que significa mudança, associado ao termo ónoma que
corresponde a nome. Por isso a idéia de transformação do nome, ou seja, uma maneira de se referir
a um determinado objeto ou ser, utilizando uma expressão que o substitua sem deixar de manter para
com o elemento referencial certa proximidade semântica.
26
Em muitos romances, as descrições são portadoras de conotações
que configuram um espaço eufórico ou disfórico, idílico ou trágico,
que é inseparável das personagens, dos acontecimentos e da
mundividência plasmada na diegese: o espaço, numa mescla
inextrincável de parâmetros físicos, psíquicos e ideológicos, pode ser
representado como locus amoenus ou como locus horrendus, como
cenário de rêverie ou de angústia, como convite à evasão ou como
condenação ao encarceramento, como possibilidade de libertação
ascensional ou de queda e enredamento no abismo. (Aguiar e Silva,
1986, p. 742)
Essa separação metodológica, que a teoria da literatura concebe, está, no
dizer de Aguiar e Silva, estritamente relacionada à significação desses ambientes na
interpretação romanesca e à caracterização dos comportamentos dos personagens
que ocupam esses espaços antagônicos. Conforme mencionamos no primeiro
capítulo deste estudo, o crítico denas de Moya, ao analisar brevemente o espaço
narrativo do romance Nada, o dicotomiza na dinâmica dos lugares adversos (casa e
cidade), determinando para cada um deles uma conotação de aprisionamento e de
liberdade, paralelamente. O estudioso afirma ainda que, apesar da simplicidade da
linguagem de Laforet e de seu estilo obscuro e sucinto, algumas passagens
descritivas apresentam autêntico lirismo, ao serem compostas por sensações que
resultam em imagens poéticas esteticamente bem elaboradas que reforçam essa
oposição:
Numerosas imágenes concertadas muestran que existe una
deliberada voluntad de conseguir un efecto estético determinado, sea
el de la asfixia de Aribau, la inconsciencia de Andrea o la esperanza
de futuro. Es posible discernir unas imágenes de índole impresionista
y otras de índole expresionista. Carmen Laforet recurre al
impresionismo descriptivo para presentar el choque que la ciudad,
sus calles y edificios producen en Andrea, que en general resulta
deslumbrada. Luces y colores son aprehendidos como estímulos
sensoriales primarios que reflejan, haciéndolos aflorar, deseos
sublimados de cambio y elevación. Sin embargo, la descripción del
interior de Aribau se hace con el recurso a técnicas expresionistas
de distorsión de la realidad. La estética de lo disforme, monstruoso,
oscuro y extraño le permite a la escritora construir con economía de
medios una atmósfera asfixiante en la que se simboliza no sólo el
empobrecimiento de la familia sino su degeneración moral y la
funesta falta de salidas hacia el futuro. (Ródenas de Moya, 2001, p.
246-7) (sublinhado nosso)
27
Ao distinguir a contraposição entre os espaços do romance, Ródenas de
Moya contribui com um importante dado para a nossa análise ao identificar as
descrições dos diversos ambientes externos da cidade de Barcelona e do ambiente
interno da casa da Rua Aribau, como descrições impressionistas e expressionistas,
respectivamente.
Segundo Massaud Moiséis (1999, p. 286-7) o impressionismo é uma
concepção artística que se originou nas artes plásticas, quando o objetivo era
retratar os ambientes exteriores por meio de detalhes visuais observados a partir da
incidência da luz que se projetava nos objetos, obtendo como resultado diferentes
tons cromáticos. Na literatura, essa cnica é empregada para dar plasticidade às
imagens. Nas descrições minuciosas, uma preocupação maior em relatar as
sensações experimentadas, ante a contemplação dos ambientes e dos objetos que
os compõem do que em descrevê-las propriamente. Essa técnica é empregada por
Laforet no romance Nada, como veremos detidamente nas análises posteriores,
sobretudo nos momentos nos quais Andrea se entrega a um profundo
deslumbramento com a riqueza arquitetônica da cidade de Barcelona e com a
beleza de seus ambientes naturais. No entanto, é importante salientarmos que, nem
todos os contatos estabelecidos entre a protagonista e a cidade são de sublimação
artística ou de elevação da alma humana. Também, há passagens que evidenciam
a decepção da jovem com Barcelona, uma metrópole que cresce
desordenadamente, refletindo o desastre da guerra e a recessão do pós-guerra.
Entretanto, remetamo-nos às descrições do interior da casa da Rua Aribau,
nas quais, segundo Ródenas de Moya, a autora se utiliza da técnica expressionista
para obter o padrão estético da negatividade. De acordo com D’Onófrio (2000, p.
347), o expressionismo é uma concepção artística que surgiu, no início do culo
XX, na Europa, e se originou também das artes plásticas. Seu principal intuito era o
de possibilitar a profunda expressão do eu, com um ponto de vista que partia
sempre do interior para o exterior. De modo preliminar, verificamos que o uso da
técnica expressionista, na configuração dos ambientes internos da casa da Rua
Aribau, pode ser justificado pela necessidade que a protagonista sente de se auto-
afirmar ante aquele cenário composto por objetos e seres que, de tão degenerados,
suprimem a individualidade da personagem, tentando transformá-la em mais um
elemento do espaço decadente. Por meio da representação caótica, distorcida e
alegórica, própria do expressionismo, a autora parece estabelecer sua crítica ao
28
autoritarismo, à hipocrisia e à miséria vigentes na sociedade espanhola da época.
Entretanto, não podemos nos distanciar do fato de que o expressionismo propõe
uma visão subjetiva do entorno social, exatamente como ocorre no romance Nada,
no qual temos uma narradora-protagonista, que é quem se responsabiliza por nos
oferecer as informações sobre o espaço narrativo. Logo, a posição do foco narrativo
não é de imparcialidade, pois Andrea atua como personagem desse espaço, e os
indícios que ela nos fornece sobre a ambiência passam pelo filtro de sua
subjetividade. Esse tipo de ambientação romanesca é o que Osman Lins (apud
Dimas, 1985, p. 22) chama de ambientação reflexa, ou seja, quando nossa análise
está sujeita às lentes de um narrador que ao mesmo tempo é protagonista e,
portanto, está interessadamente envolvido na ação narrativa.
As imagens expressionistas e impressionistas apresentadas nas descrições
do romance estão compostas a partir de sensações particulares de Andrea.
Desvendá-las, pressupõe que utilizemos como ferramenta metodológica, o conceito
de topoanálise desenvolvido por Gaston Bachelard (2005, p. 20). De acordo com o
filósofo, esse recurso analítico pressupõe um estudo psicológico da vida íntima por
meio de um exame da composição espacial. Para tanto, referências ao tamanho, às
proporções dos ambientes, à quantidade e ao tipo de objetos que os compõem,
além da interpretação dos múltiplos sentidos que o espaço desencadeia a partir de
estímulos sensoriais sonoros, táteis, gustativos, olfativos e visuais são elementos
úteis no processo de decifração dos signos textuais do romance em estudo. Trilhar
os caminhos da escrita laforetiana, buscando as pistas deixadas pelos símbolos por
ela criados, é a tarefa à qual nos dedicaremos nas páginas que seguem.
2.2) A casa da Rua Aribau: O mundo demoníaco
19
Em A poética do espaço, Bachelard (2005, p. 20) associa seu conhecimento
científico com sua própria experiência de mundo e concebe, sob a metáfora da casa
elaborada pelo psicanalista suíço Carl G. Jung
20
, uma teoria que coloca a moradia
como referência ao estudo da psique humana, a partir da relação que o homem
19
Expressão empregada por Northrop Frye em Anatomia da crítica para analisar certa categoria de
imagens que serão exploradas na análise da obra Nada.
20
Carl G Jung, psicanalista suíço que metaforizou a alma humana comparando-a à constituição de
uma casa antiga, na qual uma sobreposição de camadas construídas mais recentemente sobre
camadas construídas anteriormente.
29
estabelece com o espaço físico que ocupa. Para comprovar essa hipótese, o filósofo
analisa imagens poéticas presentes em diversos trechos de obras literárias, nos
quais a casa é recriada como símbolo que guarda os segredos mais íntimos da alma
humana.
Nesse estudo, Bachelard (2005, p. 19) fundamenta alguns conceitos como o
de topofilia, termo que compreende o estudo do valor que o ser humano atribui aos
seus espaços, os quais podem ser subdivididos em três diferentes tipos de
ambientes. Os espaços do ódio e do combate seriam as esferas de hostilidade, os
lugares descritos como atmosferas asfixiantes onde se dão as lutas e os
sofrimentos, nos quais imperam sentimentos negativos e vis como o ódio, a inveja, a
vingança e a mesquinhez.
Esses espaços são repulsivos para o homem e geralmente aparecem na
literatura associados às imagens apocalípticas de purgatório e inferno. No entanto,
esse tipo de ambiente não é o centro da análise de Bachelard que, em sua obra,
prioridade ao estudo dos espaços felizes ou louvados, ou seja, os lugares positivos
que representam aconchego, segurança, proteção e guardam as lembranças
positivas do homem. Nesse sentido, a casa seria, na teoria do filósofo, uma das
principais simbologias representativas dentre os lugares aprazíveis ao espírito
humano. A terceira categoria de espaço trata dos ambientes idealizados, desejáveis
e agradáveis, os ambientes delineados nos sonhos do homem, mas que na
perspectiva do real nem sempre atendem às expectativas do imaginário.
Segundo Bachelard, em muitas das imagens poéticas por ele analisadas nos
diferentes trechos das obras literárias estudadas, o ser humano não apenas
descreve os ambientes concretos que fazem parte de sua realidade vivenciada,
como também idealiza outros lugares nos quais gostaria de estar ou de viver. Em
alguns casos, o imaginário criado em torno desses espaços inventados torna-se
absolutamente real para quem o imagina, conforme explica o autor:
Ao seu valor de proteção, que pode ser positivo, ligam-se também
valores imaginados, e que logo se tornam dominantes. O espaço
percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente
entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço
vivido. E vivido não em sua positividade, mas com todas as
parcialidades da imaginação. Em especial, quase sempre ele atrai.
Concentra o ser no interior dos limites que protegem. (Bachelard,
2005, p. 19)
30
Andrea, a jovem protagonista e narradora do romance Nada, vivia até os
dezoito anos de idade em uma pequena cidade do interior da Espanha, em
companhia de uma prima que se responsabilizava por seus cuidados desde a morte
de seus pais. Em toda a narrativa, há poucas referências a essa etapa que antecede
a vinda da protagonista a Barcelona, cidade que ela conhece ainda na infância,
quando para lá viajava em companhia da mãe para visitar a família. Desde a
meninice, Andrea não retornara à capital catalã. Porém, a personagem sempre
guardara consigo a aprazível promessa de um dia ali regressar para dar
continuidade aos seus estudos, como seu pai planejara ainda em vida. Contudo, a
distância física e temporal que separava a protagonista da cidade onde desejava
desfrutar seu futuro, não impedia que, em seu imaginário, Barcelona fosse um lugar
acalentado. Nos sonhos de Andrea, aquele espaço era um símbolo que
representava um importante marco divisor de sua existência, pois para a
protagonista, o fato de partir do interior rumo à capital catalã, significaria uma
transformação em sua vida. Na fantasia da jovem estudante, a pacificidade
interiorana seria substituída pela excitação do convívio na grande cidade e por todas
as novas possibilidades que isso lhe ocasionaria.
A primeira descrição de ambiente no romance Nada, é um detalhamento da
Estação Ferroviária de Barcelona no momento da chegada de Andrea. Nessa
passagem, encontramos indícios que comprovam as expectativas positivas que a
personagem nutria sobre seu reencontro com a cidade acariciada em sua
imaginação:
El olor especial, el gran rumor de la gente, las luces siempre
tristes, tenían para un gran encanto, ya que envolvía todas mis
impresiones en la maravilla de haber llegado por fin a una ciudad
grande, adorada en mis ensueños por desconocida.
Empecé a seguir una gota entre la corriente el rumbo de la
masa humana que, cargada de maletas, se volcaba en la salida. (p.
13)
Essa descrição, responsável pela abertura da narrativa, apresenta-nos um
discurso em primeira pessoa do singular e localizado temporalmente no passado, a
partir dos usos dos Pretéritos Indefinido e Imperfecto do Indicativo da língua
espanhola. Ambas as constatações conferem ao romance um tom de relato, no qual
a protagonista Andrea narra o instante de sua chegada à cidade de Barcelona.
31
Nesse trecho descritivo, há uma predominância de substantivos devido à
necessidade que a personagem tem de caracterizar o ambiente no qual acaba de
adentrar. Esse recurso lingüístico resulta em um efeito que possibilita a introdução
do leitor no mesmo ambiente no qual se encontra a narradora. O espaço da Estação
Ferroviária de Barcelona é configurado a partir de sinestesias que mesclam os
sentidos visual e olfativo (olor especial), e também auditivo (gran rumor de la gente).
O cheiro, por meio de um processo personificador, é singularizado com o emprego
do adjetivo especial. A fabulosa multidão, metaforicamente comparada às águas de
um caudaloso rio, confere um conveniente anonimato à personagem (gota entre la
corriente). O adjetivo triste personifica o recurso visual da luz, transformando-a em
uma claridade oblíqua, tolhida de sua plena capacidade de iluminar. Essa mesma
luz, ainda que tristemente, ilumina a esperança que parece reluzir nos olhos da
jovem que deposita, naquela cidade, as promessas de superação fantasiadas em
seu imaginário. Nesse instante, Barcelona é, para a protagonista, exatamente, o que
sua ilusão produzira, e os anseios idealizados significam, para ela, muito mais que a
terrível realidade vindoura.
Ao deixar aquele primeiro ambiente, Andrea finalmente parte para o
avassalador encontro com aquela que seria o objeto de seus sonhos - a cidade de
Barcelona:
Un aire marino, pesado y fresco, entró en mis pulmones con la
primera sensación confusa de la ciudad: una masa de casas
dormidas; de establecimientos cerrados; de faroles como centinelas
borrachos de soledad. Una respiración grande, dificultosa, venía con
el cuchicheo de la madrugada. Muy cerca, a mi espalda, enfrente de
las callejuelas misteriosas que conducen al Borne, sobre mi corazón
excitado, estaba el mar. (p. 14)
Tal como amantes que se revêem depois de longa espera, o encontro entre a
jovem e o espaço onírico da cidade se dá por meio de um impacto paradoxalmente
delicado, representado pela figura sinestésica de um ar que confunde a sensação
olfativa do mar à percepção tátil do peso e do frescor (un aire marino, pesado y
fresco). Essa mistura de sentidos representa o próprio tumulto sensitivo do encontro
da personagem com a cidade. A respiração profunda e insuficiente faz com que
Andrea absorva Barcelona, por meio da umidade revigorante do ar litorâneo, que
exigia de seus pulmões uma capacidade superior aos seus limites. É como se a
32
cidade oferecesse à protagonista mais do que ela, com sua pacatez interiorana,
estivesse preparada para receber. A primeira imagem que a narradora nos fornece
da cidade está composta pela personificação de casas adormecidas, e
estabelecimentos fechados, como se ninguém aguardasse por sua chegada. A
iluminação da cena mantém o mesmo tom de opacidade da passagem anterior, ao
comparar metaforicamente os faróis das ruas com vigias embriagados, ou seja
tomados pelo cansaço e pela sonolência. O aspecto sonoro da imagem é transmitido
pela personificação da madrugada que silenciosamente cochicha seus indefinidos e
naturais ruídos. Por trás dessa inicial impressão está o mar, signo da infinidade de
novas oportunidades que a cidade parece guardar especialmente para a jovem.
Ao sair da inércia paralisante daqueles instantes de contemplação, Andrea
lança um olhar à sua volta e percebe que, assim como os demais viajantes, tem de
buscar um meio de chegar à casa dos parentes, que não a esperam na Estação,
devido ao atraso de sua chegada. Durante os conturbados anos de pós-guerra, era
comum a falta de trens e de veículos de transporte urbano. A bordo de um antigo
carro movido a tração animal, a protagonista empreende o primeiro passeio pela
cidade que parece lhe receber como quem acolhe um filho querido que à casa torna:
Corrí aquella noche en el desvencijado vehículo por anchas calles
vacías y atravesé el corazón de la ciudad lleno de luz a toda hora,
como yo quería que estuviese, en un viaje que me pareció corto y
que para mí se cargaba de belleza.
El coche dio la vuelta a la plaza de la Universidad y recuerdo que
el bello edificio me conmovió como un grave saludo de bienvenida.
(p. 14)
Durante a desconfortável, porém instigante viagem, Barcelona e seus
diversos lugares ganham, sob o olhar da narradora, traços que os humanizam, como
por exemplo, no uso do substantivo corazón para metaforizar o centro da cidade. A
imagem da personificação do edifício da universidade é de grande valor nessa
passagem, pois esse lugar representa o motivo pelo qual Andrea retorna à cidade de
sua família: a continuidade de seus estudos universitários. Além disso, é exatamente
em torno àquele espaço que circulam todas as esperanças da protagonista em uma
vida mais excitante, por isso, é natural que dentre todos os ambientes barceloneses,
a universidade represente o mais caro às emoções de Andrea. Em uma época na
qual a Espanha retrocede nas conquistas femininas e quando a miséria assola a
33
maior parte da população, é extraordinário que uma jovem órfã e pobre tenha a
oportunidade de vir a uma capital de província para ingressar na universidade.
Entretanto, as expectativas positivas que a protagonista cultiva sobre a capital
catalã começam a ser contrariadas no momento em que o carro adentra a Rua
Aribau, uma espécie de ante-sala da casa da família de Andrea. Com surpresa e
temeridade, a narradora relata a assombrosa visão que a imagem do edifício lhe
provoca:
Levanté la cabeza hacia la casa frente a la cual estábamos. Filas
de balcones se sucedían iguales con su hierro oscuro, guardando el
secreto de las viviendas. Los miré y no pude adivinar cuáles serían
aquellos a los que en adelante yo me asomaría. Con la mano un
poco temblorosa di unas monedas al vigilante y cuando él cerró el
portal detrás de mí, con gran temblor de hierro y cristales, comencé a
subir muy despacio la escalera, cargada con mi maleta.
Todo empezaba a ser extraño a mi imaginación; los estrechos y
desgastados escalones de mosaico, iluminados por la luz eléctrica,
no tenían cabida en mi recuerdo. (p. 15)
A personificação das imensas janelas de ferro escuro fechadas parece armar
a casa de resistentes escudos em posição de defesa. A sonoridade do ruído
estridente dos cristais e dos ferros estremecidos ao bater da porta põe fim ao
agradável deleite proporcionado pelo passeio ao longo das ruas de Barcelona e
introduz a personagem em uma realidade caótica que não tem lugar em seus
sonhos de adolescente. Andrea não reconhece nos desgastados pisos da escadaria
do edifício o mesmo lugar onde passava deliciosas rias em companhia da mãe.
Essas figuras visuais e sonoras negativas são um prenúncio da decepção que
aguarda a personagem no interior daquela residência.
Depois de ter a intimidade inundada pela cidade de Barcelona, Andrea tem de
praticar o exercício contrário: invadir o ser daquelas pessoas cujo tempo apagou de
suas lembranças, assim como desfigurou a imagem que a jovem guardara da casa
da família, quando das suas visitas infantis.
Sobre essa relação entre subjetividade e espaço, Bachelard explica que,
realizar um estudo da imagem poética da casa, é conhecer a intimidade do ser
humano que a ocupa:
Com a imagem da casa, temos um verdadeiro princípio de
integração psicológica. Psicologia descritiva, psicologia das
34
profundidades, psicanálise e fenomenologia poderiam, com a casa,
constituir esse corpo de doutrinas que designamos pelo nome de
topoanálise. Analisada nos horizontes teóricos mais diversos, parece
que a imagem da casa se torna a topografia do nosso ser íntimo.
(Bachelard, 2005, p. 20)
Portanto, adentrar a casa da Rua Aribau é, para a protagonista de Nada,
adentrar a intimidade daqueles completos desconhecidos, e essa tarefa será
bastante dolorosa. O primeiro contato com o interior da casa e com os seres que a
habitam é narrado a partir da metáfora do pesadelo:
Luego me pareció todo una pesadilla.
Lo que estaba delante de mí era un recibidor alumbrado por la
única y débil bombilla que quedaba sujeta a uno de los brazos de la
lámpara, magnífica y sucia de telarañas, que colgaba del techo. Un
fondo oscuro de muebles colocados unos sobre otros como en las
mudanzas. Y en primer término la mancha blanquinegra de una
viejecita decrépita, en camisón, con una toquilla echada sobre los
hombros. Quise pensar que me había equivocado de piso, pero
aquella infeliz viejecilla conservaba una sonrisa de bondad tan dulce,
que tuve la seguridad de que era mi abuela.” (p. 15)
A escuridão contribui para dar o efeito de um angustiante sonho ruim, do qual
a jovem gostaria de despertar. A decadência financeira dos parentes de Andrea, que
outrora pertenceram à prestigiada classe média espanhola, é evidente na presença
dos objetos de valor descuidadamente sujos e mal acomodados. A falta de luz,
comum durante os primeiros anos do pós-guerra civil em que o recurso ficara
escasso e se tornara extremamente caro, também denuncia o empobrecimento dos
habitantes da residência. A cena compõe uma moldura de horror, ao ser delineada,
a partir de descrições expressionistas distorcidas.
Desse momento em diante, a luminosidade e o frescor com que Andrea é
recebida pela cidade de Barcelona, contrapõem-se à obscuridade, ao calor
sofocante e ao aire estancado y podrido do interior da casa. Se a cidade parece ter
recepcionado Andrea de braços abertos com as saudações da universidade, junto à
família materna a estudante é acolhida pelo sorriso senil de uma anciã que sequer
sabe que está diante da própria neta. Depois da avó, os demais personagens vão
surgindo como fantasmas em um cenário de terror. O tio Juan, impressionantemente
magro, como um cadáver, é o primeiro familiar a aparecer, sendo sucedido por
Antonia, a empregada que, vestida em trajes negros, é acompanhada pelo cão,
35
também negro, como uma espécie de extensão dela mesma. Gloria, a esposa de
Juan, figura entre os demais personagens envolta em uma brancura lida e
enferma, que contrasta com seus longos e revoltosos cabelos vermelhos.
