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“Gente, por favor, fala um de cada vez.”:
Etnografia,
Análise Conversacional
e Inter-relações entre
Linguagem, Cognição e Cultura,
na Comunidade dos Tipis
EUDENIO BEZERRA
BELO HORIZONTE
FACULDADE DE LETRAS DA UFMG
2007
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“Gente, por favor, fala um de cada vez.”:
Etnografia,
Análise Conversacional
e Inter-relações entre
Linguagem, Cognição e Cultura,
na Comunidade dos Tipis
EUDENIO BEZERRA
BELO HORIZONTE
FACULDADE DE LETRAS DA UFMG
2007
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Estudos Lingüísticos, da Faculdade de Letras, da
Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial
para obtenção do título de DOUTOR em Lingüística.
Área de Concentração: Lingüística
Linha de Pesquisa: Estudos da Inter-relação entre Linguagem,
Cognição e Cultura
Orientadora: Profa. Dra. Cristina Magro
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Ficha Catalográfica
G 574 g Bezerra, Eudenio
“Gente, por favor, fala um de cada vez.”: Etnografia, Análise
Conversacional e Inter-relações entre Linguagem, Cognição e
Cultura, na Comunidade dos Tipis. – Belo Horizonte: Universidade
Federal de Minas Gerais, 2007.
225 p.
1. Linguagem. 2. Cognição 3. Cultura. 4. Emergência. 5.
Etnografia. 6. Análise Conversacional I. Título
CDD 301
BANCA EXAMINADORA
Meus agradecimentos
à Universidade Estadual do Ceará – UECE, à Universidade Federal de Mi-
nas Gerais - UFMG e ao Laboratório Interaction, Corpus, Apprentissage et
Représentation - ICAR, pelo apoio institucional; à Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Ensino Superior - CAPES, pelo apoio financeiro;
a Profª. Drª. Cristina Magro, pelas reflexões estonteantes pautadas pela Bio-
logia do Conhecer, pela sensibilidade com que vem fomentando e acompanhando mi-
nhas mudanças nesses últimos quatro anos, pela amizade elegante;
à Profª. Dr ª. Lorenza Mondada, pela acolhida calorosa no ICAR, pela porta
aberta para o mundo da Análise Conversacional de inspiração etnometodológica;
aos professores, colegas e funcionários do Programa de Pós-graduação em
Estudos Lingüísticos - POSLIN - UFMG, pelas aprendizagens diversas;
a Antônio Marcos Pereira, Arabela Franco, Beto Vianna, Juliana Cardoso,
Rodrigo Aragão, Valéria Oliveira, Victor Paredes, pela estimulante convivência no
POSLIN;
à Profª. Drª. Rosane Alencar, da Universidade Federal Rural de Pernambuco -
UFRPE, por uma profícua discussão sobre pesquisa de campo e modos de registro;
às Professoras Drª. Cristina Magro e Drª. Heliana Mello e a alguns orientandos
seus, pela discussão de aspectos relacionados às vivências da pesquisa-piloto desta
investigação;
à Coordenadora de Vigilância Sanitária, da Secretaria de Saúde do Estado
do Ceará - SESA/Célula Regional de Saúde - CERES, Silvana Margareth Teixeira Lima
e ao Diretor do Serviço Autônomo de Água e Esgoto - SAAE, de Iguatu, José de Oliveira
Mendonça Filho, por viabilizarem análises bacteriológicas e físico-químicas das águas
dos Tipis; aos técnicos Eumar Gomes de Souza e Raimundo Bandeira Alves, pela coleta
dos materiais para análises das águas; a Adriana Alves, Assistente Social da Secretaria
de Saúde do Estado do Ceará, pela participação em conversas sobre a qualidade das
águas, nos Tipis;
a Maria Margarida Pereira Silva, Gerente da Companhia de Gestão de Re-
cursos Hídricos – COGEHR, pela localização da vila e de pontos de referência dos Tipis,
através do Global Positioning System – GPS; a Adriana Débora Chagas Araújo, Tecnóloga
em Recursos Hídricos e Irrigação, pelas medições e explicações técnicas.
à Profª. Drª. Lorenza Mondada, ao Prof. Dr. Lukas Balthasar, ao Engenheiro
Daniel Valero, à doutoranda Florence Oloff e ao estagiário Pierluigi Restivo, pela boa
vontade e presteza em orientar e acompanhar minhas atividades técnicas, no ICAR;
a Vilma Gonzaga, Lena Ommundsen e Jorge Madrigal, pelas traduções do
resumo, para o inglês, o francês e o espanhol, respectivamente;
a Luís Carlos Azevedo, pela formatação gráfica;
aos amigos e amigas dos Tipis, pela riqueza da experiência;
à Helena, ao Zé Tota, ao Bobô e ao Nilsinho, pela acolhida familiar, nos Tipis;
aos amigos e amigas que planaram comigo, pelas viagens diversas;
a Alexandrina e Valmar (meus pais), aos meus irmãos e familiares, por tudo.
Nan, quando junta um bocado, fala tudo de uma vez! Mas a gente se entende!
Da fala de uma anciã, moradora dos Tipis, sobre o conviver nos Tipis.
RESUMO
Nesta tese tomo linguagem, cognição e cultura como fenômenos relacionais decorren-
tes de entrelaçamentos de nossas histórias filogenética e ontogenética em um meio. A
linguagem é observada como uma congruência operacional, uma conduta no meio. O
ato cognitivo básico, como a distinção/configuração de objetos consensuais e domínios,
em dinâmicas comportamentais. A cultura, como padrões históricos de ações comuni-
cativas co-relacionadas com cognição e linguagem. Entendo que a linguagem ocorre
em uma estabilidade dinâmica, como uma ação situada em práticas culturais, de modo
emergente e contingente aos contextos nos quais estruturamos nosso viver. Já a prática
sócio-cultural da fala-em-interação ocorre como inteligibilidade situada para os fins prá-
ticos que emergem na própria atividade, quando assumimos uma dimensão
argumentativa, perspectiva, engajada, e (re)tomamos, (re)organizamos, configuramos
socialmente um mundo. Apresento uma etnografia da comunidade sertaneja dos Tipis
como uma produção coletiva da ordem. As práticas e relações sócio-culturais e as con-
dições infra-estruturais da comunidade constituem-se em atividades lingüístico-
interacionais locais e em suas interações com outras comunidades. Os contextos des-
sas práticas não são prévios aos afazeres nem autônomos à sua implementação: confi-
guram-se na interação, enquanto a moldam reflexivamente. Proponho ainda análises
conversacionais de procedimentos observados em uma reunião da Associação dos
Moradores dos Tipis, onde os participantes fazem emergir objetos discursivos, exibindo
sua escuta, atenção, compreensão, avaliação e inteligibilidade sobre o que estão fazen-
do.
Palavras-chave: 1. Linguagem. 2. Cognição 3. Cultura. 4. Emergência. 5. Reflevidade.
6. Etnografia. 7. Análise Conversacional
ABSTRACT
Language, cognition and culture are taken as relational phenomena decurrent from the
interlacing of our phylogenetic and ontogenetic histories in a given environment. Language
is observed as an operational congruence, a conveyance in the environment. The basic,
cognitive act is observed as the distinction /configuration of consensual objects and domain,
in behavioral dynamics. Culture is observed as historical patterns of communicative actions
correlated with cognition and language. Language is understood as occurring in a dynamic
stability, as an action situated in cultural practices, in an emergent and contingent mode in
which life is structured. The social-cultural practice of speech-in-interaction occurs as
intelligibility situated for the practical aims which emerge in the activity itself, when an
argumentative, perspective and engaged dimension is assumed, a world is retaken,
reorganized and socially configurated. An ethnography of the Tipis backcountry community
is presented as a collective production of the order. The practices and social cultural
relations and the infra-structure conditions of the community consist of local linguistic-
interactive activities and their interactions with other communities. The contexts of these
practices are not previous to the tasks neither are they autonomous to their implementation:
they shape themselves in the interaction, while molding it reflexively. It is proposed a
conversational analyses of the procedures observed in a meeting of the Associação dos
Moradores dos Tipis, where discursive topics are arisen by the participants, showing their
listening, attention, comprehension, evaluation and intelligibility concerning what is being
done.
Key-words: 1. Language. 2. Cognition. 3. Culture. 4. Emergence. 6. Reflexivity.
5. Ethnography. 7. Conversational Analyses.
RÉSUMÉ
Dans cette thèse je considère langage, cognition et culture comme des phénomènes
relationnels découlant du brassage de nos histoires phylogénétique et onthogénétique en
un milieu donné. Le langage est observé comme une congruence opérationnelle, une
conduite propre au milieu. L’acte cognitif de base est vu comme la distinction/configuration
d’objets consensuels et de domaines, dans des dynamiques comportementales. La culture
est vue comme des normes historiques d’actions de communication et en corrélation
avec la cognition et le langage. Il est entendu que le langage a lieu dans une stabilité
dynamique, comme une action située dans des pratiques culturelles, de façon émergente
et contingente aux contextes dans lesquels nous structurons notre manière de vivre, alors
que la pratique socio-culturelle du discours-en-interaction a lieu en tant qu’intelligibilité
mise en œuvre à des fins pratiques qui émergent dans la propre activité quand nous
assumons une dimension argumentative, perspective, engagée et quand nous (re)prenons,
(ré)organisons, configurons socialement un monde. Je présente une ethnographie de la
communauté paysanne des Tipis comme une production collective de l’ordre social. Les
pratiques et les relations socio-culturelles et les conditions infra-structurelles de la
communauté se constituent dans des activités linguistico-interactionnelles de l’endroit et
dans ses inter-actions avec d’autres communautés. Les contextes de ces pratiques ne
sont pas préalables aux tâches ni indépendantes de leur implémentation : ils se configurent
dans l’interaction pendant que, en retour, ils la structurent. Je propose encore des analyses
de discours grâce à des observations faites lors d’une réunion de l’Associação dos Mo-
radores dos Tipis où les participants font émerger des objets discursifs, faisant preuve
de leur écoute, leur attention, leur compréhension, leur évaluation et intelligibilité sur ce
qu’ils sont en train de faire.
Mots-clés: 1. Langage. 2. Cognition. 3. Culture. 4. Emergence. 5. Réflexivité.
6. Ethnographie. 7. Analyse Conversationnelle.
RESUMEN
En este trabajo de Tesis entiendo lenguaje, cognición e cultura como fenómenos relaci-
onados decorrentes de la interacción de nuestra historia filogenética y ontogenética en el
medio. El lenguaje se observa como una congruencia operacional, una conducta en el
medio. El acto cognitivo básico, como la distinción/configuración de objetos consensúales
y de dominios, en dinámicas comportamentales. La cultura, como padrones históricos
de acciones comunicativas correlacionadas con la cognición y el lenguaje. Entiendo que
el lenguaje ocurre en una estabilidad dinámica, como acción situada en prácticas
culturales, de manera emergente y contingente a los contextos en los cuales estructuramos
nuestra vida. Ya la práctica socio-cultural de hablar-en-interacción ocurre como
inteligibilidad situada para los objetivos prácticos que emergen en la propia actividad,
cuando asumimos una dimensión argumentativa, perspectiva, comprometida, y
(re)tomamos, (re)organizamos y/o configuramos socialmente un mundo. Presento una
etnografía de la comunidad rural de los Tipis como una producción colectiva de la orden.
Las prácticas y las relaciones socio-culturales y las condiciones de infraestructura de la
comunidad consisten en actividades lingüísticas interacciónales locales y en sus
interacciones con otras comunidades. Los contextos de esas prácticas no son anterio-
res a las tareas ni a su puesta en práctica: se configuran en la interacción, mientras que
la moldean reflexivamente. Propongo además realizar análisis conversacionales de
los procedimientos observados en una reunión de la Asociación de Habitantes de los
Tipis, en la cual los participantes hacen emerger objetos discursivos, exhibiendo su
habilidad de escucha, atención, comprensión, evaluación e inteligibilidad sobre lo que
están haciendo.
PALAVRAS CLAVES: 1. Lenguaje. 2. Cognición 3. Cultura. 4. Emergencia. 5.
Reflexividad. 6. Etnografía. 7. Análisis Conversacional.
SUMÁRIO
LISTA DE EXTRATOS.......................................................................................15
INTRODUÇÃO
A EMERGÊNCIA DO INVESTIGADOR E DA INVESTIGAÇÃO NA
PRÁXIS DA PESQUISA ....................................................................................17
PARTE I
ELABORANDO O OLHAR PARA INTER-RELAÇÕES ENTRE
LINGUAGEM, COGNIÇÃO E CULTURA
CAPÍTULO 1 – A BIOLOGIA DO CONHECER ...................................................36
1.1 A Biologia do Conhecer: Um Mecanismo Explicativo para a
Fenomenologia Humana ...................................................................................36
1.2 A Teoria da Autopoiese .....................................................................................37
1.3 A Emergência dos Mundos Consensuais dos Observadores.............................39
1.4 Fisiologia e Conduta: Domínios Distintos e Mutuamente Gerativos ...................41
1.5 Linguagem, Cognição e Cultura enquanto Fenômenos Relacionais...................42
1.6 Os Recursos Comunicacionais e Lingüísticos como Conotações de
Coordenações de Coordenações de Ações......................................................43
1.7 Linguagem, Cognição e Cultura vs Relatividade e Determinismo Lingüísticos ........46
1.8 Linguagem, Cognição e Cultura: Fenômenos Sistêmicos e Dinâmicos .............49
CAPÍTULO 2 – O TRATAMENTO POLÊMICO DA LINGUAGEM COMO AÇÃO.......52
2.1 Pensando o Mundo Humano como Linguagem..................................................52
2.2 Preconceitos, Confusões e Ilusões Gramaticais: A Terapêutica
Wittgensteiniana para o Pensamento Filosófico Ortodoxo sobre a Linguagem .........53
2.3 Eventos de Fala e Sistema Lingüístico: A Tensão Firthiana entre a Ortodoxia
e a Heterodoxia.................................................................................................56
2.4 A Linguagem como Ação: Austin e seus Intérpretes, Críticas e Contribuições............57
2.4.1 A linguagem como atos de fala......................................................................57
2.4.2 Tensões na leitura (oficial) de Austin: taxonomias tentativas e sentido
em contexto...................................................................................................59
2.4.3 Entre o local e o universal, na linguagem como ação .....................................61
2.4.4 Entre a intenção dos falantes e os procedimentos socialmente
contextualizados............................................................................................62
2.4.5 A linguagem como ação, como Austin sonharia.............................................63
2.5 Linguagem, Cognição e Cultura nos Contextos Sócio-Culturais.........................65
2.6 As Balizas para um Tratamento da Linguagem como Atividade Situada............68
CAPÍTULO 3 – O TRATAMENTO POLÊMICO DA LINGUAGEM
COMO INTERAÇÃO .........................................................................................71
3.1 A Etnometodologia: Uma Análise da Ação e do Saber na Intersubjetividade
Social................................................................................................................71
3.1.1 Inteligibilidade e Saber na Ação Social .........................................................74
3.1.2 A Reciprocidade de Perspectivas na Cognição de Senso Comum...............76
3.2 A Investigação da Fala-em-interação.................................................................78
3.3 A Análise Conversacional stricto sensu: Princípios e Objeto de Estudo .............84
3.3.1 Princípios da Análise Conversacional stricto sensu .......................................84
3.3.1.1 A mentalidade analítica e o status dos dados empíricos ............................85
3.3.1.2 A dimensão praxeológica: o caráter situado e emergente da interação ......86
3.3.1.3 A supremacia da interação ........................................................................87
3.3.1.4 A seqüencialidade e a temporalidade da fala-em-interação.......................88
3.3.1.5 A dimensão êmica: o ponto de vista dos participantes e o fazer analítico ........88
3.3.2 O objeto da Análise Conversacional stricto sensu .........................................90
CAPÍTULO 4 – A METODOLOGIA COMO UMA INTERPRETAÇÃO
DOCUMENTAL: AS OPÇÕES METODOLÓGICAS ..........................................97
4.1 A teoria orientando a metodologia.....................................................................97
4.2. A teoria orientando a escolha de dados naturais ...............................................99
4.2.1 Os dados primários de primeira ordem: vantagens e limitações do
registro em vídeo...........................................................................................99
4.2.2 Contexto do registro e contexto da análise: distinções úteis ........................101
4.3. Os dados primários de segunda ordem: o tratamento informático .....................102
4.4 Os dados secundários: a transcrição como um objeto de reflexão e
como uma ferramenta analítica ........................................................................104
4.4.1 A identificação dos participantes e as práticas de transcrição da
Análise Conversacional stricto sensu ..........................................................105
4.5 Os Dados das Análises ...................................................................................106
4.5.1 Os Dados Primários e Secundários ............................................................106
4.5.2 Os registros em vídeo .................................................................................107
4.5.3 A digitalização dos registros em vídeo ........................................................108
PARTE II
ETNOGRAFIA E ANÁLISE CONVERSACIONAL NOS TIPIS
CAPÍTULO 5 – A COMUNIDADE DOS TIPIS...................................................110
5.1 A Produção de uma Ordem Social que se Particulariza no Viver Comunitário .........110
5.2 Índios, Brancos, Pretos – Mistura, História e Cultura dos Habitantes dos Tipis .........110
5.3 Uma Comunidade entre o Rural e o Urbano.....................................................112
5.4 Pés no Sítio, Cabeça na Cidade e o Coração em Frangalhos ou
Pés na Cidade, Cabeça no Sítio e o Mesmo Sofrer ........................................113
5.5 Pés no Sítio, Cabeça no Sítio e a Boca no Mundo ...........................................118
5.5.1 “Sem conversa não tem construção” – redes de interações, parentesco
e amizade e uma noção de tempo, no cotidiano dos Tipis...........................119
5.5.2 “Vixe como tem Zé” – nomes, apelidos e bom humor onde ‘todos são
parentes’......................................................................................................122
5.5.3 “Quem vai malhar o judas? Quer apostar?” – religiosidade e folia na
vida comunitária ..........................................................................................125
5.5.4 “Lata d’água na cabeça...” – água e saúde como práticas coletivas ............127
5.5.5 “Se tiver inverno...!” – o (con)viver no domínio de ação do semi-árido .........131
5.5.6 “É, pa tudo tem reunião...” – o bom humor, a eficaz comunicação boca
a boca e o freqüente encontro dos habitantes dos Tipis...............................137
CAPÍTULO 6 – FAZENDO REUNIÃO NOS TIPIS: UMA ANÁLISE
CONVERSACIONAL.......................................................................................139
6.1 Situando a Observação e a Análise.................................................................139
6.2 Tecendo a Situação Social da Reunião da Associação dos Moradores
dos Tipis..........................................................................................................142
6.3 Confirmando Relações Sociais, na Reunião da Associação dos Moradores
dos Tipis..........................................................................................................147
6.4 Fazendo o Lugar e se Fazendo Nele: Espaço Físico e Interação, na
Reunião da Associação dos Moradores dos Tipis ...........................................155
6.4.1 Filmando, pesquisando, conversando: atuação e status interacional,
no espaço físico da reunião da Associação dos Moradores dos Tipis .........155
6.4.2 Ficando de pé: história e emergência interacionais, na reunião da
Associação dos Moradores dos Tipis .........................................................173
6.4.3 Entrando e saindo da sala: o espaço físico como critério interativo, na
reunião da Associação dos Moradores dos Tipis ........................................191
6.5 Instaurando a Reunião da Associação dos Moradores dos Tipis: a
Emergência do Evento, na Ação......................................................................195
CONCLUSÃO .................................................................................................204
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................210
ANEXOS.........................................................................................................222
15
LISTA DE EXTRATOS
Extrato 1 (10-22 seg.) (0’10’’-0’22’’) (12 seg.) ..........................................................144
Extrato 2 (36-53 seg.) (0’36’’-0’53’’) (17 seg.) ..........................................................145
Extrato 3 (0-10 seg.) (0’0’’-0’10’’) (10 seg.) ..............................................................147
Extrato 4 (139-151 seg.) (2’19’’-2’31’’) (12 seg.)......................................................148
Extrato 5 (31-36 seg.) (0’31’’-0’36’’) (5 seg.) ............................................................148
Extrato 6 (113-117 seg.) (1’53’’-1’57’’) (4 seg.) .................................................149/156
Extrato 7 (55-63 seg.) (0’55’’-1’03’’) (8 seg.) ............................................................149
Extrato 8 (183-196 seg.) (3’03’’-3’11’’) (8 seg.) ........................................................150
Extrato 9 (262-270 seg.) (4’22’’-4’30’’) (8 seg.)........................................................151
Extrato 10 (3-7 seg.) (0’03’’-0’07’’) (4 seg.) ..............................................................151
Extrato 11 (240-250 seg.) (4’00’’-4’10’’) (10 seg.) .............................................152/173
Extrato 12 (344-356 seg.) (5’44’’-5’56’’) (12 seg.).............................................152/174
Extrato 13 (404-420 seg.) (6’44’’-7’00’’) (16 seg.)......................................153/174/200
Extrato 14 (68-85 seg.) (1’08’’-1’25’’) (17 seg.).................................................158/191
Extrato 15 (99-105 seg.) (1’39’’-1’45’’) (6 seg.)........................................................160
Extrato 16 (132-140 seg.) (2’12’’-2’20’’) (8 seg.)......................................................161
Extrato 17 (155-196 seg.) (2’35’’-3’16’’) (41 seg.)....................................................162
Extrato 18 (236-242 seg.) (3’56’’-4’02’’) (6 seg.)......................................................165
Extrato 19 (344-363 seg.) (5’44’’-6’03’’) (19 seg.)....................................................166
Extrato 20 (1.607-1.633 seg.) (26’47’’-27’13’’) (26 seg.) ..........................................168
Extrato 21 (2.354-2.387 seg.) (39’14’’-39’51’’) (37 seg.) ..........................................169
Extrato 22 (266-300 seg.) (4’26’’-5’00’’) (34 seg.).............................................175/196
Extrato 23 (1.485-1.505 seg.) (24’45’’-25’05’’) (20 seg.) ..........................................177
Extrato 24 (1.042-1.068 seg.) (17’22’’-17’48’’) (26 seg.) ..........................................180
Extrato 25 (1.934-1.949 seg.) (32’14’’-32’29’’) (15 seg.) .........................................182
Extrato 26 (1.234-1.258 seg.) 20’34’’-20’58’’) (24 seg.) ...........................................184
Extrato 27 (1.588-1.616 seg.) (26’28’’-26’56’’) (28 seg.) ..........................................185
Extrato 28 (1.700-1.714 seg.) (28’20’’-28’34’’) (14 seg.) ..........................................187
Extrato 29 (1.714-1.740 seg.) (28’34’’-29’00’’) (26 seg.) ..........................................188
Extrato 30 (1.740-1.753 seg.) (29’00’’-29’13’’) (13 seg.) ..........................................190
Extrato 31 (1.965-1.988 seg.) (32’45’’-33’08’’) (23 seg.) ..........................................193
Extrato 32 (300-341 seg.) (5’00’’-5’41’’) (41 seg.)....................................................198
Extrato 33 (342-368 seg.) (5’42’’-6’08’’) (26 seg.)....................................................199
Extrato 34 (420-440 seg.) (7’00’’-7’20’’)(20 seg.).....................................................202
A coloração afogueada dos últimos raios de sol fora substituída
pelo esplendor de uma noite rural. Como se surgissem da escuridão,
homens e mulheres, as idades as mais diversas, vão chegando à
pequena escola do lugarejo. Desde o terreiro até uma sala da pequena
escola, os moradores dos Tipis vão-se cumprimentando, vão-se
distribuindo, acomodando-se e se organizando no espaço diminuto.
No interior dessa sala e nos seus arredores próximos, vários pequenos
grupos entabulam conversas diversas. Muitos diálogos e falas se
sobrepõem. Brincadeiras, insultos e gargalhadas, também. Com uma
máquina filmadora nas mãos, estou engajado nos cumprimentos, nas
conversas sobrepostas, nas brincadeiras, nos insultos, nas
gargalhadas, na minha própria acomodação no espaço físico.
Pouco a pouco, há alguma novidade no ar... Os afazeres dos
participantes fluem agora muito mais sincronizados, sintonizados, no
interior da sala e nos seus arredores. Muitas falas se sobrepõem.
Alguns diálogos, algumas brincadeiras, alguns insultos, também.
Algumas pessoas se reacomodam, se reorganizam, no espaço
diminuto. E a pouco e pouco, há uma outra novidade no ar...
Desde a sala da pequena escola, homens, mulheres e crianças
vão se desorganizando no espaço diminuto, vão se desacomodando,
vão se distribuindo no terreiro, e se cumprimentando. Alguns poucos
diálogos se sobrepõem. Algumas poucas brincadeiras, insultos e
gargalhadas, também... Como se sumissem na escuridão do esplendor
de uma noite rural. Que vai ser substituída pela coloração afogueada
dos primeiros raios de sol.
17
INTRODUÇÃO
A EMERGÊNCIA
DO INVESTIGADOR E DA INVESTIGAÇÃO
NA PRÁXIS DA PESQUISA
Malgrado os ares literários do relato (sem estilo, é bem verdade. E baru-
lhento também!) com que abro esta tese, o que os sertanejos da comunidade cearense
dos Tipis fazem é algo corriqueiro no viver humano. Ainda assim cabe a pergunta:
O que vemos ocorrer nessa atividade dos habitantes dos Tipis?
Uma resposta possível para essa questão situa-se no âmbito das reflexões desta
tese, intitulada “Gente, por favor, fala um de cada vez.”: Etnografia, Análise Conversacional e
Inter-relações entre Linguagem, Cognição e Cultura, na Comunidade dos Tipis.
Esta investigação volta-se para análises da linguagem enquanto uma ação
social inteligível e emergente, contingente, situada em práticas culturais levadas a
cabo por moradores dos Tipis.
Uma investigação e uma tese dela resultante são atividades linguajeiras e
podem ser observadas a partir de uma concepção de linguagem como ação social.
Assim, de modo semelhante ao tratamento dado ao seu objeto específico – a lingua-
gem como ação –, é possível olhar para este trabalho em termos das propriedades e
relações que se configuraram nas contingências da sua prática. Para empreendermos
tal tarefa, comecemos por considerar que esta pesquisa decorre:
a) de diversas interações que vêm tecendo a minha história sócio-cultural;
b) de certos modos de questionar e movimentar conhecimento, praticados
pela comunidade acadêmica que freqüento;
c) de experiências de campo que vivenciei junto à comunidade dos Tipis.
Na prática sócio-cultural que constituiu esta tese, a teoria, a metodologia e
a prática alimentaram-se e se retro-alimentaram, mutuamente, em diferentes momen-
tos de elaboração. A formação teórica e a prática de campo caracterizaram-se como
processos de reflexão moldados pelas contingências das práticas interacionais
vivenciadas nos seus domínios de ações – a academia e a comunidade dos Tipis.
Reflexivamente, cada um desses domínios atuou de algum modo na configuração do
outro. Em particular, a atividade de campo, os dados nela obtidos e reflexões sobre a
atividade e sobre os dados constituíram fatores orientadores de escolhas e ajustes
teóricos, metodológicos e analíticos específicos deste trabalho.
18
Diante das considerações acima apresentadas, julgo oportuno relatar aqui:
o processo de construção da investigação; o contexto sócio-cultural que motivou as
perguntas iniciais do pesquisador; as reflexões teóricas que orientaram a formulação
da pesquisa e; uma prática de campo que movimentou essa formulação, favorecendo
reformulações dos delineamentos iniciais.
Nas Seções que seguem busco enfatizar:
Como se deu o processo de conceptualização da pesquisa relacionada
ao relato de abertura desta tese? Que motivações formativas, teóricas,
existenciais levaram o pesquisador a conviver com a comunidade dos
Tipis?
Quais as expectativas iniciais da pesquisa de campo e como ela se de-
senvolveu?
Como a prática de campo articulou-se com os panoramas teóricos do
pesquisador, gerando refinamentos na delimitação do quadro teórico-
analítico e uma dinâmica de formulação e reformulação do objeto de
análise?
Desenhando um Paradoxo: A Pretensa Busca da Emergência de um Fenômeno
Previamente Estabelecido
A minha licenciatura em Letras na Universidade Federal do Ceará – UFC
(1984-1988), o exercício da docência no Curso de Letras, da Faculdade de Educação,
Ciências e Letras de Iguatu – FECLI, da Universidade Estadual do Ceará – UECE
(desde 1990) e um mestrado em Letras, realizado na Universidade Federal de
Pernambuco – UFPE (1994-1996), haviam-me constituído como um observador curio-
so de situações linguajeiras diversas, em particular de algumas práticas que envolvem
uma dimensão esconjuratória da linguagem. Isto sem falar das minhas andanças e
conversas, desde que nasci, pelas veredas do meu grande sertão.
Em atividades lingüístico-interacionais esconjuratórias, observáveis no con-
texto cultural do sertão do Ceará, por exemplo, se um indivíduo precisa indicar o local
do corpo em que um outro foi ferido, profere: levou um tiro bem aqui assim (apontando
o local com o dedo), lá nele (movimentando o dedo para longe do próprio corpo). Essa
prática intrigava-me por parecer encarnar uma racionalidade segundo a qual, sem a
expressão desviante final, o indivíduo poderia correr o risco de ser atingido pela pala-
vra-tiro.
Outros fenômenos do mesmo tipo, também observáveis no sertão do Cea-
rá, reforçavam meu interesse. Por exemplo, quando algumas pessoas precisam nominar
uma doença grave e contagiosa como sendo a causa da morte de uma criança, ben-
19
zem-se, dizendo três vezes, antes, uma palavra que deve proteger de outra palavra
contaminadora a ser dita depois: armaria, armaria, armaria, crupe. Ave Maria!
Reflexões epistemológicas da Biologia do Conhecer sobre linguagem,
cognição e cultura chamaram-me a atenção para diversas interconexões entre domí-
nios correlacionados a atividades lingüísticas efetivamente situadas. Essas reflexões
ancoraram o desejo de fornecer uma explicação científica para uma atividade
interacional onde aflorasse a mencionada dimensão esconjuratória da linguagem. As-
sim, apresentei ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos, da Univer-
sidade Federal de Minas Gerais - POSLIN-UFMG, um Pré-Projeto de Pesquisa intitulado
Quando as palavras protegem ou contaminam: linguagem, cognição e cultura na descri-
ção densa de uma atividade lingüística. O objetivo geral da pesquisa era circunscrever a
emergência, persistência e prática efetiva de uma atividade sócio-cultural situada.
Um levantamento bibliográfico levou-me à constatação de que a retórica do
esconjuro parecia perpassar épocas e lugares diversos, culturas diferentes, grupos
socialmente diferentes, como também práticas culturais diversas, no interior de um
mesmo grupo social. Assim, da Idade Média
i
à contemporaneidade, dos ritos oficiais
dos sacramentos religiosos
ii
às práticas marginalizadas de feitiçaria, no sertão do Ceará
iii
,
nas metrópoles, nos corredores dos modernos hospitais, nas conversas espontâneas
das cozinhas, dos bares, dos gabinetes acadêmicos, no nosso cotidiano, encontrei
referências a – ou a realização de – atividades mágicas com palavras eficazes, ativida-
des que se parecem com uma não-atividade, um silenciamento protetor ou uma subs-
tituição providencial de palavras danosas. Aqui e acolá, encontrei mesmo referências
a conseqüências perigosas decorrentes dessas atividades. Cruz, credo! Com efeito,
no Brasil colonial, expressões tidas como contrárias à ordem imposta pela Igreja Cató-
lica resultaram em uma intolerância, violenta e cruel, sobre falantes tidos e havidos por
feiticeiros e feiticeiras
iv
.
A minha formação acadêmica favorecia pensar que, em cada caso, o es-
conjuro deveria assumir características situadas, relativas a especificidades das épo-
cas e lugares, dos atores sociais, das práticas culturais onde efetivamente ocorresse.
Essa formação favorecia, pois, um modo de olhar as interações humanas consideran-
do, dentre outras dimensões, as contingências emergentes no curso mesmo das ativi-
dades sócio-culturais.
i
Sobre uma concepção de linguagem como ato de fala, no Século XIII, ver Rosier (1994). Sobre religi-
osidade na Idade Média, ver Giordano (s.d.).
ii
Sobre atividades mágicas com palavras eficazes, no âmbito de uma manifestação popular oriunda da
tradição católica brasileira, ver Gomes (2004).
iii
Sobre usos, costumes, crenças e ofícios mágicos no Nordeste brasileiro, ver Fernandes (1938).
iv
Sobre feitiçaria e religiosidade popular, no Brasil colonial, bem como sobre a atuação do Santo Ofício
na repressão a essas práticas, ver Souza (1995).
20
O delineamento inicial desta pesquisa associava, pois, uma concepção di-
nâmica de linguagem e um interesse em flagrar a emergência de um fenômeno
lingüístico-interacional previamente definido. Tal associação veio a mostrar-se, poste-
riormente, como uma espécie de paradoxo.
Uma outra característica do quadro teórico no qual venho me movimentan-
do desde o início deste trabalho é que ele também acomoda a idéia de que um pesqui-
sador e uma investigação formulam-se e se reformulam na práxis mesma da pesqui-
sa. Foi com esse panorama investigativo que, em fevereiro de 2004, realizei a minha
primeira atividade de campo para a consecução desta empreitada. Naquele momento,
o desenho da pesquisa estimava que uma observação etnográfica deveria me permitir
uma abordagem de atividades em que as palavras protegem ou contaminam. Uma
retórica do esconjuro constituía, então, o tópico a ser estudado, na perspectiva das
inter-relações entre linguagem, cognição e cultura.
A partir de indicações e conversas com pesquisadores e interessados em
questões afins ao meu projeto, selecionei três comunidades do Estado do Ceará: uma,
situada na região serrana do Maciço de Baturité – a cidade de Aratuba; outra, localiza-
da no litoral leste – a Prainha do Canto Verde; e outra, inserida no sertão semi-árido,
na região Centro-sul do Estado – a vila dos Tipis.
Um dos objetivos dessa pesquisa-piloto era verificar as possibilidades de
investigar o tema escolhido, com o referencial teórico pretendido e outras âncoras de
minha formação acadêmica. Assim, visava a selecionar uma comunidade em cujas
práticas eu observaria o fenômeno previamente delimitado. Já nesse início, as vicissi-
tudes interacionais contavam como partes constituintes do processo investigativo. As-
sim, busquei constatar interacionalmente, por exemplo, as condições de minha per-
manência nessas localidades, durante uma efetiva pesquisa de campo. Ainda nessa
fase iniciei negociações, vislumbrando providências para a minha inserção na vida
comunitária de um dentre os grupos sociais visitados.
Como vimos, desde as primeiras conversas com participantes das três co-
munidades, optei por negociar interativa e diretamente a minha inserção ali, fossem os
negociadores participantes ordinários ou representantes de instituições comunitárias.
Assim, não portei uma carta de apresentação de uma Universidade nem me fiz apre-
sentar por um líder externo com credibilidade local. Nos três grupos apresentei-me
como um pesquisador interessado em observar os modos da vida comunitária. Em
cada um, permaneci por uma semana, quando conversei com pessoas diversas, fa-
zendo anotações e registros fotográficos e em áudio. Em cada um dos três grupos, o
contato inicial teve suas peculiaridades.
Na comunidade serrana, em Aratuba, fiquei hospedado em uma pousada.
Gentilmente, um funcionário da Secretaria Municipal da Cultura relatou-me aspectos
da história do município e de algumas práticas culturais locais. Assim, pude identificar
21
personagens importantes para os propósitos da pesquisa. Duas conversas posterio-
res, sobre temas semelhantes – o dia-a-dia do entrevistado, as suas relações familia-
res, histórias pessoais, acontecimentos da cidade..., resultaram em dois registros em
áudio, de 60 minutos cada. Na primeira delas, conversei com um senhor idoso, um
comerciante aposentado, reconhecido pela comunidade como um contador de históri-
as. Na segunda, entrevistei uma senhora também idosa, que atuava como rezadeira.
Na Prainha do Canto Verde eu também me hospedei em uma pousada. A
história de organização política dessa comunidade já havia atraído pesquisadores para
o seu entorno, o que resultara, até então, na produção de três trabalhos acadêmicos
com temáticas e perspectivas teóricas diversas (Tupinambá, 1999; Almeida, (2002;
Gomes, 2002). Por ocasião da minha visita, atividades da organização política vivenciada
por esse grupo social tornaram-se visíveis em um Curso de Formação de Lideranças
do Litoral Cearense, que reuniu pescadores e pescadoras de 23 colônias do Estado.
Esse evento facilitou a identificação de pessoas com quem conversei sobre o dia-a-dia
comunitário.
A comunidade sertaneja dos Tipis não dispunha de um hotel ou pousada
onde pudesse me alojar. Essa circunstância trouxe a negociação da minha primeira
experiência com esse grupo social para a sua fase mais básica, diferentemente dos
casos anteriores, nos quais o primeiro momento teve a forma de uma ‘hospedagem
em um hotel estabelecido’. Assim, nessa primeira visita, identifiquei o então Presiden-
te da Associação de Moradores e, em uma conversa informal da qual também partici-
param outros membros da comunidade, apresentei os propósitos do meu trabalho. No
desenrolar da conversa, o Presidente ofereceu-me a própria residência para a minha
hospedagem durante a pesquisa-piloto, em uma gentileza tocante, para comigo e meus
interesses de pesquisa. Alguns dias depois, durante uma semana, tive uma convivên-
cia bastante cooperativa com esse senhor, sua esposa e alguns dos seus filhos. As
conversas com esses e outros moradores dos Tipis caracterizaram-se como uma rela-
ção não-comercial, pautada em uma confiança sem garantias e foi nesse contexto que
observei indícios favoráveis à exeqüibilidade do trabalho pretendido.
Práticas sócio-culturais comuns às três comunidades – dentre outras, a pre-
cariedade do serviço público de saúde, a atuação de rezadores e rezadeiras, o cultivo
de plantas utilizadas em rituais de benzeção – sugeriam que em qualquer uma delas
eu observaria “atividades em que as palavras protegem ou contaminam”. A escolha do
campo foi guiada, então, por questões de afinidade e identificação pessoal. Assim,
dado o meu desejo de atribuir alguma visibilidade a práticas de um grupo incrustado
na vastidão sertaneja, escolhi a comunidade dos Tipis, localizada na zona rural de
Iguatu – a cidade onde nasci e trabalho e onde moram os meus familiares e muitos
outros amigos.
22
A pesquisa-piloto e as discussões ensejadas por ela sinalizaram, por exem-
plo, a adequação de uma concepção de linguagem como ação social, no enfrentamento
do trabalho. Assim, munido de um roteiro semi-estruturado, parti para a pesquisa de
campo, planejando registrar diversas atividades da comunidade dos Tipis. Minha ex-
pectativa – um tanto paradoxal – era flagrar em vídeo aquilo que havia definido previ-
amente como meu tópico de pesquisa: a retórica do esconjuro, que eu pretendia ob-
servar emergindo nessas atividades. A efetividade empírica e interacional dos traba-
lhos no campo, aliada ao processo mesmo de estar na reflexão, foi permitindo trazer à
mão o mencionado paradoxo. A prática de campo e a sua crítica geraram, pois, ajustes
e reformulações nos rumos da investigação.
Vivenciando um Paradoxo: A Pesquisa de Campo e a Tensão de Buscar a Emer-
gência de um Fenômeno Previamente Estabelecido
De julho a novembro de 2004, morei nos Tipis. Assumindo um duplo status,
incluí-me na comunidade como um morador-pesquisador. Assim, desenvolvi uma ob-
servação participante das mais diversas atividades da comunidade, portando algum
recurso de registro, fosse ele um caderno de notas, um gravador de áudio, uma máqui-
na fotográfica ou uma filmadora de vídeo.
Ao longo da experiência de campo, vivenciei um forte impacto pessoal e
precisei fazer ajustes importantes na configuração da pesquisa projetada. Na observa-
ção participante foram surgindo demandas circunstanciadas por aspectos práticos do
trabalho, pela agenda dos atores, pelo aparato tecnológico por mim utilizado, pelas
condições materiais para resolver os problemas postos. Havia a exigência de um
discernimento entre as soluções possíveis e as viáveis. Havia, pois, uma ação e uma
reflexão intensas, inquietadoras, que me desestabilizavam, abrindo novas veredas que
não poderiam ter sido completamente especificadas no plano inicial da pesquisa. Al-
gumas dessas demandas podem ser vistas nas Seções 6.4.1, 6.4.2, 6.4.4, 6.4.5, 6.4.8
e 6.4.9, onde trato de influências da efetividade interacional sobre a atividade de cam-
po e sobre os rumos da pesquisa. Tais episódios giram em torno da minha inserção
nos Tipis; de uma tentativa, por parte de um novo conhecido, de me enquadrar naque-
la comunidade; da minha atuação diante de problemas com as águas ali consumidas;
das minhas interações com apicultores do lugar; das reuniões que convoquei para
conversas sobre as águas dos Tipis; da suspensão de registros ‘comprometedores’, à
época da atividade de campo. Além desses episódios, nas Seções 7.5.1 e 7.5.3 abor-
do a dinâmica do meu status interacional enquanto pesquisador-interlocutor-operador
de uma câmera filmadora, na fala-em-interação de uma reunião da Associação dos
Moradores dos Tipis.
23
De modo menos episódico essas influências se estenderam sobre toda esta
investigação, interagindo com o perfil teórico-analítico que continuei co-construindo
durante a interação com a comunidade, ao longo das análises dos dados e nas refle-
xões sobre essas análises. A co-construção desse perfil ou a minha emergência en-
quanto pesquisador está implicada, pois, na própria emergência deste trabalho.
A consideração do observador na configuração dos domínios de nossa exis-
tência é um tema crucial na obra de Humberto Maturana (1999b; 1999k) e constitui um
pressuposto importante no desenvolvimento desta investigação, como pode ser visto
no Capítulo 1 desta tese. Esse desenvolvimento também inclui uma atenção sobre
métodos de sondagem e seus objetos. Formulando uma tipologia desses métodos,
Lorenza Mondada (2005a) distingue dois extremos e um continuum de soluções entre
eles. Em um dos extremos estão as técnicas que privilegiam uma referência à acade-
mia e adotam uma lógica de laboratório. Entre os extremos da tipologia podem ser
observadas gradações na restrição e controle do contexto, na tentativa de exportar o
laboratório para o mundo. No outro extremo, estão as técnicas que privilegiam uma
referência ao campo e adotam uma lógica do fieldwork.
Nas pesquisas em que uma referência à academia é privilegiada, observa-
se uma primazia de hipóteses a serem testadas em experimentos. Os objetos são
definidos pelas hipóteses e modelos, efetivando assim uma dimensão deducionista do
fazer científico. Adota-se um ponto de vista exógeno, exterior ao objeto analisado. O
pesquisador define os fatos pertinentes, explicando-os e os descrevendo conforme os
modelos eleitos. Os fatos são considerados como se tivessem uma existência autôno-
ma, independente do pesquisador. Nessa perspectiva teórico-metodológica,
implementa-se uma naturalização do contexto social e uma imposição do contexto do
laboratório, numa tentativa de reduzir o mundo ao laboratório. A experimentação, a
convocação de informantes para o escritório dos pesquisadores e a exploração de
documentos bibliográficos e de arquivo constituem os principais mecanismos utiliza-
dos nessas técnicas (Mondada, 2005a).
Em práticas situadas nas regiões intermediárias do continuum tipológico há
uma imposição da agenda da pesquisa sobre a agenda dos atores. Os questionários,
as conversas (entretiens), as conversas não-diretivas (surveys), as grades de
codificação, atividades semi-experimentais (démarches), métodos de elicitação e di-
zeres solicitados constituem os principais mecanismos utilizados nessas técnicas (Mon-
dada, 2005a).
Nas pesquisas em que se privilegia uma referência ao fieldwok as hipóte-
ses e categorias são (re)elaboradas in situ, efetivando, assim, uma dimensão
inducionista do fazer científico. O pesquisador deve evitar as pré-concepções teóricas
e não tentar impor uma ordem, mas buscar descobri-la, descrevendo, de uma pers-
pectiva endógena aos atores e ao evento, o processo através do qual essa ordem é
24
instaurada na ação situada. Os fatos são definidos localmente como pertinentes e são
co-construídos pelo pesquisador e pelos indivíduos sondados, sendo interpretados
tanto pelo pesquisador quanto pelos indivíduos. Nesse fazer teórico-metodológico,
implementa-se o reconhecimento e a conservação do contexto social ordinário, na
tentativa de pôr o laboratório entre parênteses, momentaneamente. A agenda dos ato-
res é respeitada. A observação participante, a descrição a partir da tomada de notas,
os registros de atividades não provocadas pelo pesquisador, registros efetuados pelos
atores, métodos de registro e dizeres recolhidos constituem os principais instrumentos
dessas técnicas (Mondada, 2005a).
Já no início da formulação desta pesquisa eu estava advertido para a sensi-
bilidade das interações sociais às contingências contextuais, para o caráter local dos
sentidos co-construídos na ação discursiva. Contudo, foi na prática do campo que
esse tipo de instabilidade assumiu uma evidência constitutiva, realçando problemas
presentes no desenho inicial da pesquisa, decorrentes de uma definição prévia de um
fenômeno lingüístico-interacional a ser flagrado nas interações ordinárias. Durante o
trabalho de campo experimentei, portanto, esse problema na articulação entre a teo-
ria, a metodologia e a prática da pesquisa. No entanto, a adoção da estratégia de
registrar as mais diversas atividades da comunidade dos Tipis – especificada justa-
mente em função da expectativa de flagrar a retórica do esconjuro – também possibi-
litou ajustes focais, conceituais e metodológicos, ao longo da investigação.
Conversando e redefinindo o foco conteudístico da análise: do esconjuro para a
questão das águas
À época do trabalho de campo desta pesquisa, transcorriam debates em
torno das eleições para Prefeitos e Vereadores dos municípios brasileiros. Observei
vários episódios relacionados a tais eleições: predições dos resultados das urnas,
apostas em torno dessas predições, teimas apimentadas e, geralmente, bem
humoradas, tiradas espirituosas... Na Seção 6.4.2 invoco um desses episódios. Vou
ater-me aqui a um outro deles.
A minha inserção na comunidade dos Tipis vinha ocorrendo com as dificul-
dades e os avanços mais ou menos esperados no trabalho de um etnógrafo, relacio-
nados à construção e/ou ampliação de relações cooperativas. Como disse acima, eu
vinha registrando as mais diversas atividades da comunidade. No final de um dia co-
mum, chegando a um boteco onde alguns jovens bebericavam intermináveis doses de
cachaça e discutiam as eleições municipais, ouvi de um deles, dirigindo-se para um
outro: “Conte agora o que você dizia do candidato Y... O rapaz aqui tá gravando e
filmando tudo!”
25
Considerando a sutileza de aspectos éticos em jogo naquele momento e a
paixão com que os membros da comunidade vinham discutindo, quase guerreando, o
pleito eleitoral, decidi evitar registros nos quais um indivíduo pudesse se expor exces-
sivamente. Planejei retomar os registros em vídeo e/ou em áudio somente após as
eleições. Ainda assim, mantive uma rica convivência com membros da comunidade.
Aconteceu, então, de eu adoecer. Assim, após sentir, por assim dizer, na
minha própria pele, passei a ver e a ouvir, por outro prisma, em outro diapasão, que as
águas e seus (dis)sabores afloravam aqui e ali, nas conversas e em outras práticas
dos Tipis. Um aspecto particular da agenda própria dos habitantes daquela comunida-
de estava em pleno processo de se destacar para mim, como uma figura, sobre o
fundo das interações locais. Diante da recursividade desse tema, articulei-me com a
Secretaria de Saúde do Estado do Ceará e com o Serviço Autônomo de Água e Esgo-
to, em Iguatu para a realização de exames bacteriológicos e físico-químicos das águas.
Isto favoreceu um aumento da sua recorrência como tema das conversas cotidianas,
informais. Além disso, em quatro ocasiões, as águas guiaram interações entre pesso-
as da comunidade e uma Assistente Social, da Secretaria de Saúde. Por essa época,
fiz também registros de práticas de benzeção e de rezas, relacionados ao meu interes-
se inicial na retórica do esconjuro. Mas esses registros agora se conectavam a uma
mudança no foco conteudístico da minha observação. Tal mudança começava a emergir
no fluxo mesmo da pesquisa de campo e o conteúdo desse foco observacional volta-
va-se agora principalmente para a tematização das águas dos Tipis.
A situação acima relatada ilustra a interveniência da interação, na definição
da pertinência dos fatos, em um fazer científico inducionista, para o qual as hipóteses
e categorias são (re)elaboradas in situ, e não estipuladas previamente. Essa ocorrên-
cia gerou reflexões e um ajuste metodológico durante a fase de obtenção dos dados
primários. Ela ilustra, por exemplo, o modo como, na prática específica da pesquisa,
ocorreu um reconhecimento do contexto social ordinário, na tentativa de pôr o labora-
tório entre parênteses, momentaneamente. Ilustra também o modo pelo qual um res-
peito à agenda dos atores orientou mudanças na definição focal da investigação.
A mudança da retórica do esconjuro para a questão das águas foi motivada,
pois, pelos rumos que a dinâmica própria da comunidade imprimiu à pesquisa. Desne-
cessário lembrar que minhas orientações teóricas também eram favoráveis a mudan-
ças. Mas tratava-se justamente de uma mudança conteudística do foco. Assim, do
ponto de vista da definição do objeto de estudo, eu ainda orientava o meu olhar na
perspectiva de delimitar, prévia e especificamente, um fenômeno que seria registrado
em uma situação premeditadamente flagrante, a ser posteriormente analisada.
Foi nesse quadro que até o final da atividade de campo, em novembro de
2004, simultaneamente às fortes impressões pessoais e a algumas reformulações no
meu modo de olhar para as atividades cotidianas dos moradores dos Tipis, fiz anota-
26
ções de campo, registros em fita cassete e acumulei 9 horas de registros em vídeo,
sobre diversas atividades dos membros da comunidade. Estavam criadas as condi-
ções para uma delimitação do meu olhar analítico sobre as experiências do trabalho
de campo, incluindo as anotações e os registros em áudio e em vídeo.
Delimitando os Olhares: Etnografia e Análise Conversacional, na Comunidade
dos Tipis
De janeiro a julho de 2005, desenvolvi um estágio no Laboratório ICAR –
Interactions, Corpus, Aprentissages, Répresentations, em Lyon, na França, cujo eixo
fundamental de pesquisa
diz respeito à constituição de corpora de língua falada em
interação
v
. Nesse estágio, configurei as bases para análises dos registros em vídeo
obtidos na comunidade dos Tipis. Tais análises levaram em conta a perspectiva
emergentista que o meu quadro teórico permitia acomodar e que a experiência de
campo tornou evidente.
Foge ao escopo deste trabalho relatar a riqueza afetiva, interpessoal,
intercultural vivenciada durante esse estágio. Essa experiência também foi particular-
mente rica em diversos níveis de reflexão – teórico, metodológico, analítico. Ela pro-
porcionou formulações e reformulações – importantes para a emergência deste pes-
quisador e da pesquisa – das balizas desta investigação e, conseqüentemente, das
análises aqui apresentadas.
Olhar para os dados e para o processo de sua obtenção, acompanhando
simultaneamente o trabalho desenvolvido no ICAR, possibilitou-me operar distinções
entre os afazeres analíticos de uma descrição etnográfica e de uma descrição
etnometodológica. Tais distinções dizem respeito aos objetos de cada análise, aos
seus pressupostos metodológicos, bem como às descrições de fenômenos interacionais
humanos que cada uma pode proporcionar.
O reconhecimento do observador na configuração dos domínios de nossa
existência constitui uma base epistemológica dessas distinções (Maturana, 1999b,
1999k). Dessa perspectiva teórica, tanto os interactantes de uma atividade social quanto
um analista de registros dessas atividades podem ser reconhecidos como observado-
res. Os contextos dessas atividades, no entanto, são diferentes, conforme trato no
Capítulo 3. Assim, tanto uma descrição etnográfica quanto uma análise conversacional
de inspiração etnometodológica podem delimitar a linguagem como ação enquanto seu
objeto. No entanto essas descrições elegem centralmente diferentes observadores,
privilegiando, cada uma, pontos de vista diferentes, êmicos ou éticos.
v
Esse Estágio foi financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
CAPES, por meio do Programa de Doutorado no País com Estágio no Exterior – PDEE.
27
Um etnometodólogo produz um discurso que trata da inteligibilidade dos
atores sociais, no fluxo de suas ações. Um analista conversacional inspirado na
etnometodologia exibe a compreensão dos interactantes sobre o que eles próprios
estão fazendo na fala-em-interação. Ele elabora um discurso sobre os procedimen-
tos, as formulações e reformulações co-contruídas pelos participantes, na própria
interação. Isto caracteriza tal análise conversacional como uma descrição dita êmica.
Ela retrata um ponto de vista dos participantes da ação, aquilo que eles fazem quan-
do dizem o que dizem. Enquanto estruturadores-em-ação da ação, para usar um
termo de Maturana (1999c), esses participantes são também analistas, conscientes
ou não, do que ocorre. Assim, como Garfinkel (1967) aponta, antes de se tornar um
observável para o analista, os procedimentos dos interactantes são tornados públi-
cos, intersubjetivamente, por esses mesmos participantes. A característica ordena-
da da conversa é, portanto, uma preocupação dos interactantes, antes mesmo de
ser um objeto do analista.
Um etnógrafo, por sua vez, produz um discurso que exibe a sua própria
compreensão sobre o que os outros fazem. Ele elabora um discurso sobre o dis-
curso do outro. Isto caracteriza uma etnografia como uma descrição ética, cuja
distinção de uma descrição êmica trato na Seção 3.3.1.5. Uma etnografia retrata o
que o analista diz sobre o que os membros de uma ordem social dizem, exibindo,
portanto, um ponto de vista desse observador-analista da ação, a sua “própria
construção das construções de outras pessoas”, no dizer de Geertz (1989b: 7). O
etnógrafo considera a ação social como uma rede de estruturas superpostas de
inferências e implicações. A sua interpretação busca inter-relações entre essas
estruturas, ao considerar, multiplamente, ações e fatores sócio-culturais da comu-
nidade descrita.
Diferenças entre uma etnografia e uma análise conversacional de inspira-
ção etnometodológica, no entanto, não eliminam a possibilidade de que seja mantida
uma atenção para a dimensão emergencial dos fenômenos relacionais, esteja o ana-
lista operando a partir de um ponto de vista ético ou de um ponto de vista êmico.
Consciente de que o antropólogo é alguém que discorre sobre o discurso do outro,
Viveiros de Castro (2002: 113 e 116-117) distingue – e escolhe entre – dois modos de
“jogar” o conhecimento antropológico.
De um lado, temos uma imagem do conhecimento antropológico como
resultando da aplicação de conceitos extrínsecos ao objeto – sabemos
de antemão o que são as relações sociais, ou a cognição, o parentes-
co, a religião, a política etc, e vamos ver como elas se realizam, é
claro, pelas costas dos interessados. De outro (e este é o jogo aqui
proposto), está uma idéia do conhecimento antropológico como envol-
vendo a pressuposição fundamental de que os procedimentos que
caracterizam a investigação são conceitualmente da mesma ordem
28
que os procedimentos investigados
vi
. Tal equivalência no plano dos pro-
cedimentos, sublinhe-se, supõe e produz uma não-equivalência
radical de tudo o mais. Pois, se a primeira concepção de antropologia
imagina cada cultura ou uma sociedade como encarnando uma solu-
ção específica de um problema genérico – ou como preenchendo uma
forma universal (o conceito antropológico) com um conteúdo particular
–, a segunda, ao contrário, suspeita que os problemas eles mesmos
são radicalmente diversos; sobretudo ela parte do princípio de que o
antropólogo não sabe de antemão quais são eles.
Sintetizando o quadro que aqui venho tentando compor: o desenvolvimento
desta pesquisa trouxe à mão uma espécie de paradoxo, alojado no desenho inicial do
trabalho. Esse paradoxo foi um dos alvos dos ajustes efetuados ao longo da pesquisa.
Lidar expressamente com ele foi coerente com uma concepção do fazer científico
como uma atividade sócio-cultural situada e com um fazer científico focado em uma
referência ao fieldwok. Tais ajustes não se caracterizaram, portanto, como acidentes,
relativamente ao plano geral da investigação. Eles ocorreram na efetividade lingüístico-
interacional da pesquisa, configurando uma efetividade do próprio quadro teórico per-
tinente ao meu domínio de ação científica. A ancoragem teórico-analítica – levada a
cabo na experiência no ICAR e interligada com as fases de minha formação teórica e
com a prática do campo – favoreceu o abandono do objetivo de descrever um fenôme-
no previamente estipulado. Favoreceu também a definição de um duplo olhar analítico
para esta tese:
uma descrição etnográfica da comunidade dos Tipis, a partir de obser-
vações que emergiram ao longo do trabalho de campo e ;
uma análise dos procedimentos através dos quais os interactantes fa-
zem emergir a atividade reunião da Associação dos Moradores dos Tipis.
A Estrutura da Tese
Abordar fenômenos relacionais observáveis no viver comunitário dos Tipis,
para uma análise que integre inter-relações entre linguagem, cognição e cultura, impli-
ca delimitar o domínio de atuação teórica do observador e as ferramentas do seu
afazer científico. Esses aspectos, por sua vez, estão implicados, explícita ou implicita-
mente, com concepções sobre os modos como fazemos ciência e fornecemos expli-
cações científicas; como entendemos os organismos vivos em geral e os seres huma-
nos em particular; como explicamos os fenômenos cognitivos humanos; como
vi
“É assim que interpreto a declaração de Wagner (1981:35): “Estudamos a cultura através da cultura e,
portanto, as operações, sejam quais forem, que caracterizam nossa investigação devem ser também
propriedades gerais da cultura.” Nota de Viveiros de Castro (2002).
29
concatenamos as relações dos homens com outros homens e com o meio; como inter-
pretamos a cultura e seus papéis na definição dos afazeres humanos; como descreve-
mos o linguajar humano. A Parte I desta tese delimita um conjunto de teorias e ferramen-
tas implicadas com essas concepções.
Reflexões interdisciplinares proporcionadas pelo trabalho de pensadores
de campos diversos como a Biologia, a Filosofia, a Antropologia, a Sociologia, a Lin-
güística são acionadas nesta tese para uma compreensão da linguagem como uma
atividade constitutiva do mundo e como uma ação social situada. Essas reflexões
possibilitam explicitarmos nexos entre diversos domínios experienciais correlacionados
com atividades lingüísticas efetivas, considerando uma sensibilidade à especificidade
de aspectos biológicos, sócio-culturais e históricos envolvidos nas atividades lingüístico-
interacionais. Esses domínios de experiências dizem respeito a vários conjuntos de
condições segundo os quais a linguagem e as atividades interativas parecem funcio-
nar como parecem, emergindo de modo contingente às condições de sua efetivação.
Assim, no Capítulo 1, A Biologia do Conhecer, apresento elementos do con-
junto teórico produzido pelo biólogo chileno Humberto Maturana e colaboradores, su-
ficientes para o que aqui me proponho a discutir. Essa teoria propicia reflexões
epistemológicas que nos levam a uma compreensão particular de atividades lingüísti-
cas culturalmente situadas. Ela distingue e inter-relaciona os domínios da fisiologia e
do comportamento, concebendo a constituição do que denominamos realidade, inclu-
sive a linguagem, a cognição e a cultura, como fenômenos relacionais comportamentais,
decorrentes do viver dos seres humanos como um entrelaçamento das histórias
filogenética e ontogenética dos indivíduos.
A Biologia do Conhecer concebe linguagem como coordenações de coor-
denações de ações. Essas coordenações são conotadas nos recursos comunicacionais
e lingüísticos para os quais damos atenção. A linguagem é vista, portanto, como um
fenômeno sistêmico, que se estabiliza a partir de histórias recursivas de interações
dialógicas. Na efetividade dessas interações, a linguagem ocorre em uma estabilidade
dinâmica. Ela ocorre de modo emergente e contingente aos contextos nos quais os
atores sociais trazem à mão seus mundos de objetos consensuais. Isto caracteriza as
descrições e preocupações desse conjunto teórico como pertinentes para uma com-
preensão não-reducionista e dinâmica de fenômenos relacionais. Adoto, pois, a Biolo-
gia do Conhecer como domínio explicativo e como ponto de referência a partir do qual
avalio as demais abordagens teóricas agenciadas nesta tese para o exame de obser-
vações do viver da comunidade dos Tipis.
Os estudos sobre a interação social humana têm tido a possibilidade de se
beneficiar do pensamento sobre a linguagem como um esforço interdisciplinar. No
Capítulo 2, O tratamento polêmico da linguagem como ação, delimito um percurso
teórico que sinaliza a emergência desse pensamento, por parte de filósofos, lingüis-
30
tas, antropólogos e outros estudiosos. Assim, examino argumentos para a consideração
da performatividade social enquanto uma perspectiva legítima para uma reflexão
explicativa sobre a linguagem e levo em conta contribuições, críticas, desafios e exten-
sões teóricas e analíticas que atuam como balizas na descrição de atividades sócio-
interacionais e lingüísticas observadas na comunidade dos Tipis. Esse exame é feito a
partir da referência epistemológica que orienta este trabalho, configurada em pressu-
postos formulados na Biologia do Conhecer.
No Capítulo 3, O tratamento polêmico da linguagem como interação, apre-
sento uma especificação do pensamento sobre a linguagem como ação, agora olhada
em termos dos procedimentos dos participantes de ações sociais. As práticas sociais
são tomadas, pois, como uma alternativa para abordagens de problemas teóricos rela-
cionados à cognição, ao significado e à ordem social, tradicionalmente descritos em
termos de regras, referência e individualismo.
O caráter procedural da abordagem garfinkeliana beneficia-se de pres-
supostos e métodos da elaboração situada propostos por Alfred Schutz, favore-
cendo uma triangulação entre proposições da fenomenologia, formulações própri-
as da Etnometodologia e descrições da Biologia do Conhecer. A proposição de
Garfinkel compreende o que denominamos realidade enquanto resultante de ati-
vidades ontológicas constitutivas de objetos e considera a inteligibilidade dos su-
jeitos sociais na co-construção dos saberes. Em uma relação de afinidade com
pressupostos da Biologia do Conhecer, a Etnometodologia leva em conta o caráter
situado, emergente e contingente das ações sociais, incluindo os domínios de pro-
dução e validação dos saberes científicos, como também o papel das atividades
linguajeiras no desenvolvimento de todos esses processos. Assim, no Capítulo 3,
situo o domínio de investigação da fala-em-interação iniciado pelo pesquisador
norte-americano Harvey Sacks, delimitando-o relativamente a outras análises. Desse
modo, discuto como a Análise Conversacional de inspiração etnometodológica
movimenta o status empírico da teorização e define seu objeto, suas unidades de
análise e o tipo de dados com que opera. Com isto, especifico essa corrente teóri-
co-analítica como um modelo que articula dimensões dinâmicas observáveis nos
fenômenos relacionais que descrevemos como linguagem, cognição e cultura, na
perspectiva de analisar a fala-em-interação dos participantes de uma reunião da
Associação dos Moradores dos Tipis.
A fala-em-interação dos participantes dessa reunião é vista como um com-
plexo de atividades coletivas, orientadas para uma inteligibilidade situada, voltada para
os fins práticos que emergem nessas atividades. A ação dos participantes é descrita
enquanto uma dimensão argumentativa, perspectiva, engajada, que seleciona, reor-
ganiza, retoma, restabelece, configura dinamicamente um processo de referenciação
a um mundo co-construído (Mondada, 1998a: 139).
31
No Capítulo 4, articulo aspectos teóricos e experiências de pesquisa que
orientaram as opções metodológicas, discutindo a atuação do pesquisador, dos sujei-
tos pesquisados e das tecnologias, na configuração dos dados. Ainda, caracterizo os
dados primários e secundários a partir dos quais ou sobre os quais foram feitas as
análises que compõem a segunda parte deste trabalho.
A Parte II desta tese apresenta análises nas quais tomo o viver e o linguajar
da comunidade dos Tipis em termos de inter-relações entre linguagem, cognição e
cultura. No Capítulo 5 apresento uma descrição etnográfica dos Tipis, reportando-me
às seguintes questões:
Que comunidade é essa, a comunidade dos Tipis? Que nexos históricos
com os grupos étnicos que atuaram na formação social cearense são
sugeridos por esse grupo social? Que práticas culturais desse grupo
social se conectam com outros conjuntos de práticas de outros grupos?
Como os afazeres dos membros dessa comunidade podem ser descri-
tas relativamente a afazeres de membros de outras comunidades com
as quais, de algum modo, se inter-relacionam? Em que termos podemos
falar de particularidades desses afazeres?
Como vive a comunidade dos Tipis? Que compreensões dos seus mo-
dos de viver podem ser produzidas a partir de aspectos relacionais ali
observados?
Que interpretações da dinâmica do viver da coletividade dos Tipis po-
dem ser elaboradas a partir de suas atividades lingüístico-interacionais?
Como o viver dessa coletividade configura suas interações lingüísticas
e, reflexivamente, como suas interações lingüísticas configuram o seu
viver?
