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I
Celso Alves Cruz
Trash Tragedy
Investigações de um dramaturgo
sobre a tragédia no Brasil contemporâneo
(Volume 1- Tese)
Tese apresentada ao Departamento de Artes Cênicas
da Escola de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do Título de doutor em Artes,
sob orientação do Prof. Dr. Clovis Garcia.
São Paulo
CAC-ECA-USP
2007
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II
PÁGINA PARA ASSINATURAS DA BANCA
……………………………………………
Presidente
Data:
……………………………………..………
Data:
……………………………………………..
Data:
…………………………………………….
Data:
…………………………………………….
Data:
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III
Para Pedro, João, Rita, Wil, Glória e Fábio.
IV
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Clovis Garcia, meu mestre jedai. Fazer e pensar teatro só
existem para mim a partir da sabedoria e do carinho do mestre.
A todos os meus parceiros de palco. Em especial Dill Magno,
Guilherme Freitas, Marcos Suchara e Carlos Rahal – companheiros
cotidianos de sonho e suor.
A Paulo Fabiano e à Cia. Teatro X.
A Cacá Carvalho, ao pessoal da Casa Laboratório do Ator e do
Teatro de Pontedera.
A Lucia Romano, Lívio Tragtemberg, Rita Martins, Silvana Garcia,
Aimar Labaki, Elise Dodgson e à equipe do Royal Court Theater.
A Fábio Cruz e Jair Marcatti.
À Escola Superior de Propaganda e Marketing, pelo apoio durante
todos esses anos.
A todos os meus professores da graduação, do mestrado e do doutorado.
Em memória de Eudinyr Fraga, Hamilton Saraiva e Renato Cohen.
V
V
SUMÁRIO
VOLUME 1:
Introdução: Do trash theater à trash tragedy….p.XII.
Capítulo 1: O canto dos desesperados…………..p.1
- 1.1. Flor no lixo……………………………....p.2
- 1.2. A tragédia dos sentidos………………….p.8
- 1.3. Os sentidos da Tragédia………………....p.9
- 1.4. O nascimento da Tragédia………..……p.14
- 1.5. A preparação do evento………………..p.18
- 1.6. Uma manhã no Theatron………………p.21
- 1.7. A estrutura da matéria…………………p.24
- 1.8. As palavras errantes do macedônio……p.29
- 1.9. Pequena pausa trágica…………………p.37
- 1.10. A Morte da Tragédia………………….p.41
- 1.11. A Tragédia no Brasil…………….……p.49
- 1.12. Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver...p.54
- 1.13. Trash Tragedy…………………………p.65
VI
Capítulo 2: Liberdade é uma calça velha….p.77
- 2.1. Lado B…………………………….p.78
- 2.2. Setenta…………………………....p.82
Capítulo 3: O “X” do Problema……….…p.114
- 3.1. Na Vida………………………....p.115
- 3.2. Na Jaula…………………………p.119
- 3.3. Na Rua……………………….…p. 133
- 3.4. Na Obra…………………….…..p.138
- 3.5. No Assentamento……………….p.141
Capítulo 4: Sete Vidas de Santo…………p.148
- 4.1 Nota……………………………..p.149
- 4.2. Cordel e Caco de Vidro………...p.159
Capítulo 5: Licurgo/Olhos de Cão……..p. 171
- 5.1. Viagem ao fim da noite……….p.172
- 5.2. Primeiras leituras…………..…..p.179
- 5.3. O trabalho do tempo………..….p.183
- 5.4. Exercícios para atores………….p.186
- 5.5. Todos os sentidos………………p.190
- 5.6. O jogo do sim………………..…p.195
- 5.7. Performance, uma concepção.…p.198
- 5.8. Temporadas……………...……..p.199
- 5.9. O Porão………………………...p.210
- 5.10. A Fome do Dia…………….…p.217
VII
Capítulo 6: Só As Gordas São Felizes……p.222
- 6.1. Cabeça Cheia………………..…..p.223
- 6.2. Breve Encontro com o Xamã…...p.227
- 6.3. Só as Gordas…………………….p.229
- 6.4. Perversos………………………...p.235
- 6.5. O que é real?……………………..p.237
- 6.6. A trilha……………………….…..p.240
- 6.7. Fringe………………………….…p.245
- 6.8. A primeira temporada………..…..p.249
- 6.9. Outras viagens…………….……..p.257
Capítulo 7: Romance Barato…………….p.263
- 7.1. Samba de uma nota só…………...p.264
- 7.2. Compromissos…………………...p.268
- 7.3. Matriz……………………………p.274
Capítulo 8: A noite dos animais……….…p.279
- 8.1. Guerra……………………………p. 280
- 8.2. Taurus………………………...….p.283
- 8.3. Gorilas……………………….…..p.288
- 8.4. Rinha…………………………….p.295
- 8.5. Os Animais………………………p.299
CONCLUSÃO:…………………………...p.302
- 1. Na Arena…………………..…..…p. 303
- 2. Dramaturgia………………...….….p.309
- 3. O Grande e o Pequeno…………....p. 313
- 4. Poética Selvagem………………....p.316
- 5. Confissões de um dramaturgo…….p.324
Bibliografia…………………………….…p.329
VOLUME 2 - PEÇAS:
- Prometeu Enjaulado………………….p.352
- Cidadão de Papel…………………….p.373
- Calígula…………………………..….p.409
- Bando de Maria………………….… p.415
- Sete Vidas de Santo…………………p.466
- Licurgo/Olhos de Cão……………….p.487
- Só As Gordas São Felizes…………...p.498
- Romance Barato……………………..p.531
- A Noite dos Animais…………………p.543
IX
Resumo:
A criação de dramaturgia e performance de um autor brasileiro, à luz do estudo de
elementos do trágico e da tragédia. O aprofundamento e a radicalização da dissertação
de mestrado Trash Theater, um manual de sobrevivência para o fazedor de teatro
contemporâneo, defendida em 2001. Exclusão. Violência. Solidão. Loucura. Este
trabalho pretende enfrentar esses quatro elementos da sociedade brasileira
contemporânea com dramaturgia e encenação. Uma pesquisa que contrasta temas e
formas da cultura urbana e popular com um estudo do trágico. Afirmação da
felicidade no excesso, da alegria na exclusão, da poética selvagem, da revolta em
cena.
X
Abstract:
A brazilian author view of his drama creation and acting performance seen through
elements of tragedy and the tragic. The deepening and radicalization of his Master of
Arts dissertation: trash theater, a guide to survival for a contemporary theather
maker, presented in 2001. Exclusion.Violence. Loneliness. Insanity. This work
intends to relate these four current brazilian society elements to dramaturgy and
acting. A search that contrasts urban and popular culture themes and forms with a
study of the tragic. Statement of hapiness in the excess, joy in the exclusion, wildness
in poetics, anger on stage.
XI
TRASH TRAGEDY
Investigações de um dramaturgo sobre a tragédia
no Brasil contemporâneo.
XII
Prometeu
De Prometeu relatam-se quatro sagas: de acordo com a primeira, ele, por ter traído os
deuses em favor dos homens, foi preso com cadeias ao Cáucaso, e os deuses enviaram
águias, que comiam do seu fígado sempre a crescer.
De acordo com a segunda, Prometeu, de tanta dor diante dos bicos que o atacavam,
comprimiu-se cada vez mais fundo na rocha, até tornar-se uno com ela.
De acordo com a terceira, com os milênios foi esquecida sua traição, os deuses
esqueceram, as águias, ele mesmo.
De acordo com a quarta, acabou se cansando daquilo que se havia tornado sem razão.
Os deuses ficaram cansados, as águias ficaram cansadas, a ferida fechou-se de
cansaço.
Restou a inexplicável montanha rochosa. – A saga busca explicar o inexplicável. Já
que ela se origina de um fundo de verdade, precisa acabar de novo no inexplicável.”
1
1
Franz Kafka, Prometeu, em Nas Galerias, São Paulo, Estação Liberdade, 1989, p. 53.
INTRODUÇÃO:
DO TRASH THEATER À TRASH TRAGEDY.
XIV
Ora, há períodos da história que fazem ecoar com mais força esta consciência
trágica que a Atenas do século V expressou no palco de seu teatro?
Este é realmente o caso hoje. O que chamamos de fim das ideologias, o surgimento
das formas extremas da barbárie nos países de velha civilização, a preocupação frente
aos perigos acarretados pelos progressos do desenvolvimento técnico abrem uma via
para a volta do sentimento trágico da existência. Quando saem do teatro depois de
terem visto uma tragédia antiga, é sobre si mesmos, sobre a solidez de seu sistema de
valores, sobre o sentido de sua vida, que os espectadores se interrogam.”
1
Consumo desenfreado, montanhas de lixo, neoliberalismo, globalização,
saques, linchamentos, passeatas, comícios, feiras culturais, big brothers,
clichês, Hip Hop, multiculturalismo, Trash Movies, Trash Metal...
Essa sociedade complexa e perplexa deu origem à dissertação de
mestrado Trash Theater: um manual de sobrevivência para o fazedor
de teatro no novo milênio
2
, onde elaborei um panorama do teatro
contemporâneo, expus alguns de seus problemas estruturais e detectei
alguns possíveis caminhos a seguir em dramaturgia, atuação, encenação e
recepção do espetáculo.
A constante renovação do ator, performer consciente de seu ofício e não
mero repetidor de clichês. Uma encenação volátil, que se instaura sobre o
vazio e toca várias camadas do espectador. A renovação de uma
dramaturgia participativa. Relações vitais com o espectador.
1
Jean-Pierre Vernant, Entre Mito & Política, Edusp, São Paulo, 2001, p.396.
2
Celso Alves Cruz, Trash Theater: Um manual de Sobrevivência para o fazedor de teatro no novo
milênio, dissertação de mestrado, ECA-USP, 2001.
XV
Tudo isso sob o feixe do Trash Theater. Teatro-lixo. Dos lixões para o
mundo. Teatro da escória. Teatro dos restos. Restos de cultura. Restos
sociais. Restos humanos. Hora de reaproveitar detritos e fragmentos.
Na terra desolada, artistas catam cacos de técnicas, estilos e linguagens. Não
há mais possibilidade de pureza. Sexo é linguagem. Violência é. Show de
Rock. Videoclipe. Jornalismo de TV. Pregação de pastores. Artistas de rua.
Sussurro e grito. Lixo e luxo. Identificação e estranhamento. O mais falso
realismo. A mais sincera falsidade. O bem feito e o mal feito.
Na tradição do teatro popular. Esse teatro à margem da grande história do
teatro como escrita até hoje. O teatro dos phlyakes gregos, das atelanas
romanas, dos mambembes da idade média, da commedia dell’ arte, das festas
de rua, das feiras e revoluções. Do teatro de revista, do boulevard.”
3
O Trash Theater faz parte do que o professor Milton Santos chamou de
“a revanche da cultura popular sobre a cultura de massas”
4
.
“Tal cultura realiza-se segundo níveis mais baixos de técnica, de capital e de
organização, daí suas formas típicas de criação. Isto seria, aparentemente,
uma fraqueza, mas na realidade é uma força, já que se realiza, desse modo,
uma integração orgânica com o território dos pobres e o seu conteúdo
humano. Daí a expressividade dos seus símbolos, manifestados na fala, na
música e na riqueza das formas de intercurso e solidariedade entre as
pessoas.”
5
Na mesma linha do que disse o historiador Eric Hobsbawm:
“Mais provável do que uma reação contra a globalização é algum tipo de
sincretismo cultural, como nos filmes de kung fu produzidos em Hong Kong,
nos quais se mesclam elementos dos westerns, da tradição chinesa e de várias
outras práticas. Dessa maneira, há um desenvolvimento e uma integração de
inúmeras variantes locais da cultura global, e não um conflito entre elas.”
6
Enfim, o Trash Theater propõe uma mudança do foco. Ao invés do
“nobre” teatro, o teatro do lixo, vindo da periferia, teatro que recicla
3
Celso Alves Cruz, Trash Theater: Um manual…, ECA-USP, 2001., p.6.
4
Milton Santos, Por Uma Outra Globalização, Record, Rio de Janeiro, 2000, p. 144.
5
Idem, p. 145.
6
Eric Hobsbawm, O Novo Século, Cia das Letras, São Paulo, 2000, p.135.
XVI
formas e conteúdos na sua necessidade de sobrevivência, na busca de seu
espectador.
No corpo da dissertação, através de estudos de autores e reflexão sobre o
meu próprio trabalho como dramaturgo e encenador, estendi minhas
idéias, com ênfase na criação do trabalho Werther na Veia, adaptação do
romance Os Sofrimentos do Jovem Werther, de J.W. Goethe.
Naturalmente, o trabalho de mestrado mapeou o terreno a ser explorado
neste doutorado, que pretende o aprofundamento dessas questões,
radicalizadas ainda mais pelos acontecimentos deste começo de milênio.
O 11 de setembro. O terrorismo em geral. A guerra do Iraque. Os
conflitos com jovens na França. A corrupção no Brasil. Os
fundamentalismos. O brasileiro assassinado pela polícia inglesa. A
miséria brasileira. Assassinatos de sem-teto nas ruas de SP. A guerra civil
pelas ruas de SP. O PCC, os mensaleiros, os sanguessugas…
Trash Tragedy. O projeto original previa um confronto entre tragédia
grega e cultura brasileira contemporânea, em recriações de obras como
Prometeu Acorrentado e As Troianas. Um estudo de procedimentos
dramatúrgicos, à luz da poética de Aristóteles, com base no trabalho
profissional do autor, que na época trabalhava como dramaturgo para a
Cia. Teatro X, em processo colaborativo, realizando recriações das obras
citadas.
Logo a proposta original sofreu uma guinada. Com a situação social e
cultural descrita nos parágrafos anteriores, mais a realização de
Prometeu Enjaulado, Bando de Maria, Cidadão de Papel e Calígula
XVII
todas para a Cia. Teatro X - , mergulhei em pesquisa cênica mais intensa
sobre o trágico no mundo contemporâneo, em especial no Brasil e na
cidade de São Paulo. Passei a criar, escrevendo e dirigindo novos
trabalhos, sem o suporte imediato da dramaturgia grega, mas na linha do
que Vernant chama de “a volta do sentimento trágico da existência”.
“À luz da dramaturgia, o homem não aparece delineado como uma natureza
estável, uma essência que poderia ser delimitada e definida, mas como um
problema; ele adquire a forma de uma interrogação, de um questionamento.
Criatura ambígua, enigmática, desconcertante: ao mesmo tempo agente e
agido, culpado e inocente, livre e escravo, destinado por sua inteligência a
dominar o universo e incapaz de governar a si mesmo, associando o melhor e
o pior, o ser humano pode ser qualificado de deinós, nos dois sentidos do
termo: maravilhoso, monstruoso.”
7
Aqui, exploraremos ao máximo esse “problema”, experimentalmente, em
dramaturgia e encenação. Daí a Trash Tragedy. Fincada na veia da
cultura brasileira.
Na prática, essa investigação, como a de um surrado detetive particular de
Raymond Chandler ou Dashiel Hammett, um Phillip Marlowe ou um
Sam Spade em busca de um Falcão Maltês, levou a uma enorme série
de experimentos. Uma busca frenética, pode-se dizer. Obsessiva. Escrevi,
nos últimos 6 anos, 15 textos teatrais (12 deles encenados ou com leitura
pública), dirigi vários espetáculos, sem falar nas parcerias que, mesmo
lateralmente, contribuiram para esta pesquisa (entre elas: Gato Sem
Rabo, adaptação de Um Teto Todo Seu, feita em parceria com Lúcia
Romano e dirigida em colaboração com Alice K.; A Sombra de
Quixote, dirigido por Cacá Carvalho – espetáculo para o qual dei
consultoria dramatúrgica).
7
Vernant, Entre Mito & Política, … p.396.
XVIII
Solos, duetos, bandos, performances, adaptações, recriações, textos
engavetados, leituras públicas, debates, temporadas em teatrões e
teatrinhos, casarões e porões…
Portanto, apresentarei aqui não só a descrição detalhada dos principais
processos criativos elaborados, a partir de uma contextualização histórica
e teórica, mas o corpo de uma obra dramatúrgica, reunião dos textos das
peças abordadas.
Parto da premissa de que há uma tradição da Tragédia que a história
indica começar na Grécia do século VI a.C.. Essa tradição lida com
elementos artísticos (gênero literário, espetáculo, etc), sociais (o
espetáculo e seu papel na cidade) e de reflexão sobre o ser humano (o
trágico: o homem como enigma).
Em alguns momentos históricos, em determinados lugares, essa tradição,
ou algum de seus elementos, é negada ou retomada. Acompanhando
Vernant, considero que o momento de hoje é de retomada, hora de
reciclar elementos do Trágico e da Tragédia.
A contemporaneidade, com seus conflitos radicais, é trágica. Para
representar, recriar, reinventar, encenar e, enfim, enfrentar esses conflitos
no Teatro, um estudo do Trágico e da Tragédia, com uma abordagem
teórica e experimentos práticos, é inestimável.
A hipótese deste trabalho é que, antropofagicamente, a partir da periferia
do mundo, a partir de São Paulo/Brasil, podemos retomar cacos dessa
tradição, sob a ótica Trash. Dramaturgia do lixo, dos párias, discutindo e
atuando na contemporaneidade.
XIX
Tal estudo e tal criação sugerem a realização de um teatro simples e
efetivo, impactante na dramaturgia, de intenso contato entre performers e
espectadores, com suficiente maleabilidade para criar ambientes cênicos
extraordinários nos mais exóticos lugares e ocasiões, realizável nas
condições de trabalho do Brasil contemporâneo.
Este processo, por sua vez, também ajuda a refletir sobre a produção
dramatúrgica contemporânea, seus limites, becos e novas trilhas.
No primeiro capítulo deste trabalho, descreveremos as origens da
Tragédia e do Trágico, seus principais contornos e evoluções, com foco
na Tragédia Grega. Mostraremos como nasce aí uma tradição não só da
Tragédia, mas a partir dela, do Trágico.
A seguir, daremos flashes dessa tradição. Chegaremos ao mundo
contemporâneo: mostraremos então a criação de ambiente propício a
nova encarnação de aspectos do Trágico e da Tragédia.
Então, dedicaremos espaço ao pensamento e à prática da Tragédia no
Brasil. Poderemos, então, esmiuçar o conceito de Trash Tragedy.
Depois, no Capítulo 2, em faixa poética, investigarei minha própria
formação artística: a história e a memória desse quarentão nascido em
São Paulo, cujos momentos decisivos de formação ocorreram nos anos
70. O objetivo é expor as contradições de ordem pessoal, social e
histórica que estão na gênese da obra e da pesquisa.
XX
Nos capítulos subseqüentes, descreverei os processos criativos que
dialogam com essa reflexão. Dos primeiros trabalhos com a Cia. Teatro
X às parcerias que, por exemplo, levaram à formação da Cia. da
Obesidade, companhia para a qual escrevo e dirijo peças.
Falaremos aí de dramaturgia e encenação, criados ao redor dos estudos da
tragédia e do trágico, em contraste com temas da contemporaneidade
brasileira.
Serão apresentadas a descrição e a análise detalhadas dos processos de
criação, com especial atenção à técnica dramatúrgica, ao uso do espaço
como ambiente cênico, ao trabalho com o tempo, à encenação mínima e
anti-espetacular, ao jogo dos atores como performance e à gestão de
grupos criativos.
Os trabalhos serão apresentados em ordem cronológica. Tudo começa
com a minha parceria com a Cia. Teatro X, nos espetáculos Prometeu
Enjaulado, Cidadão de Papel, Calígula e Bando de Maria. Depois,
passaremos pela criação de Sete Vidas de Santo. Então, nos
concentraremos no meu trabalho dramatúrgico, como autor/diretor, em
espetáculos como Licurgo/Olhos de Cão, Só As Gordas São Felizes,
Romance Barato e A Noite dos Animais (Gorilas, Taurus, Rinha).
Enfim, do resíduo disso tudo, como conclusão, proponho uma poética
selvagem. Um elogio da dramaturgia e do dramaturgo como produtor,
mesmo nessa nossa era pós-moderna e pós-dramática.
Este é um trabalho experimental. A partir de pesquisa bibliográfica e de
necessidades práticas da vida profissional, cria processos, descreve-os,
XXI
analisa-os e os oferece enquanto dramaturgia e performance. Um rizoma:
múltiplas conexões heterogêneas que geram mapas e decalques, com
rupturas a-significantes
8
. Work in process/progress
9
, como recomendava
Renato Cohen
10
.
O todo do trabalho, portanto, forma uma teia que pode ser percorrida de
diversas maneiras. Da página ao palco, do palco à página. Cada um faz
seu jogo. Gostaria que mesmo as citações – longas e abundantes – fossem
consideradas “janelas” hipertextuais, aberturas para outros textos,
eventuais picadas, atalhos ou ciladas.
Há muitas semelhanças entre a pesquisa artística que ocorre em todo e
qualquer palco e a que ocorre na Universidade, assim como com as
pesquisas científicas. Mas também há diferenças.
Se a pesquisa em arte não pode prescindir da intuição, longe dos projetos
acadêmicos essa busca muitas vezes se beneficia da mais pura deriva.
Pode começar sem propósito – ele “aparece” no caminho. Já a pesquisa
científica busca resultados objetivos.
11
A pesquisa acadêmica em arte parte de problema e hipóteses definidos,
mas seu ponto de chegada permite interpretações subjetivas,
8
Gilles Delleuze e Felix Guattari, Mil Platôs – Capitalismo e esquizofrenia, (Vol.1). Editora 34, São
Paulo, p.11-p.37.
9
Renato Cohen, Work in Progress na Cena Contemporânea. Perspectiva, São Paulo, 1998.
10
Mestre, xamã, cientista, autor, diretor, teórico… Renato Cohen foi um artista fulgurante, criador de
espetáculos extraordinariamente radicais, que embaralhavam conceitos e práticas, em todos os
quadrantes. Além do trabalho cênico e performático, Renato desenvolveu intenso trabalho acadêmico –
ambiente em que tive a honra de conhecê-lo. Fui seu aluno durante o doutorado na ECA-USP. Ao lado
do também genial Lúcio Agra, Renato ministrava aulas, encontros, performances que empurraram seus
alunos, certamente, para o miolo de buracos negros. Infelizmente, Renato partiu cedo. Repentinamente.
Seus rastros estão aí, nas pesquisas de tantos artistas, seus devedores. Renato era, é, será pura
singularidade. Evoé, Renato!
11
Silvio Zamboni, A Pesquisa em Arte, Um Paralelo entre Arte e Ciência, Autores Associados,
Campinas, 2001.
XXII
variadíssimas. O pesquisador da arte, no meio acadêmico, baila no fio da
navalha.
Cortes acontecem. Dor e prazer. Repetições de procedimentos. Hábitos.
Vícios. Obsessões. Tangos em labirintos.
Nesse ponto, eu fico com Tomás Eloy Martínez, em seu magnífico
romance O Cantor de Tango:
“… Fazia muito tempo, eu tinha estudado uma idéia do filósofo escocês
David Hume. Citei: a repetição nada muda no objeto repetido, mas sim no
espírito que a contempla”
12
O foco deste trabalho, portanto, é, foi e sempre será a criação artística.
Contribuir para o diálogo cultural, instigar a produção teatral. Em seus
melhores momentos, reunindo em cena flor e lixo.
Em plena experimentação ou na mais absurda contemplação, este
trabalho realiza a afirmação da felicidade no excesso, da poética
selvagem, da revolta em cena.
12
Tomás Eloy Martínez, O Cantor de Tango, Companhia das Letras, São Paulo, 2004, p. 109.
1
CAPÍTULO 1: O CANTO DOS DESESPERADOS
2
1.1: FLOR DO LIXO:
“ Prometeu: (Murmura) Terror sem esperança. Terra, sol, rio, mar e mata. Todos os
santos. Que foda é a tiragem. E se eu tivesse um celular pra avisar meus tio. E se eu
ranjasse uma automática pra acabar com tanta banca. Ah, meu santo, que esse meu
dom me diz da minha sina. Sei quanto dura um amor. Quanto voa uma bala. Quanto
demora uma lágrima. Quanto ronca uma fome. Quanto filhadaputa por cima da carne
seca. Como é que se derruba um puto? Como é que se acaba com todos eles? Ah, meu
santo, quanto silêncio. Mas eu sei quanto rói essa dor da cana brava. E aí, meu santo,
o que é que você me diz? Meu santo, eu não queria ser vidente. Mas é isso que você
quer, né? Então eu sei que o fim está perto, mas dessa boca não sai um ai, que junto a
meu santo eu tenho amor a meu semelhante, eu não entrego colega, família. E tanto
faz gritar ou não. Eu vejo as rosas crescendo e gritando no meio do lixo. É um
vermelho só que explode. É uma alegria. Essa guerra de flor e lixo. Eu tomo minha
posição. Eu assumo a minha parte. Eu seguro crime da moçada di maior. Eu encaro o
crime. Eu sujo as mãos pra colher a rosa. Eu sei que obrei, meu deus, obrei pela
liberdade. Eu sou o herói do meu povo?”
1
Tarde de segunda. Jogo de futebol entre Brasil e Irlanda. Amistoso. Rede
TV. Começa o intervalo. Entra Gil Gomes: teaser do programa policial
das 18h. Aperitivo das imagens exclusivas: mãe se desespera no meio da
rua pelo assassinato banal do filho menor. Entra de novo Gil Gomes:
mais detalhes no programa das 18h, depois do jogo. O jogo termina zero
a zero.
No Brasil contemporâneo, a tragédia irrompe no meio da tarde, do meio
do nada, nos choca – e desaparece – para dar lugar ao segundo tempo de
um jogo ou, um pouco mais tarde, a outro exemplar de tragédia.
1
Celso Cruz, Prometeu Enjaulado, volume 2 deste trabalho, p. 359.
3
Piedade? Terror? Revolta? Racionalização? Ideologia? Indiferença?
Esvaziamento do sentido de tragédia? Esvaziamento do sentido de Brasil?
Há algum sentido?
Como lidar com essas percepções, esses sentimentos, essas análises, esses
diagnósticos e prognósticos no Teatro? Como lidar em cena com a
banalização das ações e dos afetos, da política e da ética? Essa repetição
sem fim que parece banalizar tudo…
Essa é a Tragédia que chamo de Trash: resto de ações trágicas, despojos
de emoções desesperadas, cacos de afetos dilacerados que tento
reprocessar em dramaturgia.
A mãe na rua de São Paulo, no início do século XXI, grita. Seu grito não
é mudo como o de Mãe Coragem. Não tem o mesmo vigor estético? Não
carrega tantos conceitos?
Um grito. Uma mulher. Uma mãe. Um grito de mãe. Exibido na TV. Em
tempo real. Em cores. Em close. Espetacularizado. Reproduzido em
vários noticiários do dia, em várias redes. Boa audiência. Pouco se
explica de sua história ou da história de seu filho morto.
Foi um ajuste de contas? Foi bala perdida? Ele era bandido? Quem matou
é mocinho? A mãe tem outros filhos? Bandido bom é bandido morto? Era
trabalhador? O que a mãe deve fazer agora? Alguém deve fazer algo por
ela? Alguma instituição? E eu com isso? Essas imagens de novo? O que
está passando no outro canal? A mídia esgota as imagens. O assunto
morre ali.
4
A violência parece randômica. O dilaceramento das relações dá a
sensação de total falta de sentido. Sensação de caos. Não dá tempo de
pensar a respeito, outro grito vem aí!
Os fios da Tragédia atam indivíduo, sociedade, mundo. Mesmo a
aparente falta de sentido tem sentido histórico, como notou Raymond
Williams em Tragédia Moderna
2
, uma das balizas deste estudo teatral,
deste capítulo que pretende mapear os sentidos e as mutações históricas
dos conceitos de Tragédia e de Trágico. Mas será que esse “sentido”
histórico basta? Também ele não é dúbio, entre o maravilhoso e o
monstruoso?
A tortura nas cadeias. A guerra no campo. Os abusos em nome da razão
ou da fé. A tirania política ou estética. Os justiceiros que vagam pelas
ruas. Os abusos. Os desempregados. As drogas. Os perdidos e os achados
pelas ruas. A solidão dos lares e consultórios. A dificuldade dos afetos.
A pretensão do nosso trabalho é enfrentar essa temática Trágica.
Investigar nossa cultura e nossa realidade, propor o questionamento,
chacoalhar o torpor.
Brasil:
Uma das maiores potências do Sul, com mais de 200 milhões de habitantes
em 2025. Será o mais poderoso membro de um Mercosul unificado, ou então
o centro de um império regional impondo sua dominação ao resto da América
Latina, em rivalidade com a Argentina e logo com o México e os Estados
Unidos.
Já pode ser considerado hoje um modelo premonitório do que será o mundo
amanhã: justaposição de miséria e luxo, tragédias e festas, riso e morte, onde
centenas de milhares de crianças, mininômades, tentam sobreviver como
2
Raymond Williams, Tragédia Moderna, Cosac & Naify, São Paulo, 2002.
5
podem junto aos prédios e mansões dos poderosos. Amanhã, mais ainda, será
o melhor protótipo da “cultura do lego” que se anuncia como universal:
amontoado de fragmentos de civilizações que poderão ser reunidos ao bel-
prazer de cada um.
Situado dessa forma na vanguarda das tendências mundiais da cultura, vai –se
tornar um dos faróis da criação artística planetária. Será de bom-tom visitá-lo
em busca de inspiração. Vai-se falar do “Brasil mundo” como uma corrente
estética, um sistema de valores, um modelo social feito de barbárie assumida,
prazer e regozijo ilimitados, mestiçagem sofisticada e violência crua.
3
De acordo com o Atlas da Exclusão Social (volume 3): Os Ricos no
Brasil
4
, no início do milênio o país possuía pouco mais de 1.162.164
famílias ricas (2,4% do total das famílias brasileiras), ou seja, com renda
familiar mensal acima de R$ 10.982,00 (valores de setembro de 2003); a
renda familiar média dessas famílias era de R$ 22.487,00; os 10% mais
ricos da população brasileira possuíam 3/4 de toda riqueza nacional; cerca
de 5 mil famílias portavam estoque de riqueza de 2/5 do fluxo de renda
gerado pelo país em um ano; as cinco mil famílias muito ricas do país
(0,001% do total), apropriavam-se de cerca de 30% da renda nacional.
Seu patrimônio alcançava 40% do PIB.
Tantos números criam uma vertigem e uma abstração. Mas o mesmo
Atlas tira deles conceitos que conhecemos na prática, enxergamos
diariamente nas ruas:
“A ausência de reformas civilizatórias no modo de produção capitalista no
Brasil – tais como a reforma agrária que permitisse, entre outras coisas,
melhor distribuir a estrutura fundiária nacional; a reforma tributária que
possibilitasse onerar proporcionalmente mais os ricos que os pobres; a
reforma social capaz de universalizar a proteção social e trabalhista; e a
reforma urbana que evitasse a especulação imobiliária generalizada – impediu
a construção de um país menos desigual. Certamente, a constante interrupção
3
Jacques Attali, Dicionário do Século XXI, Record, Rio de Janeiro, 2001, p.85.
4
Marcio Pochmann et alii., Atlas da Exclusão Social, volume 3, Cortez Editora, São Paulo, 2004.
6
do regime democrático (Estado Novo, 1937/45, e Regime Militar, 1964/85)
tornou mais fácil a continuidade do padrão excludente de riqueza.”
5
Esse panorama leva a conclusões bastante objetivas:
“O individualismo egoísta tem degenerado as relações familiares e as
expectativas solidárias – pautadas na autenticidade e na afirmação de valores
substantivos – em troca de valores fortuitos.”
6
Se mudarmos nossa abordagem, recorrendo aos campos da psicologia,
psiquiatria e afins, podemos acompanhar o pensamento de Jurandir
Freire Costa.
7
Para o autor, a situação brasileira cria, alimenta e
desenvolve elites alheias ao próximo, irresponsáveis em relação a si, que
desqualificam o sujeito como ser moral e, portanto, recorrem à violência
com absoluta naturalidade.
Para essas elites, o “outro” não é parceiro nem na obediência às leis.
Alguém a ser respeitado em sua integridade física e moral. Aliás, nem
gente é. Não passa de possível objeto da violência, que é exercida sem a
menor consciência. Essa elite, para Jurandir, vive sob o lema “drogas,
sexo e cartão de crédito”.
8
Mas, e o resto da população? A classe média, cuja renda mensal é catorze
vezes menor? Ou os 20% mais pobres, com renda mensal 80 vezes
menor? Voltemos um instante ao Atlas da Exclusão:
5
Pochmann et alii, Atlas da…, p.37 e p.38.
6
Pochmann et alii, Atlas da…, p.43.
7
Jurandir Freire Costa et alii., Ética, Garamond, Rio de Janeiro, 1997.
8
Freire Costa, Ética, p. 70
7
“A heterogeneidade espalha-se pelo tecido social, fazendo com que
segmentos expressivos não sejam reconhecidos socialmente – conformando
uma ralé estrutural, uma ‘subgente’”.
9
São Paulo, por exemplo, possui 58% das famílias ricas do país, com 33%
da renda disponível. Tem a segunda maior frota de helicópteros do
mundo e a primeira de Ferraris. Como a Ferrari vermelha 550 Maranello,
importada por US$ 480 mil – um ano de Bolsa-Família para 2.400
famílias brasileiras. Para comprar a lancha mais cara do Brasil, alguém
que ganhe salário mínimo precisaria guardar todo seu dinheiro durante
mil anos.
10
Aprender a manejar as ferramentas da violência é muito mais rápido.
“A ameaça ao sistema não provém de alguma ideologia nacionalista ou
socialista, já que se trata de uma acumulação truncada e de uma sociedade
desigualitária sem remissão, ao menos enquanto não se puder enxergar luz no
final do túnel da financeirização. Ou melhor, a única posição imediatamente
possível parece advir da violência urbana cotidiana, gerada e acionada nos
espaços clean, onde avultam as ideologias da qualidade total. Pois é
impossível não ver que o germe original da violência encontra a sua razão de
ser na visão profilática das terceirizações, mal disfarçada pelas boas maneiras
dos tecnocratas da responsabilidade social.”
11
A ralé, a elite. Exclusão, violência, solidão, loucura… Uma coisa trágica?
Uma tragédia?
Mas, afinal, quais os sentidos da Tragédia e do Trágico hoje?
9
Pochmann et alii, Atlas da…, p.31
10
Pochmann et alii, Atlas da…, p.198 e p.199.
11
Pochmann et alii, Atlas da…, p.5
8
1.2. A TRAGÉDIA DOS SENTIDOS:
A pergunta anterior leva a um selva de conceitos. Inúmeros autores, ao
longo da história do teatro, da literatura e da arte ocidentais têm tratado
da Tragédia e do Trágico. Filologia, antropologia, história, teoria do
teatro…Cada especialista puxa a brasa para a sua sardinha.
Como autor teatral em busca de parâmetros para a criação, começo
estabelecendo nesse mundaréu de idéias algumas distinções entre
Tragédia e Trágico.
Tragédia é um gênero literário, um fenômeno cultural, um fato da vida.
Trágico é um determinado modo de pensar a experiência humana, um
“princípio antropológico e filosófico”.
12
Esse princípio se insinua nas situações e personagens da Tragédia Grega,
mas depois mostra a estranha face em outras manifestações artísticas ao
longo da história da arte. Os gregos fizeram tragédia, mas não
conceituraram o pensamento trágico. Como conceito, o Trágico é uma
construção moderna erguida nos dois últimos séculos.
13
Mas vamos com calma. Para começar, nos dediquemos a compreender a
gênese desse fenômeno cultural, literário e vital que é a Tragédia.
12
Patrice Pavis, Dicionário de Teatro, Perspectiva, São Paulo,1999, p.416.
13
Glen W. Most, Da tragédia ao trágico, in Denis Rosenfield (editor), Filosofia e Literatura: o trágico,
Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2001, p.21.
9
1.3. OS SENTIDOS DA TRAGÉDIA:
“Chegamos à tragédia por muitos caminhos. Ela pode ser uma experiência imediata,
um conjunto de obra literárias, um conflito teórico, um problema acadêmico.”
14
Em A Tragédia Moderna, Raymond Williams considera natural a
coexistência de vários sentidos da tragédia. Da “tragédia na vida de um
homem reduzido ao silêncio, em uma banal vida de trabalhos”
15
, a um
desastre, uma família destruída por um incêndio, uma carreira arruinada,
uma batida numa rua, uma experiência imediata ou, finalmente, às obras
de arte que costumamos chamar de Tragédia.
Na Internet, por exemplo, uma simples busca no Google revelará, no
início de junho de 2006, cerca de 14 milhões de páginas abordando a
Tragédia e outras 5 milhões falando do Trágico!
Na introdução deste trabalho penso já ter abordado a presença da tragédia
no nosso cotidiano. Chegou a vez, portanto, por dever de ofício, de pegar
o caminho da arte e, nela, os rumos do Teatro.
Diz a boa História do Teatro Ocidental que a arte da tragédia começa na
Grécia, em rituais que envolvem sacrifício, dança e culto a Dioniso, o
deus do vinho, da vegetação, do crescimento, da procriação e da
exuberância. As próprias explicações para o nome Tragédia, caminham
nesse sentido. Uns consideram a tragédia o canto (ode) do bode (tragos).
14
Raymond Williams, Tragédia Moderna, Cosac & Naify, São Paulo, 2002, p.29.
15
Idem, p.29.
10
Outros acham que o nome vem do bode sagrado sacrificado a Dioniso no
começo de suas festas.
Mas quem é esse Deus tão complexo, sobre quem se fala tanto? Sempre
vale uma lembrança…
O mito do deus da vinha narra que, na verdade, existiram dois Dionisos,
ambos resultados dos amores adúlteros de Zeus. O primeiro, Dioniso
Zagreu, nasce dos amores de Zeus e Perséfone. Preferido do pai, dos
deuses e dos homens, ele está destinado a suceder o próprio Zeus no
governo do mundo. Hera, a esposa de Zeus, como sempre
ciumentíssima, pretende liquidar o rebento. Para proteger o filho, Zeus o
entrega aos cuidados de Apolo, e ele é criado nas florestas do monte
Parnaso. Mas acontece que Hera descobre seu paradeiro e manda os
Titãs raptarem o jovem deus. Embora Dioniso consiga se disfarçar, com
várias metamorfoses, os Titãs prendem-no na forma de touro e o
devoram. É Palas Atená quem salva seu coração, ainda palpitante.
Pois bem, esse coração é engolido por Sêmele, princesa tebana, mais uma
mortal pela qual Zeus se apaixona. Desse modo, a mortal engravida (uma
variação conta que Zeus teria engolido o coração do filho antes de
engravidar a mulher). Mais uma vez, Hera resolve intervir e detonar
Sêmele.
A deusa se transforma na ama da princesa e oferece um conselho singelo:
que tal pedir ao amante que se manifeste como deus, em todo seu
esplendor. O problema é que um mortal não pode contemplar um deus em
sua forma original – no caso de Zeus, raios e trovões. Embora Zeus
11
advirta Sêmele das consequências do seu pedido, não tem como negar.
Havia prometido jamais contrariar seus desejos.
Resultado: ao se apresentar em sua forma divina, acaba ateando fogo ao
palácio da princesa, que morre carbonizada. Zeus recolhe o feto do ventre
da amante e o aloja em sua coxa, até que se complete a gestação. E aí
nasce Iaco, nome místico de Dioniso, Zagreu ou Baco. A criança é
confiada às Ninfas e aos Sátiros do monte Nisa. Lá, em gruta sombria,
cercado de vegetação e dos galhos da vinha, com os cachos da uva.
Um dia, Dioniso colhe alguns desses cachos, espreme as uvas em taças
de ouro e bebe o suco com sua corte. Nasce o vinho. Sátiros, ninfas e
Dioniso bebem. Dançam vertiginosamente, ao som de címbalos.
Embriagados, em delírio, caem por terra desfalecidos.
Desse mito, nascem rituais de comunhão com o deus. Através do êxtase e
do entusiasmo, os mortais comungam com a divindade.
Na Grécia, as correntes religiosas tinham um fim comum: sede de
conhecimento contemplativo (gnôsis), purificação da vontade para
receber o divino (kathársis) e libertação desta vida de nascimentos e
mortes, buscando a imortalidade. Mitos e cultos populares como o de
Dioniso, que morre e renasce e está ligado à natureza, chocavam-se
violentamente com a religião oficial da pólis, com deuses olímpicos
prontos para esmagar qualquer mortal que ousasse ultrapassar as medidas
do humano.
O homem dionisíaco, integrado a Dioniso pelo êxtase e pelo entusiasmo,
se libera de tabus e condicionamentos éticos, políticos e sociais. Sai de si.
12
Supera a condição humana, comunga com a imortalidade, ultrapassa as
medidas (métron), torna-se um herói (anér), alguém que responde em
êxtase e entusiasmo (hipocrites). Um ator, um outro.
Essa desmedida (hybris) é uma violência cometida contra os deuses e
provoca, imediatamente, o ciúme divino (nêmesis). A punição é imediata:
o herói mergulha na cegueira da razão (até). Todos seus atos se voltarão
contra si. O destino cego (moira) será seu fim.
“Eis aí o enquadramento trágico: a tragédia se realiza quando o métron é
ultrapassado. Por isso o Estado se apoderou da tragédia e fê-la apêndice da
religião política da pólis.”
16
Nos rituais dionisíacos nascem os ditirambos, cantos corais em honra a
Dioniso. A partir de improvisações do ditirambo, mesclados à antiga
tradição dos menestréis, nasce o núcleo dramático do que será a tragédia.
Como arte e espetáculo, a invenção da tragédia acontece entre os séculos
VI e V a.C., em paralelo à organização da democracia ateniense. Época
em que se institui o direito, são fundados os tribunais de cidadãos. O
mundo mental também se desenvolve: filosofia, geometria, medicina.
Acontece a quebra do modo de pensar mais arcaico. Valores começam a
ser questionados.
Diferentemente da poesia épica ou lírica, em que os poetas cantam heróis
lendários, geralmente em grandes festas, na tragédia ocorre o espetáculo.
Não é mais o poeta que canta, mas o personagem que se apresenta e
realiza suas ações para o espectador que, na Atenas do século V a.C., já
16
Junito de Souza Brandão, Teatro Grego, Tragédia e Comédia, Vozes, Rio de Janeiro, 1984, p.12.
13
tem consciência dessa ficção, dessa ilusão cênica que ocorrerá em
especial nos grandes festivais.
As inovações que a tragédia traz, portanto, são gritantes: gênero literário
original, tipo de representação e espetáculo que envolve toda a cidade,
forma de expressão da experiência humana, marco na formação do
homem interior e sujeito responsável. Está fundada uma verdadeira
tradição na arte ocidental.
14
1.4. O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA:
Todo ano, na época da vindima, em Atenas e em toda a Ática, acontecia a
festa do vinho novo. Na celebração, ao som do címbalo e à luz de
archotes, todos se embriagavam. Vestidos como sátiros (entidades na
fronteira entre o divino, o animal, o humano e o monstruoso), dançavam e
cantavam até cair.
Essas festas evoluem e se multiplicam em eventos rurais e urbanos. No
Século V a. C, na época de Péricles, é criada a Grande Dionisíaca, ou
Dionisíaca urbana. Entre março e abril, durante 6 dias, ocorrerá o evento
religioso, artístico e intelectual mais importante de Atenas. Entre 536 e
533 a.C, os concursos de representações dramática são incluídos na festa.
As comédias passam a fazer parte do evento provavelmente em 458 a.C.
Aliás, ém 534 a.C. que Psístrato, tirano de Atenas, traz de Icária o ator
Téspis, que zanzava pela zona rural com bando de dançarinos e cantores.
Téspis traz uma tremenda inovação: se coloca à parte do coro, como
solista, criando o papel do respondedor (hypocrites), ator, que
apresentava o espetáculo e dialogava com o corifeu, condutor do coro. Da
primeira apresentação de Téspis ao primeiro sucesso de Ésquilo se
passam cerca de sessenta anos. Nesse tempo, o gênero da tragédia não só
nasce como começa a evoluir, como veremos em seguida.
A Grande Dionisíaca era realmente uma tremenda festa, com procissões,
banquetes, concursos e premiações. Os gregos não conheciam o descanso
semanal, portanto só não trabalhavam nas festas religiosas – que eram
15
muitas. A festa instalava um outro tempo, de lazer, de mito, de
consciência, com um teatro festivo.
Tudo começava com um sacrifício a Asclépio, deus da saúde. Então,
ocorria o Proagón: evento que tornava pública as escolhas das peças,
atores e coros para o concurso dquele ano. Os poetas e atores se
apresentavam. O próprio poeta dizia qual o título e assunto de seu
trabalho.
O dia seguinte era dedicado a uma procissão para levar a estátua de
Dioniso Eleutério (o libertador) de seu templo ao teatro. Participavam
magistrados, sacerdotes, cavaleiros, virgens atenienses com cestas de
oferendas, coros, coregos, cidadãos e estrangeiros, os touros e bois que,
mais tarde, seriam sacrificados.
Nesse evento que durava um dia inteiro, aconteciam cantos, os coros
dançavam nos lugares sagrados, alguns carregavam falos. Depois,
ocorriam sacrifícios e banquetes. De noite, todos voltavam a Atenas, sob
a luz de tochas. A estátua era colocada no teatro, agora espaço sagrado.
No terceiro dia, mais uma procissão, que desembocava no concurso de
ditirambos. Divididos em suas 10 tribos, os cidadãos traziam vinho. Os
estrangeiros, água. Ambos eram misturados ritualísticamente. Por fim,
vinha o grande falo ereto.
A procissão dançava na ágora em honra aos deuses Olímpicos. A
apoteose ocorria no concurso de ditirambos: 20 grupos, cada um com 50
homens, cantando e dançando em honra a Dioniso ao som da flauta. Para
16
o melhor grupo, o prêmio era o primeiro touro sacrificado na festa que se
seguia. Momento perfeito para um congraçamento com muito vinho.
Como podemos ver, o cidadão não era mero espectador da festa.
Participava. Dançava nos ditirambos, que reuniam mil cidadãos por
certame. Ou eventualmente participava dos coros das tragédias ou
comédias.
No dia seguinte, chegava a vez da Comédia. Além das imensas ressacas,
imperava a derrisão, o humor corrosivo, atual, que mexia com a
audiência. De noite mais farra: comida, bebida, sexo.
A quarta manhã começava com a primeira tetralogia, conjunto de três
tragédias e um drama satírico. O drama satírico juntava coros de sátiros
que cantavam e dançavam, embriagados, em nome do deus, colocados no
universo do mito, com consequências farsescas. Apresentado após a
trilogia de tragédias (havia intervalo de meia hora entre cada obra), o
drama satírico relaxava os espectadores, que voltavam ao tempo da
celebração, e também os performers, extenuados após tanta
representação.
O programa começava ao raiar do dia, com solenidades e um toque de
clarim. Depois, os espetáculos, num total de cerca de seis horas de teatro.
No final do último dia, o resultado do concurso era divulgado e os
prêmios, entregues.
O julgamento era feito por júri de cidadãos, similar ao tribunais que
julgavam casos de direito, escolhidos por sorteio. Antes das
apresentações, era montado um júri com dez jurados. Após as peças e a
17
votação, novo sorteio selecionava apenas cinco votos válidos. A intenção
era tornar o mais democrática possível a escolha. O sorteio era
considerado um veículo para a vontade dos deuses.
Havia prêmios para o poeta, o corega (administrador/ produtor/
patrocinador) e, depois, para o protagonista. Entre os prêmios, dinheiro
para o corega (compensando seu investimento), coroas de louros para os
atores, além do prestígio e da “imortalidade”, através da elaboração de ata
oficial gravada em mármore (disdascalius), para os arquivos do estado.
No período clássico, século V a.C., cada obra era apresentada uma só vez.
Mais tarde passam a acontecer reprises e todo concurso começa pela
reapresentação de um clássico.
18
1.5. A PREPARAÇÃO DO EVENTO:
Não só as festas, mas o jogos, concursos e disputas eram parte
fundamental da cultura grega. Um concurso (agon), na vida pública dos
gregos, fazia mediação entre os conflitos, sem censurá-los. Papel
significativo numa democracia.
Os preparativos para o concurso de tragédias começavam muito antes do
evento. Do ponto de vista artístico, o poeta elaborava sua obra, que devia
ser apresentada para seleção.
Esse poeta não era exatamente nem o “poeta”, nem o “dramaturgo” como
conhecemos hoje. Não era um “escritor”. Misto de aedo e de ator, ele
pensava cenas, onde texto, canto e dança eram inseparáveis. Ele não só
elaborava as peças como muitas vezes atuava e dirigia (ao invés de
“diretor”, nesse papel era conhecido como “professor” – como hoje
vemos os jogadores de futebol chamarem seus treinadores).
A separação entre as funções ocorre ao longo do tempo, do
desenvolvimento dos concursos, do envelhecimento dos autores, da
necessidade de registrar as obras para futuras representações e,
principalmente, a partir da influência de Aristóteles que, com a Poética,
privilegia o texto da tragédia – que originalmente era pensada, sobretudo,
como performance. Desse modo, podemos afirmar que os gregos
inventaram a dramaturgia do ocidente.
Para participar de um concurso, bastava ao poeta inscrever sua obra em
uma seleção. Os mais altos oficiais do Estado, os Arcontes, que decidiam
19
todas as questões artísticas e organizacionais, também selecionavam as
três tetralogias (além das comédia e ditirambos, elencos e equipe
artística) apresentadas em cada concurso, provavelmente após assistirem
a alguns trechos executados pelo próprio poeta.
Depois de feita essa escolha, o Arconte indicava para cada poeta um
corega. A Coregia era uma liturgia de prestígio. Quatrocentas mil
pessoas habitavam a Ática; quarenta mil eram considerados cidadãos;
apenas mil e duzentos entre eles possuíam fortuna que comportava tal
tributação. Figura fundamental desse sistema de produção, o corega era o
cidadão ateniense rico que financiava o espetáculo.
Ou seja, bancava o aluguel da sala de ensaios, figurinos, equipamentos,
pagamento para o diretor do coro, diária dos artistas, bebida para os
executantes, banquete após apresentação… Uma coregia trágica não saia
por menos de 25 minas (uma Coregia de comédia, cerca de 15), sendo
que a mina valia cerca de cem dias de trabalho de um operário sem
especialização (uma Coregia de comédia custava módicas 15 minas).
À medida que o Estado empobrece, no fim da Guerra do Peloponeso, a
Coregia vira Sincoregia, e dois cidadãos se associam para bancar as
peças. Depois, essa função passa para um comissariado geral de
espetáculos (Agonotesia), com orçamento do Estado, mas ainda usando
recursos de patrocinadores. Esse empobrecimento, possivelmente,
contribuiu para o desaparecimento do coro.
Nessa democracia que exclui estrangeiros, escravos e mulheres,
encontramos responsabilidade cívica única. O cidadão ateniense participa
realmente do governo, em assembléias de gestão. Os espetáculos e a
20
sociedade democrática se pertencem. E, se a tragédia não é exatamente
teatro popular, inequivocamente é teatro cívico.
“Podemos dizer então que, ao instituir este tipo de espetáculo, a cidade se
torna teatro, se torna espetáculo. Da mesma forma torna-se instituição
política, torna-se tribunal.”
17
Espetáculo, religião e política, juntos.
Para Vernant, a tragédia grega é “a face teatral que a cidade adota para
expressar-se frente aos cidadãos”
18
. Um fenônemo da Grécia
democrática.
Uma manhã em um Theatron confirma isso.
17
Vernant, Entre Mito&Política…, p. 361.
18
Idem, p.361.
21
1.6. UMA MANHÃ NO THEATRON.
Teatro. Theatron. Lugar de onde se vê. Edifício que reúne a multidão
(entre dez e vinte mil pessoas) que assistirá às representações.
Em Atenas, o Theatron ocupa a encosta da colina do santuário de
Dioniso, ao sul da Acrópole, aproveitando a inclinação natural do terreno,
com arquibancadas semi-circulares ao sul. No plano inferior, o círculo
para a dança (cerca de 20 m de diâmetro), a orchestra. No centro do
círculo, altar sacrificial (timelê). Ao fundo, a área de representação dos
atores, uma barraca de madeira com estrado (skené). A princípio, os
edifícios teatrais eram de madeira, com piso de tetra batida (com o tempo
e os limites do teatro de madeira, que cedia sob o peso da multidão,
passam a ser feitos os teatros de pedra).
No círculo da orchestra, coro e atores se misturavam. Na evolução do
evento, ocorre a separação dos elementos. Os atores passam a agir numa
espécie de barraca ou cabana de madeira, colocada no fundo do círculo,
misto de palco e camarim, a skené. O coro, isolado, diminui até seu
desaparecimento, por razões culturais e econômicas.
Nesse teatro a céu aberto, em plena primavera, o mundo grego era
cenografia e personagem. A natureza também participava, com sua luz e
intempéries.
A própria ocupação do teatro era metáfora do mundo grego. A platéia se
divida por setores: autoridades nos lugares de honra, bem na boca da
orchestra, junto a juízes, poetas e coregas. Depois, senadores, efebos,
22
representantes de outras cidades, estrangeiros, determinados tipos de
escravos, meninos e, na parte mais alta e distante da arquibancada,
mulheres. Os ingressos eram subsidiados.
Chegando ao teatro, cada espectador recebia seu ingresso de metal com
número do assento. Não só não havia ruptura física entre o espetáculo e a
platéia, como os espectadores, imantados pela ação, se manisfestavam
com palmas ou pateadas. Os mais exaltados eram repreendidos por
oficiais. Todos comiam e bebiam durante o evento. Enfim, o público
participava mesmo do espetáculo.
O espetáculo, por sua vez, se beneficiava dessa estrutura. A acústica
maravilhosa permitia que cada sussurro fosse ouvido. As máscaras
ampliavam as vozes. E a visualidade da cena era poderosa.
Imaginemos a cena…
Atenas ao fundo. Multidão imantada pelo evento de uma semana. Uma
bela manhã de primavera. Na orchestra, um coro de 15 homens
mascarados canta e dança ao som da flauta. Ao fundo, na skené, com
panos de fundo pintados, movem-se os atores, com túnicas e mantos,
muitas trocas de máscaras e figurinos.
Efeitos e maquinários engrandecem a cena. Fumaça. Sons de trovões,
tumultos e terremotos provocados pelos técnicos. Um ente das trevas
surge no meio da cena, vindo do subsolo por uma escadaria subterrânea
(degraus de Caronte). Um deus vem dos céus e pousa sobre o teto da
skené (theologeion) trazido por um guindaste (o famoso Deus ex
machina). Uma porta central e duas laterais, na skené, dinamiza entradas
23
e saídas de atores e cria espaços cênicos externos ou internos. Uma
plataforma rolante traz ou tira de cena quadros de intensa emoção
(ekiklema).
A poesia do texto das tragédias, a música, a dança, em poderosa síntese
(choréia), também evoluem nesse período.
24
1.7. A ESTRUTURA DA MATÉRIA:
Se Téspis é considerado o responsável pela separação do ator do coro, é
Frinício de Atenas, seu discípulo, quem amplia sua função. O ator
começa a fazer trocas de máscaras e figurinos, masculinos e femininos,
com diversas entradas em cena. A declamação vai dando lugar à ação.
Frente ao coro, portanto, havia um narrador/autor, que, à medida em que
penetra da ficção da cena, vira personagem, figura do arcabouço cultural,
histórico e/ou lendário do mundo grego.
É atribuída a Ésquilo, em ordem cronológica o primeiro grande poeta
trágico (dos três que “sobraram”), a “invenção” do segundo ator, o que
garantia um verdadeiro diálogo entre dois personagens, em relação com o
coro.
O coro de certo modo se mantém ao largo da ação, embora dialogue,
aconselhe ou faça ameaças aos personagens, sofrendo, comentando ou
julgando as consequências de seus atos. Para tal, em cena, o coro
salmodia, canta e faz evoluções, com gestos e danças hieráticas. Ao chefe
do coro (corifeu) cabem eventuais falas e solos, todas metrificadas.
A estrutura dramatúrgica começa a se consolidar. Há o contraste entre a
fala e o lirismo (salmodiado ou cantado), com metros específicos,
dispostos em torno da ação dramática. A peça começa pelo prólogo, com
explicação da história. A seguir, o cântico de entrada do coro (parodos).
Alternação entre cantos do coro (stásimon) e episódios com as ações dos
personagens, diálogos líricos entre coro e e ator (kommos), virada no
25
destino dos personagem, reconhecimento de sua situação, lamento das
vítimas. Saída do coro (exodos).
Ésquilo, começa a competir nas Grandes Dionisíacas em 500 a.C.. Só em
472 a.C., com Os Persas, ganha seu primeiro prêmio. Se a ele é creditada
a entrada de um segundo ator no “elenco” do espetáculo, graças a
Sófocles chegaríamos a três.
Ésquilo teria escrito noventa peças, das quais sobraram sete. Apenas
quatro anos após a primeira conquista de Ésquilo, para quem a vontade
humana é impotente frente ao poder dos deuses, entra em cena seu maior
rival, um jovem rico, de 29 anos: Sófocles. É com esse maravilhoso
poeta que o personagem humano passa a desafiar os destinos que os
deuses lhe impõem. O homem de Sófocles é um rebelde, mesmo que
“rode” no final. Antígona que o diga.
É o terceiro grande poeta trágico, Eurípedes, quem joga a pá de cal nesse
processo de secularização da tragédia. O personagem de Ésquilo é
condenado por seus excessos; o de Sófocles desafia o destino; em
Eurípedes, o homem enfrenta o poder do acaso. Sófocles dizia que
representava os homens como eles deveriam ser, enquanto Eurípedes os
representava como eles são. Para Nietzsche, por exemplo, essa é uma das
razões do fim da Tragédia Grega…
As relações entre o espetáculo e a cidade são intensas. A coregia, o
concurso, o subsídio dos ingressos. A grande festa. O apogeu do gênero
não ultrapassa o fim do século. Com a derrota de Atenas para Esparta na
Guerra do Peloponeso, o modo de vida mudaria para sempre. Com a
26
morte da democracia ateniense, também acontece o primeiro passamento
da Tragédia.
O foco da tragédia é a relação entre indivíduo e sociedade, encarnada na
relação entre o herói e o coro, num contexto democrático.
O coro é um ser coletivo e anônimo, seus medos, esperanças, sentimentos
e julgamentos são os dos espectadores, a comunidade cívica.
O herói, indivíduo cuja ação é o centro do drama, pertence a outra época,
com modos estranhos aos do cidadão; embora pertença à nobreza, tenha
origens históricas mitificadas, não é um modelo, mas um problema.
“A verdadeira matéria da tragédia é o pensamento social próprio da cidade,
especialmente o pensamento jurídico em pleno trabalho de elaboração.”
19
Os poetas-autores jogam com esse vocabulário em formação. Com suas
incertezas, imprecisões, incoerências e duplos sentidos. Na Tragédia o
homem está no centro do debate, num universo em mudança. Quais são
as diferenças, como distingüir o plano do humano dos planos da natureza
e dos deuses? Os planos se opõem, mas ainda não são inseparáveis. A
ciência e a filosofia constróem discursos que buscam resolver a questão.
A tragédia faz o oposto. Encena a contradição e exibe o homem como
enigma. Nessa zona de fronteira, cada fala ou ação comporta muitos
sentidos e terríveis enganos.
A tragédia, portanto, fala de seu tempo e de seu mundo. Reflete seu
momento histórico. Entretanto, não o faz de modo direto. Não costuma
19
Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, Mito e Tragédia na Grécia Antiga, Perspectiva, São
Paulo, 2005, p. 3.
27
escolher seus temas entre os assuntos imediatos da pólis. Os autores que o
fizeram não tiveram boa acolhida, principalmente, pela polêmica
levantada. Sendo assim, a tragédia escolhe suas histórias entre as lendas
dos heróis gregos, seres que, a partir de uma existência histórica, viraram
base para mitos conhecidos do mundo grego.
Os poetas tratam seus heróis com liberdade e distanciamento. Criam
diversas versões para suas narrativas. Questionam suas ações e
comportamentos, na fronteira entre religião e direito.
O personagem está na encruzilhada de uma decisão. Precisa agir. De sua
decisão depende seu destino. E ele age! Embora escolha o que parece a
melhor alternativa, em geral ele acaba criando sua ruína, pois sua ação se
volta contra ele. Esse homem que acreditava ser dono de seus atos
descobre que isso era uma ilusão e que, além de herói, ele também é
criminoso e monstro.
“Por trás da tragédia há uma pergunta geral: qual é a relação do homem com
seus atos? Em que medida ele é realmente seu autor? Seu ato não é resultante
de outros elementos, cuja existência ele só perceberá tarde demais? Assim
sendo, ele é inocente ou culpado? O que é a culpa? O erro e a inocência não
estão misturados? Por trás dos atos humanos não há dramas, crimes, queixas,
lutos, já que é sempre o sangue que escorre, a cada momento, manifestando-
se no próprio texto, a presença dos deuses?”
20
A tragédia é um feixe de perguntas e contradições de um homem definido
como enigma. Ou seja, homem sem definição, em conflito com sua
sociedade e seu mundo. Emoções, paixões, impulsos, desejos,
julgamento, loucura. Política, direito, religião. O homem com suas
20
Jean-Pierre Vernant, entrevista a Fabienne Darge, material colhido na internet, no site da Folha de
São Paulo.
28
dimensões além e aquém do humano. Édipo, por exemplo, é a maior
prova de como o homem trágico acumula sofrimentos e horrores. O
homem trágico: resposta ao enigma da esfinge: mutante que se arrasta e é
arrastado pelo tempo, monstro que reúne em si todos os estados de uma
naureza extraordinária e que só compreende que é incompreensível à
custa de sofrimento. Enigma sem resposta. Duplo. Dilacerado.
Nesse vórtice, ele é um homem que erra.
29
1.8. AS PALAVRAS ERRANTES DO MACEDÔNIO:
O primeiro autor a tentar sistematizar o estudo da tragédia desembarca
em Atenas em 367 a.C. O jovem Aristóteles, aos 17 anos, chega a Atenas
muito tempo depois do auge e do declínio da Tragédia. Vindo da
Macedônia, o filho do médico real tem como objetivo estudar na
Academia de Platão, ao lado das melhores cabeças de seu tempo. Passará
lá os próximos 20 anos, em relação de amor e ódio, como maior discípulo
do mestre.
A viagem de estudos que começara como estratégia – preparar o jovem
brilhante com o melhor do helenismo continental e depois
“disponibilizar” esse conhecimento na Macedônia, como preceptor do
príncipe – vira uma profunda opção de vida.
Aristóteles ganha notoriedade como força intelectual, mas também não
escapa de acusações: seria espião macedônio entre os atenienses. Graças
a isso, durante o domínio de Demóstenes, Aristóteles vai embora de
Atenas, na primavera de 347 a.C.. Vira, então, preceptor do jovem
Alexandre.
Somente em 334 a.C., com clima político mais ameno, volta para Atenas
e vai ensinar no Liceu. Sua trajetória intelectual é deslumbrante. Física,
metafísica, política, retórica, poética… Nada escapa de sua reflexão.
Ao mesmo tempo, sua vida também é cheia de intrigas. Teria Aristóteles
envenenado Alexandre, seu pupilo, por razões políticas? Enfim,
Aristóteles morre aos 63 anos, talvez também envenenado. Seu
30
pensamento sobreviverá não só nos seus escritos, mas também – e
principalmente - nas anotações de seus alunos, feitas ao longo de 13 anos
de cursos no Liceu.
Graças à prática do comentário e reescrita, tão própria de sua era, boa
parte de suas idéias se propagou, mesmo que abarrotada de lacunas, que a
própria arte do comentário e da reescrita tratou de preencher.
Sorte similar teve a biblioteca de Aristóteles, com seus livros e escritos.
Passou de mão em mão, como herança entre mestres da Academia, e
acabou na cantina úmida dos descendentes de um deles, Neleu. Essa
gente, que já não tinha nada a ver com filosofia, conservava o material
como um patrimônio, um recurso financeiro, mas sem nenhuma atenção à
conservação de seu tesouro.
Embora alguns tentassem adquirir o material, inclusive representantes da
mítica biblioteca de Alexandria, a família manteve sua posse por
gerações. Enquanto isso, os livros apodreciam. Foram, finalmente,
vendidos a Apelicão de Téos. Este fez cópias do material, preenchendo a
seu bel prazer as lacunas. É essa a base do Aristóteles que conhecemos.
A Poética, o texto onde Aristóteles faz sua famosa definição de tragédia,
é bom exemplo desse tipo de percurso. O material que conhecemos seria
o primeiro volume de um tratado da arte poética, do qual o resto,
principalmente o estudo sobre a comédia (que até best seller e filme já
rendeu - O Nome da Rosa, de Umberto Eco), teria se perdido.
A Poética é um conjunto de anotações de aulas que pressupunha os
comentários do mestre. Reunião de considerações formais e textuais
31
sobre um fenômeno que, para o autor, é antes de tudo poesia e, depois,
espetáculo. É construído a partir de uma experiência da tragédia muito
distante do auge dos trágicos, que ocorrera no mímino meio século antes.
Provavelmente Aristóteles assistiu a reapresentações dos “clássicos”. E,
principalmente, tinha a sua disposição os textos remanscentes das obras.
Mesmo esses textos são uma pequena mostra do que se produziu no
século V a.C.. Não nos esqueçamos que os trágicos produziam
espetáculos, não escreviam peças. Os papiros com roteiros originais,
anotações para a própria produção, lidos hoje se assemelhariam a
monólogos beckettianos. Nada de separação entre os personagens, nomes,
pontuação. Tudo é uma espécie de massa de palavras que precisa ser
destrinchada – e o foi, ao longo dos séculos, por maravilhosos filólogos.
Há documentos que comprovam que Ésquilo, Sófocles e Eurípedes
foram reconhecidos em seu tempo. Embora existissem outros autores de
destaque, dos quais não temos o trabalho. Grande parte do que sabemos
dos grandes trágicos está ancorada nas preferências dos leitores do século
II a.C., que reuniram em livro sete tragédias de Ésquilo, sete de Sófocles
e dez de Eurípedes. Restam mais pecas de Eurípedes, mas devemos
nosso conhecimento de Sófocles e Ésquilo a essa coleção.
Portanto, debruçado sobre esse mundo já, digamos, literário, Aristóteles
elabora sua Poética, também ela sujeita a traduções e reelaborações ao
longo da história. As versões contemporâneas têm como base manuscrito
do século XII, com suplementos de versões do sésculo XIII e XIV, mais
uma tradução árabe do século X.
32
Se considerarmos a importância do documento para a história da
literatura e do teatro, é curioso notar que sobre lacunas e
desentendimentos foram construídas teorias e regras poderosas.
Vamos então para a definição aristotélica da tragédia: a tragédia é um
trecho de lenda heróica, completo em si mesmo, elaborado poeticamente
para ser representado em culto público no santuário de Dioniso, por um
coro de cidadãos atenienses e dois ou três atores.
“ É pois a tragédia imitação de ações de caráter elevado, completa em si
mesma, de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies
de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do drama, imitação que se
efetua, não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitanto o terror e a
piedade, tem por efeito a purificação desses sentimentos.”
21
A pesquisadora brasileira Daisi Malhadas faz uma bela – espacial -
tradução do trecho aristotélico:
“A tragédia é a representação
De uma ação
Nobre e completa,
Com uma certa extensão,
Em linguagem poetizada,
Cujos componentes poéticos se alternam nas partes da peça,
Com o concurso de atores e não por narrativa,
Que pela piedade e pelo terror opera a catarse desse gênero de
Emoções”
22
Cada um dos termos empregados por Aristóteles tem dado muito pano
para a manga na história da poéticas e das representações. Este trabalho
não pretende entrar nessa briga.
21
Aristóteles, Poética, Guimarães Editores, Lisboa,1964, p. 110.
22
Daisi Malhadas, Tragédia Grega, O Mito em Cena, Ateliê Editorial, Cotia, 2003, p.17.
33
Aristóteles considera o mythos (o enredo, a fábula, o mito, a história…) a
alma da tragédia. Com ele têm concordado grande parte não só dos
teóricos, mas dos dramaturgos, como o próprio Brecht. Faço,
modestamente, parte do grupo.
Destacaremos aqui, brevemente, não só papel do enredo (mythos), como
da representação (mimesis) e da catarse (kátharsis).
O mythos, ou enredo, é um sistema de atos que, a partir de lendas, cria o
texto da tragédia. Aristóteles recomenda que o mito tenha unidade em
seus acontecimentos, leve a uma reviravolta e a um reconhecimento. O
caráter (ethos) de um personagem não é pré-determinado. Nasce de uma
ação: da escolha que ele precisa fazer em determinada situação.
O paradigma é o herói que realiza determinado número de ações, numa
situação dramática, que acarretam consequências diferentes das que ele
desejava e desembocam num momento em que o herói reconhece seu
novo estado e o que o levou a ele. Mais uma vez, Édipo é o modelo.
Ao “montar” uma tragédia, o autor desenha cenas, agencia diálogos, se
aproveita de uma manancial de personagens que pertencem ao imaginário
do seu povo para fazer um roteiro. Organiza as cenas para que o cidadão
comprenda a ação que, numa determinada situação, tal personagem, por
necessidade e em nome da verossimilhança, realizará, com resultados
apresentados a seguir. Cria uma coerência interna no destino humano que
não costumamos conhecer de outro modo, em nossa vidas tão
incoerentes.
34
Esse processo de recriação das ações humanas é chamado de mímese
(mimesis). Mímese é uma representação poética, uma criação – e não
apenas uma imitação. Mais do que isso, a mímese é uma simulação.
“A palavra pode designar uma experiência rigorosa, uma experimentação
controlada das condições de realização de um projeto, de uma empresa ou de
verificação de uma hipótese. Antes de enviar um homem à Lua ou de montar
uma operação militar em território inimigo, podemos, no espaço limitado de
uma maquete, testar antecipadamente os diversos cenários que podem se
apresentar, para ajustar melhor as ações apropriadas. É neste sentido que
devemos entender a mímesis trágica.”
23
A Tragédia pega histórias de uma tradição cultural e as organiza em uma
experimentação, como em ciências como a física ou química. A mímese é
uma “experiência simuladora”
24
que pretende esclarecer o destino e a
existência humana.
No caminho desse esclarecimento, passamos por diversas emoções.
Aristóteles enfatiza o terror que a catástrofe de um personagem provoca e
a compaixão que sentimos com isso. Ao fim desse processo, atingimos a
consciência do humano como algo ambíguo, duvidoso, poderoso e nulo.
E ao invés de sairmos do teatro destroçados, encontramos novas forças.
Afinal, passamos pela catarse (kátharsis).
Kátharsis, originalmente, é um termo médico grego, que significa
purgação. Um dos mais controvertidos da poética, já foi pensado de modo
moral, psicológico, intelectual, artístico, religioso, político ou como
combinação disso tudo. Sublinhamos aqui o esclarecimento existencial
que ela pode provocar. Esse modo aristotélico de pensar a tragédia como
gênero, além de descritivo, tem algo de normativo e teleológico, visando
23
Vernant, Entre Mito…, p. 395.
24
Idem, p. 349.
35
determinados efeitos psicológicos e morais sobre seu receptor. Mas, não
nos esqueçamos, se a catarse purga, purifica ou coisa do gênero, ela
também libera o espectador para o prazer, prazer sensorial e estético –
fim da tragédia, segundo o próprio Aristóteles. E tudo isso através do
“terror” e da “piedade”...
Roberto Machado, em seu magnífico estudo O Nascimento do
Trágico
25
, prefere, a “terror” e “piedade”, os termos “medo” e
“compaixão”, cujos sentidos ele acompanha não só na Poética, mas
também na Retórica de Aristóteles.
“A compaixão é a emoção sentida pelo espectador perante o personagem que
cai na infelicidade; o medo é a emoção que o espectador sente em relação a
que o ocorrido ao personagem possa acontecer com ele. O medo faz tremer
por si próprio, a compaixão, pelo outro.”
26
Paradoxalmente, ao sentir essas emoções e ao “purificá-las”, o espectador
sente prazer – e não sofrimento. A catarse “substitui o sofrimento pelo
prazer”
27
, graças à atividade mimética. Isso gera emoção estética. Prazer.
Nietzsche retoma a questão do prazer em O Nascimento da tragédia.
Para o pensador alemão, a Tragédia é a união perfeita de duas forças
contrárias, o apolíneo e o dionisíaco. Onde o primeiro gera a aparência e
a individuação, o segundo aspira ao infinito, lança o espectador no
universal. Por isso, a tragédia é, por excelência, a arte de “querer ao
mesmo olhar e desejar-se para muito além do olhar.”
28
25
Roberto Machado, O Nascimento do Trágico, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2006.
26
Idem, p. 29.
27
Ibidem, p.29.
28
Vernant, Entre Mito…, p. 141.
36
Assim, o prazer que ela proporciona é, simultaneamente, estético e
metafísico:
“a existência e o mundo aparecem justificados somente como fenômeno
estético: nesse sentido precisamente o mito trágico nos deve convencer de
que mesmo o feio e o desarmônico são um jogo artístico que a vontade, na
perene plenitude de seu prazer, joga consigo própria.”
29
Para que ela funcione, portanto, não precisamos do que Nietzsche chama
de espectador crítico-socrático, mas um ouvinte estético, apto a captar
tudo isso. O que nos leva à questão da recepção da Tragédia no mundo
grego.
A Tragédia também tem importância na tomada de consciência do fictício
no mundo grego. Diante do espetáculo no teatro, o público entrava no
jogo, comprendia que as ações que assistia se passavam no plano da
ilusão teatral, diferente do real, adquirindo consciência da ficção e da
ilusão.
A Tragédia Grega propõe questões. Sobre o homem, sua natureza, seus
atos e responsabilidades pessoais e sociais, dadas nas relações entre o
herói e o coro. Ao longo dos séculos, essas questões têm sido
continuamente recolocadas.
29
Friedrich Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, Cia. das Letras, São Paulo, 1992, p. 141.
37
1.9. PEQUENA PAUSA TRÁGICA:
Cuidado semelhante ao que dedicamos ao conceito de “Tragédia”
podemos dedicar ao de “Trágico”.
Na Grécia clássica, o termo “Trágico” dizia coisas bem diferentes das que
costuma dizer hoje em dia, e não tinha uso tão comum. Era, em suma,
mais aplicado à literatura do que à vida. Acompanhemos as palavras de
Glenn W. Most, em seu texto Da tragédia ao trágico. Para o autor, na
Grécia clássica, quando o termo “Trágico” é…
“Aplicado ao estilo literário significa ‘esplêndido, grandioso’, opõe-se a
‘claro, facilmente inteligível’, e é geralmente negativo; aplicado a
circunstâncias ou condições externas significa ‘magnífico, pomposo’, opõe-se
a ‘comum, simples’, e é frequentemente negativo; aplicado a personalidades e
estados psicológicos significa ‘arrogante, presunçoso, vaidoso’, opõe-se a
‘modesto, afável’, e é sempre negativo; aplicado a uma variedade de
discursos significa ‘mítico, ficcional, filosoficamente não-sério ou
historicamente não-verificável’, opõe-se a ‘científico’, e é uniformemente
negativo. É em apenas comparativamente muito poucas passagens que
eventos tristes são referidos como sendo tragikon; em tais casos, a conexão
com o gênero teatral da tragédia é quase sempre óbvia, pois não apenas um
alto grau de sofrimento está envolvido como também um elemento de
espetáculo e espectadores reais. Em síntese, tragikon descreve, na maioria das
vezes pejorativamente, algo ou alguém que excede, ou especialmente quer
exceder, as normas humanas comuns aplicadas a todos os outros”.
30
No mundo contemporâneo, usamos o termo “Trágico” de outro modo.
Em geral qualificamos de trágico acontecimentos extrema e nobremente
tristes, que envolvem perda irreparável de um indivíduo único, a morte de
um ser humano (excluindo aí a morte natural ou justificável em nome de
bem maior), em geral inesperada, desnecessária e prematura. Por isso,
30
Glen W. Most, Da tragédia ao trágico, in Denis Rosenfield (editor), Filosofia e Literatura: o trágico,
Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2001, p. 23.
38
acidentes em geral, mortes de crianças e catástrofes são chamadas, em
senso comum, de “Trágicas”.
Resumindo, a palavra marca situações que colocam de modo marcante
essa “contradição fundamental” entre desejos humanos e a indiferença do
universo onde vivemos e onde, sob essa ótica, acabamos por fracassar.
Nos dois últimos séculos, escritores, filósofos e intelectuais em geral
desenvolveram um sofisticado conceito do trágico que, apesar das
diferenças entre os autores, trabalha um núcleo comum a esse seu uso
cotidiano.
“… uma aparência de significação esconde a arbitrariedade fundamental das
coisas; uma responsabilidade pessoal esmagadora que vai muito além dos
estreitos limites da liberdade de ação e não é diminuída pelas limitações
evidentes da necessidade cega; uma nobreza indestrutível no espírito humano,
revelada especialmente no sofrimento, na insurgência, na renúncia e na
compreensão; um inextricável nó do destino, cegueira, culpa e expiação; uma
sabedoria final a respeito da grandeza e da inconseqüência do homem no
universo, finalmente alcançada através da purificação conferida por um
profundo sofrimento no mínimo parcialmente não merecido e às vezes
pagando o preço de total aniquilação.”
31
Assim, Lesssing, Kant, Schiller, Schelling, Hegel, Kierkegaard,
Nietzsche e uma verdadeira seleção européia de pensadores
desenvolveram essa visão do trágico – a partir da leitura das principais
tragédias - como aspecto fundamental da existência humana.
A tragédia, aí, é documento filosófico que estabelece e organiza as idéias
desses pensadores, falando sobre a totalidade do que existe, sobre o
próprio ser. Por mais diferenças que existam entre essas idéias, há uma
continuidade, a partir dessa leitura ontoteológica da tragédia.
31
Idem, p. 24.
39
“ Essa continuidade está justamente em considerar a tragédia grega como
documento ontológico, como um documento de filosofia primeira, um
documento metafísico ou, para empregar a linguagem de Heidegger,
retomada por Taminiaux, ontoteológico, isto é, como dizendo respeito ao ser
dos entes em sua totalidade. Assim, para o pensamento do trágico, em geral, o
mythos – o enredo, a intriga, a fábula – da tragédia não é político, não trata
propriamente da interação dos homens e dos perigos que a ameaçam; é
ontológico, no sentido de que a tragédia imita, apresenta a obra do próprio
ser, entendido seja como identidade, espírito, vontade, unidade, etc.”
32
Nas palavras de Glenn W. Most, esse
“construto romântico do trágico permaneceu de longe o paradigma mais
influente para compreender o gênero da tragédia até recentemente, quando
modelos rituais sociológicos, antropológicos, institucionais e religiosos
começaram a prevalecer, pelo menos em alguns círculos eruditos. Mas por
quanto tempo o pêndulo vai balançar naquela direção, e o que virá depois,
ainda está por ser visto.”
33
Desse modo, projetamos sobre o gênero da tragédia esses ideais do
trágico. Assim, ela passa a ser trágica por excelência quando, na verdade,
em seu universo de origem, ela era em primeiro lugar o teatro das tensões
política entre o indivíduo e sua comunidade, no contexto da democracia
ateniense.
“Pois a vida só pode parecer trágica quando, por um lado, nós ainda
mantemos a expectativa de que o mundo deveria ter sentido, mas, por outro,
não estamos mais certos de que há um deus que garante o seu sentido.”
34
Estudando essa tradição moderna do trágico, o estudoso Peter Szondi
busca uma estrutura subjacente a tantos autores. Acaba por concluir que
não há o trágico. Uma essência, um núcleo imutável no homem – como,
aliás, parece nos conduzir o pensamento romântico sobre o trágico.
32
Roberto Machado, O Nascimento do Trágico, Jorge Zahar Editor, Rio de janeiro, 2006, p.44.
33
Glen W. Most, Da tragédia ao trágico, in Denis Rosenfield (editor), Filosofia e Literatura: o trágico,
Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2001, p. 24 e 25.
34
Idem, p.35
40
Existem muitos modos de pensar e elaborar o pensamento trágico – todos
eles históricos.
“… chega-se apenas a uma conclusão: não existe o trágico, pelo menos não
como essência. O trágico é um modus, um modo determinado de
aniquilamento iminente ou consumado, é justamente o modo dialético. É
trágico apenas o declínio que ocorre a partir da unidade dos opostos, a partir
da transformação de algo em seu oposto, a partir da autodivisão. Mas também
só é trágico o declínio de algo que não pode declinar, algo cujo
desaparecimento deixa uma ferida incurável. Pois a contradição trágica não
pode ser superada em uma esfera de ordem superior – seja imanente ou
transcendente. Se for esse o caso, ou o aniquilamento tem como objeto algo
de insignificante, que como tal escapa à tragicidade e se manifesta no cômico,
ou a tragicidade é superada no humor, suplantada na ironia, ultrapassada na
crença.”
35
Para Szondi, o que há em comum entre as formas de trabalhar o trágico é
sua estrutura dialética. Szondi vê o trágico como uma dialética. Mas uma
dialética insolúvel. Sem saída. Enfim, um paradoxo. (Aplicada ao teatro,
essa dialética cuja conta não fecha, essa dialética que, ao invés da síntese,
leva ao aniquilamento, é considerada por Lehmann uma das fontes do
teatro pós-dramático.
36
Afinal, aponta para a crise do dramático e para
sua dissolução. Mas essa já é outra história…)
Hoje, há pesquisadores que já falam em “pós-trágico”
37
. O prefixo indica
a radicalização do conceito, típica da contemporaneidade (pós-moderna,
pós-dramática…). A breve história do trágico aqui traçada – e as sendas
que seguiremos a seguir - apontam para a pertinência do termo.
35
Peter Szondi, Ensaio sobre o trágico, São Paulo, Cosac & Naify, São Paulo, 2004, p. 84-85.
36
Hans-Thies Lehmann, Postdramatic Theatre, Routledge, Londres, 2006, p.43.
37
Ettore Finazzi-Agró, Roberto Vecchi e Maria Betânia Amoroso (orgs.), Travessias do Pós-Trágico:
os dilemas de uma leitura do Brasil, Unimarco Editora, São Paulo, 2006.
41
1. 10. A MORTE DA TRAGÉDIA:
“Pode ser que existam forças demoníacas dentro e fora de nós, preparadas para nos
destruírem; pode ser que acabemos na escuridão, no desespero e no suicídio. E faz
parte da dignidade de um homem e de uma mulher olhar de frente esta possibilidade:
saber, pelo menos, que tal pode acontecer. As maiores tragédias gregas ensinam-nos
constantemente essa possibilidade de pesadelo.”
38
Os problemas humanos encenados pela primeira vez na tragédia grega
fundam uma tradição. Para compreender a mecânica dessa tradição, nos
lançamos até agora na compreensão dos traços do momento histórico de
sua invenção.
A tragédia exibe a trama pela qual um ser caminha para a perdição em
razão de suas próprias ações. Expõe literalmente ao sol as forças
contraditórias que se debatem dentro de cada indivíduo, em suas relações
com seu próximo, sua família, sua sociedade. É um terrível
questionamento sobre a lógica ilógica de nossa condição.
Como o assunto do gênero é um paradoxo, esse homem monstruoso e
divino, ela acaba muito maleável, adaptável, reciclável, conseguindo se
adequar, servir de parâmetro ou oposição em muitos momentos
históricos. As metamorfoses do conceito de trágico confirmam isso. Ou
seja, o diálogo com o caos continua ao longo dos séculos.
“Há tragédia quando, pela montagem dessa experiência imaginária que
constitui um roteiro, com sua progressão dramatizada através dssa mímeis
práxeos, como diz Aristóteles, dessa simulação, de um sistema coerente de
ações seguidas que conduzem à catástrofe, a existência humana acede à
38
George Steiner, in Oliver Taplin, Fogo Grego, RTC/Gradiva, Lisboa, 1990, p.36.
42
consciência, ao mesmo tempo exaltada e lúcida, tanto por seu preço
insubstituível quanto por sua extrema vaidade.”
39
Os momentos em que encontramos fenômenos teatrais mais próximos
daquilo que foi a tragédia da Grécia do século V a.C. são a Inglaterra
elizabetana e a França do Século XVII (1640-1660). Skakespeare, com
uma “tragédia aberta”, mistura de uma infinidade de fatores, um olho na
peça, outro no público. E Racine, a pureza neoclássica das formas
fechadas, o rigor das unidades.
Não é escopo desse trabalho, embora pareça tentador, analisar esses
períodos ou seus principais autores. Pretendo aqui apenas pontuar uma
tradição. Entre outros pontos desse mapa, podemos citar a criação da
Ópera como desdobramento da tragédia ou a influência que a Poética de
Aristóteles, direta ou indiretamente, tem exercido na criação de
dramaturgia e literatura.
De toda forma, é George Steiner, em A Morte da Tragédia, quem dá
boas pistas sobre a vida e o aparente “falecimento” da dita cuja.
“Mas se considerarmos os dois mil e quinhentos anos que nos separam da
tragédia grega, a história do drama trágico impressiona por conter pouca
continuidade ou tradição evidente. O que impressiona é um sentido de
ocasião milagrosa. Sobre vastas distâncias de tempo e lugares diversos,
elementos de linguagem, circunstância material e talento individual se
reúnem, de repente, para a produção de um corpo de dramaturgia séria… Tais
momentos de pico aconteceram na Atenas de Péricles, na Inglaterra do
período entre 1580-1640, na Espanha do século XVII, na França entre 1630 e
1690. Depois disso, o encontro necessário entre momento histórico e gênio
pessoal parece que aconteceu somente duas vezes: na Alemanha, no período
entre 1790 e 1840 e, de modo muito mais difuso, em torno da virada do
século XX, quando o melhor do drama escandinavo e russo foi escrito.”
40
39
Jean-PierreVernant e Pierre Vidal-Naquet, Mito e Tragédia…, p. 219.
40
George Steiner, A morte da Tragédia, Perspectiva, São Paulo, 2006, p. 62.
43
Ou seja: para Steiner, Woyzeck, de Büechner, é “a primeira tragédia
real da baixa vida.”
41
– abrindo um caminho precocemente destroçado.
Strindberg, Ibsen, Tchékhov são revolucionários do sofrimento
moderno, mas escreveram em línguas de menor penetração no cânone
europeu, conseguindo, portanto, “menor” repercussão. Sempre, é claro,
no entender de Steiner, para quem a modernidade e, em especial, o século
XX, trabalharam incansavelmente os destroços da Tragédia.
“Os poetas trágicos do nosso tempo se tornaram assaltantes de túmulos e
conjuradores de fantasmas sem a antiga glória”
42
O sanguinário século XX, com eventos trágicos como as duas grandes
guerras, Hiroshima e Nagasaki, os campos de concentração nazi e os
expurgos comunistas – para ficar nos mais extremos acontecimentos de
um rol que incluiria chacinas de toda natureza, nos quatro cantos do
planeta, tiranias absurdas e conflitos que ao menos tentaram aniquilar a
humanidade do homem… Tudo isso foi ponto de partida para obra dos
maiores artistas e pensadores, que buscaram anteparos ou influências no
passado clássico.
Freud e Jung. Yeats, Hofmannsthal, Cocteau, T.S. Eliot. Joyce.
Isadora Duncan. Picasso. Claudel e Brecht. Sartre e Camus
Isso em falar em Beckett, cuja obra fornece marcos para a compreensão
do esvaziamento da experiência do homem contemporâneo e a tragédia
que o nada nos impõe.
41
Idem, p. 157.
42
Ibidem, p.173-174.
44
Patrice Pavis, por sua vez, pensa que o que acontece no teatro da
segunda metade do século XX é justamente uma recolocação histórica do
trágico. Após acontecimentos como Hiroshima e o Holocausto,
consciente não só da evitabilidade do trágico como de seu papel na trama,
o homem caminha para uma visão irônica e absurda da sua própria
condição, da sua própria existência.
“Do trágico ao absurdo, o caminho é por vezes curtíssimo, principalmente
quando o homem não consegue mais identificar a natureza da transcendência
que o esmaga ou desde que o indivíduo põe em dúvida a justiça e a
legitimiade da instância trágica.”
43
Para Pavis, muitas vezes o trágico simplesmente é desativado, ou as
coisas se confundem:
“em nossos dias, a confusão entre o trágico e o absurdo é muito maior porque
os dramaturgos do absurdo (Camus, Ionesco, Beckett etc.) parecem ocupar o
terreno da antiga tragédia e renovar a aproximação dos gêneros misturando
cômico e trágico como ingredientes básicos da condição absurda do homem.
Basta de tragédia nas regras, mas um sentimento tenaz do trágico da
existência.”
44
Sempre provocativo, George Steiner, em A Morte da Tragédia, ousaria
dizer que, infelizmente, o clássico conduz a um passado morto.
Num mundo dominado pelas metafísicas cristã ou marxista a tragédia não
é possível. Mas um mundo sem divindades, racional e sem metafísica
também não a permite.
Por outro lado, o drama como puro entretenimento, sem memória do
ritual também não estimula a tragédia. Assim como as separações entre
teatro e literatura.
43
Patrice Pavis, Dicionário do Teatro, São Paulo, Perspectiva, 1999, p. 419.
44
Idem.
45
Assim, nesse novo contexto, a “ ‘quase-tragédia’ seria, de fato, outra
palavra para melodrama.”
45
Afinal, a tragédia é selvagem. Um ultraje.
Um protesto. Uma rebeldia. Uma recusa contra a sensibilidade classe
média. Um avanço ao extremo da vida, num palco precário entre céu e
inferno, onde a mente encara o negror e a vertigem.
Para Steiner, “esse é, em essência, o dilema da tragédia moderna.”
46
Nessa sinuca de bico, Steiner, estrategicamente, afirma que a tragédia
está morta.
Mas… Num último, curto e extraordinário capítulo, digno de um oráculo
das antigas tragédias gregas, Steiner estende um tabuleiro para o leitor
que pretenda jogar com as peças da tragédia. Steiner propõe três
caminhos possíveis.
No primeiro, Deus se retirou. Lá pelo século XVII, cansado da selvageria
e desumanindade do homem, Deus se mandou para um canto obscuro do
universo. Lá permance, alheio e incomunicável. Nessa hipótese, sem o
peso, sem a sombra de Deus, não pode mais existir tragédia.
Numa segunda rota, a tragédia continua sua tradição, mesmo com
mudanças técnicas. Dá como exemplo a Mãe Coragem, de Brecht
revelia da própria ideologia do dramaturgo alemão). Aliás, Steiner é
preciso. Fala não apenas da personagem, mas de um momento específico:
45
George Steiner, A morte…,p.75.
46
Idem, p.184.
46
o grito mudo da encenação orginal do Berliner Ensemble, dirigida pelo
autor, com Helene Wiegel no papel título.
“ Eu assisti à atuação de Helene Wiegel em cena com o elenco de Berlim
Oriental, embora atuação seja uma palavra desprezível para o
deslumbramento de sua encarnação. Diante do corpo estendido de seu filho,
ela simplesmente sacudia sua cabeça em negação muda. Os soldados
compeliam-na a olhar novamente. Novamente ela não dava sinal de
reconhecimento, somente um olhar morto. Enquanto o corpo era carregado,
Weigel olhava para o outro lado e rasgava sua boca imensamente aberta. A
forma do gesto era a do cavalo berrante na Guernica de Picasso. O som que
surgia era cru e terrível além de qualquer descrição que eu conseguisse fazer.
Mas, na realidade, não havia som. Nada. O som era silêncio total. Era o
silêncio que gritava por todo teatro a ponto do público abaixar sua cabeca
como diante de uma rajada de vento. E aquele grito no interior do silêncio me
parecia ser o da Cassandra quando ela vaticina os vapores de sangue na casa
dos Atreus. Foi o mesmo grito selvagem com o qual a imaginação trágica
marcou pela primeira vez nossa sensação de vida. O mesmo lamento
selvagem e puro sobre a desumanidade do homem e desperdício do homem.
A curva da tragédia, talvez, seja inquebrantável.”
47
Na terceira possibilidade, Steiner elabora um macabro, cínico e sinistro
renascimento da tragédia, em um ritual de camponeses numa comuna
agrícola chinesa. Eles repentinamente largariam dos instrumentos
agrícolas e se reuniriam na praça. Formariam um coro e entoariam
canções de ódio aos inimigos da China. O líder se destacaria e encenaria
dança violenta, uma pantomima contra os bandidos imperialistas. Tudo
terminaria com recital sobre a morte heróica de um líder comunista.
“Será que não foi asim, com algum rito comparável de desafio e honra aos
mortos que a tragédia começou, três mil anos atrás, sobre as planícies de
Argos?”
48
Assim termina a obra polêmica que Steiner lançou em 1961. Quarenta e
cinco anos se passaram. Não apenas a Guerra Fria acabou, assim como a
Berlim Oriental de Brecht, o mundo e (o sonho? O delírio?) socialista.
47
Ibidem, p. 201.
48
Ibidem, p. 201.
47
Uma nova narrativa poderia contar a existência de uma outra China, hoje
um dos maiores gigantes do mundo globalizado. Em suas imensas
indústrias e fábricas, milhões de operários realizam a dança chapliniana
do trabalho. Talvez esses chineses possam, em coro, cantar a gradual
dominação que seus produtos ultra-competitivos estão operando mundo
afora, revolucionando o consumo, ou o extraordinário crescimento da
China capitalista, puxando o bonde dos países “emergentes”. Com
certeza, assim a China é cantada aqui no velho Ocidente, que se excita e
se exercita em novas parcerias com o maravilhoso gigante. Será essa uma
nova comédia?