Finalmente, avista a tia Angustias, pessoa destoante, entre os demais, por sua altura
e beleza discreta. Exercendo a autoridade de quem se crê superior, é ela quem põe
fim ao espetáculo de horrores proporcionado pela cena, repreendendo a sobrinha
pelo atraso e ordenando que todos se recolham. Andrea que, até aquele momento,
não havia deixado abater-se pelo cansaço da viagem, agora se sente, além de
exausta, espantosamente sucia. Na esperança de livrar-se das sensações negativas
que a haviam tomado, desde sua entrada naquela casa, a personagem se submete
aos hilos brillantes da água fria, durante um demorado banho. No banheiro, onde
não calefação, a protagonista amplia a sua visão, na descrição de mais um dos
ambientes da casa, e sua aversão aumenta à medida que ela se sente cada vez
mais inserida naquele degradado espaço:
!Qué alivio el agua helada sobre mi cuerpo! ¡Qué alivio estar fuera
de las miradas de aquellos seres originales! Pensé que allí, el cuarto
de baño no se debía utilizar nunca. En el manchado espejo del
lavabo - ¡qué luces macilentas, verdosas, había en toda la casa! – se
reflejaba el bajo techo cargados de telas de arañas, y mi propio
cuerpo entre los hilos brillantes del agua, procurando no tocar
aquellas paredes sucias, de puntillas sobre la roñosa bañera de
porcelana.” (p. 18-9)
Nessa passagem, a água, ainda que fria, cumpre seu papel como elemento
purificador, único recurso capaz de depurar não o corpo como também o espírito
de Andrea, depois daquele repugnante contato com a casa e os parentes. No
entanto, assim como os demais ambientes do interior da casa da Rua Aribau, o
banheiro segue os mesmos padrões de falta de luminosidade, sujeira e descuido
dos objetos. Entretanto, para além do caráter de abandono com que o banheiro é
descrito, é interessante observar como sua condição estática ganha mobilidade. Ao
assumir um caráter personificador, o lugar interage com a personagem produzindo
alegoricamente, outra cena de terror:
Parecía una casa de brujas aquel cuarto de baño. Las paredes
tiznadas conservaban la huella de manos ganchudas, de gritos de
desesperanza. Por todas partes los desconchados abrían sus bocas
desdentadas rezumantes de humedad. Sobre el espejo, porque no
cabía en otro sitio, habían colocado un bodegón macabro de
36
besugos pálidos y cebollas sobre fondo negro. La locura sonreía en
los grifos retorcidos.
Empecé a ver cosas extrañas como los que están borrachos.
Bruscamente cerré la ducha, el cristalino y protector hechizo, y quedé
sola entre la suciedad de las cosas. (p. 19)
Comparado a um ambiente fantasmagórico, o espaço do banheiro é
metaforizado sob a locução adjetiva casa de brujas. A partir da narração ilusória de
Andrea, o lugar é personificado, produzindo ações no imaginário da narradora. Ali,
como em outros ambientes da casa, constata-se o abandono de objetos de valor
que pertencem ao passado da residência; no caso, um objeto de arte deslocado da
copa e mal acomodado no banheiro, bloqueava o reflexo de imagens pelo espelho.
Nesse fragmento do romance, um predomínio de adjetivos e locuções adjetivas
que sugerem negatividade como: casa de brujas, tiznadas, ganchudas, gritos de
desesperanza, desdentadas, macabro, pálidos, negro, retorcidos, extrañas,
borrachos e suciedad, em oposição a apenas dois adjetivos positivos: cristalino e
protector. Isso sustenta a idéia de que, ao final do banho, os elementos repulsivos
que compõem aquele ambiente conseguem absorver por completo a protagonista,
envolvendo-a em uma aura de impureza mais poderosa que el cristalino y protector
hechizo dos hilos brillantes de agua.
Ao sair do banheiro, Angustias surge para encaminhar a sobrinha para o
quarto, preparado para ser, no interior da casa da Rua Aribau, o espaço que
pertence a Andrea, o lugar da sua individualidade:
No como pude llegar a dormir aquella noche. En la habitación
que me habían destinado se veía un gran piano con las teclas al
descubierto. Numerosas cornucopias algunas de gran valor en
las paredes. Un escritorio chino, cuadros, muebles abigarrados.
Parecía la buhardilla de un palacio abandonado, y era, según supe,
el salón de la casa.
En el centro, como un túmulo funerario rodeado por dolientes
seres- aquella doble fila de sillones destripados -, una cama turca,
cubierta por una manta negra, donde yo debía dormir. Sobre el piano
habían colocado una vela, porque la gran lámpara del techo no tenía
bombillas. (p. 19)
Desde o instante em que o velho carro introduz Andrea pela Rua Aribau, suas
frustrações se acumulam incessantemente. À princípio, o desapontamento de ser
uma viajante a quem ninguém espera, soma-se à decepção de reencontrar um
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espaço que, de tão degenerado, em nada se assemelha às suas memórias infantis.
Ao ter de ocupar um quarto improvisado que outrora fora a sala principal da casa e
agora serve como sótão, lugar de escuridão e de despejo dos objetos inúteis,
metaforizado como buhardilla de un palacio abandonado, a jovem se sente como
mais um móvel indesejado e sem valor, recostado sem nenhuma importância, em
um canto qualquer da casa. Isso faz com que as negativas impressões de Andrea se
potencializem. Nesse momento, torna-se claro, para ela, o fato de que não é bem
aceita naquele ambiente e de que ali será impossível estabelecer relações
harmônicas e sequer, minimamente humanas.
A protagonista é mal recebida no seio da família materna porque, num lar
assolado pela pobreza extremada, abrigar mais um conviva significa mais despesas.
Em uma época em que os problemas financeiros se refletem em economia afetiva, a
jovem sobrinha não é acolhida com o carinho de uma família, que pretende apoiá-la
na nova jornada de sua vida, e acaba sendo recebida como mais um peso sobre
uma miséria que não tem como ser mais desastrosa.
O pesadelo que começara ao adentrar o hall da casa e ganhara proporções
horripilantes durante o banho, agora está completo com o novo cenário que se
apresenta ante os olhos de espanto da protagonista. O quarto arranjado para
Andrea tem em comum com os demais espaços do interior da casa da Rua Aribau, a
imundície, a falta de luz e uma reunião de objetos dispensados no cotidiano da
bizarra família. Dentre as tantas quinquilharias acumuladas no quarto da
protagonista, encontramos inclusive artefatos de arte, como o piano, além dos
muitos quadros e desenhos. Isto nos oferece indícios de que aquela família, em
algum momento de sua história, teve um poder aquisitivo que lhe proporcionara o
consumo de bens culturais. A realidade presente, no entanto, indica que aquelas
pessoas perderam, não apenas o prestígio financeiro, como também o apreço pelo
belo, pelo prazer do gozo estético, daí a metáfora palacio abandonado. A narradora
descobre a materialização da imagem do inferno ao visualizar, entre as antigas
cadeiras de estofamento estragado, seres que velam a morte, em uma cena fúnebre
que se completa com a cama, envolta em tecidos negros.
Para Andrea, dormir em tal ambiente resulta algo extremamente sofrível. A
personagem nota ainda que, além das sensações visuais negativas, o ar
condensado daquele espaço a sufoca. Sem alternativa, ela busca, no exterior da
casa, algum bálsamo que alivie seu espírito desgastado:
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Al fin fueron dejándome con la sombra de los muebles que la luz
de la vela hinchaba llenando de palpitaciones y profunda vida. El
hedor que se advertía en toda la casa llegó en una ráfaga más fuerte.
Era un olor a porquería de gato. Sentí que me ahogaba y trepé en
peligroso alpinismo sobre el respaldo de un sillón para abrir una
puerta que aparecía entre cortinas de terciopelo y polvo. Pude lograr
mi intento en la medida que los muebles lo permitían y vi que
comunicaba con una de esas galerías abiertas que dan tanta luz a
las casas barcelonesas. Tres estrellas temblaban en la suave
negrura de arriba y al verlas tuve unas ganas súbitas de llorar, como
si viera amigos antiguos, bruscamente recobrados. (p. 20)
A luz trêmula da vela confere movimento aos veis e demais objetos ao
alternar jogos de luz e sombra, constituindo uma personificação. A imagem olfativa
do mau cheiro sufoca a personagem que ultrapassa as barreiras da desorganização,
da sujeira, da escuridão, rompendo o escudo de terciopelo y polvo (substantivos que
contrapõem o requinte do passado e o abandono do presente), e consegue
estabelecer um vínculo entre os ambientes interno e externo. Ao abrir a janela do
quarto, a protagonista permite a entrada da cidade de Barcelona, que traz consigo a
luminosidade natural de um céu de estrelas personificadas que tremulam sob a
paradoxal suave negrura da noite. A busca desesperada pelo contato com o exterior
sugere um ato de resistência que Andrea procura empreender contra o medo e a
certeza de que, sua estada junto a aqueles seres horripilantes, naquele espaço
repudiado, rapidamente tornaria a sua vida um inferno existencial. Ao invadir a
negatividade do interior da casa da Rua Aribau, Barcelona reconstitui, ainda que por
poucos instantes, as quase olvidadas expectativas oníricas, devolvendo-as à jovem
protagonista:
Aquel iluminado palpitar de las estrellas me trajo en un tropel toda
mi ilusión a través de Barcelona hasta el momento de entrar en ese
ambiente de gentes y de muebles endiablados. Tenía miedo de
meterme en aquella cama parecida a un ataúd. Creo que estuve
temblando de indefinibles terrores cuando apagué la vela. (p. 20)
O brilho das estrelas devolve à protagonista a ilusão sobre a cidade e isso lhe
forças para permanecer naquele ambiente horripilante. Entretanto, assim como
Andrea se vê refém da imundície do banheiro ao interromper a fluidez da água sobre
seu corpo, ela sucumbe à repugnância do quarto ao obstruir sua única fonte de
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luminosidade, entregando-se finalmente a uma morte simbólica representada na
metáfora da cama-túmulo.
2.2.1) Devaneios da infância: A casa da Rua Aribau entre o passado e o
presente
Por conseguinte, todos os abrigos, todos os refúgios, todos os
aposentos têm valores oníricos consoantes. não é em sua
positividade que a casa é verdadeiramente “vivida”, não é somente
no momento presente que reconhecemos os seus benefícios. Os
verdadeiros bem-estares têm um passado. Todo um passado vem
viver, pelo sonho, numa casa nova. (Bachelard, 2005, p. 25)
Segundo Bachelard, as imagens poéticas advindas de situações do estado de
inconsciência do sonho, podem revelar experiências positivas sobre os espaços
recordados.
Na manhã seguinte à sua chegada a Barcelona, Andrea desperta associando
os ruídos da Rua Aribau aos sons que escutava em sua infância, quando ali se
hospedava em suas férias com a família. Entorpecida pelo sono mal dormido e pelo
desconforto provocado pelas temerosas impressões da noite anterior, a personagem
experimenta instantes de semi-consciência e, como em um devaneio, retoma as
prazerosas sensações pueris do passado:
Inmediatamente tuve una percepción nebulosa, pero tan vívida y
fresca como si me la trajera el olor de una fruta recién cogida, de lo
que era Barcelona en mi recuerdo: este ruido de los primeros
tranvías, cuando tía Angustias cruzaba ante mi camita improvisada
para cerrar las persianas que dejaban pasar ya demasiada luz. O por
las noches, cuando el calor no me dejaba dormir y el traqueteo subía
la cuesta de la calle de Aribau, mientras la brisa traía olor a las ramas
de los plátanos, verdes y polvorientos, bajo el balcón abierto.
Barcelona era también unas aceras anchas húmedas de riego, y
mucha gente bebiendo refrescos en un café… Todo lo demás, las
grandes tiendas iluminadas, los autos, el bullicio, y hasta el mismo
paseo del día anterior desde la estación, que yo añadía a mi idea de
la ciudad, era algo pálido y falso, construido artificialmente como lo
que demasiado trabajado y manoseado pierde su frescura original.
(p. 21-2)
40
As emoções de Andrea naquele confuso despertar são indefinidas, próprias
do estado de inconsciência ou de devaneio, porém suas lembranças são reais e
metaforicamente comparadas ao sentido olfativo de frutas frescas. O dado imediato,
que vincula o presente vivido ao passado das recordações da personagem, é a
figura auditiva do barulho dos bondes que circulam pela Rua Aribau, sinal da
modernidade e da prosperidade da cidade. Nesse momento, Andrea não é a jovem
de dezoito anos. É a menina que tinha o sono velado por tia Angustias que, numa
atitude protetora, obstrui a passagem da luz do sol a fim de prolongar o repouso da
sobrinha. Nesse instante, a protagonista não poderia imaginar o quanto esta mesma
tia, outrora cuidadosa e carinhosa, iria obstruir-lhe a própria vida, controlando seus
passos e atitudes.
A Barcelona das reminiscências de Andrea é uma cidade em pleno verão,
absorvida por toda a positividade que a estação da luz e do calor pode trazer à
memória e aos sonhos humanos. O constante movimento de veículos e pessoas que
se divertem, a luminosidade e o sentido tátil estimulado ora pelo calor, ora pelo
frescor da brisa que oscila a copa das árvores, configuram a imagem positiva que
Andrea criou sobre a cidade de Barcelona, esforçando-se por nutri-la
imaginariamente, até o dia do seu reencontro.
Ao abrir os olhos, a personagem não acredita que, agora, seu corpo se
encontra materialmente presente no espaço acalentado em seus sonhos, do mesmo
modo como não pode crer no mausoléu no qual se tornara aquela casa que, no
passado, pelo manter de portas e janelas escancaradas, permitia a invasão da
alegria do verão. Como em uma continuidade do devaneio, prostrada na cama e
visualizando o empoeirado retrato de seus avós recém-casados na parede do
quarto, Andrea simula mentalmente a emoção de sua avó ao entrar pela primeira
vez na casa que seria a guardiã dos segredos de sua futura família: “Me gustaría
vivir aquí pensaría al ver a través de los cristales el descampado -, es casi en las
afueras, !tan tranqüilo!, y esta casa es tan limpia, tan nueva...” (p. 22). Na visão
presente da protagonista, em contraste com a imagem advinda do passado por meio
das hipotéticas lembranças de sua avó, não há nada de limpo ou de novo no
semblante da casa. Se para a matriarca da família, no passado, a cidade de
Barcelona e a Rua Aribau revelavam promessas de serenidade, para a neta, no
presente, ambos os espaços evocam idéias exatamente contrárias: “Fue su puerto
de refugio la ciudad que a mí se me antojaba como palanca de mi vida.” (p. 23).
41
Na continuidade, a personagem retoma aspectos cada vez mais detalhados
do passado da casa e da família, materializando na linguagem literária o que teoriza
Bachelard sobre a íntima relação entre o devaneio e o passado:
E o devaneio se aprofunda de tal modo que, para o sonhador do
lar, um ânimo imemorial se abre para além da mais antiga memória.
(...) É exatamente porque as lembranças das antigas moradas são
revividas como devaneios que as moradas do passado são
imperecíveis dentro de nós. (Bachelard, 2005, p. 25-6)
O elo que a protagonista mantém com a casa da Rua Aribau por meio de
suas recordações é indissolúvel em sua memória, e marca um dos principais eixos
de contraste ao redor do qual a narrativa é organizada: a oposição entre o passado
e o presente. O paradoxo que contrapõe a imagem da casa nas duas etapas de sua
história é evidenciado em trechos como o que expõe a maneira como o edifício foi
transformado no lar da família de Andrea:
Aquel piso de ocho balcones se llenó de cortinas- encajes,
terciopelos, lazos -; los baúles volcaron su contenido de fruslerías,
algunas valiosas. Relojes historiados dieron a la casa su latido vital.
Un piano - ¿cómo podía faltar? -, sus lánguidos aires cubanos en el
atardecer. (p. 23)
A cena da ocupação inicial da casa pode ser dividida em imagens visuais e
sonoras. Os substantivos cortinas, encajes, terciopelos e lazos e a personificação do
baú que despeja objetos decorativos, alguns inclusive de grande valor, demonstram
o cuidado visual com que a casa foi adornada à princípio, e o poder aquisitivo da
família à época. Os adereços personificam a casa como se ela estivesse adornando-
se para receber uma nova família que iria traçar, naquele espaço, uma nova e
promissora história de vida. A primeira imagem sonora traz o som compassado dos
relógios que deram ao lar o pulsar de uma vida, metaforizado na expressão latido
vital. O piano, a segunda imagem sonora, compõe a melodia particular da casa que
soa suavemente na última oração do trecho.
As mudanças sofridas pela casa vieram, em primeira instância do exterior, ou
seja, da Rua Aribau, seu apêndice natural:
42
Mientras tanto, la calle de Aribau crecía. Casas tan altas como
aquélla y más altas aún formaron las espesas y anchas manzanas.
Los árboles estiraron sus ramas y vino el primer tranvía eléctrico para
darle su peculiaridad. La casa fue envejeciendo, se le hicieron
reformas, cambió de dueños y de porteros varias veces, y ellos
siguieron como una institución inmutable en aquel primer piso. (p. 23)
A cidade de Barcelona, assim como muitas outras importantes cidades
européias, experimentou uma explosão demográfica e arquitetônica nas duas
primeiras décadas do século XX. A Rua Aribau, uma das mais antigas e principais
vias do centro da capital catalã também cresceu, nessa passagem do texto,
personificada, a cidade se desenvolve como um ser humano, as árvores crescem
esticando seus galhos como membros. A circulação do bonde elétrico simboliza a
chegada da modernidade tecnológica, que incomoda a tranqüilidade dos primeiros
habitantes que para ali haviam se mudado em busca de calmaria. A casa segue o
curso natural da vida humana, deixa se abater pelo desgaste do tempo e envelhece
sufocada pelos edifícios posteriormente construídos, apesar do esforço de seus
moradores para mantê-la jovem. A transitoriedade de alguns não abala a
permanência da família de Andrea naquele mesmo endereço. Entretanto, não é
apenas a imagem material que a casa possuía no passado que tem uma conotação
mais amena. Conforme recorda a protagonista, as relações de convivência entre os
seres que ocupam o lugar são também mais agradáveis:
Cuando yo era la única nieta pasé allí las temporadas más
excitantes de mi vida infantil. La casa ya no era tranquila. Se había
quedado encerrada en el corazón de la ciudad. Luces, ruidos, el
oleaje entero de la vida rompía contra aquellos balcones con cortinas
de terciopelo. Dentro también desbordaba; había demasiada gente.
Para aquel bullicio era encantador. Todos los tíos me compraban
golosinas y me premiaban las picardías que hacía a los otros. Los
abuelos tenían ya el pelo blanco, pero eran aún fuertes y reían todas
mis gracias. ¿Todo esto podía estar tan lejano?... (p. 23)
A casa que já não é mais a mesma quando da chegada dos avós de Andrea a
Barcelona, está ainda distante da obscura estagnação constatada pela jovem em
seu retorno à capital catalã. Em um estágio intermediário de degeneração, parece
haver semelhanças entre a cidade em pleno desenvolvimento e o interior do edifício,
sacudido em movimentos de felicidade evidente. Nesse trecho, o substantivo
corazón aparece novamente como metáfora, para simbolizar o centro da cidade de
43
Barcelona. A cena é descrita com o auxílio de figuras visuais (luz), auditivas (ruídos)
e táteis (oleaje). A evolução urbana invade a casa representada na sinédoque dos
balcones que tentam proteger-se do avanço da cidade, usando como escudo as
pesadas cortinas de terciopelo. Não somente a casa envelhece como também seus
habitantes: é o que sinaliza a metonímia pelo blanco para a velhice dos avós de
Andrea. No espaço querido do passado, a protagonista é sempre bem recebida, com
uma amabilidade descontraída que de certo modo a ampara, embora a indagação
final (¿Todo esto podía estar tan lejano?...), deixe claro que todo o passado de bem-
querer não voltará mais. Sobre esse sentimento de aconchego transmitido pela casa
por meio das lembranças antigas, explica Bachelard:
Assim, a casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma
história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas
moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos
dias antigos. Quando, na nova casa, retornam as lembranças das
antigas moradas, transportamo-nos ao país da Infância Imóvel.
Imóvel como Imemorial. Vivemos fixações, fixações de felicidade. (...)
Quando se sonha com a casa natal, na extrema profundeza do
devaneio, participa-se desse calor inicial, dessa matéria bem
temperada do paraíso material. É nesse ambiente que vivem os
seres protetores.” (Bachelard, 2005, p. 25-7)
Diante do valor de segurança que a casa tem nas recordações passadas de
Andrea, perguntamo-nos: o que teria transformado seres protetores e um ambiente
aprazível, em seres repudiados e num espaço asfixiante, respectivamente? Parece-
nos um tanto quanto ínfimo afirmar apenas que a casa da Rua Aribau e o
comportamento de seus habitantes se modificaram, exclusivamente, por causa do
crescimento e da modernização da cidade de Barcelona. No entanto, alguns
parágrafos mais adiante, encontramos a informação que nos possibilita elucidar
essa questão. A narradora relata em uma breve passagem que, exatamente três
anos, com a morte de seu avô e o empobrecimento da família, foi tomada a decisão
de permanecer apenas com uma das metades da extensão que a casa ocupava no
andar do edifício. Essa alteração no modo de organizar o espaço, pode explicar as
modificações na vida daquelas pessoas:
Las viejas chucherías y los muebles sobrantes fueron una
verdadera avalancha, que los trabajadores encargados de tapiar la
44
puerta de comunicación amontonaron sin método unos sobre otros. Y
ya se quedó la casa en el desorden provisional que ellos dejaron. (p.
24)
Os adjetivos qualificativos que os objetos receberam no momento da
decoração inicial da casa, nessa passagem, transformam-se em adjetivos
depreciativos como viejas e sobrantes. Os artefatos decorativos agora sem nenhum
valor, foram acomodados de qualquer maneira (avalancha), obstruindo a principal
via de comunicação das pessoas com seus vizinhos, o que representa a
incomunicabilidade das pessoas durante o silêncio imposto pela violência da guerra
e pela repressão do pós-guerra. A desordem dos objetos sobrantes é explicada
então por uma mudança de ordem econômica. Entretanto, é preciso que nos
aprofundemos na significação dessas modificações e suas implicações no cotidiano
da família da casa da Rua Aribau.
Parece-nos interessante para tanto, observar a correlação entre os fatos da
ficção e seu encadeamento com a realidade dos fatos históricos. Andrea
desembarca na Estação Ferroviária de Barcelona, logo após o fim da Guerra Civil
Espanhola, no segundo semestre de 1939. Por conseguinte, podemos inferir que a
morte de seu avô ocorreu exatamente no ano em que o conflito havia começado,
1936. O falecimento do patriarca da família aconteceu em um momento em que
milhares de espanhóis perderam suas vidas, sucumbindo diante da incapacidade de
líderes republicanos e nacionalistas, que não tiveram habilidade para levar o país à
liberdade democrática por meio de vias pacíficas. Na mesma época da morte do avô
de Andrea, começara a derrocada do sonho republicano e ascendera o triunfo do
autoritarismo.
A deterioração material da casa da Rua Aribau é algo semelhante ao que se
podia constatar em tantos outros edifícios da cidade de Barcelona, uma das
principais sedes dos aliados republicanos e palco de algumas das mais violentas
batalhas travadas durante a guerra. A falta de recursos essenciais à vida humana
como, luz, higiene e alimento, era uma privação que afetava a grande maioria da
população espanhola e não apenas aos familiares de Andrea.