A descrição científica de aspectos relacionados à linguagem, à cognição e
à cultura gera referências básicas, que podem ser vistas como abstrações dos modos
de viver dos grupos sociais descritos. A assunção dos pressupostos de um desses
modelos leva à análise de identidades, alteridades ou variabilidades intraculturais ou
transculturais de comunidades inseridas nos grupos sociais geradores dessas refe-
rências ou em grupos distintos. Por outro lado, críticas e/ou ajustes a um modelo - por
exemplo, a alguma postulação de universalidade - podem ser produzidas a partir de
análises ou de uma comunidade distinta daquelas onde as referências foram geradas
ou de uma comunidade semelhante. Em estudos de antropologia urbana, por exem-
plo, as comunidades pesquisadas inserem-se em grupos sociais geradores das refe-
rências de análise (Velho, 1999a, 1999b, 2003b, 2003c). Esses trabalhos suscitam
preocupações teórico-metodológicas relacionadas à inserção do pesquisador no gru-
32
po pesquisado, preocupações essas que Velho (2003a) denomina o desafio da proxi-
midade. Reflexões teórico-analíticas que sustentam ou reformulam ou geram concep-
ções de linguagem, cognição e cultura podem surgir, pois, tanto em estudos que
enfocam grupos sociais particulares no interior de comunidades de referência, quanto
naqueles que analisam grupos “exóticos”. Nos dois casos, semelhanças e/ou
dessemelhanças podem ser indicadas a partir de contrastes como desvio e comporta-
mento desviante (Velho, 2003a), ocidental vs não-ocidental, urbano vs não-urbano,
local vs não-local (Foley, 1997).
A descrição da comunidade dos Tipis, no entanto, não se apóia em uma
polarização dicotômica, na qual os pares de cada dicotomia são auto-excludentes. O
estabelecimento de correlações entre aspectos diversos do viver nessa comunidade,
interpretados nas suas inter-relações entre o urbano e o rural ou, mais genericamente,
entre o local e o não-local ou global, possibilita atribuirmos particularidades aos modos
de viver desse grupo. Essas particularidades decorrem da observação de aspectos
sociais, econômicos, geográficos que se configuraram nas, e foram configurados pelas,
interações sócio-culturais e lingüísticas ordinárias e/ou institucionais, recursivas, co-
construídas ao longo da história dessa comunidade, que inclui sua história de relações
com outras comunidades. Assim, as caracterizações desse agrupamento de pessoas
não devem ser vistas como reduções das complexidades sócio-históricas por elas
vivenciadas.
Alguns comportamentos lingüístico-interacionais observados na comunida-
de dos Tipis assemelham-se a comportamentos cujas referências não são exclusiva-
mente locais. Por outro lado, essa comunidade também exibe práticas sócio-culturais
e lingüísticas de cuja análise depreendo especificidades que suscitam uma referência
de caráter local. Essas especificidades configuram-se na inter-relação entre os diver-
sos fatores que compõem tanto os padrões históricos da ação comunicativa daquela
comunidade como ações específicas observadas. Assim, a descrição da comunidade
dos Tipis não pressupõe dicotomias estritas, “ingênuas e equivocadas”, no dizer de
Duranti (1997: 23), como nós vs eles ou letrado vs iletrado ou as dicotomias anterior-
mente mencionadas.
A partir de uma perspectiva não-reificadora, no escopo de uma objetividade
entre parênteses, os objetos descritos no Capítulos 5, sobre o viver da comunidade
dos Tipis, não devem ser vistos como um suposto “real” fundamento das coisas, uma
vez que eles são propostos como o discurso de um observador, sobre práticas que
resultam de relações complexas, locais e não-locais, que criam o que, enquanto um
observador, vi ocorrer no viver daquela comunidade.
No Capítulo 6, apresento uma análise conversacional de uma reunião da
Associação de Moradores dos Tipis, reportando-me às seguintes questões:
33
Como os participantes da reunião da Associação dos Moradores dos Tipis,
ao falarem, por assim dizer, todos ao mesmo tempo, organizam as
atividades interativas do evento registrado? Como reconhecem o que os
outros estão fazendo, no desenvolvimento do campo interacional?
Que objetos discursivos eles co-constroem dinamicamente nessa ativi-
dade?
Como o objeto “reunião da Associação de Moradores” foi instaurado pelos
participantes?
Retomando um argumento apresentado acima, considero que a assunção
dos pressupostos de uma referência teórica básica, vista como uma abstração dos fenô-
menos observados, pode levar à análise de aspectos das práticas culturais que podem
ser tratados como genéricos ou como implementações efetivas e particulares.
O sistema de troca de turnos presente no sistema de troca de fala denomi-
nado conversa é visto pela Análise Conversacional de inspiração etnometodológica
como um fenômeno social que se apóia no caráter inteligente e inteligível das ações
coletivas do seres humanos. Esse agir se dá sob uma pressuposição de reciprocidade
em decorrência da qual as impressões de sentido são adotadas pelos atores. Aspec-
tos genéricos da conversa ordinária são comportamentos observáveis, sendo, portan-
to, objetos públicos, decorrentes do fato de constituirmo-nos enquanto seres humanos
em histórias de agrupamentos sociais para os quais uma ação de um indivíduo é algo
responsivo a uma outra ação de outro indivíduo. Assim, à semelhança do que pode-
mos ver em trabalhos organizados por Drew & Heritage (1992), sobre a interação no
trabalho ou a interação institucional, a conversa ordinária e o sistema de troca de
turnos descritos por Sacks, Schegloff & Jefferson (1974) são tomados aqui como base
de comparação para análises das atividades interacionais da reunião da Associação
dos Moradores dos Tipis.
A mesma perspectiva não-reificadora, acima referida, no escopo de
uma objetividade entre parênteses, orienta que as descrições dos procedimentos
lingüístico-interacionais da reunião da Associação dos Moradores dos Tipis não
devem ser vistas categoricamente. Com efeito, os dados primários de segunda
ordem que deram origem a tais análises podem ser utilizados para outras análi-
ses competitivas.
Os pressupostos teóricos, epistemológicos, analíticos delimitados nesta tese
atuaram na configuração das minhas crenças e do meu olhar analíticos. Assim, os
modelos explicativos e as explicações delimitadas são ferramentas escolhidas por mim,
em decorrência de atribuírem legitimidade às perguntas e um poder explanatório par-
ticular às respostas formuladas ao longo da investigação, em uma associação com as
evidências empíricas fabricadas nesse exercício científico.
34
O caráter processual da incorporação paulatina, a esta investigação, dos su-
portes teóricos e metodológicos aqui expostos sugere a minha emergência enquanto
pesquisador, na emergência da própria pesquisa. Tais emergências decorrem do cará-
ter dinâmico e sistêmico da minha formação teórica balizada pela Biologia do Conhecer
e pela Análise Conversacional de inspiração etnometodológica, como também da
efetividade do meu trabalho de campo, consubstanciado em uma vivência comunitária
nos Tipis.
PARTE I
ELABORANDO O OLHAR PARA INTER-RELAÇÕES ENTRE
LINGUAGEM, COGNIÇÃO E CULTURA
36
CAPÍTULO 1 – A BIOLOGIA DO CONHECER
1.1 A Biologia do Conhecer: Um Mecanismo Explicativo para a Fenomenologia
Humana
A Biologia do Conhecer caracteriza-se como uma teoria do viver e do obser-
var, fornecendo um mecanismo gerativo cujo movimento produz, dentre outros fenôme-
nos, os organismos vivos em geral, incluindo os seres humanos, e os fenômenos que
observamos no domínio de sua existência. A fenomenologia humana é explicada por essa
teoria como o fruto de uma relação histórica e dinâmica entre a fisiologia e a conduta ou
comportamento. Enquanto um mecanismo gerativo, a Biologia do Conhecer é uma teoria
científica. Enquanto uma reflexão sobre os modos de viver e de conhecer, na relação dos
seres humanos com outros seres, em um meio, é uma reflexão filosófica, epistemológica
(Maturana, 1978, 1988a-b,1990a-b, 1995, 1998, 1999a-k, 2001a-e; Maturana & Varela,
1972, 1984; Maturana, Mpodozis & Letelier, 1995).
O conjunto teórico da Biologia do Conhecer inclui pressupostos ontológicos
e epistemológicos tomados nesta tese como balizas que orientam tanto o olhar sobre
outras teorias e explicações científicas para linguagem, cognição e cultura, quanto as
escolhas de ferramentas fornecidas por essas teorias, para o propósito de descrever
observações da comunidade dos Tipis, em termos de uma etnografia e de uma análise
conversacional stricto sensu.
Neste Capítulo, volto-me para formulações teóricas da Biologia do Conhe-
cer tais como uma distinção entre os seres autopoiéticos e as máquinas; o determinismo
estrutural; o papel do observador nas atividades ontológicas e epistemológicas
constitutivas dos objetos da realidade; a distinção fenomênica e a congruência
operacional dos domínios da fisiologia e do comportamento; a cognição como proces-
so decorrente da congruência operacional de seres autopoiéticos em acoplamentos
estruturais; a linguagem como coordenações de coordenações de ações; a cultura
como padrões históricos de ações comunicativas. Além desses, outros fenômenos
não tratados aqui, também decorrentes do acoplamento estrutural dinâmico dos seres
vivos no meio, como o psíquico, o mental, o espiritual, a autoconsciência, a questão da
objetividade, são gerados a partir do mecanismo explicativo proposto pela Biologia do
Conhecer (Maturana, 1999a). No Anexo 1, apresento um glossário com descrições de
termos desse mecanismo explicativo.
As formulações da Biologia do Conhecer tratadas neste Capítulo são consi-
deradas relevantes para uma compreensão e/ou discussão de esforços teóricos que
se voltam para inter-relações entre linguagem, cognição e cultural e que são aqui agen-
ciados para abordar a observação da comunidade dos Tipis.
37
1.2 A Teoria da Autopoiese
Maturana & Varela (1972; 1984) elaboraram o que à época foi denominado
de Teoria da Autopoiese, um modelo explicativo sobre o que os seres vivos são, con-
cebendo linguagem, cognição e cultura para além de suas manifestações de
pertencimento sociológico. Esses autores correlacionaram tais fenômenos entre si e
com a fisiologia humana e os distinguiram dela. Seus textos expressam uma concep-
ção sistêmica da fenomenologia dos seres vivos, com a particular característica de
não reificar os fenômenos relacionais.
Assim, para a Biologia do Conhecer, fenômenos relacionais como a lingua-
gem e a cultura surgem em processos de distinção de relações peculiares entre seres
vivos e o meio. A partir daí, tratamo-los como objetos, como abstrações dessas confi-
gurações relacionais. Particularmente no caso da cognição, ela é descrita como uma
atividade do ser vivo no meio. Nessa atividade surgem os objetos e as relações entre
objetos e sua estabilização enquanto tais.
A propósito do trabalho de Maturana, Magro (1999a: 11-12) observa que
a insistência no modo de raciocinar parece [...] crucial para a compre-
ensão da novidade [dos seus textos e que] apesar de [ele] ser um
teórico criativo, capaz de ilustrar suas idéias com exemplos vívidos e
analogias notáveis, seu estilo é rigoroso e não raro denso, de uma
circularidade que por vezes incomoda, mas que é preciso ser compre-
endida como indissociável de seu próprio pensamento.
Nos anos 60 de Século XX, havia um predomínio de abordagens
computacionais para fenômenos cognitivos e lingüísticos. Assim, em uma espécie de
reação à predominância teórica, Maturana & Varela (1972; 1984) distinguiram os se-
res vivos das máquinas a partir de um tipo particular de organização celular que deno-
minaram de organização autopoiética. Para eles, as máquinas são realizadas como
sistemas alopoiéticos, sistemas mecânicos, produzidos por outros, havendo sempre
alguém que os programa, que os informa, para executarem uma determinada tarefa.
Os seres vivos, por sua vez, realizam-se como sistemas autopoiéticos, sistemas dinâ-
micos e históricos, que produzem a si mesmos.
Conforme essa teoria, os sistemas autopoiéticos são fechados para
interações instrutivas do meio. O meio não causa mudanças no funcionamento de um
sistema autopoiético, mas, no encontro entre ser vivo e meio, eventos particulares
podem desencadear tais mudanças. Com efeito, dos vários eventos que um observa-
dor pode distinguir em nossas interações em um meio particular de ações, apenas
alguns podem gerar relações que os autores chamam de perturbações. As perturba-
ções mudam o curso das mudanças estruturais que ocorrem continuamente na dinâ-
mica fisiológica do organismo, incluindo o sistema nervoso.
38
A restrição aos eventos que podem desencadear perturbações é decorrente
do determinismo estrutural, ou seja, de uma dinâmica de funcionamento estrutural
acoplado ao meio. Segundo tal dinâmica, aquilo que ocorre a um organismo, enquanto
ele conserva suas propriedades estruturais e sua congruência com o meio, ocorre no
âmbito das características estruturais desse organismo. As restrições quanto ao que
pode ser uma perturbação para um organismo resultam, simultaneamente, da história
da espécie a que o indivíduo pertence e da sua história de vida. O que pode ser uma
perturbação, a cada momento, na dinâmica dos seres vivos, depende, portanto, da
articulação entre filogenia e ontogenia, como também do instante estrutural em que se
dá o encontro entre ser vivo e o meio.
Se ocorre uma perturbação que altera a dinâmica estrutural do ser vivo, ao
mesmo tempo em que seu modo de organização autopoiética e seu acoplamento
estrutural se conservam, ele segue vivendo de modo congruente com o meio, de ma-
neira adequada ao seu viver. Se, ao contrário, ocorre um evento que leva o organismo
a perder sua organização autopoiética e sua congruência com o meio, então ele se
desintegra, ele morre. A essas relações os autores dão o nome de interações destrutivas.
Assim, as mudanças estruturais de um organismo, sendo congruentes com
as transformações que ocorrem no domínio operacional de suas ações, são determi-
nadas pelas próprias características estruturais desse organismo.
Na dinâmica de acoplamento estrutural entre organismo e meio, o organis-
mo e o meio surgem juntos. As entidades do mundo surgem em contínuas atividades
constitutivas de domínios consensuais. Os organismos fazem surgir esses objetos
consensuais através de operações de distinção que especificam tanto essas entida-
des quanto seu domínio existencial. Em ordens sucessivas de distinções, no linguajar,
os seres humanos trazem à mão os mundos – os objetos, incluindo a própria consci-
ência de si mesmos e o meio, com os quais e nos quais atuam conjuntamente. Esses
mundos de objetos não existem independentemente da constituição biológica dos se-
res humanos e de suas atividades cognitivas, lingüísticas, históricas, culturais.
A Teoria da Autopoiese constitui, pois, uma explicação dos seres vivos que
não comporta sua concepção em termos de máquinas lógico-computacionais, do modo
como foi feito pelas Ciências Cognitivas, especialmente nos seus primeiros anos,
conforme abordagens históricas das ciências cognitivas assinalam (Dupuis, 1996;
Gardner, 1985; Magro, 1999b). Maturana & Varela (1972, 1984) nos convidaram a dirigir
um olhar particular para o nosso presente de seres vivos como o presente de duas histórias
entrelaçadas: a filogenética e a ontogenética. Com isso, é também particular o olhar
histórico e dinâmico para a fenomenologia biológica e relacional que podemos observar
no encontro entre o ser vivo e o meio, ao longo de sua existência.
39
Em meados dos anos 80, tomando por base o mecanismo explicativo pro-
posto na Teoria da Autopoiese, Maturana e colaboradores, agora sem a participação de
Francisco Varela, passaram a desenvolver a Biologia do Conhecer. Sob esse título,
Maturana dedicou-se em especial às conseqüências daquela visão particular dos or-
ganismos para a compreensão dos fenômenos cognitivos, lingüísticos e sociais, ex-
plorando assim a reflexão sobre os seres humanos e seu mundo.
1.3 A Emergência dos Mundos Consensuais dos Observadores
Uma das conseqüências da visão autopoiética dos organismos é a
postulação de que não há um mundo independente dos seres que conhecem e nele
vivem. Dessa postulação, por sua vez, decorrrem uma fecunda distinção de caráter
epistemológico e com implicações científicas, políticas.
Sendo dependente dos sujeitos que o enunciam, o mundo configurado na
linguagem e como linguagem não pré-existe à existência do observador e ao seu ato
cognitivo básico de distinguir. Com esse ato, o observador especifica, simultaneamen-
te, o objeto e o meio do qual ele o destaca nessa atividade. Todas as distinções,
referências, explicações e afirmações são feitas por ele.
Tudo é dito por um observador, a um outro observador, que pode ser ele
mesmo (Maturana, 1999b: 53), diz um dos axiomas que orientam nosso olhar quando
estamos operando de acordo com o modo teórico de ver acima especificado. Tal axio-
ma implica não só a inexorável presença do(s) observador(es) em qualquer afirmação
sobre sua experiência de viver um mundo com outros, como também traz à luz a
importância da linguagem nos afazeres humanos. A realidade, então, configura-se
como “um domínio no qual entidades surgem através de coerências operacionais do
observador que o constitui” (Maturana, 1999k: 255). Conforme essa visão, não faze-
mos referência a nada cuja existência seja supostamente independente de nós mes-
mos, os seres que distinguem e nomeiam os objetos.
Na pergunta sobre as habilidades cognitivas humanas, um cientista ou um
filósofo pode postular a existência de uma realidade que é única e independente de
nós mesmos. Para esse cientista ou filósofo, cabe à reflexão desvendar tal realidade
independente, ainda que ela esteja encoberta por filtros, ainda que sua “essência” não
seja dada ao nosso conhecer. A esse modo de fazer ciência ou filosofia Maturana
(1999k: 248-255; 2001b) chamou Domínio das Ontologias Transcendentes ou Cami-
nho Explicativo da Objetividade sem Parênteses.
Conforme Maturana (1999d: 80) observa, temos uma experiência diária de
circularmos em um mundo cuja existência parece não depender de nós. Em decorrência
disso, habitualmente desprezamos situações de ilusões e alucinações, porque, nesses
casos, a presença dos objetos que distinguimos parece depender do nosso ato de
40
distingui-los. Nossa experiência de viver assim coincide com o fato de que, na linguagem,
ocorre de operarmos com objetos como se eles existissem independentemente de nossas
ações. Os cientistas que se situam no Domínio das Ontologias Transcendentes, por
sua vez, em consonância com as decorrências da nossa experiência de viver em um
mundo de objetos independentes, vêem a ciência como um domínio no qual o
conhecimento é objetivo, direta ou indiretamente acessível à percepção. Nesse Domínio,
considera-se que aquilo que valida a explicação científica é algo objetivo, observado no
seu sucesso operacional.
Na Biologia do Conhecer, a consideração do observador, ou seja, a pergun-
ta por uma explicação biológica das suas habilidades cognitivas define o Domínio das
Ontologias Constitutivas ou o Caminho Explicativo da Objetividade entre Parênteses
(Maturana, 1999b; 1999d; 1999k; 2001a; Graciano & Magro, 1999). Conforme Maturana
(1999k: 251), nesse caminho:
a existência é constituída com o que o observador faz, e o que o obser-
vador faz traz à mão objetos que ele ou ela distingue em suas opera-
ções de distinção, como distinções de distinções na linguagem. Além
disso, os objetos que o observador traz à mão em suas operações de
distinção surgem dotados de propriedades que realizam as coerências
operacionais no domínio da práxis do viver no qual são constituídos.
Uma decorrência epistemológica e política do Caminho Explicativo da Ob-
jetividade entre Parênteses – que se associa à postulação de que os mundos, os
objetos consensuais, são dependentes dos seres que conhecem e nele vivem – esten-
de-se, por exemplo, a uma descrição das explicações científicas segundo a qual elas
não são intrinsecamente válidas ou melhores do que outras explicações geradas em
outros domínios de ação dos seres humanos. Elas são adequadas ao domínio de
ação no qual são efetivadas “e se relacionam com as coordenações operacionais dos
membros dessa comunidade, em circunstâncias nas quais são membros dessa comu-
nidade as pessoas que usam e aceitam [o critério de validação por elas estabelecido]”
(Maturana, 1999d: 83). Desse modo,
as explicações científicas são mecanismos gerativos, isto é, são pro-
posições de processos que dão origem aos fenômenos a serem expli-
cados como resultado de seu operar e são aceitas como tais na comu-
nidade dos cientistas na medida em que satisfazem, com outras con-
dições [consideradas como o método científico], o critério de validação
das afirmações científicas estabelecidas por essa mesma comunida-
de (Maturana, 1999d: 81).
Os aspectos do mecanismo explicativo da Biologia do Conhecer tratados
nesta Seção trazem para o campo da ação social, das escolhas políticas e culturais, a
atribuição de um valor especial ou intrinsecamente superior às explicações científicas,
41
ao permitir entendermos a validade científica em termos de uma conduta adequada,
mas não em termos de um valor absoluto para qualquer domínio de ação. “A conduta
adequada é a conduta que é congruente com as circunstâncias nas quais ela se reali-
za” (Maturana, 1999b: 62). Assim, considerando a existência de muitos domínios pos-
síveis de ação, o que é validado em um domínio pode não sê-lo em outro. Essa valida-
ção se dá como uma adequação condutual, como escolhas que os membros de uma
comunidade fazem, e não se refere a uma propriedade intrínseca do que é validado.
Nas Seções que seguem são abordados aspectos aqui considerados im-
portantes para uma compreensão da postulação, gerada pelo mecanismo explicativo
formulado pela Biologia do Conhecer, de que os mundos são dependentes dos seres
que conhecem e nele vivem, surgindo em atividades cognitivas de distinções consensuais,
em coordenações de coordenações de ações consensuais dos seres vivos. Também
são abordadas decorrências de tal postulação, em termos do modo como, nesta
investigação, estou entendendo linguagem, cognição e cultura.
1.4 Fisiologia e Conduta: Domínios Distintos e Mutuamente Gerativos
Como foi dito anteriormente e em consonância com a Teoria da Autopoiese,
a Biologia do Conhecer descreve o organismo humano como um sistema determinado
estruturalmente, operacionalmente fechado para instruções do meio. Nos organismos
que dispõem de sistema nervoso, a relação organismo-meio se dá da mesma forma,
uma vez que o sistema nervoso é concebido nessa teoria como sendo também
operacionalmente fechado a instruções do meio. No dizer de Maturana (1999d: 110-
112), nosso aparelho sensorial funciona como uma rede neuronal fechada e, enquanto
tal, não capta informação ou instrução do meio, apenas promove mudanças neuronais
cabíveis no encontro entre ser vivo e meio. Se concordo com essa descrição, tenho
como conseqüência a compreensão de que, constitutivamente, não operamos com
representações mentais do meio nem precisamos delas para conhecer.
O nosso processo de sermos humanos ocorre em dois domínios de existên-
cia que fluem juntos, de maneira estruturalmente acoplada, embora sejam domínios
operacionalmente distintos, que não se intersectam: o domínio da nossa fisiologia e o
domínio de relação – que um observador vê como um domínio de conduta ou modo de
vida (Maturana, 1998; 1999a; 2001a). Um domínio, no entanto, não é explicável em
termos do outro. Eles devem ser compreendidos cada um em sua própria legitimidade
(Maturana, 1999e).
Maturana afirma então que os fenômenos e processos dos domínios da
fisiologia e da conduta não pertencem um ao outro, embora exista uma relação gerativa
entre eles: a dinâmica fisiológica de um organismo no meio dá origem ao ser vivo
como uma totalidade. A conduta surge como resultado dessa dinâmica. Além disto, e
42
ainda como uma postulação do determinismo estrutural, tudo aquilo que um ser vivo pode
fazer em um meio depende inteiramente da sua fisiologia, ou seja, está determinado por
sua estrutura. Por sua vez, a fisiologia que dá origem à conduta é modulada pela dinâmica
comportamental, que é um processo de interações de um organismo biológico. Fisiologia
e conduta, portanto, configuram-se mutuamente, reflexiva, recursiva e historicamente. Uma
abordagem do surgimento na nossa biologia como uma construção que é, a um só tempo,
biológica, social e cultural, é o que também podemos ver nos trabalhos desenvolvidos
em seus próprios termos por Oyama (2000) e Tomasello (2003).
1.5 Linguagem, Cognição e Cultura enquanto Fenômenos Relacionais
Na perspectiva da Biologia do Conhecer, os fenômenos relacionais do
nosso ser humano – dentre eles a cognição, a linguagem e a cultura – não são
adequadamente descritos se o cientista tenta abordá-los como fenômenos que se
dão no interior do domínio da fisiologia, ainda que dependam do organismo e exis-
tam através dele. Esses fenômenos se dão no domínio da dinâmica comportamental.
Eles não se reduzem à operação do organismo nem de parte dele, como, por exem-
plo, do sistema nervoso. Constituem expressões de acoplamentos estruturais, de
ações comportamentais dos nossos organismos biológicos situados em um meio. A
compreensão desses fenômenos tal como propiciada pela Biologia do Conhecer é,
pois, bastante distinta das postulações que prevêem a redução desses dois domíni-
os fenomênicos.
A cognição é entendida pela Biologia do Conhecer como uma ação efetiva no
meio. É a expressão de uma congruência operacional de dois domínios de ações distin-
tos – o do comportamento e o da fisiologia –, em um constante fluir de mudanças estru-
turais de organismos em acoplamento estrutural, em um meio de ações particulares,
que inclui outros organismos. “Viver é conhecer, conhecer é viver”, diz outro aforisma
decorrente da teoria, que explora a congruência operacional entre ser vivo e meio como
condição de possibilidade de existência do ser vivo (Graciano & Magro, 1999: 21).
É importante notar que diferentes organismos trazem à mão mundos dife-
rentes, conhecem diferentes realidades. Tal afirmação não deve ser compreendida
como uma postulação de um solipsismo, uma vez que as histórias filogenética e
ontogenética participam daquilo que podemos fazer e essa participação guia a emer-
gência interacional dos mundos coletivos em que vivemos. O conhecer está, portanto,
relacionado tanto com o estado presente de um organismo quanto com a sua história
de acoplamentos estruturais.
A Biologia do Conhecer atribui uma importância peculiar à linguagem, tanto
na constituição do observador quanto na distinção, conservação e estabilização dos
mundos observados. Tal importância desautoriza a idéia de que a noção de cognição
43
presente nessa teoria ou tornada possível nesse mecanismo gerativo não faz jus ao que
os seres humanos, por exemplo, podem “conhecer”. A importância que a linguagem tem
no mecanismo proposto por essa teoria também desautoriza avaliar que a noção de
cognição só serve para referir a seres vivos de primeira ordem, os unicelulares, ou seres
muito simples.
Para a Biologia do Conhecer, se me proponho a observar a linguagem, o
que observo é um tipo de congruência operacional dos organismos no meio, é um tipo
de conduta desses organismos. O linguajar configura-se como um âmbito particular de
interações e ações recorrentes, recursivas e consensuais, em um meio (Maturana,
2001b: 72). No dizer de Maturana (1999a), a linguagem surge como coordenações de
coordenações de ações.
No estabelecimento de um domínio de interações e de convivência, as di-
nâmicas corporais – por exemplo, as emoções, entendidas como as disposições cor-
porais para a ação – e o momento estrutural dos indivíduos favorecem que eles coor-
denem ações e distinções consensuais em uma dinâmica recursiva, sendo possível,
assim, promover transformações em suas dinâmicas de ações e dinâmicas corporais
internas, que podem estabilizar coerências operacionais nos domínios da fisiologia e
da conduta.
Em um espaço de interações particulares, as emoções especificam o curso
de ações de um agente. Quando observamos um organismo em suas circunstâncias,
vemos suas relações e interações, mas descrevemos o curso de tais relações e
interações como conduta, como um comportamento (Maturana, 1999e: 113).
A conversação, então, é vista como o entrelaçar consensual de linguagem
e emoções (Maturana, 2001e: 179) e as culturas dos diversos agrupamentos huma-
nos são descritas como redes fechadas de conversações (Maturana, 1999g). O termo
conversação, dizendo respeito especificamente ao entrelaçar consensual de lingua-
gem e emoções, é distinto do termo conversa, com o qual, nesta tese, ora conoto
qualquer evento lingüístico-interacional ora conoto o específico sistema de troca de
fala descrito por Sacks, Schegloff & Jefferson (1974). Ao termo conversa, Scheglofff
(1988: 93) afirma preferir o termo fala-em-interação.
1.6 Os Recursos Comunicacionais e Lingüísticos como Conotações de Coor-
denações de Coordenações de Ações
Os objetos que um observador pode distinguir como o significado semânti-
co das interações, a gramática envolvida nelas, os símbolos, as palavras, o léxico
emergem do processo e esforço de uma determinada coordenação de coordenação
de ações entre indivíduos, em um determinado domínio de ações discursivas, de ma-
neira co-ocorrente com correlações de atividades da rede neuronal.
44
Os mencionados objetos constituem distinções descritas por um observador,
configuradas conjuntamente, nos fluxos recorrentes de coordenações de coordenações
de ações. É necessário, portanto, que ocorra um determinado fluxo de coordenações de
coordenações de ações para surgir uma maneira específica de coordenação regular de
ação que vai atender a um determinado fluxo de coordenação de coordenação de ações.
Esses objetos exibem uma estabilidade dinâmica: nem são absolutamente
instáveis nem absolutamente fixos. São contingentes com as ações e as emoções das
interações particulares, sendo sensíveis à variabilidade decorrente das culturas ou
padrões de ações interacionais. Eles são configurados na concatenação processual de
ações, se estabilizam na recursividade das coordenações de coordenações de ações
consensuais e das distinções de distinções de objetos e sentidos e emergem
(re)formulados, na interação discursiva, em um campo pragmático.
O que distinguimos como o significado dos objetos trazidos à mão nas nossas
interações não está nas palavras nem nas funções gramaticais. Esse significado é
constituído historicamente, nos fluxos dessas interações, sendo especificado momomento
a momento, pelos participantes das atividades interacionais, ou a posteriori, por um
analista dessas atividades. Em um caso ou no outro, tal especificação é elaborada e
reelaborada, em conformidade com o fluir interacional dos interlocutores e com as
conseqüências desse fluir. Mondada (1998b, 2000c, 2002, 2003a, 2003b, 2004, 2005d)
analisa conversacionalmente esse processo como uma referenciação, fenômeno a que
me reporto em momentos diversos deste trabalho.
Ao atribuir equivalências entre condutas, em um espaço relacional, um obser-
vador vê símbolos ou equivalências simbólicas entre essas condutas (Maturana, 1999e:
117-118). Nessa operação, uma dessas equivalências passa a ser símbolo da outra,
sem que o observador se confunda. A simbolização consiste, pois, na conexão de duas
situações diferentes, de modo que uma substitui a outra no curso do conversar daquele
ou daqueles que estabeleceram a relação em que uma situação substitui a outra.
Cada uma das equivalências estipuladas no processo de simbolização gera
mudanças de estado no sistema nervoso, mas esse sistema não distingue a origem de
suas mudanças de estado e muda frente às mesmas configurações de mudanças de
relações de atividade, qualquer que seja o contexto em que essas mudanças surjam.
De acordo com essa descrição, o sistema nervoso não opera com sím-
bolos, apenas gera mudanças de relações de atividades, movido por mudanças de
relações de atividades. Para o sistema nervoso as equivalências simbólicas, o erro
ou a ilusão não existem. Essas distinções estão no espaço relacional dos organis-
mos, de acordo com o modo como participam no fluxo de interações lingüísticas do
observador.
Conforme Maturana (1999e: 116-117):
45
a) As diferentes palavras que empregamos no âmbito humano e que
aplicamos não só em nosso viver, mas também ao de muitos outros
animais, correspondem a distintas dimensões que distinguimos no
espaço relacional do animal às quais as aplicamos, e revelam, portan-
to, nossos diferentes modos de viver nossa experiência relacional. As
palavras são nós de coordenações de coordenações de conduta, nas
redes de conversações de que participam, e têm sentido ou significa-
do nas condutas e emoções que coordenam como elementos da lin-
guagem, de modo que diferentes palavras coordenam diferentes con-
dutas e emoções. Por isso nunca dá no mesmo o uso de uma palavra
em uma ou outra cultura e se se quer conhecer o significado de uma
palavra, tem-se que olhar as condutas e emoções que ela coordena,
assim como o domínio em que tais relações ocorrem. [... Deste modo]:
b) todas as dimensões do espaço ou domínio relacional do organismo
são vividas de acordo com o modo de viver do organismo. Assim nós,
seres que vivemos no conversar, vivemos todas as dimensões de nos-
so espaço relacional nas conversações e como conversações;
c) todas as formas de viver as diferentes dimensões do espaço
relacional de um organismo se estabilizam e se conservam ou mudam
de acordo com o modo de viver do organismo. Assim, em nosso caso,
as diferentes conversações constituem nossas diferentes formas de
viver nosso espaço relacional, se estabilizam como formas culturais
segundo a dinâmica conservadora das conversações das comunida-
des a que pertencemos e mudam segundo a dinâmica de mudança
cultural dessas comunidades; e, por último,
d) todas as formas de viver as diferentes dimensões do espaço de
relação do organismo afetam todo o viver nele, ainda que o façam de
diferentes maneiras, porque constitutivamente se entrelaçam na mo-
dulação da estrutura do organismo e seu sistema nervoso. Assim, em
nós, as diferentes conversações que constituem nossos diferentes
modos de viver as diferentes dimensões de nosso espaço relacional
como Homo sapiens sapiens se entrelaçam na modulação do operar
de nosso sistema nervoso e de nossa totalidade orgânica [... ], de modo
que todo nosso viver está sempre penetrado por um sentido que surge
das diferentes conversações das quais participamos.
De acordo com a concepção de Maturana, as palavras correspondem a
dimensões que distinguimos nos nossos espaços relacionais. Uma noção é gerada
como uma abstração de uma experiência. Uma palavra conota uma abstração do modo
como distinguimos a abstração que gerou a noção. Uma palavra é uma distinção de
segunda ordem. Desenvolvendo essa compreensão, Maturana (1995) descreve a no-
ção de tempo, por exemplo, não como uma entidade física, independente dos nossos
modos de vida. Conforme sua descrição, o tempo surge como uma abstração das
experiências do observador. A noção de tempo é gerada como uma abstração da
ocorrência de processos em seqüência. A palavra tempo conota, pois, uma abstração
do modo como distinguimos essa abstração, nas coerências de nossas experiências.
Desse modo, considerando que cada domínio de ação ocorre com a sua particular
46
dinâmica de processos e, conseqüentemente, com a sua própria dinâmica de tempo,
podemos considerar que há tantos sentidos para a palavra tempo quantas formas há
de abstrair as regularidades das experiências de processos e seqüências de proces-
sos. Neste trabalho, nas Seções 6.4.2 e 6.4.8, analiso construções particulares da
noção de tempo, em vivências observadas na comunidade dos Tipis.
1.7 Linguagem, Cognição e Cultura vs Relatividade e Determinismo Lingüísticos
As relações entre o objeto que conotamos como realidade e as expressões
lingüísticas desse objeto constituem um tópico importante em reflexões sobre a lin-
guagem, conforme podemos ver em diversas abordagens do tema (Browlin & Stromberg,
1997; Duranti, 2000b; 2000c; Gumperz, 1996; Maturana, 1988a, 1999k; Rorty, 1994;
Rosch, 1987; Smith, 1996). Essas relações sugerem uma tomada de posição quanto a
proposições sobre a relatividade e o determinismo lingüísticos, ou seja, quanto ao
papel atribuído às línguas na produção de diferentes descrições dos mundos e/ou de
diferentes modos de descrevermos os mundos. Franz Boas encarna uma referência
importante nessas reflexões.
O conjunto conceitual de Boas dialoga com, refuta, expande elaborações
de pensadores diversos. Ele considerou a idéia de Immanuel Kant de que categorias
mentais são impostas pela experiência sensível. Do neokantismo, elaborou o pensa-
mento de que a diversidade entre as categorias mentais dos povos está relacionada à
sua cultura, sua raça, sua nação, com diferentes conseqüências nas experiências e
expectativas desses povos. Do neokantiano Herder, Boas lançou mão da idéia de que
cada língua tem uma irredutível individualidade espiritual (cultural). Ao mesmo tempo
em que desenvolveu a idéia de Wilhelm Humboldt de que em cada língua somente
expressamos uma parte do pensamento completo, Boas rejeitou a sua visão de que
algumas línguas são mais bem sucedidas do que outras. Ele considerou, ainda, a
relatividade e o universalismo, de Humboldt. Assim, para a relatividade boasiana, a
língua é um quadro apriorístico de cognição, que impõe uma organização sobre o fluxo
de sensações apresentadas aos nossos sentidos. Como cada língua difere da outra e
o modo como as pessoas experimentam a realidade é determinado pela língua, a
forma que resulta da experiência do mundo é diferente de uma língua para outra. Já
para o seu universalismo – a suposta unidade psíquica da humanidade – Boas susten-
ta a idéia de que o conjunto de habilidades individuais não varia entre culturas, de
modo que todas as línguas partilham propriedades universais e devem expressar al-
gumas noções gramaticais universais (Foley, 1997: 192-214).
Boas postulou que diferenças aparentes na sofisticação lingüística não re-
fletem diferenças cognitivas, apenas ênfases diferentes nas culturas. Na sua acepção,
cognição diz respeito a uma capacidade biológica, ao conhecimento tomado em ter-
47
mos de um funcionamento neurológico, em contraste com a cognição definida pela Bio-
logia do Conhecer como ação efetiva, em termos das atividades relacionais dos seres
humanos em um meio.
No escopo teórico da Biologia do Conhecer, a explicação da linguagem,
da cognição e da cultura enquanto fenômenos relacionais contrapõe-se a uma con-
sideração de uma língua como um quadro apriorístico classificatório. Nessa teoria,
as línguas não são confundidas com o nosso aparato biológico, sendo descritas
como aquilo que um observador pode distinguir como elementos que emergem na
interação discursiva.
Os elementos lingüísticos são estabilizados nas histórias e nas ferramentas
produzidas em diversas redes de conversações – como, por exemplo, nas nossas
histórias de conversadores e na escrita – e usados de modos dinâmicos nas práticas
sócio-lingüísticas e culturais efetivas, quando são negociados, ajustados, reformulados,
em reiterações de interações discursivas, como ocorre inclusive com a escrita.
A explicação da linguagem, da cognição e da cultura proposta pela Biologia
do Conhecer também se contrapõe a uma consideração de que os quadros lingüístico-
gramaticais determinam, por si sós, a experiência. Essa teoria compreende a experi-
ência como os atos cognitivos básicos de distinguir e configurar objetos em um meio,
nas dinâmicas comportamentais dos seres que co-constroem domínios de consenso e
objetos consensuais.
O caráter relacional das línguas e das culturas – vistas pela Biologia do
Conhecer como padrões de ação comunicativa que se estabilizam juntamente com os
sistemas sociais, ao longo de gerações – coaduna-se com a postulação boasiana de
que as diferenças entre línguas resultam de ênfases diferentes nas culturas. Contudo,
Boas transita do domínio do comportamento para o domínio fisiológico ao utilizar o
argumento da variabilidade cultural como gerador da variabilidade lingüística para afir-
mar uma similitude ou um universalismo da cognição, entendida no quadro boasiano
como um funcionamento neurológico. Com efeito, no quadro teórico da Biologia do
Conhecer, a cognição, ao mesmo tempo em que se correlaciona com a história
filogenética das espécies, não ocorre como um padrão universal, sendo um fenômeno
relacional e, portanto, situado, correlacionado às redes fechadas de conversações dos
diversos agrupamentos humanos, aos padrões de ações interacionais de grupos es-
pecíficos, em uma palavra, à história cultural dos grupos sociais. Um tratamento da
aprendizagem como uma atividade social e culturalmente situada, em consonância com
o mecanismo de cognição da Biologia do Conhecer, pode ser vista em Sinha (1999).
Como vimos anteriormente, no escopo da Biologia do Conhecer, embora se
postule uma relação gerativa entre os domínios comportamental e fisiológico, os fenô-
menos e processos de cada um não são tratados como pertencendo ao outro. Nessa
teoria, a relação gerativa entre a fisiologia (cognição boasiana) e o comportamento (língua
48
e cultura) é descrita de um modo menos direto e biunívoco do que a postulação de Boas
parece sugerir.
O fato de um observador ver sujeitos coordenando suas coordenações
de ações em situações reais de conversa não se confunde com o funcionamento
do nosso aparelho sensorial, do nosso espaço sináptico. O que um observador vê
e descreve como comunicação é algo que ocorre no espaço relacional desses
sujeitos, inclusive do observador. Simultaneamente ao fenômeno relacional ocor-
rem fenômenos fisiológicos. Todavia, a coerência do acoplamento estrutural que
um observador vê como coerência de conduta não implica que os sistemas nervo-
sos estejam trocando seus padrões sinápticos ou que suas sinapses sejam idênti-
cas, embora esses sistemas nervosos estejam gerando em si mesmos mudanças
desencadeadas pelas perturbações, pelas relações particulares do organismo com
o meio.
Ao desencadearem mudanças estruturais, mudando o curso das mu-
danças que ocorrem continuamente na dinâmica fisiológica do organismo, as per-
turbações podem fazê-lo de modos coerentes com outras configurações de mu-
danças de estado que o sistema nervoso experimentou. A coerência de conduta
que um observador experimenta decorre dessa coerência entre mudanças de
estado fisiológico. A origem dessa perturbação, no entanto, não importa para o
sistema nervoso. O que conta é que ela movimente certa configuração de mu-
dança de estado.
Para a Biologia do Conhecer, a cognição, como de resto todos os fenôme-
nos relacionais que constituímos no linguajar, configura-se de acordo com o modo
como os seres humanos participam do fluxo de suas interações. O caráter histórico
desses fenômenos não autoriza a postulação de que os hábitos lingüísticos predis-
põem certas escolhas de interpretação, uma vez que, na efetividade desses fenôme-
nos, as disposições corporais, juntamente com outras contingências interacionais atu-
am na configuração dos nossos mundos de objetos.
No âmbito da Biologia do Conhecer nenhum aspecto fisiológico ou relacional
isolado determina a complexidade da fenomenologia relacional humana. Postula-se
um determinismo estrutural, ou seja, a descrição da operação dos seres vivos de acor-
do com o jogo das propriedades dos componentes desses sistemas. Mesmo assim,
essa concepção não descreve a estrutura dos organismos em termos de uma determi-
nação genética, por exemplo.
A Biologia do Conhecer trata ambiente e genes como constitutivos dos se-
res vivos. A estrutura dos organismos é concebida como decorrente da deriva de histó-
rias filogenéticas e ontogenéticas. Desse modo, assim como os fenômenos relacionais,
o nosso corpo e suas possibilidades estruturais surgem como uma construção social,
cultural, a partir do entrelaçamento de histórias filogenéticas e ontogenéticas. Como
49
observei anteriormente, concepções semelhantes, sobre a relação genes-cultura podem
ser vistas em Oyama (2000) e Tomasello (2003).
Em decorrência desse modo inter-relacional de descrever a fenomenologia
da conduta humana, devemos considerar que uma ou várias línguas fazem parte do
complexo conjunto de fatores que atuam na formulação linguajeira da experiência e
nas interpretações da experiência e da linguagem. Contudo, fatores relacionados à
contingencialidade das atividades interacionais são legitimamente integrados pela te-
oria de Maturana e assumidos na concepção de linguagem que ponho em movimento
neste trabalho.
Para a Biologia do Conhecer, os fenômenos relacionais, dentre eles a lin-
guagem, a cognição e a cultura, configuram-se de acordo com o modo como os seres
humanos participam do fluxo de suas interações. Tal modo de conceber esses fenô-
menos desautoriza a postulação de que os hábitos lingüísticos isoladamente predis-
põem certas escolhas interpretativas.
1.8 Linguagem, Cognição e Cultura: Fenômenos Sistêmicos e Dinâmicos
No escopo da Biologia do Conhecer, os fenômenos relacionais são compre-
endidos como processos e ações sistêmicos, relacionais, interacionais, fortemente
imbricados, recursivos, dialógicos, históricos, culturalmente situados, decorrentes dos
modos como vivemos. Compreende-se que o comportamento cultural é constituído
em padrões de ações sociais que, juntamente com os sistemas sociais, se estabilizam
ao longo de gerações, mesmo que membros individuais do sistema social sejam subs-
tituídos. Nessa visão, a linguagem, a cognição e a cultura constituem o próprio proces-
so de configuração dos mundos de objetos aos quais nos referimos, constituindo,
assim, aquilo que observamos no viver social dos seres humanos.
Quanto ao seu potencial explicativo, Magro (1999b: 23-24) observa que,
(...) da adoção das idéias [da Biologia do Conhecer] resulta um espaço
de reflexões que engendra, com consistência e elegância, uma expli-
cação para
1
1. nossa experiência de viver na linguagem como incluindo legitima-
mente tanto a variabilidade interpretativa entre seres humanos indivi-
duais bem como pelo mesmo sujeito (ou seja, intra- e intersubjetiva),
quanto a experiência da congruência interpretativa;
2. as redes de conversação de que participamos ao longo da vida como
textos prévios que retecemos/reatuamos contingentemente, trazendo a his-
tória e as circunstâncias para dentro de nosso falar sobre a linguagem;
2
1
“Em Magro (1996) apontei algumas dessas possibilidades que surgem com o trabalho de Maturana.”
Nota de Magro (1999b).
2
“Sobre a noção de textos prévios (prior texts) ver Becker, 1988 e 1991b.” Idem, ibidem.
50
3. nossas dificuldades comunicacionais como suplantáveis através de
esforço conversacional e fazendo-se atenção para as emoções que
especificam os espaços de discordâncias — em oposição à afirma-
ção de que uma realidade independente do observador é a fonte de
validação de todas as nossas crenças, e que sentenças ou textos
construídos de acordo com regras de uma língua carregam, por si mes-
mas, significados que poderiam ser instantaneamente apreendidos por
ouvintes eficientes;
3
4. as conversações como coordenações de ações que entrelaçam
linguajar e emocionar num fluir de resultados diferenciais para os
interlocutores nelas envolvidos;
4
5. a atividade lingüística, ou o linguajar, como ademais todas as ativida-
des que realizamos no meio em que vivemos, como modulando nossa
fisiologia e ao mesmo tempo sendo por ela modulada;
6. a efetividade do viver na linguagem em trazer à mão mundos coleti-
vos contingentes, ou seja, a efetividade da linguagem na produção,
modificação e na manutenção daquilo que vivemos como realidade;
7. a efetividade da linguagem na produção e na manutenção de fenô-
menos tomados habitualmente como substantivos, como proprieda-
des intrínsecas do humano como, por exemplo, a própria linguagem, a
cognição e a consciência;
5
8. a história de interações entre membros de um grupo que coordena
suas ações na linguagem e que resulta na emergência daquilo que se
chama de código, de conceito, de significado. Aqui, estes não são con-
dições prévias para se viver na linguagem, mas um produto de um
modo particular de viver.
6
O conjunto teórico formulado na Biologia do Conhecer permite, pois,
equacionar a estabilidade e a mudança observáveis na linguagem, na cognição e na
cultura, fornecendo uma chave para uma compreensão da ação humana como o fluir
de construções de distinções, objetos e abstrações. Conforme esse mecanismo
explicativo, essas construções podem vir a ser tratadas como consensuais e se dão
como histórias de entrelaçamentos entre coordenações de ações, emoção e momento
estrutural. O(s) observador(es) gera(m) noções a partir de abstrações de suas experiên-
cias. As palavras, por sua vez, conotam abstrações dos modos como os observadores
distinguem tais objetos, na coerência das suas experências. Nesse processo, tratamo-
las como teias de significados e símbolos das distinções que fazemos de nossas atua-
ções em diversos espaços relacionais.
Na perspectiva desta investigação, voltada para uma descrição etnográfica
de experiências observadas na comunidade dos Tipis e para uma análise da interação
3
“Reddy, 1979.” Idem, ibidem.
4
“Smith, 1988“. Idem, ibidem.
5
“Maturana, 1990a; Núñez, 1997; Smith, 1997c.” Idem, ibidem.
6
“Hopper, 1988 e 1989; Maturana, 1988a; Smith, 1997b”. Idem, ibidem.
51
conversacional de uma reunião da Associação de Moradores do lugar, a Biologia do
Conhecer é tomada como um mecanismo que gera ou explica adequadamente os
vários domínios nos quais realizamos a fenomenologia humana. Com isso essa teoria
também é vista aqui como um adequado suporte epistemológico para descrições não-
autonomistas, não-instrumentalistas, de eventos em que se inter-relacionam a lingua-
gem, a cognição e a cultura, tratados como fenômenos relacionais. Avalio ainda que a
concepção de linguagem da Biologia do Conhecer é compatível tanto com uma análi-
se ética quanto com uma análise êmica, guardadas as distinções dos objetos trazidos
à mão, em cada uma dessas análises, e mantida uma atenção, nas duas análises,
para a dimensão emergencial dos fenômenos relacionais.
52
CAPÍTULO 2 – O TRATAMENTO POLÊMICO DA LINGUAGEM COMO AÇÃO
2.1 Pensando o Mundo Humano como Linguagem
“O caráter envolvente da linguagem humana, isto é, a impossibilidade de
pensar o mundo sem a [sua] intermediação” (Rajagopalan, 1996a: 113) vem sendo
objeto de formulações, discussões, reformulações, ao longo do Século XX, como tam-
bém em produções recentes deste início do Século XXI. Richard Rorty denominou de
‘virada lingüística’ o movimento de colocar a questão semântica no lugar central das
preocupações filosóficas, em substituição à epistemologia. Essa “virada” motivou filó-
sofos como Gilbert Ryle, Ludwig Wittgenstein e John Langshaw Austin a fazerem uma
reflexão segundo a qual a opacidade da linguagem deixou de ser aquilo que impedia
um contato nosso com o mundo e passou a ser vista como a condição natural e própria
da linguagem.
Juntamente com o seu caráter envolvente, as dimensões social, cultural,
situada, inter-subjetiva da linguagem têm favorecido que lingüistas e autores não tipi-
camente classificados como lingüistas, antropólogos e sociólogos venham dirigindo
suas reflexões para as ações sociais do viver humano, voltando-se para os modos
como expressamos a nossa experiência com o mundo e exibimos processos de co-
nhecer, atuar em, pertencer a um agrupamento sócio-cultural, entrelaçando-nos com
outros agrupamentos sócio-culturais.
O esforço retórico do filósofo austríaco Wittgenstein favoreceu o abandono
de uma argumentação preconceituosa sobre a linguagem e a adoção de uma concep-
ção performativa para as explicações sobre esse objeto, visto no seio de uma
heterogeneidade de práticas comportamentais.
Uma tentativa pioneira de levar em conta a mencionada heterogeneidade
de práticas comportamentais foi formulada pelo lingüista inglês John Rupert Firth. O
seu trabalho é caracterizado por manter uma tensão entre uma concepção de gramá-
tica e de cognição baseada em uma ortodoxia mentalista e internalista e uma proposi-
ção heterodoxa segundo a qual estudos da linguagem ordinária deveriam considerar o
contexto de sua efetividade. O seu pioneirismo traduziu-se na exortação a que os
lingüistas olhassem para as pessoas e seus comportamentos específicos, o cenário e
os equipamentos acessórios, as palavras e o que ocorre antes, durante e depois que
são proferidas.
O enfoque geral da concepção de linguagem como ação formulada pelo
filósofo inglês John Langshaw Austin não reifica nem os mecanismos gramaticais da
linguagem nem os objetos configurados na ação lingüística. Fecunda e sintonizada
com o contexto acadêmico no qual foi formulada, a reflexão austiniana ensejou parti-
cularidades que tanto permitiram desenvolvimentos contínuos ao pensamento lingüístico
53
objetivista quanto indicaram a possibilidade de serem desenvolvidas análises radical-
mente comprometidas com a linguagem como ação. Essas análises favoreceram crí-
ticas a abordagens psicológicas e universalistas, como também ao individualismo de
uma noção de intencionalidade. O trabalho de Austin, porém, é avaliado aqui como de
grande importância para uma compreensão e análise da linguagem como uma ação
social, emergente, situada e contingente. A ausência de um componente procedural
no trabalho de Austin sinaliza para a oportunidade de se abordar detalhadamente aquilo
que os participantes de um ato de fala fazem quando dizem o que dizem.
Os nexos entre a vida social, a cultura e a linguagem têm sido abordados
por perspectivas filosóficas, lingüísticas, sociológicas, antropológicas que descrevem
e inter-relacionam de modos distintos os domínios biológico, cultural e social. Assim,
neste Capítulo, a partir de proposições básicas de autores como Wittgenstein, Firth,
Austin, John Searle e Daniel Vanderveken, Ward Goodenough, Bronislaw Malinowski
e Clifford Geertz, tematizo fatores diversos a serem considerados em análises lingüístico-
interacionais. A avaliação dessas abordagens visa à especificação: (a) de um quadro
conceitual para uma descrição ética, de caráter etnográfico, do viver na comunidade
dos Tipis e; (b) da Análise Conversacional de inspiração etnometodológica como um
modelo que permite uma descrição êmica, de caráter procedural, da emergência de
objetos de discurso em uma reunião da Associação dos Moradores dos Tipis.
2.2 Preconceitos, Confusões e Ilusões Gramaticais: A Terapêutica
Wittgensteiniana para o Pensamento Filosófico Ortodoxo sobre a Linguagem
Uma contribuição importante no polêmico tratamento da linguagem como
ação situada reside na obra do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein. O seu trabalho
tem sido lido a partir de pelo menos três interpretações: a retórica, a normativa e a dos
jogos, conforme Davis (1999) aponta.
Uma interpretação retórica das Philosophical Investigations (1953) destaca
o interesse do seu autor no melhor meio de desafiar o fundamento autonomista da
lógica clássica, de questionar os modos tradicionais de ver a linguagem e, com isso,
de desvincular sua audiência do modo filosófico, então canônico, de refletir sobre esse
objeto. Assim, como que reagindo ao pensamento dominante no seu próprio tempo, o
Wittgenstein retórico procurou livrar os teóricos das restrições que a academia impu-
nha ao objeto linguagem. Ele também tentou livrá-los dos obstáculos geradores de
ruídos e confusões na argumentação da descrição acadêmica do objeto. Essas tare-
fas foram perseguidas através do questionamento do status da terminologia
metalingüística, vista como obscurecedora da práxis dinâmica que caracteriza a lin-
guagem. Cabe destacar, pois, a formulação, por parte do austríaco, de uma terapêuti-
ca, a ser aplicada sobre o modo então dominante de tratar a linguagem.
54
O filósofo austríaco desafiou a visão segundo a qual a linguagem deve refe-
rir-se a algo externo, independente ou autônomo a ela mesma. Com isso, ele expres-
sou uma concepção não-objetivista sobre o que denominamos realidade ou sobre a
configuração dos mundos de objetos. Além de questionar a visão de independência da
linguagem diante de um mundo de objetos pré-dados, ele negou a validade de buscar-
mos uma explanação do significado, olhando para a linguagem como algo deslocado
das suas práticas de uso.
Wittgenstein dirigiu-se aos preconceitos, confusões e ilusões gramaticais
de concepções lingüísticas então vigentes, focalizando abordagens rotineiras da lin-
guagem. Segundo esse filósofo, operamos com uma hipótese preconceituosa de que
os traços que um fenômeno parece ter constituem a essência desse fenômeno. Tal
hipótese deriva da prática de tratarmos um método de análise ou descrição das coisas
como algo que é tanto mais objetivista quanto mais for desvelador de uma realidade
última das coisas.
Essa prática criticada pelo filósofo inclui-se no que Maturana (2001b, 1999k)
denominou Caminho Explicativo da Objetividade sem Parênteses, de acordo com o
qual o observador e o observar são fenômenos independentes e a existência do objeto
observado precede o ato cognitivo de distinguir.
A confusão gramatical refere-se, pois, à incompreensão de que os predicados
que atribuímos às coisas dizem respeito aos pressupostos teóricos e epistemológicos
dos métodos que adotamos para descrever as coisas e não constituem traços intrínse-
cos às coisas. A ilusão gramatical, por sua vez, diz respeito ao fato de que, enquanto
pensamos que estamos investigando e obtendo informações ‘assépticas’, ‘objetivas’,
sobre um fenômeno observado, efetivamente estamos atribuindo ao fenômeno alguns
dos traços do modelo representacional usado: dizemos que o céu é vermelho porque
olhamos para ele através de lentes vermelhas e não damos conta de tentar nos livra-
mos delas.
A crítica de Wittgenstein aos ruídos e confusões na argumentação acadê-
mica parece reagir a uma concepção segundo a qual o fazer acadêmico estaria em
uma condição privilegiada no desvelamento das realidades essenciais. Parece, pois,
uma reação a um realismo analítico, neokantiano, mencionado adiante, na Seção 3.1.1.
Segundo esse realismo, os saberes válidos do mundo exterior são obtidos pela aplica-
ção dos cânones lógico-empíricos da investigação científica.
Essa crítica de Wittgenstein ao realismo analítico encontra ecos também na
formulação de Maturana (1999d: 81-82), segundo a qual o critério científico de valida-
ção estabelecido pela comunidade acadêmica não é objetivo ou independente dos
observadores que o estabelecem, sendo adequado para os membros que usam e
aceitam o critério estabelecido por essa comunidade.
55
Wittgenstein examina a fonte de preconceitos lingüísticos, chamando-nos a
atenção para reflexões danosas sobre a linguagem, sobre a adequação da interação
conversacional, sobre o significado de compreendermos uma expressão. O filósofo
discute os preconceitos observados na determinação do que são os significados e
conceitos, na análise dos significados em atividades lingüísticas específicas e no exa-
me de enunciados de senso comum.
Um preconceito gramatical consiste em pensar que os métodos canônicos
de análise refletem as coisas como elas ‘realmente’ são e, por isso, refletem os fatos
essenciais da linguagem. Argumentando contra o preconceito gramatical, Wittgenstein
sinalizou uma alternativa aos modos então comuns de se analisar os usos das pala-
vras e de lhes atribuir sentidos. Assim, em contrapartida aos modos preconceituosos
ou dogmáticos da teorização lingüística, Wittgenstein formulou os jogos de linguagem,
analisando-os como objetos de comparação de similaridades e dissimilaridades com
relação a outros jogos de linguagem. Com isso ele procurou evitar a idéia preconcebi-
da de que o modelo deve corresponder à realidade e apontou para a possibilidade de
fornecermos explicações sobre o significado sem um apelo a afirmações categóricas
relativamente a expressões lingüísticas deslocadas das práticas sócio-culturais nas
quais ocorrem efetivamente.
De modo concomitante à recusa de tomar as explicações do mundo como
espelhos da realidade, Wittgenstein sugere olharmos para a linguagem como uma ob-
servação das nossas ações. Assim, ele mostra que é possível examinar os papéis das
palavras que compõem os jogos; é possível examinar como o uso das palavras inte-
gra-se com o agir dos participantes, mesmo os jogos sendo mais simples do que o
todo complexo da linguagem humana.
Esse filósofo demonstra como atribuímos status semelhantes a nomes con-
cretos e não-concretos – mesa, maçã; cinco, vermelho – apesar de fazermos coisas
diferentes com eles. Assim, concebendo que os nomes concretos simbolizam objetos,
analogamente estendemos esse método de representação aos nomes não-concretos.
A terapêutica dos jogos de linguagem mostra que as palavras componentes
dos jogos são ‘esclarecidas’ pela descrição dos modos como elas são usadas, sem
uma redução a uma fórmula canônica reflexiva. Ao analisar um jogo de linguagem
entre um pedreiro e seu assistente, o filósofo mostrou-nos que a interação entre os
dois não se dá pelo conhecimento, por parte do assistente, de algo essencial que a
palavra proferida pelo pedreiro significaria, mas em função do apontar do pedreiro
naquele jogo específico.
A reflexão retórica de Wittgenstein mostra como uma teoria pode incorporar
premissas tomadas por garantidas - os preconceitos gramaticais - e lançar mão da
confusão entre o método de análise das coisas, as propriedades delas e a generaliza-
ção das análises. A sua terapêutica advertiu: a linguagem não descreve uma essência
56
dos fenômenos; os traços que um fenômeno parece ter não constituem uma essência; os
predicados que atribuímos aos fenômenos são traços que residem nos métodos usados
para analisá-los e não nos fenômenos. Para um tratamento alternativo da linguagem ele
sugeriu a consideração de uma heterogeneidade de práticas comportamentais que inte-
gram ações lingüísticas, em contextos situacionais particulares.
A importância do Wittgenstein retórico não o livra de críticas relacionadas à
implementação de uma investigação lingüística em termos não-autonomistas e não-ins-
trumentalistas. Wittgenstein enfatiza a função ou uso da linguagem como uma alternativa
para uma abordagem autonomista, tomando as palavras como ferramentas ou instru-
mentos. Indagando-se sobre a natureza da cooperação inter-individual na linguagem,
Harris (1980) avalia que Wittgenstein enfraquece sua crítica ao autonomismo quando
não nega a sua possibilidade no interior de finalidades instrumentalistas. Para Harris,
pois, o autonomismo deve ser visto como uma versão empobrecida do instrumentalismo.
Essa discussão é importante nesta tese, uma vez que autonomismo e instrumentalismo
são perspectivas não-condizentes com uma concepção que adoto, segundo a qual a
fala-em-interação constitui a própria ação social, não sendo autônoma aos mundos de
objetos, nem um instrumento para a construção de algo diferente dela própria. Com efei-
to, a realidade é aqui concebida como constituída ela própria enquanto linguagem. Por
sua vez, sendo o próprio objeto, “a linguagem sofre o impacto direto do trabalho que é
feito nela ou sobre ela” (Rajagopalan, 2002: 104).
2.3 Eventos de Fala e Sistema Lingüístico: A Tensão Firthiana entre a Ortodoxia
e a Heterodoxia
O polêmico tratamento da linguagem como ação situada tem seus movimen-
tos de rupturas e incertezas, na Lingüística assim como o tem na Filosofia. Uma ortodo-
xia do pensamento lingüístico vê a linguagem como um objeto autônomo ou um instru-
mento, enquanto uma heterodoxia desse pensamento a vê como a decorrência e o locus
de diversos aspectos de nossas atividades interacionais. O inglês John Rupert Firth (1957,
1964, 1968 e também Langendoen, 1968; Robins, 1961) é um lingüista tratado como
afiliado ora à ortodoxia ora à heterodoxia lingüística. Tendo publicado já na primeira
metade dos anos 30 do Século 20, Firth foi um dos pioneiros a se voltar para uma con-
cepção de linguagem como ação, como atesta a coletânea Papers in Linguistics 1934-
1951, publicada em 1957.
A incongruência entre princípios teóricos e analíticos firthianos é criticada por
Joseph et alii (2001: 57-71). Eles observam que, mesmo caracterizado por uma
heterodoxia, o seu programa fundou-se em uma série de equívocos e compromissos
com a ortodoxia, uma ambigüidade que pode ser resumida na tensão não-resolvida en-
57
tre a importância atribuída às palavras enquanto objetos fixos, institucionalizados,
e a afirmação de que cada palavra, quando usada em um novo contexto, é uma
nova palavra.
Embora tenha mantido uma concepção de cognição e gramática atrelada
aos cânones mentalistas internalistas, Firth incluiu-se em uma heterodo4xia lingüística
ao dar atenção a aspectos dinâmicos da fala ordinária. Para ele, a gramática é lógica
e torna a linguagem acessível à razão, porém a fala não está a serviço da razão.
Enunciações coloquiais rápidas que apresentam dificuldades para um tratamento gra-
matical não devem ser analisadas como derivações de formas gramaticalmente ple-
nas porque é impróprio pensar em tais enunciações como desvios de abstrações regu-
larizadas da gramática.
Para Firth, lidar com eventos de fala, com o dizer, envolve o desdobramento
sistemático de construtos analíticos e categorias que podem ser semelhantes àqueles
envolvidos na análise de sistemas abstratos subjacentes a tais eventos, havendo dife-
renças, porém, no status ontológico atribuído aos construtos e categorias e, por exten-
são, ao sistema lingüístico mesmo.
No âmbito do tratamento polêmico da linguagem como ação situada, uma
seara importante para esta tese, importa considerar que, de modo pioneiro na Lingüís-
tica, Firth destacou o papel do contexto na comunicação interindividual e considerou a
língua como uma forma do viver humano, mais do que um conjunto de sinais arbitrári-
os, discordando, pois, da concepção segundo a qual o partilhamento da mesma estru-
tura lingüística constitui a condição para a comunicação lingüística entre indivíduos.
Firth entendia que o significado das palavras é melhor percebido como um
complexo de relações de vários tipos entre os termos componentes de um contexto de
situação – as pessoas e seus comportamentos específicos, o cenário e os equipamen-
tos acessórios, as palavras e o que ocorre antes, durante e depois que são proferidas.
2.4 A Linguagem como Ação: Austin e seus Intérpretes, Críticas e Contribuições
2.4.1 A linguagem como atos de fala
A consideração da linguagem como uma inter-relação entre diversos as-
pectos das nossas atividades interacionais beneficiou-se do trabalho do filósofo inglês
John Langshaw Austin (1961, 1962). Defensor da Filosofia da Linguagem Ordinária,
surgida por volta da década de 30 do Século XX, Austin é imediatamente associado à
noção de ato de fala. No entanto, como observa Rajagopalan (1996: 107-108), muito
do que se lê de Austin é fruto de uma re-leitura ou “leitura oficial” da sua filosofia,
desenvolvida principalmente pelo filósofo norte-americano John Searle e colaborado-
res, em termos de uma Teoria dos Atos de Fala.
58
Para Austin a linguagem é primariamente uma atividade, um complexo de
padrões comportamentais que compõem a vida social dos seres humanos, não sendo
semioticamente independente das circunstâncias de sua produção e não tendo, por-
tanto, um conteúdo semiótico intrínseco e auto-suficiente. A perspectiva geral do seu
enfoque não reifica os mecanismos gramaticais da linguagem: eles são tratados como
dependentes da situação e não (de)codificam informação sobre um mundo
extralingüístico objetivamente dado.
Dizer qualquer coisa é fazer algo, formulou Austin (1962: 5). Todo enuncia-
do é uma ação comunicativa de algum tipo e o tipo particular dessa ação pode estar ou
não claramente especificado no enunciado. Assim, o caráter ativo da linguagem não
reside em uma marca gramatical específica: a presença de um verbo performativo, por
exemplo, não é um critério suficiente ou necessário para a performatividade. Ainda,
desde que uma série de condições concomitantes sejam obtidas, um proferimento
performativo do tipo “Eu prometo que p.” vale por um ato de promessa com ou sem a
presença do prefácio “Eu prometo que...”, malgrado as diferenças formais dos enunci-
ados (Rajagopalan, 1990: 237-238). Na construção dos sentidos importa, pois, a par-
ticipação do indivíduo em quadros particulares da ação.