Mas poderíamos construir outras cenas: o ritual do terrorista que prepara
o sacrifício de milhares de inocentes; ou a tragédia do 11 de setembro,
com seu gigantesco coro, encenada numa bela manhã americana para
bilhões de espectadores do imenso teatro global, na ubíqua sociedade do
espetáculo…
Num outro polo, haverá uma continuidade da tragédia no protesto
entoado pelo MC, numa roda de RAP da periferia paulista (ou será em
Paris, Nova York?), agregando todas as manifestações culturais da
cultura Hip Hop, do grafite ao break?
Ou nada disso?
A ação se desenrola. Estamos todos no palco. Eu, de minha parte, tendo a
considerar que a desumanidade e o desperdício ainda imperam,
acumulando montanhas de lixo humano, material para a nossa Trash
Tragedy.
48
À margem desses conceitos e juízos, artistas de todos os quadrantes
continuam retomando o assundo, muito longe de ser esgotado. Pasolini,
Brook, Serban, Suzuki, Sellers, Gassman, Barba, Bergman, Wilson,
Müller e Bausch…
E vários brasileiros…
49
1. 11. TRAGÉDIA NO BRASIL:
O Brasil conhece a prática com elementos da tragédia e reflete sobre o
gênero desde o século XIX
49
. Já em 1833, em São Paulo, na Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco, três jovens publicam um estudo
bastante detalhado sobre a tragédia, escrito um ano antes, na Revista da
Sociedade Filomática.
Com os Ensaios sobre a Tragédia, Francisco Bernardino Ribeiro,
Justiniano José da Rocha e Antonio Augusto de Queiroga despertam
no Brasil o debate entre classicismo e romantismo, que já se esgotava na
Europa mas que aqui ainda renderia frutos. Os autores consideram a
tragédia como forma dramática perfeita e estudam-na em vários
contextos.
“ Quem diria vendo seus primeiros rudes ensaios, que ela chegaria ao ponto
de elevação, em que a contemplamos nos séculos posteriores? Quem suporia
que essa reunião de homens grosseiros, que nas festas de Baco entoavam
hinos ao Deus das vindimas, que formavam coréias depois do canto, e que
davam em prêmio ao mais hábil dos cantores um mísero cabrito, daria a
primeira idéia dessa arte divina, que em todas as nações, e em todos os
tempos tem sido o princípio dos continuados gozos, que o teatro tem
excitado?”
50
Da origem na Grécia, os autores inflamados passam por Roma, estudam
os séculos XVII e XVIII, contrapõem Corneille, Racine e Voltaire a
Lope de Vega, Calderón, Shakespeare, Lessing e Schiller.
Consideram os primeiros o modelo a ser seguido e base, inclusive, para a
criação de um teatro nacional. Os outros, consideram gênios incultos e
49
Vale a pena conferir o verbete sobre Tragédia do Dicionário do Teatro Brasileiro, organizado por
Jacó Guinsburg, João Roberto Faria e Mariangela Alves de Lima, base do texto a seguir.
50
F. Bernardino Ribeiro, Justiniano J. Rocha e A. A. Queiroga, Ensaios sobre a Tragédia, in João
Roberto Faria, Idéias Teatrais, Perspectiva, São Paulo, 2001, p. 268.
50
monstruosos. No mecionado debate, se colocam escancaradamente a
favor do classicismo.
“Em uma palavra em vossos dramas pensai como Corneille, escrevei como
Racine, movei como Voltaire! Com estas regras, com estes exemplos o teatro
brasileiro surgirá com glória, e merecerá ser contado no número daqueles que
podem servir de modelo.”
51
Pouco depois, Gonçalves de Magalhães realiza a tragédia Antonio José
ou o Poeta e a Inquisição, pedra inaugural da dramaturgia brasileira no
Romantismo, encenada por João Caetano, que já vinha realizando
tragédias neoclássicas estrangeiras, em 1838. Embora encenada com
sucesso, a peça não repercutiu em série de criações do gênero. A tragédia
não dá as caras em nossos palcos por um bom tempo, a não ser nas
encenações de artistas europeus em excursão, como Sarah Bernhardt.
Em 1916, no Rio de Janeiro, acontecem ao ar livre os espetáculos do
Teatro da Natureza, incluindo adaptações da Orestéia, de Ésquilo, e do
Édipo Rei, de Sófocles.
A tragédia volta à cena pra valer nos anos 40, com as peças de Nelson
Rodrigues. O crítico Álvaro Lins considera Vestido de Noiva, já em
1943, uma “tragédia da memória”. É de Sábato Magaldi, em acordo
com o autor, a tradicional divisão das peças de Nelson em psicológicas,
míticas ou tragédias cariocas.
O crítico é o primeiro a reconhecer que elementos míticos, psicológicos,
trágicos e populares abundam em cada peça do autor. Confessa que a
divisão por blocos (inspirada na própria classificação de gênero que
51
Idem, p.269.
51
Nelson colocava em cada uma de suas peças: divina comédia, tragédia de
costumes, peça…) tem intenção didática.
O grupo das Tragédias Cariocas, formado por 8 peças, escritas entre
1953 e 1980 (A Falecida, Perdoa-me por me Traíres, Os Sete
Gatinhos, Boca de Ouro, Beijo no Asfalto, Bonitinha, mas Ordinária,
Toda Nudez Será Castigada e A Serpente), reúne, na opinião de
Sábato, aspectos em comum que permitem que elas sejam configuradas
como tal. Mas a designação não se dá com absoluta tranqüilidade.
“A começar pelo enprego do termo “tragédia”. Mesmo considerando que o
gênero sofreu evolução através dos tempos, desde que Aristóteles o
conceituou no século IV a.C., ele implica algumas exigências técnicas, sem as
quais pareceria gratuito utilizá-lo. Sabe-se que, ao menos com as conotações
da tragédia grega, não cabe em nossos dias falar em gênero trágico.”
52
Sábato continua:
“Uma das conquistas do teatro atual, sem dúvida associada à complexidades
do homem moderno, está na fusão dos gêneros tradicionais e mesmo no seu
abandono, e com essa premissa caberia simplesmente adotar o termo
‘tragicomédia’. E não se pode esquecer que até as obras da maturidade de
Molière, protótipo do comediógrafo, entre as quais O Tartufo, Don Juan, O
Misantropo e George Dandin, mal se ajustam ao gênero cômico.”
53
No entanto, para Sábato uma noção trágica da existência predomina em
todo o teatro rodrigueano.
“Tanto pela fidelidade ao seu universo como a um projeto estético superior,
Nelson julgava imprescindível mover-se sempre no território da tragédia.”
54
52
Sabato Magaldi, Prefácio a Nelson Rodrigues, Teatro Completo (vol.3) , Nova Fronteira, Rio de
Janeiro, 1985, p.7.
53
Idem, p.8.
54
ibidem, p. 9.
52
Para Sábato, as tragédias cariocas representam uma espécie de “caminho
do meio” na obra de Nelson. Míticas, cheias de elementos do
inconsciente, usam elementos da tragédia e dos costumes; se não
recorrem a procedimentos de vanguarda, como faz por exemplo Dorotéia
(peça mítica), encontram uma insólita poética no cotidiano aparentemente
realista.
Após a viagem interior, para Sábato, Nelson realizava a vigem de volta,
reagindo à crítica e ao público, “reecontrando a realidade mostrada pela
revelação do outro”
55
. Uma síntese, portanto, dessa obra na fronteira do
jornalismo, do romance, do folhetim, do melodrama e do teatro.
“Ao situar as personagens, nas tragédias cariocas, sobretudo no cenário da
Zona Norte do Rio, Nelson deu-lhes uma dimensão concreta no real, mas não
abdicou da carga subjetiva anterior. O psicológico e o mítico imprengaram-se
da dura seiva social. Dramaturgo que evitou o panfleto político, por conhecer
os maus resultados literários do proselitismo de qualquer espécie, ele acabou
por realizar um doloroso testemunho sobre as precárias condições de
existência das classes desfavorecidas financeiramente. As tragédias cariocas,
portanto, unindo a realidade e os impulsos interiores, promovem a síntese do
complexo homem rodrigueano.”
56
Outros dramaturgos trabalharam o universo da tragédia. Antes de Nelson,
há paródia de tragédia em A Morta, de Oswald de Andrade. Jorge
Andrade não só usou a Antígona de Sófocles para construir Pedreira
das Almas, como em grande parte de sua obra fundiu elementos do
trágico com temas históricos brasileiros, caso de Vereda da Salvação.
Dias Gomes usou as famosas regras de unidade em O Pagador de
Promessas. Chigo Buarque e Paulo Pontes, em Gota D’água, partiram
de Medéia. E o quê dizer do misto de trágico e absurdo que a obra de
55
Ibidem, p.10.
56
Ibidem, p.11.
53
Plínio Marcos apresenta, por exemplo em Dois perdidos numa noite
suja? Ou de Rasga Coração, de Oduvaldo Vianna Filho?
Mas é mesmo a obra de Nelson Rodrigues que marcará a reflexão e a
prática sobre temas e procedimentos da tragédia, principalmente a partir
dos anos 80 e 90, quando Nelson é retomado. Os paradigmas são os
espetáculos antológicos que Antunes Filho realiza com textos
rodrigueanos (lembremos que esse trabalho sobre questões da tragédia
será retomado anos depois por Antunes, em montagens de Fragmentos
Troianos e Antígona.).
Em outra chave, no mesmo período, Gerald Thomas, seja com
montagens de Heiner Müller ou com Electra ConCreta, e Zé Celso,
com o conjunto da obra realizada no Teatro Oficina, continuam a
atualizar essas questões.
Zé Celso é, com certeza, o personagem que mais radicaliza os temas
fundamentais da tragédia, em especial as relações de indivíduo e
sociedade no tempo e no espaço, na história e na cidade. Para Zé Celso,
não basta montar essa ou aquela tragédia. O que ele faz, numa linha
glauberiana, é uma tragycomedyaorgya. Num espaço especialmente
projetado por Lina Bo Bardi a partir de elementos do teatro e da
sociedade gregos, pensando na inserção do teatro na sociedade e nas
intervenções que ele pode fazer. O uso do coro nos espetáculos do Zé,
formados por artistas-cidadãos das mais diversas idades, estilos, tipos,
com variadas formas de expressão que se chocam e se amalgamam em
cena é único. De Ham-let aos Sertões, do carnaval ao falo, da ode ao
bode, nada escapa ao inescapável e genial Zé Celso. Numa fantástica
trajetória que inclui as Bacantes, Boca de Ouro, etc
54
Questionamento também radical das fronteiras do homem no mundo
contemporâneo pode ser encontrado, por exemplo, na Trilogia Bíblica do
Teatro da Vertigem, e em outros núcleos de criação, seja retrabalhando
temas clássicos ou com foco inequívoco nos dramas contemporâneos,
caso de Desmedéia, de Denise Stoklos.
1.12. ESTA NOITE ENCARNAREI NO TEU CADÁVER:
Portanto, se a Tragédia morreu, teima em voltar ( tal qual uma imensa
série de filmes de terror… Por exemplo, A Noite dos Mortos Vivos, de
George Romero, que desde os anos 60 povoa nosso imaginário com seus
infindáveis mortos-vivos sedentos de cérebros e sangue. Ou, em pegada
bem brasileira, poderíamos pensar nos filmes do extraordinário José
Mojica, o Zé do Caixão, como Esta Noite Encarnarei no Teu
Cadáver!).
A presença da Tragédia nos palcos das últimas décadas é matéria de
análise de vários autores. No Brasil, Gilson Mota tem aprofundado o
assunto, a partir do trabalho de Helene Foley
57
. Para eles, a volta, a
revisão ou a revivificação da tragédia grega acontece por vários motivos.
São, por um lado, excelente ponto de encontro para as várias tradições
teatrais do Ocidente e do Oriente. Quem assistiu a um espetáculo como
57
Gilson Mota, A tragédia grega na cena brasileira, in Revista Folhetim, número 20, Teatro do
Pequeno Gesto, Rio de Janeiro, 2004, p. 50-57.
55
Dionysus, de Suzuki, recriação extraordinária das Bacantes, encenada
em São Paulo nos jardins do Museu do Ipiranga em meados dos anos 90,
ou a Trilogia Antica, de Andrei Serban, compreende bem essa asserção.
Essas versões, que acontecem em lugar e tempo imaginários, causando
estranhamentos entre os referenciais étnicos e culturais, propõem um
teatro político de alto impacto, tratando questões locais a partir da base
grega mais geral.
Além disso, a tragédia grega oferece muito material para experiências de
atores de todas as idades, com ampla gama de grandes personagens
femininas, ou para experimentos cênicos a partir da reelaboração dos
enredos.
Dessa maneira, a Tragédia Grega se transformou em um tipo de teatro
experimental.
58
Na Europa e nos EUA das últimas três décadas, no contexto pós-
dramático, ao lado de imponentes montagens de diretores como Wilson
e Stein, vemos vários dramaturgos retomando de modo direto ou indireto
o assunto.
Heiner Müller foi figurinha comum nesse terreno, em reinvenções e
reciclagens de mitos trágicos, como em HamletMachine e
Medeamaterial. Apoiado na herança brechtiana, Müller se equilibrava
com cinismo nos muros do mundo, antes e depois da Queda do Muro de
Berlim, manejando com destreza os paradoxos pós-modernos.
58
Idem.
56
Harold Pinter, em sua fase mais recente, aborda com navalha na mão
alguns dos mais graves conflitos contemporâneos, em especial a
banalização da vida no mundo turbo-capitalista, em peças como
Precisely, onde dois homens discutem sobre o número exato de milhões
de pessoas massacradas em um conflito sem nome, enquanto sorvem seus
drinques num pub. Ou em The New World Order, com sua relampejante
cena de tortura.
Mas outros anjos tortos também têm muito a oferecer. E é o caso de
convidá-los agora a participar dessse nosso texto.
Falemos, por exemplo, de Bernard-Marie Koltés, em peças como
Batalha de Negro e de Cães (1982). Num país da África Ocidental, em
um estaleiro de obras públicas, brancos e negros, europeus e africanos,
modernos e arcaicos, humanos e cães são levados ao paroxismo, em
clima pesado de violência, bebida e sexo, muito além de seus limites
sociais, afetivos e morais.
HORN tem sessenta anos e é chefe do estaleiro, onde vive com sua
mulher LÉONE e CAL, engenheiro de 30 anos. Desnecessário dizer que
não compreendem a cultura e os costumes locais. Que o preconceito de
toda ordem impera. Que a vida de um negro vale menos do que a de um
cão. Nesse contexto, surge ALBOURY, negro que misteriosamente se
introduz no acampamento, em busca do corpo de seu irmão assassinado.
Em busca de justiça, como uma Antígona africana. Num mundo afogado
num torpor de ódio, que mais parece um canteiro de obras que jamais
serão concluídas.
57
Koltès tem uma escrita quase clássica, embora corroída por dentro, seja
pelo exasperamento dos personagens, seja por seus longuíssimos
monólogos que parecem não encontrar ressonância e se perder em
silêncios terríveis, seja em suas espantosas rubricas, que desafiam
qualquer diretor e o próprio sentido de uma dramaturgia tradicional.
Aqui, vale citar o final de Combate, uma imensa rubrica, entre épica e
cinematográfica, com imagens sórdidas, violentas, que desdramatizam as
personagens CAL e ALBOURY, lançando a cena no rio pútrido da
História.
“XX
Uma primeira girândola luminosa explode silenciosa e brevemente no céu,
por cima das buganvílias.
Brilho azulado de um cano de espingarda. Ruído abafado de uma corrida, de
pés descalços, sobre a pedra. Estertor de um cão. Clarões de lanterna.
Modinha assobiada. Ruído do engatilhar de uma espingarda. Sopro fresco do
vento. O horizonte cobre-se de um imenso sol de cores variadas, cujas cinzas
inflamadas caem, com um ruído suave e apagado, sobre a colónia.
De súbito, a voz de ALBOURY: do negro brota um apelo, guerreiro e secreto,
que vai girando, levado pelo vento, e se ergue do maciço de árvores até ao
arame farpado e do arame farpado até aos mirantes.
Iluminado pelos clarões intermitentes do fogo de artifício, no meio de
detonações surdas, CAL vai-se aproximando da silhueta imóvel de
ALBOURY. Aponta alto a espingarda, em direcção à cabeça; o suor escorre-
lhe sobre a testa e as faces; tem os olhos injectados de sangue. Estabelece-se,
então, durante os períodos de escuridão entre as explosões, um diálogo
ininteligível entre ALBOURY e as alturas em redor. Conversação tranqüila,
indiferente; perguntas e respostas breves; risos; linguagem indecifrável que
ressoa e se amplifica, corre ao longo do arame farpado, enche o espaço todo,
de alto a baixo, reina sobre a escuridão e ecoa sobre toda a colónia
petrificada, enquanto explode uma última série de sóis e centelhas.
CAL é atingido primeiro no braço; larga a espingarda. No alto de um mirante,
um guarda baixa a arma. Noutro lado, outro guarda levanta a sua. CAL é
atingido no ventre, depois na cabeça. Cai. ALBOURY desapareceu. Escuro.
Amanhece lentamente. Gritos de gaviões no céu. Garrafas de whisky vazias
entrechocam-se, flutuando sobre o esgoto a céu aberto. Buzina de uma
camioneta. As flores das buganvílias estremecem; todas reflectem a
madrugada.”
59
59
Bernard-Marie Koltès, Combate de Negro e de cães, Livros Cotovia, Lisboa, 1999. p. 114-115.
58
Logo após uma fala curta, um estertor, escutada ao longe, a peça termina
com mais uma rubrica.
“Junto do cadáver de CAL – a sua cabeça estoirada tem em cima o cadáver de
um cachorro branco de dentes arreganhados -, HORN apanha a espingarda
caída por terra, enxuga o suor da testa e levanta os olhos para os mirantes
desertos.”
60
A trajetória do francês Koltès é construída basicamente nos anos 80 (sua
primeira estréia ocorre em 1977 – a última em 1991 – em 1989 o autor,
nascido em 1944, morre de Aids).
Nos anos 90, mais um meteoro dramatúrgico vai dar o que falar, agora
nos palcos ingleses.
Entre 1995 e 2000, Sarah Kane causou uma reviravolta nos palcos com
cinco pequenas peças. A autora teve vida breve. Nascida em fevereiro de
1971, se matou em fevereiro de 1999. No hospital onde estava internada,
deprimida, primeiro tentou comprimidos – dois dias depois, se enforcou.
Nessa altura, trabalhava em adaptação de Os Sofrimentos do Jovem
Werther, de Goethe.
Já em Ruínas (Blasted) a autora transforma sua dramaturgia,
literalmente, em ruínas. A peça começa num quarto de hotel caro, em
Leeds, mas que poderia ser em qualquer parte do mundo, com a estranha
relação entre Ian, homem de 45 anos e Cate, de 21. Sexo, poder,
violência, enigmas de identidade, um clima que oscila entre o romântico e
o conspiratório, o criminoso e o terrorista, tudo isso é derramado com
60
Idem, p.115.
59
volúpia na primeira cena da peça. A barra pesa na segunda cena quando,
inesperadamente, entra um soldado armado até os dentes no quarto e
percebemos que em algum lugar, além da suíte, há uma guerra. Cate
desapareceu. O soldado revista Ian e descobre que ele é jornalista. Ian
pergunta se o soldado veio matá-lo…
“Ian : Se vieste aqui matar-me –
Soldado: (Estende a mão para tocar no rosto de Ian mas evita o contacto
físico.)
Ian: Estás a brincar?
Soldado: Eu? (Sorri.) Agora a cidade é nossa. (Põe-se de pé na cama e urina
em cima das almofadas.)
Ian enoja-se.
Uma luz, depois uma explosão ofuscane.
Escuro.
O som de uma chuva de verão.”
61
Em seguida, começa a Cena três:
“O Hotel foi destruído por um projéctil de morteiro.
Há um grande buraco numa das paredes e tudo está coberto por poeira que
ainda cai.”
62
A partir daí, a peça se transforma numa intensa anarquia dramática, com
cenas cada vez mais violentas e destruidoras de qualquer sentido. A
violência se volta contra a própria estrutura do texto e para o que
poderíamos chamar de caráter dos personagens. Tudo termina em clima
de canibalismo e bestialismo total. O mundo é puro escombro.
As peças seguintes de Sarah não oferecem alívio. Ela mergulha cada vez
mais fundo em seu radicalismo. Chafurda no lixão que sua explosão
dramatúrgica provoca, fazendo experiências blasfemas com os elementos
mais estranhos. Mistura Fedra com Monarquia Inglesa contemporânea,
61
Sarah Kane, Ruínas, em Teatro Completo, Porto, Campo das Letras, 2005. p. 61.
62
Idem, p. 63.
60
mais carradas de pop (Phaedra’s Love); mostra o mundo das drogas e
dos hospitais para “recuperação” (Cleansed); vai sintetizando seus
personagens, que vão se transformando em funções e pura linguagem
(Crave e 4.48 Psychosis). Seu último texto, 4.48 Psycosis, derruba até a
idéia de dramaturgia. É texto. Material. Poema. Jogos de palavras e de
números, prescrições médicas, silêncios, monólogos sem pontuação
constante… Começo? Meio? Fim? Unidades?
“ Fui eu própria que nunca conheci, aquela cuja face está colada no inferior
da minha mente.”
63
Uma reunião de fragmentos em torno da idéia de que é essa a hora da
madrugada que, estatisticamente, mais abriga os atos extremos dos
suicidas.
O mundo de Kane e de Koltès é feito de destroços, que são
continuamente manipulados, como se os autores fossem crianças que
brincam com as próprias fezes, alegremente. E que com a maior
naturalidade fazem questão de mostrar sua obra para os convidados na
sala. Os dois autores são emblemáticos de um tipo de mundo (e de um
tipo de experiência de mundo) ao qual pertence a Trash Tragedy.
Ou seja, há pressões da ideologia e da experiência contemporânea que
podem ser relacionadas à idéia de tragédia. A tragédia reafirma o
movimento da história e os vínculos que atam homens, sociedade e
mundo – mesmo quando nós, homens, temos justamente a sensação do
mais completo isolamento, como afirmou Raymond Williams.
63
Ibidem, p. 333.
61
“Tudo o que é geral nas obras a que chamamos tragédias é a dramatização de
uma desordem específica e atroz, e a sua resolução.”
64
Essa desordem, em cada tempo e lugar, assume o que o autor chama de
estrutura de sentimento, que revela as lutas históricas. Mas, para
Williams, a ação trágica ocorre por meio do herói e, mesmo que por seu
aniquilamento, traz o retorno da vida. Um processo que, segundo o autor,
leva da tragédia à revolução. Para ele, socialista, é claro.
A Tragédia Moderna é um livro do início dos anos 60, com uma revisão
nos anos 70… Infelizmente o autor não chegou ao fim do século 20. Sua
extraordinária capacidade de análise seria fundamental para que
compreendêssemos um pouco mais as mudanças políticas e econômicas
do planeta. Por outro lado, eu adoraria descobrir o que essas mudanças
poderiam causar no pensamento de Williams, fosse ele aplicado à
Inglaterra trabalhista ou à China trabalhadora, à Cuba de Fidel doente ou
ao PT do dossiê.
Quem vai tentar realizar a tarefa, retomando Raymond Williams e se
contrapondo radicalmente a George Steiner, é Terry Eagleton, no
também extraordinário e polêmico Sweet Violence – The Idea of The
Tragic
65
. Lançado em 2003, o longo, combativo, excessivo, irônico, duro
de engolir e brilhante livro retoma de modo sofisticado a batalha de
idéias.
A partir da terminologia aristotélica, na perspectiva de Raymond
Williams, Eagleton relê toda a tradição dramática e literária ocidental e
64
Raymond Williams, A Tragédia… , p.78.
65
Terry Eagleton, Sweet Violence – The Idea of The Tragic, Blackwell Publishing, Londres, 2003.
62
propõe – em franca oposição a Steiner -, uma tragédia cristã, sim, e
marxista, sim, cujo foco, no fim das contas, é a revolução.
A palavra-chave, aí, é sacrifício. No rodamoinho de uma revolução que,
talvez, esteja acontecendo neste exato momento. Na qual, provavelmente,
desempenhemos o papel, como num ritual trágico, de bodes expiatórios!
Para Eagleton, essa é uma “doce violência”, um tenebroso mal que pode
levar a um esplendoroso bem!
O ensaio de Eagleton é corajoso e ainda merece muita análise e
discussão. É, sobretudo (e assumidamente), um manifesto político. Uma
resposta de esquerda – uma esquerda, lembremos, forjada no fogo do
século XX - para os impasses que os últimos 20 anos do século passado
trouxeram e a atualidade sustenta.
Pessoalmente, sinto muitas dúvidas não só sobre as teses do autor mas,
principalmente, sobre os sentidos da história – ou sobre os destinos do
homem – como ele – e um certo pensamento de esquerda - identificam.
Agora, em pleno século XXI, como apontar horizontes de redenção?
Serão eles realmente necessários? Há um “caminho do meio”? No fundo,
será possível uma “nova” esquerda? Será ela necessária? Não passará de
mais uma máscara para autoritarismos? Esse tipo de pergunta é de
“direita”?
Este nosso ensaio, embora tenha evidente face política, é, sobretudo,
estético. Falamos aqui de teatro e de dramaturgia – sem esquecer da
máxima benjaminiana de que é preciso politizar a arte - e não estetizar a
63
política! Mas sem fazer da arte “ferramenta” ou “instrumento” de uma
ideologia ou credo.
Falamos aqui de seres dilacerados e à deriva num mundo em ruínas,
como os personagens das obras de Kane e Koltès. Que eles são
sacrificados nos altares contemporâneos, sagrados ou profanos, não há
dúvida. Mas quem os sacrifica? Não são eles, tantas vezes, seus próprios
algozes, e não apenas vítimas? Não será urgente questionar a vitimização,
assim como os algozes tradicionais? Questionar o indivíduo, mas também
as coletividades, os grupos, as panelas, as igrejas? Onde isso tudo
desemboca? Será que Revelação ou Redenção são as única alternativas?
Existirão outras? Melhores ou piores? E para quem?
Não à toa, George Steiner, que já nos anos 60 havia decretado a morte da
tragédia, em ensaio mais recente, A Tragédia Absoluta, continua
considerando que uma tragédia, hoje, não pode aceitar a promessa cristã
de salvação nem o socialismo milenarista.
“Duvida e protesta, confronta o não-desumano e o desumano – aquilo que é
mais forte, e duradouro, mais antigo do que o homem, aquilo que não partilha
sua ética, da compaixão, da auto-análise, da graça do perdão e do
esquecimento próprios da natureza humana.”
66
Revolta. Transgressão. Piada terrível. Insuportável como a tortura de uma
criança ou de um animal. Breve e fragmentária, embora corra o risco de
embelezar a barbárie!
66
George Steiner, Paixão Intacta, Relógio D’Água, Lisboa, 2003, p. 144-145.
64
Steiner define a tragédia absoluta, ou a possibilidade de uma tragédia
radical e contemporânea, como o canto dos desesperados. Pensar em
Koltés ou Kane não será mera coincidência.
A Trash Tragedy acontece dentro dessas molduras históricas e
dialéticas, sem se apoiar em perspectivas salvacionistas. Nesse território
onde o trágico e a tragédia não separam as grandes obras da vida
ordinária, é preciso sobreviver ao insuportável. Encarar o terror sem virar
pedra.
Tenho a impressão que esse território é justamente aquele que Albert
Camus descreve em O Mito de Sísifo.
“O verdadeiro esforço… é se sustentar ali na medida do possível e examinar
de perto a vegetação barroca de suas regiões afastadas. A tenacidade e a
clarividência são espectadores privilegiados desse jogo desumano em que o
absurdo, a esperança e a morte trocam suas réplicas.”
67
A invenção da tragédia, em Atenas, cria a consciência e o homem
trágicos. Estabelece uma tradição literária, uma experimentação e um
saber. Campo de estudos, novo tipo novo de operação mental, com
instrumentos e vocabulário próprios.
“O estatuto da tragédia grega parece comparável ao de uma ciência, como a
geometria euclidiana, ou de uma disciplina intelectual, como a filosofia.”
68
Todo deslocamento ligado a novos contextos históricos se enraíza nessa
tradição. A partir desse quadro, Vernant afirma a transistoricidade da
67
Albert Camus, O Mito de Sísifo, Rio de Janeiro, Record, 2003, p.23.
68
Jean-Pierre Vernant e Pierre-Vidal Naquet, Mito e Tragédia na Grécia Antiga, São Paulo,
Perspectiva, 2005, p. 214.
65
Tragédia, onde cada um de nós poderá viver a experiência do trágico.
Para lidar com essa tradição é preciso mergulhar em suas águas.
1.13. TRASH TRAGEDY:
A cineasta Lili Caffé, em recente sessão do espetáculo Licurgo/Olhos de
Cão (que será assunto do capítulo 5), disse que a peça lembrava muito a
ela sua infância, em que ela ouvia os relatos policiais do radialista Gil
Gomes.
Na mosca. Imediatamente, lembrei da minha infância. Eu acordava toda
manhã e colocava o radinho portátil do meu pai, que a essa altura já saíra
para o trabalho, debaixo do travesseiro, e passava uma hora no escuro,
ouvindo as narrações melodramáticas e policialescas de Gil Gomes,
imaginando cada detalhe de suas histórias.
Gil Gomes narrava seus casos lentamente, fazia inúmeras repetições em
nome do suspense, mas todos sabíamos onde tudo aquilo ia dar: num
banho de sangue terrível em algum canto da periferia de São Paulo. Em
certas ocasiões, Gil Gomes fazia programas especiais, onde narrava
crimes famosos, como o Crime da Mala ou o Crime do Poço.
Aterrorizado, eu me deliciava.
Era esse o meu universo. O rádio. A televisão. As histórias em
quadrinhos de super-heróis que eu colecionava (confesso – coleciono até
hoje). Com esses heróis e vilões eu criava enredos para minhas
66
brincadeiras com meus soldadinhos de plástico ou para os jogos com
primos, primas e vizinhos.
Criança de classe média da zona sul de São Paulo, meu tempo era
dividido entre a escola, as brincadeiras e esse acesso a uma cultura de
massa.
De vez em quando, um cinema. Jamais esquecerei de duas tardes em que
meu avô levou a mim e meu irmão ao finado Cine Comodoro, no centro
da cidade. A primeira, para assistir a Os Dez Mandamentos, com direito
a intervalo e pipocas. A segunda, no mesmo cinema, para assistir a 2001,
Uma Odisséia no Espaço. A cena antológica, hoje até mesmo clichê, em
que o primata transforma osso em arma… E a fusão que faz desse osso
uma nave espacial… Talvez, quem sabe, toda a minha noção de trágico
não passe de uma aplicação das imagens de Kubrik a outros universos
temáticos…
Meu avô era exímio contador de enredos de cinema. Adorava contar pra
gente, em detalhes, os filmes a que assistia. Ou ainda melhor: passávamos
grandes momentos ouvindo meu avô narrar histórias de extraterrestres,
UFOs e OVNIs, seus grandes assuntos de estudos…
O teórico da cultura e da comunicação afirmaria que tudo isso não
passava de lixo da Indústria Cultural. Na melhor das hipóteses, uma
cultura pop devorada sem moderação.
Foi justamente com esse lixo que construí meu universo cultural e
artístico. Minha mitologia pessoal, se quiserem.
67
Mesmo a literatura, que chegou a mim alguns anos depois, graças aos
cuidados de minha mãe, chegou pelo extinto Círculo do Livro, espécie
de clube literário que, mensalmente, divulgava, recomendava e vendia
entre seus sócios obras literárias do mundo todo. É das edições do Círculo
os exemplares que até hoje guardo de O Estrangeiro e de A Peste, de
Albert Camus.
Tudo isso temperado pelas novelas da Globo, pelas histórias do Batman,
pelos desenhos animados…
Talvez agora, a partir dessa experiência pessoal – e que, sem dúvida, é
comum a toda uma geração brasileira que hoje tem por volta de seus
quarenta anos, possamos nos entender um pouco mais a respeito do que
eu venho chamando de Trash.
Se, dos pontos de vista histórico e sociológico comecei esse trabalho
definindo o que chamo de Trash, do ponto de vista pessoal, Trash é
simples assim.
Experiência partilhada por um sem número de artistas “contemporâneos”.
Considero que o conceito de Trash Tragedy pertence, num sentido geral,
ao universo da pós-modernidade, gerado em linhas gerais da reciclagem
de temas e estéticas modernas, muitos vistos em chave paródica. Mas
prefiro o conceito de Bauman que, ao invés de pós-modernidade, prefere
a idéia de modernidade líquida, de uma modernidade que se liquefaz, e,
com ela, dilui valores como amizade, amor, arte, comunidade, política,
etc.
68
“ A principal força motora por trás desse processo tem sido desde o princípio
a acelerada ‘liquefação’ da estruturas e instituições sociais… E os ‘fluidos’
são assim chamados porque não conseguem manter a forma por muito tempo
e, a menos que sejam derramados num recipiente apertado, continuam
mudando de forma sob a influência até mesmo das menores forças…
Autoridades hoje respeitadas amanhã serão ridicularizadas, ignoradas ou
desprezadas; celebridades serão esquecidas; ídolos formadores de tendências
só serão lembrados nos quizz shows da TV; novidades consideradas preciosas
serão atiradas nos depósitos de lixo; causas eternas serão descartadas por
outras com a mesma pretensão à eternidade… poderes indestrutíveis se
enfraquecerão e se dissiparão, importantes organizações políticas ou
econômicas serão engolidas por outras ainda mais poderosas ou simplesmente
desaparecerão; capitais sólidos se transformarão no capital dos tolos; carreiras
vitalícias promissoras mostrarão ser becos sem saída.”
69
Da leitura de Bauman, concluo que estamos no centro do redemoinho,
tentado escapar do afogamento e, ao mesmo tempo, tentando
compreender o que se passa, buscando também modos de, eventualmente,
nadar contra a correnteza.
O conceito de Trash Tragedy pertence a esse universo. O próprio termo
é uma paródia. Junta o universo nobre da tragédia, o mais nobre dos
gêneros, ao puro lixo. Isso na língua global, o inglês, criando uma espécie
de anti-marca para o tempo do marketing global. Já que quem elabora
essa “marca” não passa de um reles autor de país emergente, escrevendo
em língua com muito pouco mercado dramatúrgico!
A partir, portanto, dessa idéia de juntar o mais nobre e o excremento, de
contribuir para o debate dramático dos tempos globais, numa
modernidade que se liquefaz, vem o substrato da proposta. Já na Grécia
esses opostos se aproximavam: Skatos (excremento) e Eskhatos (fim
último) - de onde vem escatologia, com todas suas possíveis leituras.
69
Zygmunt Bauman, Identidade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005, p. 57 e p. 58.
69
Do lixo, portanto, a formação de seu autor e o universo cultural ao qual
ele pertence.
Da tragédia, um pouco de sua história e de seus conceitos. A
compreensão das diferenças e aproximações entre os conceitos de
tragédia e de trágico. E a releitura ou re-significação dos mesmos.
Se há indícios de que o Deus das grandes religiões monoteístas se
aposentou ou morreu – ou pelo menos marca uma ausência muito
profunda nos grandes assuntos do mundo, ou tem seu nome usado em
vão, justificando alguns de nossos piores conflitos, é certo que não só
novas religiões como novas leituras míticas ou espirituais fazem parte do
cotidiano de todos nós. O Brasil é campo privilegiado para essas
manifestações, com seu incomensurável sincretismo. Pois bem, nesse
contexto, não só a dramaturgia como principalmente as tribos teatrais
continuam apegadas ao velho e bom Dioniso – que, seja em leitura
nietzschiana ou mais ortodoxa (como a abordada aqui nesse trabalho), é
divindade da ultrapassagem, da superação de tabus e condicionamentos.
E continua abençoando o teatro que fazemos.
Se o Teatro não tem mais o papel “cívico” que tinha na Ática – e
agradecemos que ele não o tenha, nós que até pouco tempo convivíamos
com aulas de Moral e Cívica nas escolas – ele continua colado à idéia da
democracia, agora, claro, moderna. Seu papel político é incontestável.
Durante o século XX, não só gritou e denunciou todas as tiranias, como
teve alguns de seus maiores artistas penalizados por isso – casos extremos
como Meyerhold ou Lorca, ou igualmente trágicos, como os períodos de
prisão e tortura de gente como, por exemplo, Boal ou Zé Celso. Isso sem
falar de Piscator, Brecht, Barba, Arena, Oficina, Guarnieri, Plínio
70
A função política e democrática do Teatro continua fundamental. Sem
falar no extraordinário uso do teatro como instrumento pedagógico – e do
qual a escola e o Teatro na escola brasileira dão testemunho.
Se o Teatro não é mais um evento que envolve toda a cidade, é porque
não só a cidade se modificiou (em chave poética, vale a leitura de
Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, para perceber as mudanças, para o
bem e para o mal), como também o Teatro se disseminou por toda uma
gigantesca e complexa sociedade. Está presente nas periferias e nos
centros. Nos teatrões e teatrinhos. Com ingressos caros ou baratos.
Enfrentando, é verdade, terríveis dificuldades. Mas, com certeza,
continuando. A função de “espetáculo da sociedade” na Sociedade do
Espetáculo, enfim, no mundo de hoje, é desempenhada pela TV, pela
Internet, pelo mundo da moda e das celebridades. Eventualmente, alguma
personalidade teatral tangencia isso tudo. E só. Ao Teatro cabe o velho e
bom encontro, carnal, frente a frente, entre as pessoas, dialogando sobre
seus velhos e tenebrosos problemas.
Se o Teatro tem dificuldades econômicas – e padece de um talvez
insuperável divórcio entre custos e a bilheteria – hoje ele tem vários
modos de obter patrocínios. Das Leis de Incentivo aos Fomentos,
passando pelos diversos prêmios, concursos e festivais de todos os portes.
Claro, o volume de recursos é insuficiente e a maneira como eles são
alocados ou o verdadeiro interesse dos eventuais patrocinadores podem
ser questionados (ao longo desse trabalho eles serão, várias vezes), mas
alguns recursos existem. Evidentemente, o principal recurso ainda é a
garra insana, por vezes até mesmo burra, de nós que fazemos nosso
teatro, nos dividindo (ou multiplicando) em diversas atividades para
faturar algum e manter as companhias.
71
Se a relação entre indivíduo e grupo não é tão clara e evidente como a
proposta pela alta tragédia, com a separação entre Coro e Herói, o que
temos hoje é um fundamental questionamento dessa relação. Como
poderia ser diferente no mundo do individualismo total, em contraponto
com a massa? Um mundo onde todos lutamos para escapar do
“anonimato” e viver 15 segundos de fama na revista Caras (Gerald
Thomas, por exemplo, durante a crise pós-11 de setembro, teve muito
mais do que isso na mesma publicação, e de tempos em tempos arruma
um evento que lhe garanta boa mídia). Um mundo em que as narrativas
individuais de vida parecem esgarçadas, vazias – onde o voto parece que
não vale mais nada… Um Brasil, por exemplo, que nos últimos 25 anos
teve manifestações como a das Diretas Já ou do Impeachment de
Collor… E que não consegue, agora, manifestações semelhantes em
nome de valores comuns. Por outro lado, onde grupos tradicionalmente
excluídos, que viviam em guetos de preconceito, conseguem se organizar
em grandes e maravilhos eventos públicos, como a Parada do Orgulho
Gay, uma festa deslumbrante que justamente recoloca as relações entre
indivíduo e sociedade.
Se Tragédia e Trágico hoje convergem para um mesmo fenômeno, na
Vida ou no Teatro, estudar suas diferenças, ainda quando sutis, ajuda a
compreender a nossa existência, nossos valores e atitudes. Compreender
uma tradição, seja ela prática (de autores, atores, peças, eventos e
espetáculos) ou teórica (a partir da velha e inescapável Poética de
Aristóteles, que merece releituras e reinterpretações, como a que faremos
a seguir), estimula e ilumina nossa produção e ajuda a repensar nossa
identidade. Alguém poderia perguntar: afinal, o quê um autor do terceiro
milênio e do terceiro mundo (de um país emergente, se preferirem)
72
pretende ao chamar para si uma tradição evidentemente européia como a
Tragédia? Bárbaro, pós-moderno, antropófago, global, multicultural…
Podem escolher o adjetivo. O mundo é de todos. O palco é a minha
pátria. E a pátria dos Koltés e Kanes da vida.
Mitos no subúrbio (depois da síntese rodrigueana). Cacos. Canto dos
desesperados. Uma noite no teatro contemporâneo, com o suor e a saliva
dos atores tocando nossa pele, são um delicioso caminho para a perdição.
A Trash Tragedy que propomos acontece a partir de experimentos
práticos. Que são obsessivamente retomados.. Do mesmo modo que
pintores como Francis Bacon ou Picasso faziam com Velázquez.
Refazer, refazer, refazer…
Reinventar.
É esse processo que orienta trabalhos como Bando de Maria e
Prometeu Enjaulado, que serão analisados adiante.
Com esse mergulho nessas estruturas, problemas formais e conceituais
são gerados – e novas obras buscam solucioná-los. Caso de Calígula,
Sete Vidas de Santo, etc. Até que se consolide uma poética, como
veremos em Licurgo, Só As Gordas São Felizes ou A noite dos
Animais.
A poética do Trash Tragedy está alicerçada na releitura dos conceitos
aristotélicos de mythos, mímesis, khatársis. E nas relações entre indivíduo
e comunidade.
73
O mythos, como vimos, é o sistema de atos que o autor desenha a partir
do manancial de personagens do imaginário de seu povo, com foco nas
relações entre indivíduo e sociedade. Em geral, vemos o herói, um ser
paradigmático, especial, que se relaciona não só com outros personagens
individuais como com sua comunidade, encarnada no coro. Assim, o
autor cria uma coerência interna que a arte costuma ter, e não a vida.
O processo de recriação artística da ações humanas é a mímesis (mímese),
uma simulação, uma experimentação que pretende esclarecer o destino e
a existência humana. Esse esclarecimento existencial provoca compaixão,
terror, piedade, purgando uma série de emoções e provocando a
renovação de nossas forças e a tal consciência das questões humanas. De
nossa natureza, nossos atos e suas conseqüências pessoais e sociais.
Na Trash Tragedy essas figuras são retomadas de outro modo. Não há
herói ou coro para representar a relação entre indivíduo e sociedade.
O herói, esse paradigma, esse ser “melhor do que nós”, pertencente a uma
aristocracia lendária de uma era de ouro, se é que existiu, não existe mais.
A coesão de um coro que representa um “coletivo” se foi com os últimos
laivos do socialismo e da dramaturgia brechtiana – fica a coreografia.
O Indivíduo não se reconhece e nem quer mais dialogar com o Coletivo.
Quer espelhos narcísicos, a celebridade instantânea, a justificação de sua
ética individualista. Mesmo assim…
“Em meio a nossa vida secularizada e trivial, seduz-nos admitir que, num
lugar secreto, experimentamos ou experimentávamos grandes dramas; que
quisemos sacrificar nossos pais no altar do desejo; que seduzimos nossos
irmãos e lutamos com eles até a morte numa guerra íntima; que invejamos a
juventude e a beleza dos nossos filhos e que também nós também (ainda que
74
ninguém saiba) somos filhos de reis abandonados à margem do caminho da
vida. Somos o que somos mas também somos outros, mais cruéis e mais
atentos aos sinais do destino.”
70
O coletivo, quando acontece, costuma se confundir com a massa,
entidade irracional que arrasta e dissolve individualidades. Seremos,
afinal, cidadãos ou consumidores?
“O consumidor, individual por definição, foi concebido desde a origem como
o contrário do cidadão; como o antídoto da expressão coletiva de
necessidades coletivas, contrário ao desejo de mudança social, à preocupação
com o bem comum. A indústria publicitária não deixaria de preencher uma
dupla função, econômica e política, apelando não à imaginação e aos desejos
de todos, mas à imaginaçao e o desejo de cada um como pessoa privada. Ela
não promete aos compradores potenciais uma melhora de sua condição
comum. Ao contrário, ela promete a cada um escapar à condição comum
tornando-o um ‘feliz privilegiado’ que pôde oferecer a si mesmo um novo
bem, mais raro, melhor, distinto. A indústria publicitária promete a procura
de soluções individuais para problemas coletivos. Considera-se, pois, que o
mercado tem o poder de resolver estes últimos sem usurpar a soberania e o
interesse individual de cada um. A publicidade apela a cada um que recuse
sua existência social com indivíduo social que é. Ela é uma socialização
anti-social.”
71
Essa tensão entre indivíduo e sociedade cambaleia na carne de
personagens quebrados, literalmente em cacos. O progresso econômico e
a construção da ordem, esse mundo do excesso produz gente redundante
e excessiva. Refugo.
Vidas cruas que parecem sem sentido. Produzindo relacionamentos
descartáveis como seringas usadas. Lixo que precisa ser removido a todo
custo. Num “estado penal”, onde somos todos detentos.
Em minhas peças, há o conflito entre desesperados, marginais de todas as
classes e contextos, da “ralé” e da “elite”, que se debatem
70
Ricardo Piglia, Forma Breves, São Paulo, Cia. das Letras, 2005, p.52.
71
André Gorz, O Imaterial, São Paulo, Annablume, 2005, p. 49.
75
desesperadamente, em busca de raízes, relacionamentos, amor… Até a
aniquilação.
Mesmo que essa destruição não aconteça, há sempre a busca de um
diálogo impossível entre essa gente que revela em cena, seja por
confissão ou por ação pura, seus demônios paradoxais.
Em uma experimentação dramatúrgica que questiona radicalmente nosso
momento de mundo. Sem pretender, entretanto, purgar emoções, mas
arregaçar consciências. No plano privado, da moral ou do
comportamento, ou no plano público, da ética à política. Mas que de um
modo entre o sádico e o cínico, entre o infantil e o amoroso, arranca disso
tudo prazer.
Personagens que não passam de feixes de perguntas e contradições. Seres
definidos como enigmas, em conflito com sua sociedade e seu mundo, em
universo indiferente. Homens e mulhers com sua dimensões além e
aquém do humano extremamente presentes. Seres trágicos: mutantes que
se arrastam e são arrastados pelo tempo, monstros que só compreendem
que são incompreensíveis à custa de sofrimento. Duplos. Dilacerados.
Errantes. Numa dialética insolúvel e insuperável.
Personagens que, além disso, se observados mais de perto, no detalhe,
também expõem uma das mais estranhas faces do autor contemporâneo.
Um pouco poeta, um pouco dramaturgo. Meio aedo, meio ator, meio
diretor e encenador. Um produtor de cenas que, em colaboração com
outros artistas, se coloca e se relaciona com o que restou da sociedade,
encenando ao menos sintomas do pensamento social e ideológico da
76
cidade, em processo de desintegração, em experimentações excêntricas e
obsessivas, com cacos de estética.
“O que hoje se entende por experimentação é uma atividade totalmente
distinta. O artista que experimenta age no escuro, esboçando mapas para um
território de existência ainda não comprovada e que não se garante se emerge
do mapa ora esboçado. Experimentação significa admissão de riscos, e
admitir riscos em estado de solidão, sob sua própria responsabilidde,
contando apenas com o poder de sua própria visão como a única chance de a
possibilidde artística obter o controle da realidade estética.”
72
A seguir, veremos como se desenvolveram, na prática, esses conceitos.
No próximo capítulo, espelho deste, só que em chave pessoal, em visada
poética (meio benjaminiana, meio barthesiana), abordarei as questões
da tragédia, do trágico e do trash em minha formação, numa sequência de
flashes sobre os anos 70, período que cobre a maior parte da minha
infância e adolescência, onde considero encontrar o fulcro de minhas
(pre)ocupações posteriores. Mostra como as relações entre indivíduo e
sociedade, no Brasil do milagre, ofereceram uma trajetória e construíram
uma visão autoral. É um capítulo que oferece desvãos e vazios para o
leitor preencher com seus insights.
Então, de posse de ambas as trajetóritas, a histórica e conceitual deste
capítulo, e a pessoal, do próximo, mergulharemos em capítulos sobre as
peças e os processos de trabalho da Trash Tragedy.
Ao final, como balanço, restará a proposta de uma Poética Selvagem e
um punhado de Confissões.
Vamos a eles.
72
Zygmunt Bauman, O Mal-estar na pós-modernidade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998,
p.138.
77
CAPÍTULO 2: LIBERDADE É UMA CALÇA VELHA.
78
2.1. LADO B:
Originalmente, os textos deste capítulo foram apresentados como trabalho
de conclusão da disciplina Cultura e Manifestações Estéticas, ministrada
por Marco Antonio Guerra, e que realizei durante o doutorado.
O material começou a ser costurado ainda em 2002. Numa mudança, por
acaso, misturadas a livros e quadrinhos meus, algumas caixas com revistas
e jornais guardados por meu pai ao longo dos anos veio parar na minha
casa. Coisas dos anos 50 aos 80, que comecei a processar afetivamente.
Surgiu a idéia de organizar uma constelação com elas. Realizei algumas
tentativas. O trabalho ganhou corpo durante a referida disciplina, cujo foco
de reflexão eram os anos 70, com seus paradoxos políticos e culturais.
Procurei trabalhar as lembranças pessoais e familiares – em contraponto
com as memórias coletivas da geração que, como eu, nasceu em meados
dos anos 60.
O conjunto a seguir é inspirado tanto na idéia de escritura, de Roland
Barthes - texto que rompe com as amarras da retórica tradicional, dos
gêneros e da linguagem -, como nos textos memorialísticos de Walter
Benjamin, propondo deambulações por passagens.
79
Claro, o trabalho tem muito de catarse, mas acredito que consiga colocar
em destaque certas vivências de um momento brasileiro, sejam elas de
ordem política, cultural, emocional, afetiva, sexual…
A função deste capítulo, portanto, é realizar contraponto ao capítulo
anterior. Se lá há a tentativa de sistematizar uma tradição da Tragédia e do
Trágico, aqui acontece o evisceramento de uma experiência pessoal – com
muitos pontos em comum com as vivências de toda uma geração que está
aí, agora, deixando suas marcas – e que demonstra de modo cru o
movimento histórico de nossa formação.
Como num antigo LP, típico dos anos 70, estamos prestes a ouvir o “lado
B” da obra. Lembremos que, na época, os LPs abriam com a “música de
trabalho” do artista. O Lado A tinha as grandes composições. Já o Lado B
reservava as pequenas surpresas… No nosso caso, o lado efetivamente
Trash da Tragédia. A tragédia pessoal, evidentemente. O outro lado do
espelho desta “Alice”.
Fotos, cadernos, recortes, jornais e revistas que meu pai guardou em caixas
de papelão, no forro do sobrado (Fatos e Fotos, Veja, JT...). A memória,
que consome datas, rostos, momentos e nomes até que reste nada - ou
quase -, formam nossa base (por isso mesmo, tirando uma nota inicial,
sobre a epígrafe do texto, trecho de anúncio de jeans, não utilizarei outras
notas ou indicações das referências – tudo é lampejo, raio que vara a
memória).
Tudo isso forma um mosaico. Os fragmentos se sucedem, a linguagem
corre solta – com termos, prosódia e sintaxe pouco comuns em textos
acadêmicos -, e mesmo os silêncios, as quebras, as rupturas, as mudanças
80
drásticas dos assuntos são fundamentais. Tudo numa visada poética que a
pesquisa deste doutorado, nas fronteiras entre arte e teoria, investigação e
experiência, pensamos nós, justifica.
Sendo assim, acompanharemos desde situações históricas do Brasil na
época, como o assassinato de Vladimir Herzog, aulas de OSPB, atos da
Censura, à mais banal citação de uma revista erótica, ou as primeiras
experiências poéticas ou sexuais do narrador-personagem, duplo,
evidentemente, do autor – e, sublinhamos, de uma parcela significativa da
sua geração.
Muitas são as possibilidades de leitura. Elas levantam e questionam os
limites ideológicos do autor, assim como seus primeiros esforços para,
eventualmente, violentá-los.
As investigações deste doutorado, portanto, se procuram ser extensivas no
que toca à grande história, não poderiam deixar de ser intensivas ao
esmiuçar detalhes da pequena história. Como falar de dramaturgia de um
modo amplo sem, também, fixar o foco no específico (por exemplo: no
contexto e nas experiências que, de modo frágil, pessoal e desordenado,
mas no leito de um rio social e histórico, desembocaram na dramaturgia
deste autor)?
Haverá um fio entre peças como as que analisaremos nos capítulos
posteriores, como Licurgo, Sete Vidas de Santo ou Só As Gordas são
Felizes, e as experiências que, com imensa perplexidade, vivi nas décadas
anteriores?
81
Tudo começa numa manhã de 1974, num evento decisivo da década e
marco na memória de quem vivia em São Paulo: o incêndio do Edifício
Joelma. Tragédia no coração da cidade, televisionada ao vivo. Estamos em
tempos de milagre econômico e início de turbulências na ditadura militar…
Daí, num fogo sem fim, acompanharemos os traços, os resíduos da
memória, em diversos fragmentos.
O texto acompanha a passagem da infância para a adolescência – onde
permanecemos por mais tempo – até os primórdios da idade adulta, ainda
na juventude.
Chegaremos, então, a meados dos anos 80, no grande refluxo do milagre
brasileiro, na recessão, na chegada da AIDS ao país… Na compreensão de
que os sonhos da geração anterior, de nossos pais, estavam
irremediavelmente destruídos, e que se anunciava uma “aurora” neoliberal
cujos frutos, convenhamos, temos de engolir até hoje. Tragédia cuja
compreensão exige que coloquemos as mãos em nossos resíduos, como
adivinhos fajutos de esquina. Obsessivamente.
A viagem vai começar.
A seguir, os anos 70 nas chamas dos olhos de um menino.
82
2.2. SETENTA.
“Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada,
que você pode usar do jeito que quiser.”
1
Crédito e Financiamento
1974. O edifício Joelma consta de dois blocos em forma de losango, com
duas entradas, uma pela Avenida Nove de Julho e outra pela Rua Santo
Antônio. Entre os andares dois e sete funciona a garagem para os carros
dos ocupantes. Do oitavo ao vigésimo primeiro, os escritórios da firma de
crédito e financiamento. A obra tem dois anos e três meses de construída.
Paletó
Primeiro de fevereiro. Nove da manhã. Começa o expediente. Funcionários
já ocupam seus lugares. Máquinas de escrever em aquecimento. Cafezinho.
Papo furado. Boys zanzam. Elevadores rangem. Paletó na cadeira. Você
ouviu a explosão? Foi? Explodiu? A sirene. A sirene. Será treinamento,
será brincadeira, será? Pega bolsa, pega pasta, deixa o paletó, deixa.
Multidão pelas escadas. Escadas. Chamas.
1
Trecho da trilha sonora do comercial para TV do jeans USTOP, em 1976. Como peças
publicitárias normalmente não são assinadas, consultei especialistas do setor que
sugerem que o jingle seja de Zé Rodrix, Sá e Guarabira.
83
Fatos e Fotos
Cobertura completa. Fotos dramáticas e sensacionais do maior incêndio de
São Paulo. Os primeiros dados oficiais garantem que cerca de 200 pessoas
encontraram a morte. As estimativas, em razão do grande número de
feridos em estado grave, são de que o total de mortos se eleve ainda mais.
Tomado
Eram 9 horas da manhã quando foi dado o alarma de fogo, proveniente de
uma explosão no sistema de ar condicionado de uma das salas do décimo
segundo andar. Não havia saídas de emergência. Os sistemas de ventilação
e circulação eram precários. O projeto não previa heliponto. Quinze
minutos depois, apesar dos esforços de várias corporações e de particulares,
quase todo o prédio estava tomado pelas chamas. Centenas de pessoas
ficaram presas.
Milagrosamente
Esta dramática seqüência mostra o desespero de um homem que se colocou
no parapeito externo, tentando fugir ao calor. “Não deixem que eu morra”,
dizia ao ser levado para o Hospital das Clínicas, com queimaduras em 20%
da superfície do corpo. Graças ao rápido atendimento, muitos escaparam
milagrosamente.
84
Andraus
Dois anos antes. Cada labareda estonteante. Meu pai trabalhava perto e
assistiu da São João. Morreu muita gente. Ninguém sabe direito. Meu pai
sonhara com o incêndio. Também sonhou, depois, com o do Joelma.
“Premonição”. Fiquei com inveja.
Cadência
Este cidadão, após minutos angustiantes, não suportando a temperatura do
Joelma, optou por uma tentativa desesperada de salvamento que acabou lhe
roubando a vida: atirou-se do décimo oitavo andar. Um vôo mortal até o
chão. Quinze minutos após o início do incêndio, quatro pessoas já tinham
se atirado de diversos andares. Pouco depois, outras duas também se
atiravam. A partir desse momento, numa cadência aterradora, gente se
lançava ao solo.
Onda
Uma senhora, que estava sendo salva por um tapete amarrado com cordas,
não teve forças para se sustentar e caiu. Na queda, levou consigo mais três
pessoas e um soldado do Corpo de Bombeiros. A cena dantesca provocou
uma onda de desmaios entre os populares.
85
Circo
Alguns subiram para o telhado, numa tentativa de resgate pelos 12
helicópteros oficiais e particulares. As cenas de salvamento se realizaram
de forma quase inacreditável. Através de cordas e de pequenas escadas de
metal, centenas conseguiram escapar do inferno. Lances lembravam
proezas circenses, não fossem as condições de perigo de morte que
ameaçavam seus protagonistas. A multidão reunida no Vale do
Anhangabaú assistia a evolução das aeronaves. Dotados de incrível poder
de improvisação, os homens das brigadas marcavam com lençóis o ponto
onde os helicópteros podiam baixar na rua. As equipes médicas choraram
de emoção.
TV
TV ligada na cozinha. Gente se joga da janela. Fumaça. Escada magirus.
Meu pai assistiu da Praça da Bandeira. Lugar amaldiçoado. Ali, ali mesmo,
uns cinquenta anos antes, aconteceu o crime do poço. O sujeito matou mãe
e irmã. Enterrou no tal poço e foi pro Paraná. Voltou e fingiu desespero.
Levantou um monte de suspeitas. Foi preso. Pediu pra ir ao banheiro e se
enforcou na gravata. Bem depois, anos setenta, fizeram o edifício. Na
semana anterior, o Castilho tinha ido até a Crefisul, tentava quitar uma
dívida. Não fez acordo. Na saída, bateu na porta de vidro temperado. Virou
as costas, ouviu um estouro – milhares de pedacinhos. Com maldição não
se brinca.
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Drama
“Coragem, nós estamos com vocês”. Comprimido na rua, o povo, através
de cartazes e faixas, tentava acalmar os que queriam saltar. No topo do
Joelma, ficaram os corpos carbonizados daqueles que não conseguiram
sair. Blocos de pedra desprendiam-se da fachada e caíam na calçada. No
momento em que o incêndio era mais violento, os bombeiros perceberam
que não contavam mais com água. Ajudados por policiais e populares,
tentaram de todas as maneiras contornar o drama. A solução foi apelar para
numerosos carros-pipas. Assim que o fogo acabou, o pessoal do resgate
procurou orientar os que estavam no edifício, assustados com a fumaça.
Corpos ficaram cobertos com lona até serem levados para o necrotério.
Muitos irreconhecíveis. A remoção foi um trabalho difícil e penoso.
Soviete
O Castilho queria morar na União Soviética. Não tratava os dentes.
Ficaram podres. O Castilho era maestro. Trabalhou na Cultura. Fez
arranjos pros festivais da Record. Aparece nos videoteipes ao lado do Edu
Lobo. Teve 4 filhos com a Márcia. Todos artistas, desde criancinha.
Castilho construía aquários no jardim de casa, cidades de pedriscos. Mas a
vida tinha desandado. Bom mesmo era viver na U.R.S.S. Lá a gente podia
ser feliz. Castilho foi viver sozinho num quarto e sala. Se enforcou.
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Escombros
Sobre o encosto da cadeira, intacto, o paletó. No asfalto, gravada, a palavra
Calma.
Cor
A caixa de 27 polegadas da Telefunken é instalada na sala. Fecha um
círculo com o sofá e as duas poltronas. Antena externa cuidadosamente
ajustada no telhado. O seletor de canais dá um tranco a cada mudança. Com
giros leves no botão de sintonia fina, elimine qualquer fantasma. Acaricie a
máquina maravilhosa. Beba o jorro vertiginoso. E peça mais.
Crescimento
No programa de domingo, o Flavio Cavalcanti exibia a foto do menino
Carlinhos. Se alguém visse o carioquinha desaparecido por aí, era só ligar
pra produção. Ao longo dos anos, o Flavio nunca deixou de mostrar
desenhos de como o Carlinhos deveria estar. Crescemos juntos.
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Soldado
Soldado é o defensor da Pátria e luta pela razão que defende, não teme a
morte, enfrenta todos os perigos. Soldado usa várias armas, entre elas:
metralhadora, bazucas, tanques de guerra, bombas, granadas de mão e
revólveres, facas, canhões e bombas de gás lacrimogêneo e venenoso. O
soldado tem missões perigosas e difíceis, entre elas as de: provocação e
espionagem. Soldado é o militar sem graduação, pois não é como um
tenente, capitão ou coronel, é um simples militar. O Patrono do exército no
Brasil é Duque de Caxias, um bravo soldado que viveu no século passado.
Enfim, soldado é todo homem que defende uma causa. 29/08/1975. Classe
Princesa Isabel.
Comerciais
O rosto do marido da cantora Lenny Eversong metia medo. Também tinha
sumido e o Flavio mostrava a foto, naquele trecho do programa em que ele
pedia para as famílias tirarem as crianças da sala. A seguir, vinham
reportagens exclusivas sobre Objetos Voadores Não Identificados e todos
os mistérios que a gente mais amava. Aí o Flavio tirava os óculos, colocava
de novo: “nossos comerciais, por favor”. Meu irmão e eu ficávamos
torcendo para nossos pais não darem bola para os conselhos do Flavio, mas
nem sempre dava certo.
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Senhor presidente, este é o meu pai:
Papai nasceu em junho de 1938 em São Paulo. Meus avós não eram ricos e
por isso meu pai teve uma infância como a de qualquer criança da época.
Durante sua infância morou no interior e pelo que conta suas casas tinham:
enormes quintais e várias árvores onde aprontava as dele. Ainda falando da
infância de papai devo dizer também que só com cinco anos já ia para a
escola sozinho (de bonde) diferente de várias pessoas hoje em dia. Fez os
estudos até o secundário, pois teve que trabalhar um pouco cedo (com 14
anos). Hoje ele ocupa um importante cargo em uma das maiores empresas
do Brasil. O trabalho dele é muito interessante pois ele viaja muito mas
sempre que tem um tempinho brinca comigo e meu irmão e diz que quando
tiver uma chance vai levar nós dois com ele pois conhece as principais
cidades do Brasil. Papai é muito bom para mim: me dá conselhos brinca
comigo, mas também briga conosco quando acha que estamos errados.
Amiga
Quinze capítulos de O Bem Amado tiveram que ser sonorizados
novamente depois que foi decidido que, de agora em diante, Odorico não
poderá mais ser coronel e nem Zeca Diabo capitão. Para rever a
sonorização, Regis Cardoso, o diretor da novela, gastou quase 16 horas e
está tendo trabalho também nas novas gravações: é que o elenco não se
acostumou ainda à vida civil.
90
Família
A Berrini era um rio. A família japonesa morava ali, onde hoje tem esse
prédio. Quatro filhos. Uma menina excepcional (na rua os moleques
gritavam: “retardada”). Sofreram acidente no Socorro. Um carro caiu do
viaduto em cima da Belina. Morreram todos. Deu na TV.
Cinemas da Santo Amaro
No Vila Rica, uma fila enorme pra assistir Inferno na Torre. No Del Rey,
a fila era pro Tubarão. O Graúna, depois Chaplin, passou Terremoto. Isso
é que era catástrofe.
Horizonte Perdido
A Maria do Carmo lotava o fusquinha. Os três filhos, sobrinhos e
sobrinhas, eu e meu irmão. Onze crianças, sem brincadeira. Levava pra ver
Horizonte Perdido. Amores em Shangrilá ao som de Burt Bacarah.Tentei
ler o livro, numa edição do Círculo, não consegui. Numa madrugada da
Globo, vi a versão dos anos 30. Achei o LP com a trilha do Horizonte num
sebo. Já tinha perdido os meus.
91
Cartazes
O Guarujá sempre levava reprise de Horizonte Perdido. Fechou e o cartaz
ficou lá. O Del Rey virou concessionária de veículos. Do Chaplin não
sobrou nada. O Vila Nova virou templo de crentes. Do Vila Rica, restaram
o imóvel e a placa na rua (um dia entrei por uma brecha do portão de correr
e, sob a poeira de décadas, encontrei a vitrine de doces, a máquina de
pipocas e o cartaz de O Exorcista).
Resistência
A Maria do Carmo morreu tão tristinha. Desgosto. Perdeu dois sobrinhos,
irmãos, com AIDS. Isso nos anos 80. A Maria do Carmo teve linfoma.
Definhou como os garotos. Sabe pessoa boa? Era a Maria do Carmo. A
melhor amiga da minha mãe. A empresa e o convênio cobriram as
despesas.
Garotos
Uma tarde, meados dos anos setenta, o vô levou o Gugui e eu pra assistir a
um programa duplo no Vila Nova. Comédias. O Garoto, de Chaplin, e um
filme do Max Linder. Caiu um toró. Uma tábua rasgou o forro do cinema e
caiu na cabeça dum menino. A sessão foi interrompida. Ele saiu carregado.
Sangrava. O vendaval vergava a placa da rua. Tinha até granizo. Ninguém
conseguiu ir embora.
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Licença
Comprei um maço de rosas na Dr. Arnaldo e entrei. Depois de quinze anos,
eu não lembrava onde era. Também não sabia os sobrenomes e não
consegui ajuda na administração. Andei pelas alas muito tempo. Deitei as
flores numa laje, rezei um pai nosso, uma ave Maria, resolvi ir embora. Aí
tropecei no túmulo da Maria do Carmo e dos sobrinhos.
Vacina
Em 1975, ela levou os filhos para tomar vacina contra meningite.
Encontraram muitos amiguinhos da escola na fila que ultrapassava o
quarteirão. A vacina era dada no ombro, com um tipo de revólver. Doía.
Em 1974, morreram de meningite em São Paulo 2575 pessoas e 305 no Rio
de Janeiro. Pouca gente soube. Contra a censura não havia vacina.
Vizinho
O seu Celso foi um dos introdutores da informática no Brasil, trabalhava
numa empresa do governo, imagina o tamanho do computador naquele
tempo, devia ocupar uma sala, o seu Celso era muito bem apessoado, alto,
bonito, embora muito sério, chegava em casa sempre muito tarde, a dona
Marlene esperava, o Celsinho, o Paulinho e a Ana Maria, uma escadinha, já
estavam na cama, o seu Celso bebia, enchia a cara, batia na dona Marlene,
o Celsinho, o Paulinho e a Ana Maria acordavam, pediam pro pai parar, o
93
seu Celso tinha uma rotina pesada e um cachorro bravo, também, ficava a
semana inteira preso na corrente no quintal do fundo, latia durante a
madrugada, acordava os vizinhos, seu Celso tinha uma amante no
escritório, uma secretária novinha, acabou deixando a família para viver
com ela, dona Marlene achou bom, tinha medo que o Celsinho, o Paulinho,
a Ana Maria se envolvessem pra valer nas brigas e acabassem com ódio do
pai, dona Marlene lutou muito para criar os filhos, teve um restaurante
mixuruca, secou, virou sombra do que era, mas sempre firme, fique bem
claro, seu Celso adoeceu, um câncer daqueles, nessa altura a secretária já
tinha se mandado, dona Marlene fez questão de que ele voltasse, “para
morrer entre os filhos”, disse ela, seu Celso morreu nos braços de dona
Marlene, cão bravo enfim livre de correias.
Flor
Flor da Saudade – Nesta noite desta casa me despeço./ Desta rua só
saudade levo./ Já havia plantado raízes aqui./ Na hora de desenterra-las/ a
foice me feriu bem no coração./ Daqui nunca me esquecerei./ Aqui briguei
chorei rezei – tive amores, pudores. / E só deixo uma flor, uma única flor/
que ao brotar se transformará em um pouco de amor, calor humano e num
pouco de mim, nada mais... 30/10/1976
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Gente
A menina Ana Lídia foi seqüestrada, drogada, seviciada e morta em
Brasília. Disseram que o filho do ministro da Justiça estava envolvido. A
menina Aracelli foi seqüestrada, drogada, seviciada e morta no Espírito
Santo. Parece que por dois jovens milionários. A pantera Ângela Diniz
levou quatro tiros em Búzios. Foi defesa da honra, disse o famoso Doca
Street. Cláudia Lessin dançou numa festa de vinho, mandrix e cocaína. Seu
corpo foi desovado num penhasco carioca. Um dos assassinos, bem posto
na vida, foi para a Suíça. O outro, remediado, pegou uma cana. Carlos
Ramires da Costa, o menino Carlinhos, desapareceu com resgate pago.
Longos cabelos loiros jogados sobre a testa, olhos sombreados, na foto que
tanto mostrou Flavio Cavalcanti.
Criança
A criança agora dorme/ o seu sono de aventura./ Quer crescer, mas não
consegue./ Dorme linda criatura. Trova vencedora do primeiro concurso
do colégio. 1979
Fantástico
Eu tinha pena do menino da bolha, que passou no Fantástico, o Show da
Vida, na rede Globo. O Hélio Costa mostrou como o garoto não tinha
nenhuma resistência. Nenhuma defesa contra germes e bactérias. Precisava
viver naquele ambiente esterilizado. Só saía de lá numa roupa de
astronauta. Depois passaram o filme, com o John Travolta ainda bem
95
novinho. Lá pelas tantas, numa drástica resolução, o moleque abandona a
bolha e sai para o quintal. Pisa a grama. Olha o sol. Sorve o ar.
Baldio
Quando asfaltaram a rua 15 e deram o nome de um sujeito pra ela, tinha um
terreno baldio na esquina. Os operários largaram ali um tambor com piche.
A turma das crianças mantinha o negócio fervente, sobre uma fogueirinha.
A gente gostava de enfiar um pedaço de pau na gosma e fazer uma bola
preta na ponta. Nessa brincadeira, queimei o braço. Queimadura de
segundo grau. Uma bela bolha. Cicatriz pra sempre. Nesse terreno também
tinha um monte de pé de mamona, pra gente fazer guerrinha e brincar de
esconderijo. Uma noite, a gente soltava umas bombinhas lá, os pés de
mamona pegaram fogo. A coisa se alastrou. Tentamos apagar com baldes
d’água. Labaredas enegreciam os muros das casas. A turma bancando o
bombeiro no meio das chamas. Como se diz, “entre mortos e feridos,
salvaram-se todos”. Mas não sobrou nada de pé no baldio. Depois, fizeram
esse edifício.
Memória
Sono ou sonho? Ventura ou aventura?
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Discurso
Brasil: ame-o ou deixe-o. Não há tortura no Brasil. Que país é este? Quem
quiser que não abra eu prendo e arrebento. Quem gosta de miséria é
intelectual.
Cola
Meu Deus, eu me arrependo de todo coração de vos ter ofendido, porque
sois tão bom e amável, prometo com a vossa graça nunca mais pecar.
Comunhão
Hóstia tem gosto de casquinha de sorvete.
Chacrinha
Sarita Catatau Fernanda Terremoto Fátima Boa Viagem Gracinha Leda
Zepellin Rita Cadilac Índia Amazonense Lia Hollywood Claudia Campos
Dayse Bianco na palma da minha mão.
97
Encontro de Jovens
Depois de um fim de semana de palestras e testemunhos, fazemos fila para
a confissão. Chorinhos pelos cantos. Preces murmuradas. O sacramento
galvaniza os convertidos. O crepúsculo engole a ladainha. Noite. Luzes do
colégio apagadas. Somos conduzidos em silêncio para a capela. No altar,
detrás da cruz, uma vela tece sombras meticulosas. Caixas acústicas ao
longo da nave projetam o baixo profundo pré-gravado. O Deus, enfim, fala.
Jesus me quer no Caminho. Ligam a chave-geral e começa a missa. Os
segundos voam até a Comunhão. Alma lavada. Pronta para os mais belos
pecados do mundo.
Foto
Uma cadeira universitária, dessas de plástico, com estrutura de metal negro
e um tampo de madeira, anatômico, para acomodar o braço direito. Sob o
assento, uma grande para livros e cadernos. Sobre o tampo, folhas soltas.
Papéis rasgados cobrem canto do chão de taco. À direita, um naco de
colchão. Na parede do fundo, na altura dos ombros de um adulto, duas
fileiras de tijolos de vidro fosco para arejar e iluminar o ambiente. Uma
grade leve de tiras verticais, chumbada. Cimento exposto, sem acabamento.
Um nó na barra da grade, feito provavelmente com a ponta de uma gravata,
conduz ao pescoço do cadáver que pende, entre parede e cadeira. Camisa
aberta no peito. Perna esquerda dobrada, joelho quase toca o chão. Sapato
preto. Os responsáveis pela Central de Interrogatórios do II Exército
afirmam categoricamente que foi suicídio.
98
Primavera
Pintinho pequeno. Pneus nos quadris. Calças de cintura enorme, as pernas
eram cortadas para fazer a barra do baixinho-gordinho, os cavalos ficavam
gigantes. Nos bailes, menina nenhuma dava bola. Nas peças da escola, era
sempre o “Bolinha”, ou personagem do gênero. Na natação, tinha vergonha
de ficar de maiô. Trocar de roupa no vestiário era um tormento. O professor
de educação física judiava. Até o Douglas, que era ainda mais gordo (e alvo
predileto dos garotos atléticos nos jogos de queimada), fez um regime
espetacular e conseguiu emagrecer. Então, minha mãe conversou com a
mãe do Douglas e pegou o telefone do endocrinologista. Dr. Eugenio
Chiorboli. Médico particular. Consultório chique em Moema. Num
“esforço de reportagem” (como gostava de dizer meu pai), fui levado ao
caríssimo doutor. Ele vendeu seu peixe. Disse que fizera parte da equipe
do sujeito que criara a pílula anticoncepcional, nos Estados Unidos! Depois
de uma conversa tensa, onde condenou os hábitos da família, passou, numa
sala anexa, ao exame. Altura, peso, dobras de gordura. Pegou meu saco e
apertou as bolas. Fiquei constrangido. Aí, pediu exames. Foi constatado um
“problema hormonal” no menino de doze anos. Tomei várias injeções.
Entrei num regime pesado. Minha mãe preparava minha comida em
separado. Perdi quinze quilos.
99
Fórum
Aconteceu em 77, no interior do Rio Grande do Sul, onde eu estava
trabalhando. Perto do serviço morava uma desquitada. Nos conhecemos
na rua. Marcamos encontro para a noite. Eu tinha 17 anos e confesso que
minha experiência com mulheres não era lá grande coisa. Mas a
desquitada era uma professora de sexo. Fomos para seu quarto, ela serviu-
me uma bebida e tirou minha camisa. Comecei a despi-la e quando tirei a
calcinha, ela gemia de prazer. Ela libertou meu membro já intumescido da
calça. Foi uma loucura. Mas tive de viajar e nunca mais vi a deliciosa
desquitada. LFLC – São Paulo –SP.
TAÍ
O que você aguardava: o Thailandy chegou. Massagem relax com 20
masseuse girls. Hidro. Suítes. Colchões vibratórios e d’água c/
aquecimento. Sauna. Sistema Carrossel. Diariamente das 12h às 24h.
Moral
Copa de 78. Antes do Peru entregar pra Argentina e o Brasil ser campeão
Moral. Os pais saiam e a gente assistia aos jogos sozinhos. Aí a gente se
masturbava. Nunca chegamos ao troca-troca pra valer. Ele nunca me
perdoou. Nem eu.
100
Jogo
Cabulava aula e ia pro cinema. Gostava dos filmes políticos que, pouco a
pouco, a censura liberava. Um sobre Sacco e Vanzetti. Um sobre Joe Hill,
acho que era esse o nome do cara, um anarquista americano, fuzilado no
fim do filme. Lembro que a última cena era o pelotão, na visão do sujeito
que seria fuzilado. Aquele monte de olho vazio de espinguarda. Numa
tarde, fui pro Lumiére assistir a Bruebaker, com Robert Redford. Um
sujeito sentou do meu lado. O coração disparou. O cara me masturbou.
Jeans estropiado e melecado. Depois, contei prum amigo que uma bicha
tinha me bolinado no cinema. Ele disse, “mas quem é a bicha?”
Reprise
Ulisses, Van Gogh, o pistoleiro com o peito cheio de cicatrizes feitas com
arame farpado, um mágico que sabia andar em campo minado durante a
segunda guerra... Nunca perdia reprise de filme do Kirk Douglas que
passasse na TV.
101
Torresmo
Torresmo, crocante, raspo de panela, tostex. O Zé Portuga aguentava esse
papo. Quem mandou, molequinho, jogar álcool na churrasqueira acesa
espremendo o litro de Zulu? Queimou um belo pedaço do corpo. Toda a
cara. A orelha ficou crespinha, parecia a do Nikki Lauda. Na escola, todo
mundo zoava. Aquele sentimento escroto, “antes ele do que eu”. O Zé ficou
maloca, falava palavrão pra caralho, engordou, usava umas roupas bicho-
grilo. Deixou crescer uma linda cabeleira lisa, dourada. Parecia o Pablo, do
Silvio Santos. Ele morava no Morumbi. Levava a turma pra assistir la
película, um velho super 8 sueco, e pra nadar em sua piscina. Tinha uma
brasília velha, o batmóvel. Fazia uma brincadeira doida junto com o irmão
caçula. Zé pegava uma ladeira. Vinha guiando, o irmão de co-piloto. Aí, o
pivete segurava a direção, o Zé abria a porta e subia no capô com o carro na
vula, daí zoava um bocado, depois entrava pela outra janela. O Zé estudou
história, virou comerciante, casou, teve vários filhos. Não deu mais bola
pra qualquer acidente.
Gibi
Lobinho 1947, Globo Juvenil, Fantasma contra os Piratas do Céu.
Originais expostos na vitrine da lojinha da galeria do Cine Paulistano. O
coração espancava o peito. Tudo muito caro. Ele tomava ônibus na Santo
Amaro, descia na Brigadeiro e ficava sonhando com Flash Gordon na
porta do sebo chique. O dono era um grosso, desprezava o guri que não
levava nada. Um dia, a loja fechou. Ficou a placa perdida na galeria. Dava
pra ver da rua, lá no fundo do corredor, o retângulo vermelho com o
102
crioulinho esperto, o personagem que deu nome a uma revista, à loja,
depois virou sinônimo de quadrinhos e sonhos impossíveis.
Possible dream
Financiou em 15 anos o sobrado de três dormitórios e, devagarzinho,
planejou as reformas. Pensou em ampliar um dos quartos ou fazer um
banheiro sobre a laje. Pensou em abrir a sala de jantar, fazer um janelão
para a entrada lateral. Pensou em erguer o muro da frente, fechar mais a
casa. De saída, fez um caramanchão no quintal do fundo. Quatro colunas de
cimento e tijolo, um telhadinho, dando para um pequeno gramado, com
canteiros e bancos de alvenaria, assentos de finas ripas de madeira. Plantou
um limoeiro, uma pimenteira, um pé de boldo, e uma dama da noite, que
toda primavera forrava a grama com flores de aroma doce. A família e os
amigos sempre se reuniram ali em festas de aniversário, churrascos,
macarronadas. Para proteger os eventos da chuva, ele bolou um sistema
com uma enorme lona verde, que prendia ao muro lateral e às vigas da
obra. Numa folha de sulfite, desenhou seu projeto especial: erguer um
andar sobre o caramanchão. Uma escada em caracol levando ao espaço
totalmente envidraçado. Amplo. Gostoso. Entre aspas, nomeou a obra:
possible dream. Tocava sempre no assunto. A planta estava sempre por
perto, ali, na escrivaninha. Os filhos crescidos, casados, ele vendeu a casa.
Levou a planta.
103
Heavy Metal
O Zé Mauro era filho de um importante cronista da Gazeta Esportiva.
Entendia tudo de futebol. Sabia os nomes dos craques da Holanda e da
Alemanha. O Zé catava no gol. Tinha uma camisa laranja de manga
comprida, joelheiras e uma luva enorme. Irritava os atacantes com
piadinhas. Depois de cada jogo da Copa, jogávamos bola na rua. As traves
eram duas árvores numa calçada. Se tinha bastante moleque, fazíamos dois
gols com pedras ou tijolos e partida ficava mais animada. Um dia,
brigamos. Ele me deu uma cabeçada. Minha testa inchou, fiquei parecendo
o homem-elefante. O Zé também estudava comigo. Na escola todo mundo
tirou o maior sarro da minha cara. Fiquei com mágoa. Nossa amizade
nunca mais foi a mesma. Depois que entrei pra faculdade, pouco nos
víamos. O pai do Zé morreu. A mãe ficou alcoólatra. Os irmãos mais
velhos se mandaram. O sobrado onde ele morava começou a cair aos
pedaços. Dava pra ver da sacada de casa. O Zé virou Heavy Metal. Alto,
magro, andava curvado sob os belos cabelos loiros. Se drogava. Se
enforcou no vão da escada. A mãe vagava pela rua com a sacola de feira
vazia. Também morreu. A casa ainda está para vender ou alugar.
Parede
Do outro lado da parede que separa os dois sobrados semi-isolados
moravam o Álvaro e o Titi. Os pais deles quebravam o pau durante a noite,
minha mãe precisava dar tamancadas na parede para ver se eles paravam. O
Álvaro quase atirou na minha mãe com uma espingardinha de chumbo. O
Titi virou juiz de direito. O Álvaro virou polícia civil. O Titi fez uma
104
brilhante carreira. O Álvaro foi encontrado morto num lixão de Santo
Amaro. As duas casas foram vendidas para o comércio.
Futura
Na porta do armário do quarto do fundo, feito sobre o forro de estuque,
meu pai marcava com sua futura preta nosso crescimento. Pegava uma
régua, espremia contra nossa cabeça e fazia um traço na madeira nua. Logo
meu irmão me passou. Depois veio o mundo.
Herói
Zé Arigó talha olho com gilette. Lengruber muda estrutura da matéria.
Dr. Fritz rasga barriga com tesoura. Uri Geller entorta garfo com dois
dedos. Passávamos a vida em frente à TV, sonhando com nossos heróis e
embusteiros.
105
Dicionário
Amizade. Aspone. Assumido. Bicho. Bode. Boneca. Brazilianista.
Caretice. Casuísmo. Chocante. Cocota. Curtir. Dançou. De montão.
Desaquecer. Distensão. É isso aí. Falou. Fazer a cabeça. Ficar na sua. Gata.
Grilo. Já era. Jóia. Locomotiva. Numa boa. Pacote. Patrulha. Pico. Pra
frente. Pintou. Podes crer. Sacou. Sufoco. Tá ruço. Tchan. Tipo. Tou
contigo e não abro. Transa. Tremendo.Tudo em cima. Um barato. Zorra.
Foi
Foi no ano em que o Basílio fez o gol e tirou a gente dos 22 anos de fila?
Foi na temporada em que o Geraldão dava cada tijolada que era gol na
certa, o Tobias segurava lá atrás? Foi quando o pai levou a gente pra ver
semi-final contra o Palmeiras, recorde de público e renda, no Morumbi?
Naquele Reveillon em família o vô encheu a cara e derrubou na mesa sua
dor de cotovelo, pois sua terceira mulher, a baianinha, a cabeleireira, tinha
ido passar o fim de ano em Pernambuco, para alívio de nossa cabecinha
“classe média em ascensão”? Quebrou o pau com a mãe e com a tia, disse a
famosa frase “prefiro comer um prato de cocada com todo mundo do que
um pote de merda sozinho”, que as duas sentiram com pesada indireta? Eu
e o Gugui assistimos a tudo do vão da escada, pois minha mãe mandou a
gente subir imediatamente? Ficamos um ano sem ver o vô? Foi depois
desse tempo que ele apareceu no escritório do meu pai, empertigado em seu
terno e gravata, guarda-chuva a tiracolo? Foi um ano e meio depois, no
aniversário de quarenta anos do pai? Passaram só 6 meses? Foi aí que eles,
sei lá, voltaram a ser, ou finalmente se tornaram, amigos?
106
Santa Ceia
Uma vez por mês iam jantar na pizzaria Paulino. O pai pedia uma pizza
grande, meia muzzarela, meia calabreza. Às vezes, meia muzzarella, meia
aliche. O pai adorava aliche. A pizza vinha cortada em oito pedaços. Dois
para cada um. Duas azeitonas. Pediam duas caçulinhas para as crianças. O
casal tomava uma cerveja. O garçom servia. Os filhos e a mãe comiam
primeiro muzzarella. O pai, calabreza. O pai regateava: alguém quer trocar
sua fatia de calabreza pela de muzzarella que ele deixou na forma?
Ninguém queria. Mesmo assim, algumas vezes a mãe trocava. Mas quase
sempre ela dizia que já estava satisfeita com sua fatia de muzzarella, eles
podiam dividir sua calabreza. O pai não entrava na divisão. Portanto os
filhos cortavam milimetricamente o pedaço herdado. Um comia a azeitona.
Nunca pediam suco. Muito menos sobremesa.
Sapatos
Queria um sapato bico fino. O pai disse que aquilo era moda, passava logo,
melhor comprar um sapato mais durável, resistente. Um 752 da Vulcabrás,
por exemplo. Na loja, experimentou vários modelos. Tinha os pés chatos,
precisava de palmilha. O pai acabou convencendo-o da qualidade e beleza
de um par de sapatos bordô, com os bicos arredondados e duas costuras
dando acabamento. Levaram. Mas ele não ficou satisfeito. Não se sentia
bem. Numa festa ou visita, escondia os pés debaixo das poltronas. Ao invés
de encostar os sapatos, deu o par pro vô, que estava precisado e vinha
mesmo namorando o pisante. O vô deu um belo trato nas peças. Trocou
solas e saltos. Tingiu de um marrom bonito. Meteu uma graxa brilhante.
107
Combinou muito bem com a calça bege de tergal e o paletó azul que o filho
um dia usara. O neto ainda queria um sapato bico fino. Que nem o do John
Travolta. Mais um par de suspensórios, como os do filme Grease, para ir na
matinê da discoteque. O pai levou-o, mais o irmão, no DIC. O caçula
comprou uma chanca marrom. Ele, uma verde. Os moleques arrasaram na
pista. Seus sapatos foram usados até que as solas abrissem o bico. Já o avô,
anos depois, foi enterrado com seus indefectíveis calçados marrons,
cortesia do neto.
Arque
Waldo e Nélida passaram a Lua de Mel na Europa e fizeram centenas de
slides, que mostravam geralmente após um lauto jantar, daqueles de vários
talheres, que ofereciam a pequenos grupos de amigos. A criança ficou
encantada com tudo: a pompa, a simpatia, a comida, Paris, a Gruta Azul...
Pompéia. Corpos calcinados, falo gigantesco. Momento, cinza,
monumento. Decidiu ser arqueólogo (“quando crescer...”).
Direito
“E” ou “e”? Para esclarecer a brutal diferença de significado que o simples
uso da minúscula ou da maiúscula acarreta nas palavras “estado” ou
“Estado”, a professora pediu para que a turma recortasse o segundo
vocábulo nos jornais da semana. Talvez lá, algum sentido pudesse ser
encontrado.
108
Sexta-feira
Congestionamento. Filas de carros. Troca de turno. A turma da manhã
enfim livre, a da tarde chega para a aula. Desova de crianças barulhentas. A
escola se agita. Uma hora da tarde. Toca o sinal. Sirene longa. Todo mundo
pra classe. Uma boa caminhada para quem estuda nos fundos da escola
imensa, com um complexo de prédios, laboratórios, quadras, campo de
futebol, arquibancadas, piscinas, biblioteca, lanchonete, enormes espaços
livres para o recreio, um sofisticado paisagismo, tudo isso cercado por um
bosque, num vale do Morumbi. Uma e quinze. Todos em suas carteiras,
quem não chegou não entra. Professor ocupa seu lugar entre lousa e mesa.
Mais um longo sinal. Silêncio. Um silêncio avassalador sobre tudo. O
clique da gravação soa nos auto-falantes instalados em cada uma das
classes. A turmas se levantam. Começa o hino.
Coleção
Meu pai fez a coleção com a história da música popular brasileira lançada
pela Editora Abril. Primeira edição, linda, cada fascículo negro abarrotado
com fotos e textos fantásticos, mais um disquinho com as oito principais
canções de nossos principais compositores. Eu ouvia sem parar. Chico,
Caetano, Gil, Edu Lobo, Sérgio Ricardo. “Se entrega Corisco...” Eu
amava a música da trilha de Deus e o Diabo na Terra do Sol, com trechos
109
de diálogos. Eu sonhava com o filme. Um dia, meu pai me levou pra ver
uma sessão especial, no pequeno auditório do MASP. Como Corisco, tudo
gira. E me leva.
OSPB
Ordem Social e Política do Brasil? Era isso o que significava o nome
daquela aula, cujo sentido era incutir em nossas cabeças a ordem social e
política do Brasil? Mas acontece que naquele ano começava a abertura.
Tínhamos ouvido, pela primeira vez, enfim liberada, a música do Geraldo
Vandré. Pra não dizer que não falei das flores. A gente tocava no violão.
No recreio. Era bico: lá menor, mi menor, lá menor, mi menor. Só isso.
Diziam que o Vandré tinha pirado. Tortura. Que vivia recluso num ap perto
do Minhocão. Que agora cantava em louvor da Aeronáutica. Cantávamos
sua música. E também No Woman No Cry, na versão do Gil, que exigia um
pouco mais do violonista.
Meu caro amigo
Meu tio tinha aquele LP do Chico, Meus Caros Amigos. Eu acompanhava
discussões intermináveis sobre O Que Será que Será. Clima de confraria.
Ninguém sabia o que seria. Será?
110
Inculta e bela
A professora de geografia defendeu: disse que o menino era a “última flor
do Lácio, inculta e bela” – e que devia tomar todo o cuidado com a
professora de português, que tramava contra o adolescente de 14 anos
(“onde já se viu colar na cartolina uma montagem do famoso quadro do
Tiradentes esquartejado, onde o mártir estava igualzinho a Jesus Cristo, e
expor o trabalho nas paredes da escola? Onde já se viu escrever redações
depressivas sobre famílias tristes e jovens mortos? Onde já se viu, na aula
de OSPB, criticar a “abertura lenta, gradual e irrestrita”? Ou criticar no ato
humanitário que a escola fazia, oferecendo educação básica totalmente
grátis para a criançada da favela vizinha ao colégio, o fato dos alunos do
PG – ‘p’ significando ‘turma da tarde’, ‘g’ significando ‘grátis’ – não
entrarem pelo mesmo portão, não terem o mesmo horário de recreio – pois
eram, obviamente, conduzidos em fila indiana a um setor especial para
eles, separado por um portão, com bedel na porta – não, poderem, enfim,
ter algum tipo de relacionamento com os filhos da mais alta estirpe
paulistana, mesmo que, aí sim, misturados, às crianças classe média que
pagavam a mensalidade alta e, claro, a escola aceitava?”).
Manhã de Sol
Novos censores para a obra de Rubem Fonseca. Surpreendidos pelas
perguntas das filhas adolescentes, que buscavam esclarecimentos sobre “o
sentido de frases nada recomendáveis” do livro Lúcia McCartney, de
Rubem Fonseca, a comissão de pais exigiu que a Delegacia de Ensino
apreendesse a obra recomendada às estudantes por considerá-la
111
pornográfica, e acusou o professor como o principal responsável pelo fato.
Ele se defendeu. Disse que o livro foi indicado depois de uma devida
aprovação do conselho de professores e da Secretaria de Educação. Os pais
questionam sobre uma possível intenção do professor de “prostituir as
adolescentes”, através dos relatos do livro, principalmente no capítulo
“Manhã de Sol”, onde logo na abertura é descrita uma briga com frases
consideradas obscenas, “não faltando encontros amorosos e até cenas de
sangue”.
Anúncio 80
A Delfin aposta nos dez anos que estão começando agora. É preciso
lembrar que os dez anos que estão começando vão ser de sacrifício para a
humanidade. Mas a história mostra que os ciclos energéticos, desde o fogo,
causaram apreensão no final e muito progresso a cada novo início... É a
experiência de quem passou dez anos lidando com quase dois milhões de
poupadores, gente simples, que acredita no bom conselho da poupança e
sabe que não vai perder. No mundo da poupança, a Delfin é a sétima, à
frente de muito país sério. Em otimismo, não abre a mão de ser a primeira.
Ela acredita no Brasil. Caderneta de Poupança Delfin – onde a maioria
planta.
112
Milagre
O milagre acabou. O pai foi demitido depois de 27 anos dando duro na
multinacional. A crise bateu na cara do moleque logo depois. O
diretor/dono da mais tradicional escola particular do bairro chamou os três
colegas - o Laguna, o Espírito Santo e ele - para uma conversa particular no
escritório que bem poucos estudantes conheciam. “Garotos, cuidado. Assim
vocês não vão a lugar nenhum.”O interventor da USP durante os anos de
chumbo apontava a pilha do primeiro número do Argonauta, panfleto
bundo dos alunos, que o trio, com o patrocínio do colégio, escrevera.