Perante essa conjuntura social totalmente desequilibrada, a família da
protagonista de Nada parece ser apenas um dos muitos exemplares das
conseqüências desastrosas que a Guerra Civil Espanhola trouxera para a população
daquele país. Com a morte do patriarca e a ausência temporária de seus filhos
45
Román e Juan, tios de Andrea que combateram na Guerra a favor da causa
republicana, a única fonte de renda da família era o salário de Angustias. Esta,
empregara-se como secretária de um homem que também tinha problemas com o
governo pelo caráter irregular de suas atividades comerciais e políticas. Após o fim
da guerra, Juan retorna à casa casado com Gloria e sem condições de sustentar à
própria família, devido ao fracasso de seu trabalho como artista plástico e ao natural
desprestígio das artes naquela época. Em tempos em que o dinheiro estava escasso
para a compra de alimentos, consumir cultura parecia, no mínimo, algo incoerente.
Sem alternativa, Gloria aposta no jogo de cartas os quadros pintados pelo marido, a
fim de impedir que seu filho morra de fome. Román, em situação oposta à do irmão,
utiliza a atividade de músico profissional para encobrir sua relação com os negócios
indevidos. Entretanto, o dinheiro ganho com a ocupação ilegal é egoisticamente
empregado em seu exclusivo benefício.
Ao analisar detidamente a ambientação ficcional criada por Laforet para o
romance Nada, levantamos, até o momento, alguns aspectos relevantes. Em
primeiro lugar, interpretamos a simbologia da cidade de Barcelona como um lugar
idealizado positivamente no imaginário de Andrea porque, numa instância passada,
era aquele o espaço que preservava as melhores lembranças que a protagonista
guardava em sua memória. O aconchego da casa dos avós e o modo afável como a
personagem era tratada por seus parentes durante suas viagens de férias,
possibilitaram-lhe sonhar com esse espaço como o único detentor de seu brilhante
futuro. Em segundo lugar, ao retornar à cidade, as expectativas da protagonista em
relação à Barcelona parecem se cumprir até o momento em que ela adentra a Rua
Aribau e a casa de seus parentes. Em meio à sujeira, à escuridão, ao ar asfixiante e
à desorganização dos objetos eveis, Andrea assimila, aos poucos, a degradação
que, no transcorrer do tempo, havia tomado conta de toda a residência. Nessa
narrativa, a decadência material do edifício atua como reflexo de toda a calamitosa
penúria econômica pela qual passava a Espanha naqueles anos de imediato pós-
guerra. E, para particularizar a realidade social espanhola no microcosmo
representado pela casa da Rua Aribau, fazendo das coordenadas sociais da época
um elemento estilístico interno ao foco narrativo, a escritora escolhe o espaço
romanesco como um signo representativo da miséria coletiva.
Toda a realidade negativa apreendida por meio da descrição dos ambientes
internos da casa da Rua Aribau, contrapõe-se às memórias infantis da protagonista.
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As mudanças sofridas pela casa e pela família por ela abrigada, têm estreita relação
com o processo de desenvolvimento da própria cidade de Barcelona. No entanto,
como marco dessa transformação, citamos a morte do avô de Andrea e sua
referência temporal direta com o início da Guerra Civil Espanhola. O devaneio a
partir do qual a protagonista contrasta o passado e o presente, permite-nos
estabelecer as devidas distinções entre as diferentes épocas históricas da existência
da família e de sua residência. Sendo assim, a Guerra Civil Espanhola e o valor
negativo que ela agregou à sociedade, nos anos 1940, constitui um importante
marco na história daquelas pessoas e de seu espaço doméstico.
Não obstante, o descuido com que a casa é preservada, possibilita-nos
constatar não apenas a materialização da pobreza, como também nos permite
entender as motivações que levam os personagens a estabelecer entre si, relações
de mesquinhez e desumanidade. Entre pessoas privadas do essencial para a
manutenção da existência humana, ou seja, o alimento, torna-se compreensível que
haja desequilíbrio e repulsa no envolvimento entre os seres humanos. Como muitos
dos sentidos do romance Nada podem ser apreendidos por meio de um estudo das
significações do espaço, poderíamos dizer que há, no interior da casa da Rua
Aribau, um ambiente que serve de perfeito cenário para os conflitos vividos por seus
moradores - a sala de jantar. É a esse lugar que dirigimos agora o foco de nossa
análise.
2.2.2) A sala de jantar: palco dos desentendimentos familiares
Ao se despertar do devaneio matinal, a partir do qual rememora a casa e sua
vivacidade pregressa, Andrea retorna à realidade sufocante, obscura e degradada
da casa da Rua Aribau, sobre a qual, a incidência dos raios solares da manhã,
revela novos aspectos de decadência:
La habitación con la luz del día había perdido su horror, pero no
su desarreglo espantoso, su absoluto abandono. Los retratos de los
abuelos colgaban torcidos y sin marco de una pared empapelada de
oscuro con manchas de humedad, y un rayo de sol subía hasta ellos.
(p. 24)
47
O quarto improvisado para Andrea, sob o efeito visual da luz do sol, não tinha
mais o aspecto amedrontador que a assustara na noite anterior, embora a
desorganização, a sujeira e o abandono permanecessem os mesmos. A figura visual
que ilumina o ambiente estende sua claridade para a parede escura e suja, na qual
a jovem visualiza um antigo retrato de seus avós. A jovialidade retratada no passado
contrasta com o envelhecimento do presente e devolve à personagem o sentido da
realidade perdido durante alguns instantes do seu despertar. Ao sair do aposento
que tanto lhe perturbara durante a noite, Andrea entra em contato com um novo
ambiente, a sala de jantar, onde sugestivamente, conheceria uma outra faceta da
penosa realidade de sua família, a falta de recursos econômicos também para a
alimentação:
Al abrir la puerta de mi cuarto me encontré en el sombrío y
cargado recibidor hacia el que convergían casi todas las habitaciones
de la casa. Enfrente aparecía el comedor, con un balcón abierto al
sol. Tropecé, en mi camino hacia allí, con un hueso, pelado
seguramente por el perro. No había nadie en aquella habitación, a
excepción de un loro que rumiaba cosas suyas, casi riendo. Yo
siempre creí que aquel animal estaba loco. En los momentos menos
oportunos chillaba de un modo espeluznante. Había una mesa
grande con un azucarero vacío abandonado encima. Sobre una silla,
un muñeco de goma desteñido. Yo tenía hambre, pero no había nada
comestible que no estuviera pintado en los abundantes bodegones
que llenaban las paredes, y los estaba mirando, cuando me llamó tia
Angustias. (p. 25)
Adjetivos negativos voltam a ser usados para caracterizar o novo ambiente:
sombrio e cargado. O caráter de desequilíbrio se apresenta na jocosa figura de um
dos animais (o loro), que repete neuroticamente os desagravos que nada mais são
que reproduções automáticas de tudo quanto se presencia naquele palco de
discórdias. O vazio da mesa, do recipiente de açúcar e a irônica imagem do alimento
presente apenas de forma figurativa nos quadros dispostos na parede, indicam que,
naquela casa, também, se passa fome. No cenário da alimentação desprovido de
comida, o animal parece valer mais que o homem, pois o cão é o único ser a ter a
possibilidade de realizar uma refeição matinal.
Depois de uma longa e desagradável conversa com Angustias, Andrea
conhece o tio Román e se sente inundada por um misto de fascínio e pavor. Ao
mesmo tempo em que a seduz, a sobrinha percebe que o tio é quem manipula os
48
demais habitantes da casa, provocando, por exemplo, os desentendimentos entre
Juan e sua esposa, Gloria. Ali, naquela imunda e vazia sala de jantar, a jovem
estudante presencia a primeira de muitas outras cenas de violento conflito que seus
parentes lhe proporcionariam:
Guardó el arma en el bolsillo. Yo la miré relucir en sus manos,
negra, cuidadosamente engrasada. Román me sonreía y me acarició
las mejillas; luego se fue tranquilamente, mientras la discusión entre
Gloria y Juan se hacía violentísima. En la puerta tropezó Román con
la abuelita, que volvía de su misa diaria, y la acarició al pasar. Ella
apareció en el comedor, en el instante en que tía Angustias se
asomaba, enfadada también, para pedir silencio.
Juan cogió el plato de papilla del pequeño y se lo tiró a la cabeza.
Tuvo mala puntería y el plato se estrelló contra la puerta que tía
Angustias había cerrado rápidamente. El niño lloraba, babeando.
Juan entonces empezó a calmarse. La abuelita se quitó el manto
negro que cubría su cabeza, suspirando.” (p. 30)
No primeiro encontro entre Andrea e Román, o tio cuida de sua arma, objeto
intrinsecamente relacionado à morte, que atua como um signo que indica a
possibilidade de abater uma daquelas desprezíveis vidas, reduzidas à mediocridade,
por desentendimentos domésticos. Além dos evidentes traços de desequilíbrio que
caracterizam o ser de Román, sua personalidade encerra certa duplicidade. O
mesmo homem capaz de semear a discórdia entre o irmão e a cunhada, levando
Juan ao quase assassinato de Gloria, mostra uma outra face de carinho e atenção
para com a mãe, como quem tenta manter uma imagem positiva.
O desfecho do desentendimento, como todos os que se dão entre os
familiares de Andrea, é agressivo. Nesse trecho, como em todas as cenas que
envolvem a sala de jantar, as informações sobre o ambiente narrativo nos são dadas
por meio de uma ambientação dissimulada ou oblíqua, na qual segundo Lins (apud
Dimas, 1985, p. 26): “os ‘atos’ da personagem (...) vão fazendo surgir o que a cerca,
como se o espaço nascesse dos seus próprios gestos”. Por isso o predomínio,
nessas passagens, de verbos dentre as demais classes de palavras, devido a uma
preocupação maior da narradora em transmitir dados sobre o ambiente, não por
meio de descrições carregadas de substantivos e adjetivos, mas a partir de verbos
que demonstram a relação entre as ações dos personagens e o espaço que os
circunda.
49
Nesse episódio, o que provoca a perplexidade de Andrea não é apenas a
violência explicitada nas relações familiares, como também a naturalidade pacífica e
habitual com que os demais personagens aceitam e assistem à pequena tragédia
íntima. Para a maioria dos familiares, esses acontecimentos se tornaram
espetáculos encarados como normais no cotidiano daquele lar. Parece
surpreendente também, a nulidade da autoridade de Angustias perante os irmãos,
justamente ela que, minutos antes, em uma conversa com a sobrinha, parecia ser a
força controladora de toda a família.
Algum tempo depois, em outra cena demonstrativa da brutalidade e da
irracionalidade das relações entre aqueles seres, Andrea tem a definitiva certeza de
que a dominação de Angustias o passa de invencionices de mulher frustrada e de
que o controle de tudo e de todos passa pela manipulação de Román. Entretanto,
nessa oportunidade, a protagonista se envolvida no conflito, como
desencadeadora da discórdia.
Ao revistar a mala da sobrinha, Román sente falta de um lenço que a jovem
ganhara da avó por ocasião de sua primeira comunhão. O sico informa o fato a
sua irmã Angustias, que rapidamente acusa Gloria pelo roubo. Isso desperta a ira de
Juan que, para defender a esposa, expõe o adultério da irmã. O palco para mais
essa cena de violência é novamente a sala de jantar, uma espécie de coração negro
da casa, onde lateja o que há de pior em cada ser humano:
Cuando subíamos las escaleras de la casa oíamos gritos que
salían de nuestro piso. La abuela se acogió a mi brazo con más
fuerza y suspiró.
Al entrar encontramos que Gloria, Angustias y Juan tenían un
altercado de tono fuerte en el comedor. Gloria lloraba histérica.
Juan intentaba golpear con una silla la cabeza de Angustias y ella
había cogido otra como escudo y daba saltos para defenderse.
Como el loro chillaba exitado y Antonia cantaba en la cocina, la
escena no dejaba de tener su comicidad. (p. 68)
A escada, imbuída de seu sentido de verticalidade e ascensão, aproxima a
entrada da casa à sala de jantar e leva Andrea e sua avó ao encontro do espaço das
desavenças. Ali, os objetos também assumem a função de armas de ataque e
defesa, ao passo que as atitudes debochadas do animal e da empregada, ajudam a
compor o aspecto grotesco e cômico que a cena adquire.
50
Ao desmentir o roubo de Gloria e declarar que o lenço fora dado como
presente a sua amiga Ena, Andrea desfaz a convulsiva aglomeração, aliviando o
ambiente da sala de jantar e enviando cada um de seus parentes aos seus lugares
de direito. Angustias se refugia com sua vergonha em seu quarto, lugar que lhe
pertence e lhe protege. Juan e Gloria, em outro espaço, dão prosseguimento, como
era de costume, à discussão iniciada na sala de jantar. Ambos não são capazes de
impedir que qualquer problema os afete, ainda que não diga respeito exatamente a
eles. A sonoridade da discussão do casal alcança os sentidos de Andrea que a
compara ao som de uma tempestade que se afasta. Naquela frustrada manhã de
natal, a fome gera, na personagem, uma alucinação que recria, na Rua Aribau, a
imagem gustativa das guloseimas festivas que se contrapõem ao amargor da
existência da protagonista, aprisionada no interior daquela insana residência: “Aquel
día de Navidad, la calle tenía aspectos de una inmensa pastelería dorada, llena de
cosas apetecibles.” (p. 70-1)
Durante os difíceis anos do princípio da ditadura franquista, a miséria em seus
mais diversos aspectos e a repressão, afetaram negativamente a vida da sociedade
de diferentes formas. Entretanto, a fome, fosse por falta de dinheiro ou pela própria
escassez de alimento, era algo que causava nas pessoas um sofrimento imediato
que provocava reações das mais inesperadas e adversas. A escolha da sala de
jantar, como cenário para a demonstração do desequilíbrio das relações entre os
familiares de Andrea, simboliza de que maneira a privação de uma necessidade
fisiológica vital pode alterar as atitudes do ser humano.
Para além das tragédias desse cotidiano familiar, analisamos os demais
ambientes da residência, a fim de verificar de que modo cada personagem se
relaciona com seu espaço individual, tornando-o extensão de si próprio ou
permitindo-se influenciar por ele.
2.2.3) Os personagens e seus espaços individuais
No romance Nada, Laforet tem, como observamos, intensa preocupação
com o detalhamento da ambientação romanesca. Entretanto, essa mesma
dedicação estilística não acontece quando se trata de traçar o perfil dos
personagens que compõem a narrativa. Os fragmentos do texto dos quais a
51
narradora se ocupa em descrever os seres ficcionais da obra estão claramente
atrelados à caracterização do ambiente, que cada um deles ocupa nos diversos
espaços do interior da casa da Rua Aribau, e os dados sobre esses lugares acabam
por reafirmar ou mesmo complementar elementos sobre o personagem.
Para Bachelard, o espaço ocupado individualmente por um ser humano pode
oferecer informações sobre ele por meio da observação que se faz do modo como o
mesmo ocupa seus ambientes particulares:
Portanto, é preciso dizer como habitamos nosso espaço vital de
acordo com todas as dialéticas da vida, como nos enraizamos, dia a
dia, num “canto do mundo”.
Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz
amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um
cosmos em toda a acepção do termo. (Bachelard, 2005, p. 24)
Pensando na correlação entre os personagens e os ambientes a eles
subjacentes, analisamos os trechos de descrição dos componentes da família de
Andrea, no intuito de traçar paralelos entre eles e o espaço que cada um ocupa no
interior da residência. Ao realizar esse estudo, verificamos de que modo, suas
atitudes e sua visão de mundo estão representadas na organização espacial que os
circunda, e em que medida seus comportamentos estão condicionados por
influência da ambiência ficcional.
Ao ser recebida pela avó, após sua chegada à casa da família materna,
Andrea conhece os parentes com os quais deveria conviver a partir de então. A
primeira descrição da narradora ao leitor é sobre seu tio Juan:
La anciana seguía sin comprender gran cosa, cuando de una de
las puertas del recibidor salió en pijama un tipo descarnado y alto
que se hizo cargo de la situación. Era uno de mis tíos, Juan. Tenía la
cara llena de concavidades, como una calavera a la luz de la única
bombilla de la lámpara. (p. 16)
A magreza extraordinária de Juan, agravada por sua alta estatura, é o único
dado físico que temos sobre o personagem e esse aspecto é descrito pela narradora
por meio do emprego do adjetivo descarnado, uma palavra introduzida pelo prefixo
de negação des, que sugere ênfase não à característica de ser magro apenas, mas
evidencia a falta, a necessidade de algo. Sua face é metaforicamente comparada a
uma caveira, com suas cavidades ressaltadas pelo sentido visual da má iluminação.
52
A magreza de Juan simboliza não somente a falta de alimentação adequada,
fato comum na maior parte das residências espanholas à época, como também
indica a estreiteza da vida de um homem que viu seus ideais ruírem com a derrota
na guerra. Essa decepção ideológica afeta sua relação conjugal com a esposa
Gloria, em quem o personagem descarrega violentamente sua frustração. Ressoa
também em sua postura de pai relapso e na sua incompetência profissional como
artista plástico decadente.
Essas primeiras impressões sobre o personagem se estendem na ambiência
do seu estúdio de arte:
El aspecto de aquel gran estúdio era muy curioso. Lo habían
instalado en el antiguo despacho de mi abuelo. Siguiendo la tradición
de las demás habitaciones de la casa, se acumulaban allí, sin orden
ni concierto, libros, papeles y las figuras de yeso que seran de
modelo a los discípulos de Juan. Las paredes estaban cubiertas de
duros bodegones pintados por mi tío en tonos estridentes. En un
rincón aparecía, inexplicable, un esqueleto de estudiante de
Anatomía sobre un armazón de alambre (…) (p. 35)
O espaço por hora destinado ao exercício artístico de Juan, como outros
lugares da residência, é um ambiente reaproveitado pela falta de uso. O ateliê segue
os mesmos padrões de sujeira, desorganização e inutilidade dos demais lugares da
casa. Embora não possamos afirmar que esta configuração espacial determina
ações próprias do personagem, podemos notar, de acordo com o que salienta
Bachelard, que alguns elementos da organização do ambiente simbolizam
características do ser que o ocupa. Para se manter economicamente, Juan aulas
de artes plásticas e pinta quadros que dificilmente vende, pois sua estética traz
imagens duras e estridentes, figuras que refletem seu estado de espírito perturbado
pela violência presenciada e sofrida durante a guerra. Entretanto, o mais
interessante aspecto daquele ambiente é a presença do esqueleto, referência direta
à metáfora da narradora que compara o tio a uma caveira, como se aquela estrutura
de ossos fosse a personificação do próprio Juan, miserável em sua constituição
física, medíocre em sua manifestação artística e humilhado em sua condição
humana.
A segunda personagem retratada na descrição da narradora é a figura de
Gloria, esposa de Juan:
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Detrás de tío Juan había aparecido otra mujer flaca y joven con
los cabellos revueltos, rojizos, sobre la aguda cara blanca y una
languidez de sábanas colgadas, que aumentaba la penosa sensación
del conjunto. (p. 17)
Gloria, assim como o esposo, exibe uma magreza agravada por uma palidez
enferma que permite a Andrea imaginá-la por meio da imagem de um fantasma
coberto por lençóis brancos. Entretanto, seus cabelos de aspecto e cor
escandalosos contrastam com a alvura de sua pele. Neles, a protagonista enxerga
certa rebeldia, como indícios de que algo naquele ser poderia gerar interesse aos
olhos da narradora, como veremos nas descrições que seguem:
En la atmósfera pesada de su cuarto ella estaba tendida sobre la
cama igual que un muñeco de trapo a quien pesara demasiado la
cabellera roja. Y por lo general me contaba graciosas mentiras
intercaladas a sucesos reales. No me parecía inteligente, ni su
encanto personal provenía de su espíritu. Creo que mi simpatía por
ella tuvo origen el día en que la vi desnuda sirviendo de modelo a
Juan. (p. 35)
Nesse trecho, a languidez flácida do corpo de Gloria é comparada a uma
boneca de pano desarticulada e essa redução da mulher, por meio de uma
comparação a um objeto inanimado, indica sua irrelevância como ser humano
perante os demais personagens. De fato, ninguém é mais humilhado e ignorado na
residência da Rua Aribau que Gloria, uma espécie de ser expiatório de todas as
culpas, relegada a essa situação por sua origem humilde e pelo caráter duvidoso e
obscuro de suas atividades que nunca se definem claramente: ora prostituta, ora
viciada no jogo de cartas e ocasionalmente ladra de objetos sem valor. À princípio,
Andrea não vê na personagem inteligência nem outra característica que a torne uma
pessoa especial, entretanto, sua opinião sobre a esposa do tio começa a mudar ao
vê-la contribuindo com a rudimentar arte produzida pelo marido:
Gloria, enfrente de nosotros, sin su desastrado vestido, aparecía
increíblemente bella y blanca entre la fealdad de todas las cosas,
como un milagro del Señor. Un espíritu dulce y maligno a la vez
palpitaba en la grácil forma de sus piernas, de sus brazos, de sus
finos pechos. Una inteligencia sutil y diluida en la cálida superficie de
la piel perfecta. Algo que en sus ojos no lucía nunca. (p. 36)
54
A nudez de Gloria é destacada pela alvura de sua pele que, nesse momento,
deixa de ser fantasmagórica e pálida, para transformar-se em um fino tecido
uniforme, de uma beleza esplêndida, sobrenatural e contrária a tudo o que se vira
até então no interior daquela casa. A partir disso, a narradora passa a encontrar na
personagem uma inteligência discreta e o paradoxo entre as figuras cromáticas
branca e vermelha de sua pele e de seus cabelos respectivamente, refletem-se em
seu espírito contraditoriamente dulce y maligno a la vez.
Na descrição do quarto de Glória, encontramos elementos que sugerem a
alternância de sua personalidade dividida entre a placidez de sua alva pele e a
urgência de seus rebeldes cabelos vermelhos:
El cuarto de gloria se parecía algo al cubil de una fiera. Era un
cuarto interior ocupado casi todo él por la cama de matrimonio y la
cuna del niño. Había un tufo especial, mezcla de olor a criatura
pequeña, a polvos para la cara y a ropa mal cuidada. Las paredes
estaban llenas de fotografías, y entre ellas, en un lugar preferente,
aparecía una postal vivamente iluminada representando los gatitos.
(p. 34)
Por um lado, sob a metáfora da fera, podemos explicar o misto de beleza e
rebeldia que Gloria encerra dentro de si. Por outro lado, a mesma expressão a
desumaniza e a reduz a uma animalização. A estreiteza de seu quarto indica a
insignificância com a qual a personagem é tratada pela família e a sua condição
aviltante. Gloria é espancada pelo marido como um animal indefeso: às vezes,
quase até a morte, além de ser manipulada pela insanidade de Román e de ser alvo
constante das críticas moralistas da cunhada Angustias. Seguindo um padrão
comportamental vigente à época, Gloria se subjuga a todo tipo de afronta,
sucumbindo aos poderes de Juan e Román, figuras representativas de uma
sociedade machista. Deste mesmo modo, aceita a repressão do julgamento
preconceituoso de Angustias, que se auto-considera um modelo de virtude feminina
e condena a esposa do irmão por sua procedência social inferior e por suas atitudes
anti-convencionais.