Austin propôs um aparato analítico que vai além dos níveis gramatical e
lógico para argumentar que enunciados são atos sociais. Com isso, ele demonstra
compreender que as relações entre as expressões e certo estado de coisas não são
diretas, fixas, uniformemente consistentes ou universais. Na concepção austiniana,
além de suas correlações com os contextos onde ocorrem, com o status social dos
enunciadores e com as ações específicas, realizadas ou em vias de realização, as
expressões significam pelo estabelecimento de correlações extrínsecas com outras
palavras, através de conexões que são diferentes em diferentes casos. Os fatos ou
concepções da realidade não são dados objetivamente e as asserções se ajustam
mais ou menos livremente a esses fatos, de diferentes modos, em diferentes ocasi-
ões, para diferentes intenções e propósitos. A linguagem, então, é vista como uma
atividade, algo que fazemos nas várias situações e circunstâncias nas quais nos en-
contramos, produzindo efeitos e construindo uma compreensão do mundo. Por falar
ou ao falar, agimos e produzimos algo com nossa ação.
Para dar conta de como os atos de fala operam, Austin propôs instrumentos
analíticos diferentes daqueles ordinariamente empregados para aferir a propriedade
de asserções. Assim, as suas condições de felicidade para a consecução das ações
englobam fatores diversos para que um ato de fala seja bem sucedido ou feliz e dife-
rem substancialmente, por exemplo, de um critério de condições de verdade. No mo-
delo austiniano, se certas condições são ou não apropriadas ou se mudam, o ato de
fala opera ou falha quanto ao seu propósito. Para a operação bem sucedida de um ato
de fala, deve haver, pois, um procedimento convencionalmente aceito, com certo efei-
59
to convencional, incluindo o proferimento de certas palavras e uma adequação da quan-
tidade e dos tipos de participantes e de circunstâncias; os atores devem participar com-
pletamente da execução da ação que, por sua vez, deve ser completamente exe-
cutada; devem ter pensamentos, sentimentos e intenções adequados para certo ato
de fala; devem cumprir as ações especificadas ou implicadas pela força do ato de fala.
2.4.2 Tensões na leitura (oficial) de Austin: taxonomias tentativas e sentido em
contexto
A fecundidade do trabalho de Austin é marcada, por um lado, pelo interesse
em instrumentalizar seus conceitos e categorias, de modo a colocá-lo em uma relação
de continuidade com a tradição lógica de Frege, mantendo-o no âmbito da Filosofia
Analítica, como se pode depreender dos desenvolvimentos levados a cabo, por exem-
plo, por Searle (1969) e Searle & Vanderveken (1985).
Sem se submeter completamente aos interesses oficiais, a obra do filósofo
inglês tem despertado interesse e exercido influências em áreas diversas, como a
Lingüística, a Psicologia, a Sociologia, a Teoria Literária, a Economia, o Direito. Intér-
pretes não-oficiais têm ouvido, no texto austiniano, ecos de vozes de autores não
convencionais. Ou têm observado ali marcas do discurso jurídico, sugerindo que Austin
estaria voltado para a dimensão ética de suas preocupações. Ou têm apontado para o
estilo descontraído desse autor, para as indecisões e freqüentes reviravoltas, para a
presença de uma metáfora do teatro, ao mesmo tempo em que não atribui seriedade
ao discurso do palco ou ao discurso poético (Rajagopalan, 1996: 110). A fecundidade
autiniana pode ser depreendida do extenso trabalho, composto de 25 títulos, desen-
volvido por Kanavillil Rajagopalan sobre textos do próprio Austin e de discípulos.
Diante desse caráter múltiplo, dinâmico, do trabalho do filósofo inglês, é
possível entrever nele peculiaridades que tanto permitem desenvolvimentos em conti-
nuidade com o pensamento objetivista sobre a linguagem quanto apontam para ruptu-
ras com esse pensamento. Austin morreu prematuramente e os seus manuscritos
passaram por revisões, por parte de terceiros. Esses materiais chegaram mesmo a ser
‘completados’, com o auxílio de anotações de pessoas diversas. Essas circunstâncias
deixam em aberto uma certeza sobre a fonte das peculiaridades do texto austiniano:
trata-se de uma polifonia? De uma preocupação ética? De uma ironia? De um diálogo
com o seu entorno?
Uma peculiaridade surge do trabalho de Austin quando o comparamos com
o de Wittgenstein. O filósofo austríaco não teve interesse em determinar uma taxonomia
das atividades lingüísticas e as suas análises de jogos de linguagem tiveram por obje-
tivo demonstrar concepções preconceituosas – objetivistas, reificadoras – que permeiam
nossas descrições de linguagem. Com isso, Wittgenstein destacou aspectos
60
interacionais da construção de significados. Diferentemente do filósofo austríaco, talvez
influenciado por um modo de fazer ciência pautada por regras e métodos típicos do seu
entorno acadêmico, a versão “oficial” da obra de Austin permite entrever uma tipologia
de cinco atos básicos, para os atos ilocucionários. A partir deles, Searle (1969) e Searle
& Vanderveken (1985) desenvolveram uma taxonomia que especifica os pontos
assertivos, nos quais dizemos como as coisas são feitas; os pontos diretivos, nos quais
tentamos levar as pessoas a fazerem coisas; os pontos expressivos, nos quais
expressamos nossos sentimentos e atitudes; os pontos declarativos, nos quais realiza-
mos mudanças através de nossos enunciados e; os pontos comissivos, nos quais nos
comprometemos com ações futuras. Avalio que ater-se a essa taxonomia pode
empobrecer uma formulação explicativa da linguagem como ação, diante da variabilidade
cultural e/ou contextual das atividades lingüísticas. Tal avaliação aplica-se tanto no âmbito
das pressuposições teóricas desta tese, segundo as quais a linguagem é a atividade
constitutiva dos mundos que vivenciamos enquanto observadores que linguajam seus
mundos, quanto no âmbito de trabalhos desenvolvidos por outros pesquisadores,
conformo aponto na Seção 2.4.3, a seguir.
Joseph et alii (2001: 104) apontam um interesse de Austin em formular
modelos prévios de significado. Ao argumentar em termos da existência de um sentido
livre de contexto, Austin parece manter a tensão firthiana entre a importância atribuída
às palavras enquanto objetos fixos, institucionalizados, e a afirmação de que cada
palavra, quando usada em um novo contexto, constitui uma nova palavra.
Joseph et alii (2001: 91-106) interpretam o ato de fala como uma hierarquia
na qual os atos ilocucionário e perlocucionário constituem uma superestrutura construída
sobre o ato locucionário de enunciar palavras, que têm um significado prévio, indepen-
dente do contexto, constituindo uma compreensão embutida e fossilizada dos objetos
do mundo. Nos atos de fala, a atribuição desse significado prévio às palavras é visto
por eles como um efeito perlocucionário não-pretendido de atos de fala prévios. O
problema dessa interpretação de Joseph e colaboradores é a forte ligação mantida
com um substrato lingüístico estático. Com efeito, o ato ilocucionário nem sempre é
óbvio a partir da forma de superfície de uma sentença, especialmente se nos basea-
mos exclusivamente no léxico e ignoramos a multimodalidade constituinte das
interações, conforme certas análises conversacionais – por exemplo, Goodwin,
Goodwin, & Yaeger-dror (2002); Mondada (1998a, 1999) – vêm abordando. Uma solu-
ção para a proposta de Joseph e colaboradores consiste em considerar as unidades e
os sentidos da fala como construções êmicas, que os próprios participantes das ativi-
dades interacionais definem em um trabalho coletivo, no fluxo mesmo de suas ativida-
des, para os fins práticos da interação, conforme veremos na Seção 3.3.
A observação de Austin (1961: 202-3) de que as palavras arrastam “uma
nuvem de etimologia” pode ser considerada para modular a afirmação de que o senti-
61
do se estabelece abstratamente. Para Rajagopalan (1990: 231), manter a noção de sen-
tido como modelos de conteúdo locucional poderia ser visto como uma vacilação de
Austin ou um resquício, uma interpenetração de antigos conceitos ou ainda uma estraté-
gia para alcançar interlocutores da Filosofia Analítica, que buscavam obter uma lingua-
gem ideal a partir da linguagem comum, com o auxílio do esplendor matemático da lógi-
ca formal.
Avalio que tomar o ato de fala como o fenômeno a ser elucidado adquire
vigor se o entendemos como um conjunto de condições concomitantes à realização de
uma ação comunicativa. Os recursos locucionais, relacionados ao que configuramos
como sistema lingüístico, devem ser tratados como um dos elementos desse conjunto
complexo. Afinal, os sentidos estabilizados, os modelos de como as coisas aconte-
cem, não implicam uma aplicação categórica da estabilidade dos objetos lingüísticos
uma vez que, para o próprio Austin, em certas atividades lingüísticas as ações podem
estar distantes do modelo ou ser mais interessantes do que aquelas que originaram o
modelo. Ainda, segundo esse autor, em algumas atividades o modelo pode nem mes-
mo ser útil, antes desfavorecendo uma compreensão dos fatos ao invés de nos ajudar
a observá-los.
2.4.3 Entre o local e o universal, na linguagem como ação
A consideração de estados psicológicos que seriam universais levou Austin
(1962), Searle (1969) e Searle & Vanderveken (1985) a perderem de vista particulari-
dades desse componente dos atos de fala, como observou Duranti (1997:229-230). O
antropólogo Roy Rappaport (1974) alertou para a distinção entre o ato de prometer,
observado, por exemplo, em rituais, e o cumprimento do ato. O analista conversacional
Michael Moerman (1988) mostrou que a atribuição de relevância ou irrelevância ou,
ainda, de adequação ou inadequação de um certo mapeamento entre o que é dito e o
que é referido tem um caráter local, e não universal, como se verifica, por exemplo,
quando o objetivo é divertir, comover ou ser polido. Em um trabalho de caráter etnográfico
com o povo filipino Ilongots, Michelle Rosaldo (1982) chamou-nos a atenção para a
variabilidade transcultural de atividades lingüísticas correlacionadas com o que
corresponderia a preocupações com a verdade e com a sinceridade e para a possibi-
lidade de certos grupos não disporem, no seu repertório conceitual, do ato de prome-
ter, nos termos discutidos por Searle (1969).
O trabalho de Rosaldo (1982) possibilita a distinção de duas tendências
quanto ao objetivo de teorizar a linguagem como ação. Para Searle e outros, o objetivo
é produzir um método para se chegar às condições necessárias e suficientes para a
comunicação humana, o que seria alcançado com a delimitação das condições de
felicidade e sinceridade, juntamente com vários princípios inferenciais, tais como os
62
postulados conversacionais, de Gordon & Lakoff (1975); as implicaturas conversacionais
ou o princípio da cooperação, de Grice (1982) e Levinson (1983). Enquanto teórica
pós-estruturalista da ação social, a pesquisadora delimita como objetivo da teoria for-
necer balizas para compreendermos como atividades lingüísticas particulares podem
sustentar, reproduzir ou desafiar versões de certa ordem social e de uma noção parti-
cular do ‘eu’, válida para essa ordem social.
Rosaldo (1982) argumenta que as pessoas manifestam uma compreensão
dos seus modos de estar no mundo através de atividades lingüísticas. Tomando as
observações de um sistema social particular no qual os homens manifestavam uma
tendência para demandar, enquanto as mulheres tendiam a satisfazer tais demandas,
ela concluiu que as atividades lingüísticas de um certo grupo social reproduzem um
sistema social particular, de modo que uma classificação dos atos de fala, em uma
sociedade, deveria vê-los como parte de práticas culturais através das quais um tipo
particular de ordem social é formulado e reproduzido. Portanto, na perspectiva dessa
pesquisadora, uma análise de atos de fala deve basear-se e informar-se na análise de
pensamentos, sentimentos e crenças das pessoas sobre a organização do mundo.
Pelo menos três aspectos foram criticados por Rosaldo (1982) na “leitura
oficial” do trabalho de Austin, desenvolvida por Searle e colaboradores como a Teoria
dos Atos de Fala: a ênfase sobre a verdade e sua verificação, como se pode perceber
nas condições de sinceridade ali formuladas; a centralidade das intenções na teoria da
interpretação implicada na Teoria e; o aspecto implícito da teoria do ‘eu’ ali embutida.
2.4.4 Entre a intenção dos falantes e os procedimentos socialmente contextualizados
As condições de sinceridade, que ocupam um papel central no trabalho
de John Searle e repousam em uma concepção de intencionalidade implícita, são
foco de críticas à Teoria dos Atos de Fala. A despeito de uma possível intencionalidade
originada em uma subjetividade do falante, não há garantias de que, nas interações,
haja uma primazia das intenções dos falantes pensadas em termos individualistas.
Assim, é necessário considerar que os outros participantes do evento podem de-
sempenhar um papel ativo na determinação do tipo de ação que se configura com
um enunciado. Duranti (1997: 18) chama a atenção para a existência de situações
nas quais as ações emergem não do falante solitário, em um turno único, mas são
colaborativamente definidas, em um processo de interação no qual os participantes
exercem um papel ativo.
A intencionalidade – assim como outros fenômenos presentes nas ativida-
des interativas, como os turnos de fala, o significado semântico das interações, a gra-
mática envolvida nelas, os símbolos, as palavras – também ocorre distribuída no contexto
interativo, não na mente de um indivíduo, e sua interpretação leva em conta contextos
63
específicos. Os participantes tentam estabelecer o que é evidência ou verdade e o que
isto pode querer dizer a cada momento. Para Duranti (1997), a intencionalidade está
embutida em práticas locais para a ação social. Essa formulação desloca um olhar da
linguagem como ação, de um enfoque individualista para um olhar orientado para uma
dimensão praxeológica da linguagem, para uma visão desse fenômeno em termos de
um conjunto de atividades semióticas integradas em atividades sociais, conforme trato
na Seção 3.3.1.2.
A distinção de Austin entre significado/ato locucionário e força/ato
ilocucionário sanciona a noção de linguagem como ação, capturando o fato de que
uma mesma seqüência de palavras pode desempenhar diferentes tipos de atos, com
diferentes forças em cada caso, além de reconhecer que há aspectos recorrentes
entre diferentes usos do mesmo significado, como indica Duranti (1997: 220-1). É
Duranti (1997: 226) ainda que enfatiza a importância da noção de entendimento, inter-
pretação ou compreensão (uptake) da força de um ato de fala, na reflexão sobre a
linguagem como ação desencadeada pelo trabalho de Austin. No entanto, os aspectos
procedurais envolvidas nessa atividade não são explorados nos desenvolvimentos do
seu modelo, pondera o autor. Ele adverte que a Teoria dos Atos de Fala não dá conta,
por exemplo, dos modos como os ouvintes tomam apropriadamente uma sentença
como um ato ilocucionário que se enquadre em um ou outro ponto da tipologia propos-
ta por Searle (1969) e Searle & Vanderveken (1985). Também ficam em aberto os
modos através dos quais uma força ilocucionária é codificada em um enunciado e em
que medida a interpretação ou compreensão da força segue princípios universais,
especialmente nos atos de fala indiretos, em que as sentenças, sem ter a forma gra-
matical de imperativos ou comandos, têm, convencionalmente, na maioria dos casos,
a força de um ato no qual tentamos levar as pessoas a fazerem coisas, podendo esse
ato ser classificado, portanto, como a expressão de um ponto diretivo.
2.4.5 A linguagem como ação, como Austin sonharia
7
A reflexão de Austin sobre os enunciados constatativos e performativos consti-
tui uma peculiaridade que tem sido diferentemente interpretada. Conforme esse filósofo,
cada vez que desempenhamos um ato locucionário também desempenhamos um ato
ilocucionário. Uma interpretação dessa observação consiste em trabalhos que buscam
apontar a existência desses enunciados, como o faz Costa (1996; 2006). Para Rajagopalan,
no entanto, Austin não estava engajado em salvaguardar tal dicotomia. Ao invés de sim-
plesmente destruí-la, ele a desconstruiu, nos termos de Jacques Derrida (1967, 1972), até
7
Em alusão ao artigo O Austin do qual a Lingüística não tomou conhecimento e a Lingüística com a qual
Austin sonhou (Rajagopalan, 1996).
64
chegar à idéia da sua insustentabilidade. Então, invertendo a hierarquia, Austin concluiu que
o enunciado constatativo, “cuja existência era a única certeza que havia no início das reflexões,
nada mais é do que um performativo que conseguiu se disfarçar muito bem e enganar muita
gente durante muito tempo” (Rajagopalan, 1990: 238).
Austin (1962) atribui ao ouvinte um papel ativo quando nos adverte para
distinguirmos entre a produção de efeitos ou conseqüências que são intencionais ou não
e entre uma situação em que a pessoa que fala pretende causar um efeito que pode não
ocorrer e, ainda, entre uma situação em que a pessoa que fala não tenciona causar um
efeito ou tenciona deixar de causá-lo e, no entanto, o efeito ocorre. Tratando também
dessa característica interacional, social, da linguagem e da realidade, trazida à mão na
reflexão de Austin sobre a dicotomia constatativo/performativo, Duranti (1997: 222)
observa que qualquer comunicação ocorre em um contexto particular, que serve para
avaliá-la. E complementa: falando, as pessoas não só descrevem adequadamente o
mundo, como criam um mundo, conforme seus desejos e necessidades que, por sua
vez, também estão ligados à ordem social na qual os indivíduos interagem.
Foi também nessa desconstrução que Austin fez reconhecer que o fazer
não está à mercê do dizer. Conforme Rajagopalan, (1990: 238), “no fim das contas, o
que vale mesmo é a obtenção das condições (concomitantes ao proferimento) e não o
dizer puro e simples de um conjunto de palavras”. O que podemos depreender da
desconstrução do par constatativo/performativo é que Austin reconhece a centralidade
da interação social na constituição da linguagem. Tal reconhecimento contrapõe-se a
uma concepção autonomista, que considera a linguagem como um objeto descolado
do viver social. Concomitantemente, ele corrobora uma concepção de realidade como
decorrente das nossas interações sociais.
Austin (1962) sugeriu que convenções culturais e sociais provêem a
interpretabilidade e a eficácia de enunciados performativos. Um conjunto de conven-
ções reconhecíveis provê a infra-estrutura através da qual os enunciados ganham
força como um tipo particular de ação.
No dizer de Rajagopalan (1990: 228), o Austin do Quando dizer é fazer
revela-se
um tanto incomodado e inconformado (...) e, porque não dizer, um
tanto desconfiado e, em certos momentos, até vacilante, quanto a qual-
quer decisão apressada [diante das] conseqüências de alcance
inimaginável que [decorrem do reconhecimento da] impossibilidade,
não só metodológica mas sim conceitual, de se apoderar de um ponto
de vista transcendental diante da linguagem, isto é, um ponto de vista
genuinamente METAlingüístico.
Através da reflexão proporcionada pelo trabalho de Austin, podemos reco-
nhecer que, se levarmos o caráter social, cultural, situado, inter-subjetivo da lingua-
65
gem às suas últimas conseqüências, conceberemos como irrealizável o sonho de che-
garmos a verdades totalizantes sobre ela. Tal reconhecimento implica conjugarmos
esforços de estudiosos diversos – biólogos, filósofos, lingüistas, sociólogos, antropólo-
gos – em uma abordagem dinâmica e local de fenômenos lingüístico-interacionais.
Para os propósitos desta investigação sobre o linguajar na comunidade dos
Tipis, considero, pois, inadequada uma formalização de caráter universalista e formalista
decorrente da reflexão de Austin sobre o ato de fala, cabendo antes abandonar um
viés desse tipo ocasionalmente presente em interpretações do seu trabalho. Pode-
mos, então, tomar as suas reflexões sobre quando ‘dizer algo’ toma a forma de um
‘fazer algo’ como uma referência importante para uma compreensão e análise da lin-
guagem como uma ação social, emergente, situada e contingente.
A reflexão sobre o local e o universal na linguagem, em torno das formula-
ções de Austin e/ou dos seus discípulos, sugere considerarmos:
a) a efetividade de cada ato de fala, em suas circunstâncias específicas;
b) o caráter local das relações em que os participantes de atividades
interacionais constroem suas referenciações do mundo;
c) as influências da variabilidade transcultural, na aplicação de modelos ana-
líticos e categorias de análise;
d) os nexos de atividades particulares com dinâmicas correlacionadas a uma
certa ordem social de um grupo específico.
As críticas à ausência de uma preocupação analítica com os modos de atuação
dos participantes de eventos sócio-interativos apontam para a necessidade de lançarmos
mão de uma abordagem praxeológica e procedural das atividades lingüístico-
interacionais, conforme veremos no Capítulo 3.
2.5 Linguagem, Cognição e Cultura nos Contextos Sócio-Culturais
No campo da Antropologia, diferentes formulações expressam implícita ou
explicitamente pressupostos epistemológicos relacionados à descrição do ser huma-
no e da sua atuação em um meio sócio-cultural. Essas formulações delimitam o que
pode ser tomado como objeto de estudo em cada corrente ou o escopo das descrições
dos objetos, em termos das inter-relações entre linguagem, cognição e cultura.
A Antropologia Cognitiva, representada principalmente por Ward Hunt
Goodenough, adota uma concepção computacional de linguagem e entende a cultura
como conhecimento e a cognição como um fenômeno aprendido, individual, encontrado
nas mentes e nos corações dos homens (Goodenough, 1981). Essa corrente tenta deter-
minar o que é significativo para os membros de uma cultura e como eles representam
66
mentalmente esse conhecimento em princípios lógicos organizadores, representados pelo
antropólogo como um sistema de regras. Assim, as diferenças entre várias culturas são
postas em termos de diferenças nos conjuntos de princípios lógicos.
A Antropologia Funcional é representada principalmente por Bronislaw Kasper
Malinowski
8
. Para ele, mais do que um pensamento interno, abstrato, a linguagem cons-
titui-se como um modo de ação. O significado das palavras depende da experiência
prática e da estrutura de cada enunciado, na situação momentânea da fala. As instituições
humanas e as situações de fala devem ser observadas no contexto amplo da cultura.
Malinowski atribuiu uma primazia do biológico sobre o cultural, entendendo
que as instituições humanas e as atividades parciais nelas embutidas relacionam-se a
necessidades biológicas, classificadas como primárias, e a necessidades culturais,
ditas derivadas. O seu conceito de função diz respeito à “satisfação de um desejo
orgânico, em um cumprimento do ato que o mesmo invoca”. Comungar, por exemplo,
estaria relacionado a um sistema de crenças determinado por uma necessidade cultu-
ral de unificação com o Deus vivo. Joseph et alii (2001: 56) referem-se aos trabalhos
de Gipper (1976), Voegelin, Voegelin & Jeanne (1979) e Malotki (1979; 1983) como
uma retomada, em outra chave, do tom behaviorista da primazia do biológico sobre a
cultura, presente nas concepções de Malinowski. A busca, por parte desses pesquisa-
dores, de uma articulação equilibrada entre as histórias filogenética e ontogenética
ecoa com o suporte formulado pela Biologia do Conhecer, conforme o que argumentei
no Capítulo1 desta tese.
Contrariamente a uma distinção romântica entre línguas ‘civilizadas’, devo-
tadas à comunicação de pensamentos, e línguas ‘primitivas’, devotadas ao fazer coi-
sas, o etnógrafo inglês reconheceu o uso pragmático de enunciados como próprio a
qualquer língua, antecipando várias idéias da empreitada interdisciplinar pragmática
de Stephen Levinson (1983). Para Duranti (1997), um dos principais problemas de
Malinowski é que ele não desenvolveu um quadro conceitual para analisar diferentes
funções da fala ou diferentes tipos de relações entre enunciados e atos sociais. Esta
crítica de Duranti é consistente com o que ele havia observado na obra de Austin: a
ausência de referenciais procedurais e metodológicos para se chegar a uma aprecia-
ção do que foi proposto.
A Antropologia Simbólica é representada principalmente por Clifford James
Geertz. Para ele, as pessoas criam significados na interação social, no seu linguajar
verbal e não-verbal, e as ações individuais nada significam em si mesmas: um outro
indivíduo suplementa uma ação individual e os significados são atribuídos conjunta-
mente. É ao longo de várias gerações que histórias de interações e mundos de signi-
ficados são gerados através de padrões de ações dos seus participantes. Para Foley
8
http://www.iscsp.utl.pt/~cepp/autoresingleses/malinowski.htm.
67
(1997: 15), isto atribui aos significados o seu caráter convencional público e o caracteri-
za como uma remodelagem do passado, uma reutilização diferenciada, nas relações do
presente, de coisas moldadas em histórias passadas.
Adepto da versão forte da relatividade cultural, Geertz (1989a) empreende
uma concepção semiótica de cultura, entendendo-a como uma rede de disposições
habituais; uma cadeia de signos historicamente contingentes; um sistema de significa-
dos públicos, codificados em símbolos partilhados e articulados em comportamentos
vistos como uma ação simbólica, social, que ocorre em lugares particulares e com
histórias particulares.
Na concepção geertziana, os símbolos expressam as disposições habituais
e as práticas culturais. Eles constituem uma classe de signos que porta uma relação
convencional nas suas significações, sendo expressões públicas de compreensões e
práticas partilhadas entre membros de uma mesma cultura. Os significados culturais
não são compreensões privadas, auto-contidas, e não estão nas mentes individuais,
mas são partilhados pelos atores sociais. Foley (1997: 16) observa que, na antropolo-
gia geertziana, as fontes culturais são ingredientes, e não acessórios, do pensamento
humano, que também se constitui como um fenômeno social e público, e não uma
função privada de uma mente individual.
A Biologia do Conhecer favorece uma compreensão do nosso ser humano
na qual os domínios da fisiologia e da conduta são legitimamente distintos e
operacionalmente congruentes. Nessa compreensão, linguagem, cognição e cultura
são abstrações do domínio do comportamento e co-ocorrem com a dinâmica fisiológi-
ca. Esses pressupostos permitem avaliar nos seguintes termos as correntes antropo-
lógicas acima:
1) A Antropologia Cognitiva modeliza o ser humano em termos de uma
máquina e considera linguagem e cultura em termos de realidades e
regras mentais, o que constitui um problema epistemológico e operacional
para uma investigação que considera uma distinção entre os domínios
da fisiologia e da conduta e destaca o caráter emergente e contingencial
das atividades lingüístico-interacionais situadas.
2) A Antropologia Funcional modeliza o ser humano e a linguagem em ter-
mos de uma determinação biológica não-sistêmica, que dicotomiza e
hierarquiza as relações entre os domínios da conduta e da fisiologia hu-
manas, podendo deixar obscuros os modos como as inter-relacões en-
tre linguagem, cognição e cultura são tratadas em análises de práticas
lingüístico-intercionais situadas.
3) A Antropologia Simbólica argumenta em termos de um pertencimento
sociológico da cultura e destaca o aspecto público dessa conduta social.
68
Embora o símbolo seja explicado enquanto um objeto relacional, a ausên-
cia de uma distinção explícita entre os domínios da conduta e da fisiologia
humanas cria um problema para a postulação de um partilhamento inter-
individual dos significados simbólicos: como esses significados são parti-
lhados? Que descrição da nossa biologia comporta tal concepção de
partilhamento?
Esta tese propõe uma descrição etnográfica do viver na comunidade dos Tipis
e uma análise dos procedimentos dos participantes de uma reunião da Associação de
Moradores daquela comunidade guiadas por uma compreensão do linguajar como algo
emergente, contingente e culturalmente situado. Nessas análises, considero uma profusão
de fatores que colocam a ação lingüística na perspectiva de uma objetividade entre
parênteses, uma vez que proponho examinar:
a) os objetos co-construídos em atividades lingüístico-interacionais;
b) a ordem social formulada e/ou reformulada na interação;
c) a relação mais ou menos segmentada observada no recorte específico
de cada atividade lingüístico-interacional analisada.
O exame dos aspectos acima mencionados implica considerar o complexo
de relações de vários tipos entre os componentes de um contexto de situação localiza-
do em certa ordem social: as pessoas e seus comportamentos específicos, o cenário
e os equipamentos acessórios, as palavras e o que ocorre antes, durante e depois que
são proferidas.
De uma perspectiva antropológica, o exame desses componentes deve tentar
evitar problemas apontados no fazer específico de cada uma das correntes antropoló-
gicas aqui mencionadas, em termos da descrição do que é o ser humano e a lingua-
gem, como também em termos do modo como são observadas as inter-relações entre
linguagem, cognição e cultura.
2.6 As Balizas para um Tratamento da Linguagem como Atividade Situada
As avaliações que diversos estudiosos fizeram de proposições teóricas e/
ou analíticas tomadas aqui como significativas para uma visão da linguagem como
ação; as implementações dessas propostas em práticas situadas de pesquisa; as re-
flexões ulteriores decorrentes dessas práticas e; o exame desse trabalho, que aqui
efetuo a partir de pressupostos epistemológicos da Biologia do Conhecer, indicam
importantes facetas a serem consideradas na compreensão de fenômenos do viver
relacional humano que surgem nas inter-relações entre linguagem, cognição e cultura,
69
especificamente em uma interpretação do viver ordinário dos participantes da comuni-
dade dos Tipis.
As avaliações teórico-analíticas sugerem como aspectos críticos do fazer
científico aqui delimitado:
a) a atribuição de universalidade ao que é situadamente variável, a saber, a
linguagem e a cognição, seja entre o que observamos como distintos
conjuntos de práticas culturais ou redes conversacionais, seja no interior
do que delimitamos como um mesmo conjunto dessas práticas;
b) o preconceito de acharmos que os traços que fenômenos sócio-culturais
e interativos parecem ter constituem uma descrição satisfatória das rela-
ções que constituem esses fenômenos;
c) o tratamento inadequado de tensões entre estabilidades e instabilidades
observáveis em práticas lingüísticas efetivas.
A vastidão de aspectos, fatores e relações apontados pelos estudos até
aqui recenseados torna no mínimo delicada a tarefa de um analista que busque
considerá-los todos. A implementação analítica desses modelos pode tornar-se pro-
blemática, por exemplo, se o pesquisador lidar com as explicações científicas como
se elas fossem autônomas relativamente ao observador e ao próprio fenômeno ex-
plicado e como se o fenômeno observado tivesse uma objetividade, uma indepen-
dência no mundo.
Um afã objetivista pode até justificar uma busca por descrições
totalizantes da linguagem. Todavia, se operamos com uma concepção de lingua-
gem como ação, o que temos a observar são as condutas e os procedimentos dos
interactantes, que atuam como co-construtores dos seus mundos consensuais e
lançam mão de uma inteligibilidade intersubjetiva, voltada para os fins práticos da
interação que levam a cabo.
Um problema a ser considerado em uma análise do tipo acima mencionado
é que, vista como um fenômeno relacional e como uma conduta de atores sociais, a
linguagem se exibe de modo emergente e contingente com um meio que, de modo
reflexivo, é construído ele próprio pela conduta dos seus co-construtores, sendo pois
emergente na linguagem e contingente com ela.
Uma descrição circular da relação entre linguagem e meio está presente
nos pressupostos teóricos da Biologia do Conhecer. Se aceitamos essa descrição e
outros pressupostos dessa teoria, concordamos que na base de descrições objetivistas
da linguagem está uma inadequada distinção dos domínios da fisiologia e da conduta
humanas e, conseqüentemente, uma inadequada compreensão dos fenômenos
relacionais abordados.
70
Nos termos epistemológicos aqui delimitados, compreender a cognição, a
linguagem e a cultura como fenômenos relacionais pode tornar-se profícuo se lançar-
mos mão de um mecanismo explicativo sistêmico, não-reificador e não-reducionista,
da inter-relação entre a nossa biologia corpórea e a dinâmica relacional em que o
nosso ser humano ocorre.
Nas nossas investigações, essa compreensão dos fenômenos relacionais
pode ir sendo efetivada de modo coerente com suas bases epistemológicas se ques-
tionarmos os modos como os pressupostos adotados nas nossas observações nos
levam a considerar ou a tomar como dados elementos circunstanciais muitas vezes
vistos como triviais ou prosaicos, mas que são constitutivos dos nossos modos efeti-
vos de sermos humanos.
Conforme a discussão até aqui desenvolvida, favoreci uma concepção de
linguagem como ação ou conduta social, como um dos domínios da nossa existência
que exibe relações mais ou menos diretas, mais ou menos visíveis com outros fenô-
menos também observados na nossa existência.
Se uma investigação sobre inter-relações entre linguagem, cognição e cul-
tura baliza-se por uma tal descrição dos modos de funcionamento da linguagem, en-
tão essa investigação exige ferramentas analíticas que, dando conta da variabilidade
dos fenômenos envolvidos, permitam descrever os procedimentos dos atores sociais
na construção de seus mundos de objetos.
Uma compreenção da linguagem como ação social, nos termos até aqui
referidos, orienta o meu modo de observar o linguajar na comunidade dos Tipis. As-
sim, os diversos aspectos aqui suscitados pelas reflexões sobre a linguagem enquan-
to um fenômeno relacional constituem ferramentas com as quais exploro
etnograficamente inter-relações entre a linguagem e práticas sócio-culturais e cognitivas
observadas nessa comunidade. Além disso, essas reflexões sobre a linguagem orien-
tam a minha avaliação da Análise Conversacional stricto sensu como um modelo que
reúne condições epistemológicas e analíticas para uma descrição daquilo que ocorre
no evento lingüístico-interacional retratado no relato com que abro esta tese – uma
reunião da Associação de Moradores daquela comunidade.
No próximo Capítulo apresento fundamentos teóricos de investigações da
fala-em-interação: a Etnometodologia e seu braço mais especificamente lingüístico, a
Análise Conversacional stricto sensu.
71
CAPÍTULO 3 – O TRATAMENTO POLÊMICO DA LINGUAGEM COMO INTERAÇÃO
3.1 A Etnometodologia: Uma Análise da Ação e do Saber na Intersubjetividade
Social
Até a primeira metade do Século XX problemas teóricos relacionados ao
conhecimento, ao significado e à ordem social eram tradicionalmente tratados em ter-
mos de regras, referência e individualismo, conforme aludi no Capítulo 2. Ludwig
Wittgenstein, Charles Wright Mills e Harold Garfinkel consideraram essas noções ina-
dequadas para explicar a ação sócio-cultural e, por conseguinte, lingüística. De modo
independente, tomaram então as práticas sociais como uma abordagem alternativa.
O pensamento de Garfinkel, expresso em uma bibliografia disponível que vai
de 1967 a 2005, é freqüentemente interpretado como derivado da sociologia de Mills e
da Filosofia da Linguagem Ordinária, particularmente do segundo Wittgenstein. Porém,
o primeiro trabalho acadêmico de Garfinkel estava pronto em 1939, foi publicado em
1940 e já apresentava as bases da sua reflexão. Relacionando datas de publicações
desse três autores, Rawls (2002: 2) argumenta que Garfinkel “foi muito mais um contem-
porâneo de Wittgenstein e Mills do que um estudante do [seu] trabalho (...).”
Para Garfinkel, as contingências aparentes da ordem social devem ser con-
sideradas na formulação adequada de teorias do significado e da ordem social e, de
fato, ele tomou o estudo detalhado das práticas sociais como uma solução para pro-
blemas teóricos do conhecimento, do significado e da ordem.
Garfinkel observou que o caráter significativo, padronizado e ordenado da
vida cotidiana é algo que membros de uma sociedade devem trabalhar constantemen-
te para alcançar, utilizando-se para isto de métodos coletivos. Com esses métodos as
pessoas criam o ordenamento de ocasiões sociais ordinárias. Eles são constitutivos
dessas ocasiões, as práticas constitutivas sendo entendidas como aquelas que so-
mente podem existir de modo significativo se se tornarem reconhecíveis por aqueles
que as praticam. Seguindo esses princípios, a Etnometodologia estuda os métodos
através dos quais os membros de uma sociedade levam a efeito as atividades nas
quais estão engajados, produzindo ordens sociais reconhecíveis.
A Etnometodologia não se engaja na proposição de um mapeamento
conceitual da realidade e as descrições fornecidas no seu âmbito equalizam lingua-
gem, cognição e cultura em atuações sociais nas quais a realidade é constituída na
experiência dos atores. Conforme essa teoria, os indivíduos tornam inteligível e públi-
ca sua formulação linguageira da experiência: suas interpretações da experiência e da
linguagem. Nas suas atuações, os indivíduos lançam mão de aspectos históricos,
recursivos, de suas experiências culturais, para a co-construção da realidade, sob a
forma de objetos discursivos. Sendo históricos e exibindo, portanto, certa estabilidade,
72
esses aspectos exibem também, simultaneamente, um caráter ad hoc, singular, para os
fins práticos de cada interação levada a cabo.
Uma tal compreensão da ação social expõe compatibilidades úteis – para as
interpretações do viver interacional nos Tipis – entre a Etnometodologia e a Biologia do
Conhecer: para as duas teorias, domínios de consenso e objetos consensuais são co-
construídos na dinâmica dos comportamentos linguajeiros dos seres humanos, sem uma
determinação previamente hierarquizada de algum aparato biológico, cognitivo,
lingüístico, cultural, conceitual.
A Etnometodologia surge formalmente em 1967, com a obra Studies in
Ethnomethodology, de Garfinkel. Como uma nova análise sociológica, a Etnometodologia
surgiu, segundo Sharoock (2003) comenta, em meio a manifestações de reconhecimen-
to e objeções, confusões e incompreensões, tanto entre aqueles que de imediato a ela
aderiram, quanto entre aqueles que contra ela se colocaram. Com efeito, essa corrente
teórica tornou-se foco de uma atenção e de uma expectativa das quais não poderia dar
conta. O interesse e o entusiasmo iniciais deram lugar a ressentimentos e críticas. Con-
tudo, já nos anos 70 e 80, os pesquisadores que se mantiveram fiéis a ela produziram
uma extensa literatura na área, incluindo trabalhos da Análise Conversacional. Essa pro-
dutividade acentuou-se consideravelmente a partir dos anos 90. Com efeito, até 1990,
foram publicados mais de 400 títulos nas áreas da Etnometodologia e da Análise
Conversacional. De 1990 até meados de 2006, a produção nessas áreas ultrapassou a
cifra de 1.350 publicações
9
.
Com uma escrita densa, opaca, mesmo criptográfica, na avaliação de Heritage
(1987: 1), o etnometodólogo inaugurou essa abordagem com escritos que, apesar de
darem uma continuidade à teoria sociológica, não foram articulados em termos das refe-
rências clássicas desse campo teórico. Desse modo, ao mesmo tempo em que a sua
compreensão da ação social, das relações entre os sujeitos e do saber como uma cons-
trução social implica uma base epistemológica substancialmente distinta dos cânones
científicos da época, a obra de Garfinkel, sendo uma sociologia, não explicita a sua com-
preensão dos seres humanos enquanto organismos biológicos cognoscentes, como o
faz o mecanismo explicativo da Biologia do Conhecer.
A ausência de uma explicitação do componente biológico na epistemologia
de Garfinkel, no entanto, não gera um desenvolvimento problemático da Etnome-
todologia, do ponto de vista das balizas que aqui adoto. Com efeito, essa teoria man-
tém uma compatibilidade com pressupostos da Biologia do Conhecer relacionados à
compreensão:
9
Ver http://www.emca.net/bib-comp.html, http://www2.fmg.uva.nl/emca/EMCAOBIB.htm#S, http://
www2.fmg.uva.nl/emca/bib90’s.htm.
73
a) do que denominamos realidade enquanto resultante das nossas ativida-
des ontológicas e epistemológicas constitutivas de objetos;
b) por conseguinte, mas não necessariamente nesta ordem, da inteligibilidade
das ações dos sujeitos sociais na co-construção dos saberes;
c) do caráter situado, emergente e contingente das ações sociais, incluindo
os domínios de produção e validação dos saberes científicos;
d) do papel das atividades linguajeiras no desenvolvimento de todos esses
processos.
As investigações de Garfinkel centram-se sobre a teoria da ação social, a
natureza da intersubjetividade e a constituição social do saber. Elas se caracterizam,
então, por uma associação entre uma análise da ação dos participantes de uma ativi-
dade social e uma análise dos saberes exibidos e co-construídos nessa ação. Tal
proposição pode ser correlacionada com a cognição entendida pela Biologia do Co-
nhecer como o próprio viver dos seres humanos em um meio.
A Etnometodologia empreendeu a estratégia metodológica de estudar
os procedimentos de construção do sentido em situações excepcionais (breaching
experiments; Garfinkel, 1967a), nas quais a ordem normal das aparências é des-
mantelada por divergências, pelas condutas excepcionais ou surpreendentes, pela
supressão das expectativas, provocando, nos interlocutores, reações que tematizam
a ordem normativa subjacente à atividade em curso. Essa corrente teórica também
estudou os procedimentos de atribuição de inteligibilidade em situações que de-
mandam domínio de uma tarefa desconhecida ou de instruções para se tornar
competente, situação na qual o noviço descobre os procedimentos em questão.
Uma terceira estratégia metodológica da Etnometodologia foi a de estudar os pro-
cedimentos de construção do sentido em situações ordinárias, pela observação
persistente de atividades rotineiras, como a compilação de dossiês médicos
(Garfinkel, 1967b) e a descoberta de um novo objeto astronômico (Garfinkel, Lynch
& Levingston, 1981). Com essas estratégias metodológicas, Garfinkel realçou a
ação social como uma inteligibilidade localmente co-contruída e não a partir de
regras internalizadas.
A estratégia procedural da Etnometodologia foi posteriormente desenvolvi-
da pela Análise Conversacional stricto sensu, principalmente a partir dos anos 90,
através de estudos que se baseiam no registro e em transcrições de procedimentos de
participantes de atividades lingüístico-interacionais, conforme observam Gülich & Mon-
dada (2001: 19).
Nos termos da discussão aqui proposta, o foco dessas investigações suge-
re uma explicitação sobre como a teoria descreve o processo de cognição, a atuação
intersubjetiva dos sujeitos e o conhecimento.
74
3.1.1 Inteligibilidade e Saber na Ação Social
Além da associação a Wittgenstein e Mills, o pensamento de Garfinkel é
freqüentemente visto como uma reação à teoria da ação social, de Talcott Parsons
(1937). Contudo, é novamente Rawls (2002: 2) que argumenta que “[a] posição [de
Garfinkel] já havia sido concebida, pelo menos em linhas gerais, antes da sua ida
para Harvard para trabalhar com Parsons.” De todo modo, podemos ler Garfinkel
como pertinentemente contraposto à teoria parsoniana da motivação da ação, que
havia dominado a cena de Harvard nas duas décadas que se seguiram à Segunda
Guerra Mundial.
A teoria da ação social de Parsons (1937) lançou mão de uma metafísica
voluntarista, segundo a qual os sujeitos ordinários depreendem preciosos esforços
subjetivos para alcançar seus objetivos, normativamente valorizados e freqüentemente
de ordem não-material. Os atores sociais dispõem de um vasto leque de finalidades
das ações sociais que funcionam como um mecanismo para escapar do ‘problema da
ordem hobbesiano’. Interessado em dar conta desse processo, Parsons enfrentou a
questão da motivação. Em outras palavras, considerando o ‘caos no estado da nature-
za’, Parsons indagou: como os esforços ativos dos atores sociais se conciliam entre si
para manter as relações sociais, sem recorrer à força e ao engano?
A solução de Parsons, de inspiração durkheimiana, repousou sobre a idéia
de que os valores morais interiorizados na socialização podem exercer uma forte influ-
ência, tanto sobre as finalidades da ação, quanto sobre os meios pelos quais essas
finalidades são perseguidas. Para Parsons, embora esses valores sejam
institucionalizados sob a forma de um sistema de valor fundamental, a coesão social
emerge no partilhamento de objetivos e expectativas, sob a forma de modelos de
atividade coordenada.
Como Garfinkel avaliou, Parsons baseou o seu realismo analítico em um
quadro epistemológico neokantiano, segundo o qual adquirimos um saber válido do
mundo exterior, aplicando os cânones lógico-empíricos da investigação científica, atra-
vés de um processo de aproximação sucessiva. Essa teoria implica que uma ação
social bem sucedida apóia-se sobre um saber correto. Diante da persistência de sabe-
res inapropriados e de ações não-racionais, em um mundo social no qual, por hipóte-
se, os atores seriam melhor sucedidos se adotassem um ponto de vista mais científi-
co, a teoria voluntarista propõe uma explicação das ações não-racionais em termos de
disposições normativas.
Nessa conceptualização neokantiana do saber, a racionalidade científica é
considerada como o padrão fundamental em função do qual o saber e os julgamentos
dos atores devem ser avaliados. Assim, é possível ignorar o que seriam as caracterís-
ticas intrínsecas dos julgamentos não-racionais dos atores, para tentar explicar de
75
modo causal o fato de que, apesar de suas deficiências, os atores não param de atuar
em termos de ações não-racionais. Com efeito, Parsons parte do critério de que a
racionalidade do ator é avaliada em termos de uma compatibilidade com o saber cien-
tífico: se a ação do ator é compatível com esse saber, ela será julgada intrinsecamente
racional; se a explicação dada pelo ator concorda com uma explicação científica, ela
deverá ser vista como cientificamente apropriada.
Diante do fato de que as explicações dos atores geralmente não coincidem
com explicações científicas, Parsons propõe, então, uma explicação científica das ações
sociais em termos de motivação pelas normas e valores interiorizados. Cria-se, assim,
um abismo entre as ações racionais dotadas de suas razões próprias, compatíveis
com o saber científico, e as ações não-racionais. Nessas ações, o raciocínio dos ato-
res é desconsiderado em favor de explicações do comportamento baseadas em cau-
salidades normativas. Parsons explica a causa desse abismo, argumentando que os
valores morais não podem constituir uma profilaxia eficaz contra o caos hobbesiano e
que os membros de uma ordem social não são capazes de se orientarem instrumen-
talmente pelos elementos normativos que eles interiorizaram.
O efeito cumulativo das estipulações de Parsons marginalizam a compe-
tência dos atores sociais, transformando-os, no dizer de Garfinkel (1967a: 68), em
“brutos destituídos de julgamento”, cuja compreensão e raciocínio diante de situações
sociais escapam a uma abordagem analítica da ação social.
O trabalho de Garfinkel – não-positivista, mas, assim como o de Parsons,
inspirado em Durkheim – instaura uma outra concepção para a competência dos ato-
res. Voltado para as características contextuais da compreensão ordinária, Garfinkel
reorientou aspectos fundamentais da teoria sociológica, avaliando o modo complexo e
circunstanciado como os contextos dos eventos fornecem os recursos necessários à
sua interpretação. Com isso ele focou o seu olhar nos procedimentos inteligentes atra-
vés dos quais, conscientemente ou não, os atores sociais reconhecem, produzem e
reproduzem ações e estruturas sociais.
No dizer de Garfinkel, aquilo que os participantes das ações sociais fazem
para produzir e gerenciar a organização de seus afazeres cotidianos coincide com os
procedimentos que eles utilizam para tornar essa organização observável. Deste modo,
se olharmos para os modos de funcionamento das atividades sociais, veremos como
as pessoas atribuem legitimidade às realidades sociais observáveis e explicáveis nas
quais elas estão implicadas.
Na Etnometodologia, a competência dos atores recebe um novo valor dian-
te da exploração dos modos como os atores sociais analisam a situação nas quais se
encontram e como partilham a compreensão intersubjetiva que constroem local e
situadamente. A observação das circunstâncias dos atores sociais é vista então como
uma chave para a compreensão da sua ação no mundo.
76
Sem reduzir toda inteligibilidade e todo saber válido aos cânones próprios
da comunidade científica, Garfinkel observou que objetos de saber são formulados e
reformulados de um modo que é inteligível para os participantes das ações sociais,
podendo tornar-se disponível também para um analista desses procedimentos. Ao
mesmo tempo em que concebe a ação social ordinária como investida de inteligibilidade
e de saber, ele sinaliza as tarefas do seu programa de investigação como também a
dimensão que a observação empírica tem ali.
Essa concepção da ação ordinária enquanto uma ação inteligente pode ser
caracterizada como uma tomada de posição epistemológica, sociológica e política
compatível com o modo como o mecanismo gerativo da Biologia do Conhecer atribui
legitimidade aos diversos domínios das ações humanas e trata a validade de um domí-
nio de ação em termos de uma conduta adequada, associada à atuação do(s)
obervador(es) na constituição dos mundos de objetos consensuais, dependentes dos
seres que conhecem e nele vivem.
3.1.2 A Reciprocidade de Perspectivas na Cognição de Senso Comum
O modelo parsoniano superestimou o consenso normativo como uma ca-
racterística empírica das sociedades, dando pouca atenção a outros fatores de moti-
vação, na análise da ação social. Garfinkel destacou o fato de que Parsons atribuiu
excessivo valor aos problemas de motivação sem se voltar para a inteligibilidade que
permite aos atores sociais coordenar suas ações e orientá-las ao longo de seu desen-
volvimento. Ele opôs, então, à motivação e disposição parsonianas, a questão da
inteligibilidade e do saber e postulou que conceptualizar o saber que os atores apli-
cam às circunstâncias de suas existências é um elemento-chave para uma teoria da
ação social.
Os aspectos enfocados na solução garfinkeliana – os saberes e os procedi-
mentos dos atores sociais, o status desses saberes e procedimentos no quadro teórico-
analítico da ação social – dialogam com e se benefeciam do pensamento do filósofo Alfred
Schutz (1962, 1967). Esse fenomenologista propôs pressupostos e métodos da elabora-
ção situada, como a pressuposição da reciprocidade de perspectivas, segundo a qual os
membros atuam como se partilhassem um ponto de vista intercambiável sobre a ação.
A pressuposição da reciprocidade inclui métodos de elaboração situada do
que se passa, tais como o método do ad hoc, o método do etcétera e o método da
interpretação documental. Pela implementação do método do ad hoc, os raciocínios
gerais se adaptam às circunstâncias presentes. Pelo método do etcétera, listas de
eventos de uma ação, sempre necessariamente abertas, são consideradas comple-
tas. Finalmente, pela implementação do método da interpretação documental, o sentido
do que se passa é associado a um padrão subjacente, reconhecido e familiar.
77
Schutz entende que o mundo social é interpretado em função de categorias e
de construções de senso comum originadas nas práticas sociais. Essas construções
constituem recursos com a ajuda dos quais os atores sociais compreendem suas situ-
ações de ação, apreendem as intenções e as motivações dos outros, alcançam uma
compreensão intersubjetiva, coordenam ações e, em um plano mais geral, circulam
pelo mundo social.
Os conteúdos e características dessas categorias e construções devem for-
necer os fundamentos da teoria social, a referência da teoria social ao mundo social
da vida e da experiência cotidiana, garantindo, assim que o mundo da realidade social
não seja substituído por “um mundo fictício inexistente, criado pelo observador cientí-
fico” (Schutz, 1967: 8). Tais conteúdos e características exigem uma investigação sis-
temática, tanto no nível teórico quanto no nível empírico. Conforme veremos adiante,
a Análise Conversacional stricto sensu condiciona a teorização como uma decorrência
da investigação empírica.
A economia conceitual de Schutz remete a uma descrição relacional de
linguagem como coordenação de coordenação de conduta. A Biologia do Conhecer,
porém, atribui uma centralidade maior ao linguajar do que aquela encontrada no mo-
delo de Schutz. Para essa Biologia, o estar na linguagem é constitutivo do humano.
Ao teorizar sobre o saber e a cognição de senso comum, Schutz apontou
que diferentes perspectivas, biografias e motivações fazem com que os atores sociais
disponham de diferentes experiências do mundo. Apesar disso, eles podem conside-
rar suas experiências como ‘idênticas’ para todos os fins práticos. Desse modo, para
esse filósofo, as pessoas não põem em dúvida que as coisas correspondam à sua
aparência e que a experiência passada possa ser um guia confiável para o presente.
Nas ações da vida cotidiana, construções sociais de objetos e eventos, naturais e
sociais, funcionam como recursos pragmáticos para a construção das ações. A com-
preensão entre os atores, então, se estabelece através de um processo ativo, no qual
os participantes adotam a tese geral de uma reciprocidade de perspectivas, suspen-
dendo as dúvidas quanto à validade e utilidade das construções sociais.
A proposição da reciprocidade de perspectivas pode ser correlacionada à
adequação de uma conduta às suas circunstâncias, conforme Maturana (1999b: 62)
discute. Com efeito, Schutz entende que, nas ações cotidianas, os atores sociais se
orientam através de objetos e eventos, naturais e sociais, para a construção de obje-
tos e eventos, naturais e sociais. Eles são construídos e reconstruídos ativamente, no
fluxo da experiência, através de uma série de operações subjetivas, de sínteses de
identificação constantemente renovadas, em um quadro de familiaridade e conheci-
mento prévio, alimentado por um estoque de saber disponível, originado nas práticas
sociais. Esse estoque de construções sociais, em função do qual os atores analisam o
mundo, é conservado sob uma forma tipificada, sendo, pois, aproximativo e reversível.
78
A objetividade e a tipicidade dos objetos e eventos ordinários são tomadas
como dadas pelos atores sociais. É assim que esses objetos são estabilizados como
sendo “absolutamente idênticos”, apesar das mudanças que intervêm nas perspecti-
vas físicas a partir das quais eles são vistos e, nos casos de objetos animados, apesar
de suas formas mutantes e das suas múltiplas manifestações comportamentais (Schutz,
1967: 7).
Uma proposta semelhante a essa de Schutz, presente na teoria garfinkeliana,
pode ser, pois, compatibilizada com a concepção performativa da realidade, proposta
na Biologia do Conhecer, bem como com a descrição das operações de distinção
enquanto as atividades cognitivas fundamentais do ser humano e com a postulação
da recursividade enquanto o elemento instaurador das impressões de estabilidade
com as quais circulamos no meio social (Maturana, 2001b: 72), aspectos que conside-
ro basilares para a minha observação dos eventos interacionais dos Tipis.
3.2 A Investigação da Fala-em-interação
A Análise Conversacional surge nos anos 60, com os trabalhos de Harvey
Sacks, e teve desdobramentos interdisciplinares importantes, por exemplo, na Psico-
logia Social, na Lingüística e nas ciências cognitivas. Esse programa de pesquisa pre-
ocupou-se em formular uma disciplina observacional naturalística, para lidar rigorosa,
empírica e formalmente com detalhes das ações sociais configuradas na fala-em-
interação (Sacks & Schegloff, 1973).
A partir de meados dos anos 80, uma multiplicidade de abordagens da fala
e/ou da interação disseminaram-se, distribuídas em um continuum que vai desde uma
Análise Conversacional identificada com o trabalho iniciado por Sacks e caracterizada
como uma vertente lingüística do programa etnometodológico, até outras análises
parcialmente inspiradas em Garfinkel ou em Sacks, mormente quanto ao empréstimo
de aspectos técnicos e metodológicos. O trabalho de Gago (2003), que desenvolve
uma Análise da Conversa Etnometodológica, é um exemplo dessa distinção. Gülich &
Mondada (2001) utilizam o termo Análise Conversacional stricto sensu, para expressar
a afiliação etnometodológica de uma abordagem.
Os interesses teóricos, analíticos e metodológicos da Análise Conversacional
stricto sensu correlacionam-se com diversos fenômenos que inter-relacionam a lin-
guagem e a nossa condição biológica; a constituição dos nossos mundos de objetos;
os fundamentos da lógica, do raciocínio; aspectos diversos da vida sócio-cultural; a
abordagem da ação social, da natureza da intersubjetividade, da constituição do sa-
ber, temas tratados no Capítulo 2 e na Seção 3.1 deste Capítulo.
A Análise Conversacional stricto sensu – assim como a Etnometodologia,
que lhe deu origem – também foi alvo de manifestações de reconhecimento e de
79
críticas. Particularmente nos trabalhos de 1976 e 1983, o sociólogo canadense Erving
Goffman apresentou objeções ao esforço dos pioneiros Harvey Sacks, Emmanuel
Schegloff e Gail Jefferson para desenvolver ou reconhecer unidades formais da fala-
em-interação, como o sistema de troca de turnos, as organizações seqüenciais que
geram os pares adjacentes, os reparos, os sistemas de troca de fala
10
.
Em resposta a essas objeções, Schegloff (1988) confrontou práticas teóri-
co-analíticas de Goffman e da Análise Conversacional stricto sensu, discutindo os di-
ferentes modos através quais essas práticas movimentam o status empírico da
teorização; tratam a organização da fala-em-interação; definem seu objeto, suas uni-
dades de análise e o tipo de dados com que operam, conforme veremos adiante.
Goffman foi um dos primeiros a compreender a importância de um olhar
interdisciplinar para a Sociologia, introduzindo temas oriundos da psicologia ambiental,
da teoria dos jogos, dos estudos de padrões de comportamento (etologia), relaciona-
dos a pessoas em circunstâncias especiais. Schegloff (1988: 90) refere-se a influênci-
as dos trabalhos de Roger Barker e Herbert Wright (1954) e Thomas Schelling (1960).
A partir de 1955, Goffman introduziu vários recursos analíticos para a com-
preensão de traços e detalhes das interações, particularmente da conversa, relaciona-
dos ao estigma, aos padrões de comportamento, à análise de frames. Também viu a
importância e a dificuldade de se descrever o comportamento ordinário de modo ade-
quado. Com esse trabalho pioneiro, ele contribuiu para esboçar e delimitar analitica-
mente o objeto da investigação da interação face-a-face e trouxe para a Sociologia um
olhar dramatúrgico, na reflexão sobre a ação social.
O trabalho de Goffman – assim como os de Garfinkel e Parsons – teve
inspiração durkheimiana e voltou-se para objetos prosaicos localizados nas confluên-
cias entre a linguagem e a ação. Ele descreveu um encontro social como um sistema
de ação face-a-face, mutuamente ratificada e ritualmente governada (Goffman, 1964).
Posteriormente, postulou que o estudo da interação não deveria focalizar o indivíduo e
a sua psicologia, mas as relações sintáticas entre os atos de diferentes pessoas em
presença mútua (Goffman, 1967). Esse empreendimento não se deveria centrar na
fala nem insistir em particular na interação. A fala-em-interação constituiria, assim, um
convincente e atrativo campo de pesquisa. Com relação ao escopo descritivo da
terminologia, Schegloff (1988: 93) afirma preferir o termo fala-em-interação ao termo
conversa. O termo conversa , com o qual ora conoto qualquer evento lingüístico-interacional
ora rotulo o específico sistema de troca de turno descrito por Sacks, Schegloff & Jefferson
(1974), é distinto do termo conversação, com o qual Maturana conota especificamente o
entrelaçar consensual de linguagem e emoções.
10
Uma bibliografia detalhada de Eriving Goffman pode ser vista em http://www.tau.ac.il/~algazi/mat/bib-
goffman.htm.
80
Goffman indicou a importância de se tomar o caráter social do sistema
conversacional como um objeto de estudo e reconheceu que o “tráfego de comporta-
mento” é produto não somente do “motorista”, mas também das propriedades dos
“veículos”, das “rodovias”, do “combustível”, do “trânsito” etc. Contudo, a despeito da
compreensão pioneira do caráter sociológico da interação face-a-face, em boa parte
do seu trabalho ele não escapou do estudo do homem e da sua psicologia, o que pode
ser observado nas unidades de análise focalizadas, nos dados escolhidos e nas aná-
lises realizadas. Isto se deveu ao seu engajamento com as noções de ritual e face,
conforme Schegloff (1988) observou.
A sintaxe e os momentos sociais ou o “tráfego” – para usar a significativa e
bem humorada metáfora de Goffman – ganham destaque, relativamente ao homem e
sua psicologia, nas obras de 1961 e 1963. No trabalho de 1964, ele se concentra na
observação da situação social engendrada na interação face-a-face e só mais tarde,
nos ensaios de 1974 e 1979, focaliza as relações sintáticas entre as ações, justamente
quando desaparece o interesse no ritual. É ai que ele evita uma interpretação cognitiva
da noção de esquema de referência e se volta para a dimensão procedural da ação
social, salientando o aspecto social da noção batesoniana de enquadre, que indica como
sinalizamos o que dizemos ou fazemos ou como interpretamos o que é dito ou feito.
Goffman (1979: 72-74) entendeu a interação como acontecimentos sociais
ou “jogos” maiores, delimitados por jogos prévios e posteriores, mini-versões dos eventos
maiores, evocadoras de assuntos diversos da transação propriamente dita. Ele obser-
vou que durante a transação pode ocorrer de os interagentes se colocarem em uma
relação mais segmentada do que aquela verificada nos jogos prévios e posteriores.
Tais mudanças de curso, com eventuais alterações de destinatário, ocorrem inclusive
em interações em que há um reconhecimento formal da hierarquia. Assim, na interação,
observam-se mudanças significativas no footing, no alinhamento entre falantes e ouvintes,
vinculadas à linguagem ou a marcadores paralingüísticos.
Goffman (1979: 87) desenvolveu a advertência de Hymes (1974) para o fato
de que “o modelo didático comum falante-ouvinte às vezes especifica participantes
demais, às vezes, de menos, e, às vezes, os participantes errados”. Para isso, ele analisou
as sustentações estruturais das mudanças de footing, relendo e decompondo as noções
tradicionais, globais, de falante e ouvinte, e questionou a adequação da noção de encontro
conversacional para lidarmos com o contexto de fala, diante do papel de toda a situação
social, de toda a imediação. Assim, ele postulou que a elocução não é apenas um encontro
restrito, mas envolve, além do falante, interlocutores e não-interlocutores, com várias
possibilidades de participação e uma ampla diferenciação do(s) ouvinte(s). O falante
orienta a sua fala justamente em função dessa diferenciação dos participantes. Com
essa formulação, Goffman sugeriu formatos diversos para a elocução, com uma complexa
localização do(s) falante(s) em camadas que se podem sobrepor.
81
Conforme mencionei acima, Goffman (1976; 1983) criticou duas unidades
formais e genéricas da Análise Conversacional stricto sensu, respectivamente os
pares adjacentes e as relações de adjacência. Então, dirigindo-se ao último Goffman,
interessado na fala-em-interação, e não ao Goffman dramatúrgico, Schegloff (1988)
entabulou um “próximo turno”, avaliando toda a produção do canadense, esclare-
cendo incompreensões e discutindo temas que capturam aspectos e compromissos
nos quais o canadense e a Análise Conversacional stricto sensu diferem. Curiosa-
mente esse “diálogo” ocorreu já sem as presenças nem de Goffman nem de Harvey
Sacks. O próprio Schegloff (1988: 92-3) advertiu que a crítica a Goffman é projetada
da perspectiva da Análise Conversacional stricto sensu. Assim, podemos considerá-
la como elucidadora de contornos importantes na delimitação teórico-analítica e
metodológica dessa disciplina. Resulta disso que a contribuição de Goffman para o
domínio investigativo da interação face-a-face prolongou-se, através da discussão
de suas objeções à Análise Conversacional stricto sensu, para além da sua presen-
ça entre os participantes da comunidade científica interessada em delinear esse
campo de pesquisa.
As observações a seguir foram extraídas de Schegloff (1988). Ele desta-
ca os diferentes modos como Goffman e a Análise Conversacional stricto sensu
observam, capturam, formulam, analisam, compreendem a organização e a impor-
tância dos detalhes da interação ordinária, da fala-em-interação. Essas diferenças
dizem respeito:
a) à indistinção goffmaniana entre exigências, restrições ou considerações
sistêmicas e rituais;
b) à escolha de dados não-naturais, por Goffman;
c) à análise que ele fez desses dados e;
d) a uma confusão entre a organização de seqüências, que gera os pares
adjacentes como unidades da organização seqüencial, e a organização
de turnos, que gera uma sucessão de turnos.
As diferenças entre Goffman e a Análise Conversacional stricto sensu são
decorrentes do status das noções de ritual e face no modelo goffmaniano, em detri-
mento das unidades do sistema social da fala-em-interação. Também decorrem da
interferência de um sentido de tipicidade e do uso de uma estratégia retórica – e não
de uma contra-argumentação empírica, controlada pelos dados – para objetar unidades
formais e abstratas sugeridas pela Análise Conversacional stricto sensu.
A unidade tratada por Goffman não foi aquela mais formal e genérica implicada
pelas relações sintáticas entre as ações da interação face-a-face, como ele próprio pos-
tulou (Goffman,1967: 2), mas as contingências da organização ritual e preservação da
82
face. A interação é vista como algo organizado, mas essa organização é dirigida pela
função de assegurar as necessidades rituais do indivíduo.
A identificação de Goffman (1971) com o ritual e com a face enquanto
unidades da análise aparece em dois ensaios dessa obra, nos quais discute a manu-
tenção e restauração das relações diretas entre os atores em termos de regras ou
propriedades rituais. O conceito de face direciona seu trabalho para uma abordagem
individual e psicológica em dois níveis: por um lado, a organização da interação tem
o seu detalhamento dirigido por uma preocupação com o indivíduo e seus interesses
– a face; por outro, a conduta é abordada e compreendida em referência à preserva-
ção da face.
A escolha de dados não-naturais, “inventados” ou “domesticados”, no dizer
de Schegloff (1988: 103, 106), mostra que Goffman estava persistentemente interes-
sado no indivíduo mais do que na estrutura da interação e sua sintaxe. Para ele, a fala
é interacional no sentido de que é projetada em função do receptor ou é sensível à
audiência, mas não em termos dos seus mecanismos organizacionais. Para dar conta
do ritual, o sociólogo optou por estudar a fala não-interativa, altamente especializada,
uma vez que os dados conversacionais ordinários não apresentavam o aparato da
restauração ritual da face.