“Bundo?” Está no Aurélio: chulo. “Matéria sobre educação
sexual?”Importante para a turma. O professor emérito questionava com fala
mansa, arrastava as últimas sílabas, invariavelmente tônicas, num sotaque
bem caipira, gostoso. Cabelos brancos, pele bronzeada, cara de vô. O
meninos receberam a advertência. O jornal não foi distribuído. Não restou
cópia alguma. Nos anos seguintes, os colegiais viraram profissionais
liberais. Abriram uma pequena empresa que, de fato, não foi longe. O
mestre cordial fez seu passamento em meados da década perdida. Em
cerimônia solene, o externato passou a levar seu nome. Quase faliu.
Rapidamente, voltou à denominação antiga, fez franchising do método de
ensino de uma gigantesca rede educacional que se alastrava pelo estado e
tentou reservar um lugar ao sol no milênio que chegava.
113
Réveillon
Com as últimas economias, ele levou a mulher e os dois filhos para um fim
de ano no Rio. Copacabana. Multidão de branco na praia. Espuma de prata.
O mais velho estava com uma conjuntivite danada. Pisava em tudo que é
despacho. Meia-noite. Caramuru. Não dá xabú. Fogos. Cantos. Jorros.
Beijos. Velas de macumba. Cães. A cascata do Meridien. Tendas.
Fogueiras. Oferendas. Milhões de partículas de luz e cor chamam o futuro.
Amanhã, o mar engolirá os restos de tudo.
Setenta
Juntei os papéis na sala do ap. Pilha de jornais, revistas, cartas, bilhetes e
fotos. Um gole de Zulu. O risco. Fiat Lux.
114
Capítulo 3: O “X” DO PROBLEMA.
115
3.1. NA VIDA.
Chegamos agora, após a viagem pelos conceitos de Tragédia e de
Trágico, depois de cruzar os labirintos Trash da formação do autor, ao
universo das peças, da dramarturgia que venho trabalhando nos últimos
anos. Ao universo da Trash Tragedy.
Bem, nesse caso, o ponto de partida é meu trabalho com a Cia. Teatro X.
Em1995, trabalhei um ano como professor no Teatro Escola
Macunaíma. Ficava na Barão de Limeira, quase em frente à Folha de
SP. Eu dava aulas de tarde e de noite e adorava passear pelo centro.
Visitar os sebos. Tomar um mate na São João. Ver as pessoas.
Lá no Macunaíma dei aulas de um bocado de coisas. Recém-saído da
ECA, não recusava trabalho. Então dei aulas de teoria, improvisação,
corpo, voz, interpretação, montagem. Os alunos eram legais, com muita
diversidade de interesses. A direção da escola apostava em mim. Os
colegas eram ótimos.
Desse modo, pude realizar lá a montagem de um texto meu chamado 33.
Uma história muito louca de crimes e assassinatos numa família classe
média de São Paulo. 33 fragmentos desconexos, entregues de bandeja,
pegando fogo, na mão dos espectadores. O público da escola adorou, a
direção odiou, a coisa virou polêmica, acabei, pouco depois, demitido.
Mas o caso é que nesse circuito conheci Paulo Fabiano, uma das estrelas
da casa. Professor de interpretação, Paulinho fazia belíssimas montagens
116
com os alunos da escola. Lembro de assistir a um Bailei na Curva muito
bacana.
Paulo vinha da dança, do teatro bas fond de sampa, aquela coisa anos 80,
tão forte em suas intenções, na esteira paradoxal do teatro dança e da
dramaturgia de Plínio Marcos. Seus espetáculos eram limpos (palavra de
ordem na época), bem acabados, claros e com encenação original. Além
disso, Paulinho conseguia extrair uma média alta nas atuações de seus
grupos – e quem já deu aulas em cursos técnicos de Teatro sabe como
isso é difícil.
Lá no Macunaíma Paulinho e eu nos aproximamos. Cheguei a dar uma
assessoria a trabalho dirigido por Nissin Castiel (dono e diretor da
escola) com Paulinho, a Balada de um Palhaço, de Plínio Marcos
situação que consolidou mútua simpatia.
O tempo passou. O Paulo também saiu do Macú e, com ex-alunos e
companheiros de lida, montou companhia, em 1997. Seu objetivo era um
trabalhar o teatro como arte e como movimento social.
Os primeiros espetáculos da Cia. Teatro X foram Torre de Babel e
Zumbi dos Palmares, que estrearam em 1999, na primeira sede do
grupo, uma antiga oficina no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. Além
disso, o grupo elaborou mostras de dramaturgia, com leituras públicas de
vários autores. Desse núcleo saiu a proposta de elaborar a Trilogia do
Sangue, a partir de tragédias gregas, da qual eu e o dramaturgo Gerson
Esteves participamos.
117
Logo a Cia Teatro X mudou-se para a Praça Roosevelt, no centro de São
Paulo. Passou a ocupar os porões de um edifício, onde durante muitos
anos funcionara uma boate.
Nessa época, início do milênio, a Praça começou a se transformar em
polo teatral. Além do X, foram para a praça a Cooperativa Paulista de
Teatro, o grupo Satyros, ao lado de antigos residentes como o Teatro
184 ou a sala da escola de teatro Recriarte.
Esse intenso movimento não só colaborou para revitalizar a praça como
acabou por transformá-la numa espécie de centro de pesquisa teatral de
São Paulo. Prova disso é a inauguração em setembro de 2006 do novo
espaço do Grupo Parlapatões.
Infelizmente, nesse momento, o Teatro X não está mais na Roosevelt, e
elabora suas ações com outra estratégia, levando seus espetáculos para
comunidades carentes, como modo de fomento e formação de público.
Um dos principais méritos da Cia. Teatro X e, especialmente, de seu
diretor artístico Paulo Fabiano, é seu interesse no que hoje se chama
“nova dramaturgia”. Em fins dos anos 90, ele era um pioneiro em ciclos
de leituras com gente que, na época, era completamente desprezada ou
não tinha o menor espaço para debater seu trabalho.
Na época eu estava meio largado, sem muitas alternativas profissionais.
O Paulo, que já não me via faz muito tempo, começou a me chamar para
leituras. Li um texto meu, Termini – A casa da paixão, lá no Teatro X.
Uma experiência inesquecível.
118
Depois, ele me convidou para participar de uma panorâmica do novo
teatro de São Paulo com meu espetáculo Werther na Veia. Um tempo
depois, fiz leitura de Licurgo. Então, veio o convite para o trabalho na
Trilogia do Sangue.
Originalmente, o Teatro X pretendia trabalhar com quatro dramaturgos:
Gérson Esteves, Claudia Vasconcelos, Rubens Rewald e eu. Acabamos
ficando com a tarefa Gérson Esteves e eu.
Gerson criou duas peças para o grupo: A Falha Trágica e Espólio
(inspirado na trilogia Tebana, com a história de Édipo e sua família). Eu
trabalhei sobre o Prometeu Acorrentado, reinventando a peça de
Ésquilo em chave atual.
Depois, vieram Cidadão de Papel, inspirada no livro homônimo do
jornalista Gilberto Dimeinstein, Calígula, a partir da obra de Camus e
Bando de Maria, sobre As Troianas, de Eurípedes.
119
3.2. NA JAULA:
O Teatro X queria trabalhar com releituras de tragédias gregas. Escolheu
algumas das mais tradicionais e as distribuiu entre novos dramaturgos. A
mim, coube o Prometeu Acorrentado, de Ésquilo.
Gostei da oferta. Havia tangenciado o mito de Prometeu em meu
espetáculo Werther na Veia, inspirado em Os Sofrimentos do Jovem
Werther, de Goethe, objeto da minha dissertação de mestrado.
Lá, eu iniciava a peça com uma espécie de prólogo, adaptação do
Prometeu de Goethe:
“1. PROMETEU:
Pode encobrir o céu
com vapores de nuvens, Zeus,
e brincar nas cristas dos montes
feito um menino que decepa flores.
Mas a minha Terra você não vai tomar.
Nem a minha casa, cujo calor você inveja -
e que não foi você quem construiu!
Eu não conheço nada mais pobre sob o sol
do que vocês, Deuses!
Vocês se alimentam mesquinhamente de sacrifícios e preces.
Mas morreriam de fome se não fossem
as crianças e os mendigos,
loucos cheios de esperança.
Quando eu era menino
e não sabia como me virar,
eu voltava os olhos para o sol,
como se lá existisse ouvido para minhas queixas,
um coração como o meu,
120
solidário à minha angústia.
Mas quem me ajudou contra a insolência dos Titãs?
Quem me livrou da morte e da escravidão?
Só você, meu coração.
Meu jovem, belo, bom – e enganado coração!
Que oferecia preces para um Deus
que lá no céu dormia.
E terminou roubando o fogo sagrado.
Eu, venerar a Deus? Por quê?
Você alguma vez suavizou as dores do oprimido?
Enxugou as lágrimas do angustiado?
Quem me fez Homem foi o Tempo e o Destino,
senhores meus e teus.
Você talvez tenha pensado
que eu odiaria a Vida
e fugiria para os desertos
porque nem todos meus sonhos
frutificaram...
Mas eu estou aqui!
Formo homens.
Para sofrer, para chorar,
para gozar e se alegrar.
E pra não te respeitar.
Como eu.”
1
Essa rebeldia, essa insolência, essa solitude… Em um Prometeu que, no
dizer de Nietzsche, tem determinadas características:
“O homem, alçando-se ao titânico, conquista por si a sua cultura e obriga os
deuses a se aliarem a ele, porque, em sua autônoma sabedoria, ele tem na mão
a existência e os limites desta. O mais maravilhoso, porém, nesse poema
sobre Prometeu, que por seu pensamento básico constitui o próprio hino da
impiedade, é o profundo pendor esquiliano para a justiça: o incomensurável
sofrimento do ‘indivíduo’ audaz, de um lado, e, de outro, a indigência divina,
sim, o pressentimento de um crepúsculo dos deuses, o poder que compele os
dois mundos do sofrimento à reconciliação, à unificação metafísica – tudo
isso lembra, com máxima força, o ponto central e a proposição principal da
consideração esquiliana do mundo, aquela que vê a Moira tronando, como
eterna justiça, sobre deuses e homens.”
2
1
Versão do autor, arquivo pessoal.
2
Friedrich Nietzche, A Origem da Tragédia, Cia. das Letras, São Paulo, 1992, p. 66.
121
As proposições de Nietzsche, mesmo quando não concordamos com elas,
são sempre extraordinárias e acachapantes. Ninguém sai incólume. Eu, de
minha parte, não acredito em reunião metafísica entre homens e deuses,
muito menos que isso seja “justiça”. Também não vejo o poema como
“hino da impiedade”. Pelo contrário: vejo-o como afirmação do humano,
mesmo que dilacerado entre as forças do Tempo, que nos corrói, e do
Destino, que, misteriosamente, nos arrasta.
De todo modo, esse trabalho prévio com o Prometeu já era um começo
para a tarefa que se apresentava. Talvez, mais que isso, fosse um
parâmetro – do qual, penso eu, nunca me afastei, ao longo de todos os
trabalhos que viriam a seguir.
Trabalhar sobre o teatro de Ésquilo, com seus deuses poderosos!
Prometeu, o titã que oferece o fogo, o conhecimento para os homens,
pagando muito caro por isso. Inaurgurando uma mitologia que, de um
modo ou de outro, na história ou na arte, vai de figuras como Jesus
Cristo a Victor Frankenstein – ou mesmo o Super-Homem dos
quadrinhos.
Comecei meu trabalho com a leitura de algumas das traduções em língua
portuguesa da peça, que havia lido apenas durante minha graduação: Ana
Paula Quintela Sottomayor (Portugal), Mário da Gama Kury, Jaime
Bruna e Trajano Vieira.
122
Aprecio esse procedimento: nos vãos que se abrem entre as escolhas de
cada tradutor, posso realizar um cavucamento hermenêutico, que oferece
deliciosas possibilidades para um dramaturgo.
No começo da peça, entram Poder, Força e Hefesto, arrastando Prometeu.
O objetivo do trio é prender Prometeu, a mando de Zeus. Assim, o titã
cumprirá pena por entregar o fogo do conhecimento, da arte e da ciência,
aos homens. Além disso, vemos ao longo da peça que Zeus pretende, por
intermédio de tortura, descobrir tudo o que Prometeu sabe sobre o futuro
do chefe dos deuses. Zeus não quer perder sua posição - e Prometeu tem
conhecimentos que podem ajudá-lo. Mas acontece que o Titã é
resistente…
Comecei a meditar sobre os personagens Poder e Força, sobre o deus do
fogo, sobre o titã que rouba esse fogo do saber e o entrega à humanidade.
Sobre esse joguinho entre deuses (onde, no final, todos se dão bem,
mesmo Prometeu, que acaba libertado em outra peça)
Poder e força. Fogo. Opressão. Tortura. O valor do conhecimento. A
necessidade de conquistar saber a qualquer custo. A resistência. Como o
que me interessava era trabalhar temas contemporâneos a partir da
estrutura da tragédia, pensei em transpor a ação da peça para os porões de
uma delegacia de polícia no Brasil, cenário-chave de uma inadmissível
realidade que já tem longuíssima duração e tradição na nossa sociedade: a
tortura.
O aprisionamento de seres humanos e seu destroçamento em nome de
qualquer razão, ideal ou objetivo. Procedimento usado largamente
durante as ditaduras que dominaram nosso século XX, a tortura continua
123
a ser praticada impunemente. Se não mais existem “inimigos políticos”,
ainda há uma tremenda guerra de informação – e mesmo quando não
resta mais palavra a descobrir, em mentes destroçadas, ainda restam as
entranhas dos corpos. Vão-se os “motivos”, fica a “técnica”.
A guerra civil que toma conta de algumas regiões urbanas do país é, antes
de tudo, suja. Cidadão contra cidadão, até o aniquilamento. As prisões e
cadeias são verdadeiras jaulas que desumanizam a todos. Não há heróis.
Todos são algozes e vítimas.
Com essas idéias na cabeça, resolvi trazer a ação da peça para esse
cenário, para essa contemporaneidade. São Paulo? Rio? Anos 90? Século
XXI? Esse esfumaçamento dá, digamos, um “ar” mítico a uma situação
histórica brasileira que custa a passar: a violação total dos direitos
humanos. Portanto, não se tratava aqui de Prometeu Acorrentado, mas
de Prometeu Enjaulado.
Tocado principalmente pelas obras de jornalistas como Percival de
Sousa, em livros como Autópsia do Medo
3
, comecei a minha recriação.
Se Prometeu continuava em cena, agora como um menor traficante,
Hefesto, Poder e Força viraram Delega, Navara e Letisgô, trio de milicos
barra-pesada.
“Cela clandestina. Periferia. Madrugada.
Cadeiras, jornais velhos, um penico, um tonel de água, um mastro com a
bandeira brasileira hasteada, duas cadeiras, alguns instrumentos de quem
trabalha neste “escritório”. Prometeu entra com mãos e pés algemados. Atrás
dele, Letisgô e Navara. Os dois jogam Prometeu no chão e entram em posição
de sentido. Entra Delega. Letisgô e Navara fazem saudação nazi.”
4
3
Percival de Souza, Autópsia do Medo, Editora Globo, São Paulo, 2000.
4
Rubrica da peça. Volume 2 da tese, p.352.
124
O nosso Prometeu é um pequeno traficante além de qualquer defesa,
algoz e vítima enjaulado num tenebroso aparato de Estado, onde cada
mané que se aproxima aproveita para tirar uma casquinha, para
descarregar suas próprias frustrações e exercer sua porção de sadismo.
Assim, Prometeu Enjaulado questiona a noção de herói, no contraste
entre o Prometeu e o Delega. Um, garoto paupérrimo que encontra no
crime possibilidade de diferenciação. O outro, agente da justiça que
encontra nela chance de viver com impunidade. Ambos talentosos, ambos
carismáticos, ambos altamente perigosos.
A princípio, a peça mostra a tortura e o martírio de Prometeu. A polícia
pretende extrair detalhes sobre a criminalidade da boca do preso. A ele,
cabe resistir, ganhar tempo, ludibriar.
Após uma série de sevícias, os policiais plantam na cela de Prometeu
outras duas presas, com a intenção de enredar Prometeu. Aos poucos, o
rapaz inverte a situação e, com seu carisma e com seus fiapos de idéias
sobre a situação de todos ali, naquele cárcere, envolve as mulheres,
formando com elas uma estranha e capenga comunidade.
Quando a polícia volta para a cela sua missão é aniquilar de vez o
criminoso. Mas acontece uma reviravolta durante a luta, quase todos
morrem. Só sobra a garota Io, uma drogadinha que, estuprada
seguidamente durante a longa noite, sai dali confiante de que engravidou
de Prometeu, e que vai botar sua criança no mundo. Para mudá-lo!
125
Além dessa transformação de conteúdo, construída a partir da estrutura
do original de Ésquilo, realizei uma série enorme de experimentos
estéticos, nos diálogos, nos ritmos e nos sons. Exemplo disso é o primeiro
monólogo de Prometeu, primeira fala do titã no texto de Ésquilo.
Comecemos pela belíssima tradução de Trajano Vieira.
“Prometeu:
Ventos alivelozes, ar divino,
Fontes dos rios, inúmeros sorriso
De ondas salinas, Terra, mãe-de-todos,
Eu vos invoco e ao Sol, visão total
No disco: sofre um deus, oprimem deuses.
Vede o tamanho das afrontas
Sem esperança acumulando-se.
Há um novo líder entre os deuses;
Ele é o autor do meu suplício.
Pelo futuro se projeta
O lamento que cresce em mim:
Desconheço se há data certa
Em que será suspensa a pena.
Deliro! Do que advém estou ciente:
Nenhuma pena chega-me imprevista.
Fundamental levar de modo leve
O destino levado pelo fado,
Sabendo que o vigor do Necessário
Não vacila. Pois é igual dizer
Ou silenciar a minha própria sina.
Premiei os homens e a fatalidade
Me preme com seu jugo. O oco da férula
Enchi, roubei da foz furtivo fogo,
Que toda a técnica aos mortais ensina,
Máxima fonte. E pago esse delito,
Ao relento, no insulto das algemas.
Ai! Estranho rumor!
Aroma sem figura me circunda.
Divino, humano ou humano-divino?
Chega ao cume da rocha derradeira
Algum espectador de minhas penas?
Aprisionado, vês um deus soturno,
Que odeia Zeus, cuspindo fel
Em quem partilha do seu paço.
Me liga aos homens forte liame.
For a! For a! Um arrulho alado
126
Revoa agora a meu redor!
O rápido bater das asas
Ocupa a atmosfera calma.
Quem se aproxima me exaspera.
(Entra o coro das Oceânides)”
5
Na minha versão:
“Prometeu: (Murmura) Terror sem esperança. Terra, sol, rio, mar e mata.
Todos os santos. Que foda é a tiragem. E se eu tivesse um celular pra avisar
meus tio. E se eu ranjasse uma automática pra acabar com tanta banca. Ah,
meu santo, que esse meu dom me diz da minha sina. Sei quanto dura um
amor. Quanto voa uma bala. Quanto demora uma lágrima. Quanto ronca uma
fome. Quanto filhadaputa por cima da carne seca. Como é que se derruba um
puto? Como é que se acaba com todos eles? Ah, meu santo, eu sei quanto rói
essa dor da cana brava. Meu santo, eu não queria ser vidente. Mas é isso que
você quer, né? Então eu sei que o fim está perto, mas dessa boca não sai um
ai, que junto a meu santo eu tenho amor a meu semelhante, eu não entrego
colega, família. E tanto faz gritar ou não. Eu sou o herói do meu povo. Eu
assumi crime da moçada de maior. Essa é a minha parte. Eu sei que obrei pela
liberdade!
(Uma puta é encarcerada, fazendo barulho.)”
6
Essa pesquisa lingüística, incrementando ao máximo a fala dos
personagens com falares, dialetos, gírias, expressões e cantos populares –
em tensão com ritmos, rimas e falares ditos nobres -, desemboca numa
nova abordagem de uma figura fundamental da tragédia grega: o coro.
Na tragédia grega o coro é a voz do senso comum, a voz do grupo social,
mediando os mundos dos heróis e dos deuses. O porta-voz do coro é seu
corifeu, a voz do grupo. Honestamente, não acredito mais nessas figuras.
5
Ésquilo, Prometeu Prisioneiro in Três Tragédias Gregas, São Paulo, Perspectiva,
1997. p. 146-147.
6
Volume 2 desta tese, p. 359.
127
Acho que as experiências brechtianas e pós-brechtianas sobre o assunto
desembocaram numa sinuca, e camuflam a tensão cada vez mais
exasperante entre indivíduo e grupo social.
Acho que a épica contemporânea não cabe mais num coro coeso. Ela é o
conflito entre diversas vozes, entre indivíduos, entre o senso-comum e o
discurso dissonante, entre as vozes internas e externas – ou seja, algo
muito distante do consenso e do discurso único. Ao invés do coro, o
bando, a legião de demônios, o delírio esquizo – e o ser só, extremo, à
margem.
O individualismo contemporâneo é fruto da sociedade turbo-capitalista
que vivemos. Assim como os grupos de hoje também o são: igrejas,
torcidas, partidos… Coro coeso só nas indústrias chinesas. E olhe lá.
A crítica desse modo de produção, seja ele econômico ou cultural, não
cabe no discurso da esquerda tradicional – muito menos no discurso do
teatro de esquerda tradicional, agora refestelado no poder, qual
Ornitorrinco, na figura maravilhosa cunhada pelo sociólogo Francisco de
Oliveira.
7
Portanto, aboli o coro no meu texto. Distribuí suas falas pelos outros
personagens. Digamos que radicalizei uma idéia brechtiana: todos são
literalmente coro e protagonista do texto e da história. Quem manda não é
o partido. Ele, também, partido.
7
Francisco de Oliveira, O Ornitorrinco, São Paulo, Boitempo, 2003.
128
No Prometeu Enjaulado, a cena mais significativa dessas idéias ocorre
na entrada da personagem Io. A personagem, aqui uma drogada aidética
plantada na cela de Prometeu, aperitivo para os apetites sádicos dos
milicos, se apresenta e dialoga com Prometeu e Dama. A conversa pega
fogo e vira uma espécie de algazarra cantada:
“Io: Sério. Ninguém sabe. Só eu sei. Só. Eu tô cum HIV positivo, meu. Mas
os milico num sabe. Eu tô com a arma na mão, sacô? Eu vou morrer, morou?
Dama: Aqui todo mundo vai, pirralha. Isso aqui é o corredor da morte,
nenêm.
(Io chora.)
Io: Mas não era pra ser. Era pra ser bem bonito. Era pra ser a casa de minha
mãe. Era pra ser um namorado novo. Era pra ser comida caseira. Podia ser
também um pico bem dado, bem dado. Um pico furioso. Mas isso, isso não se
faz.
Prometeu: Isso não se faz.
Io: Eu trabalhei no trem. Eu vendia tudo. (Canta.) “Óiágua, óiagua, óiagua.
Um sufré, um real, um sufré, um real.”
Dama: (Canta.) “Doce de leite é dez. Dez é um real. Doce de leite é dez. Dez
é um real. É qualidade Nestrê!”
Io: “Aceito passe, cmtc, vale-transporte!”
(As duas começam a cantar juntas seus bordões. Prometeu entra na
brincadeira.)
Prometeu: (Sobre o canto, declama.) “Uma esmola para um pobre cego. Não
enxergo o que como. Não enxergo o que visto. Não enxergo nem o arame que
vocês me dão. Só deus tá vendo, que tudo ele vê.”
Io: (Ainda cantando.) “Ói o chicrete, ói o chicrete, é o bigboa, dez centavo.”
Dama: “Compro, passo, vendo, faço, aceito, traço...”
Prometeu: (Cantando.) “É Jardim Ângela, é Jardim Ângela, Via Marginal,
quem vai?”
(Os três cantam vários refrões ao mesmo tempo. Parece um mercado. Ou um
resíduo de um coro grego perdido.)
129
Io: (Interrompe num grito.) Eu não tenho amanhã.”
8
O trabalho com os resíduos, procedimento básico do que eu chamo de
Trash Tragedy, tem aqui seu exemplo mais evidente e marcante, assim
como o desdobramento de reflexão que propõe.
Estamos, entretanto, longe de salvacionismos. No confronto final entre
Prometeu e Delega, a coisa fica clara. Após pegar a arma de Delega, em
lance digno dos piores seriados policialescos da TV, acontece o seguinte
diálogo:
“Prometeu: Era com essa que você ia me matar? Foi essa que você pegou de
mim. Quer saber a verdade? Essa que eu usei pra matar teus colega viado.
Essa eu usei nos meus crime. Eu não matei 15. Foi 30. Teve canalha e teve
santo. Que não sei me segurar. Só meu santo me segura. Mas às vezes nem
ele. Filhos da puta como tu fazem esse mundo de merda como ele é. E filhas
da puta como eu. Eu sou um merda. Um herói de merda. Perdão, meu santo,
perdão. Meu santo, me valei! Tira essas algemas de mim. (Delega obedece.
Livre, Prometeu começa a girar, possesso.) Agora ajoelha e reza, porque
você vai morrer. Na mão do Prometeu enjaulado.
Delega: Eu deixo você fugir.
Prometeu: Brincou? Ajoelha, xará. Pega essa bandeira e cobre o rosto, que a
execução vai ser de primeira. (Dá coronhada em Delega.)
Delega: (Ferido, ele se cobre.) Eu me chamo Jozeus de Sousa. Tenho 33
anos. Estudei, tenho curso superior, concurso público. 3 filhos. Um
financiamento. Uma amante. Um cachorro.
Prometeu: Eu tive um cachorro. Vamos lá, reza!
Delega: Você pode matar o delega. Aí a sociedade delega e aparece mais 100
no lugar. Você pode matar 100, 1000 Delega. E aí pode ser que a sociedade,
as Patricinha e os Mauricinho, os doutor e as madame, sem ter pra quem
delegar, pode ser que eles puxem as automática dos porta-luvas dos
importados lá deles e venham eles mesmos fazer o serviço. Tem o Delega.
Tem quem delega. Esse é um emprego como outro qualquer. O Delega é um
coitado como você.
8
Volume 2, p.365-366.
130
Prometeu: Aí que tá: eu não sou um coitado. Já rezou?
Delega: Tudo bem: eu gosto desse serviço. Não exige muito. Tem tempo
livre. Dá pra fazer uns por fora. Depois, é bom matar.
Prometeu: Também acho.
Delega: Isso tudo é uma guerra. Eu não vou morrer vendado. (Tira a venda.)
Prometeu: Cê que sabe. Eu sou J.S.S., José dos Santos Silva. 17 nos registro.
Gosto de tênis Nike. Não tenho ninguém nem nada. Mas quem te mata não
sou eu. É Prometeu.
Delega: Eu sou uma criança com sangue no olho. Perdão, minha mãe.
Prometeu: A gente é tudo detento.
(Prometeu atira na cabeça de Delega.)
Prometeu: A palavra cala. O ato fala. Essa minha pena é injusta. (Prometeu
põe a pistola na cabeça e atira.)”
9
Nessa sociedade, todos somos detentos. Detrás de nossas máscaras
sociais, vidas banalizadas. Gado no abatedouro.
No meio do banho de sangue, ferida, resta Io.
“Io: (Levantando no meio dos corpos, ferida.) Meu... Prometeu... Eu...
Aprendi a tratar dessa doença da vida com desdém. Eu... Vou soltar o seu...
Filho... No mundo... Prometeu... Eu vou soltar. E ele vai levar no sangue
todos teus dom. Que ninguém deve de respeitar mais é deus coisa nenhuma.
Que os ratos comam tudinho. Que as mosca bebam todo esse banho de
sangue. Parece TV, parece jornal, parece a vida. (Cobre os corpos
amontoados com a bandeira, como quem abriga uma criança.) Eu preciso de
um pico. Adeus.
(Vai embora.)”
10
9
Volume 2, p.370-371.
10
Volume 2, p. 371-372.
131
De todo modo, Io vai soltar esse filho (de Prometeu? Do Delega? De
Navara ou Letisgô?) no mundo. Uma criança com todos os dons do pai,
no meio da vida. Somos todos pais desse rebento. Cabe a nós o colo, a
comida e a educação!
No programa da peça, dei minha versão da coisa toda:
A festa, o afeto e a poesia.
Uma festa. Conversa amena. A jovem estudante de direito discursa sobre a
violência no Brasil. Alguém pergunta: ‘você é a favor da pena de morte?’ Ela:
‘Sou a favor da limpeza carcerária.’ Dá como exemplo o que a História
denominou “Massacre do Carandiru”.
O papo me fez pensar em ética e liberdade, saber e poder. Questões centrais
da peça Prometeu Acorrentado, de Ésquilo. E desta recriação, o Prometeu
Enjaulado. Mas aquilo que na tragédia grego é assunto de deuses, aqui é
negócio demasiado humano. Cana dura. Coisa clandestina, banal, anônima.
Que a elite e a classe média brasileira, em nome da higiene, botam debaixo do
tapete.
Quem é o herói? O que é identidade? Como delegar responsabilidades? De
que monturo de lixo extrair poesia?
Prometeu Enjaulado é um gemido. Trash Tragedy. Revolta contra o medo, a
solidão, a estupidez, a violência. Contra a longa duração de alguns eventos
típicos da sociedade brasileira: a tortura e o assassinato, por exemplo.
Alguns agradecimentos são fundamentais: Dóris e o Doni, que me ajudaram
com nomes e canções de trem. Percival de Sousa, cujo livro ‘Anatomia do
Medo’ foi de grande ajuda. Trajano Vieira, autor da tradução do Prometeu
Acorrentado que mais usei, e da qual mantive alguns versos. Antonio Araújo
e Mariana Lima, pura inspiração. Gilberto Dimenstein, professor de
cidadania. Hector Babenco, pela obra e pela coragem. Jorge Andrade e
Fernando Silva Pinto, em memória.
Tudo em nome do afeto e da poesia.”
11
11
Programa da peça, arquivo do autor.
132
No programa, eu não só dava o esquema de trabalho sobre o qual obrei,
como também agradecia aos colegas. Afinal, Prometeu foi escrito durante
horários vagos quando eu trabalhava como redator publicitário em uma
agência, e meus colegas Doni e Dóris me ajudaram muito, fornecendo,
por exemplo, o material das canções da cena que analisei pouco acima,
fruto de suas indas e vindas pelos trens da cidade de São Paulo.
A estréia do Prometeu Enjaulado foi inesquecível. Paulo Fabiano, em
trabalho de imensa coragem e beleza, transformou a garagem do X,
antiga oficina mecânica, num pequeno teatro com platéias paralelas.
Entre elas, em pequeno corredor, sobre um estrado iluminado por
lâmpadas baratas, ficava a cena. E que Cena: no meio do palco, uma
escada de madeira, dessas com duas pernas; num canto, uma tv ligada em
programa qualquer do horário, alguma coisa do Ratinho ou outra
bobagem do gênero; duas velhas cadeiras, um pedaço de pau, uma
bandeira do Brasil. De repente, entravam os dois policiais, Letisgô e
Navara, trazendo o meliante Prometeu. Começava o banho de poesia e de
sangue.
Essa primeira montagem do Prometeu causou estranheza e comoção.
Tudo era extremamente violento e poético. Nessa noite de estréia,
conheci pra valer o Reinaldo Maia, do Folias, e o Roberto Lage, do
Ágora. Ouvir os comentários do Maia, sentir a emoção do Lage…
Comungar da eletricidade da platéia, esse foi um dos momentos que me
deu certeza da opção do trabalho em dramaturgia – e das reações que ele
poderia causar.
133
3.3 NA RUA:
Paralelamente ao Prometeu, o X me convidou para participar de um
projeto inusitado. Eu não sei bem como ocorreu a aproximação, mas o
caso é que o pequeno grupo marginal de São Paulo estava estabelecendo
parceria com o jornalista Gilberto Dimenstein, papa de uma prática de
integração social que inclui trabalho com ONGs, grandes bancos e
corporações, necessitados e desvalidos de todos os meios, palestras Brasil
afora e congêneres.
Gilberto tem livros muito interessantes. Naquele momento, planejava sua
entrada no teatro, com adaptações de algumas de suas obras. Nesse
contexto, o trabalho com o Teatro X seria um laboratório para futuras
grandes experiências. A proposta era partir de seu livro Cidadão de
Papel
12
, que conta as histórias de Mano, um garoto de classe média de
São Paulo e sua iniciação em temas da cidadania.
Após reunião com Gilberto, ficou acertado que eu teria total liberdade na
confecção da dramaturgia. Mais do que uma adaptação, eu poderia partir
da obra do autor, criando uma peça que tratasse de questões de cidadania
no Brasil e, em especial, em São Paulo. Gilberto fazia questão, por
exemplo, de uma cena sobre as dificuldades do calçamento na cidade, e
outra sobre os indefectíveis cocôs de cachorro que nos perseguem pelas
ruas. O fundamental era tratar da questão da identidade e da cidadania. O
12
Gilberto Dimenstein, Cidadão de Papel, São Paulo, Ática, 2002.
134
público que pretendíamos atingir era formado por estudantes de primeiro
e segundo grau. Além disso, liberdade.
Paulo Fabiano, por sua vez, pediu para mim alguns limites técnicos. Uma
peça de até uma hora para cinco atores, com humor e reflexão.
Mano e Mina na Cidade de Pedra, ou Cidadão de Papel, estreou no
SESC Consolação, em sessão solene, com a presença do então ministro
da Educação e outras autoridades. Platéia pra lá de cheia, como
aconteceria não só nessa primeira, mas em todas as outras temporadas.
A dramaturgia que elaborei partia da seguinte situação dramática. Mano,
um menino classe média de dezessete anos, sai de casa para se inscrever
no vestibular. É assaltado por outro menino da mesma idade, Pedra, que
rouba seu dinheiro e sua carteira de identidade. Em pleno centro de São
Paulo, território que não domina, Mano resolve procurar sua Identidade,
resgatar seus documentos com Pedra. Nessa aventura, conhece
personagens das ruas, como Mina, jovem prostituta, Maria, vendedora
ambulante, e Ioda, mendigo. Ao final da história, a peça propõe uma nova
forma de solidariedade, integração e convívio. Tudo regado a uma
enxurrada de falares populares, palavrões, situações urbanas, solidão e
uma tocante poesia.
Os personagens fugiam de uma ótica classe média. Numa interessante
inversão, criamos um antagonista para o Mano do Gilberto, na verdade
seu espelho, o garoto de rua Pedra, cuja situação social leva à beira do
homicídio. Em nossa peça, Pedra não tem pai, nem mãe. Vive na
criminalidade e rivaliza com Mano. Em nossa fantasia, ao final, não só
Pedra reencontra seus pais e sua identidade, como consegue realizar uma
135
forma de pacto com Mano. Será um futuro melhor, de maior integração
social, possível? Lembremos da rubrica que abre a peça: “a peça acontece
numa São Paulo sonhada. Todas as ruas levam ao Centro.”
13
O sucesso foi acachapante. A peça, realizando o “job” proposto, não
deixava de ser terrivelmente incorreta. A brutalidade e a emoção
desenhavam uma fratura exposta em cena. A encenação do Paulinho, com
RAPs, danças e muita movimentação, contagiava a galera.
Estranhamente, tivemos uma grande surpresa nessa estréia. O tarimbado
jornalista, de tantas jornadas em prol dos desvalidos, esqueceu de dar
créditos no programa do espetáculo para os envolvidos do Teatro X.
Depois do espetáculo, lembro da protagonista da peça, atriz pequena mas
espevitada e também produtora do espetáculo, peitando o enorme
jornalista, que alegou os problemas do mundo moderno, as dificuldades
de realizar o programa em curto espaço de tempo…
Enfim, não só Gilberto nunca reparou a falha, como nunca mais deu
atenção para o grupo. A partir dali, toda conversa era entre pessoas
jurídicas, no caso o Teatro X e sua ONG, Cidadão Aprendiz.
Nos vimos uma última vez em marcante sessão na FEBEM, para
internos, no Belenzinho. Acho que num Dia das Crianças. Chegamos, eu
e minha esposa, de tarde, para assistir à sessão. Passamos pelas grades,
pelos rotweillers, pelos guardas armados e chegamos ao pequeno salão do
auditório, lotado por platéia de garotos limpos e disciplinados. Gilberto
13
Volume 2 desta tese, p.373.
136
explicou que aqueles garotos haviam sido selecionados entre os internos
de melhor comportamento.
Antes da peça, assistimos a espetáculo realizado pelos próprios garotos.
Depois, chegou a vez do nosso Cidadão, com o terrível drama de Pedra,
na verdade o grande personagem de nossa montagem, irmão de alma de
todos aqueles garotos. Comoção generalizada.
A montagem seguiu seu caminho. Foi apresentada para muitas escolas da
cidade. Foi assistida por mais de vinte mil pessoas. Infelizmente, quando
chegou a hora de transformar o projeto em algo que, além do prazer e da
emoção do trabalho bem realizado, pudesse também trazer uma boa
remuneração para o grupo, realizando aí, também, um trabalho de
integração social (o grupo sempre trabalhou com remuneração, é bom que
se ressalve, embora ela fosse muito baixa), Gilberto preferiu fazer nova
parceria, agora com o SESI. Refez tudo: dessa vez, a dramaturgia e a
direção ficaram a cargo de Naum Alves de Sousa. O novo grupo,
contratado pelo SESI, viveu cerca de dois anos com bom salário em
carteira. O Teatro X voltou para sua biboca. O Gilberto deu
prosseguimento a sua franquia.
Foi maravilhoso realizar essa peça. Adoro o trabalho e sua recepção. Com
ele, aprendi como a integração social e cultural realmente é difícil. Os
grandes negócios, a grande política, a política da educação, tudo forma
um universo promíscuo que pude conhecer um pouco melhor, em
primeira mão.
Com essa experiência posso afirmar que a mais-valia se reproduz em
todos os segmentos da sociedade e que os andares sociais são muito bem
137
policiados. Não só a marca Gilberto Dimenstein pode fazer um
excelente laboratório com o Teatro X, como o próprio X não deixou de
reproduzir alguns dos comportamentos lá de cima.
Explico. Lembro de outra temporada do Cidadão, no teatro Sérgio
Cardoso, sala pequena. Após a peça, em conversa com o grupo,
perguntei quando receberia os meus direitos sobre as apresentações.
Ressalto que havia recebido para criar o texto e que depois esperava
receber normalmente uma cota de participação na peça. Pois bem, eles
não pretendiam pagar esses direitos.
Nessa tarde, saí do Sérgio Cardoso tonto. Andei a esmo pelo centro.
Vaguei pela cidade, entrei em sebos, tomei café, fiquei triste. E aprendi.
“Pedra: (Comendo pipoca doce.) Era... Meu... Pai. Meu pai morreu. Eu era um bebê,
acho. (Pára.) Não, não é verdade. Meu pai era um canalha que foi embora por essas
quebrada e deixou minha velha, sabe? Mas ela disse que ele morreu, morreu. (Pára.)
Não, não é verdade. Meu pai era um trabalhador, foi morar longe, numa obra, fez
outra família, caiu dum andaime, ficou paralítico. (Pára.) Não... Não é... Eu não... Eu
não sei... Eu nunca vi... Eu nunca falei... Com meu pai... Até agora... No telefone...
Meu pai. Meu pai.
(Silêncio.)
Pedra: Ele disse pra eu ser feliz. Pra eu aprender a ser feliz. E que só se aprende a ser
feliz vivendo. Vivendo co’s outro. Nessa cidade de Pedra. De olho nos cu das pomba,
cuidando pra não levá na cabeça. Desviando dos cocô dos cachorro. Olhando pro céu
e pro chão – mas olhando firme é pra frente, pra frente, pros olhos das pessoa, e que é
tudo, tudo cidadão.”
14
14
Volume 2, p. 404-405.
138
3.4. NA OBRA:
Em seguida, Paulinho Fabiano me convidou para trabalhar a partir de
Calígula, tragédia de Albert Camus, em um espetáculo solo, estrelado
pelo próprio Paulo, que sentia desejo de voltar a atuar, saindo da rotina do
diretor.
Parti do texto de Camus, que retoma o imperador romano em espécie de
fábula sobre a busca do absoluto. Uma tragédia tenebrosa sobre os limites
do desejo e do poder – e à destruição a que eles podem lever.
Realizei um processo de desconstrução da obra, num jato, no dia 28 de
janeiro de 2002. De demolição da minha própria dramaturgia. Criei o que
chamei de “canteiro de obras”, um material de trabalho com 8 blocos de
texto para serem inseridos em uma performance. Usei como
enquadramento uma citação do Calígula de Camus, segundo ato, cena 6:
“Kerêa (friamente): Tudo veio, Cara Cesônia, duma discussão sobre se a poesia deve
ser mortífera ou não.”
15
Nada de unidades, mas de associações. Um tema que se desdobra de
modo singular, inscrito em blocos de texto para que ator brincar. Eis o
bloco I:
15
Albert Camus, Calígula. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro,1963, p. 53.
139
“Café. Preto. Quente. Espuma marrom. Superfície negra. Amargo. Açúcar. Uma
colher. Misturar. Torvelinho negro e castanho. O centro do buraco negro. Mutação de
estrela morta. Gravidade densa. Arrasta. Tudo. Franja de círculos concêntricos. Um
horizonte de possibilidades circula o núcleo. A singularidade. O aquém e o além. Esse
lugar além e aquém, o raciocínio, num truque, define: singularidade. Nó. Nesse lugar
eu chamo: Calígula.”
16
Sobre esse material, o Paulo criou sua montagem, fracasso absoluto de
público, mas com reconhecimento de crítica e indicação para Prêmio
Shell da Trilha Sonora, de Douglas Germano. Esse foi um daqueles
trabalhos em que a gente se sente nu em cena. Tanto Paulo quanto eu nos
oferecíamos em bandeja para a platéia. Tudo estava cru, desestruturado,
grotesco, insólito, pouco dramático. No programa do espetáculo, mandei
ver:
Calígula: canteiro de obras
Um jorro. Revolta, solidão, desespero, arrogância. Como é foda fazer teatro, fazer
teatro hoje, fazer teatro hoje no Brasil. Teatro, duplo da vida, compreende? Medo. De
ficar atado às regrinhas do bom comportamento, de não fazer parte das panelinhas do
momento. O grande desafio que é tentar tocar o mundo, o real, o outro. Sentir. Fico
com Ernesto Sábato, citado de memória: ‘ninguém pode nada contra o homem que
canta em seu desespero.’ Calígula. O meu, o seu, o nosso velho irmão Calígula.
Imperador. Fudido. Transmutado pela força invocatória desse grito. Graças à fúria
teatral de Paulinho Fabiano, parceiro de tantos espetáculos. Calígula. Cantando.
Cantando na chuva. Cantando na longa noite. Sob um Sol Negro. Varando a
madrugada. Calígula. E Van Gogh e Ana Akhmátova e Artaud e Nijinski e Ginsberg e
De Lillo e Glass e Wilson e Eliot e Milton Santos e Clovis Garcia e Donizete Galvão
e todos os meus alunos que me dão sustento e alegria. Minha mulher e meu filho.
Meus amigos. Meus pais. Meu irmµao. Meus ‘broders’ do X. Meus amores. Meu
prazer. Tudo isso nesse canteiro de obras, nesse cadinho, nessa alquimia, nesse canto
e nesse nome: Calígula. Agite e beba. Evoé, Dioniso, evoé!’
17
16
Volume 2, p.410.
17
Programa da peça, arquivo do autor.
140
Meio obtuso? Colegas da classe amaram. Eu, pra falar a verdade, não
gostei do resultado e nem gosto do texto, mas aquela foi uma experiência
de desnudamento, de quebra com os próprios modos de trabalho, de
pesquisa radical que muito me ajudou. Mas com um método e anti-
método bem definidos
“XII
Brinquedos na caixa. A criança retira um por um. Brinca um pouco com cada.
Abandona-os. Constelação de brinquedos derreados. Um campo de possibilidade.
Ficções factíveis. Adicione toques de poética, verossimilhança, gênero. A retórica que
o uso comum consagrou. Eis a obra.”
Pós-escrito:
Divida tudo em diálogos. Defina situação. Localize o que se convencionou chamar
ação. Construa personagens. Pode chamar de Teatro.”
18
Calígula foi um exercício importante de desestruturação, que acabou
ressoando em trabalhos que considero mais bem sucedidos e que veremos
mais para a frente, como Só As Gordas São Felizes ou a série A Noite
dos Animais.
18
Volume 2, p.414.
141
3.5. NO ASSENTAMENTO:
Nessa mesma época, encontrei com Aimar Labaki, dramaturgo, diretor,
crítico, pesquisador e, agora, também novelista, na Avenida Paulista. Ele
acompanhava um dramaturgo latino em passeio pela cidade. Tomamos
metrô juntos. Nesse breve encontro, ele me convidou a participar de uma
jornada de dramaturgia focada em gêneros, a se realizar dali a três ou
quatro meses no CCBB. Pediu que eu escrevesse uma tragédia. Na hora,
tirei da cartola: que tal uma releitura das Troianas? Aimar disse que
estava querendo escrever sobre o mesmo tema. “Então eu mudo de tema”,
propus. Ele pediu que eu seguisse com as Troianas sossegado.
Então, liguei para o Paulo Fabiano e vendi a história. Ele já me havia
pedido peça focada em personagens femininos – e por razões bem
triviais: o X sempre teve mais atrizes do que atores. Então, topamos
trabalhar sobre as Troianas. Eu já tinha um nome de trabalho: Bando de
Maria. Então, a partir desse nome, comecei a trabalhar sobre o universo
das troianas, pensando em trazê-lo para o Brasil contemporâneo, lidando
com a questão da posse da terra.
Eu pretendia também fugir do universo urbano que vinha retratanto em
minhas peças, futucar outros pontos de vista do Brasil. Após realizar o
compromisso com o Aimar e com o CCBB, em belíssima leitura que
ainda contou com a antológica participação de Mariana Muniz, Paulo
partiu para a montagem propriamente dita.
142
Para os nossos padrões, uma verdadeira super-produção. Se o elenco já
pedia coisa de sete ou oito atores e atrizes, Paulo e o Douglas, diretor
musical, montaram um grupo com quatro músicos e uma cantora. A
equipe chegava a quinze pessoas agindo em cena.
Para a realização do trabalho, Paulo transformou o porão do Teatro X,
que nessa época estava instalado no muquifo na Praça Roosevelt, no que
antes havia sido uma boate quente dos anos 80 e 90, num campo
brasileiro em pé de guerra.
Considero esse o trabalho menos acabado que realizamos juntos. Acho
que o texto, no final, não radicaliza. Por sua vez, a montagem se perde em
grandiosidade e parece anacrônica. Tem elementos que lembram Morte e
Vida Severina dos anos 60. Um universo decalcado de Portinari que
considero deprê. É uma montagem feia, gritada, com atores muito
determinados, que compraram para valer seus papéis, mas que não
conseguiram executá-los com economia de meios. A própria trilha
sonora, embora bela, lembra algo dos CPCs dos anos 60, entre Sérgio
Ricardo e Geraldo Vandré. Só que deslocados no tempo. O resultado,
embora grandioso, não cola. Acho que, no mínimo, faltou dar realce à
paródia proposta pela dramaturgia. Afinal, a peça abre com as seguintes
rubricas:
“Cabaré barato. Abrem-se as cortinas de sangue. Tudo urge e ruge.
(Coração da treva. Madrugada depois do São João. Esqueletos de casebres.
TVs, ventiladores, uma parabólica, uma galinha, um pilão. Terreiro da festa.
Mastro e brasil. Uma cova rasa, recém coberta. Aqui, desabada, Hécuba
cochila e chora. Numa cadeira de rodas, Maria descansa. Ali, entra o
Almirante.)”
19
19
Volume 2, p. 415-416.
143
O que acontece entre a primeira e a segunda rubrica define uma
encenação.
De todo modo, acho que o texto tem achados poéticos, elaborados em
método similar ao que utilizei na recriação do Prometeu. Usei também
várias versões das Troianas, de traduções de Eurípedes, às Troianas de
Sêneca ou de Sartre.
O enfoque que utilizei parte de um princípio do próprio texto de
Eurípedes. No autor grego, o papel dos deuses já não é o mesmo que em
Ésquilo. Se no Prometeu, por exemplo, a trama é um caso entre os
deuses – que os humanos assistem com interesse, mas onde não
conseguem meter o bedelho, em Eurípedes os próprios deuses são
contraditórios, a religião está em crise, deuses não são nada confiáveis,
com suas picuinhas, vontades que mudam ao sabor do vento, interesses
evidentemente distantes e discutíveis para nós, humanos, que precisamos,
em poucas palavras, nos virar, caso queiramos seguir nossa vida e
enfrentar nossos dramas demasiadamente humanos.
Assim, os deuses que operam em As Troianas são não só cruéis
(crueldade apontada pelas prisioneiras troianas), como realizam
estapafúrdias tramóias. Aqui, o ser humano pressente que precisa se
libertar é desse poderio divino.
Sartre, por sua vez, escrevendo mais uma vez em contexto guerreiro, diz
no começo de sua versão:
144
“Sabemos hoje o que a guerra significa: uma guerra atômica não deixará
vencedores nem vencidos. É precisamente o que a peça inteira demonstra: os
gregos destruíram Tróia, mas não tirarão nenhum benefício do triunfo, pois
que a vingança dos deuses fará com que todos morram. Que ‘todo homem
sensato deve evitar a guerra’, como afirma Cassandra, sequer seria preciso
dizê-lo: a situação de uns e de outros o testemunha à saciedade. Eu preferi
deixar a Posidon as palavras finais: ‘Morrereis por isso. Todos.’
Quanto às guerras coloniais, foi o único ponto em que me permiti acentuar
um pouco o texto. Em diversas passagens fala da ‘Europa”: é uma idéia
moderna, mas corresponde à oposição antiga entre gregos e bárbaros, entre a
grande Grécia, que desenvolvia a sua civilização no rumo do Mediterrâneo, e
os estabelecimentos da Ásia Menor onde o imperialismo colonial de Atenas
se exercia com uma ferocidade que Eurípedes denuncia sem contemplação. E
se a expressão ‘guerra suja’ adquire para nós um sentido bastante preciso,
reportai-vos ao texto grego: vereis que ela ali se encontra, ou pouco mais ou
menos.”
20
Eu quis dar continuidade a essa longa tradição de denúncia e oposição à
Guerra. Agora, não se trata mais de guerra colonial, mas da guerra interna
de um país como o Brasil. Guerra pela terra. Guerra entre o moderno e o
arcaico, entre a palavra e a ação, entre a elite quatrocentona (que foi
aquilo em que transformei os tais deuses da peça), os eternos donos das
capitanias hereditárias, em suas promíscuas relações com as outras
instituições brasileiras, em especial as políticas e militares, e uma outra
“elite”, a elite do campo, os senhores dos acampamentos dos sem terra,
que têm nas mãos uma causa, embora manipulada com ferramentas
muitas vezes também inaceitáveis, numa guerra de guerrilha que tende a
destruir tudo.
Sartre que pega segue essa linha até o fim:
“A peça termina pois num niilismo total. O que os gregos sentiam como uma
sutil contradição – a contradição do mundo no qual lhes era preciso viver –
nós, que vemos o drama do exterior, aí reconhecemos uma negação, uma
recusa… Os deuses morrerão com os homens, e esta morte comum é a lição
da tragédia.”
21
20
Jean-Paulo Sartre, As Troianas, São Paulo, Difel, 1966, p.11.
21
Idem, p.12.
145
No meu caso, a partir de intensa negociação com o diretor Paulo
Fabiano, acabei optando por sugerir algum tipo de saída para a sinuca:
“Depois do despejo
vem outra fronteira
e outra chegança.
A gente assitua
e com boca e braço
faz mutirão.
Sinal de ferro
amansa a terra,
que terra livre é
terra do comum.
Depois, pra
aquecer a noite
a gente faz
fogueira
e canta.
Depois descansa.
A vida é uma queimada,
criança,
e avança.
(Guarda arma. Estreita bebê no peito.
Corre para dentro da mata. Fim.)”
22
Até hoje tenho dúvidas quanto a esse fim.
Mas a montagem era defendida com unhas e dentes por um elenco e uma
equipe técnica maravilhosos. Dos adolescentes músicos à cantora,
senhora de idade que, todas as noite, vinha de casa para encarar as
platéias semi-vazias e inundá-las com sua voz maravilhosa.
Respeito as diferenças de leitura de uma mesma obra, tanto em matéria de
texto quanto em termos de encenação. Mas Bando de Maria é uma obra
que eu adoraria retomar e remontar, de modo mais simples e direto.
22
Volume 2, p. 464-465.
146
Bando de Maria trouxe algum prestígio pra mim, como dramaturgo, mas
foi um terrível fracasso de bilheteria. Muitas vezes tinha muito mais
gente no palco do que na platéia. E, se parte disso se deve a equívocos
que, em minha opinião, nós mesmos cometemos (a começar, sublinho,
pela própria dramaturgia), também é importante ressaltar o preconceito
contra a temática e mesmo com o modo de realizar experimentos que
constrastem as grandes tragédias clássicas com o cotidiano trágico do
Brasil contemporâneo. Muita gente não quer sair de casa pra ver esse tipo
de coisa.
Mais ou menos na mesma época, o X resolve reunir esses quatro
espetáculos que realizamos em parceria em uma mostra focada em minha
dramaturgia. Ao grupo, acrescentei sessões malditas, nos sábados, de
espetáculo que vinha elaborando no meu doutorado – e que nada tinha a
ver com o Teatro X e seus modos de produção. Num cantinho do X, nas
madrugadas de sábado, para platéias de quinze pessoas, começava a
trajetória pública de Licurgo/Olhos de Cão, que conferiremos em
detalhes no Capítulo 5.
Nesse momento, o Teatro X entrou em crise, passando por profundas
mudanças. Nesse meio tempo, ainda realizamos juntos, agora com minha
direção, o espetáculo Sexo Oral, um dos maiores sucessos da praça
Roosevelt, e Paulinho também montou Fuck you, Baby, de Mario
Bortolotto.
A crise do Teatro X está terminando agora, quando escrevo este trabalho.
Após muita luta, eles abriram mão de seu espaço na Roosevelt, hoje
administrado pelos Satyros. A mídia praticamente esqueceu o grupo.
147
A Companhia acaba de ganhar novo Fomento, leva seu trabalho para as
periferias, prepara nova sede e elabora novos projetos. Eu fui convidado a
participar de um deles, dando consultoria dramatúrgica para adaptação do
conto O Cobrador, de Rubem Fonseca.
Desejo que seu grupo tenha reencontrado seu caminho, sem perder jamais
a pegada social e experimental que sempre motivaram suas ações e
atitudes, e o espírito aberto à novidade ao qual eu, especialmente, tanto
devo.
Tive a oportunidade de, junto a um grupo maravilhoso de artistas, realizar
experiências dramatúrgicas radicais, tanto em forma quanto em conteúdo.
Me exercitei em adaptações e recriações. Dialoguei com obras fantástica.
Questionei o poder, a força, o amor e a cidadania em algumas de suas
várias encarnações contemporâneas, dos facínoras do Prometeu
Enjaulado ao Bando de Maria, do meu impotente Calígula ao Pedra do
Cidadão de Papel, da Io, também de Prometeu, à Maria do Bando.
Dezenas de personagens e situações que me fizeram apostar, cada vez
mais, na beleza e na vida do cidadão comum, assim como no saboroso
saber da arte.
148
CAPÍTULO 4 : SETE VIDAS DE SANTO.
149
4.1. NOTA:
O projeto Sete Vidas de Santo nasceu no início de 2001, com uma nota
de jornal. O Royal Court Theater, de Londres, faria workshop com
dramaturgos em São Paulo. Eu tinha um mínimo de conhecimento do
Royal pois, alguns anos antes, Antonio Araújo havia participado de
workshop do Royal lá na matriz, usando como texto para seu trabalho de
diretor uma peça minha, A Cruzada das Crianças. Portanto, mandei
peças minhas para análise e, após seleção, fui escolhido para participar de
um grupo que contava com Aimar Labaki, Rubes Rewald e outros, num
grupo de dez dramaturgos.
O workshop durava uma semana, no início de abril. No primeiro dia, nos
conhecemos. O que bastou para Marcio Marciano, da Cia. do Latão,
desaparecer. Talvez formássemos um grupo muito heterogêneo, pouco
brechtiano… Lamentavelmente, tirou a oportunidade de algum outro
dramaturgo mais disponível.
Enfim, após apresentações e primeiros exercícios de aquecimento, Elyse
Dodgson, diretora internacional do Royal, e Grahan Whybrow,
“literary manager”, propuseram que cada um de nós criasse uma sinopse
de peça, a ser debatida dias depois. Foi o que fizemos. Aí surgiu o esboço
de Sete Vidas de Santo, que nesse primeiro momento tinha como título
Convulsão.
Santo é um menino de rua. Numa esquina, ele descarrega sua arma em
um pai de família, na frente de sua esposa, Maria. Ela jura vingança. Sete
anos depois, Santo transformou-se num grande craque do futebol, capaz
150
de jogadas miraculosas. Num motel, na companhia de uma “maria-
chuteira”, o rapaz revela seu segredo: parte de suas jogadas vem da
presença de um “encosto”, o Egum que o acompanha desde aquela
fatídica tarde. Nesse estranho encontro entre o atleta, a fã e o espírito, os
destinos desses personagens serão definitivamente transformados. Haverá
lugar para redenção no miolo da tragédia? Outros encontros, num terreiro
e numa final de Copa do Mundo, vão revelar cada detalhe das Sete Vidas
de Santo.
Tivemos uma primeira discussão sobre os materiais e combinamos que
apresentaríamos uma primeira versão dos textos em alguns meses. Os
textos seriam enviados para a Inglaterra, traduzidos e, em nova viagem de
nossos conselheiros, novamente debatidos.
Como combinado, continuei trabalhando em Sete Vidas de Santo. No
novo encontro com os parceiros ingleses em julho, tivemos minuciosa
discussão sobre cada um dos textos. Em seguida, passamos a contar
também a colaboração de conselheiros brasileiros, Luis Alberto de
Abreu e Jean Claude Benardet, com coordenação de Silvana Garcia.
Nesse meio tempo, mais alguns colegas se desinteressaram do processo;
Marcos Barbosa, por sua vez, residente na época em Fortaleza, passou a
integrar grupo semelhante em Salvador.
Em novos encontros, burilamos o trabalhos para uma primeira leitura
dramática, que ocorreu no Centro Cultural São Paulo, em setembro.
Com a mudança do título e o trabalho pormenorizado sobre a
dramaturgia, o resultado virou um intenso ritual de morte e
renascimento do amor e da cidadania, contando a trajetória de
151
SANTO, menino de rua que, após uma vida de crimes, descobre uma
vida como craque de futebol, uma vida mística, uma vida de paixão e
uma vida como pai.
Em sete cenas, mesclando elementos do cordel, do candomblé, do futebol
e da cultura de rua da São Paulo contemporânea, a peça quer atingir o
coração do espectador – e possibilitar amplo espectro de pesquisas para o
desenvolvimento do performer e do trabalho de grupo em teatro. Chamei
a peça de um “cordel trash”.
Cada leitura dramática ficou a cargo de um diretor do mercado de São
Paulo. Sete Vidas de Santo recebeu leitura dirigida por Roberto Lage. O
evento, além da apresentação dos textos, contava com discussão com a
platéia.
Sete Vidas levantou questões interessantes sobre o papel da violência na
dramaturgia. Até que ponto os atos violentos da peça – colocados como
crítica – não seriam eles mesmos estímulos à violência gratuita?
Sem resposta definitiva sobre o tema, lembrei na hora de um romance de
Alberto Moravia dos anos 70, Desideria, que conta a história de uma
terrorista. Não lembro exatamente onde no romance, mas fica claro que a
personagem (e Moravia) usa o sexo como uma linguagem. Penso que no
caso de Sete Vidas, tanto a violência quanto o sexo têm o mesmo papel.
Linguagens que carregam outros conteúdos e cuja estética pretende
provocar curto-circuitos nos conceitos do receptor.
Algum tempo depois das leituras no Centro Cultural, fomos comunicados
que cinco peças brasileiras, entre os grupos do Royal em São Paulo e em
152
Salvador, seriam escolhidas para apresentações públicas, leituras
dramáticas, em Londres, em janeiro de 2003.
Tive a honra de participar desse grupo, que incluiu Marcos Barbosa,
Beatriz Gonçalves, Pedro Vicente e Cacilda Póvoas. Em janeiro,
embarcamos para Londres, com a companhia de Silvana Garcia e
representantes do British Council e do SESI, co-patrocinadores da
Primeira Semana da Nova Dramaturgia Brasileira em Londres.
Sete Vidas de Santo teve a sorte de ser traduzida pelo maravilhoso Mark
O’Thomas. Mark é dramaturgo, homem de tv, colabora com o Royal
como tradutor do português faz tempo, morou em Portugal, tem amor
enorme pelo Brasil. Costuma trabalhar com a comunidade brasileira que
faz teatro em Londres, conhece bem nossa dramaturgia. Tudo isso fez
com que, recentemente, Mark inclusive comprasse apartamento em São
Paulo.
Enfim, Mark enfrentou com galhardia a pedreira de Sete Vidas de Santo.
Afinal, muitos consideravam o texto intraduzível. Trocamos extensa
correspondência por e-mail. E cheguei a criar um extenso dicionário de
gírias que enviei ao Mark.
Encontramos correlatos para todas (ou praticamente todas) as expressões,
lugares e situações. Afinal, como disse o Grahan, eles não tem as
entidades do Candomblé, mas seu teatro está abarrotado de espíritos e
fantasmas.
A tradução do Mark contém algumas notas muito interessantes. Vejamos,
por exemplo, como ele explica o “cordel”:
153
"Literatura de cordel" (string literature) are pamphlets or booklets that hang
from a piece of string (cordel) in the places where they are sold. These are
long, narrative poems with woodcut illustrations on the cover, often done by
the poet himself. There are traditional themes (romances, magical stories,
animal fables, religious allegories) and deal in themes based on current
events, famous people, life in the cities, etc. The largest concentration of this
type of popular literature is in north-eastern Brazil.
1
Além disso, comparemos os começos de Sete Vidas de Santo e The
Seven Lives Of Santo:
“Cena 1: Canto:
Esquina do mundo. Assum, repentista cego, coça a sanfona e arranha sua história no
gogó. No chão, pertinho do pé, lata pede gentilezas.
Assum:
Das perifas do mundéu,
vem canto sem lei nem léu,
queima a trama do pavio
dos dramas do meu Brasil.
Ontem, hoje e amanhã,
esta historinha tranchan.
Que ali quem pode, pode.
Quem não pode que se explode.
Uns na mira da pistola.
Uns mete a bica na bola.
Um pirralho vira Santo.
Um Mané vira Egum.
Maria veste chuteira
para faturar algum.
Todos numa pirombeira,
todos querendo cudum.
E a Criança agora dorme,
no seu sonho de aventura.
Quer crescer, mas não consegue.
1
“ ‘Literatura de cordel’: panfletos ou livretos que pendem de um tipo de corda (cordel) nas praças em
que são vendidos. São poemas longos e narrativos com ilustrações em xilogravura nas capas,
geralmente feitas pelo próprio poeta. Existem temas tradicionais (romances, histórias mágicas, fábulas
com animais, alegorias religiosas) e temas baseados em eventos, gente famosa, vida nas cidades, etc. A
maior concentração desse tipo de literatura popular ocorre no nordeste do Brasil.” Arquivo de Celso
Cruz.
154
Dorme linda criatura.
Amanhã não será mole.
Deixa eu coçar meus fole.
Dizem que a vida é bela,
no palácio ou na favela...
Seja Sombra e água fresca,
uma farra nababesca,
ou nas fila dos busunga,
sempre só levando tunga,
vida aqui não vale a bala,
acaba tudo na vala.
Se é conta de mentiroso,
Se é mistério gozozo,
o meu canto, minha amiga,
meu amigo, só me diga,
depois de sentir a chama.
Agora o dever me chama.
O meu pai que me mostrou,
meu irmão arrematou
e é melhor não esquecê:
O pior cego não vê,
o melhor tá na TV.
Aqui só eu e você.
Você conta enquanto eu canto
as sete vidas de santo.”
2
Na Versão de Mark:
Scene 1: Song.
On a corner of the world. Assum, a blind little black bird - a wandering
minstrel, scratches at his accordion and rasps out his song. On the ground, by
his feet, lies a tin can awaiting favours.
ASSUM:
From the margins of the world
Comes an aimless, timeless tale
It smoulders on the wick with treacherous zeal -
The trials and tribulations of my Brazil.
Over yonder, each out for his own,
Those who falter: blood and bone.
In the target of a gun
2
Volume 2, p. 467-468.
155
A busted football in the midday sun.
A young tearaway becomes a Santo
As Mané turns into Egum
Maria dons some football boots
To have her way with someone.
All of them down a cul-de-sac
All of them wanting what they lack
And the Child sleeps like a babe in a cradle
Dreaming of a fine adventure
He wants to grow up but isn’t able
Sleep, my beautiful, little creature.
Tomorrow, he won’t be limp or still
So I’ll sing on and run through the bill.
People say that life is “bela”
Be it a palace or in a “favela”…
As long as there’s Shadow and cool fresh water,
Be it a bender - lambs to slaughter,
Or in the downtown bus queues waiting
Everyone pushing, cheating, bating
Life ain’t worth a bullet but a
Sorry end lies in the gutter.
If this story is a lie
If its mystery makes you sigh
My little song, little lady,
Little friend, just tell me,
Once you’ve touched the flame
And call me then by my own name.
The things my father taught me well
Are those my brother sold in hell
Better never to forget
The blind can’t see the worst things yet
But while the best things are those on TV
Right here now it’s just you and me.
So tell it like it is as I sing to you about
The seven lives of santo.”
3
Ao chegar a Londres, cada autor trabalhou alguns dias com o diretor e o
elenco escolhidos pelo Royal. Aí, mais uma vez, recebi uma benção.
Josie O’Rourke, além de uma gracinha, tem competência exemplar. O
elenco também não ficava atrás. Um elenco multicultural, com diversas
formações e procedências, mais a presença de um multiinstrumentista
3
Arquivo de Celso Cruz.
156
latino permitiram que a leitura, quase uma encenação, alcançasse
altíssima voltagem poética.
Josie, que nunca veio ao Brasil, encontrou soluções singelas para seu
trabalho. Criou um círculo com imensas conchas do mar. Dentro dele,
cada ator, com um instrumento de percussão, se movia e mandava seu
texto. Ao lado, nosso músico acompanhava cada momento da peça
criando climas. O público era recebido por uma tremenda batucada
realizada pelos atores. Longe de uma “macumba para turistas”, como
diria Oswald de Andrade, o resultado foi lúdico, poético, num clima
popular que lembra uma fantasia – trágica, é verdade – shakespeareana.
Momento mágico. Foi um prazer inesquecível topar com uma Silvana
Garcia visivelmente emocionada ao fim da sessão. Foi um prazer
trabalhar com equipe tão maravilhosa. Foi um estímulo para toda vida.
Mas é claro que “a luta continua”…
Desse encontro em Londres, o Sesi pretendia escolher duas peças para
serem apresentadas em seu teatro de São Paulo. Entre diversas apostas, a
instituição acabou por selecionar apenas duas pequenas peças do Marcos,
ambas excelentes, que foram dirigidas por Roberto Lage.
Aliás, meses depois do encontro em Londres, desta vez em apresentações
públicas, pouco mais do que leituras de peças, entre as quais Sete Vidas
de Santo, o diretor me puxou num canto e disse que Sete Vidas havia
sido censurada para apresentação na dita instituição em São Paulo.
157
Embora perplexo, não levei o assunto adiante. Apenas conversei com
membro paulista da coordenação do projeto que negou o que o diretor
dissera. Enfim, pra que seguir com um assunto desses? A censura, como
tal, acabou, graças a Deus, faz tempo. Sei que ainda existem severas
formas de censura, como a econômica e a ideológica. Assim como
preconceitos de toda ordem – que conheço muito bem com o andamento
de meu trabalho. Mas não adianta bater de frente com nenhuma delas.
Como não acusei ninguém – e achei a escolha da instituição muito boa –
tenho toda tranquilidade para seguir meu trabalho.
Casos como esse merecem boas risadas. Soa como piada mas, anos
depois, quando realizei uma peça chamada Sexo Oral, tive dificuldades
em colocar a obra nos guias de espetáculos da semana, graças ao nome do
espetáculo. Assim como enfrentei um nariz torcido de parte do público
que simplesmente achava vulgar o tratamento cru e tragicômico que fazia
da sexualidade na peça. Outros defeitos, esses mais sérios, de ordem
dramatúrgica e de encenação, felizmente foram notados por amigos
interessados no desenvolvimento de meu trabalho.
Enfim, após a semana londrina, Sete Vidas participou, como já dissse, de
evento sobre dramaturgia focada na cidade de São Paulo, ocorrido no
teatro Ágora. Mesmo com parcos recursos e pouco tempo de trabalho,
Georgete Fadel, com elenco afiadíssimo composto por gente como
Claudia Missura, conseguiu resultado brilhante, que lamentei muito não
ter seguido carreira.
Desde então, a peça aguarda montagem condizente com o esforço nela
empregado e as possibilidades de comunicação com a platéia que ela tem.
158
Muitas vezes uma peça leva anos para amadurecer. Tempo de gaveta,
mesmo. Até que o dramaturgo ache seu tom. Outras vezes, leva muito
tempo para que a peça seja descoberta. Ou que algum encenador se
intesse ou ouse encará-la.
Às vezes você escreve uma peça em uma hora – e ela simplesmente está
pronta. Isso mesmo, pronta. Por mais que você tente mexer no texto, ao
longo do tempo, você não consegue. Por outro lado – talvez uma boa
encenação do mesmo texto ainda demore muitos anos para acontecer.
Foi o caso de Licurgo, assunto do próximo capítulo, que foi escrito num
jorro despretensioso em 1992. Passou muito tempo nem sendo
considerado dramaturgia por quem lia o texto ou assistia a leitura. Apenas
durante o feitio desta tese, a partir de 2003, Licurgo tomou forma, se
transformando em um dos trabalhos de maior reconhecimento do autor.
Numa sessão antológica, da qual falaremos mais tarde, apareceu Antunes
Filho que comparou a dramaturgia, pasmem, a Doistoievski!
O tempo da criação, definitivamente, não é o mesmo do cotidiano de
nossas vidas. O que não invalida mas, por outro lado, estimula, o trabalho
constante. Pois se algumas peças vêm prontas (sabe-se lá depois de
quanto tempo de incubação), a maior parte delas é resultado de muita,
muita crítica e lapidação. O processo com a dramaturgia em Sete Vidas
de Santo é boa prova de como um trabalho coletivo sobre a obra de um
autor, respeitando seus parâmetros e compreendendo seus objetivos, pode
ao longo de alguns anos (no meu caso, foram cerca de dois anos com o
Royal), amadurecer um texto para a cena.
159
4.2. CORDEL E CACO DE VIDRO:
Sete Vidas de Santo se coloca como cordel trash por reciclar elementos
dessa forma popular de literatura, o folheto, que une o oral e o escrito, o
poema e a imagem.
Muito tradicional na Europa, desde o século XV, o folheto de cordel
chega ao Brasil via Portugal e Espanha. Aqui, se desenvolve
principalmente no Nordeste, trabalhando sobre narrativas, contos,
histórias e lendas populares.
O primeiro prelo chega ao Brasil em 1808, com a família real. Mas só no
fim do século XIX surgem os primeiros folhetos populares, com a
disseminação e popularização dessa tecnologia. Nomes como Leandro
Gomes de Barros, João Martins de Athayde, Cuíca de Santo Amaro e
Patativa do Assaré, entre outros, são seus mestres.
Portanto, no Brasil já há um século de tradição do folheto - ou cordel -,
que continua vivo e atuante em vários cantos do país.
Aqui, o cordel trabalha sobre todo tipo de temática e personagem. Usa
recursos da poesia popular, métrica e rima, para contar histórias
religiosas, de Padre Cícero ou Frei Damião, ou de cangaceiros, de
políticos, santos, cornos, guerras como Canudos, romances, espertezas,
sátiras e críticas sociais. Tudo ilustrado por figuras fantásticas,
tradicionalmente impressas em xilogravura (hoje as tecnologias digitais
permitem, talvez, um cyber-cordel, de custo baixo e fácil divulgação),
formando um todo que é o folheto de cordel.
160
No teatro e na literatura de língua portuguesa, traços do cordel são
encontrados de Gil Vicente a Ariano Suassuna e João Cabral de Melo
Neto. No cinema, de Glauber Rocha ao Auto da Compadecida de Guel
Arraes, esse imaginário é fundamental.
Sete vidas de Santo faz homenagem ao gênero, à arte e à literatura
popular, criando seu cordel trash a partir do cruzamento assuntos
fundamentais da vida brasileira: futebol (esporte, lazer, meio de ascensão
social), religião (o afro-brasileiro Candomblé), violência (a guerra civil
que banaliza nossas esquinas).
Os dois primeiros asssuntos, aliás, ainda muito pouco explorados
dramaturgicamente. Entre as maravilhosas excessões, ressalto a
inesquecível peça Chapetuba Futebol Clube, de Vianninha, e a obra de
Plínio Marcos.
A peça propõe um choque incomum entre essas temáticas, não só no
plano do conteúdo mas, principalmente, em sua linguagem, impregnada
de gírias, expressões idiomáticas, ritmos, melodias, rimas, rezas,
neologismos e estilos teatrais.
Vingança e redenção. Nos campos social, político, religioso, sexual,
afetivo. Sete Vidas de Santo é jogo e ação, a partir de sua nota inicial
“Nota:
Aqui, tudo é material. Cada palavra. Cada vão entre palavras. Jogo de cena
que peneira gritos.”
4
4
Volume 2, p.466.
161
Essa proposta é seguida à risca. Ao invés da tradicional abertura de peça
com a “ficha técnica” do drama, logo após a nota uma rubrica metralha:
“Brasil. Das periferias para o mundo. Ontem, hoje, amanhã. Um Pirralho que
pode ser Santo. Uma Maria que pode ser Maria-chuteira. Um Mané que
vira Egum. Uma Sombra. Uma Criança. E um Assum Preto que não larga
da sanfona jamais.”
5
O lugar, o tempo, o ponto de vista, os personagens, tudo lançado de modo
preciso, telegráfico, poético. Sugestivo. Rubrica que fica bem na boca de,
talvez, um personagem narrativo – uma nova encarnação do tal corifeu de
que já falamos no capítulo anterior?
Aqui, repito, tudo é material. As identidades podem ser partilhadas. Mas
o que aqui pode ser repartido não se reordena em Partido, fique bem
entendido. Pois o “material”, a palavra e o silêncio entram num jogo sem
fim. O grupo e o indivíduo, com suas contradições. O protagonista, o
antagonista, o material narrativo – tudo num vórtice vertiginoso que
“peneira gritos”.
A peneira é a arte, que se mete a fazer o impossível trabalho de organizar,
separar, alinhar aquilo que foge da forma por natureza: o grito. Qual
grito? Não faltam espelhos.
A estrutura da peça pede um narrador, que nada mais é do que um
improvisador desses de várias esquinas do Brasil, de norte a sul. A figura
mítica do guia cego. Assum, como o Assum Preto da velha e
5
Volume 2, p.466.
162
maravilhosa canção de Luíz Gonzaga e Humberto Teixeira, cegado
para cantar melhor. Ecos de Édipo e de Tirésias no ar.
A situação e os personagens são apresentados por esse narrador que, ao
final da peça, talvez se revele personagem e principal vítima das ações do
drama. Cobra mordendo o próprio rabo.
O que vem a seguir é uma orgia dramatúrgica, abarrotada de trocadilhos,
neologismos, brincadeiras formais, uso indiscriminado de rimas,
assonâncias e dissonâncias; uso e abuso de materiais culturais de diversos
segmentos brasileiros, em cenas de alto impacto.
A cena dois começa com um brutal e banal assassinato – “inspirado” por
um assassinato similar que ocorreu na família do autor. Em seguida, o
diálogo absurdo entre o assassinato, um “menor infrator” e a esposa do
morto. Algoz e vítima, cara-a-cara. Entre eles, o cadáver. E uma estranha
reflexão a partir das vísceras e do sangue, até que o moleque percebe e
declara: “Sou pokemón evoluído.”
Os Pokemóns são monstrinhos de tradicional animação japonesa, sucesso
tremendo entre as crianças da primeira infância. Doces e meigos, os
Pokemóns ficam agressivos e violentos quando em perigo, em suas lutas
contra os vilões dos desenhos. Aí, “evoluem”. E viram verdadeiras
máquinas de guerra.
Em Sete Vidas, a inversão é evidente. O que ocorre aqui é uma involução.
Um mergulho na barbárie. O moleque, Santo, é forte. Um sobrevivente.
Destrinchando e aniquilando cada um que aparece em seu caminho, numa
vida sem parâmetros nem princípios.
163
Santo matou o marido de Maria. Matou por acaso (quase como o famoso
personagem de Camus)? De bobeira, no susto, sim. Isso é inapelável.
Mas também ele, como Maria e seu marido, são vítimas da situação. A
situação dispara o gatilho. E qual é a situação: o apartheid social que
constrói condomínios-jaulas, blinda os carros (não exatamente o caso do
nosso Mané assassinado em seu fusca: aqui é pobre matando pobre, nas
periferias do Brasil), faz de todas as pessoas crianças mimadas e
insaciáveis, com desejos e necessidades anabolizados pelo marketing,
criaturas violentas, inimigos uns dos outros, que se desprezam, ignoram
ou aniquilam nas esquinas.
Mas calma. A peça não termina por aqui, com constatações sociais.
Digamos que essas idéias são premissas da ação. Já as consequências
desses atos vão muito, muito mais longe, tanto no espaço quanto no
tempo.
A peça mostra isso por saltos espaço-temporais. As primeiras cenas
ocorrem na rua. O lugar é o espaço público, onde todos somos
personagens. Hoje foi ele quem morreu – graças a deus que não fui eu!
Vai saber o que ocorrerá amanhã…
A próxima cena ocorre sete anos depois, em espaço fechado, um quarto.
Mas não um quarto qualquer, mas um espaço de lazer, um quarto que é de
todos e de ninguém, lugar para encontros furtivos e proibidos, templo
kitsch do sexo anônimo e banal: um quarto de motel.
Lá, reencontramos Santo. No razoavelmente curto espaço de tempo entre
a cena anterior e essa, ele realizou uma incrível travessia. Do mundo das
164
ruas e da violência gratuita, ele se transformou no novo astro do futebol.
Mais uma vez, por acaso? Esse “acaso” que acaba sendo a única
oportunidade de ascenção de grande parte dos brasileiros.
Talento? Essa “qualidade” brasileira tão apreciada, nossa principal
mercadoria no mercado de trabalho internacional redime o moleque,
apaga sua história, seus traumas e o que a história brasileira arranhou a
faca na sua alma?
Não.
E quem não vai deixar que o jovem esqueça o assunto são os dois outros
personagens presentes: Maria e Egum.
Maria, a mulher cujo marido foi assassinado, planejou durante sete anos
sua vingança. Abandonou tudo para conseguir consumá-la, vida comum,
família, personalidade. Se preparou para encontrar e matar o assassino de
seu companheiro. Num país sem justiça, Maria quer vingança.
Já o Egum, um “encosto”, alma penada do morto, preso nesta dimensão à
trajetória daquele que o matou, vai “trabalhando” a vida do garoto.
Transforma-o em grande craque, com realizações e reconhecimento.
Conduz o matador-jogador até o confronto final entre ambos, que deverá
se realizar em plano paralelo ao da realidade. Mas o que deseja esse
Egum? Vingança? Justiça? Liberdade?
Não sabemos se é o destino ou o acaso que reúne novamente os 3
personagens no quarto de motel, onde conhecemos detalhes da trajetória
de cada um. Maria diz:
165
“Deixa ver. Já fui Maria vai com as outras. Maria Mijona. Maria Madalena.
Agora tô mais pra Maria... Chuteira, né? Você conhece o tipo. Né?”
6
Tocados de cocaína, Santo e Maria revelam de maneira enviezada suas
identidades. Ao mesmo tempo, presente e participante da conversa, o
Egum se manifesta. Só Santo percebe sua presença e ouve suas palavras.
Muito do que Maria percebe como respostas a suas palavras nada mais é
do que um diálogo do jovem drogado com um fantasma. Do jogo de
malentendidos, entre o delírio da droga, o delírio místico, o desejo da
vingança, o medo dela, o desejo físico e afeto que a solidão acentua, brota
um novo nível de diálogo. Na hora do amor, a cena é lançada para um
novo nível, que ocorre no mundo da fantasia. Não apenas um salto no
tempo e no espaço, mas entre planos de realidade. A passagem se dá a
partir de uma transformação do sangue menstrual de Maria num rio, à
beira de uma fonte.
“O motel se derrete. Beira de fonte. O mênstruo vira rio.
Tambores. Ritual.
Santo e Maria se paramentam, filhos de Xangô e Oxum.
O Egum também se apresenta.
Xangô, orixá dos raios e trovões, vem de vermelho, usa contas brancas e
pulseira de latão. Carrega seu oxé, machado de duas lâminas.
Oxum, rainha das águas frescas, orixá dos rios. Protetora dos partos e das
crianças. É puro dengo. Veste amarelo e dourado. Usa ouro e bronze. Leva
um espelho.
Egum. Morto ancestral. Usa panos decorados com búzios, espelhos,
miçangas, cobrindo o rosto e o corpo. Leva espada de prata.
Os santos descem.”
7
Nossos personagens agora vivem sua figuração puramente mítica. O que
vai ocorrer é uma luta entre entidades, a partir dos atributos de Xangô,
Oxum e Egum. Nesse jogo além do bem e do mal, tudo pode acontecer.
6
Volume 2, p. 475.
7
Volume 2, p. 477.
166
E o que acontece é uma forma de redenção. Encontro impossível entre
liberdade e justiça, que libera o Egum e cura as chagas de Santo e de
Maria.
“Maria: As feridas viram pipoca. Esfrega com sabão negro todas as cicatrizes.
Chega de morrer. Chega de matar.”
8
Será que a única saída para o nosso tipo de drama está nesse reino do
mito e do rito? As cenas seguintes propõem um paradoxo.
Estamos de volta ao motel. Acontece um tipo de reconciliação entre
Maria e Santo, que se amam no Motel ao som de um sucesso do cantor
popular Leonardo. Um amor ridículo, como propôs Fernando Pessoa.
Ridículo e comum como todo amor.
Os dois farão um filho, uma nova criança. Fruto desse encontro,
possibilidade de um outro futuro. Mas o drama ainda não acabou: Maria
tem outro filho no mundo – e esse ainda deseja vingança.
Fica a proposta de Maria:
“Maria: Quero teu beijo. Na lua cheia, fazer criança. Depois de um tempo, eu
vou embora. Saio da história. Pra nunca mais. E você que crie a criança na
decência.
Santo: É tudo que quero, amor.
(Os dois se unem. Êxtase.)”
9
Assim, nos aproximamos do final da peça. Hora de mais um salto. A
próxima cena ocorre novamente em espaço público. Aliás, num dos
8
Volume 2, p.479.
9
Volume 2, p.481.
167
espaços públicos por excelência na sociedade pós-moderna, era do evento
multi-mídia, estrelado pelos maiores heróis de nosso tempo: um estádio
de futebol numa final de copa do mundo. Um espaço que se multiplica
em infinitas telinhas de TV mundo afora. Arena de jogo como foram um
dia a praça e o teatro…
Estamos, como já disse, numa final de copa do mundo, onde Santo,
principal craque brasileiro, deverá brilhar na final. Mais uma vez, se
passaram 7 anos…
Santo entra em campo ao lado de sua criança (Filho? Filha?), fruto do
relacionamento com Maria. A criança tem uma característica especial: é
cega. No reino da visibilidade, a criança não vê. Filha daqueles que viram
demais, ela tem a cegueira de um Édipo – mas não tem trajetória para tal.
Será essa cegueira uma marca?
Ao lado dos dois, o segurança de Santo e da criança. Figura também
muito comum de nossos tempos, o segurança privado, o homem de
confiança, responsável pela integridade das estrelas.
Sombra e a Criança são muito amigos. Ele narra para a criança o que ela
não consegue ver, funcionando como seus olhos. O que nem Santo nem a
criança sabem – e que a cena revelará – é que Sombra na verdade é filho
do Mané morto na primeira cena da peça. E vem em busca da vingança,
na frente de todo o mundo, sem possibilidade de remissão.
Toda a verdade da peça é então revelada. Santo e Sombra se confrontam.
Santo aceita o que considera seu “destino”, numa cena que esgarça ao
168
máximo o tempo desse reconhecimento e da aceitação do destino,
dividindo o momento em sete sopros de vida:
“Sombra: Eu não tenho irmão nem amigo. Eu tenho uma 765. Tudo que eu
quero eu consigo. (Atira em Santo.)
Santo: (Entre o tiro e a queda.) Pegue o momento e divida em sete sopros de
vida. O primeiro puxa o gatilho. O segundo é um sol de rachar. (Para a
criança, assustada.) Tá tudo bem, criança... Até se papai chorar. O terceiro
revela a bala, flor para o santo guerreiro. Quando é que a vida se cala? Sou eu
quem abriu o berreiro? O quarto é o fio da meada. Vi o cão do gatilho, vejo o
cano da arma, miro o olho vazio, aquilo é bala ou é lágrima? (A bala perfura
seu peito.) O quinto esmaga o fole. Desabrocha, chaga! Jorra! Turva! O sexto
é um berço. (Cai de joelhos. A Criança, longe, parada com bola na mão) O
que vai ser da criança?
Sombra: Vida é caco de vidro.
(A criança, desorientada, procura o pai. Encontra-o.)”
10
Todo o drama retorna. Falas que os personagens já disseram também
retornam, deslocadas. O tempo é dilatado ao extremo. Do momento em
que Sombra dispara ao segundo em que Santo cai, uma longa reflexão
que não termina é executada pelo Jogador, que cai perguntando a seu
assassino qual será o fim da criança. A resposta é, mais uma vez, uma
fala deslocada, já dita pelo próprio Santo no início da peça: “Vida é caco
de vidro.”
Vida é metáfora? Vida é arte? Que estranho enigma propõe a Sombra?
Não há resposta, pois Sombra põe a arma na boca e se mata.
Morte chama morte, numa sina sem fim? Um ciclo de sangue se fecha.
Não há mais algozes, só testemunhas e vítimas traumatizadas. Tudo o que
a criança pede é o que o pai não pode mais dar. Santo está morto. Assim
como sua sombra.
10
Volume 2, p. 484.
169
“Criança: Pai, fica aqui comigo.”
11
A cena final da peça fecha as contas, em novo salto. Estamos de volta à
cena do começo, embalados pelas palavras do repentista cego. Quanto
tempo se passou? O tempo da encenação? Vidas? O que é o tempo? O
que são o mito e a história? Quem é esse narrador cego? Qual é o papel
do espectador no canto e no drama? Assum lança perguntas… Canta,
Assum, canta…
“Sete vidas de Santo
findaram naquele campo?
Tem uma brecha no muro?
Você que deu um ganido?
De onde veio o estampido?
O melhor cego não vê.
O pior tá na TV.
Aqui só eu e você.
Quem é egum, quem santo?
Você conta e eu canto.
A história acabou?
É faísca no breu?
A sanfona não cala
até encher a latinha.
Quanto à próxima bala,
será sua ou é minha?
Você ainda é criança.
Podia até ser meu filho.
Gogó de cego não cansa
de gritar o estribilho:
A vida é uma escuridão,
Leva a gente pela mão.
Eu não tenho mãe nem abrigo.
Você fica aqui comigo?
(Breu. Fim)”
12
11
Volume 2, p. 484.
12
Volume 2, p. 485-486.
170
Depois de tantas perguntas, a escuridão e o fim da peça. Muito antes
desse fim, há uma fala de Maria de que gosto muito, que passa quase
desapercebida no torvelinho das ações, mas que considero fundamental:
“Maria: O passado pesa. Mas é preciso. Uma hora. Sabe. Largar. Lá. Largar lá atrás.
Deixar. Passar. Pra trás. Pra trás…”
13
Enfim, vamos para a vida, que aqui ninguém é santo. Aqui, ali, em todos
os lugares do mundo há crianças que desejam viver muitas vidas.
13
Volume 2, p. 475.
171
CAPÍTULO 5 : LICURGO/OLHOS DE CÃO.
172
5.1.VIAGEM AO FIM DA NOITE.
“Viagem ao fim da noite nos passos apressados de Dioniso
1
”:
O espetáculo Licurgo/Olhos de Cão nasce em 2003, nas salas de aula do
doutorado na ECA-USP, na disciplina Exercícios Específicos para o
Treinamento do Ator, ministrada pelo professor Armando Sérgio. Mas
sua gestação começa muito, muito antes. Mais exatamente, em 1992.
Nessa época eu cursava o segundo ano de graduação em Artes Cênicas
na mesma ECA, e vinha da criação de meu primeiro espetáculo, BIDI-
Cenas da Vida do Pobre B.B., sobre a vida e a obra de Bertolt Brecht.
Bêbado do pensamento do autor alemão, em especial sobre a questão do
épico, e querendo explorar outros caminhos, descortinados justamente
pelas experiências desse primeiro espetáculo, em especial questões sobre
mitologia e dionisismo, eu li o pequeno e maravilhoso Dioniso a céu
aberto. Uma obra sobre o sentido do trágico e os rituais dionisíacos
arcaicos.
1
Marcel Detienne, Dioniso a Céu Aberto, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988, p. 19.
173
O Dioniso de Detienne é o estranho estrageiro. Nômade que não se sente
em casa em lugar nenhum. Viajante, vagabundo, epifânico, epidêmico,
convulsivo. Deus da máscara que esconde e revela, como diz Vernant:
“Deus da confrontação, contrariamente aos outros deuses gregos. E a máscara
ritual visa fazer entender que estamos tratando com uma potência que não se
pode abordar de frente. Não podemos entrar em comunicação com Dioniso
sem que primeiro ele nos tenha visto. Entrar em contato com ele, por meio de
seu olho de Górgona, é cair sob o império de seu fascínio, ser possuído. É um
deus que nos toma, que não se pode abordar sem ser transformado. Entrar em
contato com Dioniso é, neste mundo, fazer a experiência de que existe a
dimensão da alteridade do universo. Dioniso é o outro, em todos os setores. O
olhar de Dioniso que faz com que tudo mude quando se entra nele traduz a
presença de um deus.
2
Sua máscara é um buraco, um vazio de dois olhos que nos fixam. Uma
máscara onde não há nada dentro: “ esta presença está sempre, ao mesmo
tempo, em outro lugar, ou em lugar nenhum, ou dentro de nós
3
,
confundindo as fronteiras. Entre um brinde e outro de seu vinho, Dioniso
conduz seus inimigos à loucura e ao assassinato. Como no caso de
Licurgo.
Originalmente, o personagem Licurgo aparece na Ilíada de Homero
como Rei dos Edônios, na Trácia. Segundo uma versão do mito, narrada
por Ésquilo, ele é um inimigo dos Deuses, que renega e persegue
Dioniso. Como vingança, a divindade da orgia arrasta Licurgo até os
limites da loucura. Em delírio, Licurgo decide derrubar com um machado
a vinha, trazida à Trácia por Dioniso. O Deus turva sua visão e conduz o
rei até seu filho, fazendo com que ele veja ali apenas um arbusto. A
2
Jean-Pierre Vernant, Entre Mito & Política, São Paulo, Edusp, 2001, p.351.
3
idem.
174
criança, aterrorizada, tenta escapar do pai que, em manía, corta seus
braços e pés. Dioniso o faz, então, recobrar a razão e Licurgo se percebe
assassino do próprio filho. A ação de Licurgo torna estéril toda a terra a
sua volta. O rei é julgado por seu povo e estraçalhado por cavalos
selvagens…
Com essas imagens na mente, numa noite, sentei-me no meu escritório,
abri uma boa garrafa de vinho, acendi um charuto e, numa fantasia
brechtiana, escrevi o breve ensaio dramático Licurgo/Olhos de Cão,
retrabalhando essas fontes com total liberdade, explorando possibilidades
contemporâneas para o trágico.
Licurgo agora é um ilustre professor de anatomia veterinária que, após
uma orgia noturna, confessa seus crimes terríveis. Tomado pela
embriaguez do vinho, Licurgo mistura lucidez e descontrole, perdido num
vazio sem deuses e juízes. O texto faz uma amarga reflexão sobre a
violenta solidão do homem hoje e a impossibilidade do amor.
Como exemplo dessas metamorfoses, vejamos uma transposição de
trecho do livro de Detienne para Licurgo:
“… É no século IV antes de nossa era, em uma comédia de Êubolo, intitulada
Dioniso ou Sêmele: Para as pessoas sensatas, preparo somente três crateras:
uma de saúde (hugieîa), que elas tomam antes; a segunda, de amor e de
prazer; a terceira, de sono. Depois de terem esvaziado essa terceira, aqueles
que se chamam sábios vão deitar-se. A quarta, eu a ignoro; pertence à
insolência. A quinta é repleta de gritos; a sexta transborda de maldades e
zombarias; a sétima tem os olhos inchados; a oitava é o meirinho; a nona, a
bile; a décima é a loucura (manía). É essa que faz tropeçar (sphállein).
Porque, servida em recipiente estreiro, passa facilmente uma rasteira em
quem a esvaziou (huposkelízein). O Dioniso Bem Reto e muito digno se
afasta desde a quarta cratera. Se o bebedor obstinado desabar sob a cama, a
175
culpa é da manía. lhe resta culpar o adequadamente chamado
Sphaleôtas.”