No entanto, como uma fera imbuída de um forte instinto materno, Gloria se
veste todas as noites e sai para buscar o sustento de sua cria apostando no jogo de
cartas, os decadentes quadros pintados pelo marido, em um cassino improvisado e
ilegal, montado na casa de sua irmã. As figuras olfativas do quarto de Gloria
representam uma antítese ao misturar o mau cheiro de seu descuido com as roupas,
55
com sua vaidade de mulher que se reconhece bela. Os gatos retratados e expostos
na parede de seu quarto são uma metáfora para a beleza e a agressividade felina de
Gloria, ao mesmo tempo em que não deixam de marcar o menosprezo com o qual é
tratada pela família.
A terceira pessoa a se apresentar, ante os olhos da narradora na noite de
sua chegada a Barcelona, é sua tia Angustias:
Entonces supe que aún había otra mujer a mi espalda. Sentí una
mano sobre mi hombro y otra en mi barbilla. Yo soy alta, pero mi tía
Angustias lo era más y me obligó a mirarla así. Ella manifestó cierto
desprecio en su gesto. Tenía los cabellos entrecanos que le bajaban
a los hombros y cierta belleza en su cara oscura y estrecha. (p. 17)
Na descrição física da personagem, podemos apontar alguns elementos que
nos apoiarão na análise de suas ações. Sua alta estatura, por exemplo, remete-nos
à idéia de uma relação de assimetria que se estabeleceria logo de início entre a tia e
a sobrinha. O gesto depreciativo de Angustias, ao chamar a atenção de Andrea para
si, tomando-lhe o queixo e voltando-o para ela, indica a autoridade que aquela
mulher pretende exercer sobre a jovem. Angustias é uma mulher frustrada pela
solidão de sua condição de solteira e se auto-vitima pelo fato de, com seu miserável
salário de secretária, ter de sustentar toda a família. Ideologicamente dominada pelo
discurso oficial que exigia das mulheres espanholas ser exemplo de conduta moral
para as gerações mais jovens, a tia persegue a sobrinha desde sua chegada a
Barcelona, condenando sua postura e tentando enquadrá-la no padrão feminino
comum à época.
A discreta beleza que a narradora observa em Angustias, faz com que a
personagem se distancie dos demais moradores da casa, expostos geralmente de
forma bizarra e medonha.
Ao descrever o quarto de Angustias, notemos como a autora constrói esse
espaço em consonância com o perfil traçado anteriormente para a personagem:
El cuarto de mi tía comunicaba con el comedor y tenía un balcón
a la calle. Ella estaba de espaldas, sentada frente al pequeño
escritorio. Me paré, asombrada, a mirar la habitación porque
aparecía limpia y en orden como si fuera un mundo aparte en aquella
casa. Había un armario de luna y un gran crucifijo tapiando otra
56
puerta que comunicaba con el recibidor; al lado de la cabecera de la
cama, un teléfono. (p. 25)
A preocupação com a higiene, a organização, a boa mobília e a presença dos
símbolos da religiosidade, reforçam a distinção entre Angustias e os outros
moradores da casa, além de indicar certa superioridade e autonomia financeira,
como se a miséria que assolava toda a casa não alcançasse aquele dormitório.
Outro detalhe que diz muito da personalidade de Angustias, é a posição de seu
quarto, em relação aos outros cômodos. Em seu dormitório, duas portas, ligadas
a pontos chaves da casa: uma, voltada para a sala de jantar, lugar onde a família se
reúne normalmente e onde se travam as violentas discussões: a outra, voltada para
o hall de entrada, elo principal entre a casa e o ambiente exterior, a Rua Aribau.
Além disso, ali se encontra um outro importante meio de comunicação, o único
telefone da família. As portas e o telefone são signos de interação com o mundo
exterior e símbolos do controle autoritário que a personagem pensa manter sobre os
outros parentes. A necessidade de dominação, a preocupação com o asseio e a
aparência são características que determinam o ser de Angustias. Uma personagem
que representa o coletivo de mulheres da classe média espanhola decadente que se
esforçava para cumprir, no microcosmo familiar, o papel de alavancas da redenção
da Espanha de s-guerra, por meio da preservação da moral, dos bons costumes
cristãos, do trabalho incansável e da economia extremada.
Assim como Angustias, o personagem Román, é descrito a partir de
características que o distinguem dos demais habitantes da casa da Rua Aribau,
embora também seja afetado pelo mesmo tom de amargura e violência que permeia
a atmosfera da residência da Rua Aribau: “Un hombre con pelo rizado y la cara
agradable e inteligente se ocupaba de engrasar una pistola al otro lado de la mesa.
Yo sabía que era otro de mis tíos: Román.” (p. 28)
Pelo aspecto físico atraente, a sensibilidade artística da música e a
inteligência, Román, à princípio, fascina a sobrinha mais do que qualquer outro
familiar. Seu quarto, assim como o de Angustias, apresenta elementos que o
distinguem em relação aos outros ambientes narrativos:
Román no dormía en el mismo piso que nosotros: se había hecho
arreglar un cuarto en las buhardillas de la casa, que resultó un
refugio confortable. Se hizo construir una chimenea con ladrillos
57
antiguos y unas librerías bajas pintadas de negro. Tenía una cama
turca y, bajo la pequeña ventana enrejada, una mesa muy bonita
llena de papeles, de tinteros de todas épocas y formas con plumas
de ave dentro. Un rudimentario teléfono servía, según me explicó,
para comunicar con el cuarto de la criada. También había un
pequeño reloj, recargado, que daba la hora con un tintineo gracioso,
especial. Había tres relojes en la habitación, todos antiguos,
adornando acompasadamente el tiempo. Sobre las librerías,
monedas, algunas muy curiosas; lamparitas romanas de la última
época y una antigua pistola con puño de nácar.
Aquel cuarto tenía insospechados cajones en cualquier rincón de
la librería, y todos encerraban pequeñas curiosidades que Román me
iba enseñando poco a poco. A pesar de la cantidad de cosas
menudas, todo estaba limpio y en un relativo orden. (p. 37)
Román ocupa, na verticalidade do edifício da Rua Aribau, uma posição de
superioridade, de onde manipula os demais personagens que habitam o andar de
abajo, de acordo com o que afirma o próprio personagem: “¿Tú no te has dado
cuenta de que yo los manejo a todos, de que dispongo de sus vidas, de que
dispongo de sus nervios, de sus pensamientos...?” (p.85).
Embora este espaço seja um antigo sótão improvisado, com o rendimento de
seus negócios ilícitos, Román conseguiu transformá-lo em um espaço confortável,
limpo, organizado, aquecido pelo calor da lareira e adornado por uma grande
estante que guarda todo tipo de objetos antigos. A presença desses objetos inúteis e
o excesso de relógios, revelam certo saudosismo do personagem em relação ao
passado e uma preocupação com o tempo atual, que transcorre de forma letárgica,
como que prolongando sua infelicidade de homem atormentado pelos horrores
vistos e vividos durante a guerra.
Torturado por seus demônios internos, ao final da narrativa, Román e fim à
sua existência de forma trágica. Andrea, chocada com a morte do tio, tem
dificuldades para aceitar o fato. Esse processo de aceitação acontece apenas
quando a sobrinha re-visita o ambiente anteriormente ocupado pelo personagem:
Un día subí arriba, al cuartito de la buhardilla. Un día en que no
pude aguantar el peso de este sentimiento, vi que lo habían
despojado todo miserablemente. Habían desaparecido los libros y las
bibliotecas. La cama turca, sin colchón, estaba apoyada de pie contra
la pared, con las patas al aire. Ni una graciosa chuchería, de aquellas
que Román tenía allí, le había sobrevivido. El armario del violín
aparecía abierto y vacío. Hacía un calor insufrible allí. La ventanita
que daba a la azotea dejaba pasar un chorro de sol de fuego. Se me
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hizo demasiado extraño no poder escuchar los cristalinos tictac tictac
de los relojes…(p. 267)
Como era habitual entre os familiares de Andrea, rapidamente, os objetos
pertencentes a Román foram retirados do antigo sótão. As ausências do instrumento
musical e da sonoridade dos vários relógios simbolizam a partida do obscuro tio de
Andrea. Quando Román morre é verão e a estação invade o antigo quarto com um
calor e uma luminosidade demasiados sufocantes para a jovem. É por meio da
visualização do espaço da individualidade de Román, devidamente modificado e
esvaziado por sua morte, que sua ausência torna-se real para a protagonista.
Quanto ao espaço ocupado pela narradora e apresentado nas ginas
anteriores de nossa análise, sabemos que se trata de um ambiente de horror e
rejeição. A condição de Andrea como ser indesejável naquela residência é
reafirmado quando da partida de Angustias, momento no qual a sobrinha ocupa o
espaço da tia, a fim de habitar um lugar mais confortável e menos ultrajante:
Entré en el cuarto de Angustias y el blando colchón
desguarnecido me dio la idea de dormir allí mientras ella estuviera
fuera. Sin consultarlo a nadie trasladé mis ropas a aquella cama, no
sin cierta inquietud, pues todo el cuarto estaba impregnado del olor a
naftalina e incienso que su dueña despedía, y el orden de las tímidas
sillas parecía obedecer aún a su voz. Aquel cuarto era duro como el
cuerpo de Angustias, pero más limpio y más independiente que
ninguno en la casa. Me repelía instintivamente y a la vez atraía a mi
deseo de comodidad. (p. 78)
Andrea é atraída a o quarto da tia pelo irresistível desejo pelo conforto.
Entretanto, a comodidade da alcova gera certa hesitação na protagonista, pois, por
meio do sentido olfativo e da personificação das cadeiras que ainda parecem
obedecer ao apelo sonoro da voz de Angustias, a narradora sente a presença
autoritária da tia. Ao comparar a rigidez do ambiente à inflexibilidade do corpo e do
próprio ser de Angustias, a sobrinha se sente rejeitada por aquele espaço, ao
mesmo tempo em que paradoxalmente, se deixa seduzir pela comodidade que
nenhum outro lugar da casa poderia lhe proporcionar.
No entanto, o aconchego de Andrea se desfaz em pouco tempo, porque a
sobrinha é surpreendida com o retorno inesperado e desagradável da tia:
59
Angustias volvió en un tren de medianoche y se encontró a Gloria
en la escalera de la casa. A me despertó el ruido de las voces.
Rápidamente me di cuenta de que estaba durmiendo en un cuarto
que no era el mío y de que su dueña me lo reclamaría.
Salté de la cama traspasada de frío y de sueño. Tan asustada,
que tenía la sensación de no poder moverme aunque, en realidad, no
hice otra cosa: en pocos segundos arranqué las ropas de la cama y
me envolví con ellas. Tiré la almohada, al pasar, en una silla del
comedor y llegué hasta el recibidor envuelta en una manta, descalza
sobre las baldosas heladas, en el momento en que Angustias
entraba de la calle seguida del chófer con sus maletas y conduciendo
a Gloria por un brazo. (p. 88)
Angustias retorna na sugestiva hora das bruxas e, como um algoz, apanha
Andrea em um ato ilícito. Despertada pela sonoridade das vozes em possível
discussão que sobem pelas escadas, entorpecida pelo sono e imobilizada pelo frio,
a jovem instintivamente volta para seu quarto, numa tentativa desesperada e inútil
de não ser descoberta. Se quando da sua chegada, a protagonista é obrigada a
ocupar uma antiga e inutilizada sala de estar, também não é no quarto da tia que
Andrea encontra um lugar com o qual possa se identificar. Nem sequer com a
partida definitiva de Angustias a personagem obtém a privacidade desejada:
Entré en el cuarto de Angustias, que desde unos días atrás había
heredado yo, y al encender la luz encontré que habían colocado
sobre el armario una pila de sillas de las que sobraban en todas
partes de la casa y que allí amenazaban caerse, sombrías. También
habían instalado en el cuarto el mueble que servía para guardar la
ropa del niño y un gran costurero con patas que antes estaba
arrinconado en la alcoba de la abuela. La cama, deshecha,
conservaba las huellas de una siesta de Gloria. Comprendí en
seguida que mis sueños de independencia, aislada de la casa en
aquel refugio heredado, se venían al suelo. Suspiré y empecé a
desnudarme. Sobre la mesilla de noche había un papel con una nota
de Juan: “Sobrina, haz el favor de no encerrarte con llave. En todo
momento debe estar libre tu habitación para acudir al teléfono”. (…)
El día me había traído el comienzo de una vida nueva; comprendía
que Juan había querido estropeármela en lo posible al darme a
entender que, si bien se me cedía una cama en la casa, era sólo lo
que se me daba. (p. 111-2)
Andrea volta à sua difícil realidade de rejeição, ao perceber que o lugar
habitado por ela se tornara uma espécie de depósito de objetos velhos e incômodos.
A acomodação dos móveis confere ao ambiente a característica da
desorganização, comum a toda a casa e expressa pelo adjetivo sombrias. Com a
ausência de Angustias, toda a degradação que domina a casa da Rua Aribau parece
60
invadir o quarto outrora preservado da decadência. A intimidade de Andrea é
invadida de todas as formas e o autoritarismo de Juan enfatiza o aspecto
comunitário que aquele espaço representa para a família.
Conforme afirma Bachelard, espaço e ser humano estão correlacionados.
Verificamos isto na análise das analogias entre personagens e espaços ficcionais
por eles ocupados individualmente no todo da ambiência narrativa. A decadência do
estúdio de artes de Juan representa seu próprio declínio como homem, assim como
o quarto de Gloria sintetiza a ambigüidade de seu caráter de subserviência e
rebeldia. Angustias reproduz em seu espaço o mesmo perfil austero, higiênico,
organizado e sacralizado que tenta manter sobre sua própria identidade de mulher
exemplar. Os múltiplos objetos inutilmente acumulados no sótão ocupado por
Román, em meio a tantos outros objetos de arte, revelam o desequilíbrio de sua
alma, o que culmina no extermínio de sua própria vida, cujo ato apenas seu
ambiente individual pôde testemunhar. A protagonista, quer seja em seu primeiro
dormitório improvisado, quer seja na ocupação indevida do quarto da tia, tem sua
condição de ser indesejável evidenciada pela falta de respeito dos demais
personagens em relação à sua privacidade espacial.
Não podemos afirmar, entretanto, que as atitudes dos seres ficcionais desse
romance estão condicionadas ou determinadas pela caracterização de seus
ambientes particulares. No entanto, observamos que a autora propõe para as
descrições espaciais desses lugares, uma correspondência de sentidos e valores
específicos de cada personagem que se refletem, propositadamente, na maneira
como seus espaços são organizados. Isso explicita o que Bachelard expõe sobre a
vinculação dialética do ser humano em relação aos ambientes que o pertencem,
como uma autêntica mostra de sua identidade.
2.3) A casa da Rua Aribau: Imagens representativas do mundo
demoníaco
Nortrhop Frye em Anatomia da crítica (1991, p. 53), diferentemente da maioria
dos historiadores da literatura, organiza a produção literária por meio de uma
periodização seqüencial estabelecida temporalmente numa leitura transversal, na
qual o estudioso encontra relação de similaridade entre textos literários produzidos
em diferentes épocas, sob a ótica de diferentes estéticas artísticas.
61
Desse modo alternativo, de pensar a literatura no tempo histórico,
desvencilhando-se da tradicional distribuição em escolas de pensamento estético, o
autor cria uma teoria dos modos ficcionais, elaborada a partir dos distintos níveis
que os personagens podem assumir em cada tipo de obra.
Ao aproximarmos o romance Nada de Laforet a uma leitura, sob a luz da
teoria dos mythos de Frye, concluímos que a personagem Andrea, pode ser
entendida como uma personagem representante do quarto nível, no qual o
protagonista é, por suas qualidades inerentes, equiparado ao ser humano da
realidade sócio-histórica: alguém sujeito às inevitáveis leis da natureza e do mundo.
Esse romance é, portanto, no dizer de Frye, um Vanity Fair, uma narrativa na qual a
heroína está desprovida de predicados que a tornam especial ou sobre-humana,
suas possibilidades atitudinais estão circunscritas aos mesmos atributos de qualquer
outro ser humano que pertença ao plano do real.
Na análise que realizamos anteriormente sobre os demais personagens,
relacionando-os aos espaços ficcionais da narrativa e dando ênfase aos seres que
compõem a bizarra família que habita a casa da Rua Aribau, verificamos que os
mesmos se enquadram no quinto nível da categorização de Frye. Por se tratar de
pessoas inferiorizadas pela condição humana de servidão e de humilhação, na qual
suas ações adquirem a conotação do ridículo, do absurdo e do grotesco, estes
personagens caracterizam o que o teórico (1991, p. 54-5) denomina pharmacos:
seres que surgem no mundo ficcional apenas para representar o sofrimento do
homem e salientar sua posição medíocre diante da vida, sem possibilidades de
encontrar na própria existência algum meio de redenção.
Essas características apontadas, tanto em relação à protagonista quanto em
relação aos demais personagens do romance Nada, constituem o modo narrativo
irônico, descrito por Frye e exemplificado pelo mesmo por meio de ficções nas quais
as pessoas estão sempre sujeitas às limitações corriqueiras da humanidade, o que
possibilita que haja identificação entre a ficcionalidade e a realidade vivida pelo
leitor.
O modo de ficção irônico, por sua vez, está compreendido em uma das quatro
grandes divisões que Frye propõe para a literatura: o mythos do
inverno.
21
Subjacente a essa categoria está o recurso discursivo da ironia, que
21
Cada uma das divisões remete a mitos baseados na idéia cíclica das quatro estações do ano.
62
sugere que o padrão mítico segue os parâmetros da própria existência humana,
numa tentativa de retratar na ficção a ambigüidade e a complexidade das relações
estabelecidas entre os homens, isenta, portanto, de idealizações. Este mythos se
aproximaria do que a crítica tradicional denomina como ficção realista, uma
concepção estética que não pode estar circunscrita apenas ao realismo do século
XIX se pensarmos que, ao longo da história literária, coexistiram produções que se
preocuparam, de diferentes formas, em retratar as muitas realidades vividas nas
diversas coletividades humanas.
No mythos do inverno, a representação da condição humana é coerente com
a realidade e, especificamente, dentro do modo irônico, três fases de
caracterização da obra de ficção. Portanto, podemos dizer que o romance Nada se
ajusta ao que Frye (1991, p. 293) define como a última das três fases, na qual a
narrativa geralmente apresenta uma sociedade dividida em classes, onde aqueles
que pertencem ao nível superior ou dominante, enfatizam sua superioridade material
agindo de forma sádica e cruel para com as castas menos favorecidas. É o que
vimos anteriormente na análise das relações familiares de Andrea e é também o que
constatamos a seguir nos trechos posteriores, nos quais a heroína vive seguidas
frustrações, sendo constantemente punida por sua condição social inferior. À
princípio, a condenação da protagonista parte de sua própria família, que a ignora e
a humilha no microcosmo da casa da Rua Aribau, e conforme averiguaremos
posteriormente, Andrea é inferiorizada também nas relações com seus amigos,
jovens estudantes de condição social superior que reforçam a posição econômica
desprestigiada da protagonista.
Com relação aos personagens que compõem, em especial, a repulsiva família
da narradora, podemos dizer que se trata de figuras humanas atormentadas,
caracterizadas a partir de elementos hediondos e idiotas, para os quais a vida é
imposta de maneira alienante. Nesta terceira e última fase do modo irônico, a
atmosfera em geral é impiedosa e desesperançada e o mal encontra personificação,
por meio de personagens pontuais, como é o que podemos observar em Angustias,
com seu intenso desejo pelo exercício do autoritarismo sobre os demais familiares e,
sobretudo, sobre a sobrinha. É o que verificamos também na configuração
psicológica atormentada de Román que procura, por meio de sua manipulação
ensandecida, frustrar o frágil convívio conjugal do irmão e da cunhada. Na figura de
Juan, encontramos evidências de um comportamento violento que dissimula, ao
63
menos no interior do ambiente doméstico, a valorização e o respeito que a
sociedade há muito não lhe presta.
Entretanto, o objetivo do nosso estudo para o romance Nada está
concentrado em sua configuração espacial, de modo que após essas considerações
preliminares que aproximam nosso possível leitor do pensamento teórico de Frye,
podemos tecer algumas considerações sobre as análises aentão realizadas, com
o intuito de explicar as imagens poéticas da casa da Rua Aribau, a partir de
categorias simbólicas elaboradas por Frye para as ficções que se enquadram, como
anteriormente situamos, no mythos do inverno e na terceira ou última fase do modo
irônico.
O aspecto exterior da residência da família de Andréa, no momento da
chegada da protagonista à cidade de Barcelona, o hall de entrada onde a a a
recebe, o banheiro, o quarto improvisado e a sala de jantar, cenário dos muitos
desentendimentos familiares, são espaços que nos oferecem um conjunto de
imagens negativamente construídas. A falta de claridade dos ambientes, sua frieza
envolvida por um ar fétido e asfixiante e a degradação dos objetos constituintes da
moradia, estabelecem perfeita simetria com o perfil dos seres humanos que a
ocupam. Os comportamentos perturbados que culminam nas extremadas e violentas
discussões e agressões, parecem refletir toda a negação do espaço físico que
circunda os personagens.
Segundo Frye, os símbolos ligados à mitologia do inferno são denominados
Imagens demoníacas, que são definidas pelo autor da seguinte forma:
Opuesta al simbolismo apocalíptico está la presentación del
mundo que el deseo rechaza totalmente; el mundo de la pesadilla y
del chivo expiatório, del cautiverio, del dolor y dela confusión; el
mundo tal como es antes de que la imaginación humana comience a
trabajarlo y antes de que alguna imagen del deseo humano, tal como
la ciudad o el jardín, se haya establecido sólidamente; mundo
también del trabajo pervertido o inútil, de ruinas y catacumbas,
instrumentos de tortura y monumentos de insensatez. (Frye, 1991, p.
195)
Ao adentrar pela primeira vez a casa de sua família materna, Andrea pensa
viver um pesadelo do qual deseja desesperadamente despertar. Naquele espaço,
todos de algum modo expiam certa dose de culpa. A protagonista se sente culpada
64
por sua posição social inferior e por estar vinculada a uma família no seio da qual
imperam, não apenas a pobreza material, como também a miséria espiritual.
Angustias pune o próprio delito, o adultério, com a reclusão no convento. Da mesma
maneira, Gloria busca sua sobrevivência, ainda que indigna, submetendo-se à
violência do marido que se sente, por sua vez, frustrado por não ser capaz de
proporcionar o sustento da própria família. A esposa de Juan se auto-flagela
triplamente ao aceitar a manipulação de Román que a condena pelo fascínio de sua
beleza, por sua origem vulgar e pelo julgamento da cunhada Angustias, que a
como um modelo execrável de feminilidade. A avó admite passivamente a relação
brutal entre seus filhos como pena para seu fracasso como dirigente de uma família
arruinada. Nessa ferocidade doentia, Román não suporta o peso de sua própria
culpa e escolhe o suicídio como forma de expiação.