Suas análises tinham o objetivo de ilustrar algum ponto em um amplo argu-
mento não controlado pelos dados. Ele adicionou enunciados não-naturais a enuncia-
dos naturais para garantir afirmações sobre o mundo, enquanto uma teorização sobre
a conversa. Mesmo quando era possível, ele não usou os detalhes acessíveis de da-
dos naturais de um modo diferente das suas referências anteriores aos dados. Refe-
rindo-se a dados analisados nos trabalhos de 1981 e 1976, Schegloff (1988: 104-7)
observa que Goffman não estava interessado em explorar os detalhes de eventos
efetivos, naturais, e não focalizou suas análises em dados desse tipo, mesmo quando
os tinha.
A propósito do trabalho com dados não-naturais, Schegloff (1988: 103-4)
argumenta que, na análise de dados gravados o analista encontra detalhes problemá-
ticos. No entanto, ele deve considerá-los possivelmente relevantes, mesmo sem saber
como. Dados desse tipo não surgem em cenas de um mundo tratado em termos de
detalhes típicos e transparentes. Eles, por assim dizer, decorrem da agenda dos ato-
res, surgem para os fins práticos que se colocam no fluxo de interações efetivas. Quando
encontramos um dado problemático esperamos que uma solução para eles contribua
para a compreensão do objeto, seja a interação, a conversa, a linguagem. Quando o
analista lança mão de dados inventados restam dúvidas se o que está sendo apresen-
tado é uma decisão arbitrária do analista sobre como representar um tipo de enuncia-
do intuído, se se trata de uma decisão de colocar o enunciado justamente daquele
modo, para os propósitos do argumento que está sendo construído, ou se se trata de
83
um modo real ou efetivo de falar ou de uma versão incompleta de fala real. De qual-
quer maneira, permanece a questão: Que abordagem está sendo desenvolvida e quais
os níveis de análise?
Para Schegloff (1988: 1003-104), trabalhar com dados inventados pode ser
desejável para uma indicação e justificação não refinada de um campo de estudo,
para uma materialização do potencial desse campo. Porém há reservas se o que se
deseja é uma abordagem empírica do modo como uma interação natural ocorre. Para
isto é preciso analisar amostras particulares de fala e, em princípio, qualquer amostra.
Schegloff (1988: 109-118) observa que Goffman confunde a organização
de seqüências, que gera os pares adjacentes como unidades da organização seqüencial
e a organização de turnos, que gera relações de adjacência entre turnos sucessivos
de uma fala. Goffman objeta a unidade seqüencial par adjacente, lançando mão de um
sentido de tipicidade e de uma estratégia retórica. Ele opera de um modo implícito,
uma vez que não usa a análise de dados naturais como o fundamento da sua objeção,
e identifica todos os pares adjacentes como um tipo único. Como resultado, encontra
problemas em tratar essa unidade seqüencial como uma unidade genérica.
A tal objeção, Scheglofff (1988: 97-110) contra-argumenta que a Análise
Conversacional stricto sensu introduziu a unidade genérica par adjacente justamente
para evitar o problema de tratar algum tipo particular de unidade seqüencial como um
protótipo. São consideradas genéricas aquelas unidades que terão alguma versão em
operação em qualquer ocorrência da fala. Esse caráter genérico decorre de uma histó-
ria dos agrupamentos humanos como grupos sociais para os quais uma ação é algo
que é responsivo a uma outra ação.
Os tipos particulares de unidades seqüenciais exibem diferentes relações
entre as primeiras e as segundas partes. Assim, pares adjacentes do tipo cumprimen-
to-cumprimento envolvem a troca de objetos cognatos ou do mesmo termo. Os tipos
oferta-aceitação/recusa envolvem uma quantidade limitada de determinadas respos-
tas alternativas. Os tipos questão-resposta envolvem turnos complementares, relati-
vamente não-especificados. A proposição de um par adjacente do tipo questão-res-
posta é compatível com uma gama considerável de relações entre dois enunciados.
Esses três tipos particulares de unidades seqüenciais, todavia, não exaurem as rela-
ções que podem ocorrer entre as primeiras e as segundas partes dos pares adjacen-
tes. Uma relação seqüencial que opera acima das diferenças particulares caracteriza,
pois, a unidade abstrata ou formal introduzida como par adjacente.
Essa crítica ao trabalho do Goffman destaca contornos importantes na de-
limitação teórico-analítica da Análise Conversacional stricto sensu, no que diz respeito
ao caráter empírico que orienta as preocupações teóricas dessa disciplina, às ques-
tões a que se dirige, às unidades abstratas ou formais eleitas para a análise. Tais
contornos dizem respeito ainda à escolha de dados naturais, à análise de detalhes dos
84
dados, como também à adoção de um olhar analítico não informado por referências
prévias à própria análise.
3.3 A Análise Conversacional stricto sensu: Princípios e Objeto de Estudo
3.3.1 Princípios da Análise Conversacional stricto sensu
A Análise Conversacional stricto sensu beneficiou-se da descrição feita por
Schutz (1962), de pressupostos e métodos da elaboração situada tais como a pressu-
posição da reciprocidade de perspectivas e os seus métodos do ad hoc, do etcétera,
da interpretação documental, anteriormente mencionados.
Textos introdutórios à Análise Conversacional stricto sensu tratam do refi-
namento metodológico observado em análises inscritas nesse campo (Schenkein, 1978;
Psathas, 1990a; Schegloff, 1993). Contudo, uma mentalidade analítica, enquanto uma
interdependência entre a exposição teórica e análises efetivas, tem sido invocada para
explicar um pequeno interesse em produzir manifestos ou discussões da articulação
de pressupostos da disciplina. Curiosamente, como Gülich & Mondada (2001: 201)
observam, mesmo a obra Notes on methodology, publicada em 1984, não foi escrita
por Sacks, mas resultam de observações feitas por Gail Jefferson ao longo de cursos
oferecidos por ele.
Princípios invariantes da Análise Conversacional stricto sensu, no entanto,
constituem ferramentas fundamentais na consecução de suas análises (Mondada,
1998a). Dentre esses princípios há aqueles que dizem respeito mais diretamente ao
ordenamento do fazer teórico-analítico da disciplina, como a mentalidade analítica. Há
outros que dizem respeito à organização das atividades sócio-culturais e lingüísticas,
como o princípio da supremacia da interação e a dimensão seqüencial e temporal da
fala-em-interação. Há ainda princípios que dizem respeito ao modo de funcionamento
tanto do modelo teórico quanto da fala-em-interação, como as dimensões praxeológica
e êmica.
A integração desses princípios na implementação da Análise Conversacional
stricto sensu revela um modelo dinâmico, cujo objeto por ele projetado parece dar
conta da dinamicidade que diversos pensadores vêm observando em fenômenos en-
volvidos na linguagem como ação, conforme tratei no Capítulo anterior.
Uma pequena ênfase na explicitação de pressupostos da Análise
Conversacional stricto sensu e a eficácia de suas ferramentas têm possibilitado que
alguns de seus aportes específicos sejam freqüentemente aplicados em outros pro-
gramas de pesquisa, o que é possível justamente em virtude do potencial analítico
dessas ferramentas e aportes. Tal potencial analítico gera uma difusão de abordagens
que, às vezes, exibem uma indefinição relativamente a especificidades de contorno de
85
uma Análise Conversacional de inspiração etnometodológica, como Gülich & Mondada
(2001:196) observam.
A explicitação dos seus pressupostos e suas inter-relações possibilita ver
como a Análise Conversacional stricto sensu lida com tensões entre estabilidades e
variabilidades de fenômenos que ocorrem nas confluências entre linguagem, cognição
e cultura. Por um lado, esse modelo teórico aborda a estabilidade das organizações
genéricas da fala-em-interação, em termos de um sistema de troca de turnos. Esse
sistema engloba a organização de turnos, que gera relações de adjacência entre tur-
nos sucessivos de uma fala, e a organização de seqüências, que gera os pares adja-
centes como unidades da organização seqüencial. Por outro lado, essa disciplina cha-
ma-nos a atenção para a variabilidade dos sentidos e saberes co-construídos em con-
textos situados, em termos de sistemas de troca fala tais como a conversa, reuniões,
cerimônias, debates, entrevistas, entrevistas coletivas de imprensa, seminários, ses-
sões de terapia, julgamentos. Ainda, a explicitação de pressupostos da Análise
Conversacional stricto sensu possibilita ver como essa corrente teórico-analítica opera
com os traços e as relações que constituem as ações sócio-interacionais, além de
poder auxiliar na compreensão de um modo de descrever os procedimentos dos ato-
res sociais na construção dos mundos de objetos discursivos.
3.3.1.1 A mentalidade analítica e o status dos dados empíricos
Um exemplo flagrante do compromisso da Análise Conversacional stricto
sensu com uma mentalidade analítica pode ser visto no artigo de Schegloff (1988:
92), sobre Goffman. Embora parte do artigo assuma “a forma de um escrito discursivo
que é o idioma comum das respostas teóricas nas ciências sociais contemporâne-
as”, Schegloff prefere “pensar as seções [iniciais do seu] ensaio como uma série de
preparações discursivas para as análises empíricas que seguem [essas prepara-
ções discursivas iniciais]”. Com efeito, o ensaísta finaliza a sua resposta com uma
seção na qual examina “um episódio de interação escolhido por sua similaridade
com um dado tratado por Goffman”. Afinal, em contraste com a forma de um escrito
discursivo, o que conta para Schegloff são as análises práticas que emergem como
experiências dos atores.
A mentalidade analítica constitui, pois, a proposição de uma interdependência
entre a análise de casos concretos e a exposição do arcabouço teórico dessa análise.
Trata-se de um modo de teorizar sensível aos dados e suas análises. Essa mentalida-
de encerra um aspecto epistemológico importante, uma vez que nega a autonomia da
metodologia diante de práticas analíticas efetivas.
O caráter particular atribuído à questão da metodologia na Análise Conver-
sacional stricto sensu decorre da associação entre:
86
a) a mentalidade analítica;
b) a postulação de que as práticas sociais se ajustam aos contextos e às
contingências da ação e;
c) a compreensão de que o fazer científico constitui uma prática social situada.
A despeito do mencionado refinamento metodológico de análises efetivas, na
Análise Conversacional stricto sensu não se observa, pois, a proposição prévia de regras
metodológicas analíticas altamente estruturadas. O analista não define previamente, apoia-
do em seu modelo teórico, um passo a passo analítico estrito. Isso vai-se definindo à medida
em que ele toma e retoma seus dados, observando-os quantas vezes for necessário, com o
objetivo de descrever os procedimentos dos participantes do evento analisado.
A mentalidade analítica correlaciona-se com uma perspectiva empírica se-
gundo a qual resultam de análises de casos e de coleções de casos a proposição e a
argumentação tanto de unidades formais abstratas quanto de soluções para dados
problemáticos ou não, que contribuam para a compreensão de uma atividade sócio-
interacional. Na Análise Conversacional stricto sensu a teorização depende, pois, de
formulações empíricas, controladas pelos dados. Entende-se, portanto, que os dados
exercem um controle, relativamente a afirmações sobre o mundo, enquanto uma
teorização sobre a conversa.
Vale ressaltar que a idéia de controle das afirmações pelos dados não diz
respeito a uma atuação autônoma deles, uma vez que a análise é sensível ao quadro
teórico no qual o analista se insere. Esse controle também é delimitado pela sensibili-
dade do fazer analítico ao contexto e às contingências da ação de fazer a análise,
como ademais ocorre com qualquer prática social.
A consideração do status dos dados para uma disciplina naturalística leva
em conta, ainda, uma compreensão daquilo que autoriza Mondada (1998b) a falar de
uma fabricação dos dados, em virtude do caráter efetivamente interativo da sua obten-
ção, que se dá atravessada pelos vieses do pesquisador, da máquina e dos sujeitos
observados, discutidos adiante.
3.3.1.2 A dimensão praxeológica: o caráter situado e emergente da interação
O caráter praxeológico da Análise Conversacional stricto sensu decorre da
consideração da organização endógena e localmente situada das práticas sociais.
Considerar a dimensão praxeológica da linguagem implica vê-la como um conjunto de
atividades semióticas integradas em atividades coletivas.
Ao adotar um olhar praxeológico, Mondada (1998a) considera que os mode-
los normativos, as normas ou regras praticadas por um grupo social não são autônomos
ou externos às práticas, não tendo uma existência independente dessas práticas efeti-
87
vas. Uma regra social emerge contingencialmente, em uma prática localmente situada.
Considerando isto, o analista não define previamente o fenômeno a ser estudado, mas
olha detalhadamente para seus dados, com o objetivo de observar, por exemplo,
particularidades de um funcionamento efetivo do sistema de troca de turnos em sistemas
de troca de fala, como a conversa, ou em outras interações, como um debate ou uma
reunião. O escrutínio do analista também pode voltar-se para processos locais de
construção de objetos discursivos ou ainda para a multimodalidade dos recursos
agenciados pelos participantes de uma interação, para os fins práticos daquela interação,
da gramática (Mondada, 2000b) aos gestos (Goodwin, 1980). Como acontece com
qualquer escolha metodológica, a definição daquilo que o analista deve considerar não
se dissocia das referências epistemológicas do modelo, por exemplo, quanto ao modo
constitutivo segundo o qual as práticas sociais se organizam.
3.3.1.3 A supremacia da interação
O princípio da supremacia da interação ecoa com o caráter epistemológico
não-solipsista do mecanismo explicativo sobre a fenomenologia humana formulado na
Biologia do Conecer. Observa-se que o ponto de vista dos participantes de uma ativi-
dade sócio-interativa é sempre plural. A ação dos atores não releva de um indivíduo
isolado e suas contribuições não são vistas como participações singulares, que infor-
mam sobre o sujeito responsável por elas, mas como uma atividade interacional regida
por uma organização que engaja o coletivo dos participantes. Sinalizando o caráter
social das ações dos indivíduos, Duranti (1997: 18) chama-nos a atenção para situa-
ções nas quais as ações emergem não de um falante solitário, em um turno único,
mas são colaborativamente definidas.
Conforme Gülich & Mondada (2001: 202) afirmam, decorre do princípio da
supremacia da interação que
mesmo um ato aparentemente solitário e individual, mesmo um nível
de análise aparentemente independente não escapam a uma aborda-
gem interacional, que busca assim redefinir objetos tão diversos como
a cognição, a sintaxe, a gramática, pensadas como esferas autôno-
mas, não submetidas à contingência da ação.
A Análise Conversacional stricto sensu tem desenvolvido essa considera-
ção do papel ativo dos participantes dos eventos. Com efeito o caráter co-construído
dos fenômenos interacionais é central para essa corrente teórico-analítica. Gülich &
Mondada (2001: 209), por exemplo, observam que o turno de fala não é um feito exclusivo
do seu enunciador: o segundo participante contribui reflexivamente para estruturar o tur-
no do primeiro participante. Através da análise de um fragmento de uma fala pública do
Primeiro Ministro francês Jean-Claude Rafarin para trabalhadores daquele país, Monda-
88
da (2005b) demonstra analiticamente que os turnos de uma conversa têm uma dimen-
são social, co-construída, sejam eles constituídos de palavras, vaias, risos ou outros re-
cursos conversacionais. A pesquisadora sugere que as ações das atividades interativas
nunca emergem de um falante solitário. Mesmo diante de discursos que podem ser apre-
sentados como monológicos, a audiência participa ativamente.
3.3.1.4 A seqüencialidade e a temporalidade da fala-em-interação
Em conformidade com o caráter seqüencial da fala-em-interação, a ação
de um primeiro participante de um evento sócio-interativo projeta, normativa e
empiricamente, um conjunto de ações sucessivas. O segundo locutor torna observável
a sua compreensão ou interpretação do turno precedente. O primeiro locutor, por sua
vez, mostrará se aceita ou reformula o trabalho do segundo locutor (Schegloff & Sacks,
1973). Desse modo, um turno, não sendo uma construção individual, exerce sobre os
seguintes um limite normativo e uma ação retrospectiva e prospectiva, estruturadora
da forma como esses turnos serão formulados e compreendidos (Have, 1998).
A temporalidade da fala-em-interação, por sua vez, exibe as projeções e
antecipações dos locutores, bem como as recategorizações e redefinições que eles
fazem das unidades que co-constroem, para os fins práticos da interação.
Decorre dos mecanismos de seqüencialidade e temporalidade um entendi-
mento da compreensão como uma realização pública e intersubjetiva.
3.3.1.5 A dimensão êmica: o ponto de vista dos participantes e o fazer analítico
O caráter êmico da atividade sócio-interacional diz respeito ao fato de que
são os sujeitos da ação que definem, no fluxo de suas ações, os aspectos relevantes
da atividade na qual estão engajados. A dimensão êmica aplica-se tanto às unidades
formais, às categorizações e objetos de saber da fala-em-interação, quanto ao fazer
do analista.
Objetos êmicos são formulados, aceitos ou rejeitados, negociados, ajusta-
dos pelos participantes da atividade interacional, no fluxo mesmo dessa atividade. Um
turno de fala, por exemplo, constitui uma ação em um conjunto de ações de coordena-
ção de ação. Não sendo um feito exclusivo do seu enunciador, um turno incorpora a
conduta de seus ouvintes, que contribuem reflexivamente para a sua configuração.
Esse conjunto de segmentos vocais e/ou gestuais exibe, então, a escuta, a atenção, a
avaliação dos participantes. Nesses afazeres ocorrem ajustes e a produção de res-
postas pertinentes às ações atribuídas a cada turno, configurando, assim, o caráter
reflexivo do desenvolvimento do turno (Gülich & Mondada, 2001: 209). Uma descrição
êmica busca capturar justamente a escuta, a atenção, a avaliação dos participantes.
89
Uma vez que adota a dimensão êmica como um princípio, a Análise
Conversacional stricto sensu interessa-se não pelo que o analista e/ou o próprio parti-
cipante das atividades lingüístico-interacionais dizem sobre o que esse participante
disse, mas pelo que o participante fez quando disse o que disse e/ou ouviu ou viu o
que ouviu ou viu. Com isto, essa disciplina atribui inteligibilidade aos sujeitos que rea-
lizam publicamente a atividade interativa.
A dimensão êmica da Análise Conversacional stricto sensu fundamenta-se
em pressupostos básicos da Etnometodologia que dizem respeito a um interesse pe-
las características do saber passíveis de atribuição aos atores sociais e pelos modos
como esse saber deve ser analisado no quadro da teoria da ação. O modo como os
atores utilizam esse saber constitui outro interesse etnometodológico que fundamenta
a dimensão êmica e se traduz na abordagem procedural da vertente lingüística da
Etnometodologia.
Uma descrição êmica põe em movimento uma consideração do observador,
mas não de qualquer observador, na constituição das realidades. Os próprios atores-
sociais-em-ação são os observadores privilegiados pela perspectiva êmica. Ela não se
interessa nem por aquilo que o pesquisador anota sobre a interação nem por aquilo que
é reportado a postriori, pelo próprio ator, como o que ocorreu durante a interação. Para
dar conta dos atores como observadores-em-ação, o analista conversacional observa
um registro com o objetivo de explicitar os métodos pelos quais esses observadores
sustentam ativamente a ação, analisando aquilo que eles tornam observável e inteligível
nas suas ações de coordenação de ação, através da organização de suas condutas.
Essa descrição apóia-se, pois, nos procedimentos dos participantes da atividade
analisada, com o objetivo de reconstruir a sua ação, durante a realização mesma da
atividade. Com efeito, a perspectiva êmica privilegia enquanto observador todos e
somente aqueles que participam da atividade conversacional analisada, levando em
consideração o caráter social da implementação de um sistema de troca de turnos. Essa
co-construção interacional efetivada pelos participantes do evento constituirá tanto mais
um observável, para o analista, quanto mais adequadas forem as técnicas adotadas na
fabricação dos dados.
A despeito de uma certa objetividade que parece acompanhar a perspecti-
va da descrição êmica baseada em registros em vídeo, de situações interacionais
naturais – não se trata do que alguém diz sobre o que um outro alguém fez, mas daquilo
que alguém fez no momento mesmo da interação –, não avalio como sendo
epistemologicamente interessante postular uma descrição totalizante do complexo fe-
nômeno da interação sócio-cultural lingüística. Considero que, levado às suas últimas
conseqüências, o caráter relacional e situado da linguagem inviabiliza uma busca de
verdades totalizantes sobre ela. Além de injunções tecnológicas e de diferenças entre
o contexto do evento e o contexto da análise, a descrição feita pelo pesquisador, quan-
90
to ao que ele interpreta como um comportamento tornado público pelo(s) sujeito(s) da
ação, é sensível a – e supostamente condizente com – o quadro teórico a partir do qual
esse pesquisador atua. Ele aporta ao seu campo investigatório e analítico o quadro
teórico de que dispõe e a sua descrição é configurada pelas “lentes” dos seus domíni-
os de ação, que dizem respeito à sua experiência, incluindo as suas práticas culturais,
o quadro teórico epistemológico ao qual explicitamente ou não se afilia, um certo modo
de fazer ciência, decorrente desse quadro teórico, como também as suas emoções ou
disposições corporais, nas diversas fases da pesquisa.
3.3.2 O objeto da Análise Conversacional stricto sensu
No âmbito do Caminho Explicativo da Objetividade entre Parênteses, o fa-
zer analítico não se dá desarticulado, por exemplo, do reconhecimento ou não do
observador, na constituição dos domínios e mundos de objetos consensuais, pelo ci-
entista. Esse afazer não se desarticula, portanto, de certa concepção sobre o fazer
científico nem do mecanismo de que o analista e sua comunidade de interlocutores se
valem para gerar a fenomenologia da linguagem, da cognição e da cultura, no caso
dos fenômenos que aqui nos interessam.
Parto da seguinte declaração de Sacks (1984: 26), para tematizar uma con-
cepção de linguagem e o objeto da Análise Conversacional stricto sensu:
Comecei a trabalhar com conversas registradas em vídeo simples-
mente em virtude de que poderia repassá-las, digitá-las de algum modo
e estudá-las detalhadamente, sem saber quanto tempo isso poderia
tomar [...], não foi decorrente de um grande interesse na linguagem ou
de alguma formulação teórica daquilo que se deve estudar, mas sim-
plesmente em virtude disso, eu poderia pôr as minhas mãos sobre
[essas conversas registradas] e estudá-las outra e outra vez. E conse-
qüentemente outros também poderiam olhar para o que eu havia estu-
dado e fazer o que pudessem, se quisessem discordar de mim
11
.
Embora o registro em vídeo inclua vieses e limitações, conforme discutirei
adiante, são notáveis as vantagens operacionais dessa tecnologia, em termos das
possibilidades de trabalho tanto do analista quanto da sua comunidade de interlocutores.
Porém, o destaque dado por Sacks ao seu interesse pelo registro em vídeo e pelo de-
senvolvimento da tarefa analítica parece minimizar a importância da concepção de lin-
11
“I started to play around with tape recorded conversations, for the simple virtue that I could replay them;
that I could type them out somewhat, and study them extendedly, who knew how long it might take [...] It
wasn ’t from any large interest in language, or from some theoretical formulation of what should be studied,
but simply by virtue of that; I could get my hands on it, and I could study it again and again. And also,
consequently, others could look at what I had studied, and make what they could, if they wanted to
disagree with me.” Sacks (1984: 26). Tradução minha.
91
guagem que o analista conversacional stricto sensu põe em movimento quando pratica
uma análise.
No trecho cotejado, o dirigir-se ao material analisado sem uma formulação
teórica prévia, sem uma pré-definição do que deve ser estudado, articula-se com um
conjunto de escolhas, por exemplo, entre dar primazia às hipóteses e aos modelos, na
definição do objeto de estudo, ou assumir um modelo para o qual as hipóteses e
categorias são contingentes com as circunstâncias.
Ora, no interesse de Sacks de transcrever e olhar detalhadamente para os
registros de conversas podemos identificar uma concepção de linguagem como os
procedimentos dos atores sociais, portanto, como uma ação coordenada, uma prática
social plural. Da importância dada por Sacks aos procedimentos dos participantes das
conversas podemos derivar uma concepção dinâmica de linguagem, que constitui um
importante pilar para a Análise Conversacional stricto sensu. De acordo com tal concep-
ção, a inteligibilidade e o caráter ordenado, seqüencial, temporal, não-linear da linguagem
enquanto prática social são co-construídos publicamente pelos seus participantes, para
os fins práticos da interação. Ver a linguagem enquanto ação coordenada é vê-la como
uma esfera não-autônoma, que se submete às contingências e ao contexto das ações.
Esse contexto por sua vez é definido pelos participantes, no fluxo mesmo da linguagem-
ação. A linguagem, portanto, molda o contexto e é reflexivamente moldada por ele. Uma
tal concepção dinâmica de linguagem subjaz a definição do objeto da Análise
Conversacional stricto sensu.
Uma ‘análise da conversa’ ou uma ‘análise das conversas’ constituem a
conversa como o seu objeto de estudo, como pode ser visto nos trabalhos de Kerbrat-
Orechioni (1990, 1992, 1994, 1996); Cosnier & Kerbrat-Orechioni (1987); Cosnier,
Gelas & Kerbrat-Orechioni (1988); André-Larochebouvy (1984); Vion (1992). A Aná-
lise Conversacional stricto sensu, por sua vez, toma a conversa como a atividade
social fundamental, o lugar prototípico e central da vida social, da socialização, da
aquisição da linguagem e da manutenção da ordem social. Contudo, em consonân-
cia com sua inspiração etnometodológica, o objeto de estudo dessa corrente ana-
lítica diz respeito à organização inteligível das atividades dos membros de uma
sociedade.
A Análise Conversacional stricto sensu não está interessada particularmen-
te na fala. Também não se interessa em particular pela interação. A formulação dessa
corrente teórico-analítica no escopo de uma teoria da ação social motivou o seu inte-
resse no sistema da interação face-a-face e seus componentes sociais.
Os vários participantes de uma interação, um após o outro, constroem o
desenvolvimento do campo interacional, pelo reconhecimento do que alguém está
fazendo, a partir do modo como estão conduzindo a si mesmos, por exemplo, a partir da
fala, e agindo com base nessa compreensão. Esses aspectos estão entre as práticas
92
básicas pelas quais as ações interativas são realizadas. Eles subjazem a trajetória na
qual cursos de interação são progressivamente concebidos.
Na proposição fundacional da disciplina, a Análise Conversacional stricto
sensu interessou-se, pois, pelas exigências do sistema de troca de turnos. Segundo
Sacks, Schegloff & Jefferson (1974: 729), tais exigências dizem respeito:
1) à compreensão das mensagens;
2) aos mecanismos utilizados pelos participantes para atrair, manter e exibir
a atenção dos outros participantes;
3) à distribuição de turnos;
4) aos modos de alocar oportunidades para participar da interação;
5) aos modos de tornar partes distintas da fala coerentes com outras partes
em seqüência;
6) aos modos de lidar ou ignorar problemas na fala;
7) aos mecanismos utilizados pelos participantes para se identificarem ou
identificarem os outros.
Assim, o programa da Análise Conversacional stricto sensu buscou especi-
ficar as seguintes organizações genéricas da fala-em-interação:
a) uma organização de tomada de turnos, que aloca, restringe a extensão
e molda as oportunidades para a participação nos eventos interativos;
b) uma organização de pares adjacentes, que ordena seqüências de ações-
em-turnos e as propriedades dessas seqüências;
c) uma organização de reparos, que ordena oportunidades de ações de
certo tipo, lidando com problemas na fala.
Jefferson (1974) observa que um sistema genérico de troca de turnos opera
em sistemas específicos de troca de fala. A constituição de uma forma de fala como
uma ação social reconhecível envolve, pois:
a) a seleção de palavras em referência a considerações relativas ao
recipiente;
b) a organização da tomada de turnos, a sua disposição seqüencial e;
c) a produção de reparos ou a correção da fala no seu curso.
Essas organizações sociais genéricas da fala-em-interação subjazem a cons-
tituição, o reconhecimento e a coordenação da ação social. Schegloff (1988: 96, 116)
aponta então que o domínio organizacional ou o locus da organização é, portanto, o
93
domínio das ações e das oportunidades de efetuá-las e a investigação da Análise
Conversacional stricto sensu tenta entender como a fala-em-interação é organizada, o
que os participantes do evento fazem momento a momento, como os episódios vêm a
ter a trajetória que têm.
Quanto às unidades formais abstratas do sistema de troca de turnos, Sacks,
Schegloff & Jefferson (1974: 703) postulam uma alocação de turnos que envolve dois
grupos de técnicas:
a) o próximo turno é alocado através da seleção do falante seguinte pelo
falante corrente e;
b) o próximo turno é alocado através de uma auto-seleção.
Sacks, Schegloff & Jefferson (1974: 704) propõem ainda um conjunto bási-
co de regras que governa e coordena a construção de turnos, a alocação de um próxi-
mo turno para outro participante e a transferência desse turno, de modo a minimizar
intervalos e sobreposições de fala. Assim,
1) Para qualquer turno, no primeiro lugar relevante para a transição de
uma primeira unidade de construção de turno,
a) Se o turno foi construído até aqui envolvendo o uso de uma técnica
do tipo “o falante corrente seleciona o seguinte”, então o partici-
pante selecionado tem o direito e é obrigado a tomar o turno de fala
seguinte; nenhum outro participante possui tais direitos ou obriga-
ções, e a transferência ocorre naquele lugar.
b) Se o turno foi construído não envolvendo o uso de uma técnica do
tipo “o falante corrente seleciona o seguinte”, então a auto-seleção
para o próximo falante pode ser instituída, mas não necessaria-
mente; quem inicia primeiro adquire o direito do turno, e a transfe-
rência ocorre nesse lugar.
c) Se o turno foi construído não envolvendo o uso de uma técnica do
tipo “o falante corrente seleciona o seguinte”, então o falante cor-
rente pode – mas não precisa – continuar, a menos que outro falan-
te se auto-selecione.
2) Se no primeiro lugar relevante para a transição de uma unidade de
construção, nem 1a nem 1b operaram, e, seguindo a provisão de 1c, o
falante corrente continuou, então o conjunto de regras a-c reaplica-se
no próximo lugar relevante para a transição e, recursivamente, aplica-
se a seguir, em cada lugar relevante para a transição, até a transferên-
cia ser efetivada.
Observe-se que o sistema de troca de turnos, como visto por esses autores, é
um fenômeno ordenado, que não requer referência a aspectos de situacionalidade, iden-
tidades ou particularidades do contexto. Em instâncias locais de sua operação, esse
aparato é sensível e exibe a sua sensibilidade a vários parâmetros da realidade social,
em um contexto local (Sacks, Schegloff & Jefferson, 1974: 669). Assim, enquanto uma
94
descrição das ações sociais configuradas na fala-em-interação, essas unidades formais
abstratas do sistema de troca de turnos devem dar conta tanto de fenômenos invariáveis
quanto de fenômenos variáveis.
O caráter invariável das unidades do sistema de troca de turno pode ser visto
como uma decorrência da compreensão de que os nossos modos de viver exibem um
tipo de estabilidade na recursividade de nossas redes de conversações e de que, nos
nossos modos de viver na linguagem, os falantes são responsivos ao que foi dito e mos-
tram essa dimensão responsiva na sua fala.
Como apontei anteriormente, as unidades do sistema de troca de turnos não
são vistas como um mapeamento conceitual da realidade: elas são ordens do domínio
da organização social. São reconhecíveis, realizadas em termos de uma inteligibilidade
entre sujeitos que atuam em uma reciprocidade de perspectivas e lançam mão do cará-
ter ordenado das interações, para os propósitos nos quais estão engajados. A organiza-
ção geral e formal da ação faz com que uma contribuição de um participante seja, de
algum modo e de modo organizacional, uma resposta ao ato/turno que precede essa
contribuição.
Como observam Sacks, Schegloff & Jefferson (1974: 669), o ordenamento
dessas estruturas organizacionais, no entanto, inclui um amplo conjunto de opções, de
modo que a organização da interação não confina os seres humanos em uma “prisão
determinística”, no dizer de Schegloff (1988: 118). Ainda segundo esse modo de ver, o
sistema de troca de turnos não é um quadro apriorístico que predispõe certas escolhas
de interpretação: ele se constitui integrado ao quadro da ação culturalmente situada,
emergindo nas ações sociais efetivas, em termos de sistemas de troca fala, de modo
contingente a essas ações, para os propósitos dessas ações.
Avalio que a confluência entre a variabilidade daquilo que é emergente e con-
tingente em ações efetivas e uma estabilização daquilo que é recursivo sugere, por um
lado, o estudo de fenômenos emergentes, que até poderão vir a ser considerados – mas
não necessariamente – como candidatos a possíveis unidades formais. Um estudo des-
se tipo pode basear-se em uma análise de um caso. Coleções de análises de casos, por
outro lado, podem constituir a base para investigações que dêem continuidade à propo-
sição de outras unidades formais, ainda não descritas.
Sacks, Schegloff & Jefferson (1974: 700-701) tomaram a conversa como uma
interação na qual uma organização está envolvida. Especificamente, eles tomaram essa
atividade como uma forma básica do sistema de troca de turnos, indicando que em qual-
quer conversa observam-se os seguintes fatos:
1) A mudança de falante recorre ou, no mínimo, ocorre.
2) Predominantemente, fala um participante de cada vez.
3) Ocorrências de mais de um falante a cada vez são comuns, mas
breves.
95
4) Transições de um turno para outro, sem intervalos e sem
sobreposições, são comuns. Juntamente com transições carac-
terizadas por breves intervalos ou ligeiras sobreposições, elas per-
fazem a grande maioria das transições.
5) A ordem do turno não é fixa, mas variável.
6) A extensão do turno não é fixa, mas variável.
7) A duração da conversa não é previamente especificada.
8) O que cada participante diz não é previamente especificado.
9) A distribuição relativa dos turnos não é previamente especificada.
10) A quantidade de participantes pode variar.
11) A fala pode ser contínua ou descontínua.
12) Técnicas de alocação de turno são obviamente usadas. Um falan-
te corrente pode selecionar um falante seguinte (por exemplo, quan-
do dirige uma pergunta a outro participante) ou os participantes
podem se auto-selecionar para começarem uma fala.
13) Várias ‘unidades de construção de turno’ são empregadas; por
exemplo, os turnos podem ser projetados de modo a terem a ex-
tensão de uma palavra ou de uma sentença.
14) Mecanismos de reparação existem para se lidar com erros e viola-
ções da tomada de turnos; por exemplo, se dois participantes en-
contram-se falando ao mesmo tempo, um deles irá parar prema-
turamente, reparando, assim, o problema.
O sistema de tomada de turnos instaura e torna observável a ordem da
interação. Essa ordem é contextual, emergente, realizada pelos participantes no fluxo
mesmo da interação. Ela não se realiza através de um acordo pré-estabelecido, mas a
partir da coordenação de coordenação de ações dos participantes. A alternância de
turnos caracteriza-se como uma atividade privilegiada dessa coordenação. Uma vez pro-
duzido um primeiro turno, os demais participantes, de modo mais ou menos demons-
trativo e encadeado, podem adotar posturas diversas. Um participante pode esperar
o seu turno, pode posicionar-se para tomar o turno ou pode interagir sem tentar to-
mar o turno. Os interlocutores analisam o turno para identificar os pontos potenciais
de transição. Nessa análise eles se orientam para uma Unidade Construcional de
Turno (Turn Construtional Unit - TCU). Essa Unidade não é pré-definida, é uma uni-
dade êmica, orientada e construída pelos participantes a partir da seqüência da
interação (Selting, 1998). Tais Unidades tornam-se observáveis para os participan-
tes, manifestando-se na segmentação do turno, com continuadores e avaliadores, na
localização das superposições, na tomada do turno como um complemento
colaborativo (Mondada, 2000a).
Embora se aponte que a forma básica do sistema de troca de turnos seja a
conversa, a troca de turnos, todavia, não é exclusiva dessa atividade. Ele ocorre em
outras interações tais como cerimônias, debates, reuniões, entrevistas, entrevistas cole-
tivas de imprensa, seminários, sessões de terapia, julgamentos. Esses outros sistemas
de troca de fala movimentam uma gama de transformações do sistema de troca de tur-
nos da conversa. Em cada uma dessas interações, podem ser observadas diferenças
96
na alocação ou organização da tomada de turnos, comparativamente à alocação que
ocorre na conversa.
Na conversa, a alocação de um turno de cada vez é feita pelo uso de meios
locais de alocação. No debate, essa alocação é previamente organizada com referên-
cia, por exemplo, a posições “pró” e “contra”. A alocação local de turnos alarga o con-
junto de falantes potenciais para cada turno seguinte. A pré-alocação de turnos restrin-
ge o conjunto de falantes seguintes em potencial. Quanto maior o grau de pré-alocação
dos turnos, maior tenderá a ser o tamanho dos turnos.
Constitutivamente, uma reunião conta com a presença de alguém para pre-
sidi-la. Isto indica que nessa interação os turnos são parcialmente pré-alocados. Uma
reunião caracteriza-se, pois, como uma interação intermediária entre a conversa e o
debate. Quem preside uma reunião tem o direito de falar primeiro e de falar após cada
falante. O presidente de uma reunião pode utilizar esse turno para alocar a próxima
vez de falar. Mas também é possível a alocação de turnos que não tenham sido alocados
mediante o uso dos turnos pré-alocados.
O conjunto teórico apresentado neste Capítulo orienta as análise que faço
da fala-em-interação em uma reunião da Associação dos Moradores dos Tipis.
97
CAPÍTULO 4 – A METODOLOGIA COMO UMA INTERPRETAÇÃO DOCUMENTAL:
AS OPÇÕES METODOLÓGICAS
4.1 A teoria orientando a metodologia
O caráter emergente da atividade sócio-cultural que resulta nesta tese
é concomitante com o seu caráter histórico. Por exemplo, a prática de fazer o
trabalho, a tarefa metodológica, ao mesmo tempo em que se constituiu e se
reformulou na prática mesma do campo, também se beneficiou de relatos de
experiências anteriores. Para usar um argumento schutziano, posso dizer que,
no desenvolvimento desta pesquisa, as especificações e delimitações
metodológicas apresentadas neste Capítulo atuaram como as bases para uma
implementação de uma interpretação documental, um dos métodos da pressupo-
sição da reciprocidade, segundo o qual o sentido da elaboração situada do que
se passa é associado a um padrão subjacente, reconhecido e familiar. No escopo
da Biologia do Conhecer isto equivaleria a dizer que o teor deste Capítulo atuou
como padrões históricos de ações comunicativas, como um aspecto da cultura
metodológica dos analistas conversacionais a interagir com a minha própria atu-
ação enquanto pesquisador. Desse modo, diferentes experiências de trabalhos
sobre a interação sócio-cultural humana são aqui tomadas como balizas que per-
mitem distinguir e agrupar os modos de fazer que exibem orientações semelhan-
tes, como também destacá-los de outros modos, com orientações distintas. Como
decorrência disso e/ou simultaneamente, tais balizas servem para uma distinção
das escolhas metodológicas desta investigação.
A Etnometodologia já havia praticado a estratégia metodológica de estudar
os procedimentos de construção do sentido em situações ordinárias, como vimos no
capítulo anterior. A Análise Conversacional stricto sensu desenvolveu essa estratégia
procedural, baseando-se em registros e transcrições de procedimentos lingüístico-
interacionais. Como Gülich & Mondada (2001: 199) observam, nos anos 90 o desen-
volvimento dessa estratégia teve contribuições consideráveis.
Como principal formulador do arcabouço teórico-analítico da Análise
Conversacional stricto sensu, Schegloff (1988: 107-9) observa que o foco procedural
dessa área de estudos orienta-se pelas seguintes questões:
a) Como os cursos de ação e interação são realizados? Como es-
ses cursos são combinados temporal e seqüencialmente?
b) Que relações demonstráveis ocorrem entre os participantes? Quais
os tipos de disponibilidades demonstráveis de um participante para
com o(s) outro(s)?
c) Como a compreensão que os participantes tiveram de um enunci-
ado é revelada na interação? Como o falante fez isso? O que, na
98
conduta de um participante de uma interação, produz essas com-
preensões de suas ações ou o que autoriza tais compreensões?
d) Como um enunciado assim compreendido pode ser ou pode ter
sido conseqüência de uma seqüência em alguma interação real?
Como vimos dizendo, um analista conversacional examina algum enuncia-
do ou uma série deles no seu contexto seqüencial, podendo considerar também uma
coleção de exemplos de algum fenômeno, cada um no seu contexto seqüencial, e
encontrar recorrentemente um turno prévio sendo relevante de um ou de outro modo,
porque para os participantes esse turno era relevante de um ou de outro modo. Ele
pode operar ainda com dados que encerram problemas não resolvidos e com materi-
ais com problemas particulares ou independentes. Decorre daí que a matéria desse
trabalho analítico são os diferentes modos nos quais um turno figura na organização
do outro, os diferentes modos nos quais os falantes são responsivos ao que foi dito e
mostram essa dimensão responsiva na sua fala. Essas diferenças, insiste Schegloff
(1988: 116), têm caráter seqüencial.
A Análise Conversacional stricto sensu aborda, pois, a sintaxe das ações
entre os participantes, o tráfego do comportamento na interação, o que implica dizer
que essa disciplina busca observar:
a) o que os indivíduos fazem;
b) como o fazem;
c) a compreensão demonstrável do que os participantes fazem;
d) como os participantes moldam conjuntamente a trajetória da interação;
e) como a interação molda, reflexivamente, as trajetórias dos participantes.
Se o que é observado no tráfego do comportamento são as trajetórias das
interações, então uma ação ou enunciado únicos não ajudarão no desenvolvimento
adequado da análise. O trabalho da Análise Conversacional stricto sensu é realizado
sobre amostras de fala-em-interação e, em princípio, pode aplicar-se a qualquer amos-
tra. A variedade de aspectos dessa fala deve ser, também em princípio, acessível à
análise, de maneira que os dados analisados devem ser apresentados ao leitor de um
modo que ele tenha acesso independente aos mesmos e possa fazer uma outra aná-
lise competitiva.
Propor um trabalho analítico com tais características torna-se então possí-
vel porque se prevê que as exigências do sistema – as organizações seqüenciais da
fala-em-interação, postuladas pela Análise Conversacional stricto sensu –, apresen-
tam-se e são analisáveis onde quer que a fala ocorra. A realização de tal trabalho, pelo
analista, torna-se possível pela ampla utilização das tecnologias de fabricação dos
dados primários e secundários.
99
4.2 A teoria orientando a escolha de dados naturais
Como vimos discutindo, a Análise Conversacional stricto sensu assume que as
práticas dos locutores organizam-se de modo localmente situado, são necessariamente
indexadas ao contexto e se ajustam às contingências que afetam os eventos, contribuindo
reflexivamente para (re)definir o contexto (Gülich & Mondada, 2001: 199). Ao assumir tam-
bém os princípios da temporalidade e da seqüencialidade das atividades lingüístico-
interacionais, essa corrente analítica aborda dados que permitam documentar a emergên-
cia e o desdobramento das práticas dos interactantes, observando as suas atividades em
acontecimentos da vida social ordinária. Para lidar com essas características dinâmicas
da fala-em-interação – indexicalidade, contingencialidade, reflexividade, temporalidade,
seqüencialidade, emergencialidade – o analista conversacional stricto sensu precisa tra-
balhar com dados naturais, uma vez que ele não sabe de antemão os modos como esses
ou outros efeitos irão aparecer. Os naturally occurring data são “interações que ocorreri-
am mesmo na ausência do pesquisador e que não foram elicitadas ou orquestradas por
ele, para os fins do registro” (Mondada, 2005e: 77).
Os registros em vídeo ou mesmo em áudio de naturally occurring data são
ferramentas importantes porque registros gravados, particularmente em vídeo, preser-
vam com vantagem vários aspectos que vão configurar o que ocorre no evento, os
modos como os participantes realizam a sua condução, o seu contexto de ocorrência.
Diante do objetivo de analisar os procedimentos dos locutores na realiza-
ção ordenada e reconhecível de uma atividade social, o analista conversacional stricto
sensu precisa implementar um detalhado e repetido escrutínio de segmentos da fala-
em-interação. Os registros em vídeo ou áudio favorecem a acuidade exigida por esse
trabalho, uma vez que permitem a visualização e/ou a escuta do evento, por parte do
analista, tantas vezes ele necessite, além de possibilitar que outros pesquisadores
desenvolvam suas próprias análises, visualizando e/ou escutando o evento repetidas
vezes (Gülich & Mondada, 2001: 202; Mondada, No prelo).
4.2.1 Os dados primários de primeira ordem: vantagens e limitações do regis-
tro em vídeo
Nos registros em vídeo, particularmente, perdas relativas àquilo que ocorre
ao longo da interação tendem a ser menores e menos comprometedoras do que aque-
las observadas em outros tipos de coleções de dados. Ainda assim, o recurso do vídeo
encerra limitações e/ou interferências relacionadas às injunções tecnológicas, às pos-
sibilidades e às escolhas feitas pelo pesquisador e/ou pelo operador da câmera, como
também à sensibilidade dos participantes do evento ao aparato tecnológico utilizado
para o registro.
100
Quanto a essa sensibilidade, na minha experiência de campo pude observar
que os participantes de atividades que são corriqueiras para eles ou que não foram
especialmente formatadas em função dos objetivos específicos de uma pesquisa ha-
bituam-se à câmera à medida em que vão se engajando na atividade. Isto tende a
ocorrer ainda mais rápido se não há um operador atrás da câmera, como também
atestam Jordan & Henderson (1995: 55). Com efeito, diante de uma filmadora os par-
ticipantes tendem a dar continuidade aos afazeres nos quais estão engajados, sem
fazer, por exemplo, as tradicionais poses demandadas pelo registro instantâneo de
uma máquina fotográfica.
Ao escolher o registro em vídeo, o pesquisador deve considerar as marcas
que os usos e/ou as disponibilidades e indisponibilidades dos recursos tecnológicos
podem impor ao processo de obtenção de dados naturais. O pesquisador deve consi-
derar, ainda, a sua própria inserção ou a sua ausência no evento registrado. Dessa
maneira, há que se reconhecer a consistência daquilo que Jordan & Henderson
(1995:51) denominam o viés do pesquisador e o viés da máquina, no processo de
obtenção dos dados. Além disso, deve ser considerado também o viés dos sujeitos
observados, decorrente das interações efetivas dos participantes entre si e, em alguns
casos, com o pesquisador.
Esses vieses podem dizer respeito à definição da quantidade de câmeras
para registrar o evento, à colocação dela(s) em um ou mais pontos fixos, à movimen-
tação da câmera, ao longo da atividade registrada, dentre outras possibilidades. A
escolha do(s) objeto(s) a ser(em) focado(s), o ajuste do foco em termos de ângulos
mais ou menos abertos ou fechados, a definição do nível de captação da banda sono-
ra, a utilização ou não de luz natural ou artificial também são dignos de reflexão quanto
ao seu papel na interação registrada.
A assunção desses vieses, dessas contingências inevitáveis no trabalho do
cientista é o que leva Mondada (1988b) a discutir a idéia de uma fabricação dos dados,
em oposição a uma coleta de dados. O reconhecimento desses vieses corresponde
exatamente à opção pela objetividade entre parênteses, postulada pela Biologia do
Conhecer. Poderíamos discutir aqui, como o fez Rorty (1994), a pertinência de se insistir
nessa denominação, uma vez assumida a impossibilidade de, constitutivamente,
distinguirmos entre aquilo que é “fabricado” e o que seria “ achado”. No entanto,
para efeitos deste trabalho, estou assumindo o vocabulário técnico e analítico da
Análise Conversacional stricto sensu, que me oferece um aparato suficientemente
significativo para minha compreensão de interações conversacionais da comunidade
dos Tipis.
As escolhas relacionadas ao processo de constituição dos objetos de análi-
se irão determinar quem e o que é ou não visível e/ou audível, delimitando o leque de
possibilidades analíticas presentes nesses dados, uma vez que aquilo que não foi
101
capturado no registro torna-se indisponível para o analista. O registro em vídeo é visto,
então, como “um método que transforma o mundo vivido e real das atividades das
pessoas e as experiências conjuntas em dados de um certo tipo” (Jordan & Henderson,
1995:53).
Além de influenciar as escolhas do analista, aspectos relativos àquilo que é
ou não significativo para a pesquisa como um todo ou para uma peculiaridade dela
influenciam, conseqüentemente, o tipo de registro produzido. Uma configuração de
tais aspectos pode resultar, por exemplo, de um trabalho etnográfico que forneça infor-
mações tecnicamente úteis sobre o evento que se deseja registrar – sua duração
aproximada, o ambiente onde ocorre, possíveis movimentações dos participantes. Ela
pode decorrer também do desenvolvimento mesmo da pesquisa, podendo, ainda, es-
tar perpassada por vieses pessoais e culturais dos atores envolvidos na interação.
Possíveis deficiências resultantes das interferências do pesquisador, dos
sujeitos observados e da tecnologia podem ser remediadas com a experiência na
pesquisa específica, incluindo um detalhamento etnográfico do evento que se está regis-
trando
12
. Contudo é importante ter sempre em vista que cada evento é único, contingente
com o seu próprio curso. Assim, aquilo que é recursivo entre um e outro evento não
implica em uma repetição estrita dos modos específicos de distribuir os turnos; compre-
ender as mensagens; atrair, manter e exibir a atenção dos outros participantes; alocar
oportunidades para participar da interação; tornar partes distintas da fala coerentes com
outras partes em seqüência; lidar com problemas na fala ou ignorá-los; identificar ou ser
identificado no curso da ação; construir unidades e categorias do discurso e outros obje-
tos de saber.
4.2.2 Contexto do registro e contexto da análise: distinções úteis
A escolha do registro em vídeo sugere, ainda, uma consideração teórico-
metodológica relativa a diferenças entre o contexto do registro e o contexto da análise
ou entre o registro e o evento enquanto uma experiência dos participantes.
Aquilo que o analista pode ver e/ou ouvir, através do registro, pode coincidir
ou não com aquilo que os participantes viram e/ou ouviram durante o evento. Dentre
as possíveis diferenças entre os modos como participantes experimentam o evento e
aquilo que está disponível no registro, há elementos do ambiente físico, por exemplo, que
podem, contingencial e eventualmente, ser constituídos enquanto contexto e que esca-
pam às possibilidades de serem registrados por um gravador ou por uma câmera, como
é o caso de odores ambientais.
12
Jordan & Henderson (1995: 51) oferecem um exemplo de adequação metodológica, em função de
interesses analíticos.
102
Como Jordan & Henderson (1995: 49) informam, pesquisadores da Análise
da Interação (Interaction Analysis) realizam sessões nas quais os participantes de um
evento registrado vêem o vídeo e elicitam informações detalhadas sobre ações e as-
pectos obscuros para os analistas. Essa prática é justificada como uma tentativa de
integrar, na análise dos registros, a perspectiva dos participantes, sua visão do mundo,
que pode contrastar substancialmente com a visão do analista.
A justificativa da Análise da Interação para as video review sessions suscita
uma divergência com a Análise Conversacional stricto sensu, uma vez que, a partir de
um olhar não informado por questões prévias, essa corrente busca descrever a ordem
social construída na atividade local dos locutores, voltando-se para o que é “observável,
mas não imaginável”, “os detalhes da conversa, pelos quais os membros se orientam,
sem se darem conta deles”
(Gülich & Mondada: 2001:201).
A definição do objeto de estudo em termos dos procedimentos dos locuto-
res na realização ordenada e reconhecível das atividades sociais nas quais estão
engajados e a atenção à dimensão êmica tanto da fala-em-interação quanto da análi-
se fazem com que a Análise Conversacional stricto sensu considere que descrições
de um evento feitas pelo pesquisador ou mesmo um relato dessa atividade, feito pelos
participantes que a protagonizaram, constituem outras práticas, já diferenciadas das
práticas descritas ou relatadas. Essa corrente analítica considera que transpor uma
prática social para um outro contexto significa alterá-la radicalmente, uma vez que ela
se ajusta a outras contingências, por exemplo, aquelas relacionadas às atividades de
anotar ou relatar um evento já ocorrido.
4.3 Os dados primários de segunda ordem: o tratamento informático
Um dado primário de primeira ordem pode ser digitalizado ou comprimido
em um processamento informático, como o que adotei nesta pesquisa
13
. Esse
processamento é aplicável tanto aos registros feitos com uma câmera analógica quan-
to aos registros feitos com uma câmera digital, que já inclui alguma compressão de
dados relacionados a pixels de cor. Tal processamento envolve a captura e a compres-
são do registro e o transforma em um dado primário de segunda ordem, uma ferra-
menta funcional, em termos da sua visualização e/ou escuta, tantas vezes quantas o
analista ache necessário.
O processamento informático dos dados agrega outras vantagens relativa-
mente ao uso de tecnologias analógicas. Digitalizados, os dados podem ser armaze-
nadas em suportes diversos e/ou em dispositivos de memória internos ou externos de
13
Descrições técnicas sobre compressão de vídeo podem ser vistas nos sites www.wave-report.com/
tutorials/VC.htm e http://en.wikipedia.org/wiki/Video_compression.
103
computadores. Embora se reconheça não haver uma segurança absoluta nesses me-
canismos, é notório que eles facilitam a difusão de dados entre os pesquisadores. No
formato digital, os registros são melhor preservados de desgastes resultantes de sua
manipulação e os arquivos obtidos podem ser configurados e reconfigurados em di-
versos parâmetros relativos à qualidade da imagem, à quantidade de imagens por
segundo, à taxa de bits ou quantidade de dígitos de um sistema binário necessária
para representar a imagem, à largura ou à altura da imagem, ao tamanho das amos-
tras de som, à quantidade de canais de som. Com essas possibilidades, as imagens
digitais podem-se tornar mais operacionais, mais ou menos leves, e se adaptarem à
configuração de um computador específico. Finalmente o trabalho com imagens digi-
tais pode associar programas especializados e editores de texto e de imagem, quan-
do compatíveis. Por exemplo, uma banda sonora extraída de um arquivo de imagem
pode ser ouvida através do Programa Praat
14
, por mim utilizado, e as transcrições
podem ser alinhadas com as imagens do evento transcrito, como é o caso do Progra-
ma CLAN (Computerized Language ANalysis)
15
.
Na perspectiva da Análise Conversacional stricto sensu, o tratamento
informático dos dados não diz respeito a uma edição da seqüência analisada. Um
trecho de vídeo analisado não inclui enxertos inventados pelo pesquisador, com rela-
ção à fala-em-interação originalmente gravada, o que, condiz obviamente com o interes-
se de preservar aspectos configurados como o contexto de ocorrência do evento.
É importante considerar, no entanto, que as características técnicas da
digitalização agregam outra faceta ao viés da máquina, corroborando as considera-
ções de Mondada (1998b) sobre o papel das tecnologias, juntamente com as interações
entre os sujeitos pesquisados e entre estes e o pesquisador, no processo de fabrica-
ção dos dados. Ainda nessa seara, a idéia de fabricação dos dados torna-se efusiva
quando consideramos que um vídeo, sendo um arranjo tridimensional de pixels de cor,
contém redundâncias nessas três dimensões: os dados analisados como redundantes
podem ser descartados, uma vez que o olho humano não distingue facilmente diferen-
ças pequenas nas cores. Assim, em função desse processo, apenas uma parte da
informação original estará no vídeo digital.
As tecnologias de digitalização e tratamento informático dos dados mul-
tiplicam os meios de trabalho dos analistas e uma reflexão sobre seus usos e vie-
ses delimitam o caráter objetivo desses dados, inscrevendo-o na perspectiva de
uma objetividade entre parênteses, na qual o observador e suas operações de
distinção são vistas como cruciais na configuração dos mundos de objetos, como
disse anteriormente.
14
www.praat.org.
15
http://childes.psy.cmu.edu/clan/ ; http://childes.psy.cmu.edu/clan/clanwin.exe.
104
4.4 Os dados secundários: a transcrição como um objeto de reflexão e como
uma ferramenta analítica
Uma das tarefas do analista de discursos orais consiste em transcrever os
dados primários, produzindo os dados secundários que serão objeto de sua análise.
Ao invés de delegarem essa prática a terceiros, muitos analistas vêm tomando para si
essa tarefa e, com isso, vêm tecendo contribuições segundo as quais a transcrição
não é mais concebida como um espelho da língua oral. Desde o artigo de Ochs (1979),
Transcription as theory, muitos analistas compreendem que transcrever uma interação
é um fazer analítico, seletivo, interpretativo, político, que incorpora os pressupostos do
transcritor e pode tornar mais ou menos visíveis os procedimentos dos participantes
das interações analisadas. A esse respeito – e a partir do cotejamento de transcrições
da imprensa com a sua própria transcrição e análise de uma fala pública do Premier
Jean-Claude Rafarin para trabalhadores franceses – Mondada (2005b) distingue a
representação da política, a política da representação e uma política da transcrição.
A retomada sucessiva do transcrever enquanto um objeto de reflexão vem
sendo favorecida pela mentalidade analítica praticada pela Análise Conversacional
stricto sensu, uma vez que essa mentalidade, ao refutar a construção de discursos
teóricos gerais e de categorias externas ao fenômeno estudado, coloca, para o ana-
lista, o desafio de encontrar soluções para os fins práticos das suas análises especí-
ficas, como apontam autores diversos como Gülich & Mondada (2000a), Psathas &
Anderson (1990), Sacks (1984), Schenkein (1978). Esses trabalhos têm demonstra-
do que a atividade de transcrição não é uma expressão neutra ou objetiva do evento
registrado, mas que o sistema de transcrição escolhido ou projetado incorpora inter-
relações de pressupostos teóricos relativamente ao objeto, unidades e processos
observados.
No âmbito da Análise Conversacional stricto sensu, as práticas de transcri-
ção, longe de serem uma tarefa menor, intermediária para os propósitos de uma aná-
lise, integram e exibem aspectos diversos, como a implementação analítica dos diver-
sos pressupostos da teoria, a observação de funcionamentos específicos de mecanis-
mos genéricos propostos pelo modelo, a consideração dos procedimentos de identifi-
cação dos participantes dos eventos transcritos e a notação dos recursos verbais e
não-verbais (Bergmann, 2002).
As características dinâmicas da fala-em-interação – indexicalidade,
contingencialidade, reflexividade, temporalidade, seqüencialidade, emergencialidade
– que orientam o analista conversacional stricto sensu na escolha de dados naturais,
também orientam seus objetivos em práticas específicas de transcrição: capturar o
caráter ordenado, social e êmico do fluxo conversacional e a articulação não-linear
desse fluxo (Alencar, no prelo).
105
As múltiplas possibilidades de ação dos participantes da conversa –
instanciadas na formulação, interpretação, aceitação, reformulação dos recursos ver-
bais e não-verbais – sugerem uma prática de transcrição ad hoc para objetos espe-
cíficos de análise. Essa transcrição deve considerar, pois, no fluxo interativo, as for-
mas particulares de colaboração e os recursos empregados nos processos de co-
elaboração.
4.4.1 A identificação dos participantes e as práticas de transcrição da Análise
Conversacional stricto sensu
Nas práticas de transcrição, a escolha da forma identificadora dos partici-
pantes de uma interação não é algo objetivo, assim como não é objetivo transcrever a
formulação, a interpretação, a aceitação, a reformulação dos recursos verbais e não-
verbais de fluxos interativos específicos. Transcrever, então, encerra especificidades
que fazem dessa prática uma atividade que incorpora a um só tempo questões políti-
cas, epistemológicas, teóricas, metodológicas. Tal atividade incorpora, portanto, os
pressupostos e escolhas do investigador.
Assim, nas escolhas da identificação dos participantes de uma conversa,
por exemplo, o transcritor produz uma interpretação analítica ao eleger e privilegiar uma
determinada categoria de identidade. As práticas mais adequadas de identificação dos
participantes são objeto de controvérsias, conforme aponta Billig (1999a, 1999b), e a
seleção de uma forma identificadora não é isenta de conseqüências, relacionando-se
com o esquema teórico-metodológico do analista.
Na abordagem da Análise Conversacional stricto sensu, ao privilegiar a pers-
pectiva êmica dos participantes, o pesquisador deve observar os indícios demonstra-
dos por eles. A identificação exclusiva do participante através de uma determinada
categoria de identidade, eleita pelo analista, pode conduzir o leitor e o próprio analista
a verem, no participante, alguém cuja identidade coincide com essa identificação. Isto
dificulta a tarefa do analista, de permanecer atento às práticas interativas orais, uma
vez que nessas práticas os próprios participantes se autocategorizam ou são
categorizados, como Schegloff (1999) enfatiza. Além disso, as autocategorizações ou
as categorizações podem ser reformuladas ao longo da interação, de modo que a
instabilidade constitutiva das categorias de identidade sugere então ao analista que
ele deve evitar uma atribuição prévia e segura daquelas que serão relevantes para os
participantes, até o final da interação, conforme Alencar (2004) observa.
Nas práticas de transcrição de um analista conversacional stricto sensu,
uma possibilidade de identificar os participantes lança mão de categorias de identida-
de. Garcez (2002) refere-se a membership, como, por exemplo, categorias associadas
à identidade discursiva dos participantes (caller/answerer). Sacks (1995) propôs os
106
membership categorization devices – MIR, dispositivos formados mediante coleções
de categorias e regras de emprego delas. Essas coleções são agrupamentos de cate-
gorias de pertencimento e não se referem a uma propriedade lógica delas, mas a uma
característica do raciocínio prático efetivado na conversa. Na perspectiva da Análise
Conversacional stricto sensu, a identificação dos participantes de uma atividade
interativa, assim como outros aspectos anteriormente abordados, deve ser analisada
de modo integrado, na seqüencialidade e na temporalidade da ação.
Os nomes próprios ou pseudônimos constituem a prática mais comum de
categorização e a mais indicada, conforme sugere Schegloff (1999), uma vez que os
participantes tentam usar um termo de reconhecimento máximo, sempre que possível,
ou preferem usar o nome próprio, quando dispõem dessa informação.
O conjunto de ferramentas para o trabalho analítico tornado disponível pela
Análise Conversacional stricto sensu, além de constituir um instrumental de análise
eficiente e robusto, articula aspectos epistemológicos compatíveis com o olhar sistêmico
sugerido pela Biologia do Conhecer para os fenômenos relacionais humanos. Particu-
larmente os pressupostos teóricos – epistemológicos, metodológicos, analíticos – da
Análise Conversacional stricto sensu são avaliados como interessantes para os pro-
pósitos desta análise de inter-relações entre linguagem, cognição e cultura, especifi-
camente para com o objetivo de descrever procedimentos lingüístico-interacionais dos
participantes de uma reunião da Associação de Moradores dos Tipis.
4.5 Os Dados das Análises
4.5.1 Os Dados Primários e Secundários
Os dados primários de primeira ordem desta tese são as notas de campo e
os registros em vídeo da pesquisa de campo desenvolvida nos Tipis. Nessa etapa, pro-
duzi 33 vídeos de atividades diversas dos membros dessa comunidade, com uma dura-
ção total de 09:27:17. Uma lista desses registros pode ser vista no Anexo 2 desta tese.
Os dados primários de segunda ordem são resultantes da digitalização desses 33 vídeos.
Esses dados informaram aspectos diversos e pontuais da descrição etnográfica do Ca-
pítulo 7, em uma relação complementar tanto com as notas de campo quanto com as
experiências vivenciadas durante os cinco meses em que morei nos Tipis.
Os dados secundários sobre os quais são feitas a análise conversacional do
Capítulo 6 resultaram da transcrição de um vídeo digitalizado que registra uma reunião
da Associação dos Moradores dos Tipis. Esse registro tem uma duração de 44 minutos
e 40 segundos (2.680 segundos). As escolhas feitas para a transcrição estão indicadas
na Seção 6.1.
107
4.5.2 Os registros em vídeo
Fiz os registros utilizados nesta investigação com uma câmera filmadora
digital. Ao longo da pesquisa, não me restringi a um padrão único quanto à atuação do
pesquisador-participante – como interlocutor comum na interação, como operador da
câmera filmadora ou em atuações mistas – ou quanto à mobilidade da câmera – fixa
ou manipulada pelo operador. Isto rendeu quatro situações distintas na minha atuação
quanto aos papéis de pesquisador, interlocutor e operador da câmera.
1) Fixei a filmadora em um ponto, liguei-a e me retirei do local do evento,
somente retornando ali ao final da atividade. Nesse caso, durante o re-
gistro e relativamente a ele, praticamente restringi-me ao papel de pes-
quisador. O interlocutor e o operador da câmera ficaram ausentes da
maior parte do evento. Por exemplo, em uma reunião onde casais come-
çaram a discutir aspectos da relação matrimonial achei oportuno retirar-
me do local do evento, deixando-os ‘à vontade’ para prosseguirem suas
conversas. Não custa lembrar quão sensíveis e minunciosos são os par-
ticipantes de interações sócio-culturais. Assim, há sempre a possibilida-
de de influências da presença de um pesquisador-participante, na co-
munidade, sobre a configuração dos eventos registrados. Por outro lado,
há sempre a possibilidade de interferência, no ambiente dos eventos, de
um equipamento de registro – a filmadora, por exemplo. Com isso, con-
servo nesta reflexão possíveis atuações dos mencionados vieses do
pesquisador, da máquina e dos sujeitos observados, mesmo quando o
pesquisador não esteve presente durante todo o evento registrado ou
mesmo quando a filmadora não foi manipulada durante a filmagem.
2) Fixei a filmadora, liguei-a e a “esqueci”. Nesse caso atuei como um dos
interlocutores da atividade lingüístico-interacional registrada, mas não
enquanto um operador ostensivo da câmera.
3) Operei a filmadora, mas não participei como interlocutor, embora tenha
permanecido no local, ao longo do evento. Nesses casos, acumulei os
papéis de pesquisador e operador da câmera.
4) Atuei como pesquisador, interlocutor nas atividades interacionais e opera-
dor da filmadora. Nesse caso, os papéis foram superpostos e/ou alterna-
dos ao longo do registro.