4
Esse texto, com esse conceito das “medidas do vinho” é duas vezes
retomado em Licurgo/Olhos de Cão. Já na segunda parte da peça, lemos:
“Nada como um copo de vinho! Seguido de outro copo de vinho! E mais...
Sempre mais...! Dioniso, deus do vinho, aconselha aos que amam, seus
companheiros de copo, uma medida. (Pousa o copo na mesa.). Sensatez. Diz
sua lei: uma pessoa sensata toma somente três copos. O primeiro é saúde. O
segundo, amor e prazer. O terceiro, sono. (Enche mais um copo e bebe todo,
empolgado.) Mas eu acrescento: a saúde passa, o amor amarga, o prazer não
chega, o sono não basta. (Enche mais um, deixando a garrafa quase vazia).
Depois do terceiro copo, diz Dioniso, o que se consideram sábios vão deitar.
(Toma seu copo.) O quarto copo Dioniso ignora, copo da insolência! (Ri
baixinho. Confidencia. ) E é onde eu e Dioniso fazemos trégua e nos
evitamos. O quinto copo é repleto de gritos. O sexto transborda de maldades e
zombarias. O sétimo incha os olhos. O oitavo é o juiz. O nono, a bile. O
décimo é a loucura. (Enche o último copo e bebe.)
5
Na quinta e última parte, voltamos à medidas:
“O meu copo. Outro copo. (Enche um copo e bebe, se aproximando da mesa
cirúrgica.) O primeiro. O primeiro copo alivia. O segundo reacende o desejo.
No terceiro a vigília parece um sonho. O silêncio transborda no quarto. O
quinto é o meu gemido. Quero vinho… O sexto copo, meu tesão, o sexto é
onde arregaço teu rabo… O sétimo copo são os meus olhos turvos de sangue.
Antes que o pó me cubra, que eu vire pó, que o pó corroa a minha mente, eu
te assassino, deus ridente, eu trapaceio e te encarcero. No oitavo copo, a
sentença. O nono é um travo na garganta. No décimo eu tenho você. Não dá
pra se esconder. Eu te encontro nesse corpo estranho, estrangeiro…”
6
4
Marcel Detienne, Dioniso... , p.88-89.
5
Volume 2 desta tese, p. 490-491.
6
Volume 2, p. 495-496.
176
Dessa forma, pretendi tratar da questão da medida do homem
contemporâneo. Quais seus limites? Quais aqueles que lhe são impostos
por natureza e quais os que se deve colocar? E o que é se colocar além
desses limites? O Licurgo contemporâneo é esse personagem à margem,
consciente de sua posição, réu e juíz de si mesmo (talvez como o
personagem de A Queda, de Camus), condenado a repetir, repetir,
repetir obsessivamente seus rituais de transgressão, culpa e expiação.
Um Licurgo que, por muito pouco, não é um super-homem Nietzschiano
ou um Hannibal, The Cannibal, de livros de Thomas Harris e de
filmes como Silêncio dos Inocentes. Tomado por uma divindade na qual
não acredita. Um homem sem fé, com uma razão afiadíssima, sozinho no
meio do mundo. Um personagem que age como narrado por Vernant:
“ para conhecer o que é um homem, seu caráter, seus sentimentos verdadeiros
para com os outros, seria preciso abrir seu peito e observar os spánkhna que
se mostrarão, dependendo dos casos, firmes ou moles, ardentes ou frios,
tensos ou soltos.”
7
Se contarmos o texto de Bidi, que nasce de processo colaborativo,
Licurgo é o segundo texto que criei para o teatro. Eu vinha de uma
experiência de quatro anos como redator publicitário e alguns anos de
prática poética. Naturalmente, o texto apresenta duas características
desses meios: tem a concisão própria da propaganda e também da poesia,
e o lirismo dessa última.
7
Vernant, Entre Mito… , p. 400.
177
Como já disse, eu estava muito interessado na visão épica, sem falar que
desde aquela época era fã de carteirinha da noção de escritura de Roland
Barthes, que pensava num texto que fundisse gêneros, vida e arte
amalgamados. Também já havia lido alguns romances de Beckett.
Portanto, Licurgo está encalacrado nessa encruzilhada de gêneros, sendo
que, em suas primeiras leituras, o que menos conseguíamos localizar nele
era sua dramaticidade.
Escritura épica, lírica… Tudo bem. Mas onde estava o dramático? Esse
jogo dialogal que, a partir de uma situação dramática, enreda personagens
em conflito? Falando claro: Licurgo é um de meus primeiros textos para
teatro, texto de formação e de passagem. Eu ainda não tinha noção clara
dessa terminologia, também não tinha muito jogo com diálogos e aquilo
que chamamos, para o bem e para o mal, de carpintaria dramática. Essas
circunstâncias, nas primeiras leituras da obra, gritavam. Unidas ao
conteúdo abjeto do texto, tornavam Licurgo difícil de engolir.
Por outro lado, eu apostava no aspecto experimental do texto. Em sua
força visceral, na mistura vertiginosa de gêneros. Na face torta e
monstruosa do personagem Licurgo. Misto de homem, animal e deus.
Personagem que brotava no tecido da escrita, devorando não só suas
vítimas, mas a si mesmo, eternamente, condenado ao inferno da
consciência absurda.
De todo modo, Licurgo é uma narrativa complexa, onde presente e
passado se confundem. Por um lado, o narrador, também ele personagem
da história, conta fatos que já ocorreram. Em determinado momento, esse
passado se torna presente, e o narrador não só vive os fatos, como se
desdobra em mais um personagem, o “menino”.
178
Se não bastasse, ainda assistimos a mudanças de nível de realidade, pois
se grande parte da peça se passa no que poderíamos chamar de nosso
mundo real, há momentos em que o personagem parece tomado pelo deus
Dioniso, e atuar em outro plano. No choque desses níveis,
acontecimentos trágicos ocorrem, assim como Licurgo ganha uma
amarga consciência trágica da existência.
Há também guinadas na ação: o que de início parece ser uma simples
história de um veterinário, seu amor aos bichos e aos meninos, se
transforma numa história de raiva e rancor, ou num encontro amoroso ou,
finalmente, numa história de puro terror.
Há paralelismos, como a história da cachorra Maria e a do menino-
amante de Licurgo. Há a intertextualidade entre os Licurgos mítico,
histórico e ficcional. Há a comunicação entre o mundo do divino com o
mundo do crime…
Aos poucos, as peças que faltam no quebra-cabeça são entregues ao
receptor, que de ouvinte dos fatos da vida de um Doutor, passa a
testemunha de um crime terrível.
Além disso, existe a reflexão de ordem moral que o personagem faz de
seus próprios atos. Uma moral desconcertante, aflitiva, sem saída – e que
não só prende Licurgo numa roda sem fim, num círculo vicioso em que
tudo indica que o crime de Licurgo será encenado, reencenado e
reencenado eternamente, como joga o receptor numa complexa teia
catártica.
179
O receptor quer afastar de si esse personagem tão próximo, tão radical…
Mas é muito difícil não se identificar com as frustrações, os desejos de
poder, o sadismo de Licurgo. E mergulhar numa cartarse tradicional,
onde medo e compaixão levam a um descarrego emocional e a uma
reflexão sobre a existência, sobre o amor e a morte no mundo
contemporâneo.
5.2. Primeiras Leituras:
Fiz uma leitura dramática da peça na saudosa Sala Cinza da ECA, num
horário de almoço, intervalo entre as aulas da manhã e da tarde. Para o
evento, realizei um longo ensaio com o ator Ipojucan da Silva, meu
colega da escola, parceiro do espetáculo BIDI.
Eu e o Ipojucan nos dávamos muito bem. Tínhamos muito em comum.
Ambos resolvemos entrar na faculdade tardiamente, aos 25 anos de idade,
vindos de mundos profissionais muito distantes do teatro. Ambos sem
experiência alguma em cena. Eu era redator publicitário. O Leo/Ipojucan,
sargento do exército em outro estado.
Esses pontos em comum nos aproximaram e tornaram nossa parceria
muito objetiva. Nos considerávamos os “velhos” da turma e não tínhamos
tempo a perder. Já havíamos abandonado contextos profissionais
180
promissores, mas que nos oprimiam, então queríamos mesmo era palco.
Assim, ensaiávamos pra valer.
Para a leitura, os trabalhos foram curtos, mas intensos. Realizamos uma
noite de ensaios no meu apartamento. Madrugada adentro, no minúsculo
hall de entrada, exíguo corredor com cerca de 3m x 1,20 m, falando baixo
para não acordar ninguém, agachado no chão como um animal enjaulado
mas pronto para o ataque, Leo foi incorporando o personagem à luz de
uma vela acesa.
Em espírito tipicamente dionisíaco, Leo lia o texto e bebia vinho. Na vida
social, Leo não bebia. Mas fez isso naquela noite como experiência.
Mandou uma garrafa sozinho, mas não aparentava sinais de embriaguez.
Depois dessas experimentações, o Leo me contou que, durante os
exercícios, sentiu muito forte a presença de sua mãe. Via isso
principalmente num gesto que ele sustentava durante quase toda a leitura,
o braço direito dobrado e a mão na cintura. Disse também que sua mãe
era mãe de santo do candomblé, e esse era o gesto que ela fazia quando
recebia entidades. Disse também que não era muito próximo desse
universo espiritual, mas que o sentira muito presente durante a cena. Uma
presença de um universo afetivo e sagrado muito intensa.
Contadas assim, nessa distância de tantos anos, as cenas têm um sabor
amadorístico. São engraçadas, ridículas, simples, comoventes e, pra mim,
um tanto saudosas. Têm algo de conjuração que, confesso, ainda
considero importante no cotidiano do trabalho teatral. Revelam ainda o
compromisso entre um ator e um diretor, que entregam-se um ao outro
num processo de pesquisa centrado em suas presenças, a partir de um
181
assunto que consideram relevante, buscando algo vigoroso para entregar
ao espectador. Pelo menos para mim, aquela cena elabora o embrião de
muito do que é meu trabalho ainda hoje.
Um tanto quanto amador, engraçado, ridículo. Que às vezes parece uma
conjuração de condenados. Que trabalha a memória, os afetos, uma noção
muito pessoal do sagrado que, às vezes, até comove.
A leitura pública foi realizada na sala cinza da ECA, num horário de
almoço. Tive o privilégio de contar com a presença de mestres como José
Eduardo Vendramini, Clovis Garcia e Hamilton Saraiva na platéia
(de repente tenho a impressão de que Marcio Aurélio também estava
presente, mas parece um truque da memória…), além de diversos
colegas. Fizemos um círculo de cadeira em volta do Léo que, como uma
pantera negra na jaula, lia a obra quase o tempo tempo nos planos médios
e baixo (como em nosso ensaio).
Embora impactante, principalmente por seu conteúdo, a leitura não
agradou. Em geral, a platéia questionou justamente a dramaticidade da
obra. “Aquilo” mais parecia poesia, prosa, e não Teatro (mal sabia eu que
esse tipo de recepção para o meu trabalho estava apenas começando…).
De fato, eu não podia discordar do tom geral das críticas, e tratei,
evidentemente, de tentar desenvolver minha dramaturgia. E o Licurgo foi
passar um bom tempo na gaveta.
Em 2001, retomei o trabalho, com os atores Carlos Rahal e Alexandre
Leal, o que resultou em outra leitura dramática no Teatro X, em São
Paulo. Desta vez, eu pretendia chegar a um espetáculo com dois atores.
182
Tinha a intenção de desmembrar o texto, reforçando seu aspecto
dramático.
Não fui bem sucedido. Os ensaios se arrastavam. No melhor deles, com
um só dos atores, tive um vislumbre do que realmente poderia ser a peça.
Sozinho, sentado numa cadeira, o ator “apenas” falou o texto, com
intensa propriedade.
Mas confesso que eu mesmo não conseguia absorver o impacto daquela
simplicidade. Resultado: a tal leitura no Teatro X. De todo modo, dessa
vez a recepção foi mais empolgante. O público, formado na sua maior
parte por atores, foi conquistado pelo conteúdo da peça e pela amplitude
de possibilidades formais que ela oferecia para uma encenação.
Alguma coisa mudara nessa década. Não a materialidade do texto, que
curiosamente não sofrera nenhuma mudança (coisa rara em meus textos,
que costumo reelaborar continuamente). A mentalidade se transformara.
Certos assuntos, embora causando grande impacto, já não eram
considerados tabus. A simplicidade na cena, centrada no ator, voltara para
o foco das atenções. E uma dramaturgia híbrida, para dizer o mínimo, já
não torcia narizes.
Por outro lado, dez anos depois, na nova leitura, foi surpresa constatar
que o texto ainda resistia – e oferecia várias possibilidades cênicas
justamente nessa intersecção de gêneros. Técnica que, aliás, continuei
desenvolvendo em textos e encenações ao longo dos anos.
Bom para o Licurgo… Mas, mesmo assim, não foi dessa vez que dei
continuidade ao projeto. Isso aconteceria dois anos depois, em 2003, no
183
início deste trabalho de doutorado, na disciplina Exercícios para Ator,
ministrada pelo professor Armando Sérgio.
5. 3. O trabalho do tempo.
Retomei o texto despretensiosamente, com a intensão exclusiva de
realizar a disciplina. Desta vez, tinha a meu lado meu querido parceiro
Marcos Suchara, ator que já realizara comigo, entre outros, o espetáculo
Werther na Veia, objeto de estudo em meu mestrado.
Essa idéia da parceria ator-diretor, num trabalho de aprofundamento
contínuo, percebo que tem sido uma constante em minha carreira. O
trabalho com o Marcão, em especial, desabrocha a semente que foi
plantada faz muito tempo, na parceria com o Ipojucan/Leonardo, como
narrada anteriormente.
Já estava presente ali a idéia de trabalhar a partir de improvisações e
laboratórios de sensações, que geram lembranças, memórias de afetos,
gestos e ações que vão compondo o repertório da performance do ator.
Se isso apareceu muito cedo, e de modo orgânico, no trabalho que venho
realizando com atores, foi sempre a partir dos estímulos de Armando
Sérgio que as coisas começaram a ser sistematizadas.
184
Muito antes de participar de sua disciplina no doutorado, fui seu aluno
ainda na graduação, em disciplinas de interpretação, onde participei de
laboratórios de sensação, que passei a aplicar regularmente em meus
elencos. Quando fui realizar a disciplina em meu doutorado, “a ficha
caiu”. Virou quase um método. Praticar exercícios estruturados e
específicos para cada situação, mas com um sentido comum: a busca de
um envolvimento sensorial do ator com seu trabalho e a realização de
espetáculos de câmara, também extremamente sensoriais para os
espectadores.
Foi exatamente esse tipo de proposta que pude aprofundar com a
retomada do texto, em 2003, com Marcos Suchara.
Marcos Suchara é um ator com mais de 15 anos de profissão. Entre seus
mestres, podemos destacar Miriam Muniz, Antunes Filho, Renata
Mello e Sandro Borelli. Com Ulysses Cruz, trabalhou nas encenações
de Macbeth, Péricles, Rei Lear e Hamlet. Atuou ao lado de Cleyde
Yáconis, Paulo Autran, Stênio Garcia, Antônio Fagundes e Hélio
Cícero. Em TV, tem participado de dezenas de filmes publicitários, fez
um papel marcante na minissérie Mad Maria e uma participação na
novela Bang Bang, ambos na TV Globo. Uma formação vasta, do teatro
tradicional à dança-teatro.
A partir de 1998, começamos a trabalhar juntos. Nosso primeiro trabalho,
Werther na Veia, foi objeto de minha dissertação de mestrado. E marcou
muito nossas trajetórias de vida.
185
É um prazer e um privilégio trabalhar com o Marcão. Sua vocação se
renova a cada novo trabalho. E ganhou novo impulso com a criação da
performance de Licurgo. Juntos, temos uma companhia, a Cia. Teatro
Viajante, filiada à Cooperativa Paulista de Teatro. Como costumamos
dizer, não temos um grupo, mas formamos uma parceria. Não devemos
obrigações um ao outro, temos trabalhos com outros núcleos
profissionais, o que nos une é a paixão pelo trabalho de pesquisa cênica
radical.
Nosso relacionamento é muito objetivo, sintético e afetuoso. Ou seja, o
Marcão tem sido um parceiro ideal nessa jornada. Sua participação é
fundamental. Suas opiniões, sua disponibilidade e suas soluções para os
exercícios propostos são o magma dessa obra.
186
5. 4. Exercícios para atores:
Existem 3 tipos básicos de exercícios para atores: de formação, de
treinamento, de criação.
a) Formação:
Evidentemente, a formação de um artista não termina nunca, mas
podemos fazer uma distinção muito clara entre atores em formação
iniciantes que descobrem, testam e ampliam seus recursos de consciência
e expressão – e atores formados – com uma trajetória extensa,
profissional ou não, aprendizado diversificado, alguns espetáculos nas
costas e um exercício do ofício voltado não só para a expressão, mas
também para a estética e a sobrevivência.
É para os primeiros que os exercícios de formação são fundamentais.
Cada escola de ator, de acordo com sua ideologia pedagógica, elabora seu
plano de trabalho com exercícios de formação, que são, necessariamente,
escalonados, cumulativos, técnicos e enfaticamente repetidos.
Um exemplo: caso estude em instituições como o Teatro Escola Célia
Helena, ou mesmo o Teatro Escola Macunaíma, um ator terá uma
formação elementar voltada para a composição de personagens a partir
das premissas de Stanislavski. Isso orientará toda sorte de exercício e
experimentação cênica, inclusive a escolha de repertório dramático (um
187
eixo de dramaturgia que, necessariamente, passa por Tchekov, Gorki,
O’Neill e Tennessee Williams – e tangencia brasileiros como Plínio
Marcos e Nelson Rodrigues, lidos sob ótica realista.).
b)Treinamento:
O treinamento de um ator também é constante, mas pode assumir as
formas mais diversas de acordo com a estética de um determinado
espetáculo.
Exemplos: um ator, num ano, se dedica a um espetáculo centrado na
fisicalidade e, para tanto, passa por um intensivo treinamento em kung fu
– caso de espetáculos como Macbeth e Péricles, dirigidos por Ulisses
Cruz; em outro ano, o mesmo ator, agora em outro grupo, pode passar
por um treinamento em dança de rua, combate cênico e RAP – caso de
Cidadão de Papel, dirigido por Paulo Fabiano, no Teatro X. Nos anos
seguintes, talvez caiam em seu caminho espetáculos de clown, commedia
dell arte, etc
Além disso, a partir de todo esse cabedal experimentado, o ator pode
separar nacos de cada técnica experimentada e criar seu próprio
treinamento diário.
Portanto, exercícios de treinamento são variáveis, adaptáveis a todo tipo
de situação. São buscados, roubados e retrabalhados a partir de toda e
qualquer atividade humana, ao gosto do freguês.
188
O tradicional ensaio de repetição, onde cenas ou um espetáculo são
metodicamente repetidos, também pode ser considerado exercício de
treinamento.
c) Criação:
A criação, propriamente dita, é o domínio da estética. Do trabalho formal
com as linguagens artísticas. Seu foco pode ser na expressão ou na
recepção.
No primeiro caso, estamos no domínio ou da arte puramente
experimental, sem compromissos com a audiência, ou no campo do
teatro educacional, amador ou em profissionalização, onde importam as
descobertas e a afirmação dos jovens artistas.
Aqui, arte é sobretudo aprendizado e tecnologia. Exemplos disso são os
espetáculos de conclusão de curso nas escolas de teatro, assim como
trabalhos como o de Grotowski em Pontedera.
Mas o foco também pode ser na recepção do trabalho, ou seja, em como
ele é percebido pela audiência. Nesse caso, ainda poderemos estar na
praia do experimentalismo, caso das performances em geral e no modo
como a arte pode intervir sensorial, emocional ou na reflexão do
espectador, causando ruídos, provocando estranhamentos. Exemplo
excelente disso são os espetáculos de Antonio Araújo com o Teatro da
Vertigem.
189
Também dessa turma é o chamado teatro tradicional, ou comercial. A
diferença é que, aqui, não se trata de provocar – às vezes até contrariar –
a audiência, mas de ratificar suas demandas. Tentar compreender o que o
espectador deseja – e realizar tais desejos. A carreira teatral de um outro
Antonio, Antonio Fagundes, em linhas gerais, exemplifica essa
tendência.
Fique bem claro: as distinções acima não implicam em julgamento de
valor. Ou na absoluta pureza dos conceitos. Na prática, os três tipos de
exercícios se articulam. Mas os objetivos acima orientam sua escolha,
elaboração e avaliação.
No caso do trabalho sobre o texto Licurgo/Olhos de Cão, o objetivo era
elaborar uma performance. Um processo elaborado em conjunto por um
diretor-dramaturgo e por um ator profissional. Está focado em exercícios
de criação no campo do sensorial. Tem um texto dramático como ponto
de partida. Seu horizonte final é a apresentação para o público
convencional de teatro.
190
5.5. Todos os sentidos:
O livro Oficina da Essência
8
, resumo da tese de Livre Docência do
Professor Armando Sérgio da Silva, ofereceu diversas premissas para
este trabalho, organizando experiências que eu próprio, como aluno do
Armando (ainda na graduação), e diretor de teatro, havia realizado.
Do ponto de vista teórico, Armando usa muito como referência o
Tratado das Sensações
9
, de Étienne de Condillac, que também me
ofereceu muito material, em especial o seguinte esquema de trabalho
sobre o sensorial.
Para Condillac, agimos a partir de desejos e necessidades. O prazer e a
dor nos estimulam, prendem nossa atenção. Quando passam, as sensações
viram memória. Quando chega nova sensação aos nossos sentidos,
fazemos comparações. Dessas comparações nascem juízos. Deles,
acontecem reflexões. Que nos remetem novamente às sensações.
Os sentidos humanos não são resultado apenas de nossa evolução
biológica, mas vêm de uma história social e cultural, das práticas
artísticas.
“Marx escreve: ‘A educação dos cinco sentidos é a obra da história universal
inteira’. ‘O olho torna-se humano tal como seu objeto se torna um objeto
social, humano, vindo do homem e terminando no homem.’ Em outras
palavras, o olho se tornou humano quando se criaram produtos para que o
parceiro social os tivesse debaixo dos olhos como objetos de visão, o que
significa que, ao lado de seu interesse prático, de seu valor de uso, esses
produtos comportam uma dimensão estética, ou, como diz Marx, são bonitos
8
Armando Sérgio da Silva, Oficina da Essência, São Paulo, Edição do Autor, 2003.
9
Étienne de Condillac, Tratado das Sensações, Campinas, Unicamp, 1993.
191
de olhar. Marx acrescenta:’ Assim, os sentidos se tornaram ‘teóricos’ em sua
ação imediata’. Fórmula (Esboço de uma Crítica da Eoconomia Política)
admirável por sua modernidade.”
10
Nesse pensamento, são criados não só os cinco sentidos, mas também
sentidos espirituais, práticos (como a vontade e o amor). Enfim, o sentido
humano dos sentidos. A mão cria o trabalho, mas o trabalho cria a mão.
A partir dessa lógica, que orientou o estudo dos valores elementares da
dramaturgia e a busca dos exercícios de Licurgo, escolhi os seguintes
estímulos:
a. Estímulos visuais:
. A obra do pintor inglês Francis Bacon.
Bacon é um pintor inglês de grande impacto. Suas obras causam choque,
misto de repulsa e desejo. Sexo, violência, solidão, erudição, síntese,
simplicidade, cor, riqueza formal – na obra de Bacon tudo se debate e
grita. Assim como o Licurgo, do nosso texto.
Selecionei alguns livros com obras e duas longas entrevistas com o
pintor
11
, onde ele revela seus procedimentos criativos, sua poética, sua
visão de vida. Pedi que o ator os devorasse e criasse um workshop. O
resultado dessa leitura foi uma seqüência de movimentos, uma escolha de
objetos, músicas e climas. Ponto de partida para a elaboração da
performance.
10
Vernat, Entre Mito… , p. 213.
11
David Sylvester, Entrevistas com Francis Bacon, São Paulo, Cosac & Naify, 1995.
192
Em paralelo, pedi que o ator passeasse pelo cemitério São Paulo, no
bairro de Pinheiros, admirando sua estatuária. Depois desse passeio,
abordei uma estátua específica, composição exótica, em ferro: longa
mesa, homem sentado em cadeira na cabeceira, olha o horizonte; ao seu
lado, uma criança, em outra cadeira, cabeça entre as mãos; sobre a mesa,
um pedaço de pão; há mais uma cadeira, vaga.
b. Estímulos sonoros:
. O trabalho musical de George Michael e Renato Russo.
Escolhi dois artistas pop, contemporâneos, gays, derramados, polêmicos e
sempre próximos do trágico. Tudo a ver com o Licurgo.
Decupei momentos do texto e, para cada um, escolhi uma canção dos
artistas. Propus para o ator, então, um laboratório onde ele, seqüência de
ações já criada à disposição e texto na mão, improvisasse o personagem.
Impactado pelo poder emocional das canções, o ator descobriu novos
caminhos e novas ações, incorporadas à performance.
193
c. Estímulos mistos:
. O trabalho com objetos:
A partir da leitura do texto, levantamos alguns objetos elementares
para a cena. Aí, com o começo dos laboratórios, o ator contribuiu com
mais alguns itens. Fechamos nos seguintes: garrafa de vinho, taça,
abridor, rolha, cesto de piquenique, toalha, fósforos, charuto. Além
deles, nas improvisações, surgiu também uma secretária eletrônica,
que chegou a ser usada no espetáculo.
. A materialidade do texto:
Um estudo do texto que, ao invés de partir da análise de seus
conteúdos, começou com a experimentação de seus valores estéticos,
principalmente sua musicalidade e seu ritmo.
Ao invés de grandes explicações ou levantamento de temas como
morte, solidão, incesto, violência e loucura e seu aprofundamento em
bibliografias, ensaios ou workshops conceituais, brincamos com o
texto, experimentamos suas texturas, o gosto de suas palavras, seu
encadeamento, os cortes, as rupturas, os deslizamentos entre narrador
e possíveis personagens.
Essa experimentação, por sua vez, levantou naturalmente os temas da
morte, solidão, incesto, violência, loucura – sempre coados pelo
194
experimento, tintos de sensações do ator e, de um modo inevitável, de
memórias que, num trabalho como esse, brotam naturalmente. Aí, ao
invés de discussões teóricas sobre o texto, tivemos importantes
diálogos sobre a experiência humana condensada na dramaturgia.
Além disso, buscamos um estudo retórico do texto. Identificamos sua
estrutura de argumentação, suas principais vozes, seus elementos
estéticos, levantando uma partitura preliminar para o ator.
d. A degustação do vinho:
Nessa altura do trabalho, pedi que o ator decorasse o texto. Fizemos
então um exercício simples: sentados frente a frente em uma mesa,
com uma garrafa de vinho, pedi que ele “fizesse” o texto enquanto
esvaziávamos a garrafa.
Ficou muito clara a importância da simplicidade e o impacto do
sensorial mais óbvio: a proximidade com a platéia, o olho no olho, a
cor do vinho, a textura da bebida, o ritual da beberagem.
e. O Cão:
Para a cena final da peça, pensamos em criar um “monstro”, uma
figura misto de cão e do cão, de Dioniso e de assassino psicótico, a
partir de experimentos físicos. Em seguida, experimentamos a
195
composição a partir da análise das imagens de grandes monstros do
cinema e da literatura, principalmente o Lobisomem (sem falar em
Drácula, Frankenstein, Múmia e outros).
5. 6. O Jogo do SIM.
A partir desses laboratórios, estabeleci um procedimento fundamental:
dizer sim ao material levantado. Ao invés de pretender longos processos,
buscar verdades profundas, considerar os primeiros materiais como ganga
antes da pepita, optei pelo oposto: atenção ao acaso, aceitação do
material, jogo a partir dele.
Esse procedimento é resultado da convicção pessoal de que parte do
teatro contemporâneo tem mitificado a criação. Essa turma dá a entender
que a única maneira de criar um espetáculo é se trancar numa sala durante
meses ou anos, de modo quase clandestino, buscando grandes verdades
no fundo da alma. Um teatro para “atores santos”, na “via negativa”,
como, certa vez, escreveu Grotowski. “Feito para Deus”, como escreveu
Barba. Que vai mudar o homem e o mundo, como apregoavam Brecht e
Artaud.
Estou mais com Picasso, que dizia que não procurava, mas achava coisas.
Prefiro a materialidade. O artesanato. O jogo infantil, que simplesmente
cria – sem receio algum de destruir tudo em seguida.
196
O jogo sensorial sobre os materiais (uma dramaturgia, tempo, espaço,
alguns objetos, a platéia) cria sentidos.
Durante os meses em que cursei a disciplina do Armando, eu e Marcão
ensaiávamos e, regularmente, apresentávamos trechos de nosso trabalho
para o grupo de colegas/alunos (que faziam o mesmo) e para o mestre.
Foi um processo muito divertido.
Aprendemos a lidar com alguns fantasmas. Por exemplo: o Marcos, ator
experiente e rodado, nunca tinha entrado na Escola de Teatro da USP.
Sem que nos déssemos conta, sua primeira intervenção “pesou”.
Marcão chegou na escola tenso, preocupado. Enquanto nos preparávamos
para nossa cena, subitamente disse que ia ao banheiro. Logo depois
voltou e, com um sorriso infantil no rosto, disse que tinha feito cocô nas
calças. Literalmente. Aí, relaxado, entrou maravilhosamente em cena e
eletrizou todo nosso grupo.
Refletindo sobre o fato, percebemos como noções de autoridade podem
atrapalhar nossas performances. Também precisamos admitir o quanto é
fundamental reconhecer, materializar e superar os nossos medos.
Depois disso, todas as apresentações correram com a maior tranquilidade.
Sempre recebíamos comentários pertinentes do mestre e dos colegas,
assim como realizávamos persquisas importantes sobre o universo
sensorial.
197
Esse processo gerou uma primeira versão da performance de Licurgo,
assim como o texto base deste capítulo.
Resumo dos exercícios:
a. Trabalho com o texto. Busca de ritmo, melodia, identificação de
vozes.
b. Estudo de Bacon e criação de workshop. Seleção de materiais:
músicas trazidas pelo ator, luz, figurino, movimentação. Criação de
seqüência.
c. Experimentação com músicas selecionadas pelo diretor: canções de
Renato Russo e George Michael. Trabalho sobre memórias
emocionais do ator.
d. A visita ao cemitério.
e. O trabalho com objetos: como utilizar os objetos que a dramaturgia
sugere e aqueles que a leitura do ator invoca.
f. O exercício do vinho: dizer o texto enquanto o ator e o diretor
tomam um vinho tinto.
g. O cão: a criação física de uma figura para usar na última cena da
peça.
198
5. 7. Performance, uma concepção:
A primeira concepção da performance, base das seguintes, foi a seguinte:
Escuridão. Sons de gravações antigas em uma secretária-eletrônica.
Resistência: uma lâmpada nua, pendendo do teto, começa a iluminar o
ambiente.
Em um semi-círculo vermelho, uma longa mesa de madeira com duas
cadeira, uma em cada cabeceira. Na margem externa dessa área, os
espectadores.
Numa cabeceira da mesa, Licurgo, pernas cruzadas, braços pousados na
mesa, cabeça entre as mãos.
Sobre a mesa, uma garrafa de vinho, um filão de pão, um saca-rolhas,
uma secretária-eletrônica e duas taças de cristal.
O figurino é muito simples: paletó e calças pretos, camisa branca. Nada
de maquiagem.
Licurgo avança a fita na secretária. Entra música: George Michael. Ele
abre o vinho, com cerimônia, e começa seu primeiro texto, em franco
convite aos espectadores.
A partir desse clima de intimidade, Marcão realiza sua performance.
199
5. 8. Temporadas:
No fim de 2003, aconteceu uma grande oportunidade para que Marcão e
eu pudéssemos aprofundar o trabalho.
A Cia. Teatro X, na época sediado em espaço na Praça Roosevelt,
resolveu fazer uma mostra de nossos trabalhos. Quatro espetáculos
seriam apresentados por cerca de 40 dias.
Pedi para que Licurgo fizesse parte da programação, em sessões
malditas, nas meia-noites de sábado.
Tudo combinado, Marcão e eu começamos a buscar as melhores soluções
para o evento.
O Teatro X ocupava os subterrâneos de um edifício na Praça Roosevelt.
Espaço estranho, em três níveis, com diversos becos. Anteriormente,
abrigava uma casa noturna.
No último nível desse imenso porão, a Companhia fez sua principal sala
de espetáculos. Um galpão que normalmente é transformado em palco
italiano, com arquibancadas, mas que permite amplo manejo. Por
exemplo, para o espetáculo Prometeu Enjaulado, a sala tinha duas platéias
paralelas.
200
Eu e Marcão, pra variar, resolvemos radicalizar ainda mais a coisa.
Escolhemos um pequeno espaço, uma passagem de não mais de 8 metros
quadrados. Colocamos até 14 cadeiras no espaço, algumas frontais, outras
à direita da área de atuação. Diante delas, uma mesa, uma garrafa e uma
cadeira. Uma lâmpada num panelão pendendo do teto. E só.
Nas noites de espetáculo, apagávamos as luzes dos subterrâneos. Com
uma lanterna, eu conduzia o grupo de espectadores para seus lugares.
Silêncio total.
Vindos dos subterrâneos, ouvíamos os ruídos de alguém chegando. Era o
nosso personagem. Ele entrava, com paletó, calças sociais e camisa
branca, sentava-se, acendia um cigarro e apresentava sua história para os
convidados.
Eram 35 minutos de vertigem. Sem mudanças de luz. Sem trilha sonora.
Sem efeitos. Uma performance marcante.
A partir daí, resolvemos levar o trabalho adiante. Inscrevemos a peça no
Festival de Curitiba, que se realizou em março de 2004.
Aprovados para o FRINGE do Festival de Teatro de Curitiba,
precisamos rever nosso trabalho. Desta vez nos apresentaríamos em um
minúsculo teatro, uma garagem italianada. Uma sala de 6mX5m, com
platéia em arquibancada frontal.
Usaríamos também luz teatral. O mínimo possível.
201
Por razões de produção, abdicamos de nossa mesa. Fomos para Curitiba
com uma cadeira, uma garrafa de vinho vazia, duas taças de vinho, uma
delas em pedaços, um cinzeiro, cigarro e fósforos.
Montamos nosso circo. Aproveitei que havia uma porta no fundo da sala
e criei uma luz vinda de trás da entrada, no começo do espetáculo.
Licurgo aparecia pela primeira vez contra essa luz, numa bela imagem.
O trabalho ficou muito bonito, mas foi assistido por não mais de 25
pessoas, em 3 sessões.
Entretanto, o destino ( ou o acaso) intercedeu a nosso favor.
No Domingo, última sessão, ao meio-dia, não tínhamos nenhuma
expectativa para o trabalho. Decidimos apresentá-lo mesmo se não
houvesse ninguém para assistir.
Cinco minutos após o meio-dia, ninguém para asssistir. Eu convidei os
donos do espaço para a última sessão. Nesse momento, pára um táxi na
porta do teatrinhoo. Descem Sérgio Sálvia Coelho, crítico da Folha de
São Paulo, com a fotógrafa do jornal, Lenise Pinheiro.
A fotógrafa faz uma enorme sessão de fotos. Depois disso, realizamos o
espetáculo. Na platéia, o crítico, a fotógrafa, uns dois ou três membros da
trupe que dirigia o espaço, além de mim na cabine.
Ao final, todos se levantam e aplaudem entusiasticamente a peça e,
principalmente, o trabalho do Marcão.
202
Dias depois, a Folha de São Paulo considera a peça um dos destaques do
Festival e o Marcão é considerado como o principal ator do evento.
Muito mais do que podíamos sonhar.
Essa performance em Curitiba abriu novas possibilidades para a peça.
Após negociação, conseguimos realizar temporada de um mês no SESC
VILA MARIANA, em São Paulo.
Desta vez, precisávamos transformar um auditório normalmente utilizado
para shows, sem camarins, urdimento e com uma altura em relação à
platéia realmente insatisfatória em espaço de atuação.
A situação beirava o patético. Havia um piano no palco, utilizado em
show que ocorriam durante a semana. E o instrumento não podia sair de
lá!
O palco não tinha mais de 3 metros de profundadidade, terminando numa
cortina e numa parede negra, com canos, fios, caixas acústicas.
O chão era de taco. Não havia lateral. Ou o ator entrava pelas portas de
emergência ou se escondia atrás de uma pequena cortina.
Os recursos de luz também não eram muitos.
Por outro lado, não queríamos “teatralizar” demais nosso trabalho.
Precisávamos vencer a distância da platéia e o espaço interno do palco.
203
Penamos para domar o ambiente.
Após várias tentativas e muitos erros, conseguimos tranformar o palco no
“loft” de Licurgo (incluindo até o piano!).
Trouxemos um panelão com lâmpada para criar um cantinho digno de
cela em prisão. Completávamos essa luz com alguns refletores que davam
sustentação à cena.
Como não tínhamos fundo, nossa moviemtação era lateral. Em cena.
Nosa velha cadeira. Além dela, uma outra cadeira, miniatura da primeira,
parcialmente coberta por uma camiseta colorida com uma estampa de
palhaço bem visível.
Roupas pelo chão. Muitas rolhas também. Num canto, “algo” coberto por
lonas negras. Mais o nosso piano, é claro.
Nesse ambiente, Marcão evoluía. Nessa “dentição” de Licurgo, nosso
personagem até dançava enquanto cantava a música Sonhos, de Peninha.
Acrescentamos uma dose de humor ao personagem trágico. E o resultado,
mais uma vez, ficou bem bonito.
Quando do início da temporada, Sérgio Coelho recomendou o trabalho,
“a consagração de Marcos Suchara” (aliás, o crítico voltou a recomendar
nosso trabalho ao longo de outras temporadas, o que agradecemos muito.)
Fomos convidados para renovar por dois meses a temporada mas,
infelizmente, não pudemos dar essa continuidade. Justamente porque
204
Marcão foi convidado para a minissérie Mad Maria, na TV Globo, e
precisava, o quanto antes, começar sua preparação.
Combinamos, então, retomar o trabalho após a conclusão do trabalho
Global – e num novo patamar, dado por essa mudança na carreira do
Marcão. Isso veio a acontecer quase um ano depois, quando o espetáculo
voltou à ativa, participando de festivais, viajando e fazendo novas
temporadas.
Em julho de 2005, Licurgo participou do tradicional Festival de
Monólogos do Piauí. Na décima-terceira edição do Concurso de
Monólogos Ana Maria Rêgo, em Teresina, Licurgo faturou os prêmios
de interpretação e direção.
Por razões puramente financeiras, não pude comparecer ao festival. Em e-
mail, Marcos me contou de maravilhos ensaio que realizou entre as dunas
maranhenses, antes de suas apresentações. Depois, narrou como uma
platéia de cerca de 400 pessoas delirou com Licurgo e com uma inovação
que ele, Marcos, preparara: uma coreografia final, com cerca de dois
minutos, a partir de música sacra russa, que já costumávamos usar em
ensaios e aquecimentos. Disse que, durante a coreografia, as pessoas
entravam em catarse e a emoção era completa.
Depois, na continuidade de nossos trabalhos, pude conferir a verdade de
suas palavras. Após as últimas palavras do personagens, enquanto a luz
cai em resistência, Marcos realizava uma série de movimentos
aparentemente simples, com foco em suas mãos e em seus pés. Começava
de pé, então se deitava sobre um chão coberto de cacos, depois voltava a
levantar e caminhava para a completa imobilidade, que chegava com a
205
escuridão completa. A sequência de movimentos, nascida de um mesmo
impulso do personagem, e embora seguindo um percurso determinado,
tinha espaço e margem para improvisações a cada sessão. Realmente de
arrepiar.
Portanto, com o espetáculo renovado, demos prosseguimento à carreira
de Licurgo.
Em agosto, atendendo a convite do dramaturgo português Carlos
Alberto Machado, fomos para Portugal, para nos apresentarmos na
Semana dos Baleeiros, tradicional festival de cultura e artes na Ilha do
Pico, nos Açores.
Desta vez, Licurgo fez parceria com outro espetáculo que escrevi e dirigi,
As Gordas São Felizes (e do qual falarei no capítulo a seguir).
No Pico, nos apresentamos num pequeno teatro para pouco mais de 100
pessoas, antigo e recém-reformado para o evento. A Semana dos
Baleeiros é uma grande festa da comunidade. Tem de procissão a teatro
de rua. Música erudita na Igreja e show de música Pop para multidão no
cais do porto. Nessa edição do evento, nós éramos a atração teatral
internacional, para um público habituado a essa natureza da festa. Tanto
Licurgo quanto as Gordas causaram sensação.
Como sempre, precisávamos “ganhar” o espaço. O palco era pequeno e
confortável mas, mais uma vez, tínhamos um bendito piano em cena!
Ótimo: mais uma vez Licurgo era pianista! Tínhamos terrível problema
de luz: a organização mandou para o teatro reformado material de luz de
shows, pares que simplesmente torravam quem estivesse em cena.
206
Como sempre, improvisamos. Numa loja de material de construção,
compramos dois baldes de plástico preto, com extensões de fio preto,
colocamos em cada uma delas uma lâmpada comum. Criamos assim dois
belos focos. No espaço cênico, colocamos nossas cadeiras e objetos
tradicionais. Compramos na ilha um belíssimo saca-rolhas, que passou a
ser nosso saca-rolhas oficial. Tudo ficou muito simples e elegante.
Tínhamos, ainda, problemas com a língua. Afinal, há diferenças sutis e
inescapáveis entre o português do Brasil e o de Portugal, e não podemos
negar que o texto é um eixo de sustentação de nosso trabalho.
Meu irmão mora em Portugal há dez anos e fez a revisão dos textos,
propondo algumas mudanças. No caso de Licurgo, optamos por deixar o
texto intacto. Foi uma boa opção. A platéia entedeu quase tudo – e os
detalhes que não captou com precisão, compreendeu pela ação e pelo
clima. Os espectadores adoraram. Gente do mundo todo veio elogiar a
performance. O mesmo aconteceu com As Gordas, mas isso já é matéria
para outro capítulo.
De volta ao Brasil, Licurgo se apresentou em setembro no Porto Alegre
em Cena, o mais importante festival internacional de Teatro do Brasil.
Em 2005, por exemplo, Porto Alegre recebeu espetáculo de Peter Brook,
entre outros mestres do mundo todo. Licurgo ocupou o Studio
Stravaganza, galpão tradicional de Porto Alegre. Mais uma vez comoveu
as platéias e a crítica especializada.
207
Em seguida, fomos para o Festivale, em São José dos Campos. Festival
também tradicional, de platéia difícil, em teatrão para 600 pessoas, num
palco imenso, com mais de 15 m de boca, uns 8m de fundo e sabe-se lá
quanto de altura.
O desafio foi ocupar o palco. Tranformá-lo no lar de Licurgo e não
simplesmente num espaço imenso para uma pecinha. Alguns exercícios
sensorias de nossa já razoável bagagem bastaram para que o Marcão
conquistasse esse domínio daquele teatro. A sessão, para cerca de 600
pessoas, um público jovem, barulhento, típico dos antigos festivais
amadores, vibrou. A reação foi melhor do que imaginávamos. E o Marcos
acabou faturando o prêmio de melhor ator do festival.
O crítico do evento, o temido Fausto Fuser, escreveu crítica precisa
sobre a peça. Era o mínimo que eu poderia esperar de alguém que não só
foi meu professor como orientou meus projetos de fim de graduação,
montagens de Tennessee Williams e Nelson Rodrigues. Aqui reproduzo
seu artigo porque, com grande sagacidade, mestre Fausto detecta os
limites e contradições desse processo criativo.
208
UM LICURGO ATRÁS DOS MITOS
Celso Cruz é muito habilidoso, ao buscar a erudita proteção de mitos e lendas
da Idade Heróica da história de povos mediterrâneos, para seu monólogo
dramático “LICURGO”.
Na verdade, professores de Mitologia Grega em boas escolas de arte
dramática se esparramam de deleite, quando surge uma oportunidade destas
diante do apaixonante assunto.
Mas o espectador comum, sentadinho nas destrambelhadas poltronas do
teatro, não dispõe de elementos para prospeções acadêmico-arqueológicas.
Ele, mui justamente, quer assistir a um bom espetáculo e fim de lorotas.
E é com toda a reverência aqui declarada que toda essa história do Rei dos
Edônicos e as infindáveis brigas com Dioniso que além de promover umas
belas festanças regadas a vinho grego, também, dizem as más línguas,
cometia umas crueldadezinhas de causar inveja a muito torturador.
Bem, prestados meus respeitos ao temido deus, a sua divina lenda entra nesta
peça tanto quanto Pilatos no Credo. Isto é, coisa nenhuma. Ou, sendo
generoso, como simples pretexto de súmula de enredo proposto. Algo como
muitos temas de ballet e de propostas de dança-teatro e a dança moderna em
sua quase totalidade.
Deuses, lendas, mitos, histórias da cultura tradicional são muito utilizadas
como título e pretexto de construções artísticas de valor independente que
buscam uma remota proteção, tornar indiscutíveis seus procedimentos
culturalistas e resguardá-los em um porto seguro para seu navegar... – “Se eu
tenho Dioniso e a Ilíada como fonte e guia, ninguém do Olimpo vai atirar um
raio no meu barquinho particular”...
Esta peça profana de Celso Cruz (seu autor e diretor) tem qualidades humanas
suficientes para mantê-la navegando livre de trovoadas infernais, graças ao
seu próprio valor dramatúrgico.
Concentrada no homem “possuído” por ímpetos de transgressão sexual –
inútil buscar rótulos, aqui, para tais procedimentos, a peça-monólogo
consegue se desenvolver com a irresistível atração dos perigos indefinidos,
presentes no clima despertado.
Não se busca o “suspense”, isto seria um golpe barato e Celso Cruz é um
autor e diretor de visível bom gosto.
Cruz, em absoluta sintonia com Marcos Suchara, ator de recursos expressivos
surpreendentes, justamente por serem discretos, contidos e extremamente
apropriados, com “dignidade real” (e ai, quase voltamos aos palácios das
histórias...) executam uma sinfonia macabra que se inicia como uma
209
“pastorale” e da qual o espectador só vai se dar conta quando os crimes já
assumiram, irresistivelmente, a dimensão total daquele mundo.
O mundo de um monstro, na figura elegante, gentil, de um nobre que perdeu
o rumo por onde navegam os valores humanos desde que o homem planta
videiras e faz o bom vinho sagrado.
Crítica teatral de FAUSTO FUSER
(As opiniões do crítico são estritamente pessoais, inteiramente independentes
do 20º Festivale e do Júri de Premiação).”
12
Mestre Fausto, como sempre, tratava com sensibilidade tanto das
qualidades quanto dos problemas da peça. Sua crítica tocava num aspecto
central do processo que estava ocorrendo em meu trabalho. No começo,
muito apoiado na mitologia e no estudo do trágico e da tragédia
tradicionais, como narrado, por exemplo, nas experiências que vivi
recriando o Prometeu ou As Troianas, ou mesmo no ponto de origem do
meu Licurgo, conseguia também encontrar escora para meu trabalho.
Pouco a pouco, entretanto, essa obra vai não só ganhando contornos mais
nítidos, como ganhando independência de seus pontos de partida.
Processo, aliás, que é o tema central deste doutorado.
Depois de São José dos Campos, resolvemos voltar a pensar pequeno e
planejamos uma temporada de fim de ano, entre novembro e dezembro,
no porão do Espaço Viga. O Viga é um espaço novo na cidade de São
Paulo, próximo ao metrô Sumaré, voltado para o teatro e a dança. Tem
uma sala tradicional de teatro, duas belas salas de ensaio e um porão que,
a partir do espetáculo O Porco, do mestre Janô, passou a ser utilizado
cenicamente.
12
Arquivo de Celso Cruz.
210
5. 9. O Porão:
O porão do Viga é perfeito para o Licurgo. Seu espaço forma um L com
pé-direito que não chega a três metros. A perna menor do L tem cerca de
5 metros de comprimento por 4m de largura. A maior, 3 de largura por 8
de comprimento. Para chegar ao porão, existe uma escada com cerca de
15 degraus, que desemboca exatamente no meio da perna menor do L.
Foi esse pequeno retângulo que decidimos usar.
Puxamos uma lâmpada para o centro da cena, ocupada por nossas duas
cadeiras. Numa, penduramos o paletó do Licurgo. No chão, uma garrafa
de vinho aberta, uma taça com um pouco da bebida e outra taça,
quebrada, mais o saca-rolhas com a rolha espetada.
Ao redor do personagem, dispostas em U, cadeiras e bancos para quinze
pessoas. Num canto além desse espaço (já na perna mais longa do L), em
um banco, eu “operava” (acendia, diminuía, apagava) a luz.
E só.
Mais uma vez, nossa primeira tarefa foi habitar o lugar. Vínhamos de
experiências recentes que só faziam crescer o espetáculo. Agora,
precisávamos de concentração máxima. O porão, todo de concreto bruto,
nu, pintado de marrom, tinha pequenas janelas com ventilação para
terrenos vizinhos ao Viga. Embora não houvesse vazamento de som do
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próprio Viga, sons de ambientes distantes da vizinhança não poderiam ser
evitados. Por outro lado, a acústica do porão é excelente, permite um uso
extraordinário do sussurro, da voz natural, dos baixos. Tudo é ouvido
com muita clareza. O ator tem um retorno excelente do que fala.
O gesto também precisava de clareza ainda maior. Assim como a busca
de uma comunhão tranquila e total com o texto e com o espectador. Desse
modo, muito material gestual foi eliminado. Abrimos mão também de
uma limpeza excessiva. Certo aspecto performático e improvisacional
voltou a ser realçado. Infelizmente, a coreografia do final também ficou
muito “grande” no porão e acabou eliminada, assim como qualquer trilha
sonora.
Marcos sempre quebrava uma taça de vinho durante o espetáculo. Para
realizar a tarefa com segurança, Marcos caminhava para o fundo do porão
e espatifava a taça contra a parede do fundo, evitando riscos para o
público.
Esse, por sua vez, entrava e ocupava as cadeiras. Entre o grupo e a escada
com a saída, estava o nosso personagem. Isso aumentava a sensação de
aprisionamento.
Em um ensaio, um novo objeto entrou em cena. Compramos um pano de
chão cujo objetivo inicial era, nada mais, nada menos, do que fornecer ao
Marcos meios de limpar o vinho que o personagem derrama no chão
durante a peça.
212
Nas mãos do Marcos, o pano ganhou vida. Agora, Licurgo vinha da
escuridão do fundo do porão (lá dos cantos da perna mais longa do L) e
entrava em cena limpando as mãos no tal pano vagabundo. Limpava e
limpava e limpava com gestos banais e automáticos, realmente
obsessivos. Isso durava um bom tempo. Mesmo quando o texto
começava, Marcos continuava com seu paninho, que foi incorporado a
sua partitura gestual anterior até que, finalmente, ele era dobrado, ia para
o bolso do personagem, de onde saía já quase no fim da peça para, enfim,
ser utilzado na limpeza do chão.
Como se não bastasse, Marcos ainda criou mais um uso para o bendito
pano. Como já disse, eliminamos a coreografia final do espetáculo. Pois
bem: no final da peça, enquanto a luz cai em resistência, Licurgo se
entrega ao trabalho de rasgar seu paninho. Tarefa difícil, que exige força.
Aí, o personagem destroça o pano em tiras que abandona no chão. Então,
com as mãos livres, bate uma palma. E a luz se apaga bruscamente. Uma
belíssima metáfora das obsessões, da dissociação e dos crimes do
personagem.
A partir desse estímulo, nasceu mais um elemento de nossa cenografia.
Ao lado de uma das cadeiras, montamos nosso “altarzinho”: toda noite,
acrescentávamos uma taça quebrada e pedaços de pano embebido em
vinho e rasgado, mais um monte de rolhas de vinho e garrafas que já
possuíamos de nossas outras apresentações. O conjunto era impactante.
Além disso, Marcos/Licurgo usava não só o centro da cena, mas as
paredes e o próprio chão, onde ciscava, pateava e dava a impressão de ter
enterrado sua(s) vítima(s).
213
A temporada foi maravilhosa. Ao final de cada sessão, a platéia ficava
num silêncio chapado. Aí, nós sustentávamos esse silêncio, até que,
naturalmente, sem combinação prévia, as pessoas faziam questão de dar
retorno de suas impressões. Ouvimos muita coisa que nos comoveu e
estimulou a continuar o trabalho. Renata Mello, Lili Caffé e muitos
outros passaram pelo nosso porão, mas a mais incrível aventura ainda
estava nos esperando. Afinal, fomos convidar o Antunes Filho para a
nossa peça…
Como já foi dito, Marcos trabalhou um tempo com o grande mestre.
Como todos os que passaram pelos palcos de Antunes, um misto de
reverência, respeito e medo tomavam seu coração ao falar do “homem”.
Eu, de minha parte, sempre tive profunda admiração pelo encenador e sua
radicalidade, embora não tenha trabalhado com ele. Combinamos então
convidá-lo.
Fomos ao CPT. Quando nos aproximamos da entrada do SESC
Consolação, nossa conversa cessou. Marcos e eu ficamos estranhamente
calados, tomamos o elevador para o famoso oitavo andar e entramos no
escritório. Sentado numa mesa, como se nos esperasse, estava Antunes.
Não sabíamos muito bem o que falar, parecíamos uma dupla de cômicos
de quinta categoria. Começamos a falar ao mesmo tempo. O Antunes
quebrou o gelo, lembrando imediantamente do Suchara: “Fala, Suchara!”
214
Fizemos o convite. Ele pediu filipeta. Dissemos que não tínhamos
material algum. Ele tirou o maior sarro da nossa cara: “que merda de peça
é essa que nem filipeta tem?” Escrevemos o endereço e os horários num
pedaço de papel. Ele ofereceu um cafezinho de garrafa térmica.
Perguntou quem era o autor. Ele deu mais uma gozada na gente. Fomos
embora. Na rua, subitamente recuperamos a fala ordenada e o humor. Aí,
só podíamos rir ainda mais das nossas caras. Mas ficou a sensação do
dever cumprido e a certeza de que jamais nosso convidado apareceria.
Mas acontece que nos enganamos. A peça fez sua estréia na sexta e, no
sábado, quem estava lá? Antunes Filho. Mais uma vez as coisas foram
um tanto quanto engraçadas. Como já disse, o Viga tem, além do porão,
um teatro tradicional. Nesse fim de semana, lá estava em cartaz uma peça
de Harold Pinter, que acabara de ganhar o Nobel. O coitado do Licurgo
nem material gráfico tinha!
Felizmente, uns dez gatos pingados “enchiam” nosso porão ao lado do
Antunes. Curiosamente, parte desse público era de ex-discípulos do
mestre que, por coincidência, estavam lá naquela noite. Além deles,
alguns amigos como testemunha. Eu cumprimentei nosso convidado,
pedi ao bilheteiro que lhe desse seu ingresso e tudo bem.
Mas acontece que, por engano, o homem entrou com o público do
Pinter!
215
Pedi ao administrador do Viga que fizesse a gentileza de, antes que a
outra peça começasse, resgatar o Antunes. Ele cumpriu a tarefa com
elegância. Subiu para o teatro e perguntou se, naquele público, havia
alguém que viera para o outro espetáculo. Silêncio. Ele repetiu a
pergunta, sublinhando que ali se realizaria sessão de peça de Harold
Pinter. O Antunes falou, com seu timbre característico: “ Eu vim assistir
a uma peça de autor nacional.”
Com delicadeza, nosso companheiro acompanhou o Antunes até o nosso
humilde porãozinho. Aí, com nosso grupo de espectadores reunidos,
pudemos começar nosso espetáculo. Aliás, como parte da platéia era
composta por atores, passamos a realizar não um, mais dois espetáculos.
Além de assistir ao Licurgo, todos queriam assistir ao Antunes assistindo
ao Licurgo.
A sessão começou. O Marcos, que costuma jogar diretamente com os
espectadores, mal conseguia olhar na direção do mestre.
Ao final, como de hábito, aquele silêncio…
Foi o próprio Antunes quem quebrou o gelo. Perguntou se ninguém
queria falar nada e começou, ele mesmo, a falar: “Você melhorou, êin,
Suchara…” A partir daí, fez uma série muito generosa de elogios ao
nosso trabalho, à condução do ator pela direção e ao texto. Tive a honra
de ser chamado de “Dostoievski brasileiro” pelo Antunes Filho! Enfim,
o mestre elogiava aquele trabalho diante de um Marcão e de mim que
estávamos bobos e embevecidos. Felizmente, contávamos com nossos
colegas atores como testemunhas. O público que não era “de teatro” não
entendia absolutamente nada, mas compreendia pelo tom da situação que
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a coisa era (ao menos para nós) importante. O mestre disse o que quis, fez
algumas perguntas, que tentamos responder, nos cumprimentou e foi
embora. Mas nós ficamos com a memória desse belíssimo retorno, gás
para muitas outras batalhas teatrais do futuro.
Em 2006, retomamos a temporada da peça no mesmo Viga. Em janeiro e
fevereiro, fizemos dobradinha com Só As Gordas São Felizes, depois,
continuamos a carreira solo do espetáculo, que ainda tem muito chão pela
frente.
217
5. 11. A FOME DO DIA.
Licurgo /Olhos de Cão é uma experiência cênica, tanto para a equipe de
criadores da peça quanto para os espectadores.
Para mergulhar no espírito do personagem, para participar de sua
tragédia, é necessária a criação de um ambiente especial, que envolva a
todos.
Não se trata apenas de uma cenografia, no sentido tradicional, espaço da
cena, onde agem os atores. É algo mais: uma atmosfera, uma temperatura,
uma proximidade, como sugeria Appia.
Espectadores e ator em comunhão. Silêncios contaminados pelos
pequenos barulhos do lugar. A força das paredes, do chão. Suas texturas.
A voz do ator: cada sussurro, gemido ou grito, cada palavra clara que
chicoteia o teto ou carinha os ouvidos dos parceiros.
Para que essa experiência ocorra de modo sempre renovado, procuramos
recriar a performance em cada lugar que a ela se oferece.
Licurgo já viveu sua história em porões, entre as cortinas de um teatro,
num canto de palco, num bar, em salas de ensaio e até mesmo em teatros
tradicionais, arduamente trabalhados para dar guarida ao processo.
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O uso de espaços inusitados, entretanto, é o ideal para Licurgo. É nessa
área não-teatral, nessa área marcada pelos outros usos da vida cotidiana
que Licurgo afirma sua verdade.
É aí, nesse tipo de ambiente, que realizamos a nosssa tragédia trash, que
recicla antigos conteúdos humanos, contrasta-os com a realidade
contemporânea e lança o espectador numa tocante viagem.
Um evento de câmara, rigoroso na sua simplicidade estrutural. Na
montagem, o que importa é a presença do ator, sua capacidade de
comunicação e comunhão com os espectadores e seu poder de encarnar
um texto encenado com absoluta concisão de elementos, centrado em
gestos simbólicos e precisos.
O que realizamos é uma performance. Um paradoxo: única a cada
repetição. 35 minutos que transbordam os 3 anos de trabalho no
espetáculo e os 15 anos de trabalho na peça. Algo que muda como
mudam nossas vidas, nossos interesses, os espaços, os espectadores.
Work in process, como diria Renato Cohen.
Há a insistência na importância do sensorial na criação de um espetáculo,
na busca da simplicidade e na ênfase da relação direta, próxima, orgânica,
entre ator e espectador, com uma dramaturgia impactante como apoio.
Ficamos em cartaz no Viga até 13 de maio de 2006. No último mês de
temporadas, realizávamos apenas um espetáculo por semana, nos
sábados, 21h. Embora recebêssemos menções elogiosas da crítica e
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estivéssemos nos Guias de entretenimento da cidade, nosso público foi
minguando. Chegamos a cancelar espetáculos.
Em nossa última sessão, estávamos cansados e desmotivados. Até 21h,
nenhum público aparecera. Marcos e eu ficamos conversando sobre
novos projetos. O ator nem mesmo fez aquecimento ou se trocou. Às 21h
e 5m, começamos a arrumar nossas tralhas para partir. Então, aparece o
administrador do espaço e diz que temos duas pessoas de platéia…
Normalmente, uma pequena platéia como essa já nos motivaria. Mas
confesso que pensamos seriamente em cancelar a sessão. Enfim, em
nome do profissionalismo e do nosso amor ao trabalho e à
disponibilidade dos espectadores, resolvemos fazer a peça. Rapidamente,
Marcos se vestiu e eu fui buscar nossos espectadores, um casal jovem,
entre seus 20 e 25 anos.
Eles desceram para o porão e a peça começou. Fria. Superficial. Para
piorar as coisas, um barulho intenso acontecia no saguão do teatro,
atrapalhando a peça. O quê fazer? Eu não tinha condições físicas, do
lugar de onde operava o som, de sair do porão e pedir silêncio. Torci
silenciosamente que Marcos, da própria cena, tomasse medidas.
Foi o que ele fez. Subitamente, no personagem, subiu as escadas do porão
e pediu o tal silêncio. Voltou e continuou o espetáculo que, de modo
estranho, ganhou consistência a partir daquele momento.
Mas vinha mais por aí. Logo depois, toca um celular! Pior: o celular do
Marcos, em sua mochila! Na correria, ele esquecera de desligá-lo. Ele, eu,
dois espectadores num pequeno porão… E aquele maldito celular! Mais
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uma vez, Marcos teve tranquilidade: incorporou o ruído, que parecia o
telefone do personagem.
A partir daí, o espetáculo ganhou força incomum. Imbuído de raiva e
rancor, talvez pelo ridículo de toda aquela situação, pela dificuldade de
encontrar um público constante, pela dificuldade de conseguir e manter
condições elementares de trabalho, pelo desânimo que essa luta tão
inglória vai causando na gente… Por isso tudo e também, claro, pela
força do trabalho, pela repetição mágica do teatro, pela vibração do
momento… Licurgo atingiu patamares inéditos. O espetáculo fluiu muito
bem.
Ao final, nossa pequena platéia (que então, soubemos, viera por
recomendação de amigos) estava empolgada. Adoraram o trabalho – e
nem comentaram nossas terríveis gafes.
Para nossa também mínima equipe, a noite foi uma bofetada. De modo
enviesado, levamos um soco no estômago. Para que acordássemos mais
uma vez para a dificuldade da luta.
Lembramos também que algumas noites antes havíamos feito outra
sessão para apenas um espectador, o ator Ari França, que estava
ensaiando com o Marcos o espetáculo Ricardo III, com direção de
Soares.
Marcos e Ari entraram em comunhão profunda. Ao final, esse comediante
maravilhoso, comparado a Stan Laurel pelo New York Times,
perguntou como fazíamos para manter aquele “gás”. Enrolamos. Não
221
soubemos explicar. Ari disse que trabalhávamos com “a fome do dia”. O
desejo de cada sessão, inspirando cada performance.
Apropriado. A fome do dia…
Então, terminou mais uma temporada de Licurgo.
No momento, não pretendemos voltar com esse trabalho. Mas vai saber
qual será a nossa próxima fome?
222
CAPÍTULO 6: SÓ AS GORDAS SÃO FELIZES.
223
6.1. CABEÇA CHEIA:
Fevereiro de 2003. Início do ano letivo. Primeira semana de aulas em
uma faculdade privada de São Paulo. Nenhum aluno aparece. Sem o que
fazer e devendo permanecer em sala, comecei a rabiscar meu caderno.
A cabeça estava cheia de idéias. Eu vinha de Londres, da estada no Royal
Court Theater, onde assistira a uma simples e bela estréia da peça Iron,
de Rosa Munroe. Embora não tenha entendido o texto em detalhes, me
agradara a idéia básica. Uma conversa entre duas mulheres numa prisão.
Muito papo, quase nenhuma ação, num clima aparentemente realista mas
que lançava estranhas sombras na nossa compreensão.
Eu queria me exercitar nesse tipo de texto, no diálogo simples e em sua
capacidade de transportar ação, seja ela de qualquer natureza. Já em São
Paulo, naquela manhã, eu lia e grifava uma reportagem sobre crimes
recentes envolvendo médicos. Em especial, um crime realizado por um
cirurgião plástico que matara e retalhara a amante. Em paralelo, também
me intrigava a recente prisão do pediatra paulista que abusava de seus
pacientes, gerando inclusive vídeos de seus abusos.
Eu pensava sobre os limites da razão, uma de minhas obsessões
temáticas, já abordada em Licurgo/Olhos de Cão. Leitor de Stevenson
(sem falar em Kafka ou Borges), sempre achei intrigante esse universo
de médicos e monstros.
224
O absurdo da situação desses criminosos, temperado pelo típico absurdo
brasileiro, com seus laivos de impunidade, me impelia a criar um texto.
Uma situação real forneceu meu ponto de partida: o fato de que os dois
criminosos se encontraram realmente em uma prisão para criminosos com
curso superior. Chegaram, inclusive, a partilhar espaço com o jovem
estudante de medicina que, há alguns anos, metralhara pessoas
indicriminadamente num Shopping paulista.
O que será que eles conversaram? Que tipo de assunto teriam? Como
seria o clima entre eles? Dessa situação eu podia muito bem começar.
Resolvi trabalhar com um diálogo mínimo, povoado de silêncios.
Cortante. Cheio de subentendidos, malentedindos, impossibilidades de
compreensão. Jogos formais de linguagem. Sons e ritmos.Vazios.
Comecei brincando com trechos grifados da reportagem que eu acabara
de ler. Passei a brincar com os elementos da colagem, realizando
repetições e permutações.
De saída, determinei a presença de dois personagens: um e outro. Em
geral, prefiro personagens sem nome, ou que questionam seus próprios
nomes. Dessa vez, tomei como parâmetro conceitos sobre identidade e
outridade, sobre as dificuldades do eu frente ao outro. Quem é o um?
Onde está o outro?
De modo intuitivo, criei também uma espécie de terceira personagem a
partir das citações, a gorda, uma figura que interrompe a fala do “um” e
que representa sua principal vítima, uma mulher obcecada pela beleza – e
que acaba trucidada pelo amante.
225
Fui seguindo o jogo, caneta e caderno na mão. Naquela sala vazia, no
espaço de uma aula, rabisquei o primeiro esboço da peça. A estrutura saiu
inteira ali. Chamei o texto de Guantánamo, uma alusão à prisão
americana para terroristas. Pensava, assim, em dar universalidade à
questão. Num mundo com tantos canibais e serial killers famosos, quis
dar um toque político à questão, pensando num mundo em que todos
estamos aprisionados num imenso Guantánamo racionalista.
Depois, em casa, passei o texto para o computador e, como sempre, na
revisão, já comecei a lapidar a obra. Em seguida, ela foi repousar na
memória do computador…
Eis sua sinopse: numa cela especial, dois médicos-criminosos, Um
(muitas vezes possuído pelo espírito da gorda, uma de suas vítimas) e
Outro. Enquanto esperam sentenças para seus casos, conversam
banalidades sobre anabolizantes, suicídio, sonetos, amores e rotweillers.
Compartilham a latrina e migalhas de bolachas. Acabam também
revelando segredos de seus crimes e do que sentem sobre suas situações.
Têm um breve momento de real comunhão. O Outro morre subitamente.
Desesperado, Um vela o cadáver do colega. Fim.
Uma estrutura, portanto, onde o espaço é fixo e o tempo anda, para frente
e para trás, sobre uma base também contínua. A peça é uma longa cena
única, com cerca de 50 minutos, sem cortes, mas dentro da qual o
passado entra em cena, perturbando os personagens, via reencenação de
seus crimes. Além disso, vários planos de realidade se misturam. Afinal,
se Um e Outro dividem a mesma cela, onde está a personagem da Gorda,
recortada em itálico nas falas do personagem Um? Delírio, fantasma, voz
da morta, ela rasga a cena, instaurando a presença de um outro universo.
226
De modo análogo, os delírios do Outro, povoados por rotweillers e falas
desconexas, também inundam a cena com o plano da fantasia. Não á toa,
todo o tempo eles se perguntam: o que é real?
No começo da cena, nem mesmo diálogo tradicional ocorre, mas uma
sequência de falas mal digeridas, que praticamente escapam dos
universos de mutismo dos personagens, que remoem o osso de seus
crimes e desejos secretos. Pouco a pouco, Um e Outro se aproximam, até
que ocorre uma verdadeira pororoca na Canção da Gorda, momento de
união entre os opostos, de solidariedade e comunhão. Breve, é verdade.
Interrompido pela chegada terrivelmente inverossímel da única figura
“realmente real”: a morte.
Fulminado (o coração? Algum deus? O pérfido autor?), o Outro desaba.
Tal viúva inconsolável, Um se desespera. Nesses momentos finais, até a
Gorda o abandona. Absolutamente só, na presença do cadáver do Outro
(que em outras eras seria signo de seu desejo, a ser profanado e
destroçado com prazer), Um fica velando o outro.
A peça termina nesse beco. Muito além do próprio desejo, além da culpa
e do abandono, Um vela o Outro, enquanto a morte espreita.
227
6.2. BREVE ENCONTRO COM O XAMÃ.
No segundo semestre do mesmo ano, tive o prazer e a honra de participar
de disciplina ministrada por Renato Cohen e Lucio Agra, no doutorado
da ECA, Matrizes da Cena Contemporânea: Rito, Performance e
Multimídia.
As aulas eram fantásticas, os professores, maravilhosos. Renato, em
especial, era uma verdadeira usina de idéias e ações. Realizávamos
estranhíssimos workshops e performances que, para mim, antes de mais
nada, eram excelentes oportunidade de voltar à cena como performer,
coisa que não fazia há muitos anos.
Misto de xamã e professor Pardal, Renato era um homem tocante e
contagiante. Os colegas, por sua vez, correspondiam aos ousados pedidos
do mestre. Para a aula, eu criei o texto Taurus (ver Capítulo 8), que
pensava usar em performance.
Infelizmente, Renato faleceu subitamente. Muito jovem, muito vibrante,
com vários projetos e um incrível pathos, perdemos esse maravilhoso
mestre. Foi um choque. Um trauma.
No entanto, a disciplina precisava continuar, agora só sob comando do
Lúcio, e dedicada à memória do Renato, com muito amor.
Resolvemos, então, realizar um evento, entre nós mesmos, em
homenagem ao mestre. Eu, de minha parte, retomei o texto
Guantánamo. Enxertei algumas cenas inspiradas em nossos workshops.
228
Além disso, na retomada do texto, resolvi valorizar o vício por
anabolizantes de um dos personagens. Fui ajudado por aluno de faculdade
onde eu lecionava na época, ele mesmo grande consumidor e
“distribuidor” dessas drogas. Digamos que ele ofereceu consultoria e
livros sobre o assunto, que resultaram na cena em que os personagens da
peça conversam sobre anabolizantes, enquanto um deles faz ginástica.
Portanto, realizei leitura pública do texto em sala de aula da escola.
Convidei meu grande parceiro Marcos Suchara a fazer comigo a leitura.
Texto nas mãos, lemos os personagens com carinho. Marcos rasgava as
folhas de textos e as enfiava na boca. A performance teve impacto. Foi
uma bela homenagem, ao lado de outras prestadas por nossos colegas.
Pela primeira vez, pensei em montar a peça que, naturalmente, voltou
para a gaveta. Lá pelo segundo semestre de 2004, enquanto tomava um
banho, tive um insight sobre o título do texto. Guantánamo parecia
quase esotérico, duro, difícil. De repente, apareceu na minha cabeça:
as gordas são felizes. Achei forte, intrigante, instigante. A peça estava
“pronta”.
No fim do mesmo ano, junto com o ator Guilherme Freitas, eu buscava
novo trabalho para realizar. Enviei para o Gui vários de meus textos. Ele
ficou empolgadíssimo com As Gordas. Resolvemos montá-lo, enviando
o projeto para o Fringe de Curitiba.
229
6.3. SÓ AS GORDAS:
Em primeiro lugar, precisávamos de mais um parceiro para a peça. Foi
um processo muito difícil. Tentamos vários e excelentes atores. Alguns
não entendiam o texto. Outros consideravam-no “muito forte”. Alguns
confessavam que, simplesmente, não queriam expor suas imagens num
trabalho dessa natureza. Alguns não conseguiam ler e compreender o
trabalho.
Com confiança, Gui e eu continuamos procurando. Então, lembrei de
meu parceiro de longa data, Adilson Magno, o Dill Magno. Trabalhamos
juntos desde 1992, no teatro amador, em Vila São José, periferia de São
Paulo. Dill é uma pessoa deliciosa, uma alma terna e um parceiro
profundo e fiel. Por outro lado, há cerca de quatro anos vinha recusando
convites meus para voltar aos palcos, por razões de ordem econômica e
de organização pessoal. Por exemplo: embora seja excelente ator, até
aquela altura não conseguira um DRT, registro profissional para trabalhar
sossegado. Sendo assim, trabalhava preferencialmente como vendedor em
São Paulo.
Abusado, mais uma vez convidei o Dill para o palco. Ele veio, leu,
gostou, ponderou sobre seu momento e topou participar. Fiquei muito
feliz em poder contar novamente com o grande amigo, com o ator
generoso.
Tínhamos, então, uma agenda apertada. Da segunda quinzena de janeiro à
segunda quinzena de março, com cerca de dois ensaios semanais em
minha casa, para montar o trabalho e apresentá-lo em Curitiba.
230
Começamos por destrinchar o texto. Tratei com rigor não só os conteúdos
mas, principalmente, a forma. Busquei assim a compreensão dos ritmos
da peça e de seus jogos lingüísticos. Com especial atenção ao silêncio, lar
do subtexto, espaço para um discurso paradoxal, onde corpo e palavra se
dilaceram.
Bolamos um roteiro de ações, uma base inspirada nos elementos da
Análise Ativa de Stanislavski, com os quais gosto de começar a abordar
o texto, fornecendo rapidamente aos atores uma base para improvisações.
A partir da análise conjunta da dramaturgia, elaboramos o seguinte
esquema de trabalho:
S) Roteiro de ações:
1. A consulta da gorda
2. Sopa!
3. A gente não vai brigar
4. A consulta entre amigos
5. O juramento: O que é real?
6. Eu também tinha espelhos. Leve.
7. O amor não é real.
8. As crianças e os gregos.
9. Acontece
10. Os vídeos
11. Meu Deus, crianças. (Longa confissão)
12. Pá, pá, pá. (A nossa profissão)
13. O que é real? A caverna
14. A morte é real.
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15. Você já viu milagres?
16. Um rotweiller roía meu joelho. Culpa. Suicídio.
17. A gente se respeita. Cocô, sonho, bolacha.
18. Você vai sair? Abdominais.
19. Você toma bomba? Insônia, ronco.
20. Cacos do outro.
21. Habeas corpus/ corpo aberto
22. Minha mãe
23. O pecado
24. Comunhão dos pecados
25. Também tenho outros sonhos. Rotweiller, religião/fé, amor, doce
sonho, morte/odete.
26. Posso te dar um abraço?
27. A morte pede licença.
28. Como é que você me deixa assim?
29. GORDA.
Cada nome de “trecho” ou “cena” vem da análise de um momento da
peça e a ela remete, como chave que abre janelinhas na memória do ator.
Após um breve estudo, os atores decoram o esquema, conhecendo sua
ordem de frente para trás e de trás para frente, entendendo suas
articulações e aptos a improvisar com objetividade.
Em paralelo, começamos a realizar laboratórios buscando uma
corporeidade para os personagens. A dimensão perversa das figuras
apareceu muito rapidamente. Em nossas improvisações, a vontade de
machucar, abusar, dilacerar e destruir o outro em cena vinha com muita
força. Nos lançamos com tranquilidade nas cenas e, em seguida,
analisamos a produção.
232
Descobrimos logo o corpo do personagem Um, feito pelo Guilherme.
Uma coisa pesada, meio Marlon Brando como Coronel Kurtz, em
Apocalipse Now, meio elefante do filme Fantasia de Walt Disney.
Já o Outro tinha algo de Carlitos, de comediante de filme mudo. O jogo
entre os dois lembrava um desenho animado do Pica Pau num delírio de
Beckett, ou vice-versa.
A voz do personagem Um também recebeu nossa atenção. Optamos pelo
jogo entre graves profundos para o médico assassino e um falar infantil
débil, uma coisa entre a menininha assustada que pede para fazer xixi
para uma professora sádica numa escolinha infantil e o personagem
PiuPiu, dos desenhos da turma do Pernalonga. Era fundamental que as
passagens de uma voz para a outra fossem realizadas com total
“naturalidade”.
Nem é preciso dizer que o personagem resultou completamente insano.
Mas, ao mesmo tempo, de uma tristeza comovente. Algoz e vítima
reunidos em uma só figura. Enquanto isso, Dill, realizando o personagem
Outro, funcionava muitas vezes como um “escada” maravilhoso, Dedé
brilhante que, pouco a pouco, encontrava também o drama de seu
personagem que, literalmente, fenece em cena.
O texto do outro tinha momentos muito difíceis, que incorporavam
trechos de workshops que eu havia realizado nas aulas do Renato, e que
resultavam surrrealistas ou incompreensíveis. Pedi que o Dill “limpasse”
um trecho desses do texto, que acabou com corte de uma página e ficou
mais enxuto.
233
À medida que o trabalho avançava, começamos a reunir novos parceiros.
Guilherme Freitas, também nosso produtor, encaminhou as coisas e
chamou Rita Martins para a criação de figurinos e cenografia, além de
Lívio Tragtenberg para a Trilha Sonora. Minha esposa, Rita Peres, fez
as fotos que tanto agradaram as platéias e os jornais do Brasil e de
Portugal
O trabalho com Rita Martins, nossa cenógrafa e figurinista, foi intenso e
muito criativo. Rita entendeu perfeitamente o espírito de nosso trabalho.
Criou figurinos a partir de pijamas, transformando calça e camisa em uma
peça só, roupa que, por um lado, parecia macacão de crianças na hora de
ir dormir, com estampas do Mickey e de ursinhos, por outro pareciam o
uniformes de presidiários. Costuradas às roupas, correntes conferiam
peso e um ar sado-mazô às figuras.
Além disso, Rita bolou um belo estratagema: criou bancos semelhantes a
bancos de ordenha, pequenos assentos de madeira com apenas um apoio
de ferro, uma espécie de cano. Por meio de correias, esses bancos eram
presos aos “uniformes”. Assim, caso quisessem se sentar, os personagens
na verdade precisariam se equilibrar sobre os bancos – um equilíbro
frágil, precário, tenso.
Na cenografia, Rita definiu a área de ação colocando 4 grossas correntes
presas ao teto e descendo verticalmente, gerando uma cela de cerca de 4m
X 4m. No centro da área, o estrado de uma caminha de montar para
solteiro, uma espécie de maca com molas. Pendendo do teto, ainda, um
móbile com aviõezinhos, como num quarto de criança. Debaixo da cama,
234
um penico de plástico, também infantil, mais uma série de bichos e
soldadinhos de plástico e duas pilhas de jornais.
Ao personagem Um coube o uso constante do Banco (que também
lembrava um falo invertido), assim como ao Outro coube a cama como
ambiente de partida. Optamos também por uma movimentação reduzida
pelo espaço. Um praticamente não se levantaria, assim como Outro
praticamente não sairia da cama.
Nosso espaço de ação virou um combinado de cela especial para pessoas
com diploma de nível superior, como pede a rubrica do texto, e uma cela
para serial killers de um filme como O Silêncio dos Inocentes; uma cela
para criminosos loucos do Asilo Arkham, para onde o Batman envia
seus inimigos, e uma caverna platônica; tudo com um quê de purgatório
ou limbo. Um lugar que instaura uma eternidade, um charco de tempo;
um lugar onde o tempo é água parada, onde as referência se perdem numa
lenta espera de um julgamento, uma sentença ou a morte.
Além de colaborar na concepção num espaço de jogo tão interessante,
Rita, com sua imensa criatividade e total envolvimento, trouxe outros
inputs fundamentais. Em especial, Rita trouxe um material muito
interessante sobre perversão e abuso, no livro Assédio Moral
1
, de Marie-
France Hirigoyen. Passamos, então, a estudar os perversos, assim como
os torturadores, os aditos e os compulsivos. Todos paradigmas de traços
muito fortes de nossos dois personagens e das fantasias ou vivências reais
da vida contemporânea. Precisávamos, no entanto, de algumas distinções.
1
Marie-France Hirigoyen, Assédio Moral, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro 2003.
235
6.4. PERVERSOS:
Compreendemos, então, que os perversos narcisistas são psicóticos sem
sintomas, que conseguem equilíbrio ao descarregar em um outro a dor
que não sentem e as contradições internas que não querem perceber.
Fazem o mal porque não sabem agir de outro modo para existir. Em
geral, foram feridos em sua infância e tentam se manter vivos. Figuras
assim procuram relações sádicas, onde buscam extinguir a libido do
outro, extinguir todo desejo, toda a vida, via dominação.
Em situações de crise, todos usamos mecanismos perversos e
manipulatórios como defesa. O que nos separa dos perversos é que, além
dos sentimentos e ações serem ocasionais, em geral são seguidos de
arrependimento. Nós, neuróticos, trabalhamos nossa unidade pelos
conflitos internos. O perverso tem uma estratégia de uso e destruição do
outro, sem culpas.
Narcisistas, parasitas, sangue-sugas, megalômanos, vampiros… Nossos
personagens têm técnicas específicas, uma manipulação verbal que
enreda e controla, criando a ilusão de comunicação, não elaborada para
estabelecer laços, mas para impedir qualquer troca e usar o outro,
levando-o à impotência. A violência é sutil, oculta, não-verbal, transpira
em cada vão de palavra.
O perverso nega a comunicação direta, deforma a linguagem, mente,
zomba, despreza, cria paradoxos, desqualifica, divide para dominar, se
impõe, desacredita, induz ao erro, abusa, seduz, enreda em cada inflexão,
num incontrolável processo destrutivo.
236
Esse tipo de processo pode levar-nos à conclusão de que o agressor tem
cumplicidade com sua vítima. Ledo engano. Na verdade, as vítimas
também têm um perfil comum, em geral são pessoas deprimidas, que se
sentem culpadas e aterrorizadas, seja em casa, na vida afetiva ou nas
empresas.
Nesses estudos, também procuramos compreender um pouco da mente do
torturador. O objetivo dos torturadores é exterminar a dignidade de suas
vítimas, por ações físicas e psicológicas. Em determinadas situações,
todos podemos nos tornar torturadores.
Exemplo clássico disso foi o simulacro de cadeia criado em 1971 na
Universidade de Stanford. A pesquisa visava estudar o papel da prisão
na perda da identidade individual. Nessa cadeia simulada, prisioneiros e
guardas foram selecionados entre estudantes voluntários que, a partir de
testes psicológicos, foram considerados com características de
normalidade. A experiência devia durar duas semanas. Foi encerrada em
seis dias. Nesse pouco tempo, os prisioneiros adquiriram graves sinais de
depressão. E os guardas tornaram-se pessoas brutais.
Nos estudos sobre adição, compreendemos que o adito repete
comportamentos que supõem previsíveis, em contraposição à incerteza
das relações movidas pelo desejo ou existenciais que atuam em nossos
relacionamentos. Essa ação cria dependências de toda sorte.
Também procuramos compreender a compulsão (TOC). No transtorno
obsessivo-compulsivo há a repetição involuntária de pensamentos, idéias,
impulsos, imagens. O obsessivo tem atos estereotipados que tentam
237
diminuir sua tensão interior. Na verdade, o obsessivo alimenta assim
terrível dor interior.
Assim, pudemos sofisticar nossas estratégias de criação de personagem
em As Gordas. Afinal, nossos personagens, Um e Outro, são
indubitavelmente um misto de perversos abusivos, torturadores viciados e
compulsivos. Além de médicos e monstros, parecem duas crianças
feridas.
Por outro lado parecem figuras que alternam padrões de relacionamento.
Às vezes, parecem irmãos. Outras, pai e filho. De vez em quando,
analista e analisando. Ou amantes. Agressor e vítima. Avestruzes.
6.5. O QUE É REAL?
Os personagens são perversos narcisistas, com laivos sadomasoquistas e
compulsivos. Tem momentos de “simetria”, mas buscam sempre
“dominação”. Enredam-se numa conversa de vampiros. Em alguns
momentos são pares, iguais, irmãos. Mas, a partir de um determinado
momento, Um começa a se impor e acaba dominando e destruindo o
Outro.
O outro vive em estados oníricos, fantasiosos, que traduzem conteúdos
internos. Desejos e medos em metáforas. Linguagem altamente
comprimida, com alusões à Divina Comédia, à culpa e à redenção. Tem
uma vivência mística e ritualística. E embarca num lento ritual de morte.
238
Já a Gorda, essa figura que brota no texto, sem rubrica ou indicação,
apenas pelo uso do itálico no texto, pode ser uma entidade, um espírito,
uma divisão psíquica, uma lembrança obsessiva, uma fantasia. É
importante que ela apareça assim na cena, imprevista e indefinida,
causando estranhamento.
A essa altura do processo, ficava claro que, embora pudésssemos
compreender padrões de comportamento dos personagens, não nos cabia
julgá-los. Mesmo porque tínhamos a certeza de que, a partir dessas
características, ambos conseguiam, próximo ao fim da peça, um momento
de terno encontro entre dois solitários, momento de solidariedade e afeto,
momento de reconhecimento, estranha e efêmera redenção, seguida de
mergulho final na morte e na solidão.
Criamos para tal uma missão, ou superobjetivo: encenar a dignidade dos
indignos. Tomamos como mote uma questão recorrente que volta e meia
aparece nas bocas dos personagens: “O que é real?”. Pretendemos então,
realizar um questionamento ético e afetivo, organizado em um esquema
de encenação a ser navegado pelos performers:
Esquema
1. Um começa a enredar outro(uma nova Gorda em sua vida)
2. Enredamento mútuo
3. Prazer no jogo
4. Um começa a dominar outro.
5. Momento de encontro e desnudamento entre os dois.
6. Outro embarca na viagem da morte.
7. Um fica só.
239
Desse esquema, elaboramos um ritmo para a cena. A peça começa lenta.
Muito silêncio. Pouco movimento. À medida que a intimidade entre os
personagens cresce, eles ficam mais lépidos, faceiros, brincalhões e
falastrões. Inclusive com a platéia. Momentos de dúvida, perigo, medo e
de desejo secretos pedem paradas e silêncios. Novas brincadeiras, com
bolachas e exercícios físicos. Então, ocorre arrancada final para a morte
do Outro, num crescendo. Loucura do Outro, morte melodramática.
Silêncio. Um joga o problema para a platéia. Fim.
Ficou evidente a necessidade de domínio do texto, com precisão,
principalmente para abordar a perversidade dos personagens, que
dominam via linguagem. Procuramos, no entanto, criar um discurso
paradoxal, onde palavras e corpos apontassem para direções divergentes.
Ao verbo afiado e navalhante, unimos corpos infantis. Para Um, a idéia
da criança que aprende a andar; a semelhança ao Curly, dos Três
Patetas, com súbitos acessos de fúria. Para o Outro, um misto de Iogue e
moribundo, de criança dormindo e Didi. Já a Gorda lembraria uma gueixa
mirim tímida.
240
6. 6. A TRILHA:
Nesse momento, foi fundamental a colaboração de Lívo Tragtenberg no
design do som. Lívio, um verdadeiro professor Pardal dos sons, criou
algumas intervenções mágicas para a cena. Blocos de tempo recheados de
sons industriais e eletrônicos, ruídos e chiados que vibram cada molécula
dos atores ou da platéia. Além disso, bolou uma espécie de narrativa
sonora trash: cerca de um minuto e meio de sons que, na minha mente, ou
na de alguém que tenha lido ou assistido a peça, podem muito bem
simular a história do assassino que sai de uma casa, de noite, em local
ermo, talvez rural, com barulhos de noite e até vacas, para se livrar do
corpo de quem acabou de aniquilar. Ele dá uma gargalhada digna do vilão
Coringa, das histórias em quadrinhos, joga o corpo em uma velha piscina
ou poço e volta para seus afazeres malignos. Tudo isso mesclado com
sons aleatórios que parecem gravados do Cartoon Network. Uma
viagem!
Peguei todo o material e aspergi sobre a peça. Junto com os atores,
escolhi momentos em que os nacos de tempo e som do Lívio poderiam
causar belos estranhamentos e, para a tal “narrativa sonora”, bolei uma
estratégia especial: ela iniciaria a peça.
Em primeiro lugar, apagaríamos todas as luzes do lugar onde
realizássemos a peça. Aí, no escuro total, entraria o minuto e meio de
sons. Assim, poderíamos “zerar” o espectador chegando da rua e colocá-
lo em um plano de pura imaginação. Como o espectador ainda não
conhecia a peça, poderia imaginar muitas coisas a partir dos sons
241
bizarros. No fim do trecho, que nesse contexto se tornaria curiosamente
longo, frustrando os mais apressadinhos, que esperam após o terceiro
sinal o máximo de ação em cena, alguns sininhos doces acompanhariam a
chegada branda da luz, banhando os personagens na cela.
Foi o que fizemos. O espetáculo, efetivamente, começava assim.
Como se não bastasse, por sugestão do Guilherme, resolvemos compor,
Lívio e eu, uma canção: a Canção da Gorda. Uma musiquinha trash para
colocar no trecho em que, justamente, havíamos realizado um corte no
texto.
O modo como compusemos a canção é engraçado. Num fim de semana,
eu viajaria para Dois Córregos, terra de minha esposa. No início da outra
semana, Lívio viajaria para o exterior. Precisávamos ser rápidos e
trabalhar à distância.
Fiquei de fazer a letra entre o sábado e o domingo, prometendo enviá-la
por e-mail. Lívio em seguida bolaria a melodia. Combinamos realizar
alguma coisa bem radical – Lívio se propôs a fazer uma coisa “bem
Mamonas Assassinas”…
Na estrada, guiando, fui pensando na letra da canção. Pouco a pouco,
peguei uma levada e a letra foi brotando. Em pouco tempo, precisei parar
o carro no acostamento para anotar a letra e não esquecê-la. Pensei numa
coisa meio cabaré, licenciosa, picaresca, numa linguagem que alternasse
tons cultos e as maiores baixezas… Algo que, em cena, pudesse
acontecer naturalmente, surgisse de uma levada, um assobio, um lá-lá-
lá…
242
Canção da gorda
Dizem que a mulher gorda
de todas é a mais fogosa
(capaz que, numa gulosa,
te lamba, engula e morda).
Dizem que a mulher obesa
vive com a xoxota acesa,
abre as pernas com certeza -
o cuzinho é a sobremesa.
No vão das pernas roliças
Soca dois milhões de piças
e nos peitos suculentos
nina reis e lazarentos.
Só as gordas são felizes
Só as gordas são felizes
Dizem que a mulher fofinha,
mais do que a mulher enxuta,
do que a madre, do que a puta,
está sempre molhadinha.
Não se avexe, enfie a fuça -
pança, bunda, umbigo, buça.
(Estás certo quando dizes:
Só as gordas são felizes!)
Estás certo quando gritas:
só as gordas são bonitas!
Jante a gorda com jeitinho,
do filé ao torresminho.
Só as gordas são felizes
Só as gordas são felizes
Para o pincel de um artista,
mais do que qualquer conquista,
o paraíso se avista
na musa renascentista.
Cada curva generosa
gera obra poderosa.
As magras não dão pro cheiro –
nem punheta no banheiro.
243
Gordas, largas, deliciosas -
fodo seus buquês de rosas.
Magas ou meras atrizes,
Só as gordas são felizes.
Só as gordas são felizes
Só as gordas são felizes
Tínhamos até um refrãozinho para nossa ode! Chegando em Dois
Córregos, enviei a maravilha para o Lívio. Logo no início da semana, eu
recebia o CD, cantado magistralmente pelo próprio Lívio, com a Canção
da Gorda. Sucesso imediato entre a equipe de trabalho – reação que se
repetiria por todas as nossas apresentações e temporadas, com gente
querendo a letra da canção ou, melhor, saindo do teatro com aquela
sofisticada melodia de dois acordes grudada como chiclete na cabeça!
Do ponto de vista dramático, a música ofereceu novas alamedas para
nosso trabalho. Virou o momento-chave da história, marcando a hora em
que, no auge de suas misérias, os personagens vivem breve momento de
encontro, parceria, irmandade, realizando para a platéia um número de
revista, um pequeno show de cabaré ou, na minha fantasia, uma pequena
epifania pornô em homenagem às grandes duplas do teatro e do cinema,
em especial o Gordo e o Magro (como, aliás, indicavam os tipos dos
nossos dois atores: Guilherme, grande, gordo, careca – um Curly
tupiniquim – e Dill, pequeno, magro e ágil como um Didi) e, minha
grande paixão, Grande Otelo e Oscarito.
Na cena, após uma série de confissões de ambos os personagens, o Outro,
de modo enviesado, confessa desejar a chegada da Morte. Após um
silêncio constrangedor, Um propõe que eles se abracem. Depois desse
abraço que, cenicamente, redime os personagens, o Outro cai numa
244
terrível prostração. Para animá-lo, Um começa a assobiar e cantarolar a
canção, como se a estivesse inventando naquele momento. A ação anima
o Outro, que entra aos poucos na brincadeira, contribuindo com alguns
versos. Os dois se envolvem, o ritmo se instensifica, daqui a pouco os
dois estão berrando seus versos na cela, dançando e cantando como Gene
Kellys de quinta categoria. No auge da cantoria, Outro tem um ataque
cardíaco e morre, deixando Um cantando sozinho. Uma morte estranha,
que Um compreende aos poucos, em cena, caminhando para o final da
peça, um funeral pra lá de macabro em que Um vela o corpo do Outro.