No mundo perturbado da casa da Rua Aribau, Andrea é vítima do
autoritarismo prisional e irracional de Angustias e da mediocridade de sua própria
vida absorta em meio a seres que sua índole libertária repudia. Sofre
silenciosamente com as dores físicas da fome que a corroem e com as dores morais
das relações torpes e insignificantes. Por isso, as ambientações expressionistas
descritas por ela oferecem várias metáforas funestas como: casa de brujas, bodegón
macabro, túmulo funerario rodeado por dolientes seres, muebles endiablados e
cama parecida a un ataúd, entre outras.
Desse modo, a casa da Rua Aribau parece aproximar-se das descrições do
mundo inorgânico que, segundo Frye, são espaços nos quais a vida plena não pode
imperar:
También es este el lugar de las imágenes del trabajo pervertido:
instrumentos de tortura, armas de guerra, armaduras e imágenes de
un mecanismo muerto que, al no humanizar a la naturaleza, resulta
tan desnaturalizado como inhumano. (Frye, 1991, p. 199)
Ao ser um ambiente contrário à promoção da vida digna e íntegra, a casa da
família de Andrea parece, por muitas vezes, um lugar irreal e inacreditável pelo teor
de desumanidade que concentra em seu medonho interior. Nada se enquadra no
que Frye (1991, p. 204) nomeia como modelo mimético baixo, ou seja, uma ficção
na qual há certa correlação entre enredo e mitologia. Portanto, adotamos a categoria
do mundo demoníaco com a finalidade de desvendar as analogias imagéticas que a
casa da Rua Aribau parece estabelecer com o inferno da mitologia bíblico-cristã.
3) O romance Nada: A escrita narrativa como cartografia da
cidade de Barcelona
Essa história começa ao rés do chão, com passos. São eles o
número, mas um número que não constitui uma série. o se
pode contá-lo, porque cada uma de suas unidades é algo
qualitativo: um estilo de apreensão táctil de apropriação cinésica.
Sua agitação é inumerável de singularidades. Os jogos dos
passos moldam espaços. Tecem os lugares.
(Michel de Certeau, A invenção do cotidiano, p. 176)
No segundo capítulo analisamos detalhadamente as descrições que
configuram o espaço interior da casa da Rua Aribau, lugar onde a protagonista vive
com a família, no transcorrer da trama narrativa do romance Nada. Ao investigar a
composição do ambiente interno da residência, procuramos encontrar evidências
sígnicas que comprovassem a analogia entre a atmosfera microcósmica da família
de Andrea, como recriação da violência generalizada e velada, à qual estava
subjugada a população espanhola durante os primeiros anos da ditadura franquista.
Notamos então que a caracterização espacial do romance oferece elementos que
condizem com a realidade vivida à época: um conjunto de sentimentos negativos,
impregnados de miséria e mesquinhez, provocadas pela recessão do país e pela
repressão das liberdades, o que contribuía para a reprodução de condutas
conturbadas no ambiente doméstico.
Nesta etapa, voltamos nossa atenção para o espaço exterior da casa da Rua
Aribau numa tentativa de ler o espaço urbano por meio do olhar da narradora. Esta
reconstrói, a partir de seu relato descritivo, a capital catalã e sua organização sócio-
espacial durante aqueles anos posteriores ao término da Guerra Civil Espanhola.
Ao primeiro contato da protagonista com a cidade de Barcelona no
desembarque na Estação Ferroviária, confirmam-se suas expectativas em relação
ao lugar recriado em seu imaginário e acalentado em seus sonhos juvenis.
Entretanto, o reencontro com os parentes e com a degradada residência por eles
habitada, gerou na narradora um profundo sentimento de frustração em relação ao
que ela imaginara para sua vida durante sua estada na capital catalã. Desde suas
visitas infantis transcorrera certo tempo, e Barcelona mudara muito. A cidade havia
se desenvolvido; afinal, era uma das principais urbes espanholas da época, além de
66
ter sofrido, como poucas outras cidades do país, o desgaste provocado pelo conflito
civil. Logo, ao se encontrar novamente com a cidade que guardava as promessas de
seu futuro, a personagem re-vive e re-conhece o espaço que se faz novo ante seus
olhos de viajante recém chegada.
No entanto, os primeiros passeios pela cidade, ao contrário do que Andrea
imaginara, são impressionantemente desagradáveis, pois a protagonista os realiza
em companhia de sua autoritária tia Angustias que assume, para si, a tarefa de
educar e mostrar à sobrinha os perigos que Barcelona pode oferecer a uma jovem
ingênua vinda do interior. Desse modo, nos primeiros trajetos realizados pelas ruas
da cidade, a visão da narradora é limitada pela arrogância da tia, que lhe apresenta
Barcelona a partir do que sua concepção julga que seja necessário conhecer. Em
seu discurso, Angustias costuma comparar metaforicamente a capital catalã a um
inferno, lugar onde o demônio pode assumir diferentes e irresistíveis formas. Esta
personagem, conforme comentamos anteriormente, é um perfeito simulacro da
hipócrita ideologia que dominava o comportamento das mulheres espanholas de
classe média nas primeiras décadas do século XX. Em uma sociedade machista e
patriarcal, na qual a fêmea é concebida para o único fim de reprodução e
constituição familiar, Angustias tem sua feminilidade frustrada por não ter
conseguido se casar e ter filhos. Por isso, deseja cumprir seu papel de propagadora
dos ideais de preservação da moral e dos valores cristãos, por meio de sua relação
com a sobrinha, vendo em si mesma um exemplo de virtude. A partir dessa atitude
da tia, Andrea entende que o penoso cárcere ao qual está submetida no interior do
edifício da Rua Aribau, pode se prolongar em passeios ao longo dos quais a cidade
de Barcelona lhe é apresentada através da ótica preconceituosa e distorcida de
Angustias:
Cogida de su brazo corría las calles, que me parecían menos
brillantes y menos fascinadoras de lo que yo había imaginado. (…)
Aquellos recorridos de Barcelona eran más tristes de lo que se
puede imaginar. (p. 32)
A expressão cogida de su brazo, indica a obrigatoriedade com que a jovem
acompanha a tia pelas ruas de Barcelona. O verbo correr, empregado pela
narradora, imprime ao passeio um ritmo apressado, como se Angustias arrastasse a
sobrinha sem lhe dar tempo para que algo ou alguém chamasse sua atenção. O
67
advérbio de intensidade menos, ao acompanhar os adjetivos brillantes e
fascinadoras, confere-lhes uma conotação negativa, como se ofuscasse a
luminosidade sedutora com a qual a cidade envolvera Andrea na noite de sua
chegada. O adjetivo triste encerra em si todo o sentimento da personagem em
relação aos passeios que, para ela, escondem a riqueza de possibilidades que a
cidade poderia lhe oferecer.
Sob a vigilância constante e implacável de Angustias, o único percurso que a
protagonista pode realizar é o do caminho de ida e volta da casa à universidade. Em
um de seus retornos diários, ela narra, envolta por um sentimento de amargura, os
efeitos do outono sobre as ruas da capital catalã:
El tiempo era húmedo y aquella mañana tenía olor a nubes y a
neumáticos mojados… Las hojas lacias y amarillentas caían en una
lenta lluvia desde los árboles. Una mañana de otoño en la ciudad,
como yo había soñado durante años que sería en la ciudad el otoño:
bello, con la naturaleza enredada en las azoteas de las casas y en
los troles de los tranvías; y sin embargo, me envolvía la tristeza.
Tenía ganas de apoyarme contra una pared con la cabeza entre los
brazos, volver la espalda a todo y cerrar los ojos. (p. 42)
Nessa descrição, a umidade do dia é absorvida por meio de sensações táteis
e olfativas. A manhã sinestesicamente exala um aroma de nubes, possivelmente
carregadas pelo peso de ocasionais chuvas que, ao umedecer as ruas, desprende a
figura olfativa do cheiro da borracha dos pneus em atrito com o asfalto. Metaforizada
como uma chuva que, ao invés de serenar, cai das árvores, as folhas são como
gotas de água e com uma cor amarelada: movimento e coloração típicos do outono.
A cena é de uma beleza evidente e é exatamente idêntica ao que Andrea recriara
em seu imaginário sobre como seria o outono em Barcelona, com folhas secas
caindo e cobrindo as coberturas dos edifícios e os trilhos do bonde. Entretanto, o
conector adversativo sin embargo, opõe a beleza da Barcelona outonal ao estado de
espírito da narradora que confessa sua melancolia por meio da expressão: me
envolvía la tristeza. Nem todo o esplendor da chegada da nova estação é capaz de
apagar a consternação que a personagem sente por estar aprisionada entre seres
medíocres e repulsivos. Ao voltar as costas e esconder o olhar para toda aquela
imagem que a insulta com sua exuberância, a protagonista revela a indignação de
estar em um lugar desejado sem poder experimentá-lo e vivenciá-lo, devido a uma
limitação que autoritariamente lhe é imposta. A arbitrária relação da protagonista,
68
com o espaço urbano de Barcelona, personifica-se por meio da personagem
Angustias, quem no contexto extrínseco à ficção, remete-nos a própria restrição do
regime franquista, que recaía de modo mais cruel sobre a população espanhola
feminina. O confinamento de Andrea dentro do sufocado mundo representado pela
casa da Rua Aribau e a barreira imposta por Angustias à liberdade da protagonista
em percorrer, conhecer e vivenciar a cidade são elementos que podem ser lidos
como metáforas referentes às privações materiais e sentimentais às quais estava
sujeita a juventude espanhola.
Entretanto, por sua própria índole libertária e por seu comportamento anti-
convencional, a protagonista não aceita passivamente essa restrição. Afinal, Andrea
se encontrava no lugar com o qual sempre sonhara e privar-se de experimentá-lo
era algo terrível. Com o passar do tempo, esta descobre que não precisa ser refém
da autoridade da tia e essa percepção se quando ela é acometida por uma forte
febre que lhe provoca profundas mudanças:
No a qué fueron debidas aquellas fiebres, que pasaron como
una ventolera dolorosa, removiendo los rincones de mi espíritu, pero
barriendo también sus nubes negras. El caso es que desaparecieron
antes de que nadie hubiera pensado en llamar al médico y que al
cesar me dejaron una extraña y débil sensación de bienestar. El
primer día que pude levantarme tuve la impresión de que al tirar la
manta hacia los pies quitaba también de sobre de aquel ambiente
opresivo que me anulaba desde mi llegada a la casa. (p. 55)
Nesse trecho, a febre tem o significado simbólico de um processo de
metamorfose que retira a protagonista de sua posição de tima da tirania de
Angustias e da asfixia da atmosfera familiar e a empurra, com toda sua ânsia juvenil,
em direção à cidade e às pessoas que ali viria a conhecer. Nessa imagem, o corpo
de Andrea pode ser comparado a uma casa que tem seus mais recônditos e íntimos
espaços remexidos por uma ventolera dolorosa. O adjetivo dolorosa indica que o
processo de transformação é sofrível, porém necessário, como único recurso capaz
de remover sua infelicidade, metaforizada na figura de nubes negras que obstruem a
passagem dos raios solares que deveriam inundar de luz seu corpo-morada. O
movimento de remoção da manta simboliza o desbloqueio da personagem que se
liberta, a partir desse momento, para sentir a cidade da maneira como sempre
imaginara, ignorando as recomendações impositivas da tia e se entregando a
passeios furtivos por Barcelona, vivenciando-a intensamente.
69
Na estrutura do enredo, esse desejo da protagonista em experimentar a
cidade acontece quando ela se relaciona com seres exteriores ao mundo restrito da
casa da Rua Aribau. Os primeiros passeios pela cidade são realizados em
companhia de sua nova amiga Ena e são completamente diferentes dos passeios
limitadores realizados ao lado de Angustias.
A partir disso, e nas descrições dos diversos ambientes de Barcelona a
cidade assume uma conotação positiva, contrastando o mundo opaco da Rua Aribau
com um novo e iluminado mundo que se descortina ante os olhos da personagem.
Essa oposição é tão intensa que Andrea deseja que essas duas órbitas adversas
nunca descubram uma à outra:
Me juré que no mesclaría aquellos dos mundos que se empezaban a
destacar tan claramente en mi vida: el de mis amistades de
estudiante con su fácil cordialidad y el sucio y poco acogedor de mi
casa. (p. 60)
Sobre essa dicotomia latente comentava Ródenas de Moya ao identificar na
estética das descrições laforetianas a oposição entre o expressionismo e o
impressionismo.
3.1) Barcelona: imagens representativas do mundo divino
22
Ignorando as recomendações da tia e se sentindo totalmente livre, Andrea
narra o primeiro e prazeroso passeio pelas ruas de Barcelona:
Por primera vez me sentía suelta y libre en la ciudad, sin miedo al
fantasma del tiempo. Había tomado algunos licores aquella tarde. El
calor y la excitación brotaban de mi cuerpo de tal modo que no sentía
el frío ni tan siquiera a momentos la fuerza de la gravedad bajo
mis pies. (p. 107)
A indiferença à autoridade de Angustias recupera Andrea do doloroso temor
pelo passar das horas, metaforizado na expressão fantasma del tiempo. Os
adjetivos suelta e libre indicam o estado de espírito da personagem, o modo como
ela se sente em relação à possibilidade de vivenciar a cidade. Ao vagar por
22
Referência à outra categoria de imagens elaboradas por Frye em Anatomia da crítica e que será
explorada a seguir.
70
Barcelona, a personagem começa uma busca indefinida por um lugar que entre em
consonância com a profusão de sentidos agradáveis que a dominam:
No sabía si tenía necesidad de caminar entre las casas
silenciosas de algún barrio adormecido, respirando el viento negro
del mar o de sentir las oleadas de luces de los anuncios de colores
que teñían con sus focos el ambiente del centro de la ciudad. Aún no
estaba segura de lo que podría calmar mejor aquella casi angustiosa
sed de belleza que me había dejado escuchar a la madre de Ena. La
misma Via Layetana, con su suave declive desde la Plaza de
Urquinaona, donde el cielo se deslustraba con el color rojo de la luz
artificial, hasta el gran edificio de Correos y el puerto, bañados en
sombras, argentados por la luz estelar sobre las llamas blancas de
los faroles, aumentaba mi perplejidad. (p. 108)
O prazer do gozo estético provocado pelo sentido auditivo aguçado pela
música da mãe de Ena no sarau, leva a protagonista a deixar a casa e a caminhar
sem destino pelas ruas do centro de Barcelona. Nessa passagem, casas e bairros
são personificados respectivamente pelos adjetivos silenciosas e adormecido.
Imagens sinestésicas mesclam o sentido tátil com o sentido visual (viento negro e
ondas de luces). O edifício dos correios e o porto são sinestesicamente molhados
pela sombra da noite e ganham um contorno prateado, conferido pelo brilho das
estrelas, evidenciado pela iluminação artificial urbana. Pela primeira vez, Andrea se
permite deslumbrar com a beleza da cidade que encerra, em si, as metáforas para a
sua liberdade e para as suas expectativas sobre uma vida mais significativa.
Em seu relato, a narradora nomeia as ruas por onde passa, um detalhe que
confere verossimilhança ao texto e aproxima o leitor do percurso realizado.
Sobre a importância de identificar os ambientes reais no âmbito ficcional,
explica Michel de Certeau:
É mais que uma “idéia”. Seria necessário multiplicar as comparações
para explicar os poderes mágicos de que dispõem os nomes
próprios. Parecem carregados pelas mãos viajadoras que conduzem
enfeitando-as.
Ligando gestos e passos, abrindo rumos e direções, essas
palavras operam ao mesmo título de um esvaziamento e de um
desgaste do seu significado primário. Tornam-se assim espaços
liberados, ocupáveis. Uma rica indeterminação lhes vale, mediante
uma rarefação semântica, a função de articular uma geografia
segunda, poética, sobre a geografia do sentido literal, proibido ou
permitido. (Certeau, 1996, p. 185)
71
Ao citar os nomes reais das ruas do centro antigo de Barcelona, essas vias
públicas deixam de ser apenas uma referência espacial para adquirir sentidos
particularizantes para o leitor que, mesmo não conhecendo a cidade, é capaz de se
situar no mapa narrativo traçado pela protagonista.
O obstinado caminhar de Andrea, pelas ruas da cidade, entre seus
tradicionais edifícios, pode ser entendido como um processo de produção lingüística.
Ao escolher o trajeto e executá-lo, a narradora estaria selecionando palavras e
produzindo enunciados, transmitindo mensagens por meio dos percursos traçados
na grande teia de possibilidades formativas que é a cidade. No caso, o espaço
urbano atua como um código lingüístico tal qual a língua escrita, de acordo com
Certeau:
O ato de caminhar está para o sistema urbano como a enunciação (o
speech act) está para a língua ou para os enunciados proferidos.
Vendo as coisas no nível mais elementar, ele tem com efeito uma
tríplice função “enunciativa”: é um processo de apropriação do
sistema topográfico pelo pedestre (assim como o locutor se apropria
e assume a língua); é uma realização espacial do lugar (assim como
o ato de palavra é uma realização sonora da língua); enfim, implica
relações entre posições diferenciadas, ou seja, “contratos”
pragmáticos sob a forma de movimentos (assim como a enunciação
verbal é “alocução”, “coloca o outro em face” do locutor e põe em
jogo contratos entre colocutores). O ato de caminhar parece portanto
encontrar uma primeira definição como espaço de enunciação.
(Certeau, 1996, p. 177)
O caminhar de Andrea é metáfora que simboliza seu modo de narrar. As
direções, por ela tomadas, são como palavras que unidas, configuram um todo
espacial e narrativo circunscrito não à instância da ficção, como também da
recriação. Para o leitor, esta é uma experiência que o aproxima do que a
personagem vivencia.
Durante esse caminhar, a cidade incita, em Andrea, o mesmo
deslumbramento que o canto da mãe de Ena lhe provocara minutos antes.
Entretanto, a personagem ainda busca, no espaço coletivo de Barcelona, um lugar
que traduza toda a experiência artística obtida na casa de sua amiga. Em uma
imagem personificada, a cidade parece evocar a protagonista a um lugar especial, o
único capaz de saciar sua sinestésica sed de belleza:
72
Oí, gravemente, sobre el aire libre de invierno, las campanadas de
las once formando un concierto que venía de las torres de las
iglesias antiguas.
La Via Layetana, tan ancha, grande y nueva, cruzaba el corazón
del barrio viejo. Entonces supe lo que deseaba: quería ver la
Catedral envuelta en el encanto y el misterio de la noche. Sin
pensarlo más me lancé hacia la oscuridad de las callejas que la
rodean. (p. 108)
O som dos sinos das igrejas antigas, nessa passagem, pode ser interpretado
como as vozes da cidade que cantam uma melodia que atrai a personagem para
aquele que, talvez, seja o único lugar capaz de reunir toda a intensidade artística da
qual ela necessita: a Catedral Gótica da Sagrada Família. A Via Layetana é que
parece conduzir Andrea ao encontro do monumento. Extasiada pelo desejo de
sublimação, a personagem se lança pelas estreitas ruas que contornam a igreja,
sem recear a escuridão que as envolve. Aliás, é sob o efeito da escuridão que
Andrea deseja contemplar a igreja. A descrição da caminhada até a Catedral é
tomada de ansiedade e expectativa:
Nada podía calmar y maravillar mi imaginación como aquella
ciudad gótica naufragando entre húmedas casas construídas sin
estilo en medio de sus venerables sillares, pero a las que los años
habían patinado también como un encanto especial, como si se
hubieran contagiado de belleza.
El frío parecía más intenso encajonado en las calles torcidas. Y el
firmamento se convertía en tiras abrillantadas entre las azoteas casi
juntas. Había una soledad impresionante, como si todos los
habitantes de la ciudad hubiesen muerto. Algún quejido del aire en
las puertas palpitaba allí. Nada más.
Al llegar al ábside de la Catedral me fijé en el baile de luces que
hacían los faroles contra sus mil rincones, volviéndose románticos y
tenebrosos. (p. 108-9)
Nesse momento, a protagonista entende que o único lugar capaz de saciar
seu intenso desejo pela arte é a Catedral, metaforizada como ciudad gótica, uma
referência à grandiosidade e à audácia do projeto arquitetônico de um dos maiores
monumentos góticos. No profundo silêncio da noite, na qual Barcelona parece uma
cidade fantasma (como si todos los habitantes de la ciudad hubiesen muerto), ouve-
se apenas o sussurro do vento ao ranger as portas de algumas residências.
Perplexa diante do portal da Catedral, iluminado sinestesicamente por um baile de
luces e pelo efeito da iluminação pública que reflete na arquitetura gótica do arco de
73
entrada, Andrea é tomada por sentimentos contraditórios representados pelos
adjetivos románticos e tenebrosos. No entanto, sua contemplação continua:
Sin embargo, apreté el paso hasta llegar a la fachada principal de
la Catedral, y al levantar mis ojos hacia ella encontré al fin el
cumplimiento de lo que deseaba.
Una fuerza más grande que la que el vino y la música habían
puesto en me vino al mirar el gran corro de sombras de piedra
fervorosa. La Catedral se levantaba en una armonía severa,
estilizada en formas casi vegetales, hasta la altura del limpio cielo
mediterráneo. Una paz, una imponente claridad, se derramaba de la
arquitectura maravillosa. En derredor de sus trazos oscuros resaltaba
la noche brillante, rodando lentamente al compás de las horas. Dejé
que aquel profundo hechizo de las formas me penetrara durante
unos minutos. Luego di la vuelta para marcharme. (p. 109-10)
Diante da imagem da Catedral, Andrea é invadida por uma experiência
estética superior àquela sentida no sarau na casa de Ena. A perfeição arquitetônica
impõe ao ambiente tranqüilidade e lucidez, como se a igreja ressaltasse a
luminosidade da noite. Este instante de contemplação é atemporal, o relógio corre
lentamente devido ao estado paralisante de fascínio, de autonomia e de controle de
seu tempo. Nessa cena, que confere à Catedral gótica status de um espetáculo
estático, é interessante observar a importância que a arte representa para a
protagonista e para toda a narrativa.
Neste percurso narrativo, fatos evidenciam apreciação artística: Andrea passa
a valorizar a beleza e a feminilidade felina de Gloria quando esta posa como modelo
para os quadros de Juan; ela é tomada pelo prazer estético ao vislumbrar a igreja no
meio da noite e é tocada pela sica da casa de Ena que a deixa em êxtase.