Essas distinções no modo de registrar tiveram motivações diversas, associa-
das ora a uma especificidade do evento registrado, como a intimidade temática de uma
reunião de casais, ora a um envolvimento do pesquisador com a conversa, por sua pró-
108
pria iniciativa ou pela iniciativa dos demais participantes do evento. Em cada uma des-
sas atuações, os sujeitos observados, o pesquisador e a máquina interagiram de mo-
dos diferentes, interferindo também diferentemente sobre as características do registro
obtido. No registro da reunião da Associação de Moradores atuei conforme a quarta
modalidade acima listada. Assim, no Capítulo 6 analiso também efeitos interacionais
dessa atuação.
O formato Mini-DV da filmadora utilizada gera vídeos digitais, configurados
em números binários. Esses vídeos já envolvem alguma compressão dos dados nu-
méricos. A etapa seguinte na fabricação dos dados desta tese consistiu na digitalização
dos vídeos digitais, ou seja, em um processo mais agudo de compressão de seus
dados numéricos.
4.5.3 A digitalização dos registros em vídeo
Em um treinamento inicial no Laboratório ICAR, sobre digitalização de vídeo,
utilizei um microcomputador iMAC iBOOK; uma interface FireWire IEEE 1394, para a
transferência dos vídeos, da filmadora Sony DCR-TRV33 para o microcomputador; o
programa de captura iMOVIE; o editor de imagens Quick Time
16
e o codec de compres-
são de vídeo DivX.
A digitalização dos vídeos transformou-os em 33 arquivos com o formato
.mov. Esses arquivos compõem os dados primários de segunda ordem. Na digitalização,
além da filmadora Sony DCR-TRV33, da interface FireWire IEEE 1394 e do editor de
imagens Quick Time, utilizei o microcomputador iMAC G5; o disco rígido externo Mobi-
le Hard Drive Lacie; com uma configuração de 80 GB de memória, uma velocidade de
5400 rpm e 8mb de Buffer e o programa de captura Vegas. O codec de compressão de
vídeo utilizado foi o 3iVx D4 4.5.1.
Em um outro momento, os 33 arquivos foram novamente digitalizados e arma-
zenados em 6 volumes de um suporte DVD. Nesse processo foram utilizados a filmadora
Sony DCR-TRV33; o microcomputador iMAC G5; o disco rígido externo Maxtor One Touch
300G; o Gravador/leitor de DVD Lacie d2 4x DVD; o programa Roxio Toast Lite 5.1.4.
16
Ver o site www.apple.com/quicktime/download/index.html
109
PARTE II
ETNOGRAFIA E ANÁLISE CONVERSACIONAL NOS TIPIS
110
CAPÍTULO 5 – A COMUNIDADE DOS TIPIS
5.1 A Produção de uma Ordem Social que se Particulariza no Viver Comunitário
A configuração da comunidade dos Tipis será aqui descrita como resul-
tando de uma produção coletiva da ordem. Nessa perspectiva, as práticas culturais,
as relações sociais e econômicas, as condições materiais, infra-estruturais,
ambientais, da comunidade constituem-se tanto nas atividades lingüístico-interacionais
locais quanto nas conexões dessa comunidade com ações sócio-culturais de outras
comunidades interativas.
Quanto às condições materiais constituídas como os contextos físicos des-
sas práticas, adoto uma perspectiva segundo a qual, onde quer que um grupo social
estruture o seu viver, as condições materiais influenciam o fluxo desse viver e são, por
sua vez, moldadas por esse fluxo. A esse aspecto, acrescento ainda um outro: os
diversos fatores materiais somente assumem o caráter de uma condição no momento
mesmo da implementação de uma prática. Assim, entendo que as condições não são
prévias aos afazeres nem autônomas à sua implementação: elas se configuram na
interação social enquanto moldam reflexivamente essa interação.
É, pois, com essa visão social para a constituição das práticas culturais e
dos contextos físicos, como também para uma relação reflexiva entre essas práticas e
seus contextos, que olho para os modos de viver na comunidade dos Tipis, compreen-
dendo que as vivências dessas pessoas são constituídas, estabilizadas, reformuladas,
em atividades lingüístico-interacionais situadas e aquilo que descrevo como particula-
ridades das vivências que observei decorre do meu olhar para os seus desenvolvi-
mentos locais e para possíveis relações dessas pessoas e vivências com outras redes
de interações sócio-culturais e lingüísticas.
5.2 Índios, Brancos, Pretos – Mistura, História e Cultura dos Habitantes dos Tipis
A comunidade dos Tipis é composta por aproximadamente 300 pessoas
que habitam em cerca de 85 domicílios
17
.
Essas pessoas vivem o seu cotidiano princi-
palmente em uma vila rural, distante 36 Km da zona urbana do município de Iguatu, na
Região Centro-sul do Estado do Ceará, no sertão semi-árido do Nordeste do Brasil.
Ao longo da sua formação, o Estado do Ceará foi palco de processos histó-
ricos complexos através dos quais a sua população foi ‘tornada branca’, pelo não-
17
Esses indicadores são aproximados, fruto da integração de informações do Sistema Nacional de
Cadastramento de Usuários e Domicílios, do Sistema Único de Saúde - SUS, do Ministério da Saúde,
ano 2004; de um Projeto para a construção de instalações sanitárias, elaborado em 2005 pela Associ-
ação de Moradores do lugar e; de um levantamento feito em junho de 2006 pela Agente de Saúde e pela
Presidente da Associação de Moradores.
111
reconhecimento da presença de etnias negras na cultura e no sistema produtivo
cearenses. Isso resultou em uma equivocada concepção de senso comum, segundo a
qual “no Ceará não tem negro” (Funes, 2000). Práticas históricas igualmente complexas
também foram observadas relativamente aos índios cearenses. No caso do
“desaparecimento” dessas etnias, pela elite cearense, conforme demonstra Leite Neto
(2006), interesses econômicos relacionados à apropriação das terras indígenas foram
abstraídos como fatores importantes no desencadeamento do processo.
Construções sociais que negam o caráter multi-étnico da sua formação só-
cio-cultural ainda são comuns entre as crenças cearenses. A comunidade dos Tipis,
por exemplo, não se auto-rotula como um grupo de índios, brancos ou negros. Por
outro lado, práticas diversas, que analiso com maior ou menor detalhe ao longo desta
descrição, podem ser observadas no viver cotidiano daquela comunidade, sugerindo a
ocorrência de um ramificado processo de miscigenação étnica e cultural.
Conforme Cunha (1987: 111),
[...] os grupos étnicos só podem ser caracterizados [como pertencen-
do a uma etnia específica] pela própria distinção que eles percebem
entre eles próprios e os outros grupos com os quais interagem. Exis-
tem enquanto se consideram distintos, não importando se essa distin-
ção se manifesta ou não em traços culturais. E, quanto a um critério
individual de pertinência a tais grupos, ele depende tão somente de
uma auto-identificação e do reconhecimento, pelo grupo, de que de-
terminado indivíduo lhe pertence. Assim, o grupo pode aceitar ou recu-
sar mestiços, pode adotar ou ostracizar pessoas, ou seja, ele dispõe
de suas próprias regras de inclusão e exclusão.
Propor que a classificação étnica de um grupo social seja uma distinção
do próprio grupo pode ser entendido como uma perspectiva êmica, nos termos ante-
riormente discutidos. Embora a autora não especifique exatamente assim, estou
supondo que os membros de um grupo social procedem a essas distinções a partir
de um destaque de suas próprias práticas sócio-culturais, em contraste com as de
outros grupos.
Estou denominando de prática sócio-cultural um conjunto de afazeres, tra-
ços e correlações decorrentes do fluir coletivo de indivíduos que vivem o seu presente
como o resultado de duas histórias entrelaçadas: a filogenética e a ontogenética. Des-
se modo, dentre as práticas dos habitantes dos Tipis que lhes permitiriam se distinguir
como uma formação sócio-cultural multi-étnica podemos considerar: uma quantidade
razoável de pessoas com uma pele naturalmente bronzeada ou com olhos claros; a
estatura espigada de parte dos indivíduos; a presença de crianças em grande parte
das atividades dos adultos e os modos como essas crianças são integradas e se inte-
gram a essas atividades; o hábito de lavar roupas coletivamente; a presença, nos quintais
das casas, de estruturas rústicas de madeira – os jiraus – sobre as quais algumas ativi-
112
dades domésticas são desenvolvidas; o emprego de antigas técnicas de cultivo agríco-
la; costumes alimentares; uma religiosidade de base cristã, católica, permeada por cren-
ças animistas, que atribuem poderes especiais a elementos da natureza, como plantas,
animais e águas, e se entrecruzam, por exemplo, em rituais de benzeção e cura,
prestigiados pela comunidade. Essas práticas podem ser associadas a histórias culturais
ou de indígenas que ancestralmente ocupavam as terras cearenses, ou de brancos
europeus – principalmente portugueses e holandeses – que aportaram no Nordeste
brasileiro desde o Século XVI, ou de negros africanos que foram forçadamente trazidos
para o Brasil, a partir do Século XVII.
Não está em jogo nessa descrição da comunidade dos Tipis a atribuição de
um ou outro rótulo étnico-cultural às pessoas que a compõem. Importa mais trazer à
mão uma multiplicidade de correlações que podemos estabelecer entre os modos de
viver dessa comunidade e os de outros grupos com os quais ela interagiu e/ou interage.
Assim, em função do que disse acima, sugiro que nas atuações dos indivíduos dos
Tipis podemos observar padrões históricos de ações comunicativas que se repetem
recursivamente e podem ser correlacionados a práticas histórico-culturais, também
recursivas, de índios, brancos e negros. Além disso, e concomitantemente, o caráter
situado e local de cada realização desse viver caracteriza de modo único a história das
redes de conversação dessa coletividade.
5.3 Uma Comunidade entre o Rural e o Urbano
No seu viver cotidiano os habitantes dos Tipis têm contatos freqüentes com
grupos diversos, rurais ou urbanos. Quando fatores vários permitem e/ou exigem, eles
chegam à cidade mais próxima após uma viagem que dura em torno de uma hora, em
uma linha de ônibus que circula por outras povoações até a sede municipal. Esse
ônibus viaja diariamente, exceto aos domingos, saindo às seis da manhã e retornando
à uma da tarde.
A quantidade de indivíduos transitando entre a vila e a cidade apresenta
uma oscilação periódica, quase previsível. À parte as indisposições de caráter mais
pessoal, são as condições financeiras que exercem a maior pressão no ordenamento
dessas viagens. Já decorria a segunda quinzena de fevereiro de 2004, quando um
ônibus chegou da cidade, praticamente vazio. Um morador comentou que na segunda
metade do mês ocorria mesmo uma diminuição na quantidade de viajantes, em decor-
rência do rápido declínio do poder aquisitivo dos habitantes, muitos deles dependen-
tes dos benefícios da seguridade social - as aposentadorias dos idosos ou os auxílios
governamentais a grupos familiares carentes.
Os motivos para as viagens dos habitantes dos Tipis são os mais variados.
Eles se deslocam para a zona urbana com o objetivo de tentar satisfazer demandas da
113
sua cidadania, como a obtenção de documentos pessoais, a busca de atendimentos
médicos, o recebimento dos benefícios da seguridade social. Moradores do vilarejo
vão à cidade para trabalhar. Dentre os 29 trabalhadores identificados nos Tipis, em maio
de 2006, 14 têm vínculo formal com seus empregadores: 11 homens e 1 mulher são
operários em uma fábrica de calçados, localizada na cidade de Iguatu, 1 homem traba-
lha em uma companhia de eletricidade e 1 mulher é agente de saúde, vinculada à
administração municipal. Embora o trabalho cotidiano da agente de saúde seja
desenvolvido na própria comunidade, eventualmente ela se desloca até a sede municipal,
em função desse trabalho. Informalmente, em torno de 15 homens jovens trabalham com
a venda de mel e derivados, viajando por diversas cidades do Nordeste.
Em 2006, de um total de 35 estudantes, 29 estavam matriculados no Ensino
Básico e Fundamental e 6 cursavam o Ensino Médio. Esses estudantes também precisam
deslocar-se para as atividades escolares: os alunos das séries básicas e fundamentais,
para uma comunidade vizinha, e os alunos do ensino médio, para Iguatu.
Habitantes dos Tipis vão à cidade também para efetuar transações comer-
ciais corriqueiras, como o abastecimento de gêneros alimentícios e outras mercadori-
as ou o pagamento de obrigações contratadas formal ou informalmente. Vão ainda à
zona urbana para atividades relacionadas à organização comunitária, como reuniões
do Conselho Comunitário de Desenvolvimento Municipal – CCDM, de Iguatu, ou para
o seu lazer ou socialização, como campeonatos de futebol e festas, públicas ou reser-
vadas ao âmbito de amigos e parentes.
Nem a situação geográfica da comunidade dos Tipis nem a movimentação
dos seus membros para contextos urbanos autorizam uma categorização exclusiva
desse grupo social em um ou outro pólo de uma dicotomia do tipo urbano vs rural.
Com efeito, essa comunidade exibe em suas atividades sócio-culturais nexos diversos
entre o local e o não-local, continuamente formulados e reformulados sob diferentes
configurações, como indicam as análises feitas aqui.
5.4 Pés no Sítio, Cabeça na Cidade e o Coração em Frangalhos ou Pés na Cida-
de, Cabeça no Sítio e o Mesmo Sofrer
Os indivíduos casam-se jovens, nos Tipis. Os homens, entre 18 e 21 anos. Em
geral as esposas têm menos idade e mais escolaridade do que os maridos. Elas param
de estudar quando se casam e eles abandonam a escola bem antes. Homens jovens ale-
gam que param de estudar cedo porque começam a trabalhar no campo também muito
cedo. Essa alegação, porém, compete com o depoimento de adultos de que os jovens não
se interessam por, não gostam de, ou rejeitam abertamente o trabalho na agricultura.
A alegação dos jovens de que o trabalho agrícola os impede de estudar pare-
ce entrar em desarmonia com suas próprias declarações de que não se identificam com
114
esse trabalho. Essa desarmonia assume proporções maiores se desdobramos relações
associadas com a principal atividade produtiva do lugar e com o poder aquisitivo que ela
permite. Uma agricultura de subsistência, como aquela que consiste na principal atividade
produtiva nos Tipis, é de fundamental importância, por exemplo, para a segurança alimentar
dos membros de um núcleo familiar. Contudo, os rendimentos dessa atividade não chegam
a suprir as necessidades de uma orientação consumista, embora essa orientação possa
ser observada em depoimentos e hábitos de membros da comunidade, especialmente
dos jovens.
Tomemos, pois, o vestuário dos habitantes dos Tipis como um ponto para o
mencionado desdobramento de relações. O vestir corriqueiro dos indivíduos não se
descola das condições locais do viver ali. O calor sufocante, a informalidade das
interações cotidianas e o baixo poder aquisitivo levam os homens jovens e adultos a
se vestirem de modos muito simples. Indispensáveis durante o dia, os bonés são usa-
dos mesmo à noite por alguns. Bermudas ou calções são usados até em situações
mais formais, como uma missa ou uma reunião da Associação de Moradores. Sandá-
lias do tipo havaianas completam o visual. Elas são dispensadas no futebol diário,
quando os jogadores correm descalços pelo campo de terra nua. Usar camisas é algo
mais esporádico. As camisetas, de malha e manga curta, freqüentemente exibem co-
res e símbolos de algum time de futebol. Às vezes fazem propaganda de um candidato
a algum cargo político ou estampam a publicidade de alguma empresa. O vestuário
das mulheres tem traços comuns com o dos homens. No cotidiano, as mais adultas
alternam vestidos e saias e as mais jovens usam também calças compridas e shorts.
As camisetas com propaganda e as sandálias japonesas são visíveis nas variadas
idades e as blusas de malha exibem modelos e variações que tornam o vestuário
feminino um pouco mais sofisticado do que o masculino.
O vestuário de circunstâncias especiais ou festivas exibe o viés global, não-
local, do viver nos Tipis. Nessas ocasiões, os jovens desfilam tênis e calças jeans e
variam um pouco no estilo das camisas. As mulheres capricham um pouco mais do
que os homens e as mais jovens portam modelos que podem ser associados às ten-
dências recentes da moda juvenil.
Do vestuário dos moradores dos Tipis ressaltam, então, os interesses, prin-
cipalmente dos jovens, por um consumo visível, ligado ao lazer. Nesses interesses,
eles se assemelham a muitos outros jovens, membros de comunidades urbanas ou
rurais brasileiras.
Sansone (2006) refere-se a uma noção de cidadania que vem se tornando
relativamente uniforme e que, difundida entre grupos sociais diferentes, relaciona-se a
aspectos como consumo, lazer, trabalho, direitos individuais e liberdade de escolha. A
relativa uniformidade dessa noção gera expectativas de caráter global. No entanto, as
possibilidades de satisfazê-las são locais.
115
No que se refere a consumo, lazer e trabalho, os nexos do comportamento de
jovens dos Tipis com práticas locais e globais sugerem estarmos diante de uma situa-
ção de deprivação relativa. Assim, ao se identificarem com valores das classes médias
urbanas, os jovens parecem preocupar-se pouco com sua dependência da baixa renda
familiar, enquanto desprezam a possibilidade de exercer a atividade agrícola. Essa ativi-
dade não corresponde às suas expectativas, embora tenha sido e ainda seja a atividade
produtiva de seus pais. De modo semelhante à análise de Sansone (2006), para os
jovens dos Tipis o consumismo, e não a própria função no processo produtivo, parece
ser mais importante.
O leque restrito de atividades profissionais complementa o quadro de
deprivação relativa aqui indicado. O seguinte trecho do meu diário de campo é ilustrativo:
Em certa ocasião, deslocava-me da vila para a cidade de Iguatu. Algu-
mas comunidades depois, um senhor já idoso entrou no ônibus. Sen-
tou-se ao meu lado e, de imediato, entabulou uma conversa que se
configurou muito mais como um interrogatório. Isto era condizente com
a situação de sermos desconhecidos entre tantos conhecidos. Per-
guntou-me de onde vinha. Quis saber, em seguida, o que eu havia ido
fazer nos Tipis. Respondi-lhe que morava lá. O senhor baixou e me-
neou a cabeça, seu movimento sugerindo uma discordância. Quando
olhou pra mim, perguntei-lhe, sem mais desdobramentos: “Por quê (o
senhor não acredita que eu more lá)?” Ele me respondeu: “Conheço
todo mundo que mora nos Tipis. Nunca vi você lá.” “É que sou novato.”
– tentei justificar. “Ah, bom...” – acomodou-se ele, como que resolven-
do o estranhamento inicial. Contudo, a conversa não parou por aí. O
senhor prosseguiu: “Mas o que é que você tá fazendo lá?” “Tô fazendo
um trabalho...” – desconversei. “É pra política?” “Não, num é pra polí-
tica, não, é pra Universidade.” – respondi. O meu interlocutor, então,
disparou: “É!? Você é pedreiro!?”
Esse relato sugere uma tentativa, por parte do meu novo conhecido, de me
enquadrar no viver nos Tipis e o final surpreendente ilustra sua experiência com o
universo das profissões e da vida acadêmica. O episódio também chama a atenção
para o fato de que, afora as atividades agropecuárias, nos Tipis e nas comunidades
próximas é pouco extensa a lista de atuações profissionais dos homens ou das mulhe-
res: agricultor, pedreiro, motorista de ônibus, operário da indústria calçadista, comerci-
ante, professor, agente de saúde, vendedor, cabeleireiro, mecânico de bicicletas, ele-
tricista, oleiro.
O nexo das expectativas dos jovens dos Tipis com perspectivas globais
contrasta com as atuações profissionais locais e pode ser entrevisto em uma valoração
negativa que fazem das atividades às quais têm acesso ou mesmo no ócio, observado
ao longo dos dias modorrentos.
Em termos das possibilidades locais, as restrições às expectativas dos
moradores dos Tipis, especialmente dos mais jovens, são realçadas se consideramos,
116
por exemplo, a tradição histórica da formação escolar e profissional dos membros da
comunidade. Malgrado o alto índice de adultos e idosos não-alfabetizados, em 2004
havia nos Tipis uma turma de alfabetização de adultos, com 7 alunos, cujo professor
havia passado por uma experiência de êxodo rural. Essa turma deixou de funcionar no
final de 2004. As atividades da pequena escola municipal de ensino básico foram
suspensas desde o início desse mesmo ano. Para assistirem aulas, os estudantes dos
Tipis ainda hoje precisam deslocar-se para uma comunidade vizinha ou para a cidade
de Iguatu, conforme vimos.
Comportamentos de letramento envolvem, por exemplo, um planejamento
segmentado e detalhado de tarefas complexas (Foley, 1997; Lantof & Appel, 1994; Luria,
1990; Marcuschi, 2001; Soares, 2002). Nos Tipis, práticas associadas a tais
comportamentos não estão de todo interditadas, embora sejam pouco comuns de
acontecerem conforme os padrões das formulações teóricas. Assim, por um lado, em
2006, essa comunidade ainda não contava com nenhuma biblioteca e uma inclusão digital
é algo ainda distante do viver local. Por outro lado, a implementação de uma atividade
apicultora apenas parcialmente segmentada e detalhada pode ser tomada como um
exemplo da presença parcial desses comportamentos. Também as freqüentes reuniões
da comunidade, mesmo formatadas com peculiaridades, como demonstram as análises
do Capítulo 6, apontam para a ocorrência parcial de comportamentos letrados.
Em alguns momentos, a influência de aspectos da urbanidade brasileira pode
ser apreendida entre os habitantes dos Tipis de um modo que chega a parecer estranho
ao cotidiano da localidade. Por exemplo, de vários indivíduos é possível ouvir relatos nos
quais há preocupações com uma violência que é intensa nas cidades, porém é incomum
nos Tipis, como assaltos e acidentes no trânsito das ruas. Menos estranho, porque mais
próximo de possibilidades efetivas, é o receio dos riscos colocados pelos mundos das
drogas. Essas preocupações tanto podem decorrer de uma identificação dos jovens
com modos de viver urbanos, como de uma conexão midiática, televisiva, inferida pela
abundância de antenas parabólicas nos tetos das casas. Elas podem decorrer também
de vivências ou de relatos de experiências de migração – freqüentemente temporária e,
em alguns casos, definitiva – ou de viagens eventuais ou sistemáticas de membros da
comunidade para centros urbanos.
De fato, o êxodo rural é bem conhecido pela comunidade dos Tipis. Alguns
de seus membros, principalmente adultos jovens e homens, migram para Iguatu ou para
outras cidades, sobretudo para o Estado de São Paulo, no Sudeste brasileiro, à procura
de emprego ou de outras realizações pessoais, como o casamento. Paralelamente à
pressão econômica, a afetividade figura como um fator decisivo entre partir ou
permanecer, conforme observou Ferreira (2006), tratando de relações entre afetividade,
migração e juventude, no semi-árido cearense. Assim, na contraparte das partidas
esperançosas, com uma saudade ora apenas nostálgica ora apreensiva, nos Tipis há
117
sempre uma mãe ou um pai, há sempre um amor, um amigo enfim, pronto a relatar uma
ausência, um não, dito pelo tempo e pela distância de um outro que se foi.
Eventos migratórios não respondem pelo conjunto de práticas sócio-cultu-
rais e econômicas que configuram as organizações familiares onde esses eventos
ocorrem. Galizoni (2000), por exemplo, correlaciona formatos familiares em uma área
do polígono das secas brasileiro, localizada no Alto Jequitinhonha, no Estado de Minas
Gerais, não apenas com a migração mas também com questões afeitas à propriedade
da terra, ao trabalho e ao ambiente. Todavia os processos migratórios são influentes
na divisão dos papéis de gênero relativamente à organização e provimento dos núcle-
os familiares dos Tipis. Com efeito, em 2005, de um universo de 80 domicílios listados
em um Projeto para a construção de instalações sanitárias, 47 (58,75%) tinham o
nome de um homem como chefe da família e 33 deles (41,25%) tinham o nome de
uma mulher como chefe.
As ‘relações desarmoniosas’ desdobradas acima podem ser resumidas nos
seguintes termos: a pouca escolaridade dos jovens casadoiros dos Tipis é justificada
pelos empecilhos de um trabalho agrícola. Esse trabalho foi e ainda é a principal ativi-
dade dos pais. Contudo, não é mais almejado – e quase não é mais exercido – pelos
filhos. Essa atividade garante praticamente apenas a alimentação do núcleo familiar.
Porém, plugados em um consumo visível de feições globais, os jovens precisam de
roupas bacanas. Uma saída para esse circuito estaria na formação escolar e profissi-
onal. Mas eles param de estudar muito cedo. As oportunidades de adquirir essa forma-
ção não estão ali. Na “busca da terra prometida”, alguns vislumbram mundos de novi-
dades e possibilidades, por trás de mundos de exclusões. Outros pavimentam o cami-
nho de volta ao começo. Mas, porém, contudo, todavia, entretanto... Haja coração!
A valoração negativa da permanência no lugar de origem ou do retorno a ele
releva de aspectos que aproximam o viver dos moradores dos Tipis das dificuldades de
uma comunidade não-urbana e ‘isolada’. Tal ‘isolamento’ decorre, por um lado, das possi-
bilidades e impossibilidades locais, algumas mais visíveis do que outras ao olhar do ob-
servador. Por exemplo, somente em dezembro de 2004 a comunidade passou a contar
com um telefone público comunitário. Até então, a comunicação pela via telefônica era feita
a partir de uma linha pública instalada na vila vizinha. A via física da comunicação terrestre
também é frágil. Apesar de a distância entre a vila e a sede do município ser relativamente
pequena, uma benesse associada a essa proximidade pode assumir dimensões dramáti-
cas no dia-a-dia dos Tipis. Devido às condições precárias da estrada vicinal que liga a vila
à zona urbana, uma viagem de ônibus de Iguatu para os Tipis, que realizei durante um
período chuvoso, em fevereiro de 2004, teve a duração aproximada de três horas, depois
que um trator livrou o veículo de um atoleiro.
Todavia, o ‘isolamento’ não é gerado somente a partir de condições estrita-
mente locais, decorrendo também de características dos núcleos urbanos com os quais
118
essa comunidade se relaciona. A precariedade do equipamento urbano disponível na
sede municipal mais próxima é um dos nexos exógenos da comunidade dos Tipis que
nos permite atribuir uma certa dramaticidade ao viver dos seus moradores. Por exem-
plo, o transporte de uma parturiente para uma maternidade da cidade, no único auto-
móvel disponível na vila, custava R$50,00, equivalentes a 19,23% de R$260,00, o
salário mínimo oficial em 2004. Essa era a alternativa menos arriscada diante do
ineficiente serviço público de transporte de pacientes. A ausência de uma ambulância
pública do Sistema Único de Saúde é justificada com freqüência pela precariedade da
estrada de acesso à vila, o que recursivamente desestimula a comunidade a cobrar do
Estado a satisfação dessa demanda. A restrita oportunidade de deslocamento em uma
situação emergencial assume proporções de uma exclusão violenta se recordamos
que, nos Tipis, os parcos ganhos dos trabalhadores em idade produtiva decorrem de
uma atividade agrícola artesanal que provê a subsistência do núcleo familiar, mas
não a obtenção de rendimentos. Com efeito, como já apontei, a aposentadoria dos
idosos, paga pelo Instituto Nacional de Seguridade Social, constitui a renda signifi-
cativa da comunidade.
É visível, então, que os nexos entre o local e o global operam nos Tipis em
atuações que se retro-alimentam, como um Sísifo homérico, coletivo, que, mais uma
vez, rola a pedra ladeira acima para vê-la despencar ladeira abaixo. E assim vai proce-
dendo, ladeira acima, ladeira abaixo, ladeira acima, ladeira abaixo... Mas os franga-
lhos do coração não nos dizem tudo sobre os Tipis. Se, por um lado, componentes de
um conjunto de práticas sócio-culturais aportam ao viver daquela comunidade preocu-
pações e valores que se configuram, dentre outras relações, a partir de restritas possi-
bilidades locais na implementação de amplas expectativas globais, por outro lado,
outros componentes desse mesmo conjunto atuam na constituição de um viver taga-
rela, marcado pela abundância de atividades lingüístico-interacionais orais, das quais
participam indivíduos altamente integrados, conforme veremos a seguir.
5.5 Pés no Sítio, Cabeça no Sítio e a Boca no Mundo
Os caminhos tortuosos entre as casas dos Tipis exibem uma terra nua,
vermelha e irregular, com pedregulhos. Essas vias são impróprias para o trânsito de
automóveis. Nas casas não há garagens, não há sequer automóveis entre os bens da
quase totalidade dos moradores. A saída e a chegada diária do ônibus é um evento
que fica sob a vista de muitas pessoas. No restante do dia as crianças podem circular
livremente por entre as casas ou podem correr estabanadas para um banho no açude.
Nem a aventura de roubar manga em algum sítio próximo chega a preocupar seus
pais ou cuidadores quanto aos riscos efetivos, por exemplo, de um atropelamento
automobilístico. Possíveis dissabores associados a essas aventuras nem chegam a
119
suplantar os sabores das frutas colhidas no pé. Um galho que não suporta o peso da
penca de meninos, um enxame de abelhas exaltadas ou a perseguição do dono do
sítio são ocorrências corriqueiras que raramente azedam o doce das frutas.
Sob um calor anestesiante, redes de dormir proporcionam uma boa acolhi-
da para aqueles que podem desfrutar o repouso do meio-dia. Durante essa renovado-
ra sesta o canto dos pássaros sertanejos compete com o alarido das conversas de
algum grupo de moradores. Em outros momentos é possível mesmo ouvir gritos e
fragmentos de fala de agricultores trabalhando em roças próximas à vila. Aqui e ali o
silêncio reinante é perturbado pela música que ecoa de algum rádio estrategicamente
ligado na cozinha de alguma casa ou pelo volume estridente do aparelho de som que
embala algum adolescente. Do ponto de vista do ritmo da vida cotidiana e do conforto
sonoro ambiental, os habitantes da vila dos Tipis vivenciam uma tranqüilidade nada
comparável à correria e ao stress de boa parte dos centros urbanos brasileiros.
Todavia, a principal qualidade do viver nos Tipis reside em cada casa ao
lado. E cada casa é geralmente uma casa ao lado. O disse-me-disse das relações
interpessoais não assume os termos de mesuras refinadas. Mas pode explodir em
bate-bocas barulhentos – e geralmente passageiros, felizmente – ou em atuações
solidárias, que encerram um recíproco respeito humano – por si mesmo e pelo outro.
Em uma comunidade com modos de viver visivelmente simples e relacionalmente
complexos, a dinâmica, a relevância, as conseqüências dos elos interacionais fazem-
se observáveis de maneiras contundentes, hilárias, vivazes. Vejamos como.
5.5.1 “Sem conversa não tem construção” – redes de interações, parentesco e
amizade e uma noção de tempo, no cotidiano dos Tipis
A primeira visita que fiz aos Tipis, no início da pesquisa de campo, serviu
para confirmar os compromissos acordados quando da minha passagem anterior por
ali. Assim, combinei com um líder comunitário e sua esposa que eu continuaria fazen-
do as refeições na sua casa, como fizera antes, e confirmei a disponibilidade de uma
casa onde moraria durante cinco meses. Além disso, recebi indicações para a
“contratação” do pedreiro que a adaptaria para minhas necessidades básicas de morar.
O pedreiro e eu planejamos preparar dois cômodos: uma sala, que funcio-
naria como quarto de dormir e escritório, e um banheiro. Depois que os materiais
inicialmente previstos para a reforma foram comprados, compareci ao local, no início
do segundo dia. Precisava observar o andamento dos trabalhos e tomar outras provi-
dências que se fizessem necessárias. A obra estava parada e o pedreiro revelou-se
incomodado com as reclamações de um dos filhos do líder comunitário.
Até então, eu havia interagido pouco com esse jovem, que já constituíra sua
família. Quando cheguei à reforma paralisada, ele não estava lá. Então, fui até a casa
120
do seu pai, tentar alguma negociação. O pai se encontrava na roça, mas uma rápida
comunicação boca a boca já provera a mãe de informações sobre o caso. A mãe
intimou o filho para uma conversa tensa, que presenciei, e compareceu ao local da
reforma, autorizando os trabalhos.
O jovem reclamava que o pai não havia conversado com ele sobre a refor-
ma e assim ele havia perdido a oportunidade de obter algum rendimento fora da agri-
cultura. Para apaziguar a situação esclareci que alguns pequenos serviços necessári-
os à reforma poderiam ser feitos pelo jovem. Em outra atuação, antecipei-me ao en-
contro de pai e filho e relatei ao pai o episódio e as soluções encontradas, tentando
evitar atritos entre os dois.
Revoltoso nesse primeiro momento, o jovem tornou-se um amigo e um co-
laborador da pesquisa. A prática intensa de negociações em teias de conversas própri-
as da sua rede de conversação era uma chave para eu me inserir na comunidade e
compreender os modos de vida de seus membros. A cooperação passava por teias
densas de inter-relações pessoais ou redes de intensas relações interpessoais. Com
efeito, conforme veremos adiante, a forte presença da conversa nos Tipis a caracteri-
za como a atividade central da sua vida social, da socialização, da manutenção da
ordem social ali co-construída.
Uma vez superada a insuficiência das conversas iniciais, a reforma prosse-
guiu. O seu andamento, porém, exigiu uma outra reforma em minhas expectativas nas
lides com a comunidade, quanto ao modo como o tempo era vivenciado em algumas
atividades, em função das disposições corporais que estavam em jogo naquele domí-
nio de ação específico e das relações interpessoais altamente interconectadas.
Vimos anteriormente como a Biologia do Conhecer explana a noção de
tempo enquanto uma conotação de nossas coordenações de coordenações de ações
e não como uma entidade física, independente dos nossos modos de viver. Na pers-
pectiva do caminho explicativo da objetividade entre parênteses, o tempo surge como
uma abstração das experiências do observador, havendo tantos sentidos para a pala-
vra tempo quantas formas há de abstrair as regularidades das experiências de proces-
sos e seqüências de processos.
A empreita da reforma estava apalavrada com o pedreiro. Em uma empeleita,
como dizemos no sertão, o valor do serviço é calculado de acordo com a metragem da
área construída ou reformada, ou por um cálculo aproximado, no qual a experiência do
profissional conta como um componente importante. Geralmente o pagamento de uma
empeleita é dividido em pelo menos duas parcelas: uma delas é paga no início do
serviço, a outra, no final. Estimula-se um aspecto da produtividade: quanto antes o
serviço fica pronto, mais interessante torna-se para o construtor.
A reforma coincidiu com os preparativos e debates em torno das eleições
de 2004, para Prefeito e Vereadores dos municípios brasileiros. Certa feita, cheguei ao
121
canteiro de obras no meio da tarde, esperando encontrar os trabalhadores em plena
exercício de suas funções. Mas eles haviam parado as atividades bem mais cedo do
que a minha experiência se acostumara. O pedreiro esclareceu: logo mais à noite
haveria uma reunião organizada por um primo dele, candidato a Vereador. A sua par-
ticipação indubitável no evento convocado pelo primo era uma razão suficientemente
forte para a suspensão dos trabalhos. As relações de parentesco e amizade, bem
como o tempo que ele julgava necessário para se preparar para a reunião política,
contaram mais para essa decisão do que o valor monetário que estava em jogo na
conclusão da reforma. O pedreiro sabia por que eu estava indo morar nos Tipis, sabia
do meu interesse em ter a casa pronta o mais rapidamente possível. Porém o meu
‘cronograma de pesquisa’ nem foi por ele cogitado.
Utilizando termos da Biologia do Conhecer para aludir a este descompasso
entre práticas e expectativas, considero que eu vinha de domínios de ações
freqüentemente pautados pela busca de um ordenamento ótimo, produtivo, do tempo,
da seqüência de processos. Dentre outros aspectos, os meus objetivos de pesquisa-
dor e um cronograma apertado contribuíam para a pressa e para uma tensão da minha
disposição corporal para agir. Assim, eu contava que a reforma da minha futura casa
seria feita em uma ou duas semanas. Foram despendidas quatro semanas! Havia
nesse evento algo mais do que ‘cronogramas’, produtividade e... dinheiro. Não somen-
te aspectos estritamente locais – as próprias características do trabalho, as habilida-
des dos trabalhadores, a interferência do ‘jovem revoltoso’ ou a ausência do ‘primo
atencioso’ – contribuíram para a angustiante extensão temporal da reforma. Outras
condições decorrentes da conexão dessa comunidade com outros grupos sociais tam-
bém atuaram. Vejamos.
Em reformas de antigas construções a necessidade de alguns materiais
surge no decorrer mesmo do trabalho. No caso aqui em foco, cada vez que isso acon-
tecia, demorava até dois dias o encaminhamento entre o pedreiro me informar sobre a
demanda, eu comprar o material na cidade e a empresa providenciar a entrega na
localidade. Precisei considerar então que além dos meus interesses acadêmicos, no
andamento da reforma da casa estavam em jogo a agenda local, as necessidades
materiais que inesperadamente surgem em reformas daquele tipo e as conexões dos
habitantes dos Tipis com práticas não-locais.
Por outro lado, e de modo principal, aquela experiência alertava-me para a
importância de olhar para possíveis particularidades nas formas de aquela comunida-
de vivenciar o tempo. Contingências dos domínios de ação dos interactantes, inclusive
suas disposições corporais, projetaram ritmos próprios no viver, em diversos domínios
dos quais pude participar nos Tipis. Analogamente a outros indivíduos em domínios de
ação específicos, habitantes dos Tipis vivenciam diferentemente o tempo, por exem-
plo, quando vão pegar o ônibus de linha ou da empresa onde trabalham, quando estão
122
na lavoura, sob um calor escaldante, ou quando esperam o sol ‘virar o arco’, em dias
modorrentos. De modo explícito, esse episódio da reforma também indica o peso das
relações interpessoais como uma outra importante chave, juntamente com a conversa,
em uma compreensão dos modos de viver dos Tipis.
5.5.2 “Vixe como tem Zé”
18
– nomes, apelidos e bom humor onde ‘todos são
parentes’
Malgrado a manifesta preocupação com uma violência urbana, fechar as por-
tas de uma casa, nos Tipis, ordinariamente não envolve a tensão com que o fazemos nos
centros urbanos brasileiros. As casas são fechadas, mas não trancadas, quando ne-
nhum morador ali permanece. Em decorrência disso, por exemplo, no deslocamento de
um ponto a outro, se um transeunte sente sede, vai logo destravando a porta da casa
mais próxima, avisando, aos gritos, ao compadre, à comadre ou à vizinhança, que irá
servir-se de água.
Muitos indivíduos dos Tipis – irmãos, primos ou cunhados – tratam-se por
compadre e comadre. É possível mesmo observar que quase todos os membros da
comunidade se entrecruzam em teias de parentesco. É comum ouvir um membro da
comunidade indicar suas relações de ascendência e descendência familiar com muitos
outros membros. Com efeito, muitos têm algum sobrenome em comum. Ocorrendo em
uma variedade relativamente pequena, os sobrenomes acabam por perder a
especificidade que estamos acostumados a associar a eles
19
.
Schegloff (1999) observa que os nomes próprios constituem um recurso
lingüístico importante nas conversas: sempre que possível, os participantes preferem o
nome próprio, quando dispõem dessa informação, ou tentam usar um termo de reconhe-
cimento máximo. Nos Tipis, assim como os sobrenomes, os nomes ‘de batismo’ tam-
bém se repetem, tendo diminuída a sua função reconhecedora. Desse modo, os apeli-
dos proliferam e muitos indivíduos ora alternam o tratamento de compadre e comadre
com os apelidos, ora combinam os dois. Freqüentemente os apelidos são hipocorísticos,
vocábulos derivados de um nome próprio – Antônia/Tonha, Francisco/Tico –, mas podem
18
Trecho da letra de Vixe como tem Zé, composição de Jackson do Pandeiro.
19
Na lista de 47 homens e 33 mulheres que chefiam os 80 domicílios listados no Projeto de instalação de
sanitários, o sobrenome de Lima ocorre em 23 domicílios (28,75%); Uchoa, em 13 (16,25%); Mulato e de
Araújo, em 12 (15%, cada); do Ó, em 9 (11,25%); de Almeida, em 8 (10%); de Melo e Serafim, em 7
(8,75%, cada); Vital, e Pereira, em 5 (6,25%, cada); de Sousa, em 4 (5%); de Oliveira, em 3 (3,75%).
Com menor ocorrência há ainda os sobrenomes Miguel Teodoro e Fernades Maciel, em 2 domicílios
(2,5%, cada), e Ferreira, Nunes, dos Santos Dias, Dias Belo, Bezerra, Braz, Alves, Rodrigues e Moreno
da Silva, em 1 domicílio (1,25%, cada). A soma dos percentuais é maior do que 100% (151,25%) porque
alguns indivíduos exibem mais de uma ocorrência de sobrenome, por exemplo, de Lima Uchoa, Uchoa
Mulato, Mulato do Ó.
123
não apresentar uma relação morfológica visível – em momentos especiais uma mãe
chama carinhosamente o filho: Boi.
Nos Tipis é comum alguém ter acrescido ao seu nome próprio ou apelido o
nome do pai ou, mais raramente, da mãe. Em alguns casos é possível com isso au-
mentar a função distintiva, a especificidade dos nomes e apelidos repetidos. São exem-
plos fictícios desses casos: Pedro de Luíza, Chico de Totonho, Teca Reinaldo. Há um
caso inverso, no qual um senhor, pai de dez filhos, tem acrescido ao seu nome próprio
o apelido da filha mais velha: algo como Luís Sinhá.
Em uma prática na qual os atores não parecem construir uma relação des-
respeitosa de uns para com os outros, na maioria das vezes as pessoas dos Tipis
tratam-se diretamente, seja pelo nome próprio ou pelo apelido, sem a aposição de
uma forma de tratamento que indique uma diferença de idade ou outro possível senso
de hierarquia, por exemplo, entre tios e sobrinhos, avós e netos. Todavia, há um caso
que contraria essa tendência e que é sugestivo do bom humor entre os membros da
comunidade. Em situações cotidianas, nós cearenses usamos uma expressão com-
posta por uma variação de ‘Senhor e outra forma pejorativa, insultando diretamente
um indivíduo: seu babaca! Em uma ocorrência brincalhona e ambígua, um indivíduo
dos Tipis é tratado permanentemente com uma expressão semelhante, que se tornou,
assim, sua identificação usual e preferencial, sendo usada não mais como uma estru-
tura bimembre, mas como uma peça monolítica, como uma lexia. Para um observador
‘novato’, esse tratamento parece ainda mais engraçado quando senhoras e senhores
mais idosos do que esse indivíduo referem-se a ele ou o tratam direta e cerimoniosa-
mente com algo do tipo Seu Otário.
Relações tidas por assimétricas, por exemplo, entre jovens e idosos e entre
ascendentes e descendentes familiares são reconhecidas pelos habitantes dos Tipis,
embora corriqueiramente netos e sobrinhos não usem formas de tratamento que indi-
quem uma diferença de idade ou uma relação hierárquica com seus tios e avós. Sen-
tidos de assimetrias reconhecidas também parecem ser minimizados, por exemplo,
quando as crianças não são rejeitadas em boa parte das atividades dos adultos como
também quando as mulheres conversam e opinam sobre o trabalho do campo, embo-
ra ele seja predominantemente desenvolvido pelos homens. Atribuo essas peculiari-
dades à freqüência com que os membros dessa comunidade se encontram.
Uma prática particular de cumprimento também parece ser resultante da
recorrência dos encontros, nos Tipis. Assim, nos freqüentes encontros do cotidiano,
em situações bastante informais, é comum que alguém se aproxime de um grupo em
cuja atividade conversacional vai se integrar, sem formalizar um cumprimento, ao chegar,
nem se despedir, ao se ausentar. Porém, pessoas se cumprimentam em situações mais
formais, conforme veremos no próximo Capítulo, ou quando se cruzam em algum ‘caminho’.
Na sua prática mais cotidiana, o não cumprimentar parece sugerir a atribuição de uma
124
grande importância ao ato de conversar. Se a conversa vai acontecer, o cumprimento
pode até ser dispensado, por desnecessário. Ele seria também repetitivo, diante da
freqüência com que se esses indivíduos se encontram. Agora, se uma conversa não vai
ser desenvolvida, pelo menos uma troca de fala é entabulada: um cumprimento.
Essas particularidades no agenciamento de sobrenomes, nomes próprios,
apelidos e formas de tratamento e cumprimento pontuam a intensidade e a densidade
do trato interpessoal e afetivo vivenciado nos Tipis. Vejamos como esses traços sócio-
culturais se manifestam em outros aspectos do viver ali.
Embora práticas sócio-culturais observáveis nos Tipis pudessem contar em
uma auto-afiliação a uma etnia negra, branca ou indígena, a comunidade dos Tipis
não se auto-rotula como tal, conforme argumentei anteriormente. O que se destaca
nesse campo é que relações entrecruzadas de parentesco, práticas solidárias e um
conhecimento individualizado entre os membros são trazidos à mão em diversos pro-
cessos interacionais da comunidade, sugerindo que a intensidade e a densidade das
relações interpessoais ali vivenciadas é que são tomadas como um fator do seu auto-
reconhecimento enquanto um grupo social. É comum um membro da comunidade
afirmar que são ‘todos parentes’, quando deseja promover um apaziguamento de al-
gum conflito interpessoal ou justificar a curta duração ou a não manutenção de confli-
tos já apaziguados. Essa afirmação recorre também quando eles se reúnem em algum
festejo ou se ajudam mutuamente. Pequenas ações de solidariedade são corriqueiras
ali. Conforme testemunhei várias vezes, inclusive como beneficiado, nos Tipis é co-
mum alguém levar vasilhames com leite bovino, para outras casas, ou distribuir algum
alimento disponível ou preparado na sua casa – tigelas de feijão, porções de cuscuz
de milho, fatias de mamão, tapiocas...
Podemos associar essas ações à carência e necessidade de alguns grupos
familiares. A vulnerabilidade, no entanto, é insuficiente para uma interpretação explicativa
dessa solidariedade. Elas consistem em iniciativas a um só tempo providenciais, res-
peitosas, principalmente: carinhosas. Caracterizam-se como uma ajuda oportuna sem
serem uma resposta a um apelo formalizado e sem ferir suscetibilidades. Elas se an-
coram no conhecimento individualizado que cada membro tem do outro e isto não é
trivial, é central na organização dos modos de viver nos Tipis. O episódio de uma
viagem de ônibus, durante a qual um senhor me disse: “Conheço todo mundo que
mora nos Tipis. Nunca vi você lá.” é ilustrativo da importância desse conhecimento
individualizado para a legitimação dos construtores dessa solidariedade e para a
estruturação desse viver. Em uma comunidade assim pequena, composta principal-
mente por contra-parentes, a solidariedade se dá conjuntamente, para fins e bens
daquela coletividade mesma, diferentemente de uma solidariedade via satélite, para
fins de deduções de imposto de renda e bens sabe-se lá de que pessoas físicas,
empresas ou organizações não-governamentais e governamentais. As práticas produ-
125
toras do que estou denominando de isolamento relativo ao contexto urbano, produzi-
das reflexivamente por esse mesmo isolamento, realçam a importância e a eficácia
das ações coletivas, minimizando, de modo também relativo, a importância e a eficá-
cia de ações de caráter mais individualista.
Como estou reforçando, a intensidade e a densidade do trato interpessoal e
afetivo nos Tipis constituem importantes componentes dos modos de viver dessa co-
munidade. Esses componentes emergem associados às condições configuradas nas
teias de relações de parentesco, no conhecimento individualizado que os membros da
comunidade têm entre si. Com efeito, essa proximidade é invocada como um fio que
costura um sentido societário, em momentos nos quais o apelo a uma identidade cole-
tiva concorre para a consecução ou justificação de certas atividades interacionais. As
práticas solidárias e decorrentes de um conhecimento mútuo parecem constituir o
próprio ato de tecer, costurar, cerzir o tecido social dos Tipis.
5.5.3 “Quem vai malhar o judas? Quer apostar?” – religiosidade e folia na vida
comunitária
Cada casa, nos Tipis, dispõe, em geral, de um ou dois quartos de dormir.
Uma sala de jantar é raramente utilizada para as refeições. Na parte traseira final da
habitação encontra-se uma cozinha, onde as pessoas comem geralmente sentadas
em cadeiras postas ao lado do fogão a lenha. Não é incomum que essas refeições
sejam feitas de pé ou de cócoras, nesse recinto. Anexa à cozinha, encontra-se
comumente uma despensa, onde são guardados alimentos e utensílios para agricultu-
ra, caça e pesca, como enxadas, foices, espingardas, anzóis, redes de pescar. Em
alguns quintais, delimitados por cercas rústicas de varas, encontramos uma moita de
uma planta arbustiva denominada mufumbo (combretum leprosum Mart.), que serve
de dormitório para as galinhas criadas por aquela família. No quintal de uma ou outra
casa, encontramos alguma fruteira – uma laranjeira ou um mamoeiro ou um ‘pé de
pinha’ ou ‘ata’ ou um ‘pé de cajarana’, dita cajarama.
Na parte da frente das habitações há uma sala onde, em muitas delas,
televisores ocupam um lugar central, alimentados pelas antenas parabólicas que
encimam os telhados. Principalmente no final da tarde, programas sobre a violência
nos grandes centros urbanos brasileiros ainda assustam uns poucos moradores, po-
rém provocam, em muitos, atitudes defensivas praticamente inócuas, porque desne-
cessárias, diante do cotidiano relativamente tranqüilo da vila.
As casas dos Tipis não têm jardim. Porém, em uma das laterais exterio-
res de muitas delas há um ‘pé de peão roxo’, um arbusto cujas folhas são utiliza-
das em rituais de benzeção e de rezas curativas. Nas paredes das salas das ca-
sas, além de retratos de filhos e netos, os habitantes afixam imagens de Santos. De
126
uma perspectiva solene ou formal, a religiosidade na comunidade dos Tipis assume uma
referência cristã, principalmente católica. Todavia, como já disse, o cotidiano é permeado
por referências animistas, que atribuem poderes especiais a elementos da natureza.
A religiosidade manifesta-se nos Tipis em modalidades sagradas e profanas
do viver dos seus membros. Ao longo do ano, as missas são esparsas. A sua ocorrência
depende da presença de um ator externo, o pároco. Uma atividade denominada Encon-
tro de Casais com Cristo – ECC, bastante difundida em comunidades católicas brasilei-
ras, ocorre nos Tipis de modo mais sistemático do que as missas e depende da iniciati-
va local. Em outubro, ocorrem novenas em louvor a São Francisco de Assis, o Padroeiro
da Paróquia. O sagrado configura-se diariamente, por exemplo, como um conjunto de
crenças e rituais de benzeção e cura de males diversos, principalmente de crianças com
disfunções gastro-intestinais, associadas à qualidade da água consumida e aos costu-
mes de higiene de utensílios de cozinha.
Manifestações profanas relacionadas com o sagrado são mais esporádicas.
Nos dias que antecedem a Semana Santa ocorre uma delas. Grupos de mais ou menos
dez homens vestem mantos feitos de saco, enfeitados com tiras de tecidos coloridos, e
põem máscaras toscas, feitas de papelão ou com uma perna de uma calça comprida. São
os caretas. Eles saem pedindo esmolas pelas comunidades e sedes urbanas vizinhas. O
visual estranho assusta algumas crianças e diverte a todos. Os homens bebem a cachaça
doada durante as andanças. Algum dinheiro recebido cobre as despesas de deslocamen-
to dos caretas ou vai constituir um prêmio em dinheiro associado à manifestação.
No Sábado de Aleluia, no pátio em frente à Capela, os caretas montam o que
chamam de circo, um círculo demarcado no chão, onde dispõem as oferendas recebidas
nas andanças pelas comunidades vizinhas: melancias, milho, feijão, jerimuns, gêneros ali-
mentícios. As pessoas do lugar, principalmente os homens, tentam ‘roubar esses itens de
dentro do circo. Enquanto isso, os caretas tentam evitar esse ‘roubo’, perseguindo o ‘la-
drão’, surrando-o com um chicote, espatifando o item ‘roubado’. O castigo cessa se o
‘ladrão’ afasta-se mais ou menos dez metros do local da brincadeira, se ele põe a prenda
no chão ou se ela é espatifada pelos caretas.
O principal alvo do ‘roubo’ e das perseguições, no entanto, é o Judas, um
boneco feito pelo enchimento de roupas com trapos e palha, colocado no centro do cir-
co. O indivíduo que consegue ‘roubá-lo’ ganha o prêmio em dinheiro. Quando chega o
final da tarde, é hora da irreverente atividade coletiva de malhar o Judas. O escárnio é a
um só tempo irado e hilário. A folia é geral. À noite, há uma festa dançante
20
.
As atividades de lazer são pouco diversificadas, nos Tipis. Eventualmente
ocorrem festas de forró em um espaço privado, um balneário que dispõe de uma
quadra de danças, com bar e restaurante, e que se localiza na vila vizinha, assentada
20
Essa manifestação é comum em outros Estados do Nordeste. O destaque dado pela imprensa cearense
à manifestação dos Tipis parece atribuir-lhe um caráter especial como podemos inferir do fato que anual-
mente faz parte da pauta de jornais cearenses, sobre eventos da Semana Santa.
127
na margem oposta do açude, na outra encosta, que também apresenta uma inclina-
ção suave. Corridas a cavalo ocorrem esporadicamente, mas são os freqüentes cam-
peonatos de futebol que mobilizam a comunidade. Com efeito, em 2006, o time de
futebol masculino agrega 35 jogadores e o time feminino, criado nesse mesmo ano,
reúne 15 atletas.
Em 2004, havia oito pequenos bares na localidade, cinco dos quais com
uma mesa de sinuca. Os mais jovens encontram-se para disputas desse jogo du-
rante o dia; os agricultores, após o trabalho no campo e antes do almoço ou entre
o final da tarde e o horário em que a maioria se recolhe às residências – geralmen-
te por volta das oito horas da noite. Desde o início da noite, alguns homens e
mulheres jogam cartas em um dos bares do lugarejo ou na casa de algum morador
da comunidade.
A instituição da aposta é praticamente indispensável, seja nos jogos de si-
nuca, de baralho ou de futebol, seja nas disputas a cavalo, embora os valores aposta-
dos sejam pequenos, à exceção dos páreos de turfe, dos quais há relatos de algumas
apostas tratadas como extravagantes, diante do poder aquisitivo local. O convite para
uma aposta pode assumir ares de uma intimação, de uma provocação ou de uma
espécie de insulto entre amigos, sendo acionado mesmo em conversas nas quais uma
dúvida banal evolui para uma contenda sobre qual opção será tomada como a única
válida. Os pleitos eleitorais e os campeonatos de futebol, locais ou não, constituem
momentos propícios para essas apostas.
Os estabelecimentos comerciais onde se encontram as sinucas vendem
principalmente refrigerantes e bebidas alcoólicas. Alguns vendem também gêneros
básicos de mercearia, como açúcar, café, biscoitos, óleo de cozinha. Outros itens,
industrializados ou artesanais, consumidos pelos habitantes, são adquiridos na sede
do município de Iguatu e, eventualmente, na sede do município vizinho, denominado
Acopiara. A produção de mercadorias artesanais é praticamente inexistente e a ati-
vidade comercial não chega a preencher toda a ação produtiva de um membro da
comunidade dos Tipis. Assim, mesmo aqueles com vendas estabelecidas mantêm-
se ligados às atividades agrícolas de subsistência.
5.5.4 “Lata d’água na cabeça...”
21
– água e saúde como práticas coletivas
A vila dos Tipis tem uma configuração urbanística comum a outras comunida-
des rurais do sertão semi-árido do Nordeste brasileiro e se assenta em uma encosta de
inclinação suave, às margens do Açude dos Tipis, um reservatório de água construído
em 2003, resultante da barragem de um pequeno córrego denominado Riacho da Onça.
21
Trecho da letra de Lata d’água, composição de Luís Antonio e J. Júnior.
128
O lugarejo dispõe de poucos espaços públicos. Em frente à Capela ca-
tólica, há um amplo pátio desprovido de bancos, passeios ou qualquer obra física
que o caracterize como um espaço público urbanizado. Porém, o plantio de uma
árvore, protegida dos animais por uma cerca de varas, sugere a atribuição de um
caráter especial a esse espaço físico. Com efeito, na Semana Santa, quando se
acentuam manifestações da religiosidade cristã dos membros da comunidade,
esse pátio é utilizado para atividades do Sábado de Aleluia, como vimos acima.
Outros eventos coletivos da comunidade ocorrem no interior da Capela ou no
campo de futebol. A pequena escola municipal, cujas atividades escolares foram
suspensas desde o início de 2004, abriga as reuniões da Associação de Moradores.
Essa Associação dispõe de uma pequena edificação destinada à guarda de implementos
agrícolas que são emprestados aos sócios. Os atendimentos do serviço público de
saúde, denominado Programa de Saúde da Família, ocorrem na residência da mora-
dora que atua como Agente de Saúde.
As casas dos Tipis estão dispostas com distanciamentos, recuos e alinha-
mentos irregulares entre uma e outra e a distribuição de vizinhança quase sempre diz
respeito às relações de filiação de um dos pares do casal que constitui ou constituiu
aquele domicílio. Elas são absolutamente térreas. Não há sobrados, nem porões. As
fachadas principais são freqüentemente voltadas para o nascente, de modo que a
lateral direita e a parte de trás das casas recebem insolação direta. Tijolos aparentes,
de argila vermelha, podem ser vistos nas laterais de quase todas as construções ou
mesmo na fachada ou no interior de algumas delas. Algumas casas têm a fachada
dianteira revestida com reboco, pintadas em cores claras.
Em 2004, ainda havia no lugarejo duas casas de taipa, técnica de constru-
ção na qual as paredes são erigidas com varas entrelaçadas, amarradas com cordas
de sisal, formando uma grade que é preenchida com argila. Apesar da existência des-
sas casas e da ausência de reboco nas paredes internas de várias unidades residenciais,
não há casos do Mal de Chagas, doença associada ao besouro barbeiro infestado,
que se aloja em frestas de paredes de taipa ou não rebocadas.
A comunidade dos Tipis tradicionalmente se serviu da água do Açude para
usos diversos, desde o consumo humano e de outros animais à lavagem de roupas,
passando por atividades relacionadas à produção de tijolos para as construções locais
ou à irrigação de pequenas áreas plantadas nos quintais ou no entorno do reservató-
rio. Em 2003 as unidades residenciais dos Tipis passaram a contar com água canaliza-
da, oriunda de um poço de aluvião, cuja profundidade está no intervalo das cotas do
lençol freático do Açude.
Uma rede de tubulação para o transporte de água potável pode ser tratada
como um recurso infra-estrutural. Se a tratamos assim destacamos o aspecto material
do recurso. Contudo, podemos considerar também o aspecto relacional desse recur-
129
so, tratando-o como uma prática social. Nesse outro caso, considera-se que o recurso
‘água canalizada’ tem suas características produzidas pela atuação endógena, local,
da comunidade que o configura e por suas relações exógenas, pelas relações que
essa comunidade estabelece com a sociedade na qual se insere. Nessas atuações
são trazidos à mão aspectos infra-estruturais, ambientais, sanitários, culturais que
constituem a história dessa comunidade. A efetivação desse recurso, por sua vez,
alimenta e reinstaura, com vieses particulares, os aspectos infra-estruturais em jogo.
Na comunidade dos Tipis, a água canalizada vem sendo desfrutada com
particularidades, pelos habitantes, em virtude do caráter recente da canalização, da
ausência generalizada de instalações sanitárias adequadas, da competição do siste-
ma canalizado com antigos hábitos sanitários, da acentuada salinidade dessa água,
das características bacteriológicas das águas do Açude e do poço fornecedor de água.
Com efeito, embora o poço tenha sido perfurado em 2003, em 2004 apenas 4 domicí-
lios possuíam estrutura sanitária que reconhecemos como adequada. Complementar-
mente, embora algumas casas disponham de pias para a higiene dos utensílios do-
mésticos, ainda se observa uma preferência por lavar pratos e panelas em jiraus,
bancadas rústicas de madeira, para os afazeres da cozinha e do quintal. Essa prefe-
rência parece ecoar de modo recursivo na saúde dos indivíduos.
Diante da suposição de alguns moradores dos Tipis de que certos proble-
mas de saúde estavam associados à água por eles consumida, discutimos a oportuni-
dade de solicitarmos uma avaliação da qualidade desse recurso aos órgãos públicos
que seriam responsáveis por tais questões. Minha disposição de participar ativa e
intensamente das vivências comunitárias, para compreender a dinâmica das suas prá-
ticas lingüísticas, culturais e cognitivas, como também uma facilidade em transitar nos
meandros burocráticos do Estado levaram-me a acionar os referidos órgãos.
O resultado de uma análise bacteriológica indicou que não eram potáveis
as amostras colhidas no poço alimentador do sistema de água canalizada, em uma
residência e em dois pontos do Açude. O alto teor de coliformes totais e da bactéria
bacilar Escherichia coli ensejou a realização de uma outra análise, dessa vez incluindo
também uma avaliação físico-química da água. Conforme essa nova análise, além de
não atenderem aos padrões de potabilidade bacteriológica, as amostras analisadas
indicaram propriedades físico-químicas fora dos padrões aceitos pelo Ministério da
Saúde, para o consumo humano, com elevados índices de cloreto e dureza.
O Açude dos Tipis localiza-se entre duas encostas, nas quais se assentam
duas comunidades. Em época de chuvas, o lixo ali produzido é carreado para o seu
leito. Juntamente com os hábitos dos moradores, outros fatores ambientais contribu-
em para o perfil bacteriológico e físico-químico das águas ali disponíveis. Além do lixo
oriundo das atividades humanas, as chuvas carreiam outros resíduos naturais do en-
torno e os animais, domésticos ou não, bebem água e se banham no reservatório. A
130
água do poço, por sua vez, apresenta características – especialmente as bacteriológi-
cas – semelhantes à água do Açude, em virtude de esse poço estar localizado no
intervalo das cotas do lençol freático do reservatório.
As características que tornam impróprias as águas consumidas nos Tipis
não são adequadamente compreendidas se as tomarmos como o resultado de uma
soma simples dos hábitos de higiene doméstica dos grupos familiares isolados. As-
sim, como vimos observando para outros aspectos, uma possível ordem vivenciada
pela comunidade quanto à qualidade da água e à saúde dos seus membros tem o
caráter de uma produção social, localizada em um nicho ambiental que é moldado
pela ação social dos membros e que, reflexivamente, molda essa ação.
Em 2005, conforme já mencionei, a Associação de Moradores dos Tipis
elaborou um Projeto para a construção de 81 instalações sanitárias residenciais, po-
dendo beneficiar diretamente 265 pessoas, através da introdução de novos hábitos
sanitários. Contudo, um fator infra-estrutural e ambiental poderá minimizar a extensão
do benefício da água canalizada, se essas instalações não forem dotadas de caixas
d’água apropriadas. Ocorre que, no clima do sertão semi-árido, as temperaturas são
elevadas durante a maior parte do ano, podendo haver um abrandamento térmico
apenas durante os meses de maio e junho, especialmente se, no trimestre anterior, o
regime de chuvas foi regular ou acima da média. Com isso, nos Tipis, a água armaze-
nada em uma caixa d’água central chega às residências a uma temperatura elevada,
imprópria para o manuseio imediato. A ausência de uma caixa d’água na unidade
residencial gera a necessidade de armazenar a água em recipientes à sombra, até
que o seu calor se dissipe e o usuário possa manuseá-la nas lides domésticas ou na
higiene pessoal. Essa necessidade, por sua vez, alimenta o uso de jiraus e a conse-
qüente precária higiene na lavagem dos utensílios domésticos.
Mesmo diante das adversidades acima referidas, entre moradores dos Tipis
é comum a opinião de que a água canalizada constitui um conforto, diante da única
alternativa de coletar água no Açude próximo, particularmente quando o regime de
chuvas não foi suficiente para repor a carga desse reservatório.
O avanço sanitário da conquista da água canalizada depende de uma série
de mudanças que dizem respeito à implantação de um sistema de tratamento de água,
a alterações no modo como os moradores compreendem os processos microbiológicos
relacionados à potabilidade da água, bem como a alterações nas práticas lingüístico-
interacionais relacionadas ao uso coletivo da água pública.
A despeito da complexidade de fatores envolvidos em uma melhoria coleti-
va e ampla nas condições sanitárias dos Tipis, os hábitos domésticos de higiene dos
moradores podem melhorar sensivelmente. Isto poderá contribuir para alterar as rela-
ções que constituem as características das águas ali disponíveis e que dizem respeito
à ação social da comunidade, aos hábitos domésticos dos moradores, ao meio ambi-
131
ente – que estrutura a ação social comunitária e, ao mesmo tempo, é estruturado por ela.
Todavia, constitui uma incógnita o alcance dessas alterações sobre outras práticas só-
cio-culturais e, conseqüentemente, sobre os modos do viver ali, uma vez que buscar
água no Açude e lavar roupas coletivamente, por exemplo, são acontecimentos sociais
importantes no conjunto de atividades que configuram os modos de viver dos Tipis.
5.5.5 “Se tiver inverno...!” – o (con)viver no domínio de ação do semi-árido
O trabalho na agricultura de subsistência distribui-se ao longo do ano, nos
Tipis, e conota, por um lado, uma co-dependência relativamente ao regime anual de
chuvas. Essa agricultura, por outro lado, depende de aspectos infra-estruturais, sócio-
culturais, políticos – implementados ao longo da história dessa comunidade, que inclui
sua história de relações com outras comunidades. Finalmente, esses aspectos são
gerados e reinstaurados pelos modos efetivos do viver nos Tipis.