Nesse momento, resolvi colocar o CD de trabalho que recebera do Lívio,
em que o meu parceiro canta, acompanhado por pianinho, a canção. Aos
poucos, a luz ia caindo, até a total escuridão. Fim.
Numa peça que, a todo momento, pergunta o que é real, e para
personagens que só conseguem enxergar a morte como solução, um final
adequadamente abjeto.
O abjeto, como manifestação do que há de mais primitivo na nossa
economia psíquica, origina-se para ela de um recalque originário, anterior ao
surgimento do eu: o abjeto não é o objeto, é uma espécie de primeiro não-eu,
uma negação violenta que instaura o eu: trata-se, em suma, de uma ‘fronteira’
(kristeva, 1980; 17). O abjeto é a manisfestação dessa violenta Urspaltung
(protocisão); é um não-sentido que nos oprime – assim como o sublime é um
sobre-sentido que nos escapa. Diferentemente do sublime, a manifestação
privilegiada do abjeto é o cadáver: ele ‘é a poluição fundamental; um copro
sem alma’ (Kristeva 1980; 127), corpo-matéria; ele nos envia novamente a
essa protomorte de onde o eu começou a se desenvolver; ele nos atira de volta
ao campo caótico e pré-simbólico da Natureza. A abjeção, não obstante,
assim como o sublime também está intimamente ligada à falta: ela revela a
falta como fundadora do ser; e, ainda, tal como o sublime, ela nos
amedronta.”
2
Essa falta que nos amedronta, que nos lança e abandona no caos, enfim
encenada!
2
Márcio Seligmann – Silva, O Local da Diferença, Editora 34, São Paulo, 2006, p. 39-40.
245
Com essa base de trabalho, fizemos nossa estréia no Fringe do Festival de
Curitiba.
6.7. FRINGE:
Um espetáculo simples. Direto. Popular. Uma estética trash, inspirada
nos quadrinhos, desenhos animadas e filmes de terror. Com muito
trabalho em sua composição, mas uma resultante estranha e poderosa.
Podemos dizer que demos sorte. Embora nunca tivéssemos a intenção de
realizar um espetáculo hermético, mas sim uma comédia negra palatável
a um grande público, fomos muito beneficiados nesse objetivo pelo nome
da peça, que passou a atrair uma imensa platéia, público de teatro que
vinha em busca da comédia de costumes, numa pista falsa que o título,
mesmo sem o desejar, oferece. A peça, de saída, foi um sucesso. Platéias
cheias e participantes.
Em Curitiba, parte do público pertencia à própria classe e à crítica, muitos
incluse já conhecendo o teor do meu trabalho, portanto a mistura, a geléia
geral não causou tanta surpresa para eles. Mas o público, digamos,
comum, foi a grata surpresa: após o estranhamento inicial do minuto e
meio de trilha no escuro; após as surpresas da linguagem e da
movimentação dos atores; após entrar em contato com os silêncios e os
imensos espaços vazios que eles precisavam preencher… A grande
246
maioria resolveu entrar na dança, estimular os atores, mergulhar nas
idéias da peça, se emocionar e também se divertir.
A peça acabou como um dos destaques do Fringe, saudada pela crítica de
São Paulo tanto pelo desempenho dos atores como pela dramaturgia.
Em Curitiba, passamos por uma situação importante também nos
bastidores, vivendo crise que traria importantes ecos no futuro de nossa
obra e uma intensa reflexão sobre nosso modo de trabalho.
Estávamos, claro, confiantes. Guilherme e eu, também produtores do
espetáculo, botávamos todas as nossas fichas na peça. O Guilherme, na
minha opinião, estava não só muito bem no papel, assim como o Dill,
como dava um importante passo em sua pesquisa de ator, efetuando
importante limpeza em suas ações e comportamento cênico, executando
complexa partitura física e emocional.
Pois bem. Segundo dia em Curitiba. Vários críticos na platéia. A peça
começa. Guilherme tem um branco espetacular. Perde o texto e o
rebolado. Até aí, tudo bem. Num momento como esse, nosso roteiro de
ações garante ao menos um estado cênico para os performers, sem falar
que oferece fios para que os atores se agarrem. Além do mais, num
trabalho como esse, sempre enfatizamos a questão da parceria, fora e,
principalmente, dentro da cena. Era hora de Gui e Dill se oferecerem com
paixão um ao outro.
Em pânico, nada disso passou pela mente de Gui, que se retraiu.
Conforme revelado em conversa posterior, Dill se sentiu terrivelmente só.
Pior, a cada momento, parecia que Guilherme se afundava ainda mais.
247
É engraçado o que passa pela cabeça da gente nessa hora…
Eu estava na cabine operando luz e som. Conhecendo bem o Guilherme,
toda sua luta “na” e “pela” profissão, eu sintonizava naquela hora alguns
de seus medos mais profundos. Frustrações. Rancores. A grande
dificuldade de encarar não só o fracasso mas, principalmente, o sucesso,
sabendo que ambos são efêmeros - e conseguindo abrir mão de ambos.
Passamos por aqueles famosos segundos que parecem uma eternidade.
Pouco a pouco, Dill procurou o Guilherme e ele foi reagindo. Finalmente,
voltou ao jogo. A peça seguiu. Guilherme ainda cairia em alguns
barrancos, mas conseguimos chegar ao final.
A platéia, sem perceber nada, adorou. Até hoje não sei se o que nos
garantiu foi nosso trabalho exaustivo ou o fato daquela dramaturgia
abordar justamente o constragimento, os silêncios carregados de medo e
raiva dos seres que estão presos em sua solidão… Nem se a estranheza do
todo podia comportar muito bem mais algumas coisas estranhas…
Avaliações à parte, o fato é que terminamos aquela sessão no maior
estresse. Eu, que normalmente não sou o diretor chato que exige total
precisão, chateadíssimo com a possível oportunidade perdida de aparecer
bem para a crítica e alavancar o espetáculo. O Guilherme, triste pela
responsabilidade do fato. O Dill, apavorado por se sentir abandonado em
cena.
Entrei no camarim, ouvi algumas desculpas e, fato raro, dei uma
tremenda bronca no Guilherme. Mas tremenda mesmo. Joguei pesado.
248
Falei do quanto ele estava investindo em si mesmo e no modo pueril
como ele podia jogar tudo aquilo no lixo, se sabotando. Claro, falei tudo
isso em termos bem mais fortes!
Não que aquilo me aliviasse ou resolvesse a questão, mas foi um
apontamento importante para o qual precisaríamos algumas vezes, por
outros caminhos, retornar. No dia seguinte, nem é preciso dizer, tudo
correu muito bem, obrigado.
Aguardamos a críticas que, como já dito, foram boas. A jornalista do
Estado de São Paulo, no entanto, apontou que o espetáculo ainda merecia
acabamento. Com toda a razão.
249
6.8. A PRIMEIRA TEMPORADA.
De volta a São Paulo, recebemos convite para temporada no SESC
Ipiranga, onde nos apresentamos entre maio e julho, em sessões às
quartas-feiras. Para essa jornada, preparamos uma boa estratégia de
produção e divulgação, como sempre comandada pelo Guilherme e
comigo no apoio.
Tivemos grande apoio de rádio e TV. Cheguei a fazer o programa do
Ronnie Von, onde precisei responder a intrigantes questões sobre o
porquê das mulheres terem manias por caixinhas! Por outro lado, outro
programa de tv foi nos “desconvidando” aos poucos. Em primeiro lugar,
marcou pauta para uma quinta-feira. Na segunda, ligou para confirmar.
Na terça, ligou para rever nosso release, perguntado sobre o quê mesmo
era a peça. Na quarta, desmarcou o compromisso, alegando que a
apresentadora queria ver dois homens em vestidos de bolinhas,
mostrando que, sim, realmente, as gordas podem ser felizes…
O título da nossa peça realmente causou todo tipo de polêmica. Sem que
nos déssemos conta, entrávamos em uma mídia conservadora, veículo da
sociedade do espetáculo, com um vírus letal. Coisa pra dadaísta nenhum
botar defeito.
Voltando à preparação para o SESC Ipiranga. Precisávamos trazer a
peça para um grande palco italianado. O teatro tem cerca de 240 lugares,
com platéia com cerca de 20 m de profundidade, com balcões superiores.
O palco tem cerca de 12 m de boca, 8m de profundidade, com 1 metro de
250
altura em relação à platéia. Optamos por uma cena levemente deslocada
para a esquerda dos espectadores, a 1,5 m da boca de cena. Penduramos
nossas correntes, colocamos nossos objetos e tratamos de “calibrar”
emoções e gestos para toda a galera. Lívio Tragtenberg preparou alguns
truques para a trilha, situando os alto-falantes em locais estratégicos, nos
fundos do palco, criando a sensação de que os sons vinham de lugares
distantes.
Nessa hora, chamamos o grande Wagner Freire para compor nossa luz.
Ele assistiu ao trabalho e estranhou. Confessou incômodo pelo tema e
pelo tom. De saída, não gostou da coisa, não aceitou o humor. Aos
poucos, foi mergulhando no universo e se encantou com o trabalho.
Como orientação, só pedi simplicidade. Estamos numa cena única,
corrida, tempo contínuo, numa cela em que imaginamos uma pequena
“janela” à direita do espectador – e muito alta. Wagner criou uma luz
sutil, com alguns recortes e zonas de escuridão. A cena começaria no
escuro, focos sobre os atores subiriam bem lentamente, lambendo a cena
a partir do fim da primeira faixa da trilha sonora. Em 6 minutos,
entrariam também um foco central e uma geral que reforçaria o “cubo” da
cela. A partir daí – e durante quase a peça toda – manteríamos a geral,
sem alterações. Ao final, a operação se repetiria em sentido inverso,
embora na metada do tempo. Quando o personagem Um senta-se para
velar o cadáver do outro, tem apenas um foco lateral sutil a lamber-lhe o
corpo, mais resíduos de um pino. A luz morre com o fim da gravação da
Canção da Gorda. Fim. Ficou simples e bonito.
251
A equipe técnica do SESC, seus gerentes e pessoal do apoio que
assistiam a trechos dos ensaios ficavam entre chocados e curiosos,
temiam um fracasso total ou uma incompreensão absoluta.
O projeto de teatro às quartas-feiras do SESC Ipiranga já acontecia há
coisa de um ano, com razoável sucesso. Nos outros dias da semana, o
espaço estava mais acostumado a receber shows musicais, esses, sim,
muito concorridos. Os ingressos eram gratuitos. Portanto, o grosso dos
espectadores era formado por frequentadores da unidade, gente da região
ou da zona sul em geral, que eram tocados pela mídia do SESC, em
especial mulheres da terceira idade. A brincadeira era a seguinte: elas
deixavam os maridos em paz vendo jogo na TV e vinham assistir ao seu
teatro.
É natural que tivéssemos algum preconceito quanto à recepção para as
Gordas. Mas o que nos aguardava era um “incidente interno”, um dia
antes da estréia. Nessa fatídica véspera, no meio da tarde, preparávamos
nosso circo. Rita Martins, figurinista e cenógrafa, erguia o cenário. Aí
chegou o Marcos Suchara, meu parceiro de tantos espetáculos. Veio
para ajudar. Teve empatia imediata com a Rita e passou a ajudá-la nessa
montagem. No palco, portanto, estavam os dois, mais Guilherme e Dill.
Os técnicos eventualmente passavam por ali. Eu zanzava entre cabine e
palco.
Marcos começou a dar palpites para marcas e jogos dos atores. O ar
começou a ficar grosso e tenso. Mas ninguém comentou nada. Engraçado
que aqui minha memória fica um pouco confusa. O fato é que depois,
acho que de noite, depois do ensaio, recebo telefonema do Guilherme,
muito firme, exigindo que o Marcos não se “metesse” mais no trabalho.
252
Que ele estava muito bravo com sua participação e pretendia deixar o
trabalho ali mesmo, na boca da estréia.
Discutimos por telefone. Embora compreendesse a delicadeza do
momento, destaquei que Marcos não pretendera “se meter” ou “diminuir”
o nosso trabalho. Reconheci, por outro lado, o direito do Guilherme não
querer intervenções externas. Ele alegou, com razão, que até aquela hora
jamais o Marcão, embora do nosso núcleo de “colaboradores”, tinha
palpitado ou sequer participado dos processos. Retruquei, por outro lado,
que não era hora para pensar em abandonar o barco. Prometi pedir ao
Marcão para se afastar.
Marcão reconheceu que, na ânsia de ajudar, podia ter exagerado. Que
também não gostaria de palpites de véspera. Pediu desculpas e se
comprometeu a ligar para o Guilherme, pedindo desculpas. Foi o que fez.
E eu achei que tudo estava resolvido.
A estréia foi excelente. Platéia lotada, dando um “cheirinho” do que viria
a ser nossa temporada (um grande sucesso, com casas lotadas). Estranhei
que Rita Martins não compareceu. Marcos também não veio.
Saímos para jantar, tudo correu bem, todos elogiaram. Mas é incrível o
que rios subterrâneos podem trazer para a nosssa praia! Entre quinta e
sexta estranho o silêncio do Guilherme. Na sexta, converso com o
Guilherme e ele despeja lodo na minha porta. Reclama de tudo. Diz que a
estréia tinha sido horrorosa, que eu o estava prejudicando em cena, me
eximindo de dirigir o espetáculo e privilegiando seu parceiro de cena. Fez
uma série de críticas terríveis a tudo. Enfim, descascou o abacaxi, disse
253
que ia sair da peça, etc. Um telefonema difícil. Eu estava no trabalho,
ligando de um telefone na sala dos professores. Enfim, muito triste.
Depois, de casa, liguei para o Dill. Comentei com ele a iminência da
gente perder o parceiro querido. Ele fez um silêncio. Depois disse que,
um dia depois da estréia, a esposa do Guilherme ligara para ele, fizera
graves críticas a sua (do Dill) atuação, dizendo que o modo como eu
dirigira a peça claramente o prejudicara. Nem é preciso comentar que o
Dill não não deu consideração aos argumentos – já trabalhávamos juntos
há mais de dez anos e conhecíamos muito bem os defeitos um do outro.
Prejudicar um companheiro de palco, ainda por cima intencionalmente,
não fazia parte da longa lista.
Nesse meio tempo, conversando com Rita Martins para saber por que
ela não aparecera, descobri que a esposa do Guilherme, muito sua amiga,
também tinha feito uma série de comentários que, no fim, tinham deixado
a Rita muito triste e desgostosa com o trabalho, a ponto de não desejar
mais assistí-lo.
Uma pedreira para resolver. Em nosso próximo ensaio para a segunda
sessão, mais calmo, não só coloquei todas essas cartas na mesa como não
cobrei nada a partir delas. Apenas disse que considerava os
acontecimentos como uma “surtada” de estréia, onde ansiedade, medo,
estresse, ciúmes, invejas, expectativas se misturam. Pedi, além da
evidentes diferenças entre nós, que fizéssemos um pacto de cumprimento
dos nossos compromissos. A temporada parecia ter grande futuro, logo
fomos escolhidos para participar do Festival Internacional de Rio Preto…
O trabalho começava a frutificar… A gente se deixar abater pelas nossas
dificuldades de convivência não parecia razoável. Além disso, que
254
amigos e família não dessem mais o menor palpite! Mas, se fosse o
caso… Bem, que quem quisesse sair se manifestasse com antecedência e
se comprometesse a preparar um substituto!
Sobre esses princípios e com um clima desagradável, continuamos a
trabalhar. A partir de comentários de amigos e mestres como Cacá
Carvalho, continuamos melhorando nosso espetáculo, valorizando cada
vez mais nossa base: o trabalho dos atores.
Aos poucos, os ânimos serenaram. Pudemos, cada um de nós,
compreender um pouco mais os medos e riscos profissionais em jogo. A
nossa é mesmo uma carreira muito difícil. Emplacar um trabalho é
complicado, depende de inúmeros detalhes, nem todos artísticos. Você
atua, dirige, escreve, produz, divulga e vai aos programas da TV. Você
sobe nas escadas, prepara o palco, confere a bilheteria, batalha cachês,
descola patrocínios ou permutas. Um trabalho insano.
Você cria expectativas. Você fracassa e conhece o sucesso. Você ganha
um dinheiro e pensa que passou para o “andar de cima” – ou seja, que vai
ter mais facilidades ou apoios na próxima empreitada, ou que vai manter
aquele “status” ou aquela renda mensal que pode fazer com que você,
dentro de alguns anos, pense em sair do aluguel.
Muitas expectativas não se concretizam. Você sofre. Você releva. Você
tenta de novo. Você convive muito intensamente com seus pares. Dorme
nos mesmos quartos de hotel. Divide, como os personagens das Gordas,
privadas e bolachas.
255
Você conta caraminguás. Você sonha em ser reconhecido por seus pares,
pela crítica, pelo público. Quem sabe trabalhar na TV. Mas mesmo a
telinha da Globo é efêmera, e eis que de repente você tem a sensação de
voltar casinhas nesse estúpido tabuleiro de Banco Imobiliário ou War.
Você casa. Nem todas as parceiras e parceiros compreendem sua
profissão. Parceiros e parceiras da mesma profissão muitas vezes
compreendem menos ainda. Você passa madrugadas no buteco, na
balada, nos porões, nos ensaios, planejando peças genias. Ruminando o
silêncio da mídia que muitas vezes nem se dá ao trabalho de incluir sua
peça no Guia Semanal, base para que as pessoas saibam que você existe e
está em cartaz, mesmo após você enviar, com a antecedência que a mídia
exige, todo o seu material.
Isso se pensarmos que esses guias não passam de (necessários)
amontoados de peças em ordem alfabética, diferenciadas, quando muito,
pelo fato de fazerem sua estréia, sua reestréia, sua última semana ou
fazerem parte de um evento especial. O que significa que Só as Gordas
pode estar no Guia ao lado de uma peça do Fagundes que comece com a
letra S, mesmo nossos públicos e objetivos sendo quase totalmente
diferentes.
Claro, pode acontecer que um jornalista mais comprometido com o
Teatro programe uma matéria de lançamento da sua peça. Mas todo
cuidado é pouco. Afinal, pode ser que o novo darling da cena pop tenha
uma diarréia que derrube sua matéria e ocupe páginas do diário.
256
Não dá pra negar que tudo isso gera rancor e ressentimento em, digamos,
almas nobres. O que dizer, então, de nossos espíritos não tão evoluídos?
A implosão muitas vezes é a resposta.
Bom, dá pra dizer que conversamos sobre essas coisas naqueles dias. E
seguimos em frente, embora combalidos, Brancaleones paulistas.
Só As Gordas São Felizes falava justamente de tudo isso. E teve
excelente ressonância de público. Muita água ainda iria rolar…
257
6.9. OUTRAS VIAGENS.
Fechamos apresentações em SESCs de todo o estado. Fizemos
apresentações muito concorridas no Festival Internacional de Teatro de
São José do Rio Preto. Lotações esgotadas e platéias divididas. Nos
apresentamos em galpões de SESCs para pequenas platéias que, após a
peça, participavam com prazer de debates, perguntando sobre o título da
peça e suas relações com seu conteúdo e, enfim, outras questões bacanas.
Nos apresentamos em circos para 600 pessoas, em outras unidades do
nunca demais citado SESC, patrono das artes nesse país cuja maravilhosa
cultura perambula entre ruínas.
Nesse meio tempo, fomos convidados para viagem a Portugal. O
dramaturgo e diretor teatral Carlos Alberto Machado, que conheci
através do grande amigo e mestre José Eduardo Vendramini criou
oportunidade para que eu apresentasse algum trabalho meu na Semana
dos Baleeiros, festival de cultura nos Açores. Sugeri levar Licurgo e As
Gordas. Sugestão aceita, lá fomos nós, fazer teatro e tomar vinho com o
Carlos Alberto.
Sobre as apresentações do Licurgo em Portugal já falei no capítulo
anterior. Quanto às gordas, algumas considerações são importantes. A
primeira delas, diz respeito mais uma vez aos bastidores do negócio. À
luz de tudo que foi dito, dos incidentes envolvendo Marcos Suchara, de
Licurgo, e Guilherme Freitas, é evidente que uma viagem para outro
continente envolvendo os dois precisava ser bem elaborada.
258
Felizmente, os dois se entenderam. Pediram desculpas um ao outro.
Reconheceram suas diferenças. Decidiram, portanto, passar dias de boa
convivência. E cumpriram o combinado. Para felicidade minha e do Dill,
que conviveríamos com eles.
Lajes do Pico é um pequeno vilarejo na ilha de Picos, no Arquipélago dos
Açores. Após chegar em Lisboa, você toma outro vôo para o
Arquipélago. Em uma de suas principais ilhas, toma uma barca e chega
em Picos. De lá, de carro, chega na vila de basalto, entre um vulcão e o
mar visitado por golfinhos e baleias.
Nesse ambiente bucólico, turístico, acontece a Semana dos Baleeiros,
típico evento do verão europeu, com direito a música Pop, Cinema, Fado,
clássicos, workshops, procissões e teatro. Nesse ano, fomos nós os
responsáveis pelo teatro adulto do evento. Durante quatro dias,
alternamos apresentações da Gordas e de Licurgo.
Devido a custos de viagem, não levamos o cenário das Gordas. Nada de
correntes e nem de cama. Levamos apenas nossos bancos, brinquedos e
figurinos. Buscaríamos os demais objetos por lá. Claro que na pequena
ilha não tivemos como encontrar a cama exata que gostaríamos de ter.
Então, no melhor espírito Trash, comecei a inventar.
Nos apresentaríamos num pequeno teatro antigo, recém-reformado. Sobre
uma laje, ao lado do edifício, ainda haviam restos da reforma. Pedaços de
andaimes, papelões de todos os tamanhos, arames. Bolei uma espécie de
ringue montado com três pedaços de andaime amarrados com arames.
Pedi para o Dill, o mais habilidoso de nós quatro, elaborar uma cama com
as dezenas de papelões à disposição. Para a luz, a exemplo do que
259
aconteceria com Licurgo, desprezamos as pesadas luzes pares de show
que nos foram oferecidas. Com baldes de plásticos e lâmpadas comuns,
criamos uma luz simples e bela. Fizemos, assim, nosso mais belo e
original cenário.
Tínhamos, então, outras preocupações. A platéia entenderia nossa
linguagem cênica? E o conteúdo da peça? Sem falar em certos termos
brasileiros. Meu irmão, que mora há anos em Portugal, providenciou uma
tradução da peça, mas resolvemos, quando muito, trocar alguns palavrões
por insultos tipicamente portugueses, nada mais.
A recepção foi surpreendente. O núcleo intelectual da ilha, capitaneado
pelo Carlos Alberto Machado e pela prefeita do povoado, ficaram, em
linguagem bem brasileira, chapados. O público, gente de todas idades e
extratos, turistas do evento e moradores da ilha, também adorou. O que
não entenderam em termos de vocabulário (pouco), compreenderam em
termos de movimentação e intensões. As conversas posteriores sobre os
temas da peça também foram muito proveitosas.
Assim, tanto Licurgo quanto As Gordas foram muito bem sucedidas em
Picos. Voltamos embriagados dessa alegria e de vinho da ilha.
De volta ao Brasil, a luta continuou. As Gordas teve ainda agenda
movimentada, fazendo quase todos os SESCs de São Paulo. No fim do
ano, não conseguíamos enxergar novos rumos para ela. Nosso ideal era
uma nova temporada, agora de fim de semana, em teatro central, mas não
conseguimos fechar nada. No horizonte, só um fim de semana em março
em casa de prestígio, o Chevrolet Hall, em Belo Horizonte.
260
Nessa hora, pensei em nova parceria com Licurgo, ocupando agora o
porão do Espaço Viga em janeiro de 2006. O investimento era mínimo, a
época de baixa concorrência, a idéia de reunir meus espetáculos sobre
doutores psicopatas, atraente. Bolei então o projeto Médicos e Monstros,
com apresentações no porão do Viga de sexta a domingo. As Gordas, às
20h. Licurgo, às 21h.
O projeto rendeu uma mídia muito interessante para a equipe, mas do
ponto de vista de público foi um retumbante fracasso. Licurgo continuou
tendo chamadas simpáticas na imprensa, mas As Gordas não funcionou.
Vínhamos de experiências recentes em grandes teatros para mais de 500
pessoas. Adaptar a peça para um cubículo de 3m x 3m, num porão, para
no máximo 20 espectadores, ao contrário do que eu imaginava, foi uma
experiência terrível.
Eu pensava que aquela era uma ocasião para retomar o trabalho,
aprimorar as interpretações, ganhar um intimismo que aquelas mega-
apresentações vinham impossibilitando. Sempre trabalhamos com uma
cena sem quarta parede, com atores alternando grande intimidade com
diálogo direto com a platéia. No caso das Gordas, e com o talento de
comediantes dos dois atores, as grande audiências vinham arregaçando a
cena…
Na minha pretensão, me enganei redondamente. Sem falar que aquele
porão logo se revelaria pequeno demais para conter, mais uma vez, os
egos da nossa trupe.
261
Licurgo já estava bem adaptado ao porão. As Gordas pareciam invadir o
espaço como um King Kong enlouquecido pelas ruas de Nova Iorque.
Até aí, nada que ensaios não resolvessem. Mas nos complicamos.
Tivemos dificuldade para encontrar o melhor canto do espaço para a
peça. Não conseguimos resolver bem a luz. Eu, de minha parte, pensei em
realizar um trabalho com o máximo de despojamento, quem sabe abrindo
mão até dos figurinos e explorando o miolo inflamado da cena. Não
rolou. A estréia foi péssima. Histriônica. Dura. No dia seguinte, artilharia
pesada do Guilherme. Poucos minutos antes do espetáculo, descarregou
caminhão de impropérios sobre mim e sobre o Dill (tivemos o cuidado de
evitar que o Marcos participasse da encrenca). Dessa vez, argumentei
muito pouco. Dill foi mais incisivo. Dissemos, simplesmente, que
gostaríamos de continuar aprofundando nosso trabalho. Pedimos, apenas,
para que Guilherme respeitasse o espaço de trabalho, não perdesse a
cabeça com ninguém, cumprisse suas obrigações e parasse pra pensar na
vida. Em poucos dias, ele resolveu que, após a breve temporada, “daria
um tempo”. Estava cansado. Muito cansado.
A temporada, como negócio, foi terrível. Cancelamos várias sessões por
falta de público. Algumas vezes, realizamos a peça como ensaio mesmo.
Aí, estranhamente, algo ocorreu. Em decorrência de toda essa história e
de todas essas disputas demasiado humanas, dessa montanha-russa de
sucessos e fracassos, a peça ganhou uma estranha força. Dill e Guilherme
encontraram novos apoios para seu jogo. Eu enxuguei um pouco mais o
texto e a encenação, com cortes incisivos. Procurei reforçar esse novo
encontro dos personagens em cena. A cena ganhou concentração,
emotividade, força. No fim do mês, tínhamos nova centelha nas mãos.
Guilherme seguiu para seu descanso, Dill e eu fomos para outros
262
trabalhos e todos prometemos nos reencontrar em Belo Horizonte, para
um fim de semana de apresentações em março.
Em BH fomos muito bem tratados. Belo teatro. Boa mídia (garantida pela
garra do Guilherme, que foi para a cidade cinco dias antes da temporada).
Mas esbarramos num fim de semana inadvertidamente cheio de opções
“estrangeiras”. Paulo Autran, o A Sombra de Quixote de nosso amigo
Cacá Carvalho, show Pop. Tivemos, portanto, platéias muito aquém do
esperado. Mas realizamos grandes sessões. Debates deliciosos, com
contribuições de espectadores que confirmavam nossos ganhos mais
recentes em termos de conteúdo. Fomos até vaiados, um dia, por uma
espectadora que mais parecia a encarnação da nossa Gordinha da peça.
Nunca pensei que uma vaia podia ser tão gostosa.
Assim, com essa vaia na cabeça, merecidíssima como medalha por todas
as atribulações que passamos, pensávamos marcar a despedida de Só As
Gordas São Felizes.
Mas em setembro de 2006, nova série de viagens esperavam nossos
personagens, agora em Santa Catarina. Lajes, Joinville e Florianópolis,
em platéias de até 600 pessoas, aplaudiram as Gordas.
Isso deu alento para, quem sabe, fazermos nova temporada em São Paulo,
em 2007.
Repetir, repetir, repetir. Não é essa a essência do trauma e também a do
Teatro?
263
CAPÍTULO 7: ROMANCE BARATO
264
7.1. SAMBA DE UMA NOTA SÓ:
Um homem. Um banco. Um foco de luz. Uma dor infinita. Um acerto
contas. Isto é Romance Barato, espetáculo que escrevi e dirigi, com o ator
Carlos Rahal, apresentado na Casa das Rosas ( julho a setembro,
novembro e dezembro de 2006, janeiro e fevereiro de 2007).
Em um quarto desse que é um dos últimos casarões remanescentes da
Avenida Paulista, um poeta abandonado rascunha um romance barato. Não
está só. Dialoga com fantasmas e fantasias amorosas. Revela os contornos de
um crime – e de uma trágica história de amor. Versão policialesca da batalha
que travamos para viver em paz com nossas almas. Tudo temperado com
humor negro, numa fala ágil e vertiginosa. Poesia urbana. Drama no Caos.
Romance barato.
A solidão desse homem é uma ilusão: ele conversa com fantasmas e
fantasias amorosas, tenta expiar culpas que acha que tem – e escrever um
romance trágico (chegará um dia a escrevê-lo?). Ele trava a batalha para
apaziguar sua alma na frente do público, que se emociona e ri da situação
patética em que ele se colocou. Onde cada um de nós teima, seguidamente,
em se colcoar.
Romance Barato é fruto de um longo processo de amadurecimento de um
texto aparentemente simples, construído aos poucos, inicialmente como
265
colagem de fragmentos que escrevi, ao longo dos anos, sobre temas e
situações amorosos. Nacos de poesia, monólogos, trechos de peças
abandonadas ou retomadas, anotações de diário… Enfim, material para um
Romance Barato!
Inspirado em “fatos reais” – o fim de um longo e intenso amor – resolvi
buscar humor na coisa toda. Na lida com as palavras, descobri um eixo
narrativo: na beira da morte, numa UTI, onde foi parar após ser apanhado
por uma bala perdida no meio da rua, um homem delira; praticamente
imóvel, ele sonha em escrever um romance barato a partir de sua própria
história de amor pessimamente resolvida; faz anotações mentais, vê e revê
cenas no cineminha da memória: então, como um deus ex-machina, chega a
deliciosa enfermeira do plantão e entrega para o moribundo um bilhetinho:
nele, a confissão: na verdade, a bala que ele considerava um acaso tinha
endereço certo; o homem foi vítima de sua antiga amada, num crime
perfeito…Pronto: agora ele tem o grande mote para, talvez, se conseguir sair
dali, escrever seu romance. Isto é: se tudo não passar de delírio de um sujeito
entupido de drogas!
Tratei então de “esconder” essa história em meio a uma série de episódios,
como pistas lançadas ao léu, que o espectador-detetive pode remontar.
Reviravoltas e um surpreendente final.
Assim, a peça começa com uma simples conversa de buteco, um convite
para um cafezinho, misto de paquera e mendigagem matreira. Aos poucos,
para ouvidos atentos, uma história de amor e de morte é revelada. As
aparentes lacunas podem ser preenchidas pelo espectador.
266
O texto traz uma abordagem contemporânea para dramas que abalam nossos
corações pelo menos desde o romantismo. Amor. Solidão. Decepção. Medo.
Humor negro. Mais uma reflexão sobre a impotência do homem de hoje, de
palavras poderosas e quase absoluta incapacidade de ação – ou de
compreensão de suas possíveis companheiras.
A encenação do trabalho realçou essas características do texto. Tudo se
passa num espaço imaginário, que pode muito bem ser uma estação de
ônibus ou trem; a recepção de um consultório médico; ou mesmo a mente de
um paciente na UTI de um hospital.
Os espaços se sobrepôem. O tempo da cena, corrido, recorta 45 minutos
brutos – mas remete a uma infinidade de tempos subjetivos. Afinal, quanto
dura um amor?
O ator conversa diretamente com o(a) espectador(a), que tem papel
fundamental na estrutura da cena. Busca figuras femininas onde projetar
suas fantasias e memórias, faz confissões. Estaríamos nós então numa
reunião dos Homens Anônimos que Amam Demais? Dos viciados em amor?
Essa interação lembra peças como O Homem com a Flor na Boca, de
Pirandello, ou A Mais Forte, de Strindberg.
O figurino é cotidiano, jeans, camisa, casaco. O personagem leva consigo
uma mala pequena, um Livro das Horas (com salmos para horas
dificílimas), um bilhete e um sanduíche (que está dentro da mala e só
durante a cena aparece).
267
Uma lâmpada pende do teto e dá para o todo um clima de delegacia de
polícia ou de ante-sala do inferno.
Barba por fazer, cara cansada, meia-idade, nosso personagem vai fazendo
revelações. Extrai de sua perplexidade diante do abandono um humor
implacável.
Deixando a cena ainda mais concentrada, o ator permanece sentado durante
toda sua longa fala. Não realiza movimentos da cintura para baixo. Só no
final do espetáculo, ele se levanta e, simplesmente, vai embora.
Ou seja, Romance Barato chega para o espectador como uma peça
extremamente simples. Mas não só foi muito difícil levar ao palco uma dor
devastadora sem atolar na pieguice, sem implorar a cumplicidade do
público, como também tomou muito tempo e concentração encontrar cada
uma dessas opções cênicas, todas meticulosamente conceituadas por mim e
pelo Carlos, numa intensa e estreita parceria. Esta é a razão pela qual
Romance Barato demorou quase um ano para fazer sua estréia.
268
7.2. COMPROMISSO:
O trabalho de montagem começou com um compromisso. Há anos eu devia
uma montagem para o Carlos Rahal. Carlos e eu somos amigos desde 1983,
quando entramos na ECA, ele para estudar publicidade e eu, na época, para
cursar jornalismo (curso que abandonei).
Anos depois, ambos entramos para o teatro. Carlos, além da formação em
publicidade, fez curso técnico de ator no Teatro Escola Macunaíma e
mestrado em Cênicas na ECA, com orientação do mestre Clovis Garcia
(aliás, ao fim de 2006 Carlos entra no doutorado, na ECA, sob Orientação
do Prof. Jacó Guinsburg). Estava afastado dos palcos há muito tempo,
embora faça regularmente filmes publicitários e institucionais.
Juntos, tentamos realizar alguns trabalhos, inclusive uma versão do Licurgo,
que acabou sendo montado com o Marcos Suchara.
Eu simplesmente devia essa montagem para o Carlão – e fazia tempos
procurávamos o texto apropriado para tal.
Nessa procura, Carlos leu várias peças minhas e, em meados de 2005,
resolvemos trabalhar com Romance Barato. Como ambos trabalhamos
intensamente como professores universitários, poderíamos aproveitar nosso
pouco tempo livre para ensaios bastante objetivos.
269
O processo, como já disse, foi de grande colaboração artística. Optei por
funcionar como um misto de diretor, coordenador e conceituador. A partir de
algumas linhas mestras de trabalho, estimulei o Carlos a descobrir as
melhores respostas cênicas, propondo soluções para a peça.
Eu tinha razões para essa escolha. Faltava para o Carlos o fator “horas-
palco”. Experiência. Tarimba. Corpo cênico. Por outro lado, sobrava
inteligência, interesse e dedicação. Eu precisava estimular sua criatividade e
um comportamento cênico, uma busca de teatralidade.
Comecei propondo uma série de improvisações e workshops tentando
levantar um esqueleto da peça. Bolamos um roteiro de momentos e ações.
Rapidamente, Carlos foi decorando o texto (condição excelente para que
pudéssemos aprofundar sua “conversa”).
Ensaiávamos na copa de minha casa, de tarde, quando as crianças estavam
na escola. O gato passeava pela cena. Logo Carlos transformou o ambiente
no que seria uma quitinete do nosso personagem abandonado. Usou para
isso uma série de objetos: uma velha máquina de escrever, papéis, uma
maleta, um antiqüíssimo bichinho de pelúcia, todo escangalhado, um
sanduíche, alguns Cds que ele colocava pra gente ouvir durante os ensaios…
O personagem se movia nesse ambiente. Chegava do trabalho. Começava a
escrever. Esboçava trechos do romance. Comia. Chorava. Falava com seus
fantasmas.
270
Logo tínhamos um primeiro material. Carlos aproveitou uma dica da
dramaturgia e trouxe para a cena a canção My Funny Valentine, com Chet
Baker. Trouxe também algumas canções pop e uma série de músicas bregas
brasileiras, todas muito românticas, engraçadas e, no fundo, tocantes.
Montou assim, também, uma estrutura musical.
Uma das improvisações mais interessantes dessa fase continua presente até
hoje no espetáculo: o personagem vem contando sua história, dá uma pausa
para mastigar um pedaço de sanduíche, enquanto escuta uma saudosa canção
romântica. Aí, enquanto come e canta (esse canto típico de chuveiro – ou de
quando estamos sozinhos), cai num choro desabrido, patético.
Como apoio teórico, pedi que Carlos lesse dois livros: Amor Líquido
1
, de
Zygmunt Bauman, e Sem Fraude nem Favor
2
, de Jurandir Freire Costa.
O primeiro fala sobre a solidão contemporânea e a liquidez – em todos os
sentidos – dos efêmeros amores de hoje. O segundo traça uma extraordinária
história do amor romântico – e suas consequências no coração e nas mentes
do ser humano de hoje que, embora mantenha os ideais do amor romântico,
não encontra mais essa experiência em seu cotidiano – e sofre com isso.
Resolvi então radicalizar. Pedi para o Carlos concentrar as ações. Reduzir.
Intensificar. Pedi para que ele passasse a executar seu roteiro sentado – e
sem mover nada pra baixo da cintura. Todas as intenções deveriam estar
presentes – o movimento partiria da coluna – mas não ganharia o espaço.
Mais intenção, mais ação interior, menos ação exterior.
1
Zygmunt Bauman, Amor Líquido, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2004.
2
Jurandir Freire Costa, Sem fraude nem favor. Rocco, Rio de Janeiro, 1998.
271
Resolvi também que o personagem não se mexeria da cintura para baixo
para ressaltar suas quebras. Criei assim um signo de impotência e de
fragilidade.
Então, começamos a realizar exaustivos ensaios centrados na questão da
palavra. Em primeiro lugar, é preciso dizer um texto. Ou seja: qual é seu
conteúdo? Quais as referências? As informações estão claras?
Mas isso não basta: é preciso falar um texto. Fabular. Fazer das palavras
imagens, que se formam na cabeca do ator, temperadas por seus afetos, e se
transformam na mente e no coração do espectador. Uma comunicação não
apenas de conteúdos, mas principalmente de imagens, memórias e afetos.
Mas é preciso ir um pouco além. É preciso conversar. Versar com. Com o
espectador, naturalmente. Ou seja, é preciso realizar a poesia do encontro, a
troca afetiva – da qual as palavras são condutoras.
Nos dedicamos com afinco a essa tarefa, realizando desde exercícios simples
de aceleração da fala a coisas estranhas como dizer o texto todo amarrado.
Carlos narrou como locutor esportivo, falou muito lentamente, antecipou ou
postergou o pensar ou o falar, falou o texto em blablação, fonemol e
congêneres e muitas outras coisas.
Aos poucos, a cena foi ganhando força.
272
Nesse processo, limpamos também os objetos. Demos adeus à máquina de
escrever e ao bichinho de pelúcia. A trilha passou a ser executada por mim –
e não mais pelo personagem – portanto também passou para um plano da
imaginação.
Eu tinha em mente, para a cena, um estilo meio João Gilberto: um
banquinho e um violão, o samba de uma nota só… Ou seja: Chet Baker.
Queria o quase nada. O fiapo de voz do junky bêbado. E a máxima
expressividade possível.
Outras dificuldades se apresentavam. Havia trechos de texto tecnicamente
muito complexos, com rápidas mudanças de ponto de vista e cortes
cinematográficos.
“Pausa. Pausa curta. Ataque: agora lembrou? Vai dizer que não foi bem assim? Que
chegamos a um ponto em que devemos tratar dos nossos assuntos de um modo
impessoal, na terceira pessoa? Vá lá. Material para o romance. Tentemos. No acerto de
contas, na velha casa dele, o velho truque dela, o do rímel negro, mais a velha armadilha
do abraço e a antiga trapaça do perfume, derrubam o boi gordo. Ele vai pro banheiro e
chora. Volta. Sabe, tem coisas que preciso te dar. Uma carta, um amuleto, um livro, uma
fotografia. Cenas do passado escorrem sobre a mesa de centro e empapam tudo. Não
quer? Vou jogar fora. Você tem fome? Tem miojo. Sede? Toma coca. Ela diz: a paixão
acontece – e acaba. Ele: também tem Häagen Daas. Ela mastiga o dia frio: agora é tarde
pra paixão. Ela modela miolo e rasga guardanapo. Quem falou em paixão? Ela olha um
ponto vago, a gola da camisa nova dele, um botão, o nada. O café esfria. Ela: chega de
paixão. Chega. Chuva no vidro. Unhas arranham a mesa. Uma xícara cai e quebra. Ela
canta: eu quero a sorte de um amor tranqüilo. Lembra: ela acontece. A paixão. Ela ri.
Ele: sabe, não tenho amor pra passar no teu pão. Nada de coragem, carinho, respeito,
esse tipo de bobagem pra adoçar tua boca. Meu primeiro amor foi Laika, a cadelinha.
Depois veio Suzi, uma boneca. A prima com quem brincava de casinha. A vizinha que
me ensinou a brincar de “besteira”. Nunca fui além disso. Ou seja, nem adianta chorar.
Foda-se.”
3
3
Volume 2 desta tese, p. 538.
273
Tivemos muita dificuldade em estruturar essas mudanças e criar uma ilusão
de naturalidade nessa fala, que precisava ser dita com clareza, rapidez e
intensa visualização.
Dificuldade semelhante encontramos no seguinte trecho:
“Você levantava a minissaia com pressa e fodia? Só usava calça comprida? Qual a altura
das sandálias? Tem alergia a brincos? Tem medalha de santo? Fita do Senhor do
Bonfim? Fios de cabelos brancos? Tintura? Buço? Depilação com cera quente? Virilha
cavada? TPM? Gosta de trepar menstruada? Queria filhos? Rói unhas? Espinhas?
Estrabismo? Piercing? Ponte? Moramos juntos? Casa própria? Passou um tempo na rua?
Dormiu num ponto de ônibus? Faz poupança? Não tem um puto? Só eu? Qual o gosto do
beijo? A língua serpenteia ou a boca aguarda minha língua, dentes e dedos? Incisivos
ligeiramente encavalados? Caninos de vampira? Você morde? Você goza? A
interpretação merece um Oscar? Só gozou pra valer numa foda rápida com o professor
de natação? Você não sabe nadar? Se aninhava no meu colo como um bebê? Fui um pai
pra você? Um filho? Um arrimo? Um amor? O amor?”
4
Mais de 40 perguntas alinhavadas em sequência lancinante! Como encadear
a fala? Onde respirar? Quais perguntas emendar? Como buscar nuances
entre as interrogações, destacar as mais importantes, realçar o humor sem
perder a emoção? Qual o tom geral do todo?
Enfim, devagar, fomos resolvendo não só as perguntas do texto como todas
essa indagações por ele geradas, realizando experiências e testando
variantes.
4
Volume 2, p. 540-541.
274
7.3. Matriz:
Assim, chegamos a uma matriz para a performance. Uma estrutura que,
longe de ser fechada, permite que o ator se lance num jogo vertiginoso com
o espectador, dialogando com ele pra valer.
Não é uma tarefa fácil para o ator. E, para fazer juz à imensa paixão que o
Carlos vinha dedicando ao projeto, resolvi fazer ensaios abertos da peça,
ocasião onde nossas idéias e planos podiam ser testados e aprimorados.
Resolvi realizar essas sessões em conjunto com a temporada de Licurgo-
Olhos de Cão, no porão do Teatro Viga, em abril de 2006. Licurgo
acontecia às 21h, nos sábados. O ensaio do Carlos era às 19h.
Aproveitávamos a lâmpada usada pelo Licurgo e um belo banco de madeira
de um espetáculo infantil que se apresentava de tarde. Carlos e eu
convidamos uns amigos. As pessoas entravam com a primeira música
rolando, o personagem já na situação, a cena toda acontecia, depois
conversávamos.
A reação superou as expectativas. As pessoas gostavam. Faziam críticas
pertintentes, principalmente quanto às oscilações na condução das idéias e
afetos do personagem, e podíamos nos aprimorar.
Facilmente, a cena perdia objetividade, virava falação. Um pouco pela
própria narrativade do texto, um pouco pelas dificuldades inerentes ao
processo.
275
Enfim, após esse período de azeitamento, resolvemos realizar uma
temporada. A oportunidade surgiu com um contato do Carlos na Casa das
Rosas. Conseguimos agenda entre julho e setembro.
Na Casa das Rosas, ocupamos a Sala Marrom, um quarto no andar de cima
do sobrado, com janela para o quintal de rosas e a Avenida Paulista.
Optamos por colocar apenas 15 cadeiras no recinto. Usamos o lustre da
própria sala, de onde retiramos quatro lâmpadas e deixamos apenas uma
dicróica, cuidadosamente focada.
Carlos conseguiu um banco desses de praça, em madeira com estrutura de
ferro – um desses bancos onde antigamente namorávamos.
O quarto da Casa das Rosas merece descrição. Uma porta dá para retângulo
de, no máximo 6m por 3,5m. Do chão até o meio da parede, um belo e
antiquado papel com tons de marrom e motivos florais. O resto da parede e o
teto tem pintura de um marrom sóbrio. No fundo do quarto, um velho
aquecedor se destaca. À direita de quem entra, três janelões deixam a Av.
Paulista entrar.
Optamos por manter as janelas de ferro abertas – só com os vidros fechados
– durante a encenação, que assim ficava banhada pelas luzes da lua e da
cidade. Colocávamos a primeira música, as pessoas entravam e já
encontravam o pesonagem lendo e relendo, obsessivamente, o bilhete que
recebeu de sua amada, e a peça começava.
276
O início de nossa temporada foi estranho. Frio. Técnico. O Carlos dava a
impressão de estar muito feliz por estar em cena, depois de longo período, e
frequentar os restaurantes da classe. Faltava vibração. Motivação.
Consequência.
Nesse momento, optei por me afastar. Dar um tempo. Dar espaço para que o
Carlos crescesse e encontrasse novas motivações. Criar, também, mais
perspectiva para minha atuação. Assim, deixei o Carlos nas mãos do meu
assistente, o ator Dill Magno (de Só As Gordas São Felizes), que não só
operava luz e som e fazia a bilheteria, como me mantinha informado do
andamento das sessões.
A decisão se mostrou pertintente. Após duas semanas longe da peça, que
acontecia nos sábados e domingos, encontrei um espetáculo ainda mais
caído. Fui para casa incomodado. Pensei. Refleti. Tive duas ou três idéias e,
na sessão seguinte, rapidamente, pedi algumas mudanças para o Carlos.
Limpei algumas ações, pedi que ele voltasse ao bilhete no meio da peça,
bolei alguns gestos que deixavam mais claro na encenação que o
personagem tinha levado alguns tiros e sugeri que, ao final, ele voltasse com
a frase inicial da peça (“Oi, você vem sempre aqui?”), induzindo não só o
círculo como, principalmente, o encontro definitivo com a companheira
morte – também sugerido pela dramaturgia.
Dei um tapa também na situação dramática. Pedi para que o Carlos
considerasse que tudo se passava na ante-sala da morte. A qualquer
momento a indesejada das gentes chegaria. O personagem precisava resolver
277
seus problemas, lavar sua roupa suja, dizer e fazer tudo o que queria o
quanto antes.
Isso conseguiu trazer para a performance uma urgência que ela tinha
perdido.
Pedi também que ele não temesse o “grande”, o “melodrama”, o texto
jogado e não “meticulosamente escandido”, palavra por palavra – isso trazia
muitas pausas, um tempo muito psicológico para a cena. E o humor se
perdia.
Confiava também em todo o nosso trabalho com a palavra. Uma hora aquilo
tudo teria de amadurecer e desabrochar, numa fala mais solta, desabrida,
menos pensada, ao mesmo tempo jogada, derramada, mais intensa em seus
afetos.
Felizmente, com as mudanças sugeridas, tudo isso aconteceu e a peça
encontrou seu caminho. Transformou-se de performance teatral correta em
verdadeiro encontro, com desafios vividos sessão a sessão. O crescimento do
Carlos como ator foi formidável.
A temporada também esquentou. Tivemos mais (e melhor) público, com
opiniões muito favoráveis. Agora, pretendemos dar continuidade ao trabalho
com viagens e festivais. Tenho certeza de que o Romance ainda pode ficar
mais afiado e belo.
278
De todo modo, fiquei feliz não só por conseguir concretizar um antigo
desejo entre amigos, como por aplicar os conceitos e métodos que venho
desenvolvendo nessa intensa pesquisa em um ator que, no começo imaturo e
com poucos recursos, vem conseguindo um estupendo crescimento, tomando
consciência e posse de uma técnica apurada e eficaz, a serviço de uma
comunicação afetiva, efetiva e pungente.
279
CAPÍTULO 8: A NOITE DOS ANIMAIS
280
8.1. GUERRA:
“Há algum tempo, com muita timidez, chamei a linguagem de casa do ser.”
1
O projeto dramatúrgico A Noite dos Animais começa a tomar forma
durante o doutorado, nas aulas que realizei com os professores Marco
Antonio Guerra, Renato Cohen e Lúcio Agra. As aulas do Guerra
eram sobre cultura brasileira nos anos 60. Como trabalho de conclusão de
curso, planejei dois textos. Ambos fazem parte desta tese. O primeiro,
Setenta, forma o Capítulo 2. Tem como objetivo contar a trajetório deste
autor em seus anos de formação. O segundo texto, Gorilas, foi criado
com o intuito de abordar o fim dos anos 60, o momento de entrada na
nossa longa noite. Falaremos mais dele adiante.
Ao mesmo tempo, na disciplina de Renato e Lúcio, realizávamos
exercícios performáticos de diversos tipos, usando nacos de texto como
blocos sonoros. Pensei em realizar um texto usando aqueles valores, mas
ao mesmo tempo, mantendo uma base narrativa e dramática. O resultado
é Taurus, um texto sobre os matadores e vingadores, personagens
comuns, hoje, nas periferias do país.
Aos dois textos, veio se somar Rinha que criei na mesma época, no
mesmo espírito, embora sem vínculo direto com nenhuma disciplina
1
Martin Heidegger, A caminho da linguagem, Rio de Janeiro, Vozes/Editora
Universitária São Francisco, 2003, p. 74.
281
acadêmica. Rinha conta a história de uma mulher, do coração do Brasil a
a uma grande capital. Suas desilusões amorosas e uma estranha vingança.
Juntas, as três peças formam um pequeno panorama da nossa longa noite
brasileira. Uma noite de violência, solidão e loucura social. De uma
brutalidade extrema que tem apoio institucional ali, no fim dos anos 60,
com o AI-5 (o grande evento do texto Gorilas), e que continua muito
além do fim da aplicação do Ato, em muitos atos de nosso cotidiano, no
modo como nos amamos e matamos.
Chamei o conjunto de A Noite dos Animais: os personagens vivem na
fronteira do humano e do animal, em resultado monstruoso. Os brutais
Gorilas da ditadura; o brutalizado homem-touro, Taurus; a galinha da
Rinha.
Esteticamente, as peças realizam uma suma do que foi avaliado até aqui.
Têm personagens-narradores, movimentos no tempo e no espaço. Jogos
de palavras, associações, traços de um realismo meticuloso borrados por
delírios e inverossimilhanças melodramáticas… Os textos fundem
diálogos e rubricas numa espécie estranha de monólogo. Aqui, vale a
pena meditar sobre as palavras de Heidegger:
“Linguagem é, no entanto, monólogo. Isso diz duas coisas: que a
linguagem é o que propriamente fala e que a linguagem fala solitariamente.
Solitário pode apenas ser quem não é sozinho; não sozinho, quer dizer, não
separado, não isolado, sem relação. Na solidão vigora a falta do que é comum
como a referência que mais liga o solitário ao comunitário… Toda
recomendação e todo dizer condizente repousam nessa falta, que nem é mera
privação e muito menos algo negativo.”
2
2
Heidegger, A Caminho… , p. 214.
282
Essa falta, materializada em bloco de texto para ser usado em cena, é o
núcleo da dramaturgia.
É como se os personagens dessas peças, assim como os das peças
anteriores, ocupassem cada um uma jaula-cela-quartinho de um
infindável Peep Show, ou de uma prisão kafkiana que desse abrigo para
todos os nossos monstros. E que cada novo corredor percorrido dessa
casa para espetáculos de horror abrigasse personagens cada vez mais
estranhos, sórdidos e, paradoxalmente, próximos de todos nós.
Não à toa o conjunto é chamado, em rubrica inicial, de “trash tragedy em
3 atos para bando de atores”, onde “As cenas são búzios. Basta jogar.”
Comecemos observando com cuidado os jogos de Taurus.
283
8.2. TAURUS
“em jogo está aprender a morar na fala da linguagem.”
3
Após uma aula de Renato Cohen, resolvi fazer uma experimentação
dramatúrgica. Criar um texto para performance que, mesmo usando
aqueles valores pós-modernos tão apreciados e pertinentes à performance
contemporânea, como a ênfase nas formas, gerando possibilidades de
associações corpóreas, mentais e emocionais, não abandonasse de vez
alguns valores dramáticos tradicionais: uma narrativa com personagens;
um começo, um meio e um fim (mesmo que não necessariamente nessa
ordem); dados de realidade para a transmutação mimética.
Como procedimento criativo básico, usei a improvisação a partir de
associações de sons, palavras, imagens e idéias.
Associações geraram Taurus. Taurus. Touro. Signo. Minotauro. Mito.
Grécia. Arma de fogo da marca Taurus. Consultas à Internet: um lutador
de vale-tudo brasileiro, sucesso absoluto no Japão, chamado Taurus.
Tipos de lutas. Tipos de armas de fogo. Heróis. Personagens de Histórias
em Quadrinhos. O Justiceiro, que perdeu a família e vive em eterna
vingança. Periferias de São Paulo. Justiceiros e matadores. O labirinto de
Creta. Os labirintos da história, do mito e da ficção. Um labirinto que
reunisse todos os caminhos anteriores e que, no seu centro, abrigasse o
confronto final… Entre Taurus e Teseu… Após Taurus ter um caso com
3
Idem, p. 26.
284
Ariadne, numa quebrada… Teseu é um milico que matou a família de
Taurus numa treta banal… A vida aqui não vale nada… A vingança
longamente preparada… A saída do labirinto é o olho do cano da arma de
Taurus, o buraco negro, e o beijo da morte.
Tudo isso foi sendo derramado nas páginas de Taurus, numa forma de
jazz, no suíngue das palavras, no seu ritmo, como num solo de Charlie
Parker ou na prosa bop de Jack Kerouac.
“Trinta e oito magnum millenium glock colt sig sauer AK47 AR15 uzi ou um
beijo? Taurus detonou muito ponto, Taurus foi de favela em favela, Taurus
sinucou muito malaca, Taurus meteu muita bala. Calibra tua palavra: este é
Taurus, senhor da justiça. Pé-de-pato? Nem fudendo. Alcagueta? Escama!
Máquina de lavar, Geladeira: um monstro. Ligou tá pronto. Lavou tá novo.
Um Rambo, um exterminador. O touro. Sangue no olho. Anel de safira e
ágata. Para você, Taurus, o poder de fazer da semente substância. Seu
trabalho é grande, exige paciência. Você tem força. Use com sabedoria. Sei.”
4
Quem fala? Quem é o narrador? Ele está dentro da cena ou observa as
coisas de um outro lugar? Ele desliza? Não conseguimos agarrá-lo? A
enumeração do arsenal de Taurus é seguida pela narração, em terceira
pessoa, dos feitos de Taurus. Será o personagem o senhor da justiça ou
um pé-de-pato (um policial matador)? Um estranho diálogo (entre
quem?) vem na sequência, descrevendo o touro, que parece uma máquina
de lavar, um monstro armado até os dentes com anel de safira e ágata nos
dedos. Um ser poderoso, mistura de uma série de saberes populares, que
o autor recupera de folhetos de rua, manuais religiosos baratos, santinhos
e fontes do gênero.
4
Volume 2 desta tese, p. 551.
285
Evidentemente, não se trata aqui de uma dramaturgia em que as ações
vividas pelo personagens instauram um caráter. Aqui se trata de instaurar
uma figura em cena. Um estado mental e uma atitude física. Taurus.
Só depois de muito material, passadas mais de 20 linhas de texto, pela
primeira vez aparece uma pista de primeira pessoa, um alguém que fala.
“Você tá vendo isso daí que você tá sentindo? Foi o mesmo que sentiu minha
família. Os quatro. Quatro anos. Foram. O Estado é que fez. A polícia. Ela
cumpre contrato. Assim tipo bico. Meus filhos, teus filhos, os filhos, os
nossos filhos.”
5
A seguir, esse personagem-narrador enfim revelado conta o que
aconteceu com sua família, causa dele se transformar no que agora é.
Uma chacina banal que aniquilou todos os entes queridos do sujeito fez
dele Taurus. Coisa do destino?
O personagem narra sua história. Diz que fez de tudo para não se
envolver em tretas – e que foi o Estado que tirou sua família de
circulação. Coisa da sociedade?
Quem sabe direito? Taurus assume a vingança como missão.
Pouco a pouco percebemos onde realmente se passa a nossa cena: Taurus,
após se recuperar fisicamente da chacina que lhe tirou a família, passou
por lenta preparação; depuração física, mental e espiritual para a
vingança; no caminho, virou matador e conheceu o breve amor de
Ariadne; enfim, conseguiu sequestrar aquele que matou sua família;
estamos, portanto, no momento da verdade: Taurus revela para Teseu
5
Volume 2, p. 551.
286
(assim como revela para todos nós), toda a história que o levará ao
próximo ato: o assassinato de Teseu.
Ocorre um perverso jogo entre Justiça e Vingança, onde todos os
conceitos, todas as figuras e a própria humanidade se perdem no final.
Não há mais indivíduos, mas figuras.
“Agora neste mato, nó dessa picada, cavo a tua cova, lembro a nossa história
e, olha, te pergunto, será que isso tem fim? O que vai ser? Vai virar
consórcio, um por sorteio, um por lance? Vai ter financiamento? Prazer não
se cobra? Não é nada disso? É justiça? Ela não é cega? Tem uma balança?
Dessas de feirante, supermercado? Essa é a fita? Estamos fudidos.”
6
Assim, se durante quase todo o breve tempo da peça, nos identificamos
com a figura de Taurus, somos subitamente lançados para o outro lado da
arma. Teseu, nesse segundo, é cada espectador ou leitor. Somos todos
nós, na mira da arma de Taurus.
“O que é que você faz? O que é que você fez? Emaranhado de gato no poste
da perifa, é a mente, iluminando o breu. Vejo claro. Não existe nada, nada,
nada, nada maior que a fé. Esse mugido. A fé. Já vi vagabundo morrendo com
duas pistola na cintura. Entende? O que vale? A fé. A fé. A fé. Agora ora?
Vai de pai nosso? Avemaria? Vê a boca? Vê o bico? Trinta e oito magnum
millenium glock colt sig sauer ak47 ar15 uzi ou um beijo?”
7
A fé que volta e revolta, soa e ecoa… Fé no quê e em quem? Talvez no
beijo desesperado entre irmãos sem nome nem identidade.
Mais uma vez o círculo se fecha, nesse movimento obsessivo que retorna
em quase todas as peças do autor. É como se tudo se passasse nos
momentos a que a rubrica inicial da peça se refere “São Paulo. Fogos do
milênio. Mocó.”
6
Volume 2, p. 553.
7
Volume 2, p. 554.
287
Como se a ação durasse ocupasse a virada do milênio, onde tudo muda
para parar no mesmo lugar. A rubrica, primeiro elemento que se lê do
texto, foi o último dado a ser elaborado, mais em função do conjunto A
Noite dos Animais: se Gorilas se passa em 1968, Taurus se passa mais
de trinta anos depois – e a violência que em Gorilas é institucional, agora
não mais é amparada pela lei – mas se imiscuiu nas relações humanas dos
brasileiros como sarna.
288
8.3. GORILAS.
“Falar é, por si mesmo, escutar.”
8
É interessante observar que, trabalho a trabalho, peça a peça analisada
nesta tese, venho realizando uma grande guinada.
Parti do interesse em estudar e recriar peças do universo da tragédia
grega. Fui estimulado, a princípio, pelos projetos da Cia. Teatro X.
Paulo Fabiano, que conhecia e admirava o texto Licurgo, com sua
estranha síntese de mitos gregos e contemporaneidade, pediu que eu
realizasse a adaptação do Prometeu.
De saída, coloquei o Prometeu numa cadeia brasileira, encalacrada em
algum lugar entre os anos 60 e o ano 2000. Mesmo assim, fiz a releitura
rigorosa da peça, como se escrevesse sobre um papiro já antes utilizado.
No Bando de Maria, a sugestão partiu de mim – mas ainda operava nos
parâmetros do Teatro X, de descontrução da Tragédia. Desta vez, fiz uma
paródia rural, sertaneja, da tragédia, com laivos artaudianos, relendo As
Troianas quase verso a verso.
No Calígula, tragédia moderna de Camus, simplesmente joguei uma
bomba e catei os cacos.
8
Heidegger, A Caminho… , p.203.
289
Em paralelo, com Cidadão de Papel, que para o Paulo Fabiano não
deixava de ser uma reflexão sobre a trajetória do Herói – que pode ser
observada na peça não só pela busca de Mano, mas no espelhamento
desta na história de Pedra e de seus pais – eu, ainda partindo de recriações
de obras dadas, pude dar um salto mortal no asfalto, mergulhando sem
pudor na realidade brasileira, transmutada cenicamente.
Da somatória dessas experiências ficou nítido o desejo de abordar pra
valer os paradoxos brasileiros, essa sociedade de mútua exclusão, onde
pária sempre é o outro, unida ao desejo de tratar de outros tipos e outras
formas de alienação: social, cultural, mental, de alto a baixo da sociedade
brasileira. Dos sem terra do Bando aos médicos criminosos das Gordas.
Dados, personagens, momentos, linguagens e figuras da história brasileira
cada vez mais marcam presença nos textos, de forma direta e objetiva.
Se Taurus ainda tem uma mitologia grega em sua base, mais forte é a
mitologia brasileira contemporânea, a figura do matador de aluguel, do
vingador, assim como as descrições e a linguagem.
Coisa semelhante ocorre em Sete Vidas de Santo, onde mitologias bem
brasileiras, como o Candomblé e o Futebol lambem as feridas da história,
dessa história que parece poça que não seca, que parece tempo que não
anda, onde as coisas viram ruína sem nem terem chegado ao fim de sua
construção (como um dia cantou Caetano Veloso).
Assim, chegamos a Gorilas.
290
A peça vem do interesse de criar dramaturgia sobre os anos 60 no Brasil.
Período difícil de abordar, os Anos de Chumbo hoje vivem muito perto
do clichê. Difícil fugir do preto e branco, dos mocinhos e bandidos, do
bem contra o mal, direita e esquerda. Difícil de encontrar e precisar um
interesse estético e histórico…
Parece fundamental descobrir agora as terríveis semelhanças entre os dois
lados da moeda. Aprofundar as contradições, os verdadeiros paradoxos da
esquerda brasileira. Encarar e problematizar os meandros das criações
dos diversos projetos modernos de identidade nacional.
Denúncia? Não faltam livros e depoimentos sobre o período. Ideologia?
Basta abrir o jornal para ver no que deu aquele radicalismo todo, em
como direita e esquerda se encontraram em algum lugar do infinito. Arte?
Poucas peças tratam do período.
Difícil.
No entanto, eu sentia a necessidade cultural, política e estética de abordar
a época. A oportunidade que o professor Marco Antonio Guerra
ofereceu, com seu maravilhoso curso sobre a década, não podia passar em
branco. Discutimos muito identidade nacional e projeto de Brasil, dois
temas centrais dos anos 60. Pedras no caminho de quem deseja estudá-
los.
Retomamos a leitura da dramaturgia de Leilah Assunção e Antonio
Bivar. E pude descobrir as obras de Abílio Pereira de Almeida e Carlos
Queiroz Telles.
291
Embora eu conhecesse o Abílio não principalmente pelas memórias do
meu pai, grande fã do antigo TBC e dos filmes da Vera Cruz, nunca
tinha prestado atenção em sua obra.
Ler Santa Marta Fabril e assistir a Moral em Concordata foram
incentivos geniais a continuar tentando trabalhar o Brasil na dramaturgia.
E uma tremenda espicaçada em meus preconceitos e em minha
ignorância.
O mesmo aconteceu com Carlos Queiroz Telles. Conhecia o autor
superficialmente. Não tinha a menor noção de como ele havia enfrentado
os desafios de seu tempo. Não imaginava a envergadura de sua obra.
Partilhava dos preconceitos sobre o teatro brasileiro dos anos 60, que
parecia uma maçã cortada ao meio. De um lado, o Arena. Do outro, o
Oficina.
Essa dicotomia besta jogava para baixo do tapete a maravilhosa
experiência artística de uma troupe imensa de artistas. Na dramaturgia,
Queiroz Telles era um dos casos mais importantes.
Sem falar que encontrei uma série de pontos em comum entre a minha
vida e a de Telles. Também fui redator de propaganda e professor de
redação – aliás na mesma faculdade em que ele trabalhou. Fui colega e
amigo de seu sócio na agência de publicidade FATOR.
A maior parte das obras acima citadas eram concebidas por homens, em
termos de roteiro e de direção. E, embora nessas peças e filmes quem tem
a palavra, na maior parte das vezes, sejam os homens, a presença muitas
292
vezes calada da mulher é pra lá de marcante. E, em vários deles, essa
figura era encarnada por Odete Lara ou Isabel Ribeiro, sempre
deslumbrantes.
Como definiu uma colega nossa, em sala de aula: essas mulheres têm o
“discurso mudo”.
A partir da idéia desse “discurso mudo”, naquele momento encarnado em
Odete Lara e Isabel Ribeiro, criei a peça GORILAS (que inicalmente
se chamava Ato), que se passa em 14 de dezembro de 1968, nos porões
da ditadura que se radicaliza.
Tortura. Repressão. Arte. Educação. Economia. Presente. Futuro. Projeto.
Brasil... Tudo num liquidificador que dilui de vez as noções tão bem
delimitadas que minha geração aprendeu a seguir em sua formação.
Para a criação da peça, também usei como inspiração a memória da
leitura de Milagre na Cela
9
, de Jorge Andrade, peça que li com
tremendo impacto nos tempos da graduação. Embora não tenha relido a
obra, sinto seus ecos em Gorilas.
Então, bolei a seguinte história: no dia 14 de dezembro de 1968, em um
porão da ditadura militar, no Rio de Janeiro, um homem interroga uma
mulher, com requintes de tortura psicológica. Ao longo da “conversa”
(pois se quase todo o tempo o homem monologa, não podemos desprezar
o silêncio contundente e significativo da presa), descobrimos que a
mulher é uma guerrilheira urbana que participou de atentado a um banco;
intelectual da elite, ela abandonou família e filho para entrar na
9
Jorge Andrade, Milagre na Cela, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977.
293
clandestinidade, em busca do sonho político; perseguida e presa, entrou
nos encanamentos da máquina de moer carne da ditadura. Após
intermináveis interrogatórios e torturas, onde sabe-se lá o que ela revelou,
chegamos a esse encontro solene. Algo mudou ali: no dia anterior foi
lançado o AI-5. A partir de agora, o homem tem respaldo institucional
para todas as suas ações. Está suspenso o Habeas Corpus. Corpo e alma
da prisioneira estão, literalmente, em suas mãos. Vida e morte. Talvez o
homem tenha deixado de ir à praia nessa manhã ensolarada de sábado
para contar isso a sua prisioneira (ou até a mais prisioneiros); talvez esse
seja mais um interrogatório de rotina… De todo modo, o oficial avalia a
detenta e oferece a ela a oportunidade de “redenção”. Talvez o
sofrimento chegue ao fim, de um modo ou de outro. Talvez, por fim, a
instituição do Ato abra caminho para outros atos paradoxais. O nosso
oficial, por exemplo, acaba fazendo estranhas confissões à mulher, da
qual dispõe de inúmeras informações, mas que deseja conhecer mais
profundamente. Em busca disso, ele é quem se confessa. Confessa muitas
coisas. De repente, a mulher sangra. Resultado das torturas?
Menstruação? O sangue provoca uma guinada na história, um conflito
quase arquetípico entre homem e mulher.
Ela, numa estranha forma de resistência, que passa pela aparente entrega
amorosa, transa com seu torturador. Durante o sexo, ela goza. Ele entra
em parafuso. Os papéis se invertem. Após toda uma série de jogos, onde
ambos se revelam, fraturas expostas, seres desesperados, ela leva o
homem para uma sinuca, goza na beira da morte, inoculando em seu
algoz, minutos antes do fim, o vírus amargo da derrota.
Inicialmente, o texto tinha uma forma mais tradicional, com dois
personagens separados nitidamente por rubricas. Aliás, fala do homem e a
294
escuta da mulher eram bem delimitados pelas rubricas, que evidenciavam
as reações da mulher.
“Ato
Homem
Mulher
H: Nome.
(Silêncio.)
H: Idade.
(Silêncio.)
H: Estado civil.
(Silêncio.)
H: Profissão.
(S.)
H: Dia. Mês. Hora. Ora, ora, ora. A senhora sabe, sabe a senhora, que dia, mês, que
horas são? Não?
(S.)”
10
Pouco depois, meditando sobre a forma da peça, resolvi retirar todos
esses “andaimes”, transformar tudo num bloco de palavras que lançam-
nos num buraco negro: a presença e o silêncio de uma mulher. Que
apenas perto do fim da peça começa a falar. E que quando fala, fala
pouco, uma fala que parece banal, mas é afiada pelo seu destino trágico.
Ela reza, pede para escrever um bilhete, fala de sexo e amor, comenta a
situação, agradece, se despede e enfrenta o olho do .38 de seu algoz.
10
Primeira versão da cena, arquivo do autor.
295
“A senhora vê? Eu faço as unhas. A senhora com certeza faz as unhas. Tem que tirar
a cutícula. Tem. Com delicadeza. A senhora vai partir. Amém. Amém. É par. É par.
Olha no olho do meu 38. Meu deus. Adeus. É ímpar.”
11
O homem assassina a mulher. E a nossa longa noite continua.
11
Volume 2, p. 550.
296
8.4. RINHA.
É a fala cotidiana que consiste num poema esquecido e
desgastado, que quase não mais ressoa.”
12
“Goiás. Hoje. Motel.”
13
Assim, com essa rubrica mínima, começa Rinha,
a terceira das peças da Noite. Não mais as capitais sócio-culturais do
Brasil, mas o mundo urbano do interior do Brasil. Lá, onde a nova
riqueza impera.
Vamos conhecer a história de uma mulher que tem vários nomes.
“Abari, Abionda, Akassia, Agatha, Aime, Akime… Era uma lava que me
queimava, uma peste, uma pústula, apóstola do Bom Jesus, eu orava… Alice,
Alicia, Aluany… Meu Bom Jesus, Jesusinho, me salva, a chavasca em brasa,
banho de assento, não sossegava… Andressa, Angel, Antoniella, Any…
Assim, assim, tive mil nomes, até Zaíra, Zoraide. Pensava assim, tantas em
mim…”
14
Nossa personagem tem muitas mulheres dentro de si. Diversas
personalidades que ela vive e assume ao longo da história (e, assim, o
autor já confere viés épico à personagem que, em sua narrativa, onde tem
muitos nomes, vive muitas mulheres numa mulher – quem é protagonista,
quem é coro nessa nossa história?)
Enfim, a mulher conta/vive sua trajetória: a moça do interior que namora
filho do prefeito, e é por ele abandonada com doença venérea; após
12
Heidegger, A Caminho… , p. 24.
13
Volume 2, p. 555.
14
Volume 2, p. 555.
297
cirurgia e cura de seu mal, abandona aquela vida e vai para a capital;
estudante universitária, conhece o carinho e o sexo casual; vira prostituta,
com vários nomes e talentos; reencontra (ou será fantasia) seu namorado
de adolescência e se vinga, num assassinato cruel.
Tudo numa linguagem chula, ralé, bem biscate, num forte andamento,
rimas pobres que parecem jogadas ao léu, em paródia de linguagem de
romances popularescos e revistinhas pornô. Principalmente rimas em
“ada”, ecoando a palavra “nada”, repetida 25 vezes ao longo do texto, e
formando uma verdadeira espinha dorsal, um apoio para a história.
Uma história sobre o nada? O que é o “nada” (assim como em Só As
Gordas São Felizes eu me perguntava pelo “real”)? O que são a negação,
a dobra do não, a sensação e o sentimento do nada?
Não dizer nada. Não sentir nada. Não dar nada. Não fazer nada. Não
pensar em nada. Não pretender, nem ter nada. Não ver nada. Não sobrar
nada.
As cicatrizes da personagem que de repente, como num milagre,
desaparecem. Até que reste nada.
O nada materializado, paradoxo da linguagem.
Se “fala é expressão e comunicação sonora de movimentos da alma
humana. Esses movimentos são acompanhados por pensamentos.”
15
,
Rinha mostra os movimentos da nossa personagem ao redor desse “nada”
15
Martin Heidegger, A caminho… , p. 10.
298
além da linguagem, esse não-dito que ela, que não tem nome, insiste em
nomear repetidamente: nada, nada, nada.
“Nomear não é distribuir títulos, não é atribuir palavras. Nomear é evocar para a palavra.
Nomear evoca. Nomear aproxima o que se evoca.”
16
Assim a peça circunda o nada existencial e social das personagens,
reelaborando a fala cotidiana, novamente poema que ressoa.
Poema trágico, sem dúvida, mas onde há uma estranha redenção, um
estranho milagre sem santo: as cicatrizes desaparecem (assim como em
Sete Vidas de Santo – só que lá há algum tipo de “cura espiritual” – e
aqui o que ocorre é um fenômeno singular pra lá de profano, um mistério,
puro e simples).
Nossa mulher “preparada”, que mudou de nome, de corpo, de vida e
conseguiu até resolver seus problemas de amor, parte em direção ao
futuro. Sabe que tem encontro marcado com sua vítima no inferno. Mas
nem liga. E mais nada.
16
Heidegger, A caminho… , p.15.
299
8.5. OS ANIMAIS.
Taurus, Gorilas, Rinha. As três pequenas peças têm muitos pontos em
comum. A discussão sobre justiça e vingança. A relação de amor e morte,
com laços de sangue. Os assassinatos brutais, precedidos por longas
confissões. A solidão dos personagens.
Juntas, traçam um modesto painel dessa longa noite de cerca de quarenta
anos. Tempo em que a violência saiu dos porões da história e passou a ser
a forma mais evidente de troca entre os brasileiros.
Realizei leituras dramáticas dos três textos. Taurus e Gorilas foram lidos
por Marcos Suchara em evento de dramaturgia na Usina das Artes, em
setembro de 2005. Para pequena platéia, na maioria mulheres, Gorilas
causou comoção. Misto de desconforto e admiração pelo texto, por sua
lógica perversa, pela navalha das falas daquele torturador, em seus jogos
de palavra obsessivos. Taurus comoveu pela força e pela dor do
personagem, executado com tocante simplicidade pelo Marcos.
A leitura foi simples. Numa pequena sala de no máximo dois metros de
largura por cinco de comprimento, Marcos se sentou em cadeira atrás de
pequena mesa, colocada próxima ao lado menor do retângulo. A
escuridão só era devassada por uma vela acesa. O resto era a voz do ator
que lia e seus olhares penetrantes para a audiência.
300
Já em 2006, durante o décimo-nono Fetesp, em Tatuí, em palestra sobre
dramaturgia, li, descompromissadamente, Rinha. O evento aconteceu
numa tarde, numa sala de aulas, para cerca de 50 jovens. Nada de luzes,
microfones, truques. Após mais de duas horas de conversa, li o texto.
A platéia ficou eletrizada. Constrangida com os detalhes sexuais,
transtornada com a doença da personagem, aliviada com a vingança
final… A peça, lidando com uma série de sentimentos negativos e
resistências, conseguiu grande aprovação da audiência, desembocando
(como já acontecera com alguns outros trabalhos analisados nesta tese)
numa estranha catarse.
Juntas, Rinha e Gorilas estão agora em processo de montagem. Estou
dirigindo o espetáculo com os atores Marcos Suchara e Rita Martins.
Começamos a trabalhar no início de 2006, em encontros semanais no
apartamento do Marcos. Fizemos leituras e, a partir delas, uma série de
improvisações e workshops. Elementos materiais entraram na parada.
Em Gorilas: um jornal, uma caneca de café, uma pasta-arquivo com a
ficha da prisioneira; duas cadeiras. Em Rinha, Rita experimentou vários
tipos de roupas para a personagem, que está ficando um misto de boneca
e prostituta, um tanto infantil e um tanto dominatrix. Rita também trouxe
uma série de canções popularescas e picarescas que inseriu em seu texto.
Marcos colaborou com uma trilha brega, com arranjos de saxofone bem
vagabundo para clássicos da canção universal.
301
Chegamos a um módulo de performance, altamente volátil e incendiário.
Certa vez, gravamos o conjunto dos ensaios em um porão – e a própria
câmera virou objeto de cena, que ganhou mais contornos perversos.
O trabalho está em andamento – pretendemos fazer sua estréia no
Festival de Curitiba, em 2007, no Fringe, a mostra paralela, que abriga
trabalhos experimentais como o nosso.
Nosso objetivo é manter uma nítida trajetória dramatúrgica – mas
reservar amplo espaço para o improviso e a performance livre em cada
apresentação. Pura combustão, que a química entre Marcos e Rita
garante. Reinvenção contínua de si mesmo e da linguagem.
“Somos, antes de tudo, na linguagem e pela linguagem”.
17
17
Heidegger, A Caminho… , P. 191.
302
CONCLUSÃO
303
1. NA ARENA
Não tinha a menor idéia da arena em que estava entrando quando comecei
esse trabalho. Queria, apenas, realizar minhas recriações das tragédias
gregas, inspirado por situações bastante concretas, como o convite de
uma companhia para realizá-las.
No entanto, o processo descortinou novos problemas que,
compulsivamente, trilhei. Comecei a me afastar dos suportes gregos e a
elaborar alternativas pessoais para as questões.
Dramaturgia. Espetáculos. Parceiros. Temporadas. Viagens. Críticas.
Sucessos. Fracassos. Vários públicos e recepções. Gente que amou. Gente
que odiou.
Uma necessidade crescente de compreensão do que estava acontecendo
me levou a mergulhar numa teoria que, confesso, eu nem imaginava que
existia. Acabei um viciado em George Steiner, Vernant, Peter Szondi,
Raymond Williams, Heidegger e outras figurinhas difíceis.
E eu que só queria escrever umas pecinhas…
A arena estava cheia de pesos pesados, se digladiando. Conceitos opostos
ou aparentemente opostos de Tragédia e de Trágico. Linhagens
304
diferentes. Nascimentos e mortes da Tragédia. Conceitos estéticos e/ou
políticos. Uma loucura!
E também uma farra. Uma delícia. Que me levou a encontros com obras e
mestres maravilhosos, como os acima citados, entre tantos outros.
Por paradoxal que seja, quanto mais me aprofundei (ou tentei me
aprofundar) na reflexão pretendida, mais me aproximei do Brasil, de seus
temas e personagens. Uma trajetória que pode ser conferida do Prometeu
Enjaulado e do Bando de Maria, que tratam de temas brasileiros como
a violência urbana e rural, a posse da terra e a posse da liberdade, aos
textos de A Noite dos Animais, estranhos híbridos sobre vingadores.
No núcleo do projeto, as experiências de Licurgo-Olhos de Cão e de Só
As Gordas São Felizes. Com a montagem de Licurgo, pude encontrar
um eixo de trabalho, pude repensar minha dramaturgia e reenquadrar
minha formação como diretor teatral, chegando num teatro mínimo que
tem tocado muita gente por onde passa.
As Gordas conseguiram levar a um extremo que não podíamos imaginar,
eu e meus inestimáveis parceiros, a recepção dos temas da loucura, da
solidão, da alienação. Em trabalho radical, conseguimos encontros
envolventes com os mais diversos tipos de público que, quase sempre,
compartilhou ansiedades e desejos expressos no palco.
Assim, tenho a convicção de que a pesquisa pretendida com este projeto
não só tem sido realizada nos campos teóricos e práticos, como pode
comprovar, com sucessos e fracassos, seus princípios e procedimentos.
305
A tradição da Tragédia começa na Grécia do século VI a.C., lidando com
elementos artísticos (gênero literário, espetáculo), sociais (o espetáculo e
seu papel na cidade) e de reflexão sobre o ser humano (o trágico: o
homem como enigma).
Alguns momentos históricos retomam essa tradição. Hoje, por exemplo,
elementos do trágico e da tragédia são amplamente retomados. Afinal, os
problemas contemporâneos vividos na periferia de São Paulo ou Paris, no
campo brasileiro ou na Palestina são trágicos. Para representar, recriar,
reinventar, encenar e, enfim, enfrentar esses conflitos no Teatro, resolvi
realizar essa série de experimentos práticos e reflexões teóricas a partir de
um estudo do Trágico e da Tragédia,
No meu entender, portanto, se a Tragédia morreu, ela anda por aí com
tremenda força, como morto-vivo de filme do Zé do Caixão! Dito de
outro modo: o pensamento e a ação a partir de elementos da Tragédia e
do Trágico mostram imensa força e, também, sincronicidade. Próximo já
do fim deste longo estudo, descobri que, dos estudos do pós-trágico
realizados na Universidade São Marcos às reflexões de Terry
Eagleaton lançadas em 2003, ou ao recente livro de Roberto Machado,
o tema está na ordem do dia, em vários quadrantes.
A essa altura, posso afirmar que, antropofagicamente, a partir da periferia
do mundo globalizado, é possível retomar cacos dessa tradição, sob a
ótica dos párias, daqueles que não foram convidados para o festim
neoliberal, atuando estética e politicamente. Uma dramaturgia do lixo.
Dessa imensa montanha de lixo que formamos diariamente e da qual
faremos parte a qualquer momento se as coisas continuarem como estão.
306
Realizar um espetáculo é tarefa árdua. Os custos são muito altos. Um
tijolinho de divulgação no jornal, sem falar num bom plano de mídia, são
não apenas fundamentais para a vida do espetáculo como produto, como
também são caríssimos. Aliás, como coadunar o artístico e o comercial?
Como convencer os editores dos segundos cadernos e a maioria de seus
críticos a colocarem nossos espetáculos em seus Guias, divulgarem
nossas estréias ou assistirem a nossos espetáculos?
Como chegar ao espectador que deseja ver nossos espetáculos? Pois estou
convencido que a maior parte dos teatros vazios de hoje estão desse jeito
não apenas pela nossa incompetência artística que, efetivamente, muitas
vezes acontece, mas pela dificuldade de encontrar nosso público.
As pessoas não vão ao teatro? Vão pouco ao teatro? Preferem a TV, que
tem grande dramaturgia, das séries americanas às novelas e minisséries
brasileiras? O ingresso é caro? O estacionamento? A pizza?
Teatro ou balada? Teatro ou show? Musical americano ou aquela peça
com o galã da Globo? Teatrão ou teatrinho? Teatro Municipal ou porão?
Tem participação da platéia? Tem sexo explícito? Quantas estrelinhas deu
a Folha? Comerciário paga quanto? E estudante? E a classe?
A cidade de São Paulo, em seus guias de entretenimento, costuma elencar
cerca de 100 peças adultas em cartaz e umas 50 infantis, por semana, sem
falar das que não encontraram espaço nas páginas valiosas. Uma sopa
grossa, um dos maiores movimentos teatrais do mundo.
307
Mas quase tudo feito em condições precárias, em ações entre amigos,
tanto nos palcos como na platéia. O diletantismo se alastra. O vale-tudo é
geral.
Os grupos profissionais batalham pelos mais variados fomentos que
garantirão os próximos seis meses, ou o próximo ano de trabalho, com
eventuais salários baixíssimos.
Muitos de nós encontram utilidade para a ferramenta teatral treinando
executivos ou profissionais que desejam melhorar sua performance
corporal e oral.
As bilheterias não garantem a existência de ninguém. Os “grandes” só
costumam pisar no palco após acertar bons patrocínios ou cachês do
SESC ou SESI.
E quem será o queridinho da estação? A descoberta do ano? O próximo
prêmio, qualquer que ele seja (afinal grande parte dos julgamentos das
diversas premiações são feitas exatamente pelas mesmas pessoas, que
também trabalham como teóricos ou criativos)?
Os fomentos ou prêmios exigem contrapartidas sociais formidáveis, isso
quando também não exigem que o grupo tenha a chancela de leis de
incentivo fiscal que garantam que o dinheiro envolvido na empreitada
será público!
Todas as questões acima são reelaboradas e novamente respondidas a
cada nova produção. Que, além delas, ainda precisa resolver aqueles
antigos probleminhas artísticos: ou seja, precisa elaborar projetos teatrais.
308
Afinal, hoje, a criação artística é elaborada para causar impacto máximo e
logo sair de cena. Sua obsolescência é praticamente imediata. Primeiro,
chamamos a atenção do freguês. Depois, desocupamos a vitrine.
Os mundos da economia e da cultura se sobrepõem. A produção de
mercadorias ou a especulação finaceira são culturais. A cultura agora se
orienta para o marketing, produzindo imaginário. A arte publicitária
produz desejo e vende mercadorias efêmeras.
“ A criação artística deve perturbar para renovar a maneira de perceber e a capacidade de
imaginar. A arte publicitária e a moda devem agradar e impor suas normas.”
1
Como estratégia de manutenção de um trabalho independente e criativo,
proponho a realização de um teatro mínimo, simples e efetivo, centrado
na dramaturgia que os atores manejam como cacos de vidros ou navalhas.
Mas que texto é esse?
1
André Gorz, O Imaterial, Annablume, São Paulo, 2005, p. 49.
309
2. DRAMATURGIA
Vivemos no mundo de plena revolução digital, numa cybercultura que
acordou possibilidades fantásticas para a criação artística. Entre elas,
despertou em todos nós a noção de hipertexto.
Originalmente, o termo hipertexto se referia a informação digital disposta
em rede de navegação rápida e intuitiva na internet. Agora, seja on ou off
line, a noção é uma das bases de nossos processos criativos, quer nos
demos conta ou não.
Por mais linear que pareça hoje um texto, sua recepção pode ser múltipla.
Na arte, obra aberta por excelência, a noção de hipertexto propõe imenso
campo de experimentação e liberdade.
Digo, portanto, que o texto teatral hoje é um hipertexto, um cyberdrama,
que sugere links diversos e inusitados para a recepção, numa teia de fios
emaranhados e superpostos numa rede de memórias, fragmentos,
citações, palimpsetos, assertivas, falas múltiplas, enganos que nos
mergulham no gigantesco hipertexto da cultura. Épico e híbrido. Proesia.
Diálogo e narrativa. Hieróglifo e piada banal.
Uma cyberdramaturgia que se propõe como enigma e entretenimento.
Usando e abusando de hibridizações, inseminações e desconstruções de
textos, criando redes de significação em planos diversos. Participativos.
Espaciais. Enciclopédicos. Onde o receptor mergulha, simula vivências e
310
afetos, se desdobra em múltiplos plots, ou inventa avatares.
2
Uma arte
colaborativa que pode, inclusive, se passar por uma tradicional história
centrada em foco único.
Texto como partitura. Roteiro. Storyboard. Escritura. Ou como paródia.
Reciclagem de uma mitologia pessoal.
Textos nos espelhos da vida. Textos como punhais, tigres ou labirintos
borgeanos. Palimpsestos. Ruídos. Acasos. Silêncios. Repetições de um
leitmotiv. Um trabalho verbivocovisual. Com palavras-valise carrollianas.
Antropofagia. Erros. Fragmentos. Colagens. Fluxos de consciência.
Automatismos. Experimentos com drogas. Cortes aleatórios.
Singularidades. Buracos negros.
No contexto da nossa Trash Tragedy, o trabalho que mais claramente
demonstra essa situação é a dramaturgia de Só As Gordas São Felizes.
A partir do conceito de hipertexto, bombardeei a dramaticidade da peça,
de estrutura aparentemente simples. A narrativa é inspirada em fatos.
Reportagens de jornal. Mescladas a sonhos e vivências do autor.
Tudo é centrado em apenas dois personagens, num local fechado, em
tempo contínuo. Mas acontece que um terceiro personagem irrompe na
cena, estabelecendo um outro nível de diálogo, um outro tempo e um
outro lugar, feito de desentendimentos e insights.
Falas se repetem. Os personagens alteram seus estados mentais. Revelam
obsessões. Psicoses. Provocando curto-circuitos na recepção. O
2
Janet H. Murray, Hamlet no Holodeck, Unesp e Itaú Cultural, São Paulo, 2001.
311
espectador busca a comédia de costumes e encontra a paródia de seu
desejo, numa cilada trágica.
Sem jamais abrir mão da teatralidade. Uma teatralidade quase infantil.
Quase um lazzi. Com direito a uma obscena e barata canção de cabaret.
Pois bem…
Graças a todas essas experimentações, reafirmo a convicção de que o
sujeito que elabora esse mosaico, que propõe essa sinuca maldita ainda é
o velho e obsessivo dramaturgo (se quiser, pode chamá-lo de
cyberdramaturgo – à vontade).
Ele, por dever de ofício, elabora a consciência dos processos e
procedimentos acima citados. Questão mental, da revolução que estamos
vivendo. Questão de sobrevivência.
Afinal, esses dramaturgos precisam saber jogar em várias posições: criam
seus próprios textos, adaptam obras de terceiros, participam de processos
colaborativos, escrevem para TV, lançam romances e, enfim, criam e
sobrevivem.
O dramaturgo: aquele que cria, sugere, elabora e organiza ações para
espetáculos em geral. Em especial, faz isso usando como meio as
palavras. Mas não só. Esse dramaturgo, esse autor pode elaborar a
dinâmica do espetáculo como um diretor ou encenador. Como os trágicos
gregos faziam, por exemplo.
312
Para tal, após insights ou longos processos de maturação, com direito a
longas temporadas de texto na gaveta, esse exótico ser precisa conhecer e
dominar velhas palavras como “conflito”, “situação”, “personagem”,
“tempo”, “espaço”, “ação”, “verbo” e “corpo”. Seu material de trabalho.
Por dever de ofício. Por artesanato. Para negar qualquer um dos
elementos acima ou até mesmo todos. Para sorver a dor e o prazer da
experimentação.
“Fazer uma experiência com algo, seja com uma coisa, com um ser humano,
com um deus, significa que esse algo nos atropela, nos vem ao encontro,
chega até nós, nos avassala e transforma. ‘Fazer’ não diz aqui de maneira
alguma que nós mesmos produzimos e operacionalizamos a experiência.
Fazer tem aqui o sentido de atravessar, sofrer, receber o que nos vem ao
encontro, harmonizando-nos e sintonizando-nos com ele. É esse algo que se
faz, que se envia, que se articula.”
3
No escuro, sozinho, correndo riscos, rabiscando paredes com as unhas.
Em grupos, em bandos, em cooperativas ou em empregos. Fugindo da
tirania do consenso. Libertando possibilidades infinitas de vida e arte,
escancarando novas possibilidades de significado.
3
Heidegger, A caminho…, p.121.
313
3. O GRANDE E O PEQUENO
A história não tem rumo definido. Nem sempre há causa e efeito reunindo
os eventos, ou um sentido último que os redima. Aí, em nossas
experiências estranhas, nós, dramaturgos, refletimos sobre vida e morte.
Assim como nós mesmos, nossos personagens, hoje, costumam ser
pequenos. Insignificantes. Perdedores. Não fundam impérios. Nada
possuem. Não deixam traços. São muitas vezes mansos como ovelhas.
Simples. Doces. Serenos.
“O sereno é o homem de que o outro necessita para vencer o mal dentro
de si.”
4
Nossos personagens, diferentemente dos grandes heróis, não têm licença
para matar, embora muitas vezes aniquilem seus semelhantes.
“Há também uma vontade de potência dos pequenos, a do criminoso isolado,
do minúsculo grupo terrorista, daquele que joga uma bomba onde há
multidões para que morra o maior número possível de gente inocente, num
banco, num trem lotado, na sala de espera de uma estação ferroviária. É
vontade de potência daqueles que se reconhecem nesta auto-apologia: ‘Eu,
pequeno homem insignificante e obscuro, assassino o homem importante, um
protagonista do nosso tempo, e ao matá-lo me torno mais potente do que ele;
ou mato num só golpe muitos homens insignificantes e obscuros como eu,
mas absolutamente inocentes; assassinar um culpado é um ato de justiça,
matar um inocente é a suprema manifestação da vontade de potência’”.
5
Nós e nossos personagens. O imenso mundo sem grandeza. E o futuro, o
que será?
4
Norberto Bobbio, Elogio da Serenidade, Unesp, São Paulo, 2000, p. 35.
5
Idem, p. 46.