Margareth Santos explica:
O que leva Andrea a buscar na Igreja o contato com uma beleza
estética que a acalme não é um sentimento religioso, mas sim esta
sede pela arte que o romance alimenta e da qual a narradora extrai
elementos fundamentais para sua elaboração. (...) pois em Nada as
artes são o instrumento encontrado por Andrea para apurar sua
sensibilidade e, a partir disso, entender seu entorno. (Santos, 2005,
p. 48-9)
Numa entrega simbólica à Barcelona, a autora isola completamente a
personagem do ambiente torpe e vil da casa da Rua Aribau. Nesse momento,
Andrea representa o coletivo de uma juventude que numa atitude de escapismo,
74
prefere ignorar a violência e a opressão de um difícil pós-guerra. Esse fenômeno se
involuntariamente, como uma necessidade própria do ser humano em se
preservar do sofrimento pela via do esquecimento e, no caso da narradora de Nada,
essa saída se encontra no prazer do gozo estético.
Após o final do inverno e com a chegada da primavera, começa uma etapa na
vida de Andrea na qual sua relação de prazer e de deslumbramento com a cidade
alcança os mais altos graus de fruição. Para confirmar essa transição temporal entre
as estações, observamos que o espaço cumpre um importante papel na composição
narrativa, isto é, a cronologia romanesca se vale de descrições de ambiente para
marcar a passagem do tempo.
Segundo Bachelard (2005, p. 28-9), “o calendário de nossa vida pode ser
estabelecido em um processo produtor de imagens”. Para o filósofo: “Mais urgente
que a determinação das datas é, para o conhecimento da intimidade, a localização
nos espaços da nossa intimidade.” (Bachelard, 2005, p. 29)
Sendo assim, na narrativa laforetiana, tal como na chegada do outono e do
inverno, a abertura da primavera surge materializada nas modificações provocadas
na caracterização espacial:
La temprana primavera mediterránea comenzó a enviar sus
ráfagas entre las ramas aún heladas de los árboles. Había una
alegría deshilvanada en el aire, casi tan visible como esas nubes
transparentes que a veces se enganchan en el cielo. (p. 127)
A sinédoque primavera mediteránea acompanhada do adjetivo temprana
indica que a estação chega antes nas regiões que beiram o mar Mediterrâneo, como
Barcelona. O sentido tátil do calor aquece as folhas ainda resfriadas pelo recém
terminado inverno. As personificações da felicidade sentida no ar, das nuvens que
começam a mover-se para limpar o céu reafirmam o fato de que o período poderá
ser de gratas experiências para a protagonista que, na companhia da amiga Ena,
conhece outros ambientes em torno de Barcelona:
La ciudad se quedaba atrás y cruzábamos sus arrabales tristes,
con la sombría potencia de las fábricas a las que se arrimaban altas
casas de pisos, ennegrecidas por el humo. Bajo el primer sol los
cristales de estas casas negruzcas despedían destellos diamantinos.
De los alambres de telégrafos salían chillando bandadas de pájaros
espantados por la bocina insistente y enroquecida …
75
Ena iba al lado de Jaime. Yo, detrás, me ponía de rodillas, vuelta
de espaldas en el asiento, para ver la masa informe y portentosa que
era Barcelona y que se levantaba y esparcía al alejarnos, como un
rebaño de monstruos. (p. 130)
Numa figura personificada, Barcelona se afasta e se apequena ante os olhos
de Andrea que, por meio do vidro traseiro do carro, vislumbra o crescimento da
cidade materializado nas periferias infelizes (arrabales tristes) e nas chaminés das
fábricas que produzem uma figura cromática escura, ao desprender a fumaça da
arrancada econômica do país durante o imediato pós-guerra. Essas imagens
negativas associadas às expressões depreciativas masa portentosa e rebaño de
monstruos, que se referem respectivamente à grandiosidade e à miséria antiestética
da cidade, são signos que nos fazem antever o crescimento desordenado de
Barcelona. À medida que aumenta sua capacidade industrial, a metrópole produz
cada vez mais exclusão, ao permitir que a pobreza prolifere e se amontoe nos
arredores urbanos.
Embora o país tentasse sustentar o falso discurso de recuperação econômica,
essa restauração acontecia de forma lenta e era incapaz de superar os problemas
adquiridos durante a Guerra Civil; conseqüentemente, as soluções encontradas pelo
regime para reconstruir a nação, acabavam por gerar mais adversidades.
Andrea, absorta no interior da cidade e envolvida em seus problemas e em
suas descobertas, ignora essa realidade precária que consegue perceber
afastando-se da cidade e enxergando-a do exterior para o interior. O olhar da
protagonista sobre o subúrbio barcelonês, embora seja melancólico, não reflete uma
consciência crítica formada a respeito daquilo que de fato acontece nos arredores da
cidade. Sob o efeito alienante próprio de sua geração, a personagem constata o
desequilíbrio estético entre os bairros periféricos e a riqueza arquitetônica do centro
da cidade. Essa falta de perspectiva de análise da realidade social impede que ela
se contagie da negatividade exposta pela imagem da Barcelona, vista de fora, e lhe
permite relatar os momentos seguintes, a partir de uma conotação positiva que é a
tônica que marca as descrições dos muitos passeios que ela realiza em companhia
de sua amiga Ena:
Salimos los cuatro domingos de marzo y alguno más de abril.
Íbamos a la playa más que a la montaña. Me acuerdo de que la
arena estaba sucia de algas de los temporales de invierno. Ena y yo
76
corríamos delcalzas por la orilla del agua, que estaba helada, y
gritábamos al sentirla rozarnos. El último día hacía ya casi calor y
nos bañamos en el mar. (p. 129)
A narradora relata seus passeios realizados entre o período de março a abril
de 1940, ano posterior à sua chegada à cidade. A cena é extremamente visual e
tátil, ao descrever o colorido esverdeado da praia e ao demonstrar a sensação do
toque suave da areia e da água sob a pele. Nesse trecho, Andrea se reencontra com
o mar, imagem que com toda a amplitude horizontal representa a esperança de uma
vida mais próspera, afastada da verticalidade fechada e aviltante da casa da Rua
Aribau. A personagem Ena está intimamente relacionada às novas descobertas de
Andrea sobre o espaço litorâneo que cerca Barcelona. É como se a amiga fosse a
chave, seu passaporte para novos ambientes:
A mí – que venía del campo – me hizo ella ver un nuevo sentido de la
Naturaleza en el que ni siquiera había pensado. Me hizo conocer el
latido del barro húmedo cargado de jugos vitales, la misteriosa
emoción de los brotes aún cerrados, el encanto melancólico de las
algas desmadejadas en la arena, la potencia, el ardor, el encanto
esplendoroso del mar. (p. 131)
Nascida e criada no campo, a protagonista tem uma concepção de natureza
(destacada pela escrita iniciada com a letra maiúscula Naturaleza), que se amplia,
ao lado de Ena. Novamente, a atenção da narradora se volta para o imperioso mar,
descrito com a força dos substantivos, potencia, ardor e encanto, além do adjetivo
esplendoroso.
Na parte da narrativa, na qual Andrea se liberta da opressão imposta pela tia
e estreita o laço de amizade com Ena, as descrições da cidade de Barcelona
adquirem uma conotação completamente oposta às primeiras descrições.
Da mesma maneira como lemos a imagem negativa da casa da Rua Aribau,
por meio da metáfora do mundo demoníaco elaborada por Frye, pensamos que,
podemos aplicar a positividade à categoria de imagens apocalípticas um
determinado grupo de imagens poéticas compostas a partir de elementos positivos –
de acordo com o crítico e sua teoria do significado arquetípico:
El mundo apocalíptico, el cielo de la religión, presenta, en primer
lugar, las categorías de la realidad según las formas del deseo
77
humano, tal como están indicadas por las formas que asumen bajo la
acción de la civilización humana. (Frye, 1991, p. 187)
Segundo o autor, as imagens categorizadas como pertencentes ao mundo
apocalíptico são aquelas que podem se associar à positividade metaforizada no
ideal de divindade representado pela figura do céu, instituído pela mitologia bíblico-
cristã como lugar de aconchego, prazer e serenidade, a verdadeira recompensa
para aqueles que enfrentaram de forma digna os infortúnios da vida terrena. Para
Frye, o paraíso das imagens poéticas pode ser aquele idealizado e moldado pelas
mãos humanas, a partir de seus desejos, como é o caso da transformação
paisagística que o homem executa ao urbanizar os ambientes naturais:
La forma humana del mundo mineral, la forma en que el trabajo
humano transforma la piedra, es la ciudad. La ciudad, el jardín y el
redil son las metáforas organizadoras de la Biblia y de la mayor parte
del simbolismo cristiano, y son llevadas a su completa identificación
metafórica en el libro explícitamente llamado Apocalipsis o
Revelación, que ha sido cuidadosamente diseñado para dar forma a
la conclusión mítica no desplazada de la Biblia como un todo. Desde
nuestro punto de vista, esto significa que el apocalípsis bíblico es
nuestra gramática de imágenes apocalípticas. (Frye, 1991, p. 188)
Em Nada, após a partida da personagem Angustias e na companhia de Ena,
Barcelona como elemento inserido no mundo mineral, de acordo com a terminologia
de Frye, carrega em si a metáfora positiva do ser de Andrea que se abre para uma
nova existência.
Para Frye, a cidade representa uma imagem metafórica do Mundo
apocalíptico. Ela é o mbolo da vontade humana, resultado de seu desejo que
altera a paisagem natural.
A Catedral gótica da Sagrada Família em Barcelona é um exemplar incrível
da capacidade artística do homem na mudança do meio ambiente. Ao sentir o
desejo de contemplar a arte, é para a Igreja que Andrea se dirige, descrevendo
detalhadamente o percurso que realiza como quem localiza o leitor na realidade da
cidade. Nas passagens em que a narradora descreve seu deslumbramento ante a
beleza arquitetônica de Barcelona, a linguagem está repleta de figuras poéticas
como a personificação que concebe vida própria aos lugares. Abundam imagens
sonoras e táteis que impregnam o texto de sensações experimentadas e
78
transmitidas. As metáforas ajudam a compor os belos retratos da cidade e seus
arredores.
Outro aspecto importante, nas incursões que Andrea realiza na companhia de
Ena, é a presença constante do mar, como ícone horizontal que sugere amplitude,
abertura e liberdade. Ao lado da amiga, nesses ambientes, a protagonista se sente
outra pessoa, completamente diferente do ser opaco e nulo que habita o interior da
casa da Rua Aribau. A personagem experimenta a liberdade, por meio do valioso
direito de percorrer seus próprios caminhos de forma plena e íntegra, abrindo-se
para captar o novo e o belo que a cidade lhe oferece, tanto nas bucólicas
contemplações de seus jardins e praias, como na admiração de suas obras
arquitetônicas.
Nesse contexto da narrativa, Barcelona é o mundo divino que atua como uma
extensão do ser interior de Andrea que, em contrapartida, resume, em suas
sensações mais íntimas, todo o positivo que a cidade lhe concede.
3.2) Barcelona em companhias masculinas: as decepções e o poder
curativo da cidade
Com o passar do tempo, Andrea deixa o estado alienante em relação à
realidade histórica que a circunda e passa a se sentir inferiorizada em relação à
beleza, à desenvoltura e à posição social de Ena. O relacionamento entre as amigas
torna-se mais conturbado à medida que a protagonista percebe que é para Ena,
apenas um recurso estratégico para chegar até Román, de quem a jovem pretende
se aproximar para vingar o mal que o sico fez à sua mãe no passado. Aborrecida
com a situação, Andrea rompe o laço de amizade com Ena. Nesse momento, no
romance uma abertura para que a protagonista permita que personagens
masculinos adentrem seu círculo de relações. Entretanto, essa incursão pelo
universo oposto não é tão prazerosa quanto a amizade de Ena. Essa mudança se
refletirá nas relações afetivas da protagonista e como conseqüência na sua forma de
ver o espaço da cidade de Barcelona.
O primeiro personagem com quem Andrea admite certa proximidade é
Gerardo, que habita as redondezas e que nutre por ela um sentimento de
79
admiração. A protagonista, que o tem mais a interessante companhia da amiga
para seus passeios pela cidade, aceita o convite de Gerardo:
Me preguntó que si prefería ir al Puerto o al Parque de Montjuich. A
me daba igual un sitio que otro. Iba callada a su lado. Cuando
cruzábamos las calles él me cogía del brazo. Caminamos por la calle
de Cortes hasta los jardines de la Exposición. Una vez allí me
empecé a distraer porque la tarde estaba azul y resplandecía en las
cúpulas del palacio y en las blancas cascadas de las fuentes.
Multitud de flores primaverales cabeceaban al viento, lo invadían
todo con su llama de colores. Nos perdimos por los senderos del
parque inmenso. En una plazoleta verde oscura por los recortados
cipreses – vimos la estatua blanca de Venus reflejándose en el agua.
Alguien la había pintado los labios de rojo groseramente. Gerardo y
yo nos miramos, indignados, y en aquel momento me fue simpático.
Mojó su pañuelo y con un impulso de su fuerte cuerpo subió a la
estatua y estuvo frotando los labios de mármol hasta que quedaran
limpios. (p. 134)
Na Espanha, sob a ditadura repressora que controlava atos e mentes, era
moralmente condenável que uma jovem saísse em companhia de um rapaz, sem
que alguém da família consentisse ou vigiasse. Fazendo uso de sua liberdade de
menina órfã e desassistida pela família, Andrea se permite dar o passeio só, na
companhia de um desconhecido. Entretanto, a ansiedade e a expectativa que
deveriam tomar conta da adolescente, durante seu primeiro passeio ao lado de um
homem, são anuladas. Andrea não se sente atraída por Gerardo, por isso não opina
sobre qual lugar devem visitar,ela caminha ao lado dele silenciosa, como quem
cumpre uma enfadonha obrigação. Ao chegar ao parque, a presença de Gerardo é
insignificante para a protagonista e esta dedica toda a sua atenção à contemplação
do jardim na bela tarde de primavera. Em uma praça, funestamente escurecida pela
sombra de árvores que tipicamente são plantadas em cemitérios, Andrea e Gerardo
avistam a imagem da deusa nus refletida na água, símbolo do amor e da
feminilidade, sugerindo o envolvimento afetivo entre os dois. No entanto, a estátua
da deusa aparece depreciada, o que confere um tom de vulgaridade à cena. A
atitude de Gerardo ao limpar a mácula deixada pelos vândalos urbanos parece fazer
com que Andrea, por alguns instantes, seja mais receptiva para com o rapaz. o
obstante, ao longo do passeio, a protagonista volta a demonstrar para com Gerardo
a costumeira frivolidade:
80
Fuimos hacia Miramar y nos acodamos en la terraza del
Restaurante para ver el Mediterráneo, que en el crepúsculo tenía
reflejos de color de vino. El gran puerto parecía pequeño bajo
nuestras miradas, que lo abarcaban a vista de pájaro. En las
dársenas salían a la superficie los esqueletos oxidados de los
buques hundidos en la guerra. A nuestra derecha yo adivinaba los
cipreses del Cementerio del Sudoeste y casi el olor de melancolía
frente al horizonte abierto del mar. (p. 135)
No segundo ambiente do passeio de Andrea e Gerardo, surge novamente a
imagem do mar que traz um significado carregado de positividade. A altura do
mirante proporciona ao casal uma vista aérea do porto, uma visão que a narradora
expressa como vista de jaro. Imediatamente, a cena começa a tomar contornos
negativos para Andrea que emprega, metaforicamente, o substantivo esqueletos
para referir-se às carcaças dos navios afundados durante a guerra. O caráter
funesto da imagem se completa com as árvores de um cemitério avistadas ao longe,
o que confere à figura uma conotação de morbidez. Logo, os sentidos da narradora
apreendem um sinestésico olor a melancolia, como um presságio do mau momento
que se seguiria, o beijo roubado e indesejado de Gerardo: “Gerardo súbitamente me
atrajo hacia él y me subió una oleada de asco por la saliva y el calor de sus labios
gordos. Le empujé con todas mis fuerzas y eché a correr.”(p. 136)
A negatividade com que a passagem do mirante sobre o porto e o mar é
finalizada parece antecipar a desagradável experiência, pela qual a protagonista
passaria logo a seguir. O primeiro beijo não é como Andrea esperava que fosse:
“Nunca me había besado un hombre y tenía la seguridad de que el primero que lo
hiciera sería escogido por mi entre todos.” (p. 136)
O primeiro homem a beijá-la é alguém por quem Andrea não alimenta
qualquer sentimento de paixão, carinho ou admiração. A situação é inesperada e
agressiva para a protagonista, que reage com repulsa e indignação.
Nesse momento, a cidade de Barcelona se torna cúmplice de Andrea. Apenas
aquele espaço presenciara a cena que para ela é vergonhosa. A mudança no estado
de espírito da personagem se reflete na descrição do ambiente que a circunda,
como uma extensão de sua decepção.
Depois dessa tarde infeliz, Andrea nunca mais veria Gerardo, no entanto ela
segue sua incursão pelo universo masculino ao estreitar laços de amizade com o
pueril Pons, colega de faculdade. Na companhia do novo amigo, a protagonista
conhece novos ambientes da cidade:
81
Fuimos andando, dando un largo paseo, por las calles antiguas.
(...)
___ Vamos a entrar un momento si quieres. La ponen como
ejemplo del puro gótico catalán. A mí me parece una maravilla.
Cuando la guerra quemaron…
Santa María del Mar apareció a mis ojos adornada de un singular
encanto, amazacotada de casa viejas enfrente. (…) Luego entramos.
La nave resultaba grande y fresca y rezaban en ella unas cuantas
beatas. Levanté los ojos y vi los vitrales rotos de las ventanas, entre
las piedras que habían ennegrecido las llamas. Esta desolación
colmaba de poesía y espiritualizaba aún más el recinto. Estuvimos
allí un rato y luego salimos por una puerta lateral junto a la que había
vendedoras de claveles y de retama. Pons compró para mí pequeños
manojos de claveles bien cargados de alegría. Luego me guió hasta
la calle de Montcada, donde tenía su estudio Guíxols. (p. 143-4)
Para atrair a atenção de Andrea, Pons se vale exatamente dos dois
elementos que mais a encantam, os passeios furtivos pela cidade e a contemplação
artística. Observamos, nesse trecho, a evidente diferença entre o olhar simplista de
Pons, que define a imagem da igreja empregando o substantivo maravilla, em
contraponto absoluto com o olhar poético da narradora. Para esta os lugares
adquirem sempre formas e atitudes humanas, como na personificação da Igreja de
Santa María del Mar, que surge ante os seus olhos enfeitada de uma beleza
especial. Apesar da sensação positiva que a riqueza arquitetônica da igreja antiga
provoca em Andrea, ela observa, na construção, signos negativos como os ricos
vitrais quebrados e as paredes escurecidas pela fumaça do incêndio que o lugar
sofrera, durante a guerra, quando militantes radicais dos partidos comunista e
anarquista procuraram aniquilar os símbolos do catolicismo espanhol.
A imagem da igreja simboliza o apreço da cultura espanhola pelo cristianismo,
representado na suntuosidade dos templos antigos. Entretanto, as marcas de
deterioração da igreja, não apenas denunciam as destruições sofridas como também
atribuem uma visão negativa sobre a própria instituição religiosa, imbuída de um
poder opressor ao se relacionar diretamente com o regime franquista, atuando como
um de seus principais sustentáculos ideológicos. Esse aspecto arruinado do
ambiente não abala as sensações positivas de Andrea sobre a igreja. Pelo contrário,
para a protagonista aquelas características conferem poeticidade e espiritualidade
ao ambiente. Observamos uma contradição entre a destruição material do templo e
a leitura insuspeita que a narradora faz dessa destruição. Essa oposição está
82
textualmente marcada na aparência externa da igreja que não condiz com sua
imagem interna. Podemos fazer deste dado uma crítica à instituição religiosa que,
por trás de uma aparência de respeito às normas cristãs de conduta, apóia, por meio
de alguns segmentos de sua organização interna, a violência e as injustiças de um
governo autoritário.
Andrea e Pons seguem seu passeio, pois o jovem prometera levá-la para
conhecer um secreto estúdio de artes plásticas onde ele e outros se reuniam para
pintar e discutir arte. Empolgada com a oportunidade de adentrar em um círculo de
artistas, a protagonista narra detalhadamente o novo espaço ao qual é apresentada:
Entramos por un portalón ancho donde campesinaba un escudo
de piedra. En el patio, un caballo comía tranquilamente, uncido a un
carro, y picoteaban gallinas produciendo una impresión de paz. De
allí partía la señorial y ruinosa escalera de piedra, que subimos. En el
último piso, Pons llamó tirando de una cuerdecita que colgaba en la
puerta. Se oyó una campanilla muy lejos. Nos abrió un muchacho a
quien Pons llegaba más abajo del hombro. Creí que sería Guíxols.
(p. 144)
O largo portal de entrada, o personificado escudo familiar e a escada
adjetivada como señorial e ruidosa referem-se à imagem dos antigos casarões das
tradicionais e abastadas famílias barcelonesas, que deixaram as residências
deterioradas para habitar espaços mais retirados e amenos. A presença de alguns
animais ao lugar um ar bucólico que devolve à narradora a sensação de
tranqüilidade que o campo evoca. A casa tem um aspecto de abandono, pois não
há inquilinos e o espaço se presta apenas ao exercício artístico dos jovens amigos:
Le seguimos, atravesando un largo dédalo de habitaciones
destartaladas y completamente vacías hasta el cuarto donde Guíxols
tenía su estudio. Un cuarto grande, lleno de luz, con varios muebles
enfundados – sillas y sillones - , un gran canapé y una mesita donde,
en un vaso como un ramo de flores -, habían colocado un manojo
de pinceles.
Por todos los lados se veían las obras de Guíxols: en los
caballetes, en la pared, arrimadas a los muebles o en el suelo… (p.
144-5)
O interior do casarão, com largos corredores, enormes quartos e salas que se
encontram vazios, sujos e descuidados, reflete exatamente as impressões de
abandono e do soberbo passado que a imagem do exterior sugere. O espaço
83
determinado para a atividade artística, entretanto, é amplo e fartamente iluminado,
abundância que se estende no exagero de desnecessários móveis amontoados e de
quadros espalhados por todos os lados. Os pincéis, instrumentos da arte de Guíxols,
são logo comparados, pela imaginação poética da narradora, a um metafórico vaso
repleto de coloridas flores. Andrea se sente impressionantemente bem naquele
ambiente impregnado, por todos os recantos, de arte e de liberdade: as duas coisas
que ela mais preza em sua vida. No entanto, a contraposição do aspecto
envelhecido e estragado do velho casarão, em relação ao sentimento positivo da
protagonista ao adentrar um espaço de predomínio da arte, faz-nos pensar na
expectativa agradável que ela nutre em relação a essas novas possibilidades de
amizade com aqueles moços que, na verdade, têm uma ascendência muito distinta
de sua origem. Trata-se de filhos de famílias abastadas, jovens alienados
politicamente, tomados por um vazio existencial próprio da juventude de pós-guerra,
que nem sequer conseguem compreender. Para afastar o ressentimento pela nação
devastada e pela repressão instaurada, produzem uma arte medíocre. Ao contrário
do que imagina, nesse mundo de jovens que preferem esquecer o trauma a
vivenciá-lo criticamente, Andrea o encontrará verdadeiras amizades. Conseguirá
apenas superficiais envolvimentos, como era a tônica comum das relações
construídas em meio à escassez de alimento e de afeto do pós-guerra civil.