No rigor climático do sertão semi-árido, as estações climáticas são distinguidas
em função da ocorrência de chuvas. Quando ocorrem, as chuvas tendem a se precipitar
no período que vai mais ou menos de março a maio de cada ano, podendo antecipar-se
ou se estender por mais dois meses. De modo complementar, há uma estação
indubitavelmente seca, ao longo dos outros meses do ano.
O possível período chuvoso do sertão semi-árido, contudo, exibe uma instabi-
lidade na ocorrência das chuvas. Existe, pois, a possibilidade de haver uma estação chu-
vosa cujas chuvas, eventualmente, ocorrem dentro de uma média histórica ou ocorrem de
modo excessivo, com relação a essa média ou não ocorrem dentro dessa média. A média
histórica é um conceito estatístico, que faz referência a impactos sociais, como a safra
agrícola, e leva em conta 10 anos de um período de 30 anos de medição de chuva. As
faixas em torno dessa média variam nas micro-regiões do Ceará, sendo mais altas no
litoral e nas serras e mais baixas no sertão. A faixa média calculada para o ano de 2006,
para a região dos Tipis, foi de 449mm / 692mm de chuvas.
As denominações básicas dessas estações e períodos climáticos não indi-
cam a variação da inclinação do eixo da Terra com relação ao Sol. Conseqüentemen-
te, não indicam a variação da incidência da radiação solar sobre o planeta. Em decor-
rência da relativa proximidade da linha do Equador, a variação da incidência solar
exibe pouca amplitude no Nordeste brasileiro, comparada às regiões cada vez mais
próximas dos pólos. Essas denominações então indicam um continuum relacionado
tanto ao fenômeno meteorológico da ocorrência ou ausência de chuvas, quanto a fenô-
menos associados a questões de infra-estrutura e vulnerabilidade social. Como a Fun-
dação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos – FUNCEME observa, não é só
a quantidade de chuvas que determina a definição de um ano como sendo um ano de
seca. Embora tenha registrado a quinta menor precipitação dos últimos 30 anos, para
132
alguns setores produtivos do Estado do Ceará, o ano de 2005 não foi considerado
como sendo de seca severa
22
.
Indivíduos dos Tipis englobam várias camadas de interconexões e conseqü-
ências ambientais, culturais, produtivas, sociais, políticas, nos processos de indicar a
ocorrência ou não do fenômeno chuva com termos do mencionado continumm. A cada
ano, na quadra que vai de março a maio, portanto durante parte do verão e parte do
outono do hemisfério Sul, pode haver inverno ou pode não haver inverno, ou seja, o
período chuvoso pode ou não se caracterizar.
Se as chuvas de verão se precipitam com regularidade periódica e com um
volume normal, situado no intervalo da média histórica, dizemos que houve inverno. O
inverno também pode ocorrer de modo acentuado. Quando as precipitações excedem a
média e os leitos transbordam, engolindo plantações e casas assustadas, dizemos que
houve enchentes, que aquele foi um ano de enchentes. Em um outro ponto do continuum
social-meteorológico está a ocorrência de chuvas pouco significativas para a reposição
das reservas de água e para a atividade agrícola, com intervalos ou estiagens nas
precipitações, durante dez ou mais dias contínuos. Esses períodos de intermitência são
denominados veranicos. Quando há uma seqüência de veranicos, dizemos que houve
seca verde. Finalmente, pode ocorrer a ausência ou insuficiência de chuvas, durante a
quadra de março a maio. Assim, quando o volume de chuvas do período se mantém
abaixo da média histórica, fica caracterizada a seca.
A caracterização de qualquer uma dessas configurações implica conseqüên-
cias sobre o viver nos Tipis, desde o plano ambiental até a (re)estruturação das organi-
zações familiares. Quanto à questão econômica, a ocorrência de inverno indica a possi-
bilidade de um abastecimento alimentar básico até a próxima estação chuvosa. Tanto a
situação de enchentes quanto a de seca verde são prejudiciais para as plantações. Os
agricultores, repetidas vezes, perdem os investimentos e os seus esforços. Em cada
casa, os pratos exibem a ausência dos frutos do trabalho agrícola. A situação de seca,
então, é calamitosa para o cotidiano das comunidades rurais do semi-árido, embora,
historicamente, as elites dirigentes tenham auferido vantagens dessa situação, mes-
mo no contexto das rigorosas condições climáticas e de subsistência do semi-árido
23
.
Se há indícios de que haverá inverno, com as primeiras chuvas, nos me-
ses de janeiro e fevereiro, os agricultores dos Tipis já fazem algumas tentativas
para a produção do seu sustento, nas terras previamente preparadas. Se o inverno
parece consolidar-se, são plantadas roças de feijão, fava, milho, melancia, jerimum,
batata – culturas de ciclo curto, entre 45 e 90 dias, exceto a fava, leguminosa trepa-
22
Fonte: www.diariodonordeste.globo.com, Editoria de Cidade, em 21.01.2006.
23
Sobre relações entre a sociedade cearense e a natureza do sertão semi-árido, bem como sobre as
transformações históricas dessas relações, ver Neves (2000). Sobre a seca e outros aspectos da cultura
cearense, ver Carvalho (2003).
133
deira de ciclo mais prolongado. A cultura do arroz é desenvolvida por poucos habi-
tantes da comunidade.
À medida em que o Açude e outras pequenas acumulações de água vão se-
cando, com a estiagem que se inicia em junho, as faixas de terra úmida das suas mar-
gens são aproveitadas para as chamadas plantações de vazante. A colheita das planta-
ções de roça e de vazante ocorre a partir da segunda quinzena de abril, estendendo-se
até os meses de julho e agosto.
A partir de setembro, faz-se a broca das terras, ou seja, o desmatamento das
roças ou de alguma área de mata da Caatinga, a Mata Branca, o único bioma exclusiva-
mente brasileiro, de ocorrência endêmica no semi-árido nordestino. Os restos vegetais
são aglomerados em pequenos montes chamados coivaras. Em outubro e novembro
são feitas as queimadas das coivaras. Esse é o manejo rústico da terra para um outro
plantio, na possível estação chuvosa do ano seguinte.
É nesse contexto cultural-ambiental que uma agricultura de subsistência é
desenvolvida nos Tipis como a principal atividade econômica. Ali, a labuta cotidiana
começa cedo. Por volta das cinco horas da manhã já há movimento nas cozinhas e os
fogões a lenha soltam uma tênue fumaça pelas chaminés. Cinco e trinta da matina: jo-
vens operários se concentram em um pátio da vila para pegar o ônibus da indústria de
calçados onde trabalham. Em muitas casas, algum homem busca, no açude, galões da
água a ser usada nas tarefas domésticas. Essas tarefas são executadas principalmente
pelas mulheres e se prolongam pelo dia inteiro.
As mulheres dedicam-se, pois, ao preparo de alimentos para os membros
do núcleo familiar, à limpeza da casa, ao trato dos animais domésticos. Freqüentemente
algumas mulheres se reúnem às margens do açude, para lavar roupas; algumas acom-
panham seus companheiros no trabalho da roça, sobretudo na fase da colheita.
Os agricultores também se dirigem cedo para seus roçados. Raramente levam
água em quartinhas de cabaça, como era o costume antigo. Agora, portam garrafas
plásticas para aplacar a sede provocada pelo calor intenso e pelo ar seco do semi-árido,
como também pelos pedaços de rapadura, doce derivado da cana-de-açúcar, que
mascam para repor energias.
Havendo chuvas, a lida no campo se estende ao longo do dia. Na colheita,
com a estiagem já bem caracterizada e a intensa insolação, o calor é sufocante e a
faina vai até as dez horas da manhã. Os homens dedicam o restante do dia às ativida-
des subsidiárias à agricultura, como o conserto de ferramentas de trabalho ou o prepa-
ro de adubos e herbicidas. Complementando o trabalho do campo, dedicam-se ainda
à produção e distribuição de alimento para galinhas, cabras e porcos, criados soltos por
entre as casas.
Alguns poucos membros da comunidade dos Tipis são proprietários de pe-
quenos rebanhos com quatro ou cinco cabeças de gado bovino. Esses animais ocupam
134
estábulos localizados próximos às casas de seus proprietários. No início da manhã, as
vacas são manualmente ordenhadas. Depois, esses rebanhos são deslocados para áreas
de pasto nas redondezas da povoação e, no final do dia, são conduzidos para a margem
do açude, para beberem água. Finalmente são, outra vez, confinados nos estábulos.
Essas atividades de trabalho são quase sempre coletivas e em algumas a
solidariedade é acionada para suprir demandas circunstanciais e imediatas. Por exem-
plo, em mais de uma ocorrência presenciei um adjutório – um ajuntamento cooperativo
de membros da comunidade – para ajudar a conter o fogo de uma queimada iniciada em
um horário inadequado, quando havia uma ventania propagadora das chamas para além
da área pretendida.
Ainda em uma perspectiva do trabalho coletivo, mas agora para fins de
rendimento de um grupo específico de trabalhadores, cinco homens dos Tipis desenvol-
vem uma atividade apicultora, cujos apiários localizam-se em uma mata próxima às ca-
sas da vila. Essa atividade teve início justamente na semana em que eu estava desenvol-
vendo a pesquisa-piloto desta investigação, em janeiro de 2004. Um técnico em
agropecuária, ele próprio produtor de mel em uma localidade próxima à vila, conduziu
um rápido treinamento voltado para a atividade apicultora, ao qual faltaram dois inte-
grantes do grupo.
Ao longo da pesquisa de campo, de julho a novembro de 2004, pude obser-
var situações que descrevo como um relativo insucesso da atividade apicultora, no
que diz respeito a uma produtividade com retorno comercialmente rentável do investi-
mento feito. Essa avaliação de insucesso deve ser compreendida como uma abstra-
ção de diferenças que observo entre os domínios de ações em que são geradas orien-
tações técnicas para uma atividade apicultora comercialmente rentável e os domínios
em que os moradores dos Tipis desempenham suas relações interpessoais, dentre
elas suas atividades produtivas.
Uma das orientações básicas feitas pelo técnico que fora treinar os novos
apicultores dos Tipis dizia respeito à localização do apiário, o ponto onde o conjunto de
caixas ou colméias seria assentado. De acordo com esse técnico, esse local deveria
estar a uma distância de 200 a 300 metros de habitações, estradas e criações de
animais. O local também deveria ser muito bem roçado. Arbustos e ervas daninhas
deveriam ser erradicados, “como se ciganos tivessem acampado ali”. Era importante
também cercar o local. Isso evitaria a invasão do apiário, por outros animais. Esses
cuidados favoreceriam uma necessária tranqüilidade no ambiente das colméias, a
segurança dos indivíduos da comunidade e a produtividade do apiário.
Como mencionei mais de uma vez, fui ao campo orientado a participar efe-
tivamente das redes de interações dos membros da comunidade dos Tipis. Essa prá-
tica colocava-me a par da pauta cotidiana de muitos moradores. Assim, considerando
as observações do técnico em apicultura, em várias ocasiões em que eu conversava
135
amistosamente, de modo não-diretivo, com um membro da comunidade que havia parti-
cipado do breve treinamento, aproveitava a oportunidade para perguntar sobre o enca-
minhamento do roço e do cercado do apiário. Depois de várias respostas negativas ou
evasivas, esse apicultor finalmente me explicou que não era preciso roçar nem cercar o
local: “os garranchos das plantas” impediriam a aproximação de outros animais. Além do
mais, “os bichos têm medo das abelhas, só de ouvir o ronco das bichas”.
Esse episódio é sugestivo do modo como a configuração de um novo domí-
nio de ação de um habitante dos Tipis põe em correlação, por um lado, a sua experiên-
cia histórica de viver nos Tipis e, por outro, as práticas e valores do domínio de ação de
cientistas e tecnólogos. No desenvolvimento de suas atividades, apicultores preocu-
pados com uma rentabilidade do trabalho e do investimento podem lançar mão da
produção coletiva de cientistas de variados ramos do saber. Tradicionalmente, a ciên-
cia é vista em uma concepção monumental, que vê as teorias como objetos prontos.
Uma alternativa é vê-la como um dos campos da interação social, como o faz Monda-
da (2005c), ao observar a produção do saber científico como a produção de objetos de
discurso em atividades lingüístico-interacionais efetivas. Conforme essa perspectiva,
os cientistas podem considerar experiências diversas dos apicultores na construção
de objetos de saber próprios de seus domínios. Uma vez estabelecidos os contatos
entre cientistas e apicultores, podemos postular que os domínios de ação desses ato-
res constituem-se reflexivamente, de modo que práticas de um domínio são eventual-
mente incorporadas por outro ou contribuem para modificar algumas práticas do outro,
e vice-versa.
A partir de uma observação sistemática do comportamento das abelhas e
das condições ambientais que interferem nesse comportamento, uma dimensão de
produtividade, por exemplo, implica agregar, à atividade apicultora, técnicas e mane-
jos – localização e configuração adequadas do apiário, roço, inspeções, coleta plane-
jada – que buscam potencializar o resultado visado do comportamento desses ani-
mais – mel, própolis, cera, geléia real, pólen, veneno (apitoxina). Esse conjunto de
intervenções resulta em uma tentativa, por parte do apicultor, de controlar, maximizar
ou minimizar fatores ambientais intervenientes. Assim, uma apicultura rentável exige,
por exemplo, uma prontidão dos apicultores e uma rapidez na execução do passo a
passo da atividade, com a elaboração de calendários de ação afinados com diversos
fatores considerados importantes para esse afazer.
A comunidade dos Tipis baseia suas atividades produtivas em uma agricul-
tura de subsistência cujas condições de exeqüibilidade expressam uma relação parti-
cular com os recursos naturais e uma pequena disponibilidade de recursos da ciência
e da tecnologia. Nessas atividades observamos, pois, uma baixa mediação de
tecnologias recentes, na obtenção dos produtos visados. Uma busca constante e con-
trolada de novas técnicas e manejos não constitui, portanto, um aspecto corriqueira-
136
mente visível nos afazeres dali. Contudo, assim como os domínios de ações de cientis-
tas e técnicos constituem-se reflexivamente, também os domínios dos novos apicultores
dos Tipis assim se constituem. Os componentes desses jogos constitutivos são diferen-
tes. Nos Tipis, os domínios dos novos apicultores são constituídos não a partir de uma
relação direta com aqueles em que a ciência e a tecnologia são geradas, mas, em parte,
em relações com os domínios do instrutor ‘apicultor experiente’, como também com ou-
tros nos quais esses novos apicultores já atuavam. Assim, por exemplo, na relação do
apicultor dos Tipis com os recursos naturais, observamos uma tendência à manutenção
de antigas técnicas e manejos baseados no comportamento natural dos animais e na
interação desses com outros elementos do meio, no caso a vegetação da Caatinga. Tal
tendência minimiza possíveis fatores associados a metas de produtividade, esperadas
ou desejadas para uma atividade apicultora.
Outro episódio da apicultura nos Tipis expressa uma correlação entre o
seu desenvolvimento e o modo como os participantes estruturam seus domínios de
ação, na estruturação de uma noção de tempo. O povoamento das colméias seria
feito pela iscagem de colônias de abelhas, em caixas deixadas em matas próximas
à vila. Cada caixa deveria ser transportada para o apiário, cinco ou seis dias após
sua ocupação. A delimitação desse período combinava evitar o stress das abelhas –
pelo distanciamento entre as datas das mudanças da colônia – e criar, em um tempo
hábil, certas condições de tranqüilidade e isolamento necessárias para a produção
melífera. Logo no início da atividade apicultora quatro caixas foram simultaneamente
preenchidas. Já decorrera o sétimo dia desse preenchimento e o grupo ainda não
havia transportado as caixas para o apiário, embora, desde o quinto dia, esse fato
viesse sendo aventado em conversas amistosas entre mim e os apicultores. Uma
justificativa para o não cumprimento de uma cronologia rígida – própria em uma api-
cultura comercialmente rentável – dizia respeito ao exercício do trabalho agrícola,
que, efetivamente ou como justificativa retórica, nos Tipis, entra em competição com
atividades que se diferenciem do trabalho agrícola ao qual estão acostumados: ‘hoje
não deu, porque fui pra roça’.
Para além dessa competição, esses episódios envolvendo a atividade api-
cultora evidenciam co-relações com os modos como esses novos apicultores dos Tipis
abstraem suas experiências de processos e seqüências de processos e lidam particu-
larmente com uma noção de tempo. Também evidenciam como eles avaliam a inter-
venção do trabalho humano sobre o trabalho de outros componentes do meio natural
e adaptam as novas tecnologias com as quais interagem à sua própria experiência em
lidar com os recursos naturais.
137
5.5.6 “É, pa tudo tem reunião...” – o bom humor, a eficaz comunicação boca a
boca e o freqüente encontro dos habitantes dos Tipis
A vila dos Tipis circunscreve-se a um perímetro relativamente pequeno e
os habitantes circulam localmente a pé, alguns poucos, de bicicleta. Tais desloca-
mentos são facilmente vencidos, apesar de haver poucas árvores, pouca sombra.
Essa facilidade é reconhecida pela maioria dos moradores, sendo tematizada aqui
em interações que manifestam os mencionados bom humor e a rápida e eficiente
comunicação boca a boca dos Tipis. Porque esboçou uma reclamação quanto à
distância de um percurso local, a ser percorrido a pé, um membro da comunidade foi
alvo de ironias bem humoradas. Com efeito, o bom humor é algo intensamente pra-
ticado pela comunidade e mesmo em situações que envolvem alguma tensão, as
tiradas proverbiais rapidamente correm pela boca dos habitantes, valorizando e ali-
mentando o circuito da gargalhada.
Essa comunicação boca a boca associa-se a uma tradição centrada em
atividades orais, facilitada tanto pela quantidade relativamente pequena de habitantes,
como pelo pequeno perímetro da vila. Além de ser eficiente para difundir tiradas bem
humoradas ela é eficaz também para resolver outras demandas da vida cotidiana da
comunidade. Vejamos.
Os encontros da Associação de Moradores têm datas mais ou menos fixas
para ocorrerem – em princípio, nos dias 15 e 30 de cada mês. No entanto, diante de
alguma necessidade local, não há dificuldade em antecipar ou adiar um desses even-
tos ou mesmo marcar um evento em caráter extraordinário. Rapidamente essas notí-
cias tornam-se objeto de outros múltiplos encontros sociais. E os habitantes dos Tipis
têm reuniões freqüentes. As convocações para tais eventos nem sempre são feitas
diretamente através da Associação de Moradores. A agente de saúde, a dirigente do
Encontro de Casais com Cristo - ECC, o treinador de futebol reúnem membros da
comunidade para discutir os mais variados temas. Eu mesmo convoquei eventos desse
tipo para conversas sobre as águas dos Tipis. Na reunião da Associação de Moradores
– com cujo relato abro esta tese – duas participantes avaliam a inconveniência do horário
de uma outra reunião – de pais de alunos, convocada pela escola da comunidade vizinha.
Então uma delas reclama: “É, pa tudo tem reunião...”.
As práticas sócio-culturais dos Tipis são continuamente formuladas e
reformuladas. Elas exibem um articulado conhecimento mútuo entre os atores comu-
nitários e nexos diversos entre experiências locais e não-locais, em uma multiplicidade
de correlações entre os seus modos de viver – visivelmente simples e relacionalmente
complexos – e os de outros grupos sociais. A dinâmica, a relevância e as conseqüên-
cias de um viver negociado, cooperativo, irado e hilário, em uma palavra, falaz, fazem-
se observáveis em densas teias de inter-relações pessoais. Essas práticas constituem
138
o próprio tecer, costurar, cerzir o tecido social dos Tipis e a conversa é o mecanismo
central da sua vida social, da socialização, da manutenção da ordem ali co-construída. A
pequena quantidade de habitantes, o bom humor, a eficiente comunicação boca a boca
associam-se para compor um quadro segundo o qual os moradores desse vilarejo estão
‘reunidos’ praticamente o tempo todo. Assim, na perspectiva de observar especificidades
de um desses encontros, no próximo Capítulo analiso procedimentos através dos quais
os participantes tornam inteligíveis e públicos objetos de discurso co-construídos em
uma reunião da Associação de Moradores do lugar.
139
CAPÍTULO 6 – FAZENDO REUNIÃO NOS TIPIS: UMA ANÁLISE CONVERSACIONAL
6.1 Situando a Observação e a Análise
A fala-em-interação implica uma dimensão praxeológica que projeta a
linguagem como um conjunto de atividades semióticas integradas em atividades
sociais. À semelhança de trabalhos organizados por Drew & Heritage (1992), sobre
a interação no trabalho ou a interação institucional, a conversa, o modelo de base
do sistema de troca de fala descrito por Sacks, Schegloff & Jefferson (1974), é
tomada neste Capítulo como uma referência geral para análises de atividades
inteligíveis de fala-em-interação observadas em uma reunião da Associação de
Moradores dos Tipis. Tais análises descrevem coerências operacionais dos
participantes dessa interação. Nelas, considero o caráter ordenado da ação como
um objeto auto-organizado e emergente, como trabalhos no campo da Análise
Conversacional stricto sensu vêm sistematicamente apontando. A operação dos
participantes da interação é aqui descrita, pois, como uma prática coletiva e
dinâmica, nos termos de Mondada (1998a).
Na base do trabalho empírico que semearam e também produziram, Sacks,
Schegloff & Jefferson (1974) observam que o fato de os interlocutores interagirem
alternando regularmente seus turnos, geralmente sem falar ao mesmo tempo, mostra
que eles sincronizam suas atuações, minimizando silêncios e sobreposições entre um
turno e outro. Nessas atividades, os interlocutores empregam um conjunto particular
de procedimentos para organizar a tomada de turno de modo inteligível para eles. Por
exemplo, em cenários nos quais os falantes falam um a cada vez, Atkinson (1984)
descreve os modos como falantes públicos prendem a atenção de ouvintes que não
dispõem do turno de fala, tais como membros de um júri, de uma congregação ou a
audiência de tribunais. Ele analisa, ainda, o desencadeamento de aplausos como
resposta da audiência.
O registro selecionado para esta análise conversacional também coloca o
problema da organização da interação em um encontro público. O que há de particular
nesse encontro, e que esta análise objetiva realçar, é que os falantes sobrepõem suas
falas, particularizando esse encontro relativamente a outros encontros nos quais fala
um falante a cada vez. Considerando que na reunião da Associação dos Moradores
dos Tipis observamos uma intensa interlocução entre cerca de 35 indivíduos – homens
e mulheres das mais diversas idades, inclusive crianças, volto-me então para o trabalho
coletivo desses indivíduos para construírem e desenvolverem o fluxo interacional, para
realizarem a reunião.
A transcrição que resultou nos dados secundários desta análise busca, pois,
tornar observável o trabalho organizacional pelo qual os habitantes dos Tipis, ao falarem,
140
de certo modo, todos ao mesmo tempo, formulam e reformulam as atividades interativas
do evento registrado. A captação da banda sonora foi feita por um microfone embutido
na própria filmadora utilizada para a obtenção dos dados primários de primeira ordem.
Diversos trechos de fala ficaram inaudíveis para o analista, em conseqüência: (a) dos
modos como o espaço físico foi constituído pelos participantes enquanto um contexto
da interação, conforme trato adiante; (b) das constantes atuações simultâneas de vários
participantes e; (c) de características técnicas do aparato utilizado na obtenção desse
registro. Há, ainda, turnos que não podem ser atribuídos a um indivíduo específico, ou
porque a sobreposição de vozes o impede ou porque o participante está fora do foco
da filmadora.
As convenções da transcrição se baseiam naquelas discutidas e utilizadas
por Mondada (2000a , particularmente) e incluem:
a) (Parênteses simples): encerram uma tentativa de transcrição.
Ex.: (quando)
b) Uma seqüência da letra s: indica a ocorrência de vozes simultâneas,
indistintas.
Ex.: (ssssssssss)
c) Uma seqüência da letra x: indica um trecho inaudível.
Ex.: pois (xx) vai agora
d) Barras / \: indicam uma entonação ascendente ou descendente.
Ex.: você vai/ ((perguntando))
vou\ ((respondendo))
e) Um trecho grifado: marca uma ênfase particular na entonação.
Ex.: Zé Batista/ (0.74) há há há::: ((riso))&
f) Letra MAIÚSCULA: marca uma ênfase no volume sonoro.
Ex.: tem jeito não Jô\ NÃO/
(sssssssssSSSSSSSSS)
g) ((Parênteses duplos)): encerram uma descrição de um procedimento ou
outro evento.
Ex.: (PÁ) ((barulho))
h) [Colchetes]: marcam o início de uma sobreposição de vozes distintas e,
eventualmente, o final.
Ex.: (sssssssssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssss)
[tu num sabe ir não/
i) Sinal de igualdade = : marca um encadeamento rápido de turnos.
Ex.: mais fácil\=
=mais fácil/
j) O símbolo ^: anota um encadeamento rápido de fala.
141
Ex.: com^é que (xx)
k) Parênteses com um, dois ou três pontos ou com uma numeração encerram:
Uma pausa breve (até um segundo): (.)
Uma pausa média (de um a dois segundos): (..)
Uma pausa longa (acima de dois segundos): (...)
Pausas Cronometradas: (0.63), (1.02).
l) Alongamento vocálico: Curto a: Médio é:: Longo ó:::
Ex.: ó^o Ricar::do\ bom/
m) Um hífen após um vocábulo: marca- um truncamento.
Ex.: onde ele botou a- a: gente num pode (xx)\
n) <Colchetes angulares>: encerram a delimitação de um aspecto descrito.
Ex.: o v- que é que tem dento\ <não é tod^os dia quinze\>
<((mais rápido))>
o) O símbolo &:
no final de uma linha, indica uma continuidade daquele turno em uma
outra linha;
no início de uma linha, indica que aquele turno iniciou em uma linha
anterior.
Ex.: 1 A <ei (1.00) tu arranj^esse [(xx) filmar daqui\&
2 <((baixo))>
3 B [EI\ (.) senta aí\
4 A &tu arranja/>
Os Extratos analisados são numerados em seqüência (Extrato 1, Extrato 2,
Extrato N). O intervalo temporal de cada um é indicado entre parênteses, em segundos
(344-363 seg.) e em minutos e segundos (5’44’-6’03’’), de modo agilizar uma operação
com programas informáticos que requeiram um ou outro padrão. A duração de cada
Extrato é indicada logo em seguida, também entre parênteses e em segundos (4 seg.).
Em três colunas são dispostas: (1) a numeração das linhas; (2) uma identificação do
falante; (3) a fala-em-interação transcrita e, eventualmente, descrições de outros eventos
da interação.
Ex.: Extrato N (344-363 seg.) (5’44’’-6’03’’) (12 seg.)
1 ([ssssssssssssssssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 CA [tu num sabe ir não/
3 PL [pra quê isso/
Sempre que possível, os participantes do evento transcrito são identificados
por um pseudônimo correlacionado a um nome próprio ou a um apelido. Na coluna da
identificação, duas letras maiúsculas abreviam um nome simples com as duas primeiras
letras desse nome (CA = Carlos) ou abreviam um nome composto com a primeira letra
142
de cada item (PL = Pedro Luís). Alguns nomes aparecem apenas na coluna da transcrição
da fala-em-interação. Nos Extratos 13, 25, 36 e 38, uma participação coletiva é
identificada pela abreviatura COL.
Os nomes e as respectivas abreviaturas que aparecem na coluna da
identificação dos Extratos, ao longo da análise, são os seguintes:
São identificados como Homem, Mulher ou Criança – quando é possível
assim categorizá-los, a partir da qualidade vocal e/ou da imagem – falantes que não
podem ser nominados, em virtude da grande quantidade de vozes simultâneas e/ou
de o registro ter sido feito com apenas uma câmera filmadora. Uma interrogação
identifica um participante quando nem a qualidade vocal nem a imagem permitem
categorizá-lo como Homem, Mulher ou Criança. Em um mesmo Extrato, havendo mais
de um indivíduo não identificado por um nome próprio, as abreviaturas são numeradas
(H1, H2, M1, M2, etc). De um Extrato para outro, uma identificação numerada não se
refere ao mesmo participante. Assim, H1 de um Extrato não identifica o mesmo
participante H1 de um outro Extrato.
O não-preenchimento da coluna de identificação do falante indica: (a) vozes
simultâneas, indistintas ou; (b) a continuação de um turno de um falante identificado
acima ou; (c) uma descrição de um aspecto da linha acima ou; (d) uma tentativa de
transcrição de um procedimento ou outro evento, seguida de uma descrição.
6.2 Tecendo a Situação Social da Reunião da Associação dos Moradores dos Tipis
A Biologia do Conhecer formula uma concepção performativa da realidade
e observa que “o nosso viver está sempre penetrado por um sentido que surge das
diferentes conversações das quais participamos” (Maturana, 1999e: 117). Nessas práticas
sócio-culturais, as atividades cognitivas fundamentais do ser humano são as operações
de distinção de objetos. A recorrência e recursividade dessas operações cognitivas
constituem um elemento instaurador das impressões de estabilidade e de independência
da realidade com as quais circulamos no meio social.
Clara = Clara Marco Antônio = MA Rute = RU CR = Criança
Coletivo = COL Operador = OP Zé Campos = ZC ? = Não identificado
Gó = GO Paulo Sérgio = PS Zé Luís = Z
Laura = LA RE = Renato H = Homem
Luís Carlos = LC Ricardo = RI M = Mulher
143
Conforme uma concepção da realidade com contornos schutzianos, nas ações
sociais os indivíduos lançam mão de um quadro de familiaridade e conhecimento prévio,
de um saber disponível, aproximativo e reversível, para a co-construção de objetos de
saber. O sentido do que ocorre nessas ações é associado a um padrão subjacente,
reconhecido e familiar. Alguns aspectos dos objetos construídos nas ações sociais exibem
um tipo de estabilidade, em decorrência do caráter histórico das ações e dos objetos. É
assim que tomamos certas ações e objetos como idênticos a outras ações e objetos que
anteriormente vivenciamos, apesar das mudanças físicas e comportamentais que intervêm
sobre eles nas interações sociais efetivas (Schutz, 1967).
A Análise Conversacional stricto sensu, de inspiração etnometodológica,
entende que a ação social movimenta mecanismos genéricos da fala-em-interação, como
o sistema de troca de turno, os pares adjacentes, os reparos. As práticas ordinárias
desses ordenamentos decorrem do fato de que a possibilidade de coordenar ações
através da fala-em-interação baseia-se no sentido que as sociedades humanas têm de
uma ação como algo que é responsivo a uma outra ação. Assim, um grupo social que
não tivesse um sistema de tomada de turnos seria uma sociedade na qual o sentido das
ações como algo responsivo tivesse sido perdido. A este respeito Schegloff (1988: 98)
considera que uma sociedade que não tivesse um sistema de tomada de turnos não
seria um grupo, por exemplo, não-polido ou não-civilizado. Para o autor, aquilo que a
cultura de um grupo social possibilita rotular como polidez e civilidade são partes de um
aparato de controle social e as práticas da conversa não decorrem desse controle.
Ao mesmo tempo em que considera o caráter relativamente estável das
unidades genéricas da conversa, a Análise Conversacional stricto sensu aborda
rigorosamente a efetividade de cada um dos objetos discursivos construídos de modo
endógeno às atividades dos participantes das interações. O analista conversacional
considera que esses objetos constituem singularidades, em decorrência do seu caráter
ad hoc, para os fins práticos de cada interação levada a cabo.
Temos, então, três explicações científicas compatibilizáveis – a Biologia do
Conhecer, a fenomenologia e a Análise Conversacional de inspiração etnometodológica
– para inter-relacionarmos o que é histórico e o que é emergente, o que é genérico e o
que é específico, no amplo campo de ações que dizem respeito ao fazer uma atividade
sócio-cultural lingüístico-interacional.
Um modo privilegiado de a Análise Conversacional stricto sensu abordar
história e emergência interacionais, mecanismos conversacionais genéricos e objetos
discursivos êmicos e endógenos, consiste na análise de coleções de estudos de casos.
Uma análise de coleções está fora do alcance desta tese, realizada como um estudo
de um caso, apenas. Contudo, a situação social da reunião da Associação dos
Moradores dos Tipis é de fato uma interessante ocorrência para abordarmos algumas
inter-relações entre história e emergência interacionais.
144
A situação social de uma interação diz respeito a aspectos do cenário que
funcionam como pano de fundo para essa atividade (Hymes, 1972: 56). A experiência
histórica dos habitantes dos Tipis constitui um dos elementos a compor a situação
social da reunião específica aqui analisada. Membros dessa comunidade com cerca
de 300 pessoas, intensas relações inter-familiares e elevado índice de não-alfabetizados,
reconhecem viver em um repetido recurso às interações face-a-face. Vejamos o Extrato
1, abaixo.
Extrato 1 (10-22 seg.) (0’10’’-0’22’’) (12 seg.)
1 ([ssssssssssssssssss[ssssssssssss[ssssssssssssssssssssssss)
2 M1 [tu num sabe ir não/
3 M2 [pra quê isso/
4 M3 [eu num sei ir não\
5 M4 [com^é que ([xx)/
6 H [pois (xx)
7 M3 [é:\ pa tudo tem reunião\
8 M5 hum rum\
9 (ssssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
10 M3 [né pra quem (xx) ficar\ porque ([xx)\
11 M6 [Leo que horas são/
12 (sssss[ssssssssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
13 M5 [é assim\
14 M7 [já é algum coisa\
No Extrato 1, nos segundos iniciais do registro, os participantes falam
indistintamente (Linha 1), sobre temas diversos. Assim, é possível interpretar as falas
de M1 e M3 como um par adjacente do tipo questão- resposta (Linha 2, tu num sabe ir
não/; Linha 4, eu num sei ir não\). Entre essas falas, M2 produz uma primeira parte de
um par semelhante (Linha 3, pra quê isso/). No entanto, uma possível segunda parte
do par não é um dado disponível. Ainda nesse trecho, podemos observar falas que são
responsivas a alguma outra ação, embora o registro não permita identificar a que ação
o falante está sendo responsivo (Linha 5, com^é que (xx)/; Linha 6, pois (xx)).
O Extrato 1 é particularmente ilustrativo da experiência histórica da comunidade
dos Tipis, que vai atuar na estruturação da situação social do evento específico aqui
analisado. Assim, o reconhecimento de que atividades do tipo reunião são freqüentes
na comunidade é tornado público na fala de M3 (Linha 7, é:\ pa tudo tem reunião\). A
participante M5 parece então reformular a afirmação de M3, concordando com ela e,
conseqüentemente, reconhecendo publicamente a recorrência de reuniões nos Tipis
(Linha 8, hum rum\). Após uma sobreposição de vozes indistintas (Linha 9), M3 entabula
145
o que parece ser o terceiro de uma seqüência de turnos, possivelmente relacionado com
o tópico reunião (Linha 10, né pra quem (xx) ficar\ porque (xx)\). M6 produz uma questão
não-relacionada ao tópico que M3 e M5 vêm desenvolvendo, mas possivelmente indexado
a uma regulação ou controle da situação social reunião, que estão fazendo emergir
(Linha 11, Leo que horas são/). As falas simultâneas (Linha 12) não deixam observável
uma possível resposta ao turno de M6. Enquanto M5 parece concordar novamente com
M3, ao retomar, resumir e reformular a opinião da sua interlocutora (Linha 13, é assim\),
M7 produz um turno cujo registro não permite conectar com outra seqüência da fala-
em-interação (Linha 14, já é algum coisa\).
O Extrato 2, a seguir, também exibe a formulação pública da recorrência de
reuniões na comunidade dos Tipis.
Extrato 2 (36-53 seg.) (0’36’’-0’53’’) (17 seg.)
1 (s[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 M1 [espera pra voltar/)
3 M2 num é no caso nem saber\=
4 M1 = vai Gó/ pa reunião com (xx)/
5 GO agora só é quem (diz)\
6 (sss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
7 H1 [(xx) (xx)o:: \ (xx)\
8 M1 mais fácil\=
9 M2 =mais fácil/
10 H2 fui a (Marcelo) dessa vez ([..]) inda tinha reunião ali\
11 GO [disseru sim\]
12 (sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
13 M1 cês num vieram na de (Lúcia não)/
14 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
No Extrato 2, a participação simultânea de muitos interactantes resulta em vários
trechos com uma indistinção de falantes (Linhas 1, 6, 12 e 14). Assim como no Extrato 1,
no trecho acima também vemos a produção de ações discursivas – questões, respostas e
afirmações – não necessariamente conectadas entre si. Um encadeamento temático frouxo
entre esses atos sugere uma multiplicidade de orientações nas interações dos atores.
Quando observo, pois, uma diversidade desse tipo em um fluxo interacional, descrevo que
os atores estão atuando sob orientações divergentes, conforme exemplificam a Linha 2
(espera pra voltar/) e a Linha 3 (num é no caso nem saber\), em contraste com uma
orientação convergente, conforme veremos adiante. Assim, M1 produz um turno no qual
146
seleciona explicitamente como interlocutora a participante Gó. Esse turno configura-se
como a primeira parte de um par adjacente questão-resposta (Linha 4, vai Gó/ pa reunião
com (xx)/). Enquanto uma organização de turnos, a fala de Gó sucede o turno de M1.
Porém, em termos de uma organização de seqüências, o turno de Gó (Linha 5, agora só
é quem (diz)\) não parece constituir uma segunda parte do par adjacente projetado na
Linha 4. A despeito de um fluir sob orientações não-convergentes, para o que interessa
neste momento cabe destacar que, a partir de sua questão, a participante M1 traz à mão
o tema da recorrência de reuniões na comunidade dos Tipis.
Os contornos da situação social do evento vão sendo definidos a partir tanto
da experiência histórica em interagir nesse tipo de evento, expressa pelos próprios
participantes, quanto de aspectos contextuais da vida comunitária – especificamente,
a necessidade de um planejamento das atividades da nova administração da Associação
de Moradores – que motivaram membros da comunidade dos Tipis a estarem juntos
naquela hora e local, para entabularem aquela interação específica. Assim, uma
diversidade de fatores contingenciais – ambientais, culturais, históricos, políticos,
pessoais – intervêm na co-construção dessa ação social.
Do ponto de vista da história desse evento específico, é possível dizer que
ele vinha sendo co-construído no encadeamento de atividades coletivas anteriores,
tendo na sua base uma tomada de decisão de realizar uma reunião, em uma observância
de práticas históricas dessa comunidade, que se reúne freqüentemente, para discutir
assuntos de diferentes magnitudes.
Diante da hipótese de que um indivíduo tenha decidido convocar a reunião,
ainda assim a construção desse evento tem um caráter coletivo. A propósito do
princípio da supremacia da interação mencionado no Capítulo 3, Gülich & Mondada
(2001) observam, que a ação dos atores não releva de um indivíduo isolado e as
suas contribuições não são vistas pelo analista conversacional como participações
singulares, que informam sobre o sujeito responsável por elas, mas como uma
atividade interacional regida por uma organização que engaja o coletivo dos
participantes. “Mesmo um ato aparentemente solitário e individual, mesmo um nível
de análise aparentemente independente não escapam a uma abordagem interacional”
(Gülich & Mondada, 2001: 202).
A situação social da reunião da Associação de Moradores foi sendo construída,
pois, desde a decisão de convocar uma reunião, tomada por um ou mais diretores da
Associação. Ato contínuo, a expressão dessa atividade social passou a circular na
comunidade como a notícia-convite para o encontro que acontecerá a partir da dezenove
horas, em uma sala da pequena escola do lugar.
147
6.3 Confirmando Relações Sociais, na Reunião da Associação dos Moradores
dos Tipis
Logo do início do registro da reunião da Associação de Moradores dos Tipis,
é possível distinguir diversos eventos de comunicação (Levinson, 1983), a partir dos
quais os participantes fazem emergir um encontro de indivíduos que têm uma história
de conhecimento mútuo.
Com efeito, nos momentos iniciais desse encontro, os participantes
conversam sob orientações diversas, não-convergentes. Observemos o Extrato 3, abaixo:
Extrato 3 (0-10 seg.) (0’0’’-0’10’’) (10 seg.)
1 ([ssssss[sssssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 M1 [pois é:\
3 H [bota aí\
4 M2 [nós num vamo
5 [conversar [nem sobre isso pois-
6 H [ó^i\
7 [(PÁ) ((barulho))
8 M3 só pra [quem acreditar em&
9 M [(in an) ((arrastado de cadeira))
10 M3 &Deus (x[xx)
11 [(pá in hin han han) ((barulho; arrastado de cadeira))
12 M4 [hoje saiu uma (m^n^na) d^Zé Davi\ saiu/
13 H ela vai sair\
14 M2 ela vai [sair não\
15 M3 [dê cá meu cheiro
No Extrato 3, em meio à profusão de falas indistintas (Linha 1), observamos a
mencionada divergência de orientação em termos da disparidade dos assuntos evocados
pelos participantes, como ocorre entre as falas da Linha 2 (pois é:\), Linha 3 (bota aí\),
Linhas 4 e 5 (nós num vamo conversar nem sobre isso pois-), Linha 6 (ó^i\) e Linha 12
(hoje saiu uma (m^n^na) d^Zé Davi\ saiu/). As falas de M2 (Linhas 4 e 5, nós num vamo
conversar nem sobre isso pois-) e de M3 (Linhas 8 e 10, só pra quem acreditar em Deus
(xxx)) parecem encadear-se em torno do mesmo tópico, assim como parece ocorrer com
as falas de M4 (Linha 12, (hoje saiu uma (m^n^na) d^Zé Davi\ saiu/), H (Linha 13 (ela vai
sair\) e M2 (Linha 14, ela vai sair não\), mas a fala de M3 (Linha 15, dê cá meu cheiro)
retoma o caráter divergente das falas nesse momento da atividade interativa. Esse caráter
é também observável no Extrato 4, a seguir:
148
Extrato 4 (139-151 seg.) (2’19’’-2’31’’) (12 seg.)
1 (ssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 M [Zé Batista/ (0.74) (ha ha ha::a) ((riso))&
3 H1 é Fá::bio\ meni[no\
4 M [&tem jeito não Jô\ NÃO/
5 H2 porque é assim
6 H3 onde ele botou a- [a: gente num pode (xx)\
7 [(pá pá) ((barulho))
8 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
No Extrato 4, em meio a falas simultâneas (Linhas 1 e 8), os turnos são produzidos
por falantes distintos (M, H1, H2 e H3, respectivamente) e tratam de assuntos
aparentemente não-relacionados: brincadeiras (Linhas 2 e 4); cumprimento (Linha 3);
outros assuntos (Linhas 5 e 6). Ressalta já nesse Extrato o proverbial bom humor dos
habitantes dos Tipis (Linha 2).
Conforme estamos observando, afazeres diversos constituem eventos de
comunicação também variados e são constituídos neles. Nos momentos iniciais do
registro os participantes cumprimentam-se, como exemplificam os Extratos 5 e 6.
Extrato 5 (31-36 seg.) (0’3’’-0’36’’) (5 seg.)
1 ([sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 M1 [aonde/=
3H1escute\=
4 M2 ali no Ceceu\
5 H2 Ju Mati:as\
6 H3 home tu saiu agora\
7 (sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
No Extrato 5, as conversas simultâneas (Linhas 1 e 7), com turnos curtos e
divergentes (Linha 2, aonde/); Linha 3, escute\; Linha 4, ali no Ceceu\ e Linha 6, home tu
saiu agora\), constituem a atividade no seio da qual H2 cumprimenta um outro participante
(Linha 5, Ju Mati:as\).
No Extrato 6, abaixo, o ato de cumprimentar também está na base dos
procedimentos de Ricardo (Linhas 2 e 4) e da minha fala (Linha 3, ó^o Ricar::do\ bom/).
Adiante analiso outros aspectos conversacionais desse mesmo trecho.
149
Extrato 6 (113-117 seg.) (1’53’’-1’57’’) (4 seg.)
1 ([sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 RI [((movimenta a cabeça, para baixo))=
3 OP [=ó^o Ricar::do\ [bom/
4 RI [((leva a mão ao boné, abaixa a aba))
5 (sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
Em consonância com o caráter informal do início desse encontro social e
com a mesma atitude divertida observável no cotidiano da comunidade dos Tipis, os
participantes brincam e se insultam, como podemos ver no Extrato 7.
Extrato 7 (55-63 seg.) (0’55’’-1’03’’) (8 seg.)
1 (s[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 H1 [tô aqui::\
3 H2 ah::\ que história\
4 ? ainda num (x[x)
5 H1 [e:i Doido de Zeca\
6 M (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
No Extrato 7, estou filmando fora da sala onde ocorrerá a reunião da Associação
dos Moradores dos Tipis. Há vários indivíduos no local. O caráter informal da situação
reflete-se na sobreposição de vozes indistintas (Linhas 1 e 6) como também na elicitação
de turnos divergentes (Linha 4, ainda num (xx)). H1 tenta chamar a minha atenção, de
modo que eu dirija a câmera para ele (Linha 2, tô aqui::\). Com isso ele faz uma referenciação
à minha atividade de registrar, constituindo-me, assim, enquanto o operador da câmera. A
fala de H1 também atua como uma brincadeira, conforme sugere a fala do participante H2
(Linha 3, ah::\ que história\). A próxima fala de H1 (Linha 5, e:i Doido de Zeca\) tanto
pode ser interpretada como um cumprimento quanto como um insulto ou, quem sabe,
como um cumprimento que insulta ou, ainda, como um insulto que cumprimenta...
A prática de cumprimentar parece associar-se a uma característica particular do
evento em que está ocorrendo, assumindo, pois, ela própria, um caráter especial. Como
vimos na etnografia apresentada no Capítulo anterior, essa prática é comumente suspensa
nos encontros repetidos do cotidiano dos Tipis, sendo mais comum em situações mais formais.
Os momentos iniciais do evento aqui analisado não se caracterizam por uma grande
formalidade, conforme estamos vendo nesta Seção e na anterior. Desse modo, por um
lado, os cumprimentos observados nesse início do evento, sendo informais, já sinalizam
uma certa formalidade do evento, uma vez que são comuns em situações mais formais.
Sinalizando uma certa formalidade, são realizados em um tom de brincadeira, conforme
podemos observar no Extrato 4, Linha 3 (é Fá::bio\ meni[no\), ou como um reconhecimento
150
do outro, por exemplo no Extrato 5, Linha 5 (Ju Mati:as\) e no Extrato 6, Linha 3 (ó^o Ricar::do\
[bom/). Por outro lado, os cumprimentos aqui observados, sendo um pouco formais, pois no
dia-a-dia eles são comumente dispensados, são também brincalhões, moleques, feitos à
guisa de um insulto. Esse caráter circularmente ambíguo dos cumprimentos também será
observado na formalidade do evento como um todo. Assim, no desenvolvimento do evento,
conforme as análises até o final deste Capítulo, vamos observar que uma formalidade vai
assumir contornos mais definidos, mas nem tanto: vamos observar um aumento de
formalidade relativamente aos procedimentos dos participantes a partir do início do registro,
embora não possamos dizer que essa formalidade chegue a assumir os rigores observáveis,
por exemplo, em certas atividades de domínios discursivos tais como o acadêmico ou o
jurídico. Guardemos estas reflexões para a última Seção deste Capítulo. Voltemos, então,
para a observar as brincadeiras, nos minutos iniciais do registro.
A geração de uma brincadeira a partir de uma referenciação da minha atividade
como operador de uma câmera pode ser vista ainda no Extrato 8.
Extrato 8 (183-196 seg.) (3’03’’-3’11’’) (8 seg.)
1 (sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 H4 tá vendo/ passar/
3 H3 ó^o Zé Campos\
4 H5 ê:: macho véi tu tá ferra::do\
5 ZC (HA HA HA HA Ha Ha Ha ha ha ha ha) ((riso))
6 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
As trocas de fala do Extrato 8 são contextualizadas pela atividade da filmagem,
agora desenvolvida no interior da sala onde a reunião ocorrerá. Alguns participantes estão
acompanhando, pela telinha da filmadora, o registro que estou fazendo naquele momento,
conforme detalharei adiante, em uma retomada desse trecho expandido, no Extrato 17. O
participante H4 verifica, então, se efetivamente o seu interlocutor está observando o registro
(Linha 2, tá vendo/ passar/). Nessa atividade conjunta, H3 descreve o enquadramento de
Zé Campos na telinha (Linha 3, ó^o Zé Campos\). A brincadeira de H5 (Linha 4, ê:: macho
véi tu tá ferra::do\) consiste pois, em uma referência a esse enquadramento. A sonora
gargalhada de Zé Campos (Linha 5) sinaliza a sua compreensão da fala de H5 como uma
brincadeira.
Vejamos, ainda, o Extrato 9.
151
Extrato 9 (262-270 seg.) (4’22’’-4’30’’) (8 seg.)
1 H1 aí (Pi::)\
2 H2 sai (xx)\
3 (sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
4 H3 (HA HA HA ha ha ha) ((riso))
5 (sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
No Extrato 9, a fala de H1 (Linha 1, aí (Pi::)\) pode ser interpretada tanto como
um ato de apontar um ‘objeto’ qualquer para o participante Pi, quanto como mais uma
atividade de cumprimento. O registro não permite decidir entre uma e outra interpretação.
A fala de H2 pode ser vista como um insulto, embora o termo do insulto esteja inaudível
(Linha 2, sai (xx)\). Em meio a falas indistintas (Linhas 3 e 5), o riso de H3 (Linha 4)
favorece a interpretação da fala de H2 como um insulto modulado como uma brincadeira.
Um outro afazer próprio ao início do evento convocado pela Associação de
Moradores dos Tipis consiste em afastar cadeiras, buscando adequar o ambiente à
interação, como serve de exemplo o Extrato 10.
Extrato 10 (3-7 seg.) (0’03’’-0’07’’) (4 seg.)
1 M1 só pra [quem acreditar em&
2 [(in an) ((arrastado de cadeira))
3 M1 &Deus (x[xx)
4 [(pa in hin han han) ((barulho; arrastado de cadeira))
5 M2 [hoje saiu uma (m^n^na) d^Zé Davi\ saiu/
No Extrato 10 – que é uma parte do Extrato 3 – juntamente com as atividades
de conversar divergentemente (Linhas 1, e 3, só pra quem acreditar em Deus (xxx);
Linha 5, hoje saiu uma (m^n^na) d^Zé Davi\ saiu/), os participantes procedem a uma
organização do espaço físico, possivelmente para adequá-lo à interação, como pode ser
visto nas Linhas 2 e 4.
Ressaltando o caráter coletivo das demandas e soluções que são
configuradas no fluxo mesmo da interação, os participantes indicam a existência ou a
inexistência de cadeiras, interessados na própria acomodação ou na acomodação de
outros membros. Olhemos para o Extrato 11:
152
Extrato 11 (240-250 seg.) (4’00’’-4’10’’) (10 seg.)
1 (ssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 H1 [mas se não eu ia [(xxxx)
3 H2 [tem uma cadeira aí\ que eu sei\ (.)
4 H3 ó^i cadeira aí\
5 M (xxxxxxxxxx)\
6 H2 ó^i (Zeca) cadeira que (truve)/ (0.43) num é a tua não/
7 (sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
No Extrato 11, não há um pedido explícito por uma cadeira. Porém as falas de
H2 sinalizam essa demanda, possivelmente por parte de Zeca (Linha 2, tem uma cadeira
aí\ que eu sei\ (.) e Linha 6, ó^i (Zeca) cadeira que (truve)/ (0.43) num é a tua não/). A
participação de H3 (Linha 4, ó^i cadeira aí\) coordena-se com as falas de H2, para configurar
uma preocupação conjunta com a acomodação dos participantes no espaço físico da sala.
Vejamos agora o Extrato 12.
Extrato 12 (344-356 seg.) (5’44’’-5’56’’) (12 seg.)
1 (ss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 OP [<ei (1.00) tu arranj^esse lugar pra mim [(xx) filmar daqui\&
3 <((baixo))>
4 LC [EI\ (.) senta aí\
5 OP &tu arran[ja/>
6 LC [EI\ senta aí\
7 (ssssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
8 H1 [tem mais cadeira não\
9 (sssssssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
10 H2 [e:i Roberto\ senta aí: Roberto\
11 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
No Extrato 12, enquanto operador da filmadora, estou interessado em resolver a
minha própria acomodação no espaço físico da sala (Linhas 2 e 5, ei (1.00) tu arranj^esse
lugar pra mim (xx) filmar daqui\ tu arranja/). O problema de acomodação não se coloca
apenas para mim. Com outras motivações, ele existe também para outros participantes do
encontro social em análise, conforme podemos depreender da fala do participante H1
(Linha 8, tem mais cadeira não\). Assim, outros participantes também estão engajados ou
em resolver a sua própria acomodação, como parece ocorrer com o participante Roberto,
ou em indicar os meios para ou a necessidade de que isto seja resolvido, como ocorre com
153
as falas de Luís Carlos (Linha 4, EI\ (.) senta aí\; e Linha, 6, EI\ senta aí\) e H2 (Linha 10, e:i
Roberto\ senta aí: Roberto\).
A necessidade de acomodação ou uma dificuldade em resolver essa demanda é
explicitada ainda no Extrato 13, a seguir.
Extrato 13 (404-420 seg.) (6’44’’-7’00’’) (16 seg.)
1 LA ó gente\ (2.[60)&
2 H1 [aí
3 H2 bora escutar\
4 (ss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
5 LA [bom em primeiro lugar boa noite a to:dos\ (1.[80)&
6 COL [boa noite\
7 LA &é:: (0.9[5) ho::je: \ (3.[82)
8 M1 [senta Renato\ (xx)\
9 RE [sentar aonde/
10 ((o participante Neco inicia um deslocamento na sala))
11 ? (pssiu)
12 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
13 LC é vê [mnn\ tem pra todo mun[do\
14 LA [ho::je
15 ? [(ps[sssssssssssssss]siu)
16 M2 [<tem cadeira não\>]
17 <((H senta na primeira fila))>
18 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
No Extrato 13, M1 enfatiza a necessidade de o participante Renato acomodar-
se na sala (Linha 8, senta Renato\ (xx)\). E ele próprio retruca, expondo uma dificuldade
em atender o pedido de M1 (Linha 9, sentar aonde/). A despeito da afirmação de Luís
Carlos de que a acomodação não é um problema (Linha 13, é vê mnn\ tem pra todo
mundo\), a participante M2 insiste que há uma dificuldade estrutural para a acomodação
que está sendo solicitada (Linha 16, tem cadeira não\). O ato de sentar descrito na Linha
17 mostra a efetividade do processo de acomodação dos indivíduos, na sala.
Nos momentos iniciais do registro, é possível observar, pois, a espera dos
participantes que já haviam chegado ao local da interação, quando do início do registro;
a chegada de alguns participantes; cumprimentos; brincadeiras e insultos; conversas
corriqueiras; a localização de indivíduos no espaço físico; a adequação do espaço
físico para a consecução do encontro. Esses eventos de comunicação não são
154
estanques: alguns se englobam ou se intersectam, como pudemos ver explicitamente
com relação aos cumprimentos e aos insultos. Nenhum deles interdita a conversa,
embora nem todos sejam realizados como uma troca de fala (Traverso, 2003). Com
efeito, pudemos observar que algumas ações, ao mesmo tempo que não provocam uma
reação responsiva identificável, também não são produzidas como um ato solitário e
individual ou como um procedimento não articulado em termos da atividade de fala-em-
interação em andamento, como pudemos ver com o arrastado de móveis.
Essa multiplicidade de ações e objetos discursivos caracteriza a fase inicial
do encontro social aqui analisado como uma fase mais informal e mais divergente,
em comparação ao que ocorre posteriormente, quando os participantes tendem a
atuar em uma convergência para objetos discursivos comuns, em torno dos quais a
interação é movimentada e a partir da qual esses objetos são formulados e
reformulados, conforme veremos adiante. A observação dessas características da
fase inicial do encontro condiz com a afirmação de Gülich & Mondada (2001:222) de
que “a facilidade dos interlocutores de passar de um tema a outro pode ser
característicos de conversas informais”.
Nas duas fases mencionadas, há atividades interacionais simultâneas,
recíprocas, com direito à tomada de turno e direito de resposta. Nessa fase inicial, no
entanto, além de os participantes se orientarem de modo mais divergente, os seus
turnos tendem a ser curtos. Os participantes orientam-se através de papéis pouco
especificados de conversadores e se comportam como se fossem ‘iguais’, para além
de um status interacional associado a autoridade e subordinação. Essa simetria instaura
uma similitude momentânea entre indivíduos, sem implicar uma identidade social ou
comportamental que seria mantida ao longo da atividade. Assim, no decorrer do registro
vamos observar, por exemplo, uma flutuação do meu status interacional enquanto
pesquisador e/ou operador de uma filmadora e/ou interlocutor ou, ainda, enquanto
objeto de uma referenciação discursiva. Observaremos também uma variação do status
dos participantes, correlacionada ao direito – concedido, conquistado, negociado – de
tomar e/ou deter o turno. Veremos ainda uma instabilidade no ato de se considerar
legítimo ou ilegítimo um participante do evento.
Das análises dos Extratos acima, podemos sumarizar que, alimentar a
conversa e confirmar as relações sociais entre os interlocutores constituem os objetivos
das ações dos participantes, nos momentos iniciais da reunião da Associação de
Moradores dos Tipis. Esses objetivos são realizados através da atenção a múltiplas
demandas do cotidiano comunitário – conforme podemos observar particularmente nos
Extratos 1, 2, 3, 5 e 10 – como também através da atenção a demandas diretamente
ligadas à imediação da reunião – conforme ocorre especialmente nos Extratos de 4 a 9,
11, 12, 20, 23, 24 e 31.
155
6.4 Fazendo o Lugar e se Fazendo Nele: Espaço Físico e Interação, na Reunião
da Associação dos Moradores dos Tipis
A atividade principal da reunião da Associação de Moradores dos Tipis se dá
em uma pequena sala escolar, iluminada por lâmpadas fluorescentes. Ações dos
participantes que constituem o espaço físico enquanto contexto dizem respeito à
distribuição e circulação de diversos membros da comunidade no exterior e no interior
da sala e aos modos como os participantes acionam ou não aspectos físicos do espaço
onde interagem, para fins práticos da circunstância interacional.
No espaço externo próximo da sala, crianças brincam enquanto alguns
adultos entabulam animadas conversas. O acesso ao recinto se dá através de uma
porta localizada na mesma parede onde há um quadro-negro. Três janelas laterais a
essa parede se abrem para o referido exterior próximo da sala.
Alguns poucos indivíduos situam-se no exterior da sala, debruçados nas
janelas. Decorridos poucos minutos do início do evento, cerca de 35 pessoas, entre
homens, mulheres e crianças, localizam-se no interior do recinto. Nesse início do evento,
a maior parte dessas pessoas permanece sentada em fileiras, de frente para o quadro
negro, à semelhança de uma distribuição de alunos em uma sala de aula. Alguns
posicionam-se nas laterais da sala. Outros, como os membros da diretoria da
Associação, situam-se sentados e/ou em pé, de frente para o grupo maior. Dada a
exigüidade do espaço, os participantes dispõem-se bem próximos uns dos outros. Isto
parece favorecer o desenvolvimento de conversas simultâneas e cruzadas.
Ao longo do evento, alguns participantes circulam pelo ambiente já pequeno,
deslocando-se para fora e para dentro da sala, bem como no seu interior. Tais
movimentos são levados em conta por ocasião de algumas alterações circunstanciais
no status interacional dos participantes, mas não atuam em uma relação causal direta
dessas alterações. Assim, modos diversos como os participantes da reunião da
Associação de Moradores dos Tipis localizam-se, transitam e interagem no local onde
ela ocorre configuram esse espaço de modo dinâmico, trazendo-o à mão como um
dos aspectos contextuais do evento. Reflexivamente, esse espaço, dentre outros fatores,
modaliza a interação.
6.4.1 Filmando, pesquisando, conversando: atuação e status interacional, no
espaço físico da reunião da Associação dos Moradores dos Tipis
A reunião da Associação de Moradores dos Tipis aqui analisada inclui-se na
quarta situação especificada na Seção 6.1.1, na qual os meus papéis de operador da
filmadora, interlocutor e pesquisador se superpõem e/ou se alternam ao longo da atividade
interacional. A câmera não foi fixada unicamente em um ponto e o registro exibe, de certo
156
modo, a minha própria chegada enquanto operador-interlocutor-pesquisador, meus
deslocamentos e tentativas de adequação ao espaço físico das ações sociais, minhas
interlocuções. A emergência momentânea de um ou outro dos papéis de operador,
interlocutor ou pesquisador é decorrente do tipo de atividade coletiva que está sendo
realizada a cada momento.
No início do evento, eu estava na parte externa da sala, em uma das janelas.
Durante um deslocamento para o interior do recinto, entabulei conversas corriqueiras
com pessoas que se encontravam no trajeto. O Extrato 6 traz um exemplo dessas
conversas, com a atividade particular que nela é desenvolvida. Vejamos novamente
esse trecho.
Extrato 6 (113-117 seg.) (1’53’’-1’57’’) (4 seg.)
1 ([sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 RI [((movimenta a cabeça, para baixo))=
3 OP [=ó^o Ricar::do\ [bom/
4 RI [((leva a mão ao boné, abaixa a aba))
5 (sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
Scheglofff (1988: 110) aponta que a forma genérica de um par adjacente do
tipo cumprimento-cumprimento envolve uma troca dos mesmos termos. Diante disto,
podemos considerar que o Extrato 6, já brevemente analisado, exibe uma particularidade,
uma vez que termos distintos – gestos e fala – constituem os objetos cognatos trocados.
Observemos outros detalhes. Nesse Extrato, a primeira parte do par adjacente
é um turno realizado como o gesto de movimentar a cabeça para baixo, por Ricardo
(Linha 2). Interpretando esse gesto como um cumprimento, tomei o turno em um
encadeamento rápido ao gesto, dizendo o nome próprio do participante que gerou a
primeira parte do par, com uma entonação descendente (Linha 3, ó^o Ricar::do\). Na
seqüência, e ainda mantendo o turno, espelhei o cumprimento com uma pergunta
sobre o estado geral do meu interlocutor (Linha 3, bom/). Podemos interpretar essa
segunda fase do meu turno como uma primeira parte de um segundo par adjacente do
tipo cumprimento-cumprimento. No entanto, o segundo gesto de Ricardo – de levar a
mão ao boné, abaixando a sua aba (Linha 4) – sobrepõe-se exatamente ao início
dessa segunda fase do meu turno. Com isso, o segundo turno de Ricardo não parece
responsivo à segunda fase do meu turno, não parece uma segunda parte do segundo
par adjacente.
157
Se concordamos com essa análise – a sobreposição desses turnos elimina o
caráter de primeira parte de um segundo par adjacente do tipo cumprimento-cumprimento,
atribuível à segunda fase do meu turno (bom/) –, então concluímos que Ricardo e eu
realizamos uma organização de seqüências na qual gestos diferenciados e fala compõem
um par adjacente do tipo cumprimento-cumprimento composto de três partes, conforme
o Esquema 1, abaixo.
Esquema 1
RI: Cumprimento 1 - Parte 1 (Gesto A) =
OP: = Cumprimento 1 - Parte 2 (Fa[la)
[RI: Cumprimento ? - Parte ? (Gesto B)
Mas a interpretação que produz o Esquema 1 banaliza a sobreposição de
turnos e não resolve a conexão do segundo turno de Ricardo. Observamos, então, que
Ricardo não inicia seu turno em um ponto aleatório do meu. Ele o faz imediatamente
após a entonação descendente da minha fala, um ponto oportuno para uma tomada
de turno. Assim, considerando a precisão do ponto em que Ricardo atua o seu
procedimento, produzo o Esquema 2, a seguir.
Esquema 2
RI: Cumprimento 1 - Parte 1 (Gesto A) =
OP: = Cumprimento 1 - Parte 2 (Fala\) [Cumprimento 2 - Parte ? (Fala\)
[RI: Cumprimento 2 - Parte ? (Gesto B)
No caso de escolhermos a interpretação que gera o Esquema 2, restam
ainda as perguntas: Quem detinha o turno, no momento da sobreposição? Quem
sobrepõe sobre o turno de quem? No segundo par cumprimento-cumprimento, quem
produz a primeira parte? Na hipótese de que os dois participantes produziram
simultaneamente uma primeira parte de um segundo par adjacente do tipo cumprimento-
cumprimento, o que os pode ter levado a atuarem de tal modo?
Uma conjunção de fatores pode ser tomada como relevante para a
peculiaridade dessa fala-em-interação. Ricardo produziu a primeira parte de um
cumprimento, na forma de um gesto, para mim, um conhecido seu que estava
158
justamente operando uma filmadora. Visivelmente, eu distribuía a minha atenção em
múltiplos níveis da interação – sociais, lingüísticos, gestuais, operacionais – moldados
pela ação de efetuar um registro videográfico com os interesses de um pesquisador e
ao mesmo tempo atuar como um interlocutor comum. A percepção que eu tinha de mim
mesmo como alguém momentaneamente sobrecarregado de tarefas como também meu
interesse em não deixar sem resposta um cumprimento a mim dirigido podem ter motivado
a produção da segunda fase da minha fala como um reparo ou como uma interpretação
de que Ricardo não tinha ouvido e/ou compreendido a minha resposta ao seu
cumprimento. Esses mesmos aspectos podem ter influenciado a ação de Ricardo. Ele
pode ter interpretado que eu não me havia dado conta do seu primeiro gesto como um
cumprimento, reparando o problema com um segundo gesto.
A despeito das flutuações interpretativas que o Extrato 6 parece sugerir, ele
permite evidenciar que, mesmo atuando como um interlocutor comum, a condição de
operador da filmadora – e, de modo implicado, de pesquisador – assume uma relevância
particular na minha interação no evento registrado.
O Extrato 14 constitui um outro exemplo de uma conversa corriqueira na
qual o meu status interacional de interlocutor emerge modulado pela minha condição
de operador de uma câmera, no contexto de uma atividade coletiva particular.