314
Claro que a arte e o teatro podem questionar, além dos sistemas estéticos,
os modelos éticos e morais. Nada impede a dramaturgia de ser, ela
própria, moralista ou moralizante – casos, por exemplo, tanto do teatro
jesuítico quanto de parte do teatro brechtiano.
A Trash Tragedy assume esse questionamento. Mas não propõe o
salvamento da alma ou do país. Embora reconheça que a batalha não para
“salvar”, mas para melhorar o país, seja uma missão inescapável do
cidadão.
O artista equaciona perguntas com sua estética. Isso tem uma dimensão
naturalmente política e moral. Mas que procura fugir à tirania e à
barbárie, sem que o artista se pretenda superior ou distanciado do social.
A economia, a ciência, o capitalismo não são morais. O homem é.
6
O teatro demonstra com precisão como solidariedade e generosidade
podem sem construídas em torno de interesses compartilhados.
Administrando as tensões entre indivíduo e sociedade.
“Em poucas palavras, o que vale mais para os indivíduos nunca é o que é
mais importante para os grupos. E vice-versa: o que é mais importante para os
grupos nunca é o que vale mais para os indivíduos. Ora, todo grupo é
composto, por definição, de indivíduos, e todo indivíduo é parte integrante de
um ou vários grupos… E, depois disso, vocês ainda se espantam com que a
vida seja tão difícil e complicada? Digamos que ela é trágica, no sentido
filosófico do termo: não porque estaria sempre fadada à desgraça e ao drama,
mas porque nos coloca diante de contradições que nunca podemos resolver
totalmente nem superar de uma vez por todas – ainda mais porque elas opõem
posições que são todas legítimas, do ponto de vista de cada uma delas (vejam
Antígona e Creonte). Nesse sentido, o trágico é o contrário da dialética, ou é
uma dialética sem perdão. Nunca há uma síntese plenamente satisfatória,
nunca há uma superação (a Aufhebung hegeliana) sem perda, nunca há
“negação da negação”, nunca há reconciliação definitiva ou total, nunca há
6
André Comte-Sponville, O Capitalismo é moral?, Martins Fontes, São Paulo, 2005.
315
consolo absoluto, nunca há vida somente de repouso… O contrário do trágico
é o paraíso. O do paraíso é a vida como ela é.”
7
Saudades do bom e velho Nelson Rodrigues?
Para a pergunta “ética ou estética?”, este trabalho responde, tragicamente:
ambas. Num combate que não cessa.
7
Idem, p.136.
316
4. POÉTICA SELVAGEM
Da orgia e da labuta sobram resíduos. Uma constelação de memórias e
experimentos, fracassos e sucessos, paixão e dor. Talvez parte desse
material possa estimular novos processos de outros artistas. Talvez seja
esse o último sentido que eu consiga alcançar para este trabalho (e por
favor, leitor, invente outros). Uma poética selvagem, nos termos
estabelecidos por Teixeira Coelho:
“... E diante dessa espessura resistente, a única semiótica viável seria uma
semiótica selvagem... que vê, que exercita uma atenção flutuante, que
negligencia os princípios, os sistemas e o instituído para entregar-se à
flutuação dos quase-signos com as variadas bóias eventualmente à mão...
Quer dizer: ao lado da poética-objeto inicial, uma quase poética que seguiria
de muito perto a primeira, respirando com ela, perdendo-se e reencontrado-se
em seus labirintos da criação.”
8
Os trabalhos analisados nesta pesquisa têm entre si links evidentes,
obsessivos.
Os personagens monstruosos, além das fronteiras da moralidade,
demônios com instantes de santidade. Abandonados, excluídos,
reprovados, deserdados, largados, incapazes ou proibidos de realizar seus
desejos. Sós. Infelizes. Apavorados, rumo ao monturo de lixo. Como em
Só As Gordas São Felizes e Licurgo/Olhos de Cão.
“Quando se trata de projetar as formas do convívio humano, o refugo são
seres humanos. Alguns não se se ajustam à forma projetada nem podem ser
ajustados a ela, ou sua pureza é adulterada, e sua transparência, turva: os
monstros e mutantes de Kafka…. – singularidades, vilões, híbridos que
desmascaram categorias supostamente inclusivas/exclusivas. … seres
8
J. Teixeira Coelho Netto, Semiótica, Informação e Comunicação, Perspectiva, São Paulo, 1990, p.
113-114.
317
inválidos, cuja ausência ou obliteração só poderia beneficiar a forma
projetada, tornando-a mais uniforme, mais harmoniosa, mais segura e ao
mesmo tempo mais em paz consigo mesma.”
9
As crianças, que quase sempre são afastadas das mães e destroçadas. Ou
às vezes surgem como estranhos signos híbridos de esperança, como na
gravidez de Io, em Prometeu Enjaulado, ou em Sete Vidas de Santo.
As mães e seus inusitados cantos de desespero, como em Bando de
Maria, em Gorilas e em Sete Vidas de Santo. Reverberando o grito da
Mãe Coragem de todos nós.
O conflito insolúvel entre o indivíduo e o coletivo, balizado pelo crime
banal, esvaziado de sentido, uma linguagem, um modo de comunicação
entre seres sem espessura.
O lixo como cenografia, pano de fundo, personagem. Seja o lixo mental,
humano ou concreto. Pois toda a situação aqui elaborada…
“…Torna o lixo um ingrediente indispensável do processo criativo. Mais
ainda: confere ao lixo um poder aterrorizante, verdadeiramente mágico,
equivalente ao da “pedra filosofal” do alquimista, - o poder de realizar a
maravilhosa transmutação da matéria inferior, sem significação e desprezível
num objeto nobre, belo e precioso. Também faz do lixo a encarnação da
ambivaliencia. O lixo é ao mesmo tempo divino e satânico. É a parteira de
toda a criação – e seu mais formidável obstáculo. O lixo é sublime: uma
mistura singular de atração e repulsa que produz um composto, também
singular, de terror e medo.”
10
A experimentação com a linguagem. As falas, os cantos, os dialetos. As
formas híbridas.
9
Zygmunt Baumann, Vidas Desperdaçadas, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2005, p.42.
10
Bauman, Vidas Desperdiçadas, p.32.
318
A teatralidade explorada até seus limites, bombardeada por formas
narrativas, acasos, silêncios.
A idéia do cyberdrama e do rizoma, abrindo redes de significação.
A idéia de grupos de trabalho, formados para a realização de
espetáculos, transformando a falta de condições numa estética. Nem
santa, nem comerciante. O trabalho material sobre questões imateriais.
Numa reflexão sobre a própria natureza do trabalho, numa luta contra a
nossa própria alienação.
A busca do embate amoroso com a platéia. O amor, o ódio. A polêmica.
O ruído. A moral. O desejo.
A experimentação com o fluxo do tempo, em muitas peças de ato único,
tempo contínuo que, paradoxalmente, gera ciclos. O fim é o começo. Ou
quase. Caso de Licurgo ou Romance Barato.
O conflito entre os espaços públicos e privados, em geral simbolizados
em situações de aprisionamento. Há peças com muitas cenas na rua ou
em locais públicos, da rua ao estádio e à delegacia: Bando de Maria,
Sete Vidas de Santo, Gorilas. Em contrapartida, as cenas privadas de
Licurgo ou de Romance Barato. Mas, sempre, impera o aprisionamento.
Como é dito em Prometeu Enjaulado: “a gente é tudo detento.”
11
A busca de um teatro mínimo: ator e palavra encontram-se com o
espectador em evento executado não por um grupo, uma seita teatral com
11
Volume 2 desta tese, p. 371.
319
pacto de sangue, mas por um bando ou uma matilha de artistas que se
agregam em projetos de trabalho. Performance de artistas raladores.
A mistura de gêneros. O humor brotando nas fendas do trágico. Como
em Só as Gordas São Felizes.
A sexualidade e a violência como linguagens do desespero. Em
inúmeras situações de todas as peças.
O confronto entre o local e o global, quer nas recriações das tragédias
gregas, quer nas peças mais evidentemente calcadas sobre a cultura ou
valores estéticos brasileiros, como Sete Vidas de Santo – ironicamente,
texto apresentado, em inglês, em Londres.
A importância da polissemia, por um lado, mas sem abdicar da
narrativa, em geral breve, misto de fato e mito, fio de Ariadne que o
espectador larga quando deseja, explorada até sua explosão, caso de
Calígula, e retomada nas peças subsequentes. Concordo com Kertész
que “ao mito só resta ser filho da necessidade.”
12
Num mundo em que as
narrativas de vida parecem precárias e sem sentido, uma reflexão sobre a
narrativa.
Um teatro que, como muitos outros de nosso tempo, na “sociedade do
espetáculo”, enfrenta as fronteiras da estética, da política e do consumo,
em espetáculos anti-espetaculares que questionam o consumidor-
espectador-cidadão. Esteja ele fora do palco ou sobre ele.
12
Irmre Kertész, A língua exilada, Cia. das Letras, São Paulo, 2005, p.103.
320
Enfim, a mímese pensada como experimentação. Experimentação com
fatos, impressões, vivências, temas e fantasias. Resultando em mais fatos,
impressões, vivências, temas e fantasias…
Todos os procedimentos até aqui expostos indicam que a Trash Tragedy
é, sem dúvida, uma das ações possíveis num teatro pós-moderno,
mesmo não subscrevendo a todos os seus “ingredientes”.
“ Algumas palavras-chave que apareceram na discussão do pós-modernismo
internacional são: ambiguidade; celebração da arte como ficção; celebração
da arte como processo; descontinuidade; heterogeneidade; não-textualidade;
pluralismo; múltiplos códigos; subversão; todos lugares; perversão; o
performer como tema e protagonista; deformação; texto apenas como
material básico; desconstrução; texto considerado como autoritário e arcaico;
performance como terceiro termo entre drama e teatro; anti-mimético;
resistente à interpretação. O teatro pós-moderno, nós ouvimos, é sem discurso
mas ainda assim dominado pela mediação, gestualidade, ritmo e tom. Ainda
mais: formas niilistas e grotescas, espaço vazio, silêncio.”
13
Evidentemente, não considero o texto como algo necessariamente
autoritário ou arcaico. Assim como as definições de mímese aqui
elaboradas não são as tradicionais, que apontam para “imitação” e
congêneres.
Há também muitos pontos de contato da Trash Tragedy com o Teatro
Pós-Dramático, como desenhado por Lehmann. Mas, em sentido estrito,
não podemos considerar nosso trabalho como pós-dramático. Afinal,
aqui, quase sempre, ainda há a aposta na narrativa, no mythos. Seja a
narrativa contínua ou quebrada, esgarçada ou paródica, com múltiplos
focos, pronta pra explodir ou aparentemente tradicional (e para uma
melhor visualização desse “aparentemente” remeto não apenas ao teatro,
13
Hans -Thies Lehmann, The Postdramatique Theatre, Routledge, Londres, 2006. p. 25, tradução
minha.
321
em obras como a de Mamet e Albee, mas também ao mundo dos
romances e novelas, em textos como os de Coetze, McEwan, DeLillo,
Bernhard, Kertész, Bernardo Carvalho…), que ainda considero
importante.
Entre as peças realizadas, Calígula é a que se aproxima mais do
paradigma pós-dramático. Vários outros trabalhos têm pontos em comum
com essa tendência (sem falar numa imensa simpatia por ela), mas
mantêm ainda progressão dramática, personagens (mesmo que sejam,
como no caso de Só As Gordas São Felizes, fiapos de tipos) e outras
características próprias do drama.
Ou seja, não há razões suficientes para, por exemplo, mudar o nome deste
trabalho para Trash Tragedy: investigações de um pós-dramaturgo
sobre o Brasil pós-trágico… ou, quem sabe, apenas, Investigações pós-
trágicas, ou pós-tragédia
Compreendo a batalha conceitual e sua importância – aliás, repito,
simpatizo com alguns dos lutadores, e me sinto parte do “time”. Sei
também que na era das marcas, criar e administrar uma tem muita
importância. Por isso mesmo, “criei” a minha anti-marca, a tal da Trash
Tragedy. Provocação artística e cultural a todo esse capitalismo tardio.
Seja ele da modernidade líquida ou da pós-modernidade.
Claro, a dramaturgia não é nem o único nem, necessariamente, o melhor,
o mais atraente, o mais eficaz, o mais gostoso ou na moda dos modos de
produzir teatro. Mas continua sendo um deles.
322
Reafirmo, portanto, a simplicidade dessas “investigações de um
dramaturgo sobre a tragédia no Brasil contemporâneo”. É dessa
contemporaneidade e de todas as suas tensões e paradoxos – ainda não
superados, talvez insuperáveis... – que venho falando. E penso que
falamos todos nós, artistas e pesquisadores que quebramos a cabeça para
atuar. Muitas vezes com uma indisfarçável sensação – quando não
certeza - de fracasso.
Aliás, na minha opinião, esse artista-investigador de que venho falando,
como já foi dito, se parece com os detetives de Dashiel Hammet ou
Raymond Chandler. Um sujeito que, de certo modo, triunfa em seus
fracassos. Um cara que apanha, trai e é traído, num clima onde nada é o
que parece. E tem uma reserva de solidão que, embora pareça
inquebrantável, algumas vezes se corrompe.
Um investigador da alma humana, seus desvãos, seus deslocamentos,
suas quebras, seus cacos. A catástrofe cotidiana. E nossos traumas.
Aprendemos com nossos fracassos? Beckett dizia que só lhe interessava
o fracasso. Caetano Veloso cantou que soube colocar todos seus
fracassos na parada de sucessos. E o Keuner de Brecht sempre estava
ocupado, preparando seu próximo engano.
Talvez, então, essa seja uma estratégia de combate. Ou, quem sabe, tudo
seja muito, muito diferente.
Confesso: talvez, nesse mundo “líquido” ou “pós”, eu seja mesmo um
homem do passado…
323
O fato é que eu me sinto como personagem da parábola sinistra de Kafka
que serve de epígrafe a este trabalho. Mais ainda, me sinto presa da
equação de Walter Benjamin em Sobre o Conceito de História:
“ Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo
que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos
estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história
deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos
uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula
incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de
deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade
sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode
mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao
qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa
tempestade é o que chamamos progresso.”
14
Bem… Talvez seja hora de terminar. E terminar com algumas confissões.
14
Walter Benjamin, Sobre o Conceito de História, in Obras Escolhidas, Vol I, Brasiliense, São Paulo,
1985, p.226.
324
5. CONFISSÕES DE UM DRAMATURGO.
Eu sou um homem do passado. Afinal, eu apenas escrevo e realizo peças
de teatro.
Pertenço a uma família de bastardos.
Meus antepassados labutavam nos grandes teatros abertos da Grécia, em
festivais populares e consagrados. Sobraram alguns traços de seu legado.
Meus antepassados ralavam no Globe, entretendo a galera com
personagens delirantes. O príncipe vingativo que conversa com o
fantasma do pai assassinado. Um homem que vie florestas se moverem. A
louca que se lança no rio…
Um outro parente meu mostrava as mazelas da medicina, da nobreza e da
burguesia para o próprio rei da França.
Um mais recente dedicou parte de seu tempo e de sua obra a combater um
grande tirano, mas entregou outra parte a outro. Entre uma e outra tarefa,
preparava maravilhosos enganos: o ensandecido Baal, a Mãe Coragem, o
Galileu.
Isso sem falar num batalhão de tios, primos, irmãos como eu,
desconhecidos.
325
Porque eu realmente pertenço a uma família grande e, sobretudo,
estranha.
Dos meus parentes se conhecem textos e espetáculos (alguns de nós
foram realmente aquilo que a humanidade resolveu chamar de “gênios” -
quer esses meus parentes desejassem ou não, quer eles tivessem a
oportunidade de aproveitar ou não).
Mas em geral não somos – nem fomos – propriamente escritores. Nem
propriamente diretores.
No sentido mais simples do termo, somos dramaturgos.
Os irresponsáveis que bolam aqueles eventos que de vez em quando
ocorrem em lugares estranhos. Às vezes, até mesmo dentro de casas que
os responsáveis chamam de Teatro. Para quantidades as mais variadas de
pessoas com os mais variados humores.
Tem gente que vem em busca de diversão. Tem quem busque companhia.
Tem quem busque certezas ou questionamentos. Tem quem queira
reafirmar seus conceitos. Tem quem deseja prazer, prazer sensorial,
direto. Outros preferem prazeres do espírito. Alguns levam um pouco de
tudo isso. Muitos simplesmente não vêm.
Tudo bem.
Você vai dizer que no fundo nenhuma família é normal. Mas o caso é que
a minha família, eu já disse, é mesmo muito estranha. Fica batendo na
326
mesma tecla, no mesmo bumbo, nas mesmas tábuas, ao longo dos
séculos.
Leve ou não pau da crítica ou da bilheteria, lá vem um novo texto, uma
nova realização. Depois outra, outro, outros.
Alguns entregam os pontos: dizem que só se faz uma peça na vida.
Repetida e repetida e repetida…
Você conhece minha família…
Em alguns períodos a sociedade ensaia a valorização da minha família. O
críticos e os pensadores acham bonito escrever e fazer peças. Dão
prêmios, até.
Em outras eras prefere-se a divisão do trabalho. Valoriza-se a obra do
encenador. O contraponto à dramaturgia. As vantagens dos diversos
olhares. A obra como resultado do coletivo. Também está valendo.
Se alguém quiser montar texto meu, maravilha. Se alguém quiser que
monte texto dele, beleza. Mas minha família sabe muito bem que precisa
cuidar do seu peixe…
OK. Confesso que minha família sempre foi meio egoísta, metida a dona
da bola. Se bobear a gente entra mesmo em cena. Mas pra maior parte de
nós jogar pro grupo sempre foi fundamental. Prazer e obrigação.
Coletivo, pra nós, é o dos atores, nossos grandes parceiros.
327
Coletivo, pra nós, é o dos espectadores. Nossos grandes financiadores.
Quer dizer: os espectadores deveriam ou poderiam ser nossos grandes
financiadores. Nosso trabalho não é feito mesmo pra eles, a partir da vida
deles, com eles? Com as paixões, os medos, o sangue deles?
Nada mais natural que role um dinheirinho.
Se essa erva, esse arame, esse tutu transitasse naturalmente entre as
nossas mãos, tanto equívoco deixaria de ser cometido…
Meio grosseiro?
Não é o Teatro um meio para um fim? Um modo de Um conhecer o
Outro e assim melhorar a si próprio e a coletividade? Um caminho para a
revolução? A diversão da burguesia? Um igrejinha laica? A Revelação ao
alcance de Todos?
Sim, sim, sim, sim, sim, sim.
Não.
Para cada meia dúzia de “sins” conquistados vale uma bela negação. Pela
pura alegria de negar. Pela necessidade vital de negar aquilo que é
certeza. Pelo desejo de deslocar a correção do pensamento, da ação, da
ação do pensamento, e, aí, sim, reafirmar com instransigência a presença
do Teatro.
E, evidentemente, o papel da minha família.
328
Eu estou falando da minha família e não daquilo que se chama “classe
teatral”. Também não estou falando dos companheiros que se alongam
em papinhos de camarim. Estou falando daqueles carinhas que escrevem
e fazem umas peças…
É bom não deixar nenhum de nós se aproximar de uma caneta com um
resto de tinta, um toco de lápis, um papel de pão. Melhor ainda afastar a
gente de tablados, palcos, cantinhos exóticos ou porões. Não nos
apresentem atores e muito menos belas atrizes. Não falem de uma
pequena verba que está sobrando.
Nós somos gente do passado. Costumamos sacanear o “aqui” e o “agora”.
Realizamos as experiências mais loucas sem o menor pudor.
Você acha que todo esse raciocínio, todo esse percurso, tudo isso é
trágico? Seria trágico se não fosse cômico? Não passa de tragédia barata,
encenada sobre monte de lixo?
Pois saiba…
A gente da minha família é capaz de fazer isso tudo.
E ainda acha que merece grana, fama, amor e sexo grátis.
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Celso Alves Cruz
Trash Tragedy
(Volume 2 – PEÇAS)
Investigações de um dramaturgo
sobre a tragédia no Brasil contemporâneo
Tese apresentada ao Departamento de Artes Cênicas
da Escola de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do Título de doutor em Artes,
sob orientação do Prof. Dr. Clovis Garcia.
São Paulo
CAC-ECA-USP
2007
350
PÁGINA PARA ASSINATURAS DA BANCA
……………………………………………
Presidente
Data:
……………………………………..………
Data:
……………………………………………..
Data:
…………………………………………….
Data:
…………………………………………….
Data:
351
ÍNDICE DO VOLUME 2 - PEÇAS:
- Prometeu Enjaulado………………….p.352
- Cidadão de Papel…………………….p.373
- Calígula…………………………..….p.409
- Bando de Maria………………….… p.415
- Sete Vidas de Santo…………………p.466
- Licurgo/Olhos de Cão……………….p.487
- Só As Gordas São Felizes…………...p.498
- Romance Barato……………………..p.531
- A Noite dos Animais…………………p.543
352
Prometeu Enjaulado
Delega – Chefe. Terno de linho branco
Prometeu – Menor infrator, 17. Nu.
Letisgô – Investigador.
Navara – Católico, romano, beato.
Dama – Puta
Io – Bailarina drogada
Cela clandestina. Periferia. Madrugada.
Cadeiras, jornais velhos, um penico, um tonel de água, um mastro com a
bandeira brasileira hasteada, duas cadeiras, alguns instrumentos de
quem trabalha neste “escritório”. Prometeu entra com mãos e pés
algemados. Atrás dele, Letisgô e Navara. Os dois jogam Prometeu no
chão e entram em posição de sentido. Entra Delega. Letisgô e Navara
fazem saudação nazi.
353
Delega: (Para Prometeu.) Sabe quem matou Tilico?
(Navara dá tranco em Prometeu.)
Prometeu: Foi o Delega.
Delega: Sabe quem despachou Caverinha?
Prometeu: Foi o Delega.
Delega: Sabe que destrinchou Pé-de-bode?
Prometeu: Foi o Delega.
Delega: Você sabe quem eu sou?
Prometeu: Não, senhor.
Delega: Muito prazer, Delega. Seu Delega.
Prometeu: Seu Delega!
Delega: Agora fecha o bico. Só abre no comando. Você é meu.
Entendeu? (Pausa.) Responde! (Pausa.) Eu sou o dono do seu corpo e da
sua alma. Sacou?
Prometeu: Seu De...
Delega: (Dá tapaço na sua cara.) Não entendi.
Prometeu: Seu.
Delega: (Outro tapa.) Cumé que é?
Prometeu: S-sim.
Delega: Mais uma vez?
Prometeu: Seu Delega é dono do meu corpo.
Delega: E da sua alma.
Prometeu: (Singelo.) Aí não vai dar que meu santo num deixa.
354
Delega: E aqui tem Santo, sua besta? (Soco no estômago.)
Prometeu: Meu Santo num deixa, num deixa. Sem ele não sou ninguém.
Delega: Você é ninguém.
Prometeu: Ele é que comanda meu búzio. Ele é que alegra minha vida.
Delega: Sua vida nem começou e já acabou, neném.
Prometeu: Quem tem santo não morre.
Delega: Você sabe onde está?
Prometeu: Na DP?
Delega: Só se for a DP do Inferno. E eu sou Lúcifer!
Prometeu: Não fala assim, doutor.
Delega: Mas que pivete pirado! Navara, Letisgô, dá uma trabalhada no
garoto!
(Os dois dão uma surra de cassetetes em Prometeu. Derrubam-no no
chão.)
Delega: Essas botas já pisaram muita fuça.
Navara: Muita. Pisaram muita.
Letisgô: Tem o Zé Flávio, o Manezinho, o Fininho, o Zé das Couve.
Delega: Muito neguinho melhor que você já lambeu essas solas.
Navara: Muito neguinho.
Letisgô: O Jesubino, o Vilebaldo, o Vangivaldo.
Navara: Fora as mina.
Letisgô: A Keitileine, a Talita Sharon a Terezinhas Menino de Jesus do
Ferro da Santa Cruz.
355
Delega: Essa era um pitel.
Navara: Depois de amaciado todo mundo esquece o nome. É tudo sujeito,
indivíduo, neguim, fodido.
Letisgô: Fodido é bom. Isso é que é. Fodidão, fodidinho, fodidona.
Delega: Você, por exemplo, até pouquinho era Prometeu. Agora se
fudeu!
Navara: Prometeu, quem foi que te meteu?
Delega: Esse aí do seu lado é o Doutor Navara. Ele passa todo otário na
vara. Sacou? Bom o trocadilho, né? O outro é o Tenente Letisgô.
Letisgô: Positivo, operante. Letisgô Creisi, mai brô. Que nem filme
americano.
Navara: Mas que porra de alcunha é essa, Prometeu?
Letisgô: Na ficha tu é J.S.S. José da Silva Santos, vulgo Prometeu.
Delega: Desembucha, bicho!
Prometeu: Prometeu é um herói grego. Aprendi na escola.
Letisgô: A bichinha é estudada!
Prometeu: Fiz até a sétima.
Letisgô: Fez mais que eu, o puto.
Prometeu: Aí caí na vida. Virei herói. Prometeu.
Delega: Tua ficha a gente conhece. Primeira cana aos 13. Fuga atrás de
fuga. 20 assassinatos.
Prometeu: Mentira! Não sou santo, mas não entrei em tanta treta!
Delega: De herói você não tem nada, rapá.
356
Prometeu: O herói grego era duca. Roubou o fogo dos deuses. Salvou os
homens. É um tipo dum Robin Hood, um Homem Aranha, um X-Man.
Um tipo dum Jesus.
Navara: Num põe Jesus no meio. Pois a gente aqui é empreiteiro do
homem e não gostamos dessa brincadeira.
Letisgô: Herói pra mim era o Fantasma. O espírito que anda. Tinha 400
anos.
Delega: De espírito o moleque entende. Dizem que tu é meio bruxo, tem
poder, faz macumba. Como que é isso?
Prometeu: Num sei. Sei que vejo coisa, escuto coisa e sei de coisa. Coisa
de santo. Me vem na mente.
Navara: Crioulo pecador! Isso é coisa do demo. É lorota pra ganhar
moral.
Delega: Mandingueiro de merda. Vai ver o que é despacho.
Prometeu: Vocês me tiraram da cana e me trouxeram pra cá a troco do
quê?
Navara: Tu é do espiritismo, vai e adivinha.
Letisgô: Na favela o pessoal caga de medo porque diz que tu é foda na
adivinhação. Pode ser búzio, carta ou até grão de feijão. Sabe moleque,
tenho uma coleção de orelha, de orelha que nem as tua, de orelha dos
esperto que eu capturo, quer ler nelas meu futuro?
Prometeu: Tenho meus direito. Que foi que eu fiz?
Delega: Não tem idéia? Não lembra nada? Nem dos sequestro
relâmpago? Nem dos assassinato por bobeira? Nem da nossa comissão
que você esqueceu de dar? Nem das informação sobre toda a moçada do
tráfico que você prometeu, Prometeu? E os tira que você matou, matou
com essa 765, e também com essa 9mm, mais a 380? Você vai morrer
com elas, safado!
Letisgô: O Prometeu prometia!
Navara: Agora se fudeu.
357
Delega: Você vai conhecer a cultura do pau, a sociologia do cacete. Vai
descansar na cadeira de dragão. Vai dormir no pau de arara. E muito
mais.
Prometeu: Eu sou di menor, doutor!
Delega: Contra a pátria não há direitos. Para manter a integridade social,
é preciso matar e destruir.
Prometeu: Eu não do bem, mas também não sou do mal... Eu posso me
recuperar...
Delega: Você pode é contar tudo que sabe da vadiagem e aí tudo bem a
gente até pode pensar em talvez quem sabe te botar de novo na rua. Que
tal? Aqui tudo mundo fala a mesma língua.
(Os dois melicos tentam fazer prometeu lamber a bota do Delega. Ele
não lambe.)
Prometeu: Filho de santo não lambe bota de filho da puta.
(Delega dá chute em sua cara.)
Delega: Gostei. Tem fibra. Milhor. É mais gostoso. Matar bandido é
melhor que enrabar mulher bonita! Antes de conhecer a garra da morte,
pau de arara nele, moçada!
Navara: Ele é jovem, guenta bem.
(Os dois preparam Prometeu. Tiram a bandeira do mastro. Usam o
mastro como pau-de-arara, arrumado entre duas cadeiras.)
Delega: Cu do mundo, Cafundó dos Judas, buraco dos inferno, quebrada
do capeta, aqui mando eu, seguindo as regras da Pátria. Ela é minha
senhora. Ela é minha amiga. Ela é minha mãe. Eu sou o seu juiz. Eu sou o
seu oficial. Eu sou seu carrasco. Você, Prometeu, é a merda da cidade. O
lixo. Você tem que aprender a dar valor à Pátria. Quem tira da Pátria e dá
aos seus acaba tomando no rabo. Filhadaputa, cabecinha, nego fedido,
não adianta dar um pio. Todo poder é duro.
(Letisgô se encosta num canto, languidamente.)
358
Prometeu: Senhor doutor Delega, o senhor não tem pena?
Delega: Vai arregar?
Prometeu: Eu não sou santo. Mas eu sou da paz. Não tomo droga. Não
bebo. Não faço nada. Só uns furto.
Delega: E aquela treta com o delegado, por quê matou?
Prometeu: Eu queria dispensar. Mas foi os colega. Disseram “ele é
milico, tem que morrer”. Mas eles que mataram. Quando atirei ele já tava
morto. Eu não mandei nada.
Delega: Mando é mando, não se discute. Mas a gente sabe que quando
tava pra morrer, o tenente ajoelhou e implorou, com as mão entrelaçada
em prece.
Navara: Lá isso é.
Delega: Chega de papo. 220 nele.
Navara: A obra está pronta. Agora pega os fios descapados, Letisgô.
(Letisgô acaricia os mamilos. Contrariado, pega os aparelhos e dá para
Navara.)
Navara: Porra, Prometeu, que merda tua sina. Abre logo o jogo. Pode
amarelar, senão a coisa fica preta.
Prometeu: Valha-me minha mãe.
Delega: Manda bala!
(Navara dá choques em Prometeu, que berra. Letisgô acaricia enorme
cassetete.)
Delega: Isso, um em cada bola. Agora! Exames... Tratamentos
psiquiátricos... Acompanhamento social... O governo e a sociedade
precisam se empenhar... As entidades civis... As igreja... Padre, pastor e
benzedeira... Cho-caaaaaan-teeeee!!!
Navara: Enfia o cassetete no coitado.
359
Prometeu: Isso não, capitão, que eu sou espada, pelamordedeus.
Letisgô: Letisgô! (Enfia.)
Letisgô: Entrou fácil. Michezinho safado.
Navara: Desmaiou.
Delega: Acorda o merda!
(Letisgô joga penico de água em Prometeu.)
Delega: Quem botava banca? Quem era sarado? Diz agora, Prometeu,
quem foi que te meteu?
Prometeu: Piedade. Eu num sei de nada.
Delega: Tira o pau dele. Tira ele do pau. Todo prazer precisa de
moderação.
((Letisgô tira o cassetete. Prometeu geme. Navara e Letisgô tiram
Prometeu do pau e largam no chão.)
Delega: Eu vou dar um tempo pra você lembrar. É hora da engorda!
Depois a gente volta, bem.
( Saem. Prometeu no chão, amarfanhado como a bandeira.)
Prometeu: (Murmura) Terror sem esperança. Terra, sol, rio, mar e mata.
Todos os santos. Que foda é a tiragem. E se eu tivesse um celular pra
avisar meus tio. E se eu ranjasse uma automática pra acabar com tanta
banca. Ah, meu santo, que esse meu dom me diz da minha sina. Sei
quanto dura um amor. Quanto voa uma bala. Quanto demora uma
lágrima. Quanto ronca uma fome. Quanto filhadaputa por cima da carne
seca. Como é que se derruba um puto? Como é que se acaba com todos
eles? Ah, meu santo, eu sei quanto rói essa dor da cana brava. Meu santo,
eu não queria ser vidente. Mas é isso que você quer, né? Então eu sei que
o fim está perto, mas dessa boca não sai um ai, que junto a meu santo eu
tenho amor a meu semelhante, eu não entrego colega, família. E tanto faz
gritar ou não. Eu sou o herói do meu povo. Eu assumi crime da moçada
de maior. Essa é a minha parte. Eu sei que obrei pela liberdade!
(Uma puta é encarcerada, fazendo barulho.)
360
Dama: Tá falando sozinho, rapá. Tá loki? Bebeu Zulu? Queimou umas
pedra? Pode sossegar, xará. A brisa me trouxe pra essa gruta. Chegou a
puta.
(Olha Prometeu.)
Dama: Bitchô, se tá mal... Caralho, meu, passaram o maior ferro em você.
Puta sangueira. Deixa eu limpar. (Tira blusa e limpa Prometeu.)
Prometeu: Obrigado.
Dama: Não é hora pra educação, cumpadi. Que é que você andou
aprontando, meu neguinho?
Prometeu: Vai saber.
Dama: Você tem cara de subversivo, né? Elemento perigoso, viu?
Prometeu: Eu... Lutei... Pela liberdade dos mano.
Dama: Faz-me rir!
Prometeu: Eu peguei em armas e roubei uns trouxa e me meti no mato e
matei milico e sequestrei escroto...
Dama: Você é comunista?
Prometeu: Eu sonhei um mundo. Eu queria um futuro. Eu pensei um
jeito. De ser feliz, sacou?
Dama: Como é seu nome?
Prometeu: Prometeu.
Dama: Prometeu. Tua fama te precede. Você é um bandido. Matou de
perder a conta. É dono de gangue, mexe com droga, mata neguinho de
bobeira.
Prometeu: Mentira.
Dama: Comigo pode abrir que não tem erro.
361
Prometeu: Eu sou uma vítima da sociedade.
Dama: Sei. Você tem mulher, pirralho?
Prometeu: Eu fiz o meu santo. Ele fez o meu dia. Eu servi comida. Eu
rezei um monte. Eu girei na noite.
Dama: Eu adoro anjo. Tem o Gabriel. Tem o Mizael. Eles que me
cuidam. Vem cá, meu menino. (Põe Prometeu no colo.)
Prometeu: Eles mataram meu pai. Eles mataram meu filho.
Dama: Tão novinho, já tinha filho?
Prometeu: Foi aos 14. Duma namorada. Ela era linda. E também morreu.
Minha mãe também. Eu tinha um vaso de flores. Eu tinha um cão bem
bonito. Eu nunca comprei um barraco. Eu gostava de roupa de marca. Eu
queria estudar. Ser mecânico. Eu tive um tênis Nike. Mas esse aqui era
meu destino.
Dama: Eu tinha uma casa. Era bem lindinha. Lá eu tinha moças. Todas
muito limpas. Todas bem cheirosas. Lá elas faziam a alegria da moçada.
E não cobravam muito. Lá eu dava prazer, entende? Isso não é liberdade?
Prometeu: Eu nunca gostei de puta. Mas dá pro gasto.
Dama: Eu agora não tenho mais. Liberdade.
Prometeu: Vou pruma vala comum varado pelo riso do inimigo.
Dama: Não tem saída?
Prometeu: Só se eu abrisse o bico e falasse tudo que sei e não sei pra
tiragem, entregando a malocagem.
Dama: É uma idéia.
Prometeu: Nem a pau.
Dama: Melhor que a morte.
Prometeu: Você tem medo dela?
362
Dama: Você não tem?
(Prometeu tem violento espasmo de dor, dos ferimentos que sofreu.
Começa a chorar.)
Dama: Meu menino.
Prometeu: Eu tenho. Eu tenho medo da morte. Eu tô me cagando.
(Dama baixa o sutiã e oferece o peito. Prometeu beija seu mamilo. Suga.)
Dama: Tive muitos filhos. Outros eu tirei. Uns criei na putaria. Uns
mandei pra longe, entreguei pra criação. Nenhum ficou comigo.
(Prometeu relaxa e dorme.)
Dama: Companhia tive muitas, poucos homens de verdade. Também
adorava ralar xota e beijo de menina é um docinho. Fazer moleque era
uma benção. Coronel era uma obrigação. Padre uma farra. Milico, um
suplício. Poeta, um doce. Heróis não tive um... Até agora... Dorme, meu
nego, que teu jugo não será leve.
(Ela recosta a cabeça de Prometeu no chão da cela. Levanta. Nota a
bandeira. Cobre o garoto com ela. Limpa o local. Parece uma dona de
casa ordeira. Prometeu acorda.)
Prometeu: Vi teu futuro.
Dama: Esse é o teu dom?
Prometeu: Coisa do santo. Eu vi tudinho. Quer que te conte?
Dama: Se fosse doce, não tava aqui. Se for amargo, não interessa. Pra
mim tá bom só o gostosinho da tua boca no meu peitinho.
Prometeu: (Prometeu levanta. Faz manto com a bandeira, um
parangolé.) Eu vejo. Na noite escura eu sei quem geme e quem ama. Eu
sei quanto dura a queda duma folha e a vida do carrasco.
Dama: E quanto dura o Delega?
Prometeu: Menos do que ele pensa. Mais do que merece.
363
Dama: Se eu pudesse matava ele. Me revistaram bem, olharam tudo que é
buraco. Mas puta boa é foda! Sempre tem uma gilete guardada.
Prometeu: Eu sei.
Dama: Se a gente vai morrer, pelo menos levamo o puto com a gente.
Prometeu: Eu sei.
Dama: Eu tasco uma sangrada naquele gogó que vai jorrar sangue no
mundo.
Prometeu: Cuidado.
Dama: Cuidado é comigo mesmo. E se você sabe que o duelo tá ali na
minha frente, também sabe que quando eu puxo a minha lâmina não
sobra vivalma na espera. Eu não aceito mais tortura. Pau de milico não
me faz cócega, porrada não me diz nada. Mas fio e pau de arara e coisa
desse tipo merece todo meu desprezo. Tudo tem limite. O meu tem a
largura da minha gilette.
Prometeu: A noite está voando.
Dama: Amanhã recomeça a sova. Depois de você vou eu. Mas você vai
ver que a coisa termina. Eu vou armar um barraco e fazer uma bela
beleza.
Prometeu: Você é tão bonita.
Dama: Eu era uma menina bela. Aí me encontrou a miséria. Aí capinei
muito campo. Aí encarei muita seca. Nas cidades pedi rapadura. E uma
soleira pra deitar a cabeça. E se o cara vinha com graça, sacava o respeito
da peixeira. Aí frequentei baile, arrumei namorado, me perdi. Um dia me
pegaram. Um bando de homem da lei. Eu era mocinha graúda. E eu
conheci minha primeira cela. Foi lá que me arregaçaram. E me deram um
gole de pinga. Aí eu vim me embora. E com a beleza que restava fiz
história. Que puta milhor nunca houve.
Prometeu: Como é que você veio parar aqui?
Dama: Não cai uma folha seca se Deus não deixar. Eu me entrego na mão
dele. Tô ficando velha. Furei um nego importante. Aí a tiragem falou que
364
eu ia ter morte lenta, gozada. Mas garanto que na hora “H” eu faço um
furdunço e fodo tudo mundo.
(Os dois se abraçam. Entra Io.)
Dama: Mais companhia.
(Io é quase uma menina. Esquálida. Mal se aguenta. Cai.)
Dama: Outra fudida.
Io: Têm cigarro?
Dama: Não.
Io: Têm erva?
Dama: Brincou!
Io: Eu preciso dum pico agora! Se não eu morro, você me entende? Se
não eu morro! (Num acesso, agarra Prometeu.) Me dá uma merda duma
droga, seu puto. (Io cai.)
Dama: Tadinha.
Io: Tadinha um cu. Eu sou uma bêbada filhadaputa uma drogada de porra
uma cagada de crack uma escrota de coca. Mas e daí? Eu sou Io. Uma
fudida. Perseguida dia e noite por tudo que é canto. Ninguém me deixar
me furar sossegada. (Para Dama.) O que é que tem esse merda?
Dama: Ele apanhou pra caralho. Vai apanhar mais.
Io: Grande coisa. Aqui é bonito. Parece calmo. Parece limpo.
Prometeu: Eu ouço os gritos de todos os fantasmas dos putos que foram
massacrados aqui.
Io: Você também tá chapado?
Prometeu: Já lavaram aqui muito sangue.
Io: É?
365
Prometeu: Eu vejo. Eu escuto.
Io: E daí? Eu não. Num enche.
Dama: Mais uma desgraçada. Um herói. Uma puta. Uma drogada.
Io: Quem é o herói? Esse aí, é? Você é o Batman, xará? Então vai se
foder, viado duma porra, dava o cu praquele pivete que te acompanhava
eu vi num filme.
Prometeu: O Robin.
Io: Num falei. Pode ser herói. Mas é viado.
(Os três riem.)
Io: Me dá um beijo? (Para Prometeu.) Você me dá? (Para Dama.) Me dá
um beijo? Você me dá? (Agarra dama e dá beijo em sua boca. Dama se
entrega.) Eu tô com Aids, falô?
Dama: Sei.
Io: Sério. Ninguém sabe. Só eu sei. Só. Eu tô cum HIV positivo, meu.
Mas os milico num sabe. Eu tô com a arma na mão, sacô? Eu vou morrer,
morou?
Dama: Aqui todo mundo vai, pirralha. Isso aqui é o corredor da morte,
nenêm.
(Io chora.)
Io: Mas não era pra ser. Era pra ser bem bonito. Era pra ser a casa de
minha mãe. Era pra ser um namorado novo. Era pra ser comida caseira.
Podia ser também um pico bem dado, bem dado. Um pico furioso. Mas
isso, isso não se faz.
Prometeu: Isso não se faz.
Io: Eu trabalhei no trem. Eu vendia tudo. (Canta.) “Óiágua, óiagua,
óiagua. Um sufré, um real, um sufré, um real.”
Dama: (Canta.) “Doce de leite é dez. Dez é um real. Doce de leite é dez.
Dez é um real. É qualidade Nestrê!”
366
Io: “Aceito passe, cmtc, vale-transporte!”
(As duas começam a cantar juntas seus bordões. Prometeu entra na
brincadeira.)
Prometeu: (Sobre o canto, declama.) “Uma esmola para um pobre cego.
Não enxergo o que como. Não enxergo o que visto. Não enxergo nem o
arame que vocês me dão. Só deus tá vendo, que tudo ele vê.”
Io: (Ainda cantando.) “Ói o chicrete, ói o chicrete, é o bigboa, dez
centavo.”
Dama: “Compro, passo, vendo, faço, aceito, traço...”
Prometeu: (Cantando.) “É Jardim Ângela, é Jardim Ângela, Via
Marginal, quem vai?”
(Os três cantam vários refrões ao mesmo tempo. Parece um mercado. Ou
um resíduo de um coro grego perdido.)
Io: (Interrompe num grito.) Eu não tenho amanhã.
Dama: O futuro a Deus pertence.
Prometeu: Eu sei.
Io: E como é que você sabe, cuzão?
Dama: O cara é um tipo assim dum pai de santo, um vidente, um Chico
Xavier? E também um criminoso cheio de morte nas costas. Tudo meio
misturado.
Io: Legal! Fala de mim, meu, fala. Depois me mata, me mata!
Prometeu: Eu não tô legal.
Io: Tá sim. Fala. Cê lê carta, joga búzio, olha mão, qual é a tua?
Dama: Ele chupou meu peito e disse que sabia tudo de mim.
Io: Chupa os meus, ó! (Tira peitinhos da blusa.) Quer chupar mais? Quer
meu xibiu? É só meter a boca.
367
Prometeu: Não tô afim.
Io: Foda-se! Eu quero um filho, um filho seu. Vem me dar um filho.
Dama: Mas você tem Aids.
Io: Ele vai morrer mesmo. Eu vou morrer. Mas um filho nosso pode ser
que não. Num pode? Fala que pode!
(Io corre e abraça Prometeu. Escorrega por seu corpo. Procura seu pau.
Começa a chupá-lo.)
Io: Começa a falar, amigão. (chupa.)
Dama: Ele chama Prometeu.
Io: Podia ser pior. Gugu. Faustão. Sérgio Mallandro. Sei lá. Fala. (chupa.)
Prometeu: A hora de todo filhadaputa chega. Pode ser golpe ou
revolução. Pode ser bala ou faca. É tudo banho de sangue.
Io: Agora me come. (Io deita de pernas abertas. Prometeu, em transe,
obedece. A bandeira é um lençol. Trepam lindamente. Dama canta.
Gozam rápido. Io sai do abraço, enrolada na bandeira.)
Io: Fui eu que vi. Que coisa linda. Nossa. Era um lugar. Um lugar assim,
de novela.
Prometeu: Eu não vejo nada.
Io: Você vai morrer antes da manhã, banhado em sangue. Mas não será só
o seu. Você lutou pela liberdade. E já deu mais que a vida por ela. A tua
luta é bonita. Eu te amo, Prometeu.
Prometeu: Eu me sinto só.
Io: E tem mais. Você me fez um filho agora nesse instante. E ele vai viver
com o teu e o meu sangue. E ele vai lutar pela liberdade. Como fez o pai.
E como fez... A mãe. Agora eu sou mãe. Obrigado.
(Dama chora.)
368
Io: Pára de chorar.
Dama: Mas é que é tão lindo. Quando duas pessoas que a gente gosta se
amam.
Io: Os negos vêm vindo. Pegaram o elevador. Desceram no corredor. Vão
chegar já, já. É hora da luta.
(Chegam Delega e cia.)
Delega: Família unida!
Navara: Olha que bonito, doutor!
Delega: Dá gosto.
Letisgô: Posso dar logo umas bordoada e acabar com a festa?
Delega: Calma. Senhoras e senhores, a hora está chegando. A hora da
limpeza carcerária. Dá essa bandeira, putinha! (Arranca bandeira de Io.
Segura-a como um devoto, um juiz no tribunial.) Caríssimo amigo
Prometeu, você é o primeiro da lista. Levanta. Postura! Hora de pagar as
pena. Você é acusado de roubo. Assassinato. Etc. E depois tem esse dom,
que ganhou, é coisa do capeta, e não usa pro bem. Por isso, abre o bico,
fala do mundo, tudo que sabe. Ou morre.
Prometeu: Eu não sei de nada.
Delega: Mentira. Ajoelha, viado! (Dá a bandeira para Navara. Ele vem
por trás de Prometeu e faz com ela uma venda no preso.)
Prometeu: (Vendado.) Eu não sei quem matou minha família. Eu não sei
quem manda pra valer nessa merda. Eu não sei porque me tiraram da
carceragem. Eu não sei quando fico de maior. Eu só estou aqui. Sei que
lutei pela liberdade. Sei que vou morrer. Mas também sei que vocês
também já tão morto. Só isso. Mais nada.
Delega: Mentira. Esse teu dom de profecia é mentira. É logro. Esse teu
dom...
Prometeu: Não tenho mais. Perdi.
Dama: Isso é verdade, eu sei.
369
Delega: É mesmo, Dama? E o que mais ele te contou?
Dama: Contou toda sua história. E eu acreditei.
Delega: Não foi pra isso que a gente te plantou nessa cela. Mas porque
você é uma cobra criada e podia arrancar do pivete o que o pau não tirou.
Que mais o babaca disse? (Letisgô dá uma porrada em Dama.)
Dama: Eu tava aqui pra te trair, Prometeu. Mas eu não te traio mais.
Prometeu: É.
Dama: Porque eu acredito.
Io: A cadela é dedo-duro.
Dama: Prometeu não vale mais nada. Mandem ele embora.
Delega: Você sabe muito bem que ele já está morto. Cuidado para não ser
a próxima.
Io: Eu não tenho nada a ver com essa história, gente. Eu sou só uma
fudida. Dá pra alguém me por em outra cela e me deixar dormir.
Delega: Você é o nosso aperitivo, pra abrir o apetitie, menina.
(Navara larga Prometeu. A bandeira cai. Os milicos agarram Io.
Prometeu reage. Dama vai prum canto da gaiola. Navara puxa faca e
fere o ventre de Prometeu.)
Delega: (Desabotoando a calça para traçar Io.) A gente precisa ser
limpo. A gente precisa ser científico. Certo moçada?
Letisgô: (Também se preparando.) Positivo, positivo.
Navara: Por favor, seu Delega, primeiro o senhor.
(Delega cata Io. Tudo é rápido. Ela gargalha. E se entrega.)
Io: Vocês são bem vindos no país da morte.
370
Letisgô: Eu não vou ficar com a colher de prata. (Pega Io depois de
Delega.)
Delega: Hoje tem bons métodos de resolver o problema da lotação dos
presídio. A gente pode usar pittbull. A gente pode usar vala comum. É só
a gente agir na calada. E por atacado. (Nesse meio tempo, Navara já está
traçando a moça.)
Letisgô: Posso ir de novo, doutor?
(Navara goza. Io cai, se abraça com o trapo da bandeira.)
Delega: Agora, o prato principal. Pro-me-teu.
Letisgô: Eu vou comer o figo desse desgraçado. Mal passado. Sangrante.
Ou no vinagrete. Com chopps. (Avança para Prometeu e começa a
devorar seu fígado. Nessa hora, Dama puxa gilette da boca e corta o
pescoço de Lestisgô. Prometeu sai de lado. Navara avança com faca
sobre Dama. Luta. Dama se levanta sobre o corpo morto de Navara.)
Dama: A puta acabou com mais um filho da puta. (Cai morta.)
Delega: (Puxando pistola.) Conhece essa automática, Prometeu? Acabou
a farra!
Io: Eu tô com Aids. (Corre para abraçar Delega.)
Delega: Vaca filha da puta! (Dá um tiro em Io. Os dois tombam
abraçados. A arma cai. Prometeu, mesmo algemado, pega a pistola.)
Prometeu: Era com essa que você ia me matar? Foi essa que você pegou
de mim. Quer saber a verdade? Essa que eu usei pra matar teus colega
viado. Essa eu usei nos meus crime. Eu não matei 15. Foi 30. Teve
canalha e teve santo. Que não sei me segurar. Só meu santo me segura.
Mas às vezes nem ele. Filhos da puta como tu fazem esse mundo de
merda como ele é. E filhas da puta como eu. Eu sou um merda. Um herói
de merda. Perdão, meu santo, perdão. Meu santo, me valei! Tira essas
algemas de mim. (Delega obedece. Livre, Prometeu começa a girar,
possesso.) Agora ajoelha e reza, porque você vai morrer. Na mão do
Prometeu enjaulado.
Delega: Eu deixo você fugir.
371
Prometeu: Brincou? Ajoelha, xará. Pega essa bandeira e cobre o rosto,
que a execução vai ser de primeira. (Dá coronhada em Delega.)
Delega: (Ferido, ele se cobre.) Eu me chamo Jozeus de Sousa. Tenho 33
anos. Estudei, tenho curso superior, concurso público. 3 filhos. Um
financiamento. Uma amante. Um cachorro.
Prometeu: Eu tive um cachorro. Vamos lá, reza!
Delega: Você pode matar o delega. Aí a sociedade delega e aparece mais
100 no lugar. Você pode matar 100, 1000 Delega. E aí pode ser que a
sociedade, as Patricinha e os Mauricinho, os doutor e as madame, sem ter
pra quem delegar, pode ser que eles puxem as automática dos porta-luvas
dos importados lá deles e venham eles mesmos fazer o serviço. Tem o
Delega. Tem quem delega. Esse é um emprego como outro qualquer. O
Delega é um coitado como você.
Prometeu: Aí que tá: eu não sou um coitado. Já rezou?
Delega: Tudo bem: eu gosto desse serviço. Não exige muito. Tem tempo
livre. Dá pra fazer uns por fora. Depois, é bom matar.
Prometeu: Também acho.
Delega: Isso tudo é uma guerra. Eu não vou morrer vendado. (Tira a
venda.)
Prometeu: Cê que sabe. Eu sou J.S.S., José dos Santos Silva. 17 nos
registro. Gosto de tênis Nike. Não tenho ninguém nem nada. Mas quem te
mata não sou eu. É Prometeu.
Delega: Eu sou uma criança com sangue no olho. Perdão, minha mãe.
Prometeu: A gente é tudo detento.
(Prometeu atira na cabeça de Delega.)
Prometeu: A palavra cala. O ato fala. Essa minha pena é injusta.
(Prometeu põe a pistola na cabeça e atira.)
Io: (Levantando no meio dos corpos, ferida.) Meu... Prometeu... Eu...
Aprendi a tratar dessa doença da vida com desdém. Eu... Vou soltar o
seu... Filho... No mundo... Prometeu... Eu vou soltar. E ele vai levar no
372
sangue todos teus dom. Que ninguém deve de respeitar mais é deus coisa
nenhuma. Que os ratos comam tudinho. Que as mosca bebam todo esse
banho de sangue. Parece TV, parece jornal, parece a vida. (Cobre os
corpos amontoados com a bandeira, como quem abriga uma criança.) Eu
preciso de um pico. Adeus.
(Vai embora.)
FIM
373
Mano & Mina na Cidade de Pedra
(Cidadão de Papel)
Peça inspirada no universo e nos personagens dos livros de Gilberto
Dimenstein, especialmente Cidadão de Papel, Aprendiz do Futuro e
Mano descobre o Amor. O texto, criado para espetáculo Infanto-juvenil
da companhia Teatro X, com direção de Paulo Fabiano, resulta do
trabalho conjunto do dramaturgo, do diretor, do jornalista Gilberto
Dimenstein e das improvisações dos atores.
Agosto de 2001
Personagens:
Mano: Menino classe média de São Paulo.
Mina: Menina de rua.
Pedra: Menino de rua.
Sora: vendedora ambulante.
Ioda: catador de lixo.
Ele: Uma voz.
Cachorra Louca: prostituta de rua.
Pepê Popozuda: travesti.
A peça acontece numa São Paulo sonhada. Todas as ruas levam ao
Centro.
374
Cena 1: Os documentos de Mano.
Meio da rua. Meio de tarde.
Mano: (Para platéia.) Oi, Mano. Eu sou o Mano. É. Mano. Mano de
Hermano. Digo: meu nome é Hermano. Nome espanhol. Quer dizer
irmão, my brother. Daí a “mano” foi rapidinho. Mano. Tô aqui hoje
procurando trampo. Nada muito grave. Trampo maneiro. Pra facilitar as
baladas. E pra dar força até o vestibular. Tem isso também, né... Ves-ti-
bu-lar. Tô com todos os documentos aqui comigo. RG. Histórico. CPF.
Pra me increver na Fuvest. Mato dois coelhos numa cacetada. Trabalho,
Fuvest. Mas acontece que pra falar a verdade eu não sei pra que que eu
presto. É. No sentido concreto e no sentido figurado, entende, mano? Eu
presto pra quê? A gente fica na escola um tempão, aprendendo um monte
de coisa zoada, que não serve pra nada... e aí, tem que prestar. Mas
prestar como, o quê, pra quê? Pra vencer na vida. Pra vencer na vida?
Quanto engenheiro vira suco, médico vira pipoca, advogado vira Big
Mac. Diploma não dá mais moral. Quer dizer: só dá moral. Mas não paga
conta. Ou melhor: é uma foda pegar um carinha como eu, que ainda sou
fissurado na Lara Croft, e meter no tal do mercado, sacou? Daqui a pouco
vão me botar um paletó e uma gravata e aí, aí acabou, né? Sei lá. Dá tanta
dúvida. Ó (mostra identidade). Esse sou eu. Hermano. Mano. 17.
Brasileiro. De família de imigrantes. Gente que pegou pesado, sabe?
Pesado pra eu fazer escola, sacou? Agora tô terminando o terceiro do
segundo grau. 50 paus na carteira. Você tem alguma coisa, uma saída, pra
me oferecer?
Cena 2: Crazy de Pedra:
(Entra Pedra.)
Pedra: E aí, Mano, falando sozinho?
Mano: Eu te conheço, Xará?
Pedra: Tem alguma coisa pra dar?
Mano: (Estende a mão.) Eu sou o Mano.
375
Pedra: (Saltando fora.) Meu é que não é. Tem?
Mano: Tem o quê?
Pedra: Coisa pra dar?
Mano: Tipo?
Pedra: Grana.
Mano: Não.
Pedra: Tô pedindo com jeito.
Mano: Não tenho.
Pedra: Tô sendo educado.
Mano: Só tenho pro ônibus, ida e volta, o do metrô...
Pedra: Mentira. (Puxa estilete.)
Mano: Pô, Mano!
Pedra: Não sou teu mano, rapá! Tá ligado? Dá um dinheiro aí.
Mano: Que é que cê vai fazer com mixaria?
Pedra: O cara tá me tirando... Dá a carteira senão te furo.
Mano: Olha, pra falar a verdade tô com o dinheiro do vestibular...
Pedra: Achei que tu tinha cara de Mauricinho.
Mano: Mauricinho nada, meu. Tô procurando trampo e vou me
matricular no vestibular. Só isso.
Pedra: Maior barato assaltar neguinho laranja que nem tu. Neguim que
acha que sabe das coisa. É estudado. Queria ver passar no vestibular da
rua... É, rapaz, chegou tua hora de levar aula de professor chumbo grosso.
Vai aprender, mas vai pagar. Que aqui o ensino é pago, morou?
Mano: Vamos ser civilizados.
376
Pedra: A gente samos 160 milhões de picaretas. Desses, 65 milhões de
picaretas miseráveis. Desses, 34 milhões de picaretas mortos de fome,
sacou?
Mano: Saquei.
Pedra: O salário mínimo é 70 dólar. O ferrado do meu pai rala o mês todo
pra sustentar mulher e dois filhos com isso. Dá menos de 2 dólar pra cada
um por dia. Agora responde, quanto custa o Mac Lanche Feliz? Dois
dólar? Quanto custa pra eu ficar feliz?
Mano: Então a solução é roubar?
Pedra: São 20 milhões de carinhas que nem eu querendo ficar MacFeliz.
São 200 roubo por minuto. Dá 3 por segundo. Então vamo logo que eu já
tô atrasado: passa a carteira.
Mano: Tó. Devolve só os documentos.
Pedra: Sempre quis ter. Documento.
Mano: Sem eles, não presto Vestibular, nada de emprego.
Pedra: Então agora a gente tá igual. (Abre carteira, pega RG)
Mano: Cê sabe ler?
Pedra: Fiz até quarto ano do grupo. Dá pro gasto. Her-ma-no. Olha só,
xará, não é que o cara é Mano mesmo...
Mano: Sou Mano.
Pedra: Meu nome é Pedra. É que sou Lóki de pedra. Craque do Crack. Já
fui da cola, do esmalte, do back, tá ligado? Já tô meio no lucro. É o
seguinte: esfumaço umas 20 pedra por dia e tudo beleza. Tem cara que
pipa paca mas não domina. Eu não. Pipo porque quero. Paro na moral, só
querer. Mas não quero, sacou? Que as pedra alivia minhas cicatriz. Tenho
uma no peito, mas num mostro, que é bem verdade parece um coração, do
lado de fora, feito a faca, minha mãe que fez, acho, que ela taí, a cicatriz,
desde pequenininho. Só coração, sacou? Bem, tô tirando. Pedras que
rolam se encontram pela vida, certo, Mano? Valeu! (Sai.)
377
Mano: (Só) Merda, merda, merda. Não posso ficar assim. Não tenho nem
pra chegar em casa. Vou pedir? E se chegar assim, meu pai me estoura?
Cadê milico quando a gente precisa... Quer saber, ó... O pivete deu sorte,
me pegou desprevenido. Agora vou atrás dele e dou o troco. Quero o que
é meu de volta!
(Sai correndo atrás de Pedra.)
Cena 3: A Fuga da Mina:
Mina se debate. É surrada por alguém invisível. A cena lembra um
delírio, talvez de drogas. Em OFF, Ele atormenta a garota.
Senhor: Me-ni-nin-há estúpida. Va-quinh-há. Ga-lin- há. Precisa
aprender. Que tal outra pesada na barrida? Quando te comprei tua mãe
não disse que tu era imbecil. Achei que o custo benefício era ra-zo-á-vel.
Mas acho que tô no prejú. Então, aprende!!! (A menina é surrada por
mãos invisíveis.) Dessa vez não vai ser pra botar filho fora. É só escola,
nenê, escola.
Mina: Desculpe, senhor.
Senhor: Como?
Mina: Perdão.
Senhor: Você precisa pensar mais na nossa empresa. Na era globalizada,
com tanta competitividade, você precisa se dedicar mais ao negócio.
Mina: Sinto muito.
Senhor: O mercado tem mãos invisíveis. Não deixa ninguém escapar.
Então você precisa escolher. Farol pra pedir. Esquina pra se vender.
Otário pra assaltar. Senão vem a... concorrência... e leva tudo!!!
Mina: Mas, SENHOR, é que eu também tenho meus... Direitos...
378
Senhor: Direito à vida. E se não fizer direito, morre. Direito a comida. E
se não for bem comida, se dana. Direito a abrigo, e a cidade tá cheia de
marquise. Portanto, faz o que eu mando e não tentar fugir mais.
Mina: Sim, Senhor.
Senhor: Bonito... Então tá. Bom serviço. Até.
(Silêncio longo. Mina se recompõe. Aguarda. Nada.)
Mina: Senhor... Ainda tá aí... Senhor... Foi embora! FILHA DA
PUTA!!!Não vou me entregar jamais, seu corno. Eu sou mais eu. Eu sou
uma Mina de responsa. Não sou Patrícia, sei pegar no pesado. Criei 5
irmãos, troquei fralda, dei banho. Não sou tchutchuca, na pista das boate.
Sou do batente, não temo serviço. Não sou perua nas sala de cabelelero.
Já trabalhei em casa de família, lavo, passo, cozinho. Essa merda nem sei
porque ficou assim. Essa pobreza é dura. Mas ainda fujo e faço um
supletivo. Pra quê presta essa vida se não for de outro jeito? Cansei dessa
canseira. Bobear,volto pra terra dos meus pais, Minas, Bahia. Compro
terreno, caso, tenho filho. Tenho até um amor, quem sabe...
Cena 4: Mãe de Rua.
Entra Sora. Monta barraquinha de camelô. Pisa na merda. Reclama.
Limpa sapato. Tira caderno surrado do bolso. Escreve. Ar romântico.
Sora: Meu... Amor... Não! Meu... Grande... Amor! Não! Meu... Grande...
e Único... Amor! Melhor. Meu grande e único amor... Eu... Me... Sinto...
Só. Não. Eu... Me... Sinto... Muuuuuuito.... Só. Só. Isso. Saudade. Isso...
Onde anda você?
(Entra Pedra. Espreita. Ela percebe e se recompõe. Esconde o caderno.)
Sora: Fala, garoto!
Pedra: E aí, Sora, beleza?
379
Sora: Hora do batente, moleque, já ouviu falar?
Pedra: Nem. Mas já faturei legal hoje. Guarda pra mim?
Sora: Pirou. Já num te disse que não gosto de guardar o resultado das tuas
tretas?
Pedra: Cê é meu banco, Sora!!!
Sora: Já tô há 20 anos na rua e nunca vi moleque mais folgado.
Pedra: É que senão, queimo tudo.
Sora: Já tô na rua há 40 anos e nunca viu moleque tão fissurado que nem
você.
Pedra: Guarda, vai...
Sora: E é só pra tu não queimar... E só se você prometer que vai largar
das pedra.
Pedra: Não faço promessa que Deus não gosta. Quanto já tenho contigo?
Sora: Uma bolada.
Pedra: Quanto?
Sora: Uns mil e poco.
Pedra: Beleza.
Sora: Que cê vai fazer com a grana?
Pedra: Dar pra minha mãe.
Sora: Mas você não sabe nem onde ela anda?
Pedra: Mas um dia posso encontrar.
(Pedra dá para Sora a carteira de Mano.)
Pedra: (Mantém consigo o RG de Mano.) Agora tenho identidade.
380
Sora: Ah, bom...
Pedra: A Sora é bem legal. Fiz até um RAP pra Sora. Quer ver?
Sora: Preciso trabalhar.
Pedra: É rápido.
Sora: Então manda.
Pedra: (RAP, como Régis me mostrou.)
Sora: (Emocionada, esconde lágrima.) Tô... Na... Rua... Há 60 anos e
nunca... Fizeram um sambinha, um bolero, um iêiêiê pra mim. Brigado.
(Abraça Pedra. Ele se assusta. Quer sair do abraço. Acaba cedendo. Se
entrega. Ela beija sua testa. Ele está quase chorando. Ela começa a
acariciar sua cabeça. Ele sai do abraço e se recompõe. Pedra está de
volta.)
Sora: Cê tá chorando?
Pedra: Homem não chora.
Sora: Tá, sim.
Pedra: É cisco, pedrisco.
Sora: É nada.
Pedra: É pó de bosta, fumaça, escapamento de busum. Só isso. Tô
sartando.
Sora: Então até.
Pedra: Sora?
Sora: Oi?
Pedra: Quem sabe num já achei a minha... Mã...e? (Sai. Correndo.)
381
Cena 5: Pisada:
(Entra Mano, correndo.)
Mano: Dá licença. A senhora por acaso viu um pivete assim do meu
tamanho, com um gorro na cabeça, vestido assim assado...
Sora: Aqui passa tanta gente.
Mano: Mas esse é bandido.
Sora: Tô na rua há 80 anos e todo dia passa um montão de bandido aqui.
Mano: Esse me roubou.
Sora: É mesmo?
Mano: Me levou grana e documentos.
Sora: Faz B.O.
Mano: Onde é a delegacia.
Sora: Longe. Nem sei explicar.
Mano: Eu só tinha pra condução...
Sora: Essa é velha, garoto, conta outra...
Mano: Como assim?
Sora: Tô na rua há 100 anos e conheço essa lorota faz tempo. Vai tentar
engrupir essa velha senhora?
Mano: Não é grupo. É sério. Não tenho nem pra voltar pra casa.
Sora: E agora vai querer assaltar a coitadinha da velhinha? Olha que sei
maneja uma lâmina e deixo um recado nocê, é pra já!
Mano: Magina!!! Só tô pedindo ajuda. Perguntando se a senhora viu o tal
carinha...
382
Sora: E se eu vi, que é que muda? Você vai fazer o quê, prender ele?
Mano: Talvez. Preciso é fazer alguma coisa, né?
Sora: Esses pivete é perigoso, se droga.
Mano: Esse usa Crack.
Sora: Num disse? Melhor você sartá!
Mano: Nem fudendo...
Sora: Boca suja. Falar assim com uma pobre duma velha.
Mano: Desculpa.... de jeito nenhum.
Sora: Ah, bão. Se quiser te dou um trocado pro ônibus. Daí cê volta pra
casa e chora, nenê.
Mano: Brincou. Eu vou atrás do Mané até o fim, falou!
Sora: Tá armado?
Mano: Vou na moral. Na palavra.
Sora: Estou na rua há 120 anos e nunca vi moleque tão irado.
Mano: Ele vai me entender.
Sora: Ah, bão...
Mano: Ele vai me entender assim como eu entendo ele.
Sora: (Gira, nervosa, pela rua.) Ah, é? (Pisa num cocô.) Merda!
Mano: É isso. A gente está tudo na mesma merda.
Sora: Não. Pisei na merda. Merda. Merda. Por que o pessoal não deixa
seus cachorrinho cagá em casa... Ou então não anda com pá e cata a
sujeira dos coitadinho. Por quê é que todo santo dia eu tenho que pisar na
merda, guri. Me diz aí, você que é estudado, quantas vezes você tem de
383
desviar de merda toda vez que sai de casa? E quantas vezes você pisa
numa?
Mano: Calma!
Sora: Calma um cacete! Eu nem posso vender meus baguio sossegada.
Meus radinho paraguaio, meus maço de cigarro, meus passe, meus chá de
erva do norte... Quando num é o rapa que me põe na merda... é a própria
merda que me põe nela mesma, sacou?
Mano: Bem, acho que eu vô indo.
Sora: Vai nada. Escuta, neguinho. Tudo ainda é baby. Só compra em
shopping. Só usa griffe. Então toma cuidado. Que aqui na rua um pode
pisar nocê que nem que eu pisei na merda. Sem nem querer, sacou? Então
toma um trocado e se manda. (Tira da carteira uns trocos do dinheiro
que Pedra tomara de Mano e oferece ao menino.) Nem ouse recusar!
Toma. Agora, pica!
(Mano sai.)
Cena 6: Ligação.
Ioda em seu maravilhoso telefone celular.
Ioda: Paixão misteriosa. Paixão adolescente. Paixão de poeta. Paixão que
move coração. Paixão que remove montanhas. Essa é a minha paixão por
você, meu amor...Tenho tanta... Saudade... Ih... Caiu a linha! Vou ligar de
novo. TRRRRIIIIIIIM. Tocou. Alô. Quem é? Ah, é você? Fala. Sei. Sei.
Sei. Um garoto? Assaltado? Documentos? Identidade? Mano. Sei. Fue la
mano invisible del mercado? Si, si, si...No, no, no... E se ele aparecer por
aqui? Droga. Caiu a linha. De novo.
(Entra Mano.)
Mano: Oi.
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Ioda: Óóó......
Mano: Por favor...
Ioda: Óóó....
Mano: Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece...
Ioda: Ulysses!!!
Mano: Que Ulysses, que nada, meu nome é Mano!
Ioda: Meu mano Ulysses, que prazer voltar a vê-lo... Já faz quanto tempo,
mesmo? Pois veja você que eu estava justamente aqui no meu telefone
conversando com... “ele”... e, bem... “ele”... disse que você ia aparecer
por aqui a qualquer momento... Realmente... “ele”... Sabe das coisas...
Mano: Ele quem?
Ioda: Seja bem vindo nessa humilde calçada. Você deve estar cansado.
Afinal, anos vagando pelos oceanos, enfrentando perigos, longe de casa...
Sei como é isso... A gente chega até a perder a identidade....
Mano: O senhor perdeu a sua? A minha foi roubada.
Ioda: Não!
Mano: É. Fui assaltado numa esquina aí.
Ioda: Já sei. Foi o ciclope, não foi. Que levou seus bens mais preciosos...
Mano: Foi só um pivete que levou minha grana e meus documentos....
Ioda: Pois conte com minha ajuda, meu velho amigo... Dá um abraço!!!
Mano: Desculpe, mas não te conheço.
Ioda: Coitado, nem se lembra mais das coisas. Sei como é isso. Vagar
pelos oceanos de concreto. Mas conte comigo. Conte sempre.
Mano: E quem é você?
385
Ioda: Sou Ioda, o cidadão de papel. Longe da velha glória, singro estas
ruas catando lixo. Jornais velhos. Embalagens plásticas. Imundície em
geral. Com elas faço meu soldo. E com elas vivi à espera de sua chegada,
velho amigo. Sei que como vou ajudá-lo, você vai me ajudar.
Mano: Ajudar como?
Ioda: A reencontrar o meu amor. É. Perdi. Perdi. Só restou uma velha
tatuagem. E um número de telefone. Mas a linha cai toda hora. E
acontece que a paixão futuca meu peito, Ulysses, você precisa me ajudar
a encontrá-la.
Mano: Não consigo nem achar minha carteira, vou conseguir encontrar
uma mina?
Ioda: Uma mina de amor, a mais valiosa de todas. Mas cuidado. Cuidado.
Cuidado com os inimigos. Com o bombardeio terrível.
Mano: Que bombardeio?
Ioda: O das pombas....
Mano: Das pombas?
Ioda: As pombas são seres terríveis, sabia?
Mano: Magina, são até o símbolo da paz...
Ioda: A vida é assim: ilusão. Mas o cocô das pombas corrói a cidade.
Mano: Até parece.
Ioda: É verdade. A pomba é o rato com asas. Ela come lixo.
Mano: É mesmo?
Ioda: Me responda, todo mundo tem duas saídas, uma pra xixi, outra pra
cocô, certo?
Mano: Certo.
386
Ioda: Errado. A pomba é só cloaca. Então, dá pra sacar a miséria. Seu xixi
é ácido puro. E estamos sob bombardeio. Eu queria ser um gavião pra
destroçar todas as pombas dessa cidade de pedra.
Mano: Pedra. É esse o nome do garoto que eu procuro. Pedra. Conhece?
Ioda: Eu conheço todos os seres da rua. O criptococo, o salmonelose, o
histoplasma... Todos os parasitas das pombas... E também conheço Pedra.
Mano: Um safado.
Ioda: Olha pra essa calçada. É uma pedra atrás da outra. Olha pra esse
asfalto. Quanto pedrisco com pixe. Com quantas pedras você faz uma
pirâmide?
Mano: Mas ele me roubou.
Ioda: Atire a primeira pedra quem também não for uma pedra dessa
cidade de pedra.
Mano: Tô me sentindo uma besta.
Ioda: Tô me sentindo só. Só. Nessa cidade de pedra perdi meu amor.
Paixão adolescente. Paixão pra vida toda. Paixão que remove montanha
remove arranhacéu? Diz, moleque: paixão que fica na lembrança sabe
encontrar na multidão a carametade?
Mano: Nunca amei ninguém. Ainda.
Ioda: Logo acontece. O mundo tá cheio de sereia. Quando a noite cai,
como agora, o mundo fica cheio de peixão, quer saber, com o canto doce
e gostoso pra você se perder... Não é amor de verdade, mas é escola... Ói.
(Entram prostitutas. Entre elas, sem jeito, Mina.)
387
Cena 7: O canto das sereias preparadas.
Cachorra Louca: Bôas Noites, baixinhos...
Pepê Popozuda: Olá, moçada...
(Mina num canto, fora de tom, tímida.)
CL: Hoje o show está 10.
PP: Bem vindos ao Beco do Prazer.
CL: Hoje tem carne nova pra vocês.
PP: Uma tremenda tchutchuca. (Aponta Mina.)
Mina: Não sou tchutchuca...
CL: A paquita do boquete...
Ioda: Nossa, cada peixão! Mano, cuidado com as sereias...
Mano: Não curto esse lance de puta.
CL: Onde é que você está vendo uma puta, nenê?
PP: É, do que é que você está falando?
CL: Somos artistas, estrelas, performers...
PP: A palavra “puta” não faz parte do meu vocabulário afetivo.
CL: Meretriz, rameira, prostituta, vagabunda, pistoleira, biscate...
PP: O que vem de baixo não me atinge.
CL: Eu sou a apresentadora das ruas. A loiruda da noite, a Hebe dos
desesperados, a Xuxa do lixo, a Angélica dos Capetas, a Eliana dos
justos...
388
PP: Calma... E eu sou uma... Quase... Mulher!!! Viva Roberto Carlos e
Nossa Senhora das Calcinhas!
CL: Vi-Vaaaa!!!
PP: Sabe, meu coração quer ser acolhido... Mas sem pressa.
CL: Eu gosto de ter alguém.
PP: Por isso levo meu “kit de amigos” pra onde vou. Esta é a Cachorra
Louca. E eu sou Pepê Popozuda... Mas pode me chamar de Sandy. Ou
Júnior. E a brotinho do nosso lado, em sua noite de estréia é... Como você
chama mesmo, santa?
Mina: Mina.
CL: Mina?
PP: Como Mina?
Mina: Mina. Só Mina.
PP: Fraco. Como nome artístico não serve.
CL: Você precisa de um nome de guerra mais consistente.
PP: Um pseudônimo mais charmoso. Mais chamativo.
Mano: (Para Mina.) Meu nome é Mano.
PP: Então você também precisa.
Mina: Oi, eu sou Mina.
CL: Mano e Mina. Até que combina.
Mano: Prazer.
CL: Prazer. Agora você está falando a nossa língua.
PP: Aliás... A hospitalidade nos encanta. Sabe, eu adoro os trópicos.
389
CL: Eu sou apaixonada por cavalos, vestidos, chapéus, luvas...
Principalmente cavalos.
PP: Nossa, eu estou suuuuuperbem!!!
CL: Preparada!
PP: Preparada. (Para Mina.) Parece que o Mano gostou de você... Está
preparada?
Mano: Não, veja bem, não é bem assim...
CL: Uai, você não está preparado?
PP: Precisa estar preparado.
CL: “Na vida é preciso estar preparado.” Polônio, em Hamlet, de
Shakespeare. Ou será Lady Macbeth – a da dança da motinha?
PP: (Para platéia.) Vocês estão preparados?
CL: Acho que ninguém aqui, tirando nós duas, está preparado.
Ioda: Eu tô preparadão!!!
CL: Vamos conferir.
PP: Vamos fazer o grande “Concurso dos Preparados”.
390
CENA 8: CONCURSO DOS PREPARADOS.
As putas pegam bundas e peitos falsos. Cena de platéia, como na
improvisação, brincar com conceitos do GD. Selecionar espectadores e
brincar com eles. Vestir os objetos, fazer perguntas indiscretas, etc.
CL: Vamos ver quem aqui sabe passar cerol na mão e quem só sabe tirar
onda.
PP: Quem sabe fazer 6 tipos de abdominais pra ficar com abdômen
tanquinho, jacaré. Quem é siliconada?
CL: Quem usa musse, spray, antifizzy, gel e gloss?
PP: Você aí, acredita em destino? Gosta de horóscopo? É virgem?
CL: Dizem os astros e os jornalistas: só 4 em 10 pivetas dos 16 aos 19
são virgens.
PP: Ei, vem ser meu DJ. Purpurinada, cê tá numa roubada. Credo, acho
que ainda vou trabalhar no Show do Milhão, com o patrãozinho Silvio.
CL: Alguém aqui que pedir ajuda aos universitários? E eles, vão pedir
ajuda pra quem?
PP: (Com alguém do público.) Você tem uma tribal aonde? Uma tribal
a...nal? Animal!
CL: Como você chama. Estuda? Trabalha? Mora com os pais? Vai prestar
pra quê? Você não presta? Tá preparado? Ah, tá chapado...
(E por aí afora.)
CL: Bom, agora a galera vai escolher quem é que está mais Preparado.
(Galera escolhe.)
PP: Agora você vai levar o grande prêmio. Um Beijo!!! E um vale-puta,
pra você usar mais tarde, depois do espetáculo.
(fim da cena de platéia. Voltamos pra nossa cena.)
391
PP: Afinal, Mano, você está preparado?
Mano: Preparado?
Mina: Ele não está. Nem eu.
Ioda: Repito meninas: tô aí pro que der e vier: principalmente para quem
vier e der.
PP: Então vamos!
CL: O velhote é dos nossos.
Ioda: Mano, eu vou indo. Mas a gente se vê. Logo. Tchau!!!
(Ioda e putas saem.)
CENA 9: Namorando a Lua:
(Silêncio constrangido.)
Mano: E aí?
Mina: Vou indo.
Mano: Não... Fica.
Mina: Tá na hora, sabe?
Mano: Você vai... Trabalhar?
Mina: Não sei. Talvez. Preciso, sabe?
Mano: Sei.
Mina: Eu não sou artista que nem elas... Eu não sou... Puta. Quer dizer,
não era pra ser. Ou só às vezes, sabe?
Mano: Acho que... Sei.
392
Mina: Você acha isso... Errado?
Mano: Acho que... Não.
Mina: Sério?
Mano: Sério.
Mina: Eu não gosto de...Ficar, só de ficar.
Mano: Nem eu.
Mina: Não gosto de ser garota de uma noite. Quem ama espera. Acho.
Você tem namorada?
Mano: Não. E você, tem namorado?
Mina: Não. (Pausa.) Você tem medo?
Mano: Medo? De quê?
Mina: Ah, sei lá... De alguma coisa.
Mano: Eu fui roubado. Perdi os documentos.
Mina: Você tem medo de fantasma? Escuro? Escada rolante? Assalto? Da
escola? De repetir? E enchente, te dá medo? Ladrão?
Mano: Medo de...
Mina: Viver longe dos pais. Da morte dos pais. De sequestro. De bosta de
cachorro, pisar em bosta de cachorro. Atropelamento por motoboy.
Menino de rua? Menina.
Mano: Não. Sim. Sim. Sim e não. Sei lá.
Mina: E de Aids? De morrer de fome? De não ter emprego, diploma?
Mano: Você é tão bonita...
Mina: Eu tenho medo de mim.
393
Mano: (Pausa.) A lua também é bem bonita.
Mina: A lua é minha única amiga.
Mano: Se eu voltar pra casa sem meus documentos meu pai vai me matar.
(Chora.)
Mina: To há 6 meses na rua. Tá na hora de voltar. (Chora.)
Mano: A lua também é minha amiga.
Mina: (Brava.) É nada, cara. É minha.
Mano: (Começa a rir.) Tão bonita... E tão invocada. Quer fazer...
Amizade?
Mina: Eu não.
Mano: Sua linda.
Mina: Tô me invocando.
Mano: Olha a lua.
Mina: Tá cheia de cratera.
Mano: Quando eu era criança, eu olhava a lua e via São José com menino
Jesus no colo. Um retrato! Olha, se você reparar bem, parece. Como uma
medalhinha.
Mina: Não acho.
Mano: Sempre quis ir até a lua. Como um astronauta. Ou o Picapau, num
desenho.
Mina: Eu curto Pokémon. Eu vi minha mãe se matar eu tinha 7 anos. Eu
durmo debaixo de sol. Todo mundo já foi criança e será velho um dia...
Quer dizer... Era pra ser, né?
Mano: É.
Mina: Me dá um trocado pra comprar remédio, pra comprar pãozinho...
394
Mano: Também tô cum fome. Mas não tenho um puto.
Mina: Quer meio chiclé?
Mano: Quero.
Mina: Eu sei que tenho direito. A ser igual. A ter proteção. A ter nome e
país. Direito a rango, a remédio. A escola de grátis. A assistir Pokémon.
Direito a amor e compreensão. A ajuda nas enchente. Direito a não ser
explorada. Mas, sabe, acho que algo não tá muito direito.
Mano: Quer vir comigo pra casa?
Mina: Eu tenho direito a crescer. Eu preciso de tempo. Tá tudo muito
torto.
Mano: Quantos anos você tem?
Mina: 17.
Mano: Eu também.
Mina: Vivo fugindo.
Mano: Eu nunca tinha vindo aqui.
Mina: Pudera. Você é burguezinho. Deve de morar em condomínio. Anda
só de carro com vidro fechado. Vive em Shopping. Come sucrilho.
Mano: Eu vou prestar vestibular. Quer dizer, ia. Perdi tudo, dancei.
Mina: E agora?
Mano: Sei lá. Meu pai vai ficar puto. Ele quer que eu faça administração,
depois estágio numa multi, MBA no exterior.
Mina: Que que é isso?
Mano: MBA? Um curso depois que você tirar diploma, lá nos Estados
Unidos. Quem faz garante cada puta empregão, no mundo todo.
Mina: Legal. Você já tá ocupado pra vida toda, né? Eu queria comer um
pastel.
395
Mano: Eu não sei se quero.
Mina: Podia comer uma coxinha... Mas não temos um puto, né?
Mano: Não. Não sei se quero Administração. MBA porra nenhuma. Sei
lá, sabe... Queria fazer teatro.
Mina: Nunca fui no teatro. Gosto de TV. Pokémon.
Mano: Vida de teatro é foda. Não dá grana, sabe?
Mina: Ô. Quer dizer que você ia dar uma puta volta pra parar aqui
mesmo, né?
(Se abraçam. Rola um clima. Beijo. Tempo. Mano levanta rápido,
constrangido.)
Mina: Que foi? Não gostou?
(Silêncio.)
Mina: Você tem namorada, né?
(Silêncio.)
Mina: Tô com bafo?
(Silêncio.)
Mina: O chiclé é de hortelá, ó!
Mano: Acho que preciso ir embora.
Mina: E sua identidade?
(Silêncio. Mano volta e vai beijar Mina. Na hora H, entra Pedra.)
396
CENA 10: BONITO
Pedra: Boniiiito. (Quebra o clima.)
Mano: Pedra!
Pedra: Em carne e osso.
Mina: Então você é que é o...
Pedra: Pedra.
Mina: Quando te conheci você não era metido a besta.
Pedra: As pedras também crescem. Tem gente que não percebe.
Mano: Devolve minhas coisas, cara.
Pedra: Teus baguio já era, xará.
Mano: Pelo menos minha identidade.
Pedra: Agora é minha. Agora tenho nome, sobrenome e família, certo,
mano?
Mano: A gente vai ter que resolver na porrada?
Pedra: Vai encarar?
Mina: Não precisa violência.
Pedra: Ele é que quer.
Mano: Só quero minha identidade.
Pedra: Se liga, meu. Já era.
Mina: Eu só quero que vocês parem com isso.
Pedra: Calaboca, mina. Quem você pensa que é pra me levar na moral? Já
te comi muito.
397
Mina: (Envergonhada.) Mentira!
Pedra: É mesmo? Ou será que teu namoradinho não ia curtir tu transar
comigo?
Mina: Faz tempo.
Mano: Deixa pra lá.
Pedra: Ih, Mina, sem novela. Foi só pra esquentar, xará, que noite na rua
é um frio da porra. Bem... (Faz suspense.)
Mano: Fala.
Pedra: Seguinte: agora resolvi subir na vida. Tô trabalhando prum cara.
Pra... Ele. Foi só apresentar documento. Ele disse que experiência eu até
que tinha. Só precisava melhorar um tico. Aí, sujeito me mandou.
Mina: C-c-c-como assim?
Pedra: Sentiu o drama, né?
Mano: Do que é que vocês estão falando?
Mina e Pedra: DELE!
Mano: Dele quem?
Pedra: Ele, xará, Ele fala aqui dentro da minha cabeça, que nem um
martelo, que nem o bang dum revólver, que nem uma porrada de
caminhão, radinho de pilha ligado nos úrtimo.
Mina: Ele já fala na tua cabeça, é?
Pedra: É. E na minha barriga. E no meu bolso. Ele não fala mais com
você?
Mina: (Indignada, nega.) Não!!!
Pedra: Será?
Mano: Vocês piraram?
398
Pedra: Escuta, escuta só!
(Silêncio.)
Pedra: Tão escutando?
(Silêncio.)
Mano: Não tô escutando nada.
Pedra: Nem você, Mina?
Mina: N-n-nããão...
Pedra: Tô sabendo... Tu tá escutando muito bem, pirralha. Mas vou
explicar pro prayboy: ELE tá me dizendo aqui que essa mina é uma traíra.
Que ELE deu chance pra ela, pra ela ser alguém, uma rainha da putada,
uma princesa dos faról. Mas ela vacilou. E agora é hora da vingança.
Mano: Os dois tão pra lá de drogados.
Pedra: Não. No meu novo emprego não posso usar essas coisa. E eu sei
parar quando quero.
Mano: Do que é que você tá falando, afinal?
Pedra: Treta. Meleca. Morte.
Mano: Morte de quem?
Pedra: Dela. Sua. Sei lá. Dos dois, tá bom?
Mina: Deixa ele ir embora.
Pedra: A-go-ra já e-ra.
Mina: Tô te pedindo. Você já ficou comigo, num ia ter coragem.
Pedra: Olha, ganhei um presente Dele. Ói. (Puxa revólver do bolso.)
Novinho, limpinho, frio. Gostou? Melhor que a faquinha, né?
Mano: Guarda essa merda.
399
Pedra: Pode afinar, neguim. Agacha!
Mano: Como assim?
Pedra: Não percebeu ainda? Tu vai morrer que nem mané no xilindró.
Agacha e põe as mão na cabeça.
Mano: Nem fudendo. Me mata aqui então.
Pedra: Vai bancar o macho?
Mina: Ele tem família. Vai prestar vestibular. Larga ele.
Pedra: O que você me dá?
Mina: O que você quer?
Pedra: Grana?
Mina: Não tenho.
Pedra: Então os dois tão fudidos.
Mano: Libera ela, então.
Pedra: Meu, trabalho é trabalho. Não pode ficar pelo meio. Cumé que eu
fico com... Ele?
Mano: Que merda que é esse tal de ele, cara?
(Voz em off.)
Ele: Ele sou Eu.
Mano: Puta que o pariu!
Pedra: Cacete, chefe!
Ele: Olá, menina, mina.
Mina: Oi.
Ele: Eu avisei.
400
Mina: Sei.
Ele: E então...
Mina: Tô pronta.
Ele: Pra morrer?
Mina: É.
Mano: Eu tô ouvindo isso aqui fora ou aqui dentro? Qual é o truque? É
pegadinha do Faustão? Piada do Gugu?
Pedra: Pior. Bem pior.
Ele: Vocês são a escória. Vocês são os resíduos da latrina do planeta.
Vocês estão além de qualquer reciclagem. Um playboy fraco, que não
sabe assumir seu papel. Uma menina fraca, sem futuro nenhum. Agora
vocês estão sendo julgados. Um julgamento sumário: vocês vão ser
deletados da existência. Só os fortes merecem viver.
Mano: Mentira.
Ele: E daí?
Mano: Eu não sou um playboy de merda.
Ele: Mas parece... Demais.
Mano: Vá se danar.
Ele: Um moleque cresce na base da farinha láctea, de biscoito e bife, sob
a asa da mãe; um moleque de quatro anos, debaixo dum viaduto, num
meio dia qualquer, peladinho, agarrado num poste de rua, pede um
trocado pra quem passa. Pergunta: quem é o forte?
Mano: Isso é loucura.
Ele: Uma menina cresce no colo da babá. Uma menina faz um aborto na
esquina. Pergunta: que é a forte?
Mina: Eu... Eu... Eu sou forte.
401
Ele: Você se sente culpada. E isso acaba com qualquer força sua.
Pedra: Eu quero farinha láctea.
Ele: Mata eles.
Pedra: Só. (Ergue a pistola.)
(Entra Ioda.)
Cena 11: É pra você.
Ioda: Boa noite, tripulação, aqui fala Ioda, companheiro de viagem de
ocês tudo. Vam’pará co’a bobagi, gente. E você, ELE, CALABOCA,
Mané!
Ele: Velho...
Ioda: Fala, cara.
Ele: Alguém te chamou aqui?
Ioda: Não gosto de estrago. Os moleque é legal. Libera eles. Baixa a
arma, guri.
Pedra: Puta merda, que qui eu faço?
Ioda: Se liga, Mané. Tu já matou?
Pedra: Problema meu.
Ioda: As primeira morte parece fácil. Não é.
Pedra: Deixa que eu experimento.
Ioda: Você não tem culhão de matar.
402
Pedra: Vou te mostrar culhão.
Ele: Num escuta esse velho.
Ioda: Ele escuta até você, que num passa duma vozinha de merda...
Pedra: Pára, porra.
Ele: Mata o velho.
Pedra: Só. (Aponta para o velho.)
Ioda: Vai. Mata.
Pedra: Vira de costas.
Ioda: Vai ficar mais fácil pra você? (Vira.)
Pedra: (Nervoso.) Não. Agacha. (Ioda agacha.) Boa! Agora vai. Não.
Ioda: Prefere que eu deite?
Pedra: Pode ser.
Ioda: De barriga pra cima ou pra baixo?
Pedra: Tanto faz. Pra cima. Não, pra baixo.
Ioda: Você não consegue me olhando no olho?
Pedra: Sei lá.
(Ioda deita de barriga pro chão. Pedra se aproxima. Põe pistola na cabeça
do velho. Toca o telefone de Ioda. Uma, duas, três vezes. Todos
perplexos.)
Ioda: Deixa eu atender?
Pedra: (Perplexo.) Vai, porra, atende.
Ioda: Alô. Sei. Sei. Sei. Sim. Não. Não, não, não, não. Siiiiiiim. Ele? É
ele? E o menino. É. Sei. Tá, então tá. (Para Pedra.) Ó, é pra você?
403
Pedra: Pra mim?
Ioda: É.
Pedra: Que que eu faço?
Ioda: Quer que deixe recado?
Pedra: Não, pode deixar. Eu atendo.
(Ioda dá o telefone para o moleque, mas continua deitado.)
Pedra: A-a-a-lô. Quem é?
(Silêncio.)
Pedra: Não. Não pode. Ser. É?
(Silêncio.)
Pedra: (Começa a chorar, vai se descontrolando.) Não. Não pode. Não
pode. Pode?
Ele: Desliga essa merda. Desliga essa merda, pirralho.
Pedra: Não... Dá. Não dá.
Ele: Você vai ser demitido!
Pedra: Be... Beleza, cara. Olha, é que. Não, não dá. (Ouve alguém ao
telefone, transtornado. Responde à chamada telefônica.) Sei, sei. Então
tá. Obrigado. (Devolve telefone a Ioda.) Desligou...
(Ioda guarda o telefone.)
Pedra: Pode levantar, ir embora, faz o que você quiser.
(Ioda levanta, sacode pó do corpo.)
Mina: Você tá legal?
Mano: Quem era?
404
Pedra: Era...
Ioda: Por quê você não guarda essa arma?
Pedra: É. (Guarda a arma.)
Mano: Não tô entendendo nada.
Mina: Nem eu.
Ioda: Quem sabe quanto mistério se esconde nos cantinhos da cidade de
pedra, que não é só feita de pombas, pombas e suas bombas de merda.
Merda! Acabei de pisar numa.
(Silêncio.)
Mina: E... ELE?
(Silêncio.)
Mina: Foi embora?
Ioda: Foi.
Mina: Será que volta?
Ioda: Quem sabe?
(Mano senta na calçada.)
Mano: Não tô me sentindo legal. Acho que vou vomitar.
Ioda: É fome. Quer pipoca? Tenho pipoca doce no bolso.
(Ioda oferece pipoca. Os meninos pegam. Devoram.)
Pedra: (Comendo pipoca doce.) Era... Meu... Pai. Meu pai morreu. Eu era
um bebê, acho. (Pára.) Não, não é verdade. Meu pai era um canalha que
foi embora por essas quebrada e deixou minha velha, sabe? Mas ela disse
que ele morreu, morreu. (Pára.) Não, não é verdade. Meu pai era um
trabalhador, foi morar longe, numa obra, fez outra família, caiu dum
andaime, ficou paralítico. (Pára.) Não... Não é... Eu não... Eu não sei...