A decepção de Andrea com as novas amizades, em especial com a de Pons,
configura-se a partir da negatividade das descrições espaciais que seguem. Da
janela do estúdio dos amigos, ela observa a chegada do verão e seus maléficos
efeitos sobre Barcelona, como um anúncio de que, com a estação, chega uma difícil
etapa na vida da personagem:
La ciudad, cuando empieza a envolverse en el calor del verano,
tiene una belleza sofocante, un poco triste. A me parecía triste
Barcelona, mirándola desde la ventana del estudio de mis amigos, en
el atardecer. Desde allí un panorama de azoteas y tejados se veía
envuelto en vapores rojizos y las torres de las iglesias antiguas
parecían navegar entre olas. Por encima, el cielo sin nubes cambiaba
sus colores lisos. De un polvoriento azul pasaba a rojo sangre, oro,
amatista. Luego llegó la noche. (p. 186)
A cidade personificada acolhe o verão deixando-se tomar pela sensação
térmica do calor. A antítese sinestésica belleza sofocante e o adjetivo triste são
signos indicativos de que a estação pode inaugurar uma etapa amarga da estada da
84
protagonista naquela cidade. A cena vista da sacada da casa exprime, por meio da
figura vapores rojizos, o sufocante calor seco de Barcelona que cobre os telhados
das casas de uma espessa camada de ar, comparado pela protagonista a um mar.
O cromatismo com o qual a narradora descreve o r-do-sol recria gradativamente o
passar do tempo entre o final da tarde e o início da noite (polvoriento azul, rojo
sangre, oro, amatista).
Em toda a narrativa, é com o amigo Pons que Andrea chega o mais próximo
possível do que poderia ser um relacionamento amoroso. O jovem se mostra cada
vez mais apaixonado pela protagonista que, embora não corresponda aos seus
devotados sentimentos, trata-o com desvelo e carinho. Afinal, Pons é o único
homem que parece demonstrar verdadeiro interesse por Andrea, apesar de não
representar o ideal de beleza e virtude de um tradicional herói romanesco.
Um dos dias mais felizes de toda a estada da protagonista em Barcelona é o
dia da Fiesta de San Juan, celebrada em pleno verão na casa de Pons, por ocasião
de seu aniversário. Convidada, Andrea descreve o percurso de ida para a casa do
amigo, para aquele que seria seu primeiro baile e seu primeiro encontro romântico:
Me tapé los oídos, allí en la calle, camino de la casa de Pons, y
levanté los ojos hacia las copas de los árboles. Las hojas tenían ya la
consistencia de un verde durísimo. El cielo inflamado se estrellaba
contra ellas.
Otra vez en el esplendor de la calle, volví a ser una muchacha de
dieciocho años que va a bailar con su primer pretendiente. Una
agradable y ligera expectación logró apagar completamente aquellos
ecos de los otros.
Pons vivía en una casa espléndida al final de la calle Muntaner.
Delante de la verja del jardín tan ciudadano que las flores olían a
cera y a cemento – vi una larga hilera de coches. (p. 201-2)
A narradora se priva da sensação auditiva porque esse sentido está
intimamente relacionado às infelizes recordações dos moradores da casa da Rua
Aribau, resgatados na sinestesia ecos de los otros. Distanciada daquele mundo à
parte, impedindo-o de contaminar sua alegria, Andrea contempla a rua da casa de
Pons, apenas sob o aspecto visual das árvores que trazem a coloração de um verde
durísimo e de um céu inflamado. Essa austeridade seca do verão barcelonês não
intimida a jovem que, ansiosa, cria, em seu imaginário, positivas esperanças que lhe
permitem esquecer, por alguns instantes, a mediocridade de seus parentes e de sua
casa. O endereço de Pons e a ostentação de sua residência indicam que Andrea
85
está prestes a adentrar num mundo de riqueza e de conforto que contrasta
duramente com sua condição social e sua vida, resumida aos escombros da Rua
Aribau. A sagacidade da narradora observa a falta de vitalidade do jardim da
mansão, que simboliza a escassez de afetividade e a superficialidade das relações
entre as classes mais abastadas. Ao adentrar a casa do amigo é que a jovem tem a
exata noção da distância social que os separa:
Me acuerdo del portal de mármol y de su grata frescura. De mi
confusión ante el criado de la puerta, de la penumbra del recibidor
adornado con plantas y con jarrones. Del olor a señora con
demasiadas joyas que vino al estrechar la mano de la madre de Pons
y de la mirada suya, indefinible, dirigida a mis viejos zapatos,
cruzándose con otra anhelante de Pons, que la observaba. (p. 202)
O acesso ao interior da residência segue os mesmos padrões de requinte e
beleza do exterior, em claro contraponto à insegurança de Andrea que não sabe
como agir ao ser recebida pela mãe de Pons e seu olor a señora con demasiadas
joyas, figura sinestésica que representa toda a riqueza da família em paradoxo com
a imagem dos viejos zapatos de Andrea, que marca a fronteira econômica que a
afasta do amigo. Pons, tão inseguro quanto Andrea, constata no olhar da e a
reprovação de sua escolha. A partir de então, o jovem ignora a presença de Andrea
que, frustrada, volta de seu “primer baile en el que no había bailado” (p. 209):
El aire de fuera resultaba ardoroso. Me quedé sin saber qué hacer
con la larga calle Muntaner bajando en declive delante de mí. Arriba,
el cielo, casi negro de azul, se estaba volviendo pesado, amenazador
aun, sin una nube. Había algo aterrador en la magnificencia clásica
de aquel cielo aplastado sobre la calle silenciosa. Algo que me hacía
sentirme pequeña y apretada entre fuerzas cósmicas como el héroe
de una tragedia griega.
Parecía ahogarme tanta luz, tanta sed abrasadora de asfalto y
piedras. Estaba caminando como si recorriera el propio camino de mi
vida, desierto. Mirando las sombras de las gentes que a mi lado se
escapaban sin poder asirlas. Abocando en cada instante,
irremediablemente, en la soledad.
Empezaron a pasar autos. Subió un tranvía atestado de gente. La
gran a Diagonal cruzaba delante de mis ojos con sus paseos, sus
palmeras, sus bancos. En uno de estos bancos me encontré
sentada, al cabo, en una actitud estúpida. Rendida y dolorida como si
hubiera hecho un gran esfuerzo. (p. 208-9)
Ao sair da casa de Pons, Andrea se sente reprimida pela sensação térmica do
calor que a sufoca, do mesmo modo como ela se sentira há pouco, na festa de Pons
86
ante aqueles seres que realçavam sua inferioridade. A protagonista conhece bem
esse sentimento de diminuição, pois ele é o mesmo que a asfixia na mesquinhez da
casa da Rua Aribau. Nesse momento, as imagens da casa e da cidade são
equivalentes, pois expressam a mesma capacidade de opressão. A Rua Muntander
é personificada pela narradora que, de tão desolada pela recente rejeição, não sabe
que caminho tomar, ainda que pareça haver um único e decadente trajeto a seguir.
A imagem do céu escuro, sem nuvens, caracterizado pelos adjetivos pesado,
amenazador, aterrador e aplastado parece cumprir o mesmo papel tirano que o ar
abafado do verão cumprira. A rua, em silêncio, parece velar e respeitar a dor de
Andrea. Todo aquele ambiente reforça a amargura que dominara a protagonista
desde o momento em que ela deixara a casa do ex-amigo Pons, observado no
emprego dos adjetivos pequeña e apretada. O excesso de luz no céu sem nuvens
tortura a jovem que deseja aliviar nas ruas de Barcelona, todo o seu ressentimento,
sensação representada por meio da metáfora sed de asfalto y piedras. O trajeto de
retorno à casa é descrito pela narradora como uma simbologia para a sua própria
vida, vazia de sentido e de pessoas com quem efetivamente se relacionara, para
além da superficialidade das conveniências sociais. Os carros, o bonde lotado, a
Via Diagonal, as palmeiras e os bancos parecem assistir ao desfile da infelicidade de
Andrea que, ao se sentar, sucumbe a uma dor que ela tenta inutilmente suportar. Ao
se dirigir à Rua Aribau, prolonga-se sua tristeza:
Mil olores, tristezas, historias subían desde el empedrado, se
asomaban a los balcones o a los portales de la calle de Aribau. Un
animado oleaje de gente se encontraba bajando desde la solidez
elegante de la Diagonal contra el que subía del movido mundo de la
Plaza de la Universidad. Mezcla de vidas, de calidades, de gustos,
eso era la calle de Aribau. Yo misma: un elemento más, pequeño y
perdido en ella. (p. 209)
Nesse trecho, olores, tristezas e historiaso substantivos que metaforizam a
coletividade de uma multidão de diferentes pessoas que surge pela avenida, nas
portas e nas janelas da Rua Aribau, naquele festivo Día de San Juan. Por meio da
metáfora un animado oleaje de gente, a alegria das pessoas que sobem a rua
contrasta com a infelicidade interior de Andrea. O substantivo solidez acompanhado
do adjetivo elegante personificam a charmosa altivez da Via Diagonal ao ser
invadida pela multidão que sobe do metafórico movido mundo de la Plaza de la
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Universidad. Novamente, substantivos são empregados para metaforizar a
diversidade de pessoas que circulam pela rua: vidas, calidades e gustos. Em meio
àquela gente, Andrea se sente anônima e insignificante: un elemento más, pequeño
y perdido en ella.
Assim como na passagem do frustrante primeiro e asqueroso beijo roubado
por Gerardo, assim também é a cidade de Barcelona que assiste, como cúmplice, a
melancolia de Andrea ao ser rejeitada em seu primeiro baile, vítima de sua condição
social desprestigiada. Barcelona é, na verdade, mais que cúmplice: é testemunha
das desventuras, é confidente das amarguras e é o refúgio onde Andrea busca o
bálsamo para a sua dor de adolescente incompleta e impotente diante da banalidade
de sua própria vida.
3.3) El Barrio Chino: um mundo demoníaco dentro de Barcelona
Na análise simbólica do espaço da cidade de Barcelona, reconstituído
ficcionalmente pela narradora no romance Nada, observamos que a visão da
protagonista sobre o ambiente urbano se altera à medida que sua relação com este
lugar se intensifica.
Durante os primeiros momentos da estada de Andrea na cidade, a
representação sígnica é positiva, pois se opõe ao ambiente interior da casa da Rua
Aribau, lugar no qual a personagem se subjuga a um mundo de relações
deturpadas, ante as quais é totalmente impotente. Nesse período, o espaço da
cidade atua como lugar de escapismo, como forma de negação dos problemas
vividos num contexto doméstico de violência e de repressão. É nos diversos
ambientes da capital cataque Andrea se transforma em um ser humano em busca
da plenitude.
Entretanto, ao estreitar laços com seres que compõem esse espaço urbano, a
protagonista se decepciona com a frivolidade e a eventualidade das relações entre
pessoas que, educadas para a contenção dos excessos sentimentais, se privam da
intensidade natural da afetividade humana. Ao se desapontar com os amigos e, de
um modo especial, com o universo masculino, até então desconhecido, a
protagonista apresenta, por meio da melancolia das relações estabelecidas em sua
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micro-esfera ficcional, uma visão negativa sobre a sociedade espanhola da época,
afetada em seu convívio cotidiano de sentimentos degenerados.
Na instância narrativa, é a partir de descrições sombrias do ambiente urbano
que se plasma a infelicidade de uma personagem que parece encontrar na cidade, a
reciprocidade para uma impotência e uma incompletude que são características não
apenas de sua existência ficcional, como também do contexto social que a envolve.
Contudo, a cidade de Barcelona não alcança nas descrições, até este
momento analisadas, a completa degradação de sua imagem ante os olhos da
narradora. O espaço urbano da capital catalã guarda mazelas que a protagonista
revela ao leitor quando, ao lado do tio Juan, empreende uma desagradável incursão
pelo decadente Barrio Chino, um recanto onde a cidade esconde sua miséria mais
aviltante, um espaço excludente que revela a prostituição, a criminalidade, a
subversão e a depreciação.
Para analisar essas novas figuras que se apresentam, retomamos o conceito
de imagens demoníacas, criado por Frye e empregado no capítulo anterior nas
analogias encontradas para a simbologia da ambiência da casa da Rua Aribau.
Neste momento, verificamos como a imagem da cidade se aproxima do
inferno alegórico sugerido pela residência da família de Andrea, ao apresentar todo
um conjunto de elementos indesejáveis, um mundo onde a culpa encontra as mais
sádicas formas de expiação, um universo de aprisionamento, de sofrimento e de
confusão mental. Uma atmosfera na qual o trabalho, ao invés de ser instrumento da
construção da dignidade do homem, transforma-se em veículo de humilhação. A
partir das imagens do Barrio Chino de Barcelona, vemos como os conflitos internos
da alma humana, provocados por uma sociedade em desequilíbrio, materializam-se
na configuração de um ambiente ficcional. Os personagens de Andrea e Juan são
levados a essa outra face da cidade por Gloria que sai em direção à casa de sua
irmã na periferia de Barcelona para, em um jogo de cartas, tentar conseguir o
dinheiro para comprar os remédios de que necessita o filho doente. Juan,
inconformado com a própria impotência de chefe de família fracassado que sequer
consegue arcar com as despesas da enfermidade do filho, num arroubo de ódio,
parte para o Barrio Chino à procura da esposa. Temendo as possíveis reações
violentas do filho, a avó de Andrea ordena-lhe que siga o tio e o impeça de cometer
qualquer absurdo: “Corrí en su persecución como si en ello me fuera la vida.
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Asustada. Viendo acercarse los faroles y las gentes a mis ojos como estampas
confusas.” (p. 161)
Por meio da metáfora comparativa como si en ello me fuera la vida, Andrea
narra o esforço físico e emocional que emprega para seguir o tio pelas ruas da
cidade. Atemorizada pelo que provavelmente veria naquela perseguição infeliz, ela
se desespera com o tumulto visual das luzes dos faróis iluminando as pessoas que
encontra pelo caminho, uma transtornada imagem metaforizada na expressão
estampas confusas, a confusão mental que menciona Frye ao descrever as
representações próprias das imagens demoníacas. Ao deixar a Rua Aribau, Andrea
mal pode imaginar o que a espera nos instantes narrados a seguir:
Le vi dar unos pasos hacia la Ronda de San Antonio y le seguí. De
pronto dio la vuelta tan de prisa que nos quedamos frente a frente.
Sin embargo, él pareció no darse cuenta, sino que pasó a mi lado en
dirección contraria a la que antes había llevado, sin verme. Otra vez
llegó a la Plaza de la Universidad y ahora se metpor la calle de
Tallers. Por allí no encontrábamos a nadie. Los faroles parecían más
mortecinos y el pavimiento era malo. Juan se volvió a detener en la
bifurcación de la calle. Recuerdo que había una fuente pública allí,
con el grifo mal cerrado y que en el empedrado se formaban charcos.
Juan miró un momento hacia el ruido del cuadro de luz que
enmarcaba la desembocadura de la calle de las Ramblas. Luego
volvió la espalda y torció por la calle de Ramalleras, igualmente
estrecha y tortuosa. Yo corría para seguirle. De un almacén cerrado
vino olor a paja y a fruta. (p. 161-2)
Toda a parte que narra a incursão de Andrea e Juan pelo Barrio Chino pode
ser entendida como a metáfora de um inferno. O desespero do tio cego de temor
pela saúde do filho e de ódio pela esposa, o deixa perdido, angustiado e sem
direção. Os indícios de que os personagens adentram uma área desprestigiada da
cidade estão expressos na descrição que relata a iluminação, a conservação
dos bens públicos, a sujeira e o mau cheiro. A riqueza arquitetônica de algumas
partes do centro de Barcelona não existe naquele lugar periférico onde as ruas são
mal projetadas, surgidas aleatoriamente como fruto do crescimento desordenado e
da ocupação ilegal dessas zonas.
O trajeto de Andrea e Juan se torna cada vez mais grotesco:
Cruzamos, atravesándolo en parte, el mercado de San José. Allí
nuestros pasos resonaban bajo el alto techo. En el recinto enorme,
multitud de puestos cerrados ofrecían un aspecto muerto y había una
90
gran tristeza en las débiles luces amarillentas diseminadas de
cuando en cuando. Ratas grandes, con los ojos brillantes como
gatos, huían ruidosamente a nuestros pasos. Algunas se detenían en
su camino, gordísimas, pensando tal vez hacernos cara. Olía
indefiniblemente a fruta podrida, a restos de carne y pescado… Un
vigilante nos miró pasar con aire de sospecha al salir nosotros a las
callejuelas de detrás, corriendo como íbamos uno detrás del otro. (p.
162)
Na amplitude do grande edifício vazio, a imagem sonora dos passos dos
personagens produz um efeito auditivo sombrio. Metaforicamente, os
estabelecimentos comerciais do mercado fechados devido ao horário, sugerem um
ar de morbidez acentuado pela figura visual melancólica de uma luz opaca.
Contribuem com a descrição repugnante daquele ambiente a presença das grandes
ratazanas, execrados animais que povoam um lugar que desprende odores de
alimentos em decomposição. Essa falta de higiene e cuidado simboliza a própria
degradação do ambiente e das pessoas que o habitam em seu cotidiano.
Al llegar a la calle del Hospital, Juan se lanzó a las luces de las
Ramblas, de las que hasta entonces parecía haber huido. Nos
encontrábamos en la Rambla del Centro. (…) Juan entró por la calle
del Conde del Asalto, hormigueante de gente y de luz a aquella hora.
Me di cuenta de que esto era el principio del barrio chino. “El brillo del
diablo”, de que me había hablado Angustias, aparecía empobrecido y
chillón, en una gran abundancia de carteles con retratos de bailarinas
y bailadores. Parecían las puertas de los cabarets con atracciones,
barracas de feria. La música aturdía en las oleadas agrias, saliendo
de todas partes, mezclándose y desarmonizando. Pasando de prisa
porque me impedía ver a Juan, me llegó el recuerdo vivísimo de un
carnaval que había visto cuando pequeña. La gente, en verdad, era
grotesca: un hombre pasó a mi lado con los ojos cargados de rímel
bajo un sombrero ancho. Sus mejillas estaban sonrosadas. Todo el
mundo me parecía disfrazado con mal gusto y me rozaba el ruido y el
olor a vino. Ni siquiera estaba asustada, como aquel día en que,
encogida junto a la falda de mi madre, escuché las carcajadas y las
ridículas contorsiones de las máscaras. Todo aquello no era más que
un marco de pesadilla, irreal como todo lo externo a mi persecución.
(p. 162-3)
A perseguição de Andrea a Juan continua. Este enfrenta a iluminada e
agitada Rua de Las Ramblas, modo como são chamadas as ruas dominadas pela
prostituição e pela subversão. Começa ali o Barrio Chino, espaço de Barcelona no
qual, à época, reuniam-se prostitutas, homossexuais travestidos, artistas de baixa
estirpe e diversos estabelecimentos de diversão barata: prostíbulos, casas de jogos
e cabarés. O inferno irresistível descrito por Angustias, aos olhos da narradora,
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parece miserável e feio, características determinadas pelo uso dos adjetivos
empobrecido e chillón. As diferentes e estridentes músicas que emanam das casas
noturnas, a iluminação às vezes turva e às vezes exagerada e a vulgaridade das
pessoas que freqüentam o lugar sugerem uma imagem confusa.
O Barrio Chino é uma prova de que, por trás da falsa imagem que a
propaganda oficial espanhola tentava difundir de que as grandes cidades
prosperavam, recuperando-se da crise e se reconstruindo, as periferias escondiam
graves mazelas. Numa velocidade mais intensa que a da reconstrução das zonas
centrais, cresciam as zonas suburbanas, conferindo às cidades um aspecto cada
vez mais miserável, sustentado pela perversão, pelo vício e pelos negócios
indevidos. Essa incursão de Andrea pelo Barrio Chino, revela-nos uma face obscura
da realidade social de Barcelona durante os anos do imediato pós-guerra.
A perseguição de Andrea e Juan é longa e o ponto culminante do desespero
da narradora se no momento em que ela presencia uma briga entre o tio e um
homem bêbado com quem Juan havia se chocado:
Luego me encontré sorprendida por la animación que súbitamente
llenó la calle. Dos o tres hombres y algunos chiquillos, que parecían
brotados de la tierra, rodearon a los que luchaban. Una puerta
entreabierta lanzaba a la calle un chorro de luz que me cegaba. (…)
encima de aquel infierno como si sobre el cielo de la calle
cabalgaban brujas oíamos voces ásperas, como desgarradas.
Voces de mujeres animando a los luchadores con sus pullas y sus
risas. Alucinada, me pareció que caras gordas flotaban en el aire,
como los globos que a veces dejan escapar los niños.
un rugido y vi que Juan y su enemigo habían caído
revolcándose sobre el barro de la calle. (p. 165)
As pessoas que surgem naquele momento para assistir a briga entre Juan e o
homem bêbado formam uma moldura de terror para a cena que aterroriza a
protagonista. Aqueles seres assumem ante os olhos de Andrea aspectos
sobrenaturais: ora são como entidades inumanas advindas do subterrâneo, ora do
imaginário infernal da narradora. A figura sonora de emissão de vozes de almas que
parecem estar fora de seus corpos são, na verdade, as vozes das pessoas que
aparecem atraídas pela violência gratuita da passagem. O personagem Juan que
havia sido apresentado como um homem completamente degradado pelo fracasso
em todos os segmentos de sua vida, encontra nesse trecho a sua total derrocada ao
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sucumbir à imundície do Barrio Chino, colocando-se no mais baixo nível humano, o
limite do chão.
Nesse ponto da narrativa no qual as descrições do Barrio Chino demonstram
um lugar onde impera a sujeira, o ar fétido, a confusão de uma iluminação
freneticamente alternada com a escuridão e a alternância entre a multidão e a
solidão de pessoas vulgares, apresentam um lado de Barcelona que se equipara ao
inferno alegórico da casa da Rua Aribau, conforme explica Santos:
Ali, Andrea descobre que o demoníaco não estava apenas no espaço
doméstico, mas também no espaço público, em todas as partes,
como se o pós-guerra em si se configurasse como um mundo
demoníaco. (2005, p.94).
3.4) O adeus a Barcelona
O ambiente interno e deteriorado da casa da rua Aribau é símbolo de todo o
negativo da estada de Andrea na cidade de Barcelona. Sua frustração, ante os
parentes perturbados mentalmente pela violência da guerra e pela recessão do
imediato pós-guerra, é constatação latente entre as paredes do edifício arruinado.