Extrato 14 (68-85 seg.) (1’08’’-1’25’’) (17 seg.)
1 (ss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 OP [cês num vieru mas eu vim <pegar vocês lá fora\ viu/> [(he he he) ((riso))
3 PS <gesticula com a mão esquerda>
4 PS [(he he he) ((riso))
5 RU [(he he he) ((riso))
6 H1 xxx[xx
7 H2 [tá cer[to
8 Clara [vala minha nos^se[nhora\
9 H1 [ficou em casa/ é/
10 (ssssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
11 H1 [já entramo no [lance\
12 CR1 [sai do [mei Jô\
13 CR2 [sai do mei Jô\
14 (ss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
15 H2 [exatamente\
16 M1 a::h ((abaixando-se, saindo do foco da câmera))
17 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
18 M2 é mais fei\ (x[x)\
19 H1 [(xx) (x[x) (xx)\
20 [(sssssssssssssssssssssssssssssssssss)
159
No Extrato 14, Linha 2, atuando como operador, instauro a minha condição de
interlocutor e dirijo-me a um casal de conhecidos, Paulo Sérgio e Rute (Linha 2, cês num
vieru mas eu vim pegar vocês lá fora\ viu/ (he he he) ((riso))). Com a seleção vocabular
“pegar vocês lá fora”, evidencio o uso da câmera, ressaltando essa particularidade da
minha atuação. A forma verbal “pegar” conota o ato de flagrar os participantes,
enquadrando-os no registro. Esse meu turno não inclui termos que o marquem como
uma primeira parte de um par adjacente cumprimento-cumprimento. No entanto, antes
mesmo de eu finalizar o turno, Paulo Sérgio produz um gesto. Ele estava do lado de fora
do pequeno jardim da Escola, com o antebraço esquerdo apoiado sobre uma mureta e
apoiava a fronte com a mão esquerda. Então, ele afasta essa mão, mostra a sua palma,
com os dedos dobrados e o polegar estendido (Linha 3).
É possível interpretar o turno de Paulo Sérgio, na Linha 3, como a primeira
parte de um projetado par adjacente cumprimento-cumprimento. Todavia, a minha
condição de operador da câmera impossibilita o registro de algum possível gesto meu,
que funcionaria como a segunda parte do par supostamente projetado. Também não
complemento a projeção de Paulo Sérgio com um turno verbalizado. Se tivesse
produzido uma fala como resposta ao turno de Paulo Sérgio, eu estaria complementando
o par adjacente por ele iniciado com algo semelhante à interação observada no Extrato
6. Este par adjacente exibiria, então, uma troca de termos distintos – gesto e fala –
enquanto objetos cognatos.
Uma outra interpretação possível para o turno gestual de Paulo Sérgio (Linha
3) é entendê-lo como uma segunda parte de um par adjacente cumprimento-
cumprimento. Nesse caso, o turno de Paulo Sérgio é visto como responsivo ao gesto
da filmagem. A ação de filmar constitui, então, a primeira parte desse par adjacente.
Uma particularidade dessa interpretação está no fato de a filmagem ser um
ato contínuo e não exatamente um gesto pontual, potencialmente passível de ser
compreendido como um cumprimento. Contudo, a ação seguinte de Paulo Sérgio
configura-se como uma interpretação do gesto de filmar como um cumprimento. Nesse
caso, a projeção do par adjacente é observável de modo retrospectivo. Inter-relações
entre o caráter seqüencial e temporal da fala-em-interação, entre a projeção prospectiva
de ações sucessivas, as antecipações e as ações retrospectivas dos locutores tornam
possível tal interpretação para a construção desse par adjacente.
A seleção vocabular do meu turno sugere que eu apresento a filmagem
como uma espécie de ameaça (Linha 2, cês num vieru mas eu vim pegar vocês lá fora\
viu/ (he he he) ((riso))), mas os procedimentos encadeados de Paulo Sérgio e de Rute
e os meus próprios neutralizam essa interpretação. O riso simultâneo dos três (Linhas 2,
4 e 5) corrobora a interpretação conjunta do caráter pacífico das nossas atuações.
O turno de Clara (Linha 8, vala minha nos^senhora\) poderia sugerir uma
compreensão da minha atuação como filmador nos termos de uma espécie de ameaça,
160
uma vez que a sua fala também sugere um medo decorrente de alguma ameaça.
Entretanto, aquilo que os participantes dessa interação fazem antes e depois do
turno atribui-lhe um sentido semântico menos drástico. No máximo, temos aí uma
conotação de um certo incômodo de Clara com o fato de estar sendo filmada. Tal
incômodo remete a uma referenciação ao uso da filmadora, iniciada no meu turno
(Linha 2, cês num vieru mas eu vim pegar vocês lá for\a viu/ (he he he) ((riso))).
O uso da filmadora não é visto, pois, como uma realidade autônoma,
independente de suas relações contextuais. Esse uso é tomado pelos participantes
como um objeto de discurso, como uma co-construção observável na fala-em-
interação. Iniciado no meu turno (Linha 2), tal co-construção prossegue nos turnos
seguintes. Com efeito, a presença da câmera também é trazida à mão por outros
interactantes. Assim, o participante H2 produz um turno com uma forma verbal no
plural, parecendo conotar o seu enquadramento e de outros indivíduos no registro
(Linha 11, já entramo no lance\). Já a criança CR1 solicita a colaboração de uma
pessoa, parecendo querer facilitar o meu deslocamento, dificultado pelo operar a
câmera (Linha 12, sai do mei Jô\). A criança CR2 sobrepõe seu turno àquele
anteriormente iniciado por CR1, retomando a mesma seleção vocabular (Linha 13,
sai do mei Jô\). O encadeamento das participações de CR1 e CR2 exibe uma
integração sensível das duas crianças às ações sociais em curso e remete a uma
intensa participação das crianças dos Tipis nas atividades dos adultos, conforme
mencionei no Capítulo anterior.
Outra vez, um incômodo causado pela presença da filmadora é expresso
por uma outra interactante, M1 (Linhas 16, a::h), que se esquiva do registro. Então
uma outra participante M2 integra-se à cena e dirige-se a M1, advertindo-lhe que a sua
atitude de se esquivar é ainda pior ou mais desvantajosa ou mais problemática do que
se deixar registrar (Linha 18, é mais fei).
No Extrato 15, uma negociação do meu posicionamento no interior da sala
torna-se uma oportunidade para que eu, enquanto interlocutor, traga à mão minha
condição de operador.
Extrato 15 (99-105 seg.) (1’39’’-1’45’’) (6 seg.)
1 (sss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 OP [fasta só uma cois-\ só pr’eu entrar aqui nesse
3 canto aqui\ só pra eu pegar um pouquinho aqui\
4 (sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
161
Na minha atuação do Extrato 15, enquanto interlocutor, pareço valer-me da
minha condição de operador da câmera, para justificar o meu acesso a um ponto
privilegiado no recinto (Linhas 2 e 3, fasta só uma coisinha\ só pr’eu entrar aqui nesse
canto aqui\ só pra eu pegar um pouquinho aqui\). Assim como no Extrato 14, Linha 2,
também no Extrato 15 lanço mão da forma verbal “pegar” para conotar o ato de enquadrar
as interações na filmagem.
Constituir a minha atuação como interlocutor efetivo, considerando esse
afazer como a atuação de alguém que porta uma filmadora, evidencia-se não
apenas na interação entre mim e os demais participantes. Isto também é visível
na interação dos demais participantes entre si, conforme podemos observar no
Extrato 16.
Extrato 16 (132-140 seg.) (2’12’’-2’20’’) (8 seg.)
1 (ssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 H1 [seu Zé CAM::pos\ (2.[2)&
3 [(sssssssssssssssssssssssssss)
4 H1 &dê uma risadinha seu Zé CAM::pos\
5 H2 tu vai ver (Zico)\ como ele tá passando ([xxxxx)\
6 [(ssssssssssssss)
No Extrato 16, Linha 2, um participante mais jovem, H1, solicita um sorriso
de um outro, mais idoso, possivelmente em função da presença da câmera (seu Zé
CAM::pos\ (..) dê uma risadinha seu Zé CAM::pos\). Na Linha 3, H2 ressalta a
filmadora enquanto um mecanismo curioso de registro (tu vai ver Zico)\ como ele tá
passando (xxxxx)).
162
No Extrato 17 temos outro exemplo em que a interação entre participantes da
reunião traz à mão o meu status de operador.
Extrato 17 (155-196 seg.) (2’35’’-3’16’’) (41 seg.)
1 (sssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 M [fasta assim um pouquim\ [mnm\
3 H1 [(xx)
4 (ssssssssssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
5 CR [vou brincar
6 H2 como é que faz (xx)/ véi\
7 (ssssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
8 H3 [é o estudo\ ((baixo))
9 (sssssssssssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
10 H4 [precisa ir pra frente pra cê vê\
11 (sssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
12 H5 [(Ó^i:/)=
13 H4 =ó^i\
14 H5 olh^aí (x[x)\
15 H4 [o rapaz ta passando (xxx[xx)
16 H5 [passa\=
17 RE =dá pa vê/ (xx)/=
18 H5 =dá pa vê\ Seu [Renato\
19 H6 [(xx)/ (xx)\
20 H5 olh^aí: ó\
21 H4 dá pa vê ó\
22 RE (he he he) ((riso))
23 (sssssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
24 H4 [ó^i macho\ nós (xx[xxx)
25 H5 [ó^o Zé Antônio\
26 (ssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
27 H5 [ó^o ZEZÉ:[::
28 RE [(xx) (xx)/ véi\
29 (ssssssssssssssssssssssssssss[ssssssssssssssssssssssssssssss)
30 H4 [tá vendo/ passar/
31 H5 ó^o Zé Campos\
32 H4 ê:: macho véi tu tá ferra::do\
33 ZC (HA HA HA HA Ha Ha Ha ha ha ha ha) ((riso))
34 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
163
O Extrato 17, cujas Linhas de 29 a 34 correspondem ao Extrato 8, fornece
uma ocorrência de uma referenciação a mim enquanto pesquisador-operador. Esse
Extrato também exemplifica uma flutuação quanto ao destaque momentâneo dado a
um ou outro status interacional da minha participação – enquanto pesquisador ou enquanto
operador.
Embora o registro transcrito no Extrato acima não possibilite uma indicação
do momento preciso em que a minha atuação enquanto pesquisador-operador passa
a ser referenciada, os procedimentos posteriores a esse possível momento parecem
indicar a ocorrência dessa referenciação como também de distinções relacionadas ao
meu status interacional.
Logo de início, na interação transcrita no Extrato 17, é a minha condição de
operador que orienta a minha atuação. Nesse início, estou operando a câmera na
entrada da sala, tentando acomodar-me entre alguns participantes que permanecem
em pé, naquele ponto. M tenta ajudar, solicitando que alguém ceda um espaço,
possivelmente para mim (Linha 2, fasta assim um pouquim\ mnm\).
Em meio a conversas com orientações divergentes e trechos inaudíveis
(Linhas 3 a 7 e 9), na Linha 8, H3 dirige-se a um outro participante e reformula o meu
status de operador, trazendo à mão a condição de pesquisador, a mim atribuível (é o
estudo\). O volume baixo de voz com que esse turno foi enunciado (indicado na mesma
Linha 8) sugere concomitantemente uma sensibilidade de H3 à presença da filmadora.
Logo em seguida, o meu status de operador é tratado com maior destaque
nas interações. Nessa referenciação, os indivíduos que estão em pé, logo atrás de
mim, podem ver, na pequena tela da câmera, o que estou registrando. Temos então a
sugestão de que algum participante está curioso ou em dúvida quanto à possibilidade
de se ver o que está passando na telinha. O momento exato em que essa curiosidade
é atuada por um participante, para os outros, não está disponível no registro, talvez em
virtude da sobreposição de vozes indistintas (Linha 9). No entanto, a participação de
H4 (Linha 10, precisa ir pra frente pra cê vê\) indica que aquilo que está passando na
tela da filmadora é o objeto da interação dos participantes. Que é essa a orientação da
interação, isto vai se confirmando no fluxo interativo.
Assim, em nada mais nada menos do que cinco seqüências finamente
encadeadas, H4 e H5 alternam seus turnos para levar um participante – que nesse
momento ainda não pode ser identificado no registro, pois está atrás da câmera – a
uma ação que lhe permita ver, na tela da câmera, o que está sendo registrado (Linha
12, (Ó^i:/)=; Linha 13, =ó^i\; Linha 14, olh^aí (xx)\; Linha 15, o rapaz ta passando (xxxxx);
Linha 16, passa\=). Os encadeamento rápidos e as sobreposições nos finais desses
turnos conformam o caráter altamente colaborativo dessa atividade dos participantes.
164
Com a pergunta da Linha 17 (dá pa vê/ (xx)\), o participante ainda não-
identificado torna observável para o analista a curiosidade e a dúvida mencionadas.
Diante disso, o participante H5 responde que é possível, sim, ver o registro na tela.
Nesse mesmo turno ele explicita verbalmente qual é seu interlocutor direto, identificando-
o finalmente (Linha 18, =dá pa vê\ Seu Renato\). Com os turnos das Linhas 20 (olh^aí:
ó\) e 21 (dá pa vê ó\), os participantes H5 e H4 retomam a sua atuação colaborativa,
voltada para a orientação do seu interlocutor. O riso de Renato (Linha 22) sugere o seu
encantamento com o que está vendo. Esta interpretação é apenas sugestiva, uma vez
que não há outros elementos que excluam a possibilidade de esse riso conotar
justamente um desencantamento, uma decepção.
Então, em meio a uma profusão de falas, H5 mais uma vez orienta seu
interlocutor a olhar pela tela da câmera (Linha 24 ó^i macho\ nós (xxxxx)). Ele passa
assim a reiterar uma operação cognitiva de distinção figura-fundo, mostrando ao seu
interlocutor os indivíduos enquadrados no registro. Imediatamente a cada ato de apontar,
H5 vai nominando os indivíduos enquadrados na telinha (Linha 25, ó^o Zé Antônio\;
Linha 27, ó^o ZEZÉ::; Linha 31, ó^o Zé Campos\).
Ao invés de uma mera repetição, a recursão do procedimento de
destacar, apontar e nominar os indivíduos parece constituir um procedimento
didático para demonstrar a afirmação de que é possível ver na telinha aquilo que
o rapaz ta passando” (Linha 15). Isto é formulado na Linha 12, reiterado nas
Linhas 13, 14 e confirmado na Linha 16. A ação de H5 demonstra particularmente
que, além de se ver o que passa na tela, também é possível destacar indivíduos
enquadrados no registro.
Com o turno da Linha 30, o participante H4 verifica se o seu interlocutor
está efetivamente engajado nessa atividade de ver o registro na tela da filmadora (
vendo/ passar/).
Diante do procedimento de H5 de nominar o participante Zé Campos
como um dos indivíduos enquadrados pela filmagem (Linha 31), H4 avisa que Zé
Campos está, de algum modo, comprometido (Linha 32, ê:: macho véi tu tá
ferra::do\). A sonora gargalhada de Zé Campos (Linha 33) sugere que ele
compreende esse comprometimento em termos do próprio enquadramento no
registro ou como uma conseqüência branda desse enquadramento, e não como algo
realmente preocupante.
165
Uma espécie de insulto entre amigos constitui uma atividade de referenciação
do uso da filmadora, observável no Extrato 18, abaixo.
Extrato 18 (236-242 seg.) (3’56’’-4’02’’) (6 seg.)
1 (ssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 H1 [ce quer é tá filma[do\ né/
3 H2 [não nad- tem que ser é sério\ né/ (0.[94)&
4 H3 [tem\
5 H2 &mas se não eu ia [(xxxx)
6 H4 [tem uma cadeira aí\ que eu sei\
7 (sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
No Extrato 18, o participante H1 ‘acusa’ um outro participante, H2, de
exibicionismo diante da câmera (Linha 2, ce quer é tá filmado\ né/). O turno do ‘acusado’
H2 constitui a sua compreensão daquilo que H1 está fazendo enquanto uma brincadeira
e não exatamente como uma acusação (Linha 3, não nad- tem que ser é sério\ né/
(0.94). A sobreposição do turno de H2, antes do final do turno de H1, aponta que a
compreensão de H2 não se baseia exclusivamente na elicitação completa dos itens
lexicais da formulação de H1, mas se dá como uma atividade global, que leva em
conta toda a imediação da fala-em-interação.
H2 rejeita a pecha de exibicionista (não nad-). Essa rejeição justifica-se em
função de uma seriedade qualificada como necessária (tem que ser é sério\). Com o
marcador (né/), H2 projeta outro participante na conversa. Esse terceiro interactante
não é aquele que gerou o primeiro turno. Na oportunidade de uma pausa efetuada por
H2 e durante essa pausa, esse terceiro participante, H3, aceita a seleção feita por H2,
toma o turno, retoma a forma verbal já empregada por H2 e corrobora o sentido
semântico do turno de H2 (Linha 4, tem\). Com isso, H3 completa a referenciação do
objeto ‘seriedade necessária’, iniciada por H2. No entanto, H2 não parece tomar a
seriedade como necessária de modo geral; parece restringi-la a um momento ou um
evento delimitado, no caso ao momento daquela filmagem. Ele não se refere a uma
seriedade enquanto uma propriedade essencial e imutável: se o momento fosse menos
solene, ele atuaria de um modo exibicionista (Linha 5, mas se não eu ia (xxxx)).
Após quase 5 minutos do início do registro (293 seg. / 4’53’’), a câmera foi
movimentada para o exterior da sala. Passados 17 segundos, fixei o foco sobre a
participante Laura, que estava assumindo a função de presidente da Associação.
Contudo, parece que eu não estava suficientemente acomodado para obter um registro
adequado aos meus interesses. O Extrato 19 exibe atividades interacionais
166
imediatamente posteriores a esses eventos, nas quais tanto os meus procedimentos
quanto os dos outros participantes me fazem emergir como operador da câmera.
Extrato 19 (344-363 seg.) (5’44’’-6’03’’) (19 seg.)
1 (ss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 OP [<ei (1.00) tu arranj^esse lugar pra mim [(xx) filmar daqui\&
3 <((baixo))>
4 LC [EI\ (.) senta aí\
5 OP &tu arran[ja/>
6 LC [EI\ senta aí\
7 (ssssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
8 H1 [tem mais cadeira não\
9 (sssssssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
10 H2 [e:i Roberto\ senta aí: Roberto\
11 ( ssssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
12 OP [não\ pode ficar\ aqui já dá\ aqui já ta bom\
13 LA Bet^é o vice\ né/
14 OP não\ pode deixa:r\ né/
15 (sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
O Extrato 19 corresponde ao Extrato 12 ampliado. Nesse trecho, em meio a
diversas falas simultâneas (Linha1), negocio a minha localização em um ponto adequado
para a minha tarefa (Linhas 2 e 5, ei (1.00) tu arranj^esse lugar pra mim (xx) filmar
daqui\ tu arranja/). Diferentemente dos Extratos 14 (Linha 2) e 15 (Linha 3), nos quais
descrevo a ação de registrar com a forma verbal pegar, no Extrato 19 emprego o verbo
filmar para descrever a tarefa. As diferentes escolhas lexicais parecem associar-se a
diferenças na negociação envolvida nesses dois conjuntos de interações. Com efeito,
nos Extratos 14 e 15, a ação de filmar tinha os interlocutores como os objetos da
filmagem. Já no Extrato 19, a ação de filmar tinha como seu objeto algo ou alguém
diferente do interlocutor. É possível, pois, associar uma explicitação lexical da ação
pretendida por mim a um interesse meu em ser mais eficaz na formulação do pedido,
uma vez que, no segundo caso, a ação de filmar – motivadora do pedido – podia não
ser objeto da observação do meu interlocutor.
Nesse momento, alguns participantes ainda estão engajados em acomodar-
se no espaço físico (Linhas 2 e 5, ei (1.00) tu arranj^esse lugar pra mim (xx) filmar
daqui\ tu arranja/; Linha 4, EI\ (.) senta aí\; Linha 6, EI senta \ e Linha 10, e:i Roberto\
senta aí: Roberto\). Outros participantes estão averiguando as condições disponíveis
para isto (Linha 8, tem mais cadeira não\). Então, formulo um turno que constitui uma
segunda parte de um possível par adjacente do tipo oferta-recusa, correlacionado com
167
as atividades de acomodação dos participantes (Linhas 12, não\ pode ficar\ aqui já dá\
aqui já tá bom\). Posteriormente, reparo a minha recusa, empregando uma forma verbal
que conota diferenças semânticas com relação à primeira recusa (Linha 14, não\ pode
deixa:r\/). A escolha das formas verbais pode ficar e pode deixar marca essas
diferenças de sentido.
No primeiro caso, a minha recusa enquanto operador-interlocutor aplica-se
ao movimento daquele que possivelmente ofereceu sair do lugar onde estava, para
que eu me localizasse adequadamente. É esse movimento que recuso que seja feito,
com o turno da Linha 12 (não\ pode ficar\ aqui já dá\ aqui já tá bom\). A interdição do
meu próprio movimento torna-se, pois, uma decorrência subseqüente à recusa do
movimento daquele que fez a oferta.
O registro não permite a observação de algum procedimento do meu
interlocutor que justifique o reparo formulado por mim. Mesmo assim, no segundo
caso, minha recusa (Linha 14, não\ pode deixa:r\/) abrange simultaneamente um
possível movimento conjunto, meu e do participante que oferece a nossa
reacomodação no espaço físico. Com a formulação da recusa (Linha 12), proponho
para o que faz a oferta: ‘ fique onde está’. Com a reformulação da minha recusa
(Linha 14), proponho: ‘fiquemos você e eu nos lugares onde estamos; deixemos
tudo como está’.
Os Extratos 6 e de 14 a 19 acima analisados se situam em um intervalo de
295 segundos (4’58’’). O menor tempo de início de um registro está no Extrato 14 (68
seg. / 1’08’’) e o maior tempo de final de um registro está no Extrato 19 (363 seg. /
6’03’’). Podemos dizer então que durante quase 5 minutos (295 seg. / 4’58’’), no início
do registro, atividades interacionais particulares constituem-me como um participante
efetivo do evento. Esse status interacional exibe ligeiras flutuações, quando sou
configurado enquanto pesquisador, para os fins práticos do que está acontecendo
naquele momento específico do fluxo conversacional.
Após esse primeiro momento, enquanto operador, mantenho-me fixo no
exterior da sala, fazendo o registro da reunião a partir de uma janela, durante pouco
mais de 21 minutos (1.263 seg. / 21’03’’). Durante esse período, as preocupações
com a presença da câmera parecem estar minimizadas. Quando decorriam quase
27 minutos do início do registro (1.608 seg. / 26’48’’), o meu status interacional de
interlocutor volta a emergir, conforme podemos observar no Extrato 20, abaixo.
168
Extrato 20 (1.607-1.633 seg.) (26’47’’-27’13’’) (26 seg.)
1 (s[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 LA [GEN::TE\ Ó\ UM DE CADA VEZ\ POR FAVOR\ (1.[42)
3 [((deslocamento do foco))
4 LA ó: \ ó\ ó\: um de cada vez\ por favor\ (4.[68)
5 [(ss[ssssssss[ssssssss
6 M [(ha ha) ((riso))
7 ? [(pssiu)
8 H1 aqui é afolozado\
9 (sss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
10 H2 [você não pode me dá uma noite (xx[xx)
11 M2 [(ê você se (xx)\
12 (ssssssssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
13 OP [licença aí\
14 H2 oito seis bacurin\ (.[) por causa de uma [noite\
15 ZL [(xx) nã:^aí-
16 [tem\
17 aí (x[x)
18 [(SSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS)
No Extrato 20, a retomada do meu status interacional de interlocutor ocorre
associada ao meu deslocamento, do exterior para o interior da sala (Linha 3), e é
tornada pública pelo procedimento do participante H1, que a mim se dirige, justificando
a tensão e a aparente balbúrdia daquele momento específico da reunião (Linha 8, aqui
é afolozado\). Eu não produzo um turno verbal responsivo ao comentário de H1 sobre
a frouxidão dos modos de viver nos Tipis e continuo deslocando-me. Então, na tentativa
de conseguir uma localização favorável ao registro, lanço mão de um turno. Com isso,
configuro a mim mesmo com um interlocutor e negocio a minha entrada no recinto
(Linha 13, licença aí\).
Decorridos pouco mais de 39 minutos da reunião (2.354 seg. / 39’14’’), a
pouco mais de 5 minutos (326 seg. / 5’26’’), portanto, do final do registro, sou reinstaurado
na minha condição de pesquisador, inicialmente enquanto um objeto de discurso e
logo em seguida – e por ínfimos segundos – enquanto um interlocutor, conforme
podemos ver na análise do Extrato 21, abaixo.
169
Extrato 21 (2.354-2.387 seg.) (39’14’’-39’51) (37 seg.)
1 (ssssss[sssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 ZL [outra coisa\ (0.47)
3 todos os dia quinze o fiscal tem que chamar aí\ (0.72)
4 tem que preguntar- (026)
5 o que foi que cês sis- tiraram\ (0.[33)&
6 ? [dia trin[::ta
7 ZL [&o v- que é que tem
8 dento\ <não é\ tod^os dia quinze\>
9 <((mais rápido))>
10 (quando) for (receber) o pagamento\
11 (sssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssss)
12 LA [ó::=
13 ZL =vai ter que usar a carteirinha\ [pa um e outo\ pa saber\
14 LA [ó:: \ (0.46) o Eudenio tá-
15 [ó\ dê licenç^aí\ Zé Luís\
16 H1 [como passa (x[x)\
17 ? dê licença aí\
18 LA ó:\ o Eudenio tava me lembrando aqui\ (0.33)
19 de falar sobre a água\ (2.[0)
20 [(ssssssssssssssssssssssssssssssssss)
21 LA a água do- houve uma reu[nião na capela (0.2[4)&
22 H2 [ei (Dedé)\
23 [(ss[ssssssssss)
24 ? [(pssiu) ((1.31 de duração))
25 LA &com ele e a- a- (0.32
26 <Adriana\ né/> (0.42)&
27 <((baixo; olhando para OP))>
28 LA &Adriana\ que^é da Secretaria de Saúde\ (0.39)
29 ó: (0.82)
30 foi constata:do que <a água do açu:de> (1.21)
31 <((mais lento))
32 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
No Extrato 21, Zé Luís está propondo uma verificação regular dos
equipamentos agrícolas tomados de empréstimo pelos afiliados da Associação (Linhas
de 2 a 5, 7 e 8 e 10, outra coisa\ (0.47) todos os dia quinze o fiscal tem que chamar aí\
(0.72) tem que preguntar- (026) o que foi que cês sis- tiraram\ (0.33) o v- que é que tem
dento\ não é\ tod^os dia quinze\(quando) for (receber) o pagamento\). Em meio a falas
170
simultâneas (Linha 11), Laura toma o turno e se dirige a um coletivo de interlocutores,
tentando chamar-lhes a atenção (Linha 12, ó::). Na oportunidade do alongamento
vocálico produzido por Laura, Zé Luís retoma o turno, especificando um mecanismo
para a verificação dos equipamentos (Linha 13, vai ter que usar a carteirinha\ pa um e
outo\ pa saber\).
Antes de Zé Luís concluir o seu turno, Laura faz uma sobreposição e toma
o turno mais uma vez, tentando, de novo, chamar a atenção de um coletivo de
participantes. Para isso ela se vale do mesmo marcador, com um alongamento vocálico
semelhante àquele produzido na sua tentativa anterior (Linha 14, ó:: (0.46) o Eudenio
tá-). Após uma pausa, ele tenta formular um tópico novo. Nesse momento, ela faz uma
referência a mim enquanto pesquisador e me configura como um objeto de discurso,
mas não como um interlocutor.
A sobreposição do turno de Laura (Linha 14) ao turno de Zé Luís (Linha 13)
não é tomada por ele como um motivo para suspender seu próprio turno, cedendo-o a
ela. De fato, durante segundos, os dois prosseguem produzindo seus turnos
simultaneamente, até que ela faz um truncamento na sua fala (Linha 14, ó:: (0.46) o
Eudenio tá-).
Na Linha 15 (ó\ dê licenç^aí\ Zé Luís\) Laura lança mão do mesmo marcador
observado nos procedimentos das Linhas 12 e 14 (ó::). Todavia, pelo menos duas
peculiaridades podem ser observadas no procedimento da Linha 15. Por um lado, o
marcador desse turno é produzido sem o alongamento vocálico visto nas duas
produções anteriores. Por outro lado, Laura agora seleciona Zé Luís como seu
interlocutor específico e não um coletivo de interlocutores, como ocorreu nos dois
casos anteriores. Na quarta tentativa de chamar a atenção dos participantes (Linha
18), embora com leves matizes, Laura parece retomar a associação entre alongamento
vocálico e interlocutor coletivo, conforme veremos a seguir.
Na Linha 15, Laura tenta então negociar a posse do turno de modo
metadiscursivo, solicitando-a explicitamente a Zé Luís (ó\ dê licenç^aí\ Zé Luís\). Um
participante não identificável pelo registro lança mão do turno e dirige-se a Zé Luís,
reformulando e endossando o pedido de Laura (Linha 17, dê licença aí\).
Após essa negociação pela posse do turno, Laura recomeça a introdução
de um novo tópico (Linhas 18 e 19, ó: o Eudenio tava me lembrando aqui\ (0.33) de
falar sobre a água\ (2.0)). Para isso, com o mesmo marcador e um alongamento vocálico
um pouco menor, ela realiza a sua terceira tentativa de chamar a atenção de um coletivo
de participantes. Ela retoma a construção que anteriormente havia truncado (Linha 14)
e a formula por inteiro. Assim como na Linha 14, nas Linhas 18, Laura faz, outra vez,
uma referenciação ao pesquisador, configurando-o como um objeto de discurso, mas
não como um interlocutor.
171
Após falas indistintas, Laura tenta, então, desenvolver o tópico iniciado, mas
trunca a estrutura que começa a formular e inicia uma explicação relacionada ao tópico
(Linha 21 (a água do- houve uma reunião na capela (0.24). No ensejo da pausa produzida
por Laura vários falantes se manifestam (Linhas 22 e 23). Com a produção alongada de
um marcador (1.31 seg.), um participante não identificado no registro parece propor o
ordenamento fala um de cada vez (Linha 24).
O pesquisador, então, é reformulado como um objeto discursivo na forma de
um pronome de terceira pessoa (Linha 25, com ele e a- a- (0.32)). Laura também tenta
configurar uma Assistente Social, funcionária da Secretaria de Saúde, com quem eu,
enquanto pesquisador, havia promovido reuniões sobre a qualidade das águas
consumidas nos Tipis. Entretanto, Laura hesita, mostrando uma incerteza quanto ao nome
dessa Assistente Social (a- a-). Após produzir uma pausa (0.32), Laura atribui outros
nexos interacionais e outros aspectos procedurais ao turno que vem desenvolvendo.
Assim, ao produzir a fala da Linha 26 (Adriana\ né/ (0.42)), ela baixa o volume da voz e
olha para mim, enquanto pesquisador-operador (indicado na Linha 27). Desse modo,
ela reformula o status do pesquisador, reconfigurando-o – de um objeto de discurso apenas
referenciado, para um objeto de discurso que ela toma como interlocutor para um possível
próximo turno.
A reconfiguração do pesquisador-operador se dá através da projeção, por
parte de Laura, de um par adjacente do tipo questão-resposta, especificado em termos
de um pedido de confirmação do nome próprio que ela mesma havia elicitado (Linha
26, Adriana\ né/(0.42)).
Laura faz uma pausa (0.42) que eu poderia ter tratado como uma
oportunidade para a realização da segunda parte do par adjacente por ela projetado.
Considerando a minha condição de operador da câmera, seria plausível supor que eu
tenha realizado esse turno como um gesto. Esse possível ou potencial turno, no entanto,
não está disponível no registro. Na seqüência da pausa, Laura retoma o volume de voz
com o qual vinha produzindo o seu turno para os outros participantes da reunião e
elicita o nome da Assistente Social, agora sem hesitação (Linha 28, Adriana\ que^é da
Secretaria de Saúde\ (0.39)). Com isso, ela indica ter resolvido de algum modo a questão
por ela formulada.
Com a realização desses dois procedimentos – a retomada do volume de voz
e a elicitação segura do nome da Assistente Social, Laura abandona o operador-
pesquisador enquanto um interlocutor. Então, ela faz uma pausa (0.39), projetando o
final da explicação relacionada ao tópico, iniciada na Linha 21. Foi justamente no interior
dessa explicação que Laura me reconfigurou como seu interlocutor, diante da
necessidade de se certificar da identidade da Assistente Social.
172
Depois de me abandonar enquanto seu interlocutor, Laura lança mão de um
marcador e de uma pausa (Linhas 29 ó: (0.82)), tentando mais uma vez chamar a atenção
dos seus novos interlocutores e retomar a introdução do novo tópico, iniciada na Linha
14. O tópico águas dos Tipis é então formulado pela primeira vez nesse trecho interacional
(Linha 30, foi constata:do que a água do açu:de (1.21)). Uma diminuição na velocidade
da fala de Laura (indicada na Linha 31) e a posposição de uma pausa média (1.21 de
duração) destacam esse novo tópico, apresentado aos demais participantes.
As análises desta Seção permitem observar que a minha participação na
reunião da Associação de Moradores dos Tipis, enquanto operador e/ou interlocutor e/
ou pesquisador, configura-se à medida em que certos afazeres são desenvolvidos – a
operação da câmera; a reação dos demais participantes a essa operação; os
deslocamentos do operador e dos outros participantes no espaço físico da interação;
as trocas de fala entre eles, as formulações, reformulações, tomadas e retomadas dos
objetos da interação, neles inclusos os próprios participantes.
Ao longo do evento, atuo principalmente como um interactante particular,
atravessado por aspectos do viés da máquina, pela ação de registrar o evento. O uso
da filmadora constitui uma estratégia de uma pesquisa que é do conhecimento dos
membros da comunidade. Considerando esses aspectos, assumo as inelutáveis
influências do viés do pesquisador e do viés dos sujeitos pesquisados, que despontam
no fluxo das interações analisadas.
Meus deslocamentos enquanto operador correlacionam-se com meus
interesses de pesquisador e são motivados pela presença dos demais participantes e
por alguma necessidade de alterar o foco do registro das atividades interacionais da
reunião. Minhas demandas, enquanto interlocutor, por uma localização particular no
espaço físico onde estou atuando são guiadas, portanto, pela minha condição de
pesquisador-operador da câmera, atuando entre conhecidos, no contexto de um evento
que ocorre em uma sala cujas dimensões não acomodam confortavelmente todos os
interessados em dele participar.
O status interacional de operador, todavia, não se mantém uniforme, ao
longo do evento, embora neste registro tenha sido constante a ação de operar a câmera.
Isto sugere que, de um ponto de vista interacional, a minha condição de operador da
câmera não é um objeto pré-existente à ação social que assim me constitui. Essa condição
tampouco subsiste ad infinutum aos movimentos interacionais particulares da sua
configuração. Em certos momentos, minhas ações de operador não são observáveis no
conjunto de ações responsivas a outras ações.
173
Sendo válida para o meu status interacional de operador – que observamos
de modo predominante na reunião – a análise acima é também válida, de modo
complementar, para o meu status interacional de interlocutor e de pesquisador.
A categorização de um indivíduo como um certo tipo de participante de uma
atividade social não releva, pois, da consideração isolada de supostas propriedades
intrínsecas, essenciais, ou de uma observável propriedade acessória, momentânea,
desse indivíduo. O status interacional de um interactante releva das relações de suas
ações com as ações de outros interactantes. Essas relações variam nos momentos
diversos de uma atividade sócio-cultural e lingüística.
6.4.2 Ficando de pé: história e emergência interacionais, na reunião da Asso-
ciação dos Moradores dos Tipis
Nos primeiros minutos do registro, os participantes da reunião da
Associação dos Moradores dos Tipis buscam resolver suas necessidades de
acomodação e comodidade, conforme pudemos ver no Extrato 11, que aqui repito.
Essa atividade torna-se pública na Linhas 3 (tem uma cadeira aí\ que eu sei\ (.)),
Linha 4 (ó^i cadeira aí\) e Linha 6 (ó^i (Zeca) cadeira que (truve)/ (0.43) num é a
tua não/)
Extrato 11 (240-250 seg.) (4’00’’-4’10’’) (10 seg.)
1 (ssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 H1 [mas se não eu ia [(xxxx)
3 H2 [tem uma cadeira aí\ que eu sei\ (.)
4 H3 ó^i cadeira aí\
5 M (xxxxxxxxxx)\
6 H2 ó^i (Zeca) cadeira que (truve)/ (0.43) num é a tua não/
7 (sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
No Extrato 12, que repito abaixo, procedimentos semelhantes também foram
observados nas Linhas 2 e 5 (ei (1.00) tu arranj^esse lugar pra mim (xx) filmar daqui\ tu
arranja/), Linha 4 (EI\ (.) senta aí\), Linha 6 (EI\ senta aí\), Linha 8 (tem mais cadeira
não\) e Linha 10 (e:i Roberto\ senta aí: Roberto\).
174
Extrato 12 (344-356 seg.) (5’44’’-5’56’’) (12 seg.)
1 (ss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 OP [<ei (1.00) tu arranj^esse lugar pra mim [(xx) filmar daqui\&
3 <((baixo))>
4 LC [EI\ (.) senta aí\
5 OP &tu arran[ja/>
6 LC [EI\ senta aí\
7 (ssssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
8 H1 [tem mais cadeira não\
9 (sssssssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
10 H2 [e:i Roberto\ senta aí: Roberto\
11 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
Ainda, no Extrato 13, abaixo repetido, tentativas de resolver necessidades
de acomodação e comodidade, foram observadas na Linha 8 (senta Renato\ (xx)\),
Linha 9 (sentar aonde/), Linha 10 (H inicia um deslocamento na sala), Linha 13 (é vê
mnn\ tem pra todo mundo\), Linha 16 (tem cadeira não\) e Linha 17 ((H senta na
primeira fila)).
Extrato 13 (404-420 seg.) (6’44’’-7’00’’) (16 seg.)
1 LA ó gente\ (2.[60)&
2 H1 [aí
3 H2 bora escutar\
4 (ss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
5 LA [bom em primeiro lugar boa noite a to:dos\ (1.[80)&
6 COL [boa noite\
7 &é:: (0.9[5) ho::je: \ (3.[82)
8 M1 [senta Renato\ (xx)\
9 RE [sentar aonde/
10 ((H inicia um deslocamento na sala))
11 ? (pssiu)
12 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
13 LC é vê [mnn\ tem pra todo mun[do\
14 LA [ho::je
15 ? [(ps[sssssssssssssss]siu)
16 M2 [<tem cadeira não\>]
17 <((H senta na primeira fila))>
18 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
175
Nas interações transcritas nos Extratos 11, 12 e 13, ao tornarem pública sua
preocupação com o fato de os demais estarem sentados ou de pé, os interactantes
exibem uma atenção com o conforto e/ou com a distribuição dos indivíduos no espaço
exíguo da sala. Essa atenção parece fazer parte daquilo que a comunidade especifica
como uma prática cultural de polidez. Tais modos de ser polido exibem aspectos da
história interativa dos participantes.
No Extrato 22, Laura convida a todos a proferirem uma oração (Linha 2,
bom gente vamo::s né:: rezar um pouquin::). Antes da finalização desse turno os
participantes começam a ficar de pé (Linha 3).
Extrato 22 (266-300 seg.) (4’26’’-5’00’’) (34 seg.)
1 (ss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 [HÁ[HÁ HÁ há há há ((riso; 3 seg. de duração))
3 [(ssssssssssssssssssssssssssss[ss) ((17 seg. de duração))
4 LA [vamo/ Lu\
5 (ss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
6 LA [bom gente vamo::s [<né:: rezar um pouquin:: (0.4)&
7 [<((participantes começam a ficar de pé))
8 H [e::i Jasão\
9 LA &[<que o e- Divino Espírito San:to (0.2) &
10 [(in an) ((arrastado de móvel))
12 <((movimento da câmera para fora da sala, para a janela))
13 LA & nos ilumi:ne\ nessa nossa nova caminha:da\
14 ? (xx)=
15 H =Dedé/
16 LA quem é que comanda/
17 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
Assim como nos Extratos 11, 12 e 13, no Extrato 22, ficar de pé aponta para
a vivência histórica dos habitantes dos Tipis. Desse modo, os procedimentos de Laura
e dos demais confirmam a sua experiência com a prática cultural de fazer reunião.
Parece então que é algo corriqueiro – não necessariamente obrigatório – a comunidade
iniciar eventos mais formais proferindo uma oração. Em uma tentativa solene de assim
abrir um encontro social, o gesto de ficar de pé parece atuar, pois, como parte do que
a comunidade vivencia como polidez, como ocorre no preocupar-se com a acomodação
e comodidade dos participantes da reunião.
176
Por outro lado – observando a emergência interacional –, o Extrato 22 exibe
um trabalho local. O gesto coletivo de ficar de pé (Linha 3) é realizado durante o turno de
Laura (Linha 2, bom gente vamo::s né:: rezar um pouquin:: (0.4)), logo após a formulação
da forma verbal que expressa o convite (vamo::s) e antes mesmo da elicitação do item
lexical com o qual ela busca especificar a atividade para a qual está convidando os
participantes (rezar). Laura projeta o comportamento dos participantes do evento, não a
partir exclusivamente da elicitação de um item lexical – conforme sugere a atuação deles,
relativamente a essa elicitação –, mas a partir de um entrelaçamento deles com suas
ações. A compreensão que os participantes têm da ação de Laura é, pois, pública, anterior
à elicitação de um item lexical específico e observável no gesto coletivo de ficar de pé.
Os gestos de levantar, sentar, permanecer de pé ou sentado podem ser
vistos como aquilo que Kerbrat-Orecchioni (1990:115) denomina “marcadores de
lugar”. Um marcador desse tipo pode caracterizar-se como um recurso trazido à
mão pelos interactantes, para o desenvolvimento do campo interacional. A
implementação da oposição sentado vs de pé, no Extrato 23 fornece uma ocorrência
desse processo.
Laura está iniciando a sua gestão como Presidente da Associação de
Moradores. Com esse status interacional ela se posiciona de frente para a maioria dos
participantes. Em diversos momentos, ela produz turnos longos, embora não detenha
essa primazia durante todo o evento. No primeiro minuto do registro, em duas ocasiões,
Laura aparece sentada; aos 2 minutos e 18 segundos (138 seg.) ela aparece sentada
pela terceira vez. Aos 5 minutos e 9 segundos (309 seg.) ela aparece de pé pela
primeira vez, conforme veremos no Extrato 32, Linhas 4 e 8. Depois, na maior parte dos
momentos em que é focalizada, ela aparece de pé. Esta observação é útil para um dos
aspectos analisados no Extrato 23.
177
Extrato 23 (1.485-1.505 seg.) (24’45’’-25’05’’) (20 seg.)
1 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 ZL pra quando chegar uma pes-um sócio lá:\ (.) chegar e [num ter\
3 LC [só va- [ói\ olhe bem\ só vai ter direito [o sócio\ quem não for sócio não tamo- tendo mais direito
a [nada\
4 M [tem que ter\=
5H1 =ter rédea\ num tinha\
6H2 [nem um (xx)
7LA [tem mais direito\
8 (sssssssssssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
9 H3 [nós num temos mesmo os direi[to não\
10 LC [ó eu vou ([xxx)
11 LA [aqui:: <aqui:: da- do presidente até o último sócio\ vão ter os mesmo direito\
12 <((LC e LA levantam-se em sincronia))
13 (sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
178
No início do Extrato 23, o foco da câmera está voltado para Zé Luís. Ele
está sentado, formulando uma justificativa para regras de funcionamento da nova
gestão da Associação (Linhas 2, pra quando chegar uma pes-um sócio lá:\ (.)
chegar e num ter\). Temos então sucessivas falas concordantes e coordenadas.
Assim, Luís Carlos sobrepõe sua fala quase ao final do turno de Zé Luís e, no ensejo
da justificativa apresentada, formula uma regra para o funcionamento da Associação
(Linha 3, só va- ói\ olhe bem\ só vai ter direito o sócio\ quem não for sócio não
tamo- tendo mais direito a nada\). Com a proposição dessa regra, Luís Carlos
tenta atacar justamente o problema que estava sendo apontado por Zé Luís: as
eventuais indisponibilidades de equipamentos agrícolas para um sócio, em virtude
de esse equipamento estar emprestado a alguém. Assim, segundo a proposta de
Luís Carlos, a partir daquele momento, somente os associados terão direitos aos
benefícios proporcionados pela entidade.
No ensejo de um truncamento produzido por Luís Carlos ao formular essa
regra, a participante M efetua uma primeira sobreposição ao turno dele. Embora não
seja discordante do que Luís Carlos está dizendo, esse turno de M coordena-se é com o
que Zé Luís vinha dizendo e caracteriza-se como uma reespecificação do turno deste
último, sobre a necessidade de uma ordem, para evitar que um sócio não disponha de
um equipamento pretendido. Então, retomando a forma verbal “ter”, M secunda a fala de
Zé Luís: é preciso poder dispor dos equipamentos, eles têm que estar lá (Linha 4, tem
que ter\).
O turno de Luís Carlos se prolonga e então outro participante, H1, faz uma
segunda sobreposição a esse turno (Linha 5, ter rédea\ num tinha\). Essa sobreposição
ocorre também como um encadeamento rápido ao turno de M. Desse modo, H1 retoma
a forma verbal empregada por M e a reespecifica. Enquanto nos turnos de Zé Luís e M os
objetos do verbo “ter” são coincidentes (tem que ter os equipamentos da Associação,
eles têm que estar lá), no turno de H1 o objeto de verbo “ter” é outro (tem que ter rédea).
Embora esses objetos sejam diferentes, eles giram em torno dos sentidos associados à
formulação de regras de funcionamento da Associação: tem que ter os equipamentos e,
para isso, tem que ter rédea, tem que ter um ordenamento.
No início do seu turno, Luís Carlos enuncia uma restrição quanto aos sócios
que irão ter direito aos benefícios da Associação (Linha 3, só vá- ; só vai ter direito...).
A propósito disso, o participante H2 faz uma terceira sobreposição ao turno de Luís
Carlos e especifica a restrição que este último está formulando em termos dos indivíduos
que terão direitos (somente os sócios) e em termos do que os não-sócios terão direito (a
nada) (Linha 6, nem um (xx)).
Em uma quarta sobreposição e quase ao final do turno de Luís Carlos, Laura
reformula a afirmação de que os indivíduos não-associados não terão mais direito a
nenhum benefício (Linha 7, tem mais direito\).
179
O longo turno de Luís Carlos chega ao fim e aí uma profusão de falas indistintas
(Linha 8) parece deixar em suspenso ou adiada uma atitude consensual diante da regra
sugerida por Zé Luís, formulada por Luís Carlos e secundada por M, H1, H2 e Laura, em
um delicado, complexo e encadeado trabalho coletivo.
Então, com certa ironia, o participante H3 questiona a existência de direitos
(Linha 9, nós num temos mesmo os direito não\). Antes mesmo que H3 finalize o seu
turno, Luís Carlos inicia uma construção (Linha 13, ó eu vou (xxx)), que ele suspende
diante da tentativa de tomada de turno, por parte de Laura (Linhas 14 e 15, aqui:: aqui::
da- do presidente até o último sócio\ vão ter os mesmo direito\).
Nesse trecho da interação, Laura vinha produzindo turnos curtos e estava
sentada. Luís Carlos, que imediatamente antes havia detido longamente o turno,
também estava sentado. Porém, o momento concentra uma considerável tensão,
maximizada no turno irônico de H3. Aí, simultaneamente, Luís Carlos e Laura levantam-
se, exatamente quando Laura retoma o marcador (aqui::), em uma tentativa de tomar
o turno, concentrar as atenções e fazer avançar o tema em pauta.
A prática do gesto de ficar de pé – como um recurso trazido à mão pelos
interactantes Laura e Luís Carlos, para o desenvolvimento do campo interacional –
volta-se tanto para as relações entre Laura e Luís Carlos com os demais participantes
quanto para as relações de Laura e Luís Carlos entre si. Desse modo, por um lado,
Laura e Luís Carlos parecem lidar com a oposição sentado vs de pé como um
recurso para:
a) construir uma assimetria interacional, relativamente ao participante H3
e, concomitantemente;
b) chamar a atenção dos demais participantes.
Por outro lado, Luís Carlos lança mão desse recurso para tentar garantir a
posse de um turno já iniciado, diante da tentativa de Laura de tomar o turno de assalto.
Ela, por sua vez, utiliza o recurso gestual de ficar de pé para efetivamente tomar o
turno dele. Com a produção do marcador (aqui::), ela sinaliza o seu interesse em
tomar aquele turno para si. Com a retomada desse marcador e com o gesto de ficar de
pé, ela insiste em garantir para si a posse do turno.
No conjunto de procedimentos ora em análise, Luís Carlos também fica de
pé. Todavia ele suspende a sua produção de fala. Os procedimentos dele constituem,
simultaneamente, tanto a sua compreensão de que Laura quer tomar o turno e mantê-
lo consigo quanto a sua concordância com essa tomada e com essa posse do turno.
O minucioso trabalho de coordenação de falas concordantes e discordantes
que podemos observar no Extrato 23 exibe:
180
a) a atenção e a escuta dos participantes, relativamente àquilo que os outros
estão fazendo a cada momento;
b) uma reespecificação contínua do sentido do que está sendo dito;
c) uma coordenação na atuação do recurso de ficar de pé para o
desenvolvimento do campo interacional.
No Extrato 23 podemos observar um tipo de reconhecimento, por parte de
sete participantes, daquilo que cada um está fazendo no evento interacional. A atuação
desses participantes configura a compreensão que cada um tem da ação dos outros.
A partir desse Extrato podemos considerar que o marcador de lugar ficar de pé remete
a certas desigualdades que se constituem e se reconstituem no curso da interação.
Esse trecho bem exemplifica o que aqui estou chamando de convergência
de orientação: embora haja muitas sobreposições de fala, elas giram em torno de um
tema comum e de um trabalho coletivo finamente coordenado.
O Extrato 23 fornece ainda um contra-exemplo que serve como uma base
empírica para a observação de que Laura permanece de pé durante boa parte do
evento, em sintonia com o seu status interacional de Presidente da Associação.
No Extrato 24, o gesto de se levantar também é praticado como um recurso
para chamar a atenção dos participantes e para manter a prevalência do turno.
Extrato 24 (1.042-1.068 seg.) (17’22’’-17’48’’) (26 seg.)
1 (sss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 ? [ (ps[ssssssssssssssssssssssss[sssiiiiiiiiiuu) ((4 seg. de duração))
3 LA [gente ó: outra coisa-=
4 LC [=mas é o seguinte (0.29) ah- oh-
5 deixa eu- deixa eu (x[x)
6 ZL [(xx)=
7 LC =demore ain::da rapaz deixo eu lhe esclarecer (x[x)
8 [(sssssssssssssss)
9 (ssssssssssssssssssssssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
10 ? [(pssi:u) ((2.66 de duração))
11 LC as coisa (0.83)
12 vou até me levanta-
13 as coisa (0.53)
14 num pode permanecer errado tod^em tempo não\
15 ces sabem disso (0.72)
16 as coisas tem que- tem que ter lei\ tem que- (1.[12)
17 [(ssssssssssssssssss)
181
O momento interacional transcrito no Extrato 24 envolve alguma tensão. Muitos
participantes falam simultaneamente (Linha 1). Um falante propõe um ordenamento do
tipo fala um de cada vez com um marcador extraordinariamente alongado (Linha 2).
Laura chama a atenção dos participantes e tenta introduzir um novo tópico (Linha 3,
gente ó: outra coisa-). Ela não é bem sucedida nessa tentativa. Em um encadeamento
rápido, Luís Carlos toma o turno e retoma a avaliação que vinha fazendo, sobre erros
cometidos na gestão anterior da Associação, quando ele era Presidente. Ele tenta fornecer
possíveis esclarecimentos relativos a uma crítica que lhe havia sido feita (Linhas 4 e 5,
mas é o seguinte (0.29) ah- oh- deixa eu- deixa eu (xx)). Luís Carlos é interrompido pela
sobreposição de Zé Luís (Linha 6, (xx)), mas, em um encadeamento rápido, retoma o
turno de assalto, solicitando explicitamente o direito de detê-lo (Linha 7, demore ain::da
rapaz deixo eu lhe esclarecer (xx)). Nesse momento, uma profusão de falas interrompe
novamente o turno de Luís Carlos (Linhas 8 e 9). A proposição de um ordenamento do
tipo fala um de cada vez é novamente implementada por um longo pedido de silêncio
(Linhas 10 e 11, (pssi:u)). Luís Carlos, então, reinicia o seu turno de esclarecimento (Linha
12, as coisa (0.83)).
Nesse momento da ação, certas dificuldades interacionais vêm sendo, pois,
paulatinamente, geradas e gerenciadas nos afazeres dos participantes. Para todos
eles há o caráter polêmico do tópico que está em andamento. No que diz respeito a
Luís Carlos, ele gera e/ou gerencia os problemas e soluções colocados no momento
mediante a tomada de turno (Linha 4); a produção de pausas (0.29 e 0.83), truncamentos
(ah-; oh; deixa eu-) e retomadas (deixa eu-; deixa eu-) como também mediante um
trabalho metadiscursivo (Linha 7, demore ain::da rapaz deixo eu lhe esclarecer).
Relativamente aos demais participantes, o trabalho interacional para resolver
problemas postos no curso mesmo da interação é feito, por exemplo, através das
sobreposições de falas (Linha 1); da proposição de um ordenamento do tipo fala um
de cada vez (Linha 2); da tentativa de Laura de introduzir um novo tópico (Linha 3); da
tentativa de Zé Luís de tomar o turno de Luís Carlos (Linha 6); do incremento de falas
simultâneas (Linhas 8 e 9); do reconhecimento, por parte de um participante não
identificado pelo registro, de que é preciso haver um ordenamento do tipo fala um de
cada vez, configurado na retomada do longo pedido de silêncio (Linha 10).
Assim, com uma pausa de 0.83 segundo (Linha 11), Luís Carlos interrompe a
estrutura frasal que vinha construindo e torna pública, lexicalmente, a estratégia de que
vai lançar mão, com o objetivo de chamar a atenção dos participantes. Ele verbaliza que
se vai levantar (Linha 12, vou até me levanta-). Com o marcador (até) ele também
verbaliza o caráter estratégico desse gesto. Enquanto verbaliza o gesto – que irá se
caracterizar como um marcador de lugar, ele o efetiva para a observação dos
participantes. A formulação desse marcador é truncada quando da efetivação do gesto
e, na Linha 13 (as coisa (0.53)), ele retoma a forma do turno da Linha 11. Em seguida, faz
182
uma pausa e, diante do fato de que nenhum participante tenta tomar o seu turno, tem
garantida, para si, a sua posse. Com esses procedimentos, Luís Carlos consegue
finalmente desenvolver o turno com os esclarecimentos que sinalizara no início do
Extrato (Linhas 14, 15 e 16, ((as coisas)) num pode permanecer errado tod^em tempo
não\ ces sabem disso (0.72) as coisas tem que- tem que ter lei tem que- (1.12)).
Laura, a Presidente da Associação, e Luís Carlos, o gestor anterior, assumem
e/ou alternam o status interacional de dirigentes da reunião da Associação.
Eventualmente eles lançam mão do marcador de lugar ficar de pé como um recurso
para efetivar assimetrias interacionais e, por exemplo, tomar e/ou garantir o turno,
como vimos nas análises dos Extratos 23 e 24, acima. No entanto, não apenas esses
participantes utilizam tal recurso. Outros também configuram um status assimétrico
através desse marcador de lugar, conforme podemos ver Extrato 25.
Extrato 25 (1.934-1.949 seg.) (32’14’’-32’29’’) (15 seg.)
1 (sssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 MA [<nós num tá pagando a associação pra que/ num é pa ter o [direito não/=
3 <((MA coloca-se de pé no meio dos demais))
4 LA =exatamente\ (.) direito de quê:/
5 LC cê num tem direito não/
6 LA [<direito de quando vir [um benefício pra cá::\ você ter&
7 <((foco em MA))
8 MA [direito-
9 MA [direito de cê pagar a associa-=
10 H1 =o senhor é licitante/
11 LA &esse [dire:ito\
12 MA [(então) p^eu ir tirar uma lona lá:\ precisa
13 cê pa[gar cinquenta centavos/
14 H2 [mais [cinqüen:ta (xx)\
15 [(sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
Os participantes da reunião estão discutindo a validade ou a necessidade da
concomitância de duas taxas na Associação – uma fixa e mensal e uma extraordinária,
paga eventualmente, em função do uso de algum equipamento do coletivo. No Extrato
25, em uma correlação com o tópico em andamento, observamos uma forte tensão e
uma profusão de falas simultâneas (Linha 1). O participante Marco Antônio coloca-se de
pé, marcando a sua assimetria, a sua atitude questionadora, relativamente à proposta
de haver duas taxas (Linha 2).
183
A interpretação do gesto de ficar de pé como um marcador de uma
assimetria fundamenta-se no trabalho coletivo dos participantes. Encadeando
rapidamente o seu turno ao de Marco Antônio, Laura (Linha 4, exatamente\ (.)
direito de quê:/) parece concordar com o ponto de vista dele (exatamente\). No
entanto, após uma breve pausa, ela questiona a alegação de direitos, feita por ele
((.) direito de quê:/).
Luís Carlos atua colaborativamente com Laura, pondo em xeque a
reclamação de Marco Antônio, quanto à falta de direitos (Linha 5, cê num tem direito
não/). Laura e Marco Antônio, então, iniciam simultaneamente um turno, com o
mesmo item lexical. Ela mantém o turno, especificando um direito do associado
(Linhas 6 e 11, direito de quando vir um benefício pra cá::\ você ter esse dire:ito\).
Marco Antônio trunca a sua fala e suspende o seu turno (Linha 8, direito-),
mas, logo em seguida, sobrepõe seu turno ao de Laura e começa a especificar o que
seria um direito do associado (Linha 9, direito de cê pagar a associa-). No ensejo da
hesitação ou truncamento de Marco Antônio, o participante H1 interrompe-o, lança
mão da vez de falar e informa outro atributo de Marco Antônio (Linha 10, o senhor é
licitante/).
Marco Antônio então reformula a ordem que ele próprio está questionando
(Linhas 12 e 13, (então) p^eu ir tirar uma lona lá:\ precisa cê pagar cinquenta
centavos/). Em uma sobreposição de fala, H2 antecipa o item lexical que vai finalizar
o turno de Marco Antônio e confirma: a regra é essa mesma (Linha 14, mais
cinqüen:ta (xx)\).
Além de ser realizado como um marcador de uma assimetria interacional, o
gesto de ficar de pé, analisado no Extrato 25, acima, atua também como uma
compreensão de uma tensão observável naquele momento interacional específico.
No Extrato 26, abaixo, temos um outro exemplo desse gesto enquanto um marcador
da tensão interacional, sem necessariamente configurar uma marcação explícita (e/ou
disponível para o analista) de uma assimetria interacional.
184
Extrato 26 (1.234-1.258 seg.) (20’34’’-20’58’’) (24 seg.)
1 (ss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 LA [a pessoa começan^a pagar de ago:ra\ (0.64)
3atÉ::: o tempo::\ (0.39) de se aposentar- daqui a
4 de:z daqui a quinze e::- ou da[ qui- eu num sei\
5 [(ssssssssssssssssssssssssss)
6 ZL mas vem duas vez [por-
7 LA [mas tem que pagar o [honorá:rio
8 H1 [agora [(xx)
9 [(xxxxx)
10 ZL vou lhe dizer\&
11 BB =((choro))
12 ZL os (esquiabos) de (mel)\ porque- pro mode família\
13 H2 (família) é (xxx) é::\
14 ZL é/ ou num é/
15 LA <ele num era pro mode família- [nad- (xxxxx)&
16 <((estridente))>
17 [(ss[sssssssssssssssssss)
18 M [senta aí Natan\
19 LA &ele tinha o direito>
20 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
21 BB ((ch[oro))
22 H3 [tem razão
23 (sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
Documentos que demonstrem que um indivíduo é ou foi sócio de uma
associação de moradores de uma localidade rural são válidos em processos burocráticos
para enquadrar esse indivíduo como um trabalhador rural, auferindo-lhe direitos
trabalhistas específicos. Os participantes estão discutindo se algum indivíduo que morou
nos Tipis e que se mudou para a cidade poderia afiliar-se à Associação e, com isso, ter
para si os direitos específicos de um trabalhador rural. Nesse contexto, Laura produz
um turno defendendo uma posição favorável a esse tipo de afiliação (Linhas 2, 3 e 4,
a pessoa começan^a pagar de ago:ra\ (0.64) atÉ::: o tempo::\ (0.39) de se aposentar-
daqui a de:z daqui a quinze e::- ou daqui- eu num sei\).
A construção de uma tensão interacional parece ter início nesse momento. Na
Linha 6, Zé Luís parece concordar com proposta de Laura (Linha 6, mas vem duas vez por-
). Ele reformula essa proposta (mas) e acrescenta uma condição (vem duas vez por-).
Sobrepondo-se ao turno de Zé Luís, Laura retoma a forma inicial do turno dele
e acrescenta outra condição (Linha 7, mas tem que pagar o honorá:rio). O caráter
polêmico do tópico manifesta-se em reações imediatas, com falas sobrepostas, dos
185
participantes (Linhas 8 e 9). Nesse contexto, Zé Luís lança mão do turno para avaliar
fatores causais que tornam problemática a proposta de Laura (Linhas 10 e 12, vou lhe
dizer\ os (esquiabos) de (mel)\ porque- pro mode família\). O participante H2 retoma o
fator causal apontado por Zé Luís (Linha 13, (família) é (xxx) é::\) que, então, solicita
uma avaliação do fator por ele apontado (Linha 14, é/ ou num é/). A estridência na fala
de Laura (Linha 16), em discordância com Zé Luís, marca um ponto culminante na tensão
(Linhas 15 e 19, ele num era pro mode família- nad- (xxxxx) ele tinha o direito).
Em meio a falas simultâneas, a participante M solicita uma acomodação de
Natan (Linha 18, senta aí Natam\). Embora o registro não permita vê-lo de pé nem
tampouco o momento em que se levantou, a fala de M sinaliza uma inter-relação entre
a tensão do momento e o caráter oportuno de Natan se sentar.
Uma forte tensão interacional é atuada no Extrato 27.
Extrato 27 (1.588-1.616 seg.) (26’28’’-26’56’’) (28 seg.)
1 (s[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2H1 [vai ter que pagar agora a (taxa)\ (.[)&
3 H2 [um cara desse [tem o&
4H1 &[(dig- num ta-)&
5 H2 direito d^fazer tudo\(=)
6H1num num foi passar cinco [seis dia&
7 LA [(=)pra: tu::do\
8H1&em riba da caieira\ num (se[xx)\
9 H3 [é: (xx[x)\
10 H4 [você [(xx) (xx) (rapaz)\
11 H2 [o cara (xx) tem o direito d^fazer tudo\
12 sssssss[ssssssssssssssssssssssss)
13 LA [pra tu::do que precisar agora vai preciso pagar\
14 (ss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
15 H3 [se eu passar dez dias com (aquele) (x[x)
16 H4 [num soube passar\
17 H1 mas num pode mais não\ agora num [pode mais não\
18 H5 [de- de- de- de- de-
19 H2 nós tira ela\ (x[x)
20 [(sssssssssssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
21 H5 [de- [de- de- de-
22 LA [<gen::te\ ó:\ um de cada vez\ por favor\>
23 <estralando os dedos; batendo palmas>
24 (ssssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
25 LA [ó\ ó\ ó\<um de cada vez\ por favor\>
26 <baixando o volume da voz>
186
Aos 26 minutos e 28 segundos do início do registro, a proposição de uma taxa
extra foi formulada pela primeira vez. Entre falas simultâneas (Linha 1), o participante H1
formula uma regra relativa ao pagamento de uma taxa extra, com uma entonação especial,
em uma listagem assertiva (Linha 2, vai ter que pagar agora a (taxa)\ (0. 38)). O participante
H2 toma o turno na pausa curta produzida por H1, parecendo discordar da proposta, pelo
questionamento do poder dos dirigentes (Linhas 3 e 5, um cara desse tem o direito d^fazer
tudo\). Sem considerar o questionamento de H2, H1 prossegue a sua lista assertiva,
formulando outra regra relativa à quantidade de dias que um associado pode permanecer
com um equipamento da Associação (Linhas 4 e 6, (dig- num ta-) num num foi passar
cinco seis dia em riba da caieira\ num (se(xx)\).
A participação de Laura exibe uma particularidade atribuível ao dinamismo
da interação, à tensão do momento, bem como à grande quantidade de falantes
simultâneos. Assim, na Linha 7 (pra: tu::do\), ela produz um turno que parece encadeado
com o turno de H2 (Linhas 3 e 5, um cara desse tem o direito de fazer tudo\), inclusive
pela aparente retomada do item lexical tudo. Mas Laura está concordando com H1 e
não com H2. O turno dela, na Linha 7, constitui uma tentativa de especificar a
abrangência geral da regra, proposta por H1, relativa ao pagamento de taxas extras
(Linha 2, vai ter que pagar agora a (taxa)\ (0. 38)).
Dois falantes produzem falas inaudíveis (Linha 9, é: (xxx)\ e Linha 10, você
(xx) (xx) (rapaz)\). Em sobreposição ao segundo falante, H2 reformula o questionamento
que havia formulado nas Linhas 3 e 5 (Linha 11, o cara tem o direito de fazer tudo\).