405
Eu nunca vi... Eu nunca falei... Com meu pai... Até agora... No telefone...
Meu pai. Meu pai.
(Silêncio.)
Pedra: Ele disse pra eu ser feliz. Pra eu aprender a ser feliz. E que só se
aprende a ser feliz vivendo. Vivendo co’s outro. Nessa cidade de Pedra.
De olho nos cu das pomba, cuidando pra não levá na cabeça. Desviando
dos cocô dos cachorro. Olhando pro céu e pro chão – mas olhando firme
é pra frente, pra frente, pros olhos das pessoa, e que é tudo, tudo cidadão.
Ele falou tudo isso, meu pai. Depois disse que me... ama. De coração.
Que a gente se vê, um dia. E mais uma coisa só, ele disse, uma coisa de
arrepiar. E desligou.
(Mina se aproxima de Pedra. Teme abraçá-lo.)
Pedra: Tó tua identidade. (Dá para Mano o documento.)
Mina: E que que ele disse que te arrepia?
Pedra: Disse que minha mãe tá a 120 anos na rua e que ela precisa de
mim. Ele disse pra eu cuidar dela.
(Entra Sora.)
406
Cena 12: Pedras da Cidade de Pedra.
Sora: Finalmente, pirralho, finalmente te encontrei. Tem um pivete te
procurando, quer te prender... (Percebe Mano) Ih! Fudeu! Já encontrou.
Ih, que zorra é essa, cê tá bem, Pedra?
Pedra: É Pedro. Pedro é meu nome, Sora.
Sora: Pedro?
Pedro: Por favor, me devolve a cartêra do colega, tá?
Sora: (Feliz.) Tá. (Pega carteira.) Tá tudo aí, ainda.
Pedro: (Pega a carteira e dá para Mano.) Tó, xará. Vai em paz.
Sora: Que é que tá acontecendo aqui, meu, você, o playba, mais essa
mina, e quem é esse velhote mulambento? (Sora e Ioda se olham.)
Ioda: Lembra de mim, Maria?
Maria: Não.
Ioda: Olha bem. Debaixo dessas crosta de pó, do lixo nas unha. É eu.
Maria: É nada.
Ioda: ( Hesitante.) Lembra da nossa tatuagem? Fizemo junto. Um
coração. Em cada peito. (Arregaça camisa e mostra coração tatuado no
peito, só para Maria e grupo, platéia não vê.)
Maria: José.
José: Maria.
Maria: José... Eu tô há 120 anos na rua, vendendo cd pirata do Leandro,
do Daniel, do Reginaldo Rossi. Óculos escuro, maço de cigarro, cartão de
telefone. Quando alguém me aporrinha eu puxo da lâmina e azedo o
clima. Mas o que arde mesmo é a velha tatuagem, a velha cicatriz no meu
peito. Espero cruzar contigo em cada esquina, em cada cliente. Mesmo
que você me aparecesse desgarrado, bento, mulambento... Porque...
407
José: ...Ti amo, Maria, sempre te amei. É que essas rua é uns grito dentro
do ouvido, uma coisa assim que me levô pra longe, uma locura que me
perdeu, sabe, sabe, sabe...
Maria: Sei.
José: Se eu pudesse eu tomava um banho, Maria, e escovava os dente só
pra te dar um beijo agora.
(Os dois se beijam. Um beijo tímido, constrangido, sincero. Maria se
afasta.)
Maria: Depois que você surtô a gente teve um filho. Depois eu... Eu...
taiei... No peito dele... Cuma faca... de leve, mansinho, mais um coração.
Depois eu deixei esse filho num orfanato. Depois eu fui atrás de você.
(Pedro e Mano se olham. Pedro chora.)
José: Você tá há 120 anos na rua...
Maria: Em busca de ti, de ti. E cuns remorso no coração que me come.
Pedro: (Limpa choro na camisa, que depois tira. Peito nu. De costas para
a platéia, só o grupo vê.) Agora passou.
(O grupo está paralisado. Silêncio.)
José: Passou.
(Silêncio.)
Maria: Vamos embora?
José: Vamos. (Para Pedro, estendendo a mão.)
Maria: Vem, fio.
(Pedro põe a camisa e se aproxima. José beija seu rosto. Maria acaricia
seus cabelos.)
José: (Para Mano.) Tchau, menina. Tchau... Ulisses. Obrigado.
Mano: Tchau.
408
(O grupo recém-formado olha para Mana. Sorriem, cada um a seu modo.
Acenam. Vão partir. Silêncio.)
Mano: Pedro... Espera.
(Pedro se volta. Mano pega algo na carteira. Estende a mão para
Pedro.)
Pedro: Num preciso disso.
Mano: Não é esmola. É o cartão do meu pai. Tem meu endereço.
Aparece.
(Pedro pega o cartão.)
Pedro: Não sei ler direito. Quarto ano. Preciso de... Estudar. Quero ser
adevogado. Já pensou, Mano, nós dois estudado, mudando todas pedra
dessa cidade de pedra de lugar? (Pausa. Estende a mão.) Manos?
Mano: (Aperta mão de Pedro.) Manos. (Sua mão escorre. Toca o
coração do garoto.)
Pedro: Até. (Sai com seu grupo. Ficam Mano e Mina, em silêncio.)
Mina: (Depois de um tempo.) Eu não... Eu não chamo Mina.
Mano: Vai dizer que é Guilhermina?
Mina: Madona. Fosse homem, era Maicon. Maicon Jackson.
(Os dois se abraçam. Mina Rouba carteira de Mano. Pega a identidade.
Olha o documento.)
Madona: Bonitinho. (Devolve tudo para Mano.)
Mano: Você também é.
(Os dois se aproximam. Beijo.)
FIM
409
Calígula
Canteiro de obras
“Kerêa (friamente): Tudo veio, Cara Cesônia, duma discussão
sobre se a poesia deve ser mortífera ou não.”
Albert Camus, Calígula, cena 6, segundo ato.
Para Paulo Fabiano
28 de janeiro de 2002.
410
I
Café. Preto. Quente. Espuma marrom. Superfície negra. Amargo.
Açúcar. Uma colher. Misturar. Torvelinho negro e castanho. O centro do
buraco negro. Mutação de estrela morta. Gravidade densa. Arrasta. Tudo.
Franja de círculos concêntricos. Um horizonte de possibilidades circula o
núcleo. A singularidade. O aquém e o além. Esse lugar além e aquém, o
raciocínio, num truque, define: singularidade. Nó. Nesse lugar eu chamo:
Calígula.
II
Um grito. Um espasmo. Um sopro. Um gemido. Alguém dita no ouvido.
A marionete executa. Precisa. Exata. Nem mais, nem menos. Assim.
Boca fechada: aflito. Boca fechada: feliz. Assim. Abre um milímetro,
dois. Ou três. Assim. Sorriso serrilha. Dentes. Desdém? Ironia? Alegria?
Assim. Abre mais. Continua abrindo. Mostra bem os dentes. Arreganha.
Agora, um espasmo. Essa é a gargalhada. Esse é o gozo. Esse é o ataque.
Pára. Repara. Essa boca aberta. Esse além do grito. Eis os limites do
humano.
III
Círculo. Tudo círculo. Olho. Cu. Boca. Mente. Fumaça de cigarro.
Espuma de café. Giro. Calígula dança. Quando um homem quer a Lua –
outro círculo, outros ciclos - ele uiva na noite longa. Tudo gira na tal da
noite longa. Demarco o diâmetro provisório deste círculo com pedaços de
corpos consagrados no altar dos suplícios, principal atração do Bordel
que criei, eu, rei, imperador, Calígula.
IV
Não quero um copo. Não quero um prato. Não quero uma porção. Nem a
parte que me cabe. Não caibo. Meu desejo não cabe. Quero a Lua. Ela. A
bola. Você jamais entenderia. Amei a minha irmã. Todos os outros
corpos, mentes e espíritos são combustíveis desse amor. Ela. Ela no
espelho negro do café. No fundo do buraco. Ela. Cada rosto da rua. Cada
411
giro de quadril que passa e cobiço e domino no bordel que criei. A
criança brinca com a papinha e com o cocô. O rei é uma criança que
come e caga mundo. Absoluto. Sou no momento em que o pensamento
pára e o mundo é vertigem. Cada elemento do mundo é uma droga
pesada. Eu me aplico. Vivo o delírio. Contemplo meu Império. Ele se
expande. Eu sou o centro. Buraco negro. Para o qual tudo converge.
V
Fornos crematórios. Câmeras de gás. Campos de concentração. Guetos.
Execuções de massa. Pleno furor do meu cadinho alquímico. Fumaça
sobe em círculos. Tudo para você, Lua. Minha amada, minha irmã. O que
alguns chamam de fascismo, outros chamam de loucura. O que alguns
taxam de neoliberalismo, outros determinam que é velho comunismo.
Ditaduras. Populismo. Democracia. Socialismo. Cidadania. Globalização.
Além da nomenclatura, singularidade. O grito oco. Deste nada. Calígula.
Para sua amada. Uns defendem o indivíduo. Alguns preferem o coletivo.
Bolsões de miséria ou riqueza. Estatísticas. Teses. Pontos de vista. De
qualquer canto deste círculo que se amplia não há como negar o centro. E
mais: essa força que arrasta tudo até aqui. Centro. Uma coisa que come.
Metáforas? Fique à vontade. Existem as médicas: um câncer. Existem as
filosóficas: o nada. Existem as políticas, como já visto, assim como as
econômicas. Há também as biológicas: morte. Ciclos. Existem as
religiosas, com tantos nomes. Mas como se define o tiro banal numa
esquina, por exemplo, que leva, por exemplo, a vida de um filho? Você
vai me dizer, por exemplo: não, não misture as coisas. Mas como se
define o momento em que os olhos, por exemplo, encontram outros olhos
para todo o sempre, sem possibilidade de separação, como eu e a Lua, por
exemplo? Vai dizer que eu sou romântico, que continuo misturando o que
não dá liga, que amor e morte, duas palavrinhas, por exemplo,
resolveriam as questões propostas. Mas o que é a alquimia senão esse
exercício? E eu sou Calígula, rei alquimista, carta de tarô, constelação de
búzios, carta astronômica, mapa astral, como queira. Eu sou, repito, o
centro do buraco negro. Linguagem. E mais: o que detona a linguagem. E
mais: o corpo que a impulsiona – e que as palavras pressupõem - a carne
que no princípio era verbo. E esses silêncios todos, que habitam vãos e
proliferam. Ou não: porque em mim todas as contradições são
solucionadas. Imperador romano. Amei minha irmã, matei a família, fui
ao cinema. Etc. Pornô trash, Calígula, paus e tetas e buças e aquele cara
afetado do Laranja Mecânica, com patrocínio da Penthouse e,
supostamente, adaptado da peça de Camus, aquele francês que morreu
num acidente de carro e que ganhou o Nobel. Um vídeo que circula em
412
jpeg pela internet, basta um download para o seu deleite. Depois delete.
Um software que se aprimora. Venha me matar. Venha me matar mil
vezes nesse videogame de última geração, venha sentir o gostinho, eu sou
Calígula, o personagem, o herói, o vilão, a mocinha, eu quero morrer, eu
mereço, eu morro e renasço, basta um clique. Enter. Você está em
ambiente virtual, cuidado. A nossa interatividade é total. Não se iluda,
portanto – pois aqui, ali, acolá, ilusão é tudo. Você já parou para observar
o comportamento das micropartículas? Então. Serei um holandês que em
poucos meses vomita uma obra imorredoura sobre pilhas de telas de meio
metro quadrado, nem isso. Já parou pra pensar que todos aqueles quadros
que você, eu, todos amamos, foram produzidos no vagido de poucos
meses? Depois, a morte. Agora, tudo bem, aquilo tudo bem acomodado
nas paredes de um museu, nas páginas de um livro, nas paredes da sua
casa, nos descansos de tela do seu computador. Mire as cores. Foque
detalhes. É uma pincelada ou um gemido? Gozo, giro, vazio. Singular.
Fui também um hacker que penetrou as defesas do Pentágono por pura
farra, pois o que é a vida senão essa farra, esse frágil que se multiplica, a
estrutura do vírus? É isso. Simples. Singular. E esse sentimento equívoco,
essa falta de foco, essa busca de holofote, centro de palco, segundo de
brilho, é porque só nesse momento de visibilidade total parece haver
sentido. Somos todos vigias armados. Loucos para sacar e puxar o
gatilho. Para sentir. Algo. Qualquer coisa que rasgue o couro duro. Que
chacoalhe a impotência que a lua banha. Confraternizamos apenas no
caminho do abatedouro, peças de rebanho que somos. Marcados. Pax. Ou
seja: sou Calígula. Fui. Serei. Calígula, imperador. Eu quero a Lua.
VI
Preciso parar com o café.
VII
Ela levantava a minissaia com pressa e fodia? Ela só usava calça
cumprida? Qual a altura de suas sandálias? Como eram seus brincos?
Portava uma medalha de santo? Fita do Senhor do Bonfim? E seus
cabelos? Fios brancos? Tintura? Buço? Depilação com cera quente?
TPM? Gostava de trepar menstruada? Queria ter filhos? Fazia cocô na
minha frente? Roia as unhas? Tinha espinhas? Olheiras? Uma ponte?
Estrabismo? Piercing? Calcinhas enterradas? Moramos juntos? Tinha
413
casa própria? Passou um tempo na rua? Dormiu num ponto de ônibus?
Fazia poupança? Não tinha um puto? Só eu?
VIII
Ainda estou vivo! Tenho 29 anos. É pouco. Você é minha última
testemunha. Ternura por você. Os vivos não bastam para povoar o
universo e matar o tédio. Só fico bem entre meus mortos. São
verdadeiros. Como eu. Alma demais. Os medíocres chamam doença. Não
acreditam no teatro. Qualquer um pode representar dramas celestes e
deuses. Tenho vontade de viver e ser feliz. Os homens morrem e não são
felizes. Inexorável caminho. Nada, sempre nada. Etc.
IX
Espelho. Estamos numa sala de espelhos. A Sala Branca que uma poeta
russa transfigurou na longa noite da dor, da solidão e da nostalgia. Cada
gesto se multiplica, ganha ângulos, perspectivas, adendos. Dimensões
navegadas por imagens. Duplos. Múltiplos. Ali, um sonho. Mais abaixo,
um pesadelo. Narciso extático na beira. Um pintor turvo se masturba.
Outro se esconde entre fantasmas reais de meninas. Um cego ri. Feras
espreitam. Um tigre.Orfeu.Tudo é fuga. Tudo converge e se encontra no
centro do labirinto. Agora. O único vestígio daquilo que vocês chamavam
tempo.
X
Qual era o cheiro da manhã no seu corpo? Qual a marca do seu perfume?
Como o suor temperava a pele? Qual a textura das mãos, do colo? Ela
usava cremes? Qual o gosto do seu beijo? Era um beijo sutil ou
escancarado? A língua serpenteava ou a boca aguardava minha língua
dentes e dedos? Seus dentes da frente eram ligeiramente encavalados? Ela
mordia? Cuspia ou engolia? Gostava de trepar por cima? Levava meu pau
pra dentro do seu corpo com delicadeza, um engate azeitado, ou queria a
coisa com força, na marra? Vivia muitas fantasias ou tudo sempre
acabava mais ou menos do mesmo jeito, na mesma e deliciosa posição,
como um rito, repetir, repetir, repetir o prazer? Ela dava seus mamilos
para eu morder, seu cu pra chupar, sua boceta pra comer? Queria que eu
414
bombasse? Dava o rabo? Gozava em minha boca? Com pica? Gozava?
Fingia? A interpretação era boa? Engraçada? Doía? Ela não gostava de
sexo, era só obrigação? Só gozou de verdade numa foda rápida com o
professor de natação? Ela não sabia nadar? Ela se aninhava no meu colo
como um bebê? Eu era um pai pra ela? Um filho? Um arrimo? Um amor?
O amor? Tudo agora é pura abstração, cacos de luz e pigmentos que eu
misturo e, por hipótese, especulação, agrupo nesta imagem: minha irmã, a
Lua.
XI
Nome: Calígula. Idade: 29. Condenação: crimes contra o estado e o povo,
estupro, assassinato, latrocínio, corrupção... Pena: a morte. Quebrem
todos os espelhos, cravem a espada no pescoço, entronem o próximo
César. Enfim, Calígula tem a Lua.
XII
Brinquedos na caixa. A criança retira um por um. Brinca um pouco com
cada. Abandona-os. Constelação de brinquedos derreados. Um campo de
possibilidade. Ficções factíveis. Adicione toques de poética,
verossimilhança, gênero. A retórica que o uso comum consagrou. Eis a
obra.
Pós-escrito:
Divida tudo em diálogos. Defina situação. Localize o que se
convencionou chamar ação. Construa personagens. Pode chamar de
Teatro.
415
Bando de Maria
janeiro – abril de 2003
Trash tragedy criada sobre As Troianas, de Eurípedes.
Personagens:
Hécuba: líder do assentamento Tróia. Dentes de ouro.
Alissandra: sua filha; sacerdotisa. Anéis de ouro.
Rosemary: troiana. Piercing de ouro num mamilo. Tatuagem de amor.
Maria: adolescente nascida no assentamento. Cadeira de rodas e manta
de retalhos.
Helena: beldade urbana, por amor, veio morar no assentamento.
Gargantilha de ouro.
Menelau: general. Corrente de ouro branco.
Almirante: líder militar e político. Grande proprietário de terras. Anel
de rubi.
Prefeita: líder política. Proprietária. Sobrinha de Almirante. Colar,
brincos e anéis de ouro e diamantes.
Tião: bebê.
Taltíbio: Jagunço, capitão do mato. Patuás. Guias de contas.
Cabaré barato. Abrem-se as cortinas de sangue. Tudo urge e ruge.
416
(Coração da treva. Madrugada depois do São João. Esqueletos de
casebres. TVs, ventiladores, uma parabólica, uma galinha, um pilão.
Terreiro da festa. Mastro e brasil. Uma cova rasa, recém coberta. Aqui,
desabada, Hécuba cochila e chora. Numa cadeira de rodas, Maria
descansa. Ali, entra o Almirante.)
Almirante:
(Pisa o brasil. Sussurra.)
Cinza, fumo.
Fumo e cinza.
A bala saqueou a terra
que um dia amei.
O futuro vai lembrar
os homens da fronteira,
mortos em nossa emboscada?
A mata consagrada
hoje é depósito
de corpos.
O rio, deus-labirinto,
agora bebe sangue.
Vem o esquecimento?
(Pára e ouve, deliciado,
os barulhos do embarque da tropa.
Excitação bacharelesca.)
A nossa tropa espera
um vento
para ir embora.
Festa desfeita.
Brasil e mastro.
Enterrar carcaças.
A barcaça cheia
de despojos:
ouro da mina,
jóia e dente.
Embarcar cativas.
Bando de Maria,
na gemedeira,
varia.
417
Vai virar escrava.
Tudo com dono certo.
Homens poderosos,
tudo pica grossa,
vão foder as belas,
dar trampo pras velhas.
É o caso de Hécuba,
aquela ali que chora.
Tem trem de motivos.
Perdeu uma filha
no fio do cutelo.
O marido e o filho?
Tiro de parabelo.
A gata do delírio,
Alissandra,
uma puta pantera,
vai pra leito clandestino,
ao lado de Agamenão.
(Algazarra de vitoriosos. Salva de metrancas.
Risos. O Almirante ajoelha e reza na beira da cova.
Apoteose.)
Adeus, mina de ouro.
Adeus, lixão fedido.
Foi foda tua conquista.
Terra alheia não se leva
com boa palavra e
mesmo terra apalavrada
no fim vale nada
sem uns documento.
É o dito pelo não dito.
Não basta foice,
enxada, bandeira,
fundação de casa,
fossa, saneamento,
facão, guerrilha,
diante do nosso armamento.
Chegamos na calada.
Corria o São João.
Fodemos a quadrilha.
Cidade degolada.
Adeus, assentamento.
Agora és nada e nada.
Cinza, fumo, cinzas.
418
Resto de brasil.
Fim de madrugada.
Esperamos vento.
(Entra a prefeita. Saltos altos. A perua evita pisar as brasas.)
Prefeita:
Fala, tio, me diz o que resmunga.
Almirante, baixa a chama do ódio.
Vitória a gente comunga
num lero gostoso, no leito ou no pódio.
Almirante:
Sangue fala grosso.
Família é dom divino.
Manda, sobrinha.
Aqui faço o que posso.
Prefeita:
Trago uma proposta.
Almirante:
Quem é que te manda?
Prefeita:
Ninguém. Eu mesma: a prefeita.
Vim falar da pirambeira.
Parecia perfeita - está destruída.
Sejamos, ainda, parceiros.
Almirante:
Tens pena das cinzas?
Prefeita:
Penso no reparte.
419
Almirante:
O que tens na mira?
Prefeita:
Erguer e destruir:
é tudo uma arte.
Almirante:
Vá direto ao ponto.
Prefeita:
Defendeste os posseiros
o quanto pudeste.
Almirante:
Verdade.
Prefeita:
Coisa de comunista, confesse.
Almirante:
Justiça não é ideologia.
Prefeita:
Incendiamos juntos a quermesse.
Almirante:
Verdade.
Prefeita:
Justiçamos todos.
Fizemos belo monte.
Rendeu bela cova.
420
Almirante:
São fatos.
Prefeita:
Nossos interesses.
Almirante:
Nossos interesses.
Prefeita:
A terra.
Almirante:
O que ela libera.
Ou encerra.
Prefeita:
Chamamos os milicos.
Veio Menelau, o general.
Quer de volta a esposa.
Por trás da galhada do corno
que não dá no couro,
nossos interesses.
Menelau quer vendeta:
retome a buceta.
Pra nós basta o ouro
que a mina entrega.
Ele trouxe tropa.
Em nome da lei e da ordem,
em nome do Estado,
também do Direito -
pois o que é Direito
o Estado determina –
e nós somos o Estado,
legalmente eleitos,
e nossa família
421
é dona da terra.
Almirante:
Todo homem merece
um bocado de terra.
(Agarra a prefeita.)
Prefeita:
Vivo ou morto,
eis a teologia da libertação:
o segundo alimenta o torrão
que o primeiro comanda.
(Beija o Almirante.)
Almirante:
(No enrosco.)
Tudo é de novo nosso.
Foi uma chacina.
Restam mulheres e crianças.
Um pouco da tropa.
O lixão, a mina.
Prefeita:
Muitas testemunhas.
Então vem a proposta:
que a barcaça afunde
com toda essa gente.
Que morra milico
e retirante.
Também Menelau
e a amante.
Almirante:
Não basta a ceia?
Prefeita:
Estamos no meio do nada.
422
Tudo rio e brenha.
Se junta uns numa clareira,
vive de mandioca,
caça pouca,
jacaré e tapioca.
Um dia chegaram na nossa terra
e foram ficando.
Deu mais de vinte anos.
Deu tempo de virar moça.
Se eleger prefeita.
Então pedi com muito jeito.
Fiz requerimento.
Eles não desocuparam,
nem pagaram arrendamento -
uma taxa, coisa simbólica -
ficassem com 15 por cento.
Então acabei com a farra.
Mas não deu pra matar a fome.
É hora da sobremesa.
Almirante:
(Foge da farra.)
Sonhei outro futuro.
Prefeita:
Nesse nosso faroeste
não há fala que preste.
(Abraça-o.)
Caíste do muro. (Beijo.)
Almirante:
Então tá combinado.
Depois que os barcos picarem,
numa quebrada do rio,
mando uns cabras chegados
detonarem o mundo.
Vá tudo pro fundo.
Até nossos pecados.
423
Prefeita:
Que a lenda ensine o povaréu
a respeitar nosso santuário.
(Se afasta. Arruma jóias e roupas.)
Titio, Almirante.
Almirante:
Prefeita, sobrinha.
(Ele estende a mão. Ela beija o anel de rubi e sai.)
Almirante:
(Mira o estrago no assentamento.)
Quem destrói a casa de alguém
é demente.
Quem destrói a cidade de alguém
é demente.
Quem profana festas e rezas...
quem age assim
cedo se perde.
Quem, como eu, só fala,
mente.
(O Almirante se manda. Hécuba se agita. Tenta se levantar.)
Hécuba:
Levanta a cabeça dura
do terrão batido.
Foi um cochilo?
Apruma a vista -
até a brasa tá
adormecida?
Não tem mais cidade,
não és mais rainha,
a sorte virou,
te deu calaboca.
A correnteza do rio
vai te justiçar?
Não adianta pio.
424
Quando vem o vento?
Navega, nega, navega...
Perdeste filhos, marido,
mais esse torrão de terra
que chamaste lar,
assentamento, cidade,
até mesmo pátria,
pois foi só aqui,
nesses vinte anos,
que pensaste erguer,
de barro e ouro,
teu país.
Chorar pra tu é bico.
O fim de noite é ao relento
com tudo que é teu.
Mortos levam tuas
lágrimas
de batismo.
(Hécuba se levanta lentamente.)
O São João estava uma beleza,
a fogueira subia pro céu,
a gente dançava a quadrilha e
os homens soltavam fogos.
Balão de muita folha.
No meio dos rojões
vêm os primeiros tiros.
Traque ou ataque?
Tropa terreiro adentro,
metranca em punho,
puro corisco.
Aquele corre-corre.
Os homens que não
matam de primeira,
fuzilam no lixão.
Mulheres e crianças
levam pros barcos.
Fica só nosso bando.
Rapam nossos cabelos,
enfiam a gente na maloca.
Foi tudo culpa da Helena?
Puta da cidade,
425
se engraçou com meu filho, Tales,
largou esposo e filhos,
veio viver com a gente.
Amor de pica é foda.
Deu-se um tempo.
Atrás veio o marido.
A luta foi longa,
mas era na selva,
não aqui na vila -
à tarde a gente fazia
festividade.
Mas nessa noite de São João,
durante a trégua,
paparam o assentamento.
Tróia geme em chamas.
(Maria, garota troiana em cadeira de rodas, abre os olhos.)
Maria:
Sinhora? Tá bem?
Hécuba:
Os milicos arrumam as barcas.
Vão voltar pra casa.
Maria:
Sinhora? A gente?
Fica? Vaissimbora?
Hécuba:
Farejo mal.
Maria:
Merda, merda,
O bando tá na merda!
O bando tá na merda!
O bando tá na merda!
426
Hécuba:
Calaboca, criança.
Não quero mais vergonha ou dor.
O nosso lar acabou.
(Muxoxos dentro do casebre.)
Não deixa minha filha Alissandra
sair desse resto de rancho!
Maria:
Partilharam a mulherada?
Hécuba:
Espero decisão toda madrugada.
Maria:
Veio ninguém?
Hécuba:
Até agora nada.
Maria:
Soldado me leva longe?
Sou escrava de quem?
Hécuba:
Qual palacete vou servir?
Que chão lustrar?
De quais pivetes vou cuidar?
Quem vai ser senhor dessa velha,
sombra de cadáver?
Olha que aqui era rainha.
Fiar, pilar, bordar....
Parir e no parto ajudar...
Cuidar de minhas meninas....
O beabá ensinar...
427
Enquanto os homens
se arregaçavam na mina
ou futucavam o lixão
fazendo de rebostalho
refeição.
Maria:
Êta, tranco grosso.
Vi moleque morto.
Vi marido morto.
Morrer era melhor?
Olha que bonitinho
o chão e seu rebrilho.
(Entra o agente Taltíbio. Tem pistola, faca e alicate de cortar arame
farpado. Chuta brasas.)
Taltíbio:
Bom dia.
Senhora.
(Mira profundamente Maria. Ela não sustenta o olhar.)
Lembra de mim?
A gente se conhece faz muito.
Fiz muito negócio com Tróia.
Comércio.
Ouro por mercadoria.
Essas tralha, porcaria.
Taltíbio.
Hécuba:
Já não lembro bem de nada.
Taltíbio:
A decisão está tomada.
Hécuba:
Pra onde vão minhas filhas, doutor?
428
Taltíbio:
Pra cada uma, um dono.
Hécuba:
Qual é a lista?
Taltíbio:
Vamos por partes.
Hécuba:
Quem leva Alissandra?
Taltíbio:
O próprio chefão: o senador Agamenão.
Hécuba:
Será escrava duma dama?
Taltíbio:
Concubina do cujo.
Hécuba:
A virgem sagrada da tribo!
Num leito sujo.
Taltíbio:
Agamenão gamou de primeira.
Hécuba:
Arranca o vestido sagrado, filha.
429
Taltíbio:
Ela não tem pouca honra.
Hécuba:
Minha outra menina,
que levaram de mim faz pouco?
Taltíbio:
É tanta mulherada.
Hécuba:
Xena.
Taltíbio:
Uma escurinha, engraçada, pequena?
Hécuba:
Quem cuida da minha gatinha?
Taltíbio:
A sorte levou a mina pra tumba de Aquiles.
Hécuba:
Foi pra limpar tumba
que criei menina?
Taltíbio:
Ao menos fica em paz.
Hécuba:
Fala mais claro.
Como você e eu,
ela ainda sofre
430
a madrugada?
Taltíbio:
Ela não sofre mais.
Hécuba:
Senhor seja louvado, amém.
(Olha para Maria, cúmplice.)
Agora me diz da minha nora,
Rosemary, mulher de Heitor,
que fim que leva?
Taltíbio:
Cama de Nelson Lemos,
mais um senador.
Hécuba:
E eu?
(Silêncio.)
Taltíbio:
Vai ser escrava de Ulisses,
o pica grossa do empresariado.
Hécuba:
Escrava dum filha da puta total.
Peguei o pior reparte.
Maria:
Sinhor, sinhor, e eu, euzinha?
Taltíbio:
(Para Maria, carinhoso.)
Chama Alissandra, por favor,
431
é hora de levar a dama.
(Corisco. Tiro dentro da ruína da casa.)
Que merda é essa?
Esse ratatá?
Fogo na casinha?
Bala lá?
Alma livre não tolera algema, bem sei.
Morrer de graça é sina da massa?
Assim eu é que me fodo
com a chefada.
Hécuba:
É Alissandra.
Lá vem minha filha.
Delira.
(Alissandra aparece. Noiva de São João. Camisola e sandálias de couro.
Fitas vermelhas. Trinta e oito numa mão. Na outra, garrafa de cauim,
bebida sagrada de raiz. )
Alissandra:
Senhora dos partos, olha minha chama.
Senhora casamenteira, abençoa meu noivo.
Mamãe, não chore.
Papai morreu.
Minha casa foi destruída.
Vem, mamãe, dança comigo.
Canta. É festa.
Foi São João.
Vamos celebrar meu marido.
(Começa a dançar.)
Maria:
Ela é lin, linda, linda. Lilinda.
Hécuba:
Nunca pensei, filha minha,
que tuas bodas
seriam nas chamas da guerra.
432
Alissandra:
(Aponta arma para Taltíbio.)
Me abençoa, mãe.
Me leva a meu marido, mãe.
Se parece que reluto e tenho medo,
nem que seja na marra,
mãe, me leva.
Se Deus é Deus,
serei esposa da pesada.
Vou fuder sua casa,
salgar sua comida,
sacanear sua raça,
pego ele no leito
cravo caco no peito,
mato, me vingo e pingo.
Taltíbio:
Cala essa matraca.
Larga essa metranca.
Infeliz, vaca!
Alissandra:
Mamãe, o povo mais feliz é o nosso.
Por causa duma galinha, Helena,
quantos estrangeiros morrem?
A vaca sai de casa por gosto,
amor de pica,
o corno não acredita.
Aí o sujeito, por causa
dessa buça arrombada,
sacrifica a filha
num ritual peçonhento,
faz exército,
encara floresta e rio,
cobra, mosquito...
Quantos caem de maleita,
enterrados longe de casa,
sem quem lhes ponha vela
nas mãos e assegure luz
433
até o Dia do Juízo?
Lares sem pai nem marido.
Quantos filhos não são concebidos?
Hécuba:
Filha, não é melhor... Calar?
Alissandra:
Conosco o caso era outro:
quem morria, morria pela terra.
O cadáver ganhava colo amigo,
o pé apontava pra porta...
Incelença, roupa de enterro...
Tudo nos trinque, bonito.
No fim de cada dia de luta,
os vivos viam seus filhos,
banhavam no rio,
gozavam com suas mulheres.
Lembra de meu irmão Heitor,
teve destino que mãe nenhuma
desejava ver.
Escuta: ele se foi,
mas provou seu valor.
Dessa putada mesmo
é a chancela.
Preferissem paz, não davam
a Heitor tanta glória.
Taltíbio:
Paz é quirera
na boca da fera.
Alissandra:
Todo mané com o mínimo de miolo
detesta a guerra.
Não há glória em quem morre lutando
por causa alheia.
434
Taltíbio:
Causa não há nunca.
(Para Maria.)
Isso aqui é função, emprego.
Alissandra:
Mamãe, não chore,
o mundo é assim mesmo.
Não chore a nossa terra.
Terra é de ninguém.
Estava aqui já antes,
vai estar além.
Era terra sem uso,
regamos com a veia.
Também não chore
meu casamento.
Ele traz a ruína
de quem odiamos.
Daqui a um vento.
(Engatilha a arma.)
Taltíbio:
Deus de macumba põe fel na tua boca.
Sei que estás possuída,
pelos espíritos dessa bebida
feita de raiz.
Sou café pequeno,
pau mandado.
Sei bem, todo pica grossa
no fundo não vale
trocado.
Concordo: nosso chefe fez expedição
no meio da mata fechada
por causa duma dama de cabaré,
puta encardida.
Mas ele é o chefe,
sacou?
Assim que é.
(Ventania varre o terreiro.)
Pode berrar, Alissandra.
435
O vento enfim chega.
Vai nos levar.
Tuas palavras carrega.
(Hesita. Pega Maria. Abraça a moça e põe .45 em sua cabeça.)
Vamos, formosa noiva do homem,
baixa a tocha
ou ela leva bala.
É hora de embarcar!
Maria:
(Cantarola.)
Tira camisola!
Palavra não consola!
Alissandra leva rola!
(Silêncio. Alissandra abaixa o revólver. Entrega a Taltíbio.
Ele larga Maria e guarda as armas.)
Taltíbio:
(Para Hécuba.)
Chega logo tua hora.
E vais embarcar sossegadinha, senhora.
(Para Alissandra.)
Agacha agora!
Alissandra:
(Agacha.Talagada da garrafa.)
Mocinho de recado,
cheira-cu de chefe torpe,
nem sabe que durante o trabalho,
feito de santa beberagem,
escuto deuses,
eles me escutam.
(Ventania a milhão.)
E eles disseram
que mamãe,
coitada, cadela,
vai ficar aqui.
E tem mais:
Ulisses otário vai pegar maré braba.
436
Vai passar muito tempo
nas corcovas desse rio,
perdido no meio do nada,
nem sei se um dia chega em casa,
se chegar, chega só,
perde toda companhia,
põe os cornos de molho,
sofrimento da pesada.
(Novamente agitada.)
Vamos, corre com o texto.
É isso aí, mulher.
Vais morrer na treva, feia.
Corpo morto, nu,
na cabeceira dum riacho.
Inchaço.
Pasto para feras.
Fim da previsão.
Fim da profetisa.
(Põe a garrafa no chão. Arranca a camisola de sacerdotisa. Veste velha
cueca. Rola sobre brasas.)
Adeus adornos.
Adeus corpo fechado.
Adeus pureza.
Cadê a barca do chefe?
Adeus, mamãe.
Adeus papai e irmãos mortos.
Adeus, terra amada.
Chega de lamento.
Fiquem frios:
Logo viajo pra terra dos mortos.
Vencedora
final
dessa guerra.
(Fim da ventania. Brisa. Novamente agachada, exausta. Taltíbio puxa
seu alicatão. Agarra e abre a boca de Alissandra. Com o instrumento,
arranca sua língua. Alissandra tomba. Hécuba também.)
437
Maria:
Sinhora.
(Maria tenta ajudar a velha. Cai da cadeira. Tenta afastar as brasas, que
queimam. Taltíbio põe Alissandra no lombo. Sai. Maria abraça a velha,
que acorda.)
Hécuba:
Me deixa, Maria.
Degolaram meu marido
no altarzinho de casa.
Filhas e filhos,
me arrancam um a um
como debulho de milho.
Serei escrava.
Quero ficar caída, largada.
É isso que me agrada.
Maria:
Sinhora.
Hécuba:
Até que morra,
ninguém pode dizer
que é feliz.
(Silêncio. Hécuba cochila.)
Maria
(Sussurra.)
Sinhora, minha...Mãe...
Posso te chamar de... Mãe?
Mãe?
Mãe é a minha terra?
Terra é a minha mãe?
Me diz. Sinhora? Mãe?
A gente caiu emboscada, né?
438
São João, né?
Festa.
Terra.
Mãe terra.
Guerra.
Pimba.
De Tróia restou
Mulher.
Maria.
Lágrima
Não tive.
Pimba.
(Entra um carro de boi, puxado por Taltíbio. Sobre ele, surrada,
Rosemary, com seu bebê Tião no colo. Despojos, entre eles, o escudo de
Heitor.)
Maria:
Sinhora, olha, chegou Rose, Rosemary.
(Hécuba acorda. Se afasta.)
Tião no colo,
filhinho dela e Heitor.
A gemeção do carro de boi
botou Tião pra dormir
no peito quente da mãe.
Me dá um peito, Rose?
E olha lá,
o escudo de Heitor.
Também vão levar?
Rosemary:
(Desce do carro.)
Meus senhores me levam.
Hécuba:
Os senhores, os senhores...
Rosemary:
439
(Na beira da cova rasa. Ora.)
Minha sina, minha dor.
Nesse canto tão...
Maria:
Triste? Tá triste?
Hécuba:
(Ora.)
Deus, meu senhor.
Rosemary:
Tantas desgraças sofro.
Hécuba:
Meus filhos.
Rosemary:
Quantos... Filhos...
Cabem nessa mão?
Hécuba:
O dia começa?
Rosemary:
Dói.
Hécuba:
Findaram os dias de nossa cidade?
Maria:
Tá tristinha?
440
Rosemary:
Dói.
Hécuba:
Fim dos meus filhos.
Maria:
Me dá um peitinho?
Rosemary:
Rezar? Chorar?
Hécuba:
Chora por mim.
Maria:
Sinhora?
Rosemary:
Chora!
Teus males.
Hécuba:
Minha sorte.
Maria:
Sina do bando de Maria.
Rosemary:
Essa terra.
441
Hécuba:
Quem você chama na cova?
Rosemary:
Marido.
Abraça a companheira.
Hécuba:
Arrasa os gregos.
Rosemary:
Meu sogro, meu senhor...
Hécuba:
Me aguarda.
Rosemary:
É tudo obra de deus?
Maria:
Tá tristinha?
(Maria quer abraçar Hécuba, que espanta brasas e abraça a terra.)
Hécuba:
Minhas crianças nasceram
pra essa morte tenebrosa.
Mamãe está aqui, pirralhada.
Mamãe não chora, não.
Mamãe abraça cada um.
Cabe todo mundo nesse abraço.
(Hécuba e Rosemary fazem sinal da cruz. Maria imita. A reza termina.)
442
Maria:
Que canto doce, sinhora.
Hécuba:
Uns, deus põe lá em cima.
Outros, pisa que nem formiga.
Rosemary:
Eu e meu filho somos troféus de guerra.
Hécuba:
Também me levaram Alissandra.
O destino nem se caga.
Rosemary:
Mãe, um outro mal também te esmaga.
Hécuba:
Sei. Sinto.
Agora é tudo chaga.
Rosemary:
Tua outra filha. Xena. Morreu.
Assassinada. Na tumba de Aquiles.
Rito negro em nome da vitória.
Hécuba:
Agora entendo a língua
do mensageiro.
Taltíbio.
Rosemary:
Taltíbio.
443
Taltíbio:
(Do carro de boi.)
É. É. É.
Rosemary:
Taltíbio, diz, não foi, eu vi, eu vi, a gente vinha vindo. Eu vi.
Pedi que Taltíbio - né, Taltíbio? – Taltíbio parasse o carro.
Tião dormia, o meu anjo.
Apeei. Cobri a mana com meu véu.
Chorei.
Hécuba:
Minha filha.
Rosemary:
É mais feliz na morte que serei na vida.
Hécuba:
Não se compara morte e vida.
Onde uma é nada, outra tudo é.
Isso é esperança ou coisa severina?
Rosemary:
Não sei mais responder.
Não sei mais concordar.
Coração cansou.
Morrer pode ser
como não ter
nascido.
A morte pode ser
melhor
que ter
vivido.
Tua filha morreu.
Acabou a dor.
Tive jóias e bijoux.
444
Uma casa limpa.
Cuidava do marido.
Taltíbio:
Emprego de mulher é marido.
Rosemary:
Na camarinha
ele era vencido.
Agora sou escrava.
Vou mofar e morrer
no lar de quem matou
quem amei.
Se abro uma brecha no peito
para quem agora me tem,
me sinto uma vaca
traidora.
Se mantenho meu
amor no peito,
atraio o ódio
daquele que me tem.
Dizem que o ódio da mulher
pelo homem numa noite só
vira pó.
Amor.
Tara.
Até a égua não arrasta o jugo
se lhe tiram o companheiro.
Amaldiçoada seja quem
Aceita outro e
se escancara.
(Levanta vestido. Mancha de sangue na xota.)
Amor, meu amor, tu me bastavas.
Eu era virgem quando nos casamos.
Agora você já não é.
Costurei a xota
com arame farpado,
em honra a ti, meu amado.
Vou numa barca pra longe.
Quem sabe a morte de Xena
pareça melhor que a sina
445
que me resta.
A morte é uma festa?
Maria:
Você vai subir no barco?
E a senhora?
Hécuba:
Não peço homenagem.
Em barco estrangeiro
não faço viagem.
Sei que eles encaram tempestade,
um na vela, um no timão.
Mas se o mar domina,
ao destino eles se dão.
Eu faço o mesmo.
Na desgraça imensa
me curvo e calo.
Filha, coragem.
Lágrima não salva.
Presta homenagem a teu novo senhor.
É honra ter mulher como tu.
Assim alivias tua tribo
e faz o maior dos serviços:
cria o filho do meu filho.
Que um dia os filhos dele
limpem novamente
nossa roça.
Taltíbio:
Tem mais, mulher.
Rosemary:
Desembucha.
Taltíbio:
Teu filho... Cadê palavra?
446
Rosemary:
Será escravo de outro?
Taltíbio:
Ninguém jamais será
senhor de Tiãozinho.
Rosemary:
Vão abandonar
aqui meu filho?
Taltíbio:
Como se diz...
Rosemary:
Que desgraça te cala?
Taltíbio:
Vamos matar teu filho.
(Silêncio.)
Ordens de cima.
(Silêncio.)
Bem lá de cima.
(Silêncio.)
Tem lógica:
filho vivo de inimigo hoje,
inimigo vivo amanhã.
Rosemary:
Que o mesmo valha para meu senhor e seus filhos.
447
Taltíbio:
Teu filho vai ser jogado
da ponta do velho mastro.
Desfaz esse abraço.
Me dá o moleque.
Mulher sozinha pode nada.
Não lute.
Não lance maldição.
Se enfezas a tropa,
a criança nem túmulo vai ter
depois de morta.
Teu filho terá cova rala.
Os gregos são bons.
Suporta.
Cala.
Rosemary:
Nãna, neném, nos braços do inimigo.
Não chora, neném, larga meu vestido,
passarim ferido.
Criancinha.
Teu cheiro.
Beija essa boca.
Me abraça.
(O bebê dorme.)
Papai não mais te vale.
Vão te jogar desse mastro
numa vala.
Tu vais morrer sem mim.
Eu morrerei sem ti.
De que vale o leite de um peito?
Tanta muda de fralda.
(Ela entrega o menino a Taltíbio.)
Vai. Leva. Bom apetite.
Rega a terra com esse sangue.
Não sei impedir a morte desse filho.
Daqui enxergo o barco.
Posso?
(Começa a caminhar em direção aos barcos. Saindo.)
Eis meu novo matrimônio.
448
Dele ninguém escapa.
Taltíbio:
(Para Maria.)
Acha que tenho sangue de barata?
Que não dói esse calor no colo?
(Para si mesmo.)
Preciso preparar a corda.
Preciso preparar o mastro.
Fazer direito o meu rito.
(Abandona o carro. Sai com a criança no colo.)
Hécuba:
(Depois da saída.)
Adeus.
(Entra Menelau.)
Menelau:
Sol. Nenhuma nuvem.
Que belo dia para reencontrar um amor.
Mulher, chame aqui Helena.
Minha mulher.
Hécuba:
Menelau...
Menelau:
Enfim, cheguei.
E não foi mole.
O que me trouxe aqui
não foi aroma de mulher,
mas ódio por um homem.
Aquele que levou Helena
de seu lar.
Meu lar.
449
Sei que ela vive aqui
como uma nativa.
Pois vou matá-la.
Ou não.
Não sei.
Ainda não sei.
Vou levá-la para casa.
Lá vou julgá-la.
Lá mato ela.
Isso.
Sei lá.
Helena.
Aparece.
Com teus cabelos
ensangüentados
e belos.
Hécuba:
Também vai correr sangue em casa, Menelau?
Louvo tua decisão: matar Helena.
Mas sei que temes encarar a mulher.
Temes teu louco amor.
Helena cativa.
Olha esse país,
olha tantos mortos.
Helena incendeia.
Somos todos vítimas
da sereia.
(Helena aparece. Um olho roxo. Ela tenta disfarçar com o cabelo – é a
única mulher cujos cabelos estão intactos.)
Helena:
Bonita cena, Menelau.
Até me assusta.
Sei que me odeias.
Vais me matar?
Não custa.
450
Menelau:
Mulher.
Amor.
Helena.
Faz tanto.
Não houve.
Não sei.
Melhor.
É meu dever.
Tirar.
Tua.
Vida.
Vida minha.
Helena:
Me deixa te dizer:
isso é injusto.
Menelau:
Não vim pra conversar.
Hécuba:
É última vontade: deixe que fale.
Mas deixe também que eu refute.
Eu condeno essa mulher à morte.
Menelau:
Quem é a velha?
Helena:
Hécuba. A líder.
Menelau:
Vai, fala.
451
Helena:
(Para Hécuba.)
Tu és culpada.
Gerou Tales, o pica doce.
Fui enganada pelo belo.
Vim seqüestrada.
Vim para salvar
meu lar
de desgraça.
(Para Menelau.)
Sabe como fugi de casa?
Tales me embromou, pôs no porta-malas.
E tu deste sopa.
Me perdoa.
Não sou culpada.
Quando Tales morreu
tentei fugir.
Não deu.
Hécuba:
Tudo balela.
Loucuras de amor
são só loucuras.
Trocaste vida de merda
pela aventura.
Eu mesma te avisei:
te manda enquanto não é tarde,
antes que ocorra guerra,
antes que a morte
encontre a infiel.
Maria:
(Cantarola.)
Menelau, não faz mal!
Melhoral!
A Helena levou pau!
Menelau:
Sei que ela largou o lar
452
porque bem quis e
pra gozar na cama
com o tal Tales.
Em casa vamos te apedrejar.
A morte ensina a
não desonrar marido.
(Helena se atira aos pés de Menelau.)
Helena:
Perdão.
Hécuba:
Não traia.
Mate.
Menelau:
Calaboca, velha.
Xororô não me comove.
Ela vai pro barco,
de lá pra casa
e lá é pedra.
Hécuba:
Tu e ela na mesma barca
e uma outra coisa acontece.
Menelau:
A troco?
Hécuba:
Coração de amante não esquece.
Menelau:
Se quem amou nos amou igual.
453
Hécuba:
Palavras sem sal.
Menelau:
O amor é banal.
Vem cá Helena.
Que boca bela e pequena.
A buça deve dar pena.
(Ele beija a mulher. Ela se afasta. Tira o vestido. Está nua.)
Há outra beleza tão plena?
(Puxa faca de campanha da cinta. Encosta seu corpo no corpo da
mulher. Talha um M na cara de Helena. Corta suas orelhas. Ela não
geme, sangra. Menelau beija Helena. No sangue se banham.)
Helena:
O teu pau tá duro.
Menelau:
Prótese.
(Entra Taltíbio.)
Taltíbio:
(Continência.)
Senhor, agente Taltíbio, senhor.
Menelau:
(Se apruma.)
Descansar.
454
Taltíbio:
Tudo muito bonito. Agora é hora do rito.
Menelau:
Perfeito. (Para Helena) Vamos. (Sobe no carro de boi. Acena para
Helena. Ela puxa a carroça. Saem. Taltíbio faz continência.)
Maria:
Fogo. Sol. Sem Deus.
(Silêncio. Taltíbio carrega, feito um embrulho, Tião. A criança parece
mesmo um pacotinho, dentro do escudo de Heitor. Taltíbio amarra o
pequeno à corda do mastro. Sobe a encomenda.)
Bando de Maria,
contempla
a vossa
criança.
(Quando ela está no topo, Taltíbio puxa sua faca e corta o cordão. O
escudo cai.)
Taltíbio:
(Para Maria.)
Toma nos braços.
(Maria se arrasta e pega a criança.)
O caixão de teu neto morto
é o escudo do teu filho.
Bonito escudo.
Igual ao do Capitão América.
Puta herói de gibi americano.
Lia pra caralho de garoto.
No fim é tudo escroto:
herói entra é pelo cano.
Falta cavar a tumba.
Vamos.
Você e eu.
A coitada aguarda.
Vai, anda.
455
Vamos.
(Começa a revolver a cova onde muitos homens foram enterrados nessa
madrugada.)
Hécuba:
(Vai cavar com Taltíbio. Usam as mãos.)
Amorzinho,
jurava que tu
me enterravas.
Eu que te levo ao leito.
O que diria um poeta
para teu túmulo?
Tudo é nulo.
O escudo de teu pai
é tua herança.
Quem pode dizer
que sempre foi feliz?
Um cadáver.
(Os dois se afastam. Com cuidado, Maria embrulha o menino em sua
manta. Taltíbio põe o escudo na cova. Maria coloca ali a criança.
Taltíbio se afasta. Maria cobre tudo com terra.)
Maria:
(Susurra. Para Taltíbio.)
O fogo tá engolindo a cidade...
Taltíbio:
Vão queimar tudo.
É ordem lá de cima.
Cinzas ao sol.
O vento ajuda.
Hora de correr ao porto.
Hora de partir.
Hécuba:
Deus, não te invoco mais.
Que tudo vire fogueira.
456
(Para Taltíbio.)
Quero morrer aqui.
Taltíbio:
Nem fudendo.
Hécuba:
Deixa eu morrer aqui.
Taltíbio:
Agacha!
(Ela obedece. Ele puxa o alicate. Se aproxima. Beija os lábios de
Hécuba. Depois, abre a boca da mulher, enfia o instrumento e puxa.)
Molar de ouro. Uns conto. Agora levanta e vai!
Hécuba:
(Tenta levantar. Não consegue. Agachada, sangra.)
Esse clarão... É Tróia?
Maria:
Sinhora, acabou, acabou. Pimba.
Hécuba:
(Carinha o chão. Geme.)
Terra... Que deu de comer... Aos meus... Filhos...
Maria:
Sinhora, mãe?
Hécuba:
Mamãe tá chamando.
457
Maria:
Nãna, nenê.
(Hécuba esmurra a terra. Maria se joga da cadeira e começa a fazer o
mesmo.)
Maria:
Oi, mortinhos do fundo,
caboclo e cristão,
sinhora tá chamando!
Hécuba:
Em Tróia, ela chora o assassinato dos filho.
Taltíbio:
Chorar é coisa de mulé.
( Hécuba começa a rir. Gargalha.
Estrondo. O acampamento desmorona.
Silêncio.)
Maria:
(Ri.)
Esqueci as caras.
Esqueci os nomes.
(As mulheres gargalham.)
Hécuba:
Cinza, fumo.
Fumo, cinza.
Ruína. Morta.
Maria:
A terra arde.
É eu quem treme?
É a cidade?
458
(O mastro desaba.)
Cai, cai, balão.
Taltíbio:
Hora do embarque!
Hécuba:
(O riso acaba.)
Levanta... Mu-lé... Marcha.
Maria:
E eu, mãe, sinhora?
(Taltíbio puxa faca.)
Hécuba:
(Entre ela e Maria, braseiro fumega.)
Você dormiu de madrugada?
Maria:
Nada.
Hécuba:
Nem eu.
(Silêncio.)
Hécuba:
Você ouviu cada palavra?
Maria:
Cada.
459
(Silêncio.)
Hécuba:
(Se aproxima de Maria.
Passa saliva ensangüentada na mão,
limpa mancha na testa de Maria.)
Onde termina o rio,
Onde é o fio dessa meada?
(Se afasta. Taltíbio agarra Maria. Põe a faca em seu pescoço. Ao longe,
cantos de vitória. Sirene. Gritos.)
Taltíbio:
Você é a mais bela da ninhada.
(Ela beija Taltíbio. Os dois se agarram. Taltíbio se solta. Vira as costas.
Guarda a faca.)
Hécuba:
Você fica aqui, princesa.
Maria:
Mais nada?
Hécuba:
Filha... Maria.
(Duas sirenes. Taltíbio cata tralhas com urgência. Um tremor. Um agito.
Um ataque. Hécuba se contorce como cadela.Uiva. Baba. Taltíbio
estanca.)
Taltíbio:
Puta que pariu!
Maria:
É como disse...
460
Taltíbio:
Alissandra...
Maria:
Minha irmã.
(Taltíbio puxa da cintura 38 de Alissandra. Dá quatro tiros em Hécuba.
Agacha. Abre com o facão o peito da velha. Com seu alicate, tira o
coração. Ergue como cálice da missa. Deita o órgão na terra. Cava e
enterra. Olha Maria. Um chorinho, do nada, rasga o ar. Assustado, o
homem transborda num choro.)
Taltíbio:
Meu Deus, meu Deus... Maria... A...Deus?
(Últina sirene de navio. Gritos da tripulação. Os invasores partem.)
Maria:
Não há. A-deus.
(Siêncio. Taltíbio se arrasta até Maria, beija seus pés nus. No nada,
começa um chorinho de criança. Taltíbio e Maria aterrorizados.Maria se
levanta num salto. Pés descalços pisam brasas. Chorinho. Maria sobre a
cova rasa. Cava. Rasga o chão. Encontra o cadáver de um homem. Cava.
Chorinho devora o acampamento. Outro cadáver. Cava. Mais um.
Encontra o pacote. Chorinho. Aninha a coisinha no colo.)
Taltíbio:
De boba tu não
tem nada.
Maria:
Você caiu na jogada.
(Para bebê.)
Nãna, neném...
(Tempo. Ela canta.)
461
São João... São João...
(Dá um peito ao moleque.
O choro pára.)
Meu coração...
Fogueira acesa...
Taltíbio:
Ele... Vive?
Maria:
(Bebe garrafa de cauim até o fim.)
Meu filho...
Taltíbio:
Filho teu?
Maria:
Filho meu.
(O Almirante e a Prefeita aparecem.)
Almirante
Nosso.
Filho nosso.
Taltíbio?
(O jagunço não responde. Silêncio.
Maria apavorada.)
Se o espetáculo terminasse assim
seria um belo fim.
Pega o pirralho, por favor!
(Nada.)
Sobrinha.
(A prefeita arranca a criança de Maria.)
Prefeita:
Raça resistente.
462
(Explosões ao longe. Gritos. Barcos naufragam.)
Almirante:
Como combinado,
Os mortos alimentam
os vivos.
Fato consumado.
Prefeita:
Até que é bonito,
o menino.
Maria:
Meu filho?
Almirante:
Meu. Filho.
Prefeita:
Vamos?
Almirante:
Taltíbio?
(Silêncio.)
Meu filho?
(Silêncio.)
Pronto. Acabou.
Taltíbio:
Você acha?
463
Almirante:
Férias em Miami
e você relaxa.
Prefeita:
Posso criar essa criança?
Fralda descartável,
talquinho, purê.
Quero criar esse nenê.
(Balança o bebê,
que começa a chorar.)
Como é que isso pára?
(Taltíbio atira na testa da prefeita.
Bebê no chão. Chorinho.
Maria agarra o bebê.)
Almirante:
(Puxa automática.
Num zás, os homens
apontam um para o outro.
Noutro zás, Taltíbio aponta
para o bebê; o Almirante,
para Maria.)
Enfim, um final de classe
para a luta de classes.
Taltíbio:
É tempo do
usocampião.
(joga sua outra pistola
para Maria. Ela põe o
bebê no peito.
Mira de modo
que uma bala possa
dar cabo de ambos.)
464
Almirante:
É hora do pacto.
De acabar com a miséria.
A fome.
A dor.
De dividir a terra.
O ouro.
O poder.
(Volta a apontar para Taltíbio.)
Fecham-se as cortinas de sangue
do nosso cabaré barato.
Taltíbio:
(Volta a mirar Almirante.)
Mais nada?
Almirante:
Mais nada.
(Os dois atiram. Caem.)
Maria:
Depois do despejo
vem outra fronteira
e outra chegança.
A gente assitua
e com boca e braço
faz mutirão.
Sinal de ferro
amansa a terra,
que terra livre é
terra do comum.
Depois, pra
aquecer a noite
a gente faz
fogueira
e canta.
Depois descansa.
A vida é uma queimada,
465
criança,
e avança.
(Guarda arma. Estreita bebê no peito.
Corre para dentro da mata. Fim.)
FIM
466
sete vidas de santo
cordel trash
Abril de 2001 – Setembro de 2002. São Paulo, Brasil.
Nota:
Aqui, tudo é material. Cada palavra. Cada vão entre palavras. Jogo de
cena que peneira gritos.
Brasil. Das periferias para o mundo. Ontem, hoje, amanhã. Um Pirralho
que pode ser Santo. Uma Maria que pode ser Maria-chuteira. Um Mané
que vira Egum. Uma Sombra. Uma Criança. E um Assum Preto que não
larga da sanfona jamais.
467
Cena 1: Canto:
Esquina do mundo. Assum, repentista cego, coça a sanfona e arranha
sua história no gogó. No chão, pertinho do pé, lata pede gentilezas.
Assum:
Das perifas do mundéu,
vem canto sem lei nem léu,
queima a trama do pavio
dos dramas do meu Brasil.
Ontem, hoje e amanhã,
esta historinha tranchan.
Que ali quem pode, pode.
Quem não pode que se explode.
Uns na mira da pistola.
Uns mete a bica na bola.
Um pirralho vira Santo.
Um Mané vira Egum.
Maria veste chuteira
para faturar algum.
Todos numa pirombeira,
todos querendo cudum.
E a Criança agora dorme,
no seu sonho de aventura.
Quer crescer, mas não consegue.
Dorme linda criatura.
Amanhã não será mole.
Deixa eu coçar meus fole.
Dizem que a vida é bela,
no palácio ou na favela...
Seja Sombra e água fresca,
uma farra nababesca,
ou nas fila dos busunga,
sempre só levando tunga,
vida aqui não vale a bala,
acaba tudo na vala.
Se é conta de mentiroso,
Se é mistério gozozo,
o meu canto, minha amiga,
meu amigo, só me diga,
depois de sentir a chama.
Agora o dever me chama.
468
O meu pai que me mostrou,
meu irmão arrematou
e é melhor não esquecê:
O pior cego não vê,
o melhor tá na TV.
Aqui só eu e você.
Você conta enquanto eu canto
as sete vidas de santo.
Cena 2: Crime:
Santo. Mané. Maria.
Faz sete anos. Perifa. Vermelhão no céu. O fusca pára na esquina. Maria
desce e vai até a padoca. Mané espera no volante. Rádio Ligado. Hora
da avemaria. Aparece um pirralho, Santo. Puxa o berro. Mané se
assusta. O pivete dispara. Uma, duas, seis vezes. Silêncio. Maria volta,
larga o saco de compras no meio-fio.
Santo: Eu queria um tênis novo.
Maria: Podia ter pedido.
Santo: Eu não peço. Pego.
Maria: Não precisava atirar.
Santo: Quando vi, tinha sido.
Maria: Ele era tão bonito.
Santo: Come um chocolate.
Maria: Pudesse, comia teu fígado.
Santo: Dá tempo de te dar um tiro!
Maria: É tudo que eu quero, é isso.
Santo: Eu podia ser teu filho.
Maria: Sangue do meu marido.
469
Santo: Pega o chocolate, porra.
Maria: Tô esperando teu tiro.
Santo: Eu não tenho mãe nem abrigo. Eu não tenho irmão nem amigo. Eu
tenho uma 765. Tudo que eu quero eu consigo.
Maria: O que vai ser do meu filho?
Santo: Vida é caco de vidro.
Maria: Leva o pacote de leite. Come estes seis pãezinhos. Leva esse pote
de Toddy. Come esse Baconzitos.
Santo: Olha que fio esquisito de sangue do teu marido. Parece o rosto de
Cristo. Morrer até que é bonito. Eu queria um tênis novo. Que nem esse
ou parecido.
Maria: Tá tudo ficando escuro. Fica aqui comigo.
Santo: Pede pros bundão da padoca, que tão cagando atrás da televisão de
cachorro. Tá na hora de puxar, que não encaro milico.
Maria: Cê leva esse sangue, o bang no teu ouvido. Tudo que se passou. O
que podia ter sido.
Santo: Tia, esse é meu caminho. Sou Pokémon evoluído.
Cena 3: Foda.
Hoje. Santo. Maria-chuteira. Egum.
Perifa. Mini-motel nos fundos do boteco de pagode, cortesia do
proprietário para os craques do momento, o fino da clientela, baterem
um bolão com as amantes do esporte bretão.
Maria: Conheço toda tua carreira.
Santo: Então cheira! (Puxa pacote de pó. Prepara sobre espelho.)
470
Maria: Sei de cor tudo que é jogada.
Santo: O meu gol de placa...
Maria: No tricolor, com certeza. Final do campeonato.
Santo: (Cheira.) Domingo lindo, final da tarde, Morumba cheio. Só a
vitória dava o caneco. Jogo nervoso, segundo tempo, os negos na cera, eu
no olé, eu na chaleira, pra ver se arranjava um vermelho pro zagueiro
irado, aí roubei a pelota na meia-cancha, num dois-toques rápido, dei pro
8, ele pro 11, lá na esquerda, joguei sem bola, na outra ponta, costas do
ala, colega lançou de rosca, uns 30 metros, matei no peito, pousei a
demônia, objetivo. Hora de garantir o bicho. Da carnificina. Veio um
mané, levou elástico. Pulei carrinho, pé na canela. Rasguei a área, saiu
goleiro, fechou o ângulo, abriu as caneta, mandei no meio, peguei de
volta, matei o lance, um tiro curto, quase foi fora, aí fez curva, negócio
espírita, entrou bem lenta, tirando fina da cajarana. Estufou a rede. No
aviãozinho, fui pra galera. Arranquei camisa, torcida grita, meu nome:
Santo. SAAAAAAAANTOOOOO! Que puta orgia!
(Ela cheira.)
Maria: Comprei um vídeo com jogadas suas. Chuchu beleza!
Santo: Teve replay nas mesa redonda. Viram e reviram, ninguém entende
minha obra-prima. Aí os empresários fizeram o vídeo. É bem bacana.
Tem fundamento. Ensino a arte. A bater falta. Meter 3 dedos. Enfiar
chapa. Vendeu um monte. Abri 3 escolinhas com o faturamento.
Maria: Posso botar meu filho?
Santo: Já tem criança? Tão novinha...
Maria: Cê acha? Cê dá desconto?
Santo: Pra ti é de grátis, não paga necas de pitibiriba.
Maria: Cê é um santo.
Santo: Uns dizem santo, outros, capeta. (Tira a mini-blusa da gata. Ela
fica só de minissaia e saltos altos. Ele admira.) Tu és bela. Teus olhos,
pombas. Os cabelos, um rebanho de cabras. Teus lábios, um fio de
veludo. Teus seios são dois filhotes de gazelas.
471
Maria: Pára. Assim eu fico envergonhada.
Santo: Tá lá na Bíblia. É Salomão. O pastor me ensinou. É a tua cara.
Você todinha. Me beija os beijos da tua boca, potranca linda. (Beija a
mina.)
Maria: Já tô bem gasta.
Santo: Tá nada.
Maria: Tenho 35. Parece?
Santo: Nunca. Sabia que dava pra você ser minha mãe?
Maria: Mãe bem novinha.
Santo: Acha pirralho ter 21?
Maria: Acho bacana. Dá bem no couro. Olha minha cara, essa cicatriz. É
navalhada das bem levinha. Olha esse peito, não tem o bico. De tanto que
um amor mamou. Esse fiozinho, cesariana...
Santo: Minha princesa.
Maria: (Tira a minissaia.) Meu rei da bola.
Santo: (Tira camisa. Peito de atleta, com medalhinha.) Mas não é mole.
Era franzino. A becada derrubava no tranco. Tomei bomba pra ficar
sarado.
Maria: Tá tão bonito...
Santo: Puxei ferro, lá na maromba treinei em dobro. Quem vem debaixo
não teme tempo feio.
Maria: Só.
Santo: (Tira calça.) Fiz essas coxas no Leg Press. A patada atômica é de
meter medo. Pura explosão. Velocidade.
(Ela, calcinha e sutiã. Ele, cueca samba-canção de seda. Tiram sarro.)
472
Maria: Quem vem de baixo tem pressa pra subir.
Santo: É.
Maria: Cê subiu rapidinho...
Santo: Eu não peço, pego. Tudo que eu quero eu consigo.
(Agarra Maria.)
Maria: (Dribla o atleta.) Liga o vídeo. Bota um som. Liga a hidro.
Santo: (Obedece. Vídeo pornô. Hit de Daniel.) Vai ser de goleada. De
bola e tudo.
Maria: Devagar com o andor. Que eu tô naqueles dias.
Santo: Nem me avexo. Até que gosto. Me dá chamego. (Deita Maria na
cama redonda. Estende uma carreira no colo da parceira.)
Maria: Domingo é decisão.
Santo: É bom fazer troca de óleo. Feliz eu chamo a responsa. Não tenho
canela de vidro, não amarelo. Meto goleada. (Cafunga.) Vai ser um
domingão legal.
Maria: Dedica um gol pra mim...
Santo: Tem um contrato me esperando, time italiano. Faço a vida no
lance.
Maria: (Faz dengo.) Me leva junto?
Santo: Tô noivo.
Maria: Eu tenho filho.
Santo: O maridão?
Maria: Morreu.
(Surge o Egum, num canto do quarto. Só Santo vê.)
473
Santo: (Petrificado.) Assunto besta, desculpa.
Maria: Tem nada, não. Morreu a bala. Numa esquina. De graça mesmo.
(O Egum deita na cama. Gargalha. Santo ouve. Maria pressente).
Santo: Numa parada?
Maria: Era operário, café pequeno: mão de moleque.
Egum: Faz sete anos. Perifa. Vermelhão no céu. O fusca pára na esquina.
Maria desce e vai até a padoca. Mané espera no volante. Pinta o pirralho.
Puxa o berro. Mané se assusta. Nego dispara. Uma, duas, seis vezes.
Santo: Pegaram o cara?
Egum: Silêncio.
(Santo levanta num tranco. Derruba a droga.).
Maria: (Assustada.) Assunto bobo. Agora é tarde, já foi. (Se agacha,tenta
catar o pó.)
Egum: Maria volta, larga o saco de compras no meio-fio. Maria e o
pivete, olho no olho, sangue no chão. Meu cadáver ali, horas, no fusca.
Seguro obrigatório vencido, devendo muito IPVA. O carro foi recolhido.
Nunca ninguém foi buscar.
(Maria e Santo se olham. A mulher rasteja até o carinha. Beija seus pés.
Vai subindo.)
Santo: Eu vim de baixo. Já fui pivete. Tava na esquina. Já cheirei cola. Já
comi lixo. Dormi debaixo de viaduto. Vivi nem sei quantas vidas.
Egum: Caixão lacrado. Estrago feio. Uma boca cheia de formiga. E muita
boca pra criar.
Maria: (Na beira de um sôfrego boquete.) Vou te comer tudinho.
(Santo, mais uma vez, sai fora. O Egum zanza pelo quarto.)
Maria: (Aflita.) Cê tá legal, meu Santo?
474
Santo: Minha mãe me largou novinho. Com a fama, capaz de querer uns
troco. Voltar.
Maria: Assombração não volta...
Santo: Você que pensa.
Maria: Mãe larga filho por necessidade... Mas uma coisa morre aqui
dentro...
Egum: A morte você conhece, pirralho!
Santo: (Para Maria.) Tá tudo ficando escuro. Fica aqui comigo. (Maria
abraça o jogador.)
Maria: Também larguei criança cedo. Tinha 14. Foi de bobeira. A gente
era tudo criança. Deixei o baby num hospital.
Santo: (Sussurra.) Eu podia ter apagado um cara. Eu podia ter metido um
monte de balas nele. Ele podia ter mulher e filhos. Podia.
Maria: Podia.
Santo: Tem um encosto comigo. É uma coisa que me persegue. É uma
zica, uma puta uruca.
Maria: Não tem medo de dópingui, não, pirralho?
Santo: (Surta.) Pirralho... Pirralho puxei cana um tempinho. Na FEBEM
era bom de bola, todo time me queria, era capitão, tinha um pé santo,
metia dentro, cada jogada impossível, uns toque mágico, uns efeito
escabroso, meio divino, daí o nome, meu nome, Santo. Mas era o
encosto, meu anjo, era ele quem tocava pro fundo do gol. Depois tirava
um sarro comigo.
Egum: Uma tabelinha as-som-bro-sa!
Maria: (Desesperada.) Vamos transar?
Santo: Escuta...
(Silêncio).
475
Santo: Nunca contei pra ninguém. Fui pro terreiro, com pai de santo. Fiz
muito ebó. Fiz a cabeça. Mas o egum vem comigo.
Egum: Como uma sombra.
Santo: Uma sombra.
Egum: Como um amigo.
Santo: Um amigo?
Maria: Um amante...
Egum: Assim é a morte, meus filhos.
Santo: Fui pras igreja, virei crente, fui batizado, dei testemunho, cantei os
salmo... Até que o sucesso chegou.
Maria: Cê tem poder! Craque-empresário...
Egum: Sai na Caras, Contigo...
Maria: O passado pesa. Mas é preciso. Uma hora. Sabe. Largar. Lá.
Largar lá atrás. Deixar. Passar. Pra trás. Pra trás...
Egum: Essa jogada é que gela o sangue, moçada. É como pênalti numa
final. Bola na cal. Goleiro cresce na frente. O juiz apita... Agora como é
que se bate? Toca no canto, com força? Manda uma bomba no meio?
Tenta humilhar o arqueiro? Fecha os olhos e chuta? A hora da gente
sempre chega. O passado passa a conta. Não é mole o esquecimento!
(Desaparece. Maria mira o craque.)
Maria: Vem cá, meu gato. (Santo e Maria se procuram.Choro.)
Santo: Nem sei mais em qual vida de gato que eu tô.
Maria: Nem eu. (Limpa lágrimas.) Deixa ver. Já fui Maria vai com as
outras. Maria Mijona. Maria Madalena. Agora tô mais pra Maria...
Chuteira, né? Você conhece o tipo. Né? (Brinca.)
Santo: (Embala.) Só. Nas viagens. Concentração. O professor marca em
cima. Mas as meninas também.
476
Maria: Mas sabe, no fundo, não sou zinha, não. E queria que comigo, sei
lá, com você, fosse diferente, entende?
Santo: Só. Sei. Contigo é. Diferente. Diferente.
Maria: Sou tua fã número 1. Trouxe presente pra você, ó!
Santo: Brincou.
Maria: Deixa pegar. (Tira da bolsa um embrulho. Ele abre como
criança.)
Santo: Uma chuteira!
Maria: É teu tamanho, li num jornal. É importada. É amarela. Daquela
marca que te patrocina.
Santo: Não precisava. Deve de ter custado...
Maria: Cavalo dado num se olha os dente. Põe pra eu ver?
(Santo hesita. Põe a chuteira.)
Maria: Se eu te pedir uma coisa...
Santo: Pede.
Maria: Deixa pra lá.
Santo: Falando sério.
Maria: É nada, não.
Santo: O que quiser.
Maria: Cê... Usa ela... Na final?
(Silêncio. Os dois acabam de se recompor.)
Maria: É tudo que eu quero.
Santo: Então eu uso.
477
(Maria despe lingerie. O sangue desce pelas pernas.)
Santo: E vou marcar muito gol. E quando correr pra galera, pra placa, pra
câmera, e quando comemorar, e glorificar ao senhor, vou beijar teu
coração.
Maria: Vamos transar?
Cena 4: Banho.
O motel se derrete. Beira de fonte. O mênstruo vira rio.
Tambores. Ritual.
Santo e Maria se paramentam, filhos de Xangô e Oxum.
O Egum também se apresenta.
Xangô, orixá dos raios e trovões, vem de vermelho, usa contas brancas e
pulseira de latão. Carrega seu oxé, machado de duas lâminas.
Oxum, rainha das águas frescas, orixá dos rios. Protetora dos partos e
das crianças. É puro dengo. Veste amarelo e dourado. Usa ouro e
bronze. Leva um espelho.
Egum. Morto ancestral. Usa panos decorados com búzios, espelhos,
miçangas, cobrindo o rosto e o corpo. Leva espada de prata.
Os santos descem.
Egum: Pé batuca chão feit’atabaque. Três toques. Évenho eu. Vindo dos
fiofós dos confins da morte.
Santo: Passe ligeiro.
Egum: Minha pessoa era vivente do mundo.
Santo: Eu te esconjuro.
Egum: Hoje viro crocodilo, pitão, camaleão.
Santo: Olha meu machado antigo. É feito de meteorito.
Egum: Um leão negro dos poços não teme navaia véia.
Santo: Vieste afins de vingança...
Egum: Quem sabe a que veio é eu, rapá!
478
Santo: Pra ti num tem ebó!
Egum: Careço de guia pra meus caminhos.
Santo: Teu caminho deu em beco, xará!
Egum: Quero a saída da sinuca.
Santo: Vá te catar.
Egum: Olha esse bico.
Santo: Vá ver se estou na esquina.
Egum: Sair da vida num golpe, num galope repentino, é coisa que dói um
mundo. Tirar a vida num golpe, num estampido, é coisa que custa um
mundo.
Santo: Tenho destino. Tenho dinheiro. Prestígio. Felicidade.
Egum: Tá tudo na roda!
(Dançam. Machado contra espada. Faíscas. Giros.)
Santo: Já fiz despacho.
Egum: Não adianta.
Santo: Já joguei búzio.
Egum: E eu com isso?
Santo: Os meus pecados, paguei nas ruas. Com cada abuso, com cada
sova. Os meus pecados nem me pertencem. Os meus pecados são os do
mundo.
Egum: Eu sei.
(Luta paralisada. É com Maria.)
479
Maria: Seixo de rio veio mansinho na noite, no rumorejo das águas, parou
na margem, só um pouquinho. Antes que a correnteza me leve longe, que
não crio limo, devo acalmar as almas.
Egum: (Para Maria.) Não quero troco. Não quero muito. O que mereço.
É a liberdade que busco, no lusco-fusco dos descaminhos.
Santo: Então vai-te embora!
Egum: (Descobre o rosto. Puro palor.) Você me meteu seis tiros. Eu caí
no primeiro baque. Cabeça e vidro de fusca. Tava escutando uma rádio,
hora da Ave Maria. O primeiro tiro foi susto. Os outros o que foi mesmo?
Santo: (Vomita.) Foi raiva. Primeiro foi medo. Foi fome. Primeiro foi
medo. Foi sarro. Foi assim mesmo. Depois foi cosquinha no dedo.
Maria: E o que gritava teu peito? (Maria ergue espelho, reflete rosto do
Santo.)
Santo: Mãe, onde andam teus olhos? Pai, como eu te desejo... Mãe, me dê
o bico do peito! Pai quero um colo direito! Mãe, só teu beijo é remédio,
com meu pai na beira do berço.
Egum: O coração revelado não cabe em riacho estreito. (Começa a cantar
baixinho um doce ponto de misericórdia.)
Maria: Água viva da fonte, vida alargando leito.
(Santo se despe e se banha, com ajuda de Maria.)
Egum: (Para Santo.) Depois dos tiros, segui teu rumo. Fui tua sombra em
cada bocada. Te desviei pras peneiras. Moldei teu chute, teu dibre. Fiz
tabelinha com teu sucesso. (Para Maria.) Depois dos tiros, segui teu
rumo. Fui tua sombra em cada roubada. (Para ambos.) Então o coração é
um vão onde criança cega se deita? Ou não? Escuridão espreita. Alma
danada. Medo do nada. Então a dor que dói e remói todos de nós é a
mesma? A vida é besta? A morte é esta? É só? Canta, criança, canta. Do
destino ninguém se gaba. Vida perdida não paga outra. Lá no fundo das
quebrada, melhor é a alma reencontrada. (Santo está nu. Os três se
cumprimentam.)
Maria: As feridas viram pipoca. Esfrega com sabão negro todas as
cicatrizes. Chega de morrer. Chega de matar.
480
Egum: Tem uma hora, a morte entra em campo. Como se fosse filho.
Agora vou-me. De uma vez. E vou-me em paz.
Maria: Que nossas mãos só toquem folhas e frutos. Que nossos pés só
pisem terra fértil. Labaredas sejam nossos olhos. Adeus.
Egum: Sejais felizes! ((Egum gira, uma ventania. Vai-se.).
Cena 5: Gozo.
O motel se recompõe. Santo e Maria. Um hit de Leonardo.
Maria: (Se despindo.) Você me tirou marido. Numa esquina. Eu tinha um
filho. Não tinha um puto. Já tive ódio, jurei vingança. Penei um monte.
Tive amantes, ganhei presentes, fortuna em jóia. Arranjei um berro. Anda
na bolsa...
(Maria mira a bolsa, num canto. Santo segue seu olhar.)
Santo: Maria...
Maria: (Vai até a bolsa. Pega a arma.) O tempo passa. E o desespero.
(Passa a arma pelo corpo. Encosta na têmpora.) E o coração não é que
amolece?
Santo: Fica cicatriz.
Maria: Um dia a paixão bate de novo na porta. O olho brilha.
Santo: As cicatrizes a gente roça.
Maria: (Aponta arma para Santo.) Vem um desejo de vida, meu Santo.
Santo: Tanto mistério.
Maria: Meu filho anda a solta no mundo. E nele o ódio ainda fala.
Santo: Cada um tem sua hora.
481
Maria: (Põe a arma na própria têmpora.) A dor se cala. Então se muda.
Que tudo muda. Queria que ele soubesse... (Abaixa a arma.) O amor caiu
no meu colo, que nem passarim ferido. (Larga a arma no chão.) Por você
me apaixonei. (Chora.) Seria encosto? Seria sina?
Santo: A gente se nina nessas quebradas.
Maria: Pra encontrar tua alma sangrante, sacrifiquei jóias, vestidos,
pentes, espelhos. Que nem mamãe Oxum. Restou um vestido branco. E o
amor estranho aqui dentro. Que nem, que nem. Todo dia lavo meu pano,
que vai ficando amarelo. Que nem mamãe Oxum.
Santo: Tudo que é alma lavada seque aos carinhos do vento.
Maria: Quero teu beijo. Na lua cheia, fazer criança. Depois de um tempo,
eu vou embora. Saio da história. Pra nunca mais. E você que crie a
criança na decência.
Santo: É tudo que quero, amor.
(Os dois se unem. Êxtase.)
Cena 6: Jogo:
Criança. Sombra. Santo.
Daqui a sete anos. Final da Copa. Estádio cheio.Galera, ôla. Uma
criança cega, com uniforme da seleção, e sua sombra, um enorme
segurança de terno, gravata e volume debaixo do sovaco, brincam na
beira do campo, antes do jogo.
Criança: Ponho meus olhos ceguinhos no sol até chorar.
Sombra: É meio-dia. É de rachar.
Criança: Hoje faço sete anos.
Sombra: A vida que tava no varal, passou um vento e levou.
482
Criança: Vou ganhar uma chuteira nova?
(Silêncio)
Criança: Quer ser criança de novo?
Sombra: Eu dormia na terra cavocada.
Criança: Que nem raiz de plantinha.
Sombra: Agora sou tua sombra.
Criança: Cadê sua mamãezinha?
Sombra: Mamãe precisou ir embora.
Criança: Minha mamãe também. Lembro o gostinho do leite.
Sombra: Lembro o calor do seu colo.
Criança: O cheiro dela me vem.
(Silêncio)
Criança: Tenho saudade dela. Agora papai vai ser rei.
Sombra: Como ela era nem sei.
Criança: Meu pai corre até o fim do mundo. Leva uma bola no pé. Agora
ele marca um gol. Agora dá um olé.
Sombra: Tem sete anos, teu pai e tua mãe te fizeram. Tire mais sete, meu
pai morreu. Somos do mesmo sangue. Lama do mesmo mangue. O
mundo será todo teu.
Criança: Sombra, hoje eu faço sete anos e também quero uma bola.
Sombra: Sete mais sete, catorze, muitas sombras a dançar. Bote mais
catorze nas costas, será teu tempo de amar.
Criança: Sombra, hoje eu faço sete anos, tudo que quero é brincar.
(Brinca pelo campo, se afasta de sombra.)
483
Sombra: (Sussurra.) Meu pai morreu numa esquina. Agora nem sei
contar. Tava fadado o destino. É meu tempo de matar.
(Rojões. A galera delira. Os times entram em campo. Num mundo à
parte, vindo das profundas do estádio, surge Santo, bola debaixo do
braço. Reza e mandinga antes de entrar no campo.)
Sombra: (Grita.) Lá vem teu pai. Vai pro trabalho. Pés preparados. Ele
agacha no meio do campo. Chama pro abraço.
(A criança pára. Escuta o mundo. Corre certeira e abraça o pai.)
Sombra: É melhor que qualquer conquista. É melhor que qualquer
golaço.
Santo: Tava chorando, criança?
Criança: Punha o sol bem no olho e chorava de felicidade. Aí brincava
com a sombra. Pai, qual a minha idade?
Santo: Você já tem sete anos. Vida, velocidade.
Criança: Eu queria chuteira nova. E uma bola também. É tudo que eu
quero, só isso.
(A sombra murmura uma canção de ninar. Num dengo, Santo põe a bola
nos pés da criança, que sai fazendo firulas exatas.)
Santo: Nada ainda se passou. Teu futuro será escrito.
(A criança, encantada, ri. Sombra e Santo se encaram.)
Sombra: Vida é só convulsão?
Santo: E o coração esquisito.
Sombra: (Tira arma do coldre.) Um dia levou meu pai. Agora te levo
comigo. (Aponta para Santo.) Mamãe me largou num abrigo. O resto
nem sei nem ligo. Não precisava atirar!
Santo: Quando vi, tinha sido.
Sombra: Pudesse, comia teu fígado.
484
Santo: Tava esperando teu tiro.
Sombra: Eu não tenho irmão nem amigo. Eu tenho uma 765. Tudo que eu
quero eu consigo. (Atira em Santo.)
Santo: (Entre o tiro e a queda.) Pegue o momento e divida em sete sopros
de vida. O primeiro puxa o gatilho. O segundo é um sol de rachar. (Para
a criança, assustada.) Tá tudo bem, criança... Até se papai chorar. O
terceiro revela a bala, flor para o santo guerreiro. Quando é que a vida se
cala? Sou eu quem abriu o berreiro? O quarto é o fio da meada. Vi o cão
do gatilho, vejo o cano da arma, miro o olho vazio, aquilo é bala ou é
lágrima? (A bala perfura seu peito.) O quinto esmaga o fole. Desabrocha,
chaga! Jorra! Turva! O sexto é um berço. (Cai de joelhos. A Criança,
longe, parada com bola na mão) O que vai ser da criança?
Sombra: Vida é caco de vidro.
(A criança, desorientada, procura o pai. Encontra-o.)
Criança: Pai. (Larga a bola. Toca o rosto de Santo. Segura-o entre as
mãos.) Olha que fio esquisito. Parece o rosto de cristo?
Sombra: É o fim do que estava escrito.
Santo: (Embolado com a criança, tomba. Cabeça no colo dela.) Final de
tarde, domingo lindo... Rasgar a área... Matar o lance...
Sombra: Um tiro curto, entra bem lento. A torcida grita, teu nome: santo.
Santo: Saaaaaaaantooooooo!
Sombra: Reste um só coração aflito. Morrer até que é bonito. (Põe a
pistola na boca e se mata. Silêncio no estádio. A Criança deita a cabeça
do pai no chão. Procura, a seu lado, a bola de capotão, oficial, linda,
novinha. Agarra-se a ela.)
Santo: Tá tudo ficando escuro. (Santo morre.)
Criança: Pai, fica aqui comigo.
485
Cena 7: Conta:
O drama vira canto numa esquina do mundo. Resfolego da sanfona.
Anoitece.
Assum:
Sete vidas de Santo
findaram naquele campo?
Sangue molhou a grama
e a bola daquela criança.
Uma sombra cobriu tudo,
daqui até o fim do mundo.
Anda, tateia no escuro.
Tem uma brecha no muro?
Você que deu um ganido?
De onde veio o estampido?
O melhor cego não vê.
O pior tá na TV.
Aqui só eu e você.
Quem é egum, quem santo?
Você conta e eu canto.
Eu dormi ao relento?
Eu matei um mane?
Eu virei um Pelé?
Eu fiz belo rebento?
Um mané me queimou?
Foi meu pai que morreu?
A história acabou?
É faísca no breu?
A sanfona não cala
até encher a latinha.
Quanto à próxima bala,
será sua ou é minha?
Você ainda é criança.
Podia até ser meu filho.
Gogó de cego não cansa
486
de gritar o estribilho:
A vida é uma escuridão,
Leva a gente pela mão.
Eu não tenho mãe nem abrigo.
Você fica aqui comigo?
(Breu. Fim)
487
LICURGO
Olhos de Cão
Centro cirúrgico. Licurgo veste costume claro. Sobre a mesa cirúrgica,
garrafas de excelente tinto francês, duas taças de cristal e um saca-
rolhas de prata.
488
1. Licurgo abre a primeira garrafa, experimenta o vinho, serve uma taça
para um espectador, outra para si e propõe um brinde:
Licurgo: O amor é apenas uma promessa.
Toda promessa se destina ao vazio.
O amor só é amor por um fio.
O amor é apenas ódio às avessas.
Aceite um trago de vinho.
Não deixo teu copo vazio.
Deixa queimar o pavio.
O amor é um sentimento vago.
Não é desvario,
apenas amor, amor e cenas
de amor de um filme barato.
Faça seu prato.
Sangre em ciúme.
O amor é apenas o gume
com que partes teu repasto.
Não é retrato nem lembrança.
O amor é apenas uma promessa,
jamais esqueça -
o amor de domingo se esquece na terça.
O amor é migalha de pão sobre a mesa.
O amor é apenas uma doença.
O amor é apenas o expurgo
de tudo o que é humano no homem.
Coma enquanto tem fome.
Note como o dente some
na veia escura que lateja.
489
Sente-se.
Sinta-se em casa - estou aqui para servi-lo.
O que você deseja?
Meu nome é Licurgo.
2. Licurgo , cerimoniosamente, dá início a sua cena.
SHHHHHHH. Ele está dormindo. O meu menino. O meu menino está
dormindo. Foi um dia longo. Foi um dia tão longo e cansativo que ele
caiu dormindo mal chegou. Ele chegou, sorriu, caiu dormindo. Foi o
tempo de despi-lo, colocá-lo entre as cobertas e beijá-lo. O meu menino
está dormindo. Como um cachorrinho. Desde criança enchi minha vida
de cachorrinhos. Laika. Nina. Lassie. Maria... Maria zanzava pela casa,
Maria cheirava as visitas, Maria fazia sujeira no quintal, abanando o
rabo na porta da cozinha quando o café fumegava de manhã. Amava
Maria como filha. Banhos. Pelo escovado. Exames constantes. Sou
veterinário, tanto o meu amor aos bichos, o que facilitava a vida de
Maria. Nunca teve vermes. Doença nenhuma chegava perto. Cachorro
nenhum. Uma cadelinha tão linda e cuidada não era para qualquer
focinho. No cio, o quintal era lavado duas vezes ao dia. E só. Seu rastro
atraía os machos do bairro que vinham urinar no portão, fuça o jardim.
Maria sentia o chamado. A natureza. Mas eu não dava chance. Só na hora
certa. E cão com pedigree. Melhor manter Maria pura. Limpa. Sem o
drama da doença ou os perigos do parto. Meu ofício exibe as mazelas do
corpo e Maria... Maria não era uma cadela qualquer... Mas um modelo, o
meu ideal, espécime amado e tratado com carinho ímpar. Um dia
aconteceu. Um descuido dos empregados com o portão. E o cio falou
mais alto. Maria fugiu. E voltou suja, enlameada, o pelo grudento de
490
esperma. Banhos, escovas, carinhos, nada funcionou. Maria estava
prenhe. Aceitei a idéia e preparei o caminho para os filhotes de Maria.
Que se danasse o descuido, importava Maria. E o sangue de Maria
engendrando novos cachorrinhos. A gravidez transcorreu sem apuros.
Preparei uma casinha para o parto. Toalhas novas. Uma madrugada
acordei com ganidos. No chão do lavabo, sobre os ladrilhos brancos,
Maria banhada em sangue e placenta. Muito cedo para um parto normal.
E nada dos filhotes. O focinho, sangue, placenta, baba e aquele olhar. O
parto acontecera e Maria havia comido os nascidos mortos. Como fazem
tantas cadelas. Inclusive a minha... A minha Maria. Vomitei. Na pia, no
chão do banheiro, no animal deitado, os pelos eriçados e o olhar vazio,
presa cravada no meu rosto. Depois daquela madrugada, Maria passava
dias deitada pelos cantos, olhar fixo num ponto vago. Logo Maria
morreu. Levei o corpo para o sítio. Reuni gravetos, acendi uma fogueira
para Maria e incinerei seus restos. Seus panos, seus brinquedos, sua
coleira. Um veterinário, como todo homem de ciência, conhece as
entranhas do ser. A anatomia animal. Todos animais. Condenados ao pó.
Destino da existência. Sem filosofias. Carne, sangue, um momento, pó.
Pai, mãe, filhos... Maria (Olha para a garrafa aberta, serve-se de outro
copo. Toma longo gole. Mais um. Olha a taça vazia.) Nada como um
copo de vinho! Seguido de outro copo de vinho! E mais... Sempre mais...!
Dioniso, deus do vinho, aconselha aos que amam, seus companheiros de
copo, uma medida. (Pousa o copo na mesa.). Sensatez. Diz sua lei: uma
pessoa sensata toma somente três copos. O primeiro é saúde. O segundo,
amor e prazer. O terceiro, sono. (Enche mais um copo e bebe todo,
empolgado.) Mas eu acrescento: a saúde passa, o amor amarga, o prazer
não chega, o sono não basta. (Enche mais um, deixando a garrafa quase
vazia). Depois do terceiro copo, diz Dioniso, o que se consideram sábios
vão deitar. (Toma seu copo.) O quarto copo Dioniso ignora, copo da
491
insolência! (Ri baixinho. Confidencia. ) E é onde eu e Dioniso fazemos
trégua e nos evitamos. O quinto copo é repleto de gritos. O sexto
transborda de maldades e zombarias. O sétimo incha os olhos. O oitavo é
o juiz. O nono, a bile. O décimo é a loucura. (Enche o último copo e
bebe.) O vinho puro de Dioniso, suas garras de videira se enroscando em
nossas pernas mortais numa suprema rasteira, num derradeiro castigo.
Mas... Mesmo os deuses morrem se morrem na memória humana, mesmo
os deuses tropeçam, mesmo os deuses sofrem castigos. Os homens são
deuses, os deuses são nada, fiapos de história em mistura homogênea com
o humano! Tecido criado pela insônia humana, ao das fogueiras,
em noites intermináveis, para afastar o medo do escuro e da morte. Os
deuses são nada. O prazer, que não basta, embriaga como taças de vinho.
O prazer, sim, é humano. E humano, sim, é o que recobre as relíquias
do tempo, cidades, templos, esquinas. Livros. Mais um copo de vinho!
Vinho, sangue da terra, nascido de mãe selvagem, morte e vida
multiplicadas em infinitos copos, fogo, refresco, remédio, veneno, lâmina
que arranca a máscara e mostra o animal... Maria...Meu filho... Um gole...
Vinho puro, o mosto, a uva esmagada que fermenta com seu espetáculo
de fogo que se acende espontâneo nas profundezas do líquido. Jorro sem
fim. Instante de jogo. Esporro! Jato de esperma caído na terra! Deserto! A
boca seca. Pó. Maria. Um filho. Mais um copo! Contra esse deus da
vinha, a foice da minha risada fácil, meu desdém! Corto teus galhos, piso
a videira, estraçalho teus bagos! Baco arrebentado, deus merda, solidão
atroz.
492
3. Licurgo puxa lenço do bolso do paletó, limpa a testa, se recompõe.
Calmamente, abre mais uma garrafa com seu saca-rolhas. É o segundo
brinde.
Licurgo: Mais um copo, amigo?
Este é o abrigo do homem nas noites de estio.
Deixa que eu sirvo.
Este é o manto para nossa face horrível.
Este é o estranho que oferece alívio
ao teu desejo secreto e explosivo.
Este é o banho de sangue definitivo.
Brinde, beba, mergulhe,
sem derivativos.
Estamos próximos agora, irmão,
próximos um do outro e de nós mesmos,
próximos de uma desinteressante verdade.
Um brinde ao nosso convívio.
Eu não acredito em verdades,
assim como você, meu querido.
Então não se apresse, relaxe,
afrouxe o cinto,
o vinho desce, lascivo.