Entretanto, esse não é o único espaço a servir de cenário para as frustrações de
Andrea. A cidade de Barcelona assiste às suas tentativas mal sucedidas de
relacionamento com o sexo oposto: o asqueroso beijo roubado por Gerardo e a dura
rejeição de Pons, impotente diante do preconceito de sua família, ante sua amiga
pertencente a uma classe social inferior.
Andrea, em seus longos e prazerosos passeios pela cidade, conhece o
melhor de Barcelona, mas também o seu pior, como na noite em que avidamente
persegue seu tio Juan pelo decadente Barrio Chino. Aos poucos, ela perde as
esperanças positivas que tinha ao desembarcar na estação ferroviária, no outono de
1939, e começa a perceber que, para seguir vivendo, precisa deixar a cidade que
aprendera a amar e onde descobrira belezas infinitas:
Estaba en el puerto. El mar encajonado presentaba sus manchas de
brillante aceite a mis ojos; el olor a brea, a cuerdas, penetraba
hondamente en . Los buques resultaban enormes con sus
altísimos costados. A veces, el agua parecía estremecida como por
el coletazo de un pez, una barquichuela, un golpe de remo. Yo
estaba allí aquel mediodía de verano. Desde alguna cubierta de
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barco, tal vez, unos nórdicos ojos azules me verían como minúscula
pincelada de una estampa extranjera… Yo, una muchacha española,
de cabellos oscuros, parada un momento en un muelle del puerto de
Barcelona. Dentro de unos instantes la vida seguiría y me haría
desplazar hasta algún otro punto. Me encontraba con el cuerpo
enmarcado en otra decoración … (p. 236)
Do porto, Andrea contempla o mar. Não o mar alto e aberto que toca o
horizonte, mas sim um personificado mar encajonado, fechado, cercado pelos limites
de um porto que atribui às águas um brilho artificial. Sinestesicamente, a narradora
se sente inundada pelos odores típicos do porto: o alcatrão das madeiras úmidas
dos barcos e das cordas. Os também personificados navios parecem enormes, ante
seus olhos, e podem ser lidos, assim como todo o porto, como signos que
simbolizam a partida. A inércia da cena estende-se à estagnação da água do mar
movida apenas pela passagem de pequenas embarcações. Na letargia daquele
instante contemplativo, Andrea imagina a si mesma como uma personagem de um
retrato, de uma pintura na qual ela aparece reduzida pela distância, emoldurada pelo
cais do porto, ante os olhos de um fictício marinheiro que a fitaria ao longe. A
necessidade de mudança de cenário para o seu corpo como personagem do quadro
é o indício de que Barcelona não serve mais como pano de fundo para sua vida, que
deve partir em busca de novos espaços. Andrea continua seu passeio como quem
se despede do lugar querido:
El bar donde me sentaba era una casa de dos pisos, teñida de añil,
adornada con utensilios náuticos. Yo me coloqué en una de las
mesitas de la calle y casi me parecía que el suelo, bajo mí, iba a
empezar a trepidar impulsado por algún oculto motor y a llevarme
lejos…, a abrirme nuevamente los horizontes. Este anhelo repetido
siempre en mi vida que, con cualquier motivo, sentía brotar. (p. 236-
7)
Podemos ler a tempestade mencionada no trecho como símbolo das
alterações que Andrea pressente para a própria vida, embora ainda não consiga
defini-las. Sua intuição de mudança é tão forte que ela sente que a qualquer
momento pode ser retirada do lugar onde se encontra, exatamente como está,
sentada na mesa de um bar, para ser dali levada. A protagonista entende finalmente
que não mais oportunidade de cumprir suas expectativas na cidade de Barcelona
que, como um ser eternamente em busca de novas experiências, precisa partir a
procura de um novo lugar: afinal essa parece ser a dialética de sua existência.
94
Desde o momento em que entende essa necessidade visceral de partir,
Andrea passa a negar os belos trajetos da cidade para circular pelas regiões que a
convencem da obrigação de deixar a capital catalã:
Para ahuyentar a los fantasmas, salía mucho a la calle. Corría por
la ciudad debilitándome inútilmente. Iba vestida con mi traje negro
encogido por el tinte y que cada vez me quedaba más ancho. Corría
instintivamente, con el pudor de mi atavío demasiado miserable,
huyendo de los barrios lujosos y bien tenidos de la ciudad. Conocí los
suburbios con su tristeza de cosa mal acabada y polvorienta. Me
atraían más las calles viejas. (p. 268)
Por sua tristeza interior e por seu aspecto de miséria exterior, a protagonista
evita os passeios pelos lugares belos e prósperos da cidade, buscando estar em
ambientes que se harmonizam com seu estado de espírito: a empobrecida e
envelhecida periferia de Barcelona, lugar onde sua melancolia e sua
apresentação exterior permanecem anônimas. Nessa passagem, a descrição da
cidade aproxima-se da ambiência do interior da casa da Rua Aribau, o que para
Andrea culmina no desejo de deixar de viver:
Un atardecer en los alrededores de la Catedral el lento caer de
unas campanadas que hacían la ciudad más antigua. Levanté los
ojos al cielo, que se ponían de un color más suave y más azul con
las primeras estrellas y me vino una impresión de belleza casi
mística. Como un deseo de morirme allí, a un lado, mirando hacia
arriba, debajo de la gran dulzura de la noche que empezaba a llegar.
Y me dolió el pecho como si estuviese oliendo un aroma de muerte y
me pareciera bueno por primera vez, después de haberme causado
terror… Cuando se levantó una fuerte ráfaga de brisa, yo estaba aún
allí, apoyada contra una pared, entontecida y medio estática. Del
viejo balcón de una casa ruinosa salió una sábana tendida, que al
agitarse me sacó de mi marasmo. Yo no tenía la cabeza buena aquel
día. La tela blanca me pareció un gran sudario y eché a correr…
Llegué a la casa de la calle de Aribau medio loca. (p. 268)
A imagem sonora evocada pelas igrejas antigas do centro de Barcelona atrai
Andrea para a Catedral, marco espacial de sua auto-liberação para a
experimentação urbana. Ao aproximar-se da Igreja e ao voltar os olhos para o céu,
que exibe uma figura cromática de intensificação do azul, com o realce das primeiras
estrelas do início da noite, a personagem entra em um estado de êxtase,
metaforizado na impresión de belleza casi mística, como se ela se entregasse a um
processo de transição sobrenatural. Pela primeira vez, Andrea revela um forte
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desejo de abandonar sua existência e essa ânsia vem imediatamente acompanhada
de um sentido de tranquilidade, expresso na sinestesia dulzura de la noche. Ao
inspirar o sinestésico aroma de muerte, a jovem sente uma dor a pressionar-lhe o
peito, à qual ela não oferece resistência e se entrega sem receio.
Depois de ultrapassar a fronteira da morte metafórica, na qual Andrea deixa
de existir para Barcelona e a cidade também parece deixar de existir para ela, a
personagem passa por uma espécie de ressurreição, ao ser tocada por uma forte
brisa e ao ser despertada pelo tremular de um branco lençol, comparado ao sudário,
que a alerta e a retira do estado de semi-inconsciência.
A morte e a ressurreição simbólicas são marcos de mudanças na vida de
Andrea. Impossibilitada de encontrar a plenitude existencial na cidade de Barcelona,
onde a infinita beleza de suas paisagens é incapaz de se sobrepor ao deteriorado
mundo da casa da rua Aribau e às frustrações vividas pela jovem naquela dura
transição entre a adolescência e a vida adulta, a protagonista é salva pela única
pessoa que representa em sua vida o pólo de positividade. Ena e sua família se
mudariam no fim do verão para Madrid, onde o pai da jovem se ocuparia dos
negócios do sogro. A amiga propõe a Andrea que se mude com sua família, que se
transfira para uma universidade madrilenha e que trabalhe com seu pai. Esta é a
possibilidade de redenção que Andrea encontra depois de um ano de decepções e
de sofrimentos.
Ao se despedir da casa e da cidade, a narradora não recria as mesmas
ingênuas expectativas que alimentara quando da sua vinda do interior para
Barcelona:
Estaba ya vestida cuando el chófer llamó discretamente a la
puerta. La casa entera parecía silenciosa y dormida bajo la luz
grisácea que entraba por los balcones. No quería despertarla.
Bajé las escaleras, despacio. Sentía una viva emoción.
Recordaba la terrible esperanza, el anhelo de vida con que las había
subido por primera vez. Me marchaba ahora sin haber conocido nada
de lo que confusamente esperaba: la vida en su plenitud, la alegría,
el interés profundo, el amor. De la casa de la calle de Aribau no me
llevaba nada. Al menos, así creía yo entonces. (p. 275)
O apelo sonoro do motorista de Ena desperta Andrea do pesadelo que até
então significara, para ela, a estada na casa da Rua Aribau. A residência, como na
maioria das descrições narrativas, aparece personificada nessa cena de despedida,
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silenciosa e adormecida, ofuscada por uma figura cromática cinza, que a deixa
desprovida da vibração da cor e da vida. Ao optar por partir sem acordar a casa,
Andrea deixa clara sua vontade de sair sem ser notada por qualquer um daqueles
seres irrelevantes e infelizes de sua família, que, afinal, ignoraram sua presença ao
longo de todo aquele ano. Na verticalidade ascendente dos degraus da escada no
dia da chegada de Andrea, estavam representados os sonhos e os planos
idealizados para a sua estada em Barcelona. Entretanto, ao descer a mesma
escada, a jovem carrega uma outra bagagem, agora mais pesada, pois acumula
uma série de frustrações e desilusões. Ao deixar a casa da Rua Aribau, Andrea leva
uma herança indesejável: a descoberta de que a vida, na maioria das vezes, é
construída de profundos e dolorosos fracassos e frustrações, muito mais que de
alegrias efêmeras.
Numa narrativa na qual a caracterização espacial é privilegiada, é no
ambiente que se representa a ão de despedida. O acalentador frescor matinal,
que conserva a umidade da noite no chão e nas plantas, sugere um tímido
reconforto a Andrea que vislumbra, a partir dali, a possibilidade de um recomeço. No
ato de partida, a protagonista volta um último olhar em direção à casa e à cidade
que guardam secretamente suas decepções mais íntimas:
El aire de la mañana estimulaba. El suelo aparecía mojado con el
rocío de la noche. Antes de entrar en el auto alcé los ojos hacia la
casa donde había vivido un año. Los primeros rayos del sol
chocaban contra sus ventanas. Unos momentos después, la calle de
Aribau y Barcelona entera quedaban detrás de mí. (p. 276)
Considerações Finais
Conforme a revisão crítica realizada, no primeiro capítulo deste estudo, sobre
a obra Nada da escritora Carmen Laforet, reafirmamos importância para o panorama
da narrativa espanhola produzida nos primeiros anos da década de 1940,
imediatamente após o desfecho do violento conflito civil que devastou o país.
Embora desprovido de qualquer comprometimento político e de críticas
pungentes em relação ao regime instaurado com a vitória nacionalista, o romance
possui um manifesto caráter denunciativo que se materializa nas características de
sua estrutura narrativa, como por exemplo, no tom testemunhal atribuído à
narradora, que se abstém de seu protagonismo em favor de evidenciar a violência
constatada no seu entorno cio-histórico. Ao fazer isso, Andrea revela, de maneira
sutil, os fatos da guerra e do pós-guerra na perspectiva de quem sofria suas
conseqüências na vivência cotidiana.
A paulatina exposição a essa agressividade silenciosa e consentida, redunda
em outro aspecto da composição romanesca: a configuração dos personagens que,
em Nada, são seres psicologicamente instáveis, infelizes vítimas de um sistema
castrador que os encaminha a um sentimento de culpabilidade e responsabilidade
pelas próprias frustrações e falta de perspectivas.
O discurso narrativo, por vezes demasiado obscuro, abafado e escasso de
diálogos, é mais um elemento constitutivo que reflete a estagnação da sociedade.
O enredo fragmentado e organizado por meio de relatos de ações
corriqueiras, vulgares e irrelevantes, tem sua monotonia interrompida apenas pelas
violentas e injustificáveis desavenças domésticas ocorridas entre os familiares de
Andrea.
Os motivos para esses desentendimentos acontecem pelas mais diversas
razões: quer seja pela repressão de Juan ao falso moralismo da irmã Angustias que
se coloca, por sua vez, em posição de superioridade em relação aos demais
familiares; quer seja pelos ressentimentos mal resolvidos, no passado, entre os
irmãos que se acumulam e transbordam em intensas discussões; quer seja ainda
pela frustração de Juan como chefe de família desempregado e humilhado, que
descarrega seu amargor numa violenta relação conjugal com Gloria.
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O tempo do romance é um elemento estrutural de difícil delimitação, devido à
insuficiência de referências e marcos temporais, o que indica certa relação com o
tempo histórico que o contextualiza, pois transcorre numa lentidão constante e
alienante, própria da sociedade espanhola da época.
Entre os diversos elementos da ficção como o foco narrativo, as personagens,
o discurso e o tempo, foi ao espaço que dedicamos uma análise mais detalhada e
aprofundada, buscando verificar em que medida a autora o escreveu dando conta de
exprimir as tensões de uma sociedade em conflito.
Dois ambientes se tornaram, na perspectiva da nossa análise, símbolos
alegóricos recorrentes: a casa da Rua Aribau e a cidade de Barcelona, subdividida
em relatos dos seus mais diversos lugares.
Por meio do olhar perspicaz e detalhista da narradora, que construía
autênticas imagens expressionistas e impressionistas para as descrições dos
ambientes por meio de personificações, metáforas e sinestesias sonoras, táteis,
visuais, olfativas e até mesmo gustativas, esses espaços foram se configurando e
revelando sua funcionalidade interpretativa no corpo do texto literário.
O primeiro dos ambientes oferecidos pela descrição da narradora não era um
espaço real; era um lugar imaginado, era a idealização positiva que a protagonista
alimentava em sua memória infantil do que seria morar na cidade de Barcelona, e o
que isso significaria para ela: uma promessa de prosperidade. Entretanto, a
positividade acalentada na instância onírica começou a se desfazer no momento em
que Andrea reviu a casa da família. Os escombros mostravam as marcas deixadas
com o passar do tempo, o empobrecimento da família e a completa desgraça vivida
durante e após a guerra civil. A residência, no marco do presente narrativo, é
exatamente oposta à imagem que a protagonista preservara em suas recordações
infantis. O crescimento da cidade de Barcelona, o transcurso do tempo, a morte do
patriarca e o conseqüente empobrecimento da família provocado pela guerra,
transformaram um espaço outrora aprazível e aconchegante, num ambiente em
ruína no qual predominavam a escuridão, a sujeira, a desordem, o desconforto e um
ar fétido e sufocante.
Esses elementos materiais da composição do espaço narrativo do interior da
casa da Rua Aribau, permitem-nos estabelecer relações com o comportamento
desequilibrado dos seres que habitam a residência, entre os quais impera a
escassez de afeto e compreensão e abundam o egoísmo, a indiferença, a
99
humilhação e o preconceito. Essa infelicidade coletiva que, se traduz nos absurdos
desentendimentos entre os familiares de Andrea, na perspectiva das micro-relações
humanas, encontra no interior da residência um espaço específico: o ambiente da
sala de jantar, lugar no qual a falta do alimento culmina na falta de respeito à
dignidade humana.
O desequilíbrio de cada personagem, suas culpas, frustrações e dores estão
representados em cada ambiente que corresponde à sua individualidade, como se o
espaço exterior fosse um retrato fiel ao interior de cada alma humana subjugada ao
purgatório que a residência representa. Embora não possamos afirmar que o
ambiente é quem determina as atitudes dos seres ficcionais, consideramos que sua
organização descritiva é consoante ao perfil, ao comportamento e ao destino de
cada personagem. Andrea, por exemplo, é fadada à indiferença, por isso é excluída
daquele mundo ao não ter o direito de possuir, no interior da residência, um lugar
especificamente seu. Nessa narrativa, na qual a configuração do espaço é tão
relevante, compreendemos melhor os personagens pela análise descritiva dos
espaços que ocupam do que pela própria definição individual de cada um. A
ausência de um personagem, como a de Angustias e de Román é constatada nas
modificações de seus espaços individuais.
Desse modo, percebemos que, na materialidade descritiva do espaço interior
da residência da grotesca família de Andrea, está recriada, por meio de um processo
metonímico, a própria sociedade espanhola de pós-guerra, refletindo naquele
microcosmo doméstico a pobreza, a repressão das liberdades, o cerceamento
político e a miséria espiritual de pessoas criadas para a economia da energia vital e
afetiva. O peso negativo da imagem da casa permite-nos aproximá-la do conceito de
Mundo demoníaco de Frye.
Quanto à terceira parte de nossa análise, na qual estudamos as descrições
dos ambientes externos que compõem o espaço urbano de Barcelona, constatamos
que a oposição entre os pólos negativo e positivo sugerida, à princípio, pela alegoria
dos símbolos da casa e da cidade, é um eixo contrastável que não se sustenta ao
longo de toda a estrutura narrativa.
Andrea depositara esperanças de uma vida mais intensa e significativa na
cidade que lhe é apresentada, primeiramente, por meio do olhar limitador de
Angustias. Esta é quem restringe o direito da sobrinha de experimentar a cidade da
forma livre, como ela planejara. Esse aprisionamento imposto pela tia simboliza a
100
repressão sofrida por uma população dominada por um discurso de subserviência e
de condenação ao desperdício, tanto financeiro como emotivo. Somente quando
Angustias teve sua credibilidade moral afetada pela descoberta do seu adultério, foi
que Andrea se fez verdadeiramente livre para conhecer e viver Barcelona na
amplitude daquilo que tinha para oferecer.
Por meio dos trajetos executados e descritos pela narradora, o leitor de Nada
é apresentado a uma cartografia da cidade, delineada por tons positivos advindos da
contemplação das paisagens naturais e arquitetônicas. Se, no ambiente interior da
casa da Rua Aribau, a caracterização dos personagens é apreendida a partir da
análise dos espaços que os mesmos ocupam, na exterioridade da cidade, o tempo,
outro elemento da estrutura do romance, tem suas transições marcadas nas
modificações observadas na ambiência. Justamente com a transição temporal entre
a primavera e o verão, transformaram-se as significações positivas que o espaço
urbano de Barcelona oferecia à protagonista que, a partir de então, é submetida a
uma série de frustrações.
A mágoa, para com a amiga Ena e para com o universo masculino,
representados por meio dos personagens Gerardo e Pons, tem como cúmplice a
cidade, único espaço a testemunhar as decepções da narradora que reflete em suas
descrições, a negatividade de suas desilusões íntimas. Gradativamente, o olhar
ingênuo de Andrea sobre a cidade, da qual via apenas beleza e lirismo, começava a
ganhar perspicácia para enxergar também as mazelas de uma grande metrópole
que, como poucas outras, sentia o desgaste da destruição e da dificuldade da
reconstrução. A decepção da protagonista com o espaço urbano da cidade se
completa na noite em que ela conhece de fato a parte que concentra o que havia de
pior na capital catalã: o Barrio Chino.
Ignorada, incompreendida e subestimada pela mediocridade dos parentes,
humilhada e diminuída pelas superficiais amizades de condição social superior,
Andrea se absteve de viver o belo que a cidade lhe oferecera inicialmente.
Restringiu-se a percorrer as degradadas periferias barcelonesas, como se aquele
entorno fosse o único lugar capaz de materializar sua infelicidade, até o momento
em que ela descobre que, para se dar o direito de viver uma existência minimamente
digna, tem que deixar o lugar que outrora fora a idealização perfeita do seu futuro.
Mais do que símbolos metonímicos do sofrimento cotidiano da sociedade
espanhola de pós-guerra, os ambientes ficcionais do romance Nada pontuam, por
101
meio da trajetória individual de Andrea, uma adolescente que atravessa o doloroso
processo de transição para a vida adulta, a decepção coletiva de um povo que, com
o fracasso de suas ideologias políticas, transformara o país num labirinto de onde
não era possível descortinar nenhuma saída.
O espaço familiar decadente mostra o ambiente asfixiante de uma nação
destruída em sua essência humana. A necessidade em relatar aquilo que parecia
não encontrar na linguagem uma forma expressiva, a autora executa um exercício
de resistência, conforme afirma Alfredo Bosi:
…A escrita de resistência, a narrativa atravessada pela tensão
crítica, mostra sem retórica nem alarde ideológico, que essa “vida
como ela é” é, quase sempre, o ramerrão de um mecanismo
alienante, precisamente o contrário da vida plena e digna de ser
vivida. (...)
A resistência é um movimento interno ao foco narrativo, uma luz
que ilumina o nó inextrincável que ata o sujeito ao seu contexto
existencial e histórico. Momento negativo de um processo dialético
no qual o sujeito, em vez de reproduzir mecanicamente o esquema
das interações onde se insere, um salto para uma posição de
distância e, deste ângulo, se a si mesmo e reconhece e põe em
crise os laços apertados que o prendem à teia das intuições. (...)
(Bosi, 2002, p. 34, 35)
Quando exercida dentro de um panorama de violenta repressão, a resistência
torna-se um ato de coragem, o que nos ajuda a determinar o valor dessa obra. Um
romance que ultrapassa o estritamente literário para se constituir um acontecimento
social, se pensarmos que, ao final da guerra civil, poucas escritoras espanholas
ocupavam posição de destaque no campo das letras no país: um espaço de domínio
estritamente masculino. Com Nada e Laforet, surge e ganha corpo a consciência
social e política de todo um universo literário feminino, capaz de testemunhar a
existência traumática do pós-guerra. Ao apresentar em sua narrativa uma heroína
anti-convencional contrário a um dominante perfil feminino submisso, Laforet mostra
a percepção da mulher até então marginalizada por uma cultura predominantemente
machista. Desse modo, a autora reivindica e conquista a inclusão feminina num
cenário cultural no qual imperavam a censura, a religiosidade extremada e uma
ideologia política moralista, tradicionalista e conservadora.
Nada, em fim, é uma referencia figurada a uma parte da história da
sociedade, da política e das relações humanas de um estado, no qual, a opressão
era o elemento motriz de sua manutenção.
102
Nessa narrativa, o espaço é eleito como objeto significativo para representar o
que o discurso oficial propagava, reforçando a crise da legitimação do indivíduo e a
desarticulação de valores de um país. Dessa maneira, a autora consegue instituir
um vínculo entre texto literário e contexto social, evidenciado por meio do estudo de
um dos elementos estilísticos internos à composição romanesca – o espaço, que em
sua composição traduz a conjuntura histórica que o envolve, exemplificando o que
explica Antonio Candido:
Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar
nenhuma dessas visões dissociadas; e que a podemos entender
fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra,
em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores
externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura
é virtualmente independente, se combinam como momentos
necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o
externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como
significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na
constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (Candido,
2004, p. 4)
A memória coletiva representada numa linguagem metafórica e metonímica
coloca em evidência uma realidade simbólica que é própria da literatura.
A partir da análise de Nada, entendemos a Espanha de pós-guerra e
constatamos que esse processo nos é possível, não apenas por intermédio da
história, como também por meio da literatura.
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