Algumas falas indistintas ocorrem entre o final desse turno de H2 e o próximo turno de
Laura. Aqui, ela retoma a forma inicial do seu turno da Linha 7 e a complementa,
finalmente reformulando por inteiro a proposição inicial de H1 (Linha 13, pra tu::do que
precisar agora vai preciso pagar\).
O tom polêmico da interação manifesta-se nas Linhas de 14 a 18. Em meio a
outras falas inaudíveis (Linha 14), H3 formula um cenário aparentemente hipotético, que
utiliza para questionar a taxa em termos da severidade do seu cumprimento (Linha 15, se
eu passar dez dias com (aquele) (xx)). Com uma entonação particular, H4 sobrepõe sua
fala ao final do turno de H3, atribuindo-lhe a responsabilidade pelas conseqüências de um
uso prolongado do equipamento. Com isso ele sugere saber que o cenário aparentemente
hipotético formulado por H3 nada mais era do que uma referência a uma experiência
efetiva (Linha 16, num soube passar\). H1 então insiste na restrição que a nova regra impõe
sobre práticas desse tipo (Linha 17, mas num pode mais não\ agora num pode mais não\).
É aí que H5, ao sobrepor ao turno de H1 uma onomatopéia que simula uma gagueira, parece
questionar ou ironizar a autoridade ou a tagarelice daqueles que estão propondo os novos
ordenamentos para a Associação (Linha 18, de- de- de- de- de-).
A tensão chega às raias da proposição de uma insubordinação coletiva, na
fala de H2 (Linha 19, nós tira ela\ (xx)). Na Linha 22, em meio à profusão de falas
187
(Linhas 20), H5 retoma o mesmo recurso de deboche (Linha 21, de- de- de- de-), enquanto
Laura lança mão do recurso gestual de estralar os dedos e bater palmas (Linha 23) e de dois
recursos lexicais (gen::te\ e ó::\) para chamar a atenção dos participantes. Assim,
simultaneamente a esses gestos, ela propõe o ordenamento fala um de cada vez (Linha
22, gen::te\ ó:\ um de cada vez\ por favor\). Os falantes não param de sobrepor suas falas
(Linha 24). Então, Laura formula três vezes um marcador, para chamar a atenção dos
participantes e, baixando o volume da voz (indicado na Linha 26), retoma a sua proposta de
ordenamento das tomadas de turno (Linha 25, ó\ ó\ ó\ um de cada vez\ por favor\).
Sob uma forte tensão, o tópico pagamento de taxas vem, pois, sendo
desenvolvido já há alguns minutos. O caráter saturado das interações começa a se
evidenciar, co-relacionado ao gesto de ficar de pé, que, além de marcar assimetrias
interacionais, como vimos nos Extratos 25 e 26, acima, molda e é moldado pelo
desenvolvimento do campo interacional. O Extrato 28 exemplifica, pois, uma associação
entre tensão e saturação interacionais e o gesto de ficar de pé.
Extrato 28 (1.700-1.714 seg.) (28’20’’-28’34’’) (14 seg.)
1 ((foco voltado para o fundo da sala; dois participantes de pé)
2 (sss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
3 M [num precisa pagar não\
4 (sssssssssssssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
5 [dá:::\
6 (ssssssssssssssssssss<ssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
7 <((foco sobre LC e LA, ambos de pé))
8 H1 [ó: Joã:o ó: [João (xx)
9 LA [gente\ um de
10 cada [vez por favo:::r\
11 H2 [chamar Dr. Marcos\ (num é)\
12 H3 (xx) a maioria
13 LA ó^i
14 H3 eu fi- fico com a maioria\
15 LA &por favor um de cada ve:z=
16 ? =(pssiu)
17 H tem algum (bof- lu^)i/
O encontro social da Associação dos Moradores dos Tipis vem se
desenvolvendo há 28 munitos e 20 segundos (1.700 seg.). A questão das taxas se
arrasta há 2 minutos (120 seg.). O foco sobre os participantes mostra dois deles de pé,
188
entre os demais (Linha 1), sem que isso indique um procedimento para uma tomada de
turno. Em meio a falas indistintas (Linha 2), a participante M manifesta-se contrária à criação
de uma taxa extra (Linha 3, num precisa pagar não\ ). Luís Carlos e Laura estão de pé (Linha
7). A repetição de um recurso para chamar a atenção de um participante, por parte de H1
(Linha 8, ó: Joã:o ó: João (xx)) ressalta uma dificuldade no desenvolvimento do campo
interacional. Nesse contexto, o ordenamento fala um de cada vez é formulado (Linhas 9 e 10,
gente\ um de cada vez por favo:::r\). Vários participantes lançam mão de turnos que parecem
divergentes do tópico em andamento (Linha 11, chamar Dr. Marcos\ (num é)\) ou parecem
correlacionar-se com a tensão do momneto (Linha 12, (xx) a maioria, Linha 14, eu fi- fico
com a maioria\). Laura tenta chamar a atenção dos participantes (Linha 13, ó^i), e, diante da
dificuldade em consegui-lo, reformula o ordenamento proposto nas Linhas 9 e 10 (Linha 15,
por favor um de cada ve:z). Um outro paticipante, lançando mão de outro recurso, propõe o
mesmo ordenamento (Linha 16, (pssiu)).
A saturação da atividade interativa, já observada no Extrato 28, é evidenciada
logo em seguida, como podemos ver no Extrato 29.
Extrato 29 (1.714-1.740 seg.) (28’34’’-29’00’’) (26 seg.)
1 ((os participantes LC e LA estão de pé))
2 LC ó (.) ou a gente- ([xx)
3 LA [ó:: não é a- ning- num [pod^sair aGOra\
4 H1 [(xx) rapaz\
5 LA <não é a- ninguém pra sair agora\>
6 <((mais baixo))>
7 LC inda vai ler a::ta\ é pa todo [mundo (xx)\
8 LA [eu ainda vou ler a a:ta\ pa saber o que [acontece:u\
9 H2 [(vou bater)
10 até seis [horas\
11 [(ssssssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
12 LA [óia (.) é assim\ (.) se desman:cha\ (.) ó\ já tão querendo sair\
13 LC é\ num pode\=
14 H3 =pode não\ véi\
15 (ss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
16 LA [ó se você ve:io [pra uma reunião você tem que esperar até&
17 H6 [iss^aí é o modo deles\
18 LA &aca[bar\ (.) garanto que num fal[ta (xx)\
19 ? [psssi
20 H6 [iss^aí (responde) (xx[x)\
21 [ssssssssssssssss)
189
No Extrato 29, Luís Carlos e Laura estão de pé (Linha 1). Ele está se
referindo a situações-limite com as quais os sócios da Associação vão ter que lidar
(Linha 2, ó (.) ou a gente- (xx)). Os participantes sinalizam uma saturação do evento,
o que é evidenciado pela restrição que Laura propõe quanto à saída dos participantes
(Linha 3, ó:: não é a- ning- num pod^sair aGOra\). Com a fala da Linha 5 (não é a-
ninguém pra sair agora\), Laura reitera a observação da Linha 3, agora em um volume
de voz mais baixo (indicado na Linha 6). Luís Carlos justifica e reformula a restrição
proposta por Laura (Linha 7, inda vai ler a::ta\ é pa todo mundo (xx)\). Antes do final
do turno de Luís Carlos, Laura retoma o turno e reformula a justificativa apresentada
por Luís Carlos (Linha 8, eu ainda vou ler a a:ta\ pa saber o que acontece:u\). Em
meio a outras falas (Linhas 9 e 10 e Linha 11), Laura afirma a efetividade do
comportamento que ela denunciara imediatamente antes (Linha 12, óia (.) é assim\
(.) se desman:cha\ (.) ó\ já tão querendo sair\). Luís Carlos reafirma a impropriedade
desse comportamento (Linha 13, é\ num pode\), no que é imediatamente secundado
pelo participante H3 (Linha 14, pode não\ véi\). Muitas falas indistintas são produzidas
(Linha 15) e então Laura argumenta em favor da permanência dos participantes na
sala, até o final da reunião (Linhas 16 e 18, ó se você ve:io pra uma reunião você
tem que esperar até acabar\ (.) garanto que num falta (xx)\). Em sobreposição ao
turno de Laura, o participante H6 explica o comportamento dos participantes que se
retiram (Linha 17, iss^aí é o modo deles\). Esse turno poderia também ser entendido
como uma acusação de H6, relativamente aos participantes que se retiram da sala.
Um tímido pedido de ordenamento do tipo fala um de cada vez é também sobreposto
ao turno de Laura por um participante não-identificado (Linha 19, psssi). Em uma
outra sobreposição ao mesmo turno de Laura, é ainda H6 quem produz um turno que
apresenta semelhanças com o seu turno anterior (Linha 20, iss^aí (responde) (xxx)\).
Através do recurso gestual de colocar-se de pé, alguns participantes estão
sinalizando que o evento deveria ser finalizado. Essa compreensão é evidenciada por
outros, como podemos ver no Extrato 30.
190
Extrato 30 (1.740-1.753 seg.) (29’00’’-29’13’’) (13 seg.)
1 (s[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 H1 [já tem outro o- pessoal que vai- (.)o pessoal que vai fazer esse
3 negócio da- [de pagar a associação quando terminar todos de falar\=
4 M1 [(xx) (xx) quando discute uma coisa que-
5LA=exatamente\ ([.) por isso qu^eu (xx)
6H1 [a pessoa num sai\=
7 LA =é por isso que eu (x[x)
8 H1 [tem que pagar a
9 associação [(xx)
10 H2 [tem que pagar a associação (x[x)
11 H [<(xx) (xx) sair\>
12 <((rápido))>
Constitui uma praxe que algum pagamento seja feito no final da reunião da
Associação. Nas Linhas 2 e 3, o participante H1 referencia um certo comportamento
de algumas pessoas. Ele faz um truncamento e logo em seguida retoma sua descrição
comportamental, formulando que o pagamento seja feito somente quando a reunião
realmente tiver sido concluída (já tem outro o- pessoal que vai- (.) o pessoal que vai
fazer esse negócio da- de pagar a associação quando terminar todos de falar\). A
tensão do debate é referenciada na sobreposição produzida por M2 (Linha 4, quando
discute uma coisa que-). Em um encadeamento rápido ao turno de H1, Laura concorda
com ele e justifica uma atitude sua, relativamente ao aspecto em tela (Linha 10,
exatamente\ (.) por isso qu^eu (xx)). H1 justifica que a adoção de tal regra (receber o
pagamento somente quando terminar todos de falar) deve servir para reter as pessoas
no recinto (Linha 6, a pessoa num sai\). Laura retoma quase os mesmos itens lexicais
para reformular a justificativa do seu procedimento (Linha 7, é por isso que eu (xx)). H1
parece reformular a regra proposta, embora o final de sua fala esteja inaudível (Linhas
8 e 9, tem que pagar a associação (xx)). Em uma sobreposição de fala, o participante
H2 secunda essa reformulação (Linha 10, tem que pagar a associação (xx)).
Na reunião da Associação dos Moradores dos Tipis aqui analisada, estar
sentado ou em pé e/ou a implementação dos gestos de sentar, levantar, permanecer
sentado ou de pé correlacionam-se com a história interacional desses indivíduos. Assim,
podemos observar padrões de polidez que se manifestam em uma preocupação com
a acomodação e com a comodidade dos participantes da reunião. Esses gestos também
constituem recursos para a resolução de problemas que se situam na emergência da
ordem interacional. Com esses procedimentos, os participantes: chamam a atenção
191
dos outros; mantêm essa atenção; tomam o turno; garantem a sua posse; geram
assimetrias interacionais; formulam e reformulam o seu status interacional; sinalizam
tensões observáveis em momentos interacionais específicos; sinalizam uma saturação
do evento, indicando que a reunião deve ou deveria ser finalizada.
6.4.3 Entrando e saindo da sala: o espaço físico como critério interativo, na
reunião da Associação dos Moradores dos Tipis
Os participantes da reunião da Associação dos Moradores dos Tipis
eventualmente geram e gerenciam a oposição interior da sala vs exterior da sala
enquanto um critério de auto-categorização e/ou de categorização de certos
participantes do evento. Também eventualmente esse critério é realizado enquanto
um expediente político na instauração de assimetrias momentâneas entre participantes.
Trata-se de um critério dinâmico, emergente, ad hoc.
A produtividade da oposição interior da sala vs exterior da sala é observável
já no início do registro, como podemos observar no Extrato 14. Tornemos a olhar para
esse trecho.
Extrato 14 (68-85 seg.) (1’08’’-1’25’’) (17 seg.)
1 (ss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 OP [cês num vieru mas eu vim <pegar vocês lá fora\ viu/> [(he he he) ((riso))
3 PS <gesticula com a mão esquerda>
4 PS [(he he he) ((riso))
5 RU [(he he he) ((riso))
6 H1 xxx[xx
7 H2 [tá cer[to
8 Clara [vala minha nos^se[nhora\
9 H1 [ficou em casa/ é/
10 (ssssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
11 H1 [já entramo no [lance\
12 CR1 [sai do [mei Jô\
13 CR2 [sai do mei Jô\
14 (ss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
15 H2 [exatamente\
16 M1 a::h ((abaixando-se, saindo do foco da câmera))
17 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
18 M2 é mais fei\ (x[x)\
19 H1 [(xx) (x[x) (xx)\
20 [(sssssssssssssssssssssssssssssssssss)
192
No Extrato 14, como operador da câmera, estou próximo aos meus
interlocutores Paulo Sérgio e Rute e fora da sala onde a reunião será realizada,
sinalizando para eles a minha ação de filmar (Linha 2, cês num vieru mas eu vim pegar
vocês lá fora\ viu/ (he he he ((riso))). Todavia, adoto, de modo encadeado, diferentes
perspectivas de auto-localização relativamente a esse espaço físico e ao contato com
meus interlocutores. Meus supostos deslocamentos e os diferentes modo como me auto-
localizo são observáveis através de aspectos dêiticos nas escolhas lexicais.
Em uma das perspectivas, (cês num vieru), com o verbo escolhido (vir),
conoto um auto-deslocamento inicial para uma localização espacial particular. Meus
interlocutores não se deslocaram para esse mesmo lugar. Com efeito, falo com eles
como se gerasse meu enunciado a partir de uma localização distinta da deles. Essa
fala é realizada como se, no momento da enunciação, eu, por um lado, e Paulo Sérgio
e Rute, por outro, estivéssemos em locais diferentes, mediados por algum aparato que
permitisse uma comunicação à distância, como um telefone ou, mais adequadamente,
em virtude da quantidade de participantes, uma vídeo-conferência.
Logo em seguida, altero a minha perspectiva de localização espacial (mas
eu vim pegar vocês). Conoto, então outro auto-deslocamento e agora me auto-localizo
em um espaço físico onde meus interlocutores se encontram. No entanto essa minha
perspectiva é efêmera. Imediatamente à minha auto-localização em uma perspectiva
próxima aos meus interlocutoroes, auto-localizo-me em uma outra perspectiva. Embora
o efetivo lugar onde a interação está ocorrendo seja o exterior da sala, a ele me refiro
como um local onde não estou (lá fora). Ou, se efetivamente fui para esse lugar (eu
vim), esse lugar é um não-lugar, relativamente ao ponto para o qual todos deveriam ter
ido: dentro da sala. O interior desse recinto é, pois, um local onde eu e meus
interlocutores não estamos, mas para onde deveremos ou deveríamos ir.
Não há registro de alguma participação de Paulo Sérgio e Rute no
desenvolvimento da reunião. O procedimento de manter-se fora da sala é conservado
por Clara, embora ela atue como participante efetiva da reunião, conforme veremos na
análise do Extrato 31, a seguir.
A aparente contradição ou as sucessivas mudanças na minha perspectiva
de localização espacial movimentam a oposição interior da sala vs exterior da sala, na
reunião da Associação. Elas sugerem também que, no domínio da fala-em-interação, a
auto-localização e/ou a localização de outrem no espaço físico interacional é um processo
dinâmico, que pode assumir o caráter de uma perspectiva, incluindo e dependendo de
relações diversas, construídas entre os participantes, pelos participantes, para os fins
práticos da atividade desenvolvida.
193
O caráter eventual, não-categórico, da oposição interior da sala vs exterior
da sala, enquanto um critério instaurador de assimetrias interacionais, pode ser observado
no Extrato 31.
Extrato 31 (1.965-1.988 seg.) (32’45’’-33’08’’) (23 seg.)
1 ( ss[ssssssssssssssssssssssssssss[sssssssssssssssssssssssss)
2 Clara [ei gente\ (psssiu) (.) ei\ peraí\
3 LA [ei [gente dê licença aí\
4 ? [(pa pa pa) ((palmas))
5 ? [(pssssssssiu)
6 ?LC [quem enricou foi você\ que nem- que pode ser (?eu)]
7 H1 (x[x)
8 H2 [foi- er^issâí
9 ?LA [faz ele (xx)\
10 H3 [muda isso\ Lucas\
11 H4 quem é que vai se
12 (x[x)/
13 Clara [<porque é que você- (.) (psiu) pra que é que faz igual na Unidade/&
14 <((olhando para LA))
15 Clara &lá paga três reais\ a Associação\ (x[xxxx) pronto\>
16 H5 [três reais [é muito caro
17 LA [ago::ra < ago::ra>
18 <((baixo))>
19 ((H conversa com Clara. Ela fala algo não captado pelo registro
20 e repete o gesto que fez quando disse: pronto\))
21 ZL cê mandou risCAR seu nome na caderneta\
Desde alguns momentos anteriores ao trecho transcrito no Extrato 31, os
participantes da reunião estão discutindo diretrizes para a organização da Associação,
na gestão que está iniciando. Um dos aspectos discutidos diz respeito a taxas a serem
pagas pelos associados, conforme já tratamos nas análises dos Extratos 25 e 27.
Já era praxe os sócios da Associação pagarem uma taxa mensal. A proposta
de uma taxa extra, para cada uso específico de algum equipamento agrícola da
Associação, provocou questionamentos quanto à necessidade ou legitimidade ou
conveniência dessa taxa extra. Os ânimos estão tensos. Explicações sobre as
finalidades de cada uma das taxas são fornecidas. Alegando direitos, um participante
retoma o questionamento das taxas. Os direitos desse participante são, por sua vez,
questionados. A finalidade da taxa mensal é novamente explicada.
194
Em um contexto, portanto, de muita tensão, Clara está posicionada de pé, no
exterior da sala. Ela tem acesso aos procedimentos dos participantes através de uma
das janelas do recinto. Alguns estão fora do seu campo de visão. Ela própria está fora da
visão de muitos membros. Em um momento em que muitas falas são produzidas
simultaneamente, Clara auto-seleciona-se e toma o turno. Ela realiza 4 tentativas para
manter consigo o turno tomado, intercaladas por uma pausa curta (Linha 2, (1ª tentativa)
ei gente\ (2ª) (psssiu) (.) (3ª) ei\ (4ª) peraí\). Ela exibe a sua auto-categorização como
participante legítima quando exerce o direito de tomar o turno. Assim auto-categorizada,
ela olha para Laura (Linha 14), selecionando-a como sua interlocutora. Diante do
problema das taxas, ela propõe, então, uma taxa única com um valor que excede os
valores somados da taxa fixa e da taxa eventual (Linhas 13 e 15, porque é que você-
(.) (psiu) pra que é que faz igual na Unidade/ lá paga três reais\ a Associação\ (xxxxx)
pronto\). Clara avalia a solução por ela proposta como algo relativamente simples
(pronto\). O fato de estar fora da sala não foi tratado por ela como um critério de auto-
exclusão do direito de participar ativamente do evento, de propor soluções para os
problemas tematizados.
O participante H5 sobrepõe seu turno nos instantes finais do turno de Clara.
Ele retoma o valor sugerido e o qualifica (Linha 16, três reais é muito caro). Com o seu
turno, H5, simultaneamente, aceitou a auto-categorização de Clara como participante
legítima da interação, categorizou-a como participante legítima e rejeitou sua proposta.
O fato de estar fora da sala, portanto, também não foi tratado por H5 como um critério
de exclusão do direito de Clara de participar ativamente do evento.
A proposta de uma taxa única, feita por Clara, além de situar-se acima do
poder de pagamento dos participantes, possivelmente implicaria desvantagens para
sócios que demandam pouco uso dos equipamentos da Associação. Apesar disso, o
fato de situar-se fora da sala também não foi invocado pelos demais participantes para
construir uma ilegitimidade dela, mesmo considerando que sua proposta poderia suscitar
um acionamento ad hoc desse critério.
O procedimento dos demais participantes de não retomar a proposta de
Clara nem invocar a sua ilegitimidade implica que eles aceitaram a auto-categorização
dela, aceitaram a categorização a ela atribuída por H5, compreenderam a qualificação
de H5 (Linha 16, três reais é muito caro) como uma rejeição da proposta e aceitaram e/
ou endossaram essa rejeição projetada por H5.
Clara seleciona Laura para o próximo turno, através do olhar (Linhas 14).
Contudo, o turno realizado por Laura não estabelece um par adjacente com o turno de
Clara. Ao invés disso, Laura tenta introduzir um novo tópico (Linha 17, ago::ra ago::ra).
Essa tentativa, por sua vez, é frustrada por Zé Luís, que se auto-seleciona, toma o
turno e reafirma o questionamento dos direitos do participante que criticara as taxas
(Linha 21, cê mandou risCAR seu nome na caderneta\).
195
Nos turnos que se seguem e ao longo da reunião, outros participantes não
retomam ou reformulam o turno de Clara. A proposta foi, portanto, abandonada. Mas a
legitimidade da participante localizada no exterior da sala não foi questionada, o critério
interior da sala vs exterior da sala não foi acionado.
Os participantes da reunião da Associação dos Moradores dos Tipis parecem
agir a partir de uma inteligibilidade de critérios que co-constroem e aplicam às
circunstâncias do fluxo interativo. Eles não parecem atuar em termos de um consenso
normativo superestimado. Os critérios pelos quais se orientam não são previamente
definidos nem se mantêm uniformes ao longo da interação. Os participantes configuram
esses critérios quando vários fatores se conjugam. De ordens diversas, esses fatores
podem dizer respeito, por exemplo, tanto ao espaço físico das interações quanto a
algum interesse relativo à política local do evento. Critérios desse tipo são formulados
em um momento oportuno para a sua aplicação. Como uma incorporação
comportamental, eles são mantidos somente enquanto continuam favoráveis à interação
em co-construção ou continuam compatíveis com ela. A formulação e a implementação
desses critérios alteram-se quando se alteram os fatores diversos que estão no jogo
interacional. Eles são propostos para todos os fins práticos da interação. São critérios
ad hoc.
6.5 Instaurando a Reunião da Associação dos Moradores dos Tipis: a Emergên-
cia do Evento, na Ação
A recursividade das ações sociais favorece que circulemos no meio social
com impressões de estabilidade. Essas impressões, por sua vez, podem propiciar
uma interpretação de que os objetos construídos nas redes de conversações das quais
participamos são objetos pré-dados e independentes de sua distinção por nossos
processos cognitivos. No entanto, consoante a perspectiva teórico-analítica que aqui
adotamos, esses objetos são instaurados interacionalmente, pelos particiantes das
ações efetivas, conforme sugerem as análises das Seções anteriores. O próprio objeto
específico reunião da Associação de Moradores dos Tipis aqui analisado é um exemplo
marcante desse processo, como veremos a seguir.
A análise de interações ocorridas no início do registro permitiu observarmos
que a atenção dos participantes orientou-se inicialmente para atividades divergentes.
Vimos também que a situação social da reunião vinha sendo tecida pelo coletivo de
habitantes dos Tipis. Assim, em um dado momento do evento registrado, através de
procedimentos locais, os participantes passam a se engajar em atividades interacionais
que se caracterizam como tentativas de fazer convergir a orientação dos indivíduos
196
para uma atividade coletivamente comum. Desse modo, ao longo dessas atividades,
emergem aspectos estruturantes do objeto específico reunião, de modo a distingui-lo
de outros eventos de comunicação realizados por alguns habitantes dos Tipis, nesse
mesmo encontro social. Tal emergência pode ser observada nos Extratos 22, 32 e 33,
13 e 34, a seguir.
Extrato 22 (266-300 Seg.) (4’26’’-5’00’’) (34 seg.)
1 (ss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 [HÁ[HÁ HÁ há há há ((riso; 3 seg. de duração))
3 [(ssssssssssssssssssssssssssss[ss) ((17 seg. de duração))
4 LA [vamo/ Lu\
5 (ss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
6 LA [bom gente vamo::s [<né:: rezar um pouquin:: (0.4)&
7 <((participantes começam a ficar de pé))
8 H [e::i Jasão\
9 LA &[<que o e- Divino Espírito San:to (0.2) &
10 [(in an) ((arrastado de móvel))
11 <((movimento da câmera para fora da sala, para a janela))
12 LA & nos ilumi:ne\ nessa nossa nova caminha:da\
13 ? (xx)=
14 H =Dedé/
15 LA quem é que comanda/
16 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
No Extrato 22, os participantes estão atuando como conversadores e
confirmando suas relações sociais, o que pode ser observado em procedimentos como
a sobreposição de falas (Linhas 1 e 3) e o riso (Linha 2). Esses afazeres são comuns
em interações de caráter mais informal. Após 4 minutos e 45 segundos do início do
registro (285 seg.), Laura, a nova Presidente da Associação, toma o turno e o produz
com uma forma verbal no plural e um vocativo, convocando a colega para uma atividade
conjunta convergente (Linha 4, vamo/ Lu\). A articulação de aspectos contextuais
diversos – a situação social historicamente definida daquele encontro, a presença, no
recinto, de diversos membros da comunidade dos Tipis, o trabalho por eles efetuado
para criar condições para um tipo particular de interação e, simultaneamente, a atuação
polifônica, divergente, dos participantes, conforme pudemos ver anteriormente –
sugerem que a ação de Laura articula-se com os afazeres dos outros participantes na
perspectiva de provocar um engajamento de todos em uma orientação coletiva. Trata-
se da primeira tentativa de iniciar a reunião.
197
De acordo com as ações que os demais participantes desencadeiam
imediatamente após a fala de Laura, eles não se orientam através da indicação de
instaurar, naquele momento, o objeto reunião. Por mais alguns segundos, os
participantes continuam a produzir falas simultâneas (Linha 5). Podemos dizer, então,
pelas atividades exibidas, que o convite de Laura para uma atividade coletiva específica
não foi aceito automática e imediatamente. A primeira tentativa de iniciar a reunião não
foi bem sucedida
A atividade subseqüente de Laura, com a fala das Linhas 6, 9 e 12 (bom
gente\ vamo::s né:: rezar um pouquin::\ (0.4)) que o e- Divino Espírito San:to (0.2)
nos ilumi:ne\ nessa nossa nova caminha:da\) configura o seu segundo procedimento
com vistas à constituição do objeto reunião. Com o marcador bom gente, Laura atua
sua compreensão de que os demais participantes não aderiram ao convite formulado
na Linha 4 (vamo/ Lu\). Então, ela retoma a forma verbal empregada na primeira
tentativa (vamo::s) e formula a sua segunda tentativa de iniciar a reunião. Ela o faz
tentando levar os participantes a realizarem um procedimento ritualizado e coletivo
(vamos rezar), para marcar o início da nova administração, explicitado lexicalmente
como uma nova caminhada. Nessa tentativa, os alongamentos vocálicos (vamo::s;
né:: e pouquin::) e as pausas (0.4 e 0.2) são parte da compreensão de Laura daquilo
que ela própria e os demais participantes estão fazendo. Esses afazeres projetam
justamente a possibilidade de os participantes não se engajarem, naquele momento,
na atividade coletiva em construção.
Embora se tenham colocado de pé, os participantes não suspendem efetiva
e imediatamente as atividades em que estão momentaneamente envolvidos, como a
acomodação no espaço físico (Linha 10) e as conversas divergentes (Linha 13, ((xx));
Linha 14, Dedé/) e simultâneas (Linha 16). Com efeito, enquanto operador da câmera,
ainda não estou adequadamente localizado, como sugere o movimento no foco da
filmagem (Linha 11). Por sua vez, na Linha 15 (quem é que comanda/), Laura projeta a
primeira parte de um par adjacente do tipo questão-resposta, voltada para uma definição
do participante que irá dirigir a reunião. A sobreposição de falas (Linha 16) não permite
analisar se um outro participante complementou, com uma segunda parte do par
adjacente, a projeção iniciada por Laura. No entanto, esse seu turno (Linha 15) sinaliza
que ela própria parece não estar pronta para iniciar a atividade reunião, assim como
também não estão os demais participantes.
Como conseqüência desses comportamentos, a atividade formulada no
convite de Laura (Linhas 6,9 e 12) não foi entabulada e o objeto reunião não foi
instaurado. A segunda tentativa de iniciar a reunião não obteve sucesso.
Vejamos agora o Extrato 32.
198
Extrato 32 (300-341 Seg.) (5’00’’-5’41’’) (41 seg.)
1 ((foco da câmera em movimento))
2 LA (it ex pei) de unçã:o\ (0.31)
3 COLenchei os braços dos vossos fié:s\
4 e acendei neles [o fogo do <vosso amo[r \&
5 <((foco da câmera sobre LA, de pé))
6 CR1 [ó ó (x[x)
7 CR2 [cala a bo:ca macho (xx)\
8 COL&enviai senhor o vosso espírito\&
9 [((o foco se estabilza em LA, de pé))
10 COL&e tudo será criado\ e renovareis a face da Terra\ oremos\ (.)
11 deus\ que instruíste [os corações dos vossos fiéis\ &
12 CR [(xx)
13 COL& com a^ajuda dos^Espírit[o Santo\ fazei que apreci[emos&
14 CR [(xx)
15 CR [(xx
16 COL&retamente todas as [ coisas\ segundo os mesmo espírito\&
17 CR [(xx
18 M [ei meni[no
19 CR [(xx)
20 COL&e desenvolvendo sempre suas consolações\
21 por Cri[sto Senhor no[sso ([..) amém\
22 M? [o Leo/
23 H? [tá ali
24 ((participantes começam a se sentar))
25 M cadê a comida/
26 (sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
No Extrato 32, estou me movimentando pelo lado externo da sala, buscando
um ponto em uma janela, de onde farei o registro desse trecho (Linha1). Laura lança
mão da sua terceira tentativa de constituir o objeto reunião. Com a fala da Linha 2 (it
ex pei) de unçã:o\ (0.31)) ela não mais elicita uma forma verbal que explicite um
convite para iniciar a atividade pretendida. Agora ela lança mão de um procedimento
ritualizado e mais direto – o proferimento do trecho inicial de uma oração –, com uma
expressão mista de vocábulos em Latim, possivelmente, e de vocábulos em
Português. A pausa curta constitui um momento oportuno para uma adesão imediata
de boa parte dos participantes para uma produção coletiva da oração (Linhas 3, 4, 8,
10, 11, 13, 16, 20, 21).
199
Nem todos os participantes, no entanto, aderem a esse procedimento. Alguns
segundos depois do início da reza coletiva ainda busco uma estabilização do foco da
filmadora (Linha 9) e as crianças CR estão em plena atividade conversacional, com
troca de turnos curtos (Linha 6, ó ó (xx) e Linhas 12, 14, 15, 17, 19, todas com trechos
inaudíveis). Um adulto (Linha 18, ei menino) e uma das crianças (Linha 7, cala a boca
macho (xx)) tentam impedir esses movimentos interacionais paralelos.
Antes mesmo do final da enunciação coletiva, os participantes retomam
suas atividades conversacionais divergentes (Linhas 22 e 23). Eles começam então
a se sentar (Linha 24), mas a projeção, por parte de M, de uma primeira parte de
um par adjacente do tipo questão-resposta não diz respeito exatamente ao que
seria um tópico de uma pauta de uma reunião (Linha 25, cadê a comida/). Mais
uma vez a reunião não é instaurada. A profusão de falas (Linha 26) não torna
observável, para o analista, uma possível segunda parte do par adjacente questão-
resposta projetado por M.
Extrato 33 (342-368 Seg.) (5’42’’-6’08’’) (26 seg.)
1 (ss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 OP [<ei (1.00) tu arranj^esse lugar pra mim [(xx) filmar daqui\&
3 <((baixo))>
4 LC [EI\ (.) senta aí\
5 OP &tu arran[ja/>
6 LC [EI\ senta aí\
7 (ssssss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
8 H1 [tem mais cadeira não\
9 (sssssssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
10 H2 [e:i Roberto\ senta aí: Roberto\
11 (ssssss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
12 OP [não\ pode ficar\ aqui já dá\ aqui já ta bom\
13 LA Bet^é o vice\ né/
14 OP não\ pode deixa:r\ (.) né/
15 ((participantes entram na sala))
16 H1 tem uma cadeira aí (xx)\
17 (ss[ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
18 M1 [eu acho que nessa sala aí ainda tem cadeira (x[x)\
19 M2 [se senta aí (João)\
19 (sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
200
No Extrato 33, em meio a uma profusão de falas (Linha 1), enquanto atuo
como operador, constituo-me como interlocutor, ainda tentando acomodar-me no espaço
físico (Linhas 2 e 5, ei (1.00) tu arranj^esse lugar pra mim (xx) filmar daqui\ tu arranja/
e Linhas 12 e 14, não\ pode ficar\ aqui já dá\ aqui já ta bom\ não\ pode deixa:r\(.) né/
). Há ainda outros participantes engajados na acomodação dos indivíduos na sala,
como podemos ver na Linha 4 (EI\ (.) senta aí\), Linha 6 (EI\ senta aí\), Linha 8 (tem
mais cadeira não\), Linha 10 (e:i Roberto\ senta aí: Roberto\) e Linha 19 (se senta aí
(João)\). Mesmo Laura, que ativamente propõe o início da reunião, efetivamente não o
faz. De fato, ela ainda busca elementos que possivelmente ajudá-la-ão a ‘comandar a
reunião (Linha 13, Bet^é o vice\ né/). Além de falantes simultâneos (Linhas 7, 9, 11, 17
e 19), há participantes interessados nas condições para a acomodação dos outros
(Linha 16, tem uma cadeira aí (xx)\) e Linha 18, eu acho que nessa sala aí ainda tem
cadeira (xx)\)
Com esses procedimentos, todos os participantes estão atuando em um
modo de gerar e gerenciar suas trocas de turno diferente do modo como estamos
acostumados a ver em uma reunião. Outros procedimentos observáveis nas tentativas
subseqüentes de configurar a reunião também corroboram esta análise, como podemos
ver no Extrato 13.
Extrato 13 (404-420 Seg.) (6’44’’-7’00’’) (13 seg.)
1 LA ó gente\ (2.[60)&
2 H1 [aí
3 H2 bora escutar\
4 (ss[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
5 LA [bom em primeiro lugar boa noite a to:dos\ (1.[80)&
6 COL [boa noite\
7 &é:: (0.9[5) ho::je: \ (3.[82)
8 M1 [senta Renato\ (xx)\
9 RE [sentar aonde/
10 ((H inicia um deslocamento na sala))
11 ? (pssiu)
12 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
13 LC é vê [mnn\ tem pra todo mun[do\
14 LA [ho::je
15 ? [(ps[sssssssssssssss]siu)
16 M2 [<tem cadeira não\>]
17 <((H senta na primeira fila))>
18 (ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
201
No Extrato13, na quarta tentativa de configurar o objeto reunião, Laura
tenta chamar a atenção dos participantes (Linha 1, ó gente\ (2.60)). Todavia, no
ensejo de uma longa pausa, alguns participantes ainda atuam em conversas
divergentes (Linha 2, ).
Um participante procura chamar a atenção dos demais para uma atividade
convergente (Linha 3, bora escutar\), realizando o quinto procedimento para iniciar a
reunião. As falas indistintas (Linha 4), no entanto, evidenciam que essa quinta tentativa
não foi bem sucedida.
Então, em uma sexta tentativa, Laura produz o turno da Linha 5 (bom em
primeiro lugar boa noite a to:dos\ (1.80)). Ela simultaneamente sinaliza o fracasso da
tentativa anterior e tenta mais uma vez chamar a atenção dos participantes (bom).
Encadeia uma expressão (em primeiro lugar) que, pragmaticamente, assume o status
de um marcador para iniciar a reunião. Essa expressão não tem o valor de um item de
um dicionário, previamente estabelecido. Com efeito, aquela não era a primeira atividade
daquele encontro social, muitas outras haviam ocorrido antes, inclusive as tentativas
de fazer convergir a orientação do coletivo. Também a expressão boa noite a todos
configura-se pragmaticamente como mais uma tentativa de instaurar a atividade
interativa específica reunião. Essa tentativa é produzida através da busca de uma
adesão coletiva, configurada como resposta ao cumprimento. Cumprimentos
corriqueiros já haviam sido formulados, com suas peculiaridades, à medida em que os
participantes iam chegando ao recinto, conforme vimos anteriormente. Com isso,
compreendemos que o que está jogo, nesse momento, não é apenas uma atividade
corriqueira de cumprimentar, mas uma tentativa de começar a reunião.
A longa pausa (1.80) que Laura faz no seu turno produz, de fato, um
engajamento que poderia vir a constituir uma possível mudança de disposição dos
participantes para que uma nova atividade interativo-conversacional tivesse início. Os
participantes se engajam em uma resposta coletiva ao cumprimento (Linha 6, boa
noite\). No entanto, o cenário ainda não está ‘pronto’ para a reunião: a resposta coletiva
ao cumprimento não estabeleceu as condições para o início da reunião.
Na Linha 7 (é:: (0.95) ho::je: (3. 82)), o alongamento vocálico de Laura sugere
a sua compreensão dessa característica do momento interacional. Então ela realiza a
sétima tentativa de iniciar a reunião. Contudo, na oportunidade das pausas dessa fala,
podemos observar que os participantes ainda não estão efetivamente acomodados e
continuam lidando com suas necessidades de distribuição dos indivíduos no espaço
físico da sala (Linha 8, senta Renato\ (xx)\; Linha 9, sentar aonde/; Linha 10).
Estabelecer uma configuração diferenciada no tipo de interação que estão
levando a cabo não é um interesse individual de Laura. Trata-se de um trabalho coletivo,
como indica a solicitação, por parte de outro participante, de um ordenamento do tipo
fala um de cada vez, observável na Linha 11 ((pssiu)). Essa participação pode ser
202
entendida como a oitava tentativa de começar a reunião. Todavia, falas simultâneas ainda
são produzidas (Linha 12), adiando o surgimento de um objeto que está sendo trazido à
mão como resultado do esforço coletivo dos participantes do evento para convergirem
em uma orientação coletiva.
Na Linha 13 (é vê mnn\ tem pra todo mundo\), Luís Carlos apressa a
acomodação dos participantes (é vê mnn\), considerando viável a acomodação de
todos no espaço exíguo da sala (tem pra todo mundo\). Laura sobrepõe sua fala à de
Luís Carlos e, com um alongamento vocálico, mais uma vez chama a atenção dos
participantes (Linha 14. ho::je:). Esse afazer coincide com o nono procedimento para
configurar a reunião.
A nona tentativa projetada por Laura foi infrutífera. Demonstra-o uma outra
sobreposição, ainda sobre o mesmo turno de Luís Carlos. Nela, um outro participante
sugere, de novo, um ordenamento do tipo fala um de cada vez, parecendo exibir para
os demais a necessidade de se adotar uma disposição particular que constitua o objeto
reunião. A retomada dessa sugestão se dá agora de modo incisivo, com um assovio
que se prolonga e vai perdendo a intensidade. Com isso esse participante configura a
décima tentativa de iniciar reunião (Linha 15, (pssiu)). Mas é a acomodação dos
participantes aquilo que ainda está prendendo a atenção de M2 (Linha 16, tem cadeira
não\). Efetivamente a acomodação é a atividade do participante H (Linha 17). A profusão
de falas (Linha 18) e os procedimentos seguintes indicam que a décima tentativa de
iniciar a reunião não foi bem sucedida.
Extrato 34 (420-440 Seg.) (7’00’’-7’20’’) (20 seg.)
1 (s[sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss)
2 LA [ho:je: (0.36) va- é:: tá se realizando a primeira
3 <reunião né:\ sobre a nova administração\ da associaçã:o\ (0.46)>&
4 <((H entra com uma cadeira e senta na primeira fila))>
5 LA &e ontem\(0.58)
6 < é:::: eu recebi a posse juntamente com:: os&
7 <((M entra com uma cadeira e senta na primeira))>
8 LA &outros membros da diretoria\ da associaçã:o\> (0.41)
9 e:: quero falar pra vocês\ (0.36)\ que eu entrei\ (0.44)\ num foi&
No Extrato 34, na Linha 2 (ho:je: (0.36) va- é:: tá se realizando a primeira
reunião né:\ sobre a nova administração\ da associaçã:o\ (0.46)), na décima primeira
tentativa de iniciar a reunião, Laura retoma o turno, com o mesmo item lexical do turno
da Linha 14, Extrato 13. Essa retomada, porém, exibe um alongamento vocálico menor,
diferenciado do primeiro. Tal alongamento e a pausa ocorrem em um momento
culminante para a negociação que vem sendo levada a termo.
203
Não há condições idealizadas para o início da reunião. Ocorrem falas
simultâneas, audíveis sobretudo nas pausas produzidas por Laura. Alguns participantes
ainda se estão acomodando no recinto (Linhas 4 e 7). Mesmo assim, Laura entabula
um turno mais longo do que os outros até então produzidos e os procedimentos dos
participantes indicam uma sutil mudança de qualidade nos seus afazeres, que passam
a se voltar para uma organização da Associação de Moradores. Conforme as análises
de outros trechos do registro, ainda serão observáveis, ao longo do evento, muitas
sobreposições e conversas paralelas ou divergentes, relativamente a um certo tópico
em andamento. No entanto, boa parte dos participantes passam a se engajar em
atividades que se orientam em torno do que seria uma pauta comum. Está configurada
a reunião.
As tentativas de configurar o evento específico reunião, apesar de ocorrerem
em um curto intervalo de 2 minutos e 14 segundos, indicam o caráter dinâmico dessa
especificação, bem como o caráter local de cada uma dessas tentativas. Com efeito,
cada uma delas emerge de condições contextuais particulares de cada momento
seqüencial. Uma a uma, elas vão sendo negociadas no desenrolar da interação, de modo
retrospectivo e prospectivo quanto ao fluxo mesmo da interação, não sendo indicadas
por algo independente da seqüencialidade temporal da atividade.
Observando o fluxo temporal e espacial dos participantes da atividade
interativa, vemos o engajamento em negociações que resultam em uma especialização
de convergência. Os participantes passam, paulatinamente, de atividades tematicamente
mais diversificadas, nas quais estão envolvidos vários pequenos grupos, para uma
conduta de caráter mais coletivo. Inicialmente dispersa entre atividades diversas, a
atenção do grupo converge em torno de uma atividade central. Assim, as tentativas de
começar a atividade específica reunião são descritas como procedimentos ou métodos
pelos quais os participantes constroem uma atenção conjunta. Desse ponto de vista
procedural, as delimitações daquilo que os participantes estruturam como a atividade
reunião são marcadas por disposições especificadas pelos participantes durante o
próprio evento. Observamos, pois, o ajuste de condutas recíprocas, que convergem ao
longo da interação e que, através de regulações locais, se auto-organizam em direção a
uma conduta finamente ordenada, passível de ser reconhecida como sendo uma reunião.
É na atividade interacional que os participantes trazem à mão, negociam, reconstroem e
estabilizam provisoriamente, uns para os outros, as distinções que fazem e as disposições
corporais que vão adotando ao longo do processo em que se orientam em direção à
atividade reunião. O evento reunião é, pois, co-construído no desenrolar da interação.
204
CONCLUSÃO
Nesta investigação, a partir de reflexões formuladas por diversos pensadores
interessados na fenomenologia humana, concebi a linguagem como uma ação social,
inteligível e emergente, situada em, e contingente com, práticas sócio-culturais e cognitivas.
Tal concepção foi movimentada em uma prática de campo vivenciada junto à comunidade
dos Tipis, no sertão rural do Ceará e foi também a partir dessa prática que movimentei
essa concepção nesta tese.
Com esse modo de olhar, fiz-me observador de uma multiplicidade de
correlações associadas aos modos de viver dessa coletividade, levando em conta
também modos de viver de outros grupos com os quais ela interagiu e/ou interage. A
partir desse observar, avaliei não ser interessante enquadrar a comunidade dos Tipis em
rótulos rígidos, por exemplo, quanto a uma afiliação étnica específica. Com efeito, nas
ações cotidianas dessa comunidade distinguimos padrões históricos de ações
comunicativas recursivas, passíveis de serem correlacionadas com práticas histórico-
culturais, também recursivas, de índios, brancos e negros. Mas vimos essas ações
cotidianas indexadas à história das redes de conversação dessa coletividade. Ao mesmo
tempo vimos também que cada uma dessas ações torna-se única em função da sua
inescapável dimensão situada e endógena.
O meu olhar sobre a comunidade dos Tipis também não a enquadrou
exclusivamente em um ou outro pólo de uma dicotomia do tipo urbano vs rural.
Destacamos nas suas interações sócio-culturais nexos diversos entre o local e o não-
local, continuamente formulados e reformulados sob diferentes configurações. Por um
lado, componentes de um conjunto de práticas aportam ao viver dessa comunidade
preocupações e valores configurados, dentre outras relações, a partir de restritas
possibilidades locais na implementação de amplas expectativas globais. Por outro lado,
outros componentes desse mesmo conjunto atuam na constituição de um viver tagarela,
marcado pela abundância de atividades lingüístico-interacionais das quais participam
indivíduos altamente integrados.
Pudemos ver que certas interações entre os habitantes dos Tipis, ao mesmo
tempo em que suscitam questões de carência, necessidade e vulnerabilidade,
configuraram-se como iniciativas providenciais e, ao seu modo, respeitosas e carinhosas.
Ancoradas em um freqüente conversar e no conhecimento individualizado que cada
membro da comunidade tem do outro, essas iniciativas coletivistas parecem minimizar,
pelo menos ao modo relativo do meu olhar, a importância e a eficácia de ações de caráter
mais individualista.
A intensidade e a densidade do trato interpessoal e afetivo nos Tipis emergiram
associadas a teias de parentesco, uma proximidade invocada ali como um fio a costurar
um sentido societário, em momentos nos quais o apelo a uma identidade coletiva concorre
205
para legitimar certas interações. A dinâmica, a relevância e as conseqüências de um
viver negociado e cooperativo fizeram-se presentes em densas teias de inter-relações
pessoais e a conversa e as negociações caracterizaram-se como os mecanismos centrais
da vida social, da socialização, da manutenção da ordem ali co-construída. Práticas
solidárias e decorrentes de um conhecimento mútuo pareceram constituir o próprio ato
de tecer, costurar, cerzir o tecido social dos Tipis.
Vimos que a principal qualidade do viver nos Tipis reside, por assim dizer, em
cada casa ao lado. E, como disse anteriormente, ali, cada casa é geralmente uma casa
ao lado. Ouvimos um disse-me-disse cotidiano sem mesuras refinadas. Com efeito, o
freqüente conversar desses indivíduos pode explodir em bate-bocas barulhentos e
também passageiros, ou em atuações que encerram um recíproco respeito humano –
por si mesmo e pelo outro. Em uma comunidade com modos de viver que se mostram
simples à primeira vista mas que são configurados em inter-relações sócio-culturais,
cognitivas e lingüísticas complexas, a dinâmica, a relevância e as conseqüências dos
elos interacionais foram trazidas à mão de maneiras contundentes, iradas e hilárias, em
uma palavra: vivazes.
Ao associarmos a outras práticas dos Tipis a pequena quantidade de
habitantes, o seu proverbial bom humor e uma eficiente comunicação boca a boca,
compusemos um quadro segundo o qual os moradores dos Tipis estão ‘reunidos’
praticamente o tempo todo. Assim, nesta tese apresentei particularmente uma análise
conversacional de procedimentos através dos quais os interactantes desenvolvem seu
campo interacional, tornando inteligíveis e públicos objetos de discurso co-construídos
em uma reunião da Associação de Moradores do lugar.
Tal evento coincidiu com o início de uma nova gestão da Associação. Assim,
indivíduos com uma história de conhecimento mútuo elaboraram a situação social da
reunião a partir de sua experiência histórica com esse tipo de atividade, como também a
partir da necessidade de organizar coletivamente sua “nova caminhada”.
A dinâmica local do evento colocou desafios interacionais também locais,
exibindo aspectos históricos e emergentes de sua experiência sócio-cultural e aspectos
genéricos e específicos de uma atividade particular de troca de fala – a reunião.
Correlacionando tais aspectos, esses indivíduos fizeram emergir particularidades das
unidades formais da fala-em-interação – o sistema de troca de turnos, as organizações
seqüenciais geradoras de pares adjacentes, os reparos.
O status interacional dos participantes foi se configurando à medida em que
certos afazeres iam sendo desenvolvidos – por exemplo, a operação da câmera; a reação
dos demais participantes a essa operação; os deslocamentos do operador e dos outros
participantes no espaço físico do evento; as trocas de fala entre eles, as formulações,
reformulações, tomadas e retomadas dos objetos da interação, neles inclusos os próprios
participantes. Pudemos ver, por exemplo, que o meu status interacional de operador não
206
se manteve uniforme, ao longo do evento, embora tenha sido constante a ação de operar
a câmera. Isto corrobora a idéia de que, na interação, uma condição atribuída a um
participante não é um objeto pré-existente à ação social que assim o constitui. Sugere
também que essa condição tampouco subsiste ad infinutum aos movimentos
interacionais particulares da sua configuração. Em certos momentos, as ações de um
participante podem não ser observáveis em termos das ações responsivas de outros
participantes. Decorre daí concluirmos que a categorização de um indivíduo como um
certo tipo de participante de uma atividade social não releva da consideração isolada de
supostas propriedades intrínsecas, essenciais, ou de uma observável propriedade
acessória, momentânea, desse indivíduo. O status interacional de um interactante releva
das relações de suas ações com as ações de outros interactantes. Essas relações variam
nos momentos diversos de uma atividade sócio-cultural e lingüística.
O minuncioso trabalho de coordenação de falas concordantes e discordantes
que pudemos divisar na análise conversacional aqui desenvolvida exibe:
a) a atenção e a escuta dos participantes, relativamente àquilo que os outros
estão fazendo a cada momento;
b) uma reespecificação contínua do sentido do que está sendo dito;
c) uma coordenação na atuação de recursos procedurais, por exemplo, o
gesto de ficar de pé, para o desenvolvimento do campo interacional.
Na reunião da Associação dos Moradores analisada, vimos, com efeito, que
estar sentado ou em pé e/ou a implementação dos gestos de sentar, levantar, permanecer
sentado ou de pé correlacionam-se com a história interacional desses indivíduos. Assim,
pudemos inferir padrões históricos de polidez manifestos em uma preocupação com a
acomodação e com a comodidade dos participantes. Esses gestos também foram
atuados como recursos localmente configurados para a resolução de problemas situados
na emergência da ordem interacional. Com esses procedimentos, na efetividade de suas
interações, os participantes:
a) chamaram a atenção dos outros;
b) mantiveram essa atenção;
c) tomaram o turno;
d) garantiram a sua posse;
e) geraram assimetrias interacionais;
f) formularam e reformularam o seu status interacional;
g) sinalizaram tensões observáveis em momentos interacionais específicos;
h) sinalizaram uma saturação do evento, indicando que a reunião deveria ser
finalizada ou estaria para sê-lo.
207
Vimos o caráter dinâmico e local de cada uma das tentativas de configurar o
objeto específico reunião. Com efeito, cada tentativa emergiu de condições contextuais
particulares ao seu momento seqüencial. Cada uma foi formulada, negociada,
reestruturada, no desenrolar da interação, de modo retrospectivo e prospectivo quanto
ao fluxo mesmo da interação, não sendo indicada por algo independente da
seqüencialidade temporal da atividade.
Olhando para o fluxo dos participantes da atividade, divisamos um
engajamento em desenvolver o campo interacional que resultou em uma especialização
de convergência. Os participantes passaram, paulatinamente, de atividades mais
localizadas e diversas para uma conduta de caráter mais coletivo. Inicialmente dispersa
entre várias atividades locais, a atenção do grupo convergiu em torno de uma atividade
central. A despeito das falas simultâneas estarem presentes ao longo de praticamente
toda a atividade, arrefecendo apenas em alguns raros momentos, os participantes
efetivaram uma mudança de qualidade nas interconexões dos seus turnos, associada a
uma convergência temática e a uma especialização de procedimentos de coordenação
de ações.
Vimos as tentativas de caracterizar a atividade específica reunião como
procedimentos ou métodos pelos quais os participantes construíram uma atenção con-
junta. Desse ponto de vista procedural, as delimitações daquilo que os participantes
estruturaram como o momento anterior à reunião e a atividade reunião foram marcadas
pelas disposições especificadas por eles próprios no fluxo do evento. Na análise do
registro, destacamos, pois, o ajuste de condutas recíprocas, que convergiram ao longo
da interação e que, através de regulações locais, se auto-organizaram em direção a
uma conduta ordenada, passível de ser reconhecida constitutivamente como sendo
uma reunião.
Pudemos observar que foi na atividade interacional que os participantes
trouxeram à mão, negociaram, reconstruíram e estabilizaram, provisoriamente, uns para
os outros, as distinções que fizeram e as disposições corporais que foram adotando ao
longo do processo em que se orientaram em direção a uma atividade particular. O objeto
reunião foi, pois, co-construído no desenrolar da interação.
Os participantes da reunião da Associação dos Moradores dos Tipis agiram
a partir de uma inteligibilidade de critérios co-construídos, sensíveis às circunstâncias do
fluxo interativo. Eles não atuaram em termos de um consenso normativo superestimado.
Os critérios pelos quais se orientaram não foram previamente definidos nem se
mantiveram uniformes ao longo da interação. Eles configuraram esses critérios na
conjugação de vários fatores de ordens diversas. Atuaram nessa configuração, por
exemplo, o momento estrutural dos indivíduos, suas emoções – suas disposições corporais
para a ação, como também suas interrelações com outros objetos do meio. Exemplos
dessa conjugação, vimos ocorrer nos jogos das minhas emergências como interlocutor-
208
pesquisador-operador de uma filmadora ou na atuação finamente coordenada dos
participantes que conduziram um companheiro na atividade de distinção da filma-
gem do evento. O espaço físico das interações foi um outro fator dinâmico a atuar
nos critérios de orientação dos participantes da reunião e, reflexivamente, a ser mol-
dado por esses critérios. Interesses relativos à política local do evento também foram
dinamicamente acionados.
Esses critérios foram formulados em momentos oportunos para tal. Como
uma incorporação comportamental, eles foram mantidos somente enquanto continuavam
favoráveis à interação em co-construção ou enquanto permaneceram compatíveis com
ela. A sua formulação e implementação alteraram-se quando se alteraram os fatores
diversos do jogo interacional. Eles foram propostos para todos os fins práticos da
interação, como critérios ad hoc.
A riqueza da convivência cotidiana dos moradores dos Tipis, o trabalho alta-
mente coordenado das suas interações e o detalhamento analítico que tanto uma des-
crição etnográfica quanto uma análise conversacional podem desenvolver sugerem
outros e outros olhares para as interações nos Tipis. A título de exemplo: a prática do
cumprimento foi aqui mencionada em termos de formalidade e informalidade, do pro-
longamento ou não de uma atividade interacional e ainda em termos de redundância
ou repetição de procedimentos. Podemos ainda nos perguntar: que outros termos po-
dem estar envolvidos na peculiaridade de cumprimentar ou não, nos Tipis? Como os
participantes procedem para realizar coletivamente essa peculiaridade? Consideran-
do a multimodalidade procedural das nossas ações sócio-culturais e lingüísticas, que
outros procedimentos poderiam ser associados ao comportamento que estou vendo
como algo peculiar? Os registros que produzi nos Tipis fornecem o que seria uma co-
leção desse fenômeno?
Questionamentos e possibilidades de desenvolvimento semelhantes aos que
estou me referindo aplicam-se possivelmente a cada uma das análises aqui produzi-
das, aos aspectos tomados como objeto das análises como também a aspectos que
não abordei. Por exemplo, o mesmo registro da reunião da Associação dos Morado-
res dos Tipis coloca o problema dos mecanismos de decisão: quais os detalhes míni-
mos dos procedimentos através dos quais os participantes da reunião dão por esgota-
da a fase de questionamento das propostas em discussão? Como decidem? Como
“votam”? Como tornam públicos os seus votos? O que sinaliza que uma decisão foi
consumada pelo coletivo?
A conjugação de um olhar etnográfico com um olhar etnometodológico foi
apresentada aqui como um modo interessante de descrevermos inter-relações entre
linguagem, cognição e cultura no conviver da comunidade dos Tipis. Nas suas Notes on
methogology, Harvey Sacks (1984) reflete que “é bem possível que o estudo detalhado
de fenômenos aparentemente mínimos possam produzir uma enorme compreensão da
209
maneira pela qual os humanos fazem o que fazem e do tipo de objetos que utilizam para
construir e ordenar seus afazeres”. Tal especulação tem sido altamente produtiva no
domínio das explicações científicas configurado como a Análise Conversacional de
inspiração etnometodológica e me anima particularmente a prosseguir com as
investigações aqui iniciadas. Considero inegável, mesmo inestimável, a importância e a
necessidade de uma compreensão científica relativamente aos nossos afazeres humanos
interacionais. No entanto, da perspectiva do viver efetivo da coletividade dos Tipis,
conforme uma anciã sabiamente observou a propósito do viver ali, “quando junta um
bocado, fala tudo de uma vez! Mas a gente se entende!”
210
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222
ANEXOS
223
ANEXO 1
MECANISMOS DESCRITIVOS BÁSICOS DA BIOLOGIA DO CONHECER
1
O determinismo estrutural descrito pela Biologia do Conhecer para o viver
dos organismos vivos assinala o operar desses sistemas de acordo com a sua estrutu-
ra, ou seja, de acordo com o jogo das propriedades de seus componentes. As propri-
edades dos componentes do sistema e suas relações é que especificam o que pode
acontecer com a estrutura do sistema. A cada momento da história de um organismo,
as suas mudanças estruturais são estruturalmente determinadas, ou seja, aquilo que
esse organismo pode fazer é relativo às suas possibilidades estruturais.
O fechamento operacional do sistema nervoso, por sua vez, correlaciona-se
com o determinismo estrutural e diz respeito a um funcionamento do sistema segundo o
qual nada proveniente do meio pode especificar o que pode acontecer a esse sistema,
uma vez que somente a estrutura do sistema - as propriedades e relações dos compo-
nentes desse sistema - pode especificar o que pode acontecer com essa estrutura.
O operar do sistema nervoso, portanto, é um operar não-instrutivo e não-
representacional. O sistema nervoso não opera fazendo representações do mundo
que o cerca, mas através do desencadear de mudanças estruturais nas relações de
estados da rede de conexões neuronais. No sistema nervoso, a partir de mudanças
químicas externas, verifica-se uma correlação interna ao organismo entre uma super-
fície sensora e uma superfície efetora. É o estado estrutural desse sistema, e não as
variáveis do meio instrucional, que especifica quais perturbações podem desencadear
mudanças ou transformações em sua dinâmica de correlações internas. As principais
atividades dos cérebros consistem em fazer mudanças de si mesmos. O status de
sistema auto-modificador atribuído ao sistema nervoso diz respeito ao fato de que um
certo estado do sistema determina as possibilidades de quaisquer estados seguintes.
O sistema nervoso funciona como uma rede fechada de mudanças relacionadas com
a atividade de seus componentes.
A plasticidade de cada indivíduo é relativa às possibilidades adaptativas do
sistema nervoso de vertebrados e animais superiores. Essas possibilidades resultam
das contínuas transformações do organismo, inclusive do sistema nervoso,
correlacionadas com transformações do meio, estando relacionada, ainda, à dependên-
cia que cada ato de cognição tem do fechamento operacional dos sistemas nervosos.
A noção de acoplamento estrutural descreve o fluir dos organismos em um
meio com outros organismos, as histórias de interações recorrentes que direcionam a
1
Maturana (1978, 1988a-b,1990a-b, 1995, 1998, 1999a-k, 2001a-b); Maturana & Varela (1972, 1984);
Maturana, Mpodozis & Letelier (1995).
224
congruência dos sistemas. O acoplamento estrutural é o resultado de uma história de
mútuas mudanças estruturais congruentes, que se dá enquanto a unidade autopoiética
e o seu meio não se desintegram.
A reconstrução da história filogenética através de cada história ontogenética
é entendida em termos não-determinísticos ou não-apriorísticos. Assim, a deriva ge-
nética diz respeito à mudança genética que se produz de geração em geração, em
conseqüência da realização do organismo em um fenótipo ontogênico. O genótipo
varia livremente em uma filogenia, no âmbito delimitado pela conservação
transgeracional do fenótipo ontogênico que se conserva.
A deriva ontogenética compreende a história das mudanças estruturais de
um organismo em seu domínio de existência, que segue um curso que se configura
momento a momento, desde que haja conservação da organização e adaptação da
estrutura ao meio. Nesse processo, sistema e circunstância mudam juntos, de modo
que um organismo jamais se encontra fora do seu lugar ou em incongruência com o
meio. Quando isso ocorre, o organismo perde sua organização, desintegra-se, morre.
A deriva filogenética, por sua vez compreende a sucessão reprodutiva de
ontogenias, com ou sem mudança do fenótipo ontogênico que se realiza em cada
ontogenia dessa sucessão. Se, na sucessão de ontogenias, o fenótipo ontogênico se
conserva, forma-se uma linhagem. Se não há uma formação de linhagem, em virtude
de o organismo se reproduzir sob a forma de um novo fenótipo ontogênico, ocorre um
deslizar do fenótipo ontogênico na deriva filogenética.
Cada história ontogenética, pois, singulariza-se, torna-se única em função
de particularidades relativas ao organismo específico e ao fluir desse organismo num
meio também específico quanto aos aspectos físico, cultural, social. Considerando tal
particularidade, fica descartada uma interpretação histórica dos organismos em ter-
mos exclusivos de herança genética e/ou filogenética. A genética, a ontogenia e a
filogenia, apesar de imbricadas, não são determinantes, isoladamente, do vir a ser dos
organismos, que se dá em interações de enorme complexidade.
225
ANEXO 2
REGISTROS OBTIDOS NA COMUNIDADE DOS TIPIS
Total de Arquivos: 33
Duração Total dos Registros: 09:27:17
EudTip V1
Nome do Arquivo
(.mov)
Tamanho
Megabytes
Duração
Min:Seg
Data
Ano 2004
Horário de
Início
do Registro
1. Açude 141,0 03:38 16/Nov Ter 07:02
2. Adelia 127,0 03:13 16/Nov Ter 06:48
3. AntSinh 294,3 07:28 13/Nov Sáb 15:41
4. BombClor 228,5 05:51 08/Nov Seg 17:04
5. Caretinha 157,7 04:02 16/Nov Ter 16:12
6. ColetAgua1 550,3 14:09 14/Out Qui 09:40
7. ColetAgua2 836,7 21:37 04/Nov Qui 11:28
8. LimpDomExt 17,2 00:22 24/Set Sex 16:36
9. Queim 486,1 12:25 21/Out Qui 15:08
10. SinucHom 133,1 03:22 28/Out Qui 10:52
11. SinucMulh 19,3 00:28 13/Nov Sáb 16:50
12. ViagOnib 587,4 15:03 05/Nov Sex 13:19
13. VisitGeo 245,5 06:17 28/Out Qui 07:50
EudTip V2
EudTip V3
Nome do Arquivo
(.mov)
Tamanho
Megabytes
Duração
Min:Seg
Data
Ano 2004
Horio de
Início
do Registro
1. DiscusAguaCapela 2.116, 0 55:08 13/Novb 19:24
2
. DiscusAguaChEl 525,0 13:20 06/Nov Sáb 09:47
3. DiscusAguaMad 1,170,0 30:49 13/Nov Sáb 16:06
Nome do Arquivo
(.mov)
Tamanho
Megabytes
Duração
Min:Seg
Data
Ano 2004
Horio de
Início
do Registro
1. Constr1 100,1 02:35 26/Out Ter 07:14
2. Constr2 341,0 08:59 05/Nov Sex 15:31
3. DiscusAguaJura 664,0 19:21 06/Nov Sáb 09:06
4. ExibRAM 73,1 03:25 17/Set Sex 20:49
5. ReunAssMor1 599,5 15:15 16/Set Qui 19:07
6. ReunAssMor2 1.690,0 44:42 15/Nov Seg 19:20
226
EudTip V4
EudTip V5
EudTip V6
Nome do Arquivo
(.mov)
Tamanho
Megabytes
Duração
Min:Seg
Data
Ano 2004
Horário de
Início
do Registro
1. RezadBion 241,1 06:12 16/Nov Ter 16:37
2. RezadJVig 768,3 19:36 18/Nov Qui 09:43
3. RezadMaria1 1.360,0 35:43 15/Nov Seg 16:41
4. RezadMaria2 547,2 13:55 16/Nov Ter 16:56
Nome do Arquivo
(.mov)
Tamanho
Megabytes
Duração
Min:Seg
Data
Ano 2004
Horio de
Início
do Registro
1. Fut1 416,0 10:36 21/Out Qui 16:51
2. Fut2MSVS 1.080,0 29:33 05/Set Dom
06/Set Seg
08/Set Qua
17:17
17:14
17:26
3. PrepTerBarTij 648,9 16:40 24/Set Sex
29/Set Qua
07/Out Qui
07:19
07:59
15:25
4. ReunCas 1.800,0 48:36 27/Out Qua 19:38
Nome do Arquivo
(.mov)
Tamanho
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Duração
Min:Seg
Data
Ano 2004
Horio de
Início
do Registro
1. Missa 1.310,0 34:56 1º/Set Qua 19:06
2. ReunJov 1.276,0 38:31 08/Nov Seg 07:59
3. TrabColetFer 818,6 21:30 15/Nov Seg 08:03
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