Assim, agora teu olho tem um brilho,
agora teu olho tem um convite e um incentivo.
Você quer chegar ao fundo do copo,
você quer chegar à borra,
você quer um retrato do meu precipício.
Doce desejo, minha face em teu olho,
exposta ao teu querer extorsivo.
493
Boa sorte, carrasco,
conte minhas feridas, fraturas, sangrias,
inchaços, delírios.
E, por favor, após beber meu fiasco,
saia daqui vivo.
4. Licurgo, cerimoniosamente, continua sua cena.
SHHHHHHH ! Ele está dormindo! O meu menino. O meu menino levado
e bonzinho como um cão. O meu menino puro como um cão. Futuro
veterinário! Ele chegou e disse: quero aprender com você. Eu conhecia
aquela velha história. Tudo bem, rapaz, continue assistindo as aulas, tudo
bem. Não, você não entendeu: me convide para jantar. Ele era previsível
e inocente como um cachorrinho. Não, não, não vejo porque tal convite.
Que tal eu ser seu assistente de ensino? Muito trabalho, péssimo
pagamento. Professor, desde a primeira aula que o senhor me olha, assim,
um olhar diferente, guloso, para a primeira fila da classe. Um cachorrinho
lindo abanando o rabinho. Meu olhar de coleira caçava o filhotinho, bicho
bonito, beleza difícil, de raça, quase selvagem. Tenho 19 anos, mestre. E
conhece a vida... Não é essa a próxima fala do texto? E conheço a
vida. E sabe o que quer. Sei. Você quer alguém que te dome. Eu quero
meu professor de anatomia. Você quer alguém que te dome, repeti.
Alguém que me coma como um animalzinho, uma cadela no cio. Minha
Maria, banhada em baba e sangue. Você quer jantar comigo ? Mestre, eu
quero carreira, sucesso, dinheiro, sexo, prestígio, eu quero aprender com
você, o senhor! Não, não foi assim, estou dramatizando, foi simples, ele
494
disse: quero você, o senhor, o meu pau fica duro na aula. Melhor. Disse e
corou. Achei ridículo dizer e corar, dizer “desejo” e ficar assim. 19 anos,
corpinho de quem faz dança, de quem come vegetais, de quem é
“natural”. Criança. Tive duas. Dois filhos. Um casamento. Acabou, faz
tempo, nem lembro. Os meninos, um estuda veterinária, segue os passos
do pai, não vejo anos. Talvez chegue um dia prum professor de
anatomia e diga “quero teu pau, me come”. O outro filho é ator. O
menino fazia cena ali na minha frente, passava a língua nos lábios, sob o
jeans apertado o pau vibrava, tudo bem clichê. Às oito, em casa. Toca a
campainha. Você ótimo, um gato, trouxe vinho, sei que você adora, até
coleciona, isso é famoso na faculdade, a adega do professor Licurgo,
olha, num é nada muito especial, o vinho, dentro do orçamento, que grana
de estudante é curta, uma oferta, disseram que é bom. Excelente na
verdade o vinho era francês, cepa e safra de bom nível, escolha
apropriada. Mas ele é que estava um doce, pupilas de cão refletindo a
chama das velas, arfava como um filhote. Tem mais um presente, dou
se você me der um beijo. História divertida, na mão ele tinha um pequeno
embrulho azul com lacinho rosa. Um beijo! Um saca-rolhas!...
Importado... Francês como o vinho... Tem figuras desenhadas na prata.
Onde ele arranjou dinheiro pra isso? Mênades, eu disse, as loucas de
Dioniso, deus do vinho, sacerdotisas do deus da orgia. Sugestivo... Você
é realmente um puta professor. E este é o estrangeiro, o jovem lindo,
Dioniso, para os gregos, Baco, para os romanos. Me dá outro beijo. Deixa
primeiro eu te dar um copo de vinho. ( Se serve de um copo cheio até a
boca gesto que contraria qualquer etiqueta. Bebe, sofregamente.)
Agora, um beijo.
495
5. Súbita neutralidade. Um vazio. Depois, sem a menor cerimônia,
Licurgo retoma a cena.
Agora ele está dormindo. Muitos copos depois, ele dorme enrodilhado
como um cachorrinho que comeu doa a ração. Ensinei muito a ele. Domei
a fera, minha ferinha ensinada. Minha cadelinha no cio, segui seu rastro
noite adentro, cada vez mais fundo, explosões, desmoronamentos, unhas,
dentes. Minha cadelinha, jorro dentro de ti, minha inútil semente
molhando tuas vísceras... Criança, como sou dramático! Só o meu jato e o
meu pau latejando dentro da noite dizem o que sinto. Assistente de
ensino? Nada de cargos, nada de jogos... Eu sou o dou- tor! Faço o
correto. Quero ser reitor... Dirigir! Não, não basta uma cadeira de
anatomia. Sem dissimulações, sim, que aqui minha voz, sim, a minha voz
é ordem de mando. Sei o que é bom. Pra você. Minha Maria dormindo.
Minha Maria prenhe, um abortivo, cacos de vidro na ração e um réquiem
de fogo. Sei o que é melhor pra veterinária. Pra ciência, que é uma arte. O
meu copo. Outro copo. (Enche um copo e bebe, se aproximando da mesa
cirúrgica.) O primeiro. O primeiro copo alivia. O segundo reacende o
desejo. No terceiro a vigília parece um sonho. O silêncio transborda no
quarto. O quinto é o meu gemido. Quero vinho. Comi tantos pirralhos
como você, todos iguais, o pau jovem e teso retinindo, o esfíncter se
contraindo, pedindo, cus novinhos, de graça...Como manobrar um
professor e extrair dele os segredos que ele conquistou com muita luta ?
Com um cu. Com um pau bom de chupar, bolas boas de morder e uma
delícia de jorro estourando no céu da boca. (Abre outra garrafa, derruba
tudo sobre a roupa clara.) Não liga pra isso, fica calmo, deixa te dar um
beijo, isso acontece. Mais um copo? Acontece pra todo mundo, até
496
comigo, que pra você num passo dum pirralho, rolou, teu pau é
bárbaro. Etc. Beba. Já bebi demais. Beba. Beba! O sexto copo, meu tesão,
o sexto é onde arregaço teu rabo. bom, você é legal, deixa eu fazer um
carinho, zonzinho, caiu vinho, deixa eu beber.
Ahhhhhh.....!!!!!SHHHHH!!! Ele está dormindo... Amor da minha vida.
Amei no seu corpo o único amor que vale, o impossível. Parece letra de
tango... Gozei na tua boca como um bicho. Pára, não quero mais! Meu
corpo embolotando, se contorcendo...Sai! Chega! Tá doendo! Um
caranguejo. Garras no teu pescoço. A nebulosa de câncer. Desejo. Tirei a
tua casca com a minha garra e estudei teus órgãos com a minha pinça.
Grudei e não te largo mais. Fora de mim! Hora de ir! Se você me deixar
eu fico em pedaços. Comer você...Pele cheirosa...Meter a língua no teu
cu...Fundo...Penetrar tua carne com meu bisturi, com minha sanha e
sapiência...Tenho de ir! Veterinário, sim. Mestre do corpo animal. Tenho!
Fique e beba. Olha meu saca-rolhas arrancando a tampa dos pensamentos,
desatarrachando teu cu. Te abrir, amor eviscerado, correr teus intestinos
com o meu dedo médico à procura de sintomas, saídas, vias. Fique calmo,
eu sou doutor. Saca-rolhas, por favor! Isso, dá, mais, fundo, deixa eu
entrar...! Que lindo é o coração de um menino. A boca cheia de baba e
sangue e porra. Meu coração, sagrado coração! Ave Maria! Devoro esse
meu filho em estado de graça. Em estado de coma. Como feto disforme e
sujo. Não suporto esses seus olhos de cão. O sétimo copo são os meus
olhos turvos de sangue. Antes que o me cubra, que eu vire pó, que o
corroa a minha mente, eu te assassino, deus ridente, eu trapaceio e te
encarcero. No oitavo copo, a sentença. O nono é um travo na garganta.
No décimo eu tenho você. Não pra se esconder. Eu te encontro nesse
corpo estranho, estrangeiro. Separo tecidos, vasculho vísceras com meu
pau, desvendo tua anatomia nestes órgãos humanos que depois devolvo
ao pó. Quero você. Bebo teu sangue. Estoco os pedaços e os saboreio aos
497
poucos, ofendo o tempo e com teus cacos faço a minha fonte de
eternidade. Maria, meu filho, um menino. SHHHHHHHHHH... Ele está
dormindo.
498
Só as gordas são felizes
2003
Cela especial.
Um (muitas vezes possuído pela gorda)
Outro
499
Um: Você me acha gorda?
(Silêncio.)
Um: Você me acha gorda.
(Silêncio.)
Um: Você me acha gorda!
(Silêncio.)
Um: Você me acha?
(Silêncio.)
Um: Você tem que perder oito quilos. Lentamente. Pra não virar
pelanca.
Outro: É.
Um: Eu perdi quinze quilos numa dieta rigorosa. Pra ficar de novo
atraente.
Outro: É?
Um: Eu dividi em nove partes. Pus em cinco sacos.
(Silêncio.)
Um: Fui jantar com meus pais.
(Silêncio.)
Um: Sopa. Torrada. Sem manteiga.
(Silêncio.)
Um: Manteiga engorda. Não quero ficar gorda.
(Silêncio.)
Outro: Gosto de requeijão.
500
Um: light.
Outro: Gosto de geléia.
Um: diet.
(Silêncio.)
Um: Depois voltei. Arrumei tudo direitinho.
(Silêncio.)
Um: Arroz, feijão e bife. O jantar do marido.
Outro: Esse papo tá me dando fome.
Um: Só precisa por no micro.
Outro: Pipoca de micro. Menino adora.
Um: Pipoca. Popica. Cozinha é uma arte.
Outro: Arroz, feijão... Simplicidade.
Um: Bife. Pega o bicho e a faca. Abre do pescoço à bacia. Tira órgãos e
vísceras. Guarda. Parte o bicho em pedaços. Põe de molho. Vidros de
conserva.
(Silêncio.)
Um: Você me chamou de louca?
(Silêncio.)
Um: Não dá bola pra quem fala. A gente não vai brigar.
Outro: A gente não vai brigar.
Um: Você me acha gorda? Quanto você pesa?
(Silêncio.)
501
Um: Sessenta e seis? Precisa emagrecer oito. Devagar. Senão vira
pelanca.
(Silêncio.)
Um: Eu estou doente.
(Silêncio.)
Um: Eu vou morrer.
(Silêncio.)
Outro: É?
Um: Ô.
(Silêncio.)
Um: Você entende? Aqui na lombar. Quatro cirurgias. Você entende.
Outro: É.
Um: Uso metadona.
Outro: E...
Um: Ópio.
Outro: E...
Um: É bom. É bom.
Outro: Que bom.
Um: Relaxa.
(Silêncio.)
Um: Alivia.
(Silêncio.)
502
Um: Nunca usei droga pesada. Maconha, heroína...
Outro: Melhor sedativos leves.
Um: Simplicidade.
Outro: É.
Um: Bom.
(Silêncio.)
Um: Bem...
(Silêncio.)
Um: Em nome do bem, entramos em toda casa, em nome dos enfermos...
Outro: O juramento.
Um: Vou me manter longe de todo dano voluntário e de toda sedução e
dos prazeres do amor.
Outro: Prazeres. Prazeres. Prazeres. Prazeres.
Um: Sacana. Esse Hipócrates.
Outro: E?
Um: Não sei. Sei lá. Sei.
Outro: O juramento?
Um: Amarra a gente. Não é, digamos, real.
(Silêncio.)
Outro: A sedução. O prazer. É. Real. O prazer.
(Silêncio.)
Outro: O dano voluntário.
503
Um: O amor não é real.
Outro: Nunca...
Um: Não é real.
Outro: Nunca, nunca, nunca. Pensei. Nunca pensei.
(Silêncio.)
Um: É muita exigência. Muita responsabilidade.
Outro: Muita.
Um: Ô. Botei espelhos no teto. Nas paredes. Ficou bonito? Ficou bonito.
Outro: Eu também tinha espelhos.
Um: Sinto falta. Metadona.
(Silêncio.)
Outro: Eu dava um sedativo.
Um: Leve?
Outro: Leve, leve. Elas dormiam. Ou quase. Aí eu tocava.
Um: Leve.
Outro: É...
(Silêncio.)
Um: As pontas dos dedos das mãos e dos pés você retira e guarda.
Digitais.
(Silêncio.)
Um: Um corpo dissecado perde 60% do peso.
Outro: Leve.
504
Um: Leve cinco sacos de lixo. Leve nove pedaços. Três viagens. Um
porta-malas cheio.
(Silêncio.)
Um: Acabou.
(Silêncio.)
Um: Pronto, acabou! Acabou assim. O amor. Se é que era amor. Amor
não é real.
(Silêncio.)
Um: Ela tinha uma cicatriz de cirurgia. Aqui na virilha. Veio tirar
comigo. Adorava cremes. Beleza. Uma beleza.
Outro: Crianças são lindas.
Um: São.
Outro: Crianças são leves.
Um: Eu não atendia crianças.
Outro: Pena.
Um: Enchi a banheira com água sanitária, formol. Me livrei das vísceras.
Outro: Por favor.
Um: Os gregos. Os gregos liam o futuro nas vísceras. Os gregos? Ou os
romanos? Os egípcios.
Outro: Os macumbeiros.
Um: As vísceras.
Outro: Por favor!
Um: Não vamos brigar.
Outro: Não vamos.
505
Um: Eu não lembro bem.
Outro: Entendo.
Um: Entende?
(Silêncio.)
Um: Você acredita?
(Silêncio.)
Um: Você não acredita.
Outro: Acredito, acredito. Você não lembra bem.
Um: Não lembro muito bem. Muito bem.
Outro: “Fortes emoções”.
Um: Um surto. Psicose.
Outro: O mesmo comigo.
Um: Não disse? Acontece. Mais do que as pessoas pensam. As pessoas
pensam. Acontece.
Outro: Acontece.
(Silêncio.)
Um: Trouxinha.
Outro: Eu?
Um: Bucho de boi. Cortado em retalhos quadrados. Pega um pouco de
carne moída, põe dentro, amarra com barbante, põe no forno. Uma bosta.
Outro: Trouxinha?
Um: Um bosta. Quem come essa bosta. Uma bosta. Aconteceu com
você?
506
Outro: Surto, psicose? A defesa alega. Mas tem os vídeos.
Um: Que vídeos?
Outro: Vídeos.
Um: Sei.
Outro: Meus vídeos. Eu gravei. Bem gravados. Editei. São meus. Meus.
Agora passam na TV.
Um: A gente passa na TV?
Outro: Meus vídeos!
Um: Eu tenho fitas.
Outro: VHS, digital, jpeg...
Um: A gente passa na internet?
(Silêncio.)
Um: Cassetes. Fitas cassetes.
Outro: Iiii...
Um: Conversas íntimas. Digamos, picantes. Digamos.
Outro: Eu tenho vídeos. Tinha. Bonito.
Um: Ô!
Outro: Crianças, meu Deus, crianças.
Um: Crianças.
Outro: Não há nada mais...
Um: De jeito nenhum.
Outro: Eu jamais.
507
(Silêncio.)
Outro: Eu jamais!
(Silêncio.)
Outro: A amizade...
(Silêncio.)
Outro: Entre os gregos...
(Silêncio.)
Outro: Tem aquele cantor. O que era preto.
Um: Sei.
Outro: Esse mesmo.
Um: Que coisa, né?
Outro: Impressionante.
Um: Ô.
Outro: É.
Um: Não pode abusar.
Outro: De jeito nenhum.
Um: Nem.
(Silêncio.)
Um: Cirurgia é coisa séria.
Outro: Sério. Aquele cantor disse, sério, que é tudo muito charmoso,
muito doce, muito bom, muito sério. Na revista. Na TV.
Um: A gente passa na TV.
508
Outro: Imagina.
Um: Todo tempo, tempo todo. Tem câmeras. Um outro assiste aos nossos
vídeos.
Outro: Imagina. O tempo...
Um: Nossos vídeos. Vídeos nossos. Sono
(Silêncio.)
Outro: Dormir. Dormir. Talvez sonhar. Sem tocar.
(Silêncio.)
Outro: Acredita?
(Silêncio.)
Outro: Tá bom!
(Silêncio.)
Outro: Dormir com meninos!
Um: Você?
Outro: Jamais.
Um: Meninos.
Outro: Um carinho.
Um: Leve?
Outro: Leve, leve.
Um: Leve.
Outro: Foi parar no lixo.
Um: O quê?
509
Outro: Um vídeo.
Um: Um vídeo.
Outro: Acharam.
Um: Sei.
Outro: Como é que foi parar no lixo?
Um: Não sei.
Outro: No lixo!
Um: Não vamos brigar.
Outro: Nunca.
(Silêncio.)
Um e outro: Como foi...
(Silêncio.)
Outro: Parar no lixo?
Um: Parar no lixo. O lixo deve estar cheio de vídeos nossos.
Outro: No lixo.
Um: Não sabe?
Outro: Não sei.
Um e outro: Sei, sei.
(Silêncio.)
Um: Fala.
Outro: Não. Fala.
510
Um: Fala. Não. Falo. Eu. Eu falo.
Outro: Eu.
Um: Você?
Outro: Semana passada...
Um: Semana passada...
Outro: Semana passada estava aqui o menino.
Um: O menino?
Outro: Da metralhadora.
Um: Da...
Outro: Metralhadora no shopping. Sexto ano.
(Silêncio.)
Outro: Ele. Pá,pá,pá. Ele mandou bala.
Um: Pá, pá, pá.
Outro: Boa gente, ele.
Um: Ele. Pipoca, popica, pá, pá, pá.
Outro: Fico pensando. Pô. Sexto ano?
Um: Um surto? Psico?
Outro: Isso.
Um: A nossa profissão.
(Silêncio.)
Outro: Fala.
Um: A nossa profissão!
511
Outro: É foda?
Um: Tirou da minha boca.
Outro: Muita pressão. Responsabilidade.
Um: Fazer o bem. Fazer o quê?
Outro: Mas o que é...
Um: O bem?
Outro: O bem.
Um: É real?
(Silêncio.)
Um: O que é real?
Outro: Olha.
Um: Não, me diz, sim, me diz: o que é real?
Outro: Isso pra mim tá...
Um: Fala.
Outro: Eu não...
Um: Escuta.
Outro: Não tem cabimento.
Um: O real?
Outro: Essa conversa, esse papo, as fitas, os vídeos, o real...
Um: As religiões.
Outro: Pára.
512
Um: A caverna.
(Silêncio.)
Outro: A caverna do Batman? Ele dormia com um menino.
Um: A caverna do Platão. Platão.
(Silêncio.)
Outro: É.
Um: O que é real?
Outro: O Batman tinha um garoto. O Robin. O corpo de um garoto. Leve.
Num exame. É real.
Um: É real?
Outro: O Coringa matou o Robin. O segundo Robin. O Batman já está no
terceiro Robin. Ou no quarto.
Um: Olha.
Outro: É real. A morte.
(Silêncio.)
Um: Se você diz.
(Silêncio.)
Um: Eu, realmente, não sei. O amor. Meu amor. Me ama? Talvez. Se
você diz. Eu. Te amo.
(Silêncio.)
Outro: E o nosso almoço?
Um: Vem logo. Tá com fome? Eu também.
(Silêncio.)
513
Um: Você está bem. Bonito.
Outro: Você não parece tão mal.
Um: Eu estou mal.
Outro: O prognóstico?
Um: Não há prognóstico.
(Silêncio.)
Um: Na nossa profissão, no dia a dia, na lida, já viu, você já viu...
Milagres?
(Silêncio.)
Um: Já viu?
(Silêncio.)
Outro: É.
Um: O que é real?
Outro: De novo isso.
Um: Também já vi.
Outro: Milagres?
Um: Ô. Uma beleza. Aterradora.
Outro: Por quê será?
Um: Acontece tanto. Aqui entre nós. Tanto.
Outro: Acontece.
Um: A gente busca uma explicação, uma saída, uma estatística. Eu já vi
milagres.
Outro: Sei.
514
Um: Eles vêm assim. Num estalo. Pá, pum. Pá, pá, pá.
(Silêncio.)
Um: Sob um certo ponto de vista, tudo é milagre. Tudo. Aí eu me
pergunto.
Outro: Sonhei que estava no meio de um canavial e carregava uma
criança e dois rotwaillers negros zanzavam do nosso lado e trançavam nas
minhas pernas e aí um começou a roer meu joelho e...
Um: Desculpe?
Outro: Não. Desculpa. Desculpa, eu.
Um: Não foi nada.
Outro: Não temos nem cadarços, se é que você me entende. Não temos
sedativos, não temos morfina, não temos ópio...
Um: Tive um papagaio chamado Prozac. Se é que você me entende.
Outro: Nenhuma intimidade. Nem cintos, nem fios, nem arames, cordas
ou cadarços.
Um: Quando você faz cocô eu fecho os olhos, olha, eu, eu olho pro outro
lado...
(Silêncio.)
Um: A gente se respeita. Ninguém comenta o cheiro do cocô do outro, do
peido.
(Silêncio.)
Um: O seu cocô fede. O seu peido.
(Silêncio.)
Um: O seu peido é um negócio impressionante. E o seu cocô. Já o meu eu
acho que não. Sempre achei cheirosinho. Vai ver é costume. O que você
acha?
515
Outro: Não acho nada.
Um: Podia ter TV. Aqui.
Outro: Tinha.
Um: Internet. Os nossos vídeos.
Outro: Eu quebrei. A TV.
Um: Quebrou?
Outro: Muita violência. Só violência. Muita injustiça. E esses jornalistas
sensacionalistas...
Um: Rimou.
Outro: Como?
Um: Tua fala. Jornalista, sensacionalista. Rimou. Sou bom de português.
Desde a escola. O almoço não chega. Fazia sonetos. Catorze versos. O
almoço. A-B-B-A. B-A-A-B. A-B-A-B. B-A-B-A. Baba. Rimas. Uma
baba. O Almoço não chega?
(Silêncio.)
Um: Eu tenho uma bolacha. Em algum lugar. Quer?
Outro: Não.
(Silêncio.)
Um: Mesmo?
Outro: Então quero. Obrigado.
Um: Deixa procurar. Agora não acho. A bolacha.
Outro: Deixa.
Um: A-B-B-A. Aparece já, já.
516
Outro: Tudo bem.
Um: B-A-A-B. Faço questão. Só pra você.
Outro: Eu espero.
Um: B-A-B-A. Ele vai esperá...
(Silêncio.)
Um: Realmente eu não acho a bolacha. Você pegou minha bolacha?
Outro: Eu?
Um: Você pegou?
Outro: Você não...
Um: Fala.
Outro: Imagina.
Um: Bom.
Outro: A gente não.
Um: Nunca.
(Silêncio.)
Outro: Vou fazer ginástica.
Um: Ótimo.
Outro: Abdominais.
Um: Se vir minha bolacha.
Outro: Tá.
Um: Não consigo. Abdominais. A doença.
Outro: Incomoda?
517
Um: Imagina.
Outro: Malhar é bom. Dá gás. Dá fome. Quando eu sair...
Um: Você vai sair?
Outro: Claro.
Um: Você acha?
Outro: Certeza.
Um: Bom.
Outro: Malhar é bom.
Um: É?
Outro: Flexões de braço!
Um: Você tem belos bíceps.
Outro: Pra minha idade.
Um: Você tem belas costas.
Outro: Obrigado.
Um: Você é bem jovem.
Outro: Não sou nenhum menino.
Um: Parece.
Outro: A atividade física, leve, revigora.
Um: Sempre fumei.
Outro: Uns alongamentos...
Um: Bonito.
518
Outro: Vai chegar notícia a qualquer momento.
Um: O almoço. O almoço. Você toma bomba?
Outro: Nunca.
Um: As bolas ficam desse tamanhinho.
Outro: Sei.
Um: As meninas ficam com um puta grelo.
Outro: É?
Um: Hemogenin. Aumenta a massa.
(Silêncio.)
Um: Causa leucemia.
(Silêncio.)
Um: Insuficiência renal...
(Silêncio.)
Um: Efizema pulmonar... Câncer de fígado!
Outro: Chega?
Um: Insônia.
(Silêncio.)
Um: Conhece?
Outro: Ô.
Um: Eu não durmo muito mesmo.
Outro: Sei.
Um: Eu durmo mesmo muito pouco.
519
(Silêncio.)
Um: Você ronca.
Outro: Tá. Ronco.
Um: Ecicleme. Aplicação local. Deixa grande por 24 horas. Tem nego
que aplica no pau.
Outro: Eu. Eu não ronco.
Um: Equipose é droga pra cavalo. Tem nego que se aplica e morre na
hora.
Outro: Eu durmo que é uma beleza.
Um: Winstrol é droga pra gogo boy.
Outro: Por favor!
Um: Gabormen aumenta tua agressividade. Tua potência. Tua força.
Você levanta geladeira, carro. Vira fera. Boa pra metelança.
Outro: Eu não ronco, eu não ronco, eu não ronco.
Um: Androbol, Parabolan, Primobolan, Deca-Durabolin. Você corre,
corre quilômetros e não sente nada. Nada. Nada. O que é real?
Outro: Eu só queria fazer minha ginasticazinha...
Um: Crucifixo, remada. Aqui não tem nem supino. Nada pra rosca direta.
Eu.
Outro: Eu só queria manter a forma...
Um: Eu... Tomava Fat Burners. Laxantes. Diuréticos. Já tomou hormônio
de crescimento?
(Silêncio.)
Um: A alimentação é a base do sucesso para aqueles que querem ganhar
volume, definição ou força.
520
Outro: Sempre fui magrinho. Sempre. Sem. Se. Preciso te. Dizer.
Preciso? Eu... Um Rotwailler. A-B-B-A? O sol. A luz. Eu. E eu. E eu. Eu
é... Quem é...Você acha? Você acha, você acha. Um soneto. B-A-B-A.
(Silêncio.)
Um: Próteses. Pinos. Enxertos. Placas. Implantes.
(Silêncio.)
Um: Ó: todos os meus dentes são implantes.
(Silêncio.)
Outro: Um habeas corpus. Um habeas corpus.
Um: Disso eu entendo.
Outro: Duzentos mil dólares.
Um: Fora da minha faixa.
Outro: Pelo menos pra traficante.
Um: Não é o nosso caso.
Outro: Duzentos.
Um: Abatimento? Dois por um?
Outro: Minha audiência.
Um: A minha está longe.
Outro: As alegações, os fatos, as provas. Eu vou sair. Eu vou mudar.
(Silêncio.)
Outro: Exterior.Tenho minhas reservas. Lá eu vivo bem. Miami.
Um: Felicidades.
521
(Silêncio.)
Um: Também tenho umas reservas. Vão ficar pra quem?
Outro: Não tem ninguém?
Um: Não.
Outro: Doa.
(Silêncio.)
Outro: Uma instituição. Dessas de criancinhas.
Um: É uma idéia.
Outro: Se eu não saísse...
Um: Eu não vou sair.
Outro: Pessimismo.
Um: Minha mãe sempre disse.
(Silêncio.)
Outro: Você tá chorando?
(Silêncio.)
Outro: Você tá.
Um: Um pouquinho.
Outro: Por quê?
Um: Nada não.
Outro: Eu disse alguma coisa?
Um: Não. De jeito nenhum. Coisa besta.
Outro: Deixa sentar do teu lado.
522
Um: Assim?
Outro: Deixa te abraçar. Leve.
Um: Levinho?
Outro: Tá doendo alguma coisa?
Um: Não.
Outro: Precisa ter cuidado.
(Silêncio.)
Outro: Cuidado com toda essa porra.
(Silêncio.)
Outro: Com essa porra toda.
(Silêncio.)
Um: Eu gostava de bala de coco. Amarelinha? Redonda. Grande? Gorda.
Eu não quero ser gorda. Você me acha... Eu comia. Comia? Escondido.
Debaixo da cama. Toneladas de balas. Amarelas. Redondas. Gordas.
(Silêncio.)
Um: Você me acha gorda?
Outro: Você me acha?
Um: Gorda. Gorda.
Outro: Eu faço ginástica, eu.
Um: Você come muito.
Outro: Eu tenho fome.
Um: Gula.
523
Outro: Eu tenho.
Um: Sete pecados.
Outro: Gula.
Um: Ira. Inveja. Meu Deus...
Outro: Gula.
Um: Avareza.
Outro: Amor.
Um: Amor não é pecado. Não deveria.
Outro: Então?
Um: Deu branco. Ira, inveja, avareza, gula...
Outro: Lembrei. Luxúria?
Um: Luxúria.
Outro: Faltam dois.
Um: O esquecimento é um pecado?
Outro: Não muda de assunto.
Um: São tantos pecados...
Outro: Os capitais.
Um: Entendo. Os capitais.
(Silêncio.)
Outro: Esqueci. Não lembro. Puta que pariu, eu não consigo lembrar, eu
não consigo.
(Silêncio.)
524
Um: Achei minha bolacha. Quer?
(Silêncio.)
Um: Metade. Pega. Vai, pega. Come comigo. Isso. Tá boa?
Outro: Você me deu a metade com recheio.
Um: Quando a gente divide bolacha sanduíche, sempre uma metade fica
com recheio e a outra sem.
Outro: Mas você...
Um: Não. Tudo bem. Não gosto mesmo muito de recheio de chocolate.
Outro: Raspa o dente nesse canto, ainda tem bastante.
Um: Não, obrigado.
Outro: Por favor.
Um: Obrigado, não.
Outro: Mesmo? Eu insisto.
Um: Por favor.
Outro: Então tá. Boa essa bolacha.
Um: Boa.
Outro: Você sonha?
Um: Não lembro.
Outro: Sonho muito.
Um: Com Rotweillers.
Outro: Também tem outros sonhos.
Um: Eu sonhava.
525
Outro: Sonhava.
Um: Teve um tempo. Sonhava muito. Uma namorada. Anos separados.
Outro: Meu amor... Meu primeiro amor. Meu segundo?
Um: Incrível como ela aparecia em meus sonhos.
Outro: Amor... Parte da minha... História?
Um: Vocês iam se casar? Ele, o amor, ele tinha outra...
Outro: Religião?
Um: Praticava outra...
Outro: Fé?
Um: Banal. Ela aparecia. Gorda? Magra. De passagem. A gente trepava.
Tem vezes que ela me contava coisas. Às vezes tava brava. Um dia parou.
Não veio mais.
Outro: Rottweillers. Você tem razão. Tenho sonhado muito com
rotweillers. Você entende de sonhos?
Um: Só se for do doce. Do doce sonho.
Outro: Sonho doce. Odete, ontem, 81, viúva do Valdemar, deixa filhos e
netos. Celeste, 73, filha do Jônatas, viúva do André, não deixa filhos.
João, 62, irmão de Flávio, casado, deixa filhos, genros, noras e netos.
Adair, 45, solteiro, deixa dois filhos. José, 12, filho de Adair...
Um: Carla, 32, casada, deixa um amante.
Outro: O corpo foi trasladado.
Um: Pedaços. Amor aos pedaços. Tem um sonho. Uma beleza.
Outro: Sempre li jornal de fio a pavio. Entende?
Um: Ô.
Outro: Eu. A gente.
526
Um: Minha vez. Posso te dar um abraço?
Outro: Não precisa.
Um: Faço questão.
Outro: Não. Deixa.
Um: Que é isso?
Outro: É...
Um: Agora mesmo você me...
Outro É...
Um: O que é que custa, vai.
Outro: Mas... Então...
Um: Então tá. Toma. Um abraço.
Outro: Assim eu vou...
Um: Chora. Chora. Aqui no ombro. Vai. Assim. Assim eu acho que eu
também, eu também.
(Silêncio.)
Um: Coisa besta.
(Silêncio.)
Outro: A gente chorando assim?
Um: Ô...
Outro: Licença. Eu preciso de ar. Isso. Andar. Correr. Correr. O
pensamento ventila. A mente. O sangue. Uma vela acesa. Alguém surta.
Um touro pasta. A mulher, a mulher, a mulher põe a mão no meu rosto e
me salva. A mulher, outra mulher, a mulher põe as mãos nos meus pés e
me beija. Uma deusa. A gente se engalfinha. A gente se enrosca. Ela é tão
527
bonita. Tem uns olhos. A gente quase se beija. Depois a gente se afasta.
Cada um, cada um. Eu me sinto forte. Eu me sinto puro. Eu me sinto
limpo.
Um: Livre?
Outro: Alguém acendeu uma vela. Fez uma pilha de sapatos em volta da
luz. Alguém. Uma mulher, outra mulher, outra mulher, contorções,
cólicas, delírios. Um cara quase queimou o pau. O cara sofria. Veio uma
mulher, a mulher que se enroscou em mim, e andou sobre os corpos em
sofrimento. Pisou a coluna daquela que sofria e acalmou a fera. Pisou o
pau daquele que sofria e acalmou a fera. Estávamos todos bem.
Tranqüilos. Unidos. Felizes. Foi tão... Bom. Queria te contar.
Um: Valeu.
Outro: Você entende?
Um: E precisa?
Outro: É...
Um: Ó...
Outro: Não sei. É só...
Um: Eu sei. Eu.
Outro: Minha pulsação. Pausa. Um descanso. Tudo acelerado.
Um: Descansa aqui no meu colo.
Outro: Posso?
Um: Deve.
Outro: Obrigado.
(Silêncio.)
Outro: Meu coração.
(Silêncio.)
528
Outro: Dói.
(Silêncio.)
Outro: Fundo. Bem fundo.
Um: Passou, passou.
Outro: Um...
Um: Descansa.
Outro: Outro... Silêncio... Eu... Vim te receber. Belê? Esse é o teu barco.
É. O Teu. Entra. Pode entrar. Já, já vamos embora. Eu estou aqui, como
combinado. Vamos embora de Guantánamo. Eu toco o barco. Eu sou o
cara. O barco é nosso palco. O palco é nosso barco. Você. Eu. O cachorro
Prozac? Pega uma bala de coco. Lambe o embrulho. Eu lambo. Eu sou.
Selvagem. Foda-se.
Um: Fala mais alto.
Outro: Eu... Um leão, uma loba, a pantera... Estou...
Um: Você...
Outro: Morrendo?
Um: Bobagem.
Outro: Os sintomas. Uma cobra que morde o próprio... Você... Sabe...
Não...
Um: Você...
Outro: Eu estou na faixa. Bem na faixa.
Um: Meu Deus. Deixa eu te. Olha. Ele. Eu. Deixa ele. Deixa eu te.
Outro: Deixa eu.
Um: Deixa. Deixa. Deixa.
529
Outro: De...
Um: Não morre. Não morre.
(Silêncio.)
Um: Como é que você deixa assim... Sua... Gorda... Sua gorda... Sua
gorda...
(Silêncio.)
Um: Como é que eu fui engordar assim?
(Silêncio.)
Um: Você tá ótimo.
(Silêncio.)
Um: Eu não sou gorda. Eu estou gorda.
(Silêncio.)
Um: Você não acha?
(Silêncio.)
Um: Não acha?
(Silêncio.)
Um: Você me acha gorda?
(Silêncio.)
Um: Você me acha gorda.
(Silêncio.)
Um: Você me acha gorda!
(Silêncio.)
530
Um: Você me acha?
(Silêncio.)
Um: Gorda?
(Silêncio.)
Um: Gorda?
(Silêncio.)
Um: Gorda.
(Silêncio.)
Um: Ô.
(Silêncio.)
Um: Gorda! Gorda! Gorda!
(Silêncio.)
Um: É?
(Silêncio.)
Um: É.
(Silêncio.)
Um: Gorda.
FIM
531
ROMANCE BARATO
(2005)
532
Ôi. Você vem sempre aqui? Quer saber... Estou louco prum cafezinho.
Pode ser de máquina. É bom. Embora ataque a gastrite. Muito, muito
forte. O mais forte. Café de coador já foi bom. No interior ainda é. Em
botecos onde a xicrinha fica mergulhada na água quente, a colherinha
vem colocada bem no buraco da asa, a moça põe a xícara na sua frente e
espera, com o bule na mão, você colocar açúcar. Esse café é bom. Dá
bafo? Então não vou nem falar no de boteco, que fica naqueles grandes
cilindros de metal. 3 Fs. Fraco, frio, fedido. Tem também café de
maquininha de escritório. Você aperta um botão, cai um tipo de um
Nescafé no copinho de plástico. Aperta outro, cai açúcar. Aperta mais
um, água quente. Precisa ter diploma pra acertar o ponto. Repartição
ainda usa garrafa térmica, aquelas rodelas de mancha de café no
guardanapo sobre a bandeja. Hospitais particulares têm máquinas
sofisticadas, parece que mora duende ali dentro. Você põe a moedinha, a
geringonça faz até capuccino, mocaccino e outras viadagens – isso
quando simplesmente não engole a tua grana! Hospital particular sempre
encontra um jeito de engolir a tua grana. Eu não estou com bafo. Ou é
bem levinho. Já tomou café de cafeteira italiana, a dois, num love? Um
charme. Muitas lanchonetes e padocas dão bolachinha junto. Um suspiro.
Uma queijadinha. O MacDonald’s dá bolinha de chocolate. É. Tem quem
dê bala de hortelã. Um clássico. Elegante. Não tem bafo que resista.
Depois, é só escovar os dentes. Você tem namorado? Eu também não.
Nem namorado, nem namorada. Pena que você não toma café. Média,
pingado, carioca, canelinha ou espuminha? Toma chá? Pão com
manteiga, você come? Chapado ou canoa? Com ou sem miolo? Bisnaga?
Pão de queijo? Caseirinho? Ainda não tomei café hoje. Estou sem um
puto. Com fome. Muita fome. Desculpe. Será que você me paga um café?
Um pão com manteiga? Tudo bem? Olha… Os teus olhos têm a cor do
café. Entre o marrom e o negro. Lindos. Eu diria até… Gostosos! Você
533
realmente não gosta de café. Você prefere vodka, conhaque, pinga? Meu
amor me deixou. Desculpe perguntar, mas você, numa escolha simples,
um ou outro, numa escolha seca, esquece o café, esquece, você prefere
sexo ou Häagen Daas? Esse silêncio diz tudo. É. Estou fazendo uma
pesquisa. Perguntei pra muita gente. Nem você terminou a pergunta, sexo
ou Häagen Daas, os homens emendam: sexo. Na lata. A maioria das
mulheres faz esse silêncio. Silenciozinho eloqüente. Vai dizer que mulher
é mais reprimida? Pode ser. Vai ver mulher gosta mesmo é de Häagen
Daas. Tudo bem: algumas mulheres respondem: sexo com Häagen Daas.
Quase dá pra acreditar. Outras emendam: não gosto de sorvete, posso
trocar por chocolate? Confesso: no fundo, no fundo, muitos homens
preferem jogo do Corínthians. Adolescentes punheteiros ficam com
Playstation. Playstation 2, é claro. Adolescentes patricinhas preferem
Friends. Mas o sorvete Häagen Daas custa seis reais a bola. Acha caro?
Muito mais em conta que motel. Você investe uma grana, nada de
braçada na banheira de hidro, crente que tá abafando… e pensar que com
seis contos você conseguia o que quisesse da mina… Serviço completo…
Tudinho. A verdade nua e crua. Dura. Gelada como um Häagen Daas.
Ainda na linha da “verdade”, como você bem vê, na minha condição, eu
não posso mesmo nem tomar o bendito do café. O que eu tomei, sim,
muito, muito antes de parar aqui, foi maracujina. Chá de camomila. Água
de melissa. Maconha. Valium. Prozac. Ou seja: tentei de tudo depois que
você me deixou. Você. Mas o que me botou quieto, por incrível que
pareça, foi uma bala. Não fui eu, juro. Voltava do cinema uma noite
(Demolidor? Hulk? Homem Aranha? Harry Potter?) e ela me encontrou.
O tiro de misericórdia? Agora, bailo nesse fio, escutando a parafernália
da UTI. Iogue à base de morfina. À espera de Lady Death. A morte nos
quadrinhos, já leu? Linda. Moreninha. Gostosinha. Quando ela chegar, eu
vou mandar um “oi, você vem sempre aqui”, e pedir pra ela me pagar um
534
cafezinho. Melodramas a parte, o fato é que largado aqui surgiu a idéia de
escrever um, aspas, romance. Aqui, paralisado, pergunto: por quê se faz
um romance? A essa altura do campeonato, só consigo disfarçar e dizer
que romances são coisas da vida. Como extratos de banco. Como viagens
e quindins. Como lágrimas e estrelas do mar. Como balas perdidas.
Claro: romances são escritos por obsessão. Dinheiro ou imortalidade.
Simplesmente porque não dá para ficar sem fazer. Bem. Qualquer
semelhança com fatos ou pessoas é mera coincidência. O retorno do
recalcado é um negócio meio obtuso. Depois, certos coquetéis de
analgésicos funcionam como daime. É claro que no meio das cenas que
pretendo escrever haverá um vislumbre de nós dois. É claro que você será
– é, desde já - a personagem principal. Olha, sei que no fundo você tem
verdadeiro vício por café – que, aliás, mistura com seu Häagen Daas.
Espero que você se divirta com o romance. Como se divertiu quando foi
embora. Lembra? Nem liga? Pois eu te liguei tantas vezes. Tantas. Alô.
Microssegundo: sua voz na minha orelha seu gemido seu sorriso seu
olhar as tardes vendo TV ou no cinema sexo sexo lentas e longas
chupadas um adeus outro adeus o adeus adeus. Desliguei. Pra aturar a
fissura de você, preciso ligar de vez em quando. Não é pra conversar. A
essa altura que adianta dizer mais? Conversar: que estupidez é essa? Essa
falação, essa análise contínua, o raciocínio tortuoso, essa disputa sem
honra nem triunfo. Amar é desfigurar o próximo com a navalha cega da
posse e das cobranças? Pelo menos nesse nosso círculo do inferno, nesse
nosso grau de desenvolvimento espiritual. Bom. Então? Então você foi
embora. As coisas mudam. As coisas não bastam. As coisas acabam.
Você chegou e disse “é melhor a gente se separar, eu te amo, mas preciso
ficar só, vou viajar, pra longe, não sei, um tempo, é, um tempo." Você
falou enquanto eu lavava uma folha de alface. Apoiado no fogão, olhei
pra fora da janela, o recorte escroto dos prédios de São Paulo. Um tique
535
nervoso. A alface inteira lavada sobre o prato. Você cortava
pessimamente um pepino. Nunca gostei que você ajudasse na cozinha.
“Certo, certo, você vai viajar, um tempo, quer ficar sozinha”. Lágrima
besta rasgou minha cara. Não foi só uma. Logo dava pra lavar os tomates,
o pepino, tudo que você quisesse meter na salada, só com lágrimas,
minhas lágrimas. Aí eu ajoelhei e gemi: “fica.” Você picou. Aí, um dia,
depois da terapia, entrei numa igreja e fiquei sentado num canto do fundo.
Perto da imagem de São Judas. Puxei assunto com ela: “Olhai pra mim.
Minha vida é uma vida de dor, meus dias são cheios de rolos, meu
coração afunda no breu, meu caminho tem espinhos pra cacete, meu
cérebro é vítima de imagens terríveis, temor domina minha alma.
Confesso: a fé vacila. A providência parece até que me esqueceu. Não
podeis abandonar-me. Ou podeis? Vinde em meu auxílio. Ou não? A vida
inteira vos mostrarei minha gratidão. Hei de louvar-vos e celebrar-vos
diante de todo mundo. Acenderei velas de sete dias. Farei milheiros de
santinhos.” Faltava pouco pra começar a missa. Entrou um padre
velhinho, intuitivo, e veio direto pra mim. “Meu filho, vamos conversar.”
Fomos. “O que é que você tem, filho?” Eu me separei, padre. “Tem
filhos?” Não. Mas eu sinto muita culpa, padre. “Culpa é ruim, filho.”
Padre, eu traí. “ Passou, passou”. Ela traiu. “Passou, passou. E o amor:
passou, passou?” Vai saber. “Então, esvazia teu peito de culpa e rancor
e... Quando amar outra, porque você vai amar outra, queira bem a essa
pessoa e, quando puder, se case, case novamente, porque Deus quer o
casamento, e faça seus filhos.” Tá. “Você acredita em Deus né?” Padre,
o senhor já tomou Häagen Das? O sacerdote pôs a mão no meu ombro,
fechou os olhos, rosto franzido como numa dor ou num transe, puxou um
pai nosso e uma Ave Maria. Sussurramos juntos. Aí ele pediu que eu
ficasse pra missa e comungasse. Hóstia com gosto de casquinha de
sorvete. Depois da cerimônia, o padre me deu um Livro de Horas. Beijei
536
seus dedos manicurados. Olhei no fundo dos seus óculos. Fui embora.
Brás, Bresser, Carrão. Marechal, República, Sé. Trianon, Brigadeiro,
Paraíso. Tenho que gritar, tenho que arriscar/ ai de mim se não o
faço/Como escapar de Ti, como calar/ se tua voz arde em meu peito?
Consolação, Clínicas, Madalena. Carandiru, Tietê, Luz. Madalena,
Clínicas, Consolação. Paraíso, Brigadeiro, Trianon. Luz, Tietê,
Carandiru. Carrão, Bresser, Brás. Sé, República, Marechal. Tenho que
andar, tenho que lutar,/ ai de mim se não o faço./ Como escapar de Ti,
como calar/ se Tua voz arde em meu peito? Essa dor, essa dor, essa dor
no coração. Essa saudade do meu passarinho. Do meu Chupinzinho.
Volta Chupim. Chupim, ponha de novo seus ovos no ninho do tico-tico,
ele está distraído e vai criar seus filhotes. Chupim, dê um rasante no
curral e cate milho na bosta. Aí exiba seu púrpura brilhante, as penas
retintas. Agora cante. Como antes. Lindo, lindo. Pra mim. Que já cansei
de lavar os cabelos nas pias imundas das rodoviárias do amor. Pausa.
Longa pausa. Mais um pouco de pausa. Agora… Você se lembra da
Xaninha? Não. Então vou te contar a linda história de Xaninha. Xaninha
nasceu em berço de ouro, caminha na entrada da loja, fechava os
olhinhos, eriçava as costas malhadas, o preto e branco bonito, agradecia o
carinho de cada cliente que passava. A última ninhada, antes da castração,
foi distribuída entre os fregueses. Restou o mais belo, aquele que não
dava mesmo pra dar. O safado não deixava Xaninha dormir. Nem comer
em seu prato. Nem relaxar no colo de ninguém. De noite, expulsava a
mãe de casa. Resultado: Xaninha caiu na vida. Virou gata de rua.
Zanzava pela calçada, corria atrás de ratos, dormia debaixo das marquises
com a dupla de gêmeos bêbados ou o casal de migrantes com bebê de
colo. Até que apareceu a moça do Prédio Esperança, apartamento 33, que
indo ou voltando do trabalho, não deixava de brincar com a bichana. A
garota passava no supermercado e comprava vários tipos de ração pra ela.
537
Também pintou uma caixa grande dessas de guardar leite longa vida,
forrou com pedaços de carpete e colocou no jardim de inverno, na frente
do seu prédio. Pronto. Xaninha tinha casa nova - e miava quando a moça
apontava na esquina ou aparecia no porta do prédio. O Esperança ganhou
mascote. Só o senhor do apartamento 11 grunhia pra gata - mas até aí
tudo bem, que ele grunhia pra todo mundo. Um dia Xaninha sumiu. A
moça do 33 ligou os pontos e foi tirar satisfação. Parou na soleira do 11.
Homem com pedras na mão: “aquele gato deixava o prédio fedido, miava
toda noite, azarava meu sono, seus restos atraíam formigas e baratas, pus
vinagre no jardim, vinagre, vinagre espanta gato, mas não machuca. Sou
um homem sozinho, nenhuma filha me visita, vivo praticamente de favor,
o dinheiro mal dá pras cervejinhas e pro cigarro, sei que ninguém gosta
de mim, sou um chato mesmo, todo mundo fala por trás, mas ninguém
sabe o que se passa no meu coração”. “O senhor tem todo o direito de não
querer a gata, mas eu prometo que limpo tudinho, não ponho comida fora
de hora, guardo a casinha dela. Por favor, deixa ela ficar.” Silêncio.
“Minha filha, você é a primeira moradora do prédio que não vem brigar
comigo, que simplesmente me ouve… Olha… Não vou mais colocar
vinagre no jardim. Aí o bichano volta. Fica com ela. Faz ela feliz.” O
vinagre evaporou. Xaninha baixou na área. Todo mundo ficou feliz.
Xaninha, a moça do 33, o senhor do 11, a vizinhança, os moradores de
rua e até o marido da tal moça, um sujeitinho que também adorava
brincar com a gata, mesmo sem ainda ter entrado nessa história. E não é
que uma semana depois disso tudo, enquanto lavava um pepino, a moça
do 33 disse adeus pro tal cara? Além disso, mudou de repente, saiu sem
avisar. Deixou só um bilhete debaixo da garrafa térmica. De noite, o
moço chegava no Esperança e mergulhava os olhos nos olhinhos da gata.
Xaninha estancava naquela pose de deusa egípcia. Bichos esperando a
dona. Até que um dia Xaninha foi atropelada por um chevette caindo aos
538
pedaços. Morreu. Pausa. Pausa curta. Ataque: agora lembrou? Vai dizer
que não foi bem assim? Que chegamos a um ponto em que devemos
tratar dos nossos assuntos de um modo impessoal, na terceira pessoa? Vá
lá. Material para o romance. Tentemos. No acerto de contas, na velha
casa dele, o velho truque dela, o do rímel negro, mais a velha armadilha
do abraço e a antiga trapaça do perfume, derrubam o boi gordo. Ele vai
pro banheiro e chora. Volta. Sabe, tem coisas que preciso te dar. Uma
carta, um amuleto, um livro, uma fotografia. Cenas do passado escorrem
sobre a mesa de centro e empapam tudo. Não quer? Vou jogar fora. Você
tem fome? Tem miojo. Sede? Toma coca. Ela diz: a paixão acontece – e
acaba. Ele: também tem Häagen Daas. Ela mastiga o dia frio: agora é
tarde pra paixão. Ela modela miolo e rasga guardanapo. Quem falou em
paixão? Ela olha um ponto vago, a gola da camisa nova dele, um botão, o
nada. O café esfria. Ela: chega de paixão. Chega. Chuva no vidro. Unhas
arranham a mesa. Uma xícara cai e quebra. Ela canta: eu quero a sorte de
um amor tranqüilo. Lembra: ela acontece. A paixão. Ela ri. Ele: sabe, não
tenho amor pra passar no teu pão. Nada de coragem, carinho, respeito,
esse tipo de bobagem pra adoçar tua boca. Meu primeiro amor foi Laika,
a cadelinha. Depois veio Suzi, uma boneca. A prima com quem brincava
de casinha. A vizinha que me ensinou a brincar de “besteira”. Nunca fui
além disso. Ou seja, nem adianta chorar. Foda-se. Meu amor. Você foi
embora. Passou por aquela porta. Bebi, cheirei, fumei. Comi o pão dos
condenados. Tive tremor, dor de dente, doença venérea. Passei meses
paranóico. Um pouco foi hipocondria. Gastei a maior grana. Pedi
emprestado pro aluguel. Me arrependi dum monte de coisa. Senti uma
culpa desgraçada. Aí um dia passou. Ou quase. Aí você aparece e diz:
acorda, você era tão bonito, você tá obeso. Verdade: cacos de vidro no
meu pão. Mas olha, isso pra mim é bolinho. Não mendigo paz de espírito.
Dispenso caridade. Se um dia eu engolir esse fim cravado na garganta,
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meu peito-incinerador vai reduzi-lo a nada. Mas até lá, juro: lambo seu
sapato, a sola todinha, o salto, é só você voltar. Quero novos mergulhos
no breu, seus olhares canalhas, sua saliva, mordidas súbitas desses seus
dentes caninos. Silêncio. O silêncio dela é fruto da mais cândida e falsa
modéstia. Depois do costa-a-costa da paixão, a estrela de edredões e
colchas maneja um silêncio afiado na chama da mágoa e tenta cimentar
cacos tácitos. Erguer um muro para lamentar falsos esquecimentos. Dobra
no fundo da bolsa. Farelo de amor antigo. Papel de sonho de valsa.
Bilhete rasgado. Botão que não voltou pra costura. Toco de batom que
sabe lá quando ela esqueceu. Como se fossemos amantes persas e
tecêssemos poemas com nossos corpos, esparramados em tapetes de
pétalas de papel, segundos antes do fim, prometo que nunca mais
escreverei sobre você. Para você, e só você, serão todas as podas e todas
as mudas. Mais nada. Mas acontece que a seringa do ciúme ainda toca a
veia dele nos silêncios muito mais venenosos da solidão, à espera de que
brote ao menos um crisântemo. Disso tudo. Entendeu? Melhorou? Passou
do ponto? Meio rococó? Já ouviu My Funny Valentine com Chet Baker?
Aquela voz de junky bêbado desdentado. Arame roçando a pele. Último
uivo do lobo. My Funny Valentine. Cantado para quem não tem ninguém
ninguém. Lugar nenhum nenhum. Ele era tão lindo. Chet. Virou aquele
veludo crespo aquela crosta aquela velha forração de apartamento. Nem
tente argumentar que Michelle Pfeiffer, em Suzie e os Baker Boys,
manda tão bem quanto Chet. Depois de Chet só resta o abismo. O puto
que faz do clichê arma letal. Dá pra fazer isso com qualquer coisa. Até
com Feelings. Aí Michelle Pfeifer, em Suzie, arrasa. Feelings, lembra?
Uou, uou, uou, Feelings... My Funnie Feelings. My. Poor. English. Que
mal dá pra ler manual de videocassete. É simples: eu andava a esmo,
numa esquina, esperava o farol abrir, ficou verde, no segundo entre
levantar um pé e completar a pisada na faixa de pedestres, caiu a ficha:
540
você não me quer. É. Você. Ou: você me quer como uma TV 29
polegadas, um DVD. Tralhas que a gente troca de tempos em tempos.
Aquele sofá ou aquela foto ou aquele tíquete de supermercado onde você
escreveu o telefone de alguém, agora pronome indefinido. Então escuta:
cansei de tropeçar toda noite no mesmo degrau da escada, de segurar a
porta do elevador pra Marias com pencas de filhos e sorrisos mal amados,
de roubar jornais nas manhãs das portas dos vizinhos que dormem
abraçadinhos, de fechar teu mês. Cansei de me justificar pra analistas
freudianas, junguianas, reichianas. Cansei das olheiras profundas e das
justificativas para atrasos no trabalho – antes de eu ser demitido. Cansei
de ser desalojado da tua xota por qualquer picuinha: um telefonema, uma
mala pra arrumar, a novela das 6, das 7, das 8, a janta. Você mal cuida
das violetas que eu esqueço na janelinha do banheiro. Você abandona
calcinhas pela casa. Você conta seus antigos casos nos mínimos e mais
sórdidos detalhes. Não consegue escolher entre pizza e saladinha de
alface, mas junta tíquetes da pizzaria para ganhar a décima-terceira pizza.
Você não gosta da própria bunda. Nem da minha. Você gosta da bunda
do Romário. Do Gianechini. Do resto não lembro bem. Você levantava a
minissaia com pressa e fodia? Só usava calça comprida? Qual a altura das
sandálias? Tem alergia a brincos? Tem medalha de santo? Fita do Senhor
do Bonfim? Fios de cabelos brancos? Tintura? Buço? Depilação com cera
quente? Virilha cavada? TPM? Gosta de trepar menstruada? Queria
filhos? Rói unhas? Espinhas? Estrabismo? Piercing? Ponte? Moramos
juntos? Casa própria? Passou um tempo na rua? Dormiu num ponto de
ônibus? Faz poupança? Não tem um puto? Só eu? Qual o gosto do beijo?
A língua serpenteia ou a boca aguarda minha língua, dentes e dedos?
Incisivos ligeiramente encavalados? Caninos de vampira? Você morde?
Você goza? A interpretação merece um Oscar? Só gozou pra valer numa
foda rápida com o professor de natação? Você não sabe nadar? Se
541
aninhava no meu colo como um bebê? Fui um pai pra você? Um filho?
Um arrimo? Um amor? O amor? Pra mim só ficou o bar da beira da
estrada. O Expresso Cometa parou lá pela primeira vez faz mais de 15
anos. Eu não sabia nada dos laranjais, da cana e dos cafezais da
Washington Luís. As primeiras transas, Araraquara, o primeiro
casamento, Campinas, a segunda mulher, Rio Preto, Matão, Catanduva,
Rio Claro. Continuei parando no boteco, meio caminho entre São Paulo e
as cidades de todas as mulheres da minha vida. Placas da estrada. Traços
de cada sotaque. Desvios. Igrejas matrizes lotadas e canções de Natal.
Treminhões. Gordas passagens de ano. Cortejos em cemitérios. Tias
tricotando malhas. O calor de suar sentado. Congestionamentos de fim de
feriado. Aquele velho sonho de amor, amor para toda vida. Tudo ficando
para trás na janela do Cometa. Modernas redes de restaurantes tomam o
acostamento. Não quero conhecer mais ninguém das margens da
Washington Luís. Sacou? Fique com o CD do Chet Baker. A Michelle
Pfeifer quase não tem celulite. Detesto Feelings. Sou, no fundo, um
promíscuo. Disponível como banco 24 horas. Um dia, talvez, eu seja
remasterizado como Chet Baker. Perderei o ruído. Vai saber. My sweet,
my funny, funny, funny Valentine: a gente se perdeu. Muito antes de
você ir embora. Muito antes que eu recebesse o bilhete que chegou agora
a pouco, lido pela dulcíssima enfermeira do plantão, letras recortadas de
jornal, sem assinatura, naquele envelope das Meninas Poderosas. Coisa
sucinta: “Arrumei a máquina na favela. Custou só uma trepada. Gozei. E
cheguei lá de novo e de novo a cada tiro disparado. Você no chão.
Orgasmos múltiplos. Medula. O fim do romance barato. Nada de pistas.
Um homem disse que um homem jamais sabe o que quer uma mulher.
Quase perfeito. Perfeito mesmo, só Häagen Dass, para acompanhar o
mais doce crime. Adeus.” Belo mote. Ponto de partida para o romance
que, um dia, se eu conseguir mover um dedo, se eu conseguir sair daqui,
542
se antes eu não balbuciar um “Ôi” para uma certa lady amiga sua, eu
escreverei a partir do supracitado romance barato.
FIM
543
a noite dos animais
Trash tragedy em 3 atos para bando de atores.
gorilas
taurus
rinha
As cenas são búzios. Basta jogar.
544
Ato 1: Gorilas
Rio de Janeiro. Dezembro de 1968. Porão.
Nome. Idade. Estado civil. Profissão. Dia. Mês. Hora. Ora, ora, ora. A
senhora sabe, sabe a senhora, que dia, mês, que horas são? Não? Viramos
o ano? Vira pra mim. Isso. Agora senta. Isso. Levanta. Isso, isso. Senta.
Isso. Ora, ora, ora. A senhora sabe que nós sabemos tudo sobre a
senhora? A senhora sabe. A senhora sabe mais. Muito mais. A senhora
não esquece, não é mesmo? Dá para esquecer? Senhora? Pau. Choque.
Choque. Pau. Mais pau. E tome pau. E choque. A senhora sabe. Por…
Por… Por… Favor. Por favor. Eu… Estou… Pedindo… Por favor, por
favor. A senhora sabe. A senhora pode. É o seu direito. É direito seu,
certo, certo, direito, direito e certo… Falar. A senhora está limpa. A
senhora está lavada. A senhora não tem uma gota de sangue manchando o
corpo da senhora. Eu não tenho uma gota. Levanta. Alguns hematomas, é
verdade, no corpo da senhora. Belo corpo. É um elogio. A senhora sabe.
Por outro lado… Pode sentar, por favor. Por outro lado a senhora sabe de
coisas, a senhora sabe das coisas e a senhora pode… Se me permite um
conselho. Em nome da sua… Do seu... Belo corpo... Do seu belo corpo.
A senhora pode. A senhora deve. Todos nós temos direitos e deveres.
Todos. Eu, por exemplo, a senhora não acha que eu estou aqui, não, a
senhora não acha que eu, aqui, eu… A senhora sabe! As minhas mãos.
Todo mundo sabe, muito bem, que eu estou cumprindo meu dever! Um
dever é um dever. Ainda mais na nossa… Situação… No nosso… País?
No nosso país, etc. Portanto… Eu… A senhora… Tanto é que… Em
outra situação… Por favor… Levanta. Isso. Agora. Tira a blusa. A blusa.
É, a blusa. Agora tira a calça. Bonita. Moderna. A lingerie. Realmente.
545
Tira. Tira tudo. Isso. Belo corpo. É um elogio. Não falei? Nada de
sangue. Uns poucos hematomas, coisa mínima, que qualquer um, repito,
qualquer um faz, em casa, um tombo de escada, etc. Bonito. Belo
trabalho. A senhora sabe. As minhas mãos. Eu não encostei a mão na
senhora. Diz. Pode dizer. Seja sincera. Encostei? A senhora reconhece
este rosto? A senhora já viu estes olhos? Eu usava barba? Bigode?
Senhora? Eu sou seu amigo. Eles não são. Nunca foram. Seus amigos.
Nunca foram seus amigos. A senhora é inocente, eu sei. Eu sei. Eu sou
seu amigo. Eu sou seu único amigo. A senhora sabe o valor de uma
amizade. Sabe? “Você é responsável por aquele que cativa.” Pequeno
Príncipe. Toda miss lê. A senhora tem corpo de miss. A senhora foi miss?
Sabemos tudo da senhora. Por exemplo. A senhora estudava. Isso antes.
Antes de tudo isso. Precisa dos detalhes? Lembra? O ato? Era uma
metralhadora? O dinheiro do povo, digo, do banco, o dinheiro? Os pais da
senhora não entendem, não conseguem entender, pra falar a verdade, nem
eu, nem eu. Bela família. Tradicional. Vai dizer que foi em nome, em
nome de quem mesmo? Do povo? Do Povo… Até eu, que não tenho a
envergadura, digamos, até eu sei que o povo, o povo, o povo não é… Está
prestando atenção? O povo. A senhora está com fome? Com sede? O
povo está? Aliás, o que é o povo? A senhora sabe? Vai saber. Ninguém
sabe. Olha, eu também li, dever de ofício, alguns desses, desses livros
desses… Lênin? Marx? Mao? Ora, a senhora não levou a sério, nem por
um minuto, nem por um segundo… A senhora tem filhos? A senhora já
amou? Digo, amar, amar, o que não quer, necessariamente, dizer “casar”,
“namorar”, etc. Certo? Certo. Então. Já? Talvez? Pelo seu jeito eu acho
que a senhora, não sei, a senhora também não sabe. Quer saber, pouca
gente sabe. Aliás, quem pode afirmar que sabe, sabe mesmo alguma
coisa, alguma coisa principalmente sobre o amor. O amor. Ou o povo. O
povo, por exemplo, o que é o povo? O que é a esquerda? E a direita? A
546
senhora acredita? A senhora acha que o povo precisa de uma elite que o
conduza? Como filhos? A senhora tem? Filhos? Pode rir. É mesmo
engraçado. Muito. Desculpe se eu também. Eu sou engraçado? Pode
dizer. Diz. Aqui entre nós. A senhora… É… Xixi? A senhora, com o
perdão da palavra, está se mijando de rir? Está rindo de mim ou para
mim? Eu realmente ligo pra essas coisas. Sensibilidade. De mim ou pra
mim, esse riso? A ou B? Par ou ímpar? Sabe jogar par ou ímpar? Par ou
ímpar com palavras? Palavra é ímpar. Fé é par. Ideologia é ímpar.
Comunismo também. Socialismo é par. Par é ímpar. Ímpar também.
Também é par. Morou? Morte é ímpar. Prefiro par. Amor é par. Isso, isso
é um vício, entende, a gente começa e não consegue, não consegue parar.
Ímpar ou par? Ímpar. Par. Formamos um par. Eu e a senhora. Par é ímpar.
Um par ímpar. A senhora e eu. Eu e a senhora. À propósito, senhora é
ímpar. Gereral, coronel, tenente. Terrorista é… Par. A senhora acaba de
sujar todo o assoalho do meu escritório de xixi. Merda! Perdão. Senhora.
Por favor. A senhora não pode se… Controlar? A senhora precisa de
alguma… Merda… Um pouco de… Educação. Merda. Xixi. Agora, meu
Deus, o que é que é isso? Sangue? Sangue, sangue. Sangue! Isso é… Isso
só pode ser… A senhora está? A senhora acaba de entrar? A senhora está
incomodada? Meu Deus… A senhora vai ficar de Chico bem agora. No
meu escritório. Senhora! Hemorragia interna, hemorragia por, assim
dizer, outra razão, talvez, não, não, não pode ser… A senhora, me diz, a
senhora está… Vou sussurrar no seu ouvido… Assim… Confesso que
estou envergonhado… Palavra… Eu estou… A senhora está… Mens…
Truada? Eu sou casado, eu tenho filhas, eu tenho amantes, eu nunca vi…
Meu Deus! Eu sou um homem de família, um homem de família e moral
e homens de família e moral, a senhora entende, não se envolvem nesse
tipo, nesse tipo de coisa, a senhora sabe, a senhora sabe, eu sou um
homem religioso, como começou a menstruação? Herança de Eva. No
547
Paraíso. Ela tentou Adão. Eva. E Deus, meu Deus, Deus condenou Eva a
sangrar todo mês. Para os homens, Deus, meu Deus, Deus deu o trabalho.
Aliás, a senhora está me dando trabalho. Eu poderia, bem, eu poderia
estar na praia. A senhora sabe que dia é hoje? Sábado. Dia de praia. A
senhora sabe em que dia o mundo foi criado? Qual a religião da senhora?
A senhora tem? Eu perguntei isso pro frei, pro frei que eu tive a honra de
hospedar aqui. Domingo. Deus começou no domingo. Portanto, hoje é dia
de descanso. Ontem, sexto dia da criação, sexta-feira, ele terminou a obra.
Hoje ele descansa. Ontem, os homens deram um retoque em nossa obra.
“Governo baixa Ato Institucional e coloca congresso em recesso por
tempo ilimitado” JB. 14 de dezembro. Hoje. Sábado. Mesmo assim, eu
não tenho descanso. Está aqui. Primeira página. Artigo 10. “Fica
suspensa a garantia de habeas-corpus nos casos de crimes políticos contra
a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”.
Habeas-corpus. E a senhora inunda o meu escritório com sangue. Meu
Deus. “Açougue. Vendo telefone, balanças, geladeira, etc.”
Oportunidades. “Mesa telefônica marca Standard Eletric. PBX com 5
troncos e 30 ramais. Vende-se.” Sabe o que diz a sargentada? “Aqui
dentro Deus não entra, se entrar a gente põe no pau-de-arara”. É a justiça
revolucionária. Deu no jornal. Ato institucional número 5. AI-5. Eles são
engraçados, os jornalistas: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar
está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Max.: 38
o
em Brasília. Min.: 5
o
em Laranjeiras.” Está aqui no jornal. “Ontem foi o
Dia dos Cegos”. Aqui. Começa, enfim, a nossa longa noite. A senhora
compreende? “... Por tempo ilimitado.” A senhora compreende que este
jornal fala da senhora. Fala de mim e da senhora. A ação faz a vanguarda!
Hoje é dia de festa. Quando venho para o trabalho deixo o coração em
casa. Hoje não. Eu queria porque queria contar para a senhora as
novidades. A senhora tem alguma coisa para me contar? Nós estamos
548
vencendo o terrorismo dessa minoria sem a índole da nossa gente. Aqui
nós aprimoramos a prática dos princípios democráticos consagrados na
constituição, referentes à dignidade da pessoa humana – no bom sentido
do humano. Se a senhora desejar, podemos chamar para essa nossa festa
democrática a Luciana, a Carinhosa, a Vem Cá Meu Bem. A senhora se
lembra delas? E da Maricota? A senhora quer passear na Boate ou na Sala
Roxa? Quer telefone? Se contar tudinho, vai agora mesmo para a Cela
dos Atores. Lá é limpo, seco, claro. Conseguimos uns paninhos para a
senhora… Vida boa. A senhora é tão bela. A flor da subversão. Que eu e
meu 38. juramos extirpar. Vê? Bonito. Como a senhora. É uma lágrima?
Isso mesmo, senhora. A senhora deseja rezar? Eu espero. Reza é par. Ave
Maria, cheia de graça, o senhor é convosco, bendita sois vós entre as
mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus, amém. A senhora não
era comunista? Que porra de comunismo é esse? Pronto. Estou pronta.
Obrigada. Não vai rezar um pai nosso? Não, obrigada. Dá tempo. Não
mesmo. Eu espero. Eu não quero. Mas precisa. Faz parte. Não tem ave
maria sem pai nosso. Arroz, feijão. Romeu e julieta. Pai nosso e ave
maria. Eu puxo. Pai nosso que estais no céu… Santificado seja o vosso
nome… Venha a nós o vosso reino, seja feita a sua vontade, assim na
terra como no céu, perdoai as nossas ofensas… Ou será “as nossas
dívidas”? Perdoai as nossas ofensas e as nossas dívidas e livrai-nos do
mal, amém. Pronto. Pronta para desaparecer? O senhor acha que eu vou?
Prefere virar cadelinha nossa? A senhora tem um belo corpo. Eu nunca…
Fiz amor… Com uma mulher… Uma mulher… Uma mulher…
Menstruada. Eu poderia deixar um bilhete para o meu filho? Um bilhete?
Deixe eu pensar. Pode. Pode. O senhor tem papel e caneta… Perdão,
perdão. Eu nunca… Pronto, aqui está. Já escreveu? Posso? Ler? “Mamãe
ama você. Seja feliz.” Só? É. Eu… Eu nunca… Eu nunca fiz… Posso? A
senhora está se deitando? Dizem que a mulher menstruada fica mais
549
fogosa. Dizem. Isso, assim. Pronto. Posso? Eu… Nunca… A senhora…
Nós… Com licença… Senhora… Nossa senhora… Nossa senhora…
Nossa, nossa, nossa… Senhora, Senhora, SEEE, SUUU, SUUUUA
PUUUUTA, PUTA sem vergonha, puta, senhora, vai levantar? Assim?
Sentadinha? Na cadeira? Por cima? A senhora, a senhora, eu, eu vou, eu
estou, goz… Goz… Gozei. Senhora? Senhora? Desculpa te chamar de…
Prosti… Desculpa… Eu… Foi tão… Eu nunca… A senhora… A
senhora… A senhora está… A senhora está… Gozando? A senhora está
gozando. Esse aperto, esse calor, esse gemido, esse hálito, esse abraço…
A senhora… Por favor. Levanta. Isso. Pronto. Deixa eu me vestir. Isso.
Puta que o pariu, puta que o pariu. A senhora, a senhora, eu, nós, a
senhora manchou toda a minha calça, puta que o pariu. Sua puta. A
senhora é uma puta. Sou. Sempre fui. E gozo fácil. É par: gozo. Gozei é
ímpar. Eu nunca fiz amor… Com uma puta? Com uma mulher… Uma
mulher… Como a senhora. É um elogio? É. O senhor tem um belo corpo.
É um elogio. Faço muita ginástica desde menino. Eu sei tudo sobre o
senhor. Nome? Idade? Estado civil? Eu sei outras coisas. Eu sei muito
mais. A senhora não tem direito. O nosso ato. O nosso ato…Vai, diz. O
nosso ato de… Amor? O nosso ato institucional número 5 nos dá todos os
direitos sobre a senhora. A senhora vai partir. Todos temos deveres. E
direitos. Tem razão. Sabe o que eu faço com esse seu bilhetinho de
merda, sua vaca, sua puta, sua subversivazinha menstruada de merda?
“Mamãe ama você. Seja feliz.” Sua terroristazinha de bosta… Mulher!
Par. “Mamãe ama você”. Mamãe ama você, filhinho, mamãe ama você,
mamãe te ama. Seja feliz. Mamãe. Ímpar. Eu rasgo. E como. A noite vai
ser longa. Ímpar. Eu tenho medo. Medo é par. Quer um copo de água?
Eu quero. Obrigado. Um brinde. Eu queria você, mamãe. Mamãe. Eu
queria ser feliz. Bebe! Minha mãe. Tá escuro. É noite. Me abraça. A
felicidade é par? A história também. Mas a memória... Puta
550
subversivazinha de merda! Merda. O chão todo sujo. A minha roupa. As
minhas mãos. A senhora vê? Eu faço as unhas. A senhora com certeza faz
as unhas. Tem que tirar a cutícula. Tem. Com delicadeza. A senhora vai
partir. Amém. Amém. É par. É par. Olha no olho do meu 38. Meu deus.
Adeus. É ímpar.
551
Ato 2: Taurus
São Paulo. Fogos do milênio. Mocó.
Trinta e oito magnum millenium glock colt sig sauer AK47 AR15 uzi ou
um beijo? Taurus detonou muito ponto, Taurus foi de favela em favela,
Taurus sinucou muito malaca, Taurus meteu muita bala. Calibra tua
palavra: este é Taurus, senhor da justiça. Pé-de-pato? Nem fudendo.
Alcagueta? Escama! Máquina de lavar, Geladeira: um monstro. Ligou tá
pronto. Lavou tá novo. Um Rambo, um exterminador. O touro. Sangue
no olho. Anel de safira e ágata. Para você, Taurus, o poder de fazer da
semente substância. Seu trabalho é grande, exige paciência. Você tem
força. Use com sabedoria. Sei. Foram quatro anos de preparo. Quatro
anos. Jiu-jitsu, full contact, wrestling, ferro. Taurus finalizou muito mané
na arena. Quatro anos. Sem trepar, sem punhetinha, sem sonho bom.
Quatro anos. Purificar. Hálito de lírio e rosa. Rayban. O nome tatuado no
couro. Taurus. Careca luzidia. Vem, carinha, liga tua espada jedai. Gira a
capa, herói. Capote, verônica, larga. Crava bandarila. Agora, olho no
olho, termina o começado, justiça a fera. Sei. Esse é o olho de boi de
Taurus. Escuta: nunca, em hipótese alguma, aponte qualquer arma,
carregada ou não, para qualquer pessoa ou coisa que você não deseje
destruir. Certo? Ok? Então, tá. Taurus enterra seus chifres no teu bucho.
Puta cornada. Estrebucha, bicha. Tomba. Você tá vendo isso daí que você
tá sentindo? Foi o mesmo que sentiu minha família. Os quatro. Quatro
anos. Foram. O Estado é que fez. A polícia. Ela cumpre contrato. Assim
tipo bico. Meus filhos, teus filhos, os filhos, os nossos filhos. Eles
votavam, pagavam imposto, trabalhavam. Viraram bucha, lá no IML.
Milico debocha na minha cara, usa o relógio de um morto, afana dois
real. Peço que retratem. Os ômi: se foi morto, algo fez. Sei. A força anda
com kit assassinato, massacra e larga arma mais papelote na mão das
552
vítimas. Meus filhos trabalhavam, pagavam imposto. Os teus? Quatro
anos. Cadê justiça? Justiça o que é que faz? Quem? Se foi morto, algo
fez. Se. Foi. Morto. Se foi. Se foi morto algo. Fez. Se foi morto algo fez.
Se fez foi. Se foi fez. Algo morto. Algo morto algo fez. Se fez morto.
Algo foi algo fez. Se. Justiça é o que se faz? Pronto. Me preparei. Arma é
fácil, qualquer feira do rolo, rifa. Sei. Mas o beijo da morte não é cano ou
faca quem te dá. É eu. Taurus. Boi, boi, boi, boi da cara preta. Filho de
Minos, diz o registro, o rei da rainha branca, também já morto. Taurus.
Filho da puta, que minha mãe trepou com touro branco, pica daquele
tamanho, que nem a minha, quer ver? O pai pirou, matou os putos, mas
me quis bem e deu leitinho e me fez crescer. Eu fiz o grupo, arranjei
trabalho, não entrei na rainha branca, não entrei. Meu pai disse meu filho
tudo bem. Aí casei com uma dona e tive 3 filhos. Eles eram quatro, minha
família. Aí o Estado tirou tudo de circulação. Chacina à toa, nem dá
jornal, nem revista. Jogaram tiros, descarregaram a 12, destroçaram meu
ombro, mataram todos eles. Andei 15 quilômetros, me escondi num
barraco, tratei com óleo de copaíba, pólvora, fogo. Aí eu caí na nóia.
Tomei formicida, abracei a morte, ela não me quis. Parei numa UTI. Fui
pro Juqueri e de lá pra rua. Eu jogado no rio, numa ribanceira, com os
restos de esgoto, eu me encalacrei. Eu nem era trapo. Mas me dei um
tempo. Aí me preparei. Quatro anos. Cisquei no terreiro. Escutei oráculo.
Arranjei um trampo lá no matadouro. Aprendi a cravar a marreta e furar
boi entre os olhos e fazer tudo que é corte de açougueiro. Alcatra.
Maminha. Foi tipo escola e tipo penitência. Mais academia. Sabe
triângulo? É meu golpe básico, pra finalizar – ou o armlock. Morou? Meu
colírio é sangue, meu recreio é tripa. Dormi sobre as peças de boi, carcaça
sobre carcaça. Taurus. Ganhei força e peso. Canja e gemada. Ando com
minha faca de açougueiro, careço de mais nada. Treinei com os bandido,
matei umas dúzia. Depois do primeiro é fácil. Cena rápida. É um a cada
553
12 minutos, xará. 1 a cada 12. Faz as contas: dá quarenta e cinco mil por
ano. O Brasil. É campeão. Mundial. Mas essa conta. A conta. Quem
cobra as conta? Quem paga? 45. Mais que Guerra no Iraque, sacou?
Matar é bico. Matar. Nego de crack, de cola, da rainha branca. Fácil. Tá
ouvindo ou morreu? Aguenta. Sustenta. Segura, peão. Escuta. Escuta
aqui. Tá bom. Eu falo. Eu. É. Uma. Uma só vez. Foi sim, uma. Uma
mina, Ariadne. Isso. Ariadne, a gostosinha da fabriqueta, da fiação. A
gente se amou na quebrada, coisa muito boa, mas eu disse, Ariadne, meu
destino é um beco, não tem retorno, melhor você ir. Ariadne. Fio de
saliva de língua pra língua. Fio de porra naquele beicinho doce. Ariadne,
que foda boa. Que coração. Mas é só sozinho que o homem encara o
mundo, esse labirinto. Você me entende? Já tive família, você é moça,
não viu a vida, você não sabe, o fio da meada, o fio da meada é que a vida
é corte e não dá emenda, adeus, adeus, adeus. Então mais uma foda, bem
de mansinho, Ariadne, pudesse eu ficava, pra sempre, pra sempre, dentro
de você. Bem de ladinho e de cachorrinho e você por cima preu te ver
gozar. Aí me vesti. Faca na cinta. Tocaiei tua casa. Pego esse menino que
tem medo de careta. Teseu. Te peguei na esquina, sequestro relâmpago.
Agora tá bundalelê. Agora neste mato, nó dessa picada, cavo a tua cova,
lembro a nossa história e, olha, te pergunto, será que isso tem fim? O que
vai ser? Vai virar consórcio, um por sorteio, um por lance? Vai ter
financiamento? Prazer não se cobra? Não é nada disso? É justiça? Ela não
é cega? Tem uma balança? Dessas de feirante, supermercado? Essa é a
fita? Estamos fudidos. Você e eu. Taurus e Teseu. Olha minha família,
ainda carrego as fotos na carteira. Olha. Você também tem? Filhos?
Mostra. RG, CPF, CEP. Vamos queimar tudo. Viveu quantos combates?
Corre chora faz ginástica pra sossegar a dor? Corre, chora, faz ginástica.
O que é que você faz? O que é que você fez? Emaranhado de gato no
poste da perifa, é a mente, iluminando o breu. Vejo claro. Não existe
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nada, nada, nada, nada maior que a fé. Esse mugido. A fé. Já vi
vagabundo morrendo com duas pistola na cintura. Entende? O que vale?
A fé. A fé. A fé. Agora ora? Vai de pai nosso? Avemaria? Vê a boca? Vê
o bico? Trinta e oito magnum millenium glock colt sig sauer ak47 ar15
uzi ou um beijo?
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Ato 3: Rinha.
Goiás. Hoje. Motel.
Abari, Abionda, Akassia, Agatha, Aime, Akime… Era uma lava que me
queimava, uma peste, uma pústula, apóstola do Bom Jesus, eu orava…
Alice, Alicia, Aluany… Meu Bom Jesus, Jesusinho, me salva, a chavasca
em brasa, banho de assento, não sossegava… Andressa, Angel,
Antoniella, Any… Assim, assim, tive mil nomes, até Zaíra, Zoraide.
Pensava assim, tantas em mim… A xaninha urrava, cuspia sangue, não
era Xico, era chaga… Era menina, uma moça, uma pura, uma laidi…
Zulaidi?… Um namorado, menino fino, boa família, lindo sorriso,
covinha de astro de hollywood, me respeitava. Toda semana, lá na boate,
me dava um malho, no roça-roça, na raça, no muro, no carro. Aquela
coisa grossa. Um pau enorme. A cabeçorra. Engole e bole. Jato de porra.
Aquela coisa toda. Era só isso. Na chupetinha. Dedo no grelo. Era isso e
pronto. Aí me deixava em casa. Um dia quis ir pro motel La Cave. E
fomos. E quis me comer. E eu fiz um cu doce. E como eu já disse, o pau
era grande, bem grande, grande, naquela altura, achava que todo pau, pelo
que conhecia, era um negócio grande, bem grande, descomunal. Falei pra
ele: todo pau é assim, que nem o teu, tremenda rola? Disse que não, o
dele brilhava, ganhava concurso de piroca entre a garotada. Falei:
tentemos. Aí tentamos. Na hora H, doeu, não deu, não entrava. Ficou
confuso. Forçou a barra. Nem assim nada. Ficou sem jeito. Fiz um
carinho. Fiquei sem jeito. Fui por na boca. Ele gozou. Ficou gozado e
envergonhado. Sentei em cima, raspei a xota, gozei gostoooooso. Não
disse nada. Nem eu. Fomos embora. Ainda era virgem. Ele dizia, ainda
era também. Assim ficamos. Cada vez mais cedo ele ejaculava. Ficava
tenso. Nervoso. Até foi no médico, doutor Tetsuko, doutor de família, rei
da cidade. E nada. Um dia eu me lavava no bidê, senti coceira. Peguei
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espelho, me olhei, uma verruguinha. Não dei nem nada. No outro dia,
olhei de novo, outra verruguinha. Uma semana, uma couve-flor, uma
verrugada. Entrei em pane. Falei com ele: “meu bem, tenho um
probleminha”. Mostrei pra ele. Ele disse: “vai num médico”. Doutor
Tetsuko, rei da família, dono da cidade, disse “crista de galo”. Crista do
quê? Doutor, como isso pega? Na relação, meu bem, no intercurso. Crista
de galo. Mas eu sou virgem, doutor, como é que pode? Galo cantando.
Mocinha virgem, meu anjo, também arranja, basta um roça-roça com
jeito, tua genitália com outra genitália contaminada. Pronto e mais nada.
Mas como, doutor, sou uma quase santa, uma quase noiva, ele é filho do
prefeito, me trata como rainha? Fez um silêncio. No sabadão, depois da
boate, no La Cave, puxei assunto, foi duro, meu gato disse: “sua puta, sua
puta”. Chorei. Disse: “amor”. Ele: “sua puta”. Eu: “amor”. Ele: “puta”.
Será que você não, por acaso, não, andou, por aí, com alguma, sei lá,
alguma outra, alguma outra mulher? Ele disse: “lógico”. Eu: “como
assim?”. Ele: “você ouviu?”. Eu: “Lógico”. Lógico. “Com umas putas,
assim como você, umas putas, com elas gozo, gozozo, me satisfaço, não
fica clima, essa coisa pudica e babaca…” Fiquei em pane, panaca, parada.
Ele: “Mas sempre trepei com moça limpa, de camisinha, e não tenho
nada, Doutor Tetsuko, o rei da cocada, sempre me examina, essa coisa
sua, essa coisa sua, repito, é coisa de puta, puta arrombada.” E foi
embora. Nem pagou a conta do La Cave. Fui vadiando pela beira da
estrada. O mar de cana. Cricri de grilo. A madrugada. Liguei pra ele.
Caixa postal, deixei recado, meu bem, me liga, te amo tanto, isso não é
nada, a gente se acerta, amor. Caiu a linha. Nem deu retorno. Chorei e
muito. E a coceira, a verrugada me incomodava. Era uma lava que me
queimava. “Tem que tirar, pode dar câncer.” Disse o Tetsuko. “Aí tem
que tirar o útero todo”. Eu disse” “Então eu não vou poder mais ter
filhos?”. Pigarro fundo: “Podofilina”. Uma melequinha, da homeopatia,
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um óleo preto, uma vez ao dia, com cotonete, era só passar na área
tomada, dar um tempo com a xana ao vento, arregaçada, depois lavar com
cuidado e usar calcinha de algodão, folgada. Fiquei na ânsia. Quis
resolver na vula. Passei demais. Lambuzei ali e nos arredores, lambuzei
de um tudo. Pus vestidinho florido e fui pra escola. Passou umas horas,
veio uma dorzinha, uma queimação, fui no banheiro, joguei uma água.
Passou uns minutos, veio uma dor dura, pedi pra ir pra casa. Fui me
arrastando pelas ruas. Sol de meio-dia, o suor pingava. A dor era imensa,
uma chaga, uma lava, uma peste, uma pústula, minha pupuquinha, tudo
queimava. Doutor Tetsuko: “os grandes lábios, os pequenos lábios, a
vulva, o clitóris, olha só, até aqui, o ânus, tudo tomado, em brasa. Banho
de assento, um tempo. Até apagar a brasa.” Andava como uma pata.
Escondia tudo da mãe. Nem sei como. Chorava. Se cruzava com “ele” na
rua, virava a cara, ignorava. Passou uns meses. Foi devagar. Põe devagar
nisso. Mas um dia sarei das queimaduras. Agora, a tal da crista
continuava. Nova consulta, o Tetsuko resolveu fazer uma cirurgia. Disse
“é coisa simples, beleza, pra quando marcamos?” Entrei numa faca, tirei
de uma vez a verrugada. E aí passou. Só ficou, assim, por assim dizer,
ficou um tipo de um medo. É, Fiquei com medo de olhar. Lá. Olhar lá.
Olha. Olha só. Olha você pra mim. Olha. Olha a cicatriz. Pequena, leve?
Né? Não teve jeito. Não tem quelóide. Né? Só uma pele esbranquiçada?
Lembrança do grande amor. Caí no estudo. Prestei exame, vestibular, fui
fazer faculdade na capital. E nunca mais voltei, nem pra visitinha. Lá
conheci um cara muito bacana, era colega, verdadeiro amigo, com quem
me abri. Contei a história. Ele me abraçou. Ele. Aquele abraço. Dele. Eu.
Tinha medo. Eu tinha mais. Carinho? Depois de um tempo, namoramos.
Eu tinha medo! Não sentia nada. A pupuquinha travava. Ficava seca, não
penetrava. Ele disse: você se masturba?” Eu: “nunca, nada”. “Quem sabe
ajuda…” “Eu sinto um… Nojo, me entende?” “E chuveirinho?” “Acho
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engraçado – sabe, é que lá… Nem olho.” Na lenga, lenga, fomos levando.
Num dia de chuva, esperava o ônibus, parou um carro, desses de marca,
importado, ofereceu carona. Não conhecia, quer dizer, só de vista, mas
era na faculdade, achei que não tinha problema. O cara era direto, logo
trepamos. Foi tudo certo, entrou bonito. Não senti nada. Prazer nem nojo.
E repetimos. E peguei gosto. Ele gostava. Enquanto isso, o outro cara, o
cara bonzinho, o compreensivo, o meu namorado foi me conquistando. É.
Veio de língua e a coisa foi outra. Ele tinha jeito. Começava leve, aí
apertava. Dava mordidinha. Brecava. Respirava fundo. Pegava a língua,
enfiava. Gozei bonito. Fomos morar junto. Foi o cara bom que me deixou
bonita pra farreada. Um dia deu, saquei, comigo, bem, comigo era mais
embaixo. Não era um cara, muito menos um cara bom, bonzinho,
compreensivo. E o carro importado? E a foda rápida, sem dor nem nada,
nem nada nada, só a foda assim, olho no olho, ninguém nem nada, só a
pica, a xota, um branco na mente, sem pensar em nada, sem pretender
nada, sem ter nem nada, nada? Deixei o cara. Amava ele, eu acho, mas vê
se entende, amor, amor não basta! Aqui está o mundo. Aqui estou eu. Aí,
você. Vê se me entende! Deixar o mundo? Adeus, meu bem! Deixei o
cara. Deixei muitos caras. Deixei todos caras. Deixei lembrança? Um
não, nada. De tanta putada, virei puta mesmo, cobrando caro. Tive muitos
nomes, um abecedário. Levei a sério. Fiz umas plásticas, mudei o tipo.
Aumentei os lábios com ácido hialúrico. Cicatriz interna, em forma de Z.
Levantei as maçãs do rosto, o supercílio, a testa. Cicatriz atrás da orelha,
sob o cabelo. Com silicone, aumentei os peitos. Cicatriz vertical, rodeia a
aréola, aqui em L, ali em T invertido. Também coloquei nas nádegas,
fiquei sem sentar dois dias, dedinho de cicatriz, no reguinho. Tirei
banhinhas do ventre, fiozinho traçado entre os pentelhos. Mais uma lipo,
pros pneuzinhos, ninguém é de ferro, breves cicatrizes no tronco. Foi uma
grana, valeu a pena. Ficou perfeito. Virei uma outra. Literalmente. Dona
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da minha felicidade. Todos têm épocas favoráveis. Sorte no amor, nos
negócios, casamentos, amizades. Mas nem todos aproveitam as
oportunidades. Ninguém deve se dar por vencido. Não sou vidente, não
jogo búzio, nem nada. Mas tenho garra. Que nem agora. Nessa suíte,
desse motel. Você nem imagina. Ele ligou cedo. Marcou encontro. Quer
Aline, mulher casada, fogosa, que faz sm, usa acessórios, faz
pompoarismo. Chega na hora. Entro no carro. Saco na hora. No que dá
risada. Vejo na covinha do rosto. Aquela covinha. Disse: “Aline, às suas
ordens”. Ele disse: “ótimo”. Fomos pro Motel. Eu: “tira a roupa e deita”.
Ele: “ótimo”. Eu: sou dominatrix, fica de quatro, põe essa algema.
“Ótimo, ótimo”, esse era ele. Eu de cinta-liga, salto adaga, subo no seu
peito. A pica sobe, jibóia, aquela coisa enorme, que eu bem lembrava. Eu
digo: “puta, puta, puta, sou sua puta”. “Ótimo, ótimo, ótimo”. Põe essa
bolota de meia arrastão na boca. Ele pôe. Agora te chupo, escravo.
Mesmo surrado pelo tempo, ele era um lindo. Caio de boca. Chupei um
nada, senti seu gozo vindo. Faço manobra, seguro a coisa. Ele estremece,
respira, aguenta a parada. Aí vou de novo. Aproximei o monstro dos
grandes lábios, pequenos lábios, da vulva… O clitóris grosso, palpitava.
Enterro fundo. Ao colo do útero, se é que me entende. Ele era um cavalo.
Eu cavalgava. Busco o seu olho e olho no olho, olha que gozamos e olha
que no olho, eu garanto, no momento mágico, entende, sinto o seu susto,
o arrepio, ele vê quem eu era, o coitado. Via quem eu sou? Gozamos.
Gozamos. Aí eu aponto pro teto, pro espelho do teto, sei que está lá,
espelho no teto, aponto sem olhar, sei que está lá e aí eu digo, “olha no
espelho, espelho do teto, espelho meu, essa sou eu, não é Aline, nem é
Alice, Alana, Aluani, nem mesmo Zenaide, Zuleide. Essa sou eu. Essa
sou seu! Esse é você. Galo amarrado, pro abate, que a gente sangra pra
cabidela.” Sabe. Fiquei com medo de olhar. Lá. Olhar lá. Olha. Olha só.
Olha você pra mim. Olha. Olha a cicatriz. A cicatriz? Você diz nada?
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Nada? Então? Então. Então! Então eu olho. Eu olho. E não vejo nada.
Nada. Né? Lembrança do grande amor? Não vejo nada. Nada. Milagre.
Aí eu sorrio, um riso de navalha, e no dente faço o primeito talho no seu
pescoço. Negócio leve, um carinho. Ele olha o vazio, abobalhado. Leio
pensamento dele: “é ti, é ti, é ti!”. Giro e ponho a pixirica benta, a xota
santa, milagre, no rosto dele. Esfrego a pupuquinha, milagre, na cara dele.
Sabe lá como, a pica sobe num arranco. Com a boca em seu ventre, cravo
os caninos no monstro. Arranco a coisa num rasgo, num fôlego. Cuspo
num canto. Acho que aí é que ele se vai, arregaçado. Adeus, adeus. Sento
num canto, admiro a obra, em cada membrana, gozada. Reúno as tralhas.
Pego sua grana. Muito obrigada. Antes que fuja, me mande, deixo o
recado, escrito a sangue, grito no espelho. Adeus, amor, é no Inferno que
nos veremos, lá, amor, na eternidade, terra dos galos e das galinhas, terra
das putas e de seus filhos. Milagre. Um beijo. Fui. Muito obrigada. Mais
nada.